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NOS CLMES DO DISFSPERO

do esquecimento. Naquelas noites infernais eu passei a comPÍe explicâçâo. Quando todo o passâdo da âlmâ palpitâ dentro de
ender a inutilidâde da frlosofia. As horas de vigilia constituem, nós num momento de imensa tensào, quando umâ presençâtotal
no fundo, umâ re.ieição contínuâ do pensâmento pelo pensa- atualiza as experiências aprisionadas e quando um ritmo perde
mento, a consciência exasperada porela mesmâ, umadeclaÍação seuequilibrio e uniformidade, a mone nos arrancâdoscumes da
de guerra, um ultimâto infernal do espirito dirigido contra si vida sem que conheçamos diante dela aquele horrorque a€ompa-
próprio. CaminhaÍ nos impede de esquadrinhar as perguntas nha a atordoadora obsessào da morte. É um sentimento análogo
sem Íesposta, ao passo que no leito somos câpaz€s de ruminaro àquele dos amântes nos cumes dâ íelicidade, diante dos quais
insolúvel âté â vertigem. suÍge,passâgeiÍâmasintensa,aimâgemdamorte,ouaosacessos
Eis em que estâdo de espirito concebi este iivro, que Para de incerteza, quando, junto com o nâscimento do amor, emerge
mim foi uma espécie de libertaçáo, uma explosào sâlutar. Se o pressentimento do final ou do abândono.
não o houvesse escrito, eu com certeza leria posto frm às minhas Sào muito poucos os que podem suportar tais experiênciâs
noites, âté o frm. Há sempre um sério risco em manter conteúdos que
exigem objetividâde, em encelrâr uma energia táo desbordante,
propensa à explosão, pois pode chegar o momento em que ela
SER LIRICO fujadocontrole. A queda, portanto, é o resultado de uma pletora.
Por que não podemos permânecer encerrados em nós mes_ Há estados e obsessôes com que náo se pode conviver, Nossa
mos? Por que insistimosem correr atrás dâ expressào e da formâ, sâlvâçào nào seria, portânto, confessá-los? Mantjdas na cons-
no intuito de nos esvaziâr de conteúdo e sistematizar um pro- ciência, a têrrivel exp€riência e a tenebrosâ obsessão da morte
cesso caótiao e rebelde? Nào seria mais fecundo entregarmo-nos tornam-se devastadoras. Ao falarmos da morte, salvamos algo
à nossafluidez interiot sem desejode objetivar, âpenâs sorvendo, de nós mesmos, ao mesmo tempo que no nosso ser algo se ex
voluptuosos, lodas as nossas ebuliçôes e agitações intimas? Vive_ tingue, pois os conteúdos objetivados pela consciência perdem
riamos, assim, numa intensidade infinitâmente fértil, todoãquele suâ âtualidade. O lirismo representa uma forçâ de dispersão
crescimento interior que as experiências espirituais dilatÂm até â dâ subjetividade por indicât no individuo, uma efervescência
plenitllde. Vivênciâs múltiplas e diferenciadas se fundiriam para incoercivel dâ vida, que sem cessâr exige expressáo. Ser lirico
engendrar âs mais fecundas efervescências. Uma sensação de \igniíica náo podermos permanecer Íechados em nós mesmos.
atualidade, de presençâ complexa dos conteúdos ânimicos surge Quanto mais interior, profundo e concentrado foro lirismo, mais
como reslrltado desse crescimento, comparávela umâ elevâçáo intensa será essa necessidade de exteriorizaçáo. Por que o ho-
das ondas ou â um pâroxismo musical. Ser cheio de si, nào no mem se torna lírico no sofrimento e no âmor? Porque esses
sentido de oÍgulho, mâs no de riqueza, seratoÍmentâdo por uma estados, embora diferentes por natureza e oÍienlaçáo, emeÍgem
infinidade internâ e poÍ uma tensào extrema signilicaviver com das profundezâs maisíntimasdo nosso ser, docentro substanaial
tanta intensidade, que âcâbamos sentindo que morremos por da subjetividade, que é uma espécie de área de proteçâo e irradi-
causa dâ vida. É tão râÍo e estranho esse sentimento, que deve açáo. Tornamo-nos líricos quando a vida dentÍo de nós palpita
riamos vivenciá-lo aos berros. Sinto como se devesse morrer num ritmo essenciâI, quando a üvênciaé tão forte que nelâ sinte
por causâ da vidâ e me pergunto se teria sentido buscar uma tiza todo o sentido de nossâ personàlidade. Aquilo que em nós é
\OS CL'}IES DO DE§ESPERO

