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O AUTOCONHECIMENTO

“Conhece-te a ti próprio e conhecerás o universo e os deuses.”


SÓCRATES

Quem sou Eu? Quem é o verdadeiro Ser que se esconde por trás daqueles
que eu amo, que prezo, que venero, que adoro, com os quais desejo partilhar a
minha felicidade? A milenar questão sempre actual reaparece, uma e outra vez,
na nossa consciência. Iludir esta autêntica “dúvida inicial” é fugir da felicidade
autêntica e real, a qual é inalcançável a não ser que encontremos, em nós
mesmos, a resposta.
Antes de nos relacionarmos com alguém, temos de estabelecer a relação
mais primordial connosco próprios. Sem conhecermos o que somos, quem
somos, o que queremos e o que pretendemos, qualquer tipo de relação com outra
pessoa (que, muito provavelmente, também não se encontrou ainda consigo
própria) é necessariamente incompleta. A vida interior é a quarta perna da
cadeira na qual assenta a felicidade a que todos aspiramos. Ainda que os
aspectos profissional, social e familiar se nos afigurem plenamente satisfatórios
(o que, convenhamos, não é “pêra doce”), se nos faltar a mais íntima e subtil
realização pessoal, dificilmente nos poderemos equilibrar ou sentar
confortavelmente na cadeira da Vida.
Como poderemos dar a alguém aquilo que não temos? Como repartir com
os outros a harmonia, a paz, a verdadeira alegria que nos falta? É por isso que,
muitas vezes, a relação que estabelecemos com o outro (o próximo que a
religião manda amar como a nós mesmos, isto é, o amor começa connosco
mesmos!) se baseia na busca da satisfação íntima que nos falta e não na oferta
desinteressada da felicidade que transborda do nosso coração (o verdadeiro
coração, o Eu real, o Deus de Amor das religiões). Afinal, quantas pessoas
conhecemos que exalem esse perfume do bem-estar consigo próprias, da alegria
pura e natural sem afectação, da autêntica paz interior apanágio de quem se
sente bem consigo mesmo porque se conhece e aceita as perfeições e
imperfeições, os altos e baixos, a tristeza e a alegria, a dor e a felicidade que a
vida inevitavelmente nos traz?
É por isso que a nossa vida interior, ou seja, o compromisso que
assumimos perante nós próprios (e o nosso Criador, para quem crê n’Ele) é o
pilar mais importante e básico, o alicerce seguro sobre o qual assenta tudo o
resto. O sucesso ou insucesso profissional, social ou familiar têm a sua raiz
nessa intimidade da vida pessoal. Antes de nos sentirmos bem com os outros,
precisamos de nos sentir bem connosco próprios. A aceitação do outro provém
da aceitação de si próprio.
A ausência do autoconhecimento é talvez a grande tragédia do mundo
actual. Mais do que tempo para as nossas relações com os outros, precisamos de
ter tempo para a relação connosco próprios. E isto não significa tempo para os
nossos hobbies, passatempos ou interesses. É muito mais do que isso: tempo
para mergulharmos dentro, para estarmos sozinhos com a nossa alma, a escutar
a voz do coração, tempo para meditação, oração, reflexão interior ou seja o que
for que lhe chamemos. Quanto melhor conhecermos o nosso coração, melhor
conheceremos o coração do outro, pois os corações sentem todos basicamente o
mesmo. Assim, o tempo que dedicarmos ao aprofundamento da relação
connosco próprios não tem qualquer carácter egoísta, porque é também
proveitoso para a nossa relação com os outros.
A frenética agitação e superficialidade da vida moderna não só nos faz
perder um pouco a disponibilidade e a paciência para cultivarmos as relações
com os outros, mas, pior ainda, retira-nos a própria disponibilidade para cultivar
a mais preciosa relação connosco próprios, ou, numa perspectiva religiosa, com
o Deus secreto dentro de nós. Daí, a solidão crescente sentida por tantas
