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MAXWEBER

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Ensaiosde
Sociologia
Organização e In trodução:
H.H. Gerth e C. Wright Mills

Quinta edição

Tradução:
Waltensir Dutra

R ev isão Técnica:
Prof. Fernando Henrique Cardoso

Oc
EDITORA
ÍNDICE

P r e i á c i o ......................................................................................................... 9

I n tro d u ç A o : O HOMEM E SU A OBRA

1. Escorço B io g ráfico.......................................................................... 15
n. Preocupações P o l í t i c a s ............................................................... 47
III. Orientações I n te le c tu a is ...............................................................62

1. Ma r x e W e b e r ...............................................................................................64
2. Bur o c r a c ia e Ca r ism a : Um a Fil o so f ia da Hist ó r ia . 68
3. Mét odos da C iê n c ia So c ia l .............................................. 73
4. Á So c io l o g ia das Id é ia s e In t e r e s s e s ........................................80

5. Est r ut ur a s So c ia is e T ipo s de Ca pit a l ism o . . . 84


6. As C o n d iç õ e s d e L ib e r d a d e e a I m a g e m do H o m e m . . 89

Título original: P a rte I: CIÊNCIA E POLÍTICA


From M ax Weber: Essays in Sociology
(Translated, Edited and with an Introduction by IV. A Política como V o c a ç ã o .......................................................... 97
H.H. Gerth and C. Wright Mills)
V. A Ciência como V o c a ç ã o ............................................................... 154
Publicado em 1946 pela Oxford University Press, Inc.
Traduzido da sexta impressão (Galaxy Book), 1963.
Copyright © Oxford University Press, Inc., 1946. P a rte II: PODER
Edições brasileiras: 1967, 1971, 1974, 1979
VI. Estruturas do P o d e r ..................................................................... 187
Direitos exclusivos para a língua portuguesa 1. O Pr e st íg io e o Poder das “G r a n d e s P o t ê n c ia s” . . 187
Copyright © 1982 by 2. As Ba se s Ec o n ô mic a s do “ Im p e r ia l ism o ” . . . . 190
LTC — Livros Técnicos e Científicos E ditora S.A. 3. A Na ç ã o .............................................................................................................. 201
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sem permissão expressa da Editora. 3. A ç ã o Co mu n it á r ia Deco r r en t e d o In t e r e s s e de Cl a sse 214
6 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ÍNDICE 7

4. T ipo s de “L u t a de Cl a sse ” .............................................................. 216 XIII. R e je iç õ e s Religiosas do Mundo e SuasD ireções .................................. 371
5. A Ho nra Es t a m e n t a l .............................................................................. 218 1. M o t iv o s p a r a a R e j e i ç ã o do M u n d o : o Sig n i f i c a d o d e
6. G a r a n t ia s d a O r g a n iz a ç ã o E s t a m e n t a l ..............................219 s u a C o n s t r u ç ã o R a c i o n a l ............................................................... 371
7. S eg reg ação “é t n ic a ” e "C a st a ” ...............................................221 2. T ip o lo g ia do A s c e tis m o e do M i s t i c i s m o ................................373
8. P r iv ilé g io s E s t a m e n t a i s ..................................................................... 223 3. D ir e ç õ e s d a R e n ú n c i a a o M u n d o .......................................................375
9. Co n d iç õ es e Ef e it o s Ec o n ô mic o s d a Or g a n iz a ç ã o Es t a 4. A E sfe ra E c o n ô m i c a ..............................................................................379
me n t a l 224 5. A E sfe ra P o l í t i c a ......................................................................................382
10. P a r tid o s ..............................................................................................................227 6. A E s f e r a E s t é t i c a ......................................................................................390
7. A E sfera E r ó t i c a ......................................................................................393
VIA. B u r o c r a c i a ........................................................................................229 8. A E s f e r a I n t e l e c t u a l ............................................... . . . 400
1. Ca r a c t e r íst ic a s da Bu r o c r a c ia ...................................................... 229 9. A s T r ê s F o r m a s d a T e o d i c é i a ...................................................... 408
2. A Po siç ã o do Fun c io n á r io .............................................................. 232
3. Pr e ssu po st o s e Ca u sa s da Bu r o c r a c ia ...............................238
P a rte IV: ESTRUTURAS SOCIAIS
4. De se n v o l v ime n t o Qu a n t it a t iv o d a s Ta r e f a s A d m i
n ist r a t iv a s ....................................................................................................... 243 XIV. Capitalismo e Sociedade Rural na A le m a n h a ............................... 413
5. M o d if ic a ç õ e s Qu a l i t a t i v a s d a s T a r e f a s A d m i n i s t r a XV. O Caráter Nacional e os "Junkers" ...................................................... 438
t i v a s ...............................................................................................................................246
6. V a n t a g e n s T é c n ic a s d a O r g a n iz a ç ã o B u r o c r á t i c a . . 249
XVI. Índia: O Brâmane e as C a s t a s .............................................................. 449
7. Bur o c r a c ia e Di r e it o .............................................................................. 251 1. C a s t a e T r i b o ..................................................................................................... 451
8. A C o n c e n t r a ç ã o d o s M e io s d e A d m i n i s t r a ç ã o . . . 257 2. Ca st a e Co r po r a ç ã o ..................................................................................... 453
9. O Niv e l a me n t o das Dif e r enças So c ia is ................................260 3. Ca st a e Es t a m e n t o ......................................................................................4 59
10. Ca rát er Per ma n e n t e da Má q u in a Bur o c r á t ic a . . . 264 4. A Or d e m de Cl a ssif ic a ç ã o So c ia l d a s Ca st a s e m Ge r al 4 64
11. Co n se q ü ê n c ia s Eo n ô m ic a s e So c ia is da Bur o c r a c ia . 266 5. Ca st a s e Tr a d ic io n a l ism o ..............................................................466
12. A Po siç ã o de Po d er da Bu r o c r a c ia ........................................268
13. Es t á g io s no De se n v o l v ime n t o da Bur o c r a c ia . . . 272 XVn. Os Letrados Chineses .................................................471
14. A “R a c io n a liz a ç ã o ” d a E d u cação e T r e in a m e n to . . 277
1. C O N F Ú C I O ..............................................................................................................4 76
2. A Ev o l uç Ao do Sist e ma de Ex a m e s .............................................. 4 78
Q. A Sociologia da Autoridade C arism ática................................. 283
3. Po siç ã o T i po l ó g ic a da Ed u c a ç ã o C o Wf u c i a n a . . . 482
1. O C a ráte r G e r a l do C a r i s m a ........................................................283 4. A Ho nra Est a me n t a l dos Le t r a d o s .......................................491
2. B a s e s e In s t a bil id a d e da A u t o r i d a d e C a r i s m á t i c a . . 287 5. O Id eal do C a v a l h e i r o .......................................................................493
3. R e in a d o C a r is m á t ic o ................................................................................289
6. O P r e s t íg io d o F u n c i o n a l i s m o ......................................................495
7. Opi n iõ e s so br e Po l ít ic a Ec o n ô m ic a .......................................497
X. O Significado da D isciplina............................................. 292
8. S u lta n is m o e E u n u c o s c o m o A d v e r s á r io s P o l í t i c o s
1. A s Or ig e n s da Disc ipl in a na Gu e r r a ........................................ 294 dos Le t r a d o s ............................................................................................... 499
2. A D i s c i p l i n a d a s Or g a n iz a ç õ e s Ec o n ô m i c a s e m Gr a n d e
Notas 503
E s c a l a .......................................................................................................................301
3. D is c ip lin a e C a r i s m a ................................................................................302

Par t e U I: R E L IG I Ã O

XI. A Psicologia Social das Religiões M u n d iais...............................309


XII. As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo . . . . 347
Prefácio

H Á c e r c a d e 150 a n o s , A . F. T y tler form ulou três Princípios


de Tradução: dar um a tran scrição com pleta das idéias origin ais,
im itar o estilo do au tor origin al e preserv ar a fluên cia do tex to
original. A o apresen tar seleções de M ax W eber ao público de
lín gu a in glesa, esperam os ter aten dido à prim eira con dição, a de
fidelidade ao sen tido origin al. A s segun da e terceira exigên cias são,
freqüen tem en te, con testáv eis quan do se trata de traduz ir o alem ão
para o in glês e, n o caso de M ax W eber, são perfeitam en te dis­
cutíveis.
O espírito d a lín gua alem ã possibilitou um a dupla tradição
estilística. Um a delas correspon de à ten dência do in glês para
as frases brev es e gram aticalm en te claras. T ais frases encerram
raciocín ios de fácil percepção, n os qu ais o que é m ais im portan te
vem prim eiro. Friedrirh N ietz scbe, Georg Ch ristoph Lich ten berg
e Fran z K afk a destacam -se entre os represen tan tes dessa tradição.
A ou tra é estran h a à ten dência do in glês m odern o, sen do
con siderada freqüen tem en te com o difícil e proibitiv a, com o os
leitores de H egel e Jean Pau l Rich ter, de Karl M arx e Ferdin an d
Tõn n ies podem testem un h ar.
N ão h av eria m aior utilidade em classificar essas du as tra­
dições com o "b o a” e "m á”. O s autores que represen tam a pri­
m eira julgam que se dev em dirigir ao ou v ido; desejam escrev er
com o se estiv essem falan do. O segun do grupo dirige-se aos olh os
do leitor silen cioso. Seu s tex tos não podem ser lidos facilm en te
em voz alta para ou tros: tod os têm de ler para si m esm os. M arx
W eber com parou certa vez o h um anism o literário alem ão à edu­
cação do m an darim ch in ês, e Jean Pau l R ich ter — um d os m aio­
res escritores alem ães — afirm ou que " um a frase lon ga dem on s­
tra m aior deferên cia para com o leitor do que v in te sen ten ças
curtas. No fim , o leitor terá de faz er delas um a única frase,
P R E F Á C I O 11
10 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

glesa para a qual foi trasladado e não a facilidade de su a obra


pela releitura e recapitulação. O escritor n ão é um orador e o
leitor n ão é um ou v in t e . . 1 original.

É ev iden te qu e as características d essa escola estilística não O tradutor de W eber en fren ta outra dificuldade ain da.
foram determ in adas pela in capacidade de escrev er bem . Seu s W eber ev iden cia, freqüen tem en te, um a h esitação con scien te no
pratican tes sim plesm en te adotam um estilo de todo diferente. uso de palav ras carregadas de con otações, com o dem ocracia, pov o,
Usam parên teses, cláu su las restritiv as, in v ersões e recursos rítm i­ am bien te, adaptação, etc., com o uso abun dan te de aspas. Seria
cos com plex os em su as frases polifôn icas. A s idéias são an tes totalm en te errôn eo traduzi-las com o acréscim o de um irônico
“assim ch am ada". A lém disso, W eber sublin h a com freqüên cia
sin cron izadâs d o que apresen tadas em série. Em su a m elh or
palav ras e frases; as con v en ções gráficas alem ãs são m ais liberais,
form a, eles con stroem um artifício gram atical no qual balcões
quan to a isso, do que as in glesas. N ossa tradução con form a-se,
e torres de observ ação m en tais, bem com o pon tes e recessos,
em geral, à convenção in glesa: om itim os o que ao leitor de lín gua
decoram a estrutu ra prin cipal. Su as sen ten ças são castelos gó­
in glesa pareceria um a reserv a e um a form a de ên fase conscientes.
ticos. E o estilo de M ax W eber situa-se, claram en te, nessa
O m esm o ê v álido para a aplicação de palav ras qualificativ as,
tradição.
que o in glês dispen sa sem perda de exatidão, ên fase e sen tido.
In feliz m en te, em seu caso o estilo é ain da m ais com plicado
por um a ten dên cia de platon iz ar o pen sam en to: ele tem predile­ W eber lev a a extrem os a tradição acadêm ica alem ã. Seu tem a
ção p or su bstan tiv os e particípios ligados pelas form as econ ô­ prin cipal parece perder-se, por vezes, na profu são de digres­
m icas, m as in colores, dos v erbos fracos, com o “ser”, “t er", ou sões, exceções e ilustrações com parativ as, apresen tadas em n otas
“parecer”. Essa ten dên cia platon iz an te é um dos tribu tos de de pé de págin a. Colocam os algum as dessas n otas no tex to e,
W eber à Filosofia e Ju rispru dên cia alem ãs, ao estilo do púlpito n uns poucos casos, relegam os para n otas referên cias técn icas que
e do cargo burocrático. no origin al con stam do texto.

V iolam os, p or isso, a segun da das regras que T y tler estabe­ Portan to, v iolam os as segun da e terceira regras de Ty tler
lece para os tradutores. Em bora n os tiv éssem os em pen h ado em a fim de aten der à prim eira. N osso objetiv o con stan te tem sido
m an ter as im agen s d e W eber, su a objetiv idade e certam en te as torn ar acessív el a um público de lín gua in glesa um a tradução
su as expressões, n ão h esitam os em decom por-lh e a frase em três precisa do que W eber disse.
ou qu atro u n idades m en ores. Certas alterações de tem pos, que
em in glês pareceriam ilógicas e arbitrárias, foram elim in adas;
Desejam os agradecer ao quadro de redação da O x ford Uni-
ocasion alm en te o su bju n tiv o foi m odificado para o in dicativ o, os
versity Press pelo seu estím ulo aos n ossos esforços. Dev em os
su bstan tiv os para v erbos; os apostos e os parên teses foram colo­
gratidão especial à S r f Patrick e Joh n s H ein e, que colaborou na
cados em n ív el de igualdade e con den ados a seguir, e não a
rev isão dos prim eiros esboços dos capítulos IV , X , X I I ; e ao Sr.
an teceder, a idéia prin cipal. Com o W eber n ão observ ou a suges­
J. Ben Gillin gh am que realizou o m esm o trabalh o em relação
tão d e Friedrich N ietz sch e d e que o alem ão dev e ser escrito
com o pen sam en to n a facilidade de su a tradução, tiv em os de ao parágrafo 6 do capítulo X I I I . A Sr.ia H on ey T oda preparou
abrir m uitas cu n h as n a estrutura de su as sen ten ças. Em tudo isso em parte e redatilografou m uitas págin as de m an uscrito quase
procuram os agir com respeito e m oderação. ilegív el, e a ela agradecem os a dedicação.

M as desobedecem os tam bém à terceira regra: qualquer "f lu ­ T em os de agradecer tam bém a v aliosa assistên cia da D r.a
ên cia” qu e W eber p ossa ter em in glês é a fluên cia da prosa in- H edw ig Id e Gerth e d a Sr.a Frey a M ills. A gen erosidade adm i­
n istrativ a do Professor Cari S. Josly n , presiden te do Departa­
m en to de Sociologia d a Un iv ersidade de M ary lan d, e o apoio do
i V o rschule der A e sth e tik , p. 382. Sämmtliche Werke, Vol. 18 Professor T h om as C. M cCorm ick , Presiden te da Un iv ersidade
(Berlim. 1841).
12 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

de W iscon sin , m uito facilitaram o trabalh o. O Professor E. A .


R ose tev e a gen tilez a de ler o capítulo X I I e fazer-nos sugestões.
Um a de n ossas traduções, " Classe, Estam en to, Partid o”, foi
in cluída no liv ro preparado por Dw igh t M acdon ald, Politics ( outu­
bro d e 1 9 4 4 ) e faz parte deste volum e p or autoriz ação sua.
A gradecem os ao editor, H ough ton M ifflin Com pan y , a perm is­
são de reproduz irm os um a rev isão do trabalh o apresen tado por
M ax W eber peran te o Con gresso de A rtes e Ciên cia, na Ex p o­
sição de St. Lou is, em 1904.
A respon sabilidade pela seleção e pela tran sposição do sig­ I n t k o d u ç ã o
n ificado d em ão ê assu m ida prin cipalm en te por H . H . Gerth ; a
respon sabilidade pela form u lação e disposição editorial do pre­
sen te tex to ê assu m ida prin cipalm en te por C. W righ t M ills. M as O HOMEM E SU A OBRA
o liv ro, em con jun to, represen ta n osso trabalh o m útuo e som os
respon sáv eis, tam bém em con jun to, pelas deficiên cias que possa
apresen tar.

H ans H. G e rth

C. W r ig h t M ills
I. Escorço Biogiófico

M a x W e b e r nasceu em E rfurt, T uríngia, a 21 de abril de 1864.


Seu pai, M ax W eber, Sr., jurista e conselheiro m unicipal, vi
nha de um a fam ília de comerciantes de linho e industriais
têxteis da A lem anha Ocidental. Em 1869, os W ebers m uda
ram-se para Berlim , que dentro em pouco se tornaria a flores
cente capital do Reich de Bism arck. A li W eber, Sr., tornou-se
um próspero político, atuante na dieta m unicipal de Berlim ,
na dieta prussiana e no novo Reichstag. Pertencia aos liberais
da direita, chefiados por um nobre de Hanôver, Bennigsen.
A fam ília residia em Charlottenburg, então um subúrbio da
extrem idade ocidental de Berlim , tendo como vizinhos perso
nalidades acadêmicas e políticas. N a casa de seu pai, o jovem
W eber conheceu homens como Dilthey, Mommsen, Julian
Schm idt, Sybel, T reitschke e Friedrich Kapp.
A m ãe de M ax W eber, Helene Fallenstein W eber, era um a
senhora culta e liberal, de crença protestante. Vários membros
da sua fam ília turin giana eram professores e pequenas autori
dades. Seu pai, porém, havia sido um funcionário de recursos,
que, às vésperas da revolução de 1848, retirara-se para um a vila
em H eidelberg. G ervinus, o em inente historiador liberal e
amigo íntim o d a fam ília, foi seu professor em várias m atérias
de H um anidades. A té a morte da mãe, em 1919, M ax W eber
com ela se correspondeu através de cartas longas, íntim as e por
vezes eruditas. Em Berlim , H elene W eber exerceu o papel
de um a sobrecarregada H au sfrau , cuidando diligentem ente de
seu ocupado m arido político, de seus seis filhos e de um círculo
de amigos constantes. Dois de seus filhos m orreram na infân
cia. A m iséria das classes industriárias de B erlim impressio
nou-a profundamente. Seu m arido não compreendia nem par
tilhava de suas preocupações religiosas e hum anitárias. Pro
vavelmente também não partilhava de sua vida emocional, e
16 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 17

sem dúvida os dois diferiam em seus sentimentos sobre muitas que o jovem W eber estava repetindo os livros que lia. D efen
questões públicas. D urante a juventude de M ax, e no início dendo-se ele respondeu seca e dignam ente:
de sua vida de adulto, as relações entre seus pais se foram
O que você escreveu leva a pensar que acredita te r eu
tornando cada vez m ais distantes. copiado de algum livro, ou pelo menos reproduzido a essên
As companhias intelectuais da casa e as viagens da fam ília cia de alguma coisa que tivesse lido. É esse, no final de
fizeram que o jovem e precoce W eber se mostrasse descon contas e em essência, o significado de sua longa preleção.
Você procura tran sm itir essa insinuação da forma menos con
tente com a instrução rotineira das escolas. Era um a criança creta possível, acreditando que eu me im portaria com um a
fraca, que sofrera m eningite aos quatro anos; preferia os livros opinião que, eu mesmo o sei, não é verdadeira. Em bora eu
aos esportes e no começo da adolescência leu m uito, desenvol tenha convocado todo o conhecimento de mim mesmo, não
vendo interesses intelectuais próprios. Aos 13 anos escreveu posso adm itir que tenha sido influenciado dem asiadam ente
por qualquer livro ou por qualquer frase ouvida de meus
ensaios históricos, um dos quais recebeu o nome de “Do Curso p ro fesso res... Na v e rd a d e ... nós, os mais jovens, lucram os
da H istória A lem ã, com Especial Referência às Posições do em geral com os tesouros que os mais velhos — e considero
Kaiser e do Papa”. Outro trabalho foi “Dedicado ao M eu Pró você como um deles — am ontoaram . . . Admito que prova
prio Ego Insignificante, bem como aos Pais e Irmãos”. Aos velm ente tudo nos vem indiretam ente dos livros, pois para
que servem eles senão para in struir e esclarecer o homem
quinze anos lia como os especialistas, tomando m uitas notas.
sôbre as coisas que lhe parecem obscuras? É possível que eu
Ao que parece, preocupou-se desde cedo com as asserções equi seja muito sensível aos livros, seus com entários e deduções.
libradas e restritivas. Criticando o gosto bastante vulgar de Isso você pode ju lg ar m elhor do que eu, pois sob certos
seus companheiros de estudo que, ao invés de romances histó aspectos é mais fácil conhecer alguma outra pessoa do que
ricos de Scott liam tolices contemporâneas, ele teve o cuidado a nós mesmos. Não obstante, o conteúdo de m inha afirmação
— talvez totalm ente inverídica — não vem diretam ente de
de acrescentar: “T alvez pareça presunção manter esta posição, nenhum livro. Q uanto ao mais, não me im porto com a sua
já que sou dos mais jovens da classe; essa situação, porém, é crítica, pois há em Mommsen coisas bastante semelhantes, e
tão evidente que não preciso recear não estar falando a verdade, só agora as descobri, i
se a apresento dêsse modo. É claro que sempre há exceções”.
Tam bém lhe faltava o respeito profundo pelos professores. F. A m ãe do jovem W eber lia-lhe as cartas sem seu conheci
como estava sempre pronto a dividir seus conhecimentos com mento. Preocupava-se m uito com o fato de estar o filho dis
os companheiors, durante os exames, estes o consideravam sim tanciando-se dela, intelectualm ente. Não é estranho que um
pático e algo assim como um “fenômeno”. adolescente sincero e inteligente, cônscio das dificuldades entre
O jovem W eber, “o filho de um político na época da R eal seus pais, e observando os artifícios característicos de um a fam ília
p olit i\ de B ism ark”, rejeitou o elogio literário universal de C í patriarcal vitoriana, aprendesse que as palavras e os atos não
cero como um a farsa. Aos seus olhos, Cícero, especialmente devem ser tomados pelo seu valor aparente. Percebeu que, se
em sua prim eira C atilinária, era um diletante das frases, um desejasse chegar à verdade, era necessário o conhecimento direto,
n w i político e um orador irresponsável. Colocando-se em seu de p rim ei.a mão. A ssim , quando o m andaram preparar-se para
lugar, W eber indagava-se que utilidade poderiam ter aqueles a crisma, aprendeu hebraico suficiente para ler o texto original
longos discursos? Achava que Cícero deveria ter “dado um do Velho Testamento.
encontrão” ( ab m u r\sen ) em C atilina e esmagado pela força a Frau W eber preocupava-se com a indiferença religiosa do
ameaçadora conspiração. Depois de argumentos detalhados, ter filho. Escreveu e la :
m inava assim um a carta a um prim o: “Em suma, o discurso
pareceu-me m uito fraco e sem propósito, e toda a política va Q uanto mais se aproxim a a crisma de Max, tanto menos
cilante em relação aos seus fins. Cícero parece-me sem decisão m e parece ele sentir qualquer influência estim ulante mais
profunda nesse período de sua evolução que o levasse a p en
e energia adequadas, sem habilidade e sem a capacidade de sar sobre o que lhe pedem que afirme, p erante o altar, como
aguardar a sua oportunidade”. O correspondente, que era m ais sendo sua própria convicção. O utro dia, quando estávamos
velho e aluno da Universidade de Berlim , respondeu insinuando a sós, procurei saber o que ele pensa e sente sobre as p rin
18 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCO RÇO B IO G RÁFICO 19

cipais questões da consciência cristã. Pareceu surpreender-se Como muitos pensadores do século XIX, ele deixou um a im
com a m inha suposição de que o auto-esclarecimento de ques pressão bastante desfavorável cm seus professores. O m agro rapaz
tões como a crença na im ortalidade e na direção de nosso
destino pela Benevolência devesse resu ltar das lições de
de 17 anos, de ombros caídos, continuava carecendo ainda do
confirmação para qualquer homem pensante. Sinto essas devido respeito pela autoridade.
coisas com o m aior calor, no mais íntim o de meu ser — Foi para H eidelberg e, seguindo as pegadas do pai, m atri
independente de qualquer form a dogmática, elas se tornaram culou-se como aluno de Direito. Estudou também um a varie
um a convicção de im portância v ita l... [não obstante] foi-me
impossível expressar ta l pensamento ao meu próprio filho dade de m atérias culturais, inclusive História, Economia, Filo
de modo a causar-lhe qualquer impressão. 2 sofia, que em H eidelberg eram ensinadas por professores em i
nentes. Aceitou a participação provisória na fraternidade de
duelos do pai, cuja influência o levou a tais círculos. Por in
Com essa piedade profunda e pessoal, H elene W eber sofreu
fluência do lado m aterno, através de um primo m ais velho que
com o m undanism o de sua vida fam iliar exterior. Não obstante,
estudava Teologia, filho do historiador Baum garten, de Estras
resignou-se à atmosfera um tanto complacente, farisaica e pa
burgo, ele participou das polêmicas teológicas e filosóficas da
triarcal criada pelo marido. D urante a adolescência, foram d i
época.
m inuindo os pontos de contato que W eber tinha com a mãe, em
relação a assuntos sérios. N ão que ele fosse atraído para o pai: Começava a sua rotina diária em H eidelberg levantando-se
a atmosfera superficial da moderna vida intelectual afastou-o cedo para comparecer a um a aula de Lógica. Depois, “m atava”
do espírito filisteu do pai, bem como da piedade da mãe. o tempo, no salão de duelo, durante um a hora. Freqüentava
as aulas “com um ar estudioso”, ia almoçar às 12,30, “por um
Embora respeitoso, rebelou-se contra a autoridade dos mais marco”. Ocasionalmente, tomava um quarto de litro de vinho
velhos. Mas ao invés de participar dos interesses “frívolos” de ou cerveja com a refeição. Com freqüência, passava duas das
seus companheiros dc estudo, da monotonia da rotina escolar e prim eiras horas da tarde disputando “um sólido jogo de cartas”.
da insignificância intelectual de seus professores, preferiu reti Depois, retirava-se para seus aposentos, exam inava as notas de
rar-se para o seu próprio mundo. U m rapaz assim não se su aula e lia livros como D e r alte u n d du N eu e Glaube, de
jeitaria às imposições do pai. A forma irrefletida pela q ual ele Strauss. “Por vezes, à tarde, vou com am igos até as montanhas
usava a esposa não escapou ao olho observador do rapaz de 17 e caminho, e à noite nos encontramos novamente no restaurante
anois. Certa vez, durante um a viagem à Itália com o pai, foi e comemos um a boa ceia por 80 pfen n ig. Leio o M icrocosm de
censurado por não demonstrar o grau adequado de entusiasmo
Lotze e travamos anim ada discussão sobre ele”.3 Ocasionalmente,
turístico estereotipado. M ax simplesmente declarou a sua in
convites para visitar os professores lhe davam a oportunidade
tenção de voltar para cp.sa, im ediatam ente e sozinho.
de im itar as peculiaridades características de pessoas conhecidas
O moto que W eber recebeu, ao ser crismado, foi: “O Se do grupo.
nhor é o espírito, mas onde está o espírito do Senhor está tam Nos semestres subseqüentes, W eber participou anim adam ente
bém a liberdade”. A viúva de M ax W eber comenta, em sua da vida social da sociedade de duelos, e aprendeu a sair-se bem
biografia: “D ificilm ente qualquer outro moto bíblico poderia tanto nas bebidas quanto nos duelos. Seu rosto passou a mostrar,
expressar melhor o princípio que governava a vida dessa criança”. sem demora, a cicatriz convencional dos duelos. C ontraiu d í
vidas e delas não se livrou durante toda a sua fase de H eidelberg.
A s canções estudantis e patrióticas que aprendeu durante esse
2 período perduraram -lhe na m em ória durante todo o curso de
sua vida. O jovem m agro transformou-se no homem robusto,
Os estudos pré-universitários de W eber foram encerrados na de ombros amplos e bastante gordo. Quando visitou a mãe
prim avera de 1882. Dotado de talento excepcional, ele não pre em Berlim j já como homem feito e revelando as características
cisava “esforçar-se”. Seus professores, porém, atestaram sua falta externas da A lem anha Im perial, ela se mostrou chocada com
de interesse pela rotina e duvidaram de sua “m aturidade m oral”. tal aparência e o recebeu com um tapa no rosto.
20 ENSAIOS DE SOCIOLOCIA ESCO RÇO BIO G RÁ FICO 21

Recordando-se dc seus anos de H eidelberg, W eber escreveu: M as W eber era bastante objetivo: adm itiu que o corpo tra
“O treinam ento habitual para a agressão altaneira, na fraterni balha com m aior precisão quando todo o pensamento é elim i
dade de duelo e como oficial, teve sem dúvida um a forte in nado. E depois de ter recebido sua patente de oficial, apren
fluência .sobre m im . Elim inou a tim idez e insegurança de deu rapidam ente a ver o lado alegre da vida m ilitar. Era
m inha adolescência”. 4 estimado pelos superiores, e contribuía com suas estórias exa
Depois de três semestres em H eidelberg, com 19 anos W eber geradas e seu agudo senso de humor para a cam aradagem do
transferiu-se para Estrasburgo a fim de prestar um ano de cassino dos oficiais. E, como oficial dotado de capacidade de
serviço m ilitar. À parte os duelos, jam ais praticara exercícios comando, conquistou o respeito dos seus subordinados.
físicos, e o serviço m ilitar, com seu treinamento, lhe foi difícil. O ano de serviço m ilitar terminou em 1884 e com 20 anos
A lém do esiorço físico, sofreu m uito com a vida insípida do W eber reiniciou os estudos universitários em Berlim e Goet-
quartel e as chicanas dos oficiais subalternos. Não lhe agradava tingen, onde, dois anos m ais tarde, prestava sen prim eiro exa
abrir mão de seus interesses intelectuais: me de Direito. M as durante o verão de 1885 e novamente em
1887 ele voltou a Estrasburgo para exercícios m ilitares. E em
Quando chego a casa, habitualm ente vou deitar-m e cerca
das 9 horas. Não consigo dorm ir, porém, pois os meus olhos 1888 participou de manobras m ilitares em Posen. A li sentiu,
não estão cansados e o lado intelectual do homem não está de perto, a atmosfera da fronteira germano-eslavônica, que lhe
sendo utilizado. O sentimento, que começa pela m anhã e parecia um a fronteira “cultural”. Sua análise de C hanning,
aum enta no decorrer do dia, de m ergulhar lentam ente na num a carta dirigid a à mãe, é característica de seu pensamento
noite de um a estupidez abismal é, na realidade, o mais desa da época.
gradável de tudo. o
C hanning causara profunda impressão em W eber, que não
W eber contornou esse sentimento usando o álcool a noite podia, porém, aceitar-lhe o absolutismo ético e o pacifismo: “Sim
e realizando a rotina m ilitar do dia seguinte em meio a névoa plesmente não posso ver que elevação moral resultará de colo
dc um a “ressaca” moderada. Sentia então “que as horas fogem car-se os m ilitares profissionais em pé de igualdade com um a
porque nada, nem um único pensamento, passa pelo meu cranio . quadrilha de assassinos e apontá-los à execração pública. A
Embora conseguisse finalm ente adquirir resistência e realizar guerra não se tornaria, por isso, mais hum ana.” Caracteristica
bem a m aioria das tarefas físicas, jam ais foi bom em ginástica mente, W eber não entra em discussão teológica sobre o Sermão
acrobática. Certa vez um sargento gritou-lhe em dialeto ber- da M ontanha; mantém-se à distância de C hanning, localizando
linense: “H om em , você parece um barril de cerveja pendurado a perspectiva deste na situação social e histórica; tenta, com isso,
num trapézio”. Compensou essa deficiência aperfeiçoando sua “compreender” e, ao mesmo tempo, relativizar a sua posição.
resistência à m archa e seu passo de ganso. Em momento al “C hanning não tem, evidentem ente, idéia dessas questões [gu er
gum deixou de rebelar-se contra o ra e deserção]. Ele tem em mente a situação dos exércitos
voluntários americanos, com os quais as guerras predatórias do
incrível desperdício de tempo exigido p ara dom esticar seres democrático Governo federal americano contra o México, etc.,
pensantes e transform á-los em m áquinas que atendem a o r
foram travadas.” 7 Os argum entos indicam , in nuce, a posição
dens com precisão autom ática. . . Espera-se que aprendamos
a paciência observando, d u ran te um a hora diaria, toda sorte que W eber defende m ais tarde, n a úldm a parte de Política
de coisas absurdas que são cham adas de educação m ilitar. com o V ocação, e na discussão da religião e política em R ejei­
Como se, Deus meu!, depois de três meses do m anual de ções R eligiosas do M u n d o . 8
arm as, durante horas diárias, e dos num erosos insultos dos
mais m iseráveis canalhas, alguém pudesse sofrer de falta de É característico do modo de vida de W eber ter ele, em
paciência! O candidato a oficial deve ser privado da possi Estrasburgo, m antido a sua principal experiência social dentro
bilidade de usar sua m ente durante o período de instrução da situação fam iliar. D uas irm ãs de sua mãe eram casadas
m ilita r.« com professores de Estrasburgo, e em suas casas ele encontrou
am izade e com panhia intelectual, bem como profunda experiên
22 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ESCORÇO BIOGRÁFICO 23
cia emocional. A lguns membros da fam ília Baum garten eram
d as In stituições A grárias (1891).O título modesto esconde, na
excepcionalmente inclinados às experiências místicas e religiosas,
realidade, um a análise sociológica, econômica e cultural da so
e o jovem W eber participou, com grande simpatia, das tensões
ciedade antiga, tem a a que W eber voltou repetidamente. Teve
que tais experiências provocavam. Tornou-se o confidente de
de defender um dos melhores pontos de sua tese contra Theo-
quase todos, aprendendo a compreender e a sim patizar com os
dor Mommsen. Ao fim da discussão inconclusiva, o eminente
seus respectivos valores. Falava de si mesmo como Ich W elt- historiador declarou que não conhecia nenhum outro homem
mensch” e procurava encontrar um a solução prática para as melhor para sucedê-lo “do que o m uito estimado M ax W eber”.
várias pessoas envolvidas. Para W eber isso significava ir além
do absolutismo ético: “O assunto não me parece tão desespe
rado se não perguntarm os demasiado exclusivamente (como os
Baum gartens fazem freqüentem ente): “Quem está moralmente 3
certo e quem está moralmente errado” ? M as se ao invés disso
perguntarm os: “Dado o conflito existente, como posso resol N a prim avera de 1892 um a sobrinha-neta de M ax W eber,
vê-lo com o menor dano interno e externo para todos os inte Sr., foi para Berlim , a fim de estudar um a profissão qualquer.
ressados?” 0 W eber sugere, assim, uma visão pragm ática, um M arianne Schnitger tinha 21 anos, era filha de um médico, fre
enfoque sobre as conseqüências das várias decisões, de preferên qüentara a escola preparatória em Hanôver. Ao voltar a Berlim
cia a um a teimosa insistência na consciência introspectiva da depois de já ter feito um a visita anterior aos W ebers, ela com
sinceridade própria. Suas primeiras cartas e experiências em preendeu que estava enam orada de M ax W eber. Depois de al
Estrasburgo pressagiam a sua distinção posterior entre uma etica gum a confusão, de mal-entendidos vitorianos e tentativas morais
da responsabilidade e uma ética dos fins absolutos. de auto-esclarecimento, M ax e M arianne anunciaram seu noi
vado form al. Casaram-se no outono de 1893.
W eber concluiu seus estudos e começou a trabalhar nos tri Por seis anos antes de seu casamento com M arianne, W eber
bunais de Berlim , cidade onde vivia com os pais. No princípio estivera enamorado de um a filha de sua tia m aterna em Estrasbur
da década de 1880 freqüentou, como aplicado estudante de D i go, que, por períodos bastante longos, estivera num hopital
reito, as salas de conferências dos juristas eminentes da época. de doenças mentais. E la estava convalescendo quando houve o
Entre eles, adm irava Gneist, cujas palestras dirigiram a sua rompimento, sem briga, entre ambos. W eber jam ais se perdoou
atenção para os problemas políticos correntes. “Suas conferên por ter causado involuntariam ente um sofrimento a essa terna mo
cias me parecem verdadeiras obras-prim as; realmente, tenho ça. T alvez tenha sido essa um a razão importante para a moderação
refletido sóbre seu modo de entrar diretam ente nas questões da de suas reações quanto aos que eram culpados no setor de rela
política e sobre a forma pela qual desenvolve opiniões rigorosa ções pessoais e pelo seu estoicismo geral em questões pessoais.
mente liberais sem se tornar um propagandista, o que Treitschke A lém dessa situação, outra dificuldade moral se interpusera no
realm ente se torna em suas conferências sobre o Estado e a Igre- caminho do casamento. T alvez devido à hesitação de W eber em
ja.” 10 abordar M arianne, um am igo seu a havia cortejado e foi um
W eber concentrou-se num campo em que a história eco pouco penoso para ele interferir.
nômica e a jurídica se confundiam. Escreve sua tese de dou
Depois do casamento com M arianne, W eber teve a existên
torado sobre a história das companhias de comércio durante
cia de um jovem professor bem sucedido em Berlim . Tendo
a Idade M édia (1889), exam inando centenas de referências ita
ocupado o lugar de Jakob Goldschmidt, famoso professor de
lianas e espanholas e aprendendo essas duas línguas com tal
Economia que adoecera, ele passava nas salas de aula 19 horas
objetivo. Em 1890 prestou seu segundo exame de Direito. H a-
por semana. Tam bém participava de exames oficiais para advo
bilitou-se, em Berlim , para o Direito Comercial, Alemão c Ro
gados e, além disso, impôs-se muitos outros trabalhos. Era
mano, com um tratado sobre um assunto que qualificou certa
consultado constantemente pelas repartições governam entais e
vez como a “história secreta dos romanos”, ou seja, H istória
realizou estudos especiais para grupos privados de reforma, um
24 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 25

deles de corretagem de títulos e outro de propriedades imobiliá D urante o resto de sua vida, sofreu interm itentem ente de
rias, na A lem anha O riental. depressões severas, entrecortadas de fases maníacas de intenso
trabalho intelectual e de viagens. N a verdade, seu modo de
No outono de 1894 aceitou a cátedra de Economia na U ni
vida, a partir de então, parece oscilar entre o colapso neurótico,
versidade de Friburgo. Conheceu, ali, H ugo Münsterberg, o
as viagens e o trabalho. Parecia manter-se de pé graças a um
Pastor N aum ann e W ilhelm R ickert. Estava muito assoberbado,
profundo senso de humor e um a prática excepcionalmente in
trabalhando até altas horas da noite. Quando M arianne insistia tim orata da m áxim a socrática.
para que descansasse, ele respondia: “Se não trabalhar até uma
hora, não posso ser professor”. A j is ío s o de aproveitar-se da melhor forma possível de um a
situação m á e reconfortar sua m ulher, W eber escreveu:
Em 1895 os W ebers realizaram um a viagem à Escócia e à
costa ocidental da Irlanda. Voltando a Friburgo, W eber profe Essa enferm idade tem suas compensações. A briu-m e o
riu a sua aula inaugural na Universidade, denom inada “O Esta aspecto hum ano da vida, que mamãe costumava não perceber
do N acional e a Política Econômica”, que era um a profissão de em mim. E isto em proporções anteriorm ente desconhecidas
fé na R ealp olit i\ im perialista e na Casa Hohenzollern. A aula p ara mim. Eu poderia dizer, com Jo h n G abriel Borkman,
que “um a mão gelada libertou-m e”. Nos anos passados
causou sensação. “A brutalidade de minhas opiniões”, escreve m inha disposição enferm iça expressou-se num interesse fa
ele, “causou horror. Os católicos foram os que m ais gostaram, nático pelo trabalho cientifico, que me parecia um ta lism ã ...
porque dei um pontapé firm e na Cultura Ética”. Recordando, isto m e parece bastante claro. Sei que, são ou
enfermo, já não serei m ais o mesmo. A necessidade de me
W eber aceitou um a cátedra em H eidelberg, em 1896, subs sentir esmagado sob um m onte de trabalho acabou. Agora,
tituindo o em inente Knies, um dos chefes da “escola histórica”, quero acima de tudo viver m inha vida hum anam enta e ver
que se aposentara. Tornou-se assim colega de seus ex-professo- m eu am or tão feliz quanto m e for possível tom á-la. Não
res, Fischer, B ekker e outros, que ainda brilhavam na vida in acredito que venha a realizar menos do que antes em m inha
usina interna, decerto, sem pre em proporção à m inha con
telectual e social de H eidelberg. Seu círculo de amigos incluía dição, cuja m elhoria perm anente exigirá, de qualquer modo,
Georg Jellinek, P aul Hensel, K arl N eum ann, o historiador da m uito tempo e repouso.12
arte, e Ernst Troeitsch, especialista em religião, que se tornaria
um dos seus maiores amigos e companheiros intelectuais e que
Tentou, repetidamente, continuar lecionando. N um a dessas
durante algum tempo m oraria em casa de W eber.
ocasiões, seus braços e suas costas ficaram tem porariam ente pa
ralisados, c mesmo assim ele se forçou a concluir o semestre.
4 Sentia-se mortalmente esgotado; sua cabeça estava cansada; qu al
quer esforço m ental, especialmente o discurso, parecia-lhe pre
O pai de M ax W eber morreu em 1897, pouco depois de judicial a todo o organismo. Apesar de irritações e impaciências
um a séria discussão, na qual M ax defendeu calorosamente a ocasionais, considerava sua condição como parte de sua sorte.
mãe contra o que lhe pareciam imposições autocráticas. M ais R ejeitou todos os “bons conselhos”. Desde a adolescência, tudo
tarde, passou a considerar sua explosão hostil contra o pai como à sua volta havia sido preparado para o pensamento. E, agora,
um ato culposo, que jam ais poderia ser reparado.11 D urante o qualquer esforço intelectual lhe parecia um veneno. N ão desen
verão seguinte, os W ebers viajaram para a Espanha e, ao retor volvera nenhum a inclinação artística, e o trabalho físico de qu al
narem, M ax começou a ficar febril e doente com um a enferm i quer tipo lhe era desagradável. Sua m ulher tentou convencê-lo
dade psíquica. Parecia estar melhor quando teve início o ano a adotar algum trabalho m anual ou passatempo, m as ele riu-se
acadêmico, mas em fins do semestre do outono voltou a adoe dela. Ficava horas sentado, o olhar esgazeado, estupidamente,
cer, devido a tensão, remorso, esgotamento e ansiedade. Para lim pando as unhas, afirm ando que tal inatividade lhe propor
a sua enferm idade, essencialmente psiquiátrica, os médicos recei cionava bem-estar. Quando tentava exam inar suas notas de aula,
as palavras se baralhavam , confusamente, ante os seus olhos. C er
taram água fria, viagens e exercícios. A inda assim, W eber con
to dia, quando cam inhava por um bosque, perdeu o controle
tinuou experim entando a insônia de um a tensão interior.
26 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
E SCO RÇO B IO G RÁ FICO 27
sensório e chorou convulsivamente. Um gatinho o irritou a tal
ponto que m ergulhou num acesso de ira. Êsses sintomas repe Com essa visão do suicídio como um a últim a e teimosa afir
mação da liberdade do homem, W eber toma posição ao lado de
tiram -se durante os anos de 1898 e 1899. As autoridades uni
estóicos modernos como M ontaigne, H um e e Nietzsche. Era,
versitárias concederam-lhe um a licença rem unerada. Anos mais
tarde, num a carta a seu am igo K arl Vossler, W eber escreveu: ao mesmo tempo, de opinião que as religiões de salvação não
aprovam a “morte voluntária”, e que somente os filósofos a sau
“A desgraça ensina a r e z a r ... Ensinará sem pre? De acordo
daram. 18
com m inha experiência pessoal, eu gostaria de por em dúvida
tal afirmação. Concordo, sem dúvida, que ela seja válida com Sob a influência da m agnífica paisagem da Itália e de seus
m uita freqüência, com um a freqüência que é excessiva para a cenários historicam ente grandiosos, W eber recuperou-se lenta
dignidade do homem”. 13 mente. O casal passou ainda algum tempo na Suíça, onde a
mãe, então com 57 anos, e o irm ão A lfred o foram visitar. Pou
Certo outono, os W ebers viajaram para V eneza, “em férias”.
co depois dessa visita M ax pôde retomar a leitura, com um livro
Ao voltarem a H eildelberg, W eber tentou reassum ir algum as de
sobre história da arte. Comentou então: “Quem sabe quanto
suas funções, m as recaiu novamente, e com m ais gravidade do
tempo poderei 1er? Q ualquer coisa, menos um livro de m inha
que antes. No N atal pediu para ser afastado de sua posição,
especialidade”. Depois de três anos e meio de um a enferm idade
mas a U niversidade concedeu-lhe nova licença rem unerada, mais
interm itentem ente severa, W eber voltou, em 1902, para H eidelberg
prolongada. “Não podia ler, escrever, falar, cam inhar ou dormir
e retomou um program a de trabalho leve. Aos poucos, começou
sem sofrimento; todas as suas funções m entais, e parte das fí
a 1er publicações profissionais e livros como A Filosofia d o D i­
sicas, recusavam-se a funcionar.” 14
nheiro, de Sim m el. E m seguida, como para compensar seus anos
Em princípios de 1899 internou-se n um a pequena casa de de privação intelectual, m ergulhou num a vasta e universal lite
saúde para doentes mentais, onde permaneceu sozinho por várias ratura, da qu al H istória da A rte, Economia e Política faziam
semanas. U m jovem primo psicopata tam bém foi internado no parte, lado a lado com a H istória Econômica das ordens mo
mesmo hospital e, durante o inverno, a conselho médico, a m u násticas.
lher de W eber viajou com ambos a Ajaccio, na ilha da Córsega. Houve, porém, repetidos retrocessos. N ão era ainda capaz
N a prim avera, foram a Roma, cujas ruínas provocaram de novo de retomar suas funções m agisteriais em toda a plenitude. So
o interesse de W eber pela História. Sentia-se deprimido com a licitou seu afastamento da cátedra « o cargo de professor titular.
presença do jovem psicopata, que foi então m andado de volta T al pedido foi negado a princípio, mas, por insistência sua,
para casa. V ários anos mais tarde, esse jovem se suicidaria. A ficou como livre docente. Solicitara o direito de exam inar can
carta de condolência de W eber aos pais dele nos revela a sua didatos io doutorado, o que não lhe foi concedido. Depois de
independência em relação às atitudes convencionais sobre o sui ter passado quatro anos e meio sem produzir, pôde escrever um
cídio. comentário sobre um livro. U m a nova fase de produção come
Êle era um homem [escreveu W eber sobre o prim o] que, çou finalm ente, relacionada a princípio com os problemas do
acorrentado a um corpo incuravelm ente enfêrmo, desenvol método em Ciências Sociais.
vera, ainda assim, e talvez devido a isso, um a sensibilidade
de sentimentos, uma. consciência de si mesmo, e um compor W eber sofria sob a tensão psíquica de receber dinheiro da
tam ento íntim o profundam ente oculto, orgulhoso e muito no universidade sem prestar-lhe serviços adequados. Sentia que
bre, como entre poucas pessoas sadias se encontra. Saber somente um homem que trabalha é um homem completo, e
disso só é dado aos que privaram com ele de perto e que forçava-se a trabalhar. M as depois de apenas um verão de ati
aprenderam a amá-lo, como nós, e que sabem pessoalmente o
que é a en ferm idade... Sendo seu futuro o que era, ele fez vidades, voltou à Itália sozinho. D urante o ano de 1903 viajou
bem em p a rtir agora para a te rra desconhecida, e antes de para fora da A lem anha nada menos de seis vezes; esteve na
vocês, que teriam de deixá-lo para trás, nesta terra, cam i Itália, H olanda e Bélgica. Seu nervosismo, sua decepção com
nhando para um destino sombrio, sem orientação e na soli as próprias insuficiências, atritos com o corpo docente de H eideí-
dão. «
berg e a situação política do país despertavam-lhe ocasionalmente
o desejo de voltar as costas à A lem anha para sempre. N ão obs-
28 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 29

tantc, durante aquele ano, 1903, conseguiu juntar-se a Sombart, E ntre essas massas, todo individualismo se to m a caro,
seja em habitação ou em alimentação. Assim, a casa do
na direção do A rch iv fü r Soz ialw issen sch ajt u n d So z id p o lit i\, Professor Hervay, do Departam ento de Alemão da U niversi
que se tornou, talvez, a mais destacada publicação de Ciências dade de Colúmbia, é sem dúvida uma casa de bonecas com
Sociais na A lem anha, até ser fechada pelos nazistas. Essa dire aposentos pequeninos, com instalações de toalete e banho na
ção proporcionou-lhe a oportunidade de retomar contatos com mesma dependência (como ocorre quase sem pre). Festas
com mais de quatro convidados são impossíveis (dignas de
um amplo círculo de professores e políticos e am pliar o foco inveja!) e, qom tudo isso, leva-se uma hora de carro para
de seu próprio trabalho. Em 1904 sua produtividade estava se chegar ao centro da cid ad e ... >“
novamente em plena forma e melhorando cada vez mais. Pu
blicou ensaios sobre os problemas sociais e econômicos das pro De Nova York o grupo viajou para as cataratas do N iágara.
priedades dos ]u n \e rs, a objetividade nas Ciências Sociais e a V isitaram um a pequena cidade e em seguida foram a Chicago,
prim eira parte de A Ética Protestan te e o Espirito do Capita­ que W eber considerou “incrível”. Observou bem sua falta de
lism o. lei e sua violência, seus agudos contrastes de palácios e chou
H ugo M ünsterberg, seu colega desde a época de Friburgo, panas, o “vapor, sujeira, sangue e couros” dos currais de gado,
havia ajudado a organizar um “Congresso de Artes e Ciências” a “enlouquecedora” m istura de povos:
como parte da Exposição -Universal de 1904 em St. Louis. Con
os gregos engraxando os sapatas dos ianques por cinco cen
vidou W eber (juntam ente com Sombart, Troeltsch e muitos ou tavos, os alemães servindo de seu garçom, os irlandeses adm i
tros) a ler um trabalho perante o C ongresso.17 Em agosto, nistrando sua política, e os italianos abrindo as suas valas
W eber e sua m ulher estavam a caminho da América. sujas. Com exceção de alguns bairros residenciais fechados,
a totalidade da cidade gigantesca, m aior do que Londres, é
como um homem cuja pele tenha sido arrancada e cujas
entranhas vemos funcionar.
5
Impressionou-se repetidamente com as proporções do desper
A reação de M ax W eber aos Estados Unidos foi ao mesmo dício, especialmente de vida hum ana, sob o capitalismo ame
tempo entusiástica e im parcial. Possuía, em proporções conside ricano. Observou as m esm as condições que estavam sendo de
ráveis, a “virtude” que E dward Gibbon atribui ao viajante es nunciadas na época pelos elementos mais revoltados. E comen
tudioso no exterior, a “virtude que se aproxim a do vício; o tem tou, num a carta dirigid a à m ãe:
peramento flexível que pode assim ilar qualquer tom de socie
dade, desde a corte até a cabana; o feliz estado de espírito que Depois do trabalho, os operários freqüentem ente têm de
v iajar horas p ara chegar à sua casa. A estrada de ferro está
pode divertir e ser divertido em todas as companhias e situa falida há anos. Como sempre, um depositário, que não tem
ções”. 18 Por isso, W eber se im pacientava com os colegas de interesse em apressar a liquidação, adm inistra seus negócios;
preconceito fácil, que depois de um dia e meio em Nova Y ork por isso não são comprados vagões novos. Os carros velhos
começavam a criticar as coisas da América. constantem ente enguiçam, e cerca de 400 pessoas por ano
m orrem ou ficam aleijadas em desastre. Segundo a lei, cada
Desejava entrar com o espírito aberto no Novo M undo, sem m orto custa à com panhia cêrca de 5.000 dólares, pagos à viúva
abrir mão de sua capacidade de julgam entos informados, poste ou herdeiros, e cada aleijado custa cerca de 10.000 dólares,
riormente. Ficou fascinado pela hora do rush no baixo M anhat pagos ao próprio. Tais indenizações são devidas enquanto
a com panhia não adotar certas medidas de precaução. Cal
tan, que gostava de observar do meio da Ponte de Broolclyn, culou-se que as 400 m ortes por ano custam menos do que
como um panorama de transporte em m assa e movimento baru as tais precauções necessárias. E, por isso, a com panhia não
lhento. Os arranha-céus, que considerava como “fortalezas do as adota. *o
capital”, lem bravam -lhe “os velhos quadros das torres de Bolonha
e Florença”. E contrastou esses bastiões do capitalismo com as Em St. Louis, W eber pronunciou uma conferência, com
pequenas casas dos professores universitários americanos: exito, sobre a estrutura social da Alem anha, com referência par-
28 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 29

tante, durante aquele ano, 1903, conseguiu juntar-se a Sombart, Entre ess&s massas, todo individualism o s g torna caro,
seja em habitação ou em alimentação. Assim, a casa do
na direção do A rch iv fü r Soz ialw issen sch aft u n d So z id p o lit i\, Professor H ervay, do Departamento de Alem ão da U niversi
que se tornou, talvez, a mais destacada publicação de Ciências dade de Colúmbia, é sem dúvida uma casa de bonecas com
Sociais na A lem anha, até ser fechada pelos nazistas. Essa dire aposentos pequeninos, com instalações de toalete e banho na
ção proporcionou-lhe a oportunidade de retomar contatos com mesma dependência (como ocorre quase sem pre). Festas
com mais de quatro convidados são impossíveis (dignas de
um amplo círculo de professores e políticos e am pliar o foco in veja!) e, çom tudo isso, leva-se uma hora de carro para
de seu próprio trabalho. Em 1904 sua produtividade estava se chegar ao centro da c id a d e ... i»
novamente em plena forma e melhorando cada vez mais. P u
blicou ensaios sobre os problemas sociais e econômicos das pro De Nova Y ork o grupo viajou para as cataratas do N iágara.
priedades dos Ju n \e rs, a objetividade nas Ciências Sociais e a V isitaram um a pequena cidade e em seguida foram a Chicago,
prim eira parte de A "Ética Protestan te e o Espírito do Capita­ que W eber considerou “incrível”. Observou bem sua falta de
lism o. lei e sua violência, seus agudos contrastes de palácios e chou
H ugo M ünsterberg, seu colega desde a época de Friburgo, panas, o “vapor, sujeira, sangue e couros” dos currais de gado,
havia ajudado a organizar um “Congresso de Artes e Ciências” a “enlouquecedora” m istura de povos:
como parte da Exposição U niversal de 1904 em St. Louis. Con
os gregos engraxando os sapatos dos ianques po r cinco cen
vidou W eber (juntam ente com Sombart, Troeltsch e muitos ou tavos, os alemães servindo de seu garçom, os irlandeses adm i
tros) a ler um trabalho perante o C ongresso.17 Em agosto, nistrando sua política, e os italianos abrindo as suas valas
W eber e sua m ulher estavam a caminho da América. sujas. Com exceção de alguns bairros residenciais fechados,
a totalidade da cidade gigantesca, m aior do que Londres, é
como um homem cuja pele tenha sido arrancada e cujas
entranhas vemos funcionar.
5

Impressionou-se repetidamente com as proporções do desper


A reação de M ax W eber aos Estados Unidos foi ao mesmo dício, especialmente de vida hum ana, sob ò capitalismo ame
tempo entusiástica e im parcial. Possuía, em proporções conside ricano. Observou as m esm as condições que estavam sendo de
ráveis, a “virtude” que E dward Gibbon atribui ao viajante es nunciadas na época pelos elementos mais revoltados. E comen
tudioso no exterior, a “virtude que se aproxim a do vício; o tem tou, num a carta dirigida à m ãe:
peramento flexível que pode assim ilar qualquer tom de socie
dade, desde a corte até a cabana; o feliz estado de espírito que Depois do trabalho, os operários freqüentem ente têm de
v ia ja r horas para chegar à sua casa. A estrada de fe rro está
pode divertir e ser divertido em todas as companhias e situa falida há anos. Como sempre, um depositário, que não tem
ções”. 18 Por isso, W eber se impacientava com os colegas de interesse em apressar a liquidação, adm inistra seus negócios;
preconceito fácil, que depois de um dia e meio em Nova Y ork por isso não são comprados vagões novos. Os carros velhos
começavam a criticar as coisas da América. constantemente enguiçam, e cerca de 400 pessoas por ano
m orrem ou ficam aleijadas em desastre. Segundo a lei, cada
Desejava entrar com o espírito aberto no Novo M undo, sem m orto custa à companhia cêrca de 5.000 dólares, pagos à viú va
abrir mão de sua capacidade de julgam entos informados, poste ou herdeiros, e cada aleijado custa cerca de 10.000 dólares,
riormente. Ficou fascinado pela hora do rush no baixo M anhat pagos ao próprio. Tais indenizações são devidas enquanto
a companhia não adotar certas medidas de precaução. C al
tan, que gostava de observar do meio da Ponte de Brooklyn, culou-se que as 400 m ortes por ano custam menos do que
como um panorama de transporte em massa e movimento baru as tais precauções necessárias. E, por isso, a companhia não
lhento. Os arranha-céus, que considerava como “fortalezas do as adota. *>
capital”, lem bravam -lhe “os velhos quadros das torres de Bolonha
e Florença”. E contrastou esses bastiões do capitalismo com as Em St. Louis, W eber pronunciou uma conferência, com
pequenas casas dos professores universitários americanos: exito, sobre a estrutura social da Alem anha, com referência par-
30 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 31

ticular aos problemas rurais e políticos. Foi a sua prim eira ciam ter, ali, seu m aior âmbito de manifestações e na sua esteira
“conferência” num período de seis anos e meio. M uitos de seus floresceram as associações seculares, cívicas e “voluntárias”. A li
colegas estavam presentes e, segundo conta sua m ulher, também um a federação política de estados havia levado a um a união “vo
presente, a palestra foi m uito bem recebida. O êxito deixou lun tária” de imensos contrastes.
satisfeitos os W ebers, pois parecia indicar que M ax estava nova W eber não partilhava da opinião dos funcionários públicos
mente capacitado para o exercício de sua profissão. V iajou alemães que se orgulhavam de sua “adm inistração honesta” e
pelo território de Oklahom a e visitou Nova Orleans e a T us- apontavam com desprezo os “processos corruptos” da política
kegee Institution; visitou também parentes distantes na Caro- am ericana. F riedrich Kapp, um germ ano-am ericano que voltou
lina do Norte e na V irgín ia; em seguida, percorreu rapidamente à A lem anha, havia evidenciado tal atitude, em seus contatos com
Filadélfia, W ashington, Baltim ore e Boston. Em Nova York W eber. M as este via as coisas n um a perspectiva m ais am pla.
pesquisou na biblioteca da Universidade de Colum bia material Convicto de que a política não deve ser ju lgad a apenas como
para a sua obra A Ética Protestan te. um a questão moral, sua atitude assemelhava-se m ais à de Charles
Sealsfield que, durante a década de 1830, revelou um panoram a
Dos americanos [que conhecemos] foi uma m ulher, ins- épico do nascimento de um a nação, construtora de um império,
petora de indústria, a fig u ra mais destacada. Aprendia-se
m uito sobre o m al radical deste mundo, com essa socialista destinada a “tomar seu lu gar entre as mais poderosas nações da
apaixonada. A ineficiência da legislação social num sistema T erra”. Sealsfield pergun tara: “Não será um a condição necessá
de particularism o estatal, a corrupção de muitos líderes tra ria, absoluta, de nossa liberdade que as virtudes dos cidadãos,
balhistas que incitam à greve e buscam recompensas com os bem como os seus vícios, se tornem mais exuberantes porque
industriais ao solucioná-las. (Tive uma carta de apresenta
ção pessoal para um dêsses ca n a lh as). . . e não obstante, podem crescer e desenvolver-se livrem ente?” W eber poderia ter
[os americanos] são um povo m aravilhoso. Som ente a ques concordado, depois do que viu, que “a boca que respira os
tão do negro e a imigração te rrív e l constituem uma enorme vapores fétidos do M ississippi e dos pântanos do rio Vermelho
nuvem negra. 21 não pode comer passas; a m ão que derruba nossas árvores g i
gantescas e drena nossos brejos não pode calçar luvas de pelica.
D urante suas viagens pelos Estados Unidos, W eber se inte Nossa terra é a terra do contraste”. 23
ressou m uito pelos problemas trabalhistas, a questão da im i
O essencial da experiência que W eber teve da A m érica se
gração, os problemas de adm inistração política — especialmente
relacionou com o papel da burocracia num a democracia. Per
o Governo m unicipal — todas as expressões do “espírito capita
cebeu ele que a “m áquin a política” era indispensável na “demo
lista”, 22 a questão dos índios e sua adm inistração, a m á situa
cracia de massas” moderna, a menos que imperassem um a “de
ção do Sul e o problema do negro. Sobre este, escreveu: “Con
mocracia sem líderes” e um a confusão de línguas. A m áquina
versei com cem sulistas brancos de todas as classes sociais e par
política, porém, significa a adm inistração da política pelos profis
tidos, e o problema do que será dessa gente [os negros] parece
sionais, pela disciplinada organização partidária e pela sua pro
absolutamente sem solução”.
paganda sim plista para ser m ais eficiente. T al democracia
W eber chegou à A m érica em setembro de 1904; retornou a também pode suscitar o aparecimento da tribuna popular cesa-
A lem anha pouco antes do N atal. * rista, seja no papel do presidente forte ou do adm inistrador ur
T alvez os Estados Unidos tenham sido para ele o que a bano. E a totalidade do processo tende para um a crescente efi
Inglaterra fora para as gerações anteriores de liberais alemães: ciência racional e, com isso, para as m áquinas burocráticas:
o modêlo de um a sociedade nova. A s seitas protestantes pare partidárias, m unicipais e federais.
W eber viu, porém, essa formação de m áquinas de um modo
dialético: a dem ocracia deve opor-se à burocracia como ten
* Algum as traduções, para o inglês, de cartas de W eber escritas
nos Estados Unidos encontram -se em H. W . Brann, “M ax W eber dência para um a casta de m andarins, distanciada das pessoas
and th e U nited S tates”, Southw estern Social Science Q uarterly, comuns pelo treinam ento especializado, certificados de exames e
junho de 1944, pp. 18-30. ocupação de cargo, m as: o âm bito das funções adm inistrativas, o
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ESCORÇO BIOGRÁFICO 33
fim da fronteira aberta e a limitação das oportunidades torna Ética Protestan te, que em carta a R ickert chamou de “ascetismo
o sistema de despojos, * com seu desperdício público, irregula protestante como base da m oderna civilização vocacional — uma
ridades e falta de eficiência técnica cada vez m ais impossível e espécie de construção “espiritualista” da economia m oderna”. 25
antidemocrático. Assim, a democracia tem de promover o que
a razão exige e os sentimentos democráticos repelem. Em A prim eira revolução russa modificou a direção de seus tra
balhos acadêmicos; aprendeu o russo, estudando na cam a todas
seus escritos, W eber refere-se repetidamente aos trabalhadores
as manhãs, antes de levantar-se, para seguir os acontecimentos
americanos que foram contra a reforma do serviço público, argu
na imprensa russa diária. Em seguida, exam inava “os aconte
mentando que preferiam um quadro de políticos corruptos, que
cimentos, a fim de situá-los como história quotidiana”. Em
poderiam afastar e desprezar, a uma casta de funcionários espe
1906 publicou dois grandes ensaios sobre a Rússia, “A Situação
cializados, que os desprezariam e que seriam irremovíveis. W eber
da Democracia Burguesa na Rússia” e “A Transição da Rússia
colaborou no fortalecimento do poder do Presidente alemão para
para o Constitucionalismo de Fachada”.
contrabalançar o Reichstag; tal atitude deve ser compreendida à
luz de suas experiências americanas. Ele impressionou-se acim a Cientistas sociais destacados, como Schmoller e Brentano,
de tudo com a eficiência grandiosa de um tipo de homem, cria estim ularam -no para que retomasse a cátedra, mas W eber não
do pelas associações livres nas quais o indivíduo tinha de provar se sentia capaz disso. Q ueria escrever, apenas, durante mais
sua igualdade com outros, no qual não as ordens da autoridade, algum tempo. M as sendo considerado por todos, não pôde deixar
mas a decisão autônoma, o bom senso e a atitude responsável de ser atraído para a política universitária, julgando candidatos
constituem a preparação para a cidadania. aos cargos e tentando abrir caminho para professores m ais jovens,
Em 1918 W eber sugeriu, em carta a um colega, que a A le como Georg Sim m el e Robert Michels, que tinham dificuldade
m anha copiasse os padrões americanos como meio de reeducar-se, em realizar carreiras satisfatórias devido ao anti-semitismo ou
pois, segundo ele, o “autoritarism o falha hoje totalmente, exceto ao preconceito contra os jovens docentes socialistas. O caso de
na forma da Igreja”. 24 W eber percebeu, desse modo, a ligação Robert Michels, filho de conceituada fam ília de comerciantes
entre as associações voluntárias e a estrutura de personalidade patrícios de Colônia, irritou particularm ente a W eber. N a época,
do homem livre. Seu estudo da seita protestante mostra isso. as universidades alem ãs fechavam-se para ele por ser M ichels
Estava convencido de que a seleção autom ática de pessoas, pres social-democrata. W eber afirm ou que “Se compararmos a si
sionando sempre o indivíduo para que dê provas de suas qu ali tuação italiana e francesa e, no momento, até a russa, com as
dades, é um a forma infinitam ente mais profunda de “endurecer” condições que temos entre nós, somos obrigados a considerá-las
o homem do que a técnica das ordens e proibições das institui vergonhosas para um a nação civilizada”. A lguns professores
ções autoritárias. Pois esse autoritarism o não chega à essência afirm avam que, além das razões políticas para a exclusão de
dos que estão sujeitos à coação exterior, deixando-os incapazes Michels, havia ainda o fato de não ter ele batizado seus filhos.
de autodireção, quando a estrutura autoritária é rompida pela Sôbre isso W eber escreveu um artigo no Fran k fu rter Z eitu n g,
sôbre “A Suposta Liberdade de C átedra”, no qual d izia:
contraviolência.
Enquanto predom inarem tais opiniões, não vejo possibili
6 dade de nos com portarm os como se existisse a liberdade de
c á te d ra ... E enquanto as comunidades religiosas consciente
Ao voltar à A lem anha, M ax W eber retomou a redação de e abertam ente perm itirem que seus sacramentos sejam usados
suas obras em H eidelberg. T erm inou a segunda parte de A como meio de fazer carreira, no mesmo n ível das associaçõs
de duelo ou da comissão de oficial, merecem o desprezo de
que tanto se têm queixado.
* Costume de considerar os cargos públicos como um despojo
para o partido que sobe ao poder, e distribui-los, bem como outros
favores, a pessoas que tenham trabalhado para o partido, indepen Em 1908 ele investigou a psicologia industrial da fábrica
dentemente de suas habilitações ou m éritos para tais cargos. Ao de linho de seu avô, na V estfália. Esperara promover um a
sistema de despojos opõe-se o “sistema do m érito”. (N. do T.) série desses estudos, e a nota metodológica que escreveu constitui
34 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ESCORÇO BIOGRÁFICO 35

menos culturais, históricos, morais e religiosos. É claro que


um a análise causai dos fatores físicos e psíquicos que influem do ponto de vista de um historiador cultural, sua significa
na produtividade do trabalho industrial. Nesse mesmo ano, ção não é tão un iversal quanto o com preensível entusiasmo
preparou um longo ensaio sóbre a estrutura social da sociedade de Freud e seus discípulos, na alegria da descoberta, nos
querem fazer crer. Uma condição prelim inar seria a fixação
antiga, publicado num a enciclopédia * sob o título, modesto e de uma tipologia exata de uma dimensão e uma certeza que
um pouco enganoso, de “A s Instituições A grárias da A n ti não existem hoje, apesar de todas as afirmações em contrário,
guidade”. mas que talvez venham a existir dentro de duas ou três
décadas. aT
Surgiu, nos círculos intelectuais de H eidelberg, em 1909,
um discípulo de Freud. As concepções vitorianas convencionais
da fidelidade conjugal do ciúme moralm ente justificado foram Em H eidelberg, durante os anos que vão de 1906 a 1910, W e
menosprezada em nome de uma nova norma de vida m ental ber participou de intensas discussões intelectuais com colegas em i
mente sadia. Sim patizando com as trágicas complicações e as nentes como seu irmão, A lfred W eber, com Otto Klebs, Eberhard
dificuldades morais de amigos, resultantes dessa conduta, W eber Gothein, W ilhelm W indelband, Georg Jellinek, Ernst Troeltsch,
reagiu violentamente contra o que lhe pareceu um a confusão K arl Neum ann, Em il L ask, Friedrich Gundolf e A rthur Salz. D u
valiosa, embora ainda precisa, de conhecimentos psiquiátricos rante as férias, ou outros “períodos livres”, muitos am igos vi
com um a ética de orgulho vulgar pelos “nervos sadios”. Não nham visitar os W ebers em Heidelberg. Entre eles estavam
se dispunha a aceitar os nervos sadios como um fim absoluto, Robert Michels, W erner Sombart, o filósofo Paul Hensel, H ugo
ou a calcular o valor moral do recalque em termos do que custa M ünsterberg, Ferdinand Tönnies, K arl Vossler e, principalm ente,
aos nervos. W eber acreditava ser a técnica terapêutica de Freud Georg Sim m el. Entre os professores mais jovens que buscavam
um a ressurreição da confissão oral, com o médico no lugar do o estímulo de W eber estavam P aul Honigsheim, K arl Löwen
antigo directeur d'âm e. Parecia-lhe que um a ética se disfarçava stein e Georg Lukacs. Esses círculos não se fechavam para os
na discussão científica do médico, e que nessa questão um cien não-acadêmicos; incluíam alguns artistas destacados, como M ina
tista especializado, que só se deveria interessar pelos meios, estava Tobler, o músico a quem W eber dedicou seu estudo do hin-
usurpando ao leigo o direito de fazer seus próprios juízos. V iu, duísmo e budismo, bem como a ex-atriz Kläre Schm id-Rom berg
assim, um modo de vida “frouxo” im plícito no que considerou e seu marido, um poeta, filósofo e conhecedor das artes. K arl
como um a teoria clínica incerta. Podemos ver facilm ente que Jaspers, psiquiatra que se tornaria filósofo e usaria a obra de
ele resistiu a um a teoria que, em princípio, se volta contra o K ierkegaard em sua filosofia do existencialismo, e H . Gruhle,
ascetismo e que só vê os fins em termos pragmáticos, esvaziando psiquiatra interessado no que havia de mais recente na arte mo
com isso as pretensões im perativas da ética heróica. Caracte- derna, faziam parte do grupo. Três gerações de elite intelectual
rizando-se pessoalmente por um a consciência extrem amente rí e artística participavam dessas reuniões de Heidelberg.
gida, W eber tinha, porém, facilidade em perdoar os outros, em Em 1908 M ax W eber participou ativamente da organização
bora fosse extrem amente rigoroso para consigo mesmo. A credi de um a sociedade sociológica. N um a atitude desprendida, ven
tava que muitos dos seguidores de Freud justificavam com m uita ceu as dificuldades rotineiras existentes na criação de organiza
facilidade o que lhe parecia ser um a baixeza moral. ções semelhantes. Sua influência foi decisiva na fixação do nível
Devemos notar, porém, que embora W eber não se inclinasse de discussão nas reuniões e na definição do âmbito do trabalho
a ver os discípulos de Freud usarem suas teorias dessa forma futuro. Estimulou as pesquisas coletivas, como um a investigação
pessoal, não tinha sobre as associações voluntárias, das ligas atléticas às seitas reli
giosas e partidos políticos. Propos um estudo metódico da im
dúvida de que as idéias de F reud podem ser uma fonte de prensa através de questionários e dirigiu e estim ulou estudos
interpretações m uito significativas de toda uma série de fenô- de psicologia industrial. A lém disso, assumiu a responsabilidade,
perante o editor Siebeck, de organizar um a série enciclopédica de
* H andwörterbuch der Staatswissenschaften, 3' ed., vol. I.
estudos de Ciências Sociais. Esse últim o projeto deveria ser rea-
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lizado num prazo de dois anos, mas continuou mesmo depois Visitou Bruxelas durante um curto período, para conferenciar
de sua morte, tendo o seu trabalho W irtsch aft u n d Gesellsch aft com Jaffé sobre a adm inistração da ocupação da Bélgica. D iri
sido publicado como um volume da série. giu-se depois a Berlim , como profeta da desgraça, para escrever
O rigor do senso de honra de W eber, seu cavalheirismo in memorandos, buscar contato com autoridades políticas e combater
falível e sua posição como oficial da reserva o levavam freqüen a louca aspiração im perialista. Em últim a análise, denunciou a
temente a ações judiciais e “questões de honra”. Era caracterís conduta do grupo de belicistas como o jogo de fabricantes de
tico dele agir com grande impetuosidade e justa indignação. munições e capitalistas agrários. De Berlim passou a V iena e
M as, quando seu adversário estava moralmente esmagado pela Budapeste, a serviço do Governo, para realizar conversações não-
m áquina que W eber punha em ação, seu furor dim inuía e ele -oficiais com industriais sobre a questão das tarifas.
era dominado por um sentimento de misericórdia e simpatia, No outono de 1916 ele estava de volta a H eidelberg, estu
principalm ente ao compreender que outros, além do culpado, dando os profetas hebreus e trabalhando em vários capítulos de
poderiam sofrer com seus atos. A m igos íntimos que não parti W irtsch aft u n d Gesellsch aft . No verão de 1917 passou férias na
cipavam dos sentimentos fortes de W eber nessas questões inclina residência de sua m ulher, na Vestfália, lendo a poesia de Stefan
vam-se a considerá-lo como ranzinza, destituído do senso da George e o livro de Gundolf sobre Goethe. Nos invernos de
m edida, um Dom Quixote cujos atos bem poderiam acabar por 1917 e 1918, os alunos socialista-pacifistas freqüentavam sua casa,
recair sobre ele mesmo. Outros o saudavam como o m ais im aos domingos, em H eidelberg. O jovem comunista Ernst Toller
portante educador da A lem anha, cuja autoridade moral o colo estava entre eles e lia freqüentemente seus versos, em voz alta.
cava acim a dos ombros dos filisteus sem espinha dorsal, inte M ais tarde, quando T oller foi preso, o defendeu perante o tri
bunal m ilitar e conseguiu sua libertação, embora não tivesse
ressados apenas em suas próprias carreiras. Seu aspecto de Dom
podido im pedir seu afastamento da universidade.
Quixote surge claram ente num a declaração feita a seu amigo
Theodor Heuss, em 1917: “T ão logo a guerra chegue ao fim, Em abril de 1918, ele se transferiu para V iena, para um
insultarei o K aiser até que ele m e processe, e em seguida os curso de verão na universidade. Foram as suas prim eiras aulas
estadistas responsáveis, Bülow , T irp itz e Bethm ann-H ollweg, universitárias em 19 anos. Sob o título “U m a C rítica Positiva
serão obrigados a fazer declarações sob juram ento”. 28 da Concepção M aterialista da H istória”, apresentou sua Sociolo
g ia das religiões m undiais e da política. Suas conferências foram
Quando começou a P rim eira G uerra M undial, W eber tinha um acontecimento na universidade, tendo sido necessário pro
50 anos. “Apesar de tudo”, foi “um a grande e maravilhosa nunciá-las no m aior auditório existente, com a presença de
guerra”, 20 e ele quis m archar à testa de sua companhia. O professores, autoridades estatais e políticos. Apesar disso, expe
fato de ser impedido pela idade e pela saúde lhe foi doloroso. rim entava um a ansiedade doentia em relação a elas, usando opia
M as como oficial da reserva, foi comissionado como oficial disci tos para conseguir dormir. A Universidade de V iena ofereceu-
plinar e econômico, no posto de capitão, encarregado de orga -lhe um a cátedra perm anente, que ele não aceitou.
n izar e adm inistrar nove hospitais na área de H eidelberg. Nesse
Em 1918 W eber abandonou as convicções monarquistas,
cargo viu, por dentro, o que se havia tornado um conceito cen adotando as republicanas. Como disse M einecke: “Deixamos de
tral em sua Sociologia: a burocracia. O aparato social de que ser m onarquistas sentim entais para sermos republicanos racio
estava encarregado era, porém, constituído de diletantes, e não nais”. Absteve-se de aceitar qualquer posto político no novo
de especialistas; W eber trabalhou em favor de sua transforma regim e. T oda um a série de cargos acadêmicos lhe foi oferecida:
ção, que chegou a presenciar, num a burocracia ordenada. De Berlim , Gõttingen, Bonn e M unique. Aceitou a oferta desta
agosto de 1914 até o outono de 1915, ele serviu naquele cargo, últim a, para onde se d irigiu no verão de 1919 como sucessor
que desapareceu num a reorganização então processada, ocasião de Brentano. Em M unique, acompanhou as agitações da D i
em que W eber foi reformado com as honras do estilo. Suas tadura Bávara e seu colapso. Suas últim as conferências foram
frustrações políticas durante a guerra serão exam inadas mais pronunciadas a pedido de seus alunos e publicadas como H is­
adiante. tória Econ ôm ica Geral. Em meados do verão adoeceu e, num a
38 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 39

fase final, a enferm idade foi diagnosticada como pneumonia desfrutada pela universidade, cm relação às pressões locais, era
aguda. M orreu em junho de 1920. importante.
As longas décadas de paz para a Alem anha, de 1870 a 1914,
*7
juntam ente com a prosperidade geral, haviam modificado as con
/
dições da erudição alem ã. O professor pequeno-burguês, preo
cupado com problemas de dinheiro, fôra substituído pelo aca
M ax W eber pertenceu a um a geração de professores de dêmico de classe superior, que morava em casa am pla e tinha
preocupações universais, e há condições sociológicas definidas para criados. Essa transformação facilitou o desenvolvimento do salão
a erudição que ele evidenciava. U m a dessas condições era a intelectual. Foi desse ponto de vista que W eber viu as resi
educação ginasial, que no caso de W eber o equipou de tal modo dências dos professores universitários americanos.
que as línguas indo-germ ânicas constituíram apenas dialetos de
As tradições intelectuais e a erudição acum ulada da A lem a
um instrum ento lingüístico. (Ele tinha, ainda, conhecimento de
nha, especialmente na H istória, Clássicos, Psicologia, Teologia,
hebraico e russo suficiente para a leitura.) U m ambiente fam i
L iteratura Comparada, F ilologia e Filosofia, deram ao professor
liar intelectualm ente estim ulante deu-lhe um a vantagem inicial,
alemão de fins do século X IX um a base destacada sobre a qual
possibilitando-lhe um a combinação incomum de matérias espe
construir o seu trabalho. E o choque de duas estruturas de
cializadas. A o ser aprovado no exame de Direito, seus conheci
trabalho intelectual, a interpretação conservadora de idéias pelos
mentos faziam dele também um bom economista, historiador e
acadêmicos, na tradição de H egel e Ranke, e a produção inte
filósofo. E tendo participado, através do ramo Strassburg de
lectual radical de socialistas não-acadêmicos, como K autsky,
sua fam ília, nas polêmicas teológicas da época, tinha conheci
Bernstein e M ehring, criavam um a tensão intelectual singular e
mento suficiente da literatura de T eologia para dela se ocupar
desafiadora.
como um perito. i
É evidente que o volume enorme de trabalho realizado por V ários elementos contraditórios participavam dessa tensão
W eber não teria sido possível sem um certo lazer proveitoso. m útua e constituíam a vida e as opiniões de M ax W eber. Se,
M aterialm ente isso ocorreu graças, a princípio, a sua posição de como ele escreveu, “os homens não são livros abertos”, certa
professor de uma universidade alemã. As carreiras nessas un i mente não devemos esperar um a explicação fácil para a sua exis
versidades davam ao docente tempo para a pesquisa, num pe tência m ultilateral. Para compreendê-lo, temos de entender um a
ríodo em que o jovem professor am ericano se vê sobrecarregado série de meios-paradoxos irracionais.
pelo ensino. A lém disso, não havia pressão para que publicas Embora pessoalmente irreligioso — em suas próprias pala
se rapidam ente um trabalho — como atesta o fato de muitos vras, “religiosamente não-m usical” — gastou, apesar disso, gran
capítulos de W irtsch ajt u n d Gesellsch aft, escritos antes da P ri de parte de sua energia intelectual estabelecendo os efeitos da
m eira G uerra M undial, terem sido publicados depois de 1920. religião sobre a conduta e a vida do homem. T alvez não seja
No período médio de sua vida, W eber recebeu também uma irrelevante, sob esse aspecto, repetir que sua mãe e a fam ília dela
herança suficiente para livrá-lo de qualquer preocupação séria eram profundamente religiosas e que em seus dias de estudante
quanto ao dinheiro. W eber tivera contato íntimo com am igos e parentes que sofriam
A relativa ausência de pressão em favor de um conheci de estados religiosos e psíquicos extraordinários. T ais experiên
mento “prático” e im ediatam ente “ú til”, condicionada por um a cias lhe causaram profunda impressão. Não é preciso dizer que
atmosfera acentuadam ente hum anista, perm itia o estudo de as ele desprezava o cristianism o convencional de “igreja”, mas ainda
suntos distantes das exigências práticas do momento. Nas C iên assim tinha piedade e condescendência por aquêles que, na
cias Sociais isso ocorria ainda mais porque o impacto do m ar tragédia política e no desespero pessoal, sacrificavam seus inte
xismo quase exigia que os professores se ocupassem do capita lectos em busca do refúgio do altar.
lismo como um a estrutura da época, ao invés de se ocuparem Muitos de seus am igos consideravam essa dedicação sincera
de temas lim itados e “práticos”. Sob esse aspecto, a liberdade ao seu trabalho, o path os e dignidade evidentes de sua posição, e
40 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 41

o vigor c a agudez de seu discurso como fenômenos religiosos. A lem anha e fêz discursos importantes para os membros do mo
Não obstante, sua obra dificilmente será compreendida sem a vimento de em ancipação fem inina em princípios do século XX.
apreciação de sua posição de desencanto frente às questões reli
W eber foi um em inente professor, embora sua saúde precá
giosas. Seu amor pela mãe e seu alheamento autêntico em re
lação à “religião” im pediam que caísse na blasfêm ia prometéica ria o tivesse mantido afastado das aulas durante quase duas
de Nietzsche, o maior ateu do século XIX, que ele considerava, décadas. Apesar de professor, sentia-se deslocado na cátedra
em últim a análise, como um “resíduo penoso do filisteu bur acadêmica e realm ente à vontade na plataforma política. Em
guês”. 30 sua insistência sobre a precisão e o equilíbrio, sua prosa está
cheia de cláusulas e restrições, à m aneira mais erudita e difícil.
W eber foi um dos últimos “professores políticos” que fize Não obstante, por vezes se sentia comparável aos demagogos da
ram contribuições de importância para a ciência, e que, como Judéia antiga, arengando perante a m ultidão das ruas.
vanguarda intelectual das classes médias, foram também figu Entre os que tiveram contato com ele, a figura de W eber
ras políticas de destaque. Apesar disso, por amor à “objetivi foi bastante controversa. Em H eidelberg muitos de seus colegas
dade” e liberdade de seus alunos, W eber lutou contra “os o consideravam como um a pessoa difícil, que devido à sua cons
Treitschkes”, que usavam os enclaustrados saguões acadêmicos co ciência exigente e à rigidez de sua honra era considerada como
mo foro de propaganda política. Embora se interessasse apaixona muito inconveniente e um pouco querelante. T alvez fosse con
damente pela política alemã, em teoria ele separava rigorosamente siderado como um hipocondríaco. Aos olhos de muitos amigos
o seu papel de professor e cientista do seu papel de publicista. e discípulos, parecia ser um intelecto autoritário. U m jornalista
E quando seu am igo Brentano, em M unique, lhe pediu para vienense o descreve com os seguintes lugares-com uns:
aceitar um cargo, ele respondeu que, para aceitar qualquer cá
tedra, “teria de perguntar se não seria melhor ter no momento Alto e barbado, esse professor assemelha-se a um d a
alguém em Berlim com m inhas opiniões, como um contrapeso queles pedreiros alemães do periodo da Renascença; sòmente
aos olhos faltam a ingenuidade e a alegria sensual do artista.
contra o oportunismo absoluto que agora predomina a li”. 31 Seu olhar vem do mais íntimo, das passagens ocultas e alcança
as m aiores distâncias. Seu modo de expressão corresponde
D urante toda a sua vida, W eber foi nacionalista e desejou ao exterior do homem: é infinitam ente plástico. E ncontra
que sua nação se qualificasse como um a H erren v ol\, mas ao mos, nêle, um modo quase helénico de ver as coisas. As
mesmo tempo lutou pela liberdade individual e, com im parcia palavras são form adas sim plesm ente e, na sua simplicidade,
lidade analítica, caracterizou as idéias do nacionalismo e racismo nos recordam as rochas ciclópicas.
como ideologias justificantes, usadas pela classe dominante e seus
publicistas mercenários, para as suas imposições aos membros U m discípulo em M unique, que estava pessoalmente distante
m ais fracos da organização política. Teve grande estima pela de W eber, adm irando-o de longe, comparou-o ao cavaleiro de
conduta prática e objetiva dos líderes trabalhistas durante o co D ürer: sem medo ou concessões, num curso reto entre a morte
lapso da A lem anha, mas apesar disso criticou com violência a e o demônio. E K arl Jaspers viu nele um novo tipo de homem
pregação doutrinária que esses homens usavam para domesticar que tinha a coragem de juntar, num a síntese, as tensões tremen
as massas e prepará-las a acreditar num “paraíso” futuro a ser das de seu próprio eu, bem como as contradições da vida pública
criado pela revolução. Orgulhava-se de ser um oficial prussiano exterior sem recorrer a ilusões. Cada dia que W eber “desper
e apesar disso afirm ava, em público, que o Kaiser, seu coman diçava em coisas políticas”, ao invés de “objetivar-se”, parecia
dante-chefe, devia ser motivo de vergonha para todos os alemães. um a lam entável perda a Jaspers.
O ficial prussiano e membro de associações de duelo, não se im
portava, contudo, em hospedar-se num hotel de Bruxelas sobre Apesar do path os de objetividade que o estudioso da obra
o qual flutuava um a bandeira vermelha, Internacional. Modelo de W eber percebe com tanta intensidade, ela não obstante en
de m asculinidade consciente de si da A lem anha Im perial, não cerra trechos alusivos à im agem que ele fazia de si mesmo. Os
obstante apoiou a prim eira m ulher que foi dirigente sindical na m ais óbvios encontram-se na caracterização de certos profetas
hebreus.** Quando o curso da guerra e o colapso da A lem anha
42 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 43

confirm aram o que ele havia previsto durante duas décadas, e ao público. Somente os profetas, artistas e santos poderiam
apenas o povo alemão foi considerado como culpado das desgra desnudar suas alm as em público. Para W eber, a sociedade
ças da guerra, W eber sentiu que os alemães eram um povo moderna não tem deuses, e os profetas, bem como os santos,
de párias. D urante seus estudos sobre o judaísmo antigo, em estão nela singularm ente deslocados. Lembrava apenas a su
1916 e 1917, comoveu-se profundamente pelas analogias que viu gestão de Isaías: “Ele gritou-m e de Seir, V igia, o que é da
entre a situação dos povos hebreus antigos e da A lem anha mo noite? V igia, o que é da noite? E o V igia disse: Vem a
derna. O paralelo não estava apenas na situação pública e his m anhã e também a noite: se quereis perguntar, perguntai;
tórica; na personalidade de muitos profetas e em seus estados voltai, vinde” (X X I, 11-12).
compulsivos irregulares e psíquicos, particularmente em Jere
mias, W eber viu características que lhe pareciam assemelhar-se
às suas. Ao ler trechos do manuscrito para a sua mulher, esta 8
comoveu-se ao compreender im ediatam ente que tal estudo cons
tituía um a análise indireta do autor. Para compreendermos a biografia de W eber como um todo,
T alvez fosse essa a única forma que W eber, incapaz desde devemos exam inar-lhe as tensões e suas repetidas perturbações
a infância de mostrar-se diretamente, podia usar para transm itir psíquicas. V árias linhas de interpretação são possíveis; juntas
a im agem que de si mesmo fazia. Assim, o que para ele era ou separadas, elas podem oferecer um a explicação.
mais pessoal é acessível, e ao mesmo tempo oculto, pela objeti- M ax W eber pode ter sido hereditariamente vítim a de uma
ficação de sua obra. Interpretando os profetas do desastre e do enfermidade constitucional, que sem dúvida percorreu toda a
juízo, W eber esclarecia suas próprias experiências pessoais e sua linha fam iliar. Os elementos para essa interpretação, a
públicas. mais fácil de todas, são fáceis de encontrar. A m ulher de
Essa assimilação de sua im agem num a figura histórica situa- W eber era sua parenta distante, e parentes masculinos delas
-se na am pla tradição de humanismo, historicismo e romantismo term inaram seus dias em hospitais de doentes mentais. A lém
tão característica do século XIX. Intelectuais eminentes e até disso, um primo de W eber também fora internado num desses
estadistas daquele século freqüentemente modelavam suas im a hospitais, ao qual o próprio W eber foi enviado durante a fase
gens pelos costumes das figuras históricas. Assim, Napoleão mais séria de sua doença.
sim ulava A lexandre, o Grande; e os republicanos revolucionários Sc quisermos ver a enfermidade de W eber como puramente
das grandes transformações se viam em termos das “vidas de funcional, podemos então seguir um a de duas séries de in
Plutarco”. N a A lem anha, essa tendência ilusionista continuou
dícios semelhantes podemos tentar localizar suas dificuldades pes
forte durante toda a época do liberalismo. A lguns dos melhores soais nos contextos privados dos que lhe eram caros: mãe, pai,
jovens alemães, entre os quais Francis Lieber, foram ajudar os amores, m ulher; ou podemos exam iná-las principalm ente nos
gregos em sua luta para se libertarem dos turcos. Mas o andra
contextos públicos.
joso negociante de cavalos das montanhas dos Balcãs desfazia
a im agem marm órea do grego antigo. As ilusões históricas Quanto às suas relações pessoais, podemos lem brar que
eram usadas como um telão de fundo para a vida e talvez W eber foi um rapaz calado, observador, e prem aturam ente
para compensar a banalidade do espírito burguês, que circuns inteligente, que se devia sentir preocupado sob a tensão de um a
crevia a rotina diária dos impotentes professores alemães com situação cada vez mais grave entre o pai e a mãe. Seu acen
idéias que tudo abarcavam. tuado senso de cavalheirismo era, em parte, um a reação à ati
Se o W eber da velhice se identificava com Jerem ias na tude patriarcal e dom inadora do pai, que compreendia o amor
tradição hum anista da ilusão, bem sabia que, na verdade, não da esposa como um a disposição de servir e de deixar-se explorar
era um profeta. Quando instado por uma in telligen tsia jovem e controlar por ele. T al situação chegou ao clím ax quando
e reverente a expor seu credo, rejeitou-lhe a solicitação, afirm ando W eber, aos 31 anos dc idade, na presença de sua m ãe e sua
que semelhante confissão pertence ao círculo dos íntimos, e não m ulher, julgou oportuno form ular um julgam ento sobre o pai:
44 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESCORÇO BIOGRÁFICO 45

rom peria todas as relações com êle, sem remorsos, a menos critor, estava pronto a criticar publicamente o m ilitarism o prus
que atendesse à sua exigência de que a m ãe o visitasse “so siano e sua burocracia e oficialidade por apoiarem instituições
zinha”, sem o pai. Observamos que o pai de W eber morreu educacionais como as associações de duelo, destinadas a “im
pouco depois desse encontro, deixando no filho uma indelével pregnar” a juventude da classe superior com a disciplina exi
sensação de culpa. Podemos deduzir, com certeza, uma situa gida pela carreira. U m profundo humanismo individual, a
ção edipiana excepcionalmente acentuada. “liberdade de um cristão”, e suas exageradas exigências éticas
D urante toda a sua vida, W eber manteve correspondência vinham de sua identificação com a mãe.
com a mãe, que a ele se referiu certa vez como “uma filha mais Podemos deixar de lado as relações pessoais e as dificul
velha”. Buscava ansiosamente o conselho de M ax, o primeiro dades que surgiram delas; W eber era também um intelectual
de seus filhos, preferindo-o ao do m arido, nos assuntos rela envolvido nos acontecimentos políticos da época. Ocupou-se
cionados com o comportamento de seu terceiro filho. Devemos voluntariam ente das questões públicas. Com um senso de res
também atentar para o que foi, na verdade, um a fase passa ponsabilidade extraordinário, sentiu-se chamado à política. Não
geira da aspiração do jovem W eber: seu desejo de tornar-se tinha, porém, poder nem posição que fizessem suas palavras
um homem realm ente másculo na universidade. Depois de influir na balança política, fato esse que provocou tensões.
apenas três semestres, conseguiu modificar-se externamente,
passando de um frágil rapaz mimado para um forte estudante W eber não parece ter grande base para a sua intensa iden
da A lem anha Im perial, bebedor de cerveja, marcado pelos due tificação com a A lem anha. Atacou os Ju n k ers e os trabalhado
los, fum ante de charutos, a quem sua mãe recebeu com um res, bem como os filisteus sem espinha dorsal entre as classes
tapa no rosto. Evidentemente, quando assim se comportava médias, que ansiavam por um César que os protegesse contra
estava seguindo a linha paterna. Os dois modelos de identifi o fantasma do trabalhismo socialista e do patriarcalism o das
cação e seus valores associados, com raízes no pai e na mãe, pequenas dinastias. Quando viajava, sua prim eira idéia era
jam ais desapareceram da vida interior de M ax W eber. sair da A lem anha. E com demasiada freqüência, com o res
U m a tensão semelhante, e subseqüente fonte de culpa, ocor sentimento do am ante frustrado, escreve palavras irritadas, fala
reu quando W eber se desligou de um antigo amor, outra pri em voltar as costas para sempre ao que considerava um a nação
ma, a quem tanto sua mãe como sua tia m aterna viam com sem esperanças. O Kaiser, a quem devia fidelidade, por ju ra
bons olhos. Esta situação foi ainda penosa porque a mãe re mento, como oficial prussiano, era um constante objeto de seu
cebeu com satisfação a corte que um am igo íntim o de M ax desprezo público.
fazia a M arianne, sua futura m ulher. Ao desposar M arianne, Só raram ente temos um indício do que alim entava seu
W eber se sentiu oprimido pela culpa proveniente de duas fon amor pela pátria e pelo povo. N a exposição de St. Louis êle
tes: estava quase pronto a renunciar ao seu amor em favor viu a mostra alem ã de artes, artesanatos e produtos industriais
do am igo, e quase pronto a desposar um a moça mentalmente com orgulho, sentindo que a habilidade, im aginação e artesa
perturbada e instável. Sua carta de pedido de casamento, nato artísticos dos alemães não tinham rivais. Quando se apro
dirigid a a M arianne e na qual exam ina tal situação, parece ximou dos trabalhadores socialistas itinerantes em Bruxelas e
tanto um a confissão de culpa quanto um a carta de amor. E lhe disseram que um a boa parte dos alfaiates m ais habilidosos
as cartas posteriores à sua m ulher são em tom de desculpa de Paris e dos sapateiros m ais habilidosos de Londres eram da
por ter sacrificado seu casamento com ela perm itindo que suas Á ustria germ ânica, ele orgulhou-se de pertencer a um a comu
energias se gastassem no “moinho interior” de sua vida inte nidade de trabalhadores desprendidos, para os quais a melhor
lectual. coisa no m undo era a dedicação ao trabalho que executavam.
Os W ebers não tiveram filhos, e ele não perdia oportuni Essa atitude nos permite compreender como seu próprio
dade de afirm ar sua virilidade em público, desafiando outros anseio ascético de trabalho estava associado à sua convicção, de
para duelos, de um a forma que ressaltava sua dignidade espe que os traços m ais destacados do povo alemão eram as qu ali
cial de oficial prussiano. Ao mesmo tempo, porém, como es
dades plebéias do homem comum e do trabalhador, aos quais
46 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

faltavam as graças sociais do cortesão latino, bem como a dis


ciplina religiosamente motivada, e o convencionalismo do cava
lheiro anglo-saxão. Sua dedicação ao trabalho era um a com
preensão de seu dever para com a com unidade dos alemães.
Em fins de novembro de 1918, ele escreveu: “V im os todas as
fraquezas, mas, se desejarmos, podemos ver também a fabulosa II. Preocupações Políticas
capacidade de trabalho, o que há de soberbo e objetivo, a ca
pacidade — não a realização — de em belezar a vida diária, em
contraste com a beleza do êxtase ou dos gestos de outras
nações”.
Da mesma m aneira como suas relações com o pai foram S o b m u i t o s a s p e c t o s , a vida e o pensamento de M ax W eber
um a fonte de culpa, assim também W eber desenvolveu um são expressões de fatos e acontecimentos políticos. Suas posições
forte sentimento de culpa por viver sob o K aiser: políticas, que devem ser compreendidas em têrmos dos contextos
privados, bem como dos acontecimentos públicos, constituem
A m e d id a do d e s p re z o d e m o n s tra d o à n o ssa n a ç ã o n o e x t e um tema inseparavelm ente ligado a W eber como homem e inte
r io r ( I t á lia , A m é r ic a , e m to d a p a r t e !) e, n o f i n a l d a s co n lectual, pois ele foi um homem político e um intelectual político.
ta s , tã o m e r e c id o ! — e isso é d e c is iv o — p o r q u e to le r a m o s
o r e g im e d e s s e h o m e m to r n o u -s e p a r a n ó s u m f a t o r d e Vimos como, ainda bastante jovem, W eber pensava que Cícero
p r im o r d ia l im p o r tâ n c ia p o lít ic a m u n d ia l. Q u e m lê a im agira com ingenuidade frente à ameaça de um a conspiração
p r e n s a e s t r a n g e ir a d u r a n t e a lg u n s m e s e s o b s e r v a r á isso . Es política. Julgar a política e a retórica em termos das conse
ta m o s is o la d o s p o r q u e e s te h o m e m n o s g o v e r n a d ê s s e m odo
qüências e m edir os motivos dos homens em termos dos resul
e p o r q u e toleram os e ocultam os isso. N e n h u m h o m e m ou
p a r tid o q u e c u lt iv a , d e a lg u m a fo r m a , os id e a is d e m o c r á ti tados intencionais ou não de seus atos foi um princípio cons
co s e, ao m esm o tem p o , n a c io n a is , d e v e a s s u m ir a r e s p o n tante de seu pensamento político. Nesse sentido fundam ental, o
s a b ilid a d e p o r e s s e r e g im e , c u ja c o n tin u a ç ã o p õ e em ris c o W eber erudito sempre escreveu do ponto de vista do político
n o ssa p o s iç ã o m u n d ia l, m a is do q u e q u a is q u e r tip o s d e p r o
ativo.
b le m a s c o lo n ia is . 33
Sua prim eira posição política foi, como seu pai, a do libera
Sem dúvida a vida de W eber ilustra a forma pela qual a lismo nacional. Sob líderes eminentes, esse partido se aproxim ara
relação de um homem com a autoridade política pode ser mo de Bism arck na década de 1880. Eram, nesse aspecto, liberais
delada sobre a sua relação com a disciplina fam iliar. Temos moderados: não desejavam “nem seguir nem combater, mas
de acrescentar apenas, com Rousseau, que na fam ília o amor influenciar B irm arck”. E perm itiram -lhe combater a K u l-
do pai pelos filhos compensa-o pelo cuidado que lhes dedica, t u r\am p f contra os católicos e reprim ir o trabalhism o socialista.
enquanto no Estado o prazer de m andar compensa o amor que Com a adoção dessas políticas, e com as várias divisões entre os
o chefe político não tem pelo seu povo.34 liberais e esquerdistas, Bism arck pôde jogar esses grupos uns
contra os outros.
Aos 20 anos, W eber se identificara com a causa do libera
lismo nacional, mas teve a prudência de não comprometer-se
definitivam ente com nenhum partido específico. Interessava-se
pelo processo político como um todo e era um estudioso dos
possíveis motivos dos líderes rivais. M as não era um “jovem
entusiasta”. Foi característico desse alheamento o fato de que,
quando os liberais nacionais ajudaram Bism arck a prolongar a
“lei de em ergência” contra os socialistas, W eber tenha observado:
48 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 49

S e d e s e ja r m o s ju s t i f ic a r e s s a le i, te r e m o s d e t o m a r o p o n to das grandes empresas — e no sentido de um “liberalism o social”


d e v is t a , t a lv e z n ão to t a lm e n t e in e x a t o , d e q u e s e m e s s a l e i
d e e m e r g ê n c ia u m a c o n s id e r á v e l r e s t r iç ã o d e m u it a s r e a l iz a
mais progressista surgem em 1887, quando tinha 23 anos. A essa
çõ es d a v id a p ú b lic a s e r ia in e v it á v e l, ou s e ja , a lib e r d a d e época ele parecia pensar que o Estado tinha um a obrigação para
d e p a la v r a , d e r e u n iã o e d e a s s o c ia ç ã o . A f in a l d e c o n ta s , os com a cam ada social m ais fraca, o proletariado metropolitano,
s o c ia is - d e m o c r a ta s , p e la s u a a g it a ç ã o , ia m r e a lm e n t e c o m p ro que durante o desenvolvimento de Berlim vivera nas condições
m e t e r a s in s titu iç õ e s fu n d a m e n t a is d a v id a p ú b lic a . . . M as miseráveis típicas do início do capitalismo. Esse sentimento de
q u a n d o p en so t r a n q ü ila m e n t e n o a s s u n to , p a r e c e - m e p o r v e z e s
q u e os d ir e it o s ig u a is p a r a to d o s s e r ia m p r e f e r ív e is a q u a l
responsabilidade social era, afinal de contas, um paternalismo.
q u e r o u t r a c o is a , e, n e s s e c aso , o q u e s e d e v e f a z e r é a m o r Por isso W eber votou pelos conservadores, embora não tivesse
d a ç a r a to d o s, ao in v é s d e p r e n d e r a lg u n s . O e r r o b á s ic o , ingressado no Partido Conservador.
a f in a l, p a r e c e t e r s id o o p r e s e n te d o c e s a r is m o d e B is m a r c k ,
o u s e ja , o s u f r á g io u n iv e r s u l q u e fo i u m s im p le s a s s a s s in a to
Seus estudos detalhados da economia Ju n h er, empreendidos
d o s d ir e it o s ig u a is p a r a to d o s, no v e r d a d e ir o s e n tid o d a p a em princípios da década de 1890 por estímulo de uma sociedade
la v r a . i reformista, e que incluía os “socialistas de cátedra”, foram as
suas prim eiras publicações econômicas. Firm aram sua reputação
O juízo que W eber fazia de Bism arck, como mostra esse como perito em problemas agrários. Procurava ele descobrir as
trecho, não sofreria modificação. Ele reconhecia e adm irava o razões sociais e econômicas para o deslocamento da população
seu gênio político no esforço incessante de um a política de uni alem ã no leste, pelos colonizadores russo-poloneses. Demonstrou
ficação da A lem anha e de conseguir para o recém-criado Estado que os interesses agrários e imobiliários do capitalismo Ju n \ e r
a posição de grande potência. Mas W eber estava longe de aceitar eram responsáveis pelo despovoamento do Leste alemão, área
Bism arck sem críticas: não o heroicizava e, na verdade, tinha outrora densamente povoada pelos camponeses, e com m uitas pro
apenas desprezo pelo culto, essencialmente apolítico, de Bism arck priedades. Decompondo as estatísticas do censo oficial em pe
como herói, que se difundia pelas classes, médias da A lem anha. quenas unidades, W eber mostrou que forças irresistíveis de des
A crítica básica de W eber a Bism arck era a sua intolerância povoamento se faziam sentir sempre que surgiam as grandes
para com líderes políticos independentes, o fato de se ter cercado propriedades vinculadas. Ao mesmo tempo, os capitalistas agrá
de burocratas dóceis e obedientes. “A horrível destruição das rios im portavam trabalhadores temporários da Polônia, que, em
convicções independentes que Bism arck provocou entre nós é, virtude de seus baixos padrões de vida e da facilidade com que
decerto, a principal razão, ou pelo menos um a das principais se deixavam explorar, acabaram afastando a população cam
razões, do que há de errado em nossa condição. M as não te ponesa alemã.
remos a mesma culpa que ele?” 2 A compreensão desse processo colocou W eber em oposição
A consecução e preservação da liberdade intelectual parece política à classe dominante da Prússia e com isso em oposição
ter sido um dos m ais altos valores conscientes de W eber. R e a classe que, em virtude de um a disposição constitucional de
jeitou, sem reservas, a K u lt u r\am p { de Bism arck, tal como re fachada da Prússia, dom inava o resto da A lem anha. Sua oposi
jeitara a política lingüística prussiana para germ anizar os polo ção a esse.s senhores de terra baseava-se na convicção de que seus
neses e irritar os alsacianos. N ão obstante, cham ava os pro interesses contrariavam os interesses nacionais. “Desejamos pren
gressistas de “estéreis”, em suas previsões orçam entárias do tipo der os pequenos camponeses ao solo da pátria não pelas cadeias
“cara ou coroa”. “Estremeço ao pensar que essas pessoas seriam legais, mas pelas psicológicas. Digo-o abertam ente: desejamos
cham adas para o lugar de Bism arck.” Depois que o Kaiser explorar-lhes a fome de terras para atá-los à sua pátria. E se
G uilherm e II subiu ao trono e mostrou sua inclinação para o tivéssemos de fincar um a geração de homens no solo, para g a
controle pessoal do poder, W eber passou a ver o futuro com rantir o futuro da A lem anha, assumiríamos tal responsabili
um a preocupação profunda. “Essas demonstrações boulangistas, dade.” 4
bonapartistas, são indesejáveis, para não dizer m ais.” 3 Em princípios da década de 1890 W eber argum entou contra
Os primeiros indícios do afastamento de W eber em relação o m aterialism o histórico alegando a complexidade inexaurível
ao liberalism o nacional — que se tornava, cada vez mais, filho do pluralism o causal. Sentia, por exemplo, por várias razões
4
50 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 51

históricas, que os salários dos trabalhadores agrícolas não seguiam em sua liderança do Estado. Ambas são ameaçadoras para a
qualquer lei econômica, muito menos um a “lei férrea”. Em sua Alem anha nessa situação e, na verdade, proporcionam as
chaves do atual perigo. •
conferência de 1894, em Friburgo, sustentou que as diferenças
nacionais e étnicas, na luta competitiva pela existência, eram
causalmente m ais importantes do que as situações econômica e Que “situação perigosa” era essa? A política externa alem ã
de classe. M ais tarde, suas relações políticas e intelectuais com estava sendo reorientada: o tratado de Bismarck com a Rússia
o conhecimento marxista seriam m uito diferentes e mais com não foi renovado, a oportunidade de uma aliança com a Grã-
plexas. -Bretanha não foi aproveitada, e uma política de improvisações
O estado de espírito político de W eber, aos 30 anos, é re resultou disso tudo. Foi disfarçada pelas fanfarronadas, pelos
velado pelo trecho seguinte de sua aula inaugural em Friburgo: “blefes” do Kaiser, e levou ao isolamento político da Alem anha.
As camadas principais do país não o orientavam para o Leste
No geral, os frutos de todas as tentativas econômicas, sociais ou para o Oeste. As políticas alemãs ficaram , assim, sendo oca
e políticas do presente beneficiarão não as gerações vivas, sionalmente dirigidas contra todos, e um a série de derrotas se
mas as futuras. Se nosso trabalho tem sentido, ele só pode
tentar prover ao futuro, isto é, aos nossos sucessores. Mas disfarçava nas jactâncias.
nenhum a política econômica é possível à base de esperanças Argum entou-se, coerentemente, que essa situação fatal re
otimistas de felicidade. Lasciate ogni esperanza está escrito
sultava de um meio-termo entre o industrialism o ocidental e o
sobre a porta do futuro desconhecido da história h u m a n a.;
Não é um sonho de paz e felicidade hum anas. A questão agrarianism o ]u n k er. Os liberais nacionais, decerto, eram os im
não é como os homens do futuro se sentirão, mas quem serãò • perialistas, os pangermanistas, os anglófobos; seu orgulho estava
eles. É esse o problem a que nos preocupa quando pensamos magoado e desejavam “mostrar aos ingleses” que os alemães tam
além dos túm ulos de nossa própria geração. E, na verdade, bém podiam construir navios. Aceleraram o program a naval,
essa questão está na raiz de toda atividade econômica e polí
tica. Não lutamos para o bem -estar futuro do homem; estamos que T irpitz finalm ente organizou num a das melhores campanhas
ansiosos para incutir nele os traços que associamos ao senti de propaganda da história m oderna.7 Conseguiram a coopera
mento de que constituem o que é hum anam ente grande e ção dos ]u n h ers para essa política concedendo-lhes tarifas prote
nobre em nossa n atu re za. . . Em últim a análise, os processos cionistas em 1902, contra a importação de cereais dos Estados
de desenvolvimento econômico são lutas pelo poder. Nossa
medida final de valor são as “razões de Estado”, que cons Unidos e da Rússia. Os ]u n \e rs não se im portavam m uito com
tituem tam bém a m edida de nossas reflexões econôm icas... 5 a graesslich e Flotte e, sendo pouco dados ao m ar, não se preo
cupavam muito com um império de além -m ar, com seu comér
Assim, em meados da década de 1890, W eber era um im cio e colônias. Continuavam provincianos, sentiam-se politica
perialista, defendendo o interesse de poder do Estado nacional mente próximos do tzarism o russo e desconfiavam dos interesses
como o valor final e usando o vocabulário do darwinism o social. da indústria ocidental de construção naval, disfarçados em T arefa
A dvertiu que o poder econômico e o chamado à liderança nacio Nacional.
nal nem sempre coincidem. Considerou-se um “nacionalista eco T anto os Ju n \e rs como os industriais, porém, tem iam as
nômico”, medindo as várias classes com o estalão dos interesses organizações de massa dos sociais-democratas em ascensão, o
políticos do Estado. A conquista de colônias, os discursos beli- clamor pela democracia e os ataques ao sistema prussiano de
cistas do Kaiser e a grandiosidade im perial — para isso, W eber sufrágio de classes. O acordo entre os respectivos interesses de
tinha apenas o desprezo do perito que sabe que constituíam um classe dos liberais nacionais industriais e os conservadores agrá
absurdo sem esperança. rios Ju n {e rs voltou-se, assim, contra o Partido T rabalhista demo
crata e socialista. E seu acordo levou-os a rejeitar qualquer
É perigoso e, a longo prazo, inconciliável com o interesse do política externa que envolvesse alianças com potências navais ou
país, que um a classe em decadência econômica m antenha em
suas mãos o poder político. É ainda m ais perigoso se as
militares.
classes que estão perdendo o poder econômico, e com isso Os compromissos políticos e econômicos do Leste e Oeste
o direito à autoridade política, foram politicam ente im aturas levou à fusão social dos Ju n \e rs com a nova cam ada industrial.
52 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 53

Um dos sintomas dessas modificações foi o fato de Bertha Krupp, ram despertados pela prim eira revolução russa daquele ano.
a única herdeira de Alfred Krupp, ter desposado o nobre von Como se dera ao trabalho de aprender o russo, pôde acompanhar
Bohlen, um diplom ata im perial de carreira, tendo o Kaiser com os acontecimentos em vários diários russos. Tam bém manteve
parecido ao casamento. A Coroa também perdeu prestígio com conversas freqüentes com o cientista político russo T . K istiakovski
as denúncias escandalosas da polícia política no julgam ento de — um dos líderes intelectuais do liberalismo burguês esquerdista
Tausch, tendo a atmosfera moralmente desagradável da Corte na Rússia — que trabalhava para a revolução. O resultado
sido denunciada por M axim ilian H arden, em sua cruzada contra desses estudos foram dois ensaias exemplares de Sociologia Po
o Príncipe E ulenburg, bem como um a série de humilhações do lítica, que W eber publicou como números especiais do A rch iv .
Kaiser no setor internacional, as marcas m ais acentuadas da gu er Com um a análise sociológica das classes e partidos na Rússia,
ra e a corrida arm am entista e naval geral. Foram esses alguns W eber — entre outras reflexões — indicou que se o tzar caísse,
dos acontecimentos e tendências que fizeram M ax W eber sentir depois de um a guerra européia, e a extrema esquerda tomasse
como se estivesse viajando “num trem expresso que se aproxim a o poder noutra revolução, poderia resultar um a burocratização
de um abismo, sem ter certeza de que o próximo desvio foi inédita de toda a estrutura social da Rússia.
manobrado com acerto”. A produção intelectual de W eber recomeçou novamente
W eber foi am igo de um pastor “radical”, N aum ann, que pouco depois de sua volta da América, em 1904. Foi um a época
flertava com as idéias socialistas e que, sob sua influência, se de crise política para a Alem anha, provocada em parte pelos
tornou nacionalista. Em 1894 o pastor N aum ann fundou um a discursos do Kaiser e suas excursões à Á frica. Em 1906 a en-
“pequena revista” na qual W eber colaborou.8 D urante alguns anos, tente cordiale estava tomando forma e o isolamento diplomático
W eber esteve em contato com as tentativas desses pastores, pro e declínio da A lem anha em relação ao seu clím ax bismarckiano
fessores, servidores públicos e uns poucos trabalhadores — um eram evidentes. O símbolo da nação, o Kaiser, se havia tornado
círculo tipicamente pequeno-burguês — de organizar um pequeno alvo do ridículo internacional. W eber via a origem dessas difi
partido. Desejavam criar a unidade nacional difundindo um culdades num a estrutura política que im pedia a seleção eficiente
senso de responsabilidade social entre as classes burguesas e trei de líderes políticos responsáveis. Ressentia-se do fato de que o
nando o trabalhism o socialista para o nacionalism o.9 A m ãe de constitucionalismo de fachada da A lem anha tornasse pouco atra
M ax W eber e a Sr.a Baum garten apoiavam a cam panha de entes as carreiras políticas para homens de talento e eficiência,
N aum ann para a conquista de um a cadeira no Reichstag. E m que preferiam dedicar-se ao comércio ou à ciência.
bora não perde-sse o contato cordial, W eber rom pia, im paciente Partindo de opiniões como estas, W eber evoluiu lentam ente
mente, sem dernora, a sua ligação ativa com tal grupo. para um a posição “democrática”, embora de natureza excepcio
Em 1897, W eber realizou uma cam panha oratória no Sarre, nal e complexa. Não acreditava na democracia como um corpo
no distrito do Barão von Stum m , o m agnata do carvão, que de idéias intrinsecam ente valioso: “direito natural”, “igualdade
pressionava em favor da legislação que punisse os líderes sindi dos homens”, sua pretensão intrínseca aos “direitos iguais”. Con
cais no caso de greves. Embora falasse em favor do capitalismo siderava as instituições e idéias democráticas pragm aticam ente:
industrial, que considerava indispensável ao poderio nacional, não em termos de seu “valor intrínseco”, m as de suas conseqüên
também acreditava fortemente na “liberdade individual”. H avia cias para a seleção de líderes políticos eficientes. E parecia-lhe
sido membro da L ig a Pangerm ânica, mas rompeu com ela em que na sociedade moderna esses líderes devem ser capazes de
1899 “a fim de conquistar m inha liberdade”, e porque “m inha construir e controlar um a m áquina grande e bem disciplinada,
voz não conta em sua política”. 10 no sentido americano. A escolha se fazia entre um a democracia
Em 1903, depois do pior de seus colapsos psíquicos, afastou- sem líder ou um a democracia governada pelos líderes das buro
cracias dos grandes partidos.
-se do rom antism o conservador, atrás do qual se ocultavam os
interesses políticos e de classe da dinastia e dos ]un f{ers, e o Para W eber, o direito de voto universal, a luta pelos votos
atacou. Isso aconteceu pouco antes de partir para a Am érica. e a liberdade de organização não tinham valor, a menos que
Ao regressar à A lem anha, em 1905, seus interesses políticos fo resultassem em líderes políticos poderosos, dispostos a assumir
54 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 55

a responsabilidade, ao invés de fugir dela e ocultar seus atos tica não é um comércio moral, nem jam ais o poderá ser”. 12
atrás de grupos cortesãos e burocratas im periais que dispusessem Apesar dessa apreciação da sinceridade ética de pacifistas como
do favor do Kaiser. Tolstói, devemos lem brar o próprio desejo de W eber, de par
Para o exame crítico de W eber, nenhum a cam ada alem ã ticipar pessoalmente da guerra.
isolada parecia capaz de realizar a tarefa em questão. Assim, D urante a guerra, ele foi contra a anexação da Bélgica, mas
levantou um a voz crítica, primeiro contra o chefe da nação, o isto não significa que não tivesse aspirações im perialistas. Era
Kaiser, a quem ridicularizou como um diletante que se cobria a favor de “bases m ilitares” tão distantes quanto V arsóvia, e
com o direito divino dos reis. A estrutura da vida partidaria mesmo ao norte dessa cidade. E desejava que o exército alemão
alem ã parecia impotente como um freio sobre o poder incontro- ocupasse L iége e N am ur por vinte anos.
lado de um a m áquina burocrática politicam ente dócil, mas tec
Em outubro de 1915 ele escreveu: “T oda vitória nos coloca
nicamente perfeita. Acoimou as frases radicais dos sociais-demo-
mais longe da paz. Essa é a singularidade da situação”. Perdeu
cratas como manifestações histéricas de impotentes jornalistas
o controle quando a Á ustria perm itiu que a Itália se separasse
partidários, treinando as massas para um passo de ganso intelec
dela. “Todo o estadismo dos últimos 25 anos está desabando, e
tual, e tornando-as mais passíveis das m anipulações pela buro
pouco serve de consolo ter dito sempre isso. A guerra pode,
cracia. Ao mesmo tempo, o conforto utópico encerrado na ten
agora, durar para sempre.” Escreveu um memorando dirigido
dência autom ática do marxismo revisionista para o paraíso pa
ao Governo e aos membros do Parlam ento alemão, que não
recia substituir a indignação justa por um a complacência inócua.
enviou. N ele encontramos afirmações como: “É contra os inte
E ele julgava que a recusa dos sociais-democratas em qualquer
resses alemães impor um a paz da qual o principal resultado
compromisso com os partidos burgueses, para assum ir as respon
seria colocar o salto da bota alem ã na Europa sobre os pés de
sabilidades do Gabinete, era um dos fatores que im pediam a
todos”. 13 Percebeu que a simples prolongação da guerra pro
adoção de um Governo constitucional. A nálises políticas feitas
porcionaria a suprem acia m undial na indústria à A m érica. A lar
m ais tarde por W eber nasceram dessa busca desesperada de um a
mou-se com o im perialism o, que predom inava entre a indústria
cam ada que estivesse à altura das tarefas políticas de lideran
pesada e as casas principescas. Escreveu, desesperadamente:
ça num a era de rivalidade im perialista.
“Aprenderei polonês e em seguida procurarei estabelecer con
No outono de 1911, um a autoridade universitária alemã, de tato com os poloneses”. Solicitou ao Subsecretário de Estado
espírito m ilitarista, fez um discurso no qual criticava os elementos
acesso aos arquivos oficiais sobre a Polônia e a autorização para
pacifistas como “tolos” e falava do “sentim entalismo da paz”.
entrar em contato com industriais poloneses. Embora usasse
U m general, presente ao festival da cerveja que se seguiu ao
um membro do partido do centro católico como testa-de-ferro,
discurso, julgou oportuno classificar os pacifistas como “homens
sua solicitação foi evidentem ente indeferida. Em março de 1916,
que vestem calças, mas nada têm dentro delas, e desejam fazer
W eber manifestou aversão “pela totalidade da atmosfera de Ber
do povo eunucos políticos”. 11 Quando vários professores de
lim , na .’ uai as pessoas de talento são incapacitadas pela estu
F riburgo defenderam tais discursos contra os ataques da im
pidez ressentida que predom ina nos gabinetes do R eich”. 14
prensa, W eber escreveu um memorando contra o que lhe pare
cia “assunto de cidade pequena”. A dvertiu que se a A lem anha W eber acreditava que a Prim eira G uerra M undial era re
tivesse de ir à guerra “seu diletante coroado” (o K aiser) inter sultado de um a constelação de rivalidades econômicas e políticas
feriria na liderança do exército e arruin aria tudo. É interessante das nações. N a m edida em que elementos de “culpa” pudessem
que W eber, nacionalista convicto, considerando a força como o fazer parte do quadro, ele considerava a A lem anha culpada de
últim o argum ento de qualquer política, escrevesse o parágrafo um a adm inistração rom ântica e ineficiente de seus negócios.
seguinte: “C aracterizar um a crítica de ideais políticos definidos, Classificava as aspirações do grupo belicista como idiotas e
por m ais altaneiros que sejam, como um solapamento das forças desde o início, sentiu que tal partido só poderia levar ao desastre.
morais, deve provocar pro.testos justificados. Em ‘ética’ os paci Irritou-se particularm ente com a política naval de T irp itz, o
fistas são indubitavelm ente ‘melhores’. . . . A elaboração da polí afundamento do Lu sitân ia, e o recurso à arm a do submarino.
PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 57
56 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

Previu a entrada da A m érica na guerra e cm fevereiro de 1916 reconstrução da A lem anha. Foi aparteado pelos intelectuais re
descreveu os seguintes resultados que tal fato provocaria: volucionários, entre os quais o bolchevista russo Levien, bem
como pelos veteranos que se encontravam entre o público. Pou
Prim eiro, que metade de nossa m arinha m ercante — um quar co depois, um Governo revolucionário de conselhos de trabalha
to em portos americanos e um quarto em portos italianos (!), dores e soldados era constituído.
será confiscada e usada contra nós; assim, o núm ero de navios
britânicos será aum entado — aspecto esse que os animais M ax W eber foi contra os professores que, no momento do
[da m arinha alemã] não levam em conta. Segundo, teremos colapso, colocaram a culpa na frente interna alemã, considerando
500.000 esportistas americanos como voluntários, brilhante o colapso como “um a punhalada pelas costas”. Não obstante,
m ente equipados, contra nossos soldados cansados, coisa em
que esses animais não acreditam. Terceiro, 40 bilhões em foi também contra “a revolução”, a que chamou de “esse carnaval
dinheiro serão postos à disposição de nossos inimigos. Quarto, sangrento” e que lhe parecia capaz apenas de conseguir piores
mais três anos de guerra; portanto, a ruína certa. Quinto, condições de paz do que, em outra situação, teria sido possível
Romênia, Grécia etc. contra nós. E tudo isso para que H err obter. Ao mesmo tempo, compreendia que a revolução não po
von Tirpitz possa m ostrar o que ele sabe fazer! Jam ais se dia levar a instituições socialistas duradouras.
planejou alguma coisa mais estúpida,
Sua m ulher declarou que a sim patia de W eber pela luta do
proletariado em favor de um a existência hum ana e dign a vinha
Em outubro de 1916, W eber falou num a reunião política de
sendo, há décadas, tão grande que ele freqüentemente exam inava
liberais progressistas, sobre a A lem anha entre as grandes potên
cias da Europa. Nesse discurso, avaliou a política com o estalão a possibilidade de ingressar em suas fileiras como membro do
do resultado internacional: a posição geográfica da Alem anha partido — chegando sempre, porém, à conclusão negativa. Seu
em meio de vizinhos poderosos devia favorecer um a política de raciocínio, segundo ainda sua m ulher, “era de que só poderia
alianças sóbrias e não um a política de jactância vaidosa e de ser um socialista honesto, tal como um cristão, se estivesse pronto
conquista. N a opinião de W eber a Rússia era a “principal am ea a participar do modo de vida dos pobres, e, de qualquer modo.
ça”. Assim, desejava um entendimento com a Inglaterra. Os só se estivesse pronto a abrir mão de um a existência culta ba
acontecimentos na Europa oriental colocaram em destaque deci seada no trabalho deles. Devido à sua enferm idade, isso era
sões m undialm ente históricas, comparadas com as quais as mo impossível para W eber. Sua erudição dependia, simplesmente,
dificações na Europa ocidental pareciam pouco importantes. A de um a renda do capital. Além disso, ele continuava sendo, pes
causa final da guerra era o desenvolvimento tardio da A lem a soalmente, “individualista”. ”
nha como potência industrial. “E por que nos temos de trans Acompanhou a delegação alem ã de paz a Versalhes, como
formar em nação organizada como potência estatal?”, indagava. perito. Sugeriu que “os chamados criminosos de gu erra”, Lu-
dendorff, T irp itz, Capelle, Bethman, oferecessem voluntariam ente
Não por vaidade, mas por am or de nossa responsabilidade a cabeça ao inim igo ; era de parecer que somente então o quadro
perante a história mundial. Os dinamarqueses, suíços, no
ruegueses e holandeses não serão considerados responsáveis de oficiais da A lem anha poderia ascender novamente à glória.
pelas gerações futuras, e especialmente não pelos nossos des Escreveu um a carta a Ludendorff nesse sentido, mas recebeu
cendentes, por perm itirem , sem luta, que o poderio m undial um a recusa seca. W eber conseguiu, então, um encontro pessoal
fosse dividido entre os decretos de autoridades russas, de um com Ludendorff, com quem discutiu durante várias horas. Ex
lado, e as convenções da “sociedade” anglo-saxã, do outro —
talvez com um a pitada de raison latina. A divisão do poderio probrou-lhe os erros políticos cometidos pelo estado-maior e foi,
m undial significa, em últim a análise, o controle da natureza por sua vez, censurado pelos pecados da revolução e do nôvo
da cultura futura. As gerações futuras nos considerarão res regim e. W eber pediu a Ludendorff que oferecesse sua cabeça
ponsáveis quanto a esses assuntos, e com razão, pois somos ao inim igo.
uma nação de 70 e não de 7 milhões,
L u d e n d o rff: Como pode esperar que eu faça algo sem elhante?
A 3 de novembro de 1918, os m arinheiros de K iel se amo W eb er: A honra da nação só pode ser salva se V. entregar-se.
tinaram . No dia seguinte, W eber falou em M unique sobre a L u d e n d o r f f : A nação pode atirar-se ao lago. Que ingratidão!
58 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 59