único e especifrao âcâbâ se realizândo numa forma tão expÍessiva, chagas cessam de ser apenas mânifestâçôes exteriores, sem im-
que o individual se âlça ao plano do univ€rsâl. As mais proíun- plicaçôes profundas, passândo a participar dâ essênciâ de nosso
das experiêncra\ subielivd\ sáo também às mais universârs. pois ser. O lirismo do sofrimento é uma cançáo do sangue, da carne
por meio delâs chegâ'se à profondeza primordial da vidâ. A ver- e dos nervos. O verdâdeiro sofrimento brota da doençâ. Por
dadeira interiorizaçào conduz â umâ universalidade inacessivel isso, quase todas as doenças têm virtudes liricas. Só quem vegeta
aos que permanecem na zona periféricâ. Â interPretaçáo vulgar numa insensibilidade escandalosa permanece impessoal diante
da universalidade vê nela mais uma forma de complexidade em da doença, que sempre produz um aprofundâmento pessoal.
extensào do que uma abrangência qualitativâ, ricâ. Por isso, ela Tornamo nos liricos apenas em razào de umâ lesâo orgânica
vê o lirismo como um fenômeno periférico e inferior, produto e totâI. A fonte do lirismo acidental está nas câusas externas;
de uma inconsistênciâ espiritual, ao invés de perceber que os uma vez desaparecidas, desapârece também, implicitamente, seu
Íecursos liricos dâ subjetividade apontam para um fr€scor e umâ corÍespondente interior. Não há lirismo auténtico sem um grâo
pÍofundidâde intimâ dos mâis notáveis. de loucura interior É sintomático o fâto de que o inicio dâs
Hâ pessoas que se tornam liricâs só nos momentos capitais da psicoses se caracte zâ por umâ fase lirica, em que todâs as bâr,
vidai outras, só na â8onia, quando todo o seu passado se atualiza reiras e limites comuns desaparecem, criando espaço pâÍâ uma
A maioria, contudo,
e se precipita sobre elas como uma torrente. embriaguez interior das mais fecundâs. Assim é possivel explicar
se torna lirica em (onlequên(ia de expenências eisen(iais, em â produtividâde poética da primeira fase das psicoses. A loucura
que a inquietaçâo dâ profundeza íntima de seu ser âtinge o pâ- podeÍia constitui r um paroxismo do lirismo. Porisso nosconten-
Íoxismo. Dessa maneira, uma vez prisioneiras do amor, pessoas tamos em escrever o elogio do lirismo parâ náo escreveroelogio
inclinâdâs pârâ a objetividade e a impersonalidade, estrangeiÍas da loucuÍa. O estado lirico é um estado que transcende formâs e
de sipróprias e de realidades profundas, experimentam um sen- sistemâs. É uma fluidez, uma corrente interior que funde, num
timento que atualiza todos os recursos pessoais. O fâto de que só impulso, como numa convergênciâ ideal, todos os elementos
quase todos nós passamos â escrever poesia quando amamos é daüda interior, produzindo um ritmo plenoe intenso Diant€do
a prova de que os meios do pensamento conceitual sáo pârcos relinamento de umacultura âprisionâda em formas e limites que
demâis pâra expressâr uma infrnidâde interna, e de que só na mascâram tudo, o lirismo é uma expressáo bárbara. Eis de fato o
presença de um material fluido e irrâcional é que o lirismo inte- seu valor o de ser bárbaro, ou seja, de ser só sângue, sinceridade
rior encontra um modo adequado de objetivaçào. Analogia não
poderia ser feita com a experiência do soírimento? Ignorando
o que se esconde em nós e no mundo, vivendo satisfeitâ e peri
fericamente, â mâis séria experiência depois da exp€riência dâ COMO TUDO E DISTANTE!
morte (como pressentimento dâ morte), â experiência do sofri-
mento, desúbito nosdominâe nos tíansporta para umâ regiáo de Nâo faço a minima ideiade porque devernos fazer algo neste
existência infinitâmente complexâ, em que nossa subjetividade mundo, de por que devemo\ ter amigos e aspiraçôe<, esperança\
nos convulsionâ como num turbilhào. O lirismo do sofrimento e sonhos. Nâo seriâ mil vezes mâis preferivel um recolhimento
realiza aquela queima e aquela purificâçáo interior em que âs num cânto, longe de tudo, aonde não cheguem os ecos daquilo

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