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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA

Profa. Suzana Filizola Brasiliense Carneiro


Aula 6
7º semestre
2019

CARNEIRO, SFBC
“Do desabrigo à confiança:
Daseinsanalyse e terapia”

Bilê Tatit Sapienza

CARNEIRO, SFBC
Daseinsanalyse

• Colocar-se à disposição de acolher e cuidar dos


sentidos das vidas daqueles que nos procuram.

• O que significa esse cuidado? Devolver ao outro a


responsabilidade por sua existência.

• Cada encontro é originário e irrepetível, assim


como os acontecimentos da nossa vida - Encontro
entre duas singularidades.

CARNEIRO, SFBC
DASEIN
• Prática terapêutica fundamentada no Dasein.

• Dasein = ser-aí. Designa aquele ente (o ser


humano) para o qual ser é sempre questão.
Designa aquele cujo modo-de-ser é sempre aí. Aí
aonde? No mundo.

• Dasein = EXISTÊNCIA HUMANA. É o modo


humano de existir.

CARNEIRO, SFBC
Visão heideggeriana
• O que encontramos na base da existência
humana quando dirigimos o olhar para ela?

O essencial do homem não é ser racional e sim ser


destinado ao cuidado (Sorge). O homem é um
poder-ser aberto em possibilidades, mas limitado
pelo não poder ser tudo, pela finitude. Ele é
destinado a realizar sua existência no mundo em
que vive. É sempre devedor da existência (p. 13).
CARNEIRO, SFBC
Visão distorcida da Daseinsanalyse
• “Vamos tentar algo diferente do tradicional.”

• Maneira “light” de encarar as questões. Querer se


conhecer, sem olhar para o que há de mais
profundo.

• Proposta alternativa, jeito mais simples de resolver


questões que não necessitam ser aprofundadas,
analisadas.

• Mas, o que poderia ser mais profundo e sério do


que o existir?
CARNEIRO, SFBC
DESAFIOS DO ATENDIMENTO

– Trabalhar sem o respaldo de uma teoria;


– Manter o pensamento aberto;
– Desamparo, sentir-se solto.
– Passagem da discussão em grupo (ideias) para o
sofrimento concreto de alguém que está diante de
você e espera algo de você – DOR.
– Cada pessoa conta a sua história, sua vida. Se
estivermos abertos, juntos, sofreremos com ela,
Mas como sofrer sem se afundar junto?

CARNEIRO, SFBC
DESAFIOS DO ATENDIMENTO
• A teoria serve de anteparo entre a experiência de
sofrimento do paciente e a impotência que
sentimos.

• Maneira de estar com o paciente –


disponibilidade para o que chega, sentindo como
se aquilo estivesse acontecendo pela primeira vez
no mundo, como se não houvesse com o que ser
comparado – o paciente inaugura aquela
possibilidade de sofrer.
CARNEIRO, SFBC
DESAFIOS DO ATENDIMENTO
• Outras abordagens: vão do particular para o
geral

• Daseinsanalyse: Buscamos a diferença


individual, peculiar que diferencia aquele
paciente dos demais (passagem do a-gente
para o próprio).

CARNEIRO, SFBC
SENTIDO DO ATENDIMENTO
modo do terapeuta estar na sessão
• Encontro entre duas pessoas, duas existências
singulares, uma que sofre, e outra que escuta e
que procura compreender o que está
acontecendo naquela vida.

• O terapeuta não está lidando com um psiquismo,


querendo explicar porque ele funciona de tal
forma. Ele se encontra com a existência de um
ser humano que quer ser compreendido por
alguém, e quer se compreender melhor.
CARNEIRO, SFBC
SENTIDO DO ATENDIMENTO
modo do terapeuta estar na sessão
• Não se trata da mera expressão de um
comportamento afável, de um jeito simpático
de ser com o paciente.

• Também não se trata de uma postura. Trata-se


de um modo de ser que deriva de um
referencial filosófico e epistemológico
radicalmente diferente daquele aceito pela
visão tradicional.
CARNEIRO, SFBC
SENTIDO DO ATENDIMENTO
modo do terapeuta estar na sessão
• O trabalho não visa uma estrutura psíquica interna
com um mecanismo de funcionamento regido por
determinadas leis.
• Concebemos que temos diante de nós uma
existência (objeto de estudo da feno).

• Existência = aquilo que caracteriza o ser daquele ente


chamado homem.