W eb er: Não obstante, V. deve prestar esse últim o serviço. Tendo absorvido a crítica marxista da “democracia burguesa”
L u d en d o rff: Espero poder prestar serviços m ais im portantes à nação. W eber afastou-se do conservantismo, pangermanismo e monar-
W e b e r : Nesse caso, sua observação não foi íe ita a sério. Quanto ao quismo. Não o fez por ter aprendido a acreditar no valor in
resto, não se trata apenas do povo alemão, mas de restabelecer a trínseco do Governo constitucional democrático como um “Go-
honra do quadro de oficiais e do exército.
vêrno do povo, para o povo e pelo povo”, mas porque acreditava
L u d e n d o r f f : P or que não procura H indenburg? A final de contas,
ele era o Marechal-de-Campo.
ser a democracia constitucional a única solução para os problemas
da A lem anha, internos e externos. Em abril de 1917, escreveu:
W e b e r : H indenburg tem 70 anos de idade e, além disso, até as crian
ças sabem que V. era, na época, a Número Um da Alemanha. Eu não dispararia um único tiro e não com praria um bônus
L u d e n d o r f f : Graças a Deus. de guerra se essa lu ta não fosse um a guerra nacional; se ela
se relacionasse com a forma do Estado e fosse, possivelmente,
uma guerra para conservar essa m onarquia incapaz e essa
A conversa deslizou dentro em pouco para a política, L u burocracia apolítica. Não me importo com a forma do Estado,
dendorff censurando W eber e o Fran k fu rter Z eitu n g pela “de se apenas os políticos governassem o país, e não idiotas vai
mocracia”. dosos como G uilherm e II e outros sem elhantes. . . Para
mim, as constituições são técnicas, tal como quaisquer outras
W : V . a c r e d it a q u e ju lg o s e r u m a d e m o c r a c ia e s s a s itu a ç ã o
e be r
máquinas. Eu estaria igualmente pronto a en trar em greve
p o rc a q u e te m o s no m o m e n to ?
contra o parlam ento e a favor do monarca, se este fòsse um
político ou houvesse nele qualquer promessa de vir a ser um
L u d e n d o r f f : Se essa é a sua opinião, talvez possamos chegar a um político, is
entendim ento.
W eb er: Mas a anterior condição porca não era também uma m onar
quia. W eber movimentou-se em favor da democracia constitucio
L udendorff : O q u e e n t e n d e , p o r d e m o c r a c ia ? nal por esperar que o Reichstag se tornasse um fator de equi
W eb er: Numa dem ocracia o povo escolhe um líd er no qual confia. líbrio contra o peso esmagador da burocracia prussiana — e
O escolhido diz, então: “Agora, calem-se e obedeçam -m e”. Povo portanto alem ã — e de sua m entalidade. U m a competição par
e partido deixam então de ter liberdade de in terferir em sua lam entar de partidos deveria levar ao poder os líderes políticos
atuação. de perspectiva e vontade apaixonada. Eles deveriam possuir o
L u d e n d o r f f : Eu poderia gostar dessa democracia. conhecimento técnico necessário para sujeitar a burocracia à sua
W e b e r : Mais tarde, o povo pode f a z e r o julgam ento. Se o líder vontade. D everiam orientar a burocracia, que para W eber só
tiv er cometido erros — à forca com ele! tinha sentido como instrumento técnico e jam ais como um agente
elaborador de política e politicamente resiponsável. N a melhor
W eber decepcionou-se profundamente com a estatura hum ana das hipóteses, W eber esperava a ascensão de líderes carismáticos,
de Ludendorff. “T alvez seja melhor para a A lem anha que ele embora percebesse que a tendência no sentido de instituições
não se entregue”, escreveu. “A impressão pessoal que deixa cada vez mais densas e indestrutíveis na sociedade moderna
seria desfavorável. O inim igo voltaria a ju lgar que valeram a lim itava a oportunidade de que esse “elemento exclusivamente
pena os sacrifícios de um a guerra que afastou esse tipo do co pessoal” fosse decisivo na estrutura social.
mando. Compreendo agora por que o m undo se defende contra É, naturalm ente, ocioso especular se W eber, com essa ati
as tentativas de homens como ele de impor o tacão de sua bota tude m aquiavélica, poderia ter sido um nazista. N a verdade,
aos outros. Se ele voltasse a interferir na política, teríamos de sua filosofia do carism a — seu ceticismo e sua visão pragm ática
combatê-lo sem remorsos.” 17 do sentimento democrático — lhe poderia ter criado tais afini
dades. M as seu hum anism o, seu amor aos desprivilegiados, seu
ódio às fachadas e m entiras e sua incessante cam panha contra o
Assim, M ax W eber via a vida partidária da A lem anha com
racismo e a dem agogia anti-sem ita teriam feito dele pelo menos
desdém. Parecia-lhe m esquinha e sufocante, na atmosfera de
um “crítico” do regim e hitlerista tão arguto quanto, ou talvez
lutas dc grupos. Sob esse aspecto, sua atitude era idêntica a
mais, seu irm ão Alfred.
de Cari Jentsch.16
60 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA PREOCUPAÇÕES POLÍTICAS 61

W eber estava longe de seguir Troeltsch, que julgou necessá das pesquisas comparadas uma série de normas que lhe servis
rio falar das “disposições mais básicas e tendências volitivas” sem na sua busca de orientação no mundo contemporâneo. Esse
subjacentes, em últim a análise, às instituições sociais e estruturas conhecimento e poder, de algum a forma — isto é, o impulso
ideológicas da H istória: “Não temos palavras para isso e, nesse atrás dessa busca de conhecimento por um homem impotente.
caso, falamos de raças, de forças plásticas e históricas, ou de E e a luz dessa preocupação política que podemos compreender
impulsos primevos”. 20 W eber estava longe dessa busca de um a a orientação intelectual de Weber.
âncora metafísica na “natureza cega”. Podemos resumir as dis
persas e freqüentes rejeições dos argumentos raciais por W eber
com as palavras de John Stuart M ill: “De todos os modos vul
gares de fugir da consideração do efeito das influências sociais
e morais sobre a mente hum ana, o m ais vulgar é atribuir as
diversidades de conduta e caráter a diferenças naturais ineren
tes”. 21
Poderíamos dizer que W eber era constitucionalmente incapaz
de fazer “o sacrifício intelectual” que acreditava ser exigido por
toda “fé”. O pesadelo da fé representado pelo fascismo moderno
dificilm ente teria intrigado a um servidor tão apaixonado da
Ciência Social racional quanto M ax W eber. O estilo de pensa
mento básico que informa a sua obra é o positivismo ocidental,
um legado do Iluminismo. A tendência volitiva básica de seu
pensamento não é, como a escola de Ranke, a de construir artis
ticamente grandes quadras dos períodos, cada um dos quais está
“igualm ente próximo de Deus”, mas modelar instrumentos inte
lectuais que proporcionem pós-visões úteis às previsões: sav oir
pou r prév oir, prév oir pou r pourv oir — esse impulso da Filosofia
positivista de Comte foi básico para a perspectiva de W eber.
Embora ele descendesse da “escola histórica”, não tinha apli
cação para qualquer atitude edificante para com a H istória
e a sua singularidade. Deixando de lado a hostilidade dos
historiadores, ele sugeria polidamente um a pesquisa sobre as
“regularidades das leis” como uma ciência “auxiliar” da H is
tória. Em seguida, aplicou-se à escrita da história social de
forma grandiloqüente.
Urbanismo, H istória Jurídica, Economia, Música, Religiões
M undiais — dificilm ente haverá um campo que ele não tenha
abordado. Continuou, assim, a tradição de erudição enciclo
pédica de W un dt e R atzel, de Roscher e Schmoller.
Trabalhou com massas de dados não para buscar na contem
plação do estado histórico do homem um refúgio quietista para
um a necessidade religiosa que não encontrava abrigo, compará
vel ao sentimento rousseauísta da natureza, mas para extrair
o r ie n t a ç õ e s in t e l e c t u a is 63

a interpretação da L iteratura e Filosofia, bem como o desenvol


vimento da teoria econômica e social.
Em 1848, os liberais haviam temido os trabalhadores itine
rantes barbados; com Bismarck, eles passaram a temer Bebei e
Liebknecht. Mesmo em 1878 o liberal doutrinário Eugen
Richter aconselhava seus adeptos a votar em favor dos conserva
III. Orientações Intelectuais dores, e não dos sociais-democratas, caso sua escolha ficasse li
m itada a esses d o is.1 E dez anos depois, quando Ferdinand
Tõnnies publicou sua Gem ein sch aft un d Gesellsch aft, obra justa
mente considerada básica da Sociologia moderna alemã, tornou-se
um estranho, sem esperança, para a sociedade “respeitável”, pois
a Sociologia cheirava a socialismo. A té mesmo um espírito
esclarecido como L u d w ig Bamberger falou da “afinidade interna
.A . sit u a ç ã o in t e l e c t u a l na A lem anha durante a vida de W e- do m ilitarism o e socialismo”. 2 Assim, as tradições intelectuais
ber foi singularm ente desfavorável ao desenvolvimento da Socio da A lem anha foram canalizadas para os modos de pensar conser
logia acadêmica. A historiografia estava dominada principal vador, liberal e socialista.
mente pelas tradições de H egel e Ranke, e o pensamento Os partidos políticos alemães, não tendo oportunidade de
conservador era extremamente forte, dificultando qualquer conquistar o poder, continuaram como partidos doutrinários de
desenvolvimento da teoria nas Ciências Sociais. Isso ocorria visão m undial fundam entada em princípios, cada qual rigorosa
especialmente na Economia, setor em que a escola histórica mente orientado para determinadas classes e grupos de status.
Os conservadores agrários estavam em coalizão com a ortodoxia
desestimulava a teoria sistemática, opondo-lhe um tesouro maci
luterana, os comerciantes urbanos e banqueiros com os homens
ço de detalhes históricos, fatos jurídicos e descrição institucional.
de profissão liberal, os trabalhadores assalariados socialistas com
O liberalismo, por sua vez, havia sido desenvolvido por um a uma in telligen tsia simples que desenvolvia um marxismo dc
in telligen tsia independente de qualquer classe m édia empre alto nível intelectual. A atmosfera do novo industrialism o, a
sarial. Em comparação com os países ocidentais, dos quais foram em briaguez do poder experim entada pelo parv en u depois de
tomados os modelos de pensamento do liberalismo alemão, tudo 1870, o espírito filisteu dos burgueses, socialmente arrivistas, pro
na A lem anha parecia nebuloso. Os ]u n \e rs agrários e seus curando ingressar nas associações de duelo, conseguir títulos dc
seguidores clam avam por A dam Sm ith e o livre-câmbio, ou seja, barão e chegar ao posto de oficial — tudo isso alim entava a
pelas exportações de cereais para a Inglaterra, ao invés de ven apatia política e o medo da pressão ascendente do trabalho. E
das às nascentes cidades industriais da A lem anha. O liberal levou a um a am pla acomodação política com o poder dos Ju n fers.
Friedrich L ist defendia as tarifas protetoras. Bismarck e os Dentro do contexto das classes, partidos e correntes intelec
príncipes alemães, e não as classes sociais, haviam feito do povo tuais em conflito, M ax W eber desenvolveu as suas orientações
alemão um Estado nacional. intelectuais. Pretendia a am plitude de um terreno comum. E a
A in telligen tsia acadêmica liberal mal se havia recuperado ele chegou, apesar da departam entalização intelectual de visões
do choque de 1848 e a reação a ele, quando Lassalle criou um do mundo diam etralm ente opostas. Refletindo sobre algum as de
Partido Socialista que dentro em pouco se tornava m arxista e suas concepções analíticas e am plas perspectivas m undiais, pode
atraía um brilhante grupo de jornalistas e organizadores, his remos indicar como os elementos do pensamento conservador,
toriadores e sociólogos. Esses homens orgulhavam -se de seu liberal e socialista foram assimilados, transformados e integrados
desligamento em relação às fidelidades nacionais. E, na A lem a no complexo padrão de sua obra. Como liberal lutando contra
nha, o m arxismo pode estabelecer um a tradição que tentou trazer o pensamento conservador e o marxista, M ax W eber abriu-se a
para a sua órbita a história social e política de todas as épocas, certas influências de cada um de seus adversários.
64 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA o r ie n t a ç õ e s in t e l e c t u a is 65

os meios de produção no caso de M arx é importante para a


1. M a r x e W e be r
compreensão das estruturas econômicas. *
Ao assumir a direção do A rch iv Fü r Soz ialw issen sch aft un d Enquanto M arx é menos cuidadoso na distinção entre poder
Soz ialpoliti!{, W eber propôs, sistematicamente, dedicar atenção econômico e poder político, W eber, como liberal, empenha-se
às questões suscitadas pelos marxistas. Grande parte de sua pró em m anter tais esferas claram ente diferenciadas. Assim, sua
pria obra é, decerto, enformada pela hábil aplicação do método crítica à m aior parte das contribuições marxistas é que elas não
histórico de M arx. W eber, porém, usou tal método como um distinguem entre o que é rigorosamente “econômico”, o que é
“princípio heurístico”. Como visão da história m undial, o m ar “economicamente determ inado” e o que é simplesmente “eco
xismo lhe parecia uma teoria monocausal insustentável e, com nomicamente relevante”. As peregrinações a Rom a são, sem
isso, prejudicial a um a reconstrução adequada das conexões so dúvida, relevantes para o mercado monetário, mas isto não faz
ciais e históricas. Sentia que M arx, como economista, havia delas empresas econômicas. A importação das idéias religiosas,
cometido o mesmo erro que, durante a época de W eber, a ou políticas, pelas instituições econômicas, não as transforma,
Antropologia estava cometendo: dando a um a perspectiva par com isso, em fatores econômicos: a questão se relaciona com a
cial um a importância exagerada e reduzindo a m ultiplicidade sua “relevância econômica”.
de fatores causais a um teorema de fator único. Tendo focalizado a luta pelos meios de domínio político,
W eber não se opõe diretamente ao materialismo histórico W eber vê a história política européia, desde o período feudal,
como totalmente errado; nega-lhe simplesmente a pretensão de como um desfile complicado de governantes, cada qual ten
estabelecer um a seqüência causal única e universal. À parte tando apropriar-se dos meios financeiros e m ilitares que na
o problema de se ele “compreendia” ou não o pensamento sociedade feudal estão relativam ente dispersos. De fato, W eber
dialético em sua redução a um a proposição causal, tal aborda form ula o conceito mesmo de “Estado” em termos de um “mo
gem foi eminentemente frutífera. nopólio” do uso da força legítim a sobre um determinado terri
tório. O aspecto territorial participa da concepção do Estado
Parte da obra de W eber pode ser considerada, dessa forma, pelo fato de que W eber distingue Estados litorâneos e Estados
como um a tentativa de “completar” o m aterialismo econômico interiores, Estados que dispõem de grandes rios e Estados das
de M arx com um m aterialismo político e m ilitar. A aborda planícies. O fator geográfico também parece ter um a influên
gem weberiana da estrutura política aproxima-se da aborda cia dispositiva pelo fato de oferecerem os Estados litorâneos, e
gem m arxista das estruturas econômicas. M arx construiu perío portanto marítim os, oportunidade à democracia urbana, aos im
dos econômicos e localizou neles as principais classes econô périos m arítim os; ao passo que o Estado das planícies — a
micas; relacionou os vários fatores sociais e políticos com os Rússia e os Estados Unidos, por exemplo — parecem favorecer
meios de produção. Em questões políticas, W eber encara o a esquematização e burocracia, embora certamente essa tendên
controle sobre as armas e sobre os meios de administração. cia tenha exceções.
O feudalismo, por exemplo, é caracterizado por W eber em W eber partilha, com M arx, de um a tentativa de colocar os
têrmos da propriedade privada dos meios de violência m ilitar fenômenos “ideológicos” nalgum a correlação com os interesses
(exércitos auto-equipados) e na apropriação, corporativa, dos “m ateriais” das ordens econômica e política. W eber tem um
meios de administração. O “governante” não podia mono olho agudo para as “racionalizações”, ou seja, para as “superes
polizar a administração e a guerra porque tinha de delegar os truturas fictícias” e para as incongruências entre a afirmação
implementos exigidos por esse monopólio aos vários grupos pri verbal e a intenção real. Combateu a bombasticidade im perial
vilegiados. Com o tempo, estes se tornam os “donos”, com e burocrática, e especialmente as frases dos pangerm anistas
direitos próprios. Essa preocupação com o controle dos meios
m ateriais de poder político é tão fundam ental para a compre
ensão dos tipos de estrutura política quanto a preocupação com * Ver, neste volume: “A Política como Vocação”, “B urocracia"
e “A Psicologia Social das Religiões M undiais” .
66 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 67

e ou literati revolucionários com um a ira comparável à cam desenrola dentro de instituições adm inistradas racionalmente e
nas quais funções combinadas e especializadas ocupam o centro
panha de M arx contra a linguagem vitoriana.
da atenção. Toda a estrutura é dinâmica, e pela sua anonimi-
A técnica de crítica pela qual as afirmações ideológicas dade obriga o homem moderno a tornar-se um perito especia
são mostradas como falsos mantos para interesses menos res lizado, um “profissional” preparado para uma carreira especial
peitáveis é evidente no ataque de W eber à esquerda revolucio dentro de canais preestabelecidos. O homem está, assim, pre
nária de 1918. A firm ou ele então, expressamente, que o m ar parado para a sua ahsorção pelo barulhento processo da m á
xismo não é um a carroça que se possa deter à vontade; W eber quina burocrática.
queria estender a crítica das ideologias até incluir o “interesse
proletário”, e procurou estreitá-lo até fazê-lo das proporções dos O conceito de burocracia racional é contraposto ao conceito
interesses dos literatos, dos políticos e dos guardas revolucioná marxista de luta de classes. Ocorre com o “materialismo eco
rios pelos “despojos da vitória”. A sua crítica das aspirações nômico” o mesmo que acontece com a “luta de classes” : W eber
socialistas também está óbvia nas suas reflexões sobre o im pe não nega as lutas de classes e sua parte na história, mas não
rialism o. Ele aceita, evidentemente, as unidades nacionais como as considera como a dinâm ica central. Nem nega a possibili
resultados históricos finais que jam ais podem ser integrados dade de um a socialização dos meios de produção. Simplesmente
em todos m ais amplos e harmoniosos. N a melhor das hipó relega essa exigência a um futuro bem distante e refuta qualquer
teses, haverá fortes Estados-nações socialistas, explorando ener espera de “socialismo em nossa época”. Não vê nada de atraen
gicam ente Estados mais fracos. O conceito de nação e de in te no socialismo. Aos seus olhos, ele simplesmente completaria
teresse nacional é, assim, o lim ite da perspectiva política de na ordem econômica o que já acontecera na esfera dos meios
W eber e ao mesmo tempo constitui seu valor final. Não obs políticos. Os estamentos feudais haviam sido expropriados de
tante, é característico de sua incansável análise o fato de que seus meios políticos e substituídos pelo funcionalismo assalariado
êle decompõe o “sentimento nacional” num a série de vários sen do moderno Estado burocrático. O Estado tinha “nacionalizado”
a posse de armas e dos meios administrativos. A socialização
timentos e atitudes comunais.
dos meios de produção simplesmente sujeitaria uma vida eco
A lém dessa atenção para com os “interesses” e “ideologias”, nômica ainda relativam ente autônoma à administração burocrá
a Sociologia de W eber está relacionada com o pensamento m ar tica do Estado. Este se tornaria realmente total, e W eber, odian
xista na tentativa comum de perceber as inter-relações em todas do a burocracia como um estorvo para o liberal, era de opinião
as ordens institucionais que constituem a estrutura social. N a que o socialismo levaria assim à maior servidão. “No momento”,
obra de W eber, os sistemas institucionais m ilitar, religioso, po
escreveu ele, “a ditadura do funcionário e não a do trabalhador,
lítico e jurídico estão funcionalmente relacionados com a ordem está a cam inho”. 3
econômica de várias formas. Não obstante, os julgam entos e
avaliações políticos em questão diferem totalmente dos existentes Assim, W eber viu-se defendendo opiniões paradoxais. Não
em M arx. Para este, a economia moderna é basicamente irra podia deixar de reconhecer a inevitabilidade do controle buro
cional, e essa irracionalidade do capitalismo resulta de um a con crático na adm inistração pública, nas grandes empresas capita
tradição entre o progresso tecnológico racional das forças pro listas e nas m áquinas partidárias politicamente eficientes. D u
dutivas e as cadeias da propriedade privada, lucro privado, con rante a guerra ele criticou a ignorância dos burocratas de Berlim,
corrência de mercado não-controlada. O sistema é caracterizado e não obstante em sua exposição clássica da burocracia distan-
pela “anarquia da produção”. cia-se m uito do veredicto de John Stuart M ill contra a “pedan-
Para W eber, por sua vez, o capitalismo moderno não é tocracia”. Pelo contrário, para W eber nada é m ais eficiente e
mais preciso do que o controle burocrático. Outrossim, no seu
“irracional”; suas instituições lhe parecem, na verdade, como a
orgulho pela burocracia “apesar de tudo”, podemos discernir uma
m aterialização mesma da racionalidade. Como um tipo de bu
rocracia, a grande empresa só encontra rival na burocracia es atitude comparável à adm iração de M arx pelas realizações do
tatal, na promoção da eficiência racional, continuidade de opera capitalismo burguês, quando elim inou os remanescentes feudais,
a “idiotice” da vida rural e vários fantasmas da mente.
ção, rapidez, precisão e cálculo dos resultados. Tudo isso se
68 ENSAIOS DE SOCIOLOCIA o r ie n t a ç õ e s in t e l e c t u a is 69

A ênfase de M arx no trabalhador assalariado como “sepa A tendência no sentido dessa interpretação am pla e signi
rado” dos meios de produção torna-se, na perspectiva de W eber, ficava do universo é atribuída a grüpos de intelectuais, a profetas
apenas um caso especial dentro de um a tendência universal. e professores religiosos, a sábios e filósofos, a juristas e artistas
O soldado moderno está igualm ente “separado” dos meios de experimentais e, finalm ente, ao cientista empírico. A “raciona
violência; o cientista, dos meios de indagação; o servidor público, lização”, diferenciada social e historicamente, passa a ter, assim,
dos meios da administração. W eber procura, assim, relativizar uma variedade de significados. Quanto a isso, W eber traz um a
a obra de M arx, colocando-a dentro de um contexto mais gene m agistral contribuição ao que já se tornou aceito como “So
ralizado e mostrando que as conclusões de M arx se baseiam em ciologia do conhecimento”. *
observações tomadas de um “caso especial” dram atizado, que é A opinião de W eber sobre o “desencantamento” encerra um
melhor ver como um caso num a ampla série de casos seme elemento do liberalismo e da filosofia ilum inista que construiu
lhantes. A série como um todo exem plifica a tendência geral a história do homem como um “progresso” unilinear na direção
subjacente de burocratização. As lutas de classes socialistas são da perfeição moral (sublim ação), ou no sentido da racionaliza
simplesmente um veículo que implementa essa tendência. ção tecnológica cum ulativa. Não obstante, a sua aversão cética
W eber identifica, assim, a burocracia com a racionalidade, a qualquer elemento “filosófico” na ciência em pírica excluiu
e o processo de racionalização com o mecanismo, despersonaliza- qualquer construção explícita do tempo histórico em termos de
ção e rotina opressiva. A racionalidade, nesse contexto, é vista “ciclos” ou evolução “unilinear”. “Até agora, o contínuo do
como contrária à liberdade pessoal. Assim, W eber é um liberal desenvolvimento da cultura européia não conheceu movimentos
nostálgico, sentindo-se na defensiva. Deplora o tipo de homem cíclicos completos nem um “desenvolvimento unilinear” orien
que a mecanização e a rotina da burocracia selecionam e for tado sem am bigüidades”. 4 Não obstante, sentimo-nos justi
m am . O profissional lim itado, certificado e exam inado publica ficados em afirm ar que um a construção unilinear está clara
mente, e pronto para um posto e carreira. Seu anseio de se mente im plícita na idéia que W eber faz da tendência burocrá
gurança é equilibrado pelas suas ambições moderadas e ele é tica. Até mesmo um a área de experiência tão “interiorizada” e
recompensado pela honra do status oficial. Esse tipo de homem aparentemente subjetiva como a da música se presta a um tra
é deplorado por W eber como um a criatura de rotina lim itada, tamento sociológico sob o conceito de “racionalização” de W eber.
carente de heroísmo, espontaneidade hum ana e inventividade: A fixação de padrões de acordes, através de uma notação mais
“O puritano queria ser o homem vocacional que temos de ser”. concisa, e o estabelecimento da escala bem tem perada; a música
tonal “harmoniosa” e a padronização do quarteto de sopro e
dos instrumentos de corda como o núcleo da orquestra sinfônica.
2. B u r o c r a c ia e C a r is m a : U m a F ilo s o f ia d a H is tó r ia T ais fatos são vistos como “racionalizações” progressivas. Os
sistemas musicais da Á sia, as tribos indígenas pré-letradas, da
O princípio da racionalização é o elemento mais geral na A ntigüidade, e do Oriente Médio, são comparáveis no que se
Filosofia da H istória de W eber. A ascensão e queda das estru relaciona com seu âmbito e grau de “racionalização”. O mesmo
turas institucionais, os altos e baixos das classes, partidos e enfoque comparado é, decerto, usado na explicação dos sistemas
governantes im plem entam a tendência geral da racionalização religiosos, como se pode ver no esboço psicológico encerrado
secular. Ao refletir sobre a m udança nas atitudes e m entalida- em “A Psicologia Social das Religiões M undiais”.
des hum anas ocasionada por esse processo, W eber gostava de Esse processo de racionalização está pontilhado, porém, de
citar a frase de Friedrich Schiller, o “desencantamento do m un certas descontinuidades na História. Estruturas institucionais
do”. As proporções e direção da “racionalização” são, assim, consolidadas podem, assim, desintegrar-se e as formas rotineiras
medidas negativam ente em termos do grau em que os elementos de vida podem mostrar-se insuficientes para dominar um estado
mágicos do pensamento são deslocados, ou positivamente pelas
proporções nas quais as idéias ganham coerência sistemática e * Incluímos um capítulo do estudo de W eber sobre a China
consistência naturalística. para colocar o leitor em contato com esse aspecto de sua o b ra .
70 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 71
crescente de tensões, pressão ou sofrimento. É em crises dessas a monotonia e o tédio da existência ordinária v ersus o vôo
que W eber adota um a concepção equilibradora da burocracia: im aginativo do gênio. Apesar do nominalism o cuidadoso de
o conceito de “carism a”. seu método, a concepção que W eber tem do líder carismático
W eber reproduziu esse conceito de Rudolf Sohm, historiador é a continuação de um a “Filosofia da H istória” que, depois de
da Igreja e jurista de Estrasburgo. O carism a, significando li H eroes an d H ero W orsh ip de Carlyle, influenciou boa parte dos
teralm ente “dom da graça”, é usado por W eber para caracterizar escritos históricoj do século XIX. Nessa ênfase, o indivíduo
o líder auto-indicado, seguido pelos que estão em desgraça e monum entalizado torna-se o soberano da História.
seguem-no por acreditarem ser ele extraordinariam ente dotado. A concepção do líder carismático, evidenciada por W eber,
Os fundadores das religiões m undiais e os profetas, bem como m antém a continuidade do conceito de “gênio” aplicado desde
os heróis m ilitares e políticos, são os arquétipos do líder carismá o Renascimento aos líderes artísticos e intelectuais. Dentro dos
tico. M ilagres e revelações, feitos heróicos de valor e êxitos confins da história “m oral”, W . E. H . Lecky ampliou-o de modo
surpreendentes são marcas características de sua estatura. O a aplicá-lo aos líderes da conduta hum ana, e não simplesmente
fracasso é a sua ruína. aos criadores de símbolos. Não só os homens de idéias, mas
Embora W eber tenha consciência do fato de que a dinâm ica os homens ideais passaram assim a ser objetos de atenção, como
social resulta de m uitas forças sociais, não obstante atribui gran mostra o trecho seguinte:
de ênfase à ascensão do líder carismático. Seus movimentos são
entusiásticos, e nesses entusiasmos por vezes as barreiras de Surgem, de tempos em tempos, homens que têm p ara com a
condição m oral de sua época mais ou menos as mesmas re
classe e statu s dão lugar à fraternização e aos sentimentos de lações que os homens de gênio têm para com a sua condição
com unidade exuberantes.8 Os heróis e profetas carismáticos intelectual. A ntecipam o padrão m oral de um a época pos
são, assim, vistos como forças realm ente revolucionárias na his terior, lançam conceitos de virtude desinteressada, de filan
tória. 8 tropia, desprendimento, que parecem não te r relação com o
espírito de sua época, inculcam deveres e sugerem motivos
A burocracia e outras instituições, especialmente as da fa de ação que parecem à maioria dos homens com pletamente
m ília, são consideradas como rotinas da vida cotidiana de tra quiméricos. Não obstante, o magnetismo de suas perfeições
balho; o carism a se opõe a todas as rotinas institucionais, as da influi poderosamente sobre os seus contemporâneos. Acen
de-se o entusiasmo, um grupo de partidários se form a e muitos
tradição e as sujeitas ao controle racional. Isso é válido também se emancipam das condições m orais de sua época. Não
para a ordem econômica: W eber caracteriza os conquistadores obstante, os plenos efeitos desse movimento são transitórios.
e os barões ladrões como figuras carismáticas. Quando usado O prim eiro entusiasmo esmorece, as circunstâncias am bientes
de form a rigorosamente técnica, o conceito de carisma está livre retom am a sua ascendência, a fé p ura é m aterializada, incrus
tada com concepções estranhas à sua natureza, deslocadas e
de todas as avaliações. Stefan George e Jerem ias, Napoleão e
deformadas, até que as suas características iniciais quase desa
Jesus Cristo, um guerreiro da A rábia e um fundador do mormo- pareçam . O ensinam ento moral, sendo inadequado à sua época,
nismo — todos são tipos de líderes carismáticos, pois têm em torna-se inoperante até que sua civilização adequada tenha
comum o fato de que as pessoas lhes obedecem devido à crença alvorecido: ou, na m elhor das hipóteses, a fé se filtra tênue
e im perceptivelm ente através de um acúmulo de dogmas, e
em suas qualidades pessoais extraordinárias. com isso acelera, de certo modo, o nascimento da condição
U m a situação autênticamente carism ática é direta e interpes que exige, i
soal. No contraste entre a vida cotidiana das instituições e a
natureza personalizada e espontânea da liderança carismática, É evidente que Lecky se interessava pelo gênio como homem
podemos discernir facilmente o legado do liberalismo que sempre extraordinário que transcende os lim ites da rotina cotidiana; e
enfrentou dicotomias semelhantes: massa v ersus personalidade, nisso, sua declaração prenuncia um a das teorias chaves de W eber:
a “rotina” v ersus empresário criador, as convenções das pessoas a rotinização do carisma.
comuns v ersus a liberdade interior do pioneiro e do homem Como Lecky, W eber vê que a situação carism ática autêntica
excepcional, as regras institucionais v ersus o indivíduo espontâneo, dá lugar, rapidam ente, às instituições incipientes, que surgem do
72 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 73

resfriamento dos estados de devoção e fervor extraordinários. trabalho chave, Econ om ia e Sociedade, revela a consciência do
À m edida que as doutrinas originais são democratizadas, ajus peso determ inante das bases econômicas.
tam-se intelectualmente às necessidades da cam ada que se torna O elemento “filosófico” na construção da história por W eber
o principal veículo da mensagem do líder. Se essas idéias não é esse equilíbrio antinômico dos movimentos carismáticos (líd e
forem adaptáveis nesse processo, então, a despeito de seu mérito res e idéias) com a rotinização racional (instituições duradouras
intrínseco, a mensagem deixará de influenciar a conduta da vida e interesses m ateriais). A espontaneidade e a liberdade do ho
cotidiana, ou as pessoas que sofrerem sua influência permanece mem são colocadas no lado dos entusiasmos heróicos, e assim
rão encerradas num modo de vida especial e alheio ao corpo há um a ênfase aristocrática sobre as elites ( “virtuosos” !) Essa
social maior. As religiões da ín d ia, segundo W eber, freqüen ênfase está intim am ente associada à atitude de W eber para com
temente term inaram como doutrinas dessas aristocracias da sal a democracia moderna, que já indicamos.
vação. * Não obstante, W eber vê no conceito de “personalidade”
A ênfase sobre a “soberania do homem carismático” não um a noção m uito explorada relativa a um centro de criativi
m inim iza a mecânica das instituições; pelo contrário, acompa dade profundamente irracional, um centro perante o qual a
nhando a rotinização do carisma, W eber pode atribuir um indagação analítica é suspensa. E combate esse elemento poeti
acentuado peso causal às rotinas institucionais. Assim, ele con zado e rom ântico.9 Seu nominalismo conceptual e sua perspec
serva um determinismo social ressaltando a rotinização do ca tiva pragm ática se opõem a toda concretização dos processos
rism a. A forma pela qual trata esse problema testemunha seu “não-analisados”. A unidade final de análise, para ele, são as
empenho em manter um pluralism o causal e colocar a ordem eco motivações compreensíveis do indivíduo isolado. Seus concei
nômica em equilíbrio. tos são instrumentos analíticos com os quais reconstrói vários
mecanismos. N ão são categorias descritivas, com as quais se
Em geral, a construção que W eber faz da dinâm ica his procure “provar” a cor e compreender a imagem superficial do
tórica em termos do carisma e rotinização é um a tentativa de “espírito da época”. Não são conceitos que visem às supostas
responder ao paradoxo das conseqüências não-intencionais. O
substâncias dos grandes homens e épocas. N a verdade, apesar
carisma da prim eira hora pode incitar os seguidores de um da ênfase de W eber quanto ao carisma, ele não enfoca “as gran
herói guerreiro ou profeta a esquecer a conveniência em favor des figuras da H istória”. Napoleão, Calvino e Crom well,
dos valores finais. M as, durante a rotinização do carisma, os W ashington e Lincoln só de passagem surgem em seus textos.
interesses m ateriais de um séquito em crescimento constituem Ele procura apreender o que se conservou do trabalho dêsses
o fator mais forte. homens nas ordens institucionais e continuidades da História.
U m movimento carismático pode ser rotinizado no tradi- Não Júlio César, mas o cesarismo; não Calvino, mas o calvi-
cionalismo ou na burocratização. A direção a ser seguida de nismo, é a preocupação de W eber. A fim de compreender per
pende principalm ente das intenções subjetivas dos seguidores feitamente sua posição, temos de compreender também os seus
ou do líd er; depende da estrutura institucional do movimento instrumentos conceptuais: o tipo construído, as séries tipológicas,
e especialmente da ordem econômica. “A rotinização do caris o método comparado.
m a, sob aspectos essenciais, é idêntica à adaptação às condições
da economia, ou seja, às rotinas continuamente efetivas da vida
de trabalho diária. Nisso a economia leva, ao invés de ser le 3. M ét o do s da C iê n c ia S o c ia l
vada.” 8 T al como nesse contexto particular um papel de lide
rança é dado à economia, assim o faz também o título do seu A s reflexões metodológicas de W eber têm dívidas claras
para com a filosofia do ilum inism o. Seu ponto de partida e
a unidade final de sua análise é a pessoa individual:
* Ver capítulo XI, “A Psicologia Social das Religiões Mundiais".
74 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 75
A Sociologia interpretativa considera o indivíduo [E inzel-
in d iv id u u m ] e seu ato como a unidade básica, como seu
W eber distingue diferentes “tipos” de ações motivados. Con
“átom o” — se nos perm itirem pelo menos um a vez a com sidera, caracteristicamente, como do tipo m ais “compreensivo”
paração discutível. Nessa abordagem, o indivíduo é também as ações que estão na natureza da adequação racional, e dos
o lim ite superior e o único portador de conduta significa quais a conduta do “homem econômico” constitui exemplo des
tiv a ... Em geral, para a Sociologia, conceitos como “E stado”, tacado.
“associação”, “feudalism o” e outros semelhantes designam
certas categorias de interação humana. Daí ser tarefa da As ações menos racionais são exem plificadas por W eber
Sociologia reduzir esses conceitos à ação “com preensível”, isto em termos da busca de “fins absolutos”, fluindo de sentimentos
é, sem exceção, aos atos dos indivíduos participantes. 10 afetivos ou dos elementos “tradicionais”. Como os fins absolu
tos devem ser tomados pelo sociólogo como elementos “dados”,
um a ação pode ser racional em relação aos meios empregados,
A “abordagem tipo Robinson Crusoe” dos economistas clás
mas irracional em relação aos fins visados. A ação “afetiva”,
sicos e dos filósofos racionalistas do contrato encontra cco nessa
que nasce puramente do sentimento, é um tipo de conduta m e
ênfase sobre o indivíduo. M as, no pensamento de W eber, a
nos racional. E finalm ente, aproximando-se do nível “instintivo”,
ênfase se opõe à tradição de H egel e Ranke.
há a conduta “tradicional” : irrefletido e habitual, esse tipo é
Esta últim a tradição tenta “interpretar” a pessoa individual, sancionado porque “sempre foi feito assim”, sendo portanto con
a instituição, o ato ou o estilo de trabalho vendo-o como um siderado como a conduta adequada. T ais tipos de “ações” são
“documento”, “manifestação”, ou “expressão” de um a unidade construídos operacionalmente em termos de um a escala de racio
morfológica maior, subjacente a determinado dado. A “inter nalidade e irracionalidade. U m recurso tipológico, e não um a
pretação” consiste, assim, na compreensão da união da totalidade “psicologia” da motivação, é assim descrito. Essa abordagem
mais am pla com sua parte. O aspecto participa da qualidade nom inalista, com sua ênfase sobre as relações racionais de fins
do todo. Assim Sombart, escrevendo um livro sobre Os Ju deu s e meios como a forma mais “compreensível” de conduta, distin
e a V ida Econ ôm ica, procura mostrar a contribuição e a signifi gue a obra de W eber do pensamento conservador e sua “com
cação destacada dos judeus para a ascensão e o funcionamento preensão” documental, assim ilando a singularidade de um objeto
do capitalismo moderno, “compreendendo” os judeus e o capi a um todo espiritualizado. Não obstante, dando destaque à in-
talismo como portadores do mesmo “espírito”. Essa forma de compreensibilidade da conduta hum ana, em oposição à simples
“compreender” o particular vendo-o como um documento de um explicação causal dos “fatos sociais” como ocorre na Ciência N a
todo subjacente tem raízes no pensamento romântico e conserva tural, W eber traça um a linha entre sua Sociologia interpretativa
dor alemão — um estilo desenvolvido detalhadamente e com e a ph y sique sociale na tradição de Condorcet, que Comte cha
surpreendente sutileza e proveito por W ilh elm Dilthey. mou de sociologie11 e D urkheim desenvolveu de modo tão des
tacado. Já se observou acertadamente que os tipos básicos de
M ax W eber incorporou o problema da compreensão em sua estrutura social usados por W eber — “sociedade”, “associação”
abordagem sociológica que, como ressaltava, era um tipo de So e “com unidade” — correspondem intim am ente aos seus “tipos de
ciologia, entre outros tipos possíveis. Portanto, chamou sua pers ação” — o “racionalmente adequado”, o “afetivo”, e o “tradicio
pectiva de Sociologia “interpretativa” ou “compreensiva”. É
nalista”. 17
característico de sua posição racional e positivista o fato de ter
ele transformado o conceito de compreensão, que continuou sen
do para W eber um a abordagem excepcional das Ciências Morais Se aceitássemos as reflexões metodológicas que W eber faz
ou C ulturais que tratam do homem, e não dos outros anim ais sobre seu próprio trabalho pelo valor aparente que encerram,
ou da natureza inanim ada. O homem pode “compreender” ou não encontraríamos nelas um a justificação sistemática de sua
procurar “compreender” suas próprias intenções pela introspecção, anájise de fenômenos como a estratificação ou o capitalismo. T o
ou pode interpretar os motivos da conduta de outros homens mado literalm ente, o “método de compreensão” dificilm ente lhe
em termos de suas intenções professadas ou atribuídas. perm itiria o uso de explicações estruturais, pois elas tentam jus
76 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 77

tificar a motivação dos sistemas de ação pelas suas funções como Em seus escritos sobre o método, W eber rejeita a suposição
estruturas funcionais e não pelas intenções subjetivas dos indi de qualquer “significado objetivo”. Quis ele lim itar a compre
víduos que as praticam. ensão e interpretação do significado às intenções subjetivas do
Segundo o método de compreensão de W eber, devemos es agente. Não obstante, em sua obra real, ele não tem menos
perar que êle siga uma teoria subjetiva de estratificação, mas consciência do que M arx em relação ao fato paradoxal de que
isso não ocorre. Da mesma forma, podemos assinalar a refuta os resultados das interações não são, de modo algum , sempre
ção, por W eber, de um lugar-com um alemão sobre os Estados idênticos com o que o agente pretendia fazer. Assim, os puri
Unidos como um a nação de “indivíduos atomizados” : “No pas tanos queriam servir a Deus, mas ajudaram a criar o capitalismo
sado e até o presente, foi um a característica precisamente da moderno. Isso se evidencia também no trecho seguinte, sobre
dem ocracia especificamente am ericana o fato de n ão constituir o capitalismo e o indivíduo:
ela um monte informe de indivíduos, mas um animado com
Essa escravidão sem senhor na qual o capitalismo m ergulha o
plexo de associações rigorosamente exclusivas, embora volun trabalhador ou o devedor só é discutível eticam ente como
tárias”. W eber vê a tendência para a democracia ateniense instituição. Em princípio a conduta pessoal daqueles que
como sendo determ inada pela modificação na organização participam , de qualquer dos lados, seja dos governantes ou
m ilitar: a democracia surgiu quando o exército dos hopli- dos governados, não é m oral discutível, pois essa conduta
tas, m ais antigo, deu lugar ao navalismo. Explicações estru é essencialm ente prescrita pelas situações objetivas. Se não
turais semelhantes são reveladas na forma pela qual ele liga a se conformam, são ameaçados de bancarrota econômica, que
seria, sob qualquer aspecto, in ú til.13
difusão das burocracias à tarefa de adm inistrar grandes impérios
interiores como Roma e C hina, Rússia e os Estados Unidos.
Ao usar o princípio de explicação estrutural, W eber aproxi Poderíamos acum ular, facilmente, afirmações extraídas da
ma-se do processo analítico do pensamento m arxista, que, de obra de W eber, que reforçariam esse ponto, como as traduções
um a forma “desespiritualizada”, utiliza o modo de pensar origi incluídas no presente volume deixam claro. É compreensível
nalm ente hegeliano e cpnservador. que W eber julgasse tão errado considerar seu trabalho como um a
N a sua ênfase metodológica sobre a compreensão do indivíduo interpretação idealista da H istória quanto considerá-lo como um
como a unidade final de explicação, W eber polemiza contra o caso de m aterialism o histórico.
pensamento organicista dos conservadores, e também com o uso O nominalism o do método de W eber pode ser compreen
m arxista de significados objetivos de ação social, a despeito da dido em termos de sua tentativa de evitar a ênfase filosófica
consciência do agente. sobre os fatores m ateriais ou ideais, ou sobre os princípios estru
Como H egel e A dam Sm ith, M arx atribuiu significados ao turais ou individuais de explicação. Seu apego ao pensamento
processo de interações sociais. A “mão invisível” de A dam Sm ith positivista ocidental evidencia-se em seu desprezo por quaisquer
e a “astúcia da idéia” de H egel surgem no sistema de M arx elementos “filosóficos” ou “metafísicos” nas Ciências Sociais. De
como um a lógica objetiva das instituições dinâm icas que se seja ele dar a essas ciências a mesma abordagem prática com
desenvolvem às costas dos agentes. N a m edida em que os que as Ciências N aturais se aproxim am da natureza.
homens sabem o que fazem, compreendem as forças cegas da O método quantitativo acompanha de perto tal concepção e
sociedade. Embora tais forças sejam obra dos homens, elas coloca-se em oposição a um a perspectiva na q ual todos os fenô
permanecem simplesmente, na expressão de Veblen, “opacas”. menos são vistos como entidades qualitativam ente únicas. Para
Assim, M arx mede as noções subjetivas dos agentes do sistema W eber, a singularidade histórica e social resulta de combinações
em comparação com o significado objetivo, revelado pelo estudo específicas de fatores gerais, que, se isolados, são quantificáveis.
científico. E na comparação e na incongruência típica entre Assim, os “mesmos” elementos podem ser vistos num a série de
o que os homens pensam que fazem e as funções sociais obje outras combinações singulares. “ . . . Decerto, em últim a análise,
tivas de seus atos, M arx localiza a natureza ideológica da “falsa todos os contrastes qualitativos, em realidade, podem ser com
consciência”. preendidos, de algum a forma, como diferenças exclusivamente
78 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 79

quantitativas, feitas de combinações de vários fatores isolados”. 11 tido” evidencia sua técnica de dispor “casos” num a escala tipo-
Ele não diz que a qualidade pode ser “reduzida” à quantidade; ló g ica.* A mesma técnica é em pregada em sua tipologia do
capitalismo, construída ao longo de um a escala de diferentes cam i
na verdade, como nominalista, W eber é bem sensível à singula
nhos de oportunidades de lucro. Como conceitos gerais, os tipos
ridade qualitativa da realidade cultural e às diferenças qualita
ideais são instrumentos com os quais W eber prepara o m aterial
tivas que resultam de m udanças quantitativas. Por exemplo:
descritivo da história m undial para análise comparada. Esses
“De nosso ponto de vista especial, quando o maior medo do
tipos variam em am plitude e no nível de abstração. Quando
mundo levou a um a fuga às atividades ocupacionais na economia
W eber caracteriza a “democracia” como “um a m inim ização do
privada, o pietismo não só se transforma em algo diferente de
poder”, chega à formulação mais am pla e menos específica, histo
grau, mas também num elemento que difere em qualidade”. 10
ricamente. V árias técnicas de m inim ização do poder, como m an
O discutido “tipo ideal”, expressão-chave na discussão me datos curtos, sistema de divisão de poderes, o referendo etc.,
todológica de W eber, refere-se à construção de certos elementos são possíveis em determinados casos históricos. Esses casos são
da realidade num a concepção logicam ente precisa. A palavra transformados em subtipos da democracia. Incorporando carac
“ideal” nada tem com quaisquer espécies de avaliações. Com terísticas históricas selecionadas à concepção geral de democracia,
finalidades analíticas, podemos construir tipos ideais de prosti ele pode restringir esse tipo geral e aproximar melhor os casos
tuição ou líderes religiosos. A expressão não significa que pro históricos.
fetas ou prostitutas sejam exemplares ou devam ser imitados
Sua preocupação com os problemas históricos específicos e
como representantes de um modo de vida ideal.
seu interesse por um a Sociologia comparada de natureza gene-
Usando essa expressão, W eber não queria introduzir um ralizante estão, assim, relacionados. A diferença entre ambos é
novo instrumento conceptual. Pretendia, simplesmente, dar ple apenas de ênfase. Usando um a série de tipos ideais, êle cons
na consciência ao que os cientistas sociais e historiadores vinham trói um a concepção de um determinado caso histórico. Em seus
fazendo quando usavam palavras como “o homem econômico”, estudas comparados, usa as mesmas concepções do tipo ideal,
“feudalism o”, “arquitetura gótica versus rom ântica” ou “reinado”. mas serve-se da H istória como um arm azém de exemplos para
Sentia que os cientistas sociais tiveram a escolha de usar concep tais conceitos. Em suma, o respectivo interesse de pesquisa —
ções logicam ente controladas e não-am bíguas, que, por isso, na elaboração de um conceito ou na construção de um objeto
estão m ais afastadas da realidade histórica, ou usar conceitos histórico — determ ina seu processo.
menos precisos, mais ligados ao mundo empírico. O interesse
De qualquer modo, W eber se interessa pelo uso de concep
de W eber em comparações m undiais levou-o a considerar ex ções generalizadas a fim de compreender a sociedade como su
tremos e “casos puros”. T ais casos tornaram -se “exemplos cru jeita a regularidades de lei. Essas regularidades são necessárias
ciais” e controlaram o nível de abstração que ele usou em re a fim de satisfazer o interesse pela causação. Para compreender
lação a qualquer problema particular. A verdadeira essência um a seqüência de acontecimentos regulares causalmente, deve
da história situa-se, habitualm ente, entre esses tipos extremos; mos exam inar condições comparáveis. Assim, num a tentativa
daí W eber ter-se aproximado da m ultiplicidade de situações his de validar sua análise causal da religião e do capitalismo no
tóricas fazendo que vários conceitos tipos influíssem sobre o caso Ocidente, W eber exam inou m uitas outras civilizações. Embora
específico que exam inava. o início capitalista pudesse ser observado nessas outras civilizações,
A abordagem quantitativa de constelações culturais excep o capitalismo no sentido ocidental não surgiu. W eber desejava
cionais e a concepção dos tipos ideais estão intim am ente ligadas encontrar esses fatores em outras civilizações que bloquearam
ao método comparado, que im plica que duas constelações são com a em ergência do capitalismo, embora houvesse m uitas condições
paráveis em termos de algum a característica comum a ambas.
U m a afirm ação dessas características comuns im plica o uso de
* V er capítulo XI, “A Psicologia Social das Religiões M un
conceitos gerais. A forma pela qual W eber constrói as religiões diais”.
m undiais como interpretações variantes do “sofiimento sem sen
80 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 81

favoráveis para o seu aparecimento. Com essa análise comparada W eber procura incorporar os pontos de vista tanto de M arx
das seqüências causais, W eber tentou encontrar não só as con como de N ietzsche em sua análise. Com M arx, partilha a
dições necessárias, mas as condições suficientes do capitalismo. abordagem sociológica das idéias: são impotentes na H istória, a me
Somente no Ocidente — particularm ente quando o ascetismo nos que sejam fundidas aos interesses m ateriais; e com Nietzsche
íntimo-profano produziu um tipo de personalidade específico — as ele se interessa profundam ente pela im portância das idéias para
condições suficientes estavam presentes. Em seu pluralismo, ele as reações psíquicas. *
naturalm ente não considera esse tipo de personalidade como o Não obstante, em contraste com Nietzsche e M arx, W eber
único fator envolvido na origem do capitalism o; simplesmente de recusa-se a conceber idéias como sendo “meros” reflexos de
sejava incluí-lo entre as condições do capitalismo. interesses psíquicos ou sociais. Todas as esferas — intelectuais,
psíquicas, políticas, econômicas, religiosas — seguem, até certo
ponto, um a evolução própria. Onde M arx e N ietzsche vêem
4. A S o c io l o g ia das Id Í ia s e In t e r e sse s
facilm ente um a correspondência entre idéias e interesses, W eber
se mostra ansioso em identificar as possíveis tensões entre idéias
A discussão das instituições burocráticas e dos líderes pessoais, e interesses, entre um a esfera e outra, ou entre estados internos
das rotinas de trabalho cotidiano e dos aspectos extraordinários,
e exigências exteriores. A ssim , analisando as profecias hebrai
encontra paralelo na concepção que W eber tem das rela
cas, ele busca equilibrar as influências psicológicas e históricas:
ções entre idéias e interesses. T anto M arx como Nietzsche
contribuíram para um a teoria da função e conteúdo das idéias; De qualquer modo, será difícil supor que um a determ inação
ambos desviaram a ênfase tradicional do conteúdo das idéias psíquica, sem am bigüidades, da “hipocondria política” tenha
para a ênfase sobre a conexão pragm ática das idéias com os sido a fonte da posição dos profetas. A profecia do juízo final
tem de ser deduzida, em grande parte, da disposição psíquica
seus resultados. Desenvolveram técnicas para interpretação das dos profetas, determ inada pelos dotes constitucionais e expe
idéias em termos de seu serviço, e não em termos de seu valor riências pessoais. Não obstante, não é menos certo que os
aparente. destinos históricos de Israel deram realm ente às profecias do
juízo final seu lu g ar no desenvolvim ento religioso. E isso
M arx via as idéias em termos de sua função pública nas ocorre não apenas no sentido de que a tradição preservou,
lutas de classes e partidos. Nietzsche abordava as idéias em ter decerto, os oráculos dos profetas que foram confirmados pelos
mos de seu serviço psicológico ao pensador individual, ou pelo fatos, que parecem te r sido confirmados, ou cujo advento
menos quando falava do contexto público, seus instrumentos ainda podia ser esperado. O crescente prestígio inabalável da
sociológicos eram tão toscos que somente os mecanismos psicoló profecia em geral baseou-se nalguns poucos casos que foram
terrivelm ente im pressionantes p ara os contem porâneos dos
gicos foram empregados, proveitosamente, em sua análise. Se para profetas, e nos quais estes, pelo seu êxito, estavam inespe
M arx as idéias de importância prática se tornaram ideologias radam ente certos,
como arm as nas lutas de grupos, para Nietzsche se fizeram
racionalizações de indivíduos, ou, na melhor das hipóteses, de O conceito decisivo pelo q ual W eber relaciona as idéias e
“senhores e escravos”. M arx comentou que as idéias se tornam interesses é o da “afinidade eletiva”, e não da “correspondên
forças m ateriais tão logo se apossam das massas; ele aproximou cia”, “reflexo” ou “expressão”. P ara M arx, as idéias, “expres
a validade histórica das idéias de seu papel na justificação dos sam ” interesses; assim, o Deus oculto dos puritanos expressa
interesses econômicos. Nietzsche modifica a afirmação de M a
a irracionalidade e anonim idade do mercado. P ara Nietzsche,
teus, “quem se hum ilha será exaltado”, fazendo dela “quem se
o cristianism o ascético “reflete” o ressentimento dos escravos,
hum ilha deseja ser exaltado”. Assim, ele atribuiu volições ao
que assim “expressam” sua “revolta na m oral”. P ara W eber,
orador, que estavam abaixo do conteúdo de suas idéias.
“— Eu fiz isso — diz m inha memória —, eu não poderia
ter feito aquilo — diz meu orgulho e permanece inexorável. * Uma rápida análise da teoria do ressentim ento de Nietzsche
Finalm ente — a memória cede.” 16 é feita no capítulo XI, “A Psicologia Social das Religiões M undiais”,
e no capítulo V II, “Classe, Estamento, P artid o ”.
6
82 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 83
não há ligação íntim a entre os interesses ou a origem social alemã, tanto m ais apreciava o peso dos interesses m ateriais nas
do sujeito e seu séquito e o conteúdo da idéia, em seu início. idéias de êxito, por m ais alienados que fossem o seu conteúdo e
Os antigos profetas hebreus, os líderes da Reforma, ou a van intenção. Assim , escreveu durante a guerra: “Não as idéias,
guarda revolucionária dos modernos movimentos de classe não mas os interesses m ateriais e ideais governam diretamente a
eram necessariamente recrutados das cam adas que, no devido conduta do homem. M uito freqüentemente, porém, as ‘im a
tempo, se tornaram os principais portadores de suas respectivas gens m undiais’ que foram criadas pelas ‘idéias’ determ inaram ,
idéias. Somente durante o processo de rotinização os seguido como manobreiros, as linhas ao longo das quais a ação foi im
res “elegem ” as características da idéia com que têm algum a pulsionada pela dinâm ica dos interesses”. 18
“afinidade”, um “ponto de coincidência” ou “convergência”.
Esses trechos nos lembram as metáforas mecânicas de M arx,
Não há correspondência preestabelecida entre o conteúdo
com as suas revoluções como as “locomotivas da história”, ou
de um a idéia e os interesses dos que a seguem desde a pri de T rotski com seus “manobreiros intelectuais”. 19 A im agística
m eira hora. M as, com o tempo, as idéias são desacreditadas
mecânica, desse tipo, parece opor-se às metáforas orgânicas de
em face da H istória, a menos que apontem o caminho de con crescimento e desenvolvimento preferidas pelos autores m ais con
duta favorável aos vários interesses. As idéias, selecionadas e servadores. Quando as im agens de natureza orgânica são u tili
reinterpretadas da doutrina original, ganham um a afinidade zadas, não se relacionam com o gradualism o e o crescimento
com os interêsses de certos membros de cam adas especiais; se vegetativo, m as com a incubação e o nascimento.
não conseguirem tal afinidade, são abandonadas. Assim , dis
tinguindo as fases da origem pessoal e carism ática das idéias e No trato das idéias específicas, podemos discernir em W e
sua rotinização e impacto social, W eber pode levar em conta ber níveis diferentes de interpretação sociológica. De forma
vários graus de complexidade, que se refletem nas variações impetuosa, ele localiza “im agens m undiais” inteiras como cons
de nuanças do significado. Tanto as idéias quanto seus pú truções simbólicas, associadas às condições sociais de camadas
blicos são vistos independentem ente; por um processo seletivo, específicas. Assim, percebe ele um a conexão entre a concepção
elementos em ambas encontram suas afinidades. religiosa de um Ser quietista e passivo e os estudos místicos e
D urante toda a sua vida, M ax W eber empenhou-se num a técnicas contemplativas dos intelectuais refinados e literários,
proveitosa batalha com o m aterialism o histórico. Seu últim o especialmente na Índia e C hina. Procura estabelecer um a rela
curso de conferências em M unique, à época da Revolução, foi ção íntim a entre a natureza de um estado psicológico predom i
apresentado sob o título “U m a C rítica Positiva do M aterialism o nante, a estrutura de um ato de percepção e o significado de
Histórico”. H á, porém, em sua biografia intelectual, um a clara um objeto. Todos os três aspectos, por sua vez, são facilitados
inclinação no sentido de M arx. pela situação sócio-histórica dos intelectuais dentro da estrutura
Ao escrever A Ética Protestan te, W eber estava ansioso por social, e com ela têm um a afinidade. Essa estrutura histórica,
ressaltar o papel autônomo das idéias n a origem do capitalismo por si m esma, não determ ina a direção n a qual as camadas
moderno — embora não, é claro, no sentido de H egel. Sentia de intelectuais podem desenvolver as suas concepções; perm ite
ele que o capitalismo moderno, em seu início, exigiu certo ou bloqueia, antes, a tentativa — característica dos intelectuais
tipo de personalidade. Esse tipo, por sua vez, era psicologica — de atacar a insensatez do sofrimento e do m undo. No
mente construído cm conseqüência da crença num corpo de Ocidente, os intelectuais também fizeram experiências no sen
idéias que resultavam , involuntariam ente, no desenvolvimento tido da contemplação mística, mas tais experiências, segundo
dos traços de personalidade específicos úteis ao comportamento W eber, foram repetidam ente frustradas. U m a busca m ais voli-
capitalista. Assim , ao oferecer “um a construção espiritualista” tiva e m ais ativa de significado tornou-se predom inante no Oci
do pano-de-fundo do capitalismo moderno, W eber começa com dente.
concepções religiosas. Em seus últim os ensaios, porém, começa Os interesses ativos dos intelectuais ocidentais em dominar
sua análise da C hina, por exemplo, com capítulos sobre as os acontecimentos políticos estiveram ligados à im agem volitiva c
bases econômicas. Quanto m ais irritado ficava com a política antropomórfica de um Deus irado e ao mesmo tempo bondoso.
84 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 85

A corrente principal do cristianismo é, assim, vista como uma alem ã e que, no pensamento conservador, serviram como instru
continuidade da profecia hebraica. Os profetas do judaísmo an mentos de interpretação. Constrói a dinâm ica social em termos
tigo são caracterizados como demagogos ativos, que pelo poder de um a análise pluralista dos fatores, que podem ser isolados e
da palavra visavam ao domínio do curso dos acontecimentos his medidos em termos de seus respectivos pesos causais. Assim o
tóricos. O clero não era bastante forte para elim inar efetivamente faz pela análise comparada de unidades comparáveis, que se en
esses demagogos religiosos indicados por si mesmos. contram em diferentes ambientes culturais.
W eber, em sua Sociologia do conhecimento, não se interes Isto não significa que ele não tenha concepções totais das
sava exclusivam ente por essas im agens m undiais. Interessava-se estruturas sociais. Pelo contrário, quanto m ais W eber se apro
também por m uitas ideologias particulares, que considerava como xim a da análise da era contemporânea, tanto m ais pronto se
noções capazes de justificar e motivar camadas m aterialmente mostra a falar do capitalismo como um a unidade. A unidade é
interessadas. vista como um a configuração de instituições, que pela lógica de
Eis alguns exemplos: a aceitação da propaganda religiosa suas próprias exigências lim ita cada vez mais o alcance das esco
das Cruzadas está ligada às aspirações im perialistas dos senhores lhas efetivas abertas aos homens.
feudais, que se interessavam em assegurar feudos para os seus Para W eber, um a unidade, como o capitalismo, não é um
descendentes. Outras camadas, decerto, evidenciavam outros mo todo indistinto a ser equiparado a “um instinto aquisitivo” ou
tivos. O aparecimento e difusão da ordem dos monges m endi à “sociedade pecuniária”. É antes, tal como para M arx e Sorel,
cantes, ou franciscanos, estão ligados aos interesses dos líderes uma escala de tipos, cada qual com características institucionais
do poder secular em explorar-lhes as habilidades como professores peculiares. Quanto m ais W eber recua historicamente, tanto mais
não-remunerados ou como demagogos urbanos que, durante as se inclina a ver o capitalism o como um a característica de um a
crises, podiam domesticar as massas urbanas. Se esses monges situação histórica; quanto m ais se aproxima do moderno capita
mendicantes teriam , ou não, sobrevivido contra a oposição do lismo industrial, tanto m ais se dispõe a vê-lo como um elemento
Papa e do clero, se não dispusessem de tais habilidades, é ques penetrante e unificador. O alto capitalismo absorve outras ins
tão aberta. A mesma situação se aplica à ordem jesuíta, depois tituições em sua própria im agem , e o padrão institucional entre -
que o Papa a colocou fora da lei e Frederico o Grande lhe cruzado dá lugar a um quadro de forças paralelas que seguem
proporcionou asilo na Prússia. A defesa do valor intrínseco de no mesmo sentido, ou seja, para a racionalização de todas as
um a determ inada linguagem está, freqüentemente, associada aos esferas de vida. N um a construção cada vez m ais unilinear da
interesses m ateriais dos editores pelo nacionalismo. A s ordens História, podemos discernir uma concepção sublim ada da noção
das burocracias modernas assumem a forma de “regras gerais”, liberal de “progresso”.
ao invés de “decretos particulares”, como se pode ver em conexão
com sua tendência racionalizante geral. Quando W eber trata De conformidade com o pensamento liberal, que se interessa
dos problemas políticos, parece usar este modo de interpretação por separar a Política e a Economia, W eber distingue entre dois
de idéias como simples justificações. Quando trata de problemas tipos básicos de capitalism o: “capitalismo político” e “capitalismo
religiosos, é mais provável que ressalte o conceito de “afinidade industrial moderno”, ou “burguês”. * 0 capitalismo, decerto,
eletiva”. só pode aparecer quando no mínim o o início de um a economia
monetária existe.

5. E stru tu ra s S o c ia is e T ip o s de C a p ita lis m o


* “Em m inha opinião Som bart caracterizou,, sob aspectos im por
tantes, o que devemos com preender como época do capitalismo
A visão pragm ática das idéias, que M ax W eber partilha com inicial. Não há conceitos históricos “definitivos”. Não partilho
K arl M arx e John Dewey, está associada à refutação da tradição da vaidade de autores contemporâneos que se comportam, frente a
hegeliana. W eber rejeita, assim, concepções como “caráter na um a term inologia usada por terceiros, como se ela fosse um a escova
de dentes do au to r.” A rc h iv fü r Sozialvnssenschaft u n d S o zia lp o litik,
cional” e “espírito popular” que im pregnaram a historiografia
1906, p 348.
86 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 87

No capitalism o político, as oportunidades de lucro dependem diferença entre esses capitalistas carismáticos e os capitalistas
do preparo e exploração da guerra, conquista e do poder prer- “burgueses sóbrios” tem sido freqüentemente ignorada nas con
rogativo da adm inistração política. Dentro desse tipo se classi trovérsias sobre o problema da ética protestante e sua relevância
ficam o capitalismo im perialista, o colonial, aventureiro ou pre causal para a ascensão do “capitalismo moderno”. 20
datório, e o fiscal. A lém disso, para localizar a situação m arginal O capitalismo fiscal, tal como W eber o entende, refere-se
peculiar dos grupos comerciantes, W eber fala do capitalismo a certas oportunidades de lucro proporcionadas pela exploração
dos párias. Esse conceito é aplicado aos judeus ocidentais, desde das prerrogativas políticas. O fenômeno m ais importante desse
a A ntigüidade remota até o presente, e aos parses, na índia. tipo é a atribuição da coleta de impostos a empresas privadas,
Embora funcionalm ente indispensável por motivos de formação comum na Rom a antiga e no ancien rêgim e na França. A
étnica e religiosa, essas camadas são socialmente segregadas e liberação da venda de indulgência aos mercadores italianos como
reduzidas ao statu s de párias. Por capitalism o im perialista, compensações pelos seus empréstimos ao V aticano; a organização
W eber se refere a uma situação na q ual os interesses de lucro em presarial das forças m ilitares e navais pelos con dottieri; a li
são os que determ inam o ritmo, ou são os beneficiários, da ex beração do direito de cunhar moeda aos empresários privados,
pansão política. Os maiores exemplos são os Impérios Romano como Jacob Fugger, são outros exemplos.
e Britânico, e o imperialism o competitivo da época presente.
Esses tipos analíticos de capitalismo servem para ressaltar
O capitalismo colonial, intim am ente ligado ao im perialism o po
diferentes aspectos de situações históricas, elas mesmas bastante
lítico, refere-se aos capitalismos que lucram com a exploração
fluidas. A singularidade do capitalism o in du strial m odern o
comercial de prerrogativas políticas sobre os territórios conquis
consiste no fato de que um a estrutura específica de produção
tados. T ais prerrogativas incluem monopólios comerciais, asse surge e é am pliada a expensas de unidades de produção pré-
gurados politicamente, privilégios de transporte, a aquisição e -capitalista. Essa estrutura de produção tem suas precondições
a exploração de terras, politicam ente deteminadas, bem como o legais, políticas e ideológicas, mas não obstante é historicamente
trabalho compulsório. O capitalismo av en tureiro refere-se a in singular. Baseia-se na organização do trabalho, anteriormente
cursões carismaticam ente realizadas contra países estrangeiros, livre, e na organização da fábrica fixa. O dono da fábrica
em busca de tesouros, que podiam ser arrancados dos templos, opera com risco próprio e produz mercadorias para mercados
túmulos, m inas, ou dos cofres dos príncipes conquistados, ou competitivos e anônimos. Suas operações são habitualm ente con
podiam ser obtidos como tributos sobre ornamentos e jóias da troladas racionalmente por um constante equilíbrio de custos e
população. O período heróico da conquista do H em isfério Oci rendimentos. Todos os elementos, inclusive seus próprios ser
dental pelos espanhóis, as empresas de além -m ar das cidades- viços em presariais, são contabilizados como itens no equilíbrio
-Estados italianas durante a Idade M édia, a L ig a H anseática e os de suas contas.
aventureiros mercadores da Inglaterra são exemplos históricos Como M arx, insiste em localizar a unidade institucional bá
destacados. Embora o capitalismo aventureiro ressalte a natu sica do moderno capitalismo na produção, ao invés de localizá-la
reza esporádica e carismática dessas operações, a expressão capi no comércio ou finanças. U m sistema de capitalism o cresce
talismo predatório ressalta os objetivos buscados. dessas unidades de produção e atravessa várias fases históricas;
Em certos contextos, W eber empenha-se em distinguir o em sua etapa m ais elevada, caracteriza-se pela separação da
capitalista extraordinário das atividades rotineiras do empresário propriedade e adm inistração e o financiamento de empresas pelas
vendas, ao público, de quotas nos possíveis lucros das operações
cotidiano; no primeiro caso, ele fala dos capitalistas carismáticos
futuras. W eber aceita, para essa fase final do capitalismo, a
como “super-homens econômicos”. T ais figuras surgiram em
expressão de Sombart, “A lto Capitalism o”.
muitos contextos históricos: no novo império do Egito antigo,
na velha C hina, índ ia, na A ntigüidade ocidental, no apagar Ao contrário de M arx, porém, W eber não se interessa em
da Idade M édia, bem como na A m érica do século X IX. Os investigar os problemas da dinâm ica capitalista. O problema
F ugger e Rockefeller, Mellon e Cecil Rhodes são exemplos. A do ciclo econômico e da crise capitalista, essenciais à caracteriza
88 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 89

ção que M arx faz do capitalismo como “um a anarquia da pro proletária faz do homem um proletário, não a m áquina, não
dução”, pouca importância tem na análise de W eber. Essa a mecanização do trabalho, não a dependência salarial do modo
omissão influi na concepção da racionalidade na sociedade mo capitalista de produção”. 21
derna, tal como W eber a formula. P ara M arx, os elementos M ax W eber não se inclina a perm itir que o homem supere
racionais da sociedade eram os meios que serviam a elementos destino econômico difícil pela acrobacia da vontade de poder.
incontrolados e irracionais, aos quais, porém, se opunha cada vez As situações de classe são determ inadas pelas relações do m er
mais. Para W eber, o capitalismo é a forma mais elevada de cado; em últim a análise, remontam às diferenças entre os que
operações racionais, implem entada, não obstante, por duas irra-
possuem propriedades e os que não as possuem. Concorda,
cionalidades: os resquícios de um a atitude de fundamento reli assim, com a escola objetiva na ênfase sobre a ordem econômica
gioso, o impulso irracional pelo trabalho contínuo; e o socialismo e a distinção rigorosa entre posições caracterizadas objetivamente
moderno, visto como a “utopia” daqueles que não podem to e uma variedade de atitudes inconstantes e subjetivas que podem
lerar o que lhes parece ser a injustiça insensata de uma ordem relacionar-se com essas posições.
econômica que os torna dependentes dos empresários possuido
res de propriedades. Consciente das pressões institucionais do A o localizar o problema da classe no mercado e nos fluxos
capitalismo moderno, W eber, a essa altura, está pronto a utili de renda e propriedade, W eber se volta para a produção e sua
zar a categoria das totalidades sociais como “estruturas operantes”. unidade moderna, a empresa capitalista. Dispõe-se a reconhecer
U m a vez na sela, o capitalismo deixa de precisar de motivos o que deve a M arx pela sua percepção da natureza histórica da
religiosos. moderna estrutura de classes. Somente quando opiniões subjeti
vas podem ser atribuídas a homens num a situação objetiva de
N a teoria sociológica, um a teoria “subjetiva” da estratifi
classe, fala W eber da “consciência de classe” ; e quando focaliza
cação do capitalismo opôs-se, com freqüência, à teoria “obje
problemas de “convenções”, “estilos de vida”, de atitudes ocupa-
tiva”. Os economistas clássicos ingleses, destacadamente R i
cionais, prefere falar de prestígios ou de “grupos de statu s".
cardo, bem como M arx, representavam a teoria objetiva, defi
Esses últimos problemas, decerto, relacionam-se com o consumo
nindo “classe” em termos de rendas tipicamente repetidas: ar
ue, na verdade, depende da renda derivada da produção ou
rendamento, lucro, salário. Assim , para eles, o dono de terras,
o empresário e o trabalhador constituem a estrutura de classes.
3 a propriedade, mas que vai além dessa esfera. Estabelecendo
um a distinção clara entre classe e status, e diferenciando entre
Não importa se esses agentes se consideram bretões, monta
tipos de classe e tipos de grupos de status, W eber pode tornar
nheses, ou qualquer outra coisa; suas posições de classe são
m ais claros os problemas de estratificação, em proporções que
rigorosamente localizadas pelo seu lugar e função dentro da
até agora não foram superadas. *
ordem econômica objetiva. M arx, aderindo a essa tradição,
acrescentou um aspecto histórico ressaltando a natureza espe
cificamente moderna das classes burguesas e proletárias. 6. As Co n d iç õ e s d e L ibe r d a d e e a Ima g e m do H o me m

As teorias subjetivas de classe, por sua vez, deram grande


ênfase aos traços psiquiátricos dos “membros das classes”. Os O hábito da moderna in telligen tsia política de disfar
defensores dessa teoria subjetiva mostraram-se ansiosos em falar çar as aspirações de seus partidos sob a necessidade histórica, e
do “quarto estado” como se este surgisse lado a lado com os de apresentar tais formulações com a dram aticidade da “neces
estadas m ais antigos. Concepções de respeitabilidade e honra sidade férrea”, é característica do conservantismo como também
social, elementos descritivos de opiniões políticas e religiosas, do marxismo. Em ambos os casos o conceito de liberdade se
e sentimentos ligados aos modos de vida local e regional subs gue-se ao "Fat a n olentem trah un t, vólentem ducun t”. (O s fados
tituem a abordagem rigorosamente teórica dos economistas. arrastam os que não querem e levam os que querem ) de H egel.
Coube a M oeller van den Bruck, autor de O T erceiro Reich ,
levar a teoria subjetiva de classes ao absurdo: “Ele é um pro • Ver capitulo VII, "Classe, Estamento, P artid o ”, p ara a sua
letário que deseja considerar-se como proletário. A consciência análise.
90 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
ORIENTAÇÕES INTELECTUAIS 91

toda parte está pronta a casa para uma nova servidão. Es


N a direita política, o profeta do juízo final destacado foi Os- pera, apenas, que o ritm o do “progresso” econômico técnico
w ald Spengler, cuja construção morfológica dos ciclos culturais se reduza e que o arrendam ento triunfe sôbre o lucro. Essa
foi criticada por W eber como intuições arbitrárias que exploram últim a vitória, juntam ente com a exaustão do que resta de solo
livre e de mercado livre, tornará “dóceis” as massas. O
a literatu ra científica com finalidades não-científicas. homem se m udará para a casa da servidão. E, ao mesmo tem
O legado e o impulso liberais de W eber im pediram -no po, a crescente complexidade da economia, a governamentali-
zação parcial das atividades econômicas, a expansão territorial
de tomar um a posição determ inista. Ele julgava que a liber da população — esses processos criam um trabalho sempre
dade consiste não em realizar supostas necessidades históricas, novo para os servidores, uma especialização sempre nova de
mas em escolhas deliberadas entre alternativos abertas. O futuro funções, e o preparo e administração vocacional especializa
é, assim, um campo de estratégia e não um a simples repetição dos. Tudo isso significa casta.
ou desdobramento do passado. Não obstante, as possibilidades do Os trabalhadores americanos que foram contra a “Reforma
futuro não são infinitas, nem são como o barro às mãos do do Serviço Público” sabiam o que estavam fazendo. Preferiam
ser governados pelos p a rvenus de m oral duvidosa do que por
homem de vontade. uma casta de mandarins. Mas seu protesto foi em vão.
W eber viu a vida social como um politeísmo de valores em F rente a tudo isso, os que temem constantem ente que no
combate mútuo, sendo possível a opção entre esses valores. * mundo do futuro democracia e individualismo em demasia
O indivíduo que toma decisão, que é m oralm ente responsável é, possam existir, e muito pouca autoridade, aristocracia, estima
pelo cargo, ou coisas semelhantes, devem acalmar-se. Já se
naturalm ente, um tipo de personalidade especificamente moderna tom aram m uitas medidas para fazer que as árvores do indi
e ocidental. Esse homem pode ser m ais do que um a simples vidualismo democrático não subam até o céu. De acordo
roda na sua engrenagem ocupacional. Se for responsável, terá com a experiência, a História faz renascer, incessantemente,
de tomar decisões inform adas. Para W eber, o conhecimento as aristocracias e autoridades; e quem as considere necessá
rias, p ara si, ou p ara “o povo", pode apegar-se a elas. Se
sociológico é de um tipo que a com plexidade da civilização apenas as condições m ateriais e as constelações de interesse
m oderna exige de quem toma posições inteligentes em questões direta ou indiretam ente criadas por elas tivessem importância,
públicas. Essas decisões responsáveis estão tão afastadas do fa então qualquer reflexão sóbria nos convenceria de que todos
natism o emocional dos seguidores dos dem agogos quanto da so os indícios econômicos apontam na direção da m aior servidão.
fisticação cínica do esnobe ou a pretensiosidade blasé do filisteu. É totalm ente ridículo ver qualquer ligação entre o alto
capitalismo de hoje — como está sendo im portado pela Rússia
Como não se dispunha a ver os burocratas como precursores e como existe na América — e a democracia ou a liberdade,
de liberdade, W eber sentia que o campo de liberdade responsá em qualquer sentido dessas palavras. Não obstante, tal capi
vel se estava reduzindo. V iu-se, quanto a isso, como um liberal talismo é um resultado inevitável do nosso desenvolvimento
econômico. A questão é: como são possíveis a liberdade e a
antiquado, sem temer cair na defensiva ou nadar contra a cor
democracia, a longo prazo, sob o domínio de um capitalismo
rente. O trecho seguinte, que reproduzim os na totalidade, tal altam ente desenvolvido? A liberdade e a democracia só são
vez ilustre os receios de W eber, bem como a sua afirm ação das possíveis quando a vontade resoluta de uma nação, de não
condições da liberdade moderna. Foi escrito em 1906: p erm itir que a governem como carneiros, surge prem atura
mente. Somos “individualistas” e partidários das instituições
As oportunidades de dem ocracia e individualism o parece “dem ocráticas”, “contra a corrente” das constelações m ate
riam hoje m uito más se tivéssemos de confiar nos efeitos riais. Quem desejar acom panhar um a tendência evolutiva
certos dos interesses m ateriais para o seu desenvolvimento. deve ab rir mão desses ideais antiquados o mais depressa
Pois o desenvolvim ento dos interesses m ateriais aponta, o mais possível. A origem histórica da liberdade m oderna teve certas
claram ente possível, na direção oposta: no “feudalismo b e condições prelim inares excepcionais que jam ais voltarão a re
névolo” americano, nas chamadas “instituições de bem -estar petir-se. Vamos enum erar as mais importantes:
social” da Alemanha, na constituição fabril da R ú s sia ... em Prim eira, as expansões de além-mar. Nos exércitos de
Cromwell, na assembléia constituinte francesa, na totalidade
de nossa vida econômica, ainda hoje, essa brisa que vem do
* V er o capítulo V, “A Ciência como Vocação”, e o capítulo XIII. outro lado do m ar é sen tid a. . . mas não há nenhum continente
“Rejeições Religiosas do Mundo e Suas D ireções”.
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novo à nossa disposiçãq. Irresistivelm ente, o ponto de g ra Ele concebia o homem individual como um composto de
vidade da população da civilização ocidental avança no sentido características gerais, derivadas das instituições sociais; o ind i
das grandes áreas interiores do continente norte-am ericano,
de um lado, e da Rússia, de outro. Isto já aconteceu antes,
víduo como um ator de papéis sociais. Isto, porém, só é válido
em fins da Antigüidade. As monótonas planícies da Rússia para os homens na m edida em que não transcendem as rotinas
e dos Estados Unidos facilitam o esquematismo. das instituições cotidianas. O conceito de carisma serve para
Segundo, a singularidade da estrutura econômica e social sublinhar a opinião de W eber de que os homens em toda parte
do início da época capitalista na Europa ocidental. não devem ser vistos apenas como produtos sociais.
Terceira, a conquista da vida pela ciência, "a auto-rea- Assim como para George H . M ead o “Eu” está habitual
lização do espírito”. A construção racional da vida institucio mente em tensão com os papéis sociais oriundos das expectativas
nal, sem dúvida depois de te r destruído numerosos "valores”, de terceiros, assim para W eber a qualidade potencialmente caris
hoje, pelo menos em princípio, cum priu sua tarefa. Na esteira
da padronização da produção, tornou uniform e o modo de vida m ática do homem perm anece em tensão com as exigências ex
exterior. Nas atuais condições da economia, o impacto dessa teriores da vida institucional. Para M ead, a tensão entre o eu
padronização é universal. Hoje, a ciência já não cria perso e as exigências dos papéis é resolvida pela reação criadora do
nalidades universais. gênio. P ara W eber, a reação do líder carismático à desgraça
Finalm ente, certas concepções dos valores ideais, surgidas unifica as exigências exteriores e os impulsos interiores. N um
de um mundo de idéias religiosas definidas, m arcaram a sentido amplo, podemos dizer que a exterioridade se identifica
peculiaridade ética e os valores culturais do homem moderno.
E o fizeram trabalhando com numerosas constelações políticas,
com o constrangimento, e o carisma com a liberdade. A concep
excepcionais em si. e com as precondições m ateriais do início ção que W eber tem da liberdade hum ana partilha, assim, da
do capitalismo. Basta-nos perguntar se qualquer evolução tradição hum anista do liberalismo, que se interessa pela liber
m aterial ou mesmo qualquer evolução do alto capitalismo de dade do indivíduo como criador de instituições livres. Tendo
hoje poderia m anter, ou criar novam ente, essas condições his incorporado a crítica m arxista do capitalismo, ele vê o sistema
tóricas singulares de liberdade e democracia a fim de conhecer
a resposta. Nenhuma sombra de probabilidade fala em favor econômico como um aparato compulsivo, e não como a sede
do fato de que um a “socialização” econômica, como tal, deve da liberdade.
abrigar em seu seio o desenvolvimento de personalidades in Para W eber, o capitalism o é a m aterialização da impessoa
teriorm ente “livres” ou ideais “altru ístas”. 22
lidade racional; a busca de liberdade identifica-se com o senti
mento irracional e os aspectos privados. A liberdade é, na m e
O pessimismo defensivo quanto ao futuro da liberdade, evi lhor das hipóteses, um estím ulo ao amor da cam aradagem e à
denciado neste trecho e que constitui um dos temas principais experiência catártica da arte como um a fuga, dentro deste mesmo
da obra de W eber, é reforçado pelo destino que ele vê para o mundo, das rotinas institucionais. É privilégio das classes abas
carisma no mundo moderno. Embora apresente um a definição tadas e educadas: é a liberdade sem igualdade.
bastante nom inalista do carisma, é claro que o conceito lhe serve Nessa concepção da liberdade como um fenômeno desen
de veiculo metafísico da liberdade do homem na história. Que a volvido historicam ente, hoje na defensiva contra o capitalismo
liberdade encerrada no carism a está condenada é evidente na e a burocracia, W eber representa o liberalism o hum anista e cultural
sua observação nostalgica sobre a Revolução Francesa. Depois de preferência ao liberalism o econômico. A tradição hum anista
de estabelecer e classificar as liberdades modernas, W eber indica na qual Schiller escreve que “D er M ensch ist jreigesch affen , ist
que tais liberdades encontram sua justificação final no conceito frei, un d w ürd' er in k etten geboreti”, se evidencia na preocupa
do direito natural da razão; e então: “A glorificação carismática ção de W eber para com o declínio do homem culto como per
da ‘razão’ encontrou sua expressão característica na apoteose de sonalidade completa, em favor do especialista técnico, que, do
Robespierre. É a últim a forma assum ida pelo carisma em sua ponto de vista hum ano, é um aleijado. * A própria obra de
longa existência de destinos variados e ricos”. 23 A preocupação
de W eber com a liberdade não foi apenas histórica — influen
ciou sua im agem do homem contemporâneo como indivíduo. Ver o capítulo VIII, “Burocracia".
IV. A Política como Vocação

E s t a c o n f e r e n c i a , que pronuncio por solicitação vossa, irá ne


cessariamente decepcionar, sob vários aspectos. Esperais, natu
ralmente, que eu tome um a posição em relação aos problemas
concretos do momento. M as isto só ocorrerá de modo form al e
no fim , quando apresentarei certas questões relacionadas com a
significação da ação política na totalidade do modo de vida. N a
conferência de hoje, todas as questões relacionadas com a diretriz
e o conteúdo que devemos dar à nossa atividade política devem
ser elim inadas, pois nada têm a ver com a questão geral do que
significa a política como vocação e o que ela pode significar.
Passemos, agora, ao nosso tema.
O que entendemos por política? O conceito é extremamente
amplo e compreende qualquer tipo de liderança in depen den te
em ação. Fala-se da política financeira dos bancos, da política
de descontos do Reichsbank, da política grevista de um sindicato;
pode-se falar da política educacional de um a m unicipalidade,
da política do presidente de um a associação voluntária e, fin al
mente, até mesmo da política de um a esposa prudente que
busca orientar o marido. Hoje, nossas reflexões não se baseiam,
decerto, num conceito tão amplo. Queremos compreender como
política apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de
uma associação política, e, daí hoje, de um Estado.
Mas o que é um a associação “política”, do ponto de vista
sociológico? O que é um “Estado” ? Sociologicamente, o Estado
não pode ser definido em termos de seus fins. D ificilm ente haverá
qualquer tarefa que um a associação política não tenha tomado
em suas mãos, e não há tarefa que se possa dizer que tenha

“Politik als B eru f”, G esa m m elte P olitische S c h rifte n (Mu


nique, 1921), pp. 396-450. O riginalm ente, discurso pronunciado na
Universidade de Munique, 1918, publicado em 1919 por D uncker &
Humblodt, Munique.
A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 99
98 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

sido sempre, exclusivamente e peculiarmente, das associações de da como leg ítim a). P ara que o Estado exista, os dominados
signadas como políticas: hoje o Estado, ou, historicamente, as asso devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder.
ciações que foram predecessoras do Estado moderno. Em últim a Quando e por que os homens obedecem? Sobre que justificação
análise, só podemos definir o Estado moderno sociologicamente íntim a e sobre que meios exteriores repousa esse dom ínio?
em termos dos m eios específicos peculiares a ele, como peculiares Para começar, em princípio, há três justificações interiores,
a toda associação política, ou seja, o uso da força física. e portanto legitim ações, básicas do domínio.
“Todo Estado se fundam enta na força”, disse Trotski em Prim eira, a autoridade do “ontem eterno”, isto é, dos m ores
Brest-Litovsk. Isso é realm ente certo. Se não existissem insti santificados pelo reconhecimento inim aginavelm ente antigo e da
tuições sociais que conhecessem o uso da violência, então o con orientação habitual para o conformismo. É o domínio “tradicio
ceito de “Estado” seria elim inado, e surgiria um a situação que nal” exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrim onial de outrora.
poderíamos designar como “anarquia”, no sentido específico da H a a autoridade do dom da graça (carism a) extraordinário
palavra. É claro que a força não é, certamente, o meio normal, e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiança pessoal
nem o único, do Estado — ninguém o afirm a — mas um meio
na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança indi
específico ao Estado. Hoje, as relações entre o Estado e a violên vidual. É o domínio “carismático”, exercido pelo profeta ou —
cia são especialmente íntim as. No passado, as instituições mais
no campo da política — pelo senhor de guerra eleito, pelo gover
variadas — a partir do clã — conheceram o uso da força física
nante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do partido
como perfeitamente normal. Hoje, porém, temos de dizer que o político.
Estado é um a comunidade hum ana que pretende, com êxito, o
m on opólio do uso legítim o da força física dentro de um determ i Finalm ente, há o domínio em virtude da “legalidade”, em
nado território. Note-se que territorio e um a das características virtude da fé na validade do estatuto legal e da “competência”
do Estado. Especificamente, no momento presente, o direito de funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso,
usar a força física é atribuído a outras instituições ou pessoas espera-se obediência no cum primento das obrigações estatutárias.
apenas na m edida em que o Estado o perm ite. O Estado é^ con É o domínio exercido pelo moderno “servidor do Estado” e por
siderado como a única fonte do “direito” de usar a violência. todos os portadores do poder que, sob esse aspecto, a ele se
D aí “política”, para nós, significar a participação no poder ou a assemelham.
luta para influir na distribuição de poder, seja entre Estados ou Compreende-se que, na realidade, a obediência é determ inada
entre grupos dentro de um Estado. pelos motivos bastante fortes do medo e esperança — medo da
Isto corresponde essencialmente ao uso comum. Quando se vingança dos poderes mágicos do detentor do poder, esperança
afirm a que um a questão é “política”, quando um ministro do de recompensa neste m undo ou no outro — e, além de tudo isso,
Gabinete ou um a autoridade é considerado como “político’ , ou pelos mais variados interesses. Vamos falar disso.' M as ao pro
quando um a decisão é tida como “politicam ente” determ inada, o curar as legitim ações” dessa obediência, encontramos esses tres
que se está querendo dizer, sempre, é que os interesses na dis tipos “puros” : “tradicional”, “carismático” e “legal”.
tribuição, manutenção ou transferência do poder são decisivos Essas concepções de legitim idade e suas justificações íntim as
para a resposta às questões e para se determ inar a decisão ou a são de grande significação para a estrutura do domínio. Na
esfera de atividade da autoridade. Quem participa ativamente verdade, os tipos puros raram ente se encontram, na realidade.
da política luta pelo poder, quer como um meio de servir a M as hoje não podemos tratar de variantes, transições e com bina
outros objetivos, ideais ou egoístas, quer como o “poder pelo po ções altam ente complexas desses tipos puros, cujos problemas
der”, ou seja, a fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pertencem a ciência política”. Interessamo-nos, aqui, principal
pelo poder. mente pelo segundo desses tipos: domínio em virtude da dedica-
Como as instituições políticas que o precederam historica Ção, dos que obedecem, ao “carism a” exclusivam ente pessoal do
mente, o Estado é um a relação de homens dominando homens, líder . Pois essa e a raiz de um a vocação em sua expressão mais
relação m antida por meio da violência legítim a (isto e, considera elevada.
100 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 101
A dedicação ao carisma do profeta, ou ao líder na guerra, saio, as prebendas das autoridades patrim oniais, os salários dos
ou ao grande demagogo na ecclesia ou no parlamento, significa modernos servidores públicos, a honra dos cavaleiros, os privi
que o líder é pessoalmente reconhecido como o líder inerentemente légios dos estados e a honra do servidor público compreendem
“chamado” dos homeos. Os homens não o obedecem em virtude seus respectivos proventos. O temor de perdê-los é a base final
da tradição ou lei, mas porque acreditam nele. Quando é mais e decisiva para a solidariedade existente entre o quadro executivo
do que um oportunista lim itado e presunçoso, o líder vive para e o detentor do poder. H á honra e pilhagem para os seguidores,
sua causa e “luta pela sua obra”. 1 A dedicação de seus discípulos, na guerra; para o séquito do demagogo, há os “despojos” — ou
seus seguidores, seus am igas pessoais do partido é orientada para seja, a exploração dos dominados, através do monopólio dos
a sua pessoa e para suas qualidades. cargos — e ha lucros e prêmios à vaidade, politicam ente deter
A liderança carismática surgiu em todos os lugares e em minados. Todas essas recompensas são também derivadas do
todas as épocas históricas. M ais destacadamente no passado, domínio exercido pelo líder carismático.
surgiu nas duas figuras do mágico e profeta, de um lado, e do Para m anter um domínio pela força são necessários certos
senhor de guerra eleito, o líder de grupo e condottiere, do outro. bens m ateriais, tal como ocorre com um a organização econômica.
A liderança política, na forma do “dem agogo” livre que nasceu no Todos os Estadospodem ser classificados segundo o fato de se
solo da cidade-Estado, é de maior interesse para nós. Como a basearem no princípio de que os próprios quadros são don os dos
cidade-Estado, o demagogo é peculiar ao Oriente, especialmente meios adm inistrativos, ou de que os quadros são “separados” desses
à cultura m editerrânica. A lém disso, a liderança política na meios de adm inistração. Essa distinção é válida no mesmo sentido
forma do “líder partidário” parlam entar cresceu no solo do Es em que dizemos hoje que o empregado assalariado e o proletá
tado constitucional, que também só é indígena do Ocidente. rio na empresa capitalista estão “separados” dos meios m ateriais
Esses políticos de “vocação”, no sentido mais autêntico da de produção. O ' detentor do poder deve ser capaz de contar
palavra, são em toda parte as únicas figuras decisivas nas cor com a obediência dos membros do quadro, autoridades, ou quem
rentes cruzadas da luta política pelo poder. Os meios auxilia quer que seja. Os meios adm inistrativos podem consistir em
res à sua disposição também são altam ente decisivos. Como os dinheiro, edifícios, m aterial bélico, veículos, cavalos e muitas
poderes politicam ente dominantes conseguem manter seu domí outras coisas. T udo depende de o detentor do poder d irigir e
nio? A questão é válida para qualquer tipo de domínio, portanto organizar, ou não, a administração, embora delegando poder
também para o domínio político em todas as suas formas, tradi executivo a servidores pessoais, autoridades contratadas, ou favo
cionais, legais e carismáticas. ritos e pessoas de confiança, que não são os donos, isto é, que
não usam os meios m ateriais de adm inistração ao seu talante, mas
O domínio organizado, que dem anda a administração con são dirigidos pelo senhor. A distinção é observada em todas as
tínua, exige que a conduta hum ana seja condicionada à obedi organizações adm inistrativas do passado.
ência para com os senhores que pretendem ser os portadores do
poder legítim o. Por outro lado, em virtude da obediência, o Essas associações políticas nas quais os meios m ateriais de
domínio organizado exige o controle dos bens m ateriais que em adm inistração são controlados autonomamente, no todo ou em
determinado caso são necessários para o uso da violência física. parte, pelo quadro adm inistrativo dependente, podem ser cham a
Assim, o domínio organizado exige o controle do quadro de das associações organizadas em " estam en tos”. O vassalo na asso
pessoal executivo e os implementos m ateriais da administração. ciação feudal, por exemplo, pagava do seu próprio bolso a adm i
nistração e judicatura do distrito que lhe era entregue como feu
O quadro adm inistrativo, que representa externamente a do. Ele próprio fornecia seu equipamento e provisões de guerras,
organização do domínio político,* é, certamente, como qualquer e 0 ..™csm0 faziam seus subvassalos. É claro que isto tinha con-
outra organização, lim itado pela obediência ao detentor do poder seqüencias para o poderio do senhor, que só se baseava num a
e não apenas pelo conceito de legitim idade, do qual falamos relação de fé pessoal e no fato de que a legitim idade de sua
acima. H á dois outros meios atraentes para os interesses pessoais: possessão do feudo e a honra social do vassalo eram derivadas
a recompensa material e a honraria social. Os feudos de um vas- do senhor geral.
102 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 103

Em toda parte, porém, remontando até as m ais antigas forma A revolução [d a A lem anha, 1918] realizou, pelo menos na
ções políticas, encontramos também o próprio senhor dirigindo medida em que os líderes tom aram o lugar das autoridades es
a adm inistração. Ele busca tom á-la em suas mãos tornando os tatuídas, isto: os líderes, pela usurpação ou eleição, consegui
homens pessoalmente dependentes dele: escravos, agregados do
ram o controle do quadro político e do aparato dos bens m ate
mésticos, atendentes, “favoritos” pessoais e prebendários enfeuda riais; e deduzem sua legitim idade — não im porta com que
dos em dinheiro ou in n atura aos seus armazéns. Busca cobrir direito — da vontade dos governados. Se os líderes, à base deste
as despesas com seus próprios recursos, com a receita de seu êxito pelo menos evidente, têm o direito de m anter a esperança
patrim ônio; e busca criar um exército que seja dependente dele de realizar também a expropriação dentro das empresas capita
pessoalmente, porque é equipado e abastecido de seus celeiros, listas é questão diferente. A direção das empresas capitalistas,
arm azéns e arsenais. N a associação dos “estamentos”, o senhor apesar de analogias de grande alcance, segue leis diferentes das
domina com a ajuda de um a “aristocracia” autônoma e, portanto leis de adm inistração política.
com ela divide seu domínio. O senhor que adm inistra pessoal
mente é apoiado seja pelos membros de sua Casa ou pelos ple Não tomamos posição, aqui, sobre essa questão. Descrevo
beus. Êstes são camadas sem propriedades que não têm honra apenas o aspecto puramente con ceptual de nossa consideração:
social própria; m aterialmente, estão completamente presos a ele o Estado moderno é um a associação compulsória que organiza a
dominação. Teve êxito ao buscar monopolizar o uso legítim o da
e não encontram apoio em nenhum poder rival próprio. Todas
fôrça física como meio de domínio dentro de um território. Com
as formas de domínio patriarcal e patrim onial, despotismo sul-
essa finalidade, o Estado combinou os meios m ateriais de orga
tanista e estados burocráticos pertencem a esse últim o tipo. A nização nas mãos de seus líderes, e expropriou todos os funcio
ordem estatal burocrática é especialmente im portante: em seu nários autônomos dos estamentos, que antes controlavam esses
aspecto mais racional, ela é precisamente característica do Estado meios por direito próprio. O Estado tomou-lhes as posições e
moderno. agora se coloca no lugar m ais elevado.
Em toda parte, o desenvolvimento do Estado moderno é D urante esse processo de expropriação política, ocorrido com
iniciado através da ação do príncipe. Ele abre o caminho para variado êxito em todos os países da T erra, surgiram os “políticos
a expropriação dos portadores autônomos e “privados” do poder profissionais”, noutro sentido. Apareceram prim eiro a serviço
executivo que estão ao seu lado, daqueles que possuem meios de de um príncipe. E ram homens que, ao contrário do líder ca
adm inistração próprios, meios de guerra e organização financeira, rismático, não queriam ser senhores, m as que se colocavam a
assim como os bens politicamente usáveis de todos os tipos. A serviço dos senhores políticos. N a lu ta da expropriação, êles se
totalidade do processo é um paralelo completo ao desenvolvimento colocavam à disposição dos príncipes e, adm inistrando-lhes as
da empresa capitalista através da expropriação gradativa dos pro políticas, ganhavam , de um lado, a vida e, do outro, um conteúdo
dutores independentes. Por fim , o Estado moderno controla os de vida ideal. E, ainda nesse caso, som en te no Ocidente encon
meios totais de organização política, que na realidade se agrupam tramos esse tipo de político profissional a serviço de outros poderes
sob um chefe único. N enhum a autoridade isolada possui, pes além do príncipe. No passado, foram o m ais im portante instrum en
soalmente, o dinheiro que paga, ou os edifícios, armazéns, ferra to do poder do príncipe e seu instrumento dc expropriação política.
mentas e m áquinas de guerra que controla. No “Estado” con Antes de discutirmos os “políticos profissionais” cm deta
temporâneo — e isso é essencial ao conceito de Estado — a “sepa lhe, vamos esclarecer em todos os seus aspectos o estado de
ração” entre o quadro adm inistrativo, os funcionários adm i coisas apresentado pela sua existência. A política, tal como as
nistrativos e os trabalhadores, em relação aos meios m ateriais de iniciativas econômicas, pode ser um a ocupação subsidiária ou
organização adm inistrativa, é completa. A qu i começa a maior um a vocação. O homem pode dedicar-se a política, e portanto
parte da evolução moderna e vemos com nossos próprios olhos buscar influir na distribuição do poder dentro de estruturas políti
a tentativa de estabelecer a expropriação desse expropriador dos cas e entre elas, como um político “ocasional”. Somos todos polí
meios políticos e, portanto, do poder político. ticos “ocasionais” quando votamos ou consumamos um a expressão
de intenção semelhante, como aplaudir ou protestar num comício
104 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 105
“político”, ou ao pronunciar um discurso “político”, ctc. Toda santificado religiosam ente) como fonte exclusiva de toda autori
a relação de muitas pessoas para com a política se lim ita a isso. dade estava ausente. Essas comunidades têm sua sede histórica
A política como atividade secundária é praticada hoje por todos no Ocidente. Seu núcleo foi a cidade como órgão político, a
os agentes partidários e chefes de associações políticas voluntárias forma pela qual a cidade surgiu primeiro na área cultural me-
que, em geral, só são politicamente atuantes no caso de neces diterrânica. Em todos esses casos, como eram os políticos que
sidade e para quem a política não é, m aterial ou idealmente, fizeram da política a sua principal vocação?
“sua vida”, em primeiro lugar. O mesmo se aplica aos m em
bros dos conselhos estatais e órgãos deliberativos semelhantes H á dois modos principais pelos quais alguém pode fazer
que funcionam apenas quando convocados. Tam bém se aplica da política a sua vocação: viver “p ara” a política, ou viver “da”
a camadas bastante am plas dos parlam entares que só são poli política. Esse contraste não é, de forma algum a, exclusivo.
ticamente atuantes durante as sessões. No passado, encontra Em geral, o homem faz as duas coisas, pelo menos em pensa
vam-se essas camadas especialmente entre os estamentos. Os mento e, certamente, também a ambas na prática. Quem vive
proprietários dos implementos m ilitares, ou de bens importantes “para” a política faz dela a sua vida, num sentido interior.
para a administração, ou de prerrogativas pessoais, podem ser Desfruta a posse pura e simples do poder que exerce, ou a li
chamados “estamentos”. U m a grande parte deles estava longe menta seu equilíbrio interior, seu sentimento íntim o, pela cons
de dedicar a vida, no todo ou de forma simplesmente preferen ciência de que sua vida tem sen tido a serviço de um a “causa”.
cial, ou m ais do que ocasionalmente, ao serviço da política. Nesse sentido interno, todo homem sincero que vive para um a
Êles exploravam, antes, suas prerrogativas com o interesse de causa também vive dessa causa. A distinção, no caso, refere-se
obter um a renda ou mesmo um lucro; e só se tornavam ativos a um aspecto m uito m ais substancial da questão, ou seja, o
no serviço das associações políticas quando o senhor dos que econômico. Quem luta para fazer da política um a fon te de
lhes eram iguais em status assim o exigia. Não havia diferença ren da permanente, vive “da” política como vocação, ao passo
no caso de algum a das forças auxiliares que o príncipe lançava que quem não age assim vive “para” a política. Sob o dom í
na luta pela criação de um a organização política que ficasse nio da ordem da propriedade privada, algum as — se quiserem
exclusivamente à sua disposição. Foi essa a natureza dos R ate — precondições m uito triviais devem existir, para que um a
von H au s au s [conselheiros] e, ainda m ais remotamente, de pessoa possa viver “para” a política, nesse sentido econômico. Em
parte considerável de conselheiros que se reuniam na Curta e condições normais, o político deve ser economicamente indepen
outros órgãos deliberativos dos príncipes. M as essas forças me dente da renda que a política lhe pode proporcionar. Isto sign i
ramente ocasionais, empenhadas na política, não eram natural fica, m uito simplesmente, que o político deve ser rico ou deve
mente suficientes ao príncipe. Êle buscava, necessariamente, ter um a posição pessoal na vida que lhe proporcione um a renda
criar um quadro de colaboradores dedicados, total e exclusiva suficiente.
mente, a seu serviço; daí, a fazer disso sua principal vocação. Isso ocorre pelo menos em circunstâncias normais. O sé
A estrutura da nascente organização política dinástica, e não quito do senhor de guerra preocupa-se tão pouco com as con
apenas isso, mas também toda a articulação da cultura, dependia, dições de um a economia norm al quanto a m ultidão das ruas
em proporções consideráveis, do problema de onde o príncipe que segue o herói revolucionário. Ambos vivem dos espólios,
recrutava agentes. do saque, dos confiscos, contribuições e a imposição de meio
Era necessário também um quadro para as associações p o lí circulante vil e compulsório, o que em essência equivale à mesma
ticas cujos membros se constituíam em comunas politicamente coisa. M as, necessariamente, tais fenômenos são extraordinários.
“livres” (assim ditas) sob a abolição completa, ou a restrição N a vida econômica cotidiana, somente a riqueza pode tornar o
bastante acentuada, do poderprincipesco. homem economicamente independente. M as isso apenas não
basta. O político profissional deve ser também economicamente
Eram “livres” não no sentido moderno de liberdade em re “dispensável”, isto é, sua renda não deve depender do fato de
lação ao domínio pela força, m as no sentido de que o poder que ele coloca, constante e pessoalmente, sua capacidade e pen
do príncipe legitim ado pela tradição (n a m aioria dos casos, samento totalmente, ou pelo menos predom inantemente, a servi
106 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 107

ço da aquisição econômica. D a forma m ais incondicional, o problema”. N ada seria mais incorreto. Segundo toda a expe
homem que vive de rendimentos é dispensável nesse sentido. riência, o zelo pela “segurança” econômica de sua existência é
Portanto, ele é o homem que recebe um a renda para a qual não consciente, ou inconscientemente, um ponto capital em toda a
trabalhou. Pode ser o senhor territorial do passado ou o grande orientação de vida do homem rico. O idealismo político descui
dono de terras e aristocrata do presente, que recebe renda delas. dado e sem reservas só se encontra, se não exclusivamente pelo
N a A ntigüidade e na Idade M édia os que recebiam rendas dos menos predominantemente, entre as camadas que, em virtude de
escravos ou servos, ou nos tempos modernos, rendas de ações sua carência de propriedades, estão completamente fora dos cír
ou títulos ou fontes semelhantes — são essas as pessoas que culos interessados na manutenção da ordem econômica de uma
vivem de rendas. determ inada sociedade. Isso é válido especialmente para as épocas
Nem o trabalhador nem o empresário — e isso deve ser extraordinárias e, portanto, revolucionárias. U m recrutamento
bem notado — especialmente o empresário moderno, de grande não-plutocrático de políticos interessados, de liderança e seguido
escala, é economicamente dispensável, nesse sentido. Pois é pre res, está conjugado com a precondição subentendida de que um a
cisamente o empresário que está ligado à sua empresa, sendo por renda regular e suficiente será proporcionada aos que se ocupam
isso indispensável. Isso se aplica ao empresário na indústria, ,d a política.
muito mais do que na agricultura, considerando o caráter sazonal A política pode ser conduzida “honorificamente” e portanto
desta. Em geral, é muito difícil ao empresário ser representado — como se diz habitualm ente — por homens “independentes”,
em sua empresa por algum a outra pessoa, mesmo temporaria isto é, ricos, e especialmente pelos que vivem de rendas. Ou a
mente. Ele é tão indispensável quanto o médico, e quanto mais liderança política pode ser acessível aos homens sem propriedades,
destacado e ocupado for, tanto menos dispensável será. Por que necessitam de um a recompensa. O político profissional que
motivos puramente orgânicos, é fácil ao advogado ser dispensá vive “da” política pode ser um “funcionário” exclusivam ente “pre-
vel, e, apesar disso, ele tem desempenhado um papel incompa- bendário” ou assalariado. Nesse caso, o político recebe um a ren
ràvelmente maior, e com freqüência mesmo dominante, como da seja de taxas e tributos sobre serviços específicos — gorjetas
político profissional. Não continuaremos nesta classificação; e subornos são apenas um a variação irregular e formalmente ile
preferimos esclarecer algum as de suas ramificações. gal dessa categoria de renda — ou um a renda fixa em natureza,
A liderança de um Estado ou de um partido por homens que um salário monetário, ou ambos. Pode assumir o caráter de um
(no sentido econômico da palavra) vivem exclusivamente para a “empresário”, como o con dottiere ou o portador de uma auto
política, e não da política, significa necessariamente um recruta rização para recolher impostos ou um cargo comprado, ou como
mento “plutocrático” das principais camadas políticas. N a ver o político americano que considera seus custos como um investi
dade, isto não quer dizer que essa liderança plutocrática significa, mento de capital que ele faz render através da exploração de
ao mesmo tempo, que as camadas politicamente dominantes não sua influência. Pode também receber um salário fixo, como
buscaram também viver “da” política e portanto que a camada um jornalista, secretário de partido ou ministro de um Gabinete
dominante não explorará, habitualm ente, seu domínio político cm moderno, ou autoridade política. As concessões feudais, as con
favor de seu próprio interesse econômico. Tudo isso é indiscutí cessões de terras e prebendas de todos os tipos foram clássicos,
vel, naturalm ente. Jam ais houve uma cam ada que não tivesse, de no passado. Com o desenvolvimento da economia m onetária, os
algum a forma, vivido “da” política. Queremos dizer apenas requisitos prelim inares e prebendas tornam-se, especialmente, as
que o político profissional não precisa buscar uma rem unera recompensas típicas para o apoio aos príncipes, conquistadores
ção direta pelo trabalho político, ao passo que todo político vitoriosos ou chefes partidários bem sucedidos. Em troca de
sem meios deve, absolutamente, pretender essa remuneração. serviços leais, hoje, os líderes partidários distribuem cargos de
Por outro lado, não pretendemos dizer que o político sem pro todos os tipos — nos partidos, jornais, sociedades cooperativas,
priedades buscará vantagens econômicas privadas através da po companhias de seguros, m unicipalidades, bem como no Estado.
lítica, exclusivamente, ou mesmo predominantemente. N em pre Todas as lutas partidárias são lutas para o controle de cargos,
tendemos dizer que ele não pensará, em primeiro lugar, “no bem como lutas para metas objetivas.
108 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 109

N a A lem anha, todas as lutas entre os proponentes do Gover através de longos anos de treinamento preparatório, opõe-se a
no central e local se centralizam na questão dos poderes que essa situação. A burocracia moderna, no interesse da integridade,
controlarão os cargos, quer em Berlim , M unique, K arlsruhe ou desenvolveu um elevado senso de honra estam ental, sem o qu al
Dresden. As restrições na participação da distribuição de cargos haveria fatalm ente o perigo de um a corrupção terrível e de um
são mais sérias para os partida' do que qualquer ação contra vulgar espírito interesseiro. E, sem essa integridade, até mesmo
suas metas objetivas. N a França, a substituição de prefeito em as funções puramente técnicas do aparato estatal seriam postas
conseqüência da política partidária sempre foi considerada como em risco. A significação do aparato estatal para a economia vem
um a transformação maior e sempre causou maiores protestos do aumentando, especialmente com a crescente socialização, e sua
que a modificação do programa governam ental — que tem quase significação aum entará ainda mais.
que a significação de um mero palavrório. A lguns partidos, es Nos Estados Unidos, a adm inistração am adorística, através
pecialmente na América, desde o desaparecimento dos velhos de políticos rapaces, de acordo com o resultado das eleições pre
conflitos sobre a interpretação da constituição, transformaram-se sidenciais, teve como conseqüência a substituição de centenas
em .simples partidos para o controle de cargos, distribuindo em de m ilhares de funcionários, incluindo até um simples carteiro.
pregos e modificando seu programa m aterial segundo as opor A administração nada sabia do servidor público profissional, que
tunidades dè conseguir votos. a isso dedica a sua vida; não obstante, essa adm inistração am a
N a Espanha, até recentemente, os dois grandes partidos, de dorística foi, há muito, lim itada pela Reforma do Serviço Público.
um a forma convencionalmente fixa, se substituíam no poder As necessidades puramente técnicas, incontestáveis, da adm inis
através de “eleições” fabricadas na cúpula, a fim de proporcionar tração determ inaram tal evolução.
cargos aos seus seguidores. Nos territórios coloniais espanhóis, N a Europa, o funcionalismo especializado, baseado na divi
nas chamadas “eleições”, bem como nas chamadas “revoluções”, são do trabalho, surgiu num a evolução gradativa de meio m ilhar
o que estava em jogo era sempre o cesto de pão do Governo do de anos. As cidades italianas e senhorias foram o início, entre
qual os vencedores se queriam alim entar. as m onarquias, e os estamentos dos conquistadores normandos. O
Na Suíça, os partidos dividiram pacificamente os cargos passo decisivo, porém, foi dado em relação à adm inistração das
entre si, proporcionalmente, e alguns das nossos esboços constitu finanças do príncipe. Com as reformas adm inistrativas do Im
cionais “revolucionários”, por exemplo o primeiro esboço da perador M ax, podemos ver como foi difícil para os servidores
constituição badeniana, tentaram estender esse sistema até os pos depor com êxito o príncipe, nesse setor, mesmo sob a pressão da
tos ministeriais. Assim, o Estado e os cargos estatais eram con emergência extrem a e do domínio turco. A esfera das finanças
siderados como simples instituições para a divisão em despojos. era a que menes podia tolerar o diletantism o de um governante
— que, naquela época, era acim a de tudo um cavaleiro. O desen
O Partido Católico do Centro foi quem se mostrou mais volvimento da técnica guerreira exigiu o perito e o oficial espe
entusiasmado com esse projeto. N a Badênia, o partido, como cializado. Nessas três áreas — finanças, guerra e direito — os
elemento de sua plataforma política, tornou a distribuição de servidores especializados nos Estados m ais adiantados triunfavam
cargos proporcional às crenças religiosas e, portanto, sem qu al claram ente durante o século XVI. Com a ascendência do abso
quer relação com o mérito. Essa tendência torna-se mais forte lutismo do príncipe sobre os estamentos, houve sim ultaneam ente
para todos os partidos quando o número de cargos aum enta em uma abdicação gradativa do seu Governo autocrático em favor de
conseqüência da burocratização geral e quando a exigência de um corpo de servidores especializados. Esses funcionários apenas
cargos aum enta porque representam um meio de vida especi facilitaram a vitória do príncipe sobre os estamentos.
ficamente seguro. Para seus adeptos, os partidos se tornam cada
O aparecimento dos “políticos destacados” se fez juntam ente
vez mais um meio para alcançar o fim de ser beneficiado dessa
com a ascendência de um funcionalismo especializado, embora
maneira.
em transições m uito menos perceptíveis. É claro que esses conse
A evolução do funcionalismo moderno no sentido de se tor lheiros realm ente decisivos dos príncipes existiram em todas as
nar um a força de trabalho profissional e altam ente especializada, épocas e em todo o mundo. No Oriente, a necessidade de afastar
110 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 111

do Sultão a responsabilidade pessoal pelo êxito do Governo criou ressava-se em poder nomear os ministros entre os servidores de
a figura típica do “G rão-Vizir”. No Ocidente, influenciada dicados, à sua discrição. Ambos os grupos, porém, queriam ver
principalm ente pelos relatórios dos legados venezianos, a diplo a liderança política enfrentar o parlamento de modo unido e
m acia tornou-se a princípio um a arte cultivada con scientem ente solidário e, daí, ver o sistema colegiado substituído por um único
na época de Carlos V , no tempo de M aquiavel. Os relatos dos chefe do Gabinete. A lém disso, a fim de ser afastado, de modo
legados venezianos eram lidos com zelo apaixonado nos círculos exclusivamente formal, da luta dos partidos e dos ataques parti
diplomáticos especializados. Os adeptos dessa arte, que eram dários, o monarca necessitava de um a pessoa que o protegesse e
em geral educados humanisticamente, tratavam-se como iniciados assumisse a responsabilidade, ou seja, que respondesse ao parla
treinadas, semelhantes aos estadistas hum anistas chineses no úl mento e negociasse com os partidos. Todos esses interesses
timo período dos estamentos belicosos. A necessidade de uma funcionaram juntos e na mesma direção: surgiu um ministro
direção formalmente unificada de toda a política, inclusive dos para d irigir a esfera oficial de modo unificado.
assuntos internos, por um estadista principal, só surgiu de forma Quando o parlam ento predominou sobre o monarca — como
final e vigorosa com a evolução constitucional. É claro que na I n g l a t e r r a o desenvolvimento do poder parlam entar agiu
personalidades individuais, como os conselheiros dos príncipes, ainda m ais fortemente na direção de um a unificação do aparato
ou antes, na verdade, os líderes, haviam existido repetidamente estatal. N a Inglaterra, o “Gabinete”, tendo como “líd er” o chefe
antes disso. Mas a organização de agências adm inistrativas mes do parlamento, desenvolveu-se como um comitê do partido que
mo nos Estados mais adiantados seguiu prim eiram ente outros ca controla a m aioria. Esse poder partidário era ignorado oficial
minhos. Surgiram as agências adm inistrativas colegiadas de mente, mas na verdade somente ele era politicam ente decisivo.
cúpula. Em teoria, e em proporções gradativam ente decrescentes, Os órgãos colegiados oficiais, como tal, não eram órgãos do po
na verdade, elas se reuniam sob a presidência pessoal do príncipe, der dominante, o partido, e portanto não poderiam ser os depo
que tomava as decisões. Esse sistema colegiado levou às exposições sitários do verdadeiro Governo. O partido dom inante exigia uma
de motivas, contra-exposições e ao voto racional da m aioria e da organização sempre pronta, composta apen as de seus homens
m inoria. A lém dos funcionários e das autoridades mais elevadas, principais, que discutiriam confidencialmente as questões a fim
o príncipe cercava-se de pessoas de confiança puramente pessoal de manterem o poder entre si e serem capazes de se dedicar à
— o “Gabinete” — e através delas tomava suas decisões, depois grande política, fora do grupo. O Gabinete é simplesmente essa
de exam inar as resoluções do conselho estatal, ou qualquer outro organização. Em sua relação com o público, porém, especial
nome que tivesse a mais alta agência estatal. O príncipe, colo mente o público parlam entar, o partido precisava de um líder
cando-se cada vez m ais na posição do diletante, buscava livrar-se responsável por todas as decisões — o chefe do Gabinete. O sistema
do peso, necessariamente crescente, dos servidores especializados, inglês foi levado para o continente europeu na forma de m i
usando para isso o sistema colegiado e o Gabinete. Buscava con nistérios parlam entares. Somente na A m érica e nas democracias
servar a liderança em nível mais elevado. Essa luta latente entre por ela influenciadas, um sistema bastante heterogêneo foi con
traposto a este. O sistema am ericano coloca o líder do partido
o funcionalismo especializado e o Governo autocrático existiu
vitorioso, eleito direta e popularmente, na chefia do aparato de
sempre. A situação só se modificou frente aos parlamentos e
servidores por ele nomeados e só o torna dependente do con
às aspirações de poder dos líderes partidárias. Condições muito
sentimento do “parlam ento” em questões orçam entárias e legis
diferentes levaram a resultado externam ente idêntico, embora,
lativas.
na verdade, com algum as diferenças. Sem pre que as dinastias
conservavam o poder prático nas suas mãos — como ocorreu es O desenvolvimento da política num a organização que exigia
pecialmente na A lem anha — os interesses do príncipe associavam- o treinamento na luta pelo poder, e nos métodos dessa luta, tal
-se aos interesses do funcionalismo con tra o parlam ento e suas aspi como o desenvolveram os modernos partidos políticos, determ inou
rações de poder. Os funcionários interessavam-se também pelas a separação dos funcionários públicos em duas categorias que,
posições de destaque, ou seja, postos m inisteriais, fazendo delas porém, não são rigidam ente separadas, embora sejam distintas.
um objetivo da carreira oficial. O monarca, por sua vez, inte Essas categorias são os funcionários “adm inistrativos”, de um
112 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 113

lado, e os funcionários “políticos”, de outro. Estes, no verdadeiro que decidem a política d a empresa, a “diretoria” controlada pelo
sentido da palavra, “políticos”, podem ser reconhecidos regular banco, dão apenas a orientação econômica e selecionam as pessoas
e extrem am ente pelo fato de poderem ser transferidos a q ual para a administração, sem serem, elas mesmas, capazes de dirigir
quer momento, de serem demissíveis ou pelo menos afastados tècnicamente a empresa. Assim, a presente estrutura do Estado
tem porariam ente. São como os prefeitos franceses e funcionários revolucionário não encerra nada de novo, em princípio. Colo
equivalentes de outros países, e isso contrasta agudamente com a ca o controle da adm inistração nas mãos de diletantes absolutos
“independência” dos funcionários com atribuições judiciais. N a que, em virtude do seu controle das metalhadoras, preferem usar
Inglaterra, os funcionários que, segundo convenção fixa, se afastam os funcionários especializados apenas como chefes e auxiliares exe
do cargo quando há uma modificação na m aioria parlam entar, e cutivos. A s dificuldades do presente sistema estão em outros as
daí um a modificação no Gabinete, pertencem a esta categoria. H á pectos, mas essas dificuldades não nos interessam, aqui. Vamos
entre eles, habitualm ente, alguns cuja competência inclui o controle exam inar, antes, a peculiaridade típica dos políticos profissionais,
da “adm inistração interna” geral. O elemento político consiste, dos “líderes” bem como de seus seguidores. Sua natureza modi
acim a de tudo, na tarefa de manter a “lei e a ordem ” no país, e, ficou-se e hoje varia m uito, de um caso para outro.
portanto, da manutenção das relações de poder existentes. N a Vimos que no passado os “políticos profissionais” se desen
Prússia esses funcionários, de acordo com o decreto de Puttkam er volveram através da luta dos príncipes com os estamentos e que
e a fim de evitar a censura, eram obrigados a “representar a serviram aos príncipes. Vamos exam inar rapidam ente os princi
política do Governo”. E como os prefeitos da França, eles eram pais tipos desses políticos profissionais.
usados como um aparato oficial para influir nas eleições. A
m aioria dos funcionários “políticos” do sistema alemão — em Enfrentando os estamentos, o príncipe encontrou apoio nas
contraste com outros países — eram igualm ente lim itados no camadas politicam ente exploráveis, fora da ordem dos estamentos.
que se refere ao acesso aos postos que exigiam um a educação Entre estas estavam, primeiro, o clero das índ ias Ocidentais e
universitária, exames especiais e serviço preparatório especial. Orientais, na C hina budista e no Japão, na M ongólia lam aísta,
N a A lem anha, somente os chefes do aparato político, os m inis tal como nos territórios cristãos da Idade M édia. O clero era
tecnicamente útil porque era alfabetizado. A importação dos
tros, carecem dessa característica específica do serviço público
moderno. Mesmo sob o regim e antigo, era possível ser M inistro brâmanes, sacerdotes políticos, lam as e o emprego de bispos e
da Educação da Prússia sem ter freqüentado jam ais qualquer padres como conselheiros políticos ocorreram com o objetivo de
obter forças adm inistrativas que soubessem ler e escrever e pu
instituição de ensino superior, mas só se podia ser V ortragen der
dessem ser usadas na luta do imperador, príncipe ou cã, contra a
R a t 7 à base de um exame determinado. Os Dez ern en t e V or­
aristocracia. Ao contrário do vassalo que enfrentava o senhor
tragen der R at especializados e treinados eram , é claro, muito
geral, o clero, especialmente o celibatário, estava fora da m áquina
melhor informados sobre os verdadeiros problemas técnicos da
dos interesses políticos e econômicos e não era tentado pela lu
divisão do que seu chefe — por exemplo, Althoff, no M inistério da
ta pelo poder político, para si ou seus descendentes. Em virtude
Educação prussiano. Não era diferente na Inglaterra. Assim,
do seu próprio status, o clero estava “separado” dos implementos
em todas as exigências rotineiras o chefe de divisão era mais controladores da adm inistração do príncipe.
poderoso do que o ministro, o que se justificava. O ministro
era simplesmente o representante da constelação de poder político; Os literatos de educação hum anista compreendem a segunda
tinha de representar os poderosos quadros políticos e tinha de dessas camadas. Houve um a época em que se aprendia a escrever
analisar as propostas de seus funcionários especializados, subor discursos latinos e versos gregos para se poder ser conselheiro
dinados, ou dar-lhes a orientação de natureza política. político de um príncipe e, principalm ente, para ser m em orialista.
Foi a época do prim eiro florescimento das escolas hum anistas e
A final de contas, as coisas são muito semelhantes numa em das fundações principescas para professores de “poética”. Para
presa econômica privada: o verdadeiro “soberano”, as assembléias nós, foi um a época transitória, que teve influência bastante per
de acionistas, influi tão pouco na administração quanto um sistente em nosso sistema educacional, sem maiores resultados
“povo” governado pelos funcionários especializados. E as pessoas políticos, porém. No Leste da Á sia, foi diferente. O m andarim
8
114 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 115

chinês é, ou antes foi originalm ente, quase o mesmo que o Todo o início do pensamento jurídico racional da Escola
hum anista de nosso período da Renascença: um letrado treinado Indiana de M im am sa e todo o cultivo, posterior, do pensamento
humanisticamente e testado nos monumentos lingüísticos do pas jurídico antigo no Islã foram incapazes de im pedir que a noção
sado remoto. Quando lemos os diárias de L i H ung C hang do Direito racional fosse superada pelas formas teológicas de
vemos que seus maiores motivos de orgulho são seus poemas pensamento. A cim a de tudo, o processo legal não foi plenamente
e o fato de ser um bom calígrafo. Esta camada; com suas racionalizado nos casos da ín d ia e do Islamismo. Essa racionali
convenções desenvolvidas e modeladas pela A ntigüidade chinesa, zação foi provocada no continente europeu apenas através do uso
determinou todo o destino da C hina; e talvez nosso destino tives da velha jurisprudência rom ana pelos juristas italianos. A juris
se sido semelhante se os humanistas, em sua época, tivessem a prudência rom ana é o produto de uma estrutura política que
menor possibilidade de conseguir influencia semelhante. surge da cidade-Estado para alcançar domínio m undial — um
A terceira camada era a nobreza cortesã. Depois que os produto de natureza excepcional. O u sus m odernus. dos últimos
príncipes conseguiram expropriar o poder político da nobreza pandectistas e canonistas medievais fundiu-se às teorias do direito
como um estamento, atraíram os nobres para a corte e os usaram natural, nascida do pensamento jurídico e cristão, m ais tarde se-
em seu serviço político e diplomático. A transformação de nosso cularizado. Esse racionalismo jurídico teve seus grandes represen
sistema educacional no século X VII foi, em parte, determinado tantes entre a podestà italiana, os juristas crim inais, na França
pelo fato de terem os nobres da corte, como políticos profissionais, (que criaram os meios formais de solapar o domínio dos
substituído os literatos hum anistas e ingressado no serviço dos setgn eurs pelo poderio re a l), entre os canonistas e teólogos dos
príncipes. concílios eclesiásticos (pensando em termos de direito n atu ral),
entre os juristas da corte e juizes acadêmicos dos principados
A quarta categoria foi um a instituição especificamente in
continentais, entre os professores holandeses de Direito N atural
glesa. U m a cam ada patrícia desenvolveu-se ali, compreendida e os monarcomaquistas, entre os juristas crim inais e legislativos,
pela pequena nobreza e pelos que viviam de rendas: são entre a n oblesse de robe do Parlam ento francês e, finalm ente,
chamados, tecnicamente, de “gentis-homens”. Essa classe inglesa entre os juristas da época da Revolução Francesa.
representa um a cam ada que o príncipe atraia originalm ente a
fim de neutralizar os barões. O príncipe colocava a camada Sem esse racionalismo jurídico, a ascensão do Estado abso
luto é tão pouco im aginável quanto a revolução. Se exam inar
na posse dos cargos de "Governo autonomo , e mais tarde ele
mos os protestos dos Parlam entos franceses ou os cadernos dos
próprio passou a depender cada vez mais deles. Os gentis-homens
Estados-Gerais franceses do seculo X VI ao ano de 1789, veremos
m antinham a posse de todos os cargos da administração local,
em toda parte o espírito dos juristas. E se exam inarm os a com
assumindo-os sem vantagens, no interesse de seu próprio poder
posição ocupacional dos membros da Assem bléia Francesa, en
social. Os gentis-homens salvaram a Inglaterra da burocratiza-
contraremos ali — em bora os membros da Assem bléia fossem elei
ção que foi o destino de todos os Estados continentais. tos através de um a fran quia igu al — um único proletário, pou
U m a quinta camada, o jurista de formação universitária, é cos empresários burgueses, mas juristas em massa, de todos os
peculiar ao Ocidente, especialmente ao continente europeu, e foi tipos. Sem eles, a m entalidade específica que inspirou esses
de significação decisiva para a estrutura política do continente. intelectuais radicais e seus projetos seria inconcebível. Desde a
O tremendo efeito posterior do Direito Romano, transformado Revolução Francesa, o moderno jurista e a m oderna democracia
pelo Estado burocrático romano do período final, destaca-se prin associaram-se absolutamente. E os juristas, em nosso sentido de
cipalmente pelo fato de que em toda parte a revolução da adm i um grupo de statu s independente, só existem também no Ocidente.
nistração política na direção do Estado racional foi promovida Desenvolveram-se desde a Idade M édia, partindo do Fü rsprech
pelos juristas formados. Isso ocorreu também na Inglaterra, em do processo form alista da A lem anha, sob o impacto da racionali
bora ali as grandes corporações nacionais de juristas tivessem zação do julgam ento.
dificultado a recepção do Direito Romano. Não ha analogia A significância do jurista na política ocidental, desde a
com esse processo em nenhum a área do mundo. ascensão dos partidos, não é acidental. O controle da política
116 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 117

pelos partidos significa, simplesmente, o controle pelos grupos no sentido mais elevado, todo o aparato cairia aos pedaços. A
de interesse. Veremos, dentro em pouco, o que isto significa. honra do líder político, do estadista importante, porém, está pre
O ofício do advogado treinado é defender, com eficiência, a cisamente num a responsabilidade pessoal exclusiva pelo que ele
causa dos clientes interessados. Nisso, o advogado é superior a faz, um a responsabilidade que ele não pode e não deve rejeitar
qualquer “funcionário”, tal como a superioridade da propaganda ou transferir. É da natureza dos funcionários de alta posição
inim iga [a propaganda aliada na guerra de 1914-18] nos mostra. moral serem m aus políticos e, acim a de tudo, no sentido político
Sem dúvida ele pode defender e vencer um a causa apoiado da palavra, serem políticos irresponsáveis. Nesse sentido, são
em argumentos logicamente fracos e que, nesse sentido, é um a políticos de baixa posição moral, como os que nós infelizm ente
causa “fraca”. Não obstante, ele a ganha porque tecnicamente tivemos numerosas vezes em posições de destaque. Foi a isso
faz para ela um a “argumentação forte”. M as o advogado só que chamamos de Beam tern h errsch aft [dom ínio do serviço pú
pode defender com êxito um a causa que pode ser apoiada em blico] e realm ente nenhum a mancha existe na honra de nosso
argum ento de força lógica, tratando assim “bem” um a causa funcionalismo se revelarmos o que está politicamente errado no
“boa”. Com dem asiada freqüência o servidor civil como político sistema, do ponto de vista do êxito. Mas voltemos m ais uma
transforma um a causa boa sob todos os aspectos num a causa vez aos tipos de figuras políticas.
“fraca”, através de um a argumentação tecnicamente “fraca”. Foi
Desde a época do Estado constitucional, e definidamente
isso o que aconteceu conosco. Em grau bastante acentuado, a
desde que a democracia se estabeleceu, o “dem agogo” tem sido
política de hoje é na verdade conduzida em público por meio
o líder político típico no Ocidente. O desagradável sabor da
da palavra escrita ou falada. Pesar o efeito da palavra propria
palavra não deve levar-nos a esquecer que não Cleone, mas
mente é tarefa do advogado; mas não se enquadra entre as
Péricles, foi o prim eiro a trazer o nome de demagogo. Em
atribuições do servidor público. Este não é demagogo, nem tem
contraste com os cargos da antiga democracia, que eram preen
o objetivo de ser. Se, não obstante, ele tenta tornar-se demagogo,
chidos pela sorte, Péricles chefiou a Ecclesia soberana do dem os
o faz habitualm ente, de forma imperfeita.
de Atenas como um estrategista supremo, retendo o único posto
Segundo sua vocação, o funcionário autêntico — e isso é eletivo, ou sem qualquer posto. A dem agogia moderna também
decisivo para a avaliação de nosso antigo regim e — não se de faz uso da oratória, em proporções extremas, mesmo se consi
dicará à política. Deve dedicar-se, de preferência, à “adm inistra derarmos os discursos eleitorais que um moderno candidato tem
ção” im parcial. Isso também é válido para o chamado adm inis de pronunciar. M as o uso da palavra impressa é m ais dura
trador “político”, pelo menos oficialm ente, na m edida em que douro. O publicista político, e acim a de tudo o jornalista, é
a raison d’état, ou seja, os interesses vitais da ordem dominante hoje o representante m ais importante da espécie dem agógica.
não estiverem em causa. Sin e ira. et studio, “sem ressentimento
nem preconceito”, ele adm inistrará seu cargo. D aí não fazer Dentro dos lim ites desta conferência, é impossível até mesmo
precisamente o que o político, o líder bem como seu séquito, tem esboçar a Sociologia do jornalism o político moderno, que sob
sempre e necessariamente de fazer, ou seja, lutar. todos os aspectos constitui um capítulo em si mesmo. Certamente,
somente uns poucos aspectos relacionados com ele cabem, aqui.
T om ar um a posição, ser apaixonado — ira et studium — Em comum com todos os demagogos e, incidentalm ente, com o
é o elemento do político e, acim a de tudo, o elemento do líder advogado (e o artista), o jornalista também não se enquadra num a
político. Sua conduta está sujeita a um princípio de responsabi classificação social determ inada. Pelo menos é isso o que ocorre no
lidade m uito diferente e, na verdade, exatam ente contrário ao continente europeu, em contraste com a Inglaterra, e, também,
princípio do servidor público. A honra deste está em sua capa com as condições anteriores da Prússia. O jornalista pertence a
cidade de executar conscienciosamente a ordem das autoridades um a espécie de casta de párias, que é sempre estim ada pela “socie
superiores, exatamente como se a ordem concordasse com sua dade” em termos de seu representante eticam ente m ais baixo.
convicção pessoal. Isso é válido até mesmo se a ordem lhe parece Daí as m ais estranhas noções sobre jornalistas e seu trabalho.
errada e se, apesar dos protestos do servidor civil, a autoridade Nem todos compreendem que um a realização jornalística real
insiste nela. Sem essa disciplina moral e essa omissão voluntária, mente boa exige pelo menos tanto “gênio” 4 quanto qualquer
118 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VO CAÇÃO 119

realização erudita, especialmente devido à necessidade de produzir adversários [os A liados]. M as ali também, e em todos os Estados
im ediatam ente, e “de encomenda”, devido à necessidade de ser modernos, aparentemente o trabalhador jornalístico ganha cada
eficiente, na verdade, em condições de produção totalmente di vez menos à m edida que o senhor capitalista da im prensa, do
ferentes. Quase nunca se reconhece que a responsabilidade do tipo de “Lorde” N orthcliffe, por exemplo, ganha cada vez
jornalista é muito maior, e que o senso de responsabilidade de m ais influência política.
todo jornalista honrado não é, em média, em nada inferior ao A té agora, porém, nossas grandes empresas jornalísticas capi
do professor, mas. como a guerra mostrou, superior. Isso ocorre talistas, que controlam especialmente a “cadeia de jornais”, com
porque, pela natureza mesma do caso, as realizações jornalísticas “anúncios classificados”, foram, regular e tipicamente, os fomen
irresponsáveis e seus efeitos, por vezes terríveis, são lembrados. tadores da indiferença política. Pois não se poderiam colher lu
N inguém acredita que a discrição de qualquer jornalista ca cros num a política independente; especialmente, não se poderia
paz se situa acima da média de outras pessoas, e, não obstante, obter a lucrativa benevolência dos poderes politicam ente domi
assim é. As tentações muito mais graves, e as outras condições nantes. A publicidade comercial também é o caminho pelo qual,
que acompanham o trabalho jornalístico no momento presente, durante a guerra, se procurou influir politicam ente na imprensa,
produzem os resultados que condicionaram a forma pela qual o em grande estilo — tentativa que agora é evidentem ente conside
público vê a imprensa, com um misto de desdém e covardia pie rada como de continuação desejável. Embora possamos esperar
dosa. Não podemos discutir aqui o que se deve fazer. Interes que os grandes jornais escapem a essa pressão, a situação dos pe
sa-nos a questão do destino ocupacional do jornalista político e quenos será muito m ais difícil. De qualquer modo, no momento,
de sua possibilidade de alcançar um a posição de liderança política. a carreira jornalística não é, entre nós, um cam inho norm al para
Até agora, o jornalista só teve oportunidades favoráveis no Partido a ascensão dos líderes políticos, qualquer que seja a atração que
Social-Democrata. Dentro do partido, as posições editoriais tive o jornalism o possa ter, sob outros aspectos, e qualquer que seja
ram , predominantemente, a natureza de postos oficiais, mas não a m edida de influência, âm bito de atividade e responsabilidade
constituíram base para posições de liderança. especialmente política que possa proporcionar. Temos de esperar
para ver. T alvez o jornalism o não tenha m ais essa função, ou
Nos partidos burgueses, no conjunto, as possibilidades de
talvez o jornalism o ainda não a tenha. Se a renúncia ao princí
ascensão ao poder político, através desse caminho, são ainda piores,
pio de anonimato significar um a modificação nisso, é difícil de
em comparação com o que ocorria na geração anterior. N atural
dizer. A lguns jornalistas — nem todos — acreditam no abandono
mente, todo político conseqüente precisou de influir na imprensa
do anonimato por princípio. O que experimentamos durante a
e, daí, precisou de relações com a imprensa. Mas os líderes par
guerra, na im prensa alem ã, e na “adm inistração” dos jornais por
tidários surgidos da imprensa constituíram exceção absoluta, e
personalidades e escritores de talento, especialmente contratados,
não se pode contar com isso. A razão de tal fenômeno está na
“indispensabilidade” do jornalista, que cresceu muito, e, acima que sempre figuraram sob os seus nomes, mostrou infelizm ente
de tudo, do jornalista sem bens e, portanto, condicionado pro que, em alguns dos casos m ais conhecidos, um a consciência maior
fissionalmente, indispensabilidade essa determ inada pela intensi da responsabilidade não decorreu nas proporções em que se espe
dade e ritmo muito mais intenso das operações jornalísticas. A rava. A lguns dos jornais foram, sem considerações partidárias,
necessidade de ganhar a vida escrevendo artigos diários ou pelo precisamente os que se tornaram m ais notoriamente sensacionalis
menos sem anais é como um chumbo nos pés dos políticos. Co tas; abandonando o anonimato, lutaram por maior circulação
nheço casos nos quais líderes naturais ficaram permanentemente e a conseguiram. Os diretores bem como os jornalistas do sensa-
paralisados em sua ascensão ao poder, externamente e acim a de cionalismo ganharam fortunas, mas certamente não ganharam
tudo internam ente, por essa compulsão. As relações da imprensa honra. N ada dizemos aqui contra o princípio de promover ven
com os poderes dominantes no Estado e nos partidos, sob o das; a questão é, na realidade, complexa, e o fenômeno do sen-
velho regim e [do K aiser] foram as m ais prejudiciais possíveis sacionalismo irresponsável não tem validade geral. M as até
para o nível do jornalism o; isso constitui, porém, um capítulo agora, o sensacionalismo não tem sido o caminho para a verda
à parte. Essas condições foram diferentes nos países de nossos deira liderança ou para a adm inistração responsável da política.
A P O L ÍT IC A C O M O VOCAÇÃO 1 21
120 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

