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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

LETRAS – PORTUGUÊS – LICENCIATURA

ESTUDOS PESSOANOS

Profa. Andrea do Roccio Souto

Lucas Sauzem Cruz

A experiência heteronímica e o sesacionismo como filosofia de vida


em O Livro do Desassossego.

Alguns escritos do semi-heterónimo Bernardo Soares em O Livro do


Desassossego discorrem sobre a escritura poética na vida do “autor” e como ela funciona
na experiência de viver ou sonhar vidas que não são a sua realidade concreta, e essa
transmigração em outro alguém se associa ao processo de criação heteronímica de
Fernando Pessoa. Essa vida sonhada representa a filosofia estética do autor, em que a
experiência através do fingimento literário possibilita à múltiplas sensações que não
seriam possíveis na realidade e não são passíveis de esgotamento; entretanto, a profusão
dessa experiência sobrepõe-se à vida e causa a supressão da realidade, um vazio
existencial que pode ser atribuído ao sonhador sensacionista:

“Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia
se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as
ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém
são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se
conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda,
que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter
experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e
sendo isto impossível, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada
pode ser vivida na sua substância total.”

Nesse trecho, Bernardo Soares discute a impossibilidade da experienciação


sensacionista em uma única vida real, e que a totalidade dessa experiência só é possível
se vivida subjetivamente, por isso o apelo artístico e imagético do sonho. Por outro lado,
a crise existencial do autor também está na impossibilidade de tornar a experiência
subjetiva em experiência objetiva e real, que possa somar-se à existência única e
indivisível. A consequência, portanto, é a incapacidade de experiênciação sensacionista
absoluta na realidade e/ou a fragmentação do “eu” em outro, ilustrada pelo plano da
experiência subjetiva, sonhada e fingida. Como confissão, Bernardo Soares revela que a
sua experiência de vida foi preenchida através do sonho e que a sensação atribuída a essa
existência é uma sensação poética, não tangível, em que a realidade empírica não a pode
captar. Os seus anseios, a suas vontades, os seus desejos e seus sofrimentos são todos no
nível do irreal, jamais significando em sua vida real; e sua pretensão é apenas uma, viver
o outro:

“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca
tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha
vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na
visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção.
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é
meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma.
Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse
por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho
longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o
longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas
paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de paisagem
— uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.”

Como já apontado, sonhar é a experimentação de sensações que não são atingidas


na realidade, ou que só podem ser encontradas no fingimento de uma outra persona
imagética, e nesse trecho Bernardo Soares revela não apenas esses dois elementos, como
também demonstra a supressão da realidade na absoluta entrega existencial ao subjetivo,
uma viagem à sua vida “interior”. A sua realidade ficcional é uma escolha, um desejo e
sua única preocupação, uma vida baseada no irreal e no intangível, já que as sensações
que ele busca são as mais voláteis, etéreas e sublimes, o que torna a experimentação
sensacionista ainda mais intocável.

O veículo que Bernardo Soares utiliza para experienciar a sensação é a escrita, e


por isso seu diário sem fatos é ilustrado por uma constante expressão sensacionista
experienciada por ele. A literatura, como elemento expressivo de um “eu” serve como
objeto de exploração da vida subjetiva e permite o desmembramento do autor da sua
realidade única e material, já que o fingimento possibilita a multiplicidade desse “eu” e,
por consequência, das sensações. E é aqui que a criação heteronímica se justifica, pois
através do surgimento de outas personas poéticas, o criador explora outras vidas e
sensações, além de exprimi-las em poesia. Os três principais heterônimos que Fernando
Pessoa criou são representados por índices na escrita de Bernando Soares, e por este ser
o semi-heterônimo, uma parte do próprio Pessoa, subentende-se que sua escrita pressupõe
da ideologia do criador:

“Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo
instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde
quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na
contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espectáculo
externo de todas as impressões alheiam. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem,
porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campónio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes da vida, porque
são estes três que abdicam da personalidade — um porque vive do instinto, que é
impessoal, outro porque vive da imaginação que é esquecimento, o terceiro porque não
vive, e, não tendo morrido, dorme.”

Esse trecho sugere três posicionamentos existenciais que Bernardo Soares acredita
serem os mais favoráveis para a experiência sensacionista. Primeiro, aquele que vive a
objetividade da vida e age apenas instintivamente; segundo, o que escolhe guiar-se na
imaginação em detrimento da realidade concreta e contenta-se na admiração de outras
vidas; e, por último, aquele que abdica de qualquer sensação, e por isso está livre de
qualquer sentimento. Estas três personalidades apresentam as qualidades dos heterônimos
Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, respectivamente, e são representados
na figura do campónio, do leitor de novelas e do puro asceta.

Alberto Caeiro é o heterônimo que vive em comunhão com a natureza, ele rejeita
o comportamento intelectual do homem civilizado e critica o poeta que não vê a natureza
como ela é, mas que a pensa e lhe atribui qualidades que não são puras. Para ele, a beleza
de uma pedra está em ser pedra, a senti-la genuinamente só é possível através da
experiência dos sentidos corporais; e quando são matéria de poesia, servem apenas como
objeto referencial, não metafórico ou alegórico. Por isso, Alberto Caeiro é o campónio, o
guardador de rebanhos campestre:
“Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.”

O segundo poeta, Álvaro de Campos, é ilustrado por Bernardo Soares como o


“leitor de novelas”, pois ele aprecia a experiência sensacionista através do outro, do
alheio, como quem acompanha as personagens de uma história. O poeta futurista utiliza
a imaginação para evacuar-se da sua realidade e transcender para o(s) outro(s) com o
desejo de sentir tudo de todas as maneiras, ele é puro desejo e realização, toda a
experiência é válida em seu método, e assim ele se afasta cada vez mais da sua própria
personalidade, da sua vida concreta, e viaja dentro de si em busca da sensação irrestrita:

“Sentir tudo de todas as maneiras,


Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
[...]
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”

Por último, Ricardo Reis, o poeta que como um asceta é autodisciplinado e


contém-se para a experiência do mundo através de um equilíbrio entre o estoicismo e o
epicurismo, que detém o controle sobre seus impulsos como uma fortaleza moral e
observa ao espetáculo da vida sem atingi-la, o que lhe previne da dor e do sofrimento que
ela pode causar. A sua abdicação à vida é uma posição de imobilidade e defesa, pois ao
negar um sentimento e as suas sensações, ele afasta os problemas que poderiam afetar o
seu equilíbrio emocional:

“Não só quem nos odeia ou nos inveja


Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.”

Assim, a experiencia heteronímica é um processo pela qual o criador vive as


sensações alheias, pois suas criaturas não são fragmentos de si, como é Bernardo Soares,
mas são outros múltiplos, autônomos, independentes, que lidam com o existencialismo
sensacionista de maneiras diferentes, um pelo instinto, um pela imaginação e outro pela
abdicação de tudo. Bernardo Soares, ao ilustrar a crise da sua realidade empírica e da sua
realidade sonhada e alheia, revela que a sua vontade é inalcançável, pois ele jamais poderá
desprender-se da sua realidade ou tornar sua imaginação uma existência real, tendo que
viver no entrecruzamento de um plano para o outro: “Não posso ser nada nem tudo: sou
a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.”

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