• Podemos dispensar o conceito de psiquismo, mas


não há como ignorar que ali, diante de nós, alguém
existe.
CARNEIRO, SFBC
EXISTÊNCIA
• Rigorosamente, só o homem existe. Os outros
entes são (mas não sabem que são, por isso não
existem).

• Existência é abertura compreensiva que se dá no


mundo. Precisa do mundo para ser.

• Existência é ek-sistencia = ser-para-fora. O Dasein


é tocado pelo ser dos entes e, geral. Ele é
abertura, é o aí para a manifestação dos entes.

CARNEIRO, SFBC
Em síntese
• A existência é o modo como o ser se dá. É a
própria abertura, compreensão do mundo; e
não apenas uma compreensão no sentido
intelectual, mas compreensão no sentido de
projetar-se, de abarcar o que se apresenta
(captar o para quê dos entes de determinada
situação). É uma compreensão sempre
imbricada numa disposição afetiva relativa ao
que é compreendido (p. 18).
CARNEIRO, SFBC
Existência
• A existência é abertura compreensiva e
disposta afetivamente.

• Existência é vir-a-ser, desdobrar-se de


possibilidades.

CARNEIRO, SFBC
O PACIENTE
• O fenômeno que temos diante de nós é a existência de
alguém.
• “Isso supõe termos de lidar com tudo o que está
implicado naquele modo particular de ser-no-mundo.
Ali estão todos os significados e todos os afetos que
compõem aquele modo de existência, com tudo o que
eles trazem de esperança e de dor. Aquela existência é
sua história já vivida e a que se faz momento a
momento se abrindo para o futuro. Ali está um ente
que , dada sua condição de ser mortal, está sempre
deixando de ser, mas está , ao mesmo tempo, sempre
vindo-a-ser, dada sua condição de ser história” (p. 19).

CARNEIRO, SFBC
Objetivo do trabalho terapêutico
• O foco do nosso trabalho é a facticidade* da
existência da pessoa que nos procura no
consultório.

• * Facticidade = significa que a existência é sempre


esta, a minha, a de cada um. É cada um de nós
que é jogado na existência, no ser-possibilidade
de si mesmo, no ter de arcar com o seu existir no
mundo fáctico que é o seu.
CARNEIRO, SFBC
Objetivo do trabalho terapêutico
• Nossa compreensão e nossa interpretação
tem em vista favorecer que aquele Dasein se
aproxime mais propriamente de si mesmo, se
torne mais transparente para si mesmo em
seu ser.

• É seu ser que está em jogo. É pelo sentido de


sua vida que ele se pergunta.

CARNEIRO, SFBC
Modos de aproximação
• Suspensão dos conceitos tradicionais da psicologia.

• Manter a atenção ao que se manifesta a partir de


uma escuta pacienciosa.

• Vamos rodeando com perguntas simples e pequenas


observações: nisto que o paciente está dizendo
agora, o que mais pode estar implicado? Que modo-
de-ser no mundo é esse? Como isso que ele conta
entra em sua história? Para onde isso aponta? Junto
a que outros significados isso que ele diz faz sentido?
Que manifestação corporal acompanha sua fala?
(p. 38). CARNEIRO, SFBC
Mostrar e ocultar – sentido próprio
• É próprio do fenômeno mostrar e ocultar.
• Escutar com paciência para não empobrecer e restringir
aquela manifestação a um conceito psicológico prévio.
• Esforço de interpretação e explicitação do seu sentido
naquela existência em particular.
• “Quando paciente e terapeuta se aproximam da
compreensão de um sentido mais ‘próprio’ de algo que
foi trazido para a sessão, isso tem o sabor de uma coisa
verdadeira” (p. 39).
• O que foi des-velado, pode voltar a se encobrir. Por quê?
Porque a compreensão pode vir carregada de uma
disposição afetiva que corresponda ao encontrar-se
desabrigado, no mundo inóspito (angústia).
CARNEIRO, SFBC
Indigência e potência
• O existir é ao mesmo tempo indigência e
potência.

“Desabrigado, devedor, finito, angustiado, vivendo


na falta, decaído na impropriedade e, contudo,
podendo responder ao chamado para ser mais
propriamente si-mesmo e corresponder à sua
destinação existencial, fazendo planos, alimentando
sonhos, querendo ser feliz. Assim é o Dasein em sua
indigência e potência de ser. Esse é o ser humano
que está junto a nós na terapia” (p. 42).