Resta-nos ver como se desenvolverão as condições. Não obstante, homens está prim ordialm ente interessado na vida política e, daí,
a carreira jornalística continua, em todas as circunstâncias, um em partilhar o poder político. Eles se proporcionam um séquito
dos m ais importantes caminhos da atividade política profissional. através do recrutamento livre, apresentam-se, ou a seus protegidos,
Não é um caminho para todos, m uito menos para o caráter fraco, como candidatos a eleição, recolhem os meios financeiros e lan
especialmente para as pessoas que podem manter seu equilíbrio çam-se à caça de votos. É inim aginável como, nas grandes asso
interior apenas com um a posição social segura. Se a vida de um ciações, as eleições possam funcionar sem esse padrão. N a prática,
jovem erudito está em jogo, ainda assim ele continuará murado isto significa a divisão dos cidadãos com o direito de votar em
pelas rígidas convenções sociais, que impedem o seu deslize. Mas elementos politicamente ativos e politicamente passivos. Essa d i
a vida do jornalista é um jôgo absoluto sob todos os aspectos e ferença baseia-se em atitudes voluntárias, daí ser impossível abo
sob condições que põem â prova a segurança interna da pessoa, li-la através de m edidas como o voto obrigatório, ou a “repre
de forma que raram ente ocorre em qualquer outra situação. As sentação dos grupos profissionais”, ou medidas semelhantes que
experiências, freqüentemente am argas, da vida ocupacional, talvez se dirigem , expressa ou praticamente, contra este estado de coisas
nem sejam as piores. As exigências íntim as que se voltam pre e o Governo dos políticos profissionais. A liderança ativa e seu
cisamente sobre o jornalista de êxito são especialmente difíceis. séquito recrutado livrem ente são os elementos necessários à vida
Não é, na verdade, problema pequeno freqüentar os salões dos de qualquer partido. O séquito, e através dele, o eleitorado passi
poderosos em aparente pé de igualdade e, geralm ente, ser lison vo, são necessários à eleição do líder. M as a estrutura dos par
jeado por todos, porque se é temido, sabendo porém durante tidos varia. Por exemplo, os “partidos” das cidades medievais,
todo o tempo que, m al fechada a porta, o anfitrião talvez tenha como o dos guelfos e gibelinos, eram séquitos exclusivamente
de se justificar perante seus hóspedes pela sua associação com pessoais (clientelas). Se exam inarm os vários aspectos desses parti
os “lixeiros da imprensa”. A lém disso, não é fácil expressar-se dos medievais, lembrar-nos-emos do bolchevismo e seus Sovie
rápida e convincentemente sobre isto e aquilo, sobre todos os tes. Vejamos, por exemplo, os Statu ta delia parte Gu elfa, com
im agináveis problemas da vida — segundo as exigências do “m er certas disposições como o confisco dos bens dos N ob ili — que
cado” — e fazê-lo sem se tornar absolutamente raso e acima originalm ente incluíam todas as fam ílias que levavam um a vida
de tudo sem perder a dignidade, desnudando-se, o que tem resul cavalheiresca e que assim se qualificavam para tornarem-se pro
tados impiedosos. Não é de espantar que existam muitos jor prietários de fundos — ou ainda a supressão do direito de exercer
nalistas que se tornaram fracassos humanos e homens indignos. um a função ou do direito de voto dos membros destas fam ílias,
É, antes, espantoso que, apesar de tudo isso, esta camada mesma ou por fim quando consideramos a estrutura dos comitês inter-
inclua um número tão grande de homens de valor e realmente -regionais deste partido, sua organização m ilitar severa e os prê
autênticos, um fato que as pessoas distantes da profissão dificil mios aos delatores. Consideremos o bolchevismo, com a cuidadosa
mente im aginam . seleção dos m ilitares e, especialmente na R ússia, suas organizações
Se o jornalista como tipo de político profissional remonta a de delação, o desarmamento e a negativa dos direitos políticos dos
um passado considerável, a figura do funcionário de partido per “burgueses”, ou seja, do empresário, do comerciante, do homem
tence a um a evolução das últim as décadas e, em parte, somente que vive de rendas, do burocrata, dos descendentes da dinastia,
aos anos recentes. A fim de compreender a posição dessa figura dos agentes policiais, bem como a política de confiscos.
na evolução histórica, teremos de nos voltar para um a consideração Essa analogia é ainda mais notável quando vemos que, de
dos partidos e organizações partidárias. um lado, a organização m ilitar do partido m edieval constituía
Em todas as associações políticas m ais ou menos amplas, um simples exército de cavaleiros organizados à base dos esta
ou seja, associações que vão além da esfera e alcance das tarefas mentos feudais existentes e que os nobres ocupavam quase todas
dos pequenos distritos rurais onde os detentores do poder são as posições de mando e, por outro lado, que os sovietes preser
eleitos periodicamente, a organização política é necessariamente varam , ou, melhor, réadotaram , o em presário altam ente pa
controlada por homens interessados no controle da política. Isto go, o salário de grupo, o sistema T aylor, a disciplina m ilitar e
equivale a dizer que um número relativam ente pequeno de da oficina, e a busca de capital estrangeiro. Portanto, num a pa
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A P O L ÍT IC A C O M O VOCAÇÃO 123

lavra, os Sovietes tiveram de aceitar novamente, e de forma absc- Sõmente o jornalista é um político profissional pago; somente a
luta, todas as coisas que o bolchevismo combatia como institui administração do jornal é um a organização política contínua.
ções burguesas de classe. T iveram de fazê-lo para manter o Além do jornal, há apenas a sessão parlam entar. Os delegados
Estado e a economia em funcionamento. A lém disso, os Sovietes parlam entares e os líderes partidários no Parlam ento sabem para
reinstituíram os agentes da antiga Ochrana [polícia secreta tza- quais personalidades locais notáveis se devem voltar quando a
rista] como os principais instrumentos do seu poderio estatal. ação política parece desejável. Mas as associações permanentes
Mas no caso não temos de tratar com essas organizações de vio dos partidos só existem nas grandes cidades, com moderadas con
lência, mas com os políticos profissionais que lutam pelo poder tribuições dos membros e conferências e reuniões públicas perió
através de campanhas partidárias “pacíficas”, no mercado dos dicas, nas quais o delegado expõe as atividades parlam entares.
O partido só está vivo durante os períodos de eleição.
votos.
Os partidos, no sentido habitual, entre nós, eram a princípio, Os membros do Parlam ento interessam-se pela possibilidade
como por exemplo na Inglaterra, simples séquitos da aristocra de compromissos eleitorais interlocais, pelos programas vigorosos
cia. Se, por qualquer razão, um par m udava de partido, todos e unificados endossados pelos amplos círculos e pela agitação uni
os que dependiam dele também m udavam . Até a Lei da Reforma ficada através de todo o país. Em geral, esses interesses formam
[de 1832] as grandes fam ílias nobres e, em últim o lugar mas a força propulsora de um a organização partidária que se torna
não menos importante, o rei, controlavam um número imenso cada vez mais rigorosa. Em princípio, porém, a natureza de um
de burgos eleitorais. Próximos desses partidos aristocráticos es aparato partidário como associação de notáveis permanece inal
tavam os partidos dos notáveis, que se desenvolveram em toda terada. Isso ocorre, embora um a rede de filiações e agentes par
parte com o aumento do poder dos burgueses. Sob a liderança tidários locais esteja difundida por todo o país, incluindo as cidades
espiritual da cam ada intelectual típica do Ocidente, os círculos de tamanho médio. U m membro do grupo parlam entar age
abastados e cultos se distinguiram em partidos, e os seguiram. como o chefe do escritório central do partido e m antém corres
Esses partidos foram formados de acordo com os interesses de pondência constante com as organizações locais. Fora desse escri
classe, as tradições fam iliares e as razões ideológicas, em propor tório central, ainda não há funcionários pagos; pessoas perfeita
ções iguais. Clérigos, professores, mestres, advogados, médicos, mente “respeitáveis” chefiam as organizações locais, pela defe
farmacêuticos, agricultores prósperos, industriais — na Inglaterra, rência que, de qualquer modo, isso lhes proporciona. Form am
toda a cam ada que se considerava pertencente à classe dos cava os “notáveis” extraparlam entares que exercem influência junta
lheiros — formaram, a princípio, associações ocasionais na maio mente com a cam ada dos notáveis políticos que esteja no parla
ria dos clubes políticos locais. Em épocas de intranqüilidade, a mento. A correspondência do partido, porém, preparada pelo
pequena burguesia elevava sua voz, e de quando em vez o pro partido, proporciona cada vez mais um alimento intelectual para
letariado, se surgissem líderes, que, entretanto, via de regra não a imprensa e para as reuniões locais. Contribuições regulares dos
vinham de seu seio. Nessa fase, os partidos organizados como membros tornam-se indispensáveis; um a parte delas deve cobrir
associações permanentes entre localidades ainda não existem cla as despesas com a sede.
ramente. Somente os delegados parlam entares criam a coesão; e Não há muito, a m aioria das organizações partidárias alemãs
os notáveis locais são decisivos para a eleição dos candidatos. Os ainda estava nessa fase de desenvolvimento. N a França, a pri
programas eleitorais se originam , em parte, na atração eleitoral meira etapa do desenvolvimento dos partidos, pelo menos em
dos candidatos, em parte nas reuniões dos notáveis. Ou surgem parte, ainda predom inava, e a organização dos membros do parla
como resoluções do grupo parlam entar. A liderança dos clubes mento era instável. N o interior vamos encontrar vários notáveis
é um a atividade secundária e um a empresa honorífica, segundo as locais e programas preparados pelos candidatos ou organizados
exigências do momento. para eles pelos seus patronos em cam panhas específicas pelos
Onde não existem clubes (como ocorre na m aioria dos casos) postos eletivos. N a verdade, essas plataformas constituem adap
a adm inistração inform al da política, em épocas normais, está nas tações mais ou menos locais às resoluções e program as dos mem
mãos das poucas pessoas que por ela se interessam constantemente. bros do parlam ento. Esse sistema só em parte foi afetado. O
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núm ero de políticos profissionais de tempo integral era pequeno, ou pessoalmente — por exemplo, dos mecenas ou diretores de
consistindo principalmente nos deputados eleitos, nos poucos fun poderosos clubes políticos de pessoas interessadas (T am m any
cionários da sede e nos jornalistas. N a França, o sistema também H a ll). * É decisivo que todo esse aparato de pessoas — carac
incluía os caçadores de empregos que tinham “postos políticos” teristicamente chamado de “m áquina” nos países anglo-saxões —
ou, que no momento, lutassem por um. A política era formal ou antes, os que dirigem a m áquina, m antenham sob controle
mente, e de modo predominante, um a atividade subsidiária. O os membros do parlamento. Estão em condições de impor sua
número de delegados que se qualificavam para os postos m inis vontade em proporções bastante acentuadas, e isso tem significa
teriais era também muito lim itado e, devido à sua posição como ção especial para a seleção do líder do partido. O homem a
notáveis, também era limitado o número de candidatos à eleição. quem a m áquina segue no momento se torna o chefe, acima
mesmo do líder parlam entar. Em outras palavras, a criação
M as o número daqueles que indiretam ente tinham interesse
dessas m áquinas significa o advento da democracia plebiscitária.
no controle da política, especialmente interesse m aterial, era
grande. Pois todas as medidas adm inistrativas de um departa Os seguidores do partido, e acim a de tudo os seus funcioná
mento m inisterial, e especialmente todas as decisões em questões rios e empresários, esperam naturalm ente um a compensação pes
de pessoal, eram tomadas em parte tendo em vista sua influência soal pela vitória de seu chefe — isto é, cargos e outras vantagens.
sobre as possibilidades eleitorais. A realização de cada e todo É decisivo que esperem tais vantagens do chefe, e não apenas do
tipo de desejo era buscada através da mediação do delegado membro do parlamento, individualm ente. Esperam que o efeito
local. De qualquer modo o ministro tinha de ouvir esse dele demagógico da person alidade do chefe, durante a luta eleitoral
gado, especialmente se ele pertencia à mesma m aioria do m i do partido, aum ente os votos e mandatos e, com isso, o poder, e,
nistro. Assim, todos lutavam para dispor dessa influência. U m com isso, na m edida do possível, am plie as oportunidades que
só deputado controlava os empregos e, em geral; qualquer tipo seus seguidores têm de encontrar as compensações esperadas.
de privilégio em seu distrito eleitoral. P ara ser reeleito, o de Idealm ente, um a das molas mestras é a satisfação de trabalhar
putado, por sua vez, m antinha ligações com os notáveis locais. com a dedicação pessoal leal por um homem, e não apenas por
um program a abstrato de um partido constituído de mediocrida-
Ora, as formas mais modernas de organizaões partidárias des. Sob esse aspecto, o elemento “carismático” de toda liderança
contrastam acentuadamente com esse estado idílico no qual cír funciona no sistema partidário.
culos de notáveis e, acima de tudo, os membros do parlamento
dom inam . Essas formas modernas são filhas da democracia, Em graus m uito diferentes, esse sistema progrediu, embora
do direito de voto das massas, da necessidade de cortejar e orga em luta constante e latente com os notáveis locais e os membros
n izar as massas, e desenvolver a m aior unidade de direção e a do parlam ento que lutavam pela influência. Isso ocorreu nos
disciplina mais rigorosa. O Governo dos notáveis e a direção partidos burgueses, prim eiro nos Estados Unidos e, em seguida,
pelos membrós do parlamento cessa. Os políticos “profissionais” no Partido Social-Democrata, especialmente da A lem anha. Recuos
fora do parlamento tomam nas mãos a organização. E assim constantes ocorrem tão logo deixa de existir um líder reconhecido
o fazem como “empresários” — o chefe político americano e o por todos, e, mesmo quando ele existe, as concessões de todos os
agente eleitoral inglês são, na verdade, empresários desse tipo — tipos têm de ser feitas à vaidade e aos interesses pessoais dos
ou como funcionários com um salário fixo. Form alm ente, ocor notáveis do partido. A m áquina também pode ser colocada sob
re um a am pla democratização. As assembléias dos membros domínio dos funcionários do partido, em cujas mãos estão os
do partido organizado passam a selecionar os candidatos e os assuntos regulares. Segundo a opinião de alguns círculos social-
membros delegados às assembléias de ordem superior. H á, pos -democratas, seu partido sucumbiu a essa “burocratização”. Mas
sivelmente, várias dessas convenções, indo até à convenção nacio os “funcionários” submetem-se com relativa facilidade a um a
nal do partido. Naturalm ente, o poder fica, na prática, nas mãos
daqueles que, dentro da organização, se ocupam perm an en te­ * Sede regular do Partido Democrata do Condado de Nova
m en te do trabalho. Ou então o poder fica nas mãos daqueles York e, por extensão, da m áquina partidária dem ocrata naquela
de quem a organização, em seus processos, depende financeira cidade. (N. do T.)
126 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VOCAÇÃO 127
personalidade de líder, se ele tiver um forte atrativo demagógico. da organização partidária. A distribuição dos cargos ficava nas
Os interesses m ateriais e ideais dos funcionários estão intimamente mãos do “w h ip”, e, assim, o caçador de empregos tinha de pro
ligados aos efeitos do poder partidário, esperado da atração do curá-lo, e ele estabelecia um acordo com os deputados dos burgos
chefe e, além disso, interiormente é, per se, m ais satisfatório tra eleitorais individuais. U m a cam ada de políticos profissionais
balhar para um chefe. A ascensão dos líderes é muito mais começou a desenvolver-se gradualm ente nos burgos. A princípio,
difícil quando os notáveis, juntam ente com os funcionários, con os agentes recrutados localm ente não eram rem unerados: ocupa
trolam o partido, como ocorre habitualm ente nos partidos bur vam aproxim adamente a mesma posição de nosso V ertrauen sm àn -
gueses. Pois idealm ente os notáveis fazem “seu modo de vida” n er. 6 Mas, juntam ente com eles, desenvolveu-se nos burgos um
das pequenas presidências ou comitês que ocupam. O ressenti tipo em presarial capitalista. Era o “agente eleitoral”, cuja exis
mento contra o demagogo como um h om o n ov us, a convicção tência era inevitável sob a moderna legislação inglesa, que garan
da superioridade da “experiência” do partido político (que, na tia eleições im parciais.
verdade, realm ente é de importância considerável) e a preocupa Essa legislação visava a controlar os custos da cam panha
ção ideológica com o desmoronamento das tradições do velho eleitoral e conter o poder do dinheiro, tornando obrigatório ao
partido — esses fatores determ inam a conduta dos notáveis. candidato declarar os custos de sua campanha. Pois na Inglaterra
Podem contar com todos os elementos tradicionalistas dentro o candidato, além de gastar a voz — m uito mais do que ocorria
do partido. A cim a de tudo, o eleitor rural, mas também o anteriormente entre nós [n a A lem anha] — gostava também de
'.pequeno-burguês, procura o nome do notável que lhe seja gastar dinheiro. O agente eleitoral fazia o candidato pagar uma
fam iliar. Desconfia do homem que lhe é desconhecido. Uma soma geral, que habitualm ente significa muito para o agente.
vez, porém, que esse homem se torna bem sucedido, a ele se N a distribuição de poder no Parlam ento e no interior, entre o
apega firm em ente. Vamos exam inar, através de alguns exem “líder” e os notáveis do Partido, o líder, na Inglaterra, costumava
plos principais, a luta das duas formas estruturais — dos notá ter um a posição de m uito destaque, baseada na possibilidade dc
veis e do partido — e, especialmente, a ascendência da forma
um a estratégia política em grande estilo e, portanto, constante.
plebiscitária descrita por Ostrogorsky.
Não obstante, a influência do grupo parlam entar e dos notáveis
Prim eiro, a Inglaterra: ali, até 1868, a organização dos par
do partido ainda era considerável.
tidos foi quase exclusivamente um a organização de notáveis. Os
Era m ais ou menos a organização do partido antigo. Era
T ories encontravam apoio no interior, por exemplo, entre os pá
um pouco um a questão dos notáveis e um pouco um a organiza
rocos anglicanos, e entre os professores primários, e acim a de
ção em presarial com empregados assalariados. A partir de 1868,
tudo entre os grandes senhores de terras. Os W h igs encontravam
porém, desenvolveu-se o sistema de "cau cu s”, * prim eiro para as
apoio principalm ente entre pessoas como o pregador inconformista
eleições locais de B irm ingham e em seguida por todo o país.
(quando h av ia), o agente do correio, o ferreiro, o alfaiate, o cor-
U m pároco inconformista, e com ele Joseph C ham berlain, criou
doeiro — isto é, os artesãos que podiam dissem inar a influência
o sistema. Isso ocorreu quando da democratização do direito de
política porque podiam conversar com as pessoas mais freqüen
voto. A fim de conquistar as massas, tornou-se necessário orga
temente. N a cidade, os partidos diferiam , seja devido à econo
nizar um tremendo aparato de associações aparentem ente demo
m ia, seja devido à religião ou simplesmente segundo as opiniões
partidárias difundidas entre as fam ílias. M as os notáveis foram,
sempre, os pilares da organização política. tantes, especialm ente às votações. Também prom ove a convocação
dos suplentes p ara os membros que não possam com parecer à vota
A cim a de todas essas disposições estavam o Parlamento, os ção e m antém o líder inform ado das opiniões e intenções dos m em
partidos com o Gabinete e o “líder”, que era o presidente do bros da agremiação. (N. do T .)
conselho de ministros ou líder da oposição. Esse líder tinha ao * Na Inglaterra, um sistema de organização p artid ária em co
seu lado o "w h ip ” * — o mais importante político profissional m itês. Nos Estados Unidos, a expressão significa hoje, em geral,
uma reunião secreta ou fechada de líderes do partido ou de con
gressistas p ara tom ar deliberações sobre a linha partidária, indicar
* M embro da bancada de um partido que tem por incumbência
ocupantes de cargos, eleger os líderes nas duas Casas do Congres
disciplinar seus colegas e levá-los a com parecer aos debates impor-
so etc. (N. do T.)
128 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 129

cráticas. Foi necessário formar uma associação eleitoral em das oportunidades econômicas, o político no sistema do "cau cu s"
cada distrito urbano para ajudar a m anter a organização inces tem ainda as oportunidades de satisfazer sua vaidade. Ser Ju iz
santemente em movimento e burocratizar tudo rigidam ente. Por de Paz ou Membro do Parlam ento está, decerto, em harm onia
isso, os funcionários contratados e remunerados das comissões elei com a ambição maior (e n o rm al); e as pessoas que são compro-
torais locais aum entaram numericamente e, no todo, talvez 10% vadam ente de boa origem , isto é, “cavalheiros”, alcançam o seu
dos eleitores se organizaram nesses comitês locais. Os adm inis objetivo. A meta m ais elevada é, decerto, a nobreza, especial
tradores eleitos do partido tinham o direito de escolher um assis mente para os grandes mecenas financeiros. Cerca de 50% das
tente e eram os portadores formais da política do partido. A finanças do partido dependem de contribuições de doadores que
força propulsora era o círculo local, composto principalm ente dos permanecem anônimos.
que se interessavam pela política m unicipal — da qual surgem
sempre as melhores oportunidades m ateriais. Esses círculos locais E quais foram as conseqüências de todo esse sistem a? Hoje
foram também os primeiros a recorrer ao mundo das finanças. em dia, os membros do Parlam ento, com a exceção dos poucos
Essa m áquina recém-surgida, que já não era comandada pelos membros do Gabinete (e uns insurgentes), norm alm ente não são
membros do Parlamento, teve de lutar, sem demora, com os nada mais do que homens bem disciplinados e sempre de acordo.
Entre nós, no Reichstag, tinha-se pelo menos o costume de res
anteriores detentores do poder e, acim a de tudo, com o " w h ip
ponder à correspondência particular de seu escritório, mostrando
Sendo apoiada pelas pessoas interessadas localmente, a m áquina
assim que o deputado estava atuante em favor do país. T ais
saiu da luta tão vitoriosa que o “w h ip” teve de sujeitar-se e
atitudes não são exigidas na Inglaterra; o membro do Parlam ento
entrar em acordo com ela. O resultado foi a centralização de
deve apenas votar, não cometer traição partidária. Deve compa
todo o poder nas mãos de uns poucos e, em últim a análise, da
recer quando o "w h ip” o convoca, e fazer o que o Gabinete ou
pessoa que estava na cúpula do partido. Todo esse sistema sur
o líder da oposição m andar. A m áquina do "cau cu s” no interior
g iu no Partido Liberal, ligado à ascensão de Gladstone ao poder.
é quase totalm ente sem princípios quando existe um chefe forte
O que levou essa m áquina a um triunfo tão rapido sobre os
que a tem completamente na mão. Com isso, o ditador plebis-
notáveis foi a fascinação da dem agogia “grandiosa” de Gladstone,
citário na realidade fica acim a do Parlam ento. T em , atrás de
a firm e fé que tinham as massas na substância ética de sua
si, as massas, atraídas por meio da m áquina, e os membros do
política e, acim a de tudo, sua fé no caráter ético de sua persona-
Parlam ento são para eles simplesmente os homens do espólio
nalidade. Tornou-se claro, sem demora, que um elemento ple- político de seu séquito.
biscitário cesarista na política — o ditador do campo de batalha
das eleições — havia surgido. Em 1877 o "cau cu s" tornou-se Como ocorre a seleção desses chefes fortes? Prim eiro, em
atuante, pela prim eira vez, nas eleições nacionais, e com êxito termos de que capacidade são escolhidos? Depois das qualidades
brilhante, pois o resultado foi a queda de D israeli no auge de da vontade — decisivas em todo o m undo — naturalm ente a
suas grandes realizações. Em 1866 a m áquina já estava tão com força do discurso dem agógico é, acim a de tudo, decisiva. Seu
pletamente orientada para a personalidade carismática que, quando caráter modificou-se desde a época em que oradores como
surgiu a questão da autonomia m unicipal, toda a m áquina, de Cobden se dirigiam ao intelecto e Gladstone dom inava a téc
alto a baixo, não indagou se isso realm ente era da competência nica de “deixar que os fatos sóbrios falem por si mesmos”. No
de Gladstone: simplesmente, a um a palavra sua, seguiu-o, dizen momento presente, com freqüência os meios puram ente emo
do: Gladstone, certo ou errado, nós o seguimos. E assim a cionais são usados — os meios que o Exército d a Salvação também
m áquina abandonou seu próprio criador, Cham berlain. explora a fim de comover as massas. Podemos considerar o
estado de coisas existente como um a “ditadura baseada na explo
Essa m áquina exige um pessoal considerável. N a Inglaterra, ração da massa em ocionalmente”. Não obstante, o sistema al
há cerca de 2.000 pessoas que vivem diretamente da política par tamente desenvolvido de trabalho de comissões no Parlam ento
tidária. N a verdade, os que participam da política ativamente inglês torna possível e compulsivo para todo político que pre
apenas como candidatos a empregos ou pessoas interessadas são tende participar da liderança cooperar no trabalho de comissão.
muito m ais numerosos, especialmente na política municipal. A lém Todos os ministros importantes, nas décadas recentes, têm esse
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treinamento real e efetivo como um pano-de-fundo. A prática que, apesar de todas as analogias, não se encontra em nenhum a
dos relatórios de comissão e da crítica pública dessas delibera outra parte. Os partidos são simplesmente e absolutamente con
ções é um a condição para o treinamento, para a seleção real dos dicionados à cam panha eleitoral que é m ais importante para a
líderes e a elim inação dos meros demagogos. distribuição de cargos: a luta pela presidência e pelo Governo
É assim na Inglaterra. O sistema do " cau cu s' ali, porém, dos vários estados. Plataform as e candidatos são escolhidos nas
tem um a forma fraca, em comparação com a organização par convenções nacionais dos partidos sem a interferência dos congres
tidária am ericana, que levou o princípio plebiscitário a uma sistas. D aí surgirem eles das convenções partidárias, cujos dele
expressão especialmente precoce e especialmente pura. gados são formalmente, e muito democraticamente, eleitos. T ais
Segundo a idéia de W ashington, a A m érica deveria ser delegados são determ inados pelas assembléias de outros delegados
um a com unidade adm inistrada pelos “cavalheiros”. N a sua época, que, por sua vez, devem seus mandatos às eleições “prim árias”,
na A m érica, o cavalheiro era também um proprietário de terras ou seja, à reunião dos eleitores diretos do partido. Nas eleições
ou um homem de educação universitária — isso, a princípio. De prim árias os delegados já são eleitos em nome do candidato à
início, quando os partidos começaram a organizar-se, os membros liderança nacional. Dentro dos partidos, ocorrem as lutas mais
da C âm ara dos Representantes pretendiam ser os líderes, tal como acerbas em torno da “indicação”. A final de contas, 300.000 a
na Inglaterra da época governavam os notáveis. A organização 400.000 nomeações oficiais estão nas mãos do Presidente, nomea
partidária era bastante frouxa e continuou a sê-lo até 1824. Em ções que são executadas por ele com a aprovação dos senadores
algum as comunidades, onde ocorreu primeiro o desenvolvimento dos diferentes estados. D aí serem os senadores políticos pode
moderno, a m áquina partidária estava em elaboração antes mes rosos. Em comparação, porém, a C âm ara dos Representantes é,
mo da década de 1820. Mas quando A ndrew Jackson foi eleito politicamente, bastante impotente, porque a distribuição de cargos
Presidente pela prim eira vez — a eleição do candidato dos agri está afastada dela e porque os membros do Gabinete, simples
cultores do Oeste — as velhas tradições foram derrubadas. A assistentes do Presidente, podem exercer o cargo à parte a con
liderança partidária formal pelos principais membros do Con fiança ou falta de confiança do povo. O Presidente, que é legi
gresso chegou ao fim pouco depois de 1840, quando os grandes timado pelo povo, enfrenta a todos, inclusive o Congresso; é
parlam entares, Calhoun e W ebster, retiraram -se da vida política esse o resultado da “separação de poderes”.
porque o Congresso havia perdido quase todo o seu poder em N a Am érica, o sistema de despojos, apoiado desse modo, foi
favor da m áquina partidária no interior. O fato de ter a “m á tecnicamente possível porque a cultura am ericana, com a sua
qu ina” plebiscitária se desenvolvido tão cedo na A m érica deve-se juventude, pôde tolerar o controle puramente diletante. Com
ao fato de que ali, e ali somente, o Executivo — e isso era o que 300.000 ou 400.000 desses homens de partido sem outra q u alifi
realm ente im portava — o chefe da distribuição de cargos, era cação a seu crédito além do fato de terem prestado bons serviços
um Presidente eleito por plebiscito. Em virtude da “separação de ao seu partido, esse estado de coisas não poderia existir, é claro,
poderes”, ele era quase independente do Parlam ento, no exer sem males enormes. U m a corrupção e um desperdício que não
cício do seu cargo. Assim , como o preço da vitória, as prebendas encontram paralelo só poderiam ser tolerados por um país com
pretendidas eram distribuídas precisamente na eleição presiden oportunidades econômicas ainda lim itadas.
cial. A través de A ndrew Jackson, o “sistema de despojos” trans
Ora, o chefe político é a figura que surge no quadro desse
formou-se sistematicamente em princípio e estabeleceram-se con
sistema de m áquina partidária plebiscitária. Quem é ele? É o
clusões.
empresário capitalista político que, por conta própria e correndo
O que significa esse sistema de despojos, a entrega de cargos seu risco, fornece votos. Pode ter estabelecido suas prim eiras rela
federais aos partidários do candidato vitorioso, para as formações ções como advogado ou dono de bar, ou como proprietário de esta
partidárias de hoje? Significa que partidos sem princípios opõem- belecimentos semelhantes, ou talvez como credor. Lança, par
-se m utuam ente; são apenas organizações de caçadores de em tindo daí, seus fios até poder “controlar” um certo número de
pregos, elaborando suas plataformas que variam segundo as pos votos. Quando chega a esse ponto, estabelece contato com os
sibilidades de conseguir votos, modificando suas cores num grau chefes vizinhos e, com zelo, habilidade e acim a de tudo dis
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crição, atrai a atenção dos que já avançaram mais na carreira, e desprezado como político “profissional”. O fato de não alcan
com isso consegue subir. O chefe é indispensável â organização çar, pessoalmente, altos postos federais, nem desejá-los, tem a
do partido, e esta fica centralizada em suas mãos. Proporciona, vantagem freqüente de possibilitar a apresentação de candidatos
substancialmente, os meios financeiros. Como os consegue ? Bem, notáveis de fora do partido quando o chefe político acredita
em parte pelas contribuições dos membros e especialmente tribu que terão atração para as urnas. D aí não concorrerem repetida
tando os salários dos funcionários nomeados através dele e de seu mente as mesmas velhas notabilidades do partido como no
partido. A lém disso há o suborno e as gorjetas. Quem deseja caso da A lem anha. Assim , a estrutura desses partidos sem prin
violar com im punidade um a das m uitas leis necessita da coni cípios, com os seus detentores do poder socialmente desprezados,
vência do chefe político e tem de pagar por ela; ou, então, terá ajudou homens capazes a alcançar a presidência — homens que,
problemas. M as isso apenas não é suficiente para acum ular o conosco, jam ais teriam chegado à cúpula. N a verdade, o chefe
capital necessário às empresas políticas. O chefe é indispensável político tem certa resistência contra o elemento de fora que pos
como recipiendário direto do dinheiro dos grandes m agnatas fi sa prejudicar as suas fontes de dinheiro e de poder. Não obs
nanceiros, que não entregariam seu dinheiro, com finalidades tante, na luta competitiva para conseguir a preferência dos elei
eleitorais, a um funcionário assalariado de um partido, ou a nin tores, os chefes políticos freqüentemente tiveram de condescender
guém m ais que tivesse de dar explicação pública de seus negó e aceitar candidatos conhecidos como adversários da corrupção.
cios. O chefe, com sua discrição judiciosa em assuntos financeiros, Assim, existe um a forte m áquina partidária capitalista, orga
é o homem natural para os círculos capitalistas que financiam nizada de forma rigorosa e total, de alto a baixo, e apoiada por
eleições. O chefe político típico é um homem absolutamente clubes de extraordinária estabilidade. Esses clubes, como T am -
sóbrio. N ão busca honras sociais; o “profissional” é desprezado m any H all, são como ordens cavalheirescas. Buscam vantagens
na “sociedade respeitável”. Busca apenas o poder, o poder como exclusivamente através do controle político, especialmente do Go
fonte de dinheiro, mas também o poder pelo poder. Em con verno m unicipal, que é o objetivo m ais importante na divisão
traste com o líder inglês, o chefe político americano trabalha no do espólio. Essa estrutura de vida partidária foi possibilitada
escuro. Não é ouvido discursando em público: sugere aos ora pelo alto grau de democracia nos Estados U nidos — um “Novo
dores o que eles devem dizer, de modo cômodo. Ele, porém, País”. Essa ligação, por sua vez, é o motivo pelo qual o sistema
conserva-se calado. Em geral não aceita postos, exceto o de se está morrendo gradualm ente. A A m érica já não pode ser
nador. Pois como os senadores, em virtude da Constituição, par governada apenas por diletantes. H á menos de 15 anos, quando
ticipam da distribuição de cargos, os principais chefes freqüen se perguntou aos trabalhadores americanos por que se deixavam
temente tomam assento nessa Casa. A distribuição de cargos governar pelos políticos que confessavam desprezar, a resposta
é realizada, em primeiro lugar, de acordo com os serviços pres
foi: “Preferimos ter nos cargos pessoas nas quais podemos cuspir
tados ao partido. M as também ocorre com freqüência o leilão do que um a casta de funcionários que cuspirá em nós, como
de cargos através de ofertas de dinheiro, e há certas taxas para
ocorre com vocês”. Era o velho ponto de vista da “democra
cargos individuais. Existe, portanto, um sistema de venda de
cia” am ericana. Mesmo então, os socialistas tinham idéias total
cargos que, afinal de contas, também era conhecido nas monar
mente diferentes, e agora a situação já não é tolerável. A
quias, inclusive no Estado religioso, dos séculos XVII e XVIII.
adm inistração diletante não basta e a Reform a do Serviço Público
O chefe não tem “princípios” políticos firm es; sua atitude estabelece um número sempre crescente de cargos vitalícios com
é totalmente carente de princípios, e ele pergunta apenas; O pensões. A reforma se desenvolve de tal modo que os funcioná
que conseguirá votos? È, com freqüência, homem de pouca rios de preparo universitário, tão incorruptíveis e capazes quanto
ilustração. M as em geral tem um a vida privada inofensiva e os nossos funcionários, ocupam os cargos. A gora mesmo cerca
correta. Em sua moral política, porém, ajusta-se naturalm ente de 100.000 cargos deixaram de ser objeto de distribuição depois
aos padrões éticos médios de conduta política, como muitos de das eleições. A o invés disso, esses cargos perm item aos seus
nós fizemos também durante o período de acumulação, no setor ocupantes gozar de pensões, e baseiam-se em exigências q u alita
da ética econôm ica.0 Não o preocupa o fato de ser socialmente tivas. O sistema de despojos passará assim gradualm ente ao se
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gundo plano e a natureza da liderança partidária provavelmente -Democrata era um a entidade m inoritária baseada em princípios
será também transformada — mas ainda não sabemos em que e opunha-se à adoção do Governo parlam entar porque não de
sentido. sejava manchar-se participando na ordem política burguesa exis
N a A lem anha, até agora, as condições decisivas da adm inis tente. O fato de que ambos os partidos se dissociavam do sis
tração política foram, em essência, as seguintes: tema parlam entar tornou impossível o Governo com esse sistema.
Prim eiro, os parlamentos foram impotentes. Em conse Considerando tudo isso, que aconteceu então aos políticos
qüência, nenhum homem com as qualidades do líder ingressou profissionais na A lem anha? Não tiveram poder, responsabilidade
no Parlam ento de forma permanente. Quem quisesse entrar no e só puderam desempenhar um papel subordinado, como notá
Parlam ento, que poderia realizar ali? Quando se vagava um veis. Em conseqüência, foram reanimados pelo instinto asso
cargo de Chancelaria, podia-se dizer ao chefe adm inistrativo: ciativo profissional, típico em toda parte. Era impossível para
“Tenho um homem muito capaz em m eu distrito eleitoral que um homem que não pertencesse ao seu grupo ascender nos cír
seria capaz de ocupar o cargo; nomeie-o”. E ele teria aceito culos dos notáveis que faziam de suas pequenas posições a sua
com prazer. Mas isso era tudo o que um membro do Parlam ento própria vida. Poderíamos mencionar muitos nomes em cada
alemão poderia fazer para satisfazer seus instintos de poder — partido, o Social-Dem ocrata inclusive, que encerram tragédias
se os tivesse. de carreiras políticas porque as pessoas que tinham qualidades
A isso devemos acrescentar a trem enda im portância do fun de liderança, e precisamente devido a essas qualidades, não foram
cionalismo especializado e formado na A lem anha. Esse fator toleradas pelos notáveis. Todos os nossos partidos seguiram
determ inou a impotência do Parlam ento. Nosso funcionalismo essa evolução e se tornaram associações profissionais dos notáveis.
não tinha rival no mundo. Essa im portância era acompanhada Bebei, por exemplo, ainda era um líder pelo temperamento e
do fato de que os funcionários pretendiam não só cargos, mas pureza de caráter, por m ais modesto que fosse seu intelecto. O
também postos no Gabinete. N a Assem bléia Legislativa da fato de ter sido um m ártir, de jam ais ter traído a confiança
Baviera, quando a adoção do Governo parlam entar foi debatida das massas, resultou na conquista absoluta dessas massas. Não
no ano passado, afirmou-se que, se os membros da assembléia havia poder no partido que o desafiasse seriam ente. T al lide
tivessem de ser colocados nos postos de Gabinete, as pessoas de rança chegou ao fim , depois de sua morte, e teve início o domínio
talento já não buscariam a carreira oficial. A lém disso, a adm i dos funcionários. Os funcionários de sindicatos, secretários de
nistração do serviço público escapava sistematicamente a esse partidos e jornalistas chegaram ao cimo. Os instintos do fun
controle, tal como se vê pelas discussões das comissões inglesas. cionalismo dom inaram o partido — um funcionalism o altam ente
A adm inistração tornava assim impossível aos parlamentos — respeitável, de rara respeitabilidade, podemos dizer, em compa
com um as poucas exceções — treinar chefes adm inistrativos ração com as condições em outros países, especialmente os fun
realm ente úteis entre suas próprias fileiras. cionários sindicais, freqüentemente corruptos, da A m érica. Mas
U m terceiro fator é o de que na A lem anha, em contraste os resultados do controle pelo funcionalismo, que discutimos
com a A m érica, tivemos partidos, com opiniões públicas baseadas acima, também começaram no partido.
em princípios, que sustentaram que seus membros, pelo menos Desde a década de 1880 os partidos burgueses transforma-
de m aneira subjetiva, representavam genuinam ente W eltan sch au- ram-se totalmente em associações profissionais, ou corporações,
un gen . O ra, os dois mais importantes desses partidos, o Partido de notáveis. N a verdade, ocasionalmente os partidos tiveram
Católico do Centro e o Partido Social-Democrata foram, desde de recorrer a personalidades de fora das fileiras partidárias,
sua criação, minoritários, e intencionalm ente minoritários. Os com objetivos publicitários, para que pudessem dizer: “Temos
principais círculos do Partido do Centro no Reich jam ais ocul estes e estes nomes”. N a m edida do possível, evitaram deixar
taram sua oposição à democracia parlam entar, pelo medo de per que esses nomes disputassem eleição; somente quando inevitável,
manecer na m inoria e, com isso, enfrentar grandes dificuldades e a pessoa insistia, podia candidatar-se. O mesmo espírito pre
em colocar os seus candidatos a empregados, como vinham fa dominou no Parlam ento. Nossos partidos parlam entares eram
zendo através da pressão sobre o Governo. O Partido Social- e são corporações. Todo discurso pronunciado no plenário do
136 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO 137

Reichstag é censurado pelo partido, antes de ser feito. Isso fazem o líder, e isso significa aquilo que os insurgentes de um
é evidente na sua monotonia sem par. Somente pode falar partido habitualm ente cham am de “domínio de grupo”. No
aquele a quem é dada a palavra. D ificilm ente poderemos pensar momento, na A lem anha, temos apenas a segunda forma. No
num contraste mais forte com a Inglaterra, e também — por futuro, a perm anência dessa situação, pelo menos no Reich, é
motivos opostos — com a França. facilitada pelo fato de que o Bu n d esrat 7 ascenderá novamente e
Ora, em conseqüência do colapso enorme, habitualmente cha necessariamente lim itará o poder do Reichstag e com isso sua
mado Revolução, talvez esteja em m archa um a transformação. im portância como selecionador de líderes. A lém disso, em sua
T alvez — mas não é certo. No início, começaram a surgir novos forma presente, a representação proporcional é um fenômeno
tipos de aparato partidário. Prim eiro, houve os aparatos am a típico da democracia sem líder. Isso ocorre não só porque faci
dorísticos. Estão representados, com m ais freqüência, pelos alu lita os conchavos dos notáveis para a organização de chapas,
nos das várias universidades, que dizem a um homem ao qual mas também porque no futuro dará aos grupos de interesse
atribuem qualidades de liderança: queremos fazer o trabalho organizados a possibilidade de obrigar os partidos a incluir seus
necessário para você. Segundo, há os aparatos dos empresários. funcionários na lista de candidatos, criando assim um P arla
U m homem ao qual são atribuídas qualidades de liderança é mento apolítico no qu al a liderança autêntica não tem lugar. O
abordado por pessoas dispostas a fazer-lhe a propaganda, a uma Presidente do Reich só poderia transformar-se num a válvula de
taxa fixa para cada voto recebido. Se me perguntassem, hones segurança da exigência da liderança se fosse eleito de forma
tamente, qual desses dois aparatos me parece m ais digno de fé, plebiscitária e não pelo Parlam ento. A liderança à base do tra
do ponto de vista puram ente técnico, creio que preferiria o balho realizado poderia criar-se, e a seleção se faria, especialmente
segundo. Ambos, porém, foram bolhas de sabão que cresceram se, nas grandes m unicipalidades, o prefeito plebiscitário surgisse
depressa e desapareceram também rapidam ente. Os aparatos em cena, com o direito de organizar independentemente o seu
existentes transformaram-se, mas continuaram a funcionar. Os quadro de auxiliares. Isso ocorre no caso dos Estados Unidos,
fenômenos são apenas sintomas do fato de que novos aparatos sempre que alguém deseja atacar seriamente a corrupção. É
surgiriam , se houvesse líderes. M as até mesmo a peculiaridade necessária um a organização partidária especial para essas elei
técnica da representação proporcional im pedia essa ascendência. ções. M as a hostilidade pequeno-burguesa de todos os partidos
Apenas uns poucos ditadores das m ultidões de rua surgiram para aos líderes, inclusive certamente o Partido Social-Dem ocrata,
desaparecer novamente. E somente o séquito de um a ditadura deixa a formação futura dos partidos, e todas essas possibilidades,
de massa é organizado de forma rigorosamente disciplinada: ainda na obscuridade total.
daí o poder dessas m inorias instáveis.
Portanto, não podemos ver ainda que forma tom ará o con
Vamos supor que tudo isso se modificasse; então, depois do trole da política como “vocação”. M uito menos podemos ver em
que dissemos acima, compreende-se claram ente que a liderança que caminhos se abrem oportunidades para que os talentos polí
plebiscitária dos partidos encerra a “falta de alm a” dos séquitos, ticos possam ser levados a tarefas políticas satisfatórias. Quem
sua proletarização intelectual, poderíamos dizer. A fim de ser foi, pelas suas circunstâncias m ateriais, obrigado a viver “d a”
um aparato útil, um a m áquina no sentido americano — imper- política, quase sempre terá de exam inar as posições alternativas de
turbada até mesmo pela vaidade dos notáveis ou as pretensões a jornalista ou funcionário do partido, como caminhos diretos tí
opiniões independentes — o séquito de um desseslíderes deve picos. Ou poderá exam inar a posição de representante de grupos
obedecer-lhe cegamente. A eleição de Lincoln só foi possível de interesse — como um sindicato, um a câm ara de comércio,
por esse caráter da organização partidária, e com Gladstone, um a associação r u r a l8 ou uma associação profissional,9 um a
como dissemos, ocorreu o mesmo no "cau cu s”. É, simplesmente, junta de trabalho, um a associação de empregadores, etc., ou
o preço pago da direção pelos líderes. Só há, porém, a escolha ainda um cargo m unicipal adequado. N ada mais se pode dizer
entre a democracia com liderança, com um a “m áquina”, e a sobre esse aspecto externo: em comum com o jornalista, o fun
democracia sem líder, ou seja, o domínio dos políticos profissio cionário de partido suporta a odiosa condição de dêclassé. “Es
nais sem vocação, sem as qualidades carismáticas íntim as que critor assalariado”, ou “orador assalariado”, sempre lhe soará
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infelizm ente nos ouvidos, mesmo quando tais palavras não fo cia”, em si, é um dos pecados mortais do político. É um a da
rem ditas. Quem for intim am ente indefeso e incapaz de en quelas qualidades que condenam a progénie de nossos intelec
contrar a devida resposta a si mesmo, fará melhor afastando-se tuais à incapacidade política. O problema é, simplesmente,
dessa carreira. De qualquer modo, além das graves tentações, é como fundir a paixão cálida e o frio senso de proporção num a
um caminho que pode levar, constantemente, a decepções. Que mesma alm a? A política é feita com a cabeça, e não com outras
satisfações íntim as pode, então, oferecer essa carreira e que con partes do corpo ou da alm a. E, não obstante, a dedicação à políti
dições pessoais são pressupostas para quem nela ingressa? ca, se não for um jogo intelectual frívolo, mas um a conduta genui
Em prim eiro lugar, a carreira da política proporciona uma namente hum ana, pode nascer e crescer apenas da paixão. Mas
sensação de poder. Saber que influencia homens, que participa aquele firme controle da alm a, que distingue o político apai
no poder sobre eles, e, acim a de tudo, o sentimento de que xonado e o diferencia do simples diletante político “estèril-
tem na mão uma fibra nervosa de acontecimentos historicamente mente excitado”, só é possível pelo hábito ao desapego em todo
importantes, pode elevar o político profissional acima da rotina o sentido da palavra. A “força” da personalidade “política”
cotidiana, mesmo quando ele ocupa posições formalmente mo significa, em primeiro lugar, a posse das qualidades de paixão,
destas. M as a questão do momento para ele é: através de que responsabilidade e proporção.
qualidades posso esperar fazer justiça a essa força (por mais Portanto, a todo dia e a toda hora, o político tem de supe
lim itada que seja, no caso individual) ? Como pode ele espe rar, interiormente, um inim igo bastante comum e demasiado
rar fazer justiça à responsabilidade que o poder lhe impõe? Com hum ano: a vaidade vulgar, o inim igo m ortal da dedicação obje
isso, ingrersamos no setor das indagações éticas, pois aí se situa tiva a uma causa e de qualquer distância — no caso, da distân
o problema: que tipo de homem se deve ser para que se possa cia para com o próprio eu.
colocar a mão no leme da história? A vaidade é um a qualidade muito generalizada e talvez
Podemos dizer que três qualidades destacadas são decisivas ninguém esteja completamente livre dela. Nos círculos aca
para o político: paixão, senso de responsabilidade e senso de dêmicos e eruditos, a vaidade é um a espécie de moléstia ocupa-
proporções. cional, mas precisamente com o intelectual, ela — por mais
Isto significa paixão no sentido de um a objetiv idade, de desagradável que possa ser a sua manifestação — é relativam ente
dedicação apaixonada a um a “causa”, ao deus ou demônio que é inócua, no sentido de que, geralm ente, não perturba o em preen
o senhor. Não é a paixão no sentido daquela emoção íntim a dimento científico. O caso é totalmente diferente com o político.
que meu am igo Georg Sim m el costumava designar como “ex Ele trabalha com o desejo de poder como um meio inevitável.
citação estéril”, e que era peculiar a um certo tipo de intelectual Portanto, o “instinto do poder”, como se d iz habitualm ente,
russo (m as não todos, de modo a lg u m !). É um a excitação que pertence na verdade às suas qualidades normais. O pecado con
tem um papel tão importante entre nossos intelectuais nesse tra esse espírito altaneiro de suá vocação, porém, começa quando
carnaval que enfeitamos com o nome orgulhoso de “revolução”. esse desejo de poder deixar de ser objetiv o para tornar-se um a
É um “romantismo dos que são intelectualm ente interessantes”, auto-em briaguez puram ente pessoal, ao invés de colocar-se ex
que term ina num vazio destituído de qualquer senso de respon clusivamente a serviço “da causa”. Em últim a análise, há ape
sabilidade objetiva. nas dois tipos de pecado m ortal no campo da política: a falta de
N a verdade, a simples paixão, por m ais autêntica que seja, objetividade e — com freqüência idêntica a ela, mas nem sempre
não basta. Ela não faz o político, a menos que a paixão como — a irresponsabilidade. V aidade, a necessidade de destacar-se
dedicação a um a “causa” também torne a responsabilidade para pessoalmente no prim eiro plano da forma mais clara possível,
com tal causa a estrela-guia da ação. Quanto a isso, é necessá tenta fortemente o político a cometer um desses pecados, ou
rio um senso de proporção. É a qualidade psicológica decisiva ambos. Isso ainda é m ais exato no caso em que o demagogo
do político: sua capacidade de deixar que as realidades atuem é obrigado a contar com o “efeito”. Portanto, ele corre fre
sobre ele com um a concentração e um a calm a íntim as. D aí qüentemente o risco de tornar-se um ator bem como o de ver
sua distân cia em relação às coisas e homens. “F alta de distân com leviandade a responsabilidade das conseqüências de seus
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atos, passando a interessar-se apenas pela “impressão” que causa. política como “causa”. Que vocação pode a política realizar,
A falta de objetividade tenta-o a lutar pela aparência atraente independentemente de suas metas, dentro da economia ética
do poder, e não pelo poder real. Sua irresponsabilidade, porém, total da conduta hum ana — qual é por assim dizer o ponto
sugere que ele gosta do poder simplesmente pelo poder sem ético onde a política se sente à vontade? Nesse aspecto, na
um a finalidade substantiva. Embora — ou antes, justamente realidade, o choque final de W eltan sch auun gen , opiniões m un
porque — o poder é o meio inevitável, e a luta pelo poder é diais entre as quais, por fim , é necessário escolher. Vamos en
uma das forças motrizes de toda a política, não há deformação frentar resolutamente esse problema, que recentemente voltou a
mais prejudicial da força política do que a ostentação do poder surgir, e na m inha opinião de forma m uito errada.
tão ao gosto dos parv en us, e a inútil complacência no sentimento Mas prim eiro vamos libertar-nos de um a falsificação muito
do poder, e em geral qualquer culto do poder em si. O “polí trivial: ou seja a de que a ética pode surgir primeiro num pa
tico do poder” pode conseguir efeitos fortes, mas na realidade pel moralmente m uito comprometido. Vamos exam inar exem
seu trabalho não leva a parte algum a e não tem sentido. (E n plos. Raram ente constataremos que um homem cujo amor passa
tre nós, também, um culto promovido com ardor procura glo de uma m ulher para outra não sinta necessidade de legitim ar
rificá-lo.) Nisso, os críticos da “política do poder” estão abso isso para si mesmo, dizendo: ela não era digna do meu amor,
lutam ente certos. Do súbito colapso interno dos representantes ou ela me decepcionou, ou qualquer outra “razão” semelhante
típicos dessa m entalidade, podemos ver a fraqueza e impotência que exista. É um a atitude que, com uma profunda falta de ca
íntim as que se escondem atrás desse gesto jactancioso, mas to valheirismo, acrescenta um a suposta “legitim idade” ao simples
talm ente vazio. É um produto de um a atitude superficialmente
fato de que ele já não a am a e ela tem de suportar isso. Em
blasé para com o significado da conduta hum ana; e não tem
virtude dessa “legitim ação”, o homem pretende para si um
qualquer relação com o conhecimento da tragédia a que qual direito e, além de causar-lhe um a infelicidade, coloca-a em erro.
quer ação, e especialmente a ação política, está intim am ente
O competidor amoroso bem sucedido procede exatam ente da
ligada.
mesma form a: ou seja, o adversário deve ser menos digno,
O resultado final da ação política m antém com freqüência, pois de outro modo não teria perdido. Não é diferente, decerto,
e às vezes regularm ente, uma relação totalmente inadequada e se depois de um a guerra vitoriosa o vencedor, num a atitude
por vezes até mesmo paradoxal com o seu sentido original. Isso farisaica, afirm a: “V enci porque estava com a razão”. Ou se
é fundam ental para tôda história, ponto que não procuraremos alguém , sob o impacto terrível da guerra, sofre um colapso
provar detalhadamente, aqui. Mas devido a esse fato, para psicológico, sente a necessidade de legitim ar seu desgaste pe
que a ação tenha força íntim a, o serviço da causa não deve estar rante si mesmo, dizendo: “E u não podia tolerá-la porque tinha
ausente dela. Exatamente que causa, a serviço da qual o político de combater por um a causa moralmente m á”. E o mesmo ocorre
luta pelo poder e usa o poder, parece um a questão de fé. O com os derrotados na guerra. Ao invés de procurarem, como
político pode servir a finalidades nacionais, hum anitárias, éticas, um a m ulher velha, o “culpado” depois da guerra — num a situa
sociais, culturais, m undanas ou religiosas. O político pode ser
ção na qual a estrutura da sociedade provocou a guerra — as
mantido por um a forte crença no “progresso” — qualquer que
pessoas de atitude m adura e controlada diriam ao inim igo:
seja o seu sentido — ou pode rejeitar friam ente esse tipo de cren
“Perdemos a guerra. Vocês a ganharam . T udo acabou, agora.
ça. Pode pretender estar a serviço de um a “idéia” ou, rejeitando
Vamos discutir que conclusões devem ser fixadas, segundo os
i&so em princípio, pode desejar servir a finalidades externas da
interesses objetiv os que entram em jogo e o que é mais im portante
vida cotidiana. A lgum a forma de fé, porém, deve sempre exis
tir. Se assim não for, é absolutamente certo que a maldição tendo em vista a responsabilidade para com o fu tu ro que acim a
da indignidade da criatura superará até os êxitos políticos exter de tudo onera o vencedor”. Q ualquer outra coisa é indigna e
namente mais fortes. será como um boom eran g. U m a nação perdoa se seus interesses
tiverem sido prejudicados, mas nenhum a nação perdoa se sua
Com^ a afirmação acima, já estamos empenhados na discus honra tiver sido ofendida, especialmente por um a hipocrisia fa
são do últim o problema que nos interessa, aq u i: o eth os da nática. Cada documento novo que é divulgado, depois de décadas,
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revive as lamentações indignas, o ódio e o desprezo, ao invés de vado. “Q uem com ferro fere com ferro será ferido”, e a luta é
perm itir que a guerra seja enterrada no seu término, pelo menos a luta em toda parte. D aí a ética do Sermão da M ontanha.
moralmente. Isso só é possível através da objetividade e cavalhei No Serm ão da M ontanha vemos a ética absoluta do evan
rismo, e acim a de tudo somente através da dignidade. Mas gelho, que é um a questão m ais séria do que o acreditam as
jam ais é possível através de um a “ética” que na verdade significa pessoas que gostam de citar hoje tais mandamentos. Esta ética
uma falta de dignidade de ambos os lados. Ao invés de se preo não é brincadeira. O mesmo que se disse da causalidade na
cupar com o interesse do político, ou seja, com o futuro e a res ciência se aplica a ela: não é um carro que podemos parar à von
ponsabilidade para com ele, essa ética se volta para questões poli tade; é tudo ou nada. É precisamente esse o significado do evan
ticamente estéreis de culpas passadas, que não podem ser solu gelho, para que dele não resultem trivialidades. D aí, por exem
cionadas politicamente. A gir dessa forma é politicamente culposo, plo, ter sido dito do jovem rico: “Ele se foi em meio ao sofri
se tal culpa existe. E ignora a falsificação inevitável da totali mento, pois tinha m uitas posses”. O mandam ento do evangelista,
dade do problema, através de interesses muito m ateriais: ou seja, porém, é incondicional e sem am bigüidades: dá o que tens —
o interesse do vencedor no maior lucro moral e m aterial possível; absolutamente tudo. O político dirá que essa imposição é social
as esperanças do derrotado de negociar vantagens através de con mente sem sentido, enquanto não for realidade em toda parte.
fissões de culpa. Se há algum a coisa “vulgar”, então, isso é Assim, o político defende a tributação, a tributação confiscatória,
vulgar, e é o resultado desse modo de explorar a “ética” como o confisco puro e simples — num a palavra, a coação e a regula
meio de “estar com a razão”. mentação para todos. O mandam ento ético, porém, não se
E, então, que relações têm realm ente a ética e a política P preocupa com isso, e essa despreocupação é a sua essência. Ou
Não haverá qualquer ligação entre as duas, como já se afirmou tomemos o exemplo “volta a outra face” : esse m andam ento é
incondicional e não duvida da fonte da autoridade que tem a
ocasionalmente? Ou será verdade o oposto: que a ética da
conduta política é idêntica com a de qualquer outra conduta? outra pessoa para golpear. Exceto para um santo, é um a ética
de indignidade. Eis a í: devemos ser santos em tudo; pelo menos
Ocasionalmente, acreditou-se existir uma escolha exclusiva entre
na intenção, devemos viver como Jesus, os apóstolos, São F ran
as duas proposições: uma delas deve ser a correta. M as será
cisco e outros semelhantes. En tão essa ética terá sentido e ex
verdade que qualquer ética do mundo poderia estabelecer m an
pressará um tipo de dignidade; de outra forma, tal não acontece.
damentos de conteúdo ideal para as relações eróticas, comerciais,
Já se disse, de acordo com a ética acósmica do am or, “Não
fam iliares e oficiais; para as relações com nossa m ulher, com o
resistiu ao m al pela força” ; para o político, a proposição inversa
verdureiro, o filho, o réu? Será realm ente tão pouco importante
é que tem valor: “o m al dev e ser resistido pela força”, ou seremos
para as exigências éticas à política que esta opera com meios
responsáveis pela sua vitória. Quem desejar seguir a ética do
muito especiais, ou seja, o poder apoiado pela v iolên cia? Não
evangelho deve abster-se de golpes, pois eles significam a com
vemos que os ideólogos bolchevistas e espartacistas provocam
pulsão; pode ingressar nos sindicatos da companhia. A cim a de
exatamente os mesmos resultados de qualquer ditador m ilitarista, tudo, não deve falar de “revolução”. A final de contas, a ética do
exatamente porque usam esse meio político? Em que, a não evangelho não deseja ensinar que a guerra civil é a única legítim a.
ser nas pessoas dos detentores do poder e seu diletantismo, difere O pacifista que segue o evangelho se recusará a pegar em armas
o domínio dos conselhos de trabalhadores e soldados e o domínio ou as lançará por terra. N a A lem anha, era esse o dever ético
de qualquer detentor do poder no velho regim e? De que modo recomendado para acabar com a guerra e, portanto, com todas
difere a polêmica da m aioria dos representantes da ética presumi- as guerras. O político dirá que a única forma segura de desa
damente nova da ética dos adversários que criticavam , ou da creditar a guerra para todo o futuro previsível seria um a paz
ética de qualquer outro dem agogo? Em sua nobre intenção, do status quo. As nações teriam indagado, então, “para que esta
poder-se-á dizer. Bem! Mas é dos meios que falamos aqui, e g u erra?” E a guerra teria sido argum entada ad absu rdu m , o que
os adversários, com sinceridade completa e subjetiva, pretendem, é hoje impossível. P ara os vencedores, pelo menos para parte
da mesma forma, que suas intenções últim as são de caráter ele deles, a guerra terá sido politicamente lucrativa. E a responsa-
144 ENSAIOS DE S(>CIOLOGIA a p o lít ic a co m o v o c a ç ã o 145

bilidade disso cabe ao comportamento que nos impossibilitou qu al o direito de pressupor sua bondade e perfeição. N ão se sente
quer resistência. E em conseqüência da ética do absolutismo, em condições de onerar terceiros com os resultados de suas pró
quando o período de exaustão tiver passado, a p az estará desa­ prias ações, na m edida em que as pôde prever. D irá: esses re
creditada, n ão a guerra. sultados são atribuídos à m inha ação. Quem acredita num a ética
Vejamos, finalm ente, o dever da fidelidade. Para a ética de objetivos finais só se sente responsável por fazer que a chama
absoluta, trata-se de um valor incondicional. D aí se ter chegado das intenções puras não seja sufocada: por exemplo, a chama
à decisão de publicar todos os documentos, especialmente os do protesto contra a injustiça da ordem social. R eanim á-la sem
que colocavam a culpa em nosso próprio país. À ba$e dessas pre é o propósito de seus atos bastante irracionais, julgados à
publicações unilaterais, seguiram-se as confissões de culpa — e luz de seu possível êxito. São atos que só podem ter, e só
foram unilaterais, incondicionais e sem preocupação cofh as con terão, valor exem plar.
seqüências. O político verá que em conseqüência a verdade Mesmo nesse caso o problema ainda não está esgotado.
não foi esclarecida, e sim certamente obscurecida pelo exagero N enhum a ética do m undo pode fugir ao fato de que em num e
e pelo despertar das paixões; somente um a investigação metódica rosos casos a consecução de fins “bons” está lim itada ao fato
completa pelos não-participantes poderia ser proveitosa; qual de que devemos estar dispostos a pagar o preço de usar meios
quer outra m edida pode ter conseqüências, para um a nação, moralmente dúbios, ou pelo menos perigosos — e enfrentar a
impossíveis de rem ediar durante décadas. M as a ética absoluta possibilidade, ou mesmo a probabilidade, de ramificações dani
simplesmente não pergu n ta quais as “conseqüências”. Esse ponto nhas. N enhum a ética no mundo nos proporciona um a base
é decisivo. para concluir quando, e em que proporções, a finalidade etica
Devemos ser claros quanto ao fato de que toda conduta etica mente boa “justifica” os meios eticam ente perigosos e suas ra
mente orientada pode ser guiada por um a de duas m áxim as fun mificações.
dam entalmente e irreconciliavelmente diferentes: a conduta pode O meio decisivo para a política é a violência. Podemos
ser orientada para um a “ética das últim as finalidades”, ou para ver as proporções da tensão entre meios e fins, quando consi
um a “ética da responsabilidade”. Isto não é dizer que uma ética derados eticam ente, pelo seguinte: como geralm ente se sabe,
das últim as finalidades seja idêntica à irresponsabilidade, ou que mesmo durante a guerra os socialistas revolucionários (facção
a ética de responsabilidade seja idêntica ao oportunismo sem prin Z im m erwald) professava um princípio que poderíamos form ular
cípios. N aturalm ente ninguém afirm a isso. H á, porém, um con contundentem ente: “Se enfrentarmos a escolha entre m ais alguns
traste abismal entre a conduta que segue a m áxim a de um a ética anos de guerra e em seguida a revolução, e a paz agora sem
dos objetivos finais — isto é, em termos religiosos, “o cristão faz revolução, preferimos m ais alguns anos de guerra 1” E à per
o bem e deixa os resultados ao Senhor” — e a conduta que segue gu n ta: “O que pode trazer essa revolução?”, todo socialista
a m áxim a de um a responsabilidade ética, quando então se tem dotado de conhecimentos científicos responderia: não podemos
de prestar conta dos resultados previsíveis dos atos cometidos. falar de um a transição para um a economia que, em nosso sen
tido, fosse cham ada de socialista; ressurgirá um a economia bur
Pode-se demonstrar a um sindicalista convicto, partidário da guesa, apenas sem os elementos feudais e os vestígios dinásticos.
ética dos objetivos finais, que seus atos resultarão num aumento Para esse resultado tão modesto, eles estão dispostos a enfren
das oportunidades de reação, na maior opressão de sua classe e na tar “m ais alguns anos de guerra”. Bem poderíamos dizer que
obstrução de sua ascensão — sem causar nele a menor impressão. mesmo com um a convicção socialista m uito robusta rejeitaría
Se um a ação de boa intenção leva a m aus resultados, então, aos mos um a finalidade que exige tais meios. Com o bolchevismo
olhos do agente, não ele, mas o mundo, ou a estupidez dos outros e o espartacismo e, em geral, com qualquer tipo de socialismo
homens, ou a vontade de Deus que assim os fez, é responsável pelo revolucionário, é precisamente o mesmo. É, decerto, de um
m al. Mas um homem que acredita num a ética da responsabili ridículo total denunciar moralmente os políticos do poder, do
dade leva em conta precisamente as deficiências médias das regim e antigo, por m ais justa que possa ser a rejeição de seus
pessoas; como Fichte disse corretamente, ele não tem nem mesmo objetivos.
10
146 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VOCAÇÃO 147

A ética dos fins últimos evidentemente se desfaz na questão pecado original, a predestinação e o deus abscon ditus, tudo isso
da justificação dos meios pelos fins. N a realidade, logicamente nasceu de nossa experiência. Tam bém os primeiros cristãos sa
ela tem apenas a possibilidade de rejeitar toda a ação que em biam muito bem que o mundo é governado pelos demônios e
prega meios moralmente perigosos — em teoria! No mundo da quem se dedica à política, ou seja, ao poder e força como um
realidade, em geral, encontramos a experiência sempre renovada meio, faz um contrato com as potências diabólicas, e pela sua
de que o partidário de um a ética de fins últimos subitamente ação se sabe que não é certo que o bem só pode vir do bem e o
se transforma num profeta quiliasta. Por exemplo, os que recen m al só pode vir do mal, mas que com freqüência ocorre o in
temente pregaram o “amor contra a violência” pedem agora o verso. Quem deixar de perceber isso é, na realidade, um ingênuo
uso da fôrça para o últim o ato de violência, que levaria, então, a em política.
um estado de coisas no qual toda a violência é elim inada. Da Estamos colocados em várias esferas da vida, cada qual go
mesma forma, nossos oficiais diziam aos soldados antes de qual vernada por leis diferentes. A ética religiosa explicou esse fato
quer ofensiva: “Esta será a ú ltim a: ela nos trará a vitória e com de modos diferentes. O politeísmo helénico fez sacrifícios a
isso a paz”. O proponente de um a ética de fins absolutos não Afrodite e H era igualm ente, a Dioniso e Apoio, e sabia que
pode resistir sob a irracionalidade ética do mundo. É um “ra- êsses deuses freqüentemente estavam em conflito entre si. A
cionalista” cósmico-ético. Os que conhecem Dostoievski lem ordem de vida hindu fez de cada uma das diferentes ocupações
brarão a cena do “Grande Inquisidor”, onde o problema é ex objeto de um código ético específico, o Darm a, segregando para
posto de modo pungente. Se fizermos qualquer concessão ao sempre umas das outras como castas, colocando-as assim num a
princípio de que os fins justificam os meios, não será possível hierarquia fixa de ordem. Para o homem nascido nela, não
aproxim ar um a ética dos fins últimos e um a ética da responsa havia como fugir a isso, a menos que voltasse a nascer em ou
bilidade, ou decretar eticamente que fim deve justificar que tra vida. As ocupações eram, assim, colocadas a distâncias va
meios. riadas dos m ais altos bens religiosos de salvação. Dessa forma,
M eu colega, F . W . Fõrster, por quem tenho pessoalmente a ordem de casta perm itia a possibilidade de estabelecer o Darm a
elevada estima, pela sua indubitável sinceridade, mas a quem de cada casta, desde os ascetas e brâmanes até os canalhas e
rejeito sem reservas como político, acredita ser possível contornar prostitutas, de acordo com as leis imanentes e autônomas de suas
essa dificuldade com a simples tese: “do bem só vem o bem ; respectivas ocupações. A guerra e a política estavam também
mas do m al só vem o m al”. Nesse caso, todo esse complexo de incluídas. A guerra está integrada na totalidade das esferas da
questões não existiria. M as é espantoso que essa tese surja à luz vida, no Bh agav ad-Gita, na conversação entre K rishna e A rduna.
2.500 anos depois dos Upanichades. Não só a totalidade do “Faz o que deve ser feito”, isto é, o trabalho que, segundo o
curso da história m undial, mas qualquer exame franco da expe D arm a da casta do guerreiro e suas regras, é obrigatório e que,
riência cotidiana nos leva ao oposto. O desenvolvimento das segundo o propósito da guerra, é objetivamente necessário. O
religiões em todo o mundo é determ inado pelo fato de ocorrer hinduísmo acredita que tal conduta não prejudica a salvação
o inverso. O velho problema da teodicéia consiste na questão religiosa, mas, antes, a promove. Quando tinha morte de herói,
mesma de como pode um poder, considerado como onipotente o guerreiro indiano ia certamente para o céu de Indra, tal como
e bom, ter criado um mundo irracional, de sofrimento imerecido, o guerreiro teutônico ia para o V alhalla. O herói indiano teria
de injustiças impunes, de estupidez sem esperança. Ou esse desprezado o N irvana tanto quanto o teutônico teria zombado
poder não é onipotente, nem bom, ou, então, princípios de com do paraíso cristão, com seus coros angelicais. Esta especializa
pensação e recompensa totalmente diversos governam nossa vida ção da ética perm itia à ética indiana um tratamento da política
— princípios que podemos interpretar metafisicamente, ou mesmo igual ao das outras esferas, seguindo as leis próprias da política
princípios que escapam para sempre à nossa compreensão. e até mesmo fomentando essa arte real.
Esse problema — a experiência da irracionalidade no mundo Um “m aquiavelism o” realm ente radical, no sentido popular
— tem sido a força propulsora de toda evolução religiosa. A daquela palavra, está representado classicamente na literatura in
doutrina indiana do carma, o dualism o persa, a doutrina do diana, no K au t aliy a A rth asastra (m uito anterior a Cristo, supos-
148 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VO CAÇÃO 149

tamcnte da época de C handragupta). Em contraste com esse Quem contrata meios violentos para qualquer fim — e todo
documento, o Prin cipe de M aquiavel é inofensivo. Como a ética político o faz — fica exposto às suas conseqüências específicas.
católica o sabe — da qu al o Professor Förster se aproxima nos Isso é especialmente válido para o cruzado, religioso e revolu
demais aspectos — os con silia ev an gelica são um a ética especial cionário igualm ente. Tomemos confiantemente o presente como
para os dotados do carisma de um a vida santa. Entre eles está exemplo. Quem deseja estabelecer a justiça absoluta na T erra,
o monge que não deve verter sangue nem buscar lucros, e ao pela força, necessita de adeptos, de um a “m áquin a” hum ana.
seu lado o cavaleiro de fé e o burguês, que têm permissão para Deve proporcionar os prêmios necessários, internos e externos,
fazer as duas coisas — o primeiro verter sangue, o segundo bus a recompensa celestial ou m aterial, a essa “m áq uina”, ou ela não
car o lucro. A graduação da ética e sua integração orgânica funcionará. N as condições da moderna luta de classe, os prêmios
na doutrina da salvação é menos coerente do que na índ ia. internos consistem n a satisfação do ódio e do anseio de vingança;
Segundo as pressuposições da fé cristã, o caso podia e tinha de acim a de tudo, o ressentimento e a necessidade de um farisaísmo
ser esse. A m aldade do mundo, provocada pelo pecado original, pseudo-ético: os adversários devem ser caluniados e acusados de
perm itia com relativa facilidade a integração da violência na heresia. As recompensas externas são a aventura, vitória, pilha
ética como um meio de disciplina contra o pecado e os hereges gem , poder e despojos. O líder e seu êxito dependem comple
que colocavam em perigo a alm a. As exigências do Sermão da tamente do funcionam ento de sua m áquina e, portanto, não de
M ontanha, porém, uma ética acósmica de fins últimos, deixavam seus próprios motivos. Assim , ele também depende de ser ou
implícito um direito natural de imperativos absolutos baseado não o prêmio perm an en tem en te concedido aos seguidores, ou
na religião. Esses imperativos absolutos conservaram a sua seja, aos Guardas Vermelhos, aos delatores, agitadores, dos quais
força revolucionante e entraram em cena com um vigor elemen o líder necessita. O que ele realm ente alcança nas condições
tar durante quase todos os períodos de transformação social. de seu trabalho não está, portanto, em suas mãos, sendo-lhe po
Produziram especialmente as seitas pacifistas radicais, uma das rém prescrito pelos motivos de seus seguidores que, se vistos
quais na Pensilvânia tentou pôr em prática um a política que eticamente, são predominantemente mesquinhos. Os seguidores
renunciava à violência para com terceiros. T al experiência teve só podem ser controlados enquanto um a fé honesta na pessoa
um destino trágico, pois com a deflagração da G uerra da Inde do líder e sua causa inspirar pelo menos parte deles, provavel
pendência os quacres não puderam levantar-se de armas na mão mente jam ais na terra a m aioria. Essa crença, mesmo quando
pelos seus ideais, que eram os mesmos da guerra. subjetivamente sincera, realm ente não é, em grande número de
casos, mais do que um a “legitim ação” ética de anseios de vin
N orm alm ente, o protestantismo, porém, legitim ou de forma
gança, poder, pilhagem e espólios. N ão nos enganarem os com
absoluta o Estado como instituição divina e daí a violência
essa verbosidade: a interpretação m aterialista da história não é
como meio. O protestantismo legitim ou especialmente o Estado
um carro que se possa tom ar à vontade; não pára antes dos pro
autoritário. Lutero isentou o indivíduo da responsabilidade ética
motores de revoluções. O revolucionismo emocional é seguido
pela guerra e transferiu-a para as autoridades. Obedecer às
pela rotina tradicionalista da vida cotidiana; o líder cruzado e a
autoridades em assuntos fora da fé jam ais poderia constituir
própria fé desaparecem ou, o que é ainda m ais verdadeiro, a
culpa. O calvinismo, por sua vez, conhecia a violência em defesa
fé se torna parte da fraseologia convencional dos filisteus políticos
de um princípio como um meio de defender a fé; assim, conhecia
e dos técnicos banáusicos. Essa situação é especialmente rápida
a cruzada, que foi para o Islã um elemento de vida, desde o
nas lutas de fé, porque elas são habitualm ente levadas ou inspi
início. Vê-se que não é, de forma algum a, um a descrença
radas por líderes autênticos, isto é, profetas da revolução. Nesse
moderna, oriunda do culto do herói da Renascença, que suscita
caso, tal como ocorre com a m áquina de todo líder, um a das
o problema da ética política. Todas as religiões se ocuparam
condições para o êxito é a despersonalização e rotinização, em
dele, com diferente êxito, e depois do que dissemos não poderia
suma, a proletarização psíquica, no interesse da disciplina. De
ser de outro modo. É o meio específico de legitim ar a violência
pois de ascenderem ao poder, os seguidores de um cruzado ha
como tal, na mão das associações hum anas, que determ ina a pe
bitualm ente degeneram m uito facilmente num a cam ada comum
culiaridade de todos os problemas éticos da política.
de saqueadores.
150 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VOCAÇÃO 151

Quem deseja dedicar-se à política, e especialmente à política permiti mencionar num a discussão um a referência a um a data
como vocação, tem de compreender êsses paradoxos éticos. Deve num certificado de nascimento; mas o simples fato de que alguém
saber que é responsável pelo que vier a ser sob o impacto de tem 20 anos de idade e eu tenha mais de 50 não me deve fazer
tais paradoxos. Repito: tal pessoa se coloca à mercê de forças pensar que isto constitui um a realização, em si, perante a qual
diabólicas envoltas na violência. Os grandes v irtuosi do amor me deva atem orizar. A idade não é decisiva; o que é decisivo
acósmico da hum anidade e bondade, sejam de N azaré ou Assis, é a inflexibilidade em ver as realidades da vida, e a capacidade
ou dos castelos reais da índia, não operaram com os meios polí de enfrentar essas realidades e corresponder a elas interiormente.
ticos da violência. Seu reino “não era dêste m undo”, e não A política é feita, sem dúvida, com a cabeça, mas certamente
obstante êles trabalharam e ainda trabalham neste mundo. As não é feita apenas com a cabeça. Nisso, os proponentes de um a
figuras de Platon K aratajev e os santos de Dostoievski ainda ética de fins últimos estão certos. Não podemos prescrever a
continuam as suas reconstruções mais adequadas. Quem busca ninguém que deva seguir um a ética de fins absolutos ou uma
a salvação da alm a, sua e dos outros, não deve buscá-la no cam i ética de responsabilidade, ou quando um a e quando a outra.
nho da política, pois as tarefas totalmente diferentes da política Só podemos dizer o seguinte: se nas épocas que, na opinião
só podem ser resolvidas pela violência. O gênio ou demônio da pessoa em questão, não são épocas de excitação “estéril” — a
da política vive numa tensão interna com o deus do amor, e com excitação não é, afinal, a paixão autêntica — se então subitamente
o Deus Cristão expresso pela Igreja. Essa tensão pode, a q u al políticos da W eltan sch auun g surgem em massa e transm item
quer momento, levar a um conflito inconciliável. Os homens a palavra de ordem, “O mundo é estúpido e mesquinho, eu
sabiam disso mesmo nas épocas do domínio da igreja. V árias não”, “a responsabilidade pelas conseqüências não recai sôbre
vêzes o interdito papal foi colocado sôbre Florença, e na época mim, mas sôbre os outros a que sirvo e cuja estupidez ou mes
isso representa uma fôrça muito mais poderosa para os homens quinharia devo elim inar”, então declaro francam ente que inda
e a salvação de sua alm a do que (para falarmos com Fichte) garia primeiro o grau de certeza íntim a que apóia essa ética
a “fria aprovação” do juízo ético kantiano. Os burgueses, porém, de fins últimos. Tenho a impressão de que em nove em cada
combateram o Estado clerical. E é com relação a essas situações dez casos trata-se de oradores verbosos que não compreendem
que M aquiavel, num belo trecho da H istória de Floren ça, se plenamente o que estão chamando a si, mas que se em briagam
não me engano, faz que um de seus heróis elogie os cidadãos com sensações românticas. Do ponto de vista humano, isto não
que colocaram a grandeza de sua cidade natal acim a da salva me é muito interessante, nem me comove profundamente. Mas
ção de suas almas. é profundamente comovente quando um homem m adu ro — não
Se dissermos “futuro do socialismo”, ou “paz internacional”, importa se velho ou jovem em anos — tem consciência de uma
ao invés de cidade natal ou “pátria” (que no momento pode ser responsabilidade pelas conseqüências de sua conduta e realm ente
um valor duvidoso para algu n s), teremos então o problema tal sente essa responsabilidade no coração e na alma. A ge, então,
como se apresenta agora. T udo aquilo pelo que se luta através segundo um a ética de responsabilidade e num determ inado mo
da ação política operando com meios violentos e seguindo uma mento chega ao ponto em que d iz: “Eis-me aq u i; não posso
ética da responsabilidade põe em risco a “salvação da alm a”. Se, fazer de outro modo”. Isso é algo genuinam ente humano e
porém, buscarmos o bem final num a guerra de crenças, seguindo comovente. E todos nós que não estamos espiritualm ente mortos
um a ética pura dos fins absolutos, então as metas podem ser preju devemos compreender a possibilidade de encontrar-nos, num de
dicadas e desacreditadas durante gerações, pois falta a responsabi terminado momento, nessa posição. N a m edida em que isso é
lidade pelas con seqüên cias, e suas fôrças diabólicas que entram válido, um a ética de fins últim os e um a ética de responsabilidade
em jôgo continuam desconhecidas do ator. São inexoráveis e não são contrastes absolutos, mas antes suplementos, que só em
produzem conseqüências para sua ação e mesmo para seu eu uníssono constituem um homem genuíno — um homem que
interior, a que se deve sujeitar indefeso, a menos que as perceba. pode ter a “vocação para a política”.
A frase: “O diabo é velho; envelheça para com preendê-lo!” não E, agora, senhoras e senhores, voltemos a debater essa ques
se refere à idade em têrmos de anos cronológicos. Jam ais me tão novamente dentro de dez anos, a contar de agora. Infeliz
152 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA A P O L ÍT IC A C O M O VO CAÇÃO 153

mente, por toda um a série de razões, temo que então o período soais. E quanto ao resto — deveriam ter-se empenhado sobria
de reação tenha há m uito desabado sobre nós. É muito provável mente em suas tarefas cotidianas.
que pouco do que muitos dos senhores, e (confesso candida A política é como a perfuração lenta de tábuas duras. Exige
m ente) eu também, desejamos e esperamos se tenha realizado; tanto paixão como perspectiva. Certamente, toda experiência
pouco — talvez não exatamente nada, mas aquilo que pelo histórica confirm a a verdade — que o homem não teria alcançado
menos para nós parece pouco. Isto não me esm agará, mas sem o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível.
dúvida é um peso íntimo compreender tal fato. Eu gostaria de Mas, para isso, o homem deve ser um líder, e não apenas um
poder ver, então, o que foi feito daqueles que, entre os presentes, líder, mas também um herói, num sentido m uito sóbrio da pala
se consideram como políticos realm ente “de princípios”, e que vra. E mesmo os que não são líderes nem heróis devem arm ar-se
partilham da em briaguez representada por esta revolução. Seria com a fortaleza de coração que pode enfrentar até mesmo o des
bom que as coisas viessem a ser de tal modo que o Soneto 102 moronar de todas as esperanças. Isso é necessário neste momento
de Shakespeare fosse verdade: mesmo, ou os homens não poderão alcançar nem mesmo aquilo
que é possível hoje. Somente quem tem a vocação da política
O ur love was new, and then but in the spring, terá certeza de não desmoronar quando o m undo, do seu ponto
When I was w ont to greet it w ith m y lays; de vista, for demasiado estúpido ou demasiado m esquinho para
As Philomel in summer’s front doth sing,
And stops her pipe in growth of riper days.* o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem , frente a tudo
isso, pode dizer “Apesar de tudo!” tem a vocação para a política.

Mas não é esse o caso. Não o florescer do verão está à


nossa frente, mas antes um a noite polar, de escuridão gelada e
dureza, não importa que grupo possa triunfar externamente agora.
Onde não há nada, não só o Kaiser mas também o proletário
perdeu seus direitos. Quando esta noite se tiver afastado lenta
mente, quem estará vivo entre aqueles para os quais a primavera
aparentemente floresceu tão abundantem ente? E o que terá
sido de todos vós, então? Sereis amargos ou banáusicos? Acei
tareis simples e devidamente o mundo e a ocupação? Ou a
terceira e não menos freqüente possibilidade será o vosso destino:
a fuga m ística da realidade, para os que não eram dotados para
ela ou — como é freqüente e desagradável — para os que se
empenham em seguir essa m oda? Em qualquer desses casos,
cheguei à conclusão de que essas pessoas não corresponderam aos
seus proprios feitos. Não corresponderam ao m undo como real
mente é em sua rotina cotidiana. Objetiva e realm ente, não
experim entaram a vocação para a política em seu sentido mais
profundo, que julgavam ter. T eriam feito melhor em simples
mente cultivar um a fraternidade comum nas suas relações pes

* Nosso amor era novo e entfio apenas na prim avera,


Quando eu estava acostumado a saudá-lo com meus versos;
Como Filomela canta no começo do verão,
E dedilha sua flauta enquanto crescem dias mais plenos.
A C IÊ N C IA CO M O VO CAÇÃO 155

des instituições de Ciências N aturais e Faculdades de M edicina


na Alem anha, onde habitualm ente apenas um a fração dos assis
tentes procura habilitar-se como Priv atdoz en t, e assim mesmo
quase sempre no fim de sua carreira.
Praticamente, esse contraste significa que a carreira do aca
V. A Ciência como Vocação
dêmico na A lem anha baseia-se, em geral, em exigências pluto-
cráticas, pois é extrem amente arriscado para um jovem professor
sem recursos expor-se às condições da carreira acadêmica. Ele
terá de suportar tal situação pelo menos alguns anos, sem saber
se terá oportunidade de elevar-se a um a posição que encerre
P E D iR A M -M E q u e falasse sobre “A Ciência como Vocação”. Ora, uma remuneração suficiente para a sua manutenção.
nós, os economistas, temos um hábito pedante, que eu gostaria Nos Estados Unidos, onde existe o sistema burocrático, o
de seguir, de sempre começar com as condições externas. Neste jovem acadêmico é remunerado desde o início. N a verdade,
caso, começamos com a pergunta: Quais são as condições da seu salário é modesto; habitualm ente, equivale ao salário de
ciência como vocação no sentido m aterial da expressão? Hoje um trabalhador semi-especializado. Não obstante, ele começa
esta questão significa, prática e essencialmente: Quais as pers com uma posição aparentem ente segura, pois tem um salário
pectivas para o estudante formado que resolve dedicar-se profis fixo. Em geral, porém, pode ser dispensado tal como ocorre
sionalmente à ciência na vida universitária? P ara compreender com os assistentes alemães, e com freqüência lhe é necessário
a peculiaridade das condições alemãs, é conveniente proceder enfrentar tal situação quando não corresponde às expectativas.
através de comparações e compreendermos as condições no ex
terior. Sob esse aspecto, os Estados Unidos contrastam mais Essas expectativas obrigam o jovem professor na A m érica
acentuadam ente com a A lem anha, e por isso vamos focalizar a atrair um grande núm ero de alunos. Isso não acontece ao
nossa atenção naquele país. docente alem ão: um a vez contratado, é impossível m andá-lo
embora. N a verdade, ele não tem propriam ente direitos, mas
Todos sabem que na A lem anha a carreira do jovem que se
a consciência tácita de que, depois de anos de trabalho, tem
dedica à ciência começa normalmente com o posto de Priv at-
uma espécie de direito moral a algum a consideração. Tam bém
doz en t. Depois de ter entrado em contato com os respectivos
espera — e isso é com freqüência m uito im portante — que
especialistas e deles recebido o assentimento, ele começa a lecio pensem nele quando surge a questão da possível habilitação de
nar como residente, à base de um livro que tenha escrito e, outros Priv atdoz en ten .
habitualm ente, depois de um exame bastante formal perante
o corpo docente da universidade. Em seguida, profere um curso É um dilem a constrangedor saber se, em princípio, devemos
de preleções sem receber qualquer salário além das taxas pagas “habilitar” qualquer jovem professor que tenha prestado as
pelos alunos que se inscreverem. Cabe-lhe determ inar, dentro provas de sua capacidade, ou se devemos considerar as “necessi
de sua ven ia legen di, os tópicos sobre os quais falará. dades do ensino”, e portanto dar aos Doz en ten em exercício o
monopólio do ensino? Este problema está associado ao aspecto
Nos Estados Unidos a carreira acadêmica começa quase duplo da vocação universitária que iremos discutir agora. Em
sempre de forma totalmente diferente, ou seja, pelo cargo de geral, decide-se em favor da segunda possibilidade. Isto, porém,
“assistente”. Assemelha-se êsse processo ao que ocorre nas gran aum enta o perigo de que o respectivo professor, por m ais cons
ciencioso que seja, prefira os seus próprios discípulos. Se me
“W issenschaft als B eruf”, G esa m m elte A u fsa etze zu r W issen- permitem falar de m inha atitude pessoal, devo dizer que segui
schaftsleh re (Tübingen, 1922), pp. 524-55. O riginalm ente um discurso o princípio de que um professor promovido por m im deve legi
pronunciado na U niversidade de M unique, em 1918, publicado em tim ar e habilitar-se com algu m a ou tra pessoa em outra universi
1919 por D uncker & Humblodt, Munique. dade. M as o resultado foi que um dos meus melhores alunos
156 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A C IÊ N C IA CO M O VOCAÇÃO 157

foi recusado em outra universidade porque ninguém , ali, acre­ nas quais o artesão é pessoalmente dono das ferram entas, essen
ditou ser essa a razão. cialmente a biblioteca, como ainda ocorre, em grandes propor
ções, no meu próprio campo. Esse processo corresponde exa
O utra diferença entre a A lem anha e os Estados Unidos é
que na A lem anha o Priv atdoz en t geralm ente m inistra menor tamente ao que aconteceu ao artesão no passado, e a situação
número de cursos do que deseja. Segundo seu direito formal, continua em plena evolução hoje.
pode dar qualquer curso no seu campo. M as fazer isso seria Como acontece em todas as empresas capitalistas e ao mesmo
considerado como um a falta de consideração para com os do tempo burocratizadas, há vantagens indubitáveis em tudo isso.
centes mais velhos. Em geral, o professor catedrático m inistra M as o “espírito” que predomina sobre tais questões é diferente
os “grandes” cursos e o docente se lim ita aos secundários. A da atmosfera histórica da universidade alemã. Existe um a dis
vantagem dessa disposição está em que durante sua juventude tância extraordinária, externa e internam ente, entre o chefe des
o professor acadêmico tem liberdade de dedicar-se a trabalhos sas grandes empresas capitalistas e universitárias e o professor
científicos, embora esta restrição da oportunidade de lecionar catedrático ao estilo antigo. Esse contraste também é válido
seja um tanto involuntária. para a atitude íntim a, questão de que não me ocuparei aqui.
N a Am érica, a situação é, em princípio, diferente. Precisa Interna e externam ente, a velha constituição da universidade
mente durante os primeiros anos de sua carreira, o assistente tornou-se um a ficção. O que restou e o que aum entou essencial
se vê sobrecarregado exatamente porque é remunerado. Num mente é um fator peculiar à carreira universitária: a questão
departamento de alemão, por exemplo, o professor catedrático de se tal Priv atdoz en t, e ainda mais um assistente, conseguirá
m inistrará um curso de três horas sobre Goethe, e isso basta, ou não elevar-se à categoria de professor catedrático ou tor
ao passo que o jovem assistente se sente satisfeito se, além do nar-se mesmo o chefe de um instituto. Isto constitui simples
exercício de lín gu a alem ã, suas 12 horas semanais de aula incluí mente um acaso. É claro que não depende apenas do acaso,
rem matérias como, por exemplo, U hland. A s autoridades fi mas sua influência é habitualm ente grande. Não conheço ne
xam o currículo e, sob esse aspecto, o assistente é tão depen nhum a outra carreira em que ele tenha tal papel. Posso dizê-lo
dente quanto o assistente de um instituto na Alem anha. ainda m ais porque eu, pessoalmente, devo a simples acidentes
U ltim am ente, podemos observar distintam ente que as uni o fato de ter sido nomeado, ainda m uito jovem, professor cate
drático de um a disciplina na qual os homens de m inha geração
versidades alem ãs nos amplos campos da ciência evoluem na
direção do sistema americano. Os grandes institutos de M edi sem dúvida haviam realizado m ais do que eu. E acredito, real
cina ou Ciências N aturais são empresas “capitalistas estatais”, mente, à base dessa experiência, que vejo com m uita clareza
o destino imerecido dos muitos aos quais a sorte lançou em
que não podem ser adm inistradas sem consideráveis recursos.
Vamos encontrar, no caso, a mesma situação predominante sem direção oposta e que, dentro desse aparato seletivo, apesar de
toda a sua capacidade, não alcançam as posições que lhes são
pre que a empresa capitalista entre em cena: a “separação entre
o trabalhador e o seu meio de produção”. O trabalhador, ou devidas.
seja, o assistente, depende dos implementos que o Estado coloca O fato de que o acaso, e não a capacidade, tenha um papel
à sua disposição; portanto, é tão dependente do chefe do ins tão importante não se deve apenas, e nem mesmo predom inante
tituto quanto o empregado de um a fábrica depende da direção. mente, aos fatores “humanos, demasiado hum anos”, que natu
Pois o diretor acredita, subjetivamente e de boa-fé, que o ins ralm ente ocorrem no processo de seleção acadêmica, como em
tituto é “seu”, e que ele lhe adm inistra os assuntos. Assim, a qualquer outra seleção. Seria injusto considerar a inferioridade
posição do assistente é, com freqüência, tão precária quanto a pessoal dos membros do corpo docente ou dos ministros da edu
de qualquer existência “quase-proletária” e tão precária quanto cação responsável pelo fato de que tantas mediocridades sem
a posição do assistente na universidade am ericana. dúvida tenham um papel destacado nas universidades. O pre
Sob aspectos muito importantes, a vida universitária alem ã domínio da mediocridade deve-se, antes, às leis da cooperação
está sendo am ericanizada, como ocorre com a vida alemã em hum ana dos vários corpos, e, nesse caso, a cooperação das fa
geral. Esse processo, estou convencido, abrangerá as disciplinas culdades que recomendam e dos M inistros da Educação.
158 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA a c iê n c ia c o m o v o c a ç ã o 159

Um paralelo encontra-se nas eleições dos papas que podem A situação, porém, é tal que as universidades alemãs, es
ser acompanhadas através de muitos séculos e que constituem pecialmente as pequenas universidades, estão empenhadas num a
os exemplos controláveis mais importantes de um a seleção da competição ridícula em busca de alunos. Os hoteleiros das
mesma natureza que a seleção acadêmica. O cardeal considerado cidades universitárias celebram a chegada do milésim o estudante
como o “favorito” só muito raram ente consegue vencer. A com uma festa e gostariam de comemorar a chegada do número
praxe é que o cardeal número dois ou número três vença. 2.000 com um a passeata de tochas. O interesse pelas anui
O mesmo ocorre na Presidência dos Estados Unidos. Só excep dades — devemos declará-lo francam ente — é afetado pelas
cionalmente o homem de prim eira categoria e de mais destaque nomeações nos campos que “atraem alunos”. E, à parte isso,
consegue ser indicado pela convenção. É mais freqüente que o número de alunos m atriculados é um a prova de qualificação,
o número dois, e por vezes o núm ero três, sejam indicados e que pode ser vista em termos de números, ao passo que a qu a
disputem m ais tarde a eleição. Os americanos já cunharam lificação pela competência universitária é imponderável. Esta,
têrmos técnicos sociológicos para essas categorias, e seria inte o que é m uito natural, é freqüentemente contestável, precisa
ressante exam inar as leis de seleção de um a vontade coletiva mente aos inovadores audaciosos. Quase todos são, assim, afe
através do estudo desses exemplos, mas não o faremos aqui. tados pela obsessão com as vantagens imensuráveis que isso
Não obstante, tais leis são válidas tam bém para os órgãos cole- importa da grande freqüência de alunos. D izer de um docente
giados das universidades alemãs, e não nos devemos surpreen que é mau professor é, habitualm ente, pronunciar um a sentença
der com os erros freqüentemente cometidos por eles, mas pelo de morte acadêmica, mesmo que ele seja o m ais destacado eru
núm ero de nomeações acertadas, cuja proporção é, apesar de dito do mundo. E a questão de ser ele um bom professor ou
tudo, muito considerável. Somente quando os parlamentos, não é determ inada pelo núm ero de alunos que condescendem
como ocorre em certos países, ou os monarcas, como aconteceu em freqüentar-lhe o curso.
na A lem anha até agora (ambos trabalham no mesmo sentido), A afluência ou não de alunos a um curso é determ inada
ou os detentores revolucionários do poder, como é o caso da em grande parte — parte maior do que se acreditaria ser pos
A lem anha de hoje, intervêm por motivos políticos nas seleções sível — por elementos exclusivamente externos: temperamento
acadêmicas, podemos ter certeza de que as mediocridades cômo e mesmo a inflexão de voz do professor. Depois de um a boa
das terão as oportunidades exclusivamente para si. experiência e sóbria reflexão, tenho profunda desconfiança dos
N enhum professor universitário gosta que lhe recordem as cursos que atraem multidões, por m ais inevitáveis que sejam.
discussões sobre nomeações, pois raram ente são agradáveis. Não A democracia só deve ser usada quando for adequada. O pre
obstante, posso dizer que nos numerosos casos de meu conheci paro científico, e tal como devemos praticá-lo de acordo com
mento houve, sem exceção, a boa vontade de perm itir que as a tradição das universidades alemãs, é assunto de um a aris
razões puramente objetivas fossem decisivas. tocracia intelectual, e não devemos ocultar a nós mesmos tal
fato. N a verdade, é certo que apresentar os problemas científicos
Devemos deixar clara um a coisa: que a decisão sobre os de modo que um a mente não-instruída, m as receptiva, os possa
destinos acadêmicos seja, em proporção tão grande, um “acaso” compreender e — o que para nós é decisivo — possa vir a re
não se deve apenas à insuficiência da seleção pela formação fletir sobre eles de form a independente, talvez seja a tarefa
coletiva da vontade. Todo jovem que se sente atraído pela pedagógica m ais difícil de todas. M as se essa tarefa é ou não
erudição deve compreender claram ente que a tarefa à sua frente realizada não será o número de alunos que o dem onstrará. E
tem um aspecto duplo. Deve ter qualidades não só como — voltando ao nosso tem a — essa arte mesma é um dom pes
erudito, mas também como professor. E os dois aspectos não soal e de modo algum coincide com as qualificações científicas
coincidem. Pode-se ser um intelectual de destaque e ao mesmo do universitário.
tempo um professor abominavelmente ruim . Devo lembrar-vos
Em contraste com a França, a A lem anha não tem uma
o ensino de homens como H elm holtz ou R an ke; e eles não são
academia de “im ortais” da ciência. Segundo as tradições alemãs,
exceções raras.
as universidades fazem justiça às exigências tanto da pesquisa
160 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 161

quanto do ensino. Se as duas habilidades se conjugam num ho esta afirmação de que “m ilhares de anos devem passar antes que
mem, é um a questão puramente ocasional. D aí ser a vida ingresseis na vida e m ilhares m ais esperam em silêncio” —
acadêmica um acaso louco. Se o jovem estudioso pede meu segundo se tenha ou não êxito em fazer essa conjetura; sem isso,
conselho sobre a habilitação, é difícil arcar com a responsabili não haverá vocação para a ciência e seria melhor que vos dedicás
dade de encorajá-lo. Se ele for judeu, então, diremos lasciate seis a qualquer outra coisa. Pois nada é digno do homem como
ogn i speran z a. M as devemos perguntar aos dem ais: você acre homem, a menos que ele possa empenhar-se na sua realização
dita, em sã consciência, que pode ver mediocridade atrás de com dedicação apaixonada.
mediocridade, ano após ano, passar à sua frente, sem se am ar
É fato, porém, que nenhum volume desse entusiasmo, por
gurar e sem sofrer? N aturalm ente, recebemos sempre a resposta:
m ais sincero e profundo, pode forçar um problema a produzir
“É claro, vivo apenas para a m inha vocação”. Não obstante,
resultados científicos. Certam ente o entusiasmo é um pré-requi
comprovei que poucos homens podem suportar essa situação sem
sito da “inspiração”, que é decisiva. H oje em dia, em círculos
ressentimento.
de jovens, há um a noção generalizada de que a ciência se tor
Julguei necessário dizer tudo isso sobre as condições externas nou um problema de cálculo, elaborado nos laboratórios ou sis
da vocação do homem universitário. M as acredito que na reali temas de fichários estatísticos, tal como “num a fábrica”, cálculo
dade desejais ouvir algo diverso, ou seja, a vocação ín tim a para a que envolve apenas o intelecto frio e não o “coração e a alm a”.
ciência. Em nossa época, a situação interna, em contraste com a Em primeiro lugar, devemos dizer que a esses comentários falta
organização da ciência como vocação, é em primeiro lugar con toda clareza sobre o que acontece num a fábrica ou num labora
dicionada pelos fatos de que a ciência entrou num a fase de espe tório. Em ambos, é necessário que ocorra algum a idéia a alguém ,
cialização antes desconhecida e que isto continuará. Não só ex e deve ser um a idéia correta, para realizarm os qualquer coisa
ternamente, mas também interiorm ente, a questão está num pon digna. E essa intuição não pode ser forçada. N ada tem a ver
to em que o indivíduo só pode adquirir a consciência certa de com qualquer cálculo frio. Sem dúvida o cálculo é também
realizar algo verdadeiramente perfeito no caso de ser um espe um pré-requisito indispensável. N enhum sociólogo, por exem
cialista rigoroso. plo, pode considerar-se demasiado bom, mesmo na m aturidade,
para fazer dezenas de m ilhares de contas triviais na cabeça e
Todo o trabalho que se estende pelos campos correlatos, talvez durante meses de cada vez. N ão podemos, com im puni
que ocasionalmente empreendemos e que os sociólogos devem, dade, tentar transferir essa tarefa exclusivamente para os auxi
necessariamente, realizar repetidamente, é onerado pela compre liares mecânicos, se desejarmos configurar algo, embora o resul
ensão resignada de que, na melhor das hipóteses, proporcionamos tado final seja, com freqüência, realm ente pequeno. M as se ne
ao especialista questões úteis, às quais não chegaria de seu pró nhum a “idéia” ocorre à mente sobre a direção dos cálculos e,
prio ponto de vista especializado. Nosso próprio trabalho deve, durante estes, sobre a influência dos resultados obtidos, então
inevitavelm ente, continuar altam ente imperfeito. Somente pela não ocorrerá nem mesmo esse pequeno resultado.
especialização rigorosa pode o trabalhador científico adquirir N ormalmente, essa “idéia” só é preparada no solo do tra
plena consciência, de uma vez por todas, e talvez não tenha outra balho árduo, mas sem dúvida isso nem sempre ocorre. C ientifi
oportunidade em sua vida, de ter realizado algum a coisa dura camente, a idéia de um diletante pode ter a mesma influência,
doura. U m a realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje, ou ainda maior, para a ciência que a idéia de um especialista.
sempre um a realização especializada. E quem não tiver a capa M uitas de nossas melhores hipóteses e visões são devidas, preci
cidade de colocar antolhos, por assim dizer, e chegar à idéia de samente, a diletantes. O diletante difere do perito, como
que a sorte de sua alm a depende de fazer ou não a conjetura H elm holtz disse de Robert M ayer, apenas porque lhe falta um
correta, neste trecho deste manuscrito, bem pode manter-se longe processo de trabalho firm e e digno de confiança. Conseqüente
da ciência. Jam ais terá o que podemos cham ar de “experiência mente, ele habitualm ente não está em posição de controlar, esti
pessoal” da ciência. Sem essa estranha em briaguez, ridiculari m ar ou explorar a idéia em seus aspectos fundam entais. Esta
zada por todos os que vivem fora do am biente; sem esta paixão, não é um sucedâneo do trabalho, e o trabalho, por sua vez,
ii
162 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA a c iê n c ia c o m o v o c a ç ã o 163

não pode substituir a idéia, nem criá-la, tal como também não popular, principalm ente entre a juventude, colccando-a a serviço
o pode o entusiasmo. Entusiasmo e trabalho, e acim a de tudo de ídolos cujo culto ocupa hoje destacado lu gar em todas as
ambos em con jun to, é que criam a idéia. esquinas e em todos os jornais. Esses ídolos são a “personalidade”
e a “experiência pessoal”. Estão intim am ente ligados, predomi
A s idéias nos chegam quando lhes apraz, e não quando que nando a noção de que o segundo constitui o prim eiro e a ele
remos. As melhores idéias ocorrem realm ente à nossa mente pertence. A s pessoas se empenham em conseguir “experiência”
da forma que Ihering descreve: ao fum arm os um charuto no da vida — pois isso está de acordo com um a personalidade côns
sofá; ou, como H elm holtz diz de si mesmo, com exatidão cien cia de sua posição e situação. E se não conseguimos “experiência”
tífica: quando caminhamos por um a rua que sobe lentam ente; da vida, devemos pelo menos fin gir que temos esse dom da
ou de qualquer outra forma semelhante. De qualquer modo, as graça. A ntigam ente, chamávamos essa “experiência”, em bom
idéias chegam quando não as esperamos, e não quando estamos alemão, “sensação”; e creio que tínhamos, então, um a idéia mais
pensando e procurando em nossa mesa de trabalho. Não obs adequada do que é a personalidade e do que significa.
tante, elas certamente não nos ocorreriam se não tivéssemos
pensado à mesa e buscado respostas com dedicação apaixonada. Senhoras e Senhores. No campo da ciência, somente quem
se dedica exclusiv am en te ao trabalho ao seu alcance tem “perso
Como quer que seja, o trabalhador científico tem de correr
nalidade”. E isso é válido não só para o campo da ciência; não
o risco existente em todo trabalho científico: ocorre a “idéia”
conhecemos nenhum grande artista que tenha feito qualquer outra
ou não ocorre? Ele pode ser um excelente trabalhador e não
coisa que não fosse servir à sua obra, e apenas a ela. No que se
obstante não ter qualquer idéia própria valiosa. É um erro grave
relaciona com a sua arte, até mesmo para um a personalidade
acreditar que isto só ocorre n a ciência e que a situação num
das proporções de Goethe, tem sido negativo tomar a liberdade
escritório comercial é diferente de um laboratório, por exemplo.
de tentar transform ar a sua “vida” num a obra de arte. E mesmo
U m comerciante ou um grande industrial sem “im aginação co
quem duvide disso terá de ser um Goethe para ousar perm itir-se
m ercial”, ou seja, sem idéias ou sem intuições de gênio, conti
tal liberdade. Todos concordarão, pelo menos, nisso: até mesmo
nuará sendo durante toda a vida um homem que faria melhor
com um homem como Goethe, que surge um a vez em m il anos,
se tivesse continuado como funcionário ou técnico. Jam ais será esta liberdade tem seu preço. Em política, a questão não difere,
realm ente criador, em organização. A inspiração no campo da mas não discutiremos hoje esse aspecto. No campo da ciência,
ciência não desempenha um papel maior, como um conceito porém, o homem que faz de si mesmo o empresário do assunto
acadêmico parece supor, do que no campo do domínio dos pro a que se devia dedicar, e aparece em cena e busca legitim ar-se
blemas da vida prática por um empresário moderno. Por outro através da “experiência”, perguntando: como posso provar que
lado, e isso também é, com freqüência, m al compreendido, a sou algo m ais do que um simples “especialista”, e como posso
inspiração não tem um papel menor na ciência do que na arte. dizer algum a coisa, na forma ou no conteúdo, que não tenha
É noção infantil pensar que um matemático alcança qualquer sido dita antes por alguém ? — êsse homem não é um a “perso
resultado cientificamente valioso sentado à sua mesa com um a nalidade”. Hoje, tal conduta é um fenômeno de m ultidão, cau
régua, m áquina de calcular ou outros meios mecânicos. A im a sando sempre m á impressão e desmerecendo quem a pratica.
ginação m atem ática de um W eierstrass é naturalm ente orientada Ao invés disso, a dedicação íntim a à tarefa, e apenas ela, deve
de modo m uito diferente, em significado e resultado, da im a elevar o cientista ao auge e à dignidade do assunto a que ele
ginação de um artista, e difere basicamente em qualidade. Mas pretende servir. E isso não difere quanto ao artista.
os processos psicológicos não diferem. São, um frenesi (no
Em contraste com essas precondições, que são as mesmas no
sentido de “ fia v ía ” de Platão) e “inspiração”. trabalho científico e na arte, a ciência tem um destino que a
Ora, a ocorrência da inspiração científica depende de desti distingue profundamente do trabalho artístico. O trabalho cien
nos que nos são ocultos, e, além disso, de “dons”. E, por tífico está preso ao curso do progresso, ao passo que no campo
últim o, mas, não menos importante, porque encerra um a ver da arte não há progresso no mesmo sentido. Não é verdade que
dade indubitável: um a atitude muito compreensível tornou-se o trabalho de arte de um período que tenha criado novos meios
164 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 165

técnicos ou, por exemplo, as leis da perspectiva, se situe artis serem superadas? Esta pergunta exige algum as considerações
ticam ente acim a de um trabalho de arte destituído de todo o gerais.
conhecimento desses meios e leis — se a sua forma fizer justiça
ao m aterial, ou seja, se seu objeto tiver sido escolhido e formado O progresso científico é um a fração, a m ais importante, do
de modo a ser artisticamente dominado sem aplicação de tais processo de intelectualização que estamos sofrendo há m ilhares
de anos e que hoje em dia é habitualmente julgado de forma
condições e meios. U m a obra de arte que e um a realização
tão extremamente negativa. Vamos esclarecer, primeiro, o que
autêntica jam ais é superada; jam ais será antiquada. As pessoas
podem divergir, na apreciação da significação pessoal das obras significa praticamente essa racionalização intelectualista, criada
pela ciência e pela tecnologia orientada cientificamente.
de arte, mas ninguém poderá dizer que tal trabalho “foi supe
rado por outro que também é um a realização”. Significará que nós, hoje, por exemplo, sentados neste audi
N a ciência, sabemos que as nossas realizações se tornarão tório, temos maior conhecimento das condições de vida em que
existimos do que um índio americano ou um hotentote? D i
antiquadas em dez, vinte, cinqüenta anos. É esse,o destino a que
está condicionada a ciência: é o sen tido mesmo do trabalho cien ficilmente. A menos que seja um físico, quem anda num bonde
tífico, a que ela está dedicada num a acepção bem específica, em não tem idéia de como o carro se movimenta. E não precisa
saber. Basta-lhe poder “contar” com o comportamento do bonde
comparação com outras esferas de cultura para as quais, em
geral, o mesmo se aplica. Toda “realização” cientifica suscita e orientar a sua conduta de acordo com essa expectativa; mas
novas “perguntas” : pede para ser “ultrapassada” e superada. nada sabe sobre o que é necessário para produzir o bonde ou
Quem desejar servir à ciência tem de resignar-se a tal fato. movimentá-lo. O selvagem tem um conhecimento incom para
As obras científicas podem durar, sem dúvida, como “satisfações , velmente maior sobre as suas ferramentas. Quando gastamos
devido à sua qualidade artística, ou podem continuar importantes dinheiro hoje tenho certeza que, até mesmo se houver colegas
como meio de preparo. Não obstante, serão ultrapassadas cien de Economia Política neste auditório, cada um deles terá um a
tificam ente — repetimos — pois é esse o seu destino comum e, diferente resposta pronta para a pergunta: como é possível com
mais ainda, nosso objetivo comum. Não podemos trabalhar sem prar algum a coisa com dinheiro — por vezes m ais, por vêzes
a esperança de que outros avançarão m ais do que nós. Em menos? O selvagem sabe o que faz para conseguir sua alim en
princípio, esse progresso se faz ad in fin itu m . E com isso chega tação diária e que instituições lhe servem nessa empresa. A cres
mos à indagação da sign ificação d a ciência. Pois, afinal de con cente intelectualização e racionalização n ão indicam , portanto,
tas, não é evidente que algo subordinado a essa lei seja sensato um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vi
e significativo. Por que alguém se dedica a algum a coisa que vemos.
na realidade jam ais chega, e jam ais pode chegar, ao fim ? Significa m ais algum a coisa, ou seja, o conhecimento ou
Nós o fazemos, em primeiro lugar, por finalidades exclusiva crença em que, se quisessemos, poderíam os ter esse conhecimento
mente práticas, ou, na acepção m ais am pla da palavra, por fina a qualquer momento. Significa principalm ente, portanto, que
lidades técnicas: para sermos capazes de orientar nossas atividades não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em
práticas dentro das expectativas que a experiência científica co princípio, dom inar todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que
loca à nosa disposição. M uito bem. Não obstante, isto so tem o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios
sentido para os “homens práticos”. Qual a atitude do homem de mágicos para dom inar ou im plorar aos espíritos, como fazia o
ciência para com a sua vocação — ou seja, se ele estiver em busca selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam . Os meios
dessa atitude pessoal? A firm a que se dedica “a ciência pela ciên técnicos e os cálculos realizam o serviço. Isto, acim a de tudo, é
cia”, e não apenas porque outros, explorando-a, conseguem exito o que significa a intelectualização.
comercial ou técnico e podem alim entar, vestir, ilum inar e gover
Ora, esse processo de desencantamento, que continuou a exis
nar melhor. Mas o que espera realizar quem se deixa integrar tir na cultura ocidental por m ilênios e, em geral, esse “progresso”,
nessa organização especializada, que vai ad in fin itu m , que seja
a que a ciência pertence como um elo e um a força propulsora,
significativo nessas produções que estão sempre destinadas a terão qualquer significado que vá além do exclusivam ente prático
166 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 167
e técnico? Esta questão foi levantada, com base em princípios,
nas obras de Leão Tolstói, que a formulou de modo peculiar. mente, um deles consegue libertar-se dos grilhões, volta-se, vê o
Todas as suas reflexões giraram em torno do problema de ser sol. Cego, tateia e gagu eja um a descrição do que viu. Os outros
ou não a morte um fenômeno dotado de sentido. E sua resposta dizem que ele delira. Gradualm ente, porém, ele aprende a ver
foi: para o homem civilizado, a morte não tem significado. E a luz, e então sua tarefa é descer até os homens da caverna e
não o tem porque a vida individual do homem civilizado, co levá-los para a luz. Ele é o filósofo; o sol, porém, é a verdade
locada dentro de um “progresso” infinito, segundo seu próprio da ciência, a única que reflete não ilusões e sombras, mas o ver
sentido im anente, jam ais deveria chegar ao fim ; pois há sempre dadeiro ser.
um passo à frente do lugar onde estamos, na m archa do pro Bem, quem , hoje, vê a ciência desse modo? Hoje, os jovens
gresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que pensam exatamente o inverso: as construções intelectuais da ciên
está no infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, mor cia constituem um campo irreal de abstrações artificiais, que, com
reu “velho e saciado da vida”, porque estava no ciclo orgânico sua mão ossuda, procuram agarrar a essência da verdadeira vida,
da vida; porque a sua vida, em termos do seu significado e à sem jam ais consegui-lo. M as aqui na vida, naquilo que para
véspera dos seus dias, lhe dera o que a vida tinha a oferecer; Platão era o jogo de sombras nas paredes da caverna, pulsa a
porque para ele não havia enigm as que pudesse querer resolver; realidade gen uína; o resto são derivativos da vida, fantasmas
e, portanto, poderia ter tido o “bastante” da vida. O homem sem vida e nada mais. Como ocorreu essa m udança?
civilizado, colocado no meio do enriquecim ento continuado da O entusiasmo apaixonado de Platão em A R epú blica deve,
cultura pelas idéias, conhecimento e problemas, pode “cansar-se em últim a análise, ser explicado pelo fato de que pela prim eira
da vida”, mas não “saciar-se” dela. Ele aprende apenas a m i vez o conceito, um dos grandes instrumentos de todo conheci
núscula parte do que a vida do espírito tem sempre de novo, e mento científico, foi conscientemente descoberto. Sócrates o
o que ele aprende é sempre algo provisório e não definitivo, e descobriu com a sua paciência. Não foi o único homem no
portanto a morte para ele é um a ocorrência sem significado. E m undo a descobri-lo. N a ín d ia encontramos o início de um a
porque a morte não tem significado, a vida civilizada, como lógica muito semelhante à de Aristóteles. Mas em parte algum a
tal, é sem sentido; pelo seu “progresso” ela im prim e à morte encontramos a compreensão da significação do conceito. N a
a marca da falta de sentido. Em todos os seus últimos romances Grécia, pela prim eira vez, surgiu um a forma prática pela qual
encontramos esse pensamento como a nota-chave da arte de era possível colocar os parafusos lógicos em alguém , de modo
Tolstói. que não pudesse expressar-se sem adm itir que nada sabia ou que
Que posição devemos tom ar? T em o “progresso” como tal, isto, e nada mais, era a verdade, a verdade etern a que jam ais
um sentido identificável, que vai além do técnico, de modo que desaparecerá, ao contrário dos feitos dos homens cegos, que
servi-lo seja um a vocação dotada de sentido? A questão deve desaparecem. Foi essa a trem enda experiência que se abriu para
ser exam inada. M as já não se trata apenas da questão da vo os discípulos de Sócrates. E disso parece seguir-se que basta
cação para a ciência, e, daí, o problema do que a ciência, como ria descobrir-se o conceito adequado do belo, do bom ou, por
vocação, significa para os seus discípulos dedicados. Suscitar exemplo, da coragem, da alm a — ou qualquer outro — então
essa questão é indagar a vocação da ciência dentro da vida total para se aprender também o verdadeiro ser. E isso, por sua vez,
da hum anidade. Qual é o valor da ciência? parecia abrir o caminho para o conhecimento e o ensino de como
agir acertadamente na vida e, acim a de tudo, como agir como
A qu i, o contraste entre o passado e o presente é tremendo. cidadão do Estado; pois esta questão era tudo para o homem
Lem brareis a im agem m aravilhosa que existe no começo do livro helénico, cujo pensamento era totalmente político. E por essas
VII da R epú blica de P latão: aqueles homens da caverna, acorren razões as pessoas se dedicavam à ciência.
tados, cujas faces estão voltadas para um a parede de pedra à sua
O segundo grande instrumento do trabalho científico, a ex
frente. A trás deles está um a fonte de lu z que não podem ver.
perimentação racional, surgiu ao lado da descoberta do espírito
Ocupam-se apenas das im agens em sombras que essa luz lança
helénico, durante a Renascença. A experimentação é um meio
sobre a parede e buscam estabelecer-lhes inter-relações. F in al
de controle fidedigno da experiência. Sem ela, a ciência em píri
168 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 169
ca de hoje seria impossível. Houve experimentações, antes; por mentos não são os nossos pensamentos. N as Ciências Exatas,
exemplo, na índia, as experimentações fisiológicas foram feitas a
porém, onde se podiam perceber fisicamente Suas obras espera
serviço da técnica ascética iogue; na antiguidade helénica, as
va-se encontrar traços do que Ele planejara para o mundo. E
experimentações matemáticas foram feitas com objetivos de téc
hoje? Quem — à parte certas crianças grandes que na verdade
nica bélica; e, na Idade M édia, de mineração. M as elevar a
encontramos nas Ciências N aturais — ainda acredita que as des
experimentação a um princípio de pesquisa foi realização da
cobertas da Astronomia, Biologia, Física ou Q uím ica nos poderá
Renascença. Foram os grandes inovadores na arte, os homens
ensinar qualquer coisa sobre o sign ificado do m undo? Se tal
que foram os pioneiros da experimentação. Leonardo e outros
“significado” existe, em que caminho poderíamos encontrar ves
e, acima de tudo, os experimentadores da música no século XVI,
tígios dele? Se essas Ciências N aturais levam a qualquer coisa
com seus pianos experimentais, foram característicos. Desses
nesse sentido, levarão ao desaparecimento da crença de que existe
círculos a experimentação passou à ciência, principalm ente através
algo como o “significado” do universo.
de Galileu, e ingressou na teoria, através de Bacon. Foi, então,
adotada pelas várias disciplinas exatas das universidades conti E finalm ente, a ciência como caminho “para Deus” ? A
nentais, em primeiro lugar as da Itália e em seguida as da ciência, essa força especificamente irreligiosa? Que a ciência de
H olanda. hoje é irreligiosa ninguém duvidará no íntim o, mesmo que não
o adm ita para si mesmo. A libertação em relação ao racionalismo
O que significava a ciência para esses homens, que estavam e intelectualismo da ciência é a pressuposição fundam ental da
nos um brais dos tempos modernos? P ara os experimentadores vida em união com o divino. Essa afirmação, ou outra de sen
artísticos do tipo de Leonardo e dos inovadores musicais, a tido semelhante, é um a das palavras de ordem fundam entais
ciência significava o caminho para a v erdadeira arte, e isto sig entre a juventude alem ã, cujos sentimentos estão voltados para
nificava para eles o caminho para a verdadeira n aturez a. A arte a religião ou que anseiam pelas experiências religiosas. A única
deveria ser elevada à classe de um a ciência, e isso significava coisa estranha é o método hoje seguido: as esferas do irracional,
ao mesmo tempo e acim a de tudo elevar o artista à categoria do as únicas esferas que o intelectualismo ainda não atingiu, foram
doutor, socialmente e com referência ao sentido de sua vida. hoje elevadas à consciência e colocadas sob suas lentes. Pois,
É a ambição em que se baseava, por exemplo, o livro de dese na prática, é a isso que leva a forma intelectualista moderna
nhos de Leonardo. E hoje? “A ciência como o caminho para do irracionalism o romântico. Esse método de emancipação do
a natureza” soaria aos ouvidos dos jovens como um a blasfêmia. intelectualismo bem pode provocar o oposto mesmo daquilo que
Hoje, a juventude proclama o oposto: redenção em relação ao seus aceitantes consideram como sua meta.
intelectualismo da ciência a fim ae voltar à própria natureza de
Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos “ú lti
cada um e, com isso, à natureza em geral. A ciência como
mos homens” que “inventaram a felicidade”, posso deixar total
um caminho para a arte? N ão é necessário nem mesmo fazer
mente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência — isto
qualquer crítica.
é, a técnica de dom inar a vida que depende da ciência — foi
M as durante o período da ascensão das Ciências Exatas, es celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita
perava-se m uito mais. Se lembrarmos a afirm ação de Swam m er- nisso? — à parte algum as poucas crianças grandes que ocupam
dam, “Trago-vos a prova da providência de Deus na anatomia cátedras universitárias ou escrevem editoriais. Retomemos nosso
de um camundongo”, veremos o que o trabalhador científico, argumento.
influenciado (indiretam ente) pelo protestantismo e puritanismo, Sob essas pressuposições interiores, qual o significado da
considerava como sua tarefa: mostrar o caminho para Deus. ciência como vocação, depois de desaparecidas todas essas ilu
As pessoas já não encontram tal caminho entre os filósofos com sões antigas, o “cam inho para o verdadeiro D eus”, o “cam i
seus conceitos e deduções. T oda a teologia pietista da época, nho para a verdadeira felicidade” ? Tolstói deu a resposta mais
acim a de tudo Spener sabia que Deus não se encontrava no simples, com as palavras: “A ciência não tem sentido porque
cam inho onde a Idade M édia o havia procurado. Deus está não responde à nossa pergunta, a única pergunta importante
oculto, Seus caminhos não são os nossos caminhos, Seus pensa- para nós: o que devemos fazer e como devemo« viv er?” É
170 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 171
inegável que a ciência não dá tal resposta. A única questão
de um pobre lunático, cujos parentes, quer o confessem ou não,
que resta é o sentido no qual a ciência "não” dá resposta, e se
desejam, e devem desejar, sua morte. N ão obstante, as pres
ela ainda poderá ou não ter algum a utilidade para quem formule
suposições da M edicina, e do código penal, im pedem ao médico
corretamente a indagação.
suspender seus esforços terapêuticos. Se a vida vale a pena
Hoje, falamos habitualmente da ciência como “livre de todas ser vivida e quando — esta questão não é indagada pela M e
as pressuposições”. H averá tal coisa? Depende do que entender dicina. A Ciência N atural nos dá uma resposta para a questão
mos por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as regras do que devemos fazer se desejamos dominar a vida tecnica
da lógica e do método são válidas; são as bases gerais de nossa mente. D eixa totalm ente de lado, ou faz as suposições que
orientação no m undo; e, pelo menos para nossa questão especial, se enquadram nas suas finalidades, se devemos e queremos
essas pressuposições são o aspecto menos problemático da ciência. realmente dominar a vida tecnicamente e se, em últim a análise,
A ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico há sentido nisso.
é importante no sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto Vejamos um a disciplina como a Estética. O fato de que
estão encerrados todos os nossos problemas, evidentemente. Pois existem obras de arte é aceito sem crítica pela Estética, que
esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos — busca estabelecer em que condições tal fato existe, mas não sus
só pode ser in terpretada com referência ao seu significado último, cita a questão de ser talvez o campo da arte um campo de
que devemos rejeitar ou aceitar, segundo a nossa posição últim a grandiosidade diabólica, um campo deste m undo e portanto,
em relação à vida. em sua essência, hostil a Deus, e, em seu espírito m ais íntim o
A lém disso, a natureza da relação do trabalho científico e e aristocrático, hostil à fraternidade do homem. D aí, a Estética
suas pressuposições varia muito, segundo a estrutura destas. As não indagar se dev e haver obras de arte.
Ciências N aturais, por exemplo, a Física, a Quím ica, a Astro Vejamos a Jurisprudência. Estabelece o que é válido, de
nomia, pressupõem como auto-evidente o fato de que vale a acordo com as regras do pensamento jurídico, que é em parte
pena conhecer as leis últim as dos acontecimentos cósmicos, na lim itado pelo que é logicam ente compulsivo e em parte por
medida em que a ciência pode form ulá-las. Isso ocorre não esquemas fixados convencionalmente. O pensamento jurídico
só porque com esse conhecimento podemos alcançar resultados é válido quando certas regras jurídicas e certos métodos de in
técnicos, mas pela própria fruição do conhecimento, se a sua terpretação são reconhecidos como obrigatórios. Se deve haver
busca for um a “vocação”. Não obstante, essa pressuposição não lei e se devemos estabelecer essas regras — tais questões não são
pode de modo algum ser provada. E menos ainda se pode pro respondidas pela Jurisprudência. E la só pode afirm ar: para quem
var que vale a pena a existência do mundo que essas ciências quiser este resultado, segundo as normas de nosso pensamento
descrevem, que ela tem qualquer “significado”, ou que há sen jurídico, esta norm a juríd ica é o meio adequado de alcançá-lo.
tido em viver nesse mundo. A ciência não procura resposta para
essas questões. Vejamos as Ciências Histórica e C ultural. Elas nos ensi
nam como compreender e interpretar os fenômenos políticos', ar
Vejamos a M edicina moderna, um a tecnologia prática que tísticos, literários e sociais em termos de suas origens. M as não
está cientificamente muito desenvolvida. A “pressuposição” ge nos dão resposta para a questão de se a existência desses fenô
ral da M edicina é apresentada trivialm ente na afirmação de menos foi, e é, com pen sadora. E não respondem à questão
que a Ciência M édica tem a tarefa de m anter a vida como tal de se vale a pena o esforço necessário para conhecê-las. Pres
e dim inuir o sofrimento na m edida m áxim a de suas possibi supõem haver interesse em participar, através desse processo, da
lidades. Não obstante, isso é problemático. Com seus meios,
comunidade de “homens civilizados”. Mas não podem provar
o médico preserva a vida dos que estão m ortalmente enfermos,
“cientificamente” que seja esse o caso; e o fato de pressuporem
mesmo que o paciente implore a sua libertação da vida, mesmo
esse interesse não prova, de forma algum a, que ele existe. N a
que seus parentes, para quem a vida do paciente é indigna e
verdade, ele não é evidente por si mesmo.
para quem o custo de manter essa vida indigna se torna insupor
tável, lhe assegurem a redenção do sofrimento. T alvez se trate Vejamos, finalm ente, as disciplinas que me são próxim as:
Sociologia, H istória, Economia, Ciência Política e os tipos de
172 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 173

