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A VERDADEIRA SOLIDÃO (I)

“Espera tudo de ti próprio.”


BUDA

O caminho espiritual de cada ser humano é estritamente pessoal e,


provavelmente, só o compreenderemos naqueles pontos que também são
comuns à nossa peregrinação interior. E, a não ser que tenhamos uma relação
pessoal muito intensa com aquele(a) que descreve o seu caminho de busca
espiritual, é duvidoso que o relato de outra pessoa nos toque, se aquilo que ela
nos conta está muito distante da nossa própria vivência. Mas existe algo de
comum na vida de todo e qualquer ser humano, quer ele tenha ou não
consciência de que há uma finalidade maior na sua existência e quer busque ou
não conscientemente esse fim último: a experiência da solidão, a verdadeira
solidão, a antecâmara da passagem inevitável a que nenhum de nós se pode
eximir – a dissolução física, o cessar (eterno? passageiro?) da nossa curta
existência mortal. Partilhamos a experiência do nascimento com a nossa mãe,
mas a da morte é exclusivamente pessoal.
O que é, pois, a solidão? Que significa estar só? Qual é o significado
espiritual da solidão? Comecemos por precisar um pouco melhor a acepção do
vocábulo “sozinho”. O dicionário define “sozinho” como “inteiramente só;
único; sem testemunhas”, e “só” como “sem companhia; solitário; isolado;
consigo mesmo”. Por sua vez, o termo “solidão” é definido como “estado do que
está só; lugar solitário; retiro”.
Estar só é, então, o contrário de estar acompanhado, mas isso não significa
necessariamente solidão, no estrito significado físico que o dicionário lhe dá.
Quando estou sozinho posso estar totalmente ocupado e absorvido em mil e uma
actividades e pensamentos, inclusive em comunicação com aqueles que amo, e
não ter, por isso, nenhuma sensação de solidão. Inversamente, há ocasiões em
que, mesmo rodeado por pessoas, me posso sentir só, porque o meu interesse e a
minha atenção não são captados por nada do que me rodeia. Estou “isolado
comigo mesmo”.
A verdadeira solidão a que me refiro é uma consciência de si próprio,
naqueles momentos ou períodos em que nos alheamos (quase) completamente
do mundo e sabemos, porque o sentimos, que existimos para além de tudo o
resto e que, ainda que fôssemos o único ser da inteira Criação, éramos nós
próprios e continuaríamos a ser nós próprios. Não é possível haver nenhum
crescimento espiritual sem esta consciência de si, existente para além de todas
as coisas e, talvez, mesmo independente de todas as coisas.
Há dois importantes tipos de solidão que qualquer pessoa pode
experimentar: a solidão-vazio ou a falsa solidão, que ignora a verdadeira

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realidade do “eu”, e a solidão-plenitude ou a verdadeira solidão, em que somos,
com maior ou menor profundidade, conscientes da grandeza sublime do nosso
ser mais verdadeiro. É a esta solitude que se refere a escritura budista
Dhammapada: “Na solidão, que poucos apreciam, que ele descubra a alegria
suprema: livre de posses, livre de desejos e livre de tudo quanto lhe possa
obscurecer a mente”. Era também este isolamento espiritual que buscavam os
padres do deserto, nos primórdios do cristianismo. A vivência do despojamento
de si é descrita deste modo por Dionísio, o Areopagita: “Pois que é saindo de
tudo e de ti próprio, de modo irresistível e perfeito, que tu te elevarás num puro
êxtase até ao raio misterioso da divina Essência, depois de teres abandonado
tudo e te teres despojado de tudo”.
No outro extremo – infelizmente bem mais comum –, quando se
experimenta a solidão-vazio, não importa quão bem conhecemos os nossos
vícios e virtudes, as nossas qualidades e defeitos, quão vasta é a nossa cultura e
os nossos conhecimentos intelectuais, quão sábios e eruditos possamos ser
acerca de questões espirituais. Nessa altura, nada disso interessa, e a única coisa
que conta é o grau de consciência espiritual do “Eu”, o verdadeiro “Eu”, a Alma,
o Espírito, o Deus interior, aquilo que “Eu” sou! Porque cada um de nós É, nós
somos, mas somos o quê? De que me serve ler livros de culinária, maravilhosas
descrições de comida, se não tenho nada para comer? Que utilidade tem para
mim contemplar quadros lindíssimos de regatos e cascatas, água fresca e
abundante, quando tenho sede e quero beber? Para que quero eu ler centenas de
livros e escrituras que me falam de Deus e da revelação da divindade na minha
alma, se não possuo essa experiência, se o ser divino me não foi revelado?
E é este o cerne da questão vazio-plenitude: o vazio é a ausência do “Eu”,
da consciência de Si e a plenitude é a sua presença. Conhecimento teórico é
conhecimento teórico, experiência prática é experiência prática. Eu posso
acreditar que sou imortal, mas é certamente muito melhor experimentar essa
imortalidade do Amor que eu próprio sou e em mim contenho. Mas Deus não se
revela senão àqueles que O procuram e àqueles a quem Ele próprio escolhe. “A
Alma não é alcançada nem por meio de muitos estudos, nem por meio do
intelecto ou dos ensinos sagrados. É alcançada por aqueles por ela escolhidos –
porque a escolhem a ela. Aos seus escolhidos revela a Alma a sua glória”.
(Upanishades)

Rui Vaz da Fonseca, in “Correio da Feira” (23-04-1999)

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