CARNEIRO, SFBC
Paradoxos
• Cada ser humano carrega em si todos os
paradoxos e todos os conflitos que significam
existir: sentimentos contraditórios; querer e
não querer ao mesmo tempo; precisar se
tornar si mesmo e se afastar de si mesmo;
precisar de um sentido para a vida e não
conseguir se dedicar a ele; saber da
necessidade do outro e sentir a dificuldade de
conviver com o outro; precisar de proteção e
saber de seu desabrigo.
CARNEIRO, SFBC
Resumo dos existenciais (pgs.43-47)
• Existenciais = caracteres fundamentais do Dasein. Tudo o que
ontologicamente caracteriza o Dasein.
– Ser-no-mundo
– Poder-ser
– Facticidade
– Decadência
– Cuidado
– Temporalidade
– Compreensão
– Projeto
– Ser jogado
– Disposição afetiva
– Discurso
– Impropriedade
– Corporeidade
– Ser-com-o-outro CARNEIRO, SFBC
Compreensão do paciente
• Nosso cuidado com a existência concreta do paciente é
permeada pelo compreensão que temos do Dasein
como ente que realiza sua essência no ter que cuidar
de seu ser, que está sempre em jogo.

• A terapia é um compartilhar junto ao paciente a


interpretação da facticidade da sua existência =
empenhar-se na explicitação, na ampliação e na
reformulação do sentido que aparece, dando
oportunidade para que o paciente reveja certas
maneiras enrijecidas de pensar e sentir sobre si mesmo
e sobre a vida em geral (p. 48).

CARNEIRO, SFBC
Caso clínico fictício (p. 50)
• Jovem de 20 anos, muito bonita. Sofre um
acidente de carro com o namorado. Seu rosto fica
desfigurado e passa por várias cirurgias.
• Namorado tem alta antes dela e some.
• Dizem que ela estava dirigindo o carro, e ela diz
que era ele, mas ninguém acredita.
• Trabalha com cosméticos e valoriza muito a beleza.
Sua vida, seus projetos se baseiam no fato de ser
bonita.
• Após o acidente, sente que, de uma hora pra
outra, sua vida acabou. Não há futuro, não pode
confiar em ninguém.
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• A terapeuta é afetada pela paciente:

“Chegou em casa, tomou banho e depois se olhou no


espelho. Viu seus cabelos bem lavados. Os da
paciente do hospital ainda tinham alguma coisa meio
empastada que deve ter sido usada para remover o
sangue. Viu seu rosto harmonioso e gostou do que
viu, mas não ficou alegre. Pensou: ‘Ontem ela deve
ter se olhado no espelho como eu agora’. Enquanto
secava os cabelos, chorou se lembrando da moça” (p.
51).
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• A terapeuta é afetada pela paciente:

“Nunca tinha visto alguém tão machucado.


Meu, não dá pra aguentar. Não sai da minha
cabeça aquele rosto (...) você fica feito uma
pasmada ali na frente da pessoa sem ter o que
fazer, sem ter o que dizer” (p. 52).
Reflexão da terapeuta – p.63.

CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• Acolher a paciente na sua facticidade,
singularidade e não como “a-gente”:
(Opinião da tia psicóloga) “Por que uma menina sai
dirigindo desse jeito, certamente depois de beber
muito e, quem sabe, com alguma droga? Você não
vê que há no fundo uma vontade de acabar com a
vida?”
“- Ah tia. Você não está exagerando em concluir
assim sobre essa destrutividade da moça? A gente
não sabe nada sobre ela.” (p.53).
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• Acolher a paciente na sua facticidade,
singularidade e não como “a-gente”:
“Alguma coisa , que ela [terapeuta] não sabia bem o
que era, tinha se esvaziado naquela hora, e se sentiu
sozinha.
Depois que ela saiu da sala, a tia ainda falou
para quem estava lá:
- Nos primeiros tempos de consultório é assim
mesmo. Ela está impressionada. Mas se você se
deixar levar assim pelos problemas dos outros, você
está perdida (...) cada coisa tem sempre sua
explicação” (p. 54).
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• O modo como a pessoa vê a situação é mais
importante que o fato:
(Mãe não acredita que ela não estava dirigindo e
explica) “Me explicaram que quando uma coisa é muito
ruim, a pessoa começa a achar que aquilo não foi por
causa dela.”