Filosofia C ultural que têm como tarefa interpretar essas ciências. interna dos valores culturais, e outra coisa é responder a pergun
Afirm a-se, e concordo com isso, que a política está deslocada tas sobre o v alor da cultura e seus conteúdos individuais, e à
na sala de aulas. Não é o lu gar adequado, no que concerne questão de como devemos agir na com unidade cultural e nas
aos alunos. Se, por exemplo, na sala de aula de meu ex-colega associações políticas. São problemas totalmente heterogêneos.
Dietrich Schãfer, de Berlim , os alunos pacifistas lhe cercassem Se perguntarm os por que não nos devemos ocupar de ambos os
a mesa e provocassem tumulto, eu deploraria esse fato da mesma tipos de problemas na sala de aula, a resposta será: porque o
forma que deploro a agitação provocada pelos estudantes antipa- profeta e o demagogo não pertencem à cátedra acadêmica.
cifistas contra o Professor Fõrster, cujas opiniões estão, sob Ao profeta e ao demagogo, dizemos: “Ide para as ruas e fa
certos aspectos, totalmente longe das minhas. Mas a política lai abertamente ao m undo”, ou seja, falai onde a crítica é pos
também não deve entrar na sala de aula levada pelo docente, sível. N a sala de aula ficamos frente à nossa audiência, que
e quando este se interessa cientificamente pela Política, ainda tem de permanecer calada. Considero irresponsabilidade explo
muito menos. rar a circunstância de que, em benefício de sua carreira, os
Tom ar um a posição política prática é um a coisa, e analisar alunos têm de freqüentar o curso de um professor onde não
as estruturas políticas e as posições partidárias é outra. Ao há ninguém presente para fazer-lhe críticas. A tarefa do pro
falar num comício político sobre a democracia, não esconde fessor é servir aos alunos com o seu conhecimento e experiên
mos nosso ponto de vista pessoal; na verdade, expressá-lo clara cia e não im por-lhes suas opiniões políticas pessoais. É, sem
mente e tomar um a posição é o nosso dever. As palavras que dúvida, possível que o professor individual não consiga elim inar
usamos nesse comício não são meios de análise científica, mas totalmente suas simpatias pessoais. Fica, então, sujeito à crítica
meios de conseguir votos e vencer os adversários. Não são mais violenta no foro de sua própria consciência. E tal defi
arados para revolver o solo do pensamento contemplativo; são ciência nada prova; outros erros são também possíveis, por exem
espadas contra os inim igos: tais palavras são armas. Seria um plo, exposições errôneas de fatos, e, não obstante, nada provam
ultraje, porém, usá-las do mesmo modo na sala de aula ou na contra o dever de se buscar a verdade. Tam bém rejeito essa
sala de conferências. Se, por exemplo, estivermos discutindo hipótese no interesse mesmo da ciência. Estou pronto a provar,
“democracia”, examinaremos suas várias formas, analisaremos com as obras de nossos historiadores, que sempre que o homem
os modos pelos quais funcionam, determinaremos que resultados de ciência introduz seu julgam ento pessoal de valor, cessa a
tem uma forma para as condições de vida em comparação com plena compreensão dos fatos. Mas isto foge ao âmbito do tema
a outra. Então, enfrentamos as formas da democracia com desta noite e exigiria um a elucidação mais demorada.
formas não-democráticas de ordem política e procuramos che Apenas indago: como podem um católico devoto, de um
gar à posição em que o estudante possa encontrar o ponto do lado, e um maçom, de outro, num curso sobre as formas da
qual, em termos de seus ideais últimos, venha a tomar um a po Igreja e do Estado, ou sobre a história religiosa, vir a pensar
sição. Mas o verdadeiro professor evitará impor, da sua cátedra, de m aneira semelhante sobre esses assuntos? Isto está fora de
qualquer posição política ao aluno, quer seja ela expressa ou questão. N ão obstante, o professor acadêmico deve desejar, e
sugerida. “D eixar que os fatos falem por si” é a forma mais deve exigir de si mesmo, servir a um e a outro, com seu
parcial de apresentar um a posição política ao aluno. conhecimento e métodos. Pode-se dizer, porém, e com acêrto,
Por que nos devemos abster de assim agir? Afirmo, ante que o católico devoto jam ais aceitará a opinião sobre os fa
cipadamente, que alguns colegas muito estimados são de opinião tores que provocaram o aparecimento do cristianism o que um
que não é possível praticar essa autocontenção e que, mesmo professor livre de seus pressupostos dogmáticos lhe apresenta.
se o fosse, seria um a extravagância evitar declarar-se. Não é Certam ente! A diferença, porém, está no seguinte: a ciência
possível demonstrar cientificamente qual o dever de um pro “livre de pressuposições”, no sentido de um a rejeição dos laços
fessor acadêmico. Só podemos pedir dele que tenha a inte religiosos, não conhece o “m ilagre” e a “revelação”. Se o fizesse,
gridade intelectual de ver que um a coisa é apresentar os fatos, a ciência seria infiel às suas próprias “pressuposições”. O crente
determ inar as relações matemáticas ou lógicas, ou a estrutura conhece tanto o m ilagre quanto a revelação. E a ciência “livre
174 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A CIÍNCIA c o mo vo cação 175

de pressuposições” espera dele nada menos — e nada mais — nas Fleu rs du m al, nome que Baudelaire deu ao seu livro de
do que o reconhecimento de que se o processo puder ser expli poemas. É um lugar-com um observar que um a coisa pode ser
cado sem essas intervenções sobrenaturais, que um a explicação verdade, embora não seja bela nem sagrada nem boa. De
em pírica tem de elim inar como fatores causais, o processo terá fato, ela pode ser verdadeira precisamente nesses aspectos. Mas
de ser explicado da forma pela qual a ciência tenta explicá-lo. todos esses casos são os m ais elementares na luta em que os
E o crente pode fazer isso sem ser infiel a sua crença. deuses das várias ordens e valores se estão empenhando. Não
sei como poderemos desejar decidir “cientificam ente” o valor
Mas a contribuição da ciência terá qualquer sentido para da cultura francesa e alem ã; pois aqui, também, deuses dife
um homem que não se interessa em conhecer os fatos, como rentes lutam entre si, agora e em todos os tempos futuros.
tais, e para quem apenas o ponto de vista prático tem importân
cia? T alvez a ciência contribua, não obstante, com algum a Vivemos como os antigos, quando o seu mundo ainda não
coisa. havia sido desencantado de seus deuses e demônios, e apenas
vivemos num sentido diferente. T al como o homem helénico
A tarefa prim ordial de um professor útil é ensinar seus alu por vezes fazia sacrifícios a Afrodite e outras vezes a Apoio
nos a reconhecer os fatos “inconvenientes” — e quero dizer os e, acima de tudo, como todos faziam sacrifícios aos deuses da
fatos que são inconvenientes para suas opiniões partidárias. E cidade, assim fazemos nós, ainda hoje, tendo apenas a atitude
para cada opinião partidária há fatos que são extremamente do hómem sido desencantada e despida de sua plasticidade mís
inconvenientes, para m inha própria opinião e para a opinião tica, mas interiorm ente autêntica. O destino, e certamente não
dos outros. Acredito que o professor realiza mais do que uma a “ciência”, predom ina sobre esses deuses e suas lutas. Po
simples tarefa intelectual se compelir sua audiência a se habituar demos, apenas, compreender o que a divindade representa para
à existência de tais fatos. Eu seria tão imodesto a ponto de um a ordem ou para outra, ou melhor, o que ela é num a e
aplicar a expressão “realização m oral”, embora talvez ela possa noutra ordem. Com esse entendimento, porém, a questão che
parecer demasiado grandiosa para uma coisa que nem precisa gou ao seu lim ite, pelo menos ao lim ite em que pode ser dis
ser dita. cutida num a sala de conferências e por um professor. Não
Até agora, falei apenas das razões práticas que levam a obstante, o grande e vital problema aqui encerrado está, decerto,
evitar a imposição de um ponto de vista pessoal. Mas estas muito, longe de sua conclusão. Mas outras forças além das
não são as únicas razões. A impossibilidade de defender “cien cátedras universitárias têm sua influência nessa questão.
tificam ente” as posições práticas e interessadas — exceto na Que homem se atribuirá a tentativa de “refutar cientifica
discussão dos meios para fins firm emente dados e pressupostos mente” a ética do Serm ão da M ontanha? Por exemplo, a frase
— baseia-se em razões muito m ais profundas. “não resistir ao m al”, ou a im agem de voltar a outra face? Não
obstante, é claro, sob a perspectiva m undana, que se trata de
A defesa “científica” é destituída de sentido em princípio
um a ética de conduta ind ign a; temos de escolher entre a dign i
porque as várias esferas de valor do mundo estão em conflito
dade religiosa que ela confere e a dignidade da conduta viril
inconciliável entre si. O velho M ill, cuja filosofia não elogio
que prega algo totalm ente diferente; “resistir ao m al — para
sob outro aspecto, tinha razão, nesse ponto, ao dizer: Se par
tirmos da experiência pura, chegaremos ao politeísmo. É uma não sermos co-responsáveis pela sua vitória”. Segundo nosso
formulação rasa, e parece paradoxal, mas não obstante há ver ponto de vista últim o, um é o demônio e o outro é Deus, e o
indivíduo tem de decidir qu al é para ele o Deus e qu al o
dade nela. Voltamos a compreender hoje, pelo menos, que
algum a coisa pode ser sagrada não só a despeito de não ser demônio. E o mesmo acontece em todas as ordens da vida.
bela, m as porque não é bela, e na m edida em que não é bela. O racionalismo grandioso de um a conduta de vida ética e
Isso está documentado no capítulo 53 do Livro de Isaías, e no metódica, que flui de toda profecia religiosa, destronou esse
Salmo 21. E, desde Nietzsche, compreendemos que um a coisa politeísmo em favor “daquilo que é necessário”. Frente às
pode ser bela não só apesar do aspecto no qual não é boa, mas realidades da vida exterior e interior, o cristianism o considerou
antes nesse aspecto mesmo. Isso foi expresso anteriormente necessário fazer concessões e julgam entos relativos, que todos
176 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO 177

nós conhecemos na sua história. Hoje, as rotinas da vida co à m inha mãe. Eis tudo. N a verdade, se o professor for um
tidiana desafiam a religião. Muitos deuses antigos ascendem de treinador de futebol, então, nesse campo é um líder. Se, porém,
seus túm ulos; desencantaram-se e tomaram, por isso, a forma não for um treinador (ou qualquer outra coisa num setor
de forças impessoais. Lutam para conseguir poder sobre nossa esportivo diverso), é simplesmente um professor, e nada mais.
vida e retomam novamente sua luta eterna entre si. O que E nenhum jovem am ericano pensaria que o professor lhe possa
é difícil para o homem moderno, e especialmente para a geração vender um a W eltan sch auun g ou um código de conduta. Q uan
mais nova, é estar à altura da existência do trabalho cotidiano. do o pensamento é formulado dessa m aneira devemos rejeitá-
A busca onipresente de “experiência” nasce dessa fraqueza; pois -lo. M as a questão é se há ou não algum a verdade nesse sen
é uma fraqueza não ser capaz de aprovar a inexorável seriedade timento, que ressaltei deliberadamente com algum exagero.
de nossos tempos fatídicos.
A m igos estudantes! V inde às nossas aulas e exigi de nós
Nossa civilização destina-nos a compreender m ais claram en as qualidades de liderança, sem compreender que de cem pro
te essas lutas, de novo, depois que nossos olhos estiveram cegos fessores pelo menos 99 não pretendem ser treinadores de futebol
por m il anos — cegos pela suposta, ou presumidamente exclu nos problemas vitais da vida, ou mesmo ser “líderes” em ques
siva, orientação para com o fervor moral grandioso da ética tões de conduta. Vede, por favor, que o valor de um homem
cristã. não depende de ter ou não qualidades de liderança. E, de
Basta, porém, dessas questões que nos levam longe. Estão qualquer modo, as qualidades que fazem de um homem um
errados os jovens que reagem a tudo isso dizendo: “Sim, mas excelente erudito e professor acadêmico não são as qualidades
comparecemos às preleções a fim de experim entar algo mais do que fazem o líder dar orientações na vida prática ou, mais
que a simples análise e formulações de fato”. O erro é que especificamente, na política. É por mero acaso que o professor
eles buscam no professor algo diferente daquilo que está à sua possui também essa qualidade; seria um a situação crítica se
frente. A nseiam por um líder, e não um professor. Mas es todo professor se visse frente à expectativa dos alunos de que
tamos colocados na cátedra exclusivamente como professores. ele pretenda essa qualidade. E ainda m ais crítica se todo pro
E são duas coisas diferentes, como se pode ver imediatam ente. fessor se considerasse um líder na sala de aula. A quêles que
Seja-m e perm itido levar-vos novamente à A m érica, porque ali freqüentemente se consideram líderes quase sempre são os menos
podemos observar, com freqüência, essas questões em sua forma dotados para isso. M as, a despeito de serem ou não líderes, a
situação m agisterial simplesm ente não oferece possibilidade de
mais maciça e original.
prov ar suas qualidades de liderança. O professor que se sente
O rapaz americano aprende muito menos do que o rapaz chamado a agir como conselheiro da juventude e desfruta a
alemão. A pesar de um número incrível de exames, sua vida confiança desta pode ser um homem que m antém relações pes
escolar não o tranforma na criatura ahsoluta dos exames, como soais com os jovens. E, se ele se sente chamado a intervir nas
ocorre com os alemães. Pois na A m érica, a burocracia, que
lutas das opiniões m undiais e posições partidárias, poderá fazê-lo
pressupõe o diplom a de exame como o bilhete de entrada para
fora da aula, no mercado, n a im prensa, nos comícios, nas asso
o reino das prebendas, está apenas em seus primórdios. O
ciações, onde quer que o deseje. A final de contas, é m uito
jovem am ericano não tem respeito por coisa algum a, nem por
cômodo demonstrar coragem tomando um a posição quando a
ninguém , pela tradição ou pelo cargo público — a menos que
seja pela realização pessoal dos homens individualm ente. É audiência e os possíveis adversários estão condenados ao silêncio.
a isso que o am ericano cham a de “democracia”. É esse, porém, Finalm ente, pode-se levantar a questão: “Se assim é, que
o significado de democracia, por m ais deformada que sua in contribuição real e positiva traz a ciência para a ‘vida’ prática
tenção possa ser na realidade, e a intenção é o que conta, aqui. e pessoal?” Com isso estamos novamente de volta ao problema
A concepção que o americano tem do professor que o enfrenta da ciência como “vocação”.
é: ele me vende seu conhecimento e seus métodos em troca Prim eiro, é claro, a ciência contribui para a tecnologia do
do dinheiro do meu pai, tal como o verdureiro vende repolhos
controle da vida calculando os objetos externos bem como as
12
178 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
A C IÊ N C IA COMO VOCAÇÃO 179
atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso pode ser deduzida destas ou daquelas outras posições. Falando
equivale ao verdureiro do rapaz americano. Concordo plena
figuradam ente, servimos a este deus e ofendemos ao outro deus
mente.
quando resolvemos adotar um a ou outra posição. E se conti
Segundo, a ciência pode contribuir com algo que o ver nuarmos fiéis a nós mesmos, chegaremos necessariamente a cer
dureiro não pode: métodos de pensamento, os instrumentos e tas conclusões finais que, subjetivamente, têm sentido. É isso
o treinam ento para o pensamento. Direis, talvez: “Bem, isso o que, pelo menos em princípio, podemos realizar. A Filosofia,
não são verduras, mas não vai, também, além dos meios para como disciplina especial, e as discussões filosóficas de princípios
conseguir as verduras”. Fiquemos hoje por aqui. nas outras Ciências procuram realizar isso. Assim, se formos
Felizm ente, porém, a contribuição da ciência não alcança competentes em nossa empresa (o que devemos pressupor, aqui)
seu lim ite, com isso. Estamos em condições de levar-vos a um podemos forçar o indivíduo, ou pelo menos podemos ajudá-lo,
terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos, decerto, que nós mes a prestar a si mesmo con tas do sign ificado últim o de su a p ró­
mos possuímos clareza. N a m edida em que isso ocorre, podemos pria con duta. Isto não me parece pouco, mesmo em relação a
deixar-vos claro o seguinte: nossa vida pessoal. Sou tentado, novamente, a dizer de um
N a prática, podeis tomar esta ou aquela posição em relação professor que consegue êxito sob tal aspecto: ele está a serviço
a um problema de valor — simplificando, pensai, por favor, de forças “m orais”; ele cum pre o dever de provocar o auto-
nos fenômenos sociais como exemplos. Se tomardes esta ou -esclarecimento e um senso de responsabilidade. E creio que
aquela posição, então, segundo a experiência científica, tereis ele estará mais capaz de realizar isso na m edida em que evitar
de usar tais e tais m eios para colocar em prática vossa convicção. conscienciosamente o desejo de impor ou sugerir, pessoalmente,
Ora, tais meios talvez sejam de tal ordem que sua rejeição à sua audiência a posição que tomou.
vos pareça imperiosa. Tendes, então, simplesmente de escolher A proposição que apresento aqui parte sempre do fato fun
entre o fim e os meios inevitáveis. Justificará o “fim ” os meios? dam ental de que, enquanto a vida continuar im anente e fôr in
Ou não? O professor pode apresentar-vos a necessidade de terpretada em seus próprios termos, conhecerá apenas a luta
tal escolha. Não pode fazer mais do que isso, enquanto quiser incessante desses deuses entre si. Ou, falando diretamente, as
continuar como professor, e não tornar-se um demagogo. Ele atitudes últim as possíveis para com a vida são inconciliáveis,
pode, decerto, dizer-vos também que, se desejais este e aquele daí sua luta jam ais chegar a um a conclusão final. Assim , é
fim , então deveis aceitar as conseqüências subsidiárias que, se necessária um a escolha decisiva. Se, nessas condições, a ciência
gundo toda experiência, ocorrerão. Encontramo-nos novamente é um a “vocação” digna para alguém , e se a ciência em si tem
na m esm a situação de antes. H á ainda problemas que também “vocação” objetivamente digna, são julgam entos de valor sobre os
podem surgir para o técnico, que em numerosos casos tem de quais nada podemos dizer na sala de aula. A firm ar o valor da
tomar decisões de acordo com o princípio do menor m al ou do ciência é um a pressuposição a ser ensinada ali. Pessoalmente,
relativam ente melhor. Apenas, p ara ele, um a coisa, a principal, pelo m eu trabalho mesmo, respondo pela afirm ativa, e também
é habitualm ente dada, o fim. M as tão logo problemas real
o respondo precisamente do ponto de vista que odeia o intelec
mente “últim os” estão em jogo para nós, tal não é o caso. Com
tualismo como o pior dos males, tal como o faz hoje a juven
isso, finalm ente, chegamos ao serviço final que a ciência, como
tude, ou habitualm ente apenas im agina que faz. Nesse caso,
tal, pode prestar ao objetivo da clareza, e ao mesmo tempo
a advertência é válida para os jovens: “Cuidado, o diabo é
chegamos aos lim ites da ciência.
velho; envelhecei também para compreendê-lo”. Isto não signi
A lém disso, podemos e devemos dizer: em termos de seu fica a idade, no sentido da certidão de nascimento. Significa que
significado, tal ou qu al posição prática pode ser deduzida com se desejarmos haver-nos com esse diabo teremos de não fugir à
coerência interior, e daí integridade, a partir desta ou daquela sua frente, como gostam de fazer tantas pessoas, hoje. Em pri
posição de w eltan sch aulich e últim a. T alvez só possa ser de meiro lugar, temos de perceber-lhe os processos, para compre
duzida dessa posição fundam ental, ou talvez de várias, mas não ender seu poder e suas limitações.
180 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A C IÊ N C IA CO M O VOCAÇÃO 181

A ciência hoje é um a “vocação” organizada em disciplinas mento da teologia teve, de fato, a maior significação histórica.
especiais a serviço do auto-esclarecimento e conhecimento de É o produto do espírito helénico, e toda a teologia do Ocidente
fatos inter-relacionados. Não é o dom da graça de videntes e a ele remonta, como (obviam ente) toda a teologia do Oriente
profetas que cuidam de valores e revelações sagradas, nem par remonta ao pensamento indiano. Toda teologia representa uma
ticipa da contemplação dos sábios e filósofos sobre o significado racion aliz ação intelectual da posse de valores sagrados. Ne
do universo. É essa, na verdade, a condição inevitável de nossa nhum a ciência é absolutamente livre de pressuposições, e ne
situação histórica. N ão podemos fugir a ela enquanto conti nhum a ciência pode provar seu valor fundam ental ao homem
nuarmos fiéis a nós mesmos. E se lembrarmos a questão de que rejeita essas pressuposições. Toda teologia, porém, acres
Tolstói: se a ciência não dá, quem dará resposta à pergunta centa algum as pressuposições específicas ao seu trabalho e, assim,
“Que faremos e como disporemos nossas vid as?”, ou, nas pa à justificação de sua existência. Seu sentido e âmbito variam .
lavras usadas aqui, esta noite: “‘A qual dos deuses em luta ser T oda teologia, inclusive, por acaso, a teologia hinduísta, pres
viremos? Ou deveremos servir, talvez, a um deus totalmente supõe que o m undo deve ter um sign ificado, e a questão é
diferente, e quem é ele? Podemos dizer que somente um profeta como interpretar êsse significado de modo a torná-lo intelectual
ou um salvador podem dar as respostas. Se não houver tais ho mente concebível.
mens, ou se sua mensagem já não for recebida com confiança, en Ocorre o mesmo com a epistemologia de K ant. P artiu êle
tão, certamente não forçaremos o seu aparecimento nesta Terra, fa da seguinte pressuposição: “A verdade científica existe e é vá
zendo que m ilhares de professores, como assalariados privilegia
lid a”, e em seguida indagou: “Sob quais pressuposições de pen
dos do Estado, tentem, como pequenos profetas em suas salas
samento é a verdade possível e dotada de significação?” Os es
de aula, assum ir tal papel. T udo o que realizarão e mostrar tetas modernos (n a realidade ou expressamente, como por exem
que não têm consciência do estado de coisas decisivo: o profeta plo G. v. L ukacs) partiram do pressuposto de que “as obras de
por quem , na nossa geração m ais nova, tanto anseiam sim arte existem”, e em seguida indagaram : Como pode ter sentido
plesmente não existe. Mas esse cor\hecimento, com sua poderosa e ser possível a sua existência?
significação, jam ais se tornou vital para eles. Os interesses in
teriores de um homem “m usical” verdadeiram ente religioso ja Em geral, porém, as teologias não se satisfazem com esses
m ais podem ser servidos se lhe ocultarmos, a ele e aos outros, pressupostos, essencialmente religiosos e filosóficos. Procedem
o fato fundam ental de que está destinado a viver num a epoca regularm ente de outro pressuposto, de que certas “revelações”
sem deus e sem profetas, dando-lhe o ersatz de um a profecia são fatos relevantes para a salvação e, como tal, possibilitam
de gabinete. A integridade de seu órgão religioso, ao que me um a conduta de vida dotada de sentido. Portanto, devemos acre
parece, deve rebelar-se contra isso. ditar nessas revelações. A lém disso, as teologias pressupõem que
H á quem se incline a indagar: que posição devemos tomar certos estados e atos subjetivos possuem a qualidade da santida
para com a existência concreta da “teologia” e suas pretensões de, isto é, que constituem um modo de vida, ou pelo menos
a ser um a “ciência” ? Não procuremos responder com evasivas. elementos de um modo de vida, que têm um sentido religioso.
N a verdade, “teo lo gia’ e “dogmas” não existem universalmente, Então, a questão da teologia é: como interpretar esses pressu
mas nenhum deles existe apenas no cristianismo. Existem antes postos, que devem ser simplesmente aceitos, n um a visão do un i
(rem ontando no tempo) de forma altam ente desenvolvida tam verso que tenha sentido? P ara a teologia, os pressupostos como
bém no islã, no maniqueísmo, no agnosticismo, no orfismo, no tal estão fora dos lim ites da “ciência’ . N ão representam o
parsismo, no budismo, nas seitas hindus, no tauísm o e nos U pa- “conhecimento”, no sentido habitual, mas antes um a “possessão”.
nichades e, é claro, no judaísm o. N a verdade, seu desenvolvi Quem não “possui” fé, ou os outros estados sagrados, não pode
mento sistemático varia muito. Não foi por acaso que o cristia fazer da teologia um sucedâneo deles, e muito menos qualquer
nismo ocidental — em contraste com as posses teológicas do outra ciência. Pelo contrário, em toda teologia “positiva” o
judaísm o — desenvolveu e elaborou a teologia muito mais sis devoto chega ao ponto em que predomina a sentença agostiniana:
tem aticam ente, ou procura fazê-lo. No Ocidente, o desenvolvi- credo non qttod, se d qu ia absurdum est.
182 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
A C IÊ N C IA CO M O VO CAÇÃO 183

A capacidade para a realização dos virtuosos religiosos — o mentos dos últimos vinte anos. Se tentarmos construir intelec
“sacrifício intelectual” — é a característica decisiva do homem tualm ente novas religiões sem um a profecia nova e autêntica, en
positivamente religioso. Isso se evidencia pelo fato de que apesar tão, num sentido íntim o, resultará algum a coisa semelhante, mas
(ou, antes, em conseqüência) da teologia (que a revela) a tensão com efeitos ainda piores. E a profecia acadêmica, finalm ente,
entre as esferas de valor da “ciência” e a esfera do “sagrado” é criara apenas seitas fanáticas, mas nunca um a com unidade au
insuperável. Legitim am ente, só o discípulo oferece o “sacrifício têntica.
intelectual” ao profeta, o crente, à igreja. A inda não surgiu uma P ara quem não pode enfrentar como homem o destino da
nova profecia (e repito, deliberadamente, esta im agem que ofen epoca, devemos d izer: possa ele voltar silenciosamente, sem a
deu a certas pessoas) através da necessidade que alguns intelec publicidade habitual dos renegados, mas simples e quietam ente.
tuais modernos têm de mobiliar suas almas, por assim dizer, com Os braços das velhas igrejas estão abertos para eles, e, afinal
antigüidades autênticas garantidas. A o fazê-lo, lembram-se de de contas, elas não criam dificuldades à sua volta. De uma
que a religião pertencia a essas antigüidades, e de todas as coisas forma ou de outra, ele tem de fazer o seu “sacrifício intelectual”
a religião é exatamente o que não possuem. Como sucedâneo, — isso é inevitável. Se ele puder realm ente fazê-lo, não o
porém, divertem-se decorando um a espécie de capela doméstica criticaremos. Pois tal sacrifício intelectual em favor de um a
com pequenas im agens sagradas de todo o mundo, ou produzem dedicação religiosa é eticam ente diferente da evasão do dever
substitutos através de todas as formas de experiências psíquicas claro de integridade intelectual, que surge quando falta a cora
às quais atribuem a dignidade da santidade mística, que negociam gem de esclarecer a posição últim a que foi tom ada e facilita
no mercado de livros. Estão, evidentemente, enganando-se a si esse dever através de frágeis julgam entos relativos. Aos meus
mesmos. N ão se trata, porém, de um embuste, mas de algo olhos, esse retorno religioso paira m ais alto do que a profecia
muito sincero e genuíno, quando alguns dos grupos de jovens acadêmica, que não compreende claram ente que nas salas de
que nos últim os anos se form aram juntos, em silêncio, dão à aula da universidade nenhum a outra virtude é válida a não ser
sua com unidade hum ana a interpretação de um a relação religiosa, a simples integridade intelectual. A integridade, porém, nos
cósmica ou mística, embora ocasionalmente talvez essa interpre obriga a dizer que para os m uitos que hoje anseiam por novos
tação repouse num a interpretação errônea do eu. Por mais certo profetas e salvadores, a situação é a mesma que ressoa na bela
que seja que todo ato de fraternidade autêntica pode estar ligado canção edom ita do vigia, do período de exílio, incluída entre os
à consciência de que ele contribui com algo imperecível para um oráculos de Isaías:
reino suprapessoal, parece-me duvidoso que a dignidade de rela
ções puram ente hum anas e comunais seja fortalecida por essas E l e gritou-m e de Seir, Vigia, o que é da noite? Vigia, o que é
interpretações religiosas. Mas isto já não é nosso tema. da noite? E o Vigia disse: Vem a m anhã e tam bém a
noite: se quereis perguntar, perguntai; voltai, vinde.
O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionaliza
ção e inteleetualização e, acima de tudo, pelo “desencantamento
do m undo”. Precisamente os valores últimos e mais sublimes O povo a quem isto foi dito havia indagado e ansiado por
m ais de dois milênios, e estremecemos quando lhe compreendemos
retiraram -se da vida pública, seja para o reino transcendental da
a sorte. E disso queremos extrair a lição de que nada se ganha
vida mística, seja para a fraternidade das relações hum anas diretas
ansiando e querendo apenas, e agiremos de modo diferente.
e pessoais. N ão é por acaso que nossa m aior arte é íntim a,
Procuraremos trabalhar e atender às “exigências do momento”,
e não m onum ental, não é por acaso que hoje somente nos círculos
nas relações hum anas e em nossa vocação. Isto, porém, é claro
menores e m ais íntimos, em situações hum anas pessoais, em e simples, se cada um de nós encontrar e obedecer ao demônio
pian íssim o, é que pulsa algum a coisa que corresponde ao pn eum a que controla os cordões de nossa próf>riá vida.
profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades
como um incêndio, fundindo-as numa só unidade. Se procu
rarmos forçar e “inventar” um estilo m onum ental na arte, produ-
zcm-se monstruosidades tão miseráveis quanto os muitos monu-
Pa r t e II

PODER
VI. Estruturas do Poder

1. O P r e st í g i o e o P o d e r d a s “G r a n d e s P o t ê n c i a s ”

T o d a s a s e s t r u t u r a s políticas usam a força, mas diferem no


modo e na extensão com que a em pregam ou am eaçam em
pregar contra outras organizações políticas. Essas diferenças
têm um papel específico na determinação da forma e destino
das comunidades políticas. Nem todas as estruturas políticas são
igualm ente “expansivas”. Não lutam todas por um a expansão
exterior de seu poder, ou mantêm sua força pronta para a aquisi
ção de poder político sobre outros territórios e comunidades, pela
sua incorporação ou tornando-os dependentes. Por isso, como
estruturas do poder, as organizações políticas variam na medida
em que se voltam para o exterior.
A estrutura política da Suíça é “neutralizada” através de
um a garantia coletiva das Grandes Potências. Por várias razões,
a Suíça não é m uito desejada como objeto de incorporação. Os
ciúmes mútuos existentes entre comunidades vizinhas, de igual
força, a protegem dessa sorte. A Suíça, bem como a N oruega,
está menos am eaçada do que a H olanda, que possui colônias; e
esta sofre menos am eaça do que a Bélgica, pois as possessões
coloniais belgas ficariam m uito expostas, como a própria Bélgica,
no caso de um a guerra entre seus vizinhos poderosos. A Suécia
também está muito exposta.

Wirtschaft und Gesellschaft (Tübingen, edição de 1922), P arte


III, cap. 3, pp. 619-30; e Gesammelte Aufsaetze zur Soziologie und
Sozialpolitik (Tübingen, 1924), pp. 484-6. Wirtschaft und Ge
sellschaft foi publicado postum am ente (1921) como p arte do
G rundriss fü r Sozialokonomik, preparado por J . C. B. M ohr (P.
Siebeck), Tübingen. W eber trabalhou nas partes descritivas de
Wirtschaft und Gesellschaft a p a rtir de 1910, e a m aioria dos capí
tulos foi escrita, essencialmente, antes de 1914.
188 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
E ST R U T U R A S DO PODER 189

Toda estrutura política prefere, naturalm ente, vizinhos fracos


A atitude das estruturas políticas para com o exterior pode
a vizinhos fortes. A lém disso, como toda com unidade política
ser m ais ‘“isolacionista” ou mais “expansiva’’. E essas atitudes
de grandes proporções é um aspirante potencial ao prestígio e
se modificam. O poder das estruturas políticas tem um a dinâ
um a ameaça potencial a todos os seus vizinhos, a grande comu
mica interna específica. À base desse poder, os membros podem
nidade política, simplesmente porque é grande e forte, está la
pretender um “prestígio” especial, e suas pretensões podem influir
tente e constantemente em perigo. Finalm ente, em virtude de
na conduta externa das estruturas do poder. A experiência nos
um a inevitável “dinâm ica do poder”, sempre que surgem pre
ensina que as pretensões de prestígio estiveram sempre presentes
tensões de prestígio — e isso resulta norm alm ente de um agudo
na origem das guerras. Seu papel é difícil de estim ar: não
perigo político para a paz — elas desafiam e exigem a competi
pode ser determ inado de modo geral, embora seja bastante evi
ção de outros possíveis portadores de prestígio. A história da
dente. O império da “honra”, que é comparável ao que existe
últim a d écad a,1 especialmente as relações entre a A lem anha e
em um a organização estamental, domina as relações das orga
a França, mostra o efeito destacado desse elemento irracional
nizações políticas entre si. As camadas senhoriais feudais, assim
em todas as relações exteriores políticas. O sentimento de pres
como as modernas classes de burocratas e oficiais, são os expoen
tígio pode fortalecer a crença ardente na existência real do nosso
tes naturais e primários desse desejo de prestígio, puramente
próprio poderio, pois tal crença é importante para a confiança
orientado para o poder, na própria organização política em que
positiva no caso de conflito. Portanto, todos os que têm inte
vivem. O poder para a sua comunidade política significa poder
resses na estrutura política tendem, sistematicamente, a cultivar
para eles, bem como prestígio baseado nesse poder.
esse sentimento de prestígio. Hoje em dia, é comum referirm o-
Para o burocrata e o oficial, uma expansão do poder, porém, -nos às comunidades que parecem ser portadoras do prestígio
significa m ais cargos, m ais sinecuras e melhores oportunidades de do poder como as “Grandes Potências”.
promoção. (T a l caso pode ocorrer até mesmo para o oficial numa
Entre as várias estruturas políticas coexistentes, algum as, as
guerra perdida.) Para o vassalo feudal, a expansão do poder
Grandes Potências, habitualm ente se atribuem , e usurpam , o
significa a aquisição de novos objetos de enfeudamento e mais
interesse pelos processos políticos e econômicos dentro de um a
provisões para sua progénie. Em seu discurso em favor das
am pla órbita. Hoje, essas órbitas abarcam tôda a superfície do
Cruzadas, o Papa U rbano focalizou a atenção nessas oportuni
planeta.
dades, e não, como se tem dito, na “superpopulação”.
N a A ntigüidade H elénica, o ‘“R ei”, isto é, o rei persa, apesar
A lém desses interesses econômicos diretos, que naturalmente de sua derrota, era a Grande Potência que gozava de reconheci
existem em toda parte entre as camadas que vivem do exercício mento m ais geral. Esparta voltou-se para ele a fim de impor,
do poder político, a luta pelo prestígio concerne a todas as estru com sua sanção, a Paz do Rei (P az de A ntálcidas) sobre o
turas específicas de dominação e, portanto, a todas as estruturas m undo helénico. M ais tarde, antes da criação de um império
políticas. Ess,a luta não é idêntica simplesmente ao “orgulho na m undial romano, a República romana assum iu tal papel.
cional” — falaremos disso mais adiante — e não é idêntica ao
simples orgulho das qualidades excelentes, reais ou im aginárias, Por motivos gerais da “dinâm ica do poder” em si, as Grandes
da nossa comunidade política ou pela simples posse dessa estru Potências são, com freqüência, potências expansionistas; ou seja,
tura. Esse orgulho pode estar m uito desenvolvido, como ocorre são associações que visam a expandir os territórios de suas res
entre os suíços e noruegueses, e não obstante pode ser, na prática, pectivas comunidades políticas pelo uso, ou am eaça de uso, da
rigorosamente isolacionista e isento de pretensões de prestígio força, ou por ambas as coisas. As Grandes Potências, porém,
político. não são necessariamente, e nem sempre, orientadas para a expan
são. Sua atitude, sob tal aspecto, modifica-se freqüentemente,
O prestígio do poder, como tal, significa na prática a glória e nessas modificações os fatores econômicos desempenham um
do poder sobre outras comunidades; significa a expansão do papel importante.
poder, embora nem sempre pela incorporação ou sujeição. As
D urante algum tempo a política britânica, por exemplo, re
grandes comunidades políticas são as bases naturais dessas preten
sões de prestígio. nunciou deliberadamente à expansão política. Renunciou até
190 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
e st r u t u r a s d o po d e r 191
mesmo à conservação das colônias por meio da força, cm favor
sivamente político. Se os habitantes de um território buscarem
de um a política da “pequena Inglaterra”, baseada num a lim ita
vender os seus produtos prim ordialm ente no próprio mercado,
ção isolacionista e um recurso a um primado econômico consi podemos falar de um território economicamente unificado. Se
derado inabalável. Representantes influentes da classe romana todas as barreiras alfandegárias fossem elim inadas, o mercado
dominante dos notáveis intentaram um programa semelhante economicamente determ inado para o excedente de cereais da
de um a “pequena Rom a”, depois das Guerras Púnicas, para Alem anha O riental, pobre em glúten, não seria a A lem anha
restringir a submissão política romana à Itália e ilhas vizinhas. Ocidental, mas a Inglaterra. O mercado determ inado economi
Os aristocratas espartanos, na m edida em que puderam, li camente para os produtos de mineração e os produtos pesados
m itaram deliberadamente sua expansão política, em benefício do de ferro da A lem anha Ocidental não é, de modo algum , a
isolamento. Lim itaram -se a esm agar todas as outras estruturas A lem anha O riental; e a A lem anha Ocidental não é o principal
políticas que colocavam em risco seu poder e prestígio. Pre abastecedor, economicamente determinado, de produtos indus
feriram o particularism o da cidade-Estado. H abitualm ente, nesses triais para a A lem anha O riental. A cim a de tudo, as linhas de
casos, e em muitos outros semelhantes, os grupos dominantes comunicações interiores (ferrovias) da A lem anha não seriam —
de notáveis (a notabilidade rom ana de cargos, os notáveis in e, em parte, não são agora — rotas determ inadas economica
gleses e outros liberais, os senhores espartanos) abrigam temores mente para transportar mercadorias pesadas entre o leste e o
mais ou menos claros de que surja um “Imperador”, ou seja, oeste. A A lem anha O riental, porém, seria a localização econo-
um senhor da guerra carismático. A tendência para a centrali m ica das indústrias fortes, o mercado economicamente determ ina
zação do poder surge muito facilmente com um “im perialism o” do e o interior para toda a Rússia ocidental. Essas indústrias
cronicamente conquistador, e o senhor da guerra pode ganhar estão a g o ra 3 isoladas pelas barreiras alfandegárias russas, e foram
a ascendência a expensas do poder dos notáveis que governam. transferidas para a Polônia, diretamente atrás da fronteira alfan
Como os romanos, os ingleses, depois de curto tempo, fo degária russa. Com isso, como todos sabem, o A n sch luss político
ram obrigados a abandonar a sua política de autocontenção e dos poloneses russos à idéia im perial russa, que parecia ser poli
forçados à expansão política. Isso ocorreu, em parte, através dos ticamente impossível, passou a fazer parte do reino das possibi
interesses capitalistas na expansão. lidades. Assim, neste caso, relações de mercado determ inadas
exclusivamente pela economia tiveram um efeito politicam ente
unificador.
2. As B a se s E c o n ô m i c a s do “ Im p e r i a l i s m o ”
A A lem anha, porém, se tem unido politicam ente contra os
determ inantes econômicos. Não é raro que as fronteiras de uma
Poderíamos inclinar-nos a acreditar que a formação bem estrutura política entrem em conflito com a m era localização
como a expansão das Grandes Potências são, sempre e pri geográfica das indústrias; as fronteiras políticas podem abarcar
m ordialm ente, determ inadas economicamente. A suposição de um a área que, em termos de fatores econômicos, luta para
que o comércio, especialmente quando intenso e já existente separar-se dela. Nessas situações, surgem quase sempre tensões
num a área, é a condição prelim inar e a razão para a sua unifi entre os interesses econômicos. Se, porém, os laços políticos são
cação política poderia ser facilmente generalizada. Nos casos criados, estes são freqüentem ente — embora nem sempre — tão
individuais, essa suposição é realm ente válida. O exemplo do incomparavelmente m ais fortes que em condições favoráveis (por
Z ollv erein 2 está próximo, e há numerosos outros. A atenção exemplo, a existência de um idiom a com um ) ninguém nem
mais detalhada, porém, freqüentemente revela que essa coinci mesmo pensaria em separação política devido a essas tensões
dência não é necessária, e que o nexo causal de modo algum econômicas. Isto se aplica, por exemplo, à A lem anha.
aponta num a única direção.
A formação dos grandes Estados nem sempre segue as rotas
A A lem anha, por exemplo, só foi transform ada num terri
do comércio de exportação, embora hoje nos inclinem os a ver
tório econômico unificado através de barreiras alfandegárias em
as coisas dessa forma im perialista. Em geral, o im perialism o
suas fronteiras, cuja colocação foi determ inada de modo exdu-
‘“continental” — europeu, russo e americano — tal como o
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E S T R U T U R A S DO PODER 193

“im perialism o de além -m ar” dos ingleses, e os imperialismos que de evolução, e sua utilidade foi igualm ente reduzida para os
por ele se modelaram , seguem as trilhas dos interesses capitalistas fundadores do Império Chinês ou os fundadores da M onarquia
anteriormente existentes, especialmente nas áreas estrangeiras po Carolíngia.
liticam ente fracas. E o comércio de exportação teve seu papel
decisivo, decerto, pelo menos na formação dos grandes domínios É claro que, mesmo nesses casos, a importância econômica
do comércio não estava totalmente ausente; não obstante, outros
de além -m ar do passado — nos impérios de Atenas, Cartago e
motivos influíram em todas as expansões políticas interiores do
Roma.
passado, inclusive as C ruzadas. Esses motivos incluíram o in
Mesmo nessas organizações estatais da A ntigüidade, outros teresse pelas maiores rendas principescas, prebendas, feudos, car
interesses econômicos eram, pelo menos, de im portância igual gos e honras sociais para os vassalos, cavaleiros, oficiais, funcio
e freqüentemente maior do que os lucros comerciais: rendas nários, os filhos m ais jovens dos funcionários hereditários, etc.
provenientes da terra, arrendamento da coleta de impostos, tri Os interesses dos portos m arítim os comerciais não foram, decerto,
butos sobre cargos, e lucros semelhantes, eram os m ais desejados. tão decisivos quanto a expansão interior, embora fôssem im
No comércio exterior, por sua vez, o interesse pela venda em portantes como fatores adicionais desempenhando papéis secun
territórios estrangeiros passou claram ente para o segundo plano dários. A Prim eira C ruzada foi principalm ente um a cam panha
como motivo de expansão. N a era do capitalismo moderno interior.
o interesse em exportar para territórios estrangeiros predomina,
mas nos Estados antigos o interesse estava antes na posse de O comércio nem sempre apontou o caminho da expansão
territórios dos quais era possível im portar mercadoria (m atérias- política. O nexo causal foi, freqüentemente, o inverso. Entre
-p rim as). os impérios mencionados acima, os que tiveram um a adm inistra
ção tecnicamente capaz de estabelecer pelo menos meios de
Entre os grandes Estados que se form aram nas planícies in comunicação interna o fizeram com objetivos adm inistrativos.
teriores, a troca de mercadorias não teve papel regular nem deci
Em princípio, foi esse, com freqüência, o propósito exclusivo,
sivo. O comércio de mercadorias foi m ais importante para os
sem qualquer preocupação quanto à vantagem dos meios de
Estados situados à m argem de rios no Oriente, especialmente
comunicação para as necessidades comerciais existentes ou fu
para o E gito; isto é, para Estados que, sob esse aspecto, eram
turas.
semelhantes a Estados ultramarinos. O “im pério” dos mongóis,
porém, não se baseava em nenhum comércio intensivo de m er N as condições atuais, a Rússia bem pode ser considerada
cadorias. A li a mobilidade da cam ada dom inante de cavaleiros um a das organizações políticas cujos meios de comunicação (fer
compensava a falta de meios m ateriais de comunicação e tornava rovias, hoje) foram determinados principalm ente pelos fatores
possível a adm inistração centralizada. Nem o Império Chinês, políticos, e não econômicos. A estrada de ferro da Á ustria m e
nem o Persa, nem o Romano depois de sua transição de império ridional de igual modo constitui outro exemplo. (Su as ações
litorâneo para continente, formou-se e manteve-se à base de ainda são cham adas “lom bardas”, expressão carregada de rem i
um tráfico interior de mercadorias, preexistente e particularm ente niscências políticas.) E dificilm ente haverá um Estado sem
intensivo, ou em meios de comunicação m uito desenvolvidos. A “ferrovias estratégicas”. N ão obstante, grandes realizações desse
expansão continental de Roma foi, indubitavelm ente, determ i tipo foram feitas com a expectativa concomitante de um tráfego
nada de modo m uito acentuado, embora não exclusivamente, que assegurasse lucros a longo prazo. N ão foi diferente no
pelos interesses capitalistas, principalm ente dos que arrendavam passado: não se pode provar que as antigas estradas m ilitares
a coleta de impostos, dos caçadores de cargos e especuladores romanas tivessem um a finalidade comercial, e certamente tam
em terras e não primordialmente pelos interesses de grupos que bém não a tinham os postos de correio persas e romanos, que
buscavam um comércio particularm ente intensivo de mercadorias. atendiam exclusivamente a objetivos políticos. Apesar disso,
porém, o desenvolvimento do comércio no passado foi, decerto, o
A expansão da Pérsia não foi, de forma algum a, servida pelos
resultado norm al da unificação política. Esta colocou, pela
grupos de interesse capitalistas. T ais grupos não existiam ali
prim eira vez, o comércio em bases legais, asseguradas e garan
como forças motivadoras ou como determ inadoras do ritmo tidas. A té mesmo esta regra, porém, não é sem exceções, pois
13
194 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESTRUTURAS DO PODER 195

além de depender da pacificação e das garantias formais da im torna o dcno da terra. Isso ocorreu toda vez que o exército
posição da lei o desenvolvimento do comércio dependeu de certas não era mais um V ólh sh eerban n , composto de homens livres,
condições econômicas (especialmente do desenvolvimento do ca com equipamento próprio, ou mesmo um exército mercenário ou
pitalism o) . burocrático, mas um exército de cavaleiros auto-equipados, como
A evolução do capitalismo pode ser estrangulada pela forma ocorreu com os persas, árabes, turcos, normandos e os vassalos
que tom ar a adm inistração de um a estrutura política unificada. feudais ocidentais em geral.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em fins do Império Romano, O interesse pelo foro também significou muito para as co
quando um a estrutura unificada substituiu a liga de cidades- m unidades comerciais plutocráticas empenhadas na conquista.
-Estados, tendo por base um a forte economia agrária de subsis Como os lucros comerciais eram investidos, de preferência, em
tência. Isso deu lugar, cada vez mais, às liturgias como o modo terras e em servos endividados, o objetivo norm al da guerra,
de levantar recursos para o exército e a adm inistração; elas su mesmo na A ntigüidade, era conseguir terra fértil, capaz de pro
focaram diretam ente o capitalismo. porcionar foro. A G uerra L ela n tin a ,4 que marcou época no
Não obstante, se o comércio em si não é, de modo algum , o princípio da história helénica, foi realizada quase que totalmente
fator decisivo na expansão política, a estrutura econômica em no m ar e entre cidades comerciais. M as o objeto original da
geral contribui para determ inar as proporções e o modo da disputa entre os principais patrícios de Cálcis e E rétria, além dos
expansão política. A lém das m ulheres, gado e escravos, a escas vários tributos, era a fértil planície lelantina. Um dos privilé
sez de terra é um dos objetos originais e m ais destacados da gios m ais importantes que a L iga M arítim a Á tica ofereceu,
aquisição pela força. P ara conquistar com unidades camponesas, evidentemente, ao dem os da cidade dominante foi o rompi
o processo natural é tomar a terra diretam ente e obliterar a mento do monopólio das terras das cidades sujeitas. Os atenienses
população que a ocupava. receberiam o direito de adquirir e hipotecar terras em qualquer
lugar.
O movimento dos povos teutônicos seguiu, em geral, esse
curso em proporções moderadas. Como massa compacta, tal O estabelecimento do com m ercium entre as cidades aliadas
movimento provavelmente foi um pouco além das atuais fron de Rom a significou, na prática, a mesma coisa. T am bém os in
teiras lingüísticas, mas apenas em zonas dispersas. Até que teresses de além -m ar da massa de ítalos espalhados por tôda a
ponto a “escassez de terra”, causada pela superpopulação, con esfera de influência de Rom a certamente representou, pelo me
tribuiu, até que ponto a pressão política de outras tribos, ou nos em parte, interesses agrários de natureza essencialmente capi
simplesmente as boas oportunidades, são questões que devem talista, tal como os conhecemos pelos discursos verrínicos.
ficar em aberto. De qualquer modo, alguns dos grupos indivi D urante sua expansão, o interesse capitalista na terra entra
duais què se lançaram à conquista durante um longo período em conflito com o interesse agrário do campesinato. Sob um a
de tempo m antiveram seus direitos sobre as terras cultiváveis, política de expansão, esse conflito desempenhou seu papel nas
no país, caso regressassem. A terra das áreas estrangeiras foi lutas entre as classes romanas, na longa época que term ina
incorporada politicamente de forma m ais ou menos violenta. com os Gracos. Os grandes possuidores de dinheiro, gado e
Como a terra é importante para a m aneira pela qual o ven homens desejavam naturalm ente que a terra recém-conquistada
cedor explora os seus direitos, também tem um papel impor fôsse tratada como terra pública para arrendam ento (ager pu-
tante para as outras estruturas econômicas. Como F ranz blicu s). Enquanto as regiões não eram demasiado remotas, os
Oppenheimer ressaltou repetidamente, com razão, as rendas pro camponeses exigiram que a terra fosse dividida a fim de atender
venientes da terra são, freqüentemente, produto da sujeição po à sua progénie. Os compromissos entre esses dois interesses
lítica pela violência. Quando existe um a estrutura feudal ba refletem-se claram ente na tradição, embora os detalhes não sejam ,
seada em um a economia natural esta sujeição significa, decerto, certamente, m uito dignos de fé.
que o campesinato da área incorporada não será obliterado, mas A expansão ultram arina de Roma, na m edida em que foi
poupado e transformado em tributário do conquistador, que se economicamente determ inada, evidencia características que, em
196 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA E S T R U T U R A S DO PODER 197

suas linhas básicas, repetiram-se várias vezes e que continuam dores de apólices) esses créditos criam oportunidades de lucro
ocorrendo hoje. T ais características são observadas em Roma para os bancos emitentes de tais títulos, como ocorre caracteris
de modo acentuado e em proporções gigantescas, pela prim eira ticamente em nossos dias. Os interesses daqueles que fornecem
vez na H istória. Por mais fluidas que sejam as transições para os m ateriais de guerra seguem a mesma direção. Em tudo
outros tipos, essas características “rom anas” são peculiares a isso, surgem forças econômicas interessadas no aparecimento de
um tipo específico de relações capitalistas, ou, antes, proporcionam conflagrações m ilitares per se, qualquer que seja o resultado para
as condições para a existência desse tipo específico, a que dese a sua própria comunidade.
jamos cham ar de capitalismo im perialista.
Aristófanes distinguiu entre indústrias interessadas na guerra
Essas características estão arraigadas nos interesses capita e industrias interessadas na paz, embora, como se vê pela sua
listas dos arrendatários de impostos, dos credores do Estado, dos enumeração, o centro de gravidade, em sua época, fosse o exército
fornecedores do Estado, dos comerciantes com o além -m ar privi auto-equipado. O cidadão individual dava ordens a artesãos
legiados pelo Estado e dos capitalistas coloniais. As oportuni como o alfagem e e o armeiro. Mesmo então, os grandes arm a
dades de lucro de todos esses grupos repousam na exploração zéns comerciais privados, freqüentemente chamados de “fábri
direta dos poderes executivos, isto é, do poder político dirigido cas , eram acim a de tudo depósitos de armamentos.
para a expansão. Hoje, a comunidade política como tal é quase que o único
Escravizando os habitantes, ou pelo menos prendendo-os ao agente que encomenda m aterial e engenhos bélicos. Isso estim u
solo (glebae adscriptio) e explorando-os como trabalho agrícola, la a natureza capitalista do processo. Bancos, que financiam
a aquisição das colônias proporcionou oportunidades tremendas emprestimos de guerra, e hoje grandes segmentos da indústria
de lucro aos grupos de interesse capitalistas. Os cartagineses pesada são qu an d m êm e economicamente interessados na guerra;
parecem ter sido os primeiros a criar tal organização em grande os fornecedores diretos de placas de blindagem e canhões não
escala; os espanhóis na A m érica do Sul, os ingleses nos estados são os únicos interessados. U m a guerra perdida, bem como
sulistas da U nião, os holandeses na Indonésia, foram o últimos a um a guerra bem sucedida, aum enta os negócios desses bancos e
fazê-lo em grande estilo. A aquisição de colônias no além -m ar indústrias.
também facilita a monopolização do comércio com essas colô
nias, pela força, e possivelmente outras áreas também. Quando Os integrantes de um Estado interessam-se, política e econo
o aparato adm inistrativo do Estado não é adequado a coleta micamente, pela existência de grandes fábricas de engenhos de
de impostos dos territórios recém-ocupados — m ais tarde vol guerra. Êsse interêsse obriga-os a perm itir que tais fábricas for
taremos ao assunto — os impostos dão oportunidades de lucro neçam a todo o mundo os seus produtos, inclusive aos adver
sários políticos.
aos capitalistas que contratam o seu recolhimento.
Os implementos m ateriais de guerra podem ser parte do A proporção na qual os interesses do im perialism o capita
equipamento proporcionado pelo próprio exército de cavaleiros, lista são contrabalançados dependem, acim a de tudo, da lucrati
como acontece no feudalismo puro. M as se esses implementos vidade do im perialism o, em comparação com os interesses capi
forem fornecidos pela comunidade política, e não pelo exército, talistas da orientação pacifista, na m edida em que motivos ex-
então a expansão através da guerra e a busca de armamentos dusivam ente capitalistas têm, no caso, participação direta. E
para preparar a guerra representam, decididam ente, a ocasião isso, por sua vez, se liga intim am ente às proporções em que as
m ais lucrativa para o levantam ento de empréstimos em grande necessidades econômicas são satisfeitas por uma economia privada
escala. As oportunidades de lucro dos capitalistas credores do ou coletiva. A relação entre as duas é altam ente decisiva para a
Estado aum entam , nesse caso. Mesmo durante a Segunda Guerra natureza das tendências econômicas expansivas, apoiadas pelas
comunidades políticas.
Púnica os credores do Estado im punham suas próprias condi
ções ao Estado romano. Em geral, e em todas as épocas, o capitalism o im perialista,
Quando os credores finais do Estado são um a cam ada maciça especialmente o capitalism o colonial predatório baseado na força
de pessoas que vivem de rendas por ele proporcionadas (porta direta e no trabalho compulsorio, ofereceu as maiores oportuni-
198 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESTRUTURAS DO PODER 199

dades de lucro, muito maiores do que as existentes normalmente O renascimento universal do capitalismo “im perialista”, que
para as empresas industriais que trabalhavam para as exportações tem sempre sido a form a norm al na qual os interesses capitalis
e que se orientavam para o comércio pacífico com membros de tas influíram na política, e o renascimento dos impulsos políticos
outras com unidades políticas. Portanto, o capitalismo im perialista expansionistas não têm, portanto, caráter acidental. Para o futuro
se pôs à mostra, sempre que, em proporções relevantes, a co previsível, os prognósticos serão em seu favor.
m unidade política per se, ou suas subdivisões (com unidades lo Esta situação pouco se modificaria, fundam entalm ente, se
cais), se em penharam num a economia coletiva pública para a por um momento tivéssemos de fazer a experiência m ental dc
satisfação da procura. Quanto m ais forte era essa economia supor que as comunidades políticas individuais fossem, de algum a
coletiva, tanto mais importante o capitalismo im perialista. forma, comunidades “estatal-socialistas”, ou seja, associações que
As crescentes oportunidades de lucro no exterior surgem tendem ao máxim o possível de suas necessidades através de um a
ainda hoje, especialmente em territórios que estão “abertos” economia coletiva. Todas as associações políticas dessa economia
política e economicamente, ou seja, colocados nas formas espe coletiva procurariam comprar, o m ais barato possível, as m erca
cificamente modernas de “em presa’’ pública c privada. Essas dorias indispensáveis não-produzidas em seu próprio território
oportunidades nascem dos “contratos para compra de arm as; da (o algodão na A lem anha) em outras comunidades que têm mono
construção de estradas de ferro e outras obras realizadas pelo pólios naturais que essas comunidades buscariam explorar. É
Estado ou pelos construtores dotados de direitos de monopólios; provável que a força fosse usada nos casos em que pudesse levar
das concessões monopolistas para a coleta de impostos do co fàcilmente a condições de troca favoráveis; a parte m ais fraca
mércio e indústria; e dos empréstimos governamentais. ficaria, com isso, obrigada a pagar tributo, se não formalmente,
Essas oportunidades de lucro podem ser mais importantes pelo menos na realidade. Quanto ao resto, não podemos ver
e conseguidas a expensas de lucros do comércio privado habitual. por que as comunidades m ais fortes organizadas à base de um
Quanto m ais as empresas públicas, coletivas, ganham em im socialismo de Estado deixariam de querer arrancar tributos das
portância econômica como forma geral de atender às necessi comunidades mais fracas, para seus próprios aliados, quando isso
dades, tanto m ais aum enta essa preponderância. Essa tendência lhes fosse possível, como ocorria sempre na história antiga.
encontra paralelo direto na tendência de expansão econômica Economicamente, num a comunidade política sem socialismo
politicam ente apoiada e na competição entre Estados indivi estatal, a “massa” de seus integrantes estará tão pouco interessada
duais cujos integrantes controlam o capital de investimento. V i no pacifismo quanto qualquer classe particular da mesma co
sam a assegurar-se esses monopólios e participações nos “con munidade.
tratos” públicos, relegando-se ao segundo plano a importância Os dem os áticos — e não só eles — viviam economicamente
da simples “porta aberta” para a importação privada de merca da guerra. A guerra lhes trazia os soldos dos m ilitares e, no
dorias. caso de vitória, tributos dos súditos. Esse tributo era na realidade
A forma mais segura de garantir aos membros de um a co distribuído entre os cidadãos com plenos direitos, na forma pou
m unidade política as oportunidades monopolizadas de lucro pro co disfarçada de rem uneração pelo comparecimento às assem
porcionadas pela economia de um território estrangeiro e ocupá- bléias populares, sessões dos tribunais e festividades públicas.
-lo ou pelo menos sujeitar o poder político estrangeiro na forma Todo cidadão podia, então, perceber diretam ente o interesse na
de um “protetorado” ou algum a outra disposição semelhante. política e no poderio im perialista. H oje em dia, os lucros vin
Assim , essa tendência “im perialista” afasta cada vez m ais a dos do exterior para os integrantes de um a com unidade política,
tendência de expansão “pacifista”, que visa simplesmente à “li inclusive os lucros de origem im perialista e os que na realidade
berdade de comércio”. Esta últim a só predominou quando a representam um “tributo”, não resultam num a constelação de
organização econômica privada desviou as oportunidades m áxi interesses tão compreensíveis às massas. Sob a atual ordem
m as possíveis de lucro para o comércio pacifista não-submetido econômica, o tributo às “nações credoras” assume a form a de
ao monopólio, ou pelo menos não-monopolizado pelo poder pagamentos de juros sobre dívidas ou de lucros de capital trans
político. feridos do exterior para as camadas abastadas da “nação credo
200 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA ESTRUTURAS DO PODER 201

ra”. Se esses tributos deixassem de ser pagos a países como forte do que outras potências. A lém disso, ocasionalmente os
Inglaterra, França e Alem anha, isto significaria um declínio pequenos países são adm itidos m ais facilmente à exploração eco
muito palpável na capacidade aquisitiva dos produtos internos. nômica dos países estrangeiros porque não despertam o receio
Isto influiria no mercado de trabalho de m aneira desfavorável. de que a intervenção política possa seguir-se à intrusão eco
nômica.
Apesar disso, os trabalhadores nas nações credoras têm acen
tuada m entalidade pacifista e, no todo, não revelam nenhum in A experiência mostra que os interesses pacifistas da cam ada
teresse pela continuação e coleta compulsória desses tributos de pequeno-burguesa e proletária freqüentemente, e muito facil
comunidades devedoras estrangeiras. Nem revelam os trabalha mente, não se impõem. Isso se deve, em parte, ao fato da acessi
dores qualquer interesse na participação compulsória na explo bilidade m ais fácil de todas as “massas” não-organizadas às
ração de territórios coloniais estrangeiros e na participação cor influências emocionais e, em parte, à noção im precisa (que elas
respondente em concessões públicas. Sendo esse o caso, constitui guardam ) de que através da guerra poderá surgir algum a opor
ele um resultado natural da situação de classe im ediata, de um tunidade inesperada. Os interesses específicos, como a esperança
lado e, de outro, da situação interna social e política de comuni existente nos países superpovoados de adquirir territórios para
dades, num a era capitalista. Os que têm direito aos tributos emigração, são, decerto, também importantes nesse contexto.
pertencem à classe adversária, que domina a comunidade. Toda Outra causa é o fato de que as “massas”, em contraste com
política im perialista bem sucedida de coação externa também outros grupos de interesse, correm um risco subjetivam ente me
fortalece normalmente — ou pelo menos no início — o “pres nor no jogo. No caso de um a guerra perdida, o “m onarca”
tígio” interno e com isso o poder e influência das classes, esta tem a temer pelo seu trono, os detentores do poder e grupos
mentos e partidos, sob cuja liderança o êxito foi alcançado. republicanos com interesses num a “constituição republicana” têm
A lém das fontes determinadas pela constelação social e po a temer um “general” vitorioso. A m aioria da burguesia abas
lítica, há fontes econômicas de simpatia pacifista entre as massas, tada tem a temer a perda econômica provocada pelos “freios”
especialmente entre o proletariado. Todo investimento de capital impostos às “transações econômicas como tal”. Em certas circuns
na produção de m áquinas e m aterial de guerra cria oportuni tâncias, se a desorganização se seguir à derrota, a cam ada domi
dades de emprego e trabalho; toda repartição adm inistrativa nante dos notáveis tem a temer a modificação violenta do poder,
torna-se um fator que contribui diretam ente para a prosperidade em favor das classes pobres. As “massas”, como tal, pelo menos
em um determinado cará e, ainda mais, que contribui indireta em sua concepção subjetiva e no caso extremo, nada de concreto
mente para a prosperidade, aum entando a procura e estimulando têm a perder, exceto a vida. A im portância e o efeito dêsse
a intensidade da empresa comercial. Isto pode vir a ser um a perigo variam m uito em suas mentes. Em geral, podem ser
fonte de maior confiança nas oportunidades econômicas das in facilmente reduzidos a zero pela influência emocional.
dústrias participantes, que as leve a um surto de prosperidade
especulativo.
3. A N ação
A administração, porém, desvia o capital de usos alternati
vos e torna mais difícil satisfazer as procuras em outros campos. O fervor dessa influência emocional não tem, no todo, um a
E, principalm ente, os meios de guerra são levantados através de origem econômica. Baseia-se em sentimentos de prestígio, que
tributos, que a cam ada dominante, em virtude de seu poder freqüentemente se dissem inam profundamente pelas massas pe-
social e político, habitualmente sabe como transferir para as mas queno-burguesas nas organizações políticas que alcançaram uma
sas, à parte dos lim ites fixados ao controle rígido da propriedade história rica em poderio. O apego a todo esse prestígio político
provocado pelas considerações “mercantilistas”. pode fundir-se com um a crença específica na responsabilidade
Países pouco onerados pelas despesas m ilitares (os Estados própria às grandes potências como tais para com a forma pela
U nidos) e especialmente os pequenos países (Suíça, por exem qual o poder e prestígio são distribuídos entre essas com uni
plo) freqüentemente conseguem um a expansão econômica mais dades políticas e as que lhe são estrangeiras. Desnecessário
202 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESTRUTURAS DO PODER 203

dizer que todos esses grupos que têm o poder de determinar por exemplo, e pelo menos até recentemente, com os russos
um a conduta comum dentro de um a estrutura política se im brancos. A pretensão, porém, de ser considerado como uma
pregnarão fortemente desse fervor ideal de prestígio do poder. “nação” especial está regularm ente associada a um a língua co
Permanecem como os portadores específicos e mais fidedignos m um como valor cultural das massas; é o que ocorre predom i
da idéia do “Estado” como um a forma de poder im perialista nantemente no país clássico dos conflitos lingüísticos, a Á ustria,
exigindo um a dedicação sem restrições. e igualm ente na Rússia e Prússia oriental. M as esse elo de língua
A lém dos interesses im perialistas diretos e m ateriais, discuti comum e “nação” é de intensidade variada; por exemplo, é pre
dos acima, há interesses em parte m ateriais e em parte ideológi cário nos Estados Unidos e no Canadá.
cos de cam adas que são, sob vários aspectos, intelectualmente A solidariedade “nacional” entre homens que falam a mes
privilegiadas pela existência de tal forma de comunidade política m a lín gua pode ser rejeitada ou aceita. A solidariedade pode,
e, na realidade, privilegiadas pela sua simples existência. Com ao invés disso, estar ligada a diferenças nos outros grandes “va
preendem especialmente todos aqueles que se consideram como lores culturais das massas”, ou seja, um credo religioso, como
“integrantes” específicos de um a “cultura” específica, distribuída no caso de sérvios e croatas. A solidariedade nacional pode
entre os membros dessa organização política. Sob a influência estar ligada a estrutura social e m ores diferentes e, daí, a elem en
dêsses círculos, o prestígio puro e simples do “poder” é inevita tos “étnicos”, como é o caso dos suíços e alsacianos alemães
velmente transformado em outras formas especiais de prestígio frente aos alemães do Reich, ou dos irlandeses frente aos bri
e, especialmente, na idéia de “nação”. tânicas. Não obstante, acim a de tudo, a solidariedade nacional
Se o conceito de “nação” pode, de algum a forma, ser defini pode estar ligada às memórias de um destino político comum
do sem am bigüidades, certamente não pode ser apresentado em com outras nações — entre os alsacianos, um destino comum
termos de qualidades empíricas comuns aos que contam como com os franceses desde a guerra revolucionária que representa
membros da nação. N um certo sentido, o conceito indubita sua idade heróica comum, tal como os barões bálticos com os
velmente significa, acima de tudo, que podemos arrancar de russos, cujo destino político eles ajudaram a orientar.
certos grupos de homens um sentimento específico de solidarie Desnecessário dizer que a filiação “nacionalista” não se ba
dade frente a outros grupos. Assim, o conceito pertence à seia no sangue comum. N a verdade, em toda parte, os “nacio
esfera dos valores. Não obstante, não há acordo sobre como nalistas” especialmente radicais são, com freqüência, de origem
êsses grupos devem ser delimitados ou sobre que ação concertada estrangeira. A lém disso, embora um tipo antropológico comum,
deve resultar dessa solidariedade. específico, não seja irrelevante para a nacionalidade, não é bas
N a linguagem comum, “nação” não equivale a “povo de um tante nem constitui pré-requisito para fundar um a nação. Não
Estado”, ou seja, aos integrantes de um a determ inada comuni obstante, a idéia de “nação” pode incluir as noções de descen
dade política. Numerosos Estados compreendem grupos entre dência comum e de um a homogeneidade essencial, embora fre
os quais a independência de sua “nação” é afirm ada enfatica qüentemente indefinida. A nação tem essas noções em comum
mente frente aos outros grupos; ou, por outro lado, compreen com o sentimento de solidariedade das com unidades étnicas, que
dem partes de um grupo cujos membros o consideram como também é alim entado de várias fontes. Mas o sentimento de
um a “nação” homogênea. (A Á ustria antes de 1918, por exem solidariedade étnica não faz, por si, um a “nação”. Sem dúvida,
plo.) A lém disso, um a “nação” não é a mesma coisa que um a até mesmo os russos brancos frente aos Grandes Russos experi
comunidade que fala a mesma lín gu a; e isso nem sempre é m entaram sempre um sentimento de solidariedade étnica, mesmo
suficiente, como o demonstram os sérvios e croatas, os norte- 'que, no momento, eles dificilm ente pretendam considerar-se
americanos, os irlandeses e os ingleses. Pelo contrário, um a como um a “nação” separada. Os poloneses da A lta Silésia, até
língua comum não parece ser absolutamente necessária a um a recentemente, quase não tinham sentimentos de solidariedade com
“nação”. Nos documentos oficiais, além do “povo suíço”, também a “nação polonesa”. Sentiam -se como um grupo étnico à parte
encontramos a expressão “nação suíça”. E certos grupos lingüís- frente aos alemães, mas quanto ao resto eram súditos prussianos
tiscos não se consideram como “nação” à parte, como ocorria e nada mais.
204 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ESTRUTURAS DO PODER 205

É um velho problema, saber se os judeus podem ser chama mente à indiferença completa, que pode ser característica dos
dos de “nação”. A massa de judeus russos, os judeus assim ila cidadãos do Luxem burgo e de povos nacionalm ente “enfra
dos da Europa ocidental e da Am érica, os sionistas — esses quecidos”. As cam adas feudais, as camadas de funcionários, as
dariam um a resposta principalm ente negativa. De qualquer camadas burguesas em presariais de várias categorias, as cam adas
modo, suas respostas variam de natureza e extensão. Em par de “intelectuais” não têm atitudes homogêneas, ou historicamente
ticular, a questão seria respondida muito diversamente pelos constantes, para com essa idéia.
povos em cujo seio viveram os judeus; por exemplo, pelos russos, As razões para que um grupo acredite representar um a
de um lado, e pelos americanos, de outro — ou pelo menos nação variam muito, tal como a conduta em pírica que na reali
por aqueles americanos que no momento ainda consideram a dade resulta da filiação ou falta de filiação a um a nação. Os
natureza am ericana e a judaica essencialmente semelhantes, tal “sentimentos nacionais” do alemão, do inglês, do norte-am eri
como o afirm ou um Presidente americano num documento cano, do espanhol, do francês, ou do russo, não funcionam do
oficial. mesmo modo. Assim , tomando apenas a ilustração m ais sim
Os aisacianos de língua alem ã que se recusam a pertencer ples, o sentimento nacional se relaciona de form a variada com
à “nação” alem ã e que cultivam a lem brança de união política as associações políticas, e a “idéia” de nação pode tornar-se an
com a França não se consideram com isso simplesmente como tagônica ao âmbito empírico de certas associações políticas. Esse
membros da “nação” francesa. Os negros dos Estados Unidos, antagonism o pode levar a resultados totalmente diferentes.
pelo menos no presente, consideram-se membros da “nação” Certamente os italianos na associação estatal austríaca só
am ericana, mas dificilmente os brancos do Sul os considerarão combateriam contra os soldados italianos se a isso fossem força
da mesma forma. dos. Grande parte dos austríacos alemães só lutariam hoje
H á apenas 15 anos, os homens que conheciam o Extremo contra a A lem anha com grande relutância; não seria possível
Oriente ainda negavam que os chineses pudessem ser considera confiar neles. Os americanos alemães, porém, mesmo os que
dos como um a “nação”; julgavam -nos apenas um a “raça”. Não têm a sua “nacionalidade” n a m ais alta conta, com bateriam con
obstante, hoje não só os líderes políticos chineses, mas também tra a A lem anha, não com satisfação, é certo, mas, dada a ocasião,
aqueles mesmos observadores, teriam feito um juízo diferente. o fariam incondicionalmente. Os poloneses do Estado alemão
Parece, assim, que um grupo de pessoas, em certas condições, combateriam prontamente contra um exército polonês russo, mas
pode alcançar a qualidade de nação através de um comportamento dificilm ente contra um exército polonês autônomo. Os sérvios
específico, ou pretender essa qualidade como um a “consecução” austríacos combateriam contra a Sérvia com sentimentos mistos
— e dentro de curtos prazos de tempo. e só na esperança de alcançar um a autonom ia comum. Os
H á, por outro lado, grupos sociais que professam indiferença poloneses russos m ereceriam m ais fé num a luta contra um
e mesmo rejeitam diretamente qualquer apego a uma única exército alemão do que contra um exército austríaco.
nação. No momento, certas cam adas principais do movimento É bem conhecido o fato histórico de que dentro da mesma
de classe do proletariado moderno consideram essa indiferença nação a intensidade de solidariedade experim entada para com o
e essa rejeição como um a realização. Seu argum ento tem êxito exterior é oscilável e varia m uito de vigor. No todo, esse sen
variado, dependendo das filiações políticas e lingüísticas e tam timento cresceu mesmo quando os conflitos de interesse internos
bém de camadas diferentes do proletariado. No todo, seu êxito não dim inuíram . H á apenas 60 anos, o K re u z z e it u n g 5 ainda
vem dim inuindo no momento. apelava para a intervenção do im perador da Rússia nos assuntos
U m a escala ininterrupta de atitudes bastante variadas e mo internos alemães; hoje, apesar do m aior antagonism o de classe,
dificáveis para com a idéia de “nação” encontra-se entre as seria difícil im aginar tal coisa.
cam adas sociais, e também dentro de grupos isolados, aos quais De qualquer modo, as diferenças no sentimento nacional
o uso lingüístico atribui a qualidade de “nações”. A escala são tanto significativas como fluidas e, como ocorre em outros
moderna vai da afirmação enfática à negação enfática e final campos, respostas fundam entalm ente diferentes são dadas à per
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gu n ta : Que conclusões um grupo de pessoas se dispõe a tirar zado no campo da política. Bem poderíamos definir o conceito
do “sentimento nacional” observado entre elas? Sem se levar de nação da forma seguinte: um a nação é um a com unidade de
em conta o path os empático e subjetivam ente sincero que se sentimento que se m anifestaria adequadam ente num Estado pró
forme entre elas, que tipo de ação conjunta específica estarão prio; daí, um a nação é um a comunidade que norm alm ente
dispostas a prom over? As proporções em que a diáspora de tende a produzir um Estado próprio.
um a convenção é seguida como um traço “nacional” variam Os componentes causais que levaram ao aparecimento de
exatamente na m edida da importância das convenções comuns um sentimento nacional, nesse sentido, podem variar m uito. Se
para a fé na existência de uma “nação” à parte. Frente a ignorarmos, por um a vez, a convicção religiosa — que ainda
esses conceitos de valor da “idéia da nação”, que em piricam ente não desempenhou seu papel nessa questão, especialmente entre
são totalmente não-ambíguos, um a tipologia sociológica teria de os sérvios e croatas — então os destinos comuns puramente
analisar todos os tipos de sentimentos comunitários de solida políticos terão de ser considerados em prim eiro lugar. Sob certas
riedade, em suas condições genéticas e em suas conseqüências condições, povos que de outro modo são heterogêneos podem
para a ação concertada dos participantes. Não podemos tentar ser fundidos através de seus destinos comuns. A razão pela
isto, aqui. qual os alsacianos não se sentiam como parte da nação alemã
Ao invés disso, teremos de exam inar um pouco melhor o tem de ser procurada entre suas lembranças. Seu destino político
fato de que a idéia de nação, para seus defensores, tem um a re desenrolou-se fora da esfera alem ã durante demasiado tempo;
lação muito íntim a com os interesses de “prestígio”. As mais seus heróis são os heróis da história francesa. Se o zelador do
antigas e mais enérgicas manifestações da idéia, de certa forma, M useu de K olm ar quiser mostrar ao visitante qual, entre os
embora de forma velada, encerraram a lenda de um a “missão” seus tesouros, m ais preza, leva-o para longe do altar de Grüne-
providencial. Aqueles para os quais os representantes da idéia w ald, para um a sala cheia de tricolores, pom pier e outros elmos
se voltaram zelosamente deveriam, ao que se esperava, aceitar e lembranças de natureza aparentemente insignificante; são de
essa missão. Outro elemento da idéia inicial foi a noção de um a época que, para ele, é a idade heróica.
que a missão era facilitada exclusivamente através do cultivo
U m a organização estatal existente, cuja era heróica não é
mesmo da peculiaridade do grupo destacado como nação. Com
vista como tal pelas massas pode, não obstante, ser decisiva para
isso, na m edida em que sua autojustificação é buscada no valor
um vigoroso sentimento de solidariedade, apesar dos maiores
de seu conteúdo, essa missão pode coerentemente ser considerada
antagonismos internos. O Estado é visto como o agente que
como apenas um a missão “cultural” específica. A significância
garante a segurança, e isto ocorre principalm ente em épocas de
de “nação” está habitualmente ligada à superioridade, ou pelo perigo externo quando os sentimentos de solidariedade nacional
menos à insubstituibilidade, dos valores culturais que devem ser
se inflam am , pelo menos interm itentem ente. Assim, vimos como
preservados e desenvolvidos exclusivamente através do cultivo
os elementos do Estado austríaco, que evidentem ente lutaram
da peculiaridade do grupo. Não é necessário dizer, portanto, para separar-se sem preocupação pelas conseqüências, uniram -se
que os intelectuais, como de modo prelim inar os chamamos, durante a cham ada crise de N ib elu n g .7 N ão foram apenas os
estão predestinados, em grau específico, a propagar a “idéia funcionários e oficiais, que se interessavam pelo Estado como
nacional”, tal como os que dispõem de poder na estrutura po
tal, que podiam gozar de confiança, mas também as massas do
lítica instigam a idéia do Estado. exército.
Por “intelectuais” entendemos um grupo de homens que, As condições de outro componente, ou seja, a influência da
em virtude de sua peculiaridade, têm acesso especial a certas
raça, são especialmente complexas. Faríam os melhor ignorando
realizações consideradas como de “valores culturais”, e que por totalm ente os efeitos místicos de um a com unidade de sangue,
tanto usurpam a liderança de uma “comunidade cultural”. a
no sentido em que os fanáticos raciais usam a frase. As dife
renças entre tipos antropológicos são apenas um dos fatores de
N a m edida em que há um objeto comum atrás da expressão clausura, atração social e repulsão. Estão em pé de igualdade
evidentemente am bígua “nação”, cie está evidentemente locali com as diferenças adquiridas através da tradição. H á diferenças
208 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA E S T R U T U R A S DO PODER 209
características nessas questões. Todo ianque aceita o mestiço unificador nacional. M as, para isso, a qualidade objetiva dos
com três partes de sangue branco e um a parte de sangue índio, valores culturais não importa absolutamente, e, portanto, não
ou o oi ta vão, como membro da nação; pode até mesmo alegar devemos pensar na “nação” como um a “com unidade cultural”.
ter sangue índio. M as comporta-se de forma totalmente dife
rente para com o negro, particularm ente quando o negro adota Os jornais, que certamente não reúnem o que há de mais
sublime na cultura literária, cimentam as massas m ais fortemente.
o mesmo modo de vida que ele e, portanto, desenvolve as mes
Em relação às condições sociais reais que determ inam a ascensão
mas aspirações sociais. Como explicar êsse fato?
de um a linguagem literária unificada e para um a literatura no
As aversões estéticas podem ter influência. O “cheiro dos vernáculo, o que é outra coisa, toda a pesquisa está agora apenas
negros”, porém, sobre o qual há muitas fábulas, não existe, se no começo. Para o caso da França, podemos referir-nos aos
gundo m inha experiência. Am as-de-leite negras, cocheiros ne ensaios do m eu estimado am igo Vossler.
gros que se sentam ao lado da senhora branca na boléia e,
Eu gostaria de assinalar apenas um ponto de apoio típico
acim a de tudo, os vários milhões de mestiços são um a prova
desse desenvolvimento, porque raram ente ele é reconhecido como
demasiado clara contra a suposta repulsão natural entre essas
tal, ou seja, as mulheres. Elas contribuíram especificamente
raças. T a l aversão é de natureza sçcial, e ouvi para ela apenas
para a formação do sentimento nacional ligado à língua. Um
um a explicação plausível: os negros foram escravos, os índios
poema lírico erótico dirigido a um a m ulher dificilm ente poderá
não. ser escrito num a lín gua estrangeira, porque então seria ininte
É claro que entre os elementos culturais que representam a ligível à pessoa a quem é dirigido. A lírica cortesã e cavalei-
base positiva m ais importante para a formação do sentimento resca não era singular, nem foi a prim eira literatura a substituir
nacional em toda parte, um idioma comum é o mais destacado. o latim pela lín gu a nacional, como aconteceu na França, Itália,
Mesmo o idiom a comum não é totalmente indispensável nem A lem anha, ou para substituir o chinês, como aconteceu no Japão.
suficiente em si mesmo. Podemos afirm ar que havia um sen Não obstante, a lírica cortesã conseguiu por vezes isso, e de
timento nacional suíço específico apesar da falta de um idioma forma permanente, sublimando a língua nacional em língua
com um ; e, apesar da língua comum, os irlandeses não têm ne literária. Não posso descrever aqui como, depois dessa substi
nhum sentimento nacional em comum com os britânicos. A tuição inicial, a im portância do vernáculo progrediu firmemente,
importância da lín gua é necessariamente maior com a democrati
sob a influência das tarefas adm inistrativas em am pliação do
zação do Estado, da sociedade e cultura. Para as massas, um
Estado e da Igreja, e, daí, como a lín gua da administração e
idiom a comum tem um papel econômico m ais decisivo do que
para as camadas abastadas feudais ou burguesas. Estas últim as, do sermão. Posso, porém, acrescentar mais um a palavra sobre
pelo menos nas áreas lingüísticas de cultura idêntica, habitual a determinação econômica dos modernos conflitos lingüísticos.
mente falam a lín gua estrangeira, ao passo que a pequeno-bur- Hoje, interesses pecuniários e capitalistas bem consideráveis
guesia e os proletários num a área de lín gua estrangeira depen estão ligados à manutenção e cultivo da lín gua popular: os inte
dem muito m ais d a coesão com os que falam a mesma língua. resses dos editores, autores e colaboradores de livros e periódicos
A cim a de tudo, a língua, e isto significa a literatura nela baseada, e, acim a de tudo, os jornais. Quando surgiram jornais poloneses
é o prim eiro, e no momento o único, valor cultural acessível às e lituanos, a luta lingüística conduzida pelos Governos ou ca
massas que ascendem no sentido de um a participação na cultura. madas dominantes de outra comunidade lingüística tornaram-se
O gozo da arte exige um grau de educação muito maior, e a inúteis, pois as razões de Estado são impotentes contras essas
arte tem um a natureza muito m ais aristocrática do que a litera forças. E, quanto aos interesses nos lucros do capitalista, outro
tura. Isso é precisamente o que ocorre nas maiores realizações interesse m aterial de grande peso tem de ser acrescentado: os
da literatura. Por essa razão, a noção existente na Á ustria, candidatos bilíngües, ao competirem pelos cargos, jogam na ba
de que a democratização deve abrandar os conflitos lingüísticos, lança esse conhecimento. Isso ocorreu entre os tchecos na Á us
foi tão utópica. Os fatos desmentiram completamente tais no tria e com seu excedente de proletariado intelectual criado en
ções. Os valores culturais comuns podem constituir um elo m asse. A tendência, como tal, é velha.
210 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

A reação conciliar, e ao mesmo tempo nacionalista, contra


o universalism o do papado no desaparecimento da Idade M edia
teve sua origem , em grande parte, nos interesses dos intelectuais
que desejavam ver as prebendas de seu país reservadas para
eles e não ocupadas por estrangeiros v ia Roma. A final de
contas, o nome n atio como conceito legal para um a comunidade VII. Classe, Estamento, Partido
organizada encontra-se primeiro nas universidades e nos concí
lios de reform a da Igreja. N aquela época, porém, a ligação
com a lín gu a nacional per se não existia; esse elo, pelos motivos
expostos, é especificamente moderno. 1. O Poder D e t e r min a d o Ec o n o mic a me n t e e a Or d em So c ia l

Se acreditarmos que é cômodo distinguir o sentimento na


cional como algo homogêneo e especificamente à parte, só o po
deremos fazer em relação a um a tendência para o Estado autono- A l e i e x i s t e quando há um a probabilidade de que a ordem
mo. E devemos ter plena consciência do fato de que sentimentos seja m antida por um quadro específico de homens que usarão
de solidariedade, m uito heterogêneos tanto na sua natureza como a força física ou psíquica com a intenção de obter conformidade
na origem , estão compreendidos pelos sentimentos nacionais. com a ordem, ou de impor sanções pela sua violação. A estru
tura de toda ordem jurídica influi diretamente na distribuição
do poder, econômico ou qualquer outro, dentro de sua respectiva
comunidade. Isso é válido para todas as ordens jurídicas e não
apenas para a do Estado. Em geral, entendemos por “poder”
a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens,
realize sua vontade própria num a ação com unitária até mesmo
contra a resistência de outros que participam da ação.
O poder “condicionado economicamente” não é, decerto, idên
tico ao “poder” como tal. Pelo contrário, o aparecimento do
poder econômico pode ser a conseqüência do poder existente por
outros motivos. O homem não luta pelo poder apenas para
enriquecer economicamente. O poder, inclusive o poder econô
mico, pode ser desejado “por si mesmo”. M uito freqüentemente,
a luta pelo poder também é condicionada pelas “honras” sociais
que ele acarreta. N em todo poder, porém, traz honras sociais:
o chefe político americano típico, bem como o grande especula
dor típico, abrem mão deliberadamente dessa honraria. Geral
mente, o poder “meram ente econômico”, em especial o poder
financeiro puro e simples, não é de forma algum a reconhecido
como base de honras sociais. Nem é o poder a única base de

W irtschaft und G esellschaft, p a r t e III, c a p . 4, p p . 631-40. A


p r im e ir a s e n te n ç a do p a r á g r a f o u m e a s v á r ia s d e f in iç õ e s q u e , n e s te
c a p ítu lo , e s tã o e n t r e c o lc h e te s , n áo c o n sta m do t e x t o o r ig in a l.
F o r a m e x t r a íd a s d e o i j o s c o n te x to s d e W irtschaft u n d G esellschaft.
212 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA c l a sse , e st a m e n t o , pa r t id o 213

tal honra. N a verdade, ela, ou o prestígio, podem ser mesmo troca, cria, em si, oportunidades específicas de vida, o que cons
a base do poder político ou econômico, e isso ocorreu muito titui um fato econômico bastante elementar. Segundo a lei da
freqüentemente. O poder, bem como as honras, podem ser asse utilidade m arginal, êsse modo de distribuição exclui os não-pro-
gurados pela ordem jurídica, mas, pelo menos normalmente, não prietários da competição pelos bens muito desejados; favorece
é a sua fonte prim ordial. A ordem jurídica constitui antes um os proprietários e, na verdade, lhes dá o monopólio para a aquisi
fator adicional que aum enta a possibilidade de poder ou honras; ção dêsses bens. Em igualdade de fatores, êsse modo de dis
mas nem sempre pode assegurá-los. tribuição monopoliza as oportunidades de transações lucrativas
A forma pela qual as honras sociais são distribuídas numa para todos os que, dispondo de bens, não têm necessariamente
comunidade, entre grupos típicos que participam nessa distribui de trocá-los. A um enta, pelo menos em geral, seu poderio nas
ção, pode ser cham ada de “ordem social”. E la e a ordem eco guerras de preço com os que, não tendo propriedades, só têm
nômica estão, decerto, relacionadas da mesma forma com a “ordem a oferecer seus serviços, em forma bruta, ou bens num a forma
ju ríd ica”. N ão são, porém , idênticas. A ordem social é, para constituída através de seu próprio trabalho e que, acim a de tudo,
nós, simplesmente a forma pela qual os bens e serviços econô são compelidos a se desfazer dêsses produtos para que possam,
micos são distribuídos e usados. A ordem social é, decerto, simplesmente, subsistir. Essa forma de distribuição dá aos pro
condicionada em alto grau pela ordem econômica, e por sua vez prietários um monopólio da possibilidade de transferir bens da
influi nela. esfera de uso como “fortuna” para a esfera de “bens de capital” ;
isto é, dá-lhes a função em presarial e tôdas as oportunidades de
Dessa forma, “classes”, “estamentos” e “partidos” são fenô
participar direta ou indiretam ente dos lucros sôbre o capital.
menos da distribuição de poder dentro de um a comunidade.
Tudo isso é válido dentro da área na qual predominam as con
dições de mercado pura e simplesmente. “Propriedade” e “falta
2. D e t e r m in a ç ã o da S it u a ç ã o de C l a sse pe l a
de propriedade” são, portanto, as categorias básicas de . tôdas
S it u a ç ã o de M ercado
as situações de classe. N ão im porta se essas duas categorias se
tornam efetivas em guerras de preço ou em lutas competitivas.
Em nossa terminologia, “classes” não são com unidades; re Dentro dessas categorias, porém, as situações de classe dis
presentam simplesmente bases possíveis, e freqüentes, de ação tinguem -se m elhor: de um lado, segundo o tipo de propriedade
comunal. Podemos falar de um a “classe” quando: 1) certo utilizável para lucro; de outro lado, segundo o tipo de serviços
núm ero de pessoas tem em comum um componente causal espe que podem ser oferecidos no mercado. A propriedade dos edifí
cífico em suas oportunidades de vida, e na m edida em que 2) cios de residência; dos estabelecimentos produtores; arm azéns;
êsse componente é representado exclusivam ente pelos interesses lojas; terra cultivável; grandes e pequenas propriedades — dife
econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) renças quantitativas com possíveis conseqüências qualitativas —;
é representado sob as condições de mercado de produtos ou propriedade de m inas; gado; homens (escravos); disposição sôbre
mercado de trabalho. [Êsses pontos referem-se à “situação de instrumentos móveis da produção, ou bens de capital de todos
classe”, que podemos expressar m ais sucintamente como a opor os tipos, especialmente dinheiro ou objetos que possam ser tro
tunidade típica de um a oferta de bens, de condições de vida cados por dinheiro, facilm ente e a qualquer momento; controle
exteriores e experiências pessoais de vida, e na m edida em que do produto do próprio trabalho e do trabalho de outros, diferin
essa oportunidade é determ inada pelo volume e tipo de poder, do segundo as variações na possibilidade de consumo; controle
ou falta dêles, de dispor de bens ou habilidades em benefício dos monopólios transferíveis de qualquer tipo — tôdas essas dis
de renda de um a determ inada ordem econômica. A palavra tinções caracterizam as situações de classe assim como o “sentido”
“classe” refere-se a qualquer grupo de pessoas que se encon
que elas podem dar, e dão, à utilização da propriedade, especial
trem na mesma situação de classe.] mente a propriedade que tem equivalentes monetários. Assim,
A forma pela qual a propriedade m aterial é distribuída entre os proprietários, por exemplo, podem pertencer à classe dos arren
várias pessoas, que competem no mercado com a finalidade de dadores ou à classe dos empresários.
214 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C L A S S E , E S T A M E N T O , PAR T ID O 215
Os que não têm propriedade mas oferecem serviços são dis muito, dependendo de se ter ou não desenvolvido da situação de
tinguidos tanto pelos tipos de serviços que prestam como pela classe um a ação com unitária por parte dum a porção maior ou me
forma pela qual fazem uso desses serviços, num a relação contínua nor daqueles que estão igualm ente afetados pela “situação de clas
ou descontínua com um recipiendário. Mas essa é sempre a se”, ou mesmo um a associação entre eles, por exemplo, um “sin
conotação genérica do conceito de classe: que o tipo de oportu dicato”, da qual o indivíduo possa ou não esperar resultados
nidade no m ercado é o momento decisivo que apresenta condi promissores. [A ação com unitária refere-se à ação que é orienta
ção comum para a sorte individual. “Situação de classe”, nesse da pelo sentimento dos agentes de pertencerem a um todo. A
sentido, é, em últim a análise, “situação de mercado”. O efeito ação societária, por sua vez, é orientada no sentido de um ajus
da simples posse, por si, que entre os criadores de gado coloca tamento de interesses racionalmente motivado.] O aparecimento
o escravo ou o servo sem propriedades nas mãos do dono de de um a ação societária ou mesmo com unitária, partindo de uma
gado, é apenas um precursor da verdadeira formação de “classe”. situação comum de classe, não é de modo algum um fenômeno
Entretanto, no empréstimo de gado e na crua severidade da lei universal.
de dívidas nessas comunidades, pela prim eira vez a simples “pos
se” como tal surge, decisiva, para o destino do indivíduo. Isso A situação de classe pode ser lim itada, em seus efeitos, à
contrasta bastante com as comunidades agrícolas baseadas no tra criação de reações essencialmente h om ogên eas, ou seja, dentro
balho. A relação credor-devedor só se torna a base das “situações de nossa terminologia, de “ações de massa”. Não obstante,
de classe” nas cidades onde a plutocracia criou um “mercado de pode não ter nem mesmo esse resultado. A lém disso, com fre
crédito”, por mais primitivo que seja, com taxas de juro au qüência surge apenas um a ação com unitária amorfa. Por exem
mentando segundo as proporções da escassez e um a monopoli plo, o “resm ungar” dos trabalhadores, conhecido na ética orien
zação concreta dos créditos. Com isso, iniciam -se as “lutas de tal an tiga: a desaprovação m oral da conduta do feitor, que em
sua significação prática equivalia provavelmente a um fenômeno,
classe”.
cada vez mais típico do mais recente desenvolvimento industrial,
A queles cujo destino não é determ inado pela oportunidade a “operação tartaruga”, ou seja, a lim itação deliberada do es
de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto forço de trabalho pelos operários em virtude de um acordo
é, os escravos, não são, porém, um a “classe”, no sentido técnico tácito. O grau no q u al a “ação com unitária” e possivelmente a
da expressão. São, antes, um “estamento”. “ação societária” surgem das “ações de massa” dos membros de
um a classe depende de condições culturais gerais, especialmente
as do tipo intelectual. T am bém depende das proporções dos
3. A çã o C o m u n it á r ia D e co r r e n t e do In t e r e sse de C l a sse contrastes que já tenham surgido, estando especialmente ligada
à tran sparên cia das ligações entre as causas e as conseqüências
Segundo a nossa terminologia, o fator que cria “classe” é da “situação de classe”. Por m ais diferentes que as oportuni
um interesse econômico claro, e na verdade, apenas os interesses dades de vida possam ser, esse fato, em si mesmo, segundo tôda
ligados à existência do “mercado”. Não obstante, o conceito de experiência, de forma algum a dá origem à “ação de classe” (ação
“interesse de classe” é am bíguo: mesmo como conceito empírico com unitária pelos membros de um a classe). O fato de ser con
é am bíguo na m edida em que se entenda por ele algo além dicionado e os resultados d a situação de classe precisam ser
da direção fatual de interesses que se segue com certa probabili claram ente reconhecidos, pois somente então o contraste das opor
dade, da situação de classe para certa “m édia” das pessoas sujei tunidades de vida poderá ser considerado não como um dado
tas à situação de classe. Não havendo variações na situação de absoluto a ser aceito, mas como resultante: 1) da distribuição
classe e outras circunstâncias, a direção na qual o trabalhador de propriedade existente, ou 2) da estrutura da ordem econômica
individual, por exemplo, deverá buscar seus interesses pode va concreta. Só então é que as pessoas podem reagir contra a
riar m uito, dependendo do fato de estar qualificado constitucio estrutura de classes, não apenas através de atos de protesto inter
nalm ente, em grau alto, médio ou baixo, para a tarefa que se mitentes e irracionais, mas sob a forma de um a associação ra
apresenta. D a mesma forma, a direção dos interesses pode variar cional. Houve “situações de classe” pertencentes à prim eira
216 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
C LA SSE , E ST A M E N TO , PARTID O 217
categoria 1), excepcionalmente nítidas e evidentes nos centros da empresa capitalista é precondicionada por um tipo específico
urbanos da A ntigüidade e durante a Idade M édia; especialmente de “ordem jurídica”. C ada tipo de situação de classe, e acim a
nesse últim o caso, quando foram acum uladas grandes fortunas de tudo quando se baseia no poder da propriedade per se,
pelo monopólio de fato do comércio de produtos industriais desses torna-se mais evidentem ente eficaz quando todos os outros de
centros ou do comércio de comestíveis. A lém disso, em certas terminantes das relações recíprocas são, na m edida do possível,
circunstâncias temos o exemplo de economias rurais dos mais elim inados em sua significação. É desse modo que a utilização
diversos períodos, quando a agricultura era explorada de forma do poder da propriedade no mercado consegue sua m aior im
crescente com objetivos de lucro. O exemplo histórico mais portância soberana.
im portante da segunda categoria 2) é a situação de classe do
“proletariado” moderno. Ora, os chamados “estamentos” dificultam a realização ri
gorosa do princípio de mercado, puro e simples. No presente
contexto, são de interesse para nós apenas deste ponto de vista.
4. T ipo s de “L u t a de C l a sse ” Antes de os exam inarm os sucintamente, observemos que não
se pode dizer m uita coisa de natureza geral sobre os tipos mais
Assim, toda classe pode ser portadora de um a das possíveis específicos de antagonismo entre “classes” (em nosso sentido
e numerosas formas de “ação de classe”, embora isso não acon da expressão). A grande transformação, que ocorreu continua
teça necessariamente. De qualquer modo, um a classe não cons mente no passado e veio até a nossa época, pode ser resumida,
titui, em si, um a comunidade. T ratar a “classe” conceptual- embora a expensas de um a certa precisão: a lu ta na q u al as
mente como tendo o mesmo valor de “comunidade” leva à situações de classe são efetivas se deslocou progressivam ente,
deformação. O fato de homens na mesma situação de classe primeiro, da fase do crédito de consumo para as lutas compe
reagirem regularm ente através de ações de massa a situações titivas no mercado de produtos e, em seguida, para as guerras
tão tangíveis quanto as econômicas, e reagirem no sentido dos de preço no mercado de trabalho. As “lutas de classe” da
interesses mais adequados à m édia deles, é importante, e na A ntigüidade — na m edida em que foram autênticas e não ape
verdade simples, para a compreensão dos acontecimentos his nas lutas entre estamentos — foram realizadas inicialm ente pelos
tóricos. A cim a de tudo, esse fato não deve levar àquele tipo camponeses endividados e talvez, também, pelos artesãos am ea
de uso pseudocientífico dos conceitos de “classe” e “interesse çados pela servidão em conseqüência de dívidas e que lutavam
de classe” observado com tanta freqüência, hoje em dia, e que contra os credores urbanos, pois a sujeição por dívidas é o re
encontra sua expressão mais clássica na afirmação de um autor sultado norm al da diferenciação de riqueza nas cidades comer
talentoso, de que o indivíduo pode errar em relação aos seus ciais, especialmente nas cidades portuárias. Situação sem elhante
interesses, mas que a “classe” é “infalível” em relação a esses existiu entre os criadores de gado. A s relações de débito, como
interesses. Não obstante, se as classes como tal não são comu tal, provocaram ação de classe até a época de C atilin a. Jun
nidades, ainda assim as situações de classe só aparecem à base tamente com isto e com um aumento no abastecimento de ce
da com unalização. A ação com unitária que cria situações de reais para a cidade, transportando-os de fora, surgiu a lu ta pelos
classe, porém, não é basicamente ação entre membros de classe meios de manutenção. Centralizou-se, em primeiro lugar, em
idêntica; é um a ação entre membros de classes diferentes. Os torno do abastecimento de pão e na determ inação de seu preço.
atos comunitários que determ inam diretam ente a situação de Durou toda a A ntigüidade e toda a Idade M édia. Os não-pro-
classe do trabalhador e do empresário são: o mercado de tra prietários, como tal, agruparam -se contra os que, real e supos
balho, o mercado de produtos e a empresa capitalista. Mas, tamente, tinham interesse pela escassez do pão. Essa lu ta d i
por sua vez, a existência de um a empresa capitalista pressupõe
fundiu-se até envolver todos os produtos essenciais ao modo
a existência de um a ação com unitária m uito específica e que é de vida e à produção artesanal. H ouve apenas discussões inci
especificamente estruturada para proteger a posse de bens per
pientes de disputas salariais na A ntigüidade e na Idade M édia,
se, e especialmente o poder que os indivíduos têm de dispor,
que foram, porém, crescendo lentam ente até os tempos moder
em princípio livremente, dos meios de produção. A existência
nos. Nos períodos anteriores, elas foram completamente se
218 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C LA SSE , E ST A M E N TO , PARTID O 219

cundárias às rebeliões de escravos, bem como às lutas no mer distinções de classe estão ligadas, das formas mais variadas, com
cado de produtos. as distinções de status. A propriedade como tal nem sempre é
Os não-proprietários da A ntigüidade e da Idade M édia pro reconhecida como qualificação estamental, mas a longo prazo
testaram contra os monopólios, as compras antecipadas, açam- ela assim é, e com extraordinária regularidade. N a economia
barcamento, e a retenção de bens do mercado com a finalidade de subsistência da com unidade organizada, com freqüência o
de aum entar os preços. Hoje em dia, a questão central é a homem m ais rico é simplesmente o chefete. Isso pode, porém,
significar com freqüência apenas um a preferência honorífica. Por
determinação do preço do trabalho.
exemplo, na cham ada “democracia” moderna pura, isto é, a de
Essa transição é retratada pela luta por acesso ao mercado mocracia destituída de quaisquer privilégios estamentais expres
e para determ inar o preço dos produtos. T ais lutas foram trava samente ordenados para os indivíduos, pode acontecer que so
das entre comerciantes e trabalhadores, no sistema de artesa mente as fam ílias pertencentes aproxim adamente à mesma cate
nato doméstico, durante a transição para os tempos modernos. goria tributária dancem um as com as outras. Esse exemplo
Como é um fenômeno bastante geral, devemos mencionar aqui é citado em relação a certas cidades suíças menores. M as a hon
que os antagonismos de classes condicionados pela situação de raria estamental não precisa, necessariamente, estar ligada a um a
mercado são habitualm ente mais acerbos entre os que partici “situação de classe”. Pelo contrário, norm alm ente ela se opõe
pam, real c diretamente, como adversários nas guerras de preços. de forma acentuada às pretensões de simples propriedade.
Não é o homem que vive de rendas, o acionista e o banqueiro
que sofrem com a má vontade do trabalhador, mas quase Tanto os proprietários como os não-proprietários pertencem
exclusivamente o industrial e os diretores de empresas que são ao mesmo estamento e freqüentemente o fazem com resultados
adversários diretos dos trabalhadores nas guerras de preços. Isso bem tangíveis. Essa “igualdade” da estima social pode, porém,
ocorre a despeito do fato de ser precisamente para as arcas do a longo prazo, tornar-se precária. A “igualdade” social entre
homem que vive de rendas, do acionista e do banqueiro que os “cavalheiros” americanos, por exemplo, se expressa pelo fato
fluem os lucros m ais ou menos “gratuitos”, e não para os bolsos de que fora da subordinação determ inada pelas diferentes fun
dos fabricantes ou dos administradores. Essa situação simples ções nos “negócios", seria considerado rigorosamente repugnante
tem sido, com m uita freqüência, decisiva para o papel que a — onde quer que a velha tradição ainda predomine — se até
situação de classe desempenhou n a formação dos partidos polí mesmo o mais rico “chefe”, ao jogar bilhar ou cartas em seu
ticos. Possibilitou, por exemplo, as variedades de socialismo clube à noite, não tratasse o seu “funcionário” como, sob tcdos
patriarcal e as tentativas freqüentes — pelo menos antigam ente os aspectos, seu igu al por nascimento. Seria repugnante que o
— dos estamentos ameaçados de formarem alianças com o pro “chefe” americano concedesse ao seu “funcionário” um a “bene
letariado contra a “burguesia”. volência” condescendente, estabelecendo um a distinção de “posi
ção”, que o chefe alemão jam ais pode dissociar de sua atitude.
É essa um a das razões mais importantes pelas quais na A m é
5. A H o n r a E st a me n t a l rica o “espírito de clube” alemão jam ais pode alcançar a atra
ção exercida pelos clubes americanos.
Em contraste com as classes, os gru pos de "statu s!’ são nor
m alm ente comunidades. Com freqüência, porém, são do tipo
amorfo. Em contraste com a “situação de classe” determ inada 6. G a r a n t ia s da O r g a n iz a ç ã o E st a me n t a l
apenas por motivos econômicos, desejamos designar como “si
tuação de status” todo componente típico do destino dos homens, No conteúdo, a honra estam ental é expressa norm alm ente
determinado por um a estim ativa específica, positiva ou negativa, pelo fato de que acim a de tudo um estilo de v ida específico
da h on raria. Essa honraria pode estar relacionada com q ual pode ser esperado de todos os que desejam pertencer ao círculo.
quer qualidade partilhada por um a pluralidade de indivíduos e, Ligadas a essa expectativa existem restrições ao relacionamento
decerto, pode estar relacionada com um a situação de classe: as “social” (isto é, ao relacionamento que não se prenda a objetivos
220 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C LA SSE , E ST A M E N TO , PARTID O 221

econômicos ou quaisquer outros objetivos “funcionais” da em


presa). Essas restrições podem lim itar os casamentos normais 7. Seg reg ação “Ét n ic a ” e “C a st a ”
ao círculo de status e podem levar a um completo fechamento
endogâmico. T ão logo deixa de haver um a mera imitação indi Onde as suas conseqüências se realizaram em toda a exten
vidual, socialmente, irrelevante, de outro estilo de vida, para haver são, o estamento evolui para um a “casta” fechada. A s distin
um a ação comunal consentida com esse caráter de fechamento, o ções estamentais são, então, asseguradas não simplesmente pelas
desenvolvimento do status estará em processo. convenções e leis, mas também pelos rituais. Isso ocorre de tal
modo que todo contato físico com um membro de qualquer casta
Em sua forma característica, a organização estamental tendo que seja considerada “inferior” pelos membros de um a casta
por base estilos de vida convencionais está surgindo no momento “superior” é considerado como um a im pureza ritualística e um
nos Estados Unidos, a partir da democracia tradicional. Por estigm a que deve ser expiado por um ato religioso. As castas
exemplo, somente o morador de um a determ inada rua ( “a rua”) individuais criam cultos e deuses bem distintos.
é considerado como pertencente à sociedade, está qualificado
para o relacionamento social e é visitado e convidado. Acim a Em geral, porém, os estamentos só chegam a tais conseqüên
de tudo, essa diferenciação se desenvolve de tal forma que produz cias extremas quando há diferenças subjacentes consideradas
estrita submissão à moda dominante em determinado momento como “étnicas”. A “casta” é, realmente, a forma natural pela
na sociedade. Essa submissão à moda existe também para os qual costumam “socializar-se” as comunidades étnicas que crêem
homens na Am érica, em grau desconhecido na A lem anha. T al no parentesco de sangue com os membros de com unidades ex
submissão é considerada como um indício do fato de que um teriores e o relacionamento social. Essa situação de casta é
determ inado homem preten de qualificar-se como um cavalheiro, parte do fenômeno de povos párias e se encontra em todo o
e faz que, pelo menos prim a facie, seja tratado como tal. E mundo. Esses povos formam comunidades, adquirem tradições
esse reconhecimento torna-se tão importante para suas oportuni ocupacionais específicas de artesanatos, ou de outras artes, e cul
dades de emprego em estabelecimentos “finos”, e, acima de tudo, tivam um a crença em sua comunidade étnica. V ivem num a
para o relacionamento social e casamento com fam ílias “bem “diáspora” rigorosamente segregada de todo relacionamento pes
consideradas”, quanto a habilitação para o duelo entre os alemães, soal, exceto o de tipo inevitável, e sua situação é legalm ente
na época do Kaiser. Quanto ao resto: certas fam ílias residentes precária. Não obstante, em virtude de sua indispensabilidade
há longo tempo e, decerto, correspondentemente ricas, por exem econômica, são tolerados, realm ente, e freqüentem ente privilegia
plo as prim eiras fam ílias da V irgín ia ou os descendentes, reais dos, e vivem em comunidades políticas dispersas. Os judeus
ou im aginários, da “princesa índia” Pocahontas, ou dos fundado constituem o exemplo histórico m ais impressionante.
res da Nova Inglaterra ou dos fundadores holandeses de Nova U m a segregação de estamentos que se transform a num a
York, os membros de seitas quase inacessíveis e de toda espécie “casta” difere, em sua estrutura, de um a segregação simplesmente
de círculos que se distinguem através de quaisquer outras carac “étnica” : a estrutura de casta transforma as coexistências hori
terísticas e in síg n ia s... todos esses elementos usurpam a honraria zontais e desconexas de grupos etnicamente segregados num
estam ental. O desenvolvimento do estamento é essencialmente sistema social de super e subordinação. Form ulando correta
um a questão de estratificação que se baseia na usurpação, que m ente: um a socialização de tipo amplo integra as com unidades
é a origem norm al de quase toda honra estamental. Mas o ca etnicamente divididas em ação com unitária específica, política.
minho dessa situação puramente convencional para o privilégio Em suas conseqüências diferem precisamente porque: as coexis-
local, positivo ou negativo, é percorrido facilmente tão logo tencias étnicas condicionam um a repulsão e um desprezo mútuos,
um a certa estratificação da ordem social tenha, na verdade, sido m as perm item a toda com unidade étnica considerar a sua própria
“vivida” e tenha conseguido a estabilidade em virtude de uma honra como a m ais elevada; a separação de casta provoca um a
distribuição estável do poder econômico. subordinação e um reconhecimento de “m ais honra” em favor
dos estamentos e castas privilegiados, pois as diferenças étnicas
correspondem à junção desempenhada dentro da associação po
222 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA C L A SSE , E ST A M E N TO , PARTID O 223

lítica (guerreiros, sacerdotes, artesãos que são politicamente im a guerra, física e psiquicam ente). M as a seleção está longe de
portantes para a guerra e a construção, e assim por diante). ser a única forma, ou a predominante, pela qual os estamentos
Porém mesmo os povos párias que são mais desprezados podem, são formados. A participação política ou situação de classe foi,
habitualmente, continuar cultivando, de algum modo, aquilo que em tôdas as épocas, pelo menos freqüentemente decisiva. E
é igualm ente peculiar a comunidades étnicas e de castas: a crença hoje a situação de classe é, de longe, o fator predom inante, pois
em sua própria honra específica. É o caso dos judeus. decerto a possibilidade de um estilo de vida esperado para os
membros de um estamento é, em geral, economicamente condi
Apenas com os estamentos negativam ente privilegiados o cionada.
“sentimento de dignidade” sofre um desvio específico. Um
sentimento de dignidade é a precipitação nos indivíduos da honra 8. P r iv il é g io s Est a m e n t a is
social e das exigências convencionais que um estamento positi
vamente privilegiado cria para a conduta de seus membros. O P ara todas as finalidades práticas, a estratificação estam ental
sentimento de dignidade que caracteriza os estamentos positiva vai de mãos dadas com um a monopolização de bens ou oportu
mente privilegiados relaciona-se, naturalm ente, com seu “ser” que nidades ideais e m ateriais, de um modo que chegamos a consi
não transcende a si mesmo, isto é, relaciona-se com sua “beleza derar como típico. A lém da honra estam ental específica, que
e excelência”. Seu reino é “deste m undo”. V ivem para o sempre se baseia na distância e exclusividade, encontramos toda
presente e explorando seu grande passado. O senso de dignidade sorte de monopólios m ateriais. Essas preferências honoríficas
das cam adas negativam ente privilegiadas naturalm ente se refere podem consistir no privilégio de usar roupas especiais, comer
a um futuro que está além do presente, seja desta vida ou de pratos especiais que são tabu para outros, portar arm as —
outra. Em outras palavras, deve ser nutrido pela crença numa o que é bastante óbvio em suas conseqüências — o direito de
“missão” providencial e por um a crença num a honra específica dedicar-se a certas práticas artísticas por diletantism o, não-pro-
perante Deus. A dignidade do “povo escolhido” é alim entada fissionalmente, como por exemplo tocar determ inados instrum en
por um a crença, seja de que no além os “últim os serão os pri tos musicais. É claro que os monopólios m ateriais proporcionam
meiros”, seja de que nesta vida aparecerá um Messias para trazer os motivos mais eficientes para a exclusividade de um estamento;
à luz do mundo que os enxotou a honra oculta do povo pária. embora em si mesmos eles raram ente sejam suficientes, quase
Esse simples estado de coisas, e não o “ressentimento”, que é sempre exercem algum a influência. Para o con n ubium entre
tão fortemente ressaltado na adm irada construção de Nietzsche membros de um mesmo estamento m anter o monopólio da mão
na Gen ealogia da M oral, é a fonte da religiosidade cultivada das filhas dentro de um círculo restrito tem tanta im portância
pelos estamentos párias. De passagem, podemos notar que o res como o interesse que as fam ílias têm em m onopolizar os possíveis
sentimento só pode ser aplicado corretamente em proporção li pretendentes que possam prover o futuro das filhas. Com o
m itada; para um dos principais exemplos de Nietzsche, o budis crescente fechamento do estamento as oportunidades preferen
mo, não é absolutamente aplicável. ciais convencionais de emprego especial transformam-se num
Incidentalmente, o desenvolvimento dos estamentos a partir monopólio legal de cargos especiais para grupos lim itados. C er
de segregações étnicas não constitui, de modo algum , o fenô tos bens se tornam objeto de monopolização pelos estamentos.
meno norm al. Pelo contrário, como as “diferenças raciais” não De modo típico, eles incluem os “bens vinculados” e, freqüen
são, de forma algum a, básicas a todo sentimento subjetivo de temente, também as posses de servos ou de criados e, finalm ente,
um a com unidade étnica, o fundamento racial supremo do esta ofícios especiais. Essa monopolização ocorre positivamente quan
mento é, acertada e absolutamente, um a questão de caso indivi do só o grupo em questão está habilitado a possuí-los e a
dual concreto. M uito freqüentemente, um estamento é instru controlá-los; e negativam ente quando, a fim de m anter seu
m ental na produção de um tipo antropológico puro. Certamente, modo de vida específico, o estamento n ão deve possuí-los e
um estamento é, em alto grau, eficaz na produção de tipos ex controlá-los.
tremos, pois seleciona indivíduos pessoalmente qualificados (por O papel decisivo de um “estilo de vida” na “honra” do
exemplo, a C avalaria M edieval seleciona os que são aptos para grupo significa que os estamentos são os portadores específicos
E N SA IO S DE SO CIO LO G IA c l a sse , e st a me n t o , pa r t id o 225
224

de todas as “convenções”. De qualquer modo que se manifeste, honras estamentais, a posse per se representa um acréscimo,
toda “estilização” da vida se origina nos estamentos ou é pelo mesmo não sendo abertam ente reconhecida como tal. Não
menos conservada por eles. Apesar de sua grande diversidade, obstante, se essa aquisição e poder econômico proporcionassem
os princípios das convenções estam entais revelam certos traços ao agente qualquer honraria, sua riqueza resultaria em alcançar
típicos, especialmente entre as camadas mais privilegiadas. M ui m ais honras do que as pessoas que reivindicam , com êxito,
to geralm ente, entre os estamentos privilegiados há uma desqua as honras em virtude de um estilo de vida. Portanto, todos
lificação de estamentos envolvida pela execução do trabalho físico os grupos que têm interesses na ordem estamental reagem com
comum. Essa desqualificação se está agora “radicando” na A m é especial violência precisamente contra as pretensões de aquisi
rica, contra a velha tradição da estim a pelo trabalho. M uito ção exclusivam ente econômica. N a m aioria dos casos, o vigor
freqüentemente toda empresa econômica racional, e especialmente da reação é proporcional à intensidade com que a ameaça é
“a atividade em presarial”, é considerada como um a desqualifi experim entada. O tratamento respeitoso que Calderon dá ao
cação social. A atividade artística e literária também é con camponês, por exemplo, em oposição ao desprezo simultâneo e
siderada como trabalho degradante, tão logo seja explorada com ostensivo de Shakespeare pela can aille ilustra a form a diferente
finalidades lucrativas, ou pelo menos quando está relacionada pela qual um a ordem estamental firm em ente estruturada reage,
com um esforço físico pesado. U m exemplo é um escultor que em comparação com um a ordem estamental que se tornou eco
trabalha como um pedreiro, em seu poeirento guarda-pó, em nomicamente precária. T rata-se do exemplo de um estado de
contraste com o pintor em seu “estúdio” semelhante a um coisas que se repete em tôda parte. Precisamente devido às
salão, e as formas de prática musical aceitáveis pelo grupo p ri reações rigorosas contra as pretensões da propriedade p er se, o
"parv en u ” jam ais é aceito, pessoalmente e sem reservas, pelos
vilegiado.
grupos estam entalm ente privilegiados, por m elhor que seu estilo
de vida se ajuste ao dêles. Só aceitarão seus descendentes que
9. C o n d iç õ e s e E f e it o s Ec o n ô mic o s da
tiverem sido educados nas convenções do seu grupo estam ental
O r g a n iz a ç ã o E st a me n t a l
e que nunca tenham manchado sua honra pela atividade eco
nômica pessoal.
A desqualificação freqüente das pessoas que se empregam
para ganhar um salário é um resultado direto do princípio de Q uanto ao efeito geral da ordem estam ental, somente um a
estratificação estam ental, peculiar à ordem social e, decerto, da conseqüência pode ser apresentada, mas sua im portância é gran
oposição desse princípio a um a distribuição de poder regulada ex de: o impedimento do livre desenvolvimento do mercado ocorre
clusivam ente por interm édio do mercado. Esses dois fatores prim eiro para os bens que os estamentos subtraem diretamente
operam juntam ente com vários outros fatores individuais, que d a livre troca pela monopolização. Essa monopolização pode
ser efetuada seja legal ou convencionalmente. Por exemplo, em
serão mencionados mais adiante.
muitas cidades helénicas durante a época especificamente esta
Vim os, acima, que o mercado e seus processos “não co
mental, e também originalm ente em Roma, o patrim ônio her
nhecem distinções pessoais” : os “interesses” funcionais o do
m inam . N ada conhecem de “honras”. A ordem estamental dado (como se vê pelas velhas fórmulas de condenação dos
perdulários) era monopolizado, tal como o eram as propriedades
significa precisamente o inverso, ou seja, a estratificação em
termos de “honras” e estilos de vida peculiares aos grupos es dos cavaleiros, camponeses, sacerdotes e especialmente a clien
tam entais como tais. Se a simples aquisição econômica e o tela das guildas de ofícios e comércio. O mercado é lim itado,
poder econômico puro, ainda trazendo o estigm a de sua origem e o poder puro e simples da propriedade per se, que dá sua
extra-estam ental, pudessem conceder a quem os tivesse conse marca à “formação de classe”, é posto em segundo plano. Os
guido as mesmas honras que os interessados em estamentos resultados desse processo podem ser muito variados. N atural
em virtude de um estilo de vida que pretendem para si, a mente, não enfraquecem necessariamente os contrastes na situa
ordem estam ental estaria ameaçada em suas bases mesmas, prin ção econômica. Fortalecem freqüentemente esses contrastes e,
cipalm ente tendo em vista que, em condições de igualdade de de qualquer modo, quando a estratificação estam ental im pregna
15
226 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
C LA SSE , ESTAM EN TO , PAHTIDO 227

a com unidade tão fortemente como ocorreu em todas as comu


nidades políticas da A ntigüidade e da Idade M édia, jam ais po 10. P a r Ti d o s
demos falar de um a concorrência de mercado realm ente livre,
tal como a entendemos hoje. H á efeitos m ais amplos do que
O lugar autêntico das “classes” é no contexto da ordem eco
essa exclusão direta de bens especiais do mercado. D a contra
nômica, ao passo que os estamentos se colocam na ordem social,
dição entre a ordem estam ental e a ordem exclusivamente eco
isto é, dentro da esfera da distribuição de “honras”. Dessas es
nômica acim a mencionada, segue-se que na m aioria dos casos
feras, as classes e os estamentos influenciam -se m utuam ente e à
a noção de honras peculiares ao estamento abomina de forma
ordem jurídica, e são por sua vez influenciados por ela. Mas
absoluta aquilo que é essencial para o m ercado: o regateio. As
os “partidos” vivem sob o signo do “poder”.
honras abominam o regateio entre os pares e ocasionalmente
tornam tabu o regateio em geral para os membros de um esta Sua reação é orientada para a aquisição do “poder” social,
mento. Portanto, em tôda parte, alguns estamentos, e habitual ou seja, para a influência sobre a ação com unitária, sem levar
m ente os m ais influentes, consideram quase qualquer tipo de em conta q u al possa ser o conteúdo. Em princípio, os partidos
participação aberta na aquisição econômica como um estigma podem existir num “clube” social, bem como nu m “Estado”.
absoluto. Em contraposição às ações das classes e estamentos em que isso
nem sempre é o caso, as ações com unitárias dos “partidos” sem
Sim plificando, poderíamos dizer, assim, que as “classes” se pre significam um a socialização, pois tais ações voltam-se sempre
estratificam de acordo com suas relações com a produção e aq ui para um a m eta que se procura atingir de forma planificada.
sição de bens; ao passo que os “estamentos” se estratificam de A m eta pode ser um a “causa” (o partido pode visar à realização
acordo com os princípios de seu con sum o de bens, representado de um program a de propósitos ideais ou m ateriais), ou a meta
por “estilos de vida” especiais. pode ser “pessoal” (sinecuras, poder e, daí, honras para o líder
U m “grêm io profissional” é também um estamento, pois nor e os seguidores do partido). H abitualm ente, a ação partidária
m alm ente reivindica as honras sociais apenas em virtude do estilo visa a tudo isso, sim ultaneam ente. Portanto, os partidos são
de vida especial que pode determ inar. As diferenças entre possíveis apenas dentro de comunidades de algum modo socia
classes e estamentos se superpõem com freqüência. São precisa lizadas, ou seja, que têm algum a ordem racional e um “quadro”
mente as comunidades segregadas com m aior rigor em termos de de pessoas prontas a assegurá-la, pois os partidos visam precisa
mente a influenciar esse quadro, e, se possível, recrutá-lo entre
honra (as castas indianas) que mostram hoje, embora dentro de
os seus seguidores.
lim ites muitos rígidos, um grau relativam ente elevado de indi
ferença à renda pecuniária. Os brâmanes, porém, buscam tal Em qualquer caso individual, os partidos podem representar
interesses determ inados através da “situação classista” ou “esta
renda de muitos modos diferentes.
m ental”, e podem recrutar seus membros de um a ou de outra.
Quanto às condições econômicas gerais que perm item o pre M as não precisam ser partidas exclusivamente de “classe”, nem
domínio da organização “estam ental”, pouco podemos dizer. Q uan “estamentais”. N a m aioria dos casos, são até certo ponto partidos
do as bases da aquisição e distribuição de bens são relativam ente de classe, e até certo ponto partidos estamentais, mas algum as
estáveis, a organização estam ental é favorecida. Toda repercussão vezes não são nenhum a das duas coisas. Podem representar
tecnológica e transformação econômica am eaça-a e coloca em estruturas efêmeras ou duradouras. Seus meios de alcançar o
primeiro plano a situação de classe. A s épocas e países em que poder podem ser variados, indo desde a violência pura e simples,
a pura situação de classe possui significação predominante são de qualquer espécie, à cabala de votos através de meios gros
regularm ente os períodos de transformações técnicas e econô seiros ou sutis: dinheiro, influência social, a força da argum en
micas. E toda dim inuição no ritmo de m udanças nas estrati tação, sugestão, embustes primários, e assim por diante, até as
ficações econômicas leva, no devido tempo, ao aparecimento de táticas m ais duras ou m ais habilidosas de obstrução parlam entar.
organizações estamentais e contribui para a ressurreição do im A estrutura sociológica dos partidos difere de forma básica
portante papel das honras sociais. segundo o tipo de ação com unitária que buscam influenciar.
228 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

