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ESTUDOS PESSOANOS
“Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia
se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as
ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém
são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se
conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda,
que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter
experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e
sendo isto impossível, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada
pode ser vivida na sua substância total.”
“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca
tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha
vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na
visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção.
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é
meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma.
Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse
por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho
longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o
longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas
paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de paisagem
— uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.”
“Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo
instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde
quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na
contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espectáculo
externo de todas as impressões alheiam. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem,
porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campónio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes da vida, porque
são estes três que abdicam da personalidade — um porque vive do instinto, que é
impessoal, outro porque vive da imaginação que é esquecimento, o terceiro porque não
vive, e, não tendo morrido, dorme.”
Esse trecho sugere três posicionamentos existenciais que Bernardo Soares acredita
serem os mais favoráveis para a experiência sensacionista. Primeiro, aquele que vive a
objetividade da vida e age apenas instintivamente; segundo, o que escolhe guiar-se na
imaginação em detrimento da realidade concreta e contenta-se na admiração de outras
vidas; e, por último, aquele que abdica de qualquer sensação, e por isso está livre de
qualquer sentimento. Estas três personalidades apresentam as qualidades dos heterônimos
Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, respectivamente, e são representados
na figura do campónio, do leitor de novelas e do puro asceta.
Alberto Caeiro é o heterônimo que vive em comunhão com a natureza, ele rejeita
o comportamento intelectual do homem civilizado e critica o poeta que não vê a natureza
como ela é, mas que a pensa e lhe atribui qualidades que não são puras. Para ele, a beleza
de uma pedra está em ser pedra, a senti-la genuinamente só é possível através da
experiência dos sentidos corporais; e quando são matéria de poesia, servem apenas como
objeto referencial, não metafórico ou alegórico. Por isso, Alberto Caeiro é o campónio, o
guardador de rebanhos campestre:
“Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.”