pessoas. Mas há dois tipos de solidão diametralmente opostos: aquela de quem
ainda não se encontrou, e a raríssima solidão daquele que conhece o seu coração
e que nele descobre todo o preenchimento de que necessita. Uma pessoa assim
pode estar sozinha que está sempre acompanhada; pode viver fora do mundo,
que tem todo o mundo na grandeza da sua alma; pode estar aprisionada em
qualquer situação que a vida lhe coloque, que o seu coração permanecerá
sempre livre de todas as amarras. Um ser assim é o exemplo mais acabado do
altruísmo supremo, porque, tendo saciado toda a sua fome de prazer, não pela
satisfação anárquica dos sentidos ou pela escravização à sensualidade dos
desejos, mas pelo encontro com a própria fonte de todos os desejos (o Génio
dentro da lâmpada, que é Deus no coração), pode partilhar com os outros – com
todos os outros – a sua alegria. Quem tem paz transmite paz, quem sente amor
dá amor. Quem permanece confuso espalha confusão, quem ainda mistura amor
e ódio, umas vezes ama e outras despreza os que lhe são caros.
Deste modo, a temida e incompreendida solidão é uma condição
absolutamente essencial para o crescimento pessoal. É nessa solidão interior que
podemos (e devemos) penetrar nos recônditos da nossa alma e conhecer os
mistérios e maravilhas do nosso “eu” mais profundo. Se, consciente ou
inconscientemente, evitarmos essa solidão – o silêncio interior –, com
companhias, música, livros, televisão, festas, discotecas, passatempos,
divertimentos, trabalho, compromissos com os outros, e os mil e um afazeres da
nossa vida diária, se continuarmos assim a evitar o encontro connosco próprios,
nunca iremos ter a oportunidade de penetrar nesses recessos da alma que
esperam e anseiam por se revelar ao nosso conhecimento.
Assim, antes de buscarmos a companhia de alguém, é imperioso buscarmos
a companhia de nós próprios. Nunca poderemos conhecer o outro, se não nos
conhecermos em primeiro lugar. Não poderemos crescer com ele, se evitarmos
crescer na solidão da nossa própria intimidade. Intimidade vem de íntimo –
“situado muito dentro” – e não há nada de mais íntimo do que a nossa própria
alma ou ser interior. O outro só se torna íntimo quando partilha dessa comunhão
com a nossa intimidade, mas para a revelar precisamos de a conhecer e aceitar
em nós mesmos. Só aquele que se aceita pode abrir o coração para aceitar o
outro. Caso contrário, estaremos somente a cultivar emoções e sentimentos bem
intencionados, mas falhos de raízes profundas e sujeitos a desmoronarem-se,
mais dia menos dia.
Sem o conhecimento básico de si, não faz muito sentido procurar conhecer
os outros, muito menos relacionar-se intimamente com eles. Pois, que temos
para dar ao outro se não buscarmos o tesouro que anseia por ser descoberto no
nosso próprio íntimo? E se não nos dermos, como poderemos exigir receber do
outro? “A caridade começa em casa”. O ágape – o amor divino – nasce dentro e
só depois irradia para fora, da mesma forma que a combustão interna do Sol
produz o calor que sustenta e anima a vida na Terra.
É deste autoconhecimento que sempre falaram e falam os sábios e os santos
de todos os tempos. Eis o que dizem os que O conhecem: “Ele é incomensurável
na sua Luz e está fora do alcance de todo o pensamento, e contudo brilha mais
pequeno do que a mais pequena coisa. Está longe, muito longe e, contudo, está
muito perto, abrigando-se na câmara mais íntima do coração. Não pode ser
visto pelos olhos, e as palavras não o podem revelar. Não pode ser alcançado
pelos sentidos, ou pela austeridade ou ritos sagrados. Pela graça da sabedoria
e pureza de espírito, pode ser visto, indivisível, no silêncio da contemplação.”
(Mundaka Upanishade)

Rui Vaz da Fonseca, in “Correio da Feira” (09-04-1999)

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