Os partidos também diferem segundo a organização da comu


nidade por estamentos ou por classes. A cim a de tudo, variam
segundo a estrutura do domínio dentro da comunidade, pois seus
líderes norm alm ente tratam da conquista de um a comunidade.
No conceito geral mantido aqui, não são produtos apenas de
formas especialmente modernas de domínio. Designaremos tam VHI. Burocracia
bém como partidos os “partidos” antigos e medievais, apesar de
a sua estrutura variar basicamente em relação à estrutura dos
partidos modernos. Em virtude dessas diferenças que oferece
a estrutura de dominação, é impossível dizer qualquer coisa
sôbre a estrutura dos partidos, sem discutir as formas estruturais 1. C a r a c t e r íst ic a s da B u r o c r a c ia

de domínio social per se. Os partidos, que são sempre estru


turas que lutam pelo domínio, m uito freqüentemente se orga
nizam de um modo “autoritário” muito rigoroso. A b u r o c r a c i a m o d e r n a funciona da seguinte forma específica:

No que se relaciona com as “classes, os “estamentos” e os I. Rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais,
“partidos”, devemos dizer em geral que eles pressupõem, neces ordenadas de acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou
sariam ente”, um a sociedade que os engloba, e especialmente um a normas adm inistrativas.
ação com unitária política, dentro da qual operam. Mas isto não 1. As atividades regulares necessárias aos objetivos da es
significa que os partidos sejam confinados pelas fronteiras de trutura governada burocraticamente são distribuídas de forma fixa
qualquer com unidade política. Pelo contrário, em todos os tempos como deveres oficiais.
ocorreu habitualm ente que eles (mesmo quando visam ao uso 2. A autoridade de dar as ordens necessárias à execução
da força m ilitar em com um) ultrapassam as fronteiras da co desses deveres oficiais se distribui de forma estável, sendo rigo
m unidade política. T al fato se observou no caso da solidariedade rosamente delim itada pelas normas relacionadas com os meios
de interesses entre os oligarcas e os democratas na H élade, entre de coerção, físicos, sacerdotais ou outros, que possam ser colocados
os guelfos e gibelinos na Idade M édia e no partido calvinista à disposição dos funcionários ou autoridades.
durante o período de lutas religiosas. E continua sendo o caso
3. Tom am -se m edidas metódicas para a realização regular
até da solidariedade entre os senhores de terra (congresso in
e contínua desses deveres e para a execução dos direitos corres
ternacional de senhores de terrat agrário s), e continuou entre os
pondentes; somente as pessoas que têm qualificações previstas
príncipes (sagrada aliança, decretos de K arlsbad), trabalhadores
por um regulam ento geral são empregadas.
socialistas, conservadores (o desejo de um a intervenção russa por
parte dos conservadores prussianos em 1850). M as seu objetivo Nos Governos públicos e legais, esses três elementos, cons
não é necessariamente o estabelecimento de um novo domínio tituem a “autoridade burocrática”. No domínio econômico pri
político internacional, isto é, territorial. Pretendem, principal vado, constituem a “adm inistração” burocrática. A burocracia,
mente, influenciar o domínio existente. * assim compreendida, se desenvolve plenam ente em comunidades
políticas e eclesiásticas apenas no Estado moderno, e na economia
privada, apenas nas m ais avançadas instituições do capitalismo.
A autoridade permanente e pública, com jurisdição fixa, não
constitui a norm a histórica, mas a exceção. Isso acontece até
mesmo nas grandes estruturas políticas, como as do Oriente
antigo, os impérios de conquista alemães e mongólicos, ou das
* O texto, publicado postumamente, interrom pe-se aqui. Omi
timos um esboço incompleto dos tipos de “estamentos g uerreiros” . Wtríscfvaft und G esetlschaft, parte IIT, cap. 6, pp. 650-78.
230 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
B U R O C R A C I A 231

m uitas estruturas feudais do Estado. Em todos esses casos, o ciativa privada; nesta últim a, o princípio se estende até mesmo
governante executa as medidas m ais importantes através de pes ao empresário. Em princípio, o escritório executivo está sepa
soas de sua confiança pessoal, comensais, servos-cortesãos. Seus rado da residência, a correspondência comercial é separada da
encargos e sua autoridade não são delim itados com precisão, e pessoal, e os bens da empresa são distintos das fortunas privadas.
têm um a natureza temporária, sendo criadas para cada casc A coerência da m oderna administração de empresas tem sido
específico. proporcional a essa separação. O início do processo já pode ser
observado na Idade M édia.
II. Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de
É peculiar ao empresário moderno comportar-se como o
autoridades significam um sistema firm em ente ordenado de m an
prim eiro funcionário” de sua empresa, da mesma forma pela
do e subordinação, no qual há um a supervisão dos postos infe
qual um governante de um Estado moderno, especificamente
riores pelos superiores. Esse sistema oferece aos governados a
burocrático, considera-se como o “primeiro servidor” do E stado.1
possibilidade de recorrer de um a decisão de um a autoridade in
A idéia de que as atividades das repartições estatais são intrin
ferior para a sua autoridade superior, de um a forma regulada
secamente diferentes, em caráter, da adm inistração dos escritórios
com precisão. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrá
das empresas privadas é um a noção da Europa continental, to
tico, a hierarquia dos cargos é organizada monocraticamente. O
talmente estranha ao pensamento americano.
princípio da autoridade hierárquica de cargo encontra-se em
todas as organizações burocráticas: no Estado e nas organizações IV . A adm inistração burocrática, pelo menos toda a adm i
eclesiásticas, bem como nas grandes organizações partidárias e nistração especializada — que é caracteristicamente moderna —
emprêsas privadas. Não importa, para o caráter da burocracia, pressupõe habitualm ente um treinamento especializado e com
que sua autoridade seja cham ada “privada” ou “pública”. pleto. Isso ocorre cada vez mais com o diretor moderno e o
empregado das empresas privadas, e também com o funcionário
Quando o princípio de “competência” jurisdicional é reali do Estado.
zado plenam ente através da subordinação hierárquica — pelo
menos no cargo público — não significa que a autoridade “su V . Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a ativi
perior” esteja simplesmente autorizada a se ocupar dos assuntos dade oficial exige a plena capacidade de trabalho do funcionário,
da autoridade “inferior”. N a verdade, ocorre o inverso. U m a a despeito do fato de ser rigorosamente delim itado o tempo de
vez criado e tendo realizado sua tarefa, o cargo tende a continuar perm anência na repartição, que lhe é exigido. Normalmente,
existindo e a ser ocupado por outra pessoa. isso é apenas o produto de um a longa evolução, tanto nos cargos
públicos como privados. A ntigam ente, em todos os casos, a
III. A adm inistração de um cargo moderno se baseia em situação norm al era inversa: os negócios oficiais eram considera
documentos escritos ( “os arquivos”) , preservados em sua forma dos como um a atividade secundária.
original ou em esboço. H á, porém, um quadro de funcionários
e escreventes subalternos de todos os tipos. O quadro de funcio V I. O desempenho do cargo segue regras gerais, m ais ou
nários que ocupe ativam ente um cargo “público”, juntam ente menos estáveis, m ais ou menos exaustivas, e que podem ser
com seus arquivos de documentos e expedientes, constitui um a aprendidas. O conhecimento dessas regras representa um apren
“repartição”. N a empresa privada, a “repartição” é freqüente dizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários.
mente cham ada de “escritório”. Envolve jurisprudência, ou adm inistração pública ou privada.
Em princípio, a organização moderna do serviço público A redução do cargo moderno a regras está profundamente
separa a repartição do domicilio privado do funcionário e, em arraigada à sua própria natureza. A teoria da m oderna adm i
geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto nistração pública, por exemplo, sustenta que a autoridade para
da esfera da vida privada. Os dinheiros e o equipamento público ordenar certos assuntos através de decretos — legalm ente atri
estão divorciados da propriedade privada da autoridade. Essa buída às autoridades públicas — não dá à repartição o direito
condição é, em toda parte, produto de um longo desenvolvimento. de regular o assunto através de normas expelidas em cada caso,
H oje em dia, é observada tanto no setor público como na ini mas tão-somente para regulam entar a m atéria abstratamente.
232 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
B U R O C R A C I A 233
Isso contrasta de forma extrem a com a regulam entação de todas
dignos deles e que os solicitam. A ntigam ente, êsses líderes agiam
as relações através dos privilégios individuais e concessão de favo
sob a ordem pessoal de seu senhor; em princípio, só eram res
res, que domina de forma absoluta no patrimonialismo, pelo
ponsáveis perante ele. Hoje em dia, apesar da sobrevivência
menos na m edida em que essas relações não são fixadas pela
parcial da velha teoria, esses líderes religiosos são funcionários
tradição sagrada.
a serviço de um propósito objetivo, que na “igreja” da atualidade
se tornou rotineiro e, por sua vez, ideologicamente oco.
2. A P o siç ã o do F u n c io n á r io
II. A posição pessoal do funcionário é determ inada da forma
seguinte:
T udo isso resulta, para a posição interna e externa do fun 1. Quer ocupe um posto público ou privado, o funcionário
cionário, no seguinte: moderno pretende sempre e habitualm ente desfruta um a estim a
I. A ocupação de um cargo é um a “profissão”. Isso se social específica, em comparação com os governados. Sua posi
evidencia, primeiro, na exigência de um treinamento rígido, que ção social é assegurada pelas normas que se referem à hierarquia
dem anda toda a capacidade de trabalho durante um longo pe ocupada e, para o funcionário político, pelas definições especiais
ríodo de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré- do código crim inal contra “insultos aos funcionários” e “des
-requisitos para o emprego. A lém disso, a posição do funcioná prezo” às autoridades do Estado e da Igreja.
rio tem a natureza de um dever. Isso determ ina a estrutura A posição social real do funcionário é, norm alm ente, mais
interna de suas relações, da forma seguinte: jurídica e pratica elevada quando, como ocorre nos velhos países civilizados, pre
mente, a ocupação de um cargo não é considerada como uma dominam as condições seguintes: um a forte procura de adm i
fonte de rendas ou emolumentos a ser explorada, como ocorria nistração por especialistas; um a diferenciação social forte e es
norm alm ente durante a Idade M édia e freqüentemente até re tável, vindo o funcionário, predominantemente, das cam adas so
centemente. Nem é a ocupação do cargo considerada como uma cial e economicamente privilegiadas devido à distribuição social
troca habitual de serviços por equivalentes, como é o caso dos do poder; ou quando o custo do treinamento necessário e das
contratos livres de trabalho. O ingresso num cargo, inclusive convenções estam entais lhe impõe obrigações. A posse de
na economia privada, é considerado como a aceitação de um a diplomas educacionais, que discutiremos em outro contexto2 —
obrigação específica de adm inistração fiel, em troca de um a exis está habitualm ente ligada à qualificação para o cargo. N atural
tência segura. É decisivo para a natureza específica da fide mente, essas certidões ou diplomas fortalecem o “elemento es-
lidade moderna ao cargo que, no tipo puro, ele não estabeleça tam ental” na posição social do funcionário. Quanto ao resto,
um a relação pessoal, como era o caso da fé que tinha o senhor esse fator estam ental nos casos individuais é reconhecido explí
ou patriarca nas relações feudais ou patrim oniais. A lealdade cita e im passivelm ente; por exemplo, na prescrição de que a
moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais. Atrás aceitação ou rejeição de um aspirante a um a carreira oficial
das segundas, estão habitualmente, é claro, “idéias de valores depende do consentimento ( “eleição”) dos membros do órgão
culturais”. São o ersatz do senhor sobrenatural ou terreno, oficial. É o que ocorre no exército alemão com o corpo de
mas pessoal: idéias como “Estado”, “igreja”, “comunidades”, “par oficiais. Fenômenos semelhantes, que dão ao funcionalismo esse
tido” ou “empresa” são consideradas como peculiares à comuni caráter fechado de corporação, encontram-se tipicamente nos
dade: proporcionam uma áurea ideológica para o senhor. funcionalismos patrim oniais e, particularm ente, nas prebendas.
O desejo de fazer ressurgir tais fenômenos, em novas formas,
O funcionário político — pelo menos, no Estado moderno
não é, de modo algum , infreqüente entre os burocratas modernos.
bem desenvolvido — não é considerado um servo pessoal do go
Por exemplo, eles desempenharam um papel inclusive entre as
vernante. Hoje, o bispo, o .sacerdote e o pregador já não são,
exigências dos funcionários fortemente proletarizados e os peritos
como nos tempos cristãos antigos, detentores de um carisma
(o elemento trety j) durante a revolução russa.
exclusivam ente pessoal. Os valores supramundanos e sagrados
H abitualm ente, a estima social dos funcionários, como tal,
que eles oferecem são proporcionados a todos os que parecem
é especialmente baixa onde a exigência de um a adm inistração
234 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA b u r o c r a c i a 235

especializada e o domínio das convenções estamentais são fracos. quando determ inam a escolha dos candidatos, ou para a nomea
Isso ocorre especialmente nos Estados Unidos, com freqüência ção livre por um chefe que foi, ele próprio, eleito. O contraste,
nos povoamentos novos, em virtude de seus amplos campos de porém, é relativo: condições substancialmente semelhantes ocor
lucro e a grande instabilidade das camadas sociais. rem quando monarcas legítim os e seus subordinados nomeiam
funcionários, exceto pelo fato de que a influência dos cortesãos
2. O tipo puro de funcionário burocrático é n om eado por é, no caso, menos controlável.
um a autoridade superior. U m a autoridade eleita pelos governa
dos não é um a figura exclusivamente burocrática. Decerto, a Quando a necessidade de adm inistração pelos especialistas
existência formal de um a eleição não significa, em si, que atrás é considerável, e os seguidores dos partidos têm de reconhecer
dela não se esconde um a nomeação — o que ocorre no estado, um a “opinião pública” intelectualm ente desenvolvida, educada e
especialmente, no caso da nomeação indicada pelos chefes par livre, o uso de funcionários sem habilitações prejudicará o par
tidários. T al nomeação independe dos estatutos legais, depen tido que ocupe o poder, nas próximas eleições. N aturalm ente,
dendo, sim, da forma pela qual funciona o mecanismo partidá isso tem m ais probabilidade de ocorrer quando os funcionários
rio. U m a vez organizados firmemente, os partidos podem trans são nomeados pelo chefe. A necessidade de um a adm inistração
formar um a eleição formalmente livre na simples aclamação de treinada existe hoje nos Estados Unidos, mas nas grandes cida
um candidato designado pelo chefe do partido. Em geral, porém, des, onde os votos dos im igrantes são “de cabresto”, é claro
um a eleição formalmente livre se transforma num a luta, condu que não há opinião pública educada. Portanto, as eleições po
zida segundo regras definidas, em busca de votos em favor de pulares do chefe adm inistrativo e também de seus subordinados
um dos dois candidatos designados. habitualm ente põem em risco a qualificação do funcionário, bem
Em todas as circunstâncias, a designação de funcionários como o funcionamento preciso do mecanismo burocrático. T am
por meio de um a eleição entre os governados modifica o rigor bém enfraquecem a dependência em que os funcionários estão da
da subordinação hierárquica. Em princípio, o funcionário eleito hierarquia. Isso é válido, pelo menos, para os grandes órgãos
dessa forma tem um a posição autônoma, em relação ao funcio adm inistrativos, cuja supervisão é difícil. A qualificação superior
nário superior. O funcionário eleito não deve sua posição a e a integridade dos juizes federais, nomeados pelo Presidente,
um a influência “de cim a”, mas “de baixo”, ou pelo menos não em comparação com os juizes eleitos nos Estados Unidos são
a deve a um a autoridade superior da hierarquia oficial, e sim bem conhecidas, embora ambos os tipos de funcionários sejam
aos poderosos chefes políticos que também determ inam o prosse escolhidos principalm ente à base de considerações partidárias.
guim ento de sua carreira. A carreira do funcionário eleito não As grandes m udanças na administração m etropolitana am ericana
depende, ou pelo menos não depende principalm ente, de seu exigidas pelos reformadores partiram essencialmente dos prefeitos
chefe na administração. O funcionário que não é eleito, e sim eleitos, que trabalham com um corpo de funcionários por eles
nomeado por um chefe, funciona norm alm ente de modo mais nomeados. Essas reformas surgiram , assim, de modo “cesarista”.
preciso, do ponto de vista técnico, porque, na igualdade das ou Vista tecnicamente, como um a forma organizada de autoridade,
tras circunstâncias, é mais provável que os aspectos funcionais e a eficiência do “cesarismo”, que freqüentemente nasce da demo
as qualidades determ inem sua seleção e sua carreira. Como lei cracia, está em geral na posição do “césar” como livre deposi
gos, os governados podem tomar conhecimento da m edida em tário da confiança das massas (ou do exército o u do corpo de
que um candidato se qualifica para o posto apenas em termos
cidadãos), não-lim itado pela tradição. O “césar” é, assim, senhor
de experiência, e, portanto, apenas depois de seu serviço. Além
irrestrito de um quadro de oficiais m ilitares e funcionários alta
disso, em todo tipo de seleção de funcionários por eleição, os
mente qualificados, aos quais escolhe livre e pessoalmente, sem
partidos m uito naturalm ente dão peso decisivo não às conside
rações de adequação a cargo, mas aos serviços que o.candidato pensar na tradição ou qualquer outra consideração. Esse “do
presta ao chefe partidário. Isso é válido para todos os tipos de mínio do gênio pessoal”, porém, está em contradição com o prin
seleção de funcionários por eleições, para a designação de fun cípio form alm ente “democrático” de um funcionalismo universal
mente eleito.
cionários formalmente livres, eleitos, pelos chefes partidários,
236 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA B U R O C R A C I A 237

3. Normalmente, a posição do funcionário é vitalícia, pelo contra seu afastamento arbitrário do cargo. Essa luta, porém,
menos nas burocracias públicas, e isso ocorre cada vez mais em tem lim ites. U m desenvolvimento demasiado acentuado do “di
todas as organizações semelhantes. Como norm a concreta, sem reito do cargo” torna m ais difícil, naturalm ente, preencher os
pre se pressupõe o cargo v italício, mesmo quando ocorre o postos levando em conta a eficiência técnica, pois isso faz dim i
afastamento ou a renomeação periódica. Em contraste com o nuir as oportunidades de carreira dos candidatos ambiciosos. Isso
trabalhador da empresa privada, o funcionário é normalmente contribui para o fato de que os funcionários, no todo, não sen
mantido no posto. A vitaliciedade legal ou real, porém, não é tem a sua dependência em relação aos que estão na cúpula. Essa
reconhecida como um direito do funcionário à posse do cargo, falta de sentimento de dependência, porém, baseia-se prim ordial
como ocorria em muitas organizações autoritárias no passado. mente sobre a inclinação a depender das cam adas que nos são
Quando há garantias jurídicas contra o afastamento ou a trans iguais, e não das cam adas socialmente inferiores e governadas.
ferência arbitrária, estas servem simplesmente para assegurar uma O atual movimento conservador entre o clero da Badênia, ocasio
demissão rigorosamente objetiva de deveres específicos ao cargo, nado pela preocupação com a separação, presumidamente am ea
livre de quaisquer considerações pessoais. N a A lem anha, isso çadora, entre a Igreja e o Estado, foi determinado expressamente
ocorre com os funcionários da Justiça e, em proporções crescen pelo desejo de não ser transformado “de senhor em servo da
tes, com os administrativos. paróquia”. 4
Dentro da burocracia, portanto, a m edida de “independên 4. O funcionário recebe compensação pecun iária regular
cia”, legalm ente assegurada pela ocupação de um cargo, nem de um salário norm alm ente fixo e a segurança na velhice re
presentada por um a pensão. O salário não é medido como uma
sempre é fonte de melhor statu s para o funcionário cuja
remuneração em termos de trabalho feito, mas de acordo com
posição tem essa garantia. N a verdade, com freqüência ocorre o
a hierarquia, ou seja, segundo o tipo de função (o g ra u hierár
inverso, especialmente nas velhas culturas e comunidades alta
quico) e, além disso, possivelmente, segundo o tempo de serviço.
mente diferenciadas, nas quais quanto m ais rigorosa a subordi
A segurança relativam ente grande da renda do funcionário,
nação ao domínio arbitrário do senhor, tanto m ais garantida
bem como as recompensas em consideração social, fazem do
fica a manutenção do estilo de vida senhorial convencional para cargo público um a posição muito am bicionada, especialmente
o funcionário. Devido à ausência mesma dessas garantias de em países que já não oferecem oportunidades de lucros coloniais.
ocupação do cargo, a estima convencional pelo funcionário pode Nêles, a situação permite salários relativam ente baixos para os
elevar-se tal como, durante a Idade M édia, a consideração pela funcionários.
nobilidade do cargo 3 elevou-se a expensas da estima pelos livros
5. O funcionário se prepara para uma “carreira” dentro da
e tal como a estima pelo ju iz da corte superou a estima pelo
ordem hierárquica do serviço público. Passa dos cargos inferio
ju iz do povo. N a A lem anha, o oficial m ilitar ou o funcionário res e de menor remuneração para os postos mais elevados, ü
adm inistrativo podem ser afastados do cargo a qualquer mo funcionário médio naturalm ente deseja um a fixação mecânica
mento, ou pelo menos muito m ais facilm ente do que o “juiz das condições de promoção: se não de cargos, pelo menos de
independente”, que não paga com a perda do seu cargo nem níveis de salário. Deseja que sejam fixadas em termos de “an
mesmo a pior ofensa contra o “código de honra” ou contra as tigüidade” ou possivelmente segundo os graus alcançados num
convenções sociais de salão. Por essa razão apenas, havendo sistema de exame de habilitações, que na realidade assegure ao
igualdade das demais condições, aos olhos da cam ada senhorial cargo um caráter vitalício indelével, com efeitos em toda a sua
o ju iz é considerado como menos qualificado para o relaciona carreira. A isso se jun tam o desejo de condicionar o direito ao
mento social do que os oficiais e funcionários administrativos, cargo e a tendência crescente â organização corporativa e à se
cuja m aior dependência do senhor é a maior garantia de sua gurança econômica. Tudo isso cria a tendência de considerar
conformidade com as convenções estamentais. Decerto, o fun os cargos como “prebendas” para os que estão habilitados atra
cionário médio luta por um a lei do serviço público, que o vés de certificados de cursos. A necessidade de levar em conta
proteja m aterialm ente na velhice e proporcione maiores garantias as qualificações gerais, pessoais e intelectuais, independentes do
238 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA BUROCRACIA 239

caráter subalterno da certidão educacional, levou a um a situação para a existência, inalterada e permanente, se não para a criação,
na qual os cargos políticos m ais elevados, especialmente os de de administrações burocráticas puras.
“ministros”, são preenchidos principalm ente sem referência a
Segundo a experiência histórica, sem uma economia mone
tais certificados ou certidões.
tária a estrutura burocrática dificilmente evita as m udanças in
ternas substanciais, ou, na verdade, a transformação em outro
3. P r e ssu po st o s e C a u sa s da B u r o c r a c ia
tipo de estrutura. A concessão aos funcionários de um a renda
fixa in n atura, tirada dos arm azéns do senhor ou de sua renda
corrente, significa um primeiro passo no sentido da apropriação
O s pressupostos sociais e econômicos da moderna estrutura
das fontes de tributação e sua exploração como propriedade
burocrática são os seguintes:
privada. Esse tipo de concessão foi norm al no Egito e China
O desenvolvimento da econ om ia m on etária, na m edida em durante m ilhares de anos e desempenhou um papel importante
que um a compensação pecuniária aos funcionários é possível, em fins da m onarquia romana, bem como em outras partes.
é um pressuposto da burocracia. H oje, ele predomina. Este Esse tipo de renda protegeu o funcionário contra as flutuações,
fato é de im portância m uito grande para a totalidade da influ por vezes acentuadas, na capacidade aquisitiva do dinheiro. Sem
ência burocrática, e ainda assim, por si, ele não é decisivo para pre que as prerrogativas do senhor se afrouxavam , os tributos
a existência desta. in n atura, em geral, eram irregulares. Neste caso, o funcionário
Os exemplos históricos de burocracias bem desenvolvidas e tinha recurso direto aos tributários de seu bailiado, fosse, ou não
quantitativam ente grandes são: a) Egito, durante o período do autorizado. D aí a idéia de garantir o funcionário contra essas
Novo Império que, porém, encerrava fortes elementos patrimo oscilações, hipotecando ou transferindo os tributos e, com isso,
niais; b) fins do Principado Romano, e especialmente a monar o poder de tributar, ou arrendando as terras lucrativas do senhor
quia diocleciana e o Estado bizantino que dela se desenvolveu, ao funcionário, para uso pessoal. Toda autoridade central que
conservando ainda fortes elementos feudais e patrim oniais; c) a não tem um a organização rigorosa é tentada a adotar tal pro
Igreja Católica Romana, principalm ente a partir de fins do cesso voluntariam ente ou porque os funcionários a obriguem
século X III; d ) China, desde a época de Shi H w angti até o a isso. O funcionário pode satisfazer-se com o uso desses tri
presente, mas com fortes elementos patrim oniais e prebendários; butos ou empréstimos até o nível de sua pretensão salarial e,
e) em formas cada vez m ais puras, os Estados europeus mo em seguida, transferir o excedente. Isso im plica forte tentação
dernos e, principalm ente, todas as empresas públicas desde a e, portanto, produz resultados insatisfatórios para o senhor. O u
época do absolutismo real; /) as grandes emprêsas capitalistas tro processo é a fixação do salário do funcionário, que ocorreu
modernas, quanto maiores e mais complicadas se tornarem. com freqüência no início da história do funcionalismo alemão,
Em proporções consideráveis, e até mesmo preponderantes e em grande escala na administração de todas as satrapias orien
em parte, os casos a) até d ) basearam -se no pagam ento dos tais: o funcionário entrega um a soma estipulada e conserva o
funcionários com bens in n atura. R evelaram , porém, muitos excedente.
outros traços e efeitos característicos da burocracia. O modelo Nesses casos, o funcionário está, economicamente, num a po
histórico de todas as burocracias posteriores — o Novo Império sição semelhante à do empresário que arrenda a cobrança de
do Egito — é, ao mesmo tempo, um dos exemplos mais gran impostos. N a verdade, a venda de cargos, inclusive o leilão,
diosos de um a organização baseada num a economia natural. encontra-se com regularidade. N a economia privada, a transfor
Não obstante, essa coincidência de burocracia e economia natural mação das concessões precárias que o senhor fazia ao vilão, em
é compreensível em vista das condições excepcionais que exis relações de arrendam ento, é um dos exemplos mais importantes,
tiam no Egito. E as restrições — e são m uitas — que devemos entre vários. Pelo arrendamento, o senhor pode transferir o
fazer, ao classificarmos a estrutura egípcia como um a burocracia, problema de transformar sua renda in n atu ra em renda em
são condicionadas pela economia natural. U m a certa medida moeda ao arrendatário ou ao funcionário que recebe um a soma
de economia monetária desenvolvida é a precondição normal fixa. Era o caso evidente entre alguns regentes orientais da
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A ntigüidade. E, acima de tudo, o arrendam ento da coleta pú posição na qual exige não só uma renda corrente, mas capital
blica de impostos, ao invés de o próprio senhor adm inistrar em dinheiro — por exemplo, para a guerra ou para pagar d í
essa coleta, servia a tal finalidade. Surge, desse processo, a pos vidas. A compra de um cargo como instituição regular existiu
sibilidade de que o senhor progrida, no sentido de transformar nos Estados modernos, no Estado eclesiástico e na França e
suas finanças num orçamento sistemático. T rata-se de um avan Inglaterra. Existiu nos casos de sinecuras, bem como de postos
ço muito importante, pois significa que um a estim ativa fixa da m uito sérios; e, no caso das comissões de oficiais, perdurou até
renda, e correspondentemente das despesas, pode tomar o lugar princípios do século XIX. Nos casos individuais, o significado
de um a forma im ediatista de vida, baseada em rendas incalculá econômico dessa compra de um cargo pode ser modificado, de
veis in n atura, condição típica de todas as fases iniciais da forma que o valor da compra, em parte ou no todo, adquire a
adm inistração pública. Por outro lado, ao sistem atizar o orça natureza de um a caução depositada como garantia do serviço,
mento dessa forma, o senhor renuncia ao controle e plena ex embora isso não tenha constituído a regra.
ploração de sua capacidade de tributar para uso próprio. Se
Toda forma de atribuição de usufrutos, tributos e serviços
gundo a m edida de liberdade atribuída ao funcionário, ao cargo
devidos ao senhor pessoalmente, ou ao funcionário para a explo
ou ao arrendatário da coleta de impostos, a capacidade de
ração pessoal, significa sempre um a derrota do tipo puro
pagar tributos corre perigo em caso de exploração excessiva,
de organização burocrática. O funcionário nesses cargos tem
pois ao contrário do senhor político o capitalista não se interessa
um direito pessoal à posse do cargo. Isso ocorre em proporções
permanentemente na capacidade que os súditos tenham de pagar.
ainda maiores quando o dever oficial e o salário estão inter-re-
O senhor procura proteger-se contra essa perda de controle lacionados de tal modo que o funcionário não transfere ao se
pelas regulamentações. A forma de arrendar ou transferir os nhor quaisquer rendimentos ganhos através dos objetos que lhe
impostos pode, assim, variar m uito, segundo a distribuição de são entregues, m as u tiliza tais objetos para suas finalidades pri
poder entre o senhor e o arrendatário. Predom ina, então, ou o vadas e por sua vez presta ao senhor serviços de caráter pessoal,
interesse que o arrendatário tem na livre exploração da capaci m ilitar, político, ou eclesiástico.
dade de pagar impostos ou o interesse do senhor pela perm anên
cia dessa capacidade. A natureza do sistema de arrendamento Podemos falar das " preben das" e de um a organização “pre-
dos impostos está, essencialmente, na influência conjunta ou bendária” da burocracia, sempre que o senhor atribui ao fun
antagônica desses motivos: a elim inação de oscilações nos ren cionário pagam entos de rendas vitalícios, fixados em forma obje
dimentos, a possibilidade de um orçamento, a proteção da capa tiva, ou que são essencialmente um usufruto econ ôm ico de terras
cidade de pagar dos súditos contra a exploração antieconômica, ou outras fontes. Elas devem constituir compensações para o
e o controle estatal dos rendimentos do arrendatário ou conces desempenho de deveres do cargo, reais ou fictícios; são mercado
sionário, com o objetivo de proporcionar ao Estado o máximo rias perm anentem ente postas de lado para a garan tia econômica
possível. No Império Ptolemaico, como na H élade e em Roma, do cargo.
o arrendatário dos impostos era, ainda, um capitalista privado.
A transição dessa organização prebendária da burocracia para
A elevação dos impostos, porém, era executada e controlada buro-
um funcionalism o assalariado é bastante fluida. Com freqüên
craticam ente pelo Estado ptolemaico. O lucro do arrendatário
da terra consistia apenas num a parcela do respectivo excedente, cia, as vantagens econômicas do clero foram “prebendárias”,
como ocorreu na A ntigüidade e na Idade M édia, e até mesmo
descontada a m argem do concessionário da arrecadação dos im
postos. que era, na verdade, apenas um a garantia. O risco do no período moderno. M as em quase todos os períodos a mesma
concessionário dos impostos estava na possibilidade de que os forma existiu também em outras áreas. No direito sacerdotal
rendimentos fossem inferiores a essa soma. chinês, o caráter prebendário de todos os cargos forçava o fun
cionário de luto a renunciar ao cargo, pois durante o período
A concepção exclusivamente econômica do cargo como um a ritual do luto, pelo pai ou outras autoridades da fam ília, estava
fonte da renda privada do funcionário tam bém pode levar à sua prescrita a abstenção do gozo de posses. O riginalm ente, tal
compra direta. Isso ocorre quando o senhor se encontra num a prescrição visava a evitar a m á vontade do chefe da casa morto,
18
242 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA BUROCRACIA 243

pois a casa pertencia ao seu senhor e o cargo era considerado pria, mas também — como ocorre entre os oficiais — a consciên
apenas como um a prebenda, um a fonte de renda. cia estam ental é a conseqüência dessa subordinação, pois interna
mente ela compensa os sentimentos de dignidade pessoal do
Quando não só os direitos econômicos, mas também as prer
funcionário. O caráter impessoal do trabalho burocrático, com
rogativas senhoriais eram arrendadas para a execução pessoal,
sua separação entre a esfera privada e a esfera oficial do cargo,
com a estipulação de serviços pessoais ao senhor, afastava-se mais
facilita a integração do funcionário nas condições funcionais
um passo da burocracia assalariada. A s prerrogativas arrendadas
objetivas dadas para sempre pelo mecanismo baseado na dis
variam ; por exemplo, com o funcionário político, elas podem ser
ciplina.
da natureza do senhorio de terras, ou da natureza da autori
dade do cargo. Em ambos os casos, e certamente no último, Embora o pleno desenvolvimento de um a economia mone
a natureza específica da organização burocrática é totalmente tária não constitua condição prelim inar indispensável à buro-
destruída e ingressamos no reino orgânico do domínio feudal. cratização, a burocracia como estrutura permanente está ligada à
Todos os tipos de atribuição de serviços e usufrutos in n atura, pressuposição de um a renda constante para a sua manutenção.
como recompensas aos funcionários, tendem a afrouxar o meca Quando tal renda não pode ser baseada nos lucros privados,
nismo burocrático, e especialmente a enfraquecer a subordinação como ocorre com a organização burocrática das grandes empresas
hierárquica, que se desenvolve de forma m ais rigorosa na dis modernas, ou nas rendas agrárias fixas, como no caso dos arren
ciplina do funcionalism o moderno. U m a precisão semelhante à damentos, um sistema estável de tributação é a precondição para
do funcionário contratado do Ocidente moderno só pode ser a existência perm anente da administração burocrática. Por mo
alcançada pelo menos sob um a liderança m uito enérgica — quan tivos bem conhecidos e gerais, somente um a economia monetária
do a sujeição dos funcionários ao senhor é pessoalmente absoluta, plenamente desenvolvida oferece um a base segura para êsse
quando os escravos, ou empregados tratados como tal, são usa sistema de tributação. O grau de burocratização das com unida
dos pela administração. des urbanas com economias monetárias plenamente desenvolvi
das foi, em geral, relativam ente maior que o dos Estados con
Os funcionários egípcios eram escravos do Faraó, se não
temporâneos, m uito m ais extensos. Não obstante, tão logo esses
legalm ente, pelo menos de fato. Os latifundiários romanos gos
Estados foram capazes de desenvolver sistemas ordenados de
tavam de dar aos escravos a adm inistração direta dos assuntos
tributo, a burocracia desenvolveu-se de forma m ais global do
monetários, porque tinham a possibilidade de submetê-los a tor
que nos Estados-cidades. Sempre que o tam anho destes per
turas. N a C hina, buscaram-se resultados semelhantes com o
maneceu confinado a lim ites moderados, a tendência de uma
uso pródigo do bambu como instrum ento disciplinar. As pos
adm inistração plutocrática e colegial, pelos notáveis, correspon
sibilidades, porém, de que tais meios de coação direta venham
deu mais adequadam ente à sua estrutura.
a funcionar com regularidade são extrem am ente desfavoráveis.
Segundo a experiência, o ótimo relativo para o êxito e m anuten
ção de um a mecanização rigorosa do aparato burocrático é pro
4. D e se n v o l v ime n t o Q u a n t it a t iv o das T a r e fa s
porcionado por um salário monetário certo, conjugado à opor
A d m in ist r a t iv a s
tunidade de um a carreira que não dependa de simples acaso
e arbítrio. A disciplina e controle rigorosos, que ao mesmo
tempo levam em conta o senso de honra do funcionário, e o O terreno adequado à burocratização de um a adm inistra
desenvolvimento de sentimentos de prestígio estamental, bem ção foi sempre o desenvolvimento específico das tarefas adm inis
trativas. Discutiremos, primeiro, a extensão quantitativa dessas
como a possibilidade de críticas públicas, funcionam no sentido
da m ecanização rígida. Com tudo isso, o aparato burocrático tarefas. No campo da política, o grande Estado e o partido de
massa constituem o terreno clássico para a burocratização.
funciona com m ais firm eza do que qualquer escravização legal
dos funcionários. U m a forte consciência estamental entre os Isso não significa que toda formação, historicam ente conhe
funcionários não só concorda com a disposição destes de se cida e autêntica de grandes Estados, tenha provocado um a adm i
subordinarem ao chefe, sem m anifestar qualquer vontade pró nistração burocrática. A perm anência de um Estado outrora
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grande, ou a homogeneidade de um a cultura evidenciada por e intensivç para apoiá-los. E não há dúvida de que os núcleos
um desses Estados, nem sempre esteve ligada a um a estrutura de Estados “modernos” intensivos na Idade M édia desenvolve
estatal burocrática. Ambas essas características, porém, existiram ram-se concomitantemente com as estruturas burocráticas. Além
em grandes proporções, por exemplo, no Império Chinês. Os disso, no fim essas estruturas políticas bastante burocráticas sem
numerosos grandes impérios negros, e formações semelhantes, dúvida destroçaram os conglomerados sociais, que se baseavam,
tiveram apenas uma existência efêmera, principalm ente porque essencialmente, no equilíbrio instável.
lhes faltou um quadro de funcionários. E a unidade do Império
A desintegração do Império Romano foi, em parte, condi
Carolíngio desintegrou-se quando sua organização de funcio
cionada pela burocratização mesma de seu exército e de seu
nários se desintegrou também. Essa organização, porém, foi
aparato funcional. Essa burocratização só poderia ser efetuada
predom inantemente patrim onial, e não burocrática. De um ponto
realizando-se ao mesmo tempo um método de tributação que
de vista exclusivamente temporal, porém, o Império dos Califas e
pela sua distribuição de ônus estava fadado a levar a um au
seus predecessores no solo asiático durou períodos consideráveis,
mento relativo na im portância de um a economia natural. Os
e sua organização era essencialmente patrim onial e prebendária.
Tam bém o Sacro Império Romano durou um longo tempo fatores individuais desse tipo sempre estão presentes. Tam bém
apesar da ausência quase total de burocracia. Todos esses reinos a “intensidade” das atividades estatais internas e externas desem
penha o seu papel. À parte a relação entre a influência estatal
representavam um a unidade cultural tendo pelo menos aproxi
sobre a cultura e o grau de burocratização, podemos dizer que
m adam ente a mesma força habitualm ente criada pelas estruturas
“norm alm ente” — embora não sem exceção — o vigor de ex
políticas burocráticas.
pandir-se está relacionado diretamente ccm o grau de burocra
O antigo Império Romano desintegrou-se internam ente ape tização. Duas das maiores estruturas políticas, o Império Ro
sar da crescente burocratização, e justam ente durante o desenvol mano e o im pério m undial britânico, se basearam apenas par
vimento m aior da mesma. Isso ocorreu devido à forma pela cialm ente, mas justam ente, em fundamentos burocráticos. O
qual o ônus dos impostos foi distribuído pelo Estado burocrá Estado normando na Inglaterra impôs uma organização rigorosa
tico, favorecendo a economia natural. V istas em relação à à base de um a hierarquia feudal. Em grande parte, recebeu a
intensidade de suas unidades exclusivam ente políticas, as exis sua unidade e seu impulso através da burocratização do tesouro
tências temporais dos impérios dos Califas, dos imperadores caro- real, que, em comparação com outras estruturas políticas do
língios e outros, eram essencialmente instáveis, constituindo-se período feudal, era extremamente rigorosa. M ais tarde, o Es
em conglomerados nominais e coesos. No todo, a capacidade de tado inglês não partilhou da evolução no sentido de burocra
ação política dim inuiu constantemente, e a unidade relativam ente tização, mas continuou sendo um a adm inistração de notáveis.
grande da cu ltu ra fluiu das estruturas eclesiásticas que eram , em T al como na adm inistração republicana de Roma, esse Governo
parte, rigorosamente unificadas e, na Idade M édia ocidental, ti inglês de notáveis foi resultado da ausência relativa de um ca
veram um caráter cada vez mais burocrático. A unidade de ráter continental, bem como de condições prelim inares absoluta
suas culturas resultou, em parte, da homogeneidade profunda mente singulares, que no momento estão desaparecendo. A
de suas estruturas sociais, que por sua vez foi a conseqüência dispensabilidade dos grandes exércitos permanentes, que um Es
e a transformação de sua antiga unidade política. São fenôme tado continental com tendências igualm ente expansivas precisa
nos da padronização tradicional da cultura, que favorece um para as suas fronteiras terrestres, está entre essas condições. Em
equilíbrio instável. Ambos esses fatores constituíram um a base Roma, a burocratização avançou com a transição das fronteiras
tão forte que mesmo tentativas grandiosas de expansão, como costeiras para fronteiras continentais. Quanto ao resto, na es
as Cruzadas, puderam ser em preendidas apesar da ausência de trutura de domínio de Roma, o caráter rigorosamente m ilitar
unidade política intensiva; poderíamos dizer que elas foram rea das autoridades que adm inistravam a justiça — um a forma
lizadas como “empreendimentos privados”. O fracasso das C ru romana desconhecida de qualquer outro povo — compensava a
zadas c seu comportamento político freqüentemente irracional falta de um aparato burocrático com a sua eficiência técnica,5
estão, porém, associados à ausência de um poder estatal unificado sua precisão e unidade de funções adm inistrativas, especialmente
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fora dos lim ites urbanos. A continuidade da administração foi todo o país, e determ inada do alto, não pôde ser evitada devido
protegida pela posição singular do Senado. Em Roma, como aos fatores técnicos e econômicos. Essa regulam entação criou o
na Inglaterra, um pressuposto dessa dispensabilidade da burocra
mecanismo dos escribas e funcionários. U m a vez estabelecido
cia, que não deve ser esquecido, foi o de que as autoridades este mecanismo, ele, mesmo no princípio, encontrou um a se
estatais “m inim izaram ”, cada vez mais, o âmbito de suas funções gunda esfera de ação nas extraordinárias atividades de construção
internas. L im itaram -nas ao que era absolutamente necessário
m ilitarm ente organizadas. Como dissemos antes, a tendência
às “razões de Estado”. burocrática foi principalm ente influenciada pelas necessidades
No início do período moderno, todas as prerrogativas dos oriundas da criação de exércitos permanentes, determ inada pela
Estados continentais acum ularam -se nas mãos dos príncipes que política de poder e pelo desenvolvimento das finanças públicas
mais se em penharam na burocratização adm inistrativa. É evi ligadas ao estabelecimento m ilitar. No Estado moderno, a cres
dente que, tecnicamente, o grande Estado moderno é absoluta cente exigência à adm inistração baseia-se na crescente comple
mente dependente de um a base burocrática. Quanto maior é xidade da civilização e no impulso no sentido da burocratização.
o Estado e principalm ente quanto m ais é, ou tende a ser, um a
Expansões consideráveis, especialmente ultram arinas, foram,
grande potência, tanto mais incondicionalmente isso ocorre.
é claro, adm inistradas por Estados governados pelos notáveis
Os Estadas -Unidos ainda encerram o caráter de um a estru (Rom a, Inglaterra, V en eza), como se tornará evidente no con
tura política que, pelo menos no sentido técnico, ainda não está texto devido. N ão obstante, a “intensidade” da administração,
totalmente burocratizada. M as quanto maiores as áreas de atrito isto é, a transferência de maior número de tarefas possível à
com o exterior e mais urgentes as necessidades de unidade adm i organização do Estado propriamente dita, para o controle e exe
nistrativa internam ente, tanto m ais esse caráter dá lugar, inevi cução contínuos, pouco se desenvolveu entre os grandes Estados
tável e gradualm ente, à estrutura burocrática, formalmente. governados pelos notáveis, especialmente Rom a e Inglaterra, se
A lém disso, a forma parcialm entç não-burocrática da estrutura os comparamos com as estruturas políticas burocráticas.
estatal dos Estados Unidos está m aterialm ente equilibrada pelas Tanto no Governo dos notáveis como nas administrações bu
estruturas m ais rigorosamente burocráticas daquelas formações rocráticas a estrutu ra do poder estatal influiu acentuadamente
que, na verdade, dominam politicamente, ou seja, os partidos sobre a cultura, mas relativam ente pouco na forma de direção
sob a liderança de profissionais ou peritas em organização e e controle pelo Estado. Isto ocorreu desde a justiça até a edu
tática de eleição. A organização crescentemente burocrática de cação. As crescentes exigências à cultura, por sua vez, são de
todos os autênticos partidos de massa constitui o exemplo m ais terminadas, embora em proporções variadas, pela crescente ri
notável do papel que a simples quantidade tem na burocrati queza das camadas m ais influentes no Estado. Quanto a isso, a
zação de um a estrutura social. N a A lem anha, principalm ente, maior burocratização é um a função da maior posse de bens usa
o Partido Social-Democrata, e, fora dela, os partidos “histó dos para consumo, e da técnica mais complexa de m odelar a
ricos” americanos são burocráticos no m aior grau possível. vida exterior — técnica que corresponde às oportunidades propor
cionadas por essa riqueza. Isso influi no padrão de vida e determ i
na um a crescente indispensabilidade subjetiva de um a provisão or
5. M o d if ic a ç õ e s Q u a l it a t iv a s d as T a r e f a s A d m in ist r a t iv a s
ganizada, coletiva, interlocal — e portanto burocrática — das neces
sidades m ais variadas, que anteriormente eram desconhecidas ou
A burocratização é ocasionada m ais pela ampliação intensiva satisfeitas localmente ou por um a economia privada.
e qualitativa e pelo desdobramento interno do âmbito das tarefas
adm inistrativas do que pelo seu aumento extensivo e quantitativo. Entre os fatores exclusivamente políticos, a crescente exi
gência a um a sociedade habituada à pacificação absoluta, por
M as a direção tom ada pela burocratização e as razões que a oca
meio da aplicação da ordem e da proteção ( “polícia”) em todos
sionam variam muito.
os campos, exerce um a influência especialmente perseverante no
No Egito, o mais antigo país de adm inistração estatal buro sentido da burocratização. U m caminho contínuo leva desde as
crática, a regulam entação pública e coletiva das vias fluviais para modificações das lutas sanguíneas, sacerdotalmente, ou por meio
B U R O C R A C I A 249
248 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

de arbitram ento, até a atual posição do policial como o “repre


6. V a n t a g e n s T é c n ic a s d a O r g a n iz a ç ã o Bu r o c r á t ic a
sentante de Deus na T erra”. Os meios antigos atribuíam as
garantias dos direitos e seguranças do indivíduo diretamente aos
A razão decisiva para o progresso da organização burocrática
membros de seu clã, que eram obrigados a ajudá-lo com ju ra
foi sempre a superioridade puramente técnica sobre qualquer
mentos e vingança. Entre outros fatores, as m últiplas tarefas
outra forma de organização. O mecanismo burocrático plena
da cham ada “política de bem-estar social” operam principalmente
mente desenvolvido compara-se às outras organizações exata
no sentido da burocratização, pois essas tarefas são, em parte,
mente da mesma forma pela qual a m áquina se compara aos
atribuídas ao Estado pelos grupos de interesse e, em parte, o
modos não-mecânicos de produção.
Estado as usurpa, devido à sua política de poder ou a motivos
ideológicos. É claro que tais tarefas são, em grande parte, de Precisão, velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos, con
term inadas economicamente. tinuidade, discrição, unidade, subordinação rigorosa, redução do
atrito e dos custos de m aterial e pessoal — são levados ao ponto
Entre os fatores essencialmente técnicos, os meios especifica
ótimo na adm inistração rigorosamente burocrática, especialmente
mente modernos de comunicações participam do quadro como
em sua forma monocrática. Em comparação com todas as formas
responsáveis pelo ritmo da burocratização. As terras e vias flu
colegiadas, honoríficas e avocacionais de adm inistração, a buro
viais públicas, ferrovias, telégrafo, etc., devem, em parte, ser
cracia treinada é superior, em todos esses pontos. E no que se
necessariamente adm inistrados de um a forma pública e coletiva.
relaciona com tarefas complicadas, o trabalho burocrático assala
Em parte, essa adm inistração é tecnicamente conveniente. Sob
riado não só é m ais preciso, mas, em últim a análise, freqüente
esse aspecto, os meios de comunicação contemporâneos desempe
mente m ais barato do que até mesmo o serviço honorífico não-
nham , com freqüência, um papel semelhante ao dos canais da
-rem unerado formalmente.
Mesopotâmia e a regulam entação do N ilo no Oriente antigo.
As proporções em que os meios de comunicação se desenvolve As disposições honoríficas tornam o trabalho adm inistrativo
ram é um a condição de im portância decisiva para a possibilidade um a ocupação subsidiária e, apenas por essa razão, o serviço ho
de adm inistração burocrática, embora não seja a única decisiva. norífico norm alm ente funciona mais devagar, pois está menos
Sem dúvida, no Egito, a centralização burocrática, à base de sujeito aos esquemas e é m ais informe. D aí ser menos preciso
um a economia natural quase pura, jam ais poderia ter chegado ao e menos unificado pelo trabalho burocrático porque depende
grau presente sem a rota comercial natural do Nilo. A fim menos dos superiores e porque a criação e exploração do aparato
de promover a centralização burocrática na Pérsia moderna, os de funcionários subordinados e serviços de arquivo são, quase
funcionários do telégrafo receberam a incumbência de relatar inevitavelm ente, menos econômicas. O serviço honorífico é me
todas as ocorrências nas províncias ao Xá, passando por um a das nos contínuo do que o burocrático e freqüentem ente bem caro.
autoridades locais. A lém disso, todos receberam o direito de Isso ocorre em especial se pensarmos não apenas nos custos
reclam ar diretam ente pelo telégrafo. O moderno Estado ocidental monetários para o tesouro público — custos que a adm inistração
pode ser adm inistrado pela forma atual apenas devido ao con burocrática, em comparação com a adm inistração pelos notáveis,
trole estatal da rede telegráfica, e porque o Estado tem à sua em geral aum enta de forma substancial — mas também nas
disposição os correios e ferrovias. freqüentes perdas econômicas dos governados, provocadas pelas
demoras e falta de exatidão. A possibilidade da adm inistração
As estradas de ferro, por sua vez, estão intim am ente ligadas normal e perm anente pelos notáveis só existe quando a direção
ao desenvolvimento de um tráfico interlocal de mercadorias em funcional pode ser realizada, de modo satisfatório, como ocupação
massa. Esse tráfico é um dos fatores causais da formação do subsidiária. Com o aumento qualitativo das tarefas da adm inis
Estado moderno. Como já dissemos, isto não ocorreu incondi tração, o Governo pelos notáveis chega aos seus lim ites — hoje,
cionalm ente no passado. até mesmo na Inglaterra. O trabalho organizado pelos órgãos
colegiados provoca atrito e demora e exige compromissos entre
interesses e opiniões em conflito. A adm inistração, portanto,
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B U R O C R A C I A 251

sc faz menos precisamente e com m ais independência em relação que se deve às diferenças entre os possíveis princípios pelos quais
aos superiores; daí ser menos unificada e m ais lenta. Todo o as estruturas políticas podem atender às suas exigências.
progresso da organização adm inistrativa prussiana foi, e será no
O segundo elemento mencionado, “regras calculáveis”, tam
futuro, um progresso no sentido do princípio burocrático e, espe
bém e de importancia destacada para a burocracia moderna. A
cialm ente, do princípio monocrático. peculiaridade da cultura moderna, e especificamente de sua base
Hoje, é principalm ente a economia m ercantil capitalista que técnica e econômica, exige essa “calculabilidade” de resultados.
exige que os negócios oficiais da adm inistração sejam feitos com Quando plenamente desenvolvida, a burocracia também se coloca,
precisão, sem am bigüidades, continuamente, e com a maior velo num sentido específico, sob o princípio do sin e ira ac studio.
cidade possível. N ormalmente, as empresas capitalistas moder Sua natureza específica, bem recebida pelo capitalismo, desenvol
nas, m uito grandes, são em si mesmas modelos sem igu al da ve-se m ais perfeitamente na m edida em que a burocracia é “desu-
organização burocrática rigorosa. A adm inistração comercial m anizada”, na m edida em que consegue elim inar dos negócios
baseia-se, em toda parte, cada vez m ais na precisão, constância, oficiais o amor, o ódio, e todos os elementos pessoais, irracionais
e, acim a de tudo, rapidez de operação. Isso, por sua vez, é e emocionais que fogem ao cálculo. É essa a natureza específica
determ inado pela natureza peculiar dos modernos meios dc co da burocracia, louvada como sua virtude especial.
municação, inclusive, entre outras coisas, os serviços noticiosos da
Quanto m ais complicada e especializada se torna a cultura
imprensa. O aumento extraordinário da velocidade pela qual as
moderna, tanto m ais seu aparato de apoio externo exige o perito
comunicações públicas, bem como os fatos econômicos e políticos,
despersonalizado e rigorosamente “objetivo”, em lugar do mestre
são transmitidos, exerce um a pressão constante e aguda no sen
tido de intensificar o ritmo da reação adm inistrativa em relação das velhas estruturas sociais, que era movido pela sim patia e
preferência pessoais, pela graça e gratidão. A burocracia oferece
a várias situações. O ótimo desse tempo de reação só é alcançado
as atitudes exigidas pelo aparato externo da cultura moderna,
norm alm ente através de um a rigorosa organização burocrática. *
na combinação m ais favorável. Em geral, somente a burocracia
A burocratização oferece, acim a de tudo, a possibilidade ótima estabeleceu as bases da adm inistração de um D ireito racional con-
de colocar-se em prática o princípio de especialização das funções ceptualm ente sistematizado, tendo como fundam ento as leis que
adm inistrativas, de acordo com considerações exclusivamente obje o período final do Império Romano criou com grande perfeição
tivas. T arefas individuais são atribuídas a funcionários que têm técnica. D urante a Idade M édia, esse Direito foi recebido, jun
treinamento especializado e que, pela prática constante, aprendem tamente com a burocratização da adm inistração legal, ou seja,
cada vez mais. O cum primento “objetivo” das tarefas significa, com o afastamento dos velhos processos de julgam ento que esta
prim ordialm ente, um cum primento de tarefas segundo regras cal­ vam ligados à tradição ou pressupostos irracionais, pelo perito
culáv eis e “sem relação com pessoas”. racionalm ente treinado e especializado.
“Sem relação com pessoas” é também a palavra de ordem no
“mercado” e, em geral, de todos os empreendimentos onde há
apenas interesses econômicos. U m a execução coerente do domí 7. B u r o c r a c ia e D ir e it o
nio burocrático significa o nivelam ento da “honra estam ental”.
Daí, se o princípio de livre mercado não for lim itado ao mesmo A interpretação “racional” da lei, à base de conceitos rigoro
tempo, significa o domínio universal da “situação de classe”. samente formais, opõe-se ao tipo de adjudicação ligado prim or
Essa conseqüência do domínio burocrático não se estabeleceu por dialm ente às tradições sagradas. O caso à parte, que não pode
toda parte, seguindo paralela à extensão da burocratização, o ser resolvido sem am bigüidades pela tradição, é solucionado pela
“revelação” concreta (oráculo, profecia ou ordálio — isto é, pela
justiça “carism ática”) ou — e apenas esses casos nos interessam
* Não podemos discutir aqui, com detalhes, como o aparato aqui — pelos juízos inform ais prestados em termos de avaliações
burocrático pode produzir, e na realidade produz, obstáculos definidos éticas concretas, ou outras avaliações práticas. É a “justiça do
à realização das tareias, de modo adequado ao caso isolado. C ádi”, como adequadam ente a chamou R. Schm idt. Ou os julga-
252 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA BUROCRACIA 253

mentos formais são feitos não pela suposição de conceitos racionais, foi, em proporções consideráveis, provocada economicamente pelo
mas pelo recurso às “analogias” e dependendo dos “precedentes” interesse dos advogados nos honorários; isso se evidencia clara
concretos e de sua interpretação. É a “justiça em pírica”. mente pela forma por que o rei interveio na luta. M as a
posição de poder dos advogados, que venceram a luta, foi condi
A justiça do Cádi não conhece qualquer julgam ento racional.
cionada pela centralização política. N a A lem anha, principalm ente
Nem a justiça em pírica do tipo puro apresenta quaisquer razões
que possam, em nosso sentido, ser chamadas de racionais. O por motivos políticos, faltava um estamento de nobres social
mente poderoso. N ão havia estamento que, como os advogados
caráter avaliativo concreto da justiça do Cádi pode avançar até
ingleses, pudesse ter sido o defensor de um a adm inistração nacio
o rompimento profético com toda a tradição. A justiça empírica,
nal do Direito, que pudesse ter elevado o Direito nacional ao
por sua vez, pode ser sublim ada e racionalizada num a “tecno
nível de um a tecnologia que regulamentasse o aprendizado, e
logia”. Todas as formas não-burocráticas de domínio evidenciam
que pudesse ter oferecido resistência à intrusão do treinamento,
um a coexistência peculiar: de um lado, há um a esfera de tradi-
tecnicamente superior, dos juristas no Direito Romano.
cionalismo rigoroso, e, do outro, um a esfera de arbitrariedade
livre e de graças senhoriais. Portanto, as combinações e as for O fato de ser o Direito Romano substantivamente melhor
mas de transição entre esses dois princípios são muito freqüentes; ajustado às necessidades do capitalismo emergente não determinou
serão discutidas em outro contexto. a sua vitória no continente europeu. Todas as instituições ju rí
dicas específicas ao capitalismo moderno são estranhas ao Direito
A inda hoje, na Inglaterra, como Mendelssohn demonstrou, Romano e têm origem medieval. Foi decisiva a forma racional
um amplo substrato da justiça é, na realidade, do tipo da justiça do Direito Romano e, acim a de tudo, a necessidade técnica de
do Cádi, em proporções dificilm ente concebíveis no continente colocar o processo de julgam ento nas mãos de peritos racional
europeu. A justiça dos júris alemães, que prescinde das razões mente treinados, o que significava homens treinados nas univer
para o veredicto, freqüentemente funciona na prática da mesma sidades e versados em Direito Romano. Esse preparo era ne
forma que a justiça inglesa. Em geral, temos de precaver-nos cessário devido à crescente complexidade dos casos jurídicos
contra a crença de que os princípios “democráticos” de justiça práticos e da economia cada vez m ais racionalizada que exigia
são idênticos à adjudicação racional” (no sentido da racionali um processo racional de provas, e não um a afirm ação de fatos
dade form al). N a verdade, ocorre o oposto, como mostraremos verdadeiros pela revelação concreta ou garantia sacerdotal, que,
em outro contexto. A adjudicação inglesa e am ericana dos mais decerto, são os meios onipresentes e primevos de prova. Essa
altos tribunais ainda é, em grande parte, em pírica; e especialmen situação legal foi também determ inada, em grande parte, pelas
te é um a adjudicação por precedentes. N a Inglaterra, a razão modificações estruturais na economia. Esse fator, porém, foi
para o fracasso de todos os esforços de um a codificação racional eficaz em toda parte, inclusive na Inglaterra, onde o poder real
da lei, bem como o fracasso de se copiar o Direito Romano, introduziu o processo racional de provas em prol dos comercian
foi devido a um a resistência bem sucedida contra essa racionali tes. As razões predominantes para as diferenças, que ainda
zação, por parte das grandes corporações de advogados, organiza existem, no desenvolvimento do Direito substantivo na Inglaterra
das centralmente. Essas corporações formavam um a cam ada mo e A lem anha não se baseiam nesse fator econômico. Como já
nopolista de notáveis, entre os quais eram escolhidos os juizes é evidente, essas diferenças surgiram da evolução, legalm ente
das altas cortes do reino. Eles conservavam em suas mãos o trei autônoma, das respectivas estruturas de dominação.
namento jurídico, como um a tecnologia em pírica e altam ente N a Inglaterra, a justiça contralizada e o Governo dos notá
desenvolvida, e combatiam com êxito todos os movimentos em veis estiveram associados; na A lem anha, ao mesmo tempo, há
favor do direito racional, que lhes am eaçava a posição social e um a burocratização e um a ausência de centralização política. A
m aterial. T ais movimentos nasceram nos tribunais eclesiásticos Inglaterra, que nos tempos modernos foi o prim eiro, e mais
e, durante algum tempo, também nas universidades. desenvolvido, país capitalista, conservou com isso um a judicatura
A lu ta dos defensores do Direito Consuetudinário contra o menos racional e menos burocrática. O capitalism o na Inglaterra,
D ireito Romano e Eclesiástico e o poder da Igreja em geral porém, poderia harm onizar-se facilmente com essa situação, es-
254 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
B U R O C R A C I A 255

pecialm ente porque a natureza da constituição dos tribunais c do livremente se faz o julgam ento do caso à parte e menos onerado
processo de julgam ento, até o período moderno, representava na é ele pelas regras dentro daquela esfera de sua operação que
verdade um a negativa am pla da justiça aos grupos economica não está acorrentada à tradição sagrada. D urante um a geração
m ente fracos. Esse fato exerceu profunda influência na distri dejx)is da ocupação da T u nísia pelos franceses, por exemplo, uma
buição de terras na Inglaterra, favorecendo a acumulação e imo dificuldade m uito concreta para o capitalismo continuou sendo
o fato de que o tribunal eclesiástico (o Ch ara) decidia em rela
bilização da riqueza agrária. A extensão e as despesas das trans
ferências de propriedades de terras, determ inadas pelos interesses ção às propriedades agrárias pela “livre discrição”, tal como dizem
econômicos dos advogados, também influíram no mesmo sentido. os europeus. Veremos melhor a base sociológica dêsses tipos
m ais velhos de justiça quando discutirmos as estruturas do domí
D urante a época da República, o Direito Romano representou nio em outro contexto.
um a m istura ím par de elementos racionais e empíricos, e mesmo
de elementos de justiça do Cádi. A nomeação de um júri, e É perfeitam ente certo que a “objetividade” e a “perícia” não
são necessariamente idênticas ao domínio das norm as gerais e
as action es in factum do pretor, que a princípio ocorrem indubi
abstratas, N a verdade, isso nem mesmo ooorre no caso da mo
tavelm ente “de um dado caso para outro”, encerravam um ele
derna adm inistração da justiça. Em princípio, a idéia de “uma
mento de justiça do Cádi. O .sistema de bailio da justiça romana
lei sem falhas” é, naturalm ente, contestada com vigor. A con
e tudo o que dele nasceu, inclusive mesmo um a parte da prática
cepção do ju iz moderno como um autômato ao qual são entre
clássica de respostas, pelos juristas, tinham um caráter “em píri
gues os elementos de tal forma que o veredicto saia junto com
co”. A inclinação decisiva do pensamento jurídico no sentido
as razões, lidas mecanicamente em parágrafos codificados —
racional foi preparada, primeiro, pela natureza técnica da ins
esse conceito é rejeitado com irritação, talvez porque um a certa
trução para o processo de julgam ento, às mãos das fórmulas de
editos pretorianos, ligadas às concepções jurídicas. Hoje, sob aproximação com esse tipo está im plícita n um a burocratização
o domínio do princípio da substanciaçáo, a apresentação dos fatos coerente da justiça. No setor do processo de justiça há áreas
nas quais o ju iz burocrático é levado diretam ente a procedim en
é decisiva, não importa de que ponto de vista legal eles possam
tos “individualizantes” pelo legislador.
fazer que a reclamação pareça justificada. U m a compulsão
semelhante, de ressaltar o âmbito dos conceitos sem am bigüida No setor da atividade adm inistrativa propriam ente dita, isto
des e formalmente, está hoje ausente; ela era, porém, provocada é, para todas as atividades estatais que fogem ao setor da cria
pela cultura técnica do Direito Romano, em seu ponto máximo. ção da lei e processo de justiça, estamos habituados a ressaltar
Os fatores técnicos do processo de julgam ento tiveram , assim, a liberdade e predomínio das circunstâncias individuais. As
seu papçl no desenvolvimento da lei racional, fatores que apenas normas gerais são consideradas como tendo principalm ente um
indiretam ente resultaram da estrutura do Estado. A racionaliza papel negativo como barreiras à atividade positiva e “criadora” do
ção do Direito Romano, transformando-se num sistema fechado funcionário, que jam ais deve ser regulam entada. A influência
de conceitos a serem tratados cientificam ente, foi levada à per dessa tese pode ser ignorada aqui. Não obstante, é m uito deci
feição apenas durante o período em que a própria estrutura po siva a afirm ação de que essa adm inistração criadora “livre” (e
lítica sofreu um a burocratização. Essa qualidade racional e sis possivelmente essa ju d icatu ra) não constitui um reino de ação livre,
tem ática distingue o Direito Romano nitidam ente de todo o arbitrária, de mercê, e de preferência e avaliação motivadas
Direito produzido pelo Oriente ou pela Grécia helénica. pessoalm en te, como irem os ver que ocorre entre as formas pré-
As respostas rabínicas do T àlm u d e são um exemplo típico -burocráticas. A norm a e a estim ativa racional de finalidades
de justiça em pírica que não é racional, m as “racionalista”, e “objetivas”, bem como a dedicação a elas, sempre existem como
ao mesmo tempo rigorosamente vinculada pela tradição. Todo norm a de conduta. No campo da adm inistração executiva, espe
veredicto profético é, no fim , pura justiça do Cádi, não-vincula- cialm ente quando a arbitrariedade “criadora” do funcionário é
da pela tradição, e segue o esquem a: “Está esc rito ... mas eu lhe m ais arraigada, a noção especificamente m oderna e rigorosamente
digo”. Quanto m ais fortemente a natureza religiosa da posição “objetiva” das “razões de Estado” é considerada como a estrela-
do Cádi (ou de um ju iz sem elhante) é ressaltada, tanto mais -gu ia suprema e final do comportamento do funcionário.
256 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
b u r o c r a c i a 257

Ê claro que, acima de tudo, os instintos seguros da buro trelas” * do governante “absoluto”. Ou seja, sob as condições de
cracia para as condições de m anutenção de seu poder em seu democracia de massa, a opinião pública é a conduta social nas
proprio Estado (e através dele, em oposição a outros Estados) cida de “sentimentos” irracionais. N orm alm ente, ela é ence
estão inseparavelm ente fundidos com a canonização da idéia nada, ou dirigida, pelos líderes partidários e pela imprensa.
abstrata e “objetiva” das “razões de Estado”. Em últim a análise,
os interesses de poder da burocracia apenas dão um conteúdo
concretamente explorável a esse que não é totalmente sem am 8. A C o n c e n t r a ç ã o d o s M e io s d e A d min ist r a ç ã o
bigüidades; e, nos casos dúbios, os interesses de poder influem
na balança. Não podemos discutir melhor esse aspecto, aqui. A estrutura burocrática vai de mãos dadas com a concentra
O único ponto decisivo para nós é que em princípio um sistema ção dos meios m ateriais de administração nas mãos do senhor.
de “razões” racionalmente debatíveis se oculta atrás de cada ato Essa concentração ocorre, por exemplo, de modo bem conhecido
da adm inistração burocrática, isto é, pela sujeição a normas ou e típico, no desenvolvimento das grandes empresas capitalistas,
pela ponderação de fins e meios. que encontram nesse processo suas características essenciais. Um
A posição de todas as correntes “democráticas”, no sentido processo correspondente ocorre nas organizações públicas.
de correntes que m inim izariam a “autoridade”, é necessariamente O exército dos faraós, dirigido burocraticamente, o exército
am bígua. A “igualdade perante a lei” e a exigência de garantias do período final da república romana e do principado e, acima
legais contra a arbitrariedade requerem um a “objetividade” de de tudo, o exército do moderno Estado m ilitar são caracterizados
adm inistração form al e racional, em oposição à discrição pessoal pelo fato de que seu equipam ento e provisões são fornecidos
mente livre, que vem da “graça” do velho domínio patrim onial. pelos arm azéns do senhor da guerra. Isso contrasta com os
Se, porém, um eth os — para não falarm os de instintos — se exércitos das tribos agrícolas, os cidadãos armados das cidades
apossa das massas sobre qualquer questão individual, ele postula antigas, as m ilícias das prim eiras cidades medievais e todos os
exércitos feudais; para esses, o auto-equipamento e auto-aprovi-
a justiça substan tiv a orientada para algum exemplo e pessoa
sionamento dos que eram obrigados a lutar constituíam a regra
concretas; e esse eth os inevitavelm ente entrará em choque com
normal.
o formalismo e a “objetividade” fria e condicionada a regras da
A guerra de nossa época é um a guerra de m áquinas. E isso
adm inistração burocrática. Por esse motivo, o eth os deve rejeitar
torna os arm azéns tecnicamente necessários, tal como o domínio
emocionalmente o que a razão exige.
da m áquina na indústria promove a concentração dos meios de
As massas sem propriedades, especialmente, não são servidas produção e direção. N o todo, porém, os exércitos burocráticos
por um a “igualdade perante a lei” form al, e um a adjudicação do passado, equipados e abastecidos pelo senhor, surgiram quando
e adm inistração “previsíveis”, tal como o dem andavam os in a evolução social e econômica dim inuiu, de forma absoluta ou
teresses “burgueses”. N aturalm ente, aos seus olhos a justiça e relativa, a cam ada de cidadãos economicamente capazes de se
adm inistração deveriam servir para compensar-lhes as probabili equiparem , de modo que seu número já não era suficiente para
dades de vida, econômicas e sociais, frente às classes proprietá a formação dos exércitos necessários. Foram reduzidos pelo
rias. A justiça e adm inistração só podem ter essa função se menos relativam ente, ou seja, em relação ao âmbito do poder
assum irem um caráter inform al, em proporções de longo alcance. pretendido pela estrutura política. Somente a estrutura do exér
Deve ser inform al porque é substantivam ente “ético” (justiça cito burocrático perm itia o desenvolvimento de poderosos exér
do C ád i). Toda espécie de “justiça popular” — que habitual citos permanentes, necessários para a pacificação constante de
mente não pergunta pelas razões e norm as — bem como toda
espécie de influênéia intensiva sobre a adm inistração pela chamada
opinião publica, cruza com o mesmo vigor o caminho racional # Processo secreto no qual as pessoas cujos interesses são
atingidos têm um a oportunidade inadequada, ou nenhum a oportu
da justiça e adm inistração, e em certas circunstâncias, ainda com nidade, de defender sua posição; o processo é conduzido de form a
m ais vigor, como o pôde fazer o processo da “câm ara das es contrária às norm as habituais. (N. do T .)
17
258 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA B U R O C R A C I A 259

grandes Estados das planícies, bem como para a guerra contra dos meios m ateriais de guerra, e somente a partir da paz de
inim igos distantes, especialmente de ultram ar. Especificamente, T ilsit a concentração dos meios de guerra nas mãos do Estado
a disciplina m ilitar e o treinamento técnico só podem ser normal surgiu de modo definitivo. Somente com essa concentração rea
e plenam ente desenvolvidos, pelo menos em seu moderno alto lizou-se, de modo generalizado, o uso dos uniformes. Antes,
nível, no exército burocrático. eles haviam ficado, em grande parte, à discrição arbitrária do
Historicam ente, a burocratização do exército foi em tôda oficial regim ental, com exceção das categorias individuais de
parte realizada juntam ente com a transferência do serviço do soldados aos quais o rei havia “concedido” certos uniformes,
exército, dos proprietários para os não-proprietários. Enquanto primeiro, em 1620, aos guardas reais, posteriormente, sob Fre
essa transferência não se processou, o serviço m ilitar foi um derico II, repetidamente.
privilégio honorífico dos proprietários. A transferência foi feita Expressões como “regim ento” e “batalhão” habitualmente
para o que nasceu sem propriedades, por exemplo, nos exércitos tiveram sentidos m uito diversos no século XVIII, em relação
dos generais de fins da república e império romanos, bem como aos sentidos que têm hoje. Somente o batalhão era um a unidade
nos exércitos modernos até o século XIX. O ônus do serviço tática (hoje, ambos são ); o “regim ento” era então um a unidade
foi também transferido para os estrangeiros, como nos exércitos adm inistrativa de um a organização econômica estabelecida pela
mercenários de todas as épocas. Esse processo vai, tipicamente, posição do coronel como “empresário”. Aventuras marítim as
de mãos dadas com o aumento geral na cultura m aterial e “oficiais” (como as m aon ae genovesas) e o recrutamento do
intelectual. A razão seguinte também desempenhou seu papel exército foram as prim eiras grandes empresas do capitalismo, de
em toda parte: a crescente densidade da população, e com isso acentuado caráter burocrático. Sob esse aspecto, a “nacionaliza
a intensidade e tensão do trabalho econômico, levam a uma ção” dessas empresas pelo Estado tem seu paralelo moderno na
crescente “indispensabilidade” das cam adas aq u isitiv as6 com fi nacionalização das ferrovias, que foram controladas pelo Estado
nalidades de guerra. Deixando de lado os períodos de fervor desde seu início.
ideológico, as camadas proprietárias da cultura sofisticada, espe D a mesma forma que ocorreu com as organizações militares,
cialm ente da cultura urbana, em geral, são pouco adequadas e a burocratização da administração vai de mãos dadas com a
também estão pouco inclinadas a realizar o árduo trabalho de concentração dos meios de organização em outras esferas. A an
guerra do soldado comum. Em igualdade de condições, as tiga adm inistração pelos sátrapas e regentes, bem como a adm i
cam adas proprietárias do interior estão, pelo menos habitual nistração pelos negociantes de cargos, compradores de cargos, e,
mente, melhor qualificadas e inclinam -se m ais acentuadamente principalm ente, a adm inistração pelos vassalos feudais, descen
a se tornarem oficiais profissionais. Essa diferença entre a pro tralizam os meios m ateriais de adm inistração. A exigência local
priedade • urbana e rural só é equilibrada quando a crescente da província e o custo do exército e dos funcionários subalternos
possibilidade de guerra m ecanizada exige que os líderes sejam eram regularm ente cobertos com adiantamentos sobre a renda
“técnicos”. local, e somente o excedente chegava ao tesouro central. O fun
A burocratização da guerra organizada pode ser realizada na cionário enfeudado realiza a adm inistração à base de seus pró
forma da empresa capitalista privada, tal como qualquer outro prios recursos. O Estado burocrático, porém, coloca tôdas as
problema. N a verdade, o recrutamento de exércitos e sua adm i suas despesas adm inistrativas no orçamento e equipa as auto
nistração pelos capitalistas privados foi a norm a nos exércitos ridades inferiores com os meios correntes de despesa, cujo uso
mercenários, especialmente os do Ocidente, até o século XVIII. o Estado regulam enta e controla. Isso tem o mesmo sentido
D urante a G uerra dos T rin ta Anos, em Brandeburgo o soldado para a “economia” da adm inistração e para a grande empresa
ainda era o proprietário predom inante dos implementos m ateriais capitalista centralizada.
que usava na guerra. Era dono de suas armas, seus cavalos, rou N o campo da pesquisa e instrução científicas, a burocrati
pas, embora o Estado em geral, na função de mercador do zação dos sempre existentes institutos de pesquisa das universi
sistema artesanal, o abastecesse até certo ponto. M ais tarde, no dades é um a função da crescente procura de meios m ateriais de
exército perm anente da Prússia, o chefe de companhia era dono controle. O laboratório de L iebig na U niversidade de Giessen
260 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA b u r o c r a c i a 261

foi o prim eiro exemplo de uma grande empresa nesse campo. forma m ais barata de satisfazer a necessidade de administração
Através da concentração desses meios nas mãos do chefe privi era deixar quase toda a adm inistração local e judicatura inferior
legiado do instituto, a massa de pesquisadores e docentes é se aos senhores de terras da Prússia O riental. O mesmo fato se
parada de seus “meios de produção”, da mesma forma que a apliea à adm inistração dos juizes de paz na Inglaterra. A demo
empresa capitalista separou os trabalhadores dos seus. cracia em massa acaba com os privilégios feudais, patrim oniais
Apesar de sua indubitável superioridade técnica, a burocra e — pelo menos intencionalm ente — plutocráticos na adm inis
cia teve, em toda parte, um desenvolvimento relativam ente tar tração. Inevitavelm ente, coloca o trabalho profissional no lugar
dio. V ários obstáculos contribuíram para isso, e somente sob da adm inistração subsidiária historicamente herdada pelos no
certas condições sociais e políticas eles recuaram definitivamente táveis.
para o segundo plano. Isso não se aplica apenas às estruturas do Estado. Pois não
é por acaso que, em suas organizações, os partidos democráticos
de massa rom peram completamente com o Governo dos notáveis
9. O N iv e l a me n t o d as D if e r e n ç a s So c ia is baseado nas relações pessoais e na consideração pessoal. Não obs
tante, essas estruturas pessoais freqüentemente continuam entre
A organização burocrática chegou habitualm ente no poder os velhos partidos conservadores, bem como entre os velhos par
à base do nivelam ento das diferenças econômicas e sociais. Esse tidos liberais. Os partidos democráticos de massa são burocrati-
nivelam ento foi pelo menos relativo e diz respeito à significação camente organizados sob a liderança dos funcionários partidários,
das diferenças econômicas e sociais para a assunção de funções dos secretários profissionais de partidos e sindicatos etc. N a
adm inistrativas. A lem anha, por exemplo, isto aconteceu no Partido Social-Demo-
A burocracia acompanha inevitavelm ente a moderna dem o­ crático e no movimento de massas agrário; e na Inglaterra, pela
cracia de m assa em contraste com o Governo autônomo demo prim eira vez, na democracia do tipo cau c u s* de Gladstone-
crático das pequenas unidades homogêneas. Isso resulta do prin -Cham berlain, originalm ente organizada em B irm ingham e que
cípio característico da burocracia: a regularidade abstrata da se difundiu a partir da década de 1870. Nos Estados Unidos,
execução da autoridade, que por sua vez resulta da procura de ambos os partidos, desde o Governo Jackson, desenvolveram-se
“igualdade perante a lei” no sentido pessoal e funcional — e, burocraticamente. N a França, porém, as tentativas de organizar
daí, do horror ao “privilégio”, e a rejeição ao tratamento dos partidos políticos disciplinados a base de um sistema de eleição
casos “individualm ente”. Essa regularidade também decorre de que forçasse um a organização burocrática falharam repetida
condições sociais prelim inares da origem das burocracias. A mente. A resistência dos círculos locais de notáveis contra a
adm inistração não-burocrática de qualquer grande estrutura social burocratização dos partidos, inevitável em últim a análise e que
repousa, de certa forma, no fato de que as preferências e clas abrangeria todo o país e lhes romperia a influência, não pôde ser
sificações sociais, m ateriais ou honoríficas existentes estão ligadas superada. Q ualquer progresso das simples técnicas eleitorais,
às funções e deveres adm inistrativos. Isso habitualm ente significa como por exemplo o sistema de eleições proporcionais, que cal
que um a exploração econômica ou “social”, direta ou indireta, cula com números, significa um a organização rigorosa e inter-
de um a posição, que toda atividade adm inistrativa proporciona local dos partidos e, portanto, um domínio crescente da buro
aos seus realizadores, equivale à assunção de funções adm inis cracia e disciplina partidárias, bem como a elim inação dos círculos
trativas. locais de notáveis — isso é válido, pelo menos, para os grandes
Burocratização e democratização dentro da administração Estados.
do Estado, portanto, significam e aum entam os dispêndios em O progresso da burocratização na própria adm inistração es
dinheiro do tesouro público. E isso ocorre apesar do fato de tatal é um fenômeno paralelo da democracia, como se torna
ser a adm inistração burocrática habitualm ente m ais “econômica”,
pelo seu caráter, do que as outras formas de adm inistração. Até
recentemente — pelo menos, do ponto de vista do tesouro — a * V er nota do capítulo IV, pág. 127 (N. do T.).
262 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA BUROCRACIA 263

evidente na França, A m érica do Norte e, agora, na Inglaterra. qüências que, pelo menos em teoria, são ainda m ais agudas.
Decerto devemos lem brar sempre que a expressão “dem ocratiza N a França, a Revolução e ainda m ais o bonapartismo torna
ção” pode ser enganosa. A própria dem os, no sentido de uma ram a burocracia todo-poderosa. N a Igreja Católica, primeiro
massa inarticulada, jam ais “governa” associações maiores; ao invés os poderes feudais, e em seguida todos os poderes independentes
disso é governada, e sua existência apenas modifica a forma pela locais interm ediários, foram eliminados. Isso foi iniciado por
qu al os líderes executivos são selecionados e a m edida de influên Gregório VII e continuou até o Concílio de Trento, o Concílio
cia que a dem os, ou, melhor, que os círculos sociais em seu do V aticano e foi concluído pelos editos de Pio X. A trans
meio podem exercer sobre o conteúdo e direção das atividades formação desses poderes locais em simples funcionários da auto
adm inistrativas, suplementando o que é chamado de “opinião ridade central estava ligada ao aumento constante de significa
pública”. “Democratização”, no sentido aqui pretendido, não ção fatual dos capelães formalmente dependentes, um processo
significa necessariamente um a participação cada vez mais ativa que acim a de tudo se baseava na organização político-partidária
dos governados na autoridade da estrutura social. Isso pode ser do catolicismo. D aí ter esse processo significado um progresso
um resultado da democratização, mas não é necessariamente o da burocracia e, ao mesmo tempo, da “democratização passiva”,
caso. ou seja, o nivelam ento dos governados. A substituição do exér
Devemos recordar expressamente, a esta altura, que o con cito burocrático pelo exército auto-equipado dos notáveis é, em
ceito político de democracia, deduzido dos “direitos iguais” dos toda parte, um processo de democratização “passiva” no sentido
governados, inclui os postuladas seguintes: 1) obstáculos ao de de que todo estabelecimento de um a m onarquia m ilitar absoluta
senvolvimento de um estamento fechado de funcionários, no em lu gar de um Estado feudal ou de um a república de notáveis
interesse de um a acessibilidade universal aos cargos, e 2) m ini- constitui um a democratização passiva. Isso é válido, em princí
mização da autoridade do funcionalismo no interêsse da expan pio, até mesmo para o desenvolvimento do Estado no Egito,
são 7 da esfera de influência da “opinião pública” na m edida apesar de todas as suas peculiaridades. No principado romano,
do possível. D aí, sempre que possível, a democracia política a burocratização da adm inistração provinciana, no setor de coleta
luta para reduzir o período de mandato, pela eleição e cassação, de impostos, por exemplo, cam inham de mãos dadas com a
e não obrigando o candidato a um a especialização. Com isso, elim inação da plutocracia de um a classe capitalista que, sob a
a democracia inevitavelm ente entra em conflito com as tendên república, fora todo-poderosa. O próprio capitalism o antigo foi
cias burocráticas que, pela sua luta contra o Governo dos notá finalm ente elim inado com esse golpe.
veis, ela produziu. A expressão, geralm ente imprecisa, “demo É evidente que quase sempre as condições econômicas têm
cratização” não pode ser usada aqui, na m edida em que é en a sua influência nessa evolução “dem ocratizante”. Com m uita
tendida como a m inim ização da capacidade governativa do fun freqüência encontramos a influência de um a origem economica
cionário público em favor do maior domínio “direto” possível m ente determ inada de classes novas, quer plutocráticas, pequeno-
da dem os, que na prática significa os respectivos líderes parti -burguesas ou proletárias. Essas classes podem cham ar em sua
dários de dem os. O aspecto m ais decisivo no caso é o n iv ela­ ajuda, ou fazer renascer, um poder político, seja de caráter legí
m en to dos gov ern ados em oposição ao grupo dominante e buro- tim o ou cesarista. E podem fazê-lo a fim de alcançar vantagens
craticamente articulado, que por sua vez pode ocupar um a po econômicas ou sociais através da assistência política. Por outro
sição bastante autocrática, tanto de fato como na forma. lado, há casos, igualm ente possíveis e historicam ente documen
N a Rússia, a destruição da posição da velha nobreza agrá tados, nos quais a iniciativa partiu “do alto” e teve natureza
ria através da regulam entação do M jesh tsk itelstv o (ordem hie exclusivam ente política, e alcançou vantagens de constelações po
rárquica) e a infiltração da velha nobreza por um a nobreza fun líticas, especialmente nos assuntos exteriores. Essa liderança ex
cionária foram fenômenos característicos da transição, na evo plorou os antagonismos sociais e econômicos, bem como os in
lução da burocracia. N a C hina, a avaliação da posição social teresses de classe, simplesm ente como um m eio para alcançar seus
e a qualificação para um posto segundo o número de exames objetivos de poder exclusivamente político. Por essa razão, a
prestados significavam algo semelhante, embora tivessem conse autoridade política tirou as classes antagônicas do seu equilíbrio
264 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA b u r o c r a c i a 265

quase sempre instável e chamou à batalha os seus conflitos de Em igualdade das dem ais condições, um a “ação societária”,
interesse latentes. É impossível fazer um a apresentação geral metodicamente ordenada e realizada, é superior a qualquer re
desse aspecto. sistência de “m assa” ou mesmo de “ação com unitária”. E, onde
A s proporções e direção do curso em que se movim entaram a burocratização da adm inistração foi completamente realizada,
as influências econômicas, bem como a natureza pela qual as um a forma de relação de poder se estabelece de modo pratica
relações de poder políticas exercem influência, variam muito. mente inabalável.
N a A ntigüidade helénica, a transição para o combate discipli O burocrata individual não pode esquivar-se ao aparato ao
nado pelos hoplitas e, em Atenas, a crescente importância da qual está atrelado. Em contraste com o notável, que adm inistra
m arinha lançaram as bases para a conquista do poder político ou governa honorificamente ou à m argem , o burocrata profis
pelas cam adas em cujos ombros recaía o ônus m ilitar. Em sional está preso à sua atividade por toda a sua existência m ate
Roma, porém, a mesma evolução só temporária e aparentemente rial e ideal. N a grande m aioria dos casos, ele é apenas um a
abalou o domínio da nobreza funcionária. Embora o moderno engrenagem num mecanismo sempre em movimento, que lhe
exército de massa tenha sido, em toda parte, um meio de romper determ ina um caminho fixo. O funcionário recebe tarefas espe
o poder dos notáveis, em si mesmo ele não serviu, de modo cializadas e norm alm ente o mecanismo não pode ser posto em
algum , como um estímulo para um a democratização ativa, mas movimento ou detido por ele, iniciativa essa que tem de partir
para um a democratização passiva. U m dos fatores disso, porém, do alto. O burocrata individual está, assim, ligado à com uni
foi o fato de que o antigo exército de cidadãos baseava-se eco dade de todos os funcionários integrados no mecanismo. Êles
nomicamente no auto-equipamento, ao passo que o exército mo têm um interesse com um em fazer que o mecanismo continue
derno se baseia no recrutamento burocrático. suas funções e que a autoridade exercida socialmente continue.
O avanço da estrutura burocrática baseia-se na superioridade Os governados, por sua vez, não podem dispensar ou subs
“técnica”. Esse fato leva aqui, como em todo o campo da téc tituir o aparato burocrático da autoridade, quando este começa a
nica, ao seguinte: o progresso foi m ais lento onde as formas existir, pois essa burocracia se baseia no treinamento especializa
estruturais mais velhas estavam tecnicamente bem desenvolvidas do, um a especialização funcional do trabalho e um a atitude fi
e funcionalm ente ajustadas às necessidades existentes. Isso ocor xada para o domínio habitual e virtuoso de funções únicas, e,
reu, por exemplo, na adm inistração dos notáveis na Inglaterra, e não obstante, metodicamente integradas. Se o funcionário deixa
portanto esse país foi o que m ais lentam ente sucumbiu à buro- de trabalhar, ou seu trabalho é interrompido pela força, resulta o
cratização, e na verdade só parcialm ente ela se está processando caos, sendo difícil improvisar substituições entre os governados
ali. O mesmo fenômeno geral existe quando os sistemas alta que são capazes de dom inar tal caos. Isso é válido para a adm i
mente desenvolvidos de fornecimento de gás ou de ferrovias com nistração pública e para a administração econômica privada. Cada
grande capital fixo oferecem obstáculos m ais fortes à eletrificação vez mais, a sorte m aterial das massas depende do funcionamento
do que nas áreas completamente novas nas quais a eletrificação constante e correto das organizações burocráticas do capitalismo
pode ser adotada logo de início. privado. A idéia de elim inar essas organizações torna-se cada
vez m ais utópica.
10. C a r á t er P e r ma n e n t e da M á q u in a Bu r o c r á t ic a A disciplina do funcionalismo refere-se ao grupo de atitudes
do funcionário, de obediência precisa dentro de sua atividade
Quando se estabelece plenamente, a burocracia está entre as h abitual, em organizações públicas ou privadas. Essa disciplina
estruturas sociais m ais difíceis de destruir. A burocracia é o torna-se a base de toda ordem, em proporções cada vez maiores,
meio de transformar um a “ação com unitária” em “ação socie por m aior que seja a im portância prática da adm inistração à
tária” racionalmente ordenada. Portanto, como instrumento de base dos documentos arquivados. A idéia ingênua do bacuni-
“socialização” das relações de poder, a burocracia foi e é um nismo de destruir a base dos “direitos adquiridos” e da “domi
instrum ento de poder de prim eira ordem — para quem controla nação” destruindo os documentos públicos ignora a inclinação
o aparato burocrático. que o homem tem para regras e regulam entos habituais, que
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continua existindo independentemente dos documentos. Toda regularm ente tem, conseqüências econômicas de longo alcance.
reorganização de tropas batidas ou dissolvidas bem como a res M as que espécie de conseqüências? Decerto, em qualquer caso
tauração das ordens adm inistrativas destruídas pela revolta, pâni individual ela depende da distribuição do poder econômico e
co ou outras catástrofes são realizadas com um apelo à orientação social, e especialmente da esfera ocupada pelo mecanismo buro
treinada do cumprimento obediente de tais ordens. Esse cum crático emergente. As conseqüências da burocracia dependem,
primento foi condicionado nos funcionários, de um lado, e, de portanto, da direção que os poderes que usam o aparato lhe
outro, nos governados. Se tal apelo tiver êxito, engrena nova derem. E freqüentemente um a distribuição criptoplutocrática
mente o mecanismo, por assim dizer. do poder resultou disso.
A indispensabilidade objetiva do aparato antes existente, N a Inglaterra, e especialmente nos Estados Unidos, as pes
com seu caráter peculiar, “impessoal”, significa que o mecanis soas que fazem doações aos partidos ficam , regularm ente, por
mo — em contraste com as ordens feudais baseadas na piedade trás das cortinas nas organizações burocráticas partidárias. F inan
pessoal é facilm ente levado a funcionar para qualquer pessoa ciaram os partidos e puderam influir neles, em acentuadas pro
que saiba como conseguir o controle sobre ele. U m sistema porções. As cervejarias na Inglaterra, a cham ada “indústria
de funcionários racionalmente ordenado continua a operar regu pesada”, e na A lem anha a L iga Hanseática com seus fundos de
larm ente, depois de ocupada a área pelo inim igo, que necessitará votação são bem conhecidas como contribuintes dos partidos
simplesmente de m udar os altos funcionários. Esse quadro con políticos. Nos tempos modernos, a burocratização e o nivela
tinua a funcionar porque é de interesse vital para todos os inte mento social dentro das organizações políticas, e particularm ente
ressados, inclusive, e acim a de tudo, o inim igo. dentro das organizações estatais, em conexão com a destruição
dos privilégios feudais e locais, beneficiaram freqüentemente os
D urante o curso dos longos anos em que esteve no poder,
interesses do capitalismo. Com freqüência, a burocratização se
Bism arck colocou seus colegas m inisteriais num a incondicional
realizou em aliança direta com os interesses capitalistas, por
dependência burocrática elim inando todos os estadistas indepen
exemplo, a grande aliança histórica do poder do príncipe abso
dentes. A o se afastar, viu com surpresa que eles continuavam a
d irigir seus departamentos sem preocupação e sem se abalarem, luto com os interesses capitalistas. Em geral, o nivelamento
legal e a destruição de estruturas locais firm em ente estabelecidas,
como se Bism arck não tivesse sido o orientador e criador dessas
pelos notáveis, habitualm ente contribuíram para um maior âmbito
criaturas, mas coirio se apenas algum a figu ra tivesse sido trocada
da atividade capitalista. Não obstante, podemos esperar, como
na m áquina burocrática. Com todas as modifieações de senhores
um efeito da burocratização, um a estrutura política que atenda
na França, desde a época do Prim eiro Império, a m áquina do
ao interesse pequeno-burguês num a “subsistência” tradicional asse
poder continuou essencialmente, a mesma. Essa m áquina faz
gurada, ou mesmo um a estrutura política estatal socialista que
“revolução” no sentido da criação, pela força de formações total
mente novas de autoridade, tecnicamente cada vez mais impos sufoque as oportunidades de lucro privado. Isso ocorreu em vá
síveis, especialmente quando o aparato controla os modernos rios casos de im portância histórica e de longo alcance, especifi
camente durante a A ntigüidade; devemos esperar que venha a
meios de comunicação (telégrafo etc.) e também em virtude
constituir, indubitavelm ente, um a evolução posterior. T alvez
de sua estrutura interna racionalizada. De modo clássico, a
venha a ocorrer na A lem anha.
França demonstrou como esse processo substituiu as revoluções
por golpes de Estado: todas as transformações bem sucedidas na Os efeitos m uito diferentes das organizações políticas que
França equivaleram a golpes de Estado. foram, pelo menos em princípio, bastante semelhantes — no
Egito dos faraós e nos períodos helénico e romano — mostram
as significações econômicas muito diferentes da burocratização
11. C o n s e q ü ê n c ia s E c o n ô m ic a s e S o c ia is d a B u r o c r a c ia possíveis de acordo com a direção de outros fatores. A simples
existência da organização burocrática não nos revela sem am
É claro que a organização burocrática de um a estrutura so bigüidades a direção concreta de seus efeitos econômicos que
cial, e especialmente de um a estrutura política, pode ter, e estão sempre presentes de algum a forma. Pelo menos não nos
268 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA B U R O C R A C I A 269

revela tanto quanto possível sobre o seu efeito relativam ente “indispensabilidade” sempre crescente do funcionalismo, que cres
nivelador, socialmente. Sob esse aspecto, devemos lembrar que ceu aos milhões, não é m ais decisiva para esta questão do que
a burocracia como tal é um instrumento de precisão que se a opinião de alguns representantes do movimento proletário de
pode colocar à disposição de interesses de domínio m uito varia que a indispensabilidade econômica dos proletários é decisiva
dos — exclusivamente políticos, bem como exclusivamente eco para a m edida de sua posição de poder social e político. Se a
nômicos, ou de qualquer outro tipo. Portanto, a m edida do seu “indispensabilidade” fosse decisiva, então onde predominasse o
paralelismo com a democratização não deve ser exagerada, por trabalho escravo e onde os homens livres habitualm ente abomi
m ais típica que seja. Em certas condições, as camadas dos se nassem o trabalho como um a desonra, os escravos “indispensá
nhores feudais também colocaram a burocracia a seu serviço. veis” deveriam ter ocupado as posições de poder, pois eram pelo
H á tambem a possibilidade —. e com freqüência isto tornou-se menos tão indispensáveis quanto os funcionários e proletários de
realidade, como por exemplo no principado romano e em certas hoje. Não se pode decidir a priori por essas razões, se o poder
formas de estruturas estatais absolutistas — de que um a buro da burocracia como tal aumenta. A interferência de grupos de
cratização da adm inistração esteja deliberadamente ligada ao interesse econômico, ou outros peritos não-funcionários, ou a
regim e estam ental, ou esteja combinada com eles pela força dos interferência de representantes leigos não-especializados, o esta
agrupamentos de poder social existentes. A reserva expressa de belecimento de órgãos parlam entares locais, interlocais ou centrais,
cargos para certos estamentos é m uito freqüente, e as reservas ou outros órgãos representativos, ou de associações ocupacionais —
reais ainda são m ais freqüentes. A democratização da sociedade esses elementos parecem pesar diretamente contra a tendência
em sua totalidade, e no sentido m odern o da palavra, seja prática burocrática. Até que ponto é real essa aparência, será discutido
ou talvez meramente formal, é um a base especialmente favo em outro capítulo, e não nesta análise puram ente formal e
rável para a burocratização, m as de forma algum a a única pos tipológica. Em geral, somente podemos dizer aqui o seguinte:
sível. A final de contas, a burocracia luta simplesmente para Em condições normais, a posição de poder de um a burocra
nivelar os poderes que ficam em seu caminho e nas áreas que, cia plenamente desenvolvida é sempre predominante. O “senhor
no caso individual, ela busca ocupar. Devemos lembrar este fato político” encontra-se na posição do “diletante” que se opõe ao
— que encontramos várias vezes e que teremos de discutir “perito”, enfrentando o funcionário treinado que se coloca dentro
repetidam ente: que “democracia” como tal se opõe ao “Governo” da direção da adm inistração. Isso é válido, quer o “senhor” no
da burocracia, apesar e talvez devido à sua promoção da burocra qual a burocracia serve seja um “povo” equipado com as armas
tização inevitável, mas não-intencional. Sob certas condições, a da “iniciativa legislativa”, o “referendo”, e o direito de afastar
democracia cria rompimentos óbvios e bloqueios à organização funcionários, ou um parlam ento eleito em base mais aristocrática
burocratica. Portanto, em todo caso histórico individual devemos ou m ais “democrática” e equipado com o direito de votar a
observar em que direção especial a burocratização se desenvolveu.
falta de confiança, ou com a autoridade real de votá-la. É válido
quer o senhor seja um órgão aristocrático, colegiado, baseado
legal ou praticam ente no auto-recrutamento, quer seja um pre
12. A P o s i ç ã o de Poder da B u r o c r a c ia
sidente eleito pelo povo, um monarca hereditário e “absoluto”
Em toda parte, o Estado moderno está sofrendo a burocra ou “constitucional”.
tização. M as se o poder da burocracia dentro da estrutura po
lítica está crescendo universalm ente é um a questão que deve T oda burocracia busca aum entar a superioridade dos que
continuar aberta. são profissionalmente informados, mantendo secretos seu conhe
O fato de que a organização burocrática seja tecnicamente cimento e intenções. A administração burocrática tende sempre a
o meio de poder m ais altam ente desenvolvido nas mãos do ser um a adm inistração de “sessões secretas” : na medida em que
homem que o controla não determ ina o peso que a burocracia, pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica. As autoridades
como tal, é capaz de ter em um a estrutura social particular. A eclesiásticas prussianas ameaçam agora usar medidas disciplina-
270 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA BUROCRACIA 271

rcs contra os pastores que fazem reprim endas ou admoestações tente do que qualquer outro chefe político. Todos os desdenhosos
de forma acessível a terceiros. Fazem -no porque o pastor, ao decretos de Frederico, o Grande, relativos à “abolição da servi
divulgar essas críticas, é “culpado” de facilitar um a possível crí dão” foram frustrados, por assim dizer, no curso de sua realiza
tica às autoridades eclesiásticas. Os funcionários do tesouro do ção, porque o mecanismo oficial simplesmente os ignorou como
X á da Pérsia fizeram um a doutrina secreta da sua arte orça se fossem idéias ocasionais de um diletante. Quando um rei
m entária e usam mesmo a escrita secreta. As estatísticas oficiais constitucional concorda com um a parte socialmente importante
da Prússia, em geral, só divulgam aquilo que nenhum prejuízo dos governados, freqüentemente exerce m aior influência sôbre o
pode trazer às intenções da burocracia poderosa. A tendência curso da adm inistração do que o monarca absoluto. O rei cons
para o segredo em certos setores administrativos segue sua na titucional pode controlar esses peritos melhor, devido ao que
tureza m aterial: em toda parte que os interesses de poder da é, pelo menos relativam ente, o caráter público da crítica, ao
estrutura de domínio para com o exterior estão em jogo, seja passo que o monarca absoluto depende, para a sua informação,
êle um concorrente econômico de um a empresa privada, ou um exclusivamente da burocracia. O tzar russo do antigo regim e
Estado estrangeiro, potencialmente hostil, encontramos o segredo. raram ente podia adotar de forma permanente um a m edida que
Para que tenha êxito, a adm inistração da diplomacia só pode desagradasse à sua burocracia e prejudicasse os interesses dos
ser controlada em proporções muito lim itadas. A administração burocratas. Seus departamentos ministeriais, colocados direta
m ilitar deve insistir no disfarce de suas m edidas mais impor mente sob sua orientação, como o autocrata, representavam um
tantes; com a crescente significação dos aspectos puramente téc conglomerado de satrapias, como observou acertadamente Leroy-
nicos, tudo isso se acentua. Os partidos políticos não procedem -Beaulieu. Essas satrapias lutavam constantemente entre si com
de modo diferente, apesar de toda a publicidade ostensiva dos todos os meios da intriga pessoal, e, especialmente, bombardea
congressos católicos e das convenções partidárias. Com a crescen vam-se com volumosos “m em oriais”, ante os quais o monarca,
te burocratização das organizações partidárias, esse segredo pre como diletante, via-se impotente.
dom inará ainda mais. A política comercial na A lem anha, por Com a transição para o Governo constitucional, a concentra
exemplo, provoca a ocultação das estatísticas de produção. Toda ção do poder da burocracia central num chefe tornou-se inevi
postura de combate de um a estrutura social para com o exterior tável. O funcionalism o foi colocado sob um chefe monocrático,
tende a fortalecer a posição do grupo no poder. o prim eiro-m inistro, através de cujas mãos tudo tinha de passar,
O interesse da burocracia no poder, porém, é muito mais antes de chegar ao monarca. Isso colocava o rei, em grande
eficaz além das áreas em que os interesses puramente funcionais parte, sob a tutela do chefe da burocracia. G uilherm e II, em
determ inam o sigilo. O conceito do “segredo oficial” é invenção seu conhecido conflito com Bismarck, combateu esse princípio,
específica da burocracia, e nada é tão fanaticam ente definido mas teve de recuar sem demora. Sob o domínio do conheci
pela burocracia quanto essa atitude que não pode ser substan mento especializado, a influência prática do monarca só pode
cialm ente defendida além dessas áreas especificamente qualifica conseguir firm eza através de um a comunicação contínua com os
das. Ao enfrentar o parlamento, a burocracia, baseada apenas chefes burocráticos; esse relacionamento deve ser planejado me
num seguro instinto de poder, luta contra qualquer tentativa que todicamente e dirigido pelo chefe da burocracia.
ele faça para conseguir o conhecimento por meio de seus pró Ao mesmo tempo, o constitucionalismo prende a burocracia
prios peritos ou por meio dos grupos de interesse. O chamado e o governante a um a comunidade de interesses contra os dese
direito de investigação parlam entar é um dos meios pelos quais jos dos chefes partidários de obter poder nos órgãos parlam enta
o parlam ento busca tal conhecimento. A burocracia natu ral res. E, se não puder encontrar apoio no parlam ento, o monarca
mente vê com agrado um parlam ento m al informado e, daí, constitucional é impotente contra a burocracia. A deserção dos
impotente — pelo menos na m edida em que a ignorância esteja “Grandes do Reich”, os ministros prussianos e os altos funcio
de algum a forma de acordo com os interesses da burocracia. nários do Reich em novembro de 1918, colocou o monarca apro
O monarca absoluto é impotente contra o conhecimento xim adam ente na mesma situação existente no Estado feudal em
superior do perito burocrático — num certo sentido, mais impo 1056. Isso, porém, foi um a exceção, pois, no todo, o poder do
272 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA B U R O C R A C I A 273

monarca, em oposição aos funcionários burocráticos, é muito sabilidade do conhecimento especializado, ocorre tipicamente que
m ais forte do que era em qualquer Estado feudal ou no Estado o senhor já não se satisfaz com a consulta ocasional a pessoas
patrim onial “estereotipado”. Isso devido à presença constante de sua confiança pessoal, ou mesmo a um a assembléia dessas
de aspirantes à promoção, com os quais o monarca pode facil pessoas, convocada interm itentem ente e em situações difíceis. O
mente substituir funcionários inconvenientes e independentes. senhor começa a cercar-se de órgãos colegiados que deliberam e
Em igualdade das dem ais circunstâncias, somente os fun resolvem em sessão contínua. # O R äte von H au s a u s 9 é um
cionários economicamente independentes, ou seja, funcionários fenômeno transitório característico nessa evolução.
que pertençam às cam adas proprietárias, podem perm itir-se arris A posição desses órgãos colegiados varia, naturalm ente, se
car a perda de seus cargos. Hoje, como sempre, o recrutamento
gundo a situação que alcançam , como a m ais autoridade adm i
dos funcionários entre as cam adas não-proprietárias aum enta o nistrativa ou como autoridade central e monocrática, ou em
poder dos governantes. Somente funcionários que pertencem a
posição de igualdade com várias dessas autoridades. A lém disso,
um a cam ada socialmente influente, que o monarca julgue que
muito depende de seu procedimento. Quando o tipo colegiado
deve levar em conta como mantenedores pessoais, como o cham a
está plenamente desenvolvido, esses órgãos, em princípio ou fic-
do Kan alrebellen na P rú ssia,8 podem paralisar de forma per ticiamente, reúnem-se com o governante, e todas as questões im
manente e completa a substância de sua vontade. portantes são exam inadas de vários pontos de vista nos trabalhos
Somente o conhecimento especializado dos grupos de inte dos respectivos peritos e seus assistentes, e pelos votos dos outros
resse econômico privado no campo das “empresas” é superior ao membros. A questão é então solucionada por um a resolução,
conhecimento especializado da burocracia. Isso acontece porque que o governante sancionará ou rejeitará através de um edito.
o conhecimento exato dos fatos em seu campo é vital para a Esse tipo de órgão colegiado é a forma típica pela qual um
existência econômica dos homens de negócios. Os erros nas governante, que é, cada vez mais, um “diletante”, explora ao
estatísticas oficiais não têm conseqüências econômicas diretas para mesmo tempo o conhecimento especializado e — o que freqüen
o funcionário culpado, mas erros no cálculo de um a empresa temente passa despercebido — busca enfraquecer o peso esm aga
capitalista são pagos com prejuízos, e talvez mesmo com a exis dor do conhecimento especializado e m anter sua posição domi
tência da empresa. O “segredo” como meio de poder é, afinal nante frente aos peritos. M antém um perito sob a observação dos
de contas, oculto com m ais segurança nos livros de um em pre outros e através de m edidas canhestras procura obter um a visão
sário do que nos arquivos das autoridades públicas. Somente global, bem como a certeza de que ninguém o pressiona a tomar
por essa razão as autoridades são m antidas dentro de barreiras decisões arbitrárias. Com freqüência o príncipe espera asse
estreitas quando buscam influenciar a vida econômica na época gurar-se um m áxim o de influência pessoal, menos com a presi
capitalista. M uito freqüentemente, as medidas do Estado no dência pessoal dos órgãos colegiados do que pelo estudo dos
setor do capitalism o tomam cursos imprevistos e não-pretendidos, memorandos escritos que m anda prepararem. Frederico G ui
ou são tornados ilusórios graças aos conhecimentos especializados lherme I da Prússia exerceu realm ente um a influência considerá
dos grupos de interesses. vel sobre a adm inistração, mas quase nunca comparecia às ses
sões, organizadas colegiadamente, dos ministros do Gabinete!
Tom ava suas decisões sobre as exposições escritas por meio de
13. E s t á g i o s no D e se n v o l v ime n t o d a B u r o c r a c ia
comentários ou editos m arginais. Essas decisões eram com uni
cadas aos ministros pelo Feld jaeger do Cabin ett, depois de con
Cada vez mais, o conhecimento especializado do perito sulta com os servidores pertencentes ao gabinete, e ligados pes
torna-se a base da posição de poder do ocupante do cargo. D aí
soalmente ao rei.
a prim eira preocupação do governante ter sido como explorar
o conhecimento especial dos peritos sem ter de abdicar em seu
favor, mas preservar sua posição dominante. Com a extensão • Conseil d ’Etat, P riv y Council, G eneraldirektorium , Cabinett,
qualitativa das tarefas adm inistrativas e, com isso, a indispen- Divã, Tsung-li Yamen. W ai-w u pu, etc.
18
274 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA B U R O C R A C I A 275

O ódio dos departamentos burocráticos volta-se contra o g a Estado moderno e cujo núcleo não é formado por funcionários
binete, tal como a desconfiança dos súditos se volta contra os ou ex-funcionários. Esses órgãos colegiados devem também ser
burocratas, no caso de fracasso. O gabinete da Rússia, bem como distinguidos sociologicamente das juntas de controle encontradas
o da Prússia e outros Estados, transformou-se assim num a forta nas estruturas burocráticas da moderna economia privada (em
leza pessoal na qual o governante, por assim dizer, se refugiava presas econôm icas). Essa distinção deve ser feita a despeito do
frente ao conhecimento especializado e à rotinização impessoal e fato de que tais órgãos corporados freqüentemente se completam
funcional da administração. com a admissão de notáveis vindos de círculos desinteressados,
Pelo princípio colegiado, o governante tenta, ainda mais, trazidos pelo seu conhecimento especializado ou com o objetivo
criar um a especie de síntese de especialistas, transformando-os de serem explorados em finalidades de representação e publici
n um a unidade coletiva. Seu êxito em alcançar tal objetivo não dade. N orm alm ente, tais órgãos não reúnem pessoas de conheci
pode ser verificado em geral. O fenómeno em si, porém, é mento muito especializado, mas os representantes decisivos dos
comum a formas de Estado m uito diferentes, desde a patrim o grupos de interesse econômico mais destacados, especialmente os
n ial e feudal até as formas burocráticas iniciais, e é especialmente credores bancários da empresa — e esses homens não têm um a
típica do inicio do absolutismo. O princípio colegiado mostrou-se posição simplesmente consultiva. Têm , pelo menos, um a voz
um dos m ais fortes meios educativos para a “objetividade” na controladora e com freqüência ocupam um a posição dominante.
adm inistração. Tam bém possibilitou a interferência de pessoas Devem ser comparados (não sem algum a distorção) com as as
privadas socialmente influentes e, com isso, a combinação da sembléias dos grandes detentores independentes dos feudos e
autoridade dos notáveis e o conhecimento prático dos empresá cargos e outros grupos de interesse socialmente poderoso, de
rios privados com a perícia especializada dos burocratas profis estruturas políticas patrim oniais ou feudais. Ocasionalmente,
sionais. Os órgãos colegiados foram um a das prim eiras institui porém, foram os precursores dos “conselheiros” que surgiram
ções a perm itir o desenvolvimento do moderno conceito de em conseqüência da maior intensidade da administração. E,
“autoridades públicas”, no sentido de estruturas duradouras, in ainda m ais freqüentemente, foram os precursores de corporações
dependentes da pessoa. estamentais legalm ente privilegiadas.