(Terapeuta e paciente) “-Ninguém pode testemunha a


seu favor, não é?
- É isso. Eu estou sozinha até nisso. Você acredita em
mim?
- Eu não tenho nenhum motivo pra não acreditar em
você... Mais que isso. Acredito em você.”
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
(Terapeuta pós sessão)
“Será que estou sendo ingênua nisso? E se isso for
uma invenção meio delirante? Ou até uma mentira
mesmo? Mas porque também não pode ser
verdade? Porque ele seria mais confiável do que
ela? (...) Também não é minha função ser detetive.
Deve ser duro saber que os outros suspeitam assim
da gente” (p.77).

CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
• A terapia é um compartilhar junto ao paciente a
interpretação da facticidade da sua existência:
(sonho com terra marrom da cor de terra de
desenho de criança, terra mexida, toda revirada)
“Acho interessante o seu modo de explicar a cor da
terra dizendo que é cor de terra de desenho de
criança. Por que não é só cor de terra e pronto?
- (...) Tem um marrom nas caixas de lápis de cor
que é meio feio, mas tem um marrom cor de terra
que é bonito (...)
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
- Então a terra do seu sonho era bonita?
- Era bonita. O estranho era estar toda revolvida
(...)
A terapeuta ligou essa terra revolvida com o
sentimento da moça de ter tido sua vida toda
mexida nos último tempos. Mas não disse isso.
Apenas perguntou:
- Você já viu terra desse jeito?

CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
- Assim, inteiramente mexida, não. Mas já vi
quando em algum lugar vai haver uma plantação
e então eles mexem a terra antes, ou quando vão
construir alguma coisa numa região e revolvem
tudo para nivelar, pra preparar o terreno.
Entende? É possível que fossem plantar ou, quem
sabe, construir lá naquela terra.

CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
A terapeuta pensou: “ ainda bem que não falei o
que tinha pensado antes”. E disse: “-É parece que
sim. Numa terra bonita, marrom-cor-de-terra,
alguma coisa está pra ser plantada ou construída. E
tem a cor dos desenhos de criança. Desenhos de
criança. Isso diz alguma coisa pra você?
- Ora, desenho de criança a gente só faz quando é
criança. Depois, nunca mais. Outras coisas a
gente perde também quando cresce.
- Por exemplo?
CARNEIRO, SFBC
Terapeuta
- Confiança.
- Mas no seu sonho há um toque de criança, há
a cor de terra dos desenhos de criança. Será
que há um toque de confiança?
A moça rapidamente olhou pra trás. Havia
lágrimas em seus olhos quando ela disse pra
terapeuta:
- Será possível?
- É possível.” (p. 101)
CARNEIRO, SFBC
Paciente
• A procura por terapia em geral está ligada ao
sentimento de estar desabrigado, de se
encontrar na inospitalidade da existência:

“Nunca senti necessidade [de terapia]. Mas


agora, de uma hora pra outra acabou tudo. Não
sou mais quem era, não tenho mais o que tinha.
Não é que eu tenha perdido coisas, não, é minha
vida que está perdida. Minha vida acabou.” (p.
58).
CARNEIRO, SFBC
Paciente
• Não há mais um futuro em que ela possa ser
feliz. Sua vida está amarrada ali, no já sido. O
acontecido engole qualquer possibilidade
diferente dele mesmo. Não há para ela o
poder ser diferente do que ela está sendo
agora – sentir-se feia, abandonada, infeliz
(p. 118).

CARNEIRO, SFBC
Paciente
• Cuidado, responsabilidade pela própria
existência:

“Mais bonita ou menos bonita, você é você. O


que você tem pra dar ao mundo?

CARNEIRO, SFBC
Paciente
• Terapeuta aponta possibilidades que estão aí. Não
as inventa:
“Você quer atingir alguém [com a sua revolta contra o
mundo]. Mas tem uma capacidade de amar que faz
com que não queira prejudicar certas pessoas; não
quer, por exemplo, que sua mãe e sua irmã sofram por
você. Apesar da sua revolta, você mantém essa
capacidade de ter consideração, de ter cuidado para
com os seres humanos. Isso é sinal de que o que
aconteceu não arrasou você totalmente (...) disse que
perdeu a confiança, mas tem confiado em mim
[terapeuta]. Alguns aspecto de seu mundo e de você
mesma estão preservados. A vida pode recobrar
sentido” (p. 85)
CARNEIRO, SFBC

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