Você está na página 1de 3

Nouwen, Henri J.M.

«A Espiritualidade do deserto e o ministério


contemporâneo, o caminho do coração», Edições Loyola, São Paulo,
2000.

Este livro, escrito em 1981, deve ter influenciado Ricardo Barbosa quando escreveu
seu livro com o mesmo subtítulo.
Nosso mundo se aventurou em uma viagem suicida. Nossa sociedade é uma rede
perigosa de prepotência e manipulação em que é fácil ficar preso e perder a alma. Muitos
líderes cristãos se acomodaram. Outros permanecem ativos e envolvidos - mas acabam por
viver mais em seu próprio nome que no nome de Jesus. Nosso ativismo nos impede de ter a
calma e sossego para avaliar se vale a pena pensar, dizer ou fazer as coisas que pensamos,
dizemos ou fazemos. Nossa necessidade de afirmação contínua e crescente nos leva a
compulsão por mais trabalho, mais dinheiro, mais relacionamentos. Compulsões que
estão na base dos dois principais inimigos da vida espiritual: a ira e a avareza. Uma ira
oculta por trás da palavra afável, da fisionomia sorridente e do aperto de mãos cortês que
caracterizam muitos servos de Cristo.
Thomas Merton observa que os monges se afastaram para não afundar com o navio
naufragado, pois «eles sabiam que seriam impotentes para fazer o bem para os outros
enquanto se debatessem em meio aos destroços do naufrágio. Mas, quando tomaram pé
em terra firme, as coisas ficaram diferentes. Então tinham não só o poder, mas até a
obrigação de puxar para a segurança o mundo atrás de si.». Por isto, o autor busca
inspiração na experiência de um monge do século IV, que era tutor dos filhos do imperador.
Pedindo a Deus que o guiasse no caminho da salvação, Arsênio ouviu: «Foge, fica em
silêncio, reza sempre». Antão (251-336), o pai dos monges, perseguiu o chamado de deixar
o eu falso e compulsivo transformar-se na nova identidade de Jesus. O próprio Jesus foi
tentado com as três compulsões do mundo: ser capaz, ser espetacular e ser poderoso. Ele
as enfrentou afirmando ser Deus a única fonte de sua identidade.

