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A presença da fenomenologia na psicoterapia

Fenomenologia na clínica é um método, é uma maneira. É um caminho para se


chegar à casa daquele que lá habita. Cada coisa, cada pessoa, tem um
endereço diferente. Portanto, o método fenomenológico é desfio constante de
construir um caminho para se chegar a. Não há um caminho genérico. A
fenomenologia estabelece toda a riqueza e a maneira própria daquilo com
quem nos encontramos, quando encontramos seu endereço. De acordo com a
terminologia de Gaston Bachelard, é quando entramos em contato com a
intimidade dele. E usando a terminologia de Martin Heidegger, é quando
entramos em contato com o modo próprio de ser.

Com isso, nós somos aquele que vai se aproximar de determinada pessoa. Ela
quer viver conosco uma possibilidade de abertura do modo mais próprio dela
ser, muitas vezes um modo que ela própria desconhece. A partir do contato
com outra pessoa, esses modos vão se mostrando. Essa experiência de
partilhamento com alguém da nossa própria maneira de ser é que constitui o
trabalho clínico. O objetivo nada mais é que esse partilhamento. Esse trabalho
mesmo de viver um progressivo aprofundamento da nossa maneira de estar no
mundo com outra pessoa, faz com que isso provoque uma “cura” – cura é
alcançar a melhor configuração possível das minhas possibilidades de ser.

Também a atividade do psicólogo é fazer com a pessoa vá se apropriando de


si mesma. Permitir aceitá-la como ela pode ser. Isso é a cura no sentido
fenomenológico: como poder integrar-se ou não com isso que aparece como
sendo eu mesmo, e que eu desconhecia.

A fenomenologia é m método que não pode ser instituído como uma coisa
genérica, que sirva para qualquer coisa. Mas é como se recomendasse para
cada um de nós uma abertura para uma grande aventura de entrar em contato
com o diferente de nós, e de acolher e procurar compreender esse diferente.
Esse diferente tem em relação a nós e a todas as outras pessoas alguma
referências ontológicas. Todo ser humano é enquanto mais próprio de ser algo
como angústia e culpabilidade. Todo ser humano é ser para a morte. Todo ser
humano é, ao mesmo tempo que finitude, transcendência. Todo ser humano
vive isso tudo ao mesmo tempo. Todo ser humano vive ser e não ser. E todo
ser humano é no mundo. O seu modo mais próprio de ser é na sua presença
em, no mundo, com os outros. Mas cada um de nós vive estas dimensões
ontológicas a cada momento de um certo modo.

O trabalho do psicólogo, tendo essas referências ontológicas, é procurar


compreender qual o modo de determinada pessoa viver essa dimensões. De
que modo ela dá conta da angústia de ser? Angústia de ser não quer dizer
sentimento de angústia. Sentimento de angústia é uma das versões ônticas da
angústia. Angústia como dimensão ontológica é ter de ser. É liberdade. Eu sou
aquele que vai gerir a minha própria existência. Isso é potência e sentimento de
solidão. O sagrado é a dimensão que nos acompanha como inspiração do
sentido da nossa existência.

Uma outra consequência da metodologia fenomenológica é a de que ser


fenomenólogo é estar desafiado o tempo todo para começar uma nova
aventura. É mergulhar sem saber bem o que vai encontrar. É viver aquele
instante no qual nos lançamos para a sua originalidade própria, não é para
repeti-lo. Claro que vamos ter uma referência daquilo já vivido, mas naquele
instante em que estamos de encontro com, aquilo exige de nós uma abertura.
Exige uma ingenuidade, para, como uma criança, acolhermos o que se
apresenta naquele instante.

Tanto Bachelard como Heidegger, elegem essa realização do ser humano


como algo muito rico e fundamental para oferecer a nós uma espécie de
primeiro guia para essa grande viagem de aventura: a poética. Poética é um
espanto. É olho aberto, vendo. É o que o filósofo vive o tempo todo. É uma
criança, cuja pergunta é: o que é isso? Por isso que a ontologia é a procura
dessa resposta que habita em nós. Isso para o qual nos dirigimos e não temos
uma clareza de seu sentido de ser.

Nós, seres humanos, temos a peculiaridade de estarmos abertos a tudo aquilo


que não é nós mesmos (dasein). Essa pergunta nos acompanha o tempo todo.
Essa questão é muito propriamente nossa. De sermos um modo mais próprio
de habitarmos, de estarmos aqui. O nosso estar aqui, que já é o habitar, que já
é o construir uma casa especial no mundo, que é parte do mundo. Mas nesta
parte do mundo vivemos de um modo muito especial, no aconchego da nossa
intimidade. Esta presença nossa é, na maior parte do tempo, interrogadora a
respeito da nossa presença na vida. Nós estamos para ser, sendo. Esse estar
sendo, estar presente no mundo deste modo, causa sentimento de angústia.
Eu que tenho que dar conta dos meus gestos na vida. Dado isso, e de que eu
já estamos no mundo para além da nossa determinação, de que somos
indeterminados, fazemos o que se faz. Empurramos com a barriga aquilo que
em nenhum momento pode nos escapar: sermos aquele que vai procurar viver
a sua busca de si mesmo no mundo.

A poética é a realização de espanto mais espontânea. É rápida e sintética.


Filosoficamente, isso ocorre de outra maneira, mais devagar e aos poucos. A
poesia não serve para nada porque não é instrumento. Serve para nós
estarmos abertos a nos maravilharmos e a nos horrorizarmos. Para que
possamos viver aquilo que se apresenta como se apresenta, temos que estar
liberados da função de. A poética é estar completamente disponível, não
previamente comprometido com. A não ser do estar aqui, com a sensibilidade
totalmente aberta, sem uma finalidade previamente estabelecida. Segundo
Bachelard, isso se chama devaneio poético: ser impactado e se deixar levar
por desdobramentos de sentido e de possibilidades de ser daquilo que me
impactou. O que aquilo que me impactou mostra de si mesmo? Fenômeno.
Fenômeno é o que se mostra tal como se mostra.

O poeta e o filósofo são aqueles sempre preocupados em se manterem fiéis ao


fenômeno, e aí vivem o devaneio poético, que é um enriquecimento. Não um
enriquecimento pessoal em cima daquilo que o impacta, mas devaneio é
manter-se o mais aberto para ir acompanhando a possibilidade de ser daquilo
que o impacta. Não é adicionar qualidades que ele quer oferecer.

Tendo o filósofo com seu trabalho rigoroso, em sentido de manter-se fiel àquilo
que o toca, e construir toda uma obra que é a expressão mais direta disso, de
um lado, e de o outro lado, a poética, que tem essa tarefa de uma maneira
muito sintética e direta em tudo o que for considerado arte, qual é a referência
dos psicólogos? É se valer da filosofia e se valer da poética como referência
dentro da psicologia, dentro da chamada ciência.

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