Enquanto o conhecimento especializado dos negócios adm i Com grande regularidade, o princípio burocrático colegiado
nistrativos foi o produto exclusivo de um a longa prática em pírica, foi transferido da autoridade central para as m ais variadas auto
ridades inferiores. Dentro de unidades localmente fechadas, e
e as normas adm inistrativas não foram regulamentos, mas ele
especialmente dentro de unidades urbanas, a adm inistração cole
mentos da tradição, o conselho dos an ciãos — com freqüência
giada é a forma original do Governo dos notáveis, como indica
constituído, tipicamente, de sacerdotes, “estadistas mais velhos” e
mos no início desta análise. O riginalm ente, ela funcionava atra
notáveis — foi a forma adequada para as autoridades colegiadas, vés de “conselheiros”, órgãos colegiados de “magistrados”, de-
que de início m eram ente faziam sugestões ao governante. Mas
curiões e “jurados”, eleitos, e mais tarde habitualm ente, ou pelo
quando sua existência se prolongou, ante a m udança de gover menos em parte, através desses mesmos elementos, escolhidos
nantes, eles com freqüência usurparam o poder real. O Senado entre si. T ais órgãos são um elemento norm al do “Governo
Romanos e o Conselho V eneziano, bem como o A reópago atenien autônomo” organizado, ou seja, a direção dos assuntos adm inis
se até a sua queda e substituição pelo Governo dos dem agogos, trativos pelos grupos de interesse locais, sob o controle das auto
agiram desse modo. Devemos, é claro, distinguir claramente ridades burocráticas do Estado. Os exemplos acim a mencionados
essas autoridades dos órgãos corporados aqui discutidos. do Conselho V eneziano e ainda m ais do Senado Romano re
Apesar das numerosas transições, os órgãos colegiados, como presentam transferências do Governo dos notáveis para os gran
tipo, surgem à base da especialização racional de funções e o des impérios ultram arinos. N ormalmente, tal Governo tem suas
domínio do conhecimento especializado. Por outro lado, devem raízes nas associações políticas locais. Dentro do Estado buro
ser distinguidos dos órgãos consultivos selecionados entre os crático, a adm inistração colegiada desaparece tão logo o pro
círculos privados e in teressados, encontrados freqüentemente no gresso nos meios de comunicação e as crescentes exigências téc
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nicas da adm inistração necessitam decisões rápidas e sem am bi prerrogativas soberanas e o criador de “normas jurídicas”, das
güidades, e tão logo os motivos dominantes para a plena buro- “autorizações” pessoais dos indivíduos. Essas formas conceptuais
cratização e monocracia, que discutimos acima, passam a pri estão, necessariamente, distantes da natureza das estruturas da
meiro plano. A adm inistração colegiada desaparece quando, do autoridade pré-burocrática, e especialmente das estruturas patri
ponto de vista dos interesses do governante, um a liderança adm i moniais e feudais. Essa separação conceptual entre o privado e
nistrativa rigorosamente unificada parece ser m ais importante o público foi concebida e realizada, prim eiram ente, nas comu
do que a minuciosidade no preparo das decisões adm inistrativas. nidades urbanas, pois tão logo os ocupantes dos postos eram
É o que ocorre tão logo as instituições parlam entares se desen determinados pelas eleições periódicas, o detentor individual do
volvem e — habitualm ente ao mesmo tempo — aum entam a poder, mesmo que ocupasse a mais alta posição, evidentemente
crítica do exterior e a publicidade. já não era igual ao homem que possuía autoridade “por sua
Nessas condições modernas, o sistema totalmente racionali própria conta”. N ão obstante, coube à total despersonalização
zado de ministros e prefeitos departam entais, como na França, da direção adm inistrativa pela burocracia, e à sistematização ra
oferece oportunidades significativas de colocar as velhas formas cional do Direito, realizar a separação entre o público e o
em segundo plano. Provavelmente o sistema é suplementado privado, cabalmente e em princípio.
pela participação dos grupos de interesse, como órgãos consul
tivos recrutados dentre as cam adas econômica e socialmente mais
influentes. Essa prática, que mencionei acima, é cada vez mais 14. A “ R a c io n a liz a ç ã o ” d a E ducação e T r e in a m e n to

freqüente, e gradualm ente bem poderá ser ordenada de modo


mais formal. Não podemos analisar aqui os efeitos culturais gerais e de
longo alcance que o progresso da estrutura burocrática racional
Este últim o aspecto busca, especialmente, colocar a experiên de domínio, como tal, provoca independentemente das áreas de
cia concreta dos grupos de interesse a serviço de um a adm inis que se apossa. N aturalm ente, a burocracia promove um modo
tração racional de funcionários especializados. Ela será, sem de vida “racionalista”, mas o conceito de racionalismo possibilita
dúvida, importante no futuro, e aum enta o poder da burocracia. um a am pla variedade de contextos. Geralmente, podemos dizer
Sabe-se que Bism arck procurou realizar o plano de um “conselho apenas que a burocratização de todo o domínio promove, de
econômico nacional” como um a forma de poder contra o P arla forma m uito intensa, o desenvolvimento de um a “objetividade
mento. Bism arck, que jam ais teria dado ao Reichstag o direito racional” e do tipo de personalidade do perito profissional. Isto
de investigação no sentido do Parlam ento britânico, censurou a tem ramificações de longo alcance, mas somente um elemento
m aioria, que rejeitou a sua proposta, dizendo que no interesse importante do processo pode ser indicado aq u i: seu efeito sobre
do poder parlam entar a m aioria buscou evitar que o funcionalis a natureza do treinam ento e educação.
mo se tornasse “demasiado prudente”. A discussão da posição As instituições educacionais do continente europeu, especial
dos grupas de interesse organizados, dentro da administração, mente as de instrução superior — as universidades, bem como as
que pode estar no fim, não pertence a este contexto. academias técnicas, escolas de comércio, ginásios e outras escolas
Somente com a burocratização do Estado e do Direito em de ensino médio — são dominadas e influenciadas pela necessi
geral, vemos um a possibilidade definida de separar, clara e con- dade de tipo de “educação” que produz um sistema de exames
ceptualm ente, um a ordem jurídica “objetiva” dos “direitos subje especiais e a especialização que é, cada vez mais, indispensável
tivos” do indivíduo, que ela garan te; de separar o Direito “P ú à burocracia moderna.
blico” do Direito “Privado”. O primeiro regulam enta as inter- O “exame especial”, no sentido presente, foi e ainda é en
-relações das autoridades públicas e suas relações com os “súdi contrado também fora das estruturas burocráticas propriamente
tos”; o Direito Privado regulam enta as relações dos indivíduos ditas; assim, hoje ele é observado nas profissões “livres” da
governados entre si. Essa separação conceptual pressupõe a se M edicina e do D ireito e nos comércios organizados como guil-
paração conceptual do “Estado”, como um portador abstrato de das. Os exames de conhecimentos não são fenômenos indispen-
278 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA B U R O C R A C I A 279

sáveis nem concomitantes de burocratização. As burocracias -requisito para a igualdade de nascimento, um a qualificação para
francesa, inglesa e am ericana abriram mão, há muito tempo, um canonicato e para o cargo estatal.
desses exames, totalmente ou em grande parte, pois o treina O desenvolvimento do diploma universitário, das escolas de
mento e serviço nas organizações partidárias os substituíram. comércio e engenharia, e o clamor universal pela criação dos
A “democracia” também toma uma posição ambivalente fren certificados educacionais em todos os campos levam à formação
te aos exames especializados, tal como frente a todos os fenô de um a cam ada privilegiada nos escritórios e repartições. Esses
menos da burocracia — embora a democracia, em si, promova certificados apoiam as pretensões de seus portadores, de interm a-
tal situação. Exames especiais, por sua vez, significam ou pa trimônios com fam ílias notáveis (nos escritórios comerciais, as pes
recem significar uma “seleção” dos que se qualificam , de todas soas esperam naturalm ente a preferência em relação à filha do
as cam adas sociais, ao invés de um Governo de notáveis. Mas, chefe), as pretensões de serem adm itidas em círculos que se
por outro lado, a democracia teme que o sistema de mérito e guem “códigos de honra”, pretensões de remuneração “respeitá
títulos resulte num a “casta” privilegiada. Daí, lutar ela contra vel” ao invés da remuneração pelo trabalho realizado, pretensões
o sistema de exames especiais. de progresso garantido e pensões na velhice e, acim a de tudo,
pretensões de monopolizar cargos social e economicamente van
O exame especial encontra-se até mesmo nas épocas pré-
tajosos. Quando ouvimos, de todos os lados, a exigência de uma
-burocráticas ou semiburocráticas. N a verdade, o centro regular
adoção de currículos regulares e exames especiais, a razão disso
e mais antigo dos exames especiais são as formas de dominação
é, decerto, não um a “sede de educação” surgida subitamente, mas
organizadas em prebendas. A esperança da prebenda, primeiro
o desejo de restringir a oferta dessas posições e sua monopoli
das prebendas da Igreja — como no Oriente islâmico e na Idade
zação pelos donos dos títulos educacionais. Hoje, o “exame”
M édia ocidental — e depois, como ocorreu especialmente na
é o meio universal desse monopólio e, portanto, os exames avan
C hina, as prebendas seculares, são os prêmios típicos pelos quais
çam irresistivelm ente. Como a educação necessária à aquisição
as pessoas estudam e são exam inadas. Os exames, porém, na
do título exige despesas consideráveis e um período de espera
verdade só têm um caráter parcialm ente especializado.
de remuneração plena, essa luta significa um recuo para o ta
O desenvolvimento moderno da plena burocratização coloca lento (carism a) em favor da riqueza, pois os custos “intelec
em prim eiro plano, irresistivelm ente, o sistema de exames ra tuais” dos certificados de educação são sempre baixos, e com
cionais, especializados. A reform a do serviço público importa, o crescente volume desses certificados os custos intelectuais não
gradualm ente, o treinamento especializado para os Estados U n i aum entam , mas decrescem.
dos. Em todos os outros países, esse sistema também progride, A exigência de um estilo de vida cavalheiresco n a antiga
partindo de seu berço principal, a A lem anha. A crescente buro qualificação feudal n a A lem anha é substituída pela necessidade
cratização da adm inistração fortalece a im portância do exame de participar em sua presente forma rudim entar, tal como repre
especializado na Inglaterra. N a C hina, a tentativa de substituir sentada pelos grupos duelistas nas universidades que também dis
a burocracia sem ipatrim onial e antiga por um a burocracia mo tribuem os diplomas. Nos países anglo-saxões, os clubes atlé
derna trouxe o exame especializado; tomou o lugar de um ticos e sociais realizam essa mesma função. A burocracia, por
sistema de exames antigo e estruturado de forma muito diferente. sua vez, luta em toda parte por um “direito ao cargo”, pela
A burocratização do capitalismo, com sua exigência de técnicos, adoção de um processo disciplinar regular e pela elim inação
funcionários, preparados com especialização, etc., generalizou o da autoridade totalm ente arbitrária do “chefe” sobre o funcio
sistema de exames por todo o mundo. A cim a de tudo, a evolu nário, o seu progresso ordenado e a provisão pela velhice. Nisso,
ção é muito estim ulada pelo prestígio social dos títulos educa a burocracia é apoiada pelo sentimento “democrático” dos go
cionais, adquiridos através desses exames. É ainda mais o caso vernados, que exige a m inim ização do domínio. Os partidários
qqando o título educacional é usado com vantagem econôrnÂta. dessa posição consideram-se capazes de discernir um enfraqueci
Hoje, os diplomas são o que o teste dos ancestrais fo:i no pas mento das prerrogativas do senhor, em qualquer enfraquecimento
sado, pelo menos onde a nobreza continuou poderosa: um pré- do poder arbitrário do senhor sobre os funcionários. Sob esse
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B U R O C R A C I A 281

aspecto, a burocracia, tanto nos escritórios comerciais quanto cializado. A capacidade m ilitar, teológica e jurídica era, decerto,
no serviço público, é a base de um a evolução especialmente praticada com intensidade; mas o centro de gravidade na edu
estam ental, já desenvolvida de forma bem diferente pelos ocupan cação helénica, na m edieval, bem como na chinesa, estava nos
tes de cargos no passado. Já mencionamos que essas características elementos educacionais totalmente diferentes do que era “útil”
estam entais são habitualm ente também exploradas, e que pela na especialidade de cada qual.
sua natureza contribuem para a utilidade técnica da burocracia Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do siste
na realização de suas tarefas específicas. m a educacional, a luta dos “especialistas” contra o tipo mais
antigo de “homem culto” se oculta em algum aspecto decisivo.
A “democracia” reage precisamente contra o inevitável cará Essa luta é determ inada pela expansão irresistível da burocra-
ter estamental da burocracia. A democracia procura substituir tização de todas as relações públicas e privadas de autoridade
a nomeação de funcionários pela eleição para curtos mandatos; e pela crescente im portância dos peritos e do conhecimento espe
procura substituir um processo regulam entado de disciplina pela cializado. Essa luta está presente em todas as questões culturais
substituição de funcionários pela eleição. Assim, a democracia íntim as.
procura substituir a disposição arbitrária do “senhor” hierarquica
mente superior pela autoridade, igualm ente arbitrária, dos gover D urante o seu progresso, a organização burocrática teve de
nados e dos chefes políticos que os dominam . superar os obstáculos essencialmente negativos que obstruíram
o processo de nivelam ento necessário à burocracia. A lém disso,
O prestígio social baseado na vantagem da educação e trei as estruturas adm inistrativas baseadas em princípios diferentes
namento especiais não é, de forma algum a, específico à burocra cruzam-se com as organizações burocráticas. Como estas foram
cia. Ao contrário! M as o prestígio educacional em outras es exam inadas acim a, somente alguns prin cípios estruturais especial
truturas de domínio repousa substancialmente em bases diferentes. mente importantes serão examinados aqui, rapidam ente, e de
Usando palavras que se assemelham a slogan s; podemos di forma sim plificada. Seríam os afastados, e m uito, de nosso campo,
zer que o “homem culto”, e não o “especialista”, tem sido o se fossemos discutir todos os tipos existentes na prática. Vamos
objetivo visado pela educação e formou a base da consideração proceder form ulando as seguintes perguntas:
social em vários sistemas, como as estruturas de domínio feudal, 1. A té que ponto as estruturas adm inistrativas estão sujeitas
teocrática e patrim onial: na adm inistração inglesa dos notáveis, à determ inação econômica? Ou até que ponto as oportunidades
na velha burocracia patrim onial chinesa, bem como sob o domínio de desenvolvimento são criadas por outras circunstâncias, por
dos demagogos na cham ada democracia helénica. exemplo, as exclusivam ente políticas? Ou, finalm ente, até que
A expressão “homem culto” é usada aqui num sentido com ponto é a evolução determ inada por um a lógica “autônoma”,
pletamente neutro em relação ao valor; é compreendida como que é exclusivam ente da estrutura técnica como tal?
significando apenas que a m eta da educação consiste na qu ali 2. Indagarem os se esses princípios estruturais, por sua vez,
dade da posição do homem na vida, que foi con siderada “culta”, liberam ou não efeitos econômicos específicos, e, se assim fôr,
e não num preparo especializado para ser um perito. A perso quais. A o fazê-lo, temos de, naturalm ente, observar desde o
nalidade “culta” era o ideal educacional, marcado pela estrutura início as transações superpostas de todos esses princípios orgâni
do domínio e pela condição social para a participação na cam ada cos. Seus tipos “puros”, afinal de contas, devem ser considera
dom inante. T al educação visava a um tipo cavalheiresco ou a dos simplesmente como casos m arginais, especialmente valiosos
um tipo ascético; ou, a um tipo literário, como na C hina; um e indispensáveis à análise. As realidades históricas, que quase
tipo de ginasta-hum anista, como na H élade; ou visava à forma sempre surgem em formas mistas, se movim entam entre esses
convencional do gen tlem an , como no caso do cavaleiro anglo- tipos puros.
-saxão. A qualificação da cam ada dominante, como tal, basea
va-se na posse de um a qualidade “m ais” cultural (no sentido A estrutura burocrática é, em toda parte, produto de um
desenvolvimento tardio. Quanto mais recuamos sobre nossos pró
absolutamente variável, neutro em relação ao valor, em que
usamos aqui a expressão), e não num conhecimento “m ais” espe prios passos, tanto m ais típica se torna a ausência de burocracia e
282 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

funcionalismo na estrutura de domínio. A burocracia tem um


caráter “racional”: regras, meios, fins e objetivos dominam sua
posição. Em toda parte a sua origem e sua divisão tiveram, até
agora, resultados “revolucionários”, num sentido especial, que
ainda não foi discutido. É a mesma influência que o avanço
do racion alism o teve em geral. A marcha da burocracia destruiu IX. A Sociologia da Autoridade Carism ática
as estruturas de domínio que não tinham caráter racional, no
sentido especial da palavra. D aí podermos indagar: Que estru
turas eram essas? *
1. O Car át e r G er al do C a r isma

e st r u t u r a s burocráticas e patriarcais são antagônicas sob


muitos aspectos e, não obstante, têm em comum um a peculia
ridade m uito im portante: permanência. Sob esse aspecto, são
ambas instituições de rotina diária. O poder patriarcal, espe
cialm ente, tem raízes no atendimento das necessidades freqüen
tes e normais da vida cotidiana. A autoridade patriarcal tem,
assim, a sua origem na economia, ou seja, nos ramos da econo
m ia que podem ser satisfeitos por meio de um a rotina normal.
O patriarca é o “líder natural” da rotina cotidiana. E, sob
esse aspecto, a estrutura burocrática é apenas a contra-imagem
do patriarcalism o, transposta para a racionalidade. Como estru
tura permanente com um sistema de regras racionais, a burocra
cia é m odelada de forma a atender as necessidades previstas e
repetidas por meio de um a rotina normal.
O atendim ento de todas as necessidades que vão além da
rotina diária teve em princípio um a base totalm ente hetero
gênea, ou seja, carism ática; quanto mais recuamos na História,
tanto mais verificamos ser esse o caso. Isto significa que os líde
res “naturais” — em épocas de dificuldades psíquicas, físicas,
econômicas, éticas, religiosas ou políticas — não foram os ocupan
tes de cargos nem os titulares de um a “ocupação” no sentido
atual da palavra, isto é, homens que adquiriram um conheci
mento especializado e que servem em troco de um a rem unera
# Nos capítulos seguintes ao presente, em W irtschaft u n d G esell ção. Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de
s c h a ft, W eber discute o patriarcalism o, patrimonialismo, feudalismo dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados
e autoridade carismática. O capítulo IX do presente volume apre
senta um a breve exposição sobre a autoridade carismática. P ara como sobrenaturais, não acessíveis a todos. O conceito de “ca-
com entários sobre os outros conceitos, ver o fim do capítulo XI.
P ara a form a pela qual W eber analisa um a burocracia específica em
têrm os de princípios estruturais intercruzados, ver o capítulo XVII. W irtsch a ft und G esellschaft, parte III, capítulo 9, pp. 753-7.
284 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A SO CIO LO G IA DA AU TO RID AD E C A R IS M Á T IC A 285

rism a” é usado aqui num sentido completamente neutro em tituições permanentes como nossos “departamentos” burocráticos,
relação aos valores. independentes das pessoas e do carism a exclusivam ente pessoal.
A capacidade do herói da cultura irlandesa, Cuchulain, ou O carisma só conhece a determinação interna e a contenção
do A quiles homérico de manifestar um frenesi heróico é um interna. O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e
ataque maníaco, tal como o do guerreiro árabe que morde seu exige obediência e um séquito em virtude de sua missão. Seu
escudo como um cão louco — mordendo todos até que esgote êxito é determ inado pela capacidade de consegui-los. Sua pre
sua sede de sangue. D urante muito tempo afirmou-se que o tensão carism ática entra em colapso quando sua missão não é
ataque daquele guerreiro é produzido artificialm ente por um reconhecida por aqueles que, na sua opinião, deveriam segui-lo.
envenenamento agudo. Em Bizâncio, várias “feras louras”, incli Se o aceitam, ele é o senhor deles — enquanto souber como m an
nadas a tais ataques, eram conservadas, tal como antigam ente ter essa aceitação, “provando-se”. Mas não obtém seu “direito”
os elefantes de guerra, como indivíduos especialmente perversos por vontade dos seguidores, como num a eleição”, mas acontece
a este ataque. O êxtase do xam ã está ligado à epilepsia consti o inverso: é o dev er daqueles a quem dirige sua missão reco
tucional, que representa um a qualificação carismática. Por isso, nhecê-lo como seu líder carismaticamente qualificado.
nenhum deles é “edificante” para a nossa m entalidade. São tão N a teoria chinesa, as prerrogativas do im perador são fixadas
pouco edificantes para nós quanto o tipo de “revelação”, por na dependência do reconhecimento do povo. Isto, porém, não
exemplo, do Livro Sagrado dos Mórmons, que, pelo menos do significa o reconhecimento da soberania pelo povo, tal como não
ponto de vista avaliativo, talvez devesse ser chamado de “farsa”. o significava a necessidade que tinha o profeta de reconhecimento
M as a Sociologia não se ocupa dessas questões. Para a fé de seus pelos crentes, na com unidade cristã inicial. A teoria chinesa
seguidores, o chefe dos mórmons provou ter qualidades carism á caracteriza, antes, a natureza carism ática da posição do m on arca,
ticas, tal como os “heróis” e “feiticeiros”. Todos eles praticaram que depende de sua qualificação pessoal e de seu valor prov ado.
suas artes e governaram em virtude desse dom (carism a) e, O carism a pode ser, e decerto regularm ente é, qualitativa
quando a idéia de Deus já havia sido concebida com clareza, mente particularizado. T rata-se m ais de um a questão interna do
em virtude da missão divina encerrada no dom. Isso se aplica que externa, e resulta na barreira qualitativa da missão e poder
a médicos e profetas, tal como juizes e chefes militares, ou aos do portador do carism a. Em sentido e conteúdo, a missão pode
chefes das grandes expedições de caça. estar d irigida a um grupo de homens que são delim itados local
Devemos a Rudolf Sohm ter ressaltado a peculiaridade so mente, etnicam ente, socialmente, politicamente, ocupacionalmente
ciológica desta categoria de estrutura de domínio para um caso ou de algum a outra forma. Se a missão dirige-se assim a um
historicamente especial, ou seja, o desenvolvimento histórico da grupo lim itado de homens, como é comum, encontra seus lim ites
autoridade da Igreja cristã em seus primórdios. Sohm realizou dentro desse círculo.
essa tarefa com coerência lógica e daí, necessariamente, ter sido Em sua subestrutura econômica, como em tudo o mais, o
unilateral de um ponto de vista rigorosamente histórico. Em domínio carismático é o oposto mesmo do domínio burocrático.
princípio, porém, esse mesmo estado de coisas se repete univer Se este depende de um a renda regular, e daí, pelo menos a
salmente, em bcra com freqüência se desenvolva mais clara potiori, de um a economia monetária e tributos em dinheiro, o
mente no setor da religião. carisma vive neste m undo, embora não seja deste mundo. Isso
Em contraste com qualquer tipo de organização burocrática, deve ser bem compreendido. Freqüentem ente, o carisma, deli
a estrutura carismática desconhece um a forma ou um processo beradamente, abstém-se da posse de dinheiro e de renda pecunia-
ordenado de nomeação ou demissão. Ignora qualquer “carreira”, ria per se, como São Francisco e muitos semelhantes e ele; mas
“progresso”, “salário” regulares, ou o treinamento especializado tal não é, decerto, a regra. Até mesmo um pirata genial pode
e regulam entar do portador do carism a ou de seus auxiliares. exercer um domínio “carismático”, no sentido isento de valor em
Não conhece - qualquer agência de controle ou recurso, bailios que usamos aqui a palavra. Os heróis políticos carismáticos
locais ou jurisdição funcionais exclusivas; nem abarca as ins buscam o saque e, acim a de tudo, o ouro. M as o carisma, e isso
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é decisivo, sempre rejeita como indigno qualquer lucro pecuniá carismáticos de origem artística representam “independentes sem
rio que seja metódico e racional. Em geral, o carisma rejeita emprego rem unerado” (n a linguagem cotidiana, pessoas que
todo comportamento econômico racional. vivem de rendas). Normalmente, tais pessoas são as melhores
qualificadas para seguir um líder carismático. Isso é tão logi
O acentuado contraste entre o carism a e qualquer estrutura
camente coerente quanto o voto de pobreza do frade medieval,
“patriarcal” que se alicerça na base ordenada da “casa” está nesta
rejeição da conduta econômica racional. Em sua forma “pura”, que exigia o oposto mesmo.
o carism a jam ais é fonte de lucro privado para seus possuido
res, no sentido de exploração econômica através de um a tran
2. B a se s e In st a b i l i d a d e da A u t o r id ad e C a r ismá t ic a
sação. N em é um a fonte de renda na forma de compensação
pecuniária, e também raram ente envolve um a tributação orde
Pela sua natureza mesma, a existência da autoridade caris
nada para as necessidades m ateriais de sua missão. Se esta é
mática é especificamente instável. O portador pode perder seu
de paz, os patronos individuais proporcionam os meios neces
carisma, pode sentir-se “esquecido pelo seu Deus”, tal como
sários às estruturas carism áticas; ou aqueles a quem o carisma é
Jesus na C ruz. Pode parecer aos seus seguidores que “a virtude
dirigido proporcionam dons honoríficos, doações ou outras con
o abandonou”. É então que sua missão se extingue, e a espe
tribuições voluntárias. No caso dos heróis guerreiros carism á
rança aguarda e procura um novo portador do carisma. O líder
ticos, a pilhagem representa um a das finalidades, bem como os
carismático é então abandonado pelos seus seguidores, porém
meios m ateriais da missão. O carisma “puro” é contrário a
(somente) porque o carism a puro não conhece outra “legitim i
todo o domínio patriarcal (no sentido da expressão aqui usa
dade” a não ser a advinda da força pessoal, ou seja, a que está
d a). É o oposto de toda economia ordenada. É a força mesma
sendo constantemente submetida à prova. O herói carismático
que ignora a economia. Isso também é válido, na verdade pre
não deduz a sua autoridade de códigos e estatutos, como ocorre
cisamente, quando o líder carismático se empenha na aquisição
com a jurisdição do cargo; nem deduz sua autoridade do cos
de bens, como ocorre com o herói guerreiro carismático. O
tume tradicional ou dos votos feudais de fé, como no caso do
carisma pode fazer isso porque, pela sua natureza mesma, não
poder patrim onial.
é um a estrutura “institucional” e perm anente, mas, quando seu
tipo é “puro”, é o oposto mesmo do institucionalm ente per O líder carismático ganha e mantém a autoridade exclusi
m anente. vamente provando sua força na vida. Se quer ser profeta, deve
realizar m ilagres; se quer ser senhor da guerra, deve realizar
Para fazer justiça à sua missão, os portadores do carisma, feitos heróicos. A cim a de tudo, porém, sua missão divina deve
o mestre bem como seus discípulos e seguidores, devem m an ser “provada”, fazendo que todos os que se entregam fielmente
ter-se distantes dos laços deste mundo, distantes das ocupações a ele se saiam bem. Se isso não acontecer, ele evidentem ente
rotineiras, bem como distantes das obrigações rotineiras da vida não será o mestre enviado pelos deuses.
de fam ília. Os estatutos da ordem dos jesuítas impedem a acei
tação de cargos na Igreja; os membros da ordem estão proibi Esse sentido m uito sério do carisma autêntico coloca-se, evi
dos de possuir bens, ou, segundo a regra original de São F ran dentemente, em contraste radical com as pretensões cômodas dos
cisco, a ordem como tal é proibida de ter posses. O sacerdote governantes do momento a um “direito divino dos reis”, com
e o cavaleiro de uma ordem têm de viver no celibato, e num e sua referência à vontade “inescrutável” do Senhor, “perante a
rosos portadores de um carism a profético ou artístico são, na quem , somente, o monarca é responsável”. O governante au
realidade, solteiros. Tudo isso indica a separação inevitável tenticamente carismático é responsável precisamente perante
deste m undo a que são levados os que partilham do carisma. aquêles aos quais governa. É responsável apenas par um a coisa,
Sob tais aspectos, as suas condições econômicas podem ter um que ele pessoalmente e realm ente seja o senhor desejado por
aspecto aparentem ente antagônico, dependendo do tipo de ca Deus.
rism a — artístico ou religioso, por exemplo — e o modo de D urante estas últim as décadas, vimos como o monarca chi
vida que flui do seu significado. Os modernos movimentos nês promove seu próprio impedimento perante todo o povo,
288 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A SOCIOLOGIA DA AUTORIDADE CARISMÁTICA 289

devido aos seus pecados e ineficiências, se sua administração ções rigorosamente concretas c individuais que, porém, preten
não consegue afastar certas dificuldades dos governados, sejam dem validade absoluta. É então que ocorre a “justiça do C ádi”,
inundações ou guerras malogradas. Assim se comporta um no sentido proverbial — e não histórico — da frase. Em sua
governante cujo poder, mesmo em vestígios e teoricamente, é situação histórica real, a jurisdição do Cádi islâmico está, decer
verdadeiram ente carismático. E mesmo se esta penitência apa to, lim itada pela tradição sagrada e, com freqüência, é um a
zigu a os deuses, o imperador carismático enfrenta a derrubada interpretação altam ente formalista.
e a morte, que muito freqüentemente são realizadas como um Somente quando esses instrumentos intelectuais falham , a
um sacrifício propiciatório. jurisdição se eleva a um ato individual sem peias, válido para o
A tese de M ang-tse (M êncio) de que a voz do povo é a caso particular; será, então, realmente válido. A justiça real
“voz de Deus” (de acordo com ele, a ún ica forma pela qual mente carism ática sempre age desse modo. Em sua forma pura,
Deus fa la !) tem um significado m uito específico: se o povo ela é o oposto polar dos laços formais e tradicionais e é tão
deixa de reconhecer o governante, este deve tornar-se um cida livre ante a venerabilidade da tradição quanto ante quaisquer
dão privado, segundo recomenda expressamente a tese; e, se deduções racionalistas de conceitos abstratos.
ele então desejar ser algum a coisa mais, torna-se um usurpador Não é este o contexto para discutir como a referência ao
que merece castigo. O estado de coisas que corresponde a essas aequm et bonurn na adm inistração rom ana da justiça e o signi
frases, que parecem altam ente revolucionárias, surge em con ficado original da palavra inglesa equity * se relacionam com
dições m uito prim itivas, sem qualquer paíh os. O caráter ca a justiça carism ática em geral e com a justiça do Cádi, teocrá-
rismático existe em quase todas as autoridades prim itivas, com tica, do islamismo, em p articu lar.1 Tanto o aequ m et bon um
a exceção do poder doméstico no sentido mais lim itado, e o como a equity são em parte os produtos de um a administração
chefe é, com freqüência, simplesmente abandonado se o êxito da justiça fortemente racionalizada e em parte o produto de
não lhe permanece fiel. concepções abstratas do direito natural. Em qualquer caso, o
Os súditos podem prestar um “reconhecimento” mais ativo ex bon a fid e encerra um a referência aos "m o re i' da vida eco
ou passivo à missão pessoal do mestre carismático. Seu poder nômica e com isso conserva tão pouco de um a justiça autêntica
baseia-se nesse reconhecimento puram ente fatual e nasce da irracional quanto, por exemplo, os juizes alemães de “livre
dedicação fiel. É a devoção ao extraordinário e inaudito, ao que discrição”.
é estranho a toda regra e tradição e que, portanto, é considerado Q ualquer tipo de ordálio como meio de prova é, certamente,
como divino. É um a dedicação nascida da dificuldade e do en um derivativo da justiça carismática. M as o ordálio substitui
tusiasmo. . a autoridade pessoal do portador do carism a por um mecanismo
O domínio carismático autêntico não conhece, portanto, os de regras para a verificação formal da vontade divina. Isto
códigos jurídicos abstratos e os estatutos e nenhum modo “for se enquadra na esfera da “rotinização” do carisma, de que nos
m al” de adjudicação. Sua lei “objetiva” em ana concretamente ocuparemos m ais adiante.
da experiência altam ente pessoal da graça celestial e da força
divina do herói. A dominação carism ática significa um a rejei
ção de todos os laços com qualquer ordem externa, em favor 3. R e in a d o C a r i sm á t ic o
da glorificação exclusiva da m entalidade genuína do profeta e
herói. D aí, sua atitude ser revolucionária e transpor todos os N a evolução do carism a político, o reinado representa um
valores; faz que um soberano rom pa todas as normas tradicio caso particularm ente importante no desenvolvimento da legiti-
nais ou racionais: “Está escrito, mas eu vos digo”.
A forma especificamente carism ática de solucionar dispu * Sistem a extraordinário de justiça para su p erar ou evitar al
tas é a revelação do profeta, através de um oráculo, ou pelo arbi guns dos im pedim entos à justiça, provocados pela form alidade rígida
tramento “salomônico” por um sábio qualificado carismatica- e lim itações dos outros processos judiciais, e que era m inistrado pelo
mente. Esse arbitramento é determ inado por meio de avalia Lorde Chanceler. (N. do T.)
19
290 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A SOCIOLOGIA DA AUTORIDADE CARISMÁTICA 2 91

mação carism ática das instituições. O rei é em toda parte prin rais, em especial as secas e epidemias, um feiticeiro carismático
cipalm ente um senhor da guerra, e o reinado é a conseqüência pode ter um poder essencialmente semelhante. É um senhor
do heroísmo carismático. sacerdotal. O carism a do senhor da guerra pode ou não ser
instável em sua natureza, dependendo de se ter ele provado, ou
N a forma evidenciada na história dos povos civilizados, o não, e de haver, ou não, necessidade de um senhor da guerra.
reinado não é a m ais antiga forma evolucionária do domínio
Torna-se um a figu ra permanente quando a guerra se torna um a
“político”. Por domínio “político” entendemos um poder que
situação crônica. É um a simples questão terminológica se dese
ultrapassa a autoridade doméstica e que é, em princípio, dis jamos perm itir que o reinado, e com ele o Estado, só come
tinto dela. É distinto porque, em prim eiro lugar, não é dedicado cem quando os estrangeiros são filiados e integrados na comu
à liderança da luta pacífica do homem com a natureza; é, antes, nidade como súditos. Para as nossas finalidades, será conve
dedicado à liderança do conflito violento de um a comunidade niente continuar delim itando a palavra “Estado” com maior
hum ana com outra. exatidão.
Os predecessores do reinado eram os detentores de todos A existência do senhor da guerra como figura regular cer
os poderes carismáticos que asseguravam um remédio contra as tamente não depende de um domínio .tribal sobre súditos de
dificuldades extraordinárias, externas e internas, ou assegura
outras tribos ou sobre escravos individuais. Sua existência de
vam o êxito de empresas extraordinárias. O chefe, na História pende exclusivam ente de um estado de guerra crônico e de
antiga, o predecessor do rei, é ainda um a figura dupla. É o um a organização global estruturada para a guerra. Por outro
chefe patriarcal da fam ília ou clã e ao mesmo tempo o chefe lado, o desenvolvimento do reinado num a adm inistração real
carismático da caça e guerra, o feiticeiro, o provedor de chuvas, regular só aparece na fase em que os seguidores dos guerreiros
o curandeiro — e, assim, o sacerdote e o médico — e, final profissionais reais dominam as massas trabalhadoras ou pagan
mente, o árbitro. Com freqüência, embora nem sempre, essas tes; pelo menos, isso ocorre freqüentemente. A sujeição, pela
funções carismáticas estão divididas em outros tantos portadores força, de tribos estrangeiras, porém, não é um elo absolutamente
especiais do carisma. Freqüentem ente, o chefe da caça e da indispensável nesta evolução. A estratificação interna de classe
guerra está ao lado do chefe da paz, que tem funções essen pode provocar a mesma diferenciação social: o séquito carism á
cialm ente econômicas. Em contraste com este, o chefe da guerra tico dos guerreiros se transforma num a casta dominante. Mas,
adquire seu carisma provando seu heroísmo a um séquito volun em todos os casos, o poder real e os grupos que nele têm
tário, em incursões bem sucedidas que levam à vitória e ao saque. interesses — ou seja, o séquito do senhor da guerra — lutam
A té mesmo as inscrições reais assírias enum eram os saques da pela legitim idade tão logo o domínio se torna estável. Anseiam
caça e dos cedros do Líbano — arrastados para serem usados por um a característica que defina o governante carismaticam ente
nas construções — juntam ente com números sobre os inim igos q u alificad o .2
abatidos e o tamanho das m uralhas das cidades conquistadas,
que são cobertas com peles arrancadas dos inimigos.
A posição carism ática (entre os prim itivos) é, assim, ad
quirida sem relação com a posição nos clãs ou comunidades
domésticas e sem qualquer espécie de regras. Esse dualismo
do carism a e da rotina cotidiana encontra-se freqüentemente
entre os índios americanos, por exemplo, entre a Confederação
Iroquesa, bem como na Á frica e outros lugares.
Quando a guerra e a caça pesada estão ausentes, o chefe
carismático — o “senhor da guerra”, como desejamos chamá-lo,
em contraste com o chefe da paz — também está ausente. N a
paz, especialmente quando são freqüentes as calam idades natu
O SIG N IF IC A D O DA D IS C IP L IN A 293

um príncipe à sua frente — só podem m anter sua vigilância


e superioridade sobre seus súditos por meio de um a disci
plina m uito rigorosa. Essa disciplina é imposta dentro do
próprio grupo, pois a obediência cega dos súditos só pode ser
garantida pelo seu treinamento exclusivamente para a submis
X. O Significado d a Disciplina são, sob um código disciplinar. Somente mediante a disciplina
se converte a conservação do prestígio estamental e a estereoti-
pação de seu modo peculiar de viver em algo que foi consciente
r em grande parte e racionalmente desejado. Esse fator afeta
todas as culturas de algum a forma influenciadas por comuni
E d e s t i n o d o c a r i s m a , sempre que chega às instituições perm a dades desse tipo; não discutiremos aqui esses efeitos. U m herói
nentes de um a comunidade, dar lugar aos poderes da tradição carismático pode fazer uso da djsciplina da mesma forma, e
ou da socialização racional. Esse desaparecimento do carisma na verdade terá de fazê-lo se desejar continuar expandindo sua
indica, geralm ente, a decrescente importância da ação individual. esfera de domínio. Assim, Napoleão criou um a organização
E de todas as forças que dim inuem a importância da ação in disciplinar rigorosa para a França, que continua em vigor até
dividual a mais irresistível é a disciplin a racional. hoje.
A força da disciplina não só elim ina o carisma pessoal como A disciplina em geral, como seu ramo m ais racional, a bu
também a organização baseada na honra estam ental; pelo menos rocracia, é impessoal. Infalivelm ente neutra, ela se coloca à
um de seus resultados é a transferm ação racional da estrutura disposição de qualquer força que pretenda seus serviços e saiba
estamental. como promovê-los. Isso não impede a burocracia de ser intrin
O conteúdo da disciplina é apenas a execução da ordem secamente alheia e oposta ao carisma, bem como às honras, es
recebida, coerentemente racionalizada, metodicamente treinada, pecialmente as do tipo feudal. O guerreiro com ataques m a
e exata, na qual toda crítica pessoal é incondicionalmente eli níacos de fúria e o cavaleiro feudal que mede a espada com
m inada e o agente se torna um mecanismo preparado exclu um adversário igu al, a fim , de conseguir honras pessoais, são
sivamente para a realização da ordem. A lém disso, tal compor igualm ente estranhos à disciplina. O guerreiro é estranho por
tamento em relação às ordens é uniforme. Sua qualidade como que sua ação é irracional;» o cavaleiro porque à sua atitude
ação com unal de um a organização de m assa condiciona os efei subjetiva falta espírito prático. Em lugar do êxtase heróico ou
tos específicos dessa uniform idade. Os que obedecem não são da piedade individual, do entusiasmo ou dedicação a um líder,
necessariamente um a massa que obedece simultaneamente, ou como pessoa, do culto da “honra” ou do exercício da habilidade
particularm ente grande, nem estão necessariamente unidos num a pessoal como uma “arte” — a disciplina coloca o hábito à habili
localidade específica. Para a disciplina, é decisivo que a obe dade rotineira. N a m edida em que a disciplina apela para os
diência de um a pluralidade de homens seja racionalmente un i motivos firm es de um caráter “ético”, pressupõe um “senso de
forme. dever” e “consciência”. ( “Homem de Consciência” versus “H o
A disciplina, como tal, certamente não é hostil ao carisma mem de H onra”, na expressão de Crom well.)
ou à honra estamental. Pelo contrário, os estamentos que pro As massas estão uniformemente condicionadas e treinadas
curam governar grandes territórios ou grandes organizações — para a disciplina a fim de que seu ótimo, no poder de ataque
os conselheiros aristocráticos venezianos, os espartanos, os je físico e psíquico, possa ser calculado racionalmente. O entu
suítas no Paraguai, ou um moderno quadro de oficiais com siasmo e a dedicação sem reservas podem, decerto, ter um lugar
n a disciplina; toda conduta moderna da guerra pesa com fre
“Legitim idade”, W irtsch a ft und G esellschaft, parte III, ca qüência m ais do que qualquer outra coisa, os elementos “mo
pitulo 5, pp. 642-9. rais” da resistência dc um soldado. A liderança m ilitar usa,
294 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA o sig n if ic a d o d a d isc ipl in a 295
habitualm ente, todos os tipos de meios emocionais — assim domínio do ferro para instrumentos tiveram papéis decisivos
como as técnicas mais requintadas de disciplina religiosa, os em todos os setores.
exercitia spiritualia de Inácio de Loiola, também o fazem ao
seu modo. No combate, a liderança m ilitar busca influenciar O cavalo trouxe o carro de guerra e com ele o herói que
se lançava ao combate e possivelmente lutava dentro do seu
os seguidores através da “inspiração” e, ainda mais, treiná-los
carro. O herói dominou a guerra dos reis orientais, indianos e
para a “compreensão enfática” da vontade do chefe. Os pontos
sociologicamente decisivos, porém, são, primeiro, que tudo, e es chineses antigos, bem como nas sociedades ocidentais, inclusive
pecialmente, os fatores emocionais “imponderáveis” e irracio a celta. N a Irlanda, o “combate de herói” predominou até épo
nais, são racionalmente calculados — em princípio, pelo menos, cas recentes. A cavalaria montada surgiu depois do carro de
da mesma forma que calculamos a produção das jazidas de guerra, mas persistiu por mais tempo. D ela surgiu o “cava
ferro e carvão. Segundo, a dedicação, em sua consciência e leiro” — persa, bem como tessálio, ateniense, romano, celta e
de acôrdo com o seu conteúdo norm al, é de caráter objetivo. germânico. O infante, que certamente teve o seu papel, ante
É a dedicação a um a “causa” comum, a um “êxito” pretendido riormente, no desenvolvimento da disciplina, dim inuiu de im
racionalm ente; não significa a dedicação a um a pessoa como portância durante algum tempo.
tal — por m ais “personalizada” que pareça, no caso concre A substituição das armas de ferro, que se carregavam à
to de um líder fascinante. ilharga, pelas azagaias de bronze foi, provavelmente, um dos
O caso só é diferente quando as prerrogativas do dono de fatores que levou o desenvolvimento em direção oposta, no
escravos criam um a situação de disciplina — num a plantação sentido da disciplina. Não obstante, tal como na Idade M édia
ou num exército escravo do O riente antigo, nas galeras tripu dificilmente se poderá dizer que o canhão provocou a transição
ladas por escravos ou entre prisioneiros na A ntigüidade e na da luta indisciplinada para a disciplinada, também o ferro, como
Idade M édia. N a realidade, o indivíduo não pode fugir dessa tal, não provoca a m udança — pois as arm as de longo alcance
organização m ecanizada, pois o treinamento rotinizado o coloca e as arm as cavaleirescas eram feitas de ferro.
em seu lu gar e o obriga a “continliar”. Aqueles que estão nas Foi a disciplina dos hoplitas helénicos e rom anos1 que pro
fileiras se integram , forçosamente, no todo. Essa integração é vocou a modificação. Mesmo Homero, como se vê por um
um forte elemento na eficiência de toda disciplina, e especial trecho muito citado, conhecia o início da disciplina, com a sua
mente nas guerras conduzidas de forma disciplinada. É o único proibição de combater fora da linha. Para Rom a, o ponto cru
elemento eficaz e — como capu t m ortuum — continua mesmo cial na transformação está simbolizado pela lenda da execução
depois que as qualidades “éticas” do dever e da consciência do filho do cônsul que, de acordo com o costume antigo dos
falharam . heróis, havia morto o chefe guerreiro adversário em combate
individual. A princípio, um exército bem treinado de soldados
espartanos profissionais, os sagrados lo co s 2 dos Beócios, a falan
1. As O r i g e n s da D isc ipl in a n a G u e r r a ge bem preparada e equipada de sarissa 3 dos macedônios e
depois a tática do m an ip u lo 4 mais móvel dos romanos g a
O conflito entre a disciplina e o carism a individual tem sido nharam supremacia sobre o cavaleiro persa, as m ilícias dos ci
cheio de vicissitudes. T em seu lugar clássico no desenvolvi dadãos helénicos e italianos, e os exércitos populares dos bár
mento da estrutura da guerra, em cuja esfera o conflito é, de baros. No período inicial dos hoplitas helénicos, fizeram-se
certo, m ais ou menes determ inado pela técnica bélica. Os tipos tentativas incipientes de excluir as armas de longo alcance, atra
de armas — lança, espada, arco — não são necessariamente de vés de “lei internacional”, como pouco cavaleirescas, tal como
cisivos, pois todos eles perm item tanto o combate disciplinado durante a Idade M édia houve tentativas de proibir o uso do
quanto o individual. No início da história conhecida do O ri arco.
ente Próximo e do Ocidente, porém, a importação do cavalo
O tipo de arm a foi resultado, e não causa, da disciplina.
e provavelmente, em proporções desconhecidas, o início do pre-
O uso exclusivo da tática de infantaria de combate próximo,
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durante a A ntigüidade, provocou a decadência da cavalaria, e A s bases econômicas em que se alicerçaram as organizações
em Rom a o “censo dos cavaleiros” tornou-se praticamente equi militares não são o único agente que determinou o desenvolvi
valente à isenção do serviço m ilitar. mento da disciplina, embora sua im portância tenha sido consi
No fim da Idade M édia, foi a força maciça dos suíços, com derável. A disciplina dos exércitos bem treinados e o papel,
sua evolução paralela e posterior, que primeiro rompeu o mo maior ou menor, que tiveram na guerra dependia ainda mais,
nopólio da guerra pelos cavaleiros. E, mesmo então, os suíços e com efeitos m ais duradouros, da ordem política e social. Essa
perm itiam que os alabardeiros5 se afastassem da força prin influência, porém, era am bígua. A disciplina, como base da
cipal para o combate singular, ou de herói, depois que essa guerra, deu origem ao reinado patriarcal entre os zulus, onde
fôrça avançara em formação cerrada — ocupando os lanceiros o monarca é constitucionalmente lim itado pelo poder dos chefes
as posições exteriores. A princípio, essas forças dos suíços con do exército (como os éforos espartanos). 6 D a mesma forma,
seguiram apenas dispersar os cavaleiros. E, nos combates dos a disciplina deu origem à polis helénica com seus ginásios.
séculos X V I e XVII, a cavalaria, como tal, cada vez m ais dis Quando o treinamento da infantaria foi aperfeiçoado ao
ciplinada, ainda desempenhava um papel decisivo. Sem ela, ponto da virtuosidade (E sparta), a polis ad quiriu um a estrutura
ainda era impossível em preender guerras decisivas e superar, inevitavelm ente “aristocrática”. Quando as cidades se baseiam
realm ente, o inim igo, como bem o demonstrou a G uerra C ivil n a disciplina naval, têm estruturas “democráticas” (A ten as). A
Inglesa. disciplina deu origem à “democracia” suíça, de natureza muito
Foi a disciplina, e não a pólvora, que iniciou a transforma diferente. Representava ela o domínio (em têrmos helénicos)
ção. O exército holandês, sob M aurício da Casa de Orange, sôbre os metecos bem como sobre os hilotas territoriais, num a
foi um dos primeiros exércitos modernos disciplinados. Estava época em que mercenários suíços se alistavam em exércitos es
Üvre de todos os privilégios estam entais; assim, por exemplo, a trangeiros. O domínio do patriciado romano, dos egípcios,
recusa em que se m antinham até então os mercenários de fazer assírios e finalm ente das modernas organizações estatais buro
serviços braçais ( opera serv ilia) deixou de vigorar. As vitórias cráticas da Europa — isso tudo tem a sua origem na disciplina.
de Crom well — apesar da grande bravura dos Cavaleiros — A disciplina de guerra pode ir de mãos dadas com condições
deveram-se à sóbria e racional disciplina puritana. Seus " Iron ­ econômicas totalm ente diferentes, como o mostram esses exem
sides” — os “homens de consciência” — avançavam em form a plos. A disciplina, porém, sempre afetou a estrutura do Esta
ção cerrada firme, e ao mesmo tempo disparavam com método, do, a economia e, possivelmente, a fam ília, pois no passado um
para em seguida, lançando projéteis, provocarem um ataque bem exército bem disciplinado era, necessariamente, profissional, e
sucedido. O maior contraste está no fato de que, depois do portanto o problema básico era sempre o de como prover a
ataque, eles continuavam em formação cerrada ou se realinha- manutenção dos guerreiros.
vam im ediatam ente. Foi esse ataque de cavalaria disciplinado A forma prim eva de criar soldados disciplinados — todos
que teve superioridade técnica sobre o ardor dos Cavaleiros. prontos a atacar, e deixando-se disciplinar — era o com un ism o
Estes tinham o hábito de galopar entusiasticam ente ao ataque guerreiro, que já mencionamos. Pode tomar a forma de resi
e em seguida, sem disciplina, dispersarem-se, quer para sa dência de solteiros, como um a espécie de quartel ou cassino dos
quear o campo inim igo, quer para perseguir, prem atura e in soldados profissionais; foi esse o sistema m ais difundido em
dividualm ente, adversários com o objetivo de aprisioná-los e obter tôda a T erra. Ou pode seguir o padrão da com unidade co
resgate. Todos os êxitos eram prejudicados por esses hábitos, m unista dos piratas ligúrios, ou da sissítia organizada de acor
como ocorreu tipicamente e freqüentem ente na A ntigüidade e do com o princípio do “piquenique”. O u pode seguir a or
na Idade M édia (por exemplo, em T agliaco zzo ). A pólvora ganização do C alifa O m ar, ou as ordens cavaleirescas religiosas
e todas as técnicas de guerra a ela associadas só se tornaram da Idade M édia. A comunidade guerreira pode constituir, como
significativas com a existência da disciplina — e só tiveram já observamos, um a sociedade completamente autônoma fecha
proporções plenas com o uso das m áquinas de guerra, que pres da para o exterior, ou, como era comum, pode ser incorporada
supõem a disciplina. a um a associação política cujo território é fixado por lim ites.
298 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
O SIG N IF IC A D O DA D ISC IP L IN A 299

Como parte desse grupo corporado, a comunidade guerreira o chefe de guerra bem pode ascender à senhoria absoluta sobre
pode determ inar decisivamente a sua ordem. Assim, o seu re as formações disciplinadas dos soldados. Assim, o oik ps, como
crutamento está ligado à ordem do grupo. M as essa ligação é a base de um a estrutura m ilitar, oferece um contraste extremo
m uito relativa. Nem mesmo os espartanos, por exemplo, não com esse comunismo de guerreiros que se abastecem em arm a
insistem num a “pureza do sangue”. A educação m ilitar era zéns de depósitos, bem como das contribuições das mulheres, dos
decisiva para a participação em sua comunidade guerreira. incapazes de pegar em arm as e possivelmente dos servos. O
No comunismo guerreiro, a existência do guerreiro é a con exército patrim onial é mantido e equipado pelos armazéns de
trapartida perfeita da existência do monge, cuja vida reclusa e um senhor dominante. Essa organização era conhecida especial
comunista no mosteiro também serve ao objetivo de discipliná- mente no Egito, mas seus fragmentos estão am plam ente dis
-lo ao serviço de seu senhor no além -m undo (e possivelmente persos em organizações m ilitares de diferentes naturezas, e for
resultando também no serviço a um senhor deste m undo). A mam as bases dos despotismos principescos.
dissociação da fam ília e de todos os interesses econômicos pri
O fenômeno inverso, a emancipação da comunidade guer
vados também ocorre fora das ordens cavaleirescas celibatárias,
reira em relação ao poder ilim itado do senhor, como se vê em
que foram criadas num a analogia direta com as ordens dos
Esparta pela instituição dos éforos, só avançou até onde o in
monges.
teresse da disciplina perm itiu. N a polis, portanto, o enfraqueci
Quando a instituição da residência de solteiros é plenamente mento do poder do rei — que significava o enfraquecimento da
desenvolvida, as relações fam iliares ficam , com freqüência, to disciplina — só predominou na paz e no interior (dom i ein
talm ente excluídas. Os moradores da residência compram ou contraste com m ilitiae, segundo as expressões técnicas do D i
aprisionam moças, ou pretendem que as moças da comunidade reito A dm inistrativo rom ano). As prerrogativas do rei espar
sujeita fiquem à sua disposição, enquanto não tiverem sido ven tano só desapareciam em tempo de paz. No interesse da disci
didas em casamento. Os filhos dos A riloi — o estamento domi plina, o rei era onipotente no campo.
nante na M elanésia — são mortos. Os homens só podem in
gressar em comunidades sexuais duradouras com um a economia U m enfraquecim ento geral da disciplina acompanha habi
a parte depois de terem completado seu “serviço” na residência tualm ente qualquer tipo de estrutura m ilitar descentralizada —
de solteiros — freqüentemente, num a idade avançada. A es seja do tipo prebendário ou feudal. Esse enfraquecimento da
tratificação segundo os grupos etários, que entre alguns povos disciplina pode variar muito de grau. O bem treinado exército
também é importante para a regulam entação da relação sexual; os espartano, as colônias m ilitares das outras estruturas m ilitares
supostos remanescentes da “prom iscuidade sexual endógena” pri helénicas e macedônias, e orientais, os feudos semiprebendários
m itiva; os supostos remanescentes de um hipotético “direito pri dos turcos e finalm ente os feudos da Idade M édia japonesa e
mevo” de todos os cam aradas a todas as moças ainda não sob ocidental — são, todos, fases da descentralização econômica,
a tutela de um indivíduo; bem como os “casamentos por apri m archando habitualm ente lado a lado com o enfraquecimento
sionamento” — supostamente a form a m ais antiga de m atrim ô da disciplina e a im portância crescente do heroísmo individual.
nio; », acim a de tudo, o “m atriarcado” — tudo isso pode ser, Do aspecto disciplinar, tal como do econômico, o senhor
na m aioria dos casos, um a sobrevivência das organizações m ili feudal e os seus vassalos representam um contraste extremo com
tares que estamos discutindo. Essas organizações separam a o soldado patrim onial ou burocrático. E o aspecto disciplinar é
vida do guerreiro da casa e da fam ília e, em condições de guerra conseqüência do aspecto econômico. O vassalo e senhor feudais
crônica, foram bastante generalizadas. não só providenciam seu próprio equipamento e provisões, d i
Quase em toda parte a com unidade guerreira comunista rigem seu trem de bagagens, como também convocam e chefiam
pode ser o capu t m ortuum dos seguidores dos chefes guerreiros os subvassalos que, por sua vez, também se equipam .
carismáticos. Esses seguidores foram, habitualm ente, socializados A disciplina cresceu à base da maior concentração dos meios
num a instituição crônica e, quando existente na paz, levou ao de guerra nas mãos do senhor bélico. Isso se fez através de
declínio da chefia guerreira. Em condições favoráveis, porém, um con dottiere que recrutava exércitos mercenários, parcial ou
300 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA O SIG N IF IC A D O DA D IS C IP L IN A 301

totalmente, ao modo de um capitalista privado. O processo


predominou na Idade M édia e no início d a era moderna. Foi 2. A D isc ipl in a das O r g a n iz a ç õ e s Ec o n ô m ic a s em
seguido pela organização e equipam ento de exércitos perm a G r a n d e E sc a l a

nentes por meio da autoridade política e economia coletiva.


Não descreveremos aqui, em detalhe, a crescente racionalização A disciplina do exército deu origem a toda a disciplina. A
da formação dos exércitos. Começou ela com M aurício da Casa organização econômica em grande escala é o segundo grande
de O range, seguido de W allestein, Gustavo Adolfo, Crom well, agente que prepara os homens para a disciplina. Nenhuma
os exércitos dos franceses, de Frederico o G rande, e de M aria organização histórica e transitiva lig a as oficinas e o trabalho
T eresa; passou por um a transição do exército profissional para de construção faraônicos (por menos detalhes que se conheçam
o exército popular por Napoleão até um exército parcialmente sobre a sua organização) com a plantação rom ano-cartaginesa,
profissional. Finalm ente, o recrutamento universal foi adotado as m inas de fins da Idade M édia, as plantações escravistas das
no século XIX. Todo o desenvolvimento significou, na verdade, economias coloniais e, finalm ente, a fábrica moderna. Todas
a importância, evidentemente crescente, da disciplina, e, também elas, porém, têm em comum o elemento da disciplina.
evidentemente, a execução coerente do processo econômico atra Os escravos das plantações antigas dorm iam em barracas,
vés do qual um a economia pública e coletiva foi substituída pelo vivendo sem fam ília e sem propriedade. Somente os adm inis
capitalismo privado como a base da organização m ilitar. tradores — especialmente o villicus — tinham domicílios indivi
Se o predomínio exclusivo do recrutam ento universal será duais, m ais ou menos comparáveis à residência do suboficial
a últim a palavra na era da gu erra m ecanizada é que nos resta ou à residência do gerente num a empresa agrícola moderna e
ver. A exatidão nos disparos, n a m arinha britânica, por exem de grande escala. Somente o villicus tinha, habitualm ente uma
plo, parece ser afetada pela existência de gru p o s de artilheiros quase-propriedade ( peculium , isto é, originalm ente, propriedade
constituídos de soldados profissionais, o que p erm ite a sua con em gado) e o quase-casamento (con tu b ern iu m ). Pela manhã,
tinuação, como equipe, por m uitos anos. A fé n a superioridade os trabalhadores-escravos se alinhavam em formações (em de-
técnica do soldado profissional, para certas categorias m ilitares, curiae) e eram levados até o trabalho pelos capatazes ( m on i­
quase certamente aum entará de influência, especialm ente s í o tores) ; seu equipam ento pessoal (para usar um a expressão dos
processo de redução do tempo de serviço — estagnado na Eu quartéis) era armazenado longe dele e entregue segundo a ne
ropa, no momento — continuar. Em vários círculos de oficiais, cessidade. Não faltavam os hospitais e prisões. A disciplina
essa opinião já é m antida esotericamente. A introdução de um da propriedade senhorial na Idade M édia e na era moderna
período de três anos de serviço compulsório p elo exército fran era consideravelmente menos rigorosa porque era estereotipada
cês (1913) foi motivado, aqui e ali, pelo slo gan do “exército tradicionalmente, e portanto lim itava um pouco o poder do
profissional” — expressão um tanto in ad eq u ad a, já que estava senhor.
ausente qualquer diferenciação dos soldados e m categorias. Es N enhum a prova especial é necessária para mostrar que a
sas possibilidades ainda am bíguas, e também s u a s possíveis con disciplina m ilitar é o modelo ideal para a moderna fábrica ca
seqüências políticas, não devem ser discutidas aq u i. De qual pitalista, tal como o foi para a plantação antiga. Em contraste
quer modo, nenhum a delas alterará a im p o rtân cia exclusiva da com esta, a disciplina orgânica na fábrica estrutura-se em bases
disciplina da massa. O que nos interessou, a q u i, foi mostrar completamente racionais. Cem a ajuda de métodos de men-
a separação entre o guerreiro e os meios d a g u erra, e a con suração adequados, a lucratividade ótima do trabalhador indivi
centração desses meios nas m ãos do senhor, q u e em toda parte dual é calculada como a de qualquer meio m aterial de produ
nasceu das bases típicas da disciplina da m assa. E isso ocorreu, ção. À base desse cálculo, o sistema americano de “adm inis
quer o processo de separação e concentração tiv esse a form a de tração científica” obteve os maiores triunfos no condicionamento
o i\o s, de empresa capitalista ou de o rgan ização burocrática. e treinam ento racional do comportamento de trabalho. As con
seqüências finais são obtidas com a mecanização e disciplina da
fábrica, e o aparato psicofísico do homem se ajusta completa
302
O SIGNIFICADO DA DISCIPLINA 303
ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

de sua rotinização, num a fonte adequada para a aquisição le


mente às exigências do mundo exterior, das ferramentas, das
gítim a de poder soberano pelos sucessores do herói carismático.
m áquinas — em suma, a um a “função” individual. O indivíduo
O carisma rotinizado continua, assim, a funcionar em favor de
é destituído de seu ritmo natural, determ inado pela estrutura
todos aqueles cujo poder e posse são garantidos por essa força
de seu organism o; seu aparato psicossocial é adaptado a um
soberana, e que dependem, portanto, da existência continuada de
novo ritmo através de um a especialização metódica de músculos
tal poder.
que funcionam separadamente, e estabelece-se um a economia
ótim a de forças correspondente às condições de trabalho. Todo As formas pelas quais a legitimação carismática de um go
esse processo de racionalização, na fábrica como em toda parte, vernante pode expressar-se variam de acordo com a relação
e especialmente na m áquina estatal burocrática, é paralelo à cen do detentor original do poder carismático com as potências su-
tralização dos implementos m ateriais de organização no poder pranaturais. Se a legitim ação do governante não pode ser de
discricionário do senhor. term inada, segundo regras claras, através de carism a hereditário,
êle necessita da legitim ação através de algum a outra força ca
O avanço sempre crescente da disciplina processa-se irresis rism ática. Norm alm ente, essa força só poder ser o poder hiero-
tivelm ente com a racionalização do atendimento das necessida crático. Isso se aplica expressamente ao soberano que repre
des econômicas e políticas. Esse fenômeno universal restringe senta um a encarnação divina e que assim possui o “carisma
cada vez m ais a importância do carisma e da conduta diferen pessoal” mais elevado. A menos que se apóie em feitos pes
ciada individualm ente. soais e através deles se prove, sua pretensão ao carisma exige o
reconhecimento de peritos profissionais em assuntos divinos.
Monarcas encarnados estão, na realidade, sujeitos ao processo
3. D isc ipl in a e C a r isma
de internam ento pelos funcionários da corte e pelos sacerdotes
que lhes estão próximos, e que se interessam m aterial e ideal
O carisma, como força criadora, passa a segundo plano ante mente pela legitim idade. Essa reclusão pode chegar a um a pri
o domínio, que se consolida em instituições duradouras, e só se são permanente em palácio, ou mesmo ao assassinato, a menos
torna eficiente nas emoções de massa de curta vida, de efeitos que o deus tenha ocasião de demonstrar sua divindade ou liber
incalculáveis, como nas eleições e ocasiões semelhantes. Não tar-se da tutela. Em geral, porém, segundo a opinião genuína,
obstante, continua sendo um elemento m uito importante da es bem como a prática, o peso da responsabilidade com que o gover
trutura social, embora decerto num sentido m uito modificado. nante carismático deve arcar perante seus súditos funciona m ui
Devemos voltar agora aos fatores econômicos, já menciona to claram ente no sentido da necessidade de sua tutela.
dos acim a, que determ inam de forma predominante a rotiniza- É devido às suas altas qualificações carismáticas que esses
ção do carism a: a necessidade de cam adas sociais, privilegiadas governantes, como o C alifa, o Sultão e o X á oriental necessitam
através das ordens política, social e econômica existentes, terem urgentem ente, até mesmo hoje (1913), de um a personalidade
“legitim adas” as suas posições sociais e econômicas. Desejam única para assum ir a responsabilidade dos atos governamentais,
ver essas posições transformadas de relações de poder apenas especialmente dos fracassos e das m edidas impopulares. É essa
de fato em um cosmo de direitos adquiridos, e saber que, assim, a base da posição tradicional e específica do G rão-V izir em
estão santificadas. Esses interesses constituem o motivo mais
todos esses reinos. A tentativa de abolir e substituir o cargo
forte para a conservação dos elementos de um a natureza obje-
de G rão-V izir pelos departamentos burocráticos sob os m inis
tificada dentro da estrutura do domínio. O carisma autêntico
tros, presididos pessoalmente pelo Xá, fracassou na Pérsia na
opõe-se de forma absoluta a essa forma objetivada. Não apela últim a geração. Essa mudança teria colocado o X á no papel de
para um a ordem imposta ou tradicional nem baseia suas pre um chefe da adm inistração, responsável pessoalmente por todos
tensões nos direitos adquiridos. O carism a autêntico baseia-se os seus abusos e todo o sofrimento do povo. T al papel não só o
na legitim ação do heroísmo pessoal ou da revelação pessoal. teria prejudicado constantemente como teria abalado a crença na
N ão obstante, precisamente essa qualidade do carisma como sua legitim idade “carism ática”. O cargo de G rão-V izir, com suas
poder extraordinário, supranatural, divino, o transforma, depois
304 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA O SIG N IF IC A D O D ISC IP L IN A 305

responsabilidades, teve de ser restabelecido a fim de proteger o O reinado “parlam entar” na Inglaterra significa um a adm is
X á e seu carisma. são seletiva ao poder prático para o monarca que revela qua
O G rão-V izir é o correspondente oriental ao cargo de pri lidades de estadista. U m erro adm inistratvo ou político, porém,
m eiro-m inistro responsável no Ocidente, especialmente nos Es internam ente ou nos negócios estrangeiros, ou a manifestação
tados parlam entares. A fórm ula le roi règn e m ais il ne gouv ern e de pretensões que não correspondem realm ente às suas capaci
pas e a teoria de que, no interesse da dignidade de sua posi dades e prestígio pessoal, podem custar ao rei a sua coroa. Dessa
ção, o rei não deve “figurar sem ornatos m inisteriais”, ou que forma, o reinado parlam entar inglês é constituído de modo
ele deve abster-se totalmente de intervir n a adm inistração norm al realm ente m ais carismático do que os reinos do continente eu
dirigid a pelos peritos e especialistas burocráticos, ou que deve ropeu. N a Europa continental, o simples nascimento dá igual
abster-se da adm inistração em favor dos líderes dos partidos mente ao néscio e ao gênio político direito às pretensões de um
políticos que ocupam postos m inisteriais — tôdas essas teorias soberano.
correspondem totalmente à entronização do soberano patrim onial
deificado pelos peritos em tradição e cerim onial: sacerdotes, ofi
ciais da corte, altos dignitários. Em todos esses casos, a natu
reza sociológica do carism a tem um papel tão grande quanto
o dos funcionários da corte ou líderes partidários e seus segui
dores. Apesar de sua falta de poder parlam entar, o monarca
constitucional é preservado e, acim a de tudo, sua simples exis
tência e seu carism a garantidos pela legitim idade da ordem so
cial e de propriedade existente, já que as decisões são tomadas
“em seu nome”. A lém disso, todos os interessados na ordem
social devem temer que a convicção da “legalidade” seja abala
da por dúvidas quanto à sua legitim idade.
U m presidente eleito segundo regras fixas pode legitim ar
form alm ente as medidas governam entais do partido vitorioso
como “legais”, tal como o monarca parlam entar. M as este, além
de tal legitim ação, pode executar um a função que um presi
dente eleito não pode: o monarca parlam entar delim ita form al
mente a busca de poder dos políticos, porque a mais alta posi
ção no Estado é ocupada por ele, de um a vez por todas. Do
ponto de vista político, essa função essencialmente negativa, as
sociada à simples existência de um rei entronizado segundo re
gras fixas, é da maior im portância prática. Form ulada positi
vam ente, ela significa, para o arquétipo da espécie, que o rei
não pode ter um a parcela prática de poder político por prer
rogativa (reino de prerrogativa). Só pode partilhar do poder
em virtude de um a destacada capacidade pessoal ou influência
social (reino de influência). N ão obstante, ele está em con
dições de exercer a sua influência apesar de todo o Governo
parlam entar, como os acontecimentos e personalidades de todos
os tempos recentes demonstraram.
Pa r t e III

RELIGIÃO
XI A Psicologia Social das Religiões Mundiais

E n t e n d e m o s pe l a e x pr e ssã o “religiões m undiais” as cinco re


ligiões ou sistemas, determinados religiosamente, de regulam en
tação de vida que conseguiram reunir à sua volta multidões de
crentes. A expressão é usada, aqui, sem qualquer conotação
de valor. A ética religiosa confuciana, hinduísta, budista, cris
tã e islam ita pertencem todas à categoria das religiões m un
diais. U m a sexta religião, o iudaísmo, também será exam inada
aqui, porque contém as condições históricas prelim inares deci
sivas para o entendim ento do cristianismo e do islamismo e
pela sua significação histórica e autônoma para a evolução da
moderna ética econômica do Ocidente — significação, em parte
real e em parte suposta, que foi muito discutida recentemente.
As referências às outras religiões só serão feitas quando forem
indispensáveis às ligações históricas.1
O que entendemos por “ética econômica” de um a religião
se tornará aos poucos claro no curso desta análise. Essa ex
pressão não focaliza as teorias éticas dos compêndios teológicos;
por m ais importantes que compêndios possam ser, em certas
circunstâncias servem simplesmente de instrumentos do conhe
cimento. A expressão “ética econômica” refere-se aos impulsos
práticos de ação que se encontram nos contextos psicológicos e
pragmáticos das religiões. A descrição seguinte pode ser incom
pleta, mas deixará claro como são habitualm ente complicadas

"Díe W irtschaftsethik der W eltreligionen”, Gesammelte Auf-


saetze zur Religionssoziologie (Tübingen, 1922-3), vol. I, pp. 237-68.
Este capítulo é um a tradução da Introdução a um a série de estudos
publicados por W eber como artigos no Archiv für Sozialforschung
sob o título “Die W irtschaftsethík der W eltreligionen” (A Ética
Econômica das Religiões M undiais). A Introdução e as prim eiras
partes sobre confucionismo e tauísmo foram escritas em 1913. Só
foram publicadas em setem bro de 1915, no 41» volume do Archiu.
310 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P SIC O L O G IA SO C IA L DAS R E LIG IÕ E S M U N D I A IS 311

as estruturas e variadas as condições de um a ética econômica não tinha importância. A ética religiosa (ou se o quisermos,
concreta. A lém disso, mostrará que as formas, externamente irreligiosa) desta cam ada determinou o modo de vida chinês
semelhantes, de organização econômica podem concordar com m uito além da própria camada.
éticas econômicas muito diferentes e, segundo o caráter singular ^ O hinduism o original era esposado por um a casta heredi-
de suas éticas econômicas, como tais formas de organização taria de letrados cultos, que, afastados de qualquer cargo, fun
econômica podem produzir resultados históricos muito diferen cionavam como um a espécie de conselheiros ritualistas e espi
tes. U m a ética econômica não é um a simples “função” de um a rituais para indivíduos e comunidades. Form avam um centro
forma de organização econômica; e a recíproca também não é estável para a orientação da organização estam ental, e influíam
verdadeira, ou seja, a ética econômica não m arca sem am bigüi na ordem social. Somente os brâmanes, educados no Veda,
dades a forma de organização econômica. formavam, como portadores da tradição, o estamento religioso
N enhum a ética econômica foi, jam ais, determ inada exclu plenamente aceito. E só mais tarde um grupo estam ental não-
sivamente pela religião. Frente à atitude do homem para com -bramane, formado de ascetas, surgiu ao lado dos brâmanes e
o mundo determ inada pelos fatores religiosos ou outros fatores com eles competiu. M ais tarde ainda, durante a Idade M édia
“íntim os” (em nosso sentido) — a ética econômica tem, decerto, indiana, o hinduísm o ganhou influência. Representava êle a
um a grande m argem de autonomia. Certos fatores de Geogra ardente religiosidade sacram ental2 do salvador, e difundiu-se
fia e H istória determ inam essa m edida de autonomia no mais entre as cam adas inferiores com seus mistagogos plebeus.
alto grau. A determinação religiosa da conduta na vida, po O budismo foi propagado pelos monges, rigorosamente con
rém, é também um e — note-se isso — apenas um dos elemen templativos, mendicantes, que rejeitavam o mundo e, não tendo
tos determ inantes da ética econômica. É claro que o modo lares, m igravam . Somente eles eram membros integrais da co
de vida determ inado religiosamente é, em si, profundamente m unidade religiosa; todos os demais continuavam sendo leigos
influenciado pelos fatores econômicos e políticos que operam religiosos de valor inferior: objetos da religiosidade, e não su
dentro de determinados lim ites geográficos, políticos, sociais e jeitos.
nacionais. Iríamos perder-nos nessas discussões, se tentássemos
D urante seu prim eiro período, o islamismo foi um a reli
demonstrar essas dependências em toda a sua singularidade. So
gião de guerreiros que queriam conquistar o mundo, um a ordem
podemos, no caso, tentar retirar os elementos diretivos na con
cavaleiresca de cruzados disciplinados. Faltava-lhes apenas o
duta de vida das camadas sociais que influenciaram m ais for
ascetismo sexual dos cristãos na era das C ruzadas. Mas, durante
temente a ética prática de suas respectivas religiões. Esses ele
a Idade M édia Islâm ica, o sufism o3 contemplativo e místico
mentos m arcaram os aspectos m ais característicos da etica pra
conseguiu um a situação pelo menos de igualdade, sob a lideran
tica, as características que distinguem um a ética das outras; e,
ça dos técnicos plebeus de orgiástica. As irm andades da peque-
ao mesmo tempo, foram importantes para a respectiva etica eco
no-burguesia nasceram do sufismo, de um a forma semelhante
nômica.
aos terciários cristãos, exceto pelo fato de se terem eles desen
De forma algum a devemos focalizar apenas um a cam ada. volvido m uito m ais universalmente.
A s cam adas que são decisivas na formação dos aspectos carac
terísticos de um a ética econômica podem variar no curso da Desde o Exílio, o judaísm o foi a religião de um “povo
H istória. E a influência de um a cam ada apenas jam ais é ex paria” cívico. Veremos, no devido momento, o sentido preciso
clusiva. N ão obstante, em geral, podemos determ inar as cam a da expressão. D urante a Idade M édia o judaísm o ficou sob
das cujo estilo de vida foram pelo menos predominantemente a liderança de um a cam ada de intelectuais treinados na lite
decisivos para certas religiões. Eis alguns exemplos, se pode ratura e ritual, um a peculiaridade do judaísm o. Essa cam ada
mos antecipá-los: representou um a intelectualidade pequeno-burguesa cada vez
mais quase-proletária e racionalista.
O confucionismo era a ética estam ental dos prebendários,
dos homens com educação literária que se caracterizavam pelo O cristianismo, finalm ente, começou sua carreira como um a
racionalismo secülar. Quem não pertencia a essa cam ada culta doutrina de artesãos jornaleiros itinerantes. Em todos os pe
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ríodos, sua poderosa evolução externa e interna foi um a reli U m a determinação de classe, bastante geral e abstrata, da
gião especificamente urbana e, acim a de tudo, cívica. Isso acon ética religiosa poderá ser deduzida da teoria do “ressentimento”,
teceu durante a A ntigüidade, durante a Idade M édia e no Pu- conhecida desde o brilhante ensaio de Friedrich Nietzsche e
ritanismo. A cidade do Ocidente, ím par entre todas as outras tratada, a partir de então, com bastante espírito pelos psicó
no mundo — e o corpo de cidadãos, no sentido em que só logos. Como se sabe, essa teoria considera a glorificação moral
surgiu no Ocidente — foi o principal teatro do cristianismo. da piedade e da fraternidade como um a “revolta de escravos
Isso se aplica também à piedade espiritual das antigas comu morais” entre os desprivilegiados, seja em dotes naturais ou opor
nidades religiosas, para as ordens dos monges mendicantes da tunidades determ inadas pelo destino da vida. A ética do “de
Idade M édia e para as seitas [protestantes] desde a reforma até ver” é, assim, considerada como um produto de sentimentos
o pietismo e metodismo. “recalcados” de vingança, por parte dos banáusicos que “subs
tituem ” seus sentimentos por serem impotentes, condenados a
trabalhar e ganhar dinheiro. Vêem, com ressentimento, o modo
Nossa tese não é a de que a natureza específica da religião de vida das cam adas senhoriais, que estão livres de obrigações.
constitui um a simples “função” da cam ada que surge como sua U m a solução muito simples dos problemas m ais importantes
adepta característica, ou que ela represente a “ideologia” de tal na tipologia da ética religiosa resultaria, evidentemente, se tal
cam ada, ou que seja um “reflexo” da situação de interesse m ate fosse o caso. Por m ais afortunada e frutífera que tenha sido a
rial ou ideal. Pelo contrário, um a interpretação errônea mais revelação da significação psicológica do ressentimento como tal,
básica do ponto de vista dessas discussões dificilm ente seria é necessária um a grande cautela ao estim ar-se a sua influência
possível. na ética social.
Por mais incisivas que as influências sociais, determ inadas M ais adiante teremos de discutir os motivos que determ i
econômica e politicamente, possam ter sido sobre um a ética re naram as diferentes formas de “racionalização” ética da conduta
ligiosa num determ inado caso, ela recebe sua marca principal da vida, per se. Em geral, nenhum a relação tiveram com o
mente das fontes religiosas e, em prim eiro lugar, do conteúdo ressentimento. M as está fora de dúvida que a avaliação do
de sua anunciação e promessa. Freqüentem ente, a geração se sofrim en to na ética religiosa tem estado sujeita a um a transfor
guinte reinterpreta essas anunciações e promessas de modo fun mação típica. D evidam ente compreendida, essa transformação
dam ental, ajustando as revelações às necessidades da com unida encerra um a certa justificação para a teoria inicialm ente
de religiosa. Quando isso ocorre, então, é comum que as dou desenvolvida por Nietzsche. A atitude prim eva para com o
trinas religiosas se ajustem às n ecessidades religiosas. Outras sofrimento ganhou, drasticamente, maior relevo durante as fes
esferas de. interesse só poderiam ter um a influência secundária; tividades religiosas da comunidade, especialmente quando havia
com freqüência, porém, tal influência é m uito óbvia e, por enfermidades ou outros casos de infortúnio insistente. Os ho
vêzes, decisiva. mens, sofrendo permanentemente, de luto, enferm idades ou qual
quer outra desgraça, acreditavam, dependendo da natureza de
Veremos que, em toda religião, um a modificação nas ca seu sofrimento, estar possuídos por um demônio ou vitimados
m adas socialmente decisivas foi, quase sempre, de profunda im pela ira de um deus a quem teriam insultado. T olerar esses
portância. Por outro lado, o tipo de um a religião, um a vez homens em meio da comunidade de culto poderia provocar
marcado, exerceu habitualm ente um a influência de am plas con prejuízos. De qualquer modo, eles não tinham permissão de
seqüências sobre o modo de vida de cam adas muito heterogê participar nas festas e sacrifícios de culto, pois os deuses não
neas. De várias formas, as pessoas buscaram interpretar a lig a gostavam de vê-los e poderiam irritar-se. As festas realizadas
ção entre a ética religiosa e as situações de interesse, de tal por ocasião dos sacrifícios eram momentos de regozijo — mesmo
modo que a prim eira surge como simples “função” da segunda. em Jerusalém nas épocas de sítio.
T a l interpretação ocorre no cham ado materialism o histórico —
que não discutiremos aqui — bem como no sentido exclusiva T ratando o sofrimento como um sintoma de desagrado aos
mente psicológico. olhos dos deuses e como um sinal de culpa secreta, a religião
314 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A PSIC O L O G IA SO C IA L DAS R E LIG IÕ ES M U N D I A IS 315

atendia psicologicamente a um a necessidade muito geral. Os m inar, os m ales relacionados com ele — acima de tudo a enfer
afortunados raram ente se contentam com o fato de serem afor m idade — não se voltou para o culto da comunidade, mas
tunados. A lém disso, necessitam saber que têm o direito à como indivíduo, procurou o feiticeiro como o “conselheiro es
sua boa sorte. Desejam ser convencidos de que a “m erecem” p iritual” m ais velho e pessoal. O prestígio dos mágicos par
e, acima de tudo, que a merecem em comparação com outros. ticulares, e dos espíritos ou divindades em cujos nomes eles rea
Desejam acreditar que os menos afortunados também estão re lizavam seus m ilagres, angariou-lhes proteção, a despeito de
cebendo o que merecem. A boa fortuna deseja, assim, “legi sua filiação local ou tribal. Em condições favoráveis, isso levou
tim ar-se”. à formação de um a “com unidade” religiosa, que foi indepen
dente de associações étnicas. A lguns dos “mistérios”, embora
Se a expressão geral “fortuna” cobrir todo o bem represen
nem todos, seguiram esse curso. Prometeram a salvação dos
tado pelas honras, poder, posses e prazer, será então a fórm ula
indivíduos, como indivíduos, em relação à enferm idade, pobreza
m ais geral a serviço da legitim ação, que a religião teve para
e todas as formas de sofrimento e perigo. Assim, o mágico
realizar os interesses externos e íntim os dos homens dominantes,
transformou-se no m istagogo; ou seja, surgiram as dinastias
os proprietários, os vitoriosos e os sadios. Em suma, a religião
hereditárias de mistagogos, ou organizações de pessoal treinado
proporciona a teodicéia da boa fortuna para os que são afor
por um chefe de acordo com regras. Esse chefe tinha de ser
tunados. Essa teodicéia está ancorada em fortes necessidades
aceito como a encarnação de um ser supra-hum ano ou simples
( “farisaicas”) do homem e, portanto, é facilmente compreen
mente como um profeta, ou seja, como o porta-voz e agente de
dida, mesmo que não se atente bem, com freqüência, para os
seu deus. A s disposições religiosas coletivas para o “sofrimento”
seus efeitos.
individual p er se, e para a “salvação” dele, surgiram desse modo.
Em contraste, a forma pela qual essa avaliação negativa no
A anunciação e promessa da religião dirigiram -se, natu
sofrimento levou à sua glorificação é mais complicada. N um e
ralm ente, às massas dos que necessitavam de salvação. Elas,
rosas formas de punições e de abstinência em relação à dieta
e os seus interesses, passaram ao centro da organização profis
e sono, bem como de relações sexuais, despertam, ou pelo menos
sional para a “cura da alm a” que, na verdade, ali se originou.
facilitam , o carisma extático, visionário, histórico, em sum a, de
Mágicos e sacerdotes passaram a ter como atribuição a determ i
todos os estados extraordinários considerados como “sagrados”.
nação dos fatores a serem responsabilizados pelo sofrimento,
Sua produção, portanto, constitui o objeto do ascetismo mágico.
ou seja, a confissão dos “pecados”. A princípio, estes eram
O prestígio dessas punições resultou da noção de que certos tipos
violações dos mandamentos rituais. O m ágico e o sacerdote
de sofrimento e estados anorm ais provocados pelas punições são
também davam conselhos quanto ao comportamento adequado
caminhos para se alcançar poderes supra-humanos, isto é, m á
para acabar com o sofrimento. Os interêsses m ateriais e ideais
gicos. As prescrições antigas de tabus e abstinências no inte
dos m ágicos e sacerdotes podiam com isso, na prática e de forma
resse da pureza do culto, que sc seguem da crença nos demô
nios, funcionou n a mesma direção. O desenvolvimento dos cada vez m aior, colocar-se a serviço dos motivos especificamente
cultos de “redenção” juntou-se a essas prescrições, abstinências e plebeus. O utro passo nesse caminho foi dado quando, sob a
interesses. Em princípio, tais cultos ocuparam um a posição pressão de um a dificuldade típica e sempre recorrente, desen
independente e nova frente ao sofrimento individual. O culto volvia-se a religiosidade de um “redentor”. Essa religiosidade
primevo, e acima de tudo o culto das associações políticas, dei pressupunha o mito de um salvador, e daí (pelo menos relati
xaram fora dc consideração todos os interesses individuais. O vam ente) de um a visão racion al do mundo. E novamente o
deus tribal e local, os deuses da cidade e do im pério, preocupa- sofrimento tornou-se o tópico m ais importante. A mitologia
ram-se apenas com os interesses que se relacionavam com a prim itiva da natureza ofereceu, freqüentemente, um ponto de
coletividade como um todo. Preocuparam -se com a chuva e partida para essa religiosidade. Os espíritos que governavam
com o sol, com a caça e com a vitória sobre os inim igos. A s o advento e o desaparecimento da vegetação e os trajetos dos
sim, no culto da comunidade, a coletividade como tal volta corpos celestiais importantes para as estações dos anos torna
va-se para o seu deus. O indivíduo, a fim de evitar, ou eli ram-se, para os homens necessitados, os veículos preferenciais
316 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P SIC O LO G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D IA IS 317

para os mitos do sofrimento, morte e ressurreição do deus. O O profeta não foi, regularm ente, descendente ou represen
deus ressurreto garantia o retorno da boa sorte neste mundo tante das classes desfavorecidas. Ocorreu, como iremos ver,
ou a segurança da felicidade no outro. Ou um a figura popula quase sempre o inverso. Nem o conteúdo da doutrina do pro
rizada das sagas heróicas — como K rishna, na índ ia — é em feta foi extraído, de forma preponderante, do horizonte intelec
belezada com os mitos da infância, am or e luta, e tais figuras tual daquelas classes. Em geral, porém, os oprimidos, ou pelo
se tornam o objeto de um ardente culto do salvador. Entre menos os ameaçados por um a desgraça, necessitavam de um
povos sob pressão política, como os israelitas, o título de “sal redentor e profeta; os afortunados, as camadas dominantes, não
vador” ( M osh u ach ) era dado originalm ente aos salvadores das tinham tal necessidade. Portanto, na grande m aioria dos casos,
dificuldades políticas, tal como o mostram as sagas de heróis uma religião de redenção, anunciada profeticamente, teve seu
(G ideão, Jefté). As promessas “messiânicas” foram determ i centro perm anente entre as camadas sociais menos favorecidas.
nadas por essas sagas. Com esse povo, e de modo tão claro Entre elas tal religiosidade foi um sucedâneo, ou um suple
somente entre ele e sob outras condições muito particulares, o mento racional, da mágica.
sofrimento de um a com un idade, e não o sofrimento de um Sem pre que as promessas do profeta ou do redentor não
indivíduo, torna-se o objeto de esperança da salvação religiosa. atenderam suficientemente às necessidades das camadas social
O comum era que o salvador tivesse um caráter individual e mente menos favorecidas, um a religião de salvação, secundária,
universal ao mesmo tempo que estava pronto para garantir a desenvolveu-se regularm ente entre as massas, sob a doutrina
salvação do in div íduo e de todas as pessoas que se voltassem oficial. A concepção racional do mundo está encerrada, em
para ele. germe, dentro do mito do redentor. U m a teodicéia racional
A figura do salvador teve proporções variadas. Em sua de infortúnio foi, portanto, em geral, um a evolução dessa con
últim a forma, o zoroastrismo, com suas numerosas abstrações, cepção do mundo. Ao mesmo tempo, tal visão racional do
um a figura totalmente construída assumia a função de m edia mundo deu com freqüência ao sofrimento, como tal, um va
dor e salvador na economia da salvação. O inverso também lor positivo que lhe era antes totalmente estranho.
tem ocorrido: um a pessoa histórica, legitim ada através de m i O sofrimento, criado voluntariam ente através da m ortifi
lagres e reaparecimentos visionários, ascende à posição de sal cação, m udou de significado com a evolução das divindades
vador. Fatores exclusivamente históricos foram decisivos para éticas que punem e recompensam. O riginalm ente, a coação
a realização dessas possibilidades m uito diferentes. Quase sem
m ágica dos espíritos pela oração foi aum entada pela mortifica
pre, porém, algum a forma de teodicéia do sofrimento o rigi
ção como fonte de estados carismáticos. Essa coação foi pre
nou-se da esperança de salvação.
servada na mortificação pela oração, bem como nas prescrições
A s promessas de salvação religiosa continuaram, a princí de abstinência. Isso continuou ocorrendo, mesmo depois de
pio, ligadas às precondições ritualistas, e não às éticas. Assim, ter a fórm ula m ágica para coagir os espíritos se transformado
por exemplo, as vantagens m ateriais, e outras, dos mistérios num a súplica a ser ouvida por um a divindade. Acrescenta-
eleusinos estavam ligadas à pureza do ritual e ao compareci- ram-se as punições como meio de m inorar a ira dos deuses
mento à missa eleusina. Quando a lei crescia de significação, pelo arrependimento, e de evitar, com a autopunição, as sanções
essas deidades especiais tinham um papel mais importante, e em que se poderia ter incorrido. As numerosas abstinências
a tarefa de proteger a ordem tradicional, de punir o injusto estavam originalm ente ligadas ao luto pelos mortos (particular
e recompensar o bom, era transferida para elas, como guardiãs mente claro na C h in a) a fim de afastar-lhes o ciúm e e a ira.
do processo jurídico. Essas abstinências eram facilm ente transferidas para as relações
Quando a evolução religiosa foi decisivamente influenciada com as divindades adequadas: faziam que a autoflagelação e,
por um a profecia, o “pecado” natural deixou de ser um a sim finalm ente, a privação não-intencional parecessem m ais agradá
ples ofensa m ágica. A cim a de tudo, era um indício de des veis aos deuses do que o gozo ingênuo dos bens desta terra.
crença no profeta e nos seus mandamentos. O pecado se T al gôzo, n a verdade, tornou o homem interessado nos prazeres,
apresentava como a causa básica de todas as desgraças. menos acessível à influência do profeta ou do sacerdote.
318 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
A P SIC O LO G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D I A IS 319

A força de todos esses fatores individuais foi tremendamente A teodicéia do sofrimento pode ser colorida de ressentimen
estim ulada, sob certas condições. to. M as a necessidade de compensação pela insuficiência de
A necessidade de um a interpretação ética do “significado” nosso destino neste mundo não tem, em geral, o ressentimento
da distribuição das fortunas entre os homens aumentou com como um elemento básico e decisivo. Sem dúvida, a necessi
a crescente racionalidade das concepções do mundo. À medida dade de vingança teve um a afinidade especial com a convicção
que os reflexos religiosos e éticos sobre o mundo se foram tor de que os injustos se saem melhor neste mundo, apenas o in
nando cada vez m ais racionalizados e primitivos, e as noções ferno lhes está reservado no outro. A bênção eterna está re
m ágicas foram elim inadas, a teodicéia do sofrimento encontrou servada p ara os pios; os pecados ocasionais, que, afinal de con
dificuldades crescentes. Era demasiado freqüente o sofrimento tas, os pios também cometem, devem portanto ser expiados
individualm ente “imerecido” ; não eram os homens “bons”, mas neste mundo. Não obstante, podemos ver facilm ente que nem
os “m aus” que venciam — mesmo quando a vitória era medida mesmo esse modo de pensar, que surge ocasionalmente, é de
pelos padrões da cam ada dominante, e não pela “m oral dos terminado pelo ressentimento, e que não é, de forma algum a,
escravos”. o produto de camadas oprim idas socialmente. Veremos que
Pode-se explicar o sofrimento e injustiça em referência ao houve apenas alguns exemplos de religião para os quais o res
pecado individual, cometido num a vida anterior (a m igração sentimento contribuiu de forma essencial. Entre eles, apenas
das alm as), ao pecado dos ancestrais que recai até sobre a ter um se desenvolveu plenamente. Só podemos dizer que o res
ceira e quarta gerações, ou — o m ais comum — pela m aldade sentimento poderia ser, e com freqüência o foi em toda parte,
das criaturas per se. Como promessas de recompensa, temos significativo como um fator, entre vários, de influência sobre o
as esperanças de um a vida melhor no futuro, neste mundo racionalismo, determinado religiosamente, de cam adas socialmen
(transm igração das alm as) ou as esperanças para os sucessores te desprivilegiadas. A d qu iriu essa significação em graus alta
(reino m essiânico), ou de um a vida melhor no outro mundo mente diversos e com freqüência mínimos de acordo com a
(paraíso). natureza das promessas apresentadas pelas diferentes religiões.
A concepção metafísica de Deus e do mundo, criada pela De qualquer modo, seria errôneo procurar atribuir o “asce
exigência inerradicável de um a teodicéia, só pode produzir uns tismo” em geral a tais fontes. A desconfiança da riqueza e
poucos sistemas de idéias — ao todo, como iremos ver, apenas poder, que em geral existe nas religiões de salvação autênticas,
três. D eram eles respostas racionalm ente satisfatórias às inda teve sua base natural principalm ente na experiência dos reden
gações quanto à base da incongruência entre o destino e o mé tores, profetas e sacerdotes. Eles compreenderam que as ca
rito: a doutrina indiana do C arm a, o dualismo zoroastriano, m adas “saciadas” e favorecidas neste mundo tinham pouco dese
o decreto de predestinação do d eu s abscon ditus. Essas solu jo de ser salvas, qualquer que fosse a salvação oferecida. D aí
ções são racionalmente fechadas; na forma pura, são encontra terem sido essas cam adas dominantes menos “devotas”, no sen
das apenas como exceções. tido das religiões de salvação. A evolução de um a ética religiosa
A necessidade racional de um a teodicéia do sofrimento e racional teve raízes positivas e prim árias nas condições íntim as
da morte teve efeitos extrem amente fortes. N a realidade, essa das cam adas sociais que eram menos valiosas socialmente.
necessidade modelou importantes traços de religiões como o A s cam adas que dispõem solidamente das honras e poder
hinduísm o, o zoroastrismo e o judaísm o e, até certo ponto, o sociais tendem habitualm ente a estabelecer a sua lenda esta-
cristianism o paulino e posterior. A inda em 1906 um a simples
m ental de modo a pretenderem um a qualidade especial e in
m inoria entre um número bastante considerável de proletários
trínseca própria, quase sempre de sangue; seu sentimento de
mencionou como razões para não acreditarem no cristianismo
dignidade se alim enta dessa existência real ou supcxsta. O senso
as conclusões das modernas teorias das Ciências N aturais. A
de dignidade das cam adas socialmente recalcadas ou das cam a
m aioria, porém, referiu-se à “injustiça” da ordem do mundo
das cujo estamento é visto negativam ente (ou pelo menos não-
— na verdade, essencialmente porque acreditava num a com
-positivam ente) se alim enta m ais facilm ente da crença de que
pensação revolucionária ainda neste mundo.
um a “missão” especial lhes foi confiada; seu valor é garantido
320 H N 5A IO S DE SO CIO LO G IA A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES MUNDIAIS 321

ou constituído de um im perativ o ético, ou pela sua própria mundo”, em comparação com os bens sólidos deste, como saú
realiz ação funcional. Transferem , então, esse valor para algo de, riqueza e vida longa. E esses valores sagrados do outro
que está além delas, para um a “tarefa” que lhes foi atribuída mundo não eram , de modo algum , apenas valores do além .
por Deus. U m a das fontes do poder ideal das profecias éticas Não era esse o caso, nem mesmo quando os participantes as
entre as cam adas socialmente desfavorecidas está nesse fato. O sim acreditavam . Considerado psicologicamente, o homem em
ressentimento não foi necessário como alavanca; o interesse ra busca de salvação se tem preocupado prim ordialm ente com ati
cional nas compensações m ateriais e ideais, como tal, foi perfei tudes ligadas ao aqui e ao agora. A certitudo salu tis puritana,
tamente suficiente. o estado de graça permanente que se baseia no sentimento de
Não pode haver dúvida de que os profetas e sacerdotes, “se ter posto à prova”, foi psicologicamente o único objeto con
através da propaganda, intencional ou não, colocaram o ressen creto entre os valores sagrados dessa religião ascética. O monge
timento das massas a seu serviço. M as isto nem sempre ocor budista, certo de alcançar o N irvana, busca o sentimento de
reu. Essa força essencialmente negativa do ressentimento, pelo um amor cósmico; o hindu devoto busca Bh a^ t i (am or fervo
que se sabe, jam ais foi a fonte das concepções essencialmente roso na posse de D eus) ou o êxtase apático. Outros buscam
metafísicas que deram singularidade a toda religião de salvação. ser possuídos por Deus e possuir Deus, ser noivo da V irgem
Além disso, em geral, a natureza de um a promessa religiosa M aria ou ser a esposa do Salvador. O culto do coração de
não foi, necessariamente ou mesmo predominantemente, um a Jesus pelos jesuítas, um a edificação quietista, o terno amor pelo
simples manifestação de interesse de classe, interno ou externo. Menino Jesus dos pietistas e pelas suas ch agas,4 as orgias se
As massas por si mesmas — como iremos ver — perm ane xuais e sem i-sexuais no culto de Krishna, os requintados jan
ceram m ergulhadas, em toda parte, no crescimento maciço e tares de culto dos V allabhacaris, as atividades agnósticas de culto
arcaico da m agia a menos que um a profecia que apresente pro onanista, as várias formas da un io m y stica, e a imersão contem
messas específicas as tenha arrastado para um movimento reli plativa no Uno — esses estados foram, sem dúvida, procurados
gioso de caráter ético. Quanto ao resto, a natureza específica em prim eiro lugar pelo valor emocional que proporcionam di
dos grandes sistemas éticos e religiosos foi determ inada pelas retamente ao devoto. Sob esse aspecto, foram absolutamente
condições sociais de um a natureza bem m ais particular do que iguais à em briaguez religiosa e alcoólica do culto de Dioniso
o simples contraste entre as cam adas dominante e dominada. ou o som a; às orgias de comer carne totêmicas, às festas cani
balescas, ao uso antigo e consagrado pela religião, do haxixe,
P ara evitar repetição, anteciparemos a apresentação de al
ópio e nicotina; e, em geral, de todos os tipos de em briaguez
gum as observações sobre essas relações. P ara o estudioso em
m ágica. Foram considerados como especificamente consagra
pírico, os valores sagrados, diferindo entre si, não devem ser
dos e divinos devido à sua singularidade psíquica e devido ao
interpretados apenas, e nem mesmo preferencialmente, como “vol
valor intrínseco dos respectivos estados por eles provocados. Até
tados para o outro m undo”. Isso ocorre à parte o fato de que
à m ais prim itiva orgia não faltou totalmente um a interpretação
nem toda religião, nem toda religião m undial, conhece o “além ”
significativa, em bora somente as religiões racionalizadas tenham
como um centro de promessas definidas. A princípio, os valores
atribuído um significado metafísico a esses atos especificamente
sagrados das religiões prim itivas, bem como cultas, proféticas
ou não, eram os bens sólidos deste mundo. Com a única ex religiosos, além da aoropriação direta dos valores sagrados. As
ceção parcial do cristianismo e de uns poucos outros credos es religiões racionalizadas sublim aram , dessa forma, a orgia num
pecificamente ascéticos, consistiam tais bens em saúde, vida lon “sacramento”. A orgia, porém, teve um caráter ânim ista e
g a e riqueza. Eram essas as promessas feitas pelas religiões mágico puro; talvez encerrasse apenas um início do pragm atis
chinesa, védica, zoroastriana, hebraica antiga e islâm ica; e da mo universalista, cósmico, do sagrado. E esse pragm atism o é
m esm a forma pelas religiões fenícia, egípcia, babilónica e alem ã peculiar a todo racionalismo religioso.
antiga, bem como pelo hinduísm o e budismo, aos devotos leigos. Mesmo depois dessa sublimação da orgia em sacramento,
Somente o virtuoso religioso, o asceta, o monge, o sufi, o der continua sendo certo, é claro, que para o devoto o valor sa
vixe, lutavam pelos valores sagrados, que se ligavam ao “outro grado, em prim eiro lugar e acim a de tudo, foi um estado psico-
21
322 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES MUNDIAIS 323

lógico no aqu i e agora. Prim ordialm ente, esse estado consiste evidente, essas tendências, por si mesmas, não determ inam o
na atitude emocional per se, diretam ente provocada pelo ato caráter psicológico da religião, embora sobre ele exercessem uma
especificamente religioso (ou m ágico ), pelo ascetismo metódico influência muito duradoura. O contraste entre as classes guer
ou pela contemplação. reira e camponesa, as classes intelectuais e comerciantes, é de
Como atitudes extraordinárias, os estados religiosos só po especial importância. Desses grupos, os intelectuais foram sem
dem ser transientes no caráter e na aparência externa. O rigi pre os expoentes de um racionalismo que, em seu caso, foi re
nalmente, isso aconteceu em toda parte, decerto. A única forma lativam ente teórico. A s classes comerciantes (m ercadores e ar
de distinguir entre estados “religiosos” e profanos é a referência tesãos) foram, pelo menos, possíveis expoentes do racionalismo
ao caráter extraordinário dos estados religiosos. U m estado es de um a espécie mais prática. O racionalismo dos dois tipos
pecial, alcançado por meios religiosos, pode ser buscado como teve características m uito diferentes, mas exerceu sempre uma
um “estado sagrado”, que deve tomar posse do homem e cons grande influência sobre a atitude religiosa.
tituir seu destino permanente. A transição de um estado sa A cim a de tudo, a peculiaridade das cam adas intelectuais nesta
grado transitório para outro, perm anente, foi fluida. questão foi, no passado, da maior importância para a religião.
As duas m ais altas concepções de doutrinas religiosas da No momento, pouco importa para o desenvolvimento de um a
salvação, sublimadas, são o “renascimento” e a “redenção”. O religião que os intelectuais sintam ou não a necessidade de ex
renascimento, um valor m ágico primevo, significava a aquisição perimentar um estado “religioso”, além de todas as outras ex
de um a nova alm a por meio de um ato orgiástico ou através de periências e sensações, a fim de decorar o seu interior com mó
um ascetismo metodicamente planejado. Os homens adquiriam veis autênticos e antigos. U m renascimento religioso jam ais sur
transitoriam ente um a nova alm a no êxtase; mas, por meio do giu dessa fonte. No passado, coube aos intelectuais sublim ar a
ascetismo mágico, podiam tentar conquistá-la permanentemen posse de valores sagrados num a convicção de “redenção”. A
te. O jovem que desejava ingressar na comunidade dos gu er concepção da idéia de redenção, como tal, é m uito antiga, se
reiros como herói, ou participar de suas danças ou orgias m á por ela entendermos um a libertação da desgraça, fome, seca,
gicas, ou que desejava comungar com as divindades em festivi enfermidade e, em últim a análise, do sofrimento e morte. Não
dades de culto, precisava de um a alm a nova. O ascetismo he obstante, a redenção só alcançou significação específica quando
róico ou mágico, os ritos de iniciação dos jovens, os hábitos expressou um a “im agem do mundo” sistemática e racionalizada
sacramentais do renascimento em fases importantes da vida p ri e representou uma posição face ao mundo, pois o significado,
vada e coletiva são, assim, bastante antigos. Os meios usados bem como a qualidade pretendida e real da redenção, depen
nessas atividades variavam , tal como os seus fins: ou seja, as deu dessa im agem e dessa posição. Não as idéias, mas os inte
respostas à pergunta “para que devo renascer?” resses m aterial e ideal, governam diretamente a conduta do ho
Os vários estados religiosos ou mágicos que deixaram sua mem. M uito freqüentemente, as “im agens m undiais” criadas
marca psicológica nas religiões podem ser sistematizados de pelas “idéias” determ inaram , qual manobreiros, os trilhos pelos
acordo com pontos de vista muito diferentes. Não vamos ten quais a ação foi levada pela dinâm ica do interesse. “De que”
tar, aqui, essa sistematização. Em relação ao que dissemos, e “para que” o homem desejava ser redim ido e, não nos esque
desejamos simplesmente indicar de forma bastante geral o que çamos, “podia” ser redim ido, dependia da im agem que ele tinha
do mundo.
se segue.
O tipo de estado empírico de bem-aventurança ou expe Sem pre houve, quanto a isso, possibilidades m uito diferen
riência de renascimento buscado como o valor supremo por tes; o homem podia desejar ser salvo da servidão política e
um a religião variou, óbvia e necessariamente, de acordo com o social e elevado até um reino messiânico no futuro deste m un
caráter da cam ada que o adotou de forma mais destacada. A do; ou podia querer ser salvo da degradação provocada pela
classe dc.s guerreiros cavaleirescos, as classes camponesas e co im pureza ritu al e ter esperança da beleza p ura da existência
merciantes, e os intelectuais de educação literária tiveram, na psíquica e corpórea. Podia desejar não ser aprisionado num
turalm ente, tendências religiosas diferentes. Como se tornará corpo impuro e desejar um a existência exclusivamente espiri
324 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A PSIC O L O G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D I A IS 325

tual. Podia querer ser salvo do jogo eterno e sem sentido das do, apenas m ais acentuadamente. A cim a de tudo, pareceu acon
paixões e desejos humanos, e esperar a quietude da pura con tecer com a racionalização da vida pratica. A s várias grandes
templação do divino. Podia desejar ser salvo do m al radical e formas de levar um a vida racional e metódica foram caracte
da servidão do pecado e esperar a benevolência eterna e livre rizadas pelas pressuposições irracionais, simplesmente aceitas como
no seio de um deus paternal. Podia querer ser salvo da servi “dadas’ , e que foram incorporadas a esses modos de vida. Quais
dão sob a determinação, astrologicamente concebida, das cons foram essas pressuposições está, histórica e socialmente, determ i
telações estelares e ansiar pela dignidade, liberdade e partici nado, pelo menos cm grande parte, através da peculiaridade
pação da substância da divindade oculta. O homem podia que das camadas que foram portadoras dos modos de vida durante
rer ser redim ido das barreiras ao finito, que se expressam no seu período formativo e decisivo. A situação de in teresse dessas
sofrimento, m iséria e morte, no ameaçador castigo do inferno camadas, determ inada social e psicologicamente, levou à peculia
e na esperança de um a bênção eterna num a existencia terrena ridade, tal como aqui a entendemos.
ou paradisíaca. Podia desejar ser salvo do ciclo de renascimentos
A lém disso, os elementos irracionais na racionalização da
com suas compensações inexoráveis para os atos dos tempos
realidade foram os loci para os quais a irrepressível busca da
passados e esperar o descanso eterno. Podia querer ser salvo
posse de valores sobrenaturais pelo intelectualismo foi forçada
da confusão insensata e dos fatos, e ansiar pelo sono sem so
a se retirar. Isso ocorreu principalm ente na m edida em que
nhos. M uitas outras variedades de crenças existiram , certa
m ais destituído de irracionalidade o mundo parece ser. A uni
mente. Atrás delas está sempre um a posição relacionada com
dade da im agem prim itiva do mundo, em que tudo era mágica
algum a coisa do mundo real considerado como^ especificamente
concreta, tendeu a dividir-se em conhecimento racional e do
“sem sentido”. Assim, ficou im plícita a exigência de que a
mínio da natureza, de um lado, e em experiências “m ísticas”,
ordem m undial, em sua totalidade, seja, possa ser e de algum a
do outro. O conteúdo inexprim ível dessas experiências con
forma deva ser, um “cosmo” dotado de sentido. Essa busca, a
tinua sendo o unico alem ” possível, acrescido ao mecanismo
essência do verdadeiro racionalismo religioso, foi realizada pre
de um mundo sem deuses. De fato, o além continua sendo um
cisamente pelas camadas intelectuais. Os caminhos, os resul
reino incorporeo e metafísico, no qual os indivíduos possuem
tados e a eficácia dessa necessidade metafísica de um cosmo
intim am ente o sagrado. Q uando se chegou a essa conclusão sem
significativo variaram muito. N ão obstante, pedemos fazer al
nenhum resíduo, o indivíduo pôde continuar sua busca da sal
guns comentários gerais. vação apenas como indivíduo. Este fenômeno surge em certa
O resultado geral da forma m oderna de racionalizar total forma, com o racionalismo intelectualista progressivo, sempre
mente a concepção do mundo e do modo de vida, teórica e que os homens se arriscaram a racionalizar a im agem do m un
praticamente, de forma intencional, foi desviar a religião para o do como um cosmo governado pelas regras impessoais. N atu
m undo do irracional. Isso se observou na m edida em que m ais ralm ente, isso ocorreu de forma mais acentuada entre religiões
progredia o tipo intencional de racionalização, se tomarmos o e éticas religiosas que foram fortemente determ inadas pelas c a
ponto de observação de um a articulação intelectual de um a im a madas refinadas dos intelectuais dedicados à compreensão, exclu
gem do mundo. Essa transferência da religião para o reino do sivamente cognitiva, do mundo e de seu “significado”. Foi o
irreal ocorreu por várias razões. D e um lado, o cálculo do que ocorreu com as religiões asiáticas e, acim a de tudo, as in
racionalismo coerente não realizou com facilidade um a opera dianas. P ara todas elas, a contemplação tornou-se o supremo e
ção perfeita, na qual não houvesse restos. N a música, a “coma” últim o valor religioso acessível ao homem. A contemplação lhes
pitagórica resistiu a um a racionalização completa orientada para oferecia a entrada na profunda e abençoada tranqüilidade e imo
a física tonal. Os vários grandes sistemas de m úsica de todos bilidade do Uno. Todas as outras formas de estados religiosos,
os povos e idades diferiram na form a pela q ual cobriram, ou porém, foram, na m elhor das hipóteses, consideradas como
ultrapassaram , a irracionalidade inevitável ou, por outro lado, Ersaíz relativam ente valiosos para a contemplação. Isso teve
colocaram a irracionalidade a serviço da riqueza de tonalidades. conseqüências de longe alcance para a relação entre a religião
O mesmo parece ter ocorrido com a concepção teórica do m un t a vida, inclusive a vida econômica, como iremos ver repetida-
326 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A P SIC O L O G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D I A IS 327

mcntc. T ais conseqüências fluem do caráter geral das experiên nalidade do “destino” e, sob certas condições, a idéia de um
cias “místicas”, no senso contemplativo, e das precondições psi “destino” vago e concebido deterministicamente (a M oira ho
cológicas da sua busca. mérica) estiveram acima e atrás das divindades e demônios, conce
A situação na qual as camadas decisivas para o desenvolvi bidos como heróis apaixonados e fortes, prestando assistência
mento de um a religião atuaram na vida prática foi inteiram ente ou sendo hostis, concedendo glória ou saqueando, ou levando
diferente. Quando foram heróis guerreiros cavaleirescos, fun a morte aos heróis humanos.
cionários políticos, classes economicamente aquisitivas, ou, final Os cam pon eses se inclinaram para a mágica. Toda a sua
mente, quando um a hierocracia organizada dominou a religião, existência econômica esteve especificamente ligada à natureza
os resultados foram diversos dos observados quando os intelectuais e os tornou dependentes das forças elementares. Acreditam
requintados tiveram importância decisiva. facilmente num a feitiçaria coatora, dirigida contra espíritos que
O racionalismo da hierocracia nasceu da preocupação com governam as forças naturais, ou que governam através delas, ou
o culto e o mito ou — em proporções bem m ais elevadas — da acreditam em comprar, simplesmente, a benevolência divina. So
cura das almas, ou seja, a confissão do pecado e o conselho aos mente transformações tremendas na orientação da vida consegui
pecadores. Em toda parte a hierocracia buscou monopolizar a ram afastá-los dessa forma universal e primeva de religiosidade.
adm inistração dos valores religiosos. Buscou tambem propor Essas transformações vieram antes de outras camadas, ou de
cionar e controlar a atribuição de bens religiosos na forma de profetas poderosos, que, através de sua capacidade de m ilagres,
“graça” sacramental ou “corporada”, que só podia ser atribuída se legitim aram como feiticeiros. Os estados orgiásticos e extá
ritualm ente pelos sacerdotes e não podia ser alcançada pelo in ticos de “posse”, provocados por meio de tóxicos ou pela dança,
divíduo. A busca individual de salvação, ou a busca de comu são estranhos à honra estamental dos cavaleiros, porque são
nidades livres por meio de contemplação, orgias ou ascetismo considerados como indignos. Entre os camponeses, porém, esses
foi considerada como altamente suspeita e teve de ser regula estados têm ocupado o lugar que o “misticismo” tem entre os
m entada ritualm ente e, acim a de tudo, controlada hierocrati- intelectuais.
camente. Do ponto de vista dos interesses do clero no poder, Finalm ente, podemos considerar as camadas “cívicas” no sen
isso é apenas natural. tido que a palavra tem na Europa ocidental, bem como as ca
O quadro de funcionários políticos, por sua vez, foi sus madas que a elas correspondem em outros lugares: artesãos,
peito de todos os tipos de buscas individuais de salvação e da comerciantes, empresários dedicados ao artesanato e seus deri
livre formação de comunidades como fontes de emancipação vados, que existem apenas no Ocidente moderno. Evidente
em relação à domesticação às mãos da instituição do Estado. Os mente, essas camadas foram as mais am bíguas com relação às
funcionários políticos desconfiaram da concorrência do clero e, posições religiosas que lhes estavam abertas.
acima de tudo, no fundo desprezaram a busca mesma desses Entre essas cam adas “cívicas” os fenômenos religiosos seguintes
valores pouco práticos, que estavam além das finalidades u tili tiveram raízes particularm ente fortes: a graça institucional e
tárias e mundanas. Para todas as burocracias políticas os deveres sacramental da igreja romana nas cidades medievais — os pilares
religiosos foram, em últim a análise, simplesmente obrigações ofi dos papas; a graça mistagógica e sacramental nas cidades antigas
ciais ou sociais da cidadania ou dos estamentos. O ritual cor e na ín d ia; os su fis orgiásticos e contemplativos, a religião dervixe
respondeu a regras e regulamentos, e, portanto, sempre que um a do Oriente M édio; a m ágica tauísta; a contemplação budista; a
burocracia determinou sua natureza, a religião assum iu um ca apropriação ritualista da graça sob a direção de alm as pelos mis-
ráter ritualista. tagogos na Á sia; todas as formas de amor por um salvador; as
Também é comum, para um a cam ada de guerreiros cav a­ crenças na redenção em todo o mundo, do culto de K rishna ao
leirescos, buscar interesses exclusivam ente mundanos e distan culto de Cristo; o ritualism o racional da lei e o sermão da sina
ciar-se de todo “misticismo”. Essas camadas, porém, careceram goga desnudados de toda m agia entre os judeus; as seitas m edie
— e isso é característico do heroísmo em geral — do desejo e vais^ espirituais e antigas bem como ascéticas; a graça da predesti
da capacidade de um domínio racional da realidade. A irracio- nação e a regeneração ética do puritano e do metodista; bem
328 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA A P SIC O L O G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D I A IS 329

como todas as espécies de busca individual da salvação. Tudo camadas de intelectuais requintados. No Ocidente, a atitude
isso deitou raízes m ais firmes entre as camadas “cívicas” do que do ascetismo ativo conservou, repetidamente, a supremacia so
entre qualquer outra ordem. bre o misticismo contemplativo e o êxtase orgiástico ou apático,
É claro que as religiões estão longe de depender, sem am embora esses últim os tipos tenham sido bem conhecidos. O
bigüidades, do caráter das cam adas que assinalamos como do ascetismo ativo, porém, não se lim itou às camadas cívicas. Essa
tadas de afinidades especiais com elas. Não obstante, à prim eira determinação social clara não existiu de forma algum a. A pro
vista, as camadas cívicas parecem, sob esse aspecto e no todo, fecia de Zoroastro dirigia-se à nobreza e ao cam pesinato; a
prestar-se a um a determinação m ais variada. M as é precisa profecia do islã dirigia-se aos guerreiros. Elas, como a profe
mente entre elas que se destacam as afinidades eletivas para cia israelita e a cristã original, bem como a sua pregação, ti
tipos especiais de religião. A tendência para um racionalismo veram um caráter ativo, que contrasta com a propaganda do
prático na conduta é comum a todas as camadas cívicas; é con budismo, tauísm o, neopitagorismo, agnosticismo e sufismo. Cer
dicionada pela natureza de seu modo dc vida, muito desape tas conclusões específicas das profecias emissárias, porém, foram
gado dos laços econômicos com a natureza. Sua existência to baseadas precisamente em elementos “cívicos”.
tal baseou-se em cálculos tecnológicos ou econômicos e no do N a profecia missionária, os devotos não se consideravam
mínio da natureza e do homem, por m ais primitivos que fos como vasos do divino, mas antes como instrumentos de um
sem os meios à sua disposição. A técnica de vida que lhes foi deus. Essa profecia em issária teve um a profunda afinidade
transm itida pode, decerto, ser congelada pelo tradicionalismo, eletiva com um conceito especial de Deus: o conceito de um
como ocorreu repetidamente em toda parte. M as precisamente Senhor da Criação supramundano, pessoal, irado, misericordioso,
por isso, houve sempre a possibilidade — embora em medidas amante, exigente, punitivo. Ele contrasta com o ser supremo
que variam muito — de perm itir o aparecimento de um a regu da profecia exem plar. Em geral, embora de form a algum a sem
lamentação ética e racional da vida. Isso pode ocorrer pela exceção o ser supremo de um a profecia exem plar é um ser
união dessa ética com a tendência do racionalismo tecnológico impessoal porque, como um estado estático, só é acessível por
e econômico. A regulam entação nem sempre foi capaz de im meio da contemplação. A concepção de um Deus ativo, apre
por-se às tradições que, no todo, eram estereotipadas m agica sentada pela profecia emissária, dominou as religiões iraniana
mente. M as onde a profecia proporcionou um a base religiosa, e do O riente Médio, e as religiões ocidentais derivadas delas.
esta poderia pertencer a dois tipos fundam entais de profecia A concepção de um ser supremo e estático, defendida pela
que discutiremos repetidam ente: profecia “exem plar” e profe profecia exem plar, dominou a religiosidade indiana e chinesa.
cia “em issária”. Essas diferenças não são de natureza prim itiva. Pelo con
A prim eira mostra o caminho da salvação pela vida exem trário, só surgiram por meio de um a sublimação de longo al
plar, habitualm ente por um a vida contemplativa e apático-ex- cance das concepções prim itivas de espíritos anim istas e de di
tática. A segunda dirige suas exigên cias ao mundo em nome vindades heróicas que são, em toda parte, semelhantes. Certa
de um deus. N aturalm ente, essas exigências são éticas; e têm, mente a ligação dos conceitos de Deus com vários estados re
com freqüência, um caráter ascético preponderante. ligiosos, considerados e desejados como valores sagrados, também
É bem compreensível que quanto m aior peso as camadas cívi influíram m uito nesse processo de sublimação. Esses estados
cas como tal tiveram, e quanto m ais se desligaram dos laços do ta religiosos foram simplesmente interpretados no sentido de uma
bu e das divisões em clãs e castas, tanto mais favorável foi o ter concepção diferente de Deus, dependendo de serem os estados
reno para as religiões que pedem ação neste mundo. Nessas sagrados, considerados como supremos, experiências contempla
condições, a atitude religiosa preferida pôde tornar-se a atitude tivas místicas ou êxtase apático, ou de serem um a posse orgiás-
do ascetismo ativo, da ação desejada por Deus e alim entada pelo tica do deus, ou inspirações e “mandamentos” visionários.
sentimento de ser o “instrumento” dele, e não a posse da divin No momento, sustenta-se com freqüência que o conteúdo
dade ou a entrega interior e contemplativa a Deus, que apa emocional deve ser considerado como prim ordial, vendo-se os
recia como o valor supremo das religiões influenciadas pelas pensamentos apenas como sua expressão secundária. Decerto,
330 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES MUNDIAIS 331

esse ponto de vista encontra grande justificativa: com base nele, mente os m ais universais. Nem todos tinham ingresso no
poderíamos inclinar-nos a considerar o primado das ligações N irvana, na união contemplativa com o divino, na posse orgiás-
“psicologicas” sobre as “racionais” como o único nexo causal tica ou ascética de Deus. De forma menos vigorosa, a trans
decisivo, e, daí, a ver essas ligações causais como simples inter posição de pessoas para os estados de frenesi religioso ou para
pretações das psicológicas. Isso, porém, seria ir m uito longe, o transe pode ser objeto de um culto universal do povo. Até
segundo as provas concretas. Toda um a série de motivos ex mesmo nessa forma, porém, esses estados psíquicos não foram
clusivamente históricos determinou o desenvolvimento no sen elementos da vida cotidiana.
tido da concepção supra-hum ana ou im anente de Deus. Estas, O fato empírico, importante para nós, de que os homens
por sua vez, influenciaram decisivamente a forma pela qual as têm qualificações diferen tes, de um a forma religiosa, eviden
experiências de salvação foram articuladas. Isso é evidentemen cia-se desde o início da história da religião. Esse fato foi dog
te válido para a concepção do Deus supramundano, como iremos matizado na m ais aguda forma racionalista, no “particularismo
ver repetidamente. Mesmo que ocasionalmente Meister Eckhart da graça”, m aterializado na doutrina da predestinação pelos cal-
tenha colocado, ocasional e expressamente, M arta acima de M a vinistas. Os valores sagrados mais estimados, a capacidade ex
ria, ele o fez, em últim a análise, porque não podia compreen tática e visionária dos xamãs, feiticeiros, ascetas e espiritualistas
der a experiência panteísta de Deus, que é peculiar aos místicos, de todos os tipos, não podiam ser alcançados por todos. A
sem sacrificar totalmente os elementos decisivos da crença oci posse dessas faculdades é um “carisma”, que, na verdade, pode
dental em Deus e na criação. ria ser despertado em algum as pessoas, mas não em todas. Se-
Os elementos racionais de um a religião, sua “doutrina”, têm gue-se disso que toda a religiosidade intensiva tem um a ten
também um a autonom ia: por exemplo, a doutrina indiana do dência para um a espécie de estratificação de estam en tos, de
Carm a, a fé calvinista na predestinação, a justificação luterana acordo com diferenças nas qualificações carismáticas. A religio
através da fé, e a doutrina católica do sacramento. O pragm a sidade “heróica” ou “virtuosa” 5 se opõe à religiosidade em mas
tismo religioso racional da salvação, fluindo da natureza das sa. Por “massa” entendemos os que são religiosam ente “anti-
im agens de Deus e do mundo, teve, sob certas condições, re musicais” ; não queremos dizer, é claro, os que ocupam uma
sultados de longo alcance para o modo de vida prático. posição inferior na ordem secular. Nesse sentido, os portadores
Estes comentários pressupõem que a natureza dos desejados de privilégios de um a religião virtuosa foram as ligas de
valores sagrados foi fortemente influenciada pela natureza da feiticeiros e os dançarinos sagrados; os grupos religiosos pri
situação de interesse externa e o correspondente modo de vida vilegiados da Sram ana indiana e dos primeiros “ascetas” cris
das camadas dominantes e, assim, pela própria estratificação tãos”, que eram expressamente reconhecidos na congregação como
social. M as o inverso também ocorre: sempre que a direção da um estamento especial; os “espiritualistas” paulinos, e ainda
totalidade do modo de vida foi racionalizada metodicamente, foi m ais os agnósticos, a ecclesiola pietista; todas as “seitas” genuí
profundamente determ inada pelos valores últim as na direção nas — isto é, sociologicamente falando, associações que aceitam
dos quais marchou a racionalização. Esses valores e posições fo apenas pessoas qualificadas religiosamente em seu m eio; e, fi
ram , assim, determinados religiosam en te. Sem dúvida não fo nalmente, as comunidades de monges em todo o mundo.
ram sempre, nem exclusivamente, decisivos; mas foram decisivos Ora, toda autoridade hierocrática e oficial de um a “Igreja”
na m edida em que um a racionalização ética predominou, pelo — isto é, um a comunidade organizada por funcionários num a
menos no que se relaciona com a influência exercida. Em geral, instituição que atribui dons da graça — luta principalmente
êsses valores religiosos também foram, e com freqüência de contra toda religião virtuosa e contra seu desenvolvimento au
forma absoluta, decisivos. tônomo. A Igreja, sendo portadora da graça institucionalizada,
U m fator foi muito importante na determinação da natu busca organizar a religiosidade das massas e colocar os seus
reza das inter-relações mútuas das situações de interesse externa próprios valores oficialm ente monopolizados e mediados no lugar
e interna. Os valores sagrados “supremos”, prometidos pela das qualificações estamentais autônomas e religiosas, dos virtuo
religião e que foram discutidos acima, não foram necessària- sos religiosos. Pela sua natureza, isto é, segundo a situação
332 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES MUNDIAIS 333

dc interesse de seus representantes, a Igreja deve ser “demo- que a religião prescrevia ao virtuoso, houve várias possibilidades
cratica” no sentido de tornar os valores sagrados acessíveis em de se estabelecer um a ética racional da vida cotidiana. A rela
geral. Isto significa ser ela a favor de um universalismo da ção da religião virtuosa com a v ida diária de trabalh o no centro
graça e da suficiência ética para todos os que estão colocados da economia variou, especialmente segundo a peculiaridade dos
sob sua autoridade institucional. Sociologicamente, o processo valores sagrados desejados por essas religiões.
de nivelam ento constitui um paralelo completo com as lutas po
Sempre que os valores sagrados e os meios de redenção de
líticas da burocracia contra os privilégios políticos dos estam en
um a religião virtuosa tiveram um caráter contemplativo ou ex-
tos aristocráticos. Como ocorre na hierocracia, toda burocracia
política plenamente desenvolvida é necessariamente, e em sen tático-orgiástico, não houve relação entre a religião e os atos
tido bastante parecido, “democrática” — ou seja, no senso do práticos do mundo cotidiano de trabalho. Nesses casos, a eco
nivelam ento e da luta contra os privilégios estamentais que com nomia e todas as outras ações no mundo foram consideradas
petem com o seu poder. religiosamente inferiores, e não foi possível deduzir motivos psi
cológicos p ara ação m undana com base na atitude considerada
Os compromissos mais variados resultaram dessa luta entre como o valor supremo. Em sua essência m ais íntim a, as reli
funcionalismos e virtuosos. T ais lutas nem sempre foram ofici- giões extáticas foram antes especificamente hostis à vida econô
ciais, embora tenham existido sempre, pelo menos disfarçada mica. A s experiências místicas, orgiásticas e extáticas são es
mente. Assim , a religiosidade do U le m á 6 se contrapôs à religio tados extraordinariam ente psíquicos; afastam-se d a vida coti
sidade dos D ervixes; os primeiros bispos cristãos se opuseram diana e de toda conduta prática. Essas experiências são, por
aos sectários espiritualistas e heróicos, bem como ao poder de tanto, consideradas como “sagradas”. Nessas religiões, um abis
A Chave do carism a ascético; os pregadores luteranos e a Igreja mo profundo separa o modo de vida do leigo e o modo de vida
anglicana e sacerdotal se opuseram ao agnosticismo em geral; da com unidade de virtuosos. O domínio dos grupos estamentais
a Igreja estatal russa se opôs às seitas; e a direção oficial do dos virtuosos religiosos sobre a comunidade religiosa se trans
culto confuciano se colocou contra a busca budista, tauísta e forma facilm ente num a antropolatria m ágica; o virtuoso é cul
sectária da salvação, de todos os tipos. Os virtuosos religiosos
tuado diretam ente como um Santo, ou pelo menos os leigos
viram -se obrigados a ajustar suas exigências às possibilidades da
aceitam sua bênção e seus poderes mágicos como meio de pro
religiosidade da vida cotidiana a fim de conseguir e manter
mover o êxito mundano ou a salvação religiosa. O que o cam
a preferência ideal e m aterial das massas. A natureza de suas
ponês era para o dono da terra, o leigo era para o b h i\ sh u 1 bu
concessões foi, naturalm ente, de significação prim ordial para a
dista e jain ista: em últim a análise, meras fontes de tributos, que
forma pela qual influíram religiosam ente na vida diária. Em
quasie todas as religiões orientais, os virtuosos perm itiram que lhe perm itiam viver exclusivamente para a salvação religiosa,
as massas permanecessem m ergulhadas na tradição. Assim, a sem se ocupar de trabalho profano, que sempre põe em risco
influência dos virtuosos religiosos foi infinitam ente menor do sua salvação. Não obstante, a conduta do leigo ainda podia
que a observada quando a religião empreendeu, ética e geral sofrer um a certa regulam entação ética, pois o virtuoso era o
mente, a racionalização da vida cotidiana. Isso aconteceu quan seu conselheiro espiritual, seu padre confessor e directeur de
do a religião visou precisamente às massas e cancelou, porém, l'âm e. D aí exercer ele, freqüentemente, um a poderosa influên
m uitas de suas exigências ideais. A lém das relações entre a cia sobre o leigo, que poderia não ser no sentido do modo de
religiosidade dos virtuosos e a religião das massas, que final vida religioso do virtuoso, mas relacionada meram ente com
mente resultou dessa luta, a natureza peculiar da religiosidade detalhes de cerimônias, rituais e convenções. A ação neste m un
concreta dos virtuosos foi de im portância decisiva para o desen do continuava, em princípio, religiosamente insignificante; e
volvimento do modo de vida das massas. Essa religiosidade comparada com o desejo de fins religiosos, a ação estava na
virtuosa também foi, assim, importante para a ética econômica direção oposta.
da respectiva religião. A religião do virtuoso foi a religião au Por fim , o carism a do “místico” puro só serve a ele. O
tenticamente “exem plar” e prática. Segundo o modo de vida carisma do verdadeiro mágico serve aos outros.
334 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES MUNDIAIS 335

A situação foi muito diferente quando os virtuosos, reli religiosamente desvalorizado e rejeitado como sendo um a cria
giosamente qualificados, combinaram-se num a seita ascética, lu tura e um vaso do pecado, pois psicologicamente ele estará ainda
tando para modelar a vida neste mundo segundo a vontade de mais afirm ado como o teatro da atividade desejada por Deus
um deus. N a verdade, duas coisas eram necessárias antes que na “vocação” que se tem no mundo. Esse ascetismo do mundo
isso pudesse acontecer de forma genuína. Primeiro, o valor rejeita o m undo no sentido de que despreza e considera como
supremo e sagrado não deve ser de natureza contemplativa; tabus os valores da dignidade e beleza, da bela loucura e do
não deve consistir num a união com um ser supramundano que, belo senhor, do poder exclusivamente secular e do orgulho ex
em contraste com o mundo, dura para sempre; nem num a clusivamente m undano do herói. O ascetismo superou êsses
un ia m y stica a ser experim entada orgiasticamente ou extático- valores como os concorrentes do reino de Deus. Mas, precisa
-apaticamente, pois esses modos de vida estão distantes da vida mente devido à sua rejeição, o ascetismo não fugiu do mundo,
cotidiana e além do mundo real, e nos afastam dele. Segundo, como ocorreu com a contemplação. Ao invés disso, êle desejou
essa religião deve, na medida do possível, ter desistido do ca racionalizar o mundo eticamente de acordo com os m andam en
ráter puramente mágico ou sacram ental dos m eios da graça, que tos de Deus. Portanto, continuou a voltar-se para o mundo
sempre desvalorizam a ação neste m undo como sendo, na me num sentido m ais específico e completo do que na ingênua
lhor das hipóteses, apenas relativa, em sua significação religiosa, “afirmação do mundo” da hum anidade antiga e do catolicismo
e condicionar a decisão sobre a salvação ao êxito de processos leigo, por exemplo. No ascetismo do mundo, a graça e o esta
que n ão são de um a natureza cotidiana racional. do escolhido do homem religiosamente qualificado submetem-se
à prova na vida diária. N a verdade, não o fazem na vida
Quando os virtuosos religiosos combinaram-se num a seita cotidiana como existe, mas nas atividades metódicas e racio
ascética ativa, dois objetivos foram totalm ente alcançados: o de- nalizadas de vida de trabalho diário a serviço do Senhor. T rans
sencantamento do mundo e o bloqueio do caminho da salva formada racionalm ente num a vocação, a conduta cotidiana tor-
ção através da fu ga ao mundo. O caminho da salvação é des na-se central para a comprovação do estado de graça. As sei
viado da “fuga contemplativa do mundo”, dirigindo-se ao
tas ocidentais dos virtuosos religiosos ferm entaram a racionaliza
invés disso para um “trabalho neste mundo”, ativo e ascético.
ção metódica da conduta, inclusive a econômica. Essas seitas
Se ignorarmos as pequenas seitas racionalistas que se encontram
não constituíram válvulas para o desejo de fugir à falta de sen
em todo o mundo, veremos que isso só foi alcançado pela gran
tido do trabalho nesse mundo, como o fizeram as comunidades
de Igreja e organizações sectárias do protestantismo ocidental e
asiáticas dos extáticos: contemplativas, orgiásticas ou apáticas.
ascético. Os destinos perfeitamente distintos e os destinos his
toricamente determinados das religiões ocidentais cooperaram A s transições e combinações m ais variadas se encontram
nessa questão. Em parte, o ambiente social exerceu um a influên entre os pólos opostos da profecia “exem plar” e “em issária”.
cia, acim a de tudo o ambiente da cam ada decisiva para o desen N em as religiões, nem os homens, são livros abertos. Foram
volvimento dessa religião. Em parte, porém — e com a mesma antes construções históricas do que construções lógicas ou mesmo
intensidade — o caráter intrínseco do cristianism o exerceu um a psicológicas sem contradição. Com freqüência, encerraram um a
influência: o Deus supramundano e a lim itação dos meios e série de motivos, cada qual, se seguido isolada e coerentemente,
caminhos de salvação, determinados historicamente, primeiro pela teria obstruído o caminho dos outros ou se chocado contra eles
profecia israelita e pela doutrina da T o ra .8 frontalmente. N as questões religiosas, a “coerência” foi a ex
O virtuoso religioso pode ser colocado neste mundo como ceção, e não a regra. As formas e meios de salvação também
o instrumento de um Deus e isolado de todos os meios mágicos são psicologicamente ambíguos. A busca de Deus do monge
de salvação. Ao mesmo tempo, é im perativo ao virtuoso que cristão antigo, e a do quacre, encerravam elementos contem
ele se “prove” acima de Deus, como tendo sido chamado exclu­ plativas muito fortes. Não obstante, o conteúdo total de suas
siv am en te pela qualidade ética de sua conduta neste mundo. Isso religiões e, acima de tudo, seu Deus supramundano da criação
realm ente significa que ele tem de “provar-se” a si mesmo tam e seu modo de se assegurarem de seus estados de graça repe
bém. Não importa até que ponto o “mundo”, como tal, é tidamente os levaram ao curso da ação. Por outro lado, o
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monge budista também era atuante, mas suas atividades se afas de fatores isolados. Seria, porém, muito pouco proveitoso res
tavam de qualquer racionalização coerente neste m u n d o; sua saltar e repetir aq ui o que não precisa ser dito.
busca de salvação foi, em últim a análise, orientada para a fuga A s características das religiões que têm im portância para
à “roda” das reencarnações. As irm andades sectárias, e outras, a ética econômica nos interessam principalm ente de um ponto
da Idade M édia ocidental foram precursoras da penetração re de vista preciso: a forma pela qual se relacionam com o racio-
ligiosa da vida cotidiana. T iveram sua contra-imagem nas fra nalismo econômico. Queremos dizer, m ais precisamente, o racio-
ternidades do islã, que se desenvolveram ainda m ais am pla nalismo econômico do tipo que, desde os séculos X V I e XVII,
mente. A cam ada típica dessas irm andades no Ocidente e islã dominou o Ocidente como parte da racionalização particular da
eram idênticas: pequenos burgueses e especialmente artesãos.
vida civil, e que se tornou fam iliar nesta parte do mundo.
Não obstante, o espírito de suas respectivas religiões era muito
diferente. V istas externamente, numerosas comunidades reli Temos de lembrar-nos, antes de m ais nada, que “raciona-
giosas hindus parecem-se a “seitas”, tal como as do Ocidente. lismo” pode significar coisas bem diferentes. Significa um a coisa
O valor sagrado, porém, e a form a pela qual os valores são se pensarmos no tipo de racionalização que o pensador sistemá
mediados indicam direções radicalm ente diferentes. tico realiza sobre a im agem do m undo: um domínio cada vez
Não acumularemos m ais exemplos aqui, pois desejamos con mais teórico da realidade por meio de conceitos cada vez mais
siderar as grandes religiões separadamente. Sob nenhum aspec precisos e abstratos. O racionalismo significa outra coisa se
to podemos simplesmente integrar as várias religiões m undiais pensarmos na realização metódica de um fim , precisamente dado
num a cadeia de tipos, cada qual significando um a nova “fase”. e prático, por meio de um cálculo cada vez m ais preciso dos
Todas as grandes religiões são individualidades históricas de meios adequados. Esses tipos de racionalismo são m uito dife
natureza altam ente complexa; tomadas em conjunto, esgotam rentes, apesar do fato de que em últim a análise estão insepa
apenas um as poucas das possíveis combinações que poderiam ravelmente juntos. Tipos semelhantes podem ser distinguidos,
ser formadas a partir dos numerosos fatores individuais a serem mesmo dentro da compreensão intelectual da realidade; por
considerados nessas combinações históricas. exemplo, as diferenças entre a Física inglesa e a continental tem
sido atribuída a essa diferença de tipos dentro da compreensão
Assim, a descrição seguinte não constitui, de forma algum a,
da realidadç. A racionalização da conduta de vida que vamos
um a “tipologia” sistemática da religião. Por outro lado, não
exam inar aqui assume formas excepcionalmente variadas.
constitui também um trabalho exclusivam ente histórico. É “ti-
pológica” no sentido de que exam ina o que é tipicamente im No sentido da ausência de toda metafísica e de quase todos
portante nas realizações históricas da ética religiosa. Isso é im os resíduos de ligação religiosa, o confucionismo é racionalista
portante para a conexão das religiões com os grandes contrastes em tais proporções que se coloca na fronteira extrem a do que
das m entalidades econ ôm icas. Outros aspectos serão despreza poderíamos cham ar de ética “religiosa”. Ao mesmo tempo, é
dos; a descrição não pretende oferecer um quadro completo das m ais racionalista e sóbrio, no sentido da ausência e rejeição de
religiões m undiais. A s características peculiares às religiões in tôdas as m edidas não-utilitárias, do que qualquer outro siste
dividuais, em contraste com outras religiões, mas que ao mes m a ético, com a possível exceção do de J. Bentham . Não
mo tempo são importantes para nosso interesse, devem ser des obstante, o confucionismo, apesar de analogias constantes, reais
tacadas com rigor. U m a apresentação que ignore essas im por e evidentes, difere extraordinariam ente do racionalismo prático de
tâncias especiais teria, com freqüência, de reduzir a intensidade Bentham, ou qualquer outro tipo de racionalismo ocidental. O
das características em que estamos interessados. Essa apresen supremo ideal artístico da Renascença era “racional” no sentido
tação equilibrada teria, quase sempre, que acrescentar outras ca de um a crença num “cânone” válido, e a visão da vida da
racterísticas e, ocasionalmente, de dar maior ênfase ao fato de Renascença foi racional no sentido de rejeitar laços tradicio
que, decerto, todos os contrastes qualitativos na realidade, em nalistas e de ter fé no poder da n aturalis ratio. Esse tipo de
últim a análise, podem ser compreendidos, de algum a forma, racionalismo predominou apesar de certos elementos de m is
como diferenças exclusivamente quantitativas nas combinações ticismo platonizante.
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“Racional” também pode significar um a “disposição sis minante. Nossas “associações” modernas, acim a de tudo as
tem ática”. 9 Nesse sentido, os métodos seguintes são racionais: políticas, são do tipo de autoridade “legal”. Ou seja, a legitim i
métodos de ascetismo mortificatório ou mágico, de contempla dade do detentor do poder de dar ordens baseia-se em regras
ção em suas formas mais coerentes — por exemplo, na ioga — estabelecidas racionalm ente por decretação, acordo ou imposição.
ou nas manipulações das m áquinas de oração do budismo re A legitim ação desses resultados baseia-se, por sua vez, numa
cente. “constituição” racionalmente decretada ou interpretada. As or
Em geral, todos os tipos de ética prática que são sistemática dens são dadas em nome da norma impessoal, e não em nome
e claram ente orientados para metas fixas de salvação são “ra da autoridade pessoal; e mesmo a emissão de um a ordem cons
cionais”, em parte no mesmo sentido em que o método formal titui a obediência para com um a norma, e não um a liberdade,
é racional e em parte no sentido que distinguem entre normas um favor ou privilégio arbitrários.
“válidas” e o que é empiricamente dado. Esses tipos de pro A “autoridade” é o detentor do poder de m andar; jam ais
cessos de racionalização são de interesse para o que diremos o exerce por direito próprio; conserva-o como um depositário
em seguida. Seria insensato tentar antecipar a tipologia dessas da “instituição compulsória” e im pessoal.12 Essa instituição é
presentações aqui, pois elas visam a um a contribuição para essa constituída de padrões específicos de vida de um a pluralidade
tipologia mesma. de homens, definidos ou indefinidos, e, não obstante, especifi
Para fazermos essa tentativa, devemos tomar a liberdade de cados segundo regras. Seu padrão de vida conjunto é gover
ser “não-históricos”, no sentido de que a ética das religiões in nado norm ativam ente pelos regulam entos estatutários.
dividuais é apresentada sistemática e essencialmente com uni
dade maior do que jam ais ocorreu no fluxo de seu desenvolvi A “área de jurisdição” é um setor, funcionalm ente delim i
mento real. Ricos contrastes que estiveram vivos nas religiões tado, de possíveis objetos de comando e assim delim ita a esfera
individuais, bem como fatos incipientes e ramificações, devem do poder legítim o da autoridade. A hierarquia dos superiores,
ser deixados de lado. As características que nos parecem im a que os funcionários podem recorrer e se queixar, n um a ordem
portantes devem, com freqüência, ser apresentadas com maior de classificações, está em oposição ao cidadão ou membro da
coerência lógica e menor desenvolvimento histórico do que real associação. H oje, esta situação também se aplica à associação
mente ocorreu. Se fosse feita arbitrariam ente, essa simplificação hierocrática que é a Igreja. O pastor ou padre tem sua “juris
seria um a “falsificação” histórica. Isso, porém, não ocorre, pelo dição” lim itada com clareza por normas fixas. Isso também
menos intencionalmente. Procuramos sublinhar sempre as ca ocorre com o chefe supremo da Igreja. O presente conceito da
racterísticas do quadro total de um a religião que foram decisivas “infalibilidade” [p apal] é um conceito jurisdicional. Seu signi
para o condicionamento do modo de vida prático, bem como as ficado profundo difere do significado que o precedeu, mesmo
que distinguem um a religião de o u tra .10 até a época de Inocêncio III.
Finalm ente, antes de entrarmos no assunto, algum as obser A separação entre a “esfera privada” e a “esfera oficial” (no
vações a título de explicação das peculiaridades terminológicas caso da infalibilidade: a definição ex cath edra) é realizada na
que ocorrem freqüentemente na presentação.11 Igreja da m esm a forma pela qual se faz no funcionalism o po
Quando bem desenvolvidas, as associações e comunidades lítico ou em outros setores. A separação legal entre a autori
religiosas pertencem a um tipo de autoridade corporativa. R e dade e os meios de adm inistração (seja de form a natural ou
presentam associações “hierocráticas”, ou seja, seu poder de go pecuniária) é realizada na esfera das associações políticas e hie
vernar é apoiado pelo monopólio na concessão ou recusa de rocráticas da m esm a forma que a separação entre o trabalhador
valores sagrados. c os meios de produção na economia capitalista: corre paralela
Todos os poderes dominantes, profanos e religiosos, políti a elas.
cos e apolíticos, podem ser considerados como variações de certos
tipos puros, ou aproximações deles. Esses tipos são construídos Não importa quantos inícios se encontrem no passado re
buscando-se a base da legitim idade pretendida pelo poder do moto, em seu plçno desenvolvimento tudo isso é especificamente
340 E N SA IO S DE SO C IO LO C IA A PSIC O L O G IA SO C IA L DAS RE LIG IÕ ES M U N D I A IS 341

moderno. O passado conheceu outras bases de autoridade, bases idoso sobre os membros da casa e do clã; o domínio do senhor
que, incidentalm ente, se estenderam como sobrevivências até o e patrono sobre os servas e os libertos; do senhor sobre os servos
presente. Desejamos simplesmente delinear essas bases de auto domésticos e funcionários da casa; do príncipe sobre os funcio
ridade, aqui, de um a forma terminológica. nárias da casa e da corte, os nobres que ocupam cargos, os clien
1. Nas discussões seguintes, a expressão “carisma” deve tes, vassalos; do senhor patrim onial e príncipe soberano ( Lan d es-
vater) sobre os “súditos”.
ser compreendida como referindo-se a um a qualidade extraor­
din ária de um a pessoa, quer seja tal qualidade real, pretensa É característico da autoridade patriarcal e da patrim onial, que
ou presumida. “Autoridade carism ática”, portanto, refere-se a representa um a variedade da prim eira, que o sistema de normas
um domínio sobre os homens, seja predominantemente externo invioláveis seja considerado sagrado. U m a infração delas resul
ou interno, a que os governados se submetem devido à sua taria em m ales mágicos ou religiosos. Lado a lado com esse sis
crença na qualidade extraordinária da pessoa específica. O fei tema há um setor de livre arbitrariedade e preferência do senhor,
ticeiro mágico, o profeta, o chefe de expedições de caça e saque, que em princípio ju lg a apenas em termos de relações “pessoais”,
o chefe guerreiro, o governante dito “cesarista” e, em certas e não “funcionais”. Nesse sentido, a autoridade tradicionalista é
condições, o chefe pessoal de um partido são desses tipos de go irracional.
vernantes para os seus discípulos, seguidores, soldados, partidá 3. Em toda a H istória antiga, a autoridade carismática, que
rios etc. A legitim idade de seu domínio se baseia na crença e se baseia num a crença na santidade ou no valor do extraordiná
na devoção ao extraordinário, desejado porque ultrapassa as rio, e o domínio tradicionalista (p atriarcal), que se baseia na
qualidades hum anas norm ais e originalm ente considerado como crença na santidade das rotinas cotidianas, dividem as m ais im
supernatural. A legitim idade do domínio carismatico baseia-se, portantes relações de autoridade entre si. Os portadores do ca
assim, na crença nos poderes mágicos, revelações e culto do
risma, os oráculos dos profetas, ou os editos dos senhores da
herói. A fonte dessas crenças é a> “prova” das qualidades ca
guerra carismáticos eram os únicos que podiam integrar leis “no
rism áticas através de m ilagres, de vitorias e outros exitos, ou
vas” do círculo do que era m antido pela tradição. Assim como
seja, através do bem-estar dos governados. T ais crenças, e a
a revelação e a espada eram dois poderes extraordinários, eram
autoridade pretendida que nelas se apóia, desaparecem, portanto,
também dois inovadores típicos. De modo característico, porém,
ou am eaçam desaparecer, tão logo falta a prova e tão logo a
ambos sucum biram à rotinização tão logo seu trabalho foi rea
pessoa carism ática qualificada parece estar destituída de seu lizado.
poder mágico ou esquecida pelo seu deus. O domínio carism á
tico não é controlado segundo as normas gerais, tradicionais Com a morte do profeta ou do senhor da guerra, surge a ques
ou racionais, mas, em princípio, de acordo com revelações e tão da sucessão, que pode ser resolvida pelo K ü ru n g, que original
inspirações concretas, e, nesse sentido, a autoridade carism atica mente não era um a “eleição”, mas um a seleção em termos de
é “irracional”. É “revolucionária” no sentido de não estar presa qualificação carism ática; ou pode ser resolvida pela substancia-
à ordem existente: “Está e sc rito ... mas eu vos d i g o ...!” ção sacram ental do carisma, sendo o sucessor designado pela
consagração, como ocorre na sucessão hierocrática ou apostólica;
2. O “tradicionalism o”, na análise seguinte, refere-se às ati
ou a crença na qualificação carismática do clã do líder carism á
tudes tomadas em relação ao dia habitual de trabalho e a cren
tico pode levar à crença no carisma hereditário, tal como re
ça na rotina diária como normas invioláveis de conduta. O do
presentado pelo reinado hereditário e pela hierocracia hereditá
m ínio que tem essa base, ou seja, a devoção ao que sempre
ria. Com essa rotinização, as regras passam a dom inar, de al
existiu, realm ente, supostamente ou presumidamente, será cha
gum a forma. O príncipe ou o hierocrata já não governa em
mado de “autoridade tradicionalista”. virtude de qualidades exclusivamente pessoais, m as em virtude
O patriarcalism o é, de longe, o tipo m ais importante de do de qualidades adquiridas ou herdadas, ou porque foi legitim a
mínio da legitim idade, baseado na tradição. Significa a autori do por um ato de eleição carismática. O processo de rotinização,
dade do pai, do m arido, do m ais velho na casa, do parente mais e assim de tradicionaiização, tem início.
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T alvez seja ainda mais importante que, quando a organiza finanças próprias, bem como governantes seculares que têm ar
ção da autoridade se torna perm anente, o quadro que apóia o mazéns e arsenais próprios para o abastecimento do exército e
governante carismático se torne rotinizado. Os seus discípulos, dos funcionários.
apóstolos e seguidores tornam-se padres, vassalos feudais e, acima O caráter das camadas de funcionários de cujo apoio se
de tudo, funcionários. A comunidade carismática original vivia valia o governante na luta pela expropriação das prerrogativas
comunisticamente de donativos, esmolas e do saque de guerra: estamentais variou muito na História. N a Á sia e no Ocidente,
estava, assim, especificamente alienada da ordem econômica. durante o começo da Idade M édia, eram tipicamente clérigos;
A comunidade foi transformada num a cam ada de ajudas ao go na Idade M édia oriental, eram tipicamente escravos e clientes;
vernante e dependia dele para a manutenção pelo usufruto da para o Principado Romano, os escravos libertos foram, em pro
terra, do cargo, das rendas in n atura, dos salários e, daí, das pre porções lim itadas, típicos; os letrados humanistas foram típicos
bendas. O quadro obtinha seu poder legítim o em estágios de na C hina; e, finalm ente, os juristas foram típicos para o Oci
apropriação muito variados, como enfeudamento, concessão e no dente moderno, nas associações políticas e eclesiásticas.
meação. Em geral, isso significava que as prerrogativas prin
A vitoria do poder do príncipe e a expropriação das prer
cipescas se tornavam patrim on iais na sua natureza. O patrim o-
nialismo pode desenvolver-se também partindo do patriarcalismo rogativas particulares significaram , em toda parte, pelo menos
puro, através da desintegração da autoridade rigorosa do senhor a possibilidade, e com freqüência a introdução real, de uma
patriarcal. Em virtude da concessão, o prebendário ou vassalo administração racional. Como iremos ver, porém, essa racio
teve, como regra, o direito pessoal ao cargo que lhe era con nalização variou muito, em proporções e significado. Devemos,
fiado. Como o artesão que possuía os meios econômicos de acima de tudo, distinguir entre a racionalização substan tiv a da
produção, o prebendário possuía os meios de administração. T i administração e do judiciário por um príncipe patrim onial e a
nha de arcar com os custos da adm inistração com os proventos racionalização form al realizada pelos juristas. Â prim eira lan
de seu cargo ou outra renda, ou só transferia ao senhor parte ça bênçãos éticas utilitárias e sociais sobre seus súditos, tal como
dos tributos coletados dos súditos, conservando o restante. No o senhor de um a grande casa faz para com os membros dela.
caso extremo, poderia legar e alienar seu cargo, como outras Os juristas procuraram promover o domínio das leis gerais apli
posses. Desejamos falar do patrim onialismo estamental quando cáveis a todos os “cidadãos do Estado”. Por m ai» fluida que
o desenvolvimento pela apropriação do poder prerrogativo al essa distinção tenha sido — por exemplo, na Babilônia ou Bi-
cançou esse estágio, independente de ter ele partido de um zâncio, na Sicília dos Hohenstaufen, ou na Inglaterra dos Stuarts,
início carismático ou patriarcal. ou na França dos Bourbons — em últim a análise, a diferença
entre a racionalidade substantiva e formal persistiu. E, no con
A evolução, porém, raram ente se deteve nessa fase. Cons
junto, foi o trabalho dos ju ristas que deu origem ao moderno
tatamos sempre um a luta entre o senhor político ou hierocra-
“Estado” ocidental, bem como às “Igrejas” ocidentais. Não
tico e os donos ou usurpadores das prerrogativas, de que se
discutiremos aqui a fonte de seu vigor, as idéias substantivas e
apropriaram como privilégios. O governante tenta expropriar
os meios técnicos desse trabalho.
os estamentos, e os estamentos tentaram expropriar o governante.
Quanto m ais o governante consegue ligar à sua pessoa um qua Com a vitória do racionalismo jurídico form alista, surgiu
dro de funcionários que dependem exclusivamente dele e cujos no Ocidente o tipo legal de domínio, lado a lado com os tipos
interesses estão ligados ao seu, tanto m ais essa luta e decidida transmitidos. O Governo burocrático não era, e não é, a única
em favor do governante e tanto m ais os estamentos dotados variedade da autoridade legal, mas constitui a sua forma mais
de privilégios são gradualm ente expropriados. Sob tal aspecto, pura. O Estado moderno e a autoridade m unicipal, o moderno
o príncipe adquire meios adm inistrativos próprios e os m antêm padre e capelão catolicos, os funcionários e empregados dos
firm em ente sob o seu domínio. Encontramos, assim, governan bancos modernos e das grandes empresas capitalistas represen
tes políticos no Ocidente, e progressivamente, a partir de Inocên- tam, como ja mencionamos, os tipos m ais importantes dessa
cio III até João XXII, também governantes hierocráticos com estrutura de domínio.
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A característica seguinte deve ser considerada como decisiva ríficos e formas semelhantes, de um lado, e o domínio plebisci-
para a nossa term inologia: na autoridade legal, a submissão não tário, do outro, ou certas formas de Governo dos notáveis que
se baseia na crença e dedicação às pessoas carismaticam ente do são formas especiais de domínio tradicional. T ais formas, porém,
tadas, como profetas e heróis, ou na tradição sagrada, ou na de pertenceram certamente aos fermentos mais importantes para a
voção a um senhor e amo pessoal definido por um a tradição manifestação do racionalismo político. Pela term inologia suge
ordenada, ou na devoção aos possíveis ocupantes de cargos e rida aqui, não desejamos forçar esquematicamente a vida his
prebendas legitim ados por si mesmos, através do privilégio e tórica infin ita e m ultifária, mas simplesmente criar conceitos
da concessão. A submissão à autoridade legal baseia-se antes úteis para finalidades especiais e para orientação.
num laço impessoal a um “dever de ofício” funcional e definido A s mesmas restrições são válidas para um a distinção ter
de modo geral. O dever de ofício — como o direito correspon minológica final. Compreendemos por situação estamental a
dente de exercer a autoridade: a “competência de jurisdição” — probabilidade de que certos grupos sociais recebam h on ras so
é fixado por normas estabelecidas racion alm en te, através de ciais positivas ou negativas. As possibilidades de alcançar hon
decretos, leis e regulamentos, de tal modo que a legitim idade ras sociais são determ inadas prim ordialm ente pelas diferenças
da autoridade se torna a legalidade da regra geral, que é cons nos estilos de v ida desses grupos e, portanto, principalm ente
cientemente desenvolvida, prom ulgada e anunciada com um a cor pelas diferenças na educação. Referindo-nos à terminologia
reção formal. precedente de formas de autoridade, podemos dizer que, se
cundariam ente, as honras sociais muito freqüente c tipicamente
A s diferenças entre os tipos de autoridade que descrevemos
estão associadas à pretensão da respectiva cam ada, legalm ente
relacionam-se com todos os detalhes de sua estrutura social e
assegurada e monopolizada, aos direitos soberanos ou às opor
sua significação econômica. Somente um a apresentação sistemá
tunidades de renda c lucro de um determ inado tipo. Assim,
tica poderia demonstrar até que ponto as distinções e termino
se forem constatadas todas essas características — o que, de
logias escolhidas aqui são convenientes. Só podemos ressaltar
certo, nem sempre ocorre — um estamento é um grupo socia
que, adotando esse critério, não pretendemos ter usado o único
lizado através de seus estilos de vida especiais e noções especí
possível, nem que todas as estruturas em píricas de domínio de
ficas de honras, e as oportunidades econômicas que monopoliza
vam corresponder a um desses tipos “puros”. Pelo contrário, a
legalm ente. U m estamento é sempre um tanto socializado, mas
grande m aioria dos casos empíricos representa um a combinação
nem sempre organizado em associação. Com m erciu m , no sen
ou estado de transição entre vários desses tipos puros. Seremos
tido de “intercâm bio social”, e con nubium entre grupos, são
forçados, repetidamente, a criar expressões como “burocracia
as características típicas da estim a m útua entre os pares nos
patrim onial” para deixar claro que os traços característicos do
estamentos; sua ausência significa diferenças estamentais.
respectivo fenômeno pertencem em parte à forma racional de
domínio, ao passo que outros traços pertencem à forma tradi Em contraste, por “situação de classe”, entendemos as opor
cionalista de domínio, neste caso à dos estamentos. Tam bém tunidades de obter manutenção e renda, prim ordialm ente deter
reconhecemos formas, m uito importantes, que se difundiram m inadas pelas situações típicas, econ om icam en te relevantes; a
universalm ente através da H istória, como a estrutura feudal propriedade de um certo tipo, ou a habilitação adquirida na
do domínio. Aspectos importantes dessas estruturas, porém, execução de serviços procurados, é decisiva para as oportunidades
não podem ser classificados tranqüilam ente sob qualquer das de renda. A “situação de classe” também compreende as con
três formas que distinguim os. Só podem ser compreendidos dições de vida gerais e conseqüentes típicas, como por exemplo
como combinações que envolvem vários conceitos, no caso os a necessidade de respeitar a disciplina da oficina de um proprie
tário capitalista.
conceitos de estamento e “honra estam ental”. H á também
formas que devem ser compreendidas, em parte, cm termos de U m a “situação estam ental” pode ser a causa, bem como o
princípios outros que os de “domínio”, e em parte em termos resultado, de um a “situação de classe”, mas não necessariamente.
das variações peculiares do conceito de carisma. Exemplos: os As situações de elasse, por sua vez, podem ser determ in adas
funcionários da democracia pu ra, com rotações de cargos hono principalm ente pelos m ercados, pelo mercado de trabalho c o
346 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

mercado de produtos. Os casos específicos e típicos da situação


de classe hoje são os determinados pelos mercados. M as não é
esse necessariamente o caso: as situações de classe dos donos
de terra e pequenos camponeses dependem muito pouco das re
lações de mercado. Em suas situações diferentes, as várias ca
tegorias de “arrendadores” dependem do mercado em sentidos XII. A s Seitas Protestantes e o Espirito do Capitalismo 1
c proporções que variam muito, quer obtenham suas rendas
como donos de terra, donos de escravos ou donos de títulos e
bens.
Devemos, portanto, distinguir entre “classes proprietárias”
e “classes de renda”, determinadas principalm ente pelo mer E x i st e nos Estados Unidos, há algum tempo, u m a “separação
entre o Estado e a Igreja”, realizada de fo rm a tão rigorosa que
cado. A sociedade de hoje está estratificada em classes e em
não há nem mesmo um censo oficial das várias seitas, pois seria
grau especialmente acentuado em classes de renda. M as no
prestígio estam ental especial das cam adas “educadas”, no&sa so considerado ilegal perguntar o Estado até m esm o a crença do
ciedade encerra elementos m uito concretos de estratificação es cidadão. N ão discutirem os aqui a im portância prática do p rin
tam ental. Externamente, esse fator é, m uito claram ente, re cípio das relações entre as organizações e o Estado. * Estamos
presentado pelos monopólios econômicos e as oportunidades so interessados, antes, n o fato de que há pouco m enos de duas
ciais preferenciais dos detentores de diplomas. décadas e m eia o núm ero de “pessoas sem religião” nos Estados
Unidos era calculado em apenas 6 % ; 2 e isso apesar da ausên
No passado, a significância da estratificação estamental foi cia de todos os prêmios, altam ente efetivos, que a m aioria dos
m uito m ais decisiva, principalm ente para a estrutura econômica Estados europeus atribui à filiação a determ inadas Igrejas pri
das sociedades. Pois de um lado a estratificação estamental vilegiadas e apesar da enorm e emigração que se faz para os
influi na estrutura econômica através de barreiras ou regula E .U .A .
mentação do consumo, e pelos monopólios de privilégios que,
do ponto de vista da racionalidade econômica, são errados, e, Devemos compreender, além disso, que a filiação às Igrejas,
por outro lado, a estratificação estamental influi muito acen- nos Estados U nidas, encerra ônus financeiro incomparavelm ente
tuadam ente na economia, através das con servações honorí maior, especialmente para os pobres, do que na A lem anha. .Os
ficas da respectiva cam ada dominante que dá o exemplo. Essas orçamentos fam iliares conhecidos mostram isso, e travei contato
convenções podem ser da natureza das formas ritu alistas este pessoal com muitos casos desses, num a congregação de um a ci
reotipadas, o que ocorreu com m uita freqüência na estratificação dade do lago Erie, quase que inteiram ente composta de im i
estam ental na Á sia. grantes alemães. Suas contribuições regulares para finalidades
religiosas equivaliam a 80 dólares por ano, retirados de um a
renda anual de aproxim adamente 1.000 dólares. Todos sabem
que mesmo u m a pequena fração desse ônus financeiro levaria,
n? A lem anha, a um êxodo em massa da Igreja. M as, à parté
isso, ninguém que visitasse os Estados U nidos 15 ou 20 anos
antes, isto é, antes de iniciada a recente europeização do país,

“Die Protestantischen Sekten und der Geist des K apitalism us”,


G esam m elte A u fsa e tze zu r R eligionssoziologie, vol. I, pp. 207-36.
* O princípio é freqüentem ente, apenas histórico; veja-se a
im portância do eleitorado católico, bem como as subvenções às es
colas confessionais.
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poderia ignorar a intensidade da participação nas Igrejas que caixeiro-viajante de “ferragens funerárias” (letras de ferro para
então predominava em todas as regiões ainda inundadas de im i túm ulos), mencionou casualmente a tendência, ainda bastante
grantes europeus. * Todos os livros de viagens antigos re forte, para a participação nas Igrejas. Com isso, o vendedor
velam que, antigam ente, a tendência am ericana para participar observou: “Senhor, de m inha parte, quem quiser pode acreditar
da vida das Igrejas era incontestável em comparação com as déca ou não; mas se eu visse um agricultor ou um comerciante que
das recentes, sendo muito m ais acentuada. Interessa-nos aqui, não pertencesse a nenhum a Igreja, não lhe daria crédito de
especialmente, um aspecto dessa situação. cinqüenta centavos. Por que me havia de pagar, se não acre
H á pouco menos de um a geração, quando os homens de dita em n ad a?” O ra, era um a motivação um pouco vaga.
negócios se estavam estabelecendo e fazendo novos contatos so A questão tornou-se um pouco m ais clara com a história
ciais, encontraram a pergunta: “A que Igreja pertence?”, formu de um especialista de nariz e garganta, de nacionalidade alemã,
lada com naturalidade. Esta pergunta era feita discretamente que se instalara num a grande cidade às m argens do rio Ohio
e de m aneira que parecia adequada. Evidentemente, porém, e que me narrou a visita de seu prim eiro paciente. A pedido
jam ais tal pergunta era feita por acaso. Até mesmo em do médico, ele deitou-se na mesa para ser exam inado com a
Brooklyn, a cidade gêm ea de Nova York, essa velha tradição era [ajud a de] um refletor de nariz. O paciente sentou-se im e
conservada em grau acentuado, e isso corria ainda mais nas diatam ente e lhe disse com dignidade e ênfase: “Senhor, sou
comunidades menos expostas à influência da imigração. Essa membro d a ... Igreja Batista na R u a . . . ”. Intrigado com a
pergunta nos lembra outra, de um típico table d ’h ôte escocês, onde possível significação do incidente para a enferm idade do nariz
há um quarto de século o europeu continental tinha, aos do e seu tratamento, o médico fez indagações discretas junto a
mingos, quase sempre que enfrentar um a senhora que lhe per um colega americano. Este, sorrindo, disse que a declaração do
guntava: “A que serviço religioso compareceu h o je?”, ou se o paciente sobre a Igreja a que pertencia queria simplesmente
europeu, como hóspede mais velho, estivesse sentado à cabeceira dizer: “Não se preocupe com os honorários”. M as por que
d a mesa, o garção, ao lhe servir a sopa, d iria: “Senhor, a oração, deveria significar exatam ente isso? T alvez isso se torne ainda
por favor”. Em Portree (S k y e ), num belo domingo, ouvi essa mais claro com um terceiro acontecimento.
pergunta típica e não me ocorreu resposta melhor do que obser N um a bela e clara tarde de domingo de princípios de outu
v ar: “Sou membro da Badisch e Lan desfy irch e e não encontrei bro compareci a um a solenidade de batismo num a congregação
um templo de m inha Igreja em Portree”. A s senhoras ficaram batista. Estava eu em companhia de alguns parentes que eram
satisfeitas com a resposta. “Oh, ele não freqüenta nenhum ou agricultores no interior, a alguns quilôm etros da cidade de M .,
tro serviço que não seja o de sua própria seita!” na Carolina do Norte. O batismo deveria realizar-se num pe
Se examinarmos mais atentam ente a questão nos Estados queno lago alim entado por um riacho que descia das monta
Unidos, veremos facilmente que a questão da filiação religiosa nhas Blue Ridge, visíveis à distância. Estava frio, e houvera
era quase sempre formulada na vida social e na vida comercial geada durante a noite. Inúm eras fam ílias dos agricultores es
que dependiam de relações perm anentes e de crédito. Mas, como tavam de pé pelas encostas dos morros; haviam vindo, algum as,
dissemos acima, as autoridades am ericanas jam ais fizeram a per de grandes distâncias, outras das vizinhanças, em suas leves
gunta. Por quê? charretes de duas rodas.
Prim eiro, algum as observações pessoais [de 1904] podem O pregador, num terno preto, estava m ergulhado até o
servir de ilustrações. N um a longa viagem de trem através do peito no lago. Depois de vários preparativos, cerca de dez indi
que era então território índio, o Autor, sentado ao lado de um víduos de ambos os sexos, em suas melhores roupas dominicais,
entraram na água, um a depois da outra. D eclaravam sua fé
e em seguida eram totalmente m ergulhados — as m ulheres nos
• A abertura com um a oração não só de todas as sessões da
Côrte Suprema dos Estados Unidos, m as tam bém de toda convenção braços do pregador. Voltavam à tona ensopados e tremendo
p artidária, constituiu, durante algum tempo, um a solenidade cons cm suas roupas molhadas, saíam do lago e todos se ‘ congra
trangedora. tulavam ” com eles. Eram rapidam ente envolvidos em coberto
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res e levados para casa. Um dos meus parentes observou que credores e ajudava-o de todos os modos, freqüentemente de
a “fé” constituía um a proteção infalível contra resfriados. O u acordo com o princípio bíblico m utuum date n ih il in de speran tes
tro parente permaneceu ao meu lado e, não sendo homem de (Lucas, V I, 35).
Igreja, dentro das tradições alemãs, olhava e cuspia com des A certeza que tinham os credores de que a seita, em defesa
dém, por cima do ombro. Disse a um dos batizados: “Olá, de seu prestígio, não perm itiria que os credores sofressem pre
B ill, a água não estava muito fr ia ? ”, e recebeu a resposta im e juízos causados por um de seus membros não era, porém, deci
diata: “Jeff, pensei num lugar bastante quente (Inferno!) e por siva para as suas oportunidades. Decisivo era o fato de que
isso não me importei com a água fria”. D urante o mergulho um a seita de reputação só aceitaria como membro a pessoa cuja
de um dos jovens, meu parente agitou-se: “conduta” a tornasse moralmente em con dições disso, fora de
— V eja! Eu bem lhe disse! qualquer dúvida.
Depois da solenidade, perguntei-lhe como havia adivinhado É importante que a participação num a seita significasse um
que tal homem se batizaria. certificado de qualificação moral e especialmente de moral co
— Porque ele deseja abrir um banco em M. — respon m ercial para a pessoa. Isso contrasta com a participação num a
deu-me. “Igreja” na qual a pessoa “nasce” e que perm ite que a graça
— H á ali tantos batistas, que lhe possam garantir movi brilhe igualm ente sobre o justo e o injusto. N a verdade, uma
mento ? Igreja é um a corporação que organiza a graça e adm inistra os
— Não, mas ao ser batizado d e conseguirá a preferência dons religiosos da graça, como um a fundação. A filiação a um a
de toda a região e superará qualquer pessoa. Igreja é, em princípio, obrigatória e portanto nada prova quan
to às qualidades dos membros. A seita é, porém, um a associa
Outras perguntas de “por quê” e “de que modo” levaram -
ção voluntária apenas daqueles que, segundo o princípio, são
-m e à conclusão seguinte: a admissão à congregação batista lo
religiosa e moralmente qualificados. Quem encontra a recep
cal só é feita depois dos exames m ais cuidados e das investigações
ção voluntária da sua participação, em virtude da aprov ação
detalhadas sobre a conduta, que remontam à infância. (C on
religiosa, ingressa na seita voluntariamente.
duta inconveniente? Freqüência a tavernas? D ança? T eatro?
Joga cartas? F alta de pontualidade nos compromissos? Outras É fato estabelecido que essa seleção freqüentem ente foi con
frivolidades?) A congregação ainda seguia rigorosamente a tra trabalançada, precisamente na Am érica, pela proselitização de
dição religiosa. alm as pelas Igrejas rivais, o que, em parte, foi fortemente de
terminado pelos interesses m ateriais dos pregadores. D aí terem
A admissão à congregação é considerada como um a garantia
existido, com freqüência, cartéis para a restrição do proselitismo
absoluta de qualidades morais, especialmente as qualidades exi
entre as seitas concorrentes. Esses cartéis foram formados, por
gidas em questões de comércio. O batismo garante à pessoa os
exemplo, para excluir o casamento fácil de pessoas que se divor
depósitos de toda a região e o crédito ilim itado sem qualquer
ciaram alegando motivos que, do ponto de vista religioso, eram
concorrência. Ele é um “homem feito na vida”. Melhor obser
considerados insuficientes. As organizações religiosas que faci
vação confirmou que esses fenômenos, ou pelo menos outros
litavam o novo casamento tinham grande atrativo. A lgum as
m uito semelhantes, repetem-se nas m ais variadas regiões. Em
comunidades batistas, ao que se diz, teriam sido por vezes tole
geral, apen as tinham êxito nos negócios os homens que perten
rantes quanto a isso, ao passo que a Igreja Católica bem como
ciam às seitas batista, metodista ou outras semelhantes. Q uan
a L uterana (M issouri) eram elogiadas pelo seu rigor. Essa cor
do um membro da seita se transferia para lugar diferente, ou
reção, porém, reduzia o número de filiados a essas Igrejas, ao
se era caixeiro-viajante, levava consigo o certificado de sua con
gregação; assim, tinha não só contato fácil com os membros da que se dizia.
seita, mas, acim a de tudo, encontrava crédito em toda parte. Se A exclusão de um a Igreja, por motivos de ofensas morais,
por motivos alheios à sua vontade via-se em dificuldades eco significa, economicamente, a perda de crédito e, socialmente, a
nômicas, a seita organizava-lhe os negócios, dava garantias acs perda de classe.
352 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA AS SEITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO 353

Numerosas observações durante os meses seguintes confir adventista, quacre, ou qualquer outra coisa. O decisivo é que
m aram não só que a participação nas Igrejas, per se, embora se seja admitido como membro através de “votação”, depois de
ain d a (cm 1904) importante, estava dim inuindo rapidam ente; um exam e e um a com prov ação ética no sentido das virtudes
m as o traço particularm ente importante, mencionado acima, foi que estão a prêmio para o ascetismo ao mesmo tempo íntimo
confirm ado. Nas áreas metropolitanas disseram-me, esponta e voltado para o m undo, do protestantismo, e, daí, para a tra
neam ente, em vários casos, que os especuladores imobiliários de dição puritana antiga. Então, o mesmo efeito pode ser obser
loteamcntos construíam regularm ente um a Igreja, freqüente vado.
m ente m uito modesta; em seguida, escolhiam um candidato dos
U m exame m ais detalhado revela o constante progresso do
vários seminários teológicos, pagavam -lhe 500 ou 600 dólares e
processo característico dc “secularização”, a que, nos tempos mo
lhe davam um a excelente posição como pregador vitalício se
dernos sucumbem todos os fenômenos que se originam em con
conseguisse reunir um a congregação e com isso dar “vida” ao
cepções religiosas. Não só as associações religiosas, e daí as
loteamento. Construções desse tipo, em m au estado e com
seitas, tiveram esse efeito na vida am ericana. A s seitas exerce
falhas marcantes, me foram mostradas. Em sua m aioria, porém,
afirm ava-se que os pregadores tinham êxito. Contato com v izi ram sua influência em proporção contantementc decrescente.
nhos, Escola Dom inical, e assim por diante, eram considerados Se atentarmos bem, será notável observar (m esm o há 15 anos)
indispensáveis a um recém-chegado, mas, acima de tudo, a asso que um número surpreendentemente maior de homens entre
ciação com vizinhos “m oralm ente” dignos. as classes médias am ericanas (sempre fora das áreas metropoli
tanas bastante modernas e dos centros de im igração) usavam
A concorrência entre as seitas é forte, entre outras coisas, um pequeno distintivo (de cor variada) na lapela, que lembrava
através das ofertas m ateriais e espirituais nos chás das congre a roseta da Legião de H onra francesa.
gações. Entre as Igrejas m ais liberais, também a música entra
Quando se perguntava o que representava aquilo, as pessoas
n a compctição. (U m tenor da T rin ity Church, Boston, que mencionavam regularm ente um a associação com um nome por
supostamente tinha que cantar apen as no domingo, recebia na
vezes aventureiro e fantástico. E tornava-se evidente que sua
época 8.000 dólares.) Apesar dessa aguda competição, as seitas significação e propósito consistiam no seguinte: quase sempre,
m antinham com freqüência relações m útuas bastante boas. No a associação funcionava como um seguro de funeral, além de
serviço da Igreja M etodista a que compareci, por exemplo, a oferecer serviços m uito variados. M as com freqüência, e espe
cerim ônia de batismo que mencionei acim a era recomendada cialmente nas áreas menos tocadas pela desintegração moderna,
como um espetáculo para edificar a todos. Em geral, as con a associação oferecia ao membro o direito (ético) de ajuda fra
gregações se recusavam a ouvir a pregação do “dogm a” e dis ternal por parte de todos os irmãos que tivessem meios. Quem
tinções entre as seitas. Só se podia falar em “ética”. N as oca enfrentasse um a em ergência econômica pela qual não era res
siões cm que ouvi sermões para as classes médias, era pregada ponsável, poderia reivindicar essa assistência. E, em vários casos
a m oral burguesa típica, respeitável e sólida, na verdade, e do de que tive notícia na ocasião, tal reivindicação seguia também
gênero m ais doméstico e sóbrio. M as os sermões eram pronun o princípio m utuum date nih il in de speran tes, ou pelo menos
ciados com evidente convicção ín tim a; o pregador comovia-se cobrava-se um a taxa de juro muito baixa. Evidentemente, a
freqüentem ente. prestação dessa assistência era voluntariam ente reconhecida pela
H oje, o tipo de congregação [a que alguém pertence] é ir irm andade. A lém disso — ponto principal no caso — o ingresso
relevante. Não importa que se seja m açom ,# cientista cristão, na associação era obtido por votação, depois de um a investiga
ção e um a determinação do valor moral. Por isso, o distintivo

* Um assistente de línguas sem itas num a universidade do


Leste disse-me que lam entava não se te r tom ado “catedrático”, jan te ou vendedor ele se poderia apresentar num a função famosa
pois então poderia voltar às atividades comerciais. Quando p er pela respeitabilidade. Poderia superar qualquer concorrência e v a
guntei q u al a vantagem disso, a resposta íoi: Como caixeiro-via- leria seu peso em dinheiro.
354 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA A S SE IT A S P R O T E ST A N T E S E O E SP ÍR IT O DO C A P IT A L I S M O 355

na lapela significava: “Sou um cavalheiro certificado depois de Não obstante, jam ais devemos esquecer que sem a difusão un i
um a investigação e um período de observação e garantido pela versal dessas qualidades e princípios de um modo de vida me
m inha participação nesta fraternidade”. E isso significava, princi tódico, qualidades que foram m antidas através dessas comuni
palmente na vida econômica, um crédito garantido. Podia-se dades religiosas, o capitalismo de hoje, mesmo na Am érica, não
observar que as oportunidades comerciais eram , com freqüência, seria o que é. N a história de qualquer área econômica da T erra
influenciadas de forma decisiva por essa legitim ação. não há época, [exceto] as épocas do feudalism o ou patrim onia-
lismo rígidos, em que as figuras capitalistas do tipo de Pierpont
Todos esses fenômenos, que pareciam estar-se desintegrando
M organ, Rockefeller, Jay Gould et al. estivessem ausentes. So
rapidam ente — pelo menos nas organizações religiosas — lim i
mente os m eios técnicos que usaram para a aquisição de ri
tavam-se essencialmente às classes médias. A lguns americanos
queza se m odificaram (decerto!). Estavam e estão “acim a do
cultos freqüentemente negavam tais fatos de forma breve e com
bem e do m al”. Por mais alto, porém, que se possa avaliar a
um certo desdém irritado; muitos deles na realidade não tinham
sua importância para a transformação econômica, jam ais foram
informações sobre eles, como me disse W illiam James. Não
decisivas para determ inar a m entalidade econômica que domina
obstante, esses traços ainda estavam vivos em muitos campos
ria um a dada época e um a dada área. A cim a de tudo, não eram
diferentes, e por vezes de formas que pareciam ser grotescas.
os criadores e não se tornariam os portadores da m entalidade
Essas associações eram, especialmente, os veículos típicos de burguesa especificamente ocidental.
ascensão social para o círculo da classe m édia em presarial. Ser
Não é este o lu gar para discutir em detalhe a importância
viam para difundir e m anter o eth os econômico burguês e ca
política e social das seitas religiosas e das numerosas associa
pitalista entre as amplas cam adas das classes médias (inclusive
ções e clubes igualm ente exclusivos na Am érica, que se baseiam
os agricultores).
no recrutamento pelo voto. Toda a vida de um ianque típico
Como bem se sabe, não poucos (bem poderíamos dizer a da últim a geração era levada através de um a série dessas asso
m aioria da geração mais velha) dos “promotores”, “capitães da ciações exclusivas, começando com o Clube dos Rapazes, na
indústria” americanos, dos m ultim ilionários e dos m agnatas dos escola, passando depois para o Clube Atlético ou a Sociedade
trustes pertenciam formalmente a seitas, especialmente a dos de Letra Grega ou a qualquer outro clube estudantil, em segui
batistas. Mas, segundo o caso, essas pessoas freqüentemente da para um dos numerosos clubes notáveis de homens de negó
eram filiadas apenas por motivos convencionais, como na A le cios e da burguesia, ou finalm ente para os clubes da plutocracia
m anha, e apenas a fim de se legitim arem na vida pessoal e metropolitana. A admissão equivalia a um bilhete de ascensão;
social — não para se legitim arem como homens de negócios; significava que o candidato se havia “provado a si mesmo”.
n a era dos puritanos, esses “super-homens econômicos” não pre U m aluno de universidade que não fosse adm itido em nen h um
cisavam de tal m uleta, e su a religiosidade era, certamente, com clube (ou sociedade) era habitualm ente um a espécie de pária.
freqüência de um a sinceridade m ais do que dúbia. As classes (T ive informações de suicídios provocados pela recusa à adm is
médias, acim a de tudo as cam adas em ascensão com as classes são.) O homem de negócios, o funcionário, o técnico, ou o
m édias e as que dela se estão afastando, foram os portadores médico que tivessem o mesmo destino eram considerados, ha
dessa orientação religiosa específica que devemos, na realidade, bitualm ente, como de capacidade duvidosa. H oje, numerosos
acautelar-nos para não considerar apenas como oportunistas. * clubes desse tipo são representantes dessas tendências, que levam
à formação de grupos aristocráticos e que caracterizam a evo
* “H ipocrisia” e oportunismo convencional nessas questões de lução am ericana contemporânea. Esses grupos estamentais se
senvolveram -se mais acentuadam ente na América do que n a A le
manha, onde, afinal de contas, um oficial ou funcionário público
“sem filiação ou preferência religiosa” tam bém era um a impos direção na qual a “hipocrisia” convencional se m ovim entava dife
sibilidade. E um Prefeito (ariano!) de Berlim não foi oficialmente ria: as carreiras oficiais na Alemanha, as oportunidades comerciais
confirm ado porque não batizou um de seus filhos. Som ente a nos Estados Unidos.
356 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA AS SEITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO 357

desenvolveram juntam ente com a simples plutocracia e, o que A ntigam ente, num clube americano típico, ninguém se lem
devemos notar bem, em parte em contraste com ela. braria, por exemplo, de que os dois sócios que jogam bilhar
N a Am érica, o “dinheiro”, simplesmente, por si mesmo, m antinham entre si relações de patrão e empregado. A li, a
igualdade, como cavalheiros, predominava de forma absoluta. *
também compra poder, mas não as honras sociais. É claro que
ele constitui meio de adquirir prestígio social. O mesmo acon N a verdade, a m ulher do trabalhador americano que acompa
nhava o sindicalista num almoço se havia adaptado perfeitamente
tece na A lem anha e em toda parte; na A lem anha, porém, o
no vestuário e comportamento, e de um modo um pouco mais
cam inho adequado às honras sociais levam da compra de um a
simples e menos espontâneo ao modelo da senhora burguesa.
propriedade feudal até a fundação de um a propriedade vincula
da, e a aquisição de títulos de nobreza, que por sua vez facili Quem desejasse ser plenamente aceito nessa democracia, em
tam a recepção dos n etos na “sociedade” aristocrática. N a A m é qualquer posição, tinha não só de conformar-se às convenções
rica, a velha tradição respeitava m ais o homem que se fez sozi da sociedade burguesa, inclusive a rigorosa moda masculina,
nho do que o herdeiro, e o caminho para as honras sociais con mas também, como regra, tinha de ser capaz de mostrar que
sistia na filiação a um a fraternidade de um a universidade im havia conseguido ingressar, por votação, num a das seitas, clubes
portante, ou, anteriormente, a um a seita destacada (por exem ou sociedades, não importa de que tipo, desde que fosse tida
plo, a presbiteriana, em cujas igrejas em Nova York há almofadas como suficientemente legítim a. E tinha de manter-se na socie
macias e leques). No momento, a filiação a um clube distinto dade provando que era um cavalheiro. O paralelo na A lem a
é m ais importante do que qualquer outra coisa. A lém disso, nha consiste na im portância da Couleur ** e da comissão de um
a residência é importante (nas cidades de tamanho médio quase oficial da reserva para cotnm ercium e con n ubium , e a grande
nunca falta “a ru a”) e o tipo de roupas e esportes. Só recen significação de estamento de se achar em posição de lhe serem
temente a descendência dos peregrinos, de Pocahontas e outras exigidas satisfações em duelo. A coisa é a mesma, mas a dire
ção e a conseqüência m aterial diferem caracteristicamente.
senhoras índias, etc., tornou-se importante. Não é êste o lugar
para um a análise mais detalhada da questão. H á inúm eras Quem não conseguisse ingressar num a associação não era
entidades e organizações de todos os tipos que se dedicam à um cavalheiro; quem desprezasse as associações, como era habi
construção da árvore genealógica da plutocracia. Todos esses tual entre os alemães, *** tinha de trilhar o caminho difícil,
fenômenos, muito grotescos quase sempre, pertencem ao am especialmente na vida econômica.
plo campo da europeização da “sociedade” americana. Como já dissemos, porém, não analisaremos aqui a signifi
N o passado e até o presente, um a das características da cação social dessas condições, que estão sofrendo profunda trans
democracia especificamente am ericana era precisamente a de formação. Prim eiro, estamos interessados no fato de que a mo
que ela n ão constitui um monte inform e de areia, composto de derna posição dos clubes e sociedades seculares, com recruta-
indivíduos, mas um anim ado complexo de associações rigorosa
mente exclusivas, embora voluntárias. N ão há muito tempo,
* Isso nem sem pre ocorreu nos clubes germano-americanos.
essas associações ainda não reconheciam o prestígio do nasci Ao p erg u n tar a jovens comerciários alemães em Nova Y ork (com
mento e da riqueza h erdada, ou do cargo e do diploma educa os melhores nomes hanseáticos) por que procuravam , todos, ser
cional; pelo menos, atribuíam -lhe um a importância tão reduzida admitidos num clube americano, ao invés do bem instalado clube
alemão, responderam que seus patrões (germano-am ericanos) joga
como só raram ente se via no resto do mundo. Não obstante,
riam b ilh ar com eles ocasionalmente, mas não sem dar-lhes a en
essas associações estavam longe de aceitar qualquer pessoa de tender que se consideravam muito corteses, assim fazendo.
braços abertos, como a um igual. N a verdade, há 15 anos um ** Associação estudantil, com parável às “sociedades de letra
fazendeiro americano não teria passado com um hóspede seu grega”.
junto de um trabalhador (am ericano n ato !), no campo, sem *** Note-se, porém, o que dissemos acima. O ingresso num
parar e fazer que ele “apertasse a mão” do trabalhador, apre- clube am ericano (na escola ou posteriorm ente) é sem pre o mo
mento decisivo para a perda da nacionalidade alemã.
sentando-o formalmente.
358 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA A S SE IT A S P R O T E ST A N T E S E 0 E S P IR IT O DO C A P IT A L I S M O 359

mento por eleição, é em grande parte produto de um processo Por isso, só concediam crédito e depositavam seu dinheiro
de seculariz ação. Sua posição é conseqüência da importância com os crentes, e faziam compras em seus arm azéns porque
m uito m ais exclusiva do protótipo dessas associações voluntárias, ali, e apenas ali, tinham preços honestos e fixos. Como se sabe,
ou seja, as seitas. Elas nasceram, na realidade, das seitas na os batistas sempre alegaram ter sido os primeiros a transformar
pátria do ianquism o autêntico, os estados do Atlântico Norte. essa política de preços em princípio. A lém dos batistas, tam
Lembremos, primeiro, que a franquia universal e igual dentro bém os quacres alegam a mesma coisa, como a citação seguinte
da democracia am ericana (p ara os brancos!, pois negros e mes mostra, e para a qual o Sr. Eduard Bernstein chamou-me a
tiços não têm, nem mesmo hoje, um a franquia de fato) e atenção, na época:
igualm ente a “separação entre o Estado e a Igreja” são as unicas
realizações do passado recente, que se iniciou essencialmente Mas não era apenas em questões relacionadas com a lei
com o século XIX. Devemos lem brar que durante o período da te rra que os membros prim itivos consideravam como sa
grados a sua p alavra e seus compromissos. Esse traço foi
colonial nas áreas centrais da Nova Inglaterra, especialmente observado nêles também em relação aos negócios. Em seu
em Massachusetts, a cidadania plena na congregação religiosa prim eiro aparecim ento como um a sociedade, sofreram como
era condição prelim inar para a cidadania plena no estado (além com erciantes porque os demais, desgostosos com a peculiari
de outras condições). A congregação religiosa determ inava, na dade de suas maneiras, não davam preferência às suas lojas.
Mas, dentro de pouco tempo, o grande protesto contra eles
verdade, a admissão ou não-admissão ao estamento de cidadania baseava-se no fato de que tinham nas mãos o comércio do
p o lítica.3 país. Esse protesto surgiu em p arte porque êles se abstinham
A decisão dependia de ter ou não a pessoa prov ado a sua de qualquer acordo comercial entre si e com os outros e porque
qualificação religiosa através da conduta, no sentido mais amplo ja m ais p ediam dois preços pelas m ercadorias q ue vend iam , a
da palavra, como ocorria entre todas as seitas puritanas. Os
quacres na Pensilvânia eram de certa formados senhores do A opinião de que os deuses concedem riquezas ao homem
Estado até pouco antes da G uerra de Independência. Isso^ real que os agrada, através do sacrifício ou pelo seu comportamento,
mente ocorria, embora form alm en te eles não fossem os unicos difundiu-se realm ente por todo o mundo. As seitas protestantes,
cidadãos com plenos direitos políticos. E ram senhores políticos porém, estabeleceram conscientemente um a ligação entre essa
apenas em virtude da sua arbitrária divisão dos distritos elei idéia e esse tipo de comportamento religioso, segundo o prin
torais. cípio do capitalismo in icial: “A honestidade é a melhor po
A enorme significação social da admissão ao pleno gozo dos lítica”. Essa ligação se encontra, embora não exclusivamente,
direitos da congregação sectária, especialmente o privilégio de entre essas seitas protestantes, embora som en te entre elas se
ser adm itido à Ceia do Sen h or, funcionava entre as seitas como observem continuidade e coerência características em tal lig a
um estím ulo à ética profissional ascética, adequada ao moderno ção.
capitalismo durante o período de sua origem . Podemos demons T oda a ética tipicamente burguesa foi desde o princípio
trar que, em toda parte, inclusive na Europa, a religiosidade comum a todas as seitas e conventículos ascéticos, sendo idên
das seitas ascéticas funcionou, por vários séculos, na mesma d i tica à ética praticada pelas seitas na A m érica até o momento
reção ilustrada pelas experiências pessoais mencionadas acima presente. Os metodistas, por exemplo, proibiam :
para [o caso da] América.
1) conversar enquanto compravam e vendiam ( “regatear”)
Ao focalizar o pano-de-fundo religioso4 dessas seitas pro
testantes, encontramos em seus documentos literários, especial 2) negociar as mercadorias antes de pagos os tributos adua
mente entre os quacres e batistas, até o século XVII inclusive, neiros sobre elas
repetidas manifestações de júbilo pelo fato de que os pecadores 3) cobrar juro mais alto do que o perm itia a lei do país
“filhos do m undo” desconfiavam uns dos outros nos negócios, 4) “amontoar tesouros na terra” (significando isso a trans
mas tinham confiança na probidade determ inada religiosamente formação do capital de investimento em “riqueza con
dos crentes.5 solidada”)
360 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA A S SE IT A S P R O T E ST A N T E S E O E SP ÍR IT O DO C A P IT A L IS M O 361

5) tom ar empréstimos sem ter certeza da capacidade de No protestantismo, o conflito externo e interno dos dois
pagar a divida princípios estruturais — da “Igreja”, como associação compulsó
6) luxos de todos os tipos ria para a adm inistração da graça, e da “seita”, como associação
voluntária de pessoas qualificadas religiosamente — percorre os
M as não é apenas esta ética, já discutida em detalhe, * que séculos, de Z w ingli a K uyper e Stõcker. Desejamos, aqui, exa
remonta ao início das seitas ascéticas. Acim a de tudo, as re m inar simplesmente as conseqüências do princípio voluntarista
compensas sociais, os meios de disciplina e, em geral, toda a que são praticamente importantes em sua influência sobre a
base orgânica do sectarismo protestante com todas as suas ram i conduta. A lém disso, lembramos simplesmente que a idéia
ficações remontam a esse início. Os remanescentes, na A m érica decisiva de m anter pura a Ceia do Senhor, e portanto excluir
contemporânea, são os derivativos de um a regulam entação re dela pessoas não-santificadas, levou também a um a forma de
ligiosa de 'vida que outrora vigorou com penetrante eficiência. tratar a disciplina da Igreja entre as crenças que não conse
Vamos, num a breve análise, esclarecer a natureza dessas seitas guiram formar seitas. Foram especialmente os puritanos fata
e o modo e a direção de seu funcionamento. listas que, na verdade, abordaram a disciplina das seitas.9
A significação social central da C eia do Senhor para as co
munidades cristãs evidencia-se nisso. Para as próprias seitas,
Dentro do protestantismo, o princípio da “Igreja do crente” a idéia da pureza da comunhão sacramental foi decisiva desde
surgiu, claram ente, pela prim eira vez entre os batistas, em Zu a sua o rigem .10 Im ediatam ente o prim eiro voluntarista coe
rique, em 1523-4.7 Esse princípio restringia a congregação aos rente, Browne, em seu “Treatise of Reformation w ithout tarying
“verdadeiros” cristãos; significava, daí, um a associação volun for anie” (presum idam ente de 1582), ressaltou a compulsão à
tária de pessoas realm ente santificadas, segregadas do mundo. comunhão na C eia do Senhor com “homens m alignos” como a
Thomas M ünzer rejeitara o batismo das crianças, sem dar po principal razão da rejeição do episcopalismo e presbiterianism o.11
rém o passo seguinte, que exigia o batismo repetido dos adultos A Igreja Presbiteriana lutou em vão para resolver o problema.
batizados quando crianças (an abatism o). Seguindo Thom as Já no reinado de Elisabete (Conferência de W andw orth) esse
M ünzer, os batistas de Zurique adotaram , em 1525, o batismo foi o ponto decisivo. *
dos adultos (incluindo, possivelmente, o anabatism o). Jorna
O problema de quem poderia excluir um a pessoa da Ceia
leiros artesãos m igrantes foram os principais portadores do mo
do Senhor teve um papel insistente no Parlam ento da Revo
vimento batista. Após cada perseguição, levavam -no para novas
lução Inglesa. A princípio (1645) os ministros e anciãos, ou
áreas. Não examinaremos aqui, em detalhe, as formas indivi
seja, leigos, deviam decidir livremente sobre essas questões. O
duais desse ascetismo voltado para o m undo dos velhos batistas,
Parlam ento tentou determ inar os casos em que a exclusão devia
dos menonistas, dos batistas, dos quacres, nem descreveremos
ser perm itida. Todos os outros casos ficariam dependendo do
novamente como todas as seitas ascéticas, inclusive o calvin ism o8
consentimento do Parlam ento. Isso significava o “erastianismo”
e o metodismo, foram repetidamente forçadas a trilhar o mesmo
contra o qual a Assembléia de W estm inster protestou violen
caminho. tamente.
Isso resultou no conventículo dos cristãos exemplares den tro
O Partido Independente foi mais longe, só adm itindo à
da Igreja (piedsm o), ou então a com unidade de “cidadãos pla
comunhão pessoas devidamente autorizadas a issò, além dos
nos” religiosos, legitim ada como impecável, tornou-se senhora
residentes locais considerados como de boa reputação. Os mem
da Igreja. O resto dos membros simplesmente pertenciam a
bros das congregações de outros lugares só recebiam autori-
um grupo de estamento passivo, como cristãos menores sujeitos
à disciplina (independentes).
• Os presbiterianos ingleses, no reinado de Elisabete, deseja
vam reconhecer os 39 artigos da Igreja da Inglaterra (fazendo restri
* Em A Ética P rotestante e o E spírito do Capitalism o. ções apenas aos artigos 34 a 36, que não têm interêsse para n ó s).
362 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA AS SEITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO 363

zação se recomendados por membros qualificados. Os certi forma. O radicalismo inflexível do mundo de idéias indepen-
ficados de qualificação (cartas de recomendação), que eram dentista baseava-se na responsabilidade religiosa da congregação
emitidos no caso de transferência para outro lugar ou de viagem , como um todo. Isso se aplicava ao valor dos ministros, bem
tam bém surgem no século X V II.12 Den tro da Igreja oficial, os como aos irmãos admitidos à comunhão. E a situação m an
conventículos de Baxter (associações) que em 1657 foram ado tém-se ainda assim em princípio.
tados em 16 condados seriam instituídos como um a espécie de Como se sabe, o cisma de K uyper na H olanda, durante as
censura voluntária. A judavam o m inistro a determ inar a q ua décadas recentes, teve ramificações políticas de amplo alcance.
lificação e exclusão das pessoas escandalosas da Ceia do Sen h o r.13 Surgiu da seguinte m aneira: contra as pretensões do governo
Os “cinco irmãos dissidentes” da Assembléia de W estm inster sinodal da Igreja da H erform d e K e r \ der N ederlan den , os an
— refugiados da classe superior, que haviam vivido na H o ciãos de um a igreja em Amesterdã, e portanto leigos, tendo à
landa — já visavam a fins semelhantes quando propuseram a frente o futuro prim eiro-m inistro K uyper (q ue era também um
permissão da existência de congregações voluntaristas além da simples ancião), recusaram-se a reconhecer os certificados de
paróquia, gozando do direito de votar nos delegados ao sínodo. pregadores de congregações de outros lugares como suficientes
T oda a história da Igreja da Nova Inglaterra está cheia de lutas para admissão à comunhão, se, de seu ponto de vista, esses
sobre tais questões: quem deveria ser adm itido aos sacramentos pregadores forasteiros fossem indignos ou in créu s.19 Em subs
(ou, por exemplo, como padrinho), se os filhos de pessoas não- tância, foi precisamente esse o antagonismo entre presbiterianos
-adm itidas podiam ser batizados, * sob que cláusulas eles po e independentes durante o século XVI, pois conseqüências da
deriam ser admitidos, e questões semelhantes. A dificuldade maior importância surgiram da responsabilidade conjunta da
era que não somente a pessoa digna era autorizada a receber a congregação. Depois do princípio voluntarista, ou seja, a livre
C eia do Senhor, mas também que tin h a de recebê-la.14 D aí, admissão dos qualificados, e dos qualificados apenas, como m em
se o crente duvidasse de seu próprio valor e decidisse m anter- bros da congregação, encontramos o princípio da soberania da
-se afastado da Ceia do Senhor, a decisãó não elim inava seu com un idade sacram ental local. Somente a com unidade religiosa
pecado.15 A congregação, por sua vez, era responsável em con local, em virtude do relacionamento pessoal e da investigação,
junto perante o Senhor, se mantivesse pessoas indignas e espe poderia julgar se um membro estava qualificado. M as um
cialm ente réprobos16 fora da comunhão, em defesa da pureza. govêrno de Igreja de um a associação interlocal não poderia
Assim , a congregação era conjunta e especialmente responsável fazer isso, por m ais livremente eleito que esse governo fosse.
pela adm inistração do sacramento por um ministro digno, em A congregação local só podia discrim inar se o núm ero de mem
estado de graça. Com isso, os problemas prim ordiais da cons bros fôsse lim itado. D aí, em princípio, só congregações rela
tituição da Igreja voltaram à tona. Em vão a proposta concilia tivam ente pequenas eram adequadas a tal procedim ento.20
tória de Baxter procurou m ediar, sugerindo que pelo menos
Quando as comunidades eram demasiado grandes para isso,
no caso de um a em ergência o sacramento fosse m inistrado por
formavam-se conventículos, como no pietismo, ou os membros
um sacerdote indigno, ou seja, cuja conduta fosse discutível.17
eram organizados em grupos, que, por sua vez, eram os por
O velho princípio donatista do carism a pessoal estava em tadores da disciplina da Igreja, como no m etodism o.21
oposição dura e incessante ao princípio da Igreja como institui
A disciplina moral extraordinariam ente rigo ro sa22 da con
ção que adm inistra a g ra ç a ,18 como nos primórdios do cristia
gregação autónoma constituía o terceiro princípio. Isso era ine
nismo. O princípio da graça instituída estava radicalm ente es
vitável devido ao interesse na pureza da com unidade sacramen
tabelecido na Igreja Católica, através do ch aracter in delebilis
tal (ou, como entre os quacres, o interesse na pureza da comu
do sacerdote, mas também dom inava as igrejas oficiais da R e
nidade de oração). A disciplina da seita ascética era, na ver
dade, m uito m ais rigorosa do que a disciplina de qualquer
* A té mesmo a petição brow nista ao Rei Jaim e, de 1603, pro Igreja. Sob esse aspecto, a seita se assemelha à ordem monás
testava contra isso. tica. A disciplina da seita também é análoga a um a disciplina
364 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA AS SEITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO 365

monástica porque estabelece o princípio do noviciado. * Em da Pensilvânia, infelizm ente e contra minhas esperanças, o es
contraste com os princípios das Igrejas protestantes oficiais, às pírito não baixou na senhora, vestida com sim plicidade e beleza,
pessoas afastadas por ofensas morais era freqüentemente negado que estava sentada no banco e cujo carisma era tão louvado.
todo relacionamento com os da congregação. A seita invocava, Ao invés disso, sem dúvida por acordo, o espírito baixou num
assim, um boicote absoluto contra tais pessoas, que incluía a bibliotecário universitário que proferiu um a palestra m uito eru
vida econômica. Ocasionalmente, a seita evitava quaisquer rela dita sobre o conceito do “santo”.
ções com os não-irmãos, exceto em casos de absoluta necessi N a verdade, outras seitas não chegaram a tais conclusões
dade. 23 E a seita atribuía o poder disciplinador predom inan radicais, ou pelo menos não foram definitivas. M as ou o m i
temente às mãos dos leigos. N enhum a autoridade espiritual nistro não é atuante, principalm ente como “assalariado”, 27 ten
podia assumir a responsabilidade conjunta da comunidade pe do apenas um a posição honorífica, ou serve em trôco de dona
rante Deus. A influência dos anciãos leigos era muito grande tivos honoríficos voluntários. * Sua atividade m inisterial pode
até mesmo entre os presbiterianos. Os independentes, porém, ser um a ocupação secundária e somente como reposição de seus
e ainda m ais os batistas lutaram contra o domínio da congre gastos; ** ou ele pode ser afastado a qualquer momento; ou
gação pelos teólogos.24 Em correspondência exata, essa luta um a espécie de organização missionária, com pregadores itine
levou naturalm ente à clericalização dos membros leigos, que ran tes28 só funcionando de quando em vez, no mesmo “circui
assum iram então as funções de controle moral através do go to”, como é o caso do m etodism o.29 Onde o cargo (no sen
verno autônomo, admonição e possível excom unhão.25 O do tido tradicional) e portanto a qualificação teológica foram m an
m ínio dos leigos na Igreja encontrou sua expressão, em parte, tidos, 30 esse conhecimento era considerado como simples re
na busca de liberdade para que o leigo pregasse (liberdade de quisito técnico e especialista. A qualidade realm ente decisiva,
profecia). 26 Ao legitim ar essa exigência, houve menções das porém, era o carism a do estado de graça, e as autoridades se
condições da comunidade cristã prim itiva. A reivindicação não em penhavam em descobri-lo.
só foi muito chocante para a idéia luterana da missão pastoral,
m as também para a idéia presbiteriana da ordem divina. O Autoridades, como os julgadores de Crom well (órgãos lo
cais que se ocupavam dos certificados de qualificação religiosa)
domínio dos leigos, em parte, encontrou expressão num a oposi
ção a qualquer teológo e pregador profissional. Somente o e os ejetores (cargo disciplinar m in isteria l),* * * tinham de exa
carism a, e não o treinamento ou o cargo, deveria ser reco m inar a adequação dos ministros ao serviço religioso. O cará
ter carismático da autoridade foi preservado da mesma forma
nhecido. **
que o caráter carismático da participação na própria comunidade.
Os quacres aderiram ao princípio de que na assembléia T al como o exército de Santos de Crom well só perm itia que
religiosa qualquer pessoa podia falar, mas só deveria falar quem pessoas religiosamente qualificadas lhe passasse a Ceia do Se
fosse movido pelo espírito. D aí a inexistência de qualquer m i nhor, também os soldados de C rom well recusavam-se a ir à
nistro profissional. N a verdade, hoje, isso não ocorre de form a batalha sob o comando de um oficial que não pertencesse à sua
radical em parte algum a. A “lenda” oficial é que os membros com unidade sacram ental dos religiosam ente q ualificado s.31
que, segundo a experiência da congregação, são particularm ente
acessíveis ao espírito durante o serviço sentem-se num banco Internam ente, entre os membros da seita, predom inava o
especial, de frente para a congregação. Em silêncio profundo, espírito da fraternidade cristã original, pelo menos entre os ba
espera-se que o espírito baixe num deles (ou qualquer outro tistas antigos e seitas derivadas dela; ou, pelo mertos, exigia-se
membro da congregação). M as durante o serviço num colégio
• Estas foram exigidas para todos os pregadores no Acordo
do Povo, de 1* de maio de 1649.
* Provavelm ente entre tôdas as seitas houve um período de
quarentena. E ntre os metodistas, por exemplo, ele era de seis meses. *• Como entre os pregadores locais dos metodistas.
** J á Smyth, em Amesterdã, exigia que ao pregar o regenerado *** Assim, de acordo com a proposta de 1652 e essencialmente
não tivesse sequer a Bíblia à sua frente. tam bém de acordo com a constituição da Igreja de 1654.
366 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA AS SEITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO 367

a fratern id ad e.32 Entre algum as seitas considerava-se tabu o seita. A lém disso, na Idade M édia somente os cristãos podiam
recurso aos tribunais jurídicos. * Em caso de necessidade, a ser cidadãos de pleno direito. Era também possível agir, na
ajuda m útua era obrigatória.33 N aturalm ente, não eram proi quela época, através dos poderes disciplinares da Igreja, contra
bidas as transações com erciais com os não-membros (exceto oca um bispo que pagasse um a dívida e, como A loys Schulte mos
sionalmente entre comunidades m uito radicais). trou m uito bem, essa possibilidade dava ao bispo um crédito
superior ao de um príncipe secular. D a mesma forma, o fato
Entendia-se tacitamente, porém, que os irmãos eram pre de que um tenente prussiano estava sujeito à demissão se fosse
feridos. ** Desde o início, encontramos o sistema de certifi incapaz de resgatar suas dívidas lhe proporciona um bom cré
cados (sobre participação e conduta) 34 dados aos membros que dito. E o mesmo ocorria em relação à fraternidade estudantil
se transferiam para outro lugar. A caridade dos quacres era alemã. A confissão oral e o poder disciplinador da Igreja du
tão desenvolvida que cm conseqüência dos ônus sua inclina rante a Idade M édia também contribuíram para impor com
ção à propaganda acabou sendo restringida. A coesão das con eficiência a disciplina da Igreja. Finalm ente, para ter um a jus
gregações era tão grande que com boa razão se afirm a ter sido tificativa jurídica, a oportunidade proporcionada pelo juram ento
ela um dos fatores determinantes dos aldeamentos da N ova In era explorada a fim de garantir a excomunhão do devedor.
glaterra. Em contraste com o Sul, tais aldeamentos eram ha
Em todos esses casos, porém, as formas de comportamento
bitualm ente compactos e, desde o início, de um caráter forte
estim uladas ou transformadas em tabu, m ediante essas condições
mente urbano. *** e meios, diferiam totalmente das que eram estim uladas ou su
focadas pelo ascetismo protestante. No caso do tenente, por
É evidente que em todos esses pontos as funções modernas exemplo, ou da associação estudantil, e provavelmente também
das seitas e associações semelhantes americanas, tal como des do bispo, o m aior crédito certamente não se baseava na exis
crevemos no início deste ensaio, revelam-se como derivados di tência de qualidades pessoais adequadas para com ércio; e, con
retos, rudimentos e remanescentes dessas condições que predo tinuando essa observação, podemos dizer que embora os efeitos,
m inaram outrora em todas as seitas ascéticas e conventículos. em todos os três casos, visassem à mesma direção, eram elabora
H oje, estão em decadência. Os testemunhos sobre o “orgulho dos de forma m uito diferente. A disciplina da Igreja medieval,
como a da luterana, foi primeiro colocada nas mãos do deten
de casta” muito exclusivo das seitas existiram desde o início. ****
tor do cargo m inisterial; segundo, essa disciplina funcionou —
Ora, que parte de todo esse desenvolvimento foi, e é ainda, na m edida em que foi efetiva — através de meios autoritários;
decisiva para nosso problema? A excomunhão na Idade M édia e, terceiro, punia e recompensava atos individuais concretos.
também tinha conseqüências políticas e civis. Form alm ente, A disciplina religiosa dos puritanos e das seitas estava, a
era ainda m ais rigorosa do que quando havia liberdade de princípio, nas mãos dos leigos, pelo menos em parte e com
freqüência totalmente. Segundo, ela funcionava através da ne
* Os metodistas tentaram , com freqüência, punir o recurso a cessidade que todos tinham de m anter a sua posição; e, terceiro,
um juiz secular com a expulsão. P or outro lado, em v ários casos, fomentava ou, se desejarmos, selecionava qualidades. Esse ú l
criaram autoridades às quais era possível recorrer se os devedores timo aspecto é o m ais importante.
não pagavam pontualm ente.
O membro da seita (ou conventículo) precisava ter qua
** Os m etodistas proibiam expressam ente isso. lidades para ingressar no círculo da com unidade. Ser dotado
*** Dayle, na obra que citamos repetidam ente, a trib u i o caráter de tais qualidades era importante para a evolução do capitalis
industrial da Nova Inglaterra, em contraste com as colônias agrícolas, mo moderno racional, como se mostrou no prim eiro ensaio. *
a esse fator. P ara m anter sua posição nesse círculo, o membro tinha de
**** Cf., por exemiplo, os com entários de Doyle sobre as condi
ções estam entais na Nova Inglaterra, onde as fam ílias portadoras
de velha tradição literária religiosa, e não as “classes abastadas”, * A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
form avam a aristocracia.
368 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA AS SEITAS PROTESTANTES E 0 ESPÍRITO DO CAPITALISMO 369

prov ar repetidamente que era dotado dessas qualidades, que tares e funcionaram no mesmo sentido: ajudaram ao nasci
estavam sendo, constante e continuam ente, estim uladas nele. mento do “espírito” do capitalismo moderno, seu eth os espe
Como a sua bem -aventurança no outro m undo, toda a sua exis cífico: o ethos das classes m édias bu rgu esas modernas.
tência social neste mundo dependia de sua capacidade de sub
Os conventículos e seitas ascéticos form aram um a das bases
meter-se à prova. A confissão católica dos pecados era, repeti
históricas m ais importantes do “individualism o” moderno. Seu
mos, em comparação um meio de aliv iar a pessoa da trem enda
rompimento radical com a servidão patriarcal e au to ritária,36
pressão interna que o membro da seita sofria constantemente,
bem como a sua forma de interpretar a declaração de que é de
em relação à sua conduta. N ão discutirem os aqui, neste m o
vida maior obediência a Deus do que ao homem, tiveram especial
mento, como certas comunidades ortodoxas e heterogêneas da
importância.
Idade M édia foram precursoras das seitas ascéticas do protes
tantismo. Finalm ente, para compreender a natureza desses efeitos éti
Segundo toda a experiência, não há meio m ais forte de a li cos, é necessária um a observação comparativa. Nas gu ildas da
m entar traços do que através da necessidade de m anter sua Idade M édia havia, com freqüência, um controle dos padrões
posição no círculo de associados. A disciplina ética, contínua, éticos gerais dos membros, semelhante ao exercido pela discipli
e discreta das seitas estava, portanto, relacionada com a discipli na das seitas ascéticas protestantes.37 M as a diferença inevitá
na da Igreja autoritária assim como a criação e seleção racional vel nos efeitos de um a guild a e um a seita sobre a conduta eco
estão relacionadas com a ordenação e a proibição. nômica do indivíduo é evidente.
Nisso, como em quase todos os outros aspectos, as seitas A guild a unia os membros da mesma ocupação; daí, unia
puritanas são os portadores m ais específicos da forma de asce con correntes. E assim fazia para lim itar a competição, bem
tismo que se volta para o mundo. A lém disso, eram a antítese como a luta racional pelo lucro, que funcionava através dela.
m ais coerente e, de certo modo, a única antítese coerente, à Preparava para as virtudes “cívicas”, e num certo sentido era
Igreja Católica universalista — um a organização compulsória a portadora do “racionalism o” burguês (aspecto que não discuti
para a administração da graça. As seitas puritanas colocam o remos aqui com detalhes). A guilda realizava isso através de
interesse individual m ais poderoso de autoconsideração social a um a “política de subsistência” e através do tradicionalismo. N a
serviço desse tipo de traços. D aí serem também os motivos in ­ m edida em que a sua regulam entação da economia conseguiu
div idu ais e os interesses pessoais colocados a serviço da m a efetividade, seus resultados práticos são bem conhecidos.
nutenção e propagação da ética puritana “burguesa”, com tôdas
A s seitas, por sua vez, uniram os homens através da sele
as suas ramificações. Isso é absolutamente decisivo para a sua
ção e criação de com pan h eiros cren tes eticam ente qualificados.
penetração e para o seu efeito poderoso.
Sua participação não se baseava no aprendizado ou nas rela
Repetimos: não é a dou trin a ética de um a religião, m as a ções fam iliares com os membros tecnicamente qualificados de
forma de conduta ética a que são atribuídas recom pen sas que um a ocupação. A seita controlava e regulam entava a conduta
im p o rta.35 Essas recompensas funcionam na forma e na con dos membros exclusiv am en te no sentido da probidade formal
dição dos respectivos bens de salvação. E essa conduta constitui e do ascetismo metódico. N ão tinha a finalidade de um a po
o eth os específico de cada pessoa, no sentido sociológico da pa lítica de subsistência m aterial que prejudicasse um a expansão
lavra. Para o puritanism o, tal conduta era um certo modo de na luta racional pelo lucro. O êxito capitalista do membro da
vida, metódico, racional que — dentro de determ inadas condi guild a solapou o espírito desta — como acontecera na Inglater
ções — preparou o caminho para o “espírito” do capitalism o ra e França — e daí ser desprezado o êxito capitalista. Mas
moderno. As recompensas eram atribuídas a quem se “provava” o sucesso capitalista de um irmão de seita, se conseguido legal
perante Deus, no sentido de alcançar a salvação — que se en mente, era prova de seu valor e de seu estado de graça, e au
contra em todas as seitas puritanas — e “provar-se” frente aos m entava o prestígio e as possibilidades de propaganda da seita.
homens no sentido de m anter a posição social dentro das seitas T al êxito era, portanto, bem recebido, como o mostram as vá
puritanas. Ambos os aspectos foram m utuam ente suplem en rias afirmações citadas acima. A organização do trabalho livre
24
370 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

cm guildas, na forma medieval ocidental, foi, sem dúvida — e


m uito contra a sua intenção — não só um a dificuldade, mas
também um a precondição para a organização capitalista do tra
balho, que talvez fosse indispensável.38 M as a guilda, decerto,
não pode dar origem ao moderno eth os capitalista burguês. Só
o modo de vida metódico das seitas ascéticas poderia legitim ar e Xm. Rejeições Religiosas do Mundo e Suas Direções
colocar um halo em torno dos impulsos econômicos “indivi
duais” do eth os capitalista moderno.

E m f o r t e contraste com o caso da C hina, a religiosidade in


diana, que vamos analisar, é o berço das éticas religiosas que
negam o mundo, teórica e praticamente e com a maior inten
sidade. É tambem na ín d ia que a “técnica” que corresponde a
essa negação melhor se desenvolveu. O monasticismo, bem como
as manipulações ascéticas e contemplativas típicas, não só se de
senvolveram prim eiro na Índia como ali se m anifestaram de
forma m ais cocrente. E foi talvez da Índia que essa racionali
zação iniciou seu caminho histórico pelo m undo em geral.

1. M o t iv o s pa r a a R e j e i ç ã o d o M u n d o : o S ig n if ic a d o de su a
C o n st r u ç ã o R a c io n a l

Antes de nos ocuparmos dessa religiosidade, talvez seja con


veniente esclarecermos rapidam ente, de modo esquemático e
teórico, os motivos dos quais se originou a ética religiosa da
negação do m undo e as direções que tomou. Dessa forma, tal
vez possamos esclarecer seu “significado” provável.
O esquema construído serve apenas, é claro, ao objetivo de
oferecer um meio ideal típico de orientação. N ão nos transm ite
um a filosofia própria. Os tipos teoricamente construídos de
“ordens de vida” conflitantes servem, apenas, para mostrar que
em certos pontos determinados conflitos internos são possíveis
e “adequados”. Não pretendem mostrar que não há ponto de
vista do qual os conflitos não possam ser resolvidos num a sín
tese m ais elevada. Como iremos ver facilm ente, as esferas in-

De “Z w ischenbetrauchtung”. G esam m elte A u fsa etze zu r R eligions-


soziologie, vol. I, pp. 436-73.Este ensaio íoi publicado em novem bro
de 1915, no A rchiv.
372 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E LIG IO SA S DO MUNDO E SU A S DIREÇÕ ES 373

dividuais de valor estão preparadas com uma coerência racional


que raram ente se encontra na realidade. Mas podem ter essa 2. T i po l o g i a d o A s c e t i s m o e do M ist ic ismo
aparência na realidade e sob formas historicamente importantes,
e realm ente a têm. T ais construções possibilitam determ inar o A grande im portância da concepção do Deus e Criador
local tipológico de um fenômeno histórico. Permitem-nos ver supramundano para a etica religiosa já foi comentada. * T al
se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos concepção foi especialmente importante para a direção ativa e
se aproxim am de um a de nossas construções: determ inar o grau ascética da busca de salvação. Não teve a mesma importância
de aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teo para a busca contemplativa e mística, que tem afinidade interna
ricam ente. Sob êsse aspecto, a construção é simplesmente um com a despersonalização e imanência do poder divino. Essa lig a
recurso técnico que facilita um a disposição e terminologia mais ção íntim a, que E. Troeltsch repetidamente acentuou, com ra
lúcidas. Não obstante, sob certas condições, uma construção zão, entre a concepção de um Deus supram undano e o asce
pode significar mais, pois a racionalidade, no sentido de uma tismo ativo, não é absoluta. O Deus supram undano não de
“coerência” lógica ou teleológica, de um a atitude intelectual- terminou, como Deus, a direção do ascetismo ocidental, como
-teórica ou prático-ética tem, e sempre teve, poder sobre o ho iremos ver pelas observações que se seguem. A T rindade cristã,
mem, por mais lim itado e instável que esse poder seja e tenha com seu Salvador encarnado e os santos, representava um a con
sido sempre frente a outras forças da vida histórica. cepção de Deus que era fundam entalm ente menos supram un
As interpretações religiosas do mundo e a ética das reli dano do que o Deus dos judeus, especialmente do judaísmo
giões criadas pelos intelectuais e que pretendem ser racionais recente, ou o A lá do islamismo.
estiveram muito sujeitas ao imperativo da coerencia. O efeito Os judeus desenvolveram o misticismo, mas quase nenhum
da raz ão, especialmente de um a dedução teleologica de postula ascetismo do tipo ocidental. E o islamismo antigo repudiava
dos práticos, é perceptível sob certos aspectos, e com freqüencia diretamente o ascetismo. A peculiaridade da religiosidade do
m uito claram ente, entre todas as eticas religiosas. Isso ocorre dervixe vinha de fontes bem diferentes que a relação com um
por menos que as interpretações religiosas do mundo, no^ caso Deus e Criador supramundano. Nascia das fontes místicas, ex
individual, tenham concordado com a exigência de coerência, táticas, e em sua essência íntim a estava distante do ascetismo
e por mais que tsnham integrado pontos de vista em seus pos ocidental. Embora importante, a concepção de um Deus su
tulados éticos que n ão podiam ser deduzidos racionalmente. pramundano, apesar de sua afinidade com a profecia emissária
Assim, pelas razões substantivas, podemos ter esperança de fa e o ascetismo ativo, evidentemente não agia sozinha, mas sem
cilitar a apresentação de um assunto que, de outro modo, seria
pre em conjunto com outras circunstâncias. A natureza das
m ultifário, através de tipos racionais construídos de forma ade
promessas religiosas e os caminhos da salvação que determ ina
quada. Para tanto, devemos preparar e ressaltar as formas in
ram destacam-se entre essas circunstâncias. A questão terá d*
teriorm ente m ais “coerentes” de conduta prática, que podem
ser analisada nos casos particulares.
ser deduzidas de pressupostos fixos e dados.
Tivem os de usar repetidamente as palavras “ascetismo” e
A cim a de tudo, um ensaio assim sobre a sociologia da reli
“misticismo” como conceitos polares. Para elucidar a termino
gião visa, necessariamente, a contribuir para a tipologia e so
logia vamos distinguir melhor entre essas expressões.
ciologia do racionalismo. Este ensaio, portanto, parte das for
mas mais racionais que a realidade pode assum ir; procura ele Em nossos comentários introdutórios * contrastamos, como
descobrir até que ponto certas conclusões racionais, que podem renuncias do m undo, o ascetismo ativo que é um a ação, dese
ser estabelecidas teoricamente, foram realm ente formuladas. E jada por Deus, do devoto que é instrum ento de Deus e, por
talvez descubramos por que não. outro lado, a possessão contemplativa do sagrado, como existe

* Cf. Capitulo XI.


374 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E LIG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IREÇÕ ES 375

no misticismo, que visa a um estado de “possessão”, não ação, cente. Com esse fanatismo abençoado”, habitualm ente atribuí
no qual o indivíduo não é um instrumento, mas um “recipien do ao puritano típico, o ascetismo deste mundo executa as
te” do divino. A ação no m undo é vista, assim, como um resoluções positivas e divinas cujo sentido final continua oculto.
perigo para o estado irracional e outros estados religiosos vol O ascetismo executa tais resoluções como dadas nas ordens ra
tados para o outro mundo. O ascetismo ativo opera dentre cionais da criatura, ordenadas por Deus. Para o místico, pelo
do m undo; o ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o m un contrario, o que im porta para a sua salvação é apenas a com
do, busca domesticar o que é da criatura e m aligno através do preensão do significado ultimo e completamente irracional, atra
trabalho num a vocação “m undana” (ascetismo do m undo). T al vés da experiencia mística. As formas pelas quais ambos os
ascetismo contrasta radicalmente com o misticismo, se este se modos de conduta fogem do mundo podem ser distinguidas
inclina para a fuga do mundo (fu ga contemplativa do m undo). através de confrontos semelhantes. Mas reservamos a sua dis
O contraste dim inui, porém, se o ascetismo ativo lim itar-se cussão para um a apresentação monográfica.
a controlar e superar a m alignidade da criatura na própria n a
tureza do agente. Nesse caso, ele fortalecera a concentração
3. D ir e ç õ e s d a R e n ú n c ia a o M u n d o
sobre as realizações ativas e redentoras, firm emente estabelecidas
e desejadas por Deus, a ponto de evitar qualquer ação nas
Vamos, agora, exam inar em detalhe as tensões existentes
ordens do mundo (fu ga ascética do m undo). Com isso, o
entre a religião e o mundo. Partiremos das reflexões da intro
ascetismo ativo, em sua aparência externa, se aproxima da fuga
dução, * dando-lhe, porém, um enfoque um pouco diferente.
contemplativa do mundo.
Dissemos que esses modos de comportamento, um a vez evo
O contraste entre o ascetismo e o misticismo também é re
luídos para um modo de vida metódico, formavam o núcleo
duzido se o místico contemplativo não chega à conclusão de
do ascetismo, bem como do misticismo, e que surgiram origi
que deve fugir ao mundo, mas, como o ascético voltado para
nalm ente de pressupostos mágicos. As práticas mágicas foram
o mundo, permanece nas ordens do mundo (m isticismo voltado
feitas^ para despertar qualidades carismáticas ou para impedir
para o m undo). sortilégios m alignos. O primeiro caso foi, é claro, m ais impor
Em ambos os casos, o contraste pode desaparecer realm ente tante para os fatos historicos. Mesmo no um bral de seu apa
na prática, e pode ocorrer um a certa combinação de ambas as recimento, o ascetismo já revelava a sua face de Jano: de um
formas de busca de salvação. O contraste pode, porém, con lado, a renuncia ao mundo, e, do outro, o domínio do mundo
tinuar até sob o disfarce de um a aparente semelhança externa. em virtude de poderes mágicos obtidos pela renúncia.
Para o verdadeiro místico, continua sendo válido o princípio: O mágico foi o precursor histórico do profeta, do profeta e
a criatura deve estar calada, de modo que Deus possa falar. salvador tanto exem plares como emissários. Em geral, o pro
Ela “está” no mundo e se “acomoda” externamente às suas feta e salvador legitim aram -se através da posse de um carisma
ordens, mas apenas para adquirir a certeza do seu estado de magico. Para eles, porém, isto foi apenas um meio de garan
graça em oposição ao mundo, resistindo a tentação de levar a tir o reconhecimento e conseguir adeptos para a significação
sério os seus processos. Como podemos ver com Lao-tse, a exem plar, a missão, da qualidade de salvador de suas persona
atitude típica do místico é de hum ildade especifica, um a m ini- lidades. A substância da profecia do m andam ento do salvador
m ização da ação, um a espécie de existência religiosa incógnita e d irigir o modo de vida para a busca de um valor sagrado.
no m undo. Ele se coloca à prova con tra o mundo, contra sua Assim compreendida, a profecia ou m andam ento significa, pelo
ação no mundo. O ascetismo deste mundo, pelo contrario, pro menos relativam ente, a sistematização e racionalização do modo
va-se atrav és da ação. Para o asceta deste mundo, a conduta de vida, seja em pontos particulares ou no todo. Esta últim a
do místico é um gozo indolente do eu; para o místico, a con
duta do asceta (voltado para o m undo) é um a participação nos
processos do mundo, combinada com um a hipocrisia com pla • Cf. Capítulo XI.
376 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IREÇÕ ES 377

significação tem ocorrido geralm ente com todas as verdadeiras forte tornou-se a tensão, por parte da religião, pois a racionali
“religiões da salvação”, ou seja, com todas as religiões que pro zação e sublimação consciente das relações do homem com as
metem aos seus fiéis a libertação do sofrimento. Isso é ainda varias esferas de valores, exteriores e interiores, bem como re
m ais provável quanto mais sublim ada, mais interior e m ais ba ligiosas e seculares, pressionaram no sentido de tornar cons
seada em princípio é a essência do sofrimento, pois então é ciente a au ton om ia in terior e lícita das esferas individuais, per
im portante colocar o seguidor num estado permanente que o m itindo, com isso, que elas se inclinem para as tensões que per
proteja intim am ente contra o sofrimento. Form ulado abstrata manecem ocultas na relação, originalm ente ingênua, com o m un
mente, o objetivo racional da religião redentora tem sido asse do exterior. Isso resulta, de modo geral, da evolução dos va
gurar ao que é salvo um estado sagrado, e com- isso o hábito lores do mundo interior e do mundo exterior no sentido do
que garante a salvação. Isto toma o lugar de um estado agudo esforço consciente, e da sublimação pelo con h ecim en to. Esta
e extraordinário, e com isso sagrado, alcançado transitoriam ente conseqüência é m uito importante para a história da religião.
por meio de orgias, ascetismo ou contemplação. A fim de elucidar os fenômenos típicos que se repetem em
Ora, se um a comunidade religiosa surge na onda de um a relação às éticas religiosas, m uito variadas, examinaremos um a
profecia ou da propaganda de um salvador, o controle da con série desses valores.
duta regular cabe, primeiro, aos sucessores qualificados carisma-
ticamente, aos alunos, discípulos do profeta ou do salvador. Sem pre que as profecias de salvação criaram comunidades
M ais tarde, sob certas condições que se repetem regularm ente, religiosas, a prim eira força com a qual entraram em conflito
que não focalizaremos aqui, essa tarefa cab :rá a um a hierocra- foi o clã natural, que temeu a sua desvalorização pela profecia.
cia sacerdotal, hereditária ou oficial. Não obstante, como regra, Os que não podem ser hostis aos membros da casa, ao pai e
o profeta ou salvador colocou-se, pessoalmente, em oposição aos
à mãe, não podem ser discípulos de Jesus. “N ão vim trazer
poderes hierocráticos tradicionais dos mágicos ou dos sacerdotes.
a paz, mas a espada” (M ateus, X, 34), foi dito quanto a isto,
Colocou seu carism a pessoal contra a dignidade deles, consa
e, devemos observar, exclusivam ente em relação a isto. A maio
grada pela tradição a fim de romper seu poder ou colocá-los
ria preponderante de todas as religiões regulam entou, é claro,
a seu serviço. os laços de piedade do m undo interior. N ão obstante, quanto
N a discussão acim a mencionada, tomamos como certo e m ais amplos e interiorizados foram as metas da salvação, tanto
pressuposto que um a grande fração, especialmente importante m ais ela aceitou sem críticas a suposição de que o fiel deve,
para o desenvolvimento histórico, de todos os casos de religiões em últim a análise, aproximar-se m ais do salvador, do profeta,
proféticas e redentoras viveu não só num estado agudo como do sacerdote, do padre confessor, do irm ão em fé, do que dos
permanente de tensão em relação com o m undo e suas ordens. parentes naturais e da comunidade m atrim onial.
Desnecessário mencionar este aspecto, de acordo com a term i
nologia usada aqui. Quanto m ais as religiões tiverem sido ver A profecia criou um a nova com unidade social, particular
dadeiras religiões da salvação, tanto m aior foi a sua tensão. mente quando ela se tornou um a religião soteriológica de con
Isso se segue do significado da salvação e da substância dos gregações. Com isso, as relações do clã e do m atrim ônio foram,
ensinamentos proféticos, tão logo eles evoluem para um a ética. pelo menos relativam ente, desvalorizadas. Os laços mágicos e
A tensão também f% maior, quanto m ais racional foi em prin a exclusividade do clã foram atingidos, e dentro da nova co
cípio a ética e quanto m ais ela se tenha orientado para valores m unidade a religião profética desenvolveu um a ética religiosa
sagrados in teriores como meios de salvação. Em linguagem de caritas, o amor ao sofredor per se, pelo próximo, pelo homem
comum, isto significa que a tensão tem sido maior quanto m ais cípios originais da conduta social e ética, que a “associação dos
a religião se tenha sublim ado do ritualism o, no sentido do vizinhos” havia criado, fosse a com unidade de aldeães, m em
“absolutismo religioso”. N a verdade, quanto m ais avançou a bros do clã, da guilda, ou de associados nas empresas m arítim as,
racionalização e sublimação d a posse exterior e interior das caça e expedições de guerra. Essas com unidades conheceram
“coisas m undanas” — no sentido m ais am plo — tanto mais dois princípios elem entais: primeiro, o dualismo, da moral do
378 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IRE ÇÕ ES 379

nosso-grupo e do grupo exterior; segundo, para a moral do tipos de êxtase religioso sublimado operou psicologicamente na
nosso-grupo, simples reciprocidade: “o que me fizeres, eu te mesma direção geral. Os êxtases, destinados a “comoverem” e
farei”. Desses princípios resultou o seguinte para a vida eco edificarem o sentimento de comunhão direta com Deus, in
nôm ica: para a m oral do nosso-grupo, a obrigação, fundam en clinaram sempre o homem no sentido de flu ir para um acos-
tada em princípios, é prestar ajuda fraternal em caso de difi mismo do amor sem objeto. Nas religiões de salvação, a bên
culdade. Os ricos e nobres eram obrigados a emprestar, sem ção profunda e tranqüila de todos os heróis da benevolência
nada cobrar, bens para o uso dos não-proprietários, conceder acósmica sempre se fundiu com a compreensão caridosa das
crédito sem juro e proporcionar hospitalidade e ajuda liberal. imperfeições naturais de todos os atos humanos, inclusive os
Os homens eram obrigados a prestar serviços a pedido de seus nossos. O tom psicológico, bem como a interpretação ética
vizinhos e, igualm ente, na propriedade do senhor, sem outra dessa atitude interior, pode variar m uito. M as sua exigência
remuneração que não o mero sustento. T udo isso seguia o ética tendeu sempre na direção de um a fraternidade universa-
princípio: tua necessidade de hoje pode ser a m inha necessi lista que ultrapassa todas as barreiras das associações comunais,
dade de am anhã. Esse princípio não foi, decerto, pesado racio incluindo freqüentemente as de nossa própria fé.
nalm ente, mas desempenhou seu papel no sentimento. Assim, A religião da fraternidade sempre se chocou com as ordens
regatear nas situações de comércio e empréstimo, bem como a e valores deste mundo, e quanto m ais coerentemente suas exi
escravização permanente resultante, por exemplo, de dívidas, gências foram levadas à prática, tanto mais agudo foi o choque.
eram coisas lim itadas à moral do grupo exterior e aplicadas exclu A divisão tornou-se habitualm ente mais am pla na m edida em
sivamente aos estranhos. que os valores do m undo foram racionalizados e sublimados
A religiosidade da congregação transferiu essa antiga ética em termos dc suas próprias leis. E é isso que importa, aqui.
econômica da vizinhança para as relações entre os irmãos de
fé. O que fora anteriormente a obrigação do nobre e do rico
se tornou o imperativo fundam ental de todas as religiões etica 4. A E sf e r a Ec o n ô m ic a
mente racionalizadas do m undo: ajudar as viúvas e órfãos em
dificuldades, cuidar dos doentes e irmãos de fé empobrecidos, A tensão entre a religião fraternal e o mundo foi mais
e dar esmolas. Estas eram exigidas especialmente dos ricos, evidente na esfera econômica.
pois os menestréis sagrados e os mágicos, bem como os ascetas, Todas as formas m ágicas ou mistagógicas primevas de in
eram economicamente dependentes dos ricos. fluenciar os espíritos e divindades tiveram interêsses especiais.
L utaram pela riqueza, bem como pela vida, saúde, honra, des
O princípio que constituía as relações comunais entre as
cendência e, possivelmente, m elhoria do destino no outro m un
profecias de salvação era o sofrimento comum a todos os cren
do. Os mistérios eleusinos prom etiam tudo isso, tal como as
tes. E isso ocorria quer o sofrimento existisse realm ente, quer
religiões fenícias e védicas, a religião popular chinesa, o judaís
fôsse um a am eaça constante; quer fosse exterior, quer interior.
mo antigo e o islam ism o antigo; e tal promessa foi ofertada ao
Quanto m ais imperativos surgiam da ética de reciprocidade en
leigo hindu e budista. A s religiões sublim adas da salvação,
tre os vizinhos, m ais racional se tornava a concepção da salva
porém, tiveram relações cada vez mais tensas com as econo
ção, e m ais era sublim ada n um a ética de finalidades absolutas.
mias racionalizadas.
Externam ente, tais mandamentos chegaram ao comunismo de
um a fraternidade afetuosa; internam ente, chegaram à atitude U m a economia racional é uma organização funcional orien
de caritas, o amor ao sofredor per se, pelo próximo, pelo homem tada para os preços monetários que se originam nas lutas de
e finalm ente pelo inim igo. A barreira ao laço da fé e a exis interesse dos homens no m ercado. O cálculo não é possível sem
tência de ódio frente a um m undo considerado como o centro a estim ativa em preços em dinheiro e, daí, sem lutas no m er
do sofrimento imerecido parecem ter resultado das mesmas im cado. O dinheiro é o elemento m ais abstrato e “impessoal” que
perfeições da realidade em pírica que causaram originalm ente o existe na vida hum ana. Quanto m ais o m undo da economia
sofrimento. A cim a de tudo, a euforia peculiar de todos os capitalista moderna segue suas próprias leis imanentes, tanto
380 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA REJEIÇÕES RELIGIOSAS DO MUNDO E SUAS DIREÇÕES 381

menos acessível é a qualquer relação im aginável com um a ética que rejeitava. Tem plos e mosteiros, em toda parte, tornaram -
religiosa de fraternidade. Quanto m ais racional, e portanto -se os próprios centros de economias racionais.
impessoal, se torna o capitalismo, tanto m ais ocorre isso. No A reclusão contemplativa, como princípio, pôde apenas es
passado, foi possível regulam entar eticam ente as relações pes tabelecer a norma de que os monges sem propriedades deveriam
soais entre senhor e escravo precisamente porque elas eram gozar apenas o que a natureza e os homens lhes oferecessem
relações pessoais. M as não é possível regulam entar — pelo voluntariam ente: frutas, raízes e esmolas espontâneas. O tra
menos, não no mesmo sentido, ou com o mesmo êxito — as balho era algo que distraía o monge da concentração sobre os
relações entre os variáveis detentores de hipotecas e os variáveis valores da salvação que ele desejava. Não obstante, até mesmo
devedores dos bancos que concedem tais hipotecas: pois neste a reclusão contemplativa fez suas concessões, estabelecendo dis
caso não há relações pessoais de qualquer tipo. Se, não obs tritos para a mendicância, como na índia.
tante, tentássemos isso, os resultados seriam os mesmos que
conhecemos na C hina, ou seja, o sufocamento da racionalidade Houve apenas dois caminhos coerentes para fugir às ten
form al. Pois, na China, a racionalidade formal e a substantiva sões entre a religião e o mundo econômico de um modo in terior,
estavam em conflito. baseado num princípio: primeiro, o paradoxo da ética puritana
da “vocação”. Como um a religião de virtuosos, o puritanism o
Como já vimos, as religiões da salvação tiveram um a ten renunciou ao universalism o do amor, e rotinizou racionalmente
dência a despersonalizar e objetivar o amor, no sentido singular todo o trabalho neste mundo, como sendo um serviço à von
do acosmismo. Não obstante, essas mesmas religiões observa tade de Deus e um a comprovação do estado de graça. A von
ram , com profunda desconfiança, o desdobramento das forças tade de Deus, em seu sentido último, era incompreensível, e
econômicas que, num sentido diferente, também foram impes não obstante era a única vontade positiva que podia ser conhe
soais, e por isso se opuseram especificamente à fraternidade. cida. Sob este aspecto, o puritanism o aceitou a rotinização do
O Deo placere non potest católico sempre foi a atitude ca cosmos econômico, que, como a totalidade do m undo, desva
racterística das religiões de salvação para com a economia de lorizou como coisa da criatura e im perfeita. Esse estado de
lucro; com todos os métodos racionais de salvação as advertên coisas parecia ordenado por Deus, e como m aterial e dado para
cias contra o apego ao dinheiro e aos bens levaram -nos ao auge o cum primento do dever de cada qual. Em últim a análise,
do tabu. A dependência em que as próprias com unidades re isto significava em princípio a renúncia à salvação como meta
ligiosas, e sua propaganda e m anutenção, estavam dos meios alcançável pelo homem, ou seja, por todos. Significava a renún
econômicos, e -sua acomodação às necessidades culturais e aos cia à salvação em favor da graça sem base e apenas particula
interesses cotidianos das massas, forçaram-nas a concessões das rizada, sempre. N a verdade, esse ponto de vista da não-frater-
quais a história da interdição de interesses é apenas um exem nidade já não era um a autêntica “religião d a salvação”, a qual
plo. Não obstante, em últim a análise nenhum a religião de pode exagerar a fraternidade até o auge do acosmismo do amor
salvação autêntica superou a tensão entre sua religiosidade e do místico.
um a economia racional. O misticismo é outro cam inho coerente pelo qu al a tensão
Exteriormente, a ética dos virtuosos religiosos afetou essa entre a economia e a religião pode escapar. Essa forma é re
relação tensa de modo mais radical: rejeitou a posse dos bens presentada de modo bastante puro na “benevolência” do mís
econômicos. O monge asceta renunciou ao mundo negando-se tico, que não indaga do homem para quem , e a quem , ele
a propriedade individual; sua existência baseou-se totalm ente sacrifica. Em últim a análise, o misticismo não se interessa pela
em .seu próprio trabalho. A cim a de tudo, suas necessidades sua pessoa. De um a vez por todas, o místico benevolente dá
foram correspondentemente lim itadas ao que era absolutamente a sua cam isa quando qualquer pessoa que lhe cruza acidental
indispensável. O paradoxo de todo o ascetismo racional, que mente o cam inho lhe pede o paletó — e sim plesm ente porque
de form a idêntica fez tropeçar os monges de todas as épocas, lhe cruza o caminho. O misticismo é um a fuga singular deste
está em que o próprio ascetismo racional criou a riqueza mesma mundo, na form a de um a dedicação sem objeto a todos, não
382 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA REJEIÇÕES RELIGIOSAS DO MUNDO E SUAS DIREÇÕES 383

pelo homem, mas pela devoção simplesmente, ou, nas palavras tidam ente e inevitavelm ente pelo pragm atism o das “razões de
de Baudelaire, pela “prostituição sagrada da alm a”. Estado”. O fim absoluto do Estado é salvaguardar (ou m odifi
car) a distribuição externa e interna de poder; em últim a aná
lise, essa finalidade deve parecer insensata a qualquer religião
5. A E sf e r a P o l ít ic a universalista de salvação. T al fato foi, e continua sendo, váli
do, e, ainda mais, para a política externa. É absolutamente es
As religiões que sustentaram um a ética da salvação fraternal sencial para q ualquer associação política recorrer à violência
mente coerente sofreram um a tensão igualm ente aguda em re bruta dos meios coercitivos frente aos inim igos externos, bem
lação às ordens políticas do m undo. Este problema não existiu como aos inim igos internos. Somente esse recurso mesmo à
para a religiosidade m ágica ou para a religião das divindades violência é que constitui um a associação política em nossa ter
funcionais. O antigo deus da guerra bem como o deus que m inologia. O Estado é um a associação que pretende o mono
garan tia a ordem legal, eram divindades funcionais que pro pólio do uso legítim o d a v iolên cia, e não pode ser definido de
tegiam os valores indubitáveis da rotina cotidiana. Os deuses outra forma.
da localidade, tribo e Estado interessavam-se apenas pelas suas O Serm ão da M ontanha d iz: “N ão resistas ao m al”. Em
respectivas associações. T inham de lutar contra outros deuses oposição, o Estado declara: "Dev es ajudar o direito a triunfar
como eles mesmos, tal como suas com unidades lutavam , e ti pelo uso da força, pois se assim não for também serás respon
nham de provar seus poderes divinos nessa luta mesma. sável pela injustiça”. Quando tal fator está ausente, o “Estado”
O problema só surgiu quando essas barreiras de localidade, também está ausente; o “anarquism o” do pacifista terá nascido
tribo e Estado foram esm agadas pelas religiões universalistas, então. Segundo esse pragm atism o inevitável de toda a ação,
por um a religião com um D eus unificado de todo o mundo. porém, a força e a am eaça de força alim entam necessariamente
E o problema só surgiu com todo o vigor quando esse Deus m ais força. As “razões de Estado” seguem, assim, suas próprias
era um Deus de “amor”. O problem a das tensões com a ordem leis externas e internas. O êxito mesmo da força, ou da am eaça
política surgiu para as religiões redentoras com a exigência bá de fôrça, depende em últim a análise das relações de poder e não
sica da fraternidade. E na política, como na economia, quanto do “direito” ético, mesmo que julgássemos possível descobrir
m ais racional se tornava a ordem política, tanto m ais agudos critérios objetivos para esse “direito”.
os problemas dessas tensões se tornavam . Em contraste com o heroísmo prim itivo, ingênuo, é típico
O aparato burocrático estatal, e o h om o politicus racional in dos sistemas estatais racionais que os grupos ou governantes se
tegrado no Estado, adm inistram as questões, inclusive a punição preparem para o conflito violento acreditando, todos, estarem
do m al, quando realizam transações no sentido mais ideal, se sinceramente “certos”. P ara qualquer racionalização religiosa
gundo as regras racionais da ordem estatal. Nisso, o homem coerente, isto parecerá apenas um arrem edo da ética. A lém
político age exatamente como o hom em econômico, de um a for disso, colocar o nome do Senhor nesse violento conflito político
m a objetiva, “sem preocupação da pessoa”, sin e ira et studio, deve ser considerado um uso vão de Seu nome. Frente a tudo
sem ódio, e portanto sem am or. Em virtude de sua desperso- isso, o caminho m ais limpo, e o único honesto, parece ser a eli
nalização, o Estado burocrático, sob aspectos importantes, é me m inação completa da ética no raciocínio político. Quanto m ais
nos acessível à moralização substantiva do que as ordens patriar objetiva e calculista é a política, e quanto m ais livre de emo
cais do passado, por m ais que as aparências possam indicar o ções apaixonadas, de ira e de amor, íanto m ais parecerá a um a
ética de fraternidade estar ela distante da fraternidade.
contrário. As ordens patriarcais do passado baseavam-se nas
obrigações pessoais da piedade, e os governantes patriarcais con A indiferença m útua entre religião e política, quando são
sideravam o mérito do caso concreto à parte, precisamente em ambas completamente racionalizadas, é ainda m ais intensa por
“relação à pessoa”. Em últim a análise, apesar de todas as “po que, em contraste com a Economia, a política pode entrar em
líticas de bem-estar social”, todo o curso das funções políticas concorrência direta com a ética religiosa, em pontos decisivos.
internas do Estado, da justiça e adm inistração, é regulado repe Como am eaça de violência consumada entre os Estados moder
384 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA REJEIÇÕES RELIGIOSAS DO MUNDO E SUAS DIREÇÕES 385

nos, a guerra cria um path os e um sentimento de comunidade. talidade tecnicamente requintada da luta. E a consagração in
A guerra promove, portanto, um a comunhão incondicionalm ente terior da morte na guerra deve parecer um a glorificação
dedicada e pronta ao sacrifício, entre os combatentes, e libera do fratricídio. A própria qualidade extraordinária da fraterni
um a compaixão de massa ativa e um amor pelos que estão so dade da guerra, e da morte na guerra, partilha do carisma sa
frendo necessidades. E, como fenômeno de massa, esses senti grado e da experiência da comunhão com Deus, e esse fato
mentos derrubam todas as barreiras naturais à associação. Em leva a competição entre a fraternidade da religião e a da co
geral, a religião só pode mostrar realizações comparáveis nas m unidade guerreira ao auge. Como na Economia, as duas únicas
comunidades heróicas que professam um a ética da fraternidade. soluções coerentes para essa tensão são as do puritanism o e do
A lém disso, a guerra traz ao guerreiro algo que, em seu misticismo.
significado concreto, é excepcional: faz que ele experimente O puritanism o, com seu particularismo da graça e seu asce
um significado consagrado da morte, característico apenas tismo vocacional, acredita nos mandamentos fixos e revelados
da morte na guerra. A com unidade do exército no campo de de um Deus que, sob outros aspectos, é incompreensível. In
batalha sente-se hoje — como nas épocas dos “seguidores” dos terpreta a vontade de Deus como significando que esses m an
senhores da guerra — como um a com unidade até a morte e a damentos devem ser impostos ao mundo das criaturas pelos meios
m aior do gênero. A morte no campo de batalha difere da morte deste mundo, ou seja, a violência — pois o mundo está sujeito
comum a todos. Como se trata de um destino a que todos à violência e ao barbarismo ético. E isto significa, pelo menos,
estão sujeitos, ninguém pode jam ais dizer por que ela chega pre barreiras que resistem à obrigação de fraternidade no interesse
cisamente a ele, e por que chega precisamente naquele momento. da “causa” de Deus.
À m edida que se desdobram os valores da cultura e são subli
Por outro lado, há a solução da atitude antipolítica radi
mados a alturas imensuráveis, essa morte ordinária marca um cal do místico, sua busca de redenção com sua benevolência
fim , quando apenas um início poderia fazer sentido. A morte
e fraternidade acósmica. Com seu “não resistir ao m al” e com
no campo de batalha difere dessa morte simplesmente inevitável
sua m áxim a “voltar a outra face”, o misticismo é necessariamente
pelo fato de que na guerra, e som en te na guerra, o indivíduo carente de dignidade aos olhos da ética m undana do heroísmo.
pode acreditar que sabe estar m orrendo “por” algum a coisa. O A lheia-se do estigm a da violência de que nenhum a ação política
porquê e o para quê enfrenta ele a morte podem, em geral, ser pode fugir.
tão indubitáveis para ele que o problema do “significado da
morte nem mesmo lhe ocorre. Pelo menos, pode não haver Todas as outras soluções às tensões da política e religião estão
pressupostos de aparecimento do problema em sua significação cheias de concessões ou de pressupostos que devem parecer ne
universal, que é a forma pela qual as religiões da salvação são cessariamente desonestos ou inaceitáveis à ética da fraternidade
levadas a se preocupar com o sentido da morte. Somente os autêntica. A lgum as dessas soluções são, não obstante, interes
que perecem “na sua vocação” estão na mesma situação do sol santes em princípio e como tipos.
dado que enfrenta a morte no campo de batalha. T oda organização da salvação por um a in stituição compul
Essa localização da morte dentro de um a série de aconteci sória e universalista da graça sente-se responsável, perante Deus,
mentos significativos e consagrados está, em últim a análise, na pelas alm as de todos, ou pelo menos de todos os homens a ela
base de todos os esforços para apoiar a dignidade autônoma da confiados. Essa instituição se sentirá, portanto, com direito a
estrutura política que se baseia na força. Não obstante, a for opor-se, e com o dever de opor-se, com a força impiedosa a
m a pela qual a morte pode ser concebida como significativa qualquer perigo oriundo de uma m á orientação da fé. Sente-se
nesses esforços aponta em direções que diferem radicalm ente obrigada a promover a difusão de seus meios de graça salva
dores.
das direções em que a teodicéia da morte, num a religião de fra
ternidade, pode apontar. A fraternidade de um grupo de ho Quando as aristocracias salvadoras estão incumbidas, por or
m ens unidos na guerra deve parecer pouco valiosa para essas dem de seu Deus, de domar o mundo do pecado, para a Sua
religiões fraternais, sendo vista apenas como um reflexo da bru glória, dão origem ao “cruzado”. Foi o que ocorreu no calvi-
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ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
386
tura das organizações religiosas com os interesses do poder e
nismo e, em íorm a diferente no islamismo. Ao mesmo tempo,
as lutas pelo poder, pelo colapso sempre inevitável até mesmo
porém, as aristocracias salvadoras f u n g u e m as gu «m dos m ais altos estados de tensão com o mundo, em favor de
tas” ou “justas” de outras, puramente seculares, ^ pro
concessões e relatividades, pela utilidade e uso das organizações
fundam ente indignas A guerra ,usta e ravach para a^« cuçao
religiosas, para a domesticação política das massas e, especial
dos mandamentos de Deus, ou pela defesa da 4 ’ . mente, pela necessidade que as pretensas potências têm da consa
forma significa sempre um a guerra religiosa, gração religiosa de sua legitim idade. Como podemos ver pela
tocracias salvadoras rejeitam a compulsão de Par c P ^ em ^ história, quase todas as plataformas de organizações religiosas
guerras das autoridades políticas que nao se d a « * “ ® g ra foram religiosamente relativas, no que se relaciona com os va
mente como guerras s a n t a s correspondentes a v o n a,^
lores sagrados, a racionalidade ética e a autonom ia lícita. N a
ou seja, guerras não-afirmadas pela.ç r o g u a onsa n c i a do
prática, o tipo m ais importante dessas formas relativas foram as
te O exército vitorioso dos Santos de u o r o ^ * s , , éticas sociais “orgânicas”. Esse tipo difundiu-se em m uitas for
forma quando tomou posição contra o serviço mas e sua concepção da obra vocacional foi, em princípio, o
rio. As aristocracias da salvaçao preferem exe , contraste mais importante com a idéia de “vocação”, como se
ao serviço m ilitar compulsório. Caso os homen h a encontra no ascetismo interior.
tade de Deus, especialmente em nome da fe os eis chegam a
conclusões favoráveis a um a revo lu ção religiosa ativa, ^ w t u A ética social orgânica, quando subestruturada religiosa
de da sentença de que se deve obedecer antes a Deus do que ao mente, enquadra-se na “fraternidade”, mas, em contraste com
o amor místico e acósmico, é dom inada por um a exigência ra
homem. . «
O luteranism o religioso, por esemplo, tomouJ i W ç ’ c n- cional de fraternidade. Seu ponto de partida é a experiência
da desigualdade do carism a religioso. O simples fato de que
tríria . Rejeitou a cruzada o sagrado só deve ser acessível a alguns, e não a todos, é intole
qualquer coaçao secular em assuntos de te > con nra^matis-
rável à ética orgânica social. Procura, portanto, sintetizar essa
ção um a arbitrariedade, que em aranha a salvaç Conhece a
mo da violência. Nesse campo, o l u t e « * » * » desigualdade pelas qualificações carismáticas com a estratifica
ção secular por estamento, num cosmo de serviços por ordena
resistência passiva. Aceitou, porem, a o qutoridade tenha ção de Deus, de função especializada. Certas tarefas são atribuí
secular, como irrecusável, mesmo quando e«a a u to r.d ade itenha
dado ordem de guerra, porque a responsabihdade da guerra das a todo indivíduo e grupo segundo seu carisma pessoal e
cabe a ela e não ao indivíduo, e porque sua autonomia etica, posição social e econômica, determ inadas pelo destino. Em geral,
em contraste com a instituição universalista (católica) da graça, essas tarefas estão a serviço da realização de um a condição que,
Z ZZiL A in s e r ç l d , relrgiosidade =
ao cristianismo pessoal de Lutero parou pouco antes de tirar as
ca pea.1.ar apesar de sua natureza de concessão, é agradável a Deus. Essa
condição é interpretada como sendo, ao mesmo tempo, utilitá
ria, social e providencial. Frente à m alignidade do mundo, ela
c o n c l u s õ e s totais do assunto. .
A busca carismática e verdadeiramente nv.^ca da salvaçao, facilita pelo menos um a sujeição relativa do pecado e do sofri
mento: a preservação e salvação do maior número possível de
por parte dos virtuosos essê’ncia. As almas para o reino de Deus é, com isso, facilitada. Veremos,
parte apolítica ou antipohtica, pela sua prop ,
m ais adiante, um a teodicéia de um path os muito maior, que
buscas de salvação reconheceram
a doutrina indiana do C arm a transm itiu à doutrina orgânica
T , o da sociedade, do ponto de vista do pragm atism o redentor orien
“ , o 'd , vista da indiferença a W u t a ren,« ao mundo £ue tado exclusivam ente para os interesses do indivíduo. Sem esse
foi expresso na frase: D ai a Cesar o q u e ; elo muito especial, toda ética social orgânica representa, inevi
que relevância têm essas coisas para a salvaçao.).^ tavelmente, um a acomodação aos interesses da cam ada privilegia
A* variadas posições empíricas que as religiões histonca. da deste mundo. Pelo menos, é essa a opinião da ética radical
têm tomado frente à ação política foram determinadas pela m is e mística da fraternidade religiosa. Do ponto de vista do asce
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tismo interior, à ética orgânica falta um impulso interior para irracional em seus efeitos. * Frente a isso, um a busca da sal
um a racionalização ética e completa da vida individual. Nessas vação, sublim ada e completa, pode levar a um crescente acos
questões, não há prêmios para a padronização racional e méto-
mismo, a ponto de rejeitar a ação racional-objetiva per se, e,
dica da vida pessoal no interesse da própria salvação individual.
daí, toda ação em termos de relações de meios-fins, pois consi-
O pragmatism o orgânico da salvação deve considerar a aris dera-as como ligadas às coisas m undanas e, por isso, estranhas
tocracia redentora do ascetismo interior-m undano, com sua des- a Deus. Iremos ver como isso ocorreu com um a coerência va
personalização racional das órdens da vida, como a forma mais riada, desde a parábola bíblica dos lírios do campo até a form u
difícil de amor e falta de fraternidade. Deve considerar o prag lação do budismo, por exemplo, que se baseia mais em prin
matismo redentor do misticismo como um a indulgência subli cípios.
m ada e, na verdade, não-fraternal, do próprio carisma do mís A ética orgânica da sociedade é, em toda parte, um poder
tico. O acosmismo não-métodico e não-planificado do amor eminentemente conservador e hostil à revolução. Dentro de
é visto como um simples meio egoísta na busca da própria sal certas condições, porém, conseqüências revolucionárias podem
vação do místico. Tanto o ascetismo como o misticismo interior- seguir-se de um a religiosidade virtuosa autêntica. N aturalm ente,
-m undano condenam, em últim a análise, o mundo social à abso isto só ocorre quando o pragmatism o da força, exigindo mais
luta falta de sentido, ou pelo menos sustentam que os objetivos força e levando simplesmente a modificações no pessoal, ou
de Deus, em relação ao mundo social, são totalmente incompre na melhor das hipóteses a modificações nos métodos de Governo
ensíveis. O racionalismo das doutrinas religiosas e orgânicas da pela força, não é aceito como um a qualidade perm anente do
sociedade não pode resistir a tal idéia, pois busca compreender m undo das criaturas. Segundo a coloração da religião do vir
o mundo como um cosmo relativam ente racional, apesar de tuoso, sua situação revolucionária pode em princípio assumir
toda a sua m alignidade; o mundo é considerado como portador duas formas. U m a delas nasce do ascetismo interior-m undano,
de, pelo menos, traços do plano divino de salvação. P ara o sempre que seja ele capaz de opor um “direito natural” abso
carism a absoluto da religiosidade virtuosa, esta relativização é, luto e divino às ordens criaturais, m alignas e em píricas do m un
na realidade, discutível e estranha ao sagrado. do. Torna-se, então, um dever religioso compreender êsse di
Como as ações políticas econômicas e racionais seguem leis reito natural, segundo a sentença de que se deve obedecer a
próprias, também qualquer outra ação racional dentro do m un Deus, e não aos homens, que de certa forma se aplica a todas as
do continua inevitavelm ente ligad a às condições m undanas, dis religiões racionais. As revoluções puritanas autênticas, cujas
tantes da fraternidade e que devem servir como meios ou fins contrapartidas podem ser encontradas em outras partes, são tí
para a ação racional. D aí toda ação racional colocar-se, de al picas. Essa atitude corresponde de modo absoluto à obrigação
gum a forma, em tensão com a ética da fraternidade, e encerrar de empreender cruzadas.
em si mesma um a tensão profunda, pois parece não haver meio A questão é diferente com o místico. A passagem psico-
de decidir nem mesmo a prim eira questão: Onde, no caso indi logica da posse de Deus para a posse por Deus é sempre possí
vidual, pode o valor ético de um ato ser determ inado? Em vel e com o místico é consumada. Isso é significativo e possível
termos de êxito ou em termos de algum valor intrínseco do quando as expectativas escatológicas de um início im ediato e do
ato per se? A questão é se, e até que ponto, a responsabilidade m ilênio de fraternidade flam ejam , e, daí, quando desaparece a
do agente pelos resultados santifica os meios, ou se o valor da crença de que existe um a tensão duradoura entre o mundo e
sua intenção justifica a sua rejeição da responsabilidade do re o reino metafísico irracional da salvação. O místico transforma-
sultado, seja para transferi-lo para Deus, ou para a m aldade e -se então num salvador e profeta. Os mandamentos, porém, que
idiotice do mundo perm itidas por Deus. A sublimação absolu ele enuncia não têm caráter racional. Como produtos do seu
tista da ética religiosa fará que os homens se inclinem pela se carisma, são revelações concretas e a rejeição radical do mundo
gunda alternativa: “O cristão age bem e deixa o êxito para Deus”.
Nisso, porém, a conduta do próprio agente, quando realm ente
* Teoricamente, isso é realizado com m aior coerência no Bha-
coerente, e não a autonomia lícita do mundo, é condenada como gavad-Glta, como iremos ver.
390 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IRE ÇÕ ES 391

transforma-se, facilmente, num an om ism o radical. Os m an Para a ética religiosa da fraternidade, tal como para um
damentos do m undo não são válidos para o homem que tem rigorism o ético a priori , 1 a arte como veículo de efeitos m ági
certeza na sua obsessão com D eus: ‘ 7távxa [ioi s^saxtv.’ Todo o cos não só tem pouco valor como é até mesmo suspeita. A
quiliasm o, até a revolução dos anabatistas, baseou-se um pou sublimação da ética religiosa e a busca da salvação, por um lado,
co nessa subestrutura. Para quem “possui Deus” e é portanto e a evolução da lógica inerente da arte, por outro, tenderam
salvo, a forma de ação não tem significação para a salvação. a formar uma relação cada vez mais tensa. Todas as religiões
Veremos que estados semelhantes ocorrem no caso do djiv an - sublim adas da salvação focalizaram apenas o significado, e não
m u \h t i indiano. a forma, das coisas e atos relevantes para a salvação. As reli
giões salvadoras desvalorizaram a forma como contingente, como
algo da criatura e que a afastava do significado. Por parte da
6. A E sf e r a Est é t ic a arte, porém, a ingênua relação com a ética religiosa d? fra
ternidade pode permanecer ininterrupta ou pode ser repetida
A ética religiosa da fraternidade situa-se em tensão dinâ mente restabelecida, enquanto e com a freqüência que o inte
m ica com qualquer comportamento consciente-racional que siga resse consciente do objeto da arte esteja ingenuam ente ligado
as suas próprias leis. Em proporções não menores, essa tensão ao conteúdo, e não à forma em si. A relação entre um a ética
também ocorre entre a ética religiosa e as forças de vida “deste religiosa e a arte continuará harmoniosa no que diz respeito
mundo”, cujo caráter é essencialmente não-racional, ou basica à arte, e enquanto o artista criador considera seu trabalho
mente anti-racional. Acim a de tudo, há tensão entre a ética da como resultado seja do carisma ou da “habilidade” (original
fraternidade religiosa e as esferas da vida estética e erótica. mente m ágica) ou do jogo espontâneo.
A religiosidade m ágica está num a relação m uito íntim a com O desenvolvimento do intelectualismo e da racionalização
a esfera estética. Desde seu início, a religião tem sido um a da vida modifica essa situação. Nessas condições, a arte torna-
fonte inesgotável de oportunidades de criação artística, de um -se um cosmo de valores independentes, percebidos de forma
lado, e de estilização pela tradicionalização, do outro. Isso se cada vez mais consciente, que existem por si mesmos. A arte as
evidencia em vários objetos e processos: ídolos, ícones e outros sume a função de um a salvação neste mundo, não importa como
artefatos religiosos; na padronização das formas comprovadas isto pcssa ser interpretado. Proporciona um a salv ação das ro
magicamente, o que constitui um prim eiro passo na superação tinas da vida cotidiana, e especialmente das crescentes pressões
do naturalism o por um a fixação de “estilo”; na música, como do racionalismo teórico e prático.
meio de êxtase, exorcismo ou m ágica apotropaica; em feiticei
ros que eram cantores e dançarinos m ágicos; em relações de Com essa pretensão a um a função redentora, a arte começa
tom comprovadas m agicamente e portanto magicamente padro a competir diretam ente com a religião salvadora. T oda ética
nizadas — as primeiras fases preparatórias na evolução dos sis religiosa racional deve voltar-se contra essa salvação interior-
temas tonais; nos passos de dança m àgicam ente provados como -m undana, irracional. Aos olhos da religião, essa salvação é
um a das fontes de ritmo e como um a técnica de êxtase; nos um reino de indulgência irresponsável e um amor secreto. N a
templos e igrejas, como as maiores de todas as edificações, com realidade, a recusa dos homens modernos em assum ir a respon
sua tarefa arquitetônica estereotipada (e, com isso, formando um sabilidade dos julgam entos morais tende a transform ar os ju l
estilo) como conseqüência de finalidades estabelecidas de uma gamentos de intenção moral em julgam entos de gosto ( “de mau
vez por todas, e com formas estruturais que se tornam estereo gôsto”, ao invés de “repreensível”) . A inacessibilidade do re
tipadas através da eficiência m ágica; em paramentos e im ple curso aos julgam entos estéticos exclui dissensão. Essa passa
mentos de igreja de todos os tipos, que serviram como objetos gem da avaliação m oral para a ética, na conduta, é um a carac
da arte aplicada. Todos esses processos e objetos foram classi terística comum das épocas intelectualistas; resulta, em parte,
ficados de acordo com a riqueza das igrejas e templos oriunda das necessidades subjetivistas e em parte do medo de parecer
do zelo religioso. de m entalidade lim itada de um modo tradicionalista e filisteu.
392 E N SA IO S DE SO C IO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IREÇÕ ES 393

A norm a ética e sua “validade universal” criam um a comu de virtuosa em sua manifestação ascética ativa, bem como em
nidade, pelo menos na m edida em que o indivíduo poderia re sua manifestação mística. Quanto m ais a religião ressaltou a
jeitar o ato de outro, por alegações morais, e, ainda assim, en supram undanidade de seu Deus, ou a ultram undanidade da sal
frentá-lo e participar da vida com um. Conhecendo a sua pró vação, tanto mais duramente rejeitada foi a arte.
pria fraqueza como criatura, o indivíduo coloca-se sob a norma
comum. Em contraste com essa atitude ética, a fuga à neces
sidade de tom ar uma posição fundam entada cm razões racio 7. A E sf e r a E r ó t i c a
nais e éticas recorrendo às avaliações estéticas bem pode ser con
siderada pela religião salvadora como um a forma muito mes A ética fraternal da religião de salvação está em tensão pro
quinha de falta de fraternidade. P ara o artista criador, porém, funda com a maior força irracional da vida: o amor sexual.
bem como para a mente esteticamente excitada e receptiva, a Quanto m ais sublim ada é a sexualidade, e quanto m ais baseada
norma ética, como tal, pode parecer facilmente como um a coa em princípio, e coerente, é a ética de salvação da fraternidade,
ção à sua criatividade autêntica e ao m ais íntimo de seu eu. tanto m ais aguda a tensão entre o sexo e a religião.
O riginalm ente, a relação entre sexo e religião foi muito ín
A forma mais irracional do comportamento religioso, a ex
tim a. Ás relações sexuais faziam , freqüentemente, parte do orgi-
periência m ística, é em sua m ais íntim a essência não só estranha,
asticismo mágico ou eram o resultado não-intencional da exci
mas também hostil, a toda forma. A forma é infortunada e
tação orgiástica. A base da seita dos S\o p t sy (Castradores) na
inexpressível ao místico, porque ele acredita precisamente na
Rússia evoluiu de um a tentativa de elim inar o resultado sexual
experiência de fazer explodir todas as formas, e espera, com
da dança orgiástica ( radjen y ) do Ch ly st, considerada como peca
isso, ser absorvido pelo Uno, que está além de qualquer tipo
minosa. A prostituição sagrada nada tinha que ver com um a
de determ inação e forma. P ara ele, a afinidade psicológica in
suposta “prom iscuidade prim itiva”; foi, habitualm ente, a sobre
dubitável das experiências profundam ente comoventes na arte
vivência do orgiasticismo mágico no qual todo êxtase era con
e religião só podem ser um sintom a da natureza diabólica da
siderado “sagrado”. E a prostituição profana heterossexual, bem
arte. Especialmente a m úsica, a m ais “interior” de todas as
como homossexual, é muito antiga e, com freqüência, bastante
artes, pode surgir em sua m ais pura forma de música instru
sofisticada. (O treinamento das tríbades ocorre entre os cha
m ental como um Ersatz da experiência religiosa direta. A lógica
mados aborígin es.)
interna da m úsica instrum ental como um reino que não vive
“de dentro” parece à experiência religiosa como um a pretensão A transição dessa prostituição para o matrimônio legalm ente
enganosa. A posição, bem conhecida, do Concílio de Trento constituído está cheia de todos os tipos de formas interm e
pode, em parte, ter vindo desse sentimento. A arte torna-se diárias. Concepções do matrimônio como um a disposição eco
um a “idolatria”, um a força concorrente, e um embelezamento nômica para garan tir a segurança da esposa e a herança legal
enganoso; e as imagens e a alegoria dos assuntos religiosos sur para o filho; como um a instituição im portante (devido aos sa
gem com blasfêmia. crifícios mortais dos descendentes) na vida no além ; e tão im
portantes para a procriação — essas concepções do casamento
N a realidade em pírica, histórica, essa afinidade psicológica
são pré-proféticas e universais. N ada têm, portanto, com o asce
entre a arte e religião levou a alianças sempre renovadas, bas
tismo em si. E a vida sexual, per se, teve seus fantasmas e
tante significativas para a evolução da arte. A grande m aio
seus deuses como qualquer outra função.
ria das religiões participaram, de algum a forma, dessas alianças.
Quanto m ais desejavam ser religiões universalistas de massa, e U m a certa tensão entre a religião e o sexo só se destacou
assim se voltavam para a propaganda emocional e os apelos de com o culto temporário da castidade dos sacerdotes. Essa cas
massa, tanto mais sistemáticas eram as suas alianças com a arte. tidade bastante an tiga nem pode ter sido determ inada pelo fato
M as todas as religiões virtuosas autênticas continuaram muito de que do ponto de vista do ritual rigorosamente padronizado
tím idas frente à arte, em conseqüência da estrutura interior da do culto da comunidade, a sexualidade era facilm ente considera
contradição entre a religião e a arte. Isso ocorre na religiosida da como especificamente dominada pelos demônios. A lém disso,
394 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO MUNDO E SU A S D IREÇÕ ES 395

não era por acaso que subseqüentemente as religiões proféticas, cia significativa, de relevância duradoura, e a captura de uma
bem como as ordens de vida controladas pelos sacerdotes, regu mulher podia ser considerada como um incidente incomparável
lam entavam , quase sem exceção importante, as relações sexuais num a guerra heróica.
em favor do m atrim ôn io. O contraste de toda regulam entação Os tragediógrafos conheciam o amor sexual como um poder
racional da vida com o orgiasticismo mágico e todos os tipos de autêntico do destino, e seu repertório incluía ecos duradouros
frenesis irracionais se expressa nesse fato. dos mitos. U m a mulher, porém — Safo —, não foi igualada
A tensão entre religião e sexo foi aum entada pelos fatores pelo homem na capacidade de sentimento erótico. O período
evolucionários, de ambos os lados. No lado da sexualidade, a helénico clássico, o período do exército dos hoplitas, concebia
tensão levou da sublimação ao “erotismo”, e com isso a um a as questões eróticas de uma forma relativa e excepcionalmente
esfera cultivada conscientemente, e portanto não-rotinizada. O sóbria. Como o provam todas as suas confissões, esses homens
sexo foi não-rotinizado não só, ou necessariamente, no sentido foram ainda mais sóbrios do que a cam ada educada dos chine
de ser estranho às convenções, pois o erotismo contrasta com o ses. Não obstante, não é exato que esse período não conhecesse
naturalism o sóbrio do camponês. E foi precisamente o erotismo a ansiedade mortal do amor sexual. O amor helénico caracte
que as convenções da C avalaria habitualm ente tomavam como rizou-se exatamente pelo oposto. Devemos lembrar-nos — ape
objeto de sua regulamentação. Essas convenções, porém, regu sar de Aspásia — do discurso de Péricles e finalm ente da co
lam entaram caracteristicamente o erotismo, disfarçando as bases nhecida oração de Demóstenes.
naturais e orgânicas da sexualidade. Para o caráter exclusivamente masculino dessa época de “de
A qualidade extraordinária do erotismo consistiu precisa mocracia”, o tratam ento da experiência erótica com mulheres
mente num afastamento gradual do naturalism o ingênuo do como “destino da vida” — para usar nosso vocabulário — teria
sexo. A razão e significação dessa evolução, porém, envolve a parecido quase que ingênua e sentim ental. O “cam arada”, o
racionalização universal e a intelectualização da cultura. D e rapaz, era o objeto exigido com toda a cerim ônia do amor, e
sejamos delinear, brevemente, as fases dessa evolução. P artire este fato ocupava precisamente o centro da cultura helénica.
mos de exemplos do Ocidente. Assim, com toda a sua magnificência, o eros de Platão é, não
obstante, um sentimento m uito controlado. A beleza da paixão
O ser total do homem está. agora, alienado do ciclo orgâ báquica não era um componente oficial dessa relação.
nico da vida camponesa; a vida se tem enriquecido cada vez
m ais em seu conteúdo cultural, seja esse conteúdo avaliado inte A possibilidade de problemas e de tragédia tendo por base um
lectualmente, ou de forma supra-individual. Tudo isso se operou, princípio surgiu na esfera erótica, a princípio, através de algu
através do estrangulam ento do valor da vida, em relação ao que m as exigências de responsabilidade que, no Ocidente, nasce do
é simplesmente dado, no sentido de um maior fortalecimento cristianismo. A conotação de valor da sensação erótica, como
da posição especial do erotismo. Este foi elevado à esfera do tal, evoluiu porém prim ordialm ente e antes de tudo o mais sob
gozo consciente (no sentido m ais sublime da expressão). Não o condicionamento cultural das noções feudais de honra. Isto
obstante, e na verdade devido a essa elevação, ele parecia um a aconteceu pela transferência dos símbolos da vassalagem cava-
abertura para a essência mais irracional, e portanto mais real, leiresca na relação sexual eroticamente sublim ada. O erotismo
da vida, em comparação com os mecanismos da racionalização. recebeu um a conotação de valor mais freqüentemente quando,
O grau e a forma pela qual um a ênfase de valor é colocada no durante a fusão da vassalagem e das relações eróticas, ocorreu
erotismo, como tal, variaram enormemente por toda a história. um a combinação com a religiosidade cripto-erótica, ou diretamente
Para os sentimentos incontidos dos guerreiros, a posse das com o ascetismo como durante a Idade M édia. O amor dos trova
mulheres e a luta por elas tiveram o mesmo valor que a luta dores da Idade M édia cristã foi um serviço erótico dos vassalos.
pelos tesouros e conquista do poder. N a época do helenismo pré- Não se dirigia às moças, mas exclusivam ente às mulheres dos
-clássico, no período do romance cavalheiresco, um a decepção outros homens; envolvia (teoricam ente!) noites de amor abs
erótica podia ser considerada por A rquíloco como um a experiên têmias e um código de deveres casuísta. Com isso começou a
396 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA REJEIÇÕES RELIGIOSAS DO MUNDO E SUAS DIREÇÕES 397

“provação” do homem, não perante seus pares, mas frente ao única e necessária com a anim alidade. M as essa tensão entre
interesse erótico da “dam a”. um a salvação da racionalidade que se voltava para o mundo
A concepção da “dam a” foi constituída exclusiva e precisa interior e a que se voltava para o mundo exterior será mais
mente cm virtude da sua função de julgar. A masculinidade aguda e m ais inevitável precisamente onde a esfera sexual é sis
do helenismo contrasta claram ente com essa relação entre o tematicam ente preparada para um a sensação erótica m uito va
vassalo e a “dam a”. lorizada. Essa sensação reinterpreta e glorifica toda a anim ali
dade pura da relação, ao passo que a religião salvadora adquire
O caráter especificamente sensacional do erotismo desen-
o caráter de um a religião de amor, fraternidade e amor pelo
volveu-se ainda mais com a transição das convenções da Renas
próximo.
cença para o intelectualismo crescentemente não-m ilitar da cul
tura dos salões. Apesar das grandes diferenças entre as conven Nessas condições, a relação erótica parece oferecer o auge
ções da A ntigüidade e da Renascença, estas últim as eram es insuperável da realização do desejo de amor na fusão direta das
sencialmente masculinas e de lu ta; sob esse aspecto, aproxim a almas entre si. Nessa entrega sem lim ite é tão radical quanto
vam-se m uito da A ntigüidade. Isso se deve ao fato de que à possível em sua oposição a toda funcionalidade, racionalidade
época de Cortegiano e de Shakespeare, as convenções renascen e generalidade. É citada aqui como o significado singular que
tistas haviam acabado com a castidade dos cavaleiros cristãos. um a criatura, sem sua irracionalidade, tem para outra, e somen
te para essa outra específica. Do ponto de vista do erotismo,
A cultura dos salões baseia-se na convicção de que a con
porém, esse significado, e com ele o conteúdo de valor da pró
versação intersexual é importante como força criadora. A sen
pria relação, baseia-se na possibilidade de um a comunhão, ex
sação erótica, clara ou latente, e a comprovação do cavalheiro
perim entada como um a unificação completa, como um desa
frente aos olhos da dam a tornaram -se meio indispensável de
parecimento do “tu”. É tão esm agadora que pode ser inter
estim ular essa conversação. Desde as Lettres Portugaises, os
pretada “simbolicamente” : como um sacramento. O amante
problemas amorosos reais das m ulheres tornaram -se um valor
considera-se preso à essência da verdadeira vida, que é eternam en
de mercado intelectual e específico, e a correspondência amorosa
te inacessível a qualquer empresa racional. Sabe-se livre das
fem inina tornou-se “literatura”.
frias mãos ósseas das ordens racionais, tão completamente quan
A últim a intensificação da esfera erótica ocorreu em termos to da banalidade da rotina cotidiana. Essa consciência do
das culturas intelectualistas, quando essa esfera colidiu com o am ante baseia-se na indelebilidade e inexauribilidade de sua pró
traço inevitavelm ente ascético do homem especialista vocacional. pria experiência, que não é comunicável e, sob esse aspecto,
Sob essa tensão entre a esfera erótica e a vida cotidiana racional, equivale à “posse” do místico. Isso ocorre não apenas devido à
a vida sexual especificamente extraconjugal, que havia sido afas intensidade da experiência do am ante, mas à imediação da rea
tada das coisas cotidianas, pôde surgir como o único laço que lidade possuída. Sabendo que a “própria vida” está nele, o
ainda ligava o homem à fonte n atu ral de toda vida. O homem am ante coloca-se em oposição ao que, para ele, é a experiência
em ancipara-se totalmente do ciclo da velha existência simples sem objetivo do místico, como se enfrentasse a luz mortiça de
e orgânica do camponês. um a esfera irreal.
U m a tremenda ênfase de valor sobre a sensação específica Assim como o amor consciente do homem m aduro está
de um a salvação interior em relação à racionalização foi o resul para o entusiasmo apaixonado do jovem, assim a ansiedade mor
tado disso. U m a alegre vitória sobre a racionalidade correspon tal desse erotismo do intelectualismo está para o amor cavalei-
deu, em seu radicalismo, à rejeição inevitável, e igualm ente ra resco. Em contraste com este último, o amor m aduro do inte
dical, por um a ética de qualquer tipo de salvação no outro lectualismo reafirm a a qualidade natural da esfera sexual, mas
m undo, ou supramundana. P ara essa ética, a vitória do espírito o faz de modo consciente, como um a força criadora m aterializada.
sobre o corpo deveria encontrar seu clím ax precisamente aqui, A ética da fraternidade religiosa opõe-se, radical e anta-
e a vida sexual poderia até mesmo adquirir o caráter de ligação gonicamente, a tudo isso. Do ponto de vista de tal ética, essa
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R E JE IÇ Õ E S R E LIG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IREÇÕ ES 399

sensação interior e terrena da salvação pelo amor maduro com entusiasmo ingênuo para a difusão da felicidade. E encontra
pete, da forma mais aguda possível, com a devoção a um deus sempre a zombaria fria da ética radical, e de base verdadeira
supramundano, com a devoção a um a ordem de Deus etica mente religiosa, da fraternidade. Os trechos psicologicamente
mente racional, ou com a dedicação de um anseio místico de m ais completos das obras de Tolstói podem ser citados, quanto
individuação, que só parece “genuíno” à ética da fraternidade. a isso. * Aos olhos dessa ética, o m ais sublime erotismo é o
pólo oposto de toda fraternidade orientada religiosamente, nes
Certas inter-relações psicológicas das duas esferas aum entam tes aspectos: deve, necessariamente, ser exclusiva em sua essên
a tensão entre religião e sexo. O erotismo mais elevado co cia interior; deve ser subjetiva no mais alto sentido im aginável;
loca-se psicológica e fisiologicamente num a relação mutuam ente e deve ser absolutamente incomunicável.
substitutiva com determ inadas formas sublim adas da piedade
heróica. Em oposição ao ascetismo racional, ativo, que rejeita Tudo isso está, decerto, longe do fato de que o caráter apai
o sexo como irracional, e que é considerado pelo erotismo como xonado do erotismo, como tal, parece à religião da fraternidade
um inim igo poderoso e mortal, essa relação sucedânea é orien como um a perda indigna do autocontrole e da orientação no
tada especialmente para a união mística com Deus. D ela segue- sentido da racionalidade e sabedoria das normas desejadas por
-se a constante ameaça de um a revanche mortalmente requin Deus ou da “posse m ística” da santidade. Para o erotismo,
tada da anim alidade, ou de um deslizar inexorável do reino porém, a “paixão” autêntica, per se, constitui o tipo de beleza,
místico de Deus para o reino do Demasiado-Hum ano. Essa e sua rejeição é blasfêmia.
afinidade psicológica aum enta naturalm ente o antagonismo dos Por motivos psicológicos e de acordo com seu sentido, o
significados interiores entre o erotismo e a religião. delírio erótico só está em uníssono com a forma orgiástica e
Do ponto de vista de qualquer ética religiosa da fraterni carismática de religiosidade, que, porém, num sentido especial,
dade, a relação erótica deve manter-se ligada, de forma mais é interiorizada. A aceitação do ato do matrimônio, da copula
ou menos requintada, à brutalidade. Quanto mais sublim ada carncdis, como “sacramento” da Igreja Católica, é um a conces
for, tanto m ais brutal. Inevitavelm ente, esta relação é consi são a esse sentimento. O erotismo entra facilm ente num a rela
derada como de conflito. T al conflito não é exclusivamente, ção inconsciente e instável de substituição ou fusão com o m is
nem mesmo predominantemente, o ciúme e a vontade de pos ticismo exterior e extraordinário. Isso ocorre com a tensão in
sessão, excluindo terceiros. É m uito m ais do que a coação terior muito forte entre erotismo e misticismo. Ocorre porque
m ais íntim a da alm a do companheiro menos brutal. Essa coa são psicologicamente substitutivos. Fora dessa fusão, o colapso no
ção existe porque jam ais é percebida pelos próprios participan orgiasticismo ocorre muito rapidamente.
tes. Pretendendo ser uma dedicação extremamente hum ana, O ascetismo voltado para o mundo interior e racional (as
ela constitui o gozo sofisticado de si mesmo no outro. N e cetismo vocacional) só pode aceitar o matrimônio racionalmente
nhum a comunhão erótica consumida sabe-se baseada em qu al regulam entado. Esse tipo de matrimônio é aceito como uma
quer outra coisa que não um a destin ação misteriosa de um para
das ordenações divinas dadas ao homem, como um a criatura
o outro: o destin o, neste sentido m ais elevado da palavra. Com
inevitavelm ente am aldiçoada em virtude de sua “concupiscên
isso, ela se sabe “legitim ada” (n um sentido inteiram ente amo
cia”. Dentro dessa ordem divina, é dado ao homem viver de
ra l).
acordo com as finalidades racionais que ela impõe e somente
Mas, para a religião da salvação, esse “destino” é apenas
o incêndio puramente fortuito da paixão. A obsessão patológica,
assim criada, a idiossincracia e as variações de perspectivas e
* Especialmente de G uerra e Paz. A posição da religião de
de toda justiça objetiva podem parecer, à religião da salvação, salvação é fixada com bastante clareza em Ascvagosha. Incidental-
como a m ais completa negativa de todo o amor fraternal e toda mente, a conhecida análise de Nietzsche, em A V o ntade de Poder,
servidão de Deus. A euforia do am ante feliz é considerada está, em substância, perfeitam ente de acordo com isso, apesar — e p re
como “boa” ; tem a necessidade cordial de poetizar todo o m un cisam ente devido a eles — dos valores de transvalorização clara
m ente admitidos.
do com características felizes, ou encantar todo o mundo num
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de acordo com cias: procriar e educar os filhos, e estimular-se H á um a unidade no reino da m ágica e na im agem pura
m utuam ente ao estado de graça. Esse ascetismo racional inte mente m ágica do mundo, como observamos no caso do pensa
rior deve rejeitar a sofisticação do sexo transformado em ero mento chinês. U m reconhecimento profundo e m útuo entre a
tismo, como um a idolatria do pior gênero. Por sua vez, esse religião e a especulação puramente metafísica também é possí
ascetismo reúne a sexualidade prim ária, naturalista e náo-subli- vel, embora em geral essa especulação leve facilm ente ao ceti
m ada do camponês, transformando-a num a ordem racional do cismo. A religião, portanto, considera a pesquisa exclusivamente
homem como criatura. Todos os elementos da “paixão”, porém, em pírica, inclusive a da Ciência N atural, como m ais conciliável
são então considerados como resíduos da Queda. Segundo Lu- com os interesses religiosos do que a Filosofia. Isso ocorre,
tero, Deus, para im pedir o pior, é tolerante para com esses acima de tudo, com o protestantismo ascético.
elementos de paixão. O ascetismo racional voltado para o A tensão entre a religião e o conhecimento intelectual des
m undo exterior (ascetismo ativo do m onge) também rejeita taca-se com clareza sempre que o conhecimento racional, empí
os elementos apaixonados, e com eles toda a sexualidade, como rico, funcionou coerentemente através do desencantamento do
um poder diabólico que põe em risco a salvação. A ética dos mundo e sua transformação num mecanismo causal. A ciência
quacres (tal como se evidencia nas cartas de W illiam Penn à encontra, então, as pretensões do postulado ético de que o m un
sua m ulher) bem pode ter conseguido um a interpretação au do é um cosmo ordenado por Deus e, portanto, sign ificativ o
tenticamente hum ana dos valores interiores e religiosos do casa e eticamente orientado. Em princípio, a visão do m undo, tanto
mento. Sob tal aspecto, a ética quacre foi além da interpreta em pírica quanto m atem aticam ente orientada, apresenta refuta
ção luterana, um tanto grosseira, do significado do matrimônio. ções a qualquer abordagem intelectual que, de algum a forma,
De um ponto de vista exclusivam ente interior, somente a exija um “significado” para as ocorrências do m undo interior.
ligação do matrimônio com o pensamento da responsabilidade Todo aumento do racionalismo na ciência em pírica leva a reli
ética de um pelo outro — daí um a categoria heterogênea à gião, cada vez m ais, do reino racional para o irracional; mas
esfera exclusivamente erótica — pode encerrar o sentimento de somente hoje a religião se torna o poder supra-hum ano irra
que algum a coisa única e suprema poderia estar encerrada no cional ou anti-racional. As proporções da consciência ou da
m atrim ônio; que ele poderia ser a transformação do sentimento coerência na experiência deste contraste, porém, variam muito.
de um amor consciente da responsabilidade, através de todas as Atanásio venceu com a sua fórm ula — totalm ente absurda
nuanças do processo vital orgânico, “até o pianíssimo da velhi quando vista racionalm ente — em sua luta contra a m aioria
ce”, e um a garantia m útua e um a dúvida m útua (no sentido dos filósofos helénicos da época; não parece inconcebível, como
de G oethe). Raram ente a vida oferece um valor em forma dissemos, que entre outras razões ele realm ente desejasse for
pura. A quele a quem é dado, pode falar da graça e fortuna çá-los, expressamente, ao sacrifício intelectual e a fixar um lim i
do destino — e não do seu próprio “m érito”. te para a discussão racional. Pouco depois, porém, a própria
T rindade foi racionalmente posta em dúvida e discutida.
Devido a essa tensão aparentemente inconciliável, as religiões
8. A E sf e r a In t e l e c t u a l proféticas, bem como as sacerdotais, m antiveram , repetidamente,
um a relação íntim a com o intelectualismo racional. Quanto m e
A rejeição de toda rendição ingênua aos modos m ais in nos misticismo m ágico ou meram ente contemplativo, e quanto
tensivos de experim entar a existência, artística e erótica, é co m ais “doutrina” um a religião encerra, tanto m aior é a sua ne
mo tal apenas um a atitude negativa. M as é evidente que essa cessidade de apologética racional. Os feiticeiros, em toda parte,
rejeição poderia aum entar a força com que as energias fluem foram os depositários típicos dos mitos e sagas heróicos, por
para a realização racional, tanto ética quanto exclusivamente que participaram na educação e treinam ento dos jovens guer
intelectual. Devemos notar, porém, que a tensão, autoconsciente, reiros a fim de despertá-los para o êxtase heróico e a
da religião é a maior, e m ais fundam entada em princípios, regeneração heróica. Para eles o sacrifício, como o único
quando a religião enfrenta a esfera do conhecimento intelectual. agente capaz de conservar a tradição, substituiu o treinamento
28
402 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA R E JE IÇ Õ E S R E LIG IO SA S DO MUNDO E SU A S D IREÇÕ ES 403

da juventude nas leis e, com freqüência, também nas tecnologias ponto, a exigir o ae d o nun quod, sed qu ia absurdum — o “sa
puram ente adm inistrativas e, acim a de tudo, na escrita e no cál crifício do intelecto”.
culo. Quanto mais a religião se tornou livresca e doutrinária,
Não é necessário, e seria impossível, tratar detalhadamente
tanto mas literária tornou-se e m ais eficiente foi no estímulo ao
dos estágios da tensão entre a religião e o conhecimento intelec
pensamento leigo racional, livre do controle sacerdotal. Dos
tual. A religião redentora defsnde-se do ataque do intelecto
pensadores leigos, porém, saíram os profetas, que eram hostis
auto-suficiente. E assim o faz, decerto, rigorosamente baseada
aos sacerdotes; bem como os místicos, que buscavam a salvação
em princípios, formulando a pretensão de que o conhecimento
independentem ente deles e dos sectários; e, finalm ente, os céti
religioso se move num a esfera diferente e que a natureza e
cos e filósofos, que eram hostis à fé.
significado do xonhecimento religioso são totalmente diferentes
U m a racionalização da apologética sacerdotal reagiu contra das realizações do intelecto. A religião pretende oferec;r uma
essa evolução. O ceticismo anti-religioso, per se, esteve presente posição últim a em relação ao mundo através de um a percepção
na C hina, Egito e nos Vedas, na literatura pós-exílica dos judeus. direta do “significado” do mundo. Não quer oferecer o conhe
Em princípio, foi exatamente como é hoje; não lhe foi acrescido cimento intelectual relativo ao que é ou que deveria ser. Pre
quase nenhum argumento novo. Portanto, a questão central tende revelar o sentido do mundo não por meio do intelecto,
do poder para o clero passou a ser a monopolização da educação mas em virtude de um carisma da ilum inação. Esse carisma,
dos jovens. ao que se diz, só é transm itido aos que fazem uso da respectiva
Com a crescente racionalização da adm inistração política, técnica e se libertam das substituições enganosas e errôneas, apre
o poder do clero pôde aum entar. Nos tempos antigos do Egito sentadas como conhecimento pelas impressões confusas dos sen
e Babilônia, somente o clero recrutava os escribas para o Estado. tidos e as abstrações vazias do intelecto. A religião acredita
O mesmo aconteceu com o príncipe m edieval, quando a adm i que elas são, na verdade, irrelevantes para a salvação. Libertan-
nistração baseada em documentos teve início. Dos grandes sis do-se delas, o homem religioso prepara-se para a recepção da
temas de pedagogia, somente o confucionismo e o da A ntigüidade percepção im portantíssim a do significado do m undo e de sua
do M editerrâneo souberam como fugir ao poder dos sacerdotes. própria existência. Em todas as tentativas da Filosofia de tornar
O primeiro o conseguiu em virtude de sua poderosa burocracia demonstrável esse significado último, e a posição (prática) que
estatal, e o segundo pela falta absoluta de adm inistração buro se segue da compreensão, a religião redentora vê apenas o
crática. Com a elim inação dos padres no setoreducativo, a desejo do intelecto de escapar à sua própria autonom ia legítim a.
própria religião sacerdotal foi elim inada nesses casos. Com essas A mesma opinião se mantém em relação às tentativas filosóficas
exceções, porém, os cleros forneceram e controlaram, regular de conseguir o conhecimento intuitivo que, embora interessado
mente, o pessoal das escolas. no “ser” das coisas, tem um a dignidade que difere principal
mente da dignidade do conhecimento religioso. A cim a de tudo,
N ão foram apenas os interesses genuinam ente sacerdotais a religião vê tudo isso como um produto específico do racio-
que provocaram as sempre renovadas ligações entre a religião nalism o mesmo do qual o intelectualismo, por essas tentativas,
e o intelectualismo. Foram, também, a compulsão interiorizante desejaria muito escapar.
do caráter racional da ética religiosa e a busca especificamente
intelectualista da salvação. N a verdade, toda religião em sua A religião da salvação, porém, vista de sua própria posição,
subestrutura psicológica e intelectual, e nas suas conclusões prá deve ser responsabilizada por transgressões igualm ente incoe
ticas, tomou um a posição diferente em relação ao intelectualismo, rentes, tão logo ela abre mão da incom unicabilidade inexpugná
sem perm itir, porém, que desaparecesse a tensão interiorizante vel das experiências místicas. Quando coerente, essa religião só
últim a, pois ela se baseia na disparidade inevitável entre as for pode ter os meios de provocar experiências místicas como acon ­
tecim en tos •. não tem meios de comunicá-las e demonstrá-las de
mas últim as das im agens do mundo.
forma adequada. Q ualquer tentativa de influenciar o mundo
Não há, absolutamente, nenhum a religião “coerente”, fun levará a religião m ística a correr esse perigo, tão logo a tentativa
cionando como um a força vital que não é compelida, em algu m assuma o caráter de propaganda. O mesmo é válido para qu al
404 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO MUNDO E SU A S D IREÇÕ ES 405

quer tentativa de interpretar o sentido do universo racional efeitos niveladores, superavam os bons homens e as boas obras,
mente, embora a tentativa tivesse sido repetidamente feita. bem como as más, parecia um a depreciação precisamente dos
Os postulados religiosos podem entrar em conflito com o valores supremos deste m undo — um a ve^ concebida a idéia de
“m undo” de diferentes pontos de vista, e o ponto de vista em um a duração perpétua do tempo, de um Deus eterno e de um a
questão é sempre de grande im portância para a direção e a ordem eterna. Frente a isso, os valores — e precisamente os
forma pelas quais a salv ação será buscada. Em todos os tempos m ais apreciados — foram consagrados como sendo “intempo-
e todos os lugares, a necessidade de salvação — cultivada cons ralm ente” válidos. D aí a significação de sua realização na “cul
cientemente como a substância da religiosidade — resultou da tura” ter sido considerada como independente da duração tem
tentativa de um a racionalização sistemática e prática das reali poral de sua concreção. Com isso, a rejeição ética do mundo
dades da vida. N a verdade, essa conexão tem sido m antida com empírico pôde ser intensificada, pois a essa altura poderia surgir
graus variados de evidência: nesse nível, todas as religiões exi no horizonte religioso um a seqüência de pensamentos de muito
giram , como pressuposto específico, que o curso do mundo seja, maior significação do que a imperfeição e futilidade das coisas
de algum a forma, sign ificativ o, pelo menos na m edida em que mundanas, porque essas coisas deviam denunciar precisamente
se relacione com os interesses dos homens. Como já vimos, os “valores culturais” que habitualmente se colocam m ais alto.
essa pretensão surgiu naturalm ente como o problema habitual Esses valores encerravam o estigm a do pecado mortal, de
do sofrimento injusto, e, daí, como o postulado de um a com um a culpa inevitável e específica. Mostraram-se condicionados
pensação justa para a distribuição desigual da felicidade indivi ao carisma da mente ou do gosto. Seu cultivo pareceu pressu
dual no mundo. D aí, a pretensão tendeu a progredir, passo por, inevitavelm ente, modos da existência que vão contra a
a passo, no sentido de uma crescente desvalorização do mundo. exigência de fraternidade e que só poderiam ser adaptados a
Quanto m ais intensamente o pensamento racional ocupou-se do esta exigência pelo auto-engano. As barreiras da educação e
problema da compensação justa e retributiva, tanto menos pa do cultivo estético são as m ais íntim as e m ais insuperáveis de
receu possível um a solução totalmente interior e tanto menos todas as diferenças de estamento. A culpa religiosa podia surgir,
provável, ou mesmo significativa, um a solução exterior. agora, não só como um a concomitante ocasional, mas como uma
Pelo que mostram as aparências, o curso atual do mundo parte integral de toda a cultura, de toda conduta num m un
não teve m uita relação com esse postulado da compensação. A do civilizado e, finalm ente, de toda a vida estruturada em geral.
desigualdade eticamente não-motivada na distribuição da felici E com isso os valores últimos que este mundo oferecia pareceu
dade e miséria, para a qual parecia concebível um a compensa onerar-se da maior culpa.
ção, continuou irracional; o mesmo ocorreu com a simples rea Sem pre que a ordem externa da com unidade social se trans
lidade da existência do sofrimento, pois a difusão universal do formou na cultura da comunidade do Estado, evidentemente
sofrimento só podia ser substituída por outro problema, ainda ela só podia ser m antida pela força bruta, que só se interessava
m ais irracional, a questão da origem do pecado que, segundo o pela justiça nom inal e ocasionalmente, e, de qualquer modo,
ensinamento dos profetas e sacerdotes, deve explicar o sofrimen apenas na m edida em que as razões de Estado perm itiram . Essa
to como um castigo ou um meio de disciplina. U m mundo força alim entou, inevitavelm ente, novos atos de violência con
criado para o exercício do pecado deve parecer ainda menos tra os inimigos externos e internos; além disso, fomentou pre
eticamente perfeito do que um mundo condenado ao sofrimento. textos desonestos para tais atos. Daí ter significado um a ausên
De qualquer modo, a imperfeição absoluta deste m undo esta cia de amor clara ou, o que é pior, farisaicam ente disfarçada.
beleceu-se firm emente como um postulado ético. E a futilida O cosmo econômico rotinizado, e assim a forma racionalmente
de das coisas m undanas só pareceu significativa e justificada em m ais elevada de provisão dos bens m ateriais, indispensáveis para
termos dessa imperfeição. Essa justificação, porém, parecia ade toda a cultura m undana, foi um a estrutura a que a ausência
quada a um a desvalorização m aior do mundo, pois não era de amor está ligada desde a raiz mesma. Todas as formas de
apenas, e nem mesmo prim ordialm ente, o indigno que se mos atividade no mundo estruturado pareceram envolver-se na mesma
trava transitório. O fato de que a morte e a ruína, com seus culpa.
406 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA R E JE IÇ Õ E S R E L IG IO SA S DO M U N D O E SU A S D IREÇÕ ES 407

A brutalidade velada e sublim ada, a idiossincrasia hostil cançar a perfeição do mundo interior em conseqüência da cla
à fraternidade, bem como as modificações ilusionistas de um reza ingênua da substância de sua vida. M as o homem “culto”,
senso de proporção justo, acom panharam inevitavelm ente o que luta para se aperfeiçoar, no sentido de adquirir ou criar
amor sexual. Quanto mais poderosamente se desdobram as “valores culturais”, não pode fazer isso. Pode “cansar-se da
forças do amor sexual, menos elas são percebidas pelos partici vida”, mas não pode “saciar-se da vida”, no sentido de com
pantes e m ais veladas são de um modo farisaico. A religiosi pletar um ciclo. A possibilidade de aperfeiçoamento do homem
dade ética recorreu ao conhecimento racional, que seguiu suas de cultura progride indefinidam ente, tal como ocorre com os
normas autônomas e interiores. Deu forma a um cosmo de valores culturais. E o segmento que o recipiente individual e
verdade que já nada tinha a ver com os postulados sistemáticos passivo, ou o co-construtor ativo pode abarcar no curso de uma
de um a ética religiosa racional; resultou disso que o mundo vida finita, se torna m ais insignificante na m edida em que mais
como um cosmo deve satisfazer as exigências de um a ética re variados e múltiplos se tornam os valores culturais e as metas
ligiosa ou demonstrar algum “sentido”. Pelo contrário, o conhe do auto-aperfeiçoamento. Daí, o condicionamento do homem
cimento racional teve de rejeitar essa pretensão, em princípio. a este cosmo externo e interno de cultura tornar menos prová
O cosmo da causalidade natural e o cosmo postulado da cau vel que o indivíduo possa absorver a cultura como um todo
salidade ética, compensatória, m antiveram -se em oposição incon ou aquilo que, em qualquer sentido, é “essencial” na cultura.
ciliável. A lém disso, não há critério para ju lgar este últim o, tornando-se
A ciência criou esse cosmo da causalidade natural e pareceu assim cada vez menos provável que a “cultura” e a luta pela
incapaz de responder, com certeza, à questão de suas pressupo cultura possam ter um significado do mundo interior para o
sições últim as. Não obstante, ela, em nome da “integridade indivíduo.
intelectual”, arrogou-se a representação da única forma possí A “cultura” do indivíduo certamente não consiste na qu an ­
vel de um a visão racional do mundo. O intelecto, como todos tidade dos valores culturais que ele reúne, mas num a seleção
os valores culturais, criou um a aristocracia baseada na posse da desses valores. M as não há garantia de que ela tenha chegado
cultura racional e independente de todas as qualidades éticas ao fim que seria significativo para o indivíduo precisamente
pessoais do homem. A aristocracia do intelecto é, portanto, no momento “acidental” de sua morte. Poderia mesmo voltar
um a aristocracia não-fraternal. O homem do mundo considera as costas à vida, com um ar de distinção: “Tenho o bastante —
a posse da cultura como o maior bem. A lém do peso da culpa a vida ofereceu-me (ou negou-me) tudo o que tornava a exis
ética, porém, algum a coisa mais acresceu-se a esse valor cultural, tência valiosa para m im ”. Essa atitude orgulhosa parece, à
que estava destinada a depreciá-lo de forma ainda m ais con religião de salvação, como um a blasfêm ia desdenhosa dos modos
clusiva, ou seja, a falta de senso — se julgarm os esse valor cul de vida e destinos ordenados por Deus. N enhum a religião re
tural em termos de seus próprios padrões. dentora aprov a positivamente a “morte pelas próprias mãos”, ou
A perfeição puramente interior do eu de um homem de seja, a morte que só foi consagrada pelas Filosofias.
cultura, e daí o valor últim o a que a “cultura” parece ser re V ista dessa forma, a “cultura” surge como a emancipação
dutível, não tem sentido para o pensamento religioso. Isso se do homem em relação ao ciclo da vida natural, organicam ente
segue, para o pensamento religioso, da evidente falta de sentido prescrito. Por essa razão mesma, cada passo à frente da cultura
da morte, precisamente quando encarada do ponto de vista do parece condenado a levar a um absurdo ainda mais devastador.
m undo interior. E nas condições mesmas de “cultura”, a morte O progresso dos valores culturais, porém, parece tornar-se uma
absurda parece apenas deixar a marca decisiva sobre o absurdo agitação insensata a serviço de finalidades indignas e, ainda mais,
da própria vida. autocontraditórias e mutuam ente antagônicas. O progresso dos
O camponês, como Abraão, podia morrer “saciado da vida”. valores culturais parece ainda mais insensato quanto m ais ele é
O senhor de terras e o herói guerreiro feudais podiam fazer o tomado como um a tarefa sagrada, um a “vocação”.
mesmo, pois ambos cum priam um ciclo de sua existência, além A cultura torna-se cada vez m ais um centro absurdo de im
do qual não alcançavam. Cada qual, a seu modo, podia al perfeição, de injustiça, de sofrimento, pecado, futilidade, pois é
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necessariamente sobrecarregada de culpa, e seu desdobramento e de um a teodicéia especial. A necessidade metafísica respondeu à
diferenciação tornam-se assim, necessariamente, ainda mais insen consciência de tensões existentes e insuperáveis, e, através da
satos. De um ponto de vista puram ente ético, o mundo deve teodicéia, ela tentou encontrar um sentido comum apesar de tudo.
parecer fragm entário e sem valor sempre que julgado à luz do Entre os três tipos de teodicéia que já * designamos como
postulado religioso de um “significado” divino da existência. as unicas coerentes, o dualism o bem poderia servir a tal neces
Essa desvalorização resulta do conflito entre a pretensão racional sidade. A firm a ele que os poderes da luz e verdade, pureza e
e a realidade, entre a ética racional e os valores em parte racio bondade coexistem e entram em conflito, sempre, com os poderes
nais e em parte irracionais. A toda construção da natureza es das trevas e da falsidade, im pureza e m al. Em últim a análise,
pecífica de cada esfera especial existente no mundo, esse conflito este dualism o é apenas um a sistematização direta do pluralismo
parece destacar-se cada vez m ais e de forma m ais insolúvel. A mágico dos espíritos, com sua divisão em espíritos bons (úteis)
necessidade de “salvação” corresponde a essa desvalorização vol e maus (daninhos) que representam estágios prelim inares do an
tando-se cada vez m ais para o outro mundo, m ais alienada de tagonismo entre divindades e demônios.
todas as formas estruturadas de vida, e, num paralelo exato, con
O zoroastrismo foi a religiosidade profética que mais coeren
finando-se à essência religiosa específica. Essa reação será tanto
temente realizou essa concepção, e daí ter o dualism o principiado
mais forte quanto mais sistemático o pensamento sôbre o “signi
com o contraste m ágico entre o “puro” e o “im puro”. Todas
ficado” do universo se torna, e quanto m ais racionalizada é a
as virtudes e vícios estavam integrados neste contraste, que envol
organização externa do mundo, tanto m ais é sublim ada a expe
via a renúncia à onipresença de um deus cujo poder estava, na
riência consciente do conteúdo irracional do mundo. E não só
verdade, lim itado pela existência de um grande antagonista. Os
o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa si
seguidores contemporâneos (os parses) na realidade abandonaram
tuação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de
essa crença porque não podiam tolerar sua lim itação do poder
racionalizar prática e eticamente o mundo.
divino. N a escatologia m ais coerente, o m undo da pureza e o
As tentativas místicas e intelectuais específicas de salvação
m undo da im pureza, de cuja m istura em anou o mundo empírico
frente a essas tensões sucumbiu por fim ao domínio m undial
fragm entário, separou-se repetidamente em dois reinos à parte.
da não-fraternidade. Por outro lado, seu carisma não é acessível A esperança escatológica m ais moderna, porém, faz que o deus
a todos. Daí, em intenção, a salvação m ística significa, definida da pureza e da benevolência vença, tal como o cristianism o faz
mente, aristocracia; é um a religiosidade aristocrática da reden ue o Salvador triunfe sobre o mal. A forma m ais coerente de
ção. E em meio de um a cultura que é racionalmente organizada
para um a vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilm ente ha
3 ualismo é a concepção popular m undial do céu e inferno, que
restabelece a soberania de Deus sobre o espírito do m al, que é
verá lu gar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que
Sua criatura e com isso acredita que a onipotência divina está
seja entre as cam adas economicamente despreocupadas. Sob as
salva. Mas, com relutância, deve então, abertam ente ou não,
condições técnicas e sociais da cultura racional, um a imitação da sacrificar parte de seu amor divino. Se m antida a onisciência,
vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por mo a criação de um poder de m al radical e a admissão do pecado,
tivos exclusivam ente externos. especialmente em comunhão com a eternidade dos castigos do
inferno para um a das próprias criaturas finitas de Deus, e para
9. As T r ís F o r m a s da T e o d ic é ia pecados finitos, simplesm ente não corresponde ao amor divino.
Nesse caso, somente um a renúncia da benevolência tem coe
A s éticas de redenção individual do passado que rejeitaram rência.
o m undo aplicaram essa rejeição a pontos m uito diferentes dessa A crença na predestin ação realiza essa renúncia, de fato e
escala contruída de forma puram ente racional. Isso dependeu com plena coerência. A reconhecida incapacidade do homem
de numerosas circunstâncias concretas que não podem ser verifi
cadas por um a tipologia teórica. A lém dessas circunstâncias, um
elemento racional desempenhou seu papel, ou seja, a estrutura * Ver capítulo XI, págs. 318 e seguintes, deste volume.
410 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

em escrutinizar os caminhos de Deus significa que ele renuncia


num a clareza sem amor à acessibilidade do homem a qualquer
significado do mundo. Esta renúncia encerrou todos os proble
mas desse tipo. Fora do círculo de virtuosos eminentes, a fé
nesta coerência não teve duração permanente. Isso ocorreu por
que a fé na predestinação — em contraste com a fé no poder
irracional do “destino” — exige a suposição de uma destinação
providencial, e portanto um pouco racional, do condenado, não
só à desgraça, mas ao mal, embora exigindo a “punição” do
condena-lo e, com isso, a aplicação de um a categoria ética.
Tratam os da significação da fé na predestinação [em outro P a rte IV
lo c a l].2 M ais tarde examinaremos o dualismo zoroastriano, e
rapidam ente apenas — porque o número de crentes é pequeno.
Poderia ser totalmente omitido, se não fosse a influência das
idéias persas de juízo final, bem como a doutrina dos demônios ESTRUTURAS SOCIAIS
e anjos, até o judaísmo recente. Devido a essas influências, o
zoroastrismo é de considerável significação histórica.
A terceira forma de teodicéia que vamos discutir foi peculiar
à religiosidade dos intelectuais indianos. Destaca-se em virtude
de sua coerência, bem como pela sua extraordinária realização
m etafísica: une a auto-redenção do homem, semelhante à do
virtuoso, com a acessibilidade universal à salvação, a mais rigo
rosa rejeição do mundo com a sua ética orgânica social, e a
contemplação como o caminho m ais destacado para a salvação
com um a ética vocacional do mundo interior.
XIV. Capitalismo e Sociedade Rural n a Aletmanha

D e t o d a s a s c o m u n i d a d e s , a constituição social dos distritos

rurais são as m ais individuais e as que relação m ais íntim a


mantêm com determinados fatos históricos. N ão seria razoável
falarmos coletivamente das condições rurais da Rússia, Irlanda,
Sicília, H u ngria e a Faixa N egra. * M esmo que eu me lim ite
aos distritos com culturas capitalistas desenvolvidas, não será
possível tratar o assunto de um ponto de vista comum, pois
não existe um a sociedade rural separada da com unidade urba
na social, no presente, em grande parte do m undo civilizado.
Já não existe na Inglaterra, exceto, talvez, na im aginação dos
sonhadores. O proprietário constante do solo, o dono da terra,
não é um agricultor, mas um arrendador; e o dono temporário
de um a propriedade, o arrendatário ou ocupante, é um empre
sário, um capitalista como qualquer outro. Os trabalhadores
são parcialm ente temporários e m igrantes; o resto são traba
lhadores exatam ente da mesma classe dos outros proletários;
reúnem-se durante algum tempo e em seguida se dispersam no
vamente. Se há um problema social rural específico, ele é ape
nas o seguinte: se, e como, a com unidade ru ral ou sociedade,
que já existe, pode surgir novamente de modo a ser forte e
duradoura.
Nos Estados Unidos, pelo menos nas enormes áreas pro
dutoras de cereais, o que poderia ser cham ado de “sociedade
ru ral” não existe hoje. A velha cidade da Nova Inglaterra, a
aldeia m exicana e a antiga plantação escravista não m ais de-

A daptado de um a traduçfio [para o inglês] de C. W. Sei-


denadel, “The Relations of the R ural Com m unity to other Branches
of Social Science”, Congress o f A r ts and Science, U niversal Expo
sition, St. Louis (Boston e Nova York, Houghton-M ifflin, 1906), voL
VTI, pp. 725-46.
• O Sul dos Estados Unidos (N. do T.).
414 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C A P IT A L I S M O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN H A 415

term inam a fisionomia do interior. As condições peculiares dos A im portância das revoluções técnicas na produção agrícola
prim eiros aldeamentos nas florestas primevas, nos prados, desa é reduzida pela cham ada “lei da produtividade decrescente da
pareceram. O fazendeiro am ericano é um empresário como terra”, pelos lim ites e condições naturais de produção, que são
qualquer outro. Sem dúvida, são numerosos os seus problemas, m ais fortes, e pela limitação m ais constante da qualidade e
principalm ente os de caráter técnico ou relacionados com o quantidade dos meios de produção. Apesar do progresso téc
transporte, que tiveram seu papel na política e foram exam i nico, a produção rural pode ser revolucionada pela divisão e
nados, de forma excelente, pelos estudiosos americanos. M as combinação puram ente racionais do trabalho, pela aceleração
não existem ainda na A m érica problemas sociais rurais especí da movimentação do capital e pela colocação de m atérias-pri
ficos, e na verdade não existiu tal problema desde a abolição m as inorgânicas e meios mecânicos de produção em lugar das
da escravidão e a solução da questão de aproveitar e dispor de m atérias-prim as orgânicas e da força de trabalho. O poder da
um a área im ensa que estava nas mãos da União. Os presentes tradição predom ina, inevitavelm ente, na agricultura; cria e m an
e difíceis problemas sociais do Sul, também nos distritos ru tém tipos de população rural no continente europeu que já não
rais, são essencialmente étnicos, e não econômicos. Não pode existem num país novo, como os Estados U nidos; a esses tipos
mos estabelecer um a teoria da com unidade rural como um a pertence, em prim eiro lugar, o camponês europeu.
formação social característica à base de questões relacionadas Ele é totalmente diferente do agricultor da Inglaterra ou
com a irrigação, tarifas ferroviárias, leis sobre terras etc., por da A m érica. O prim eiro é hoje, por vezes, um empresário e
m ais importantes que tais assuntos sejam. A situação pode produtor notável para o mercado; quase sempre, alugou a sua
modificar-se no futuro. M as, se há algum a característica das propriedade. O fazendeiro americano é um agricultor que ha
condições rurais dos grandes estados produtores de trigo da bitualm ente adquiriu, pela compra ou por ser o prim eiro colo
A m érica, ela é — falando em termos gerais — o individualism o nizador, a terra como sua propriedade pessoal; mas por vêzes
econômico absoluto do agricultor, a sua qualidade como sim a aluga. N a Am érica, o agricultor produz para o mercado.
ples homem de negócios. O mercado é m ais antigo do que ele na A m érica. O camponês
T alvez seja proveitoso explicar, rapidam ente, sob que as europeu do tipo antigo era um homem que, na m aioria dos
pectos e por que razões tudo isso é diferente no continente eu casos, herdou a terra e produzia principalm ente para atender
ropeu. A diferença é provocada pelos efeitos específicos do às suas próprias necessidades. N a Europa, o mercado é mais
capitalismo nos velhos países civilizados, com populações densas. novo do que o produtor. É claro que durante muitos anos o
Se um a nação como a A lem anha m antém seus habitantes, camponês vendeu seus produtos excedentes e, embora tecesse
cujo número é apenas um pouco menor do que a população e fiasse, não podia satisfazer suas necessidades com o seu próprio
branca dos Estados Unidos, num espaço territorial menor que trabalho. Os últim os dois m il anos não treinaram o camponês
o Estado do T exas; se ela fundou e está disposta a m anter sua para produzir visando ao lucro.
posição política e a im portância de sua cultura para o mundo, Até a época da Revolução Francesa, o camponês europeu
nessa base estreita, lim itada — então a form a pela qual a terra era considerado apenas como o meio de m anutenção de certas
é distribuída torna-se de importância decisiva para a diferen classes dominantes. Seu prim eiro dever era proporcionar, o
ciação da sociedade e para todas as condições econômicas e po m ais barato possível, alim ento à cidade vizinha. N a m edida
líticas do país. Devido à m aior aglomeração dos habitantes e do possível, a cidade proibia o comércio ru ral e a exportação
menor valorização da força de trabalho bruta, a possibilidade de cereais enquanto seus próprios cidadãos não estivessem abas
de adquirir rapidam ente propriedades que não foram herdadas tecidos. A situação perdurou até fins do século X VIII. A m a
é lim itada. Assim, a diferenciação social torna-se necessaria nutenção artificial das cidades, a expensas do interior, foi tam
mente fixa — e desse destino os Estados U nidos estão come bém um princípio seguido pelos príncipes, que desejavam ter
çando a se aproximar. T al destino aum enta o poder da tra dinheiro em seus respectivos países e grandes receitas de tri
dição histórica, que é naturalm ente grande na produção agrí butos. A lém disso, pelos seus serviços e pelo pagam ento dos
cola. impostos, o camponês estava condenado a m anter o dono da
416 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN HA 417

terra, que possuía a propriedade superior da terra e com fre quais não há substitutos. É difícil determ inar por quanto tempo
qüência também o direito de explorar o corpo do camponês. durará o atual suprimento de carvão e m inério. A utilização
Essa situação existiu até as revoluções de 1789 e 1848. Os deve de novas terras agrárias terá atingido, sem demora, um fim na
res dos camponeses incluíam o pagam ento de tributos sobre a A m érica; na Europa, já não existe. O agricultor não pode es
propriedade ao senhor político. O cavaleiro estava isento disso. perar ganhar mais do que um equivalente modesto de seu tra
O camponês também tinha de abastecer os exércitos com recru balho como adm inistrador. Ele está, na Europa e também em
tas, dos quais as cidades estavam isentas. Essas condições vigo grande parte neste país, excluído da participação nas grandes
raram até que os privilégios tributários foram extintos e o ser oportunidades aberta ao talento comercial especulativo.
viço m ilitar tornou-se compulsório para todos, no século XIX. O ímpeto da m oderna competição capitalista choca-se com
Finalm ente, o camponês dependia da com unidade produtiva em um a corrente conservadora adversa na agricultura, sendo exa
que a colonização semicomunista o havia colocado, dois m il anos tamente o capitalismo ascendente que aum enta essa contracor-
antes. Não podia fazer o que queria, mas o que a prim itiva rente nos velhos países civilizados. O uso da terra como in
rotação das colheitas determ inava, condições que continuaram vestimento de capital, e a taxa decrescente de juro, juntam ente
a existir até que esses laços semicomunistas se dissolveram. M es com a valorização social tradicional das terras rurais, elevam
mo depois da abolição de toda essa dependência legal, o cam o seu preço a tal altura que ele é pago sempre au fon d s perdu,
ponês não se pôde tornar um pequeno agricultor que produzia ou seja, como entrée, como um pagamento pelo ingresso nessa
racionalmente, como ocorreu, por exemplo, com o seu colega cam ada social. Assim , aum entando o capital necessário às ope
americano. rações agrícolas, o capitalismo provoca um aum ento no núm e
Numerosas relíquias das antigas condições comunistas de ro de arrendadores de terra que são ociosos. Dessa forma,
florestas, água, pastos e até mesmo terra cultivável, que uniram produzem-se efeitos contrastantes peculiares ao capitalismo, que
os camponeses e os prenderam às formas de adm inistração que dão ao interior da Europa a aparência de um a “sociedade ru ral”
lhes foram transm itidas, sobreviveram à sua libertação. A aldeia, à parte. N as condições dos velhos países civilizados, as dife
com os contrastes característicos com a colonização individual renças provocadas pelo capitalism o adquirem o caráter de um a
dos fazendeiros americanos, também sobreviveu. A essas relí luta cultural. D uas tendências sociais fundam entadas em bases
quias do passado, que a A m érica jam ais conheceu, certos fato totalmente heterogêneas lutam um a com a outra,
res foram acrescentados, hoje. Os Estados Unidos experim enta A velha ordem econômica indagava: Como posso propor
rão também, algum dia, os efeitos de tais fatores —1 os efeitos cionar, nesse pedaço de terra, trabalho e manutenção para o
do capitalismo moderno sob as condições dos velhos países civi m aior núm ero possível de homens? O capitalism o pergunta:
lizados, completamente colonizados. N a Europa, o território Desse pedaço de terra, como posso produzir o m aior número
lim itado provoca um a valorização social específica da proprie possível de colheitas, com o menor núm ero de trabalhadores?
dade da terra, e a tendência a conservá-la, por legado, na fam í Do ponto de vista técnico-econômico, os velhos aldeam entos ru
lia. A superabundância da força de trabalho dim inui o desejo rais da região são, portanto, considerados como superpovoados.
de poupar a mão-de-obra com o uso de m áquinas. Em virtude O capitalism o arranca o produto de sua terra, das m inas, fun
da m igração para as cidades e países estrangeiros, a força de dições e indústrias de m áquinas. Os m ilhares de anos do pas
trabalho na Europa tornou-se lim itada e cara. Por outro lado, sado lutam contra a invasão do espírito capitalista.
o alto preço da terra, provocado pelas compras contínuas e pelas Essa luta assume, pelo menos em parte, a forma de um
divisões hereditárias, dim inui o capital do comprador. Não é período de transformação pacífico. Em certos pontos de pro
possível ganhar, hoje, um a fortuna na agricultura, na Europa. dução agrícola, o pequeno camponês, se souber como libertar-
E o período em que isso vem sendo possível nos Estados U n i -se das cadeias de tradição, pode adaptar-se às novas condições
dos está agora se aproximando do seu término. Não devemos de adm inistração. O aumento constante do arrendam ento, nas
esquecer que a fermentação da cultura capitalista moderna está vizinhanças das cidades, a elevação dos preços da carne, laticí
ligad a ao consumo incessante dos recursos naturais, para os nios, verduras, bem como o cuidado intensivo do gado novo,
27
418 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE RURAL NA ALEM AN H A 419

possível ao pequeno agricultor que trabalha por conta própria, A sua luta pela existência torna-se, com freqüência, um a seleção
e as despesas maiores com a contratação de homens — esses economica em favor do mais frugal, o que significa a escolha
fatores habitualmente constituem oportunidades muito favorá dos elementos m ais carentes em cultura. A pressão da concor
veis para o pequeno agricultor que trabalha sem auxiliares rência agrícola não é sentida pelos que usam seus produtos no
contratados próximo dos centros industriais abastados. Isso consumo pessoal, e não como objetos de comércio; vendem
ocorreu sempre que o processo de produção se desenvolveu na apenas alguns de seus produtos e portanto só podem comprar
direção de um a crescente intensidade do trabalho, e não do uns poucos produtos feitos por terceiros. Por vezes ocorre um
capital. retrocesso parcial para um a agricultura de subsistência. Somen
O antigo camponês é, assim, transformado num trabalhador te com o sistema de dois filhos” francês pode o camponês m an
que é dono de seus próprios meios de produção, como podemos ter-se durante gerações como pequeno proprietário de terra her
ver na França e no Sudoeste da A lem anha. M antém sua inde dada. Os obstáculos que enfrenta o camponês que deseja tor
pendência devido à intensidade c alta qualidade de seu tra nar-se um agricultor moderno levam à separação entre a pro
balho, que é aumentado pelo seu interesse privado nele e sua priedade e a administração. O dono da terra pode m anter seu
adaptabilidade às exigências do mercado local. Esses fatores capital em operação, ou retirá-lo. Em algum as áreas, o Go
lhe dão um a superioridade econômica, que continua, mesmo verno procura criar um equilíbrio entre a propriedade e o
quando a agricultura em grande escala poderia predom inar tec arrendamento. M as, devido à valorização da terra, o camponês
nicamente. não pode permanecer como camponês nem tornar-se um dono
de terras capitalista.
O grande êxito da formação de cooperativas entre os pe
quenos agricultores da Europa continental deve ser atribuído Não é possível falar de uma “luta” verdadeira entre o capi
a essas vantagens peculiares que, em certos ramos de produção, talismo e o poder da influência histórica, neste caso de conflito
o pequeno agricultor responsável possui em relação ao traba crescente entre o capital e a propriedade da terra. Trata-se,
lhador contratado do grande fazendeiro. Essas cooperativas re em parte, de um processo de seleção e em parte de um processo
velaram -se como o meio mais influente para educar o campo de corrupção. Predom inam condições muito diferentes não só
nês na agricultura. Através delas, criaram -se novas comunidades onde um a m ultidão não-organizada de camponeses se vê im
agrícolas, que unem os camponeses e dirigem seu raciocínio e potente nas cadeias das entidades financeiras das cidades, mas
seu sentimento econômico num a direção contraria a forma in também quando há um a camada aristocrática acim a dos cam
dividualista que a luta econômica pela existência toma^ na in poneses, que não luta apenas pela sua existência econômica, mas
dústria, sob a pressão da concorrência. E isso só é possível de também pela posição social que, durante séculos, lhe foi con
vido à grande importância das condições naturais de produ cedida. Isso acontece especialmente onde essa aristocracia não
ção na agricultura — o fato de estar presa ao lugar, ao tempo está presa ao país por interesses exclusivamente financeiros, co
e aos meios orgânicos de trabalho — e a visibilidade social de mo o dono de terras inglês, ou apenas pelos interesses recrea
todas as operações agrícolas que enfraquecem a eficiência da tivos e esportivos, mas quando os seus representantes estão en
concorrência entre os agricultores. volvidos, como agricultores, no conflito econômico e têm ligação
Quando não existem as condições de superioridade econô íntim a com o país. Os efeitos dissolventes do capitalismo são,
m ica específica da pequena agricultura, por ser a importância com isso, aumentados. Como a propriedade da terra dá posição
qualitativa do trabalho feito pelo próprio dono substituída pela social, os preços das grandes propriedades superam o valor de
importância do capital, o velho camponês luta pela sua exis sua produtividade. Byron perguntava do senhor de terras: “Por
tência como um assalariado do capital. É a alta valorização que Deus na sua ira o criou P” A resposta é: “Rendas! R en
social do dono da terra que faz dele um súdito do capital e o das! R endas!” E na verdade as rendas são a base econômica
prende psicologicamente à gleba. Devido a diferenciação eco de todas as aristocracias que necessitam de um a renda não-
nômica e social m ais forte de um pais antigo e civilizado,^a -proveniente do trabalho para a sua existência. M as precisa
perda da propriedade significa degradação para o camponês. mente porque o Junfçer prussiano despreza a posse urbana do
E N S A IO S DE SOCIOLOGIA.
C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN HA 421
420

dinheiro, o capitalismo o transforma num devedor. U m a tensão consegue um cargo lucrativo. Portanto, só pode sair dos círculos
cada vez maior entre a cidade e o campo resulta dessa situação. abastados; é preparado para um serviço não-remunerado, ou m al
O conflito entre o capitalismo e a tradição tem agora conota remunerado, e só pode encontrar recompensa pelo seu trabalho
ções políticas, pois se o poder economico e político passa defini na alta posição social de sua vocação. A dquire, com isso, um
tivam ente para as mãos do capitalista urbano surge a questão caráter que está longe dos interesses financeiros e que o coloca
de se os pequenos centros rurais de informação política, com ao lado dos adversários do domínio desses interesses. Se, em
sua cultura social peculiar, entrarão em decadência, e as cidades, velhos países civilizados como a A lem anha, surgir a necessidade
como os únicos depositários da cultura política, social e estetica, de um exército forte para manter a independência, isto signifi
ocuparão todo o campo de batalha. Essa questão e idêntica cará, para as instituições políticas, o apoio a um a dinastia he
questão de se as pessoas que foram capazes de viver para a po reditária.
lítica e o Estado, como por exemplo a velha aristocracia agrá O adepto resoluto das instituições democráticas — como eu
ria econômica independente, serão substituídas pelo domínio ex — não pode desejar afastar a dinastia, quando ela foi preser
clusivo dos políticos profissionais que devem viver da política vada. Nos Estados m ilitares, se ela não é a única forma his
e do Estado. toricamente endossada pela qual o domínio cesarista dos arri
Nos Estados Unidos esse problema foi resolvido, pelo m e vistas m ilitares pode ser evitado, ela ainda é a melhor forma.
nos no presente, por um a das mais sangrentas guerras dos tem A França está continuamente ameaçada por êsse dom ínio; as
pos modernos, que terminou com a destruição dos centros aris dinastias têm interesse pessoal na preservação dos direitos e de
tocráticos, sociais e políticos dos distritos rurais. Mesmo na um Governo legal. A m onarquia hereditária — podemos ju l
Am érica, com as suas tradições democráticas vindas desde o gá-la teoricamente, se desejarmos — assegura ao Estado, que é
puritanism o como um legado perene, a vitoria sobre a aristo forçado a ser um Estado m ilitar, a maior liberdade para os
cracia dos plantadores foi difícil e conquistada com os maiores cidadãos — tão grande quanto seja possível num a m onarquia —
sacrifícios sociais e políticos. Mas, em países de civilizações an e, enquanto a dinastia não se degenera, terá o apoio da maioria
tigas, a questão se complica m uito mais, pois ali a luta entre política do país. O Parlam ento inglês sabia muito bem por que
o poder das noções históricas e a pressão dos interesses capita oferecia a Crom well a coroa, e o exército deste sabia igualm ente
listas convocam certas forças sociais à batalha, c o m o adversarias bem por que o im pediu de aceitá-lo. Essa dinastia hereditária,
do capitalismo burguês. Nos Estados Unidos, essas forças eram privilegiada, tem um a afinidade natural com os detentores dos
parcialm ente desconhecidas, ou se colocavam em parte ao lado outros privilégios sociais.
do Norte. Devemos fazer aqui algum as observações. A Igreja pertence às forças conservadoras nos países euro
peus; primeiro, a Igreja Católica Romana, que, na Europa, devi
Nos países de civilização an tiga e possibilidades lim itadas
do mesmo ao seu grande número de adeptos, é um poder de
de expansão econômica, o interêsse financeiro e seus represen
im portância e caráter m uito diferentes do que possui nos países
tantes têm um papel social consideravelmente menor do que
anglo-saxões; mas também a Igreja Luterana. Ambas apóiam
num país novo. A im portância da cam ada dos funcionários es
o camponês, com seu modo de vida conservador, contra o domí
tatais é, e deve ser, muito m aior na Europa do q u e nos Estados nio da cultura urbana racionalista. O movimento cooperativo
Unidos. A organização social m uito m ais complicada torna
rural tem, em acentuadas proporções, a direção de clérigos, que
indispensável na Europa um grande número de funcionários
são os únicos capazes de liderança nos distritos rurais. Os pon
especializados, de cargo vitalício. Nos Estados Unidos, haverá tos de vista eclesiástico, político e econômico estão, no caso,
um número m uito menor deles, mesmo depois que os movi combinados entre si. N a Bélgica, as cooperativas rurais são um
mentos de reform a do serviço público tenham alcançado seus meio que o partido clerical tem na luta contra os socialistas,
objetivos. O jurista e o funcionário adm inistrativo na A lem anha,
apoiados pelas uniões dos consumidores e pelos sindicatos. N a
apesar de sua educação m ais rápida e m ais intensiva, no preparo Itália, quase ninguém tem crédito em certas cooperativas se não
para a universidade, tem cerca de 35 anos quando seu período apresentar um a certidão de religião. Da mesma forma, uma
de preparo e sua atividade não-rem unerada é concluída e ele
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aristocracia agrária encontra grande apoio da Igreja, embora a o que ocorrerá m ais cedo ou m ais tarde também neste país,
Igreja Católica seja, nos aspectos sociais, m ais democrática hoje ou ja aconteceu. O progresso do capitalism o não é retardado
do que antigam ente. A Igreja vê com satisfação as relações de por isso; as possibilidades que o trabalhador tem de conseguir
trabalho patriarcais porque, ao contrário das relações puramente poder político são insignificantes. N ão obstante, elas enfraque
comerciais criadas pelo capitalismo, elas têm um caráter pessoal cem o poder do burguês e fortalecem o poder dos adversários
humano. A Igreja acredita que as relações entre um senhor aristocráticos dos burgueses. A queda do liberalism o burguês
e um servo, e não as simples condições comerciais criadas pelo alemão baseia-se na eficiência desses motivos conjuntos.
mercado de trabalho, podem ser desenvolvidas e dotadas de um
Assim, nos países antigos, onde existe um a com unidade ru
elemento ético. Os contrastes profundos e condicionados his
ral, aristocraticamente diferenciada, surge um complexo de pro
toricamente, que sempre separaram o catolicismo e luteranismo
blemas sociais e políticos. O am ericano tem dificuldade em
do calvinismo, fortalecem essa atitude anticapitalista das Igrejas
compreender a im portância das questões agrárias no continente
européias. europeu, especialmente na A lem anha, e mesmo na política ale
Finalm ente, num velho país civilizado, a “aristocracia da mã. Chegará a conclusões totalmente erradas se não tiver pre
educação”, como gosta de ser cham ada, constitui um a camada sentes esses grandes complexos. U m a combinação peculiar de
definida da população, sem interesses pessoais na economia. Vê, motivos se faz sentir nesses países antigos e explica o desvio
por isso, a procissão triunfal do capitalism o com m ais ceticismo entre as condições européias e am ericanas. A lém da necessidade
e a critica com m ais violência do que acontece, natural e jus de forte preparo m ilitar, há essencialmente dois fatores: prim eiro,
tamente, em países como os Estados Unidos. algo que não existiu jam ais na maior parte da A m érica e que
Quando a educação intelectual e estética se torna um a pro pode ser designado como “atraso”, ou seja, a influência de uma
fissão, seus representantes ligam -se, através de um a afinidade forma m ais antiga de sociedade rural, que está desaparecendo
íntim a, com todos os portadores da velha cultura social, porque gradualm ente. O segundo grupo de circunstâncias que ainda
para eles, como para seus protótipos, sua profissão não pode e não se tornaram efetivas na Am érica, mas às quais esse país —
não deve ser um a fonte de lucro imerecido. Vêem com descon tão entusiasmado com cada m ilhão de aum ento em sua popula
fiança a abolição das condições tradicionais da comunidade e a ção e com a ascensão do valor da terra — estará inevitavelm ente
aniquilação de todos os numerosos valores éticos e estéticos que exposto, exatam ente como ocorreu com a Europa, é a densi
se apegam a essas tradições. D uvidam que o domínio do capi dade da população, o alto valor da terra, a mais acentuada
tal possa dar garantias melhores e m ais duradouras do que a diferenciação de ocupações e as condições peculiares que disso
aristocracia do passado à liberdade pessoal e ao desenvolvimento resultam. Em todas essas condições, a com unidade rural dos
da cultura intelectual, estética e social que eles representam. velhos países civilizados enfrenta o capitalismo, juntam ente com
Só desejam ser governados pelas pessoas cuja cultura social con a influência de grandes forças políticas e sociais só conhecidas
sideram equivalente à sua; preferem, portanto, o domínio da nos países antigos. A inda hoje, sob essas circunstâncias, o capi
aristocracia economicamente independente ao Governo do polí talismo produz na Europa efeitos que só serão provocados na
tico profissional. Assim, ocorre hoje nos países civilizados — A m érica no futuro.
fato sério, sob mais de um aspecto, e peculiar — que os repre Em conseqüência de todas essas influências, o capitalismo
sentantes dos m ais altos interesses da cultura voltam para trás europeu, pelo menos no continente, teve um caráter autoritário
o seu olhar e com profunda antipatia se opõem à evolução ine peculiar, que contrasta com a igualdade de direitos do cidadão
vitável do capitalismo, recusam-se a cooperar na criação da es e que é, habitualm ente, considerada de forma diferente pelos ame
trutura do futuro. A lém disso, as massas disciplinadas de tra ricanos. Essas tendências autoritárias e os sentimentos antica-
balhadores, criadas pelo capitalismo, inclinam -se naturalm ente pitalistas de todos os elementos da sociedade continental, que
a unir-se num partido de classe, se já não houver novas distri mencionei, encontram apoio social no conflito entre a aristo
tos para colonização e se o trabalhador tiver consciência de ser cracia agrária e a burguesia urbana. Sob a influência do capita
forçado a continuar inevitavelm ente proletário, enquanto viver, lismo, a prim eira sofre uma série de transformações internas,
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que lhe m odificam totalmente o caráter herdado do passado. Como essa diferença nem sempre existiu, surge a pergunta: Co
Gostaria de mostrar como isso ocorreu no passado e como mo pode ser ela explicada historicamente?
continua a ocorrer no presente, usando o exemplo da Alem anha. H a cinco séculos, os senhores de terras dom inavam a estru
H á contrastes acentuados na estrutura social rural da A le tura social dos distritos rurais. Por mais variadas que tivessem
m anha que nenhum viajante deixa de observar: no Oeste e no sido as condições de dependência do camponês, provocadas por
Sul, o aldeamento rural torna-se m ais denso, predominam os essa situação, e por m ais complicada que fosse a estrutura da
pequenos agricultores, e a cultura torna-se mais dispersa e va sociedade rural, num aspecto predominou a harm onia nos sé
riada. Quanto mais para o leste avançamos, especialmente para culos XIII e X IV : as possessões, habitualm ente enormes, do
o nordeste, tanto m ais extensos são os campos de cereais, beter senhor feudal não estiveram associadas, nem mesmo no Leste,
rabas e batatas, tanto mais predom ina o cultivo intensivo e a um amplo cultivo da terra. Embora o senhor de terras cul
tanto m ais um a grande classe rural de trabalhadores rurais sem tivasse parte de sua propriedade, essa parte era apenas um pou
propriedades se opõe à aristocracia agrária. Essa diferença é co maior do que os campos cultivados dos camponeses. A
de grande importância. maior parte da renda do senhor dependia dos tributos sobre os
camponeses. U m a das questões mais importantes da história
A classe dos proprietários de terra na Alem anha, consti
social alem ã é como o acentuado contraste de hoje surgiu, par
tuída principalm ente de nobres que residem na região leste do
tindo dessa relativa uniform idade.
Elba, são os controladores políticos do principal Estado alemão.
A C âm ara dos Lordes prussiana representa esta classe, e o di A propriedade exclusiva da terra foi revogada em princí
reito de eleição por classes tam bém lhe dá um a posição decisiva pios do século XIX, em parte devido à Revolução Francesa ou
na C âm ara dos Deputados prussiana. Esses Ju n \e rs transm i as idéias por ela disseminadas, e em parte devido à Revolução
tem seu caráter ao corpo de oficiais, bem como aos funcioná de 1848. A divisão dos direitos de propriedade da terra entre
rios prussianos e à diplom acia alem ã, que está quase que ex nobres e camponeses foi abolida, os tributos e taxas sobre os
clusivamente nas mãos dos nobres. O estudante alemão adota camponeses foram revogados. As brilhantes investigações do
o estilo de vida dessas classes, nas associações estudantis das un i Professor G . F . K napp e sua escola mostraram como foi deci
versidades. O “oficial da reserva” civil — um a parte cada vez siva, para o tipo de constituição agrária que se originou então
m aior dos alemães m ais bem educados pertence a essa categoria e ainda existe, a pergunta: Como foi dividida a propriedade,
— também sofre a sua influência. Suas simpatias e antipatias entre os antigos senhores e os camponeses, depois de desapa
políticas explicam m uitas das pressuposições m ais importantes recida a com unidade senhorial? No Oeste e Sul, em sua maior
da política externa alemã. Seu obstrucionismo impede o pro parte, a terra passou às mãos dos camponeses (ou continuou
gresso da classe trabalhadora; as indústrias, sozinhas, jam ais em suas m ãos). M as, no Leste, um a parte m uito grande caiu
serão bastante fortes para se oporem aos trabalhadores, sob os nas mãos dos antigos senhores dos camponeses, os senhores feu
direitos democráticos de eleger representantes para o Reichstag dais, que estabeleceram o cultivo intensivo com trabalhadores
alemão. Os ]u n \e rs são os esteios de um protecionismo que livres. M as isto foi apenas a conseqüência do fato de que a
a indústria, isolada, não poderia realizar. Apoiam a ortodoxia uniform idade da sociedade agrária havia desaparecido antes da
na Igreja oficial. O estrangeiro vê apenas o lado exterior da emancipação dos camponeses. A diferença entre o Oeste e o
A lem anha e não tem tempo nem oportunidade de penetrar na Leste foi confirm ada, m as não criou tal processo. Em seus
essência da cultura alem ã. Os remanescentes das condições auto pontos principais, a diferença existiu desde o século X VI, tendo
ritárias que lhes causam surpresa e provocam opiniões errôneas, crescido constantemente a partir de então. A propriedade se
no estrangeiro, sobre a A lem anha, resultam direta ou indireta nhorial da terra sofrera modificações internas antes da disso
lução da propriedade senhorial.
mente da influência dessas classes superiores. Muitos dos mais
importantes contrastes de nossa política interna baseiam-se nessa Em toda parte, no Leste e Oeste, o esforço dos senhores de
diferença entre as estruturas sociais rurais do Leste e do Oeste. terras para aum entar suas rendas foi o fator motivante. Esse
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desejo surgira da invasão do capitalismo, da crescente riqueza A questão decisiva é, portanto: Como foi que o dono de
dos moradores da cidade e da crescente oportunidade de vender terras do Sul e Oeste da A lem anha, embora tivesse am pla opor
produtos agrícolas. A lgum as das transformações realizadas no tunidade de apropriar-se das terras dos camponeses, não o fez, en
Oeste e no Sul datam do século XIII e, no Leste, do século X V. quanto os do Leste tomaram as terras dos camponeses apesar
Os senhores de terras buscaram alcançar seus objetivos de modo da resistência do poder estatal? Essa pergunta pode ser for
característico. No Sul e Oeste, continuaram como senhores de m ulada de modo diverso. Quando o senhor agrário do Oeste
terra [ Gru n dh erren ], isto é, aum entaram as taxas de arrenda renunciou à tomada das terras dos camponeses, não renunciou
mento, juro e os tributos dos camponeses, mas não se dedica à sua utilização como fonte de renda. A diferença entre o Leste
ram ao cultivo. No Leste tornaram-se senhores \Gu tsh erren ] e o Oeste, quanto a isso, é simplesmente a de que o senhor
que cultivavam suas terras; apropriaram -se de partes da terra do Oeste usou os camponeses como contribuintes, enquanto o
dos camponeses (os enclaves) e, buscando assim maiores pro do Leste, tornando-se agricultor, começou a usá-los como força
priedades para si mesmos, tornaram -se agricultores, usando os de trabalho. Portanto, devemos indagar: Por que aconteceu
camponeses como servos para trabalhar no seu próprio solo. O um a coisa no Leste e outra no Oeste?
cultivo intensivo existiu no Leste — mas em pequenas propor T al como ocorreu com a maioria dos fatos históricos, é pou
ções e com o trabalho dos servos — antes mesmo da em ancipa co provável que possamos atribuir a um a única razão a causa
ção dos camponeses; mas não no Oeste. Ora, o que provocou exclusiva dessa conduta diferente dos senhores de terras, pois
essa diferença? nesse caso a teríamos encontrado em fontes documentadas. En
Quando essa questão foi discutida, deu-se m uita im portân tretanto, um a longa série de fatores causais foi acrescentada
cia à conduta do poder político; na verdade, esse poder foi m ui como explicação, principalm ente pelo Professor von Below, num a
to aum entado na formação da sociedade agrária. Como o ca investigação clássica, em seu trabalho T erritoriu m u n d Stadt.
valeiro estava isento dos tributos, o camponês era o único, no A tarefa só pode ser a de ampliação dos pontos de vista, espe
interior, que os pagava. Quando se criaram os exércitos perm a cialm ente pelas considerações econômicas. V ejam os em que
nentes, os camponeses forneceram os recrutas. Isso, juntam ente pontos as condições do senhor de terras do Leste e do Oeste
com alguns pontos de vista do comercialismo, induziu o diferiram quando tentaram arrancar de seus camponeses mais
Estado territorial a proibir os enclaves, por edito, ou seja a do que os tributos tradicionais.
apropriação da terra dos camponeses pelos senhores, e, daí, a O início de operações amplas foi facilitado, para os senhores
proteger as propriedades camponesas existentes. Quanto mais do Leste, pelo fato de que sua condição de senhoria agrária
forte era o governante do país, tanto maior o seu êxito; quanto bem como a patrim onialização das autoridades públicas cresceram
m ais poderoso era o nobre, tanto menor o êxito do governante. no solo da velha liberdade do povo. O Leste, por outro lado,
Assim sendo, as diferenças da estrutura agrária no Leste basea- era um território de colonização. A estrutura social patriarcal
vam-se, em grande parte, nessas condições do poder. Mas no eslavônica fora invadida pelo clero alemão, em conseqüência
Oeste e Sul vemos que, apesar da maior fraqueza de muitos da sua educação superior, pelos comerciantes e artesãos alemães
Estados e da indubitável possibilidade de apropriar-se da terra em conseqüência de sua habilidade técnica e comercial superior,
dos camponeses, o senhor nem mesmo tentou fazê-lo. Não pelos cavaleiros alemães em conseqüência de seu melhor conhe
revelou qualquer tendência de privar o camponês de seus bens, cimento da agricultura. Além disso, à época da conquista do
de cultivar a terra em grandes proporções e tornar-se agricultor Leste, a estrutura social da A lem anha, com suas forças políticas,
também ele. Tam bém não constituiu razão decisiva a evolução havia sido completamente feudalizada. A estrutura social do
dos direitos do camponês ao solo. No Leste, grande número Leste foi, desde o início, adaptada à preem inência social do
de camponeses que, originalm ente, tinham bons títulos de pro cavaleiro, e a invasão alem ã pouco modificou essa situação. O
priedade da terra, desapareceram ; no Oeste, os que dispunham camponês, mesmo nas mais favoráveis condições de atividade,
de títulos menos favoráveis foram preservados, porque os se perdera o apoio que lhe fora dado no período feudal pelas tra
nhores de terras não desejavam afastá-los. dições firmes, a velha proteção m útua, a jurisdição da comuni
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dade no W eistü m er 1 no Oeste. O campesinato eslavônico, ha acidentado do Oeste. Não obstante, essas possibilidades técnicas
bitualm ente mais numeroso, não conhecia tais tradições. A lém de comunicação não determ inam o volume do comércio. Pelo
disso, no Oeste os campos que constituíam as propriedades dos contrário, no Oeste e no Sul, os motivos econômicos do comér
senhores eram, habitualm ente, intercalados, pois haviam surgido cio e do desenvolvimento de um a comunicação relativam ente
em terra originalm ente livre. Esses campos cruzavam os direitos intensiva foram m uito mais fortes do que nas planícies do Leste.
patrim oniais dos pequenos senhores territoriais em toda parte Isso ocorreu devido ao fato de que no Oeste e no Sul as terras
e assim, pela sua variedade e conflitos mútuos, asseguravam ao baixas, os vales de rios, os planaltos, se intercalam — as condições
camponês a sua trabalhosa existência. M uito freqüentemente, o clim áticas e outras condições naturais de produção de mercadorias
camponês estava política, pessoal e economicamente sujeito a são perceptivelmente diferentes dentro de distritos pequenos. No
diferentes senhores. No Leste, a combinação da senhoria e Leste, porém, as cidades vizinhas freqüentem ente nada têm a
direitos patrim oniais em toda um a aldeia estava nas mãos de trocar entre si (mesmo hoje), porque, estando na mesma situa
um senhor; a formação de um a “propriedade senhorial”, no ção geográfica, produzem as mesmas coisas. A s condições his
sentido inglês, era facilitada regularm ente porque, com muito tóricas e naturais de um comércio local intensivo eram (e ainda
mais freqüência do que no Oeste, e desde o início, somente são), por essas razões, mais favoráveis no Oeste.
um a corte se fundava na aldeia, ou já havia sido criada pela Cabe ao Professor von Below o mérito de ter assinalado o
estrutura social eslavônica. E finalm ente há um fator im por fato de que na Idade M édia a instituição da cavalaria não se
tante, que o Professor von Below ressalta: as propriedades dos baseava exclusivam ente, nem mesmo predominantemente, na pos
camponeses no Leste, embora a princípio de pequenas propor se de terras. Tributos, taxas sobre rios, rendas e impostos, que
ções na totalidade do território de um a aldeia, não obstante eram dependem de um certo volume de tráfico local, tiveram seu pa
m uito maiores do que era costume no Oeste. Portanto, a am pel. Isso era, indubitavelm ente, muito menos possível no Leste
pliação da área cultivada de sua propriedade foi, para o senhor, naquela época (bem como hoje). Quem quisesse levar ali vida
m uito mais fácil do que no Oeste e também constituiu um a de cavaleiro tinha de basear sua existência num a renda obtida
idéia muito menos remota. Assim , desde o início existiu, no com suas próprias atividades agrícolas. As grandes organizações
método de distribuição da terra, o prim eiro elemento de dife para a produção de mercadorias e para o comércio exterior, como
renciação entre Leste e Oeste. Mas a causa dessa diferença nas as da “Ordem A lem ã”, são apenas uma fase diferente dêsse
proporções da propriedade original do senhor agrário relaciona mesmo fato. A homogeneidade da produção oriental d irigia o
va-se com diferenças entre as condições econômicas do Leste e transporte para as regiões m ais distantes, e a economia monetá
as do Oeste. Até mesmo na Idade M édia, condições de vida ria local continuava sendo consideravelmente inferior à do Oeste,
consideravelmente diferentes foram criadas para as classes sociais segundo todos os indícios. Se as únicas estim ativas possíveis,
dominantes. ainda bastante incertas, foram pelo menos aproxim adamente
O Oeste era mais densamente povoado e, o que é decisivo corretas, as condições de vida do camponês no Leste e Oeste de
em nossa opinião, a comunicação local, a troca de bens dentro vem ter sido m uito diferentes. É m uito pouco provável que o
e entre as menores comunidades locais, foi indubitavelm ente senhor tivesse m ergulhado nas operações agrícolas, com o risco,
m ais desenvolvida do que no Leste. Isso se evidenciou pelo trabalho e o contato pouco cavalheiresco com o mundo m ercan
fato de que o Oeste contava com núm ero muito maior de ci til, que elas provocam, se pudesse ter vivido tão bem no Leste
dades. Baseava-se, em parte, no simples fato histórico de que a quanto no Oeste, com os tributos, arrendamentos, taxas etc.,
cultura do Oeste era, sob todos os aspectos, m ais velha e, em parte, recolhidos aos camponeses. Mas podemos perguntar por que não
num a diferença geográfica, menos evidente, m as im portante: a era a mesma coisa possível no Leste e no Oeste. Para que isso
m aior variedade da divisão agrícola do Oeste em comparação ocorresse, os camponeses teriam de ser economicamente capazes
com o Leste. De um ponto de vista puram ente técnico, a co de pagar tributos de volume considerável, suficientes para as ne
municação nas planícies am plas do Leste alemão deve ter en cessidades do senhor de terras, e não há indícios de que eles
contrado menores dificuldades do que no território muito mais tivessem condições para tanto. Isso pressupõe que o interesse
430 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN HA 431

pessoal do camponês na produtividade de sua terra havia che de ferro reduziram um pouco essa diferença, que apesar disso
gado a um certo grau, que ele próprio havia alcançado certa continuou, em meados do século passado, a ser m uito grande.
m argem de educação econômica. M as nada podia, nem pode, A condição incerta da história num ism ática alem ã, entre muitas
substituir a influência educativa que a formação intensiva das outras dificuldades técnicas, nos impede de obter um a quanti
comunidades urbanas exerce sôbre o camponês, com as com uni dade suficiente de dados fidedignos para a Idade M édia, mas
cações locais bem desenvolvidas, com a oportunidade e estím ulo parece quase impossível que tenha sido diferente, em geral, du
de vender produtos rurais nos mercados m ais próximos possíveis. rante aquele período, apesar das grandes flutuações em casos
Essa grande diferença ainda pode ser vista pela comparação do particulares.
camponês da planície da Badênia com o camponês do Leste. Se, portanto, o dono de terras desejasse fazer um uso mais
Não são as diferenças naturais nas qualidades físicas e q u í intensivo dos camponeses no Leste, teria encontrado dificuldades
micas do solo, ou diferenças no talento econômico das raças, muitos maiores, devido à falta tradicional de desenvolvimento
mas o m ilieu econômico, estabelecido historicamente, que é o do camponês, a fraqueza dos mercados locais para os produtos
fator determ inante na diferença nos resultados da agricultura rurais e a comunicação menos intensa. Eu gostaria de atribuir
camponesa. a essa circunstância um a importância m uito m aior — é claro
que apenas na forma de um a hipótese ainda a ser comprovada
U m certo número de cidades, num a determ inada área, era pelas fontes — do que antes. Pelo que sei, o dono de terra
necessário para inspirar a massa de camponeses com, pelo menos, no Leste preferia explorar sua propriedade agrícola não porque
o grau de interesse na produção necessário para que o senhor a operação em geral fosse tecnicamente m ais racional — pois
pudesse tirar deles os meios para a sua subsistência, ou usá-los isso também ocorria no Oeste —. mas porque era, nas condi
como “fundos de interesse”. Quando estavam ausentes essas ções estabelecidas historicamente, o único meio econômico pos
influências da cultura, que não podem ser substituídas nem
sível de obter um a renda maior. Tornou-se um dono de terra,
mesmo pelo melhor trabalho e a m elhor vontade, o camponês
e o camponês, cada vez m ais preso ao solo, tornou-se um servo
freqüentemente carecia da possibilidade, e sempre do incentivo, de
com o dever de dar seus filhos para o senhor, como servidores
elevar a produção de sua terra além da m edida tradicional de suas
domésticos, ou fornecer seus cavalos e carroças para a agricul
próprias necessidades.
tura, ou até mesmo sua força de trabalho para tôdas as formas
A s cidades no Leste eram m uito menos numerosas, con de atividade, durante todo o ano, enquanto sua própria terra
siderando-se o tamanho das respectivas áreas, do que no Oeste era considerada, cada vez mais, como um a simples recompensa
e Sul. E o desenvolvimento da agricultura extensiva no Leste pelo seu trabalho. Apesar da oposição do Estado, o senhor ex
data caracteristicamente de um a época na qu al não a ascensão, pandia constantemente a terra que cultivava. Quando, mais
mas o declínio das cidades, e um declínio bastante perceptível, tarde, ocorreu a emancipação dos camponeses, ela não conseguiu,
são observados. Devido ao seu excedente de trigo, o Leste teve como o 4 de Agosto na França, elim inar os senhores da estru
então a sua evolução dirigida como um território de expor tura agrária do Leste alemão. U m Estado sem dinheiro, com
tação agrícola, com todas as qualidades desses territórios. Essa um a indústria ainda não desenvolvida, não podia renunciar fa
direção chegou ao auge em nosso século, depois da abolição cilm ente aos seus serviços gratuitos na adm inistração e no exér
das leis de cereais inglesas. Por outro lado, mesmo no término cito. A cim a de tudo, o decreto revogando os direitos feudais,
da Idade M édia, várias partes do Oeste alem ão necessitaram de pelos quais o senhor e os camponeses se viram num a com unida
grandes importações de alimentos, principalm ente carne. O de de produção, não solucionou o ponto m ais im portante: o
contraste entre o Leste e o Oeste talvez se torne mais evidente na destino da terra, que foi considerada como posse do senhor, e
diferença de preços de quase todos os seus produtos agrícolas não do camponês. D eclará-la simplesmente como propriedade
em favor do segundo. Essa diferença só desapareceu recente camponesa — como se fez mais tarde na Polônia russa, por
mente devido aos prêmios ocultos na exportação de cereal, que motivos políticos, a fim de arruinar a nobreza polonesa — teria
há um a década vêm sendo concedidos. A té m ;sm o as estradas aniquilado cerca de vinte m il grandes propriedades na Prússia,
432 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN HA 433

as únicas que o país então possuía. N ão teria elim inado uma hoje em dia, a existência de um a grande agricultura racional,
simples classe de arrendadores, como ocorreu na França. Por e não o monopólio da terra pelo Estado, exigido por muitos
tanto, apenas um a parte das propriedades dos camponeses, as reformadores. N a verdade, o extremo oposto foi o que ocorreu:
maiores, e somente um a parte de suas terras foram poupadas monopólio privado da terra. Mas este produz, em certos as
do fechamento pelos senhores: o restante foi por eles apropriada. pectos econômicos, efeitos semelhantes aos do monopólio esta
O Leste continuou sendo, e daí em diante cada vez mais, tal; retira a terra do mercado e separa a adm inistração da pro
o centro do capitalismo agrário, ao passo que o capitalismo in priedade, que podem, agora, seguir cada qual seu caminho. Os
dustrial se localizou principalm ente no Oeste. Ta) processo sus- interesses do fazendeiro capitalista, lutando pelos lucros em
tou-se na fronteira russa, que isolava o interior. U m a grande presariais, e os interesses do dono da terra em rendas e na
indústria, que poderia ter surgido no Leste, desenvolveu-se en preservação de um a posição social, que recebeu como herança,
tão bem próximo da fronteira russo-polonesa da Alem anha. correm lado a lado, sem estarem ligados entre si, como ocorre
com os proprietários-operadores agrícolas. A significação prática
O senhor de terras prussiano do Leste, que surgiu sob essas disso é que a flexibilidade da agricultura frente à crise agrícola
condições, foi um produto social muito diverso do senhor ingles. aum enta de forma vigorosa. O choque recai sobre dois om
Este é, geralm ente, um arrendador da terra, não um agricultor. bros fortes: o monopolizador da terra e o dono de terra capita
Seus tributários não são camponeses, como na Idade M edia, lista. A crise resulta na diminuição da renda, provavelmente
m as empresas capitalistas para cultivo da terra. É um mono num a m udança de arrendatário, num a dim inuição gradual do
polizador da terra. A propriedade em seu poder é m antida solo cultivado, mas não na súbita destruição de m uitas proprie
na fam ília graças a recursos jurídicos artificiosos, que surgiram , dades ou em qualquer degradação social súbita de m uitas fam í
como modernos monopólios capitalistas, num a luta constante lias proprietárias de terras.
com a legislação; ele é mantido distante da comunicação, obri
gação e divisão pela herança. O dono da terra está fora da As condições do ]u n \ e r prussiano do Leste são muito di
com unidade produtora rural. Ocasionalmente, ele ajuda o seu ferentes. Ele é um empregador rural, um homem totalmente
arrendatário com empréstimos de capital, mas sua existência do tipo capitalista, valorizado segundo as proporções de sua
como arrendador é intangível. Como produto social, ele e propriedade e renda. Dificilm ente possuirá m ais do que uma
filho legítim o do capitalismo, crescido sob a pressão dos efeitos e m eia a duas “seções” dos Estados Unidos, mas por tradição
contrastantes, mencionados acima, que o capitalismo produz nos mantém um a vida faustosa e pretensões aristocráticas. É habi
países bem povoados, com um a estrutura social aristocrática. O tualm ente o dono livre do solo que cultiva, que é vendido e
aristocrata agrário deseja viver como um cavalheiro, no lazer. hipotecado, avaliado para legados e adquirido, pela compensação,
N orm alm ente, ele busca rendas, e não lucros. O tamanho tec aos co-herdeiros; daí estar sempre onerado pelos interêsses cor
nicam ente suficiente da propriedade e o tamanho da proprie rentes. A ssim sendo, somente o proprietário está exposto às
dade necessário à sua manutenção não se harm onizam de flutuações dos preços de mercado. O Ju n k er está envolvido em
form a algum a. Em algum as áreas da A lem anha, a operação todos os conflitos sociais e econômicos, que am eaçam diretamente
m ais intensiva, por exemplo, exige a dim inuição da pro a sua existência, em todas as épocas. Enquanto a exportação
priedade; ao passo que o luxo crescente da classe aris de cereais para a Inglaterra floresceu, ele foi o mais forte de
tocrática exige sua ampliação especialmente quando os pre fensor do livre comércio, o mais ferrenho adversário da jovem
ços dos produtos caem. T oda compra, toda compensação de indústria alem ã do Oeste, que necessitava proteção; mas, quan
co-herdeiros, onera a propriedade com enormes dívidas, en do a concorrência das terras mais novas e m ais baratas o expul
quanto sua operação se torna m ais sensível às flutuações de saram do mercado e finalm ente o atacaram em sua própria pá
preços, na m edida em que é maior e m ais intensiva. Somente tria, ele se tornou o mais importante aliado daqueles industriais
n um a estrutura social agrária, como a inglesa, tal evolução foi que, ao contrário de outros ramos importantes da indústria alemã,
abolida. Isso, com a crescente densidade de população e os cres exigiam proteção; uniu-se a eles num a luta comum contra as
centes valores da terra, é o que põe em risco, em toda parte, exigências da força de trabalho, pois nesse meio-tempo o capi-
23
434 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE RURAL NA ALEM ANHA 435

talismo também sc colocara contra o caráter social do ]u n \ e r Inglaterra há séculos, até que se consolidaram ali as condições
e seus trabalhadores. N a prim eira metade do últim o século, hoje existentes.
o ]u ,n \er era um patriarca rural. Seus trabalhadores agrícolas,
A A m érica também experim entará esse processo no futuro,
o agricultor de cuja terra ele se havia apropriado, não eram de for
embora somente depois que toda a terra livre se tiver esgotado
m a algum a proletários. Em conseqüência da falta de fundos do
e a pulsação econômica do país tiver dim inuído. Será exato
Ju n \ e r, eles não recebiam salários, mas um a cabana, terra e o
dizer que, por algum tempo, o peso da tradição histórica não
direito de pastagem para suas vacas; na época da colheita, um a esmaga os Estados Unidos e que os problemas originados do
certa parte do cereal lhes era pago, em trigo, etc. Eram assim, poder da tradição não existem aq u i; não obstante, os efeitos do
em pequena escala, agricultores com um interesse direto nas poder do capitalismo são mais fortes e, m ais cedo ou m ais tarde,
atividades do senhor. Mas foram expropriados pela valoriza estimularão o desenvolvimento dos monopólios da terra. Q uan
ção crescente da terra; seu senhor retinha pastos e terra, guarda do o preço da terra se elevar o suficiente para garantir uma
va o cereal e, ao invés dele, dava-lhes salários. Assim, a velha certa renda; quando a acumulação das grandes fortunas alcan
com unidade de interêsses dissolveu-se e os agricultores se trans çar um ponto ainda mais alto do que o de hoje; quando, ao
form aram em proletários. A agricultura tornou-se um a opera mesmo tempo, a possibilidade de ganhar lucros proporcionais
ção sazonal, lim itada a alguns meses. O senhor contratava pelos novos e constantes investimentos no comércio e indústria
trabalhadores m igrantes, já que a manutenção de mãos ociosas tiver baixado a tal ponto que os “capitães de indústria”,
durante todo o ano seria um ônus demasiado pesado. como ocorreu em toda parte no mundo, começarem a lutar pela
Quanto mais a indústria alem ã crescia no Oeste, até atingir preservação hereditária de seus bens, ao invés de novos investi
seu volume presente, tanto m ais a população sofria um a enor mentos que trazem tanto lucro como risco — então, na realidade,
me modificação; a em igração alcançou seu auge no Leste alemão, o desejo das fam ílias capitalistas de form ar um a “nobreza”
onde apenas senhores e servos existiam em distritos demasiado surgirá, provavelmente não na forma embora de fato. Os re
amplos e dos quais os trabalhadores agrícolas fugiam , buscando presentantes do capitalismo não se contentarão mais com um
livrar-se do isolamento e da dependência patriarcal, seja atra jogo tão inofensivo quanto os estudos de árvores genealógicas
vessando o oceano, para os Estados Unidos, seja para o ar fu e os numerosos aspectos de exclusividade social, tão surpreen
marento e poeirento, mas socialmente m ais livre, das fábricas dentes para o estrangeiro. Somente quando o capital chegar a
alemãs. Por outro lado, os donos de terras importam os tra essa posição e começar a monopolizar a terra em grandes pro
balhadores que podem para realizar o trabalho: eslavos de além- porções, surgirá nos Estados Unidos uma grande questão social
-fronteira, que, como mão-de-obra barata, acabam afastando os rural, que não poderá ser solucionada com a espada, como a
alemães. Hoje, o dono de terras age como qualquer homem questão dcs escravos. Os monopólios e trustes industriais são
de negócios e tem de agir como tal, mas suas tradições aristo instituições de duração lim itada; as condições de produção so
cráticas contrastam com tal ação. Ele gostaria de ser um senhor frem modificações, e o mercado não conhece avaliações duradou
feudal, e não obstante tem de tornar-se um empresário comercial ras. Seu poder também não dispõe do caráter autoritário e da
e um capitalista. Outras forças, além do ]u n \e r, procuram rou marca política das aristocracias. M as os monopólios da terra
bar o papel do senhor de terras. criam sempre um a aristocracia política.
Os capitalistas industriais e comerciais começam a absor No que se relaciona com a A lem anha, no Leste já se obser
ver, cada vez mais, a terra. Fabricantes e comerciantes, que va, em conseqüência de certas tendências, um a aproximação
enriqueceram , compram as propriedades dos cavaleiros, associam das condições inglesas; o Sudoeste, porém, evidencia sem elhan
a sua posse à fam ília pelo usufruto e usam a propriedade como ças com a França, em sua estrutura social rural. M as em geral
meio de invadir a classe aristocrática. O fideicomisso do parv en u a criação intensiva de gado, que se observa na Inglaterra, é
é um dos produtos característicos do capitalismo num pais an impossível no Leste alemão, devido ao clim a. Portanto, o capi
tigo, com tradições aristocráticas e um a m onarquia m ilitar. No tal absorve apenas a terra mais favorável para a agricultura.
Leste alemão ocorre agora o mesmo que vem ocorrendo na Mas enquanto os distritos inferiores na Inglaterra permanecem
436 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
C A P IT A L IS M O E SOCIEDADE RURAL NA ALEM AN H A 437

sem cultivo, como pastos para ovelhas, no Leste da Alem anha


m ercial das condições econômicas modernas. Considera com
são colonizados pelos pequenos agricultores. Esse processo tem
acerto a compra deste imenso território, em cujo centro estamos
um a característica peculiar, enquanto duas nações, germanos e
aqm, como o^ selo histonco real impresso sobre as suas insti-
eslavos, lutam entre si, economicamente. Os camponeses polo
neses, que têm menores necessidades do que os alemães, pare ^ C;em° (ÍratlCaS; rSem e,ssa aq uisição, com vizinhos poderosos
belicistas, ele seria forçado a usar a cota de arm as como nós
cem estar vencendo.
que constantemente mantemos na gaveta de nossas mesas os
Sob a pressão dos ciclos econômicos, o pequeno fazendeiro nossos aparatos bélicos, para 0 caso de guerra. Por outro lado.
eslavo, que é frugal, ganha terra do alemão. O avanço do
cultivo na direção do Leste, durante a Idade M édia, baseado Parte ' Pro^lemas Para cuja solução estamos traba-
ando agora so surgira nos Estados Unidos dentro de algum as
na superioridade do cultivo mais antigo e superior, foi m odifi gerações A forma pela qual serão solucionados determ inará o
cado sob o princípio capitalista da “mão-de-obra” mais barata. caráter da cultura deste continente. Jam ais terá sido tão fácil
Se os Estados Unidos também enfrentarão problemas semelhan talvez, para um a nação tornar-se um a grande potência civili
tes no futuro, ninguém pode dizer. A dim inuição das operações zada quanto o e para o povo americano. Não obstante, de
agrícolas nos estados produtores de trigo resulta, no momento, acordo com o calculo humano, também é a últim a vez, por tôda
da crescente intensidade da operação e da divisão do trabalho. a duraçao da historia da humanidade, que tais condições de
Tam bém o número de fazendas de negros está aumentando, tal desenvolvimento livre e grande serão proporcionadas; as áreas
como a m igração do interior para as cidades. Se, com isso, a de solo livre estao desaparecendo em toda parte do mundo.
capacidade de expansão da colonização anglo-saxão-germânica
dos distritos rurais, bem como o núm ero de filhos da velha popu Um dos meus colegas citou as palavras de C arlyle: “Mi-
lação norte-am ericana nata, estiverem desaparecendo, e se, ao ares de anos passaram antes que pudesses ingressar na vida,
mesmo tempo, a enorme im igração de elementos do Leste euro e m ilhares de ano terao de esperar em silêncio o que queiras
peu crescer, poderá surgir ali, sem demora, um a população rural fazer desta tua vida”. Não sei se, como acreditava Carlyle, o
que não será assim ilada pela cultura do país, transm itida historica homem possa ou queira colocar-se, em seus atos, dentro da
mente. Essa população poderá modificar, de modo decisivo, o gam a desse sentimento. Mas uma nação deve fazê-lo, para que
padrão dos Estados -Unidos e formar, gradualm ente, um a com uni sua existencia na H istória tenha valor duradouro.
dade de tipo bastante diferente da grande criação do espírito
anglo-saxão.
P ara a A lem anha, toda9 as questões fatídicas de política eco
nômica e social, e de interesses nacionais, estão intim am ente li
gadas a esse contraste entre a sociedade rural do Leste e a socie
dade do Oeste com seu maior desenvolvimento. Não me parece
correto considerar aqui, num país estrangeiro, os problemas prá
ticos que essa situação provoca. O destino, que nos deu um a
história de m ilhares de anos, que nos colocou num país com
um a população densa e um a cultura intensiva, que nos forçou
a m anter o esplendor de nossa velha cultura num campo armado,
por assim dizer, dentro de um m undo também armado, colocou-
-nos frente a esses problemas. E temos de resolvê-los.
Os Estados Unidos ainda não os conhecem. Este país pro
vavelmente jam ais terá de enfrentar alguns deles. Não têm um a
aristocracia antiga, e, daí, não existirem as tensões causadas pelo
contraste entre a tradição autoritária e o caráter puramente co
O C A R A T E R N A C IO N A L E OS " jU N K E R s ” 439

injustam ente) transformados em ídolos. Q ualquer pessoa que


os conheça pessoalmente apreciará, sem dúvida, a sua companhia
na caça, junto a um bom copo, ou no jogo de cartas; e, em
suas casas hospitaleiras, tudo é autêntico. M as tudo se torna
espúrio quando estilizamos essa camada essencialmente “burgue
sa” de empresários para fazer dela um a “aristocracia”. Econo
XV. O Caráter Nacional e os "Junkers"
micamente, os Ju n k ers dependem totalmente de sua atividade
como empresários agrícolas; estão empenhados na luta dos in
teresses economicos. Sua luta social e econômica é tão impiedosa
quanto a de qualquer industrial. Dez minutos passados entre
eles mostram que são plebeus. Suas virtudes mesmas são as de
C ^ o mo v e íc u l o d a t r a d i ç ã o , treinamento e equilíbrio político natureza plebeia. O M inistro von M iquel declarou certa vez
de um Estado, não há dúvida de que um a cam ada de senhores (cm particular!) que “Hoje em dia um a propriedade feudal do
de terras é insubstituível. Falam os dela tal como existiu na Leste alemão não pode m anter um a fam ília aristocrática”, e
Inglaterra e que, de forma semelhante, constituiu a essencia da tinha toda a razão. Se tentarmos modelar tal cam ada num a
nobreza senatorial da Roma antiga. aristocracia, cheia de gestos e pretensões feudais, cam ada essa
que hoje depende do trabalho adm inistrativo rotineiro de natu
Quantos aristocratas há na A lem anha e especialmente na
reza capitalista, o único resultado inevitável será a aparên cia de
Prússia? Onde está a sua tradição política? Politicamente, os
um arriv ista. Os traços de nossa conduta política e geral no
aristocratas alemães, particularm ente na Prússia, quase nada re
mundo, que encerram essa marca, são determinados (embora
presentam. E parece evidente que hoje um a estrutura estatal
não exclusivam ente) pelo fato de termos alim entado pretensões
que pretenda alim entar um a cam ada de grandes arrendadores,
aristocráticas em cam adas que simplesmente não dispõem de
de caráter autenticamente aristocrático, é impossível. qualificações.
Mesmo que ainda fosse possível deixar que surgissem al
gum as grandes propriedades aristocráticas nas áreas revestidas Os Ju n \e rs são apenas um exemplo desse ponto. Entre nós,
de bosques — a única terra que se qualificava, social e politica a ausência de homens de educação cosmopolita é, decerto, devida
mente, para a formação de m orgadias — ainda assim seria im não apenas a fisionom ia dos ]u n k ers, mas também ao resultado
possível obter quaisquer resultados significativos. Foi essa, pre do caráter “pequeno-burguês”, 1 generalizado, de todas as ca
cisamente, a desonestidade enorme do projeto de lei sobre as madas que foram representantes específicos da estrutura política
m orgadias, exam inado na Prússia no início de 1917. O projeto prussiana durante a época de sua ascendência empobrecida, mas
visava a estender um a instituição jurídica, adequada às proprie gloriosa. A s velhas fam ílias de oficiais cultivam , ao seu modo
dades aristocráticas, até os proprietários de classe média, na pro altam ente honorifico, e em condições econômicas extremamente
priedade média do Leste do Elba. Procurava fazer um a “aristo modestas, a tradição do velho exército prussiano. As fam ílias
cracia” de um tipo que simplesmente não é um a aristocracia e dos servidores públicos seguem o mesmo exemplo. N ão importa
jam ais poderá ser transformado em tal. se essas fam ílias são, ou não, de nascimento nobre; economica
mente, socialmente e segundo seu horizonte, elas constituem um
Os ]u n k ers do Leste são freqüentemente criticados (e por grupo de classe m édia burguesa. Em geral, as formas sociais
vezes injustam ente); e são com a mesma freqüência (e também do corpo de oficiais alemão são absolutamente adequadas à
natureza, e em suas características decisivas assemelham-se clara
“W ahlrecht und D em okratie in D eutschland”, G esa m m elte p o mente às características do corpo de oficiais das democracias (da
litisch e S c h rifte n (Munique, Dreim askenverlag, 1921). Compreende França e também da Itália ). Esses traços, porém, tornam-se
um trecho de um folheto que "Die H älfe”, — o departam ento edito im ediatam ente um a caricatura quando os círculos não-m ilitares
rial de livros da pequena revista que Naum ann dirigia — publicou os consideram também como modelo de sua conduta. Isso se
em dezembro de 1917.
440 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA O CARÁTER NACIONAL E OS “ jU N K E R s " 441

aplica, acim a de tudo, quando se fundem com as formas sociais A m edida do m oralista não é a m edida do político. Q ual
derivadas do “penalismo” das escolas de burocracia. Mas é isso quer que seja o julgam ento que se possa fazer dessas associações
o que ocorre entre nós. per se, elas certamente não proporcionam educação para uma
personalidade cosmopolita. Pelo contrário, seu sistema cansa
Sabe-se bem que as associações estudantis constituem a edu
cação social típica de aspirantes a postos não-militares, sinecuras tivo e seu penalismo são, afinal, inegavelmente banais; e suas
formas sociais subalternas constituem o oposto mesmo dessa
e as profissões liberais de alta posição social. A “liberdade aca
educação. O m ais estúpido clube anglo-saxão oferece um a edu
dêm ica” de duelar, beber e faltar a aulas vem de um tempo
cação cosmopolita melhor, por m ais vazio que possamos julgar
em que as outras liberdades não existiam na A lem anha e quan
os esportes que constituem o objetivo do clube. Com a sua
do somente a cam ada de letrados e candidatos a cargos públicos
seleção de membros freqüentemente muito rigorosa, ele sempre
tinha o privilégio de desfrutá-las. A influência, porém, que
se baseia no princípio da rigorosa igualdade dos cavalheiros e
essas convenções tiveram sobre a aparência geral da classe dos
não no princípio do “penalismo”, que a burocracia tanto valo
homens que dispõem de um diploma acadêmico na A lem anha
riza como preparação da disciplina no cargo. Cultivando esse
não pode ser elim inada, nem mesmo hoje. Esse tipo de homem
penalismo, as fraternidades não deixam de se recomendar aos
foi sempre importante entre nós, e torna-se cada vez mais im
“do alto”. 2 De qualquer modo, as convenções formalistas e o
portante. Mesmo que ele hipotecasse as associações estudantis
penalismo dessa cham ada “liberdade acadêm ica” são impostos
e que a necessidade de que os alunos pagassem os juros não
contribuísse para a im ortalidade econômica dessas associações, ao aspirante do cargo na Alem anha. Quanto m ais os candi
tal tipo dificilm ente desapareceria. Pelo contrário, o sistema datos se mostram como arrivistas, jactando-se de sua carteira
de fraternidades estudantis expande-se cada vez mais, pois as lig a recheada — pelos pais — como é inevitável quando as condições
ções sociais que hoje se criam nessas associações são um a forma o perm item, tanto menos efetivas são essas convenções no pre
específica de selecionar funcionários. E a patente de oficial, que paro dos homens aristocráticos do mundo. A menos que o jovem
tem como requisito prelim inar a filiação a um a associação due- que é levado a êsse condicionamento seja de um caráter excep
lista, garantida de forma visível pelas fitas com as suas cores, cionalmente independente, um espírito livre, os traços fatais do
dá acesso à “sociedade”. plebeu de verniz se desenvolverão nele. Vemos esses plebeus
com m uita freqüência, entre homens que, sob outros aspectos,
N a verdade, a pressão em favor da bebida e as técnicas de são excelentes, pois os interesses cultivados por essas associações
duelo das associações estudantis ajustam -se cada vez mais às são totalmente plebeus e estão longe de todos os interesses “aris
necessidades das constituições m ais fracas dos aspirantes àquelas tocráticos”, qualquer que seja o sentido dado à expressão. O
fitas, que, devido às ligações, se tornam cada vez m ais num e ponto saliente é, simplesmente, que um a vida estudantil de es
rosos. Ao que se diz, há até mesmo abstêmios em alguns desses sência plebéia pode ter sido, anteriormente, inofensiva. Era
grupos duelistas. A fusão intelectual dessas associações, que simplesmente a exuberância ingênua, juvenil. M as hoje em dia
tem aum entado continuam ente nas décadas recentes, é um fator pretende ser um meio de educação aristocrática, que dá às pes
decisivo. T êm salas de leitura próprias e publicações especiais, soas habilitações para a liderança no Estado. A contradição
que os alunos enchem exclusivam ente de política “patriótica”
simplesmente incrível que isso encerra é como um boom eran g,
bem intencionada de um caráter indizivelm ente pequeno-bur-
no qual a marca fisionômica do arrivista é o resultado.
guês. O intercâmbio social com os companheiros de aula de
formação social ou intelectual diferente é evitado ou pelo menos Devemos ter cautela para não acreditar que esses traços ar
dificultado. Com tudo isso, as ligações das sociedades estudan rivistas da fisionomia alem ã sejam politicamente irrelevantes.
tis se expandem constantemente. Ú m vendedor que pretenda Vamos considerar im ediatam ente um exemplo. Lançar-se às
conseguir um a patente de oficial, como condição para casar-se “conquistas morais” entre inimigos, ou seja, entre grupos de
na “sociedade” (particularm ente, com a filha do patrão), m atri- interesse opostos, é empresa vã, que Bism arck ridicularizou com
cular-se-á num a das faculdades de Economia que são freqüenta razão. M as será isso válido para os aliados presentes ou futuros?
das principalm ente pela sua vida associativa. Nós e nossos aliados austríacos dependemos uns dos outros,
442 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
O CA R Á T E R N A C IO N A L E OS " jU N K E R s " 443

politicamente, com m uita freqüência. E ambos sabemos disso. Repetimos: nenhum a aristocracia de peso e tradição políticos
A menos que sejam cometidas grandes loucuras, não há am ea suficientes existe na Alem anha. Essa aristocracia pode, na me
ças de um rompimento. A realização alem ã é aceita por eles lhor das hipóteses, ter tido um lugar no Partido Frei^ on serv a-
tive e no Partido do Centro — embora isso não ocorra no mo
sem reservas ou ciúmes — e m ais aceita quanto menos nos
gabarmos dela. Nem sempre temos um a avaliação adequada mento — mas não o teve no Partido Conservador.
das dificuldades que os austríacos têm e que foram poupadas à É igualm ente importante o fato de não ter havido uma for
A lem anha. D aí nem sempre apreciarmos a realização austríaca. m a social de nobreza alemã. A despeito das jactâncias ocasionais
M as podemos dizer aqui, abertamente, aquilo que todos sabem. de nossos letrados, é completamente falso que exista na A lem a
O que não poderia ser tolerado pelos austríacos, ou por qualquer nha o individualism o no sentido de liberdade das convenções,
outra nação da qu al desejássemos ser amigos, são as maneiras em contraste com as convenções do cavalheiro anglo-saxão ou
do parv en u, como voltamos a evidenciar recentemente e de do homem de salão latino. Em nenhum outro lugar há con
forma intolerável. T al aparência será recebida com um a rejei venções m ais rígidas e m ais pressionantes do que as do “homem
ção silenciosa e polida, mas decidida, por qualquer nação de de associação” alemão. Elas controlam, direta e indiretam ente,
boa e antiga formação social, como por exemplo os austríacos. um a parte tão grande da descendência de nossas camadas prin
N inguém quer ser governado por parv en u s m al educados. U m cipais quanto as convenções de qualquer outro país. Sempre
passo além do que é absolutamente indispensável nas questões que as formas do corpo de oficiais não prevalecem, essas con
externas, ou seja, qualquer coisa que pudesse ser da parte da venções associativas constituem a “forma alem ã” ; os efeitos das
“Europa central” (no sentido interior da p alavra), ou que pu associações duelistas determinam, em grande parte, as formas
desse ser desejável para a futura solidariedade de interesses com e convenções das camadas dominantes da A lem anha: da buro
cracia e de todos os que desejam ser aceitos “em sociedade”,
outras nações (não importa o que possamos sentir quanto à
onde a burocracia dá o tom. E essas formas não são, certamente,
idéia de um a aproximação econômica) pode falhar politicam en
requintadas.
te devido à determinação absoluta dç não perm itir que lhe seja
imposto aquilo que recentemente, com um gesto jactancioso, De um ponto de vista político, é ainda mais importante que,
foi proclamado como o “espírito prussiano”. A “democracia”, em contraste com as convenções dos países latinos e anglo-saxões,
ao que se propala, põe em risco o espírito prussiano, segundo as essas formas alemãs simplesmente não sejam adequadas como
manifestações verbais dos fazedores de frase políticos. Como modelos para toda a nação, até a cam ada m ais baixa. Não são ade
se sabe, as mesmas declamações foram ouvidas, com exceção, quadas para modelar e unificar a nação em seu gesto como uma
em tôda fase de reforma interna, durante os últim os 110 anos. H e r r e n v o U segura de si mesma, nas formas pelas quais as con
venções latinas e anglo-saxãs se firm aram .
O espírito prussiano autêntico pertence às florações mais
É um grave erro acreditar que a “raça” é o fator decisivo
belas da cultura alemã. Tudo o que temos de Scharnhorst,
na surpreendente falta de graça e dignidade no comportamento
Gneisenau, Boyen, M oltke, foi inspirado por esse espírito, tal
ostensivo do alemão. O comportamento do germano-austríaco
como os feitos e as palavras dos grandes realizadores da reforma
é formado por um a aristocracia autêntica. Não lhe faltam essas
prussiana (m uitos dos quais, porém, são de origem não-prus- qualidades, apesar da raça idêntica, quaisquer que possam ser
siana). Não precisamos mencioná-los aqui. O mesmo se aplica as suas fraquezas.
à em inente intelectualidade de Bism arck, hoje tão m al carica
A s formas que controlam o tipo latino de personalidade,
turada pelos estúpidos e hipócritas representantes da R ealp olit i\.
até as camadas m ais baixas, são determ inadas pela imitação do
M as, ocasionalmente, parece que esse velho espírito prussiano é
cavalheiro, tal como evoluiu desde o século XVI.
hoje m ais forte entre o funcionalismo de outros Estados fede
rais, que não Berlim . O abuso da expressão “espírito prussiano” As convenções anglo-saxãs também moldam as personali
pelos atuais demagogos conservadores é apenas um abuso em dades, até as cam adas mais baixas. Nascem dos hábitos sociais
da cam ada nobre, que deu o tom na Inglaterra, desde o século
relação a esses grandes homens.
444 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA O CARÁTER N A C IO N A L E OS " jU N K E R s " 445

X VII. A nobreza surgiu em fins da Idade M édia, num a fusão tado. É essa contradição interior que convida ao ridículo e tem
peculiar de notáveis rurais e urbanos, ou seja, os “cavalheiros”, efeitos políticos tão desfavoráveis.
que se tornaram os portadores do “Governo autônomo”. A A lem anha é um a nação de plebeus. Ou, se isto parecer
Em todos esses casos, foi importante que as características mais agradável, é um a nação de pessoas comuns. Somente tendo
decisivas das convenções e gestos relevantes pudessem ser im i isto por base pode crescer especificamente um a “forma alem ã”.
tados de forma fácil e universal, e com isso pudessem ser demo Socialmente, a democratização provocada ou promovida pela
cratizados. Mas as convenções dos candidatos a cargos na A le nova ordem política — e isso é o que deve ser discutido aqui
m anha, academicamente examinados, das camadas que eles in — não destrói o valor das formas aristocráticas, já que elas
fluenciam e, acima de tudo, os hábitos para os quais as asso não existem. Nem poderia privar tais valores de sua exclusivi
ciações duelistas condicionam seus homens — foram e são evi dade e, em seguida, propagá-los por toda a nação, como se fez
dentemente inadequados à imitação pelos círculos fora das ca com as formas das aristocracias latina e anglo-saxã. Os valores
madas exam inadas e certificadas. Em particular, não podem ser formais do caçador-de-posição que se qualifica para os duelos
im itados pelas am plas massas do povo; não podem ser democra não são suficientemente cosmopolitas para m anter um a aparên
tizados, embora, ou antes precisamente por isso, em essência cia pessoal, mesmo em sua própria camada. Como o mostram
essas convenções não sejam de forma algum a cosmopolitas ou todos os indícios, essas formas nem sempre bastam até mesmo
aristocráticas sob outros aspectos. São de natureza totalmente para ocultar a insegurança real perante um estrangeiro que seja
plebéia. um homem do mundo^ educado. O esforço para disfarçar essa
O código de honra neolatino, bem como o código bastante insegurança toma, ferqüentemente, a forma de “esperteza” que,
diferente dos anglo-saxões, foi adequado à democratização de em geral, nasce do constrangimento e parece ser um a m á du-
longo alcance. A concepção especificamente alem ã das q u alifi cação.
cações exigidas para membro de um a associação duelista, po Não discutiremos se a “democratização