SOLIDÃO
A solidão é o lugar da grande luta e do grande encontro – a luta contra as
compulsões do falso eu e o encontro com o Deus zeloso que se oferece como substância
da nova individualidade. É o lugar onde Cristo nos remodela á sua imagem e nos liberta das
enganosas compulsões do mundo. Para nós, solidão quase sempre significa privacidade, um
direito, um lugar onde juntamos novas forças para continuar a constante competição na
vida. Mas para aqueles que buscam a Deus, solidão é o lugar de conversão, onde o velho
eu morre e o novo eu nasce, onde me deparo com meu eu real: nu, vulnerável, fraco,
pecador, carente, desalentado, sem nada onde me esconder. É essa verdade que tenho que
enfrentar em minha solidão, uma insignificância tão horrível que tudo em mim quer correr
para meus amigos, meu trabalho e minhas distrações.
A ira e a avareza começam a mostrar suas caras feias. Tento restaurar meu falso eu
em toda sua vanglória. A luta é perseverar em minha solidão, ficar na cela até todos os
meus sedutores visitantes se cansarem de esmurrar a porta e me deixarem em paz. É a luta
para morrer para o falso eu. Mas ela está muito além das nossas forças. Quem quer
combater seus demônios com as armas que tem é tolo. O confronto com nosso nada
aterrador força-nos a nos entregar total e incondicionalmente ao nosso Senhor Jesus Cristo.
Só ele supera os poderes do mal. Só nele e por intermédio dele sobreviveremos às
provações de nossa solidão.
Estamos na solidão antes de tudo para encontrar nosso Senhor e estar com ele e
só com ele. Só no contexto da Graça enfrentamos nosso pecado; só no lugar da cura
ousamos mostrar nossas feridas. Quando percebemos que Cristo vive em nós, é nosso
verdadeiro eu, devagar deixamos nossas compulsões se dissiparem e começamos a
experimentar a liberdade dos filhos de Deus. O ministério só é fecundo quando se origina
de um encontro direto e íntimo com nosso Senhor.
Com a prática, a solidão não depende mais de isolamento físico, mas torna-se uma
qualidade do coração, uma disposição interior, um espaço infinito ao qual todos são
convidados. Ela faz de nos pessoas compassivas. A purificação e a transformação que
ocorrem na solidão manifestam-se na compaixão, numa disposição interior de
acompanhar os outros ao lugar onde eles são fracos, vulneráveis, solitários e desanimados.
A compaixão nunca coexiste com o julgamento, pois este cria a distância, a separação que
nos impede de estar realmente com o outro.
A solidão transforma os hipócritas em pessoas meigas, atenciosas e magnânimas,
profundamente convencidas da própria pecaminosidade e tão profundamente cônscias da
misericórdia ainda maior de Deus que sua própria vida se transforma em ministério. É,
portanto, à solidão que precisamos voltar, não sozinhos, mas com todos os que abraçamos
por meio do nosso ministério.
SILÊNCIO
O silêncio completa e intensifica a solidão. Somos inundados por uma torrente de
palavras que se tornaram vazias e não incentivam a comunhão. Quando já não são um
reflexo da Palavra divina na qual e pela qual o mundo foi criado e redimido, nossas palavras
perdem o fundamento. A palavra que dá fruto nasce do silêncio e nos leva a um silencio
mais profundo. O silêncio nos faz peregrinos, nos torna atentos à vida do Espírito em nós.
Ele permite-nos pronunciar uma palavra que participa do poder criador e re-criador da
Palavra de Deus.
Estamos tão contaminados por nosso mundo tagarela que nos apegamos à opinião
enganosa de que nossas palavras são mais importantes que nosso silêncio. Nosso ministério
não deve conduzir a discussões, debates e argumentos sobre Deus, mas ao silêncio de Deus,
à suave e cuidadosa conversão do silêncio vazio em silêncio pleno, do silêncio ansioso em
silêncio tranqüilo, e do silêncio inquieto em silêncio sossegado, para que nesse silêncio
convertido aconteça um encontro real com o Pai. A palavra da Escritura precisa ser exposta
de forma a criar os limites dentro dos quais enxergamos a amorosa, carinhosa e suave
presença de Deus.
Aconselhamento significa entrar juntos no amorável silêncio de Deus e ali esperar a
Palavra que cura, conduzir a pessoa receosa ao silêncio de Deus e ajuda-la a se sentir à
vontade ali, esperando que, devagar, ela descubra a presença curativa do Espírito. É ainda
ajudar a pessoa a se concentrar no acontecimento real, mas muitas vezes oculto, da
presença ativa de Deus em sua vida. O silêncio do coração é muito mais importante que o
da boca. Ele é meio e não fim: meio de nos tornarmos mais atentos à presença de Deus e
mais amorosos.

ORAÇÃO
Para os monges do deserto, solidão não é estar a sós, mas estar com Deus. Silêncio
não é deixar de falar, mas escutar a Deus. Solidão e silêncio são caminhos para a oração
incessante. Orar não é tentar conseguir benefícios de Deus, mas habitar com Deus. É
descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor, onipresente, onisciente
dentro de nós. A oração do coração é a oração da verdade. Desmascara as muitas ilusões
sobre nós mesmos e sobre Deus e nos conduz ao verdadeiro relacionamento do pecador
com o Deus misericordioso. Ela consiste em orações breves e simples, é incessante e inclui
tudo. A tranqüila repetição de uma palavra ajuda-nos a descer com a mente ao coração,
ajuda-nos a nos concentrar, a nos mover para o centro até que tudo o que está em nossa
mente se transforme em oração, até que seja menos eu e mais o Espírito de Deus que ore
em mim.
Nosso mundo compulsivo, verborrágico e voltado para a mente exerce um controle
firme sobre nós, e precisamos de uma disciplina muito forte e persistente para que ele não
nos conduza à morte. Solidão, silêncio e oração permitem salvar a nós e aos outros do
naufrágio da nossa sociedade auto-destrutiva.

Você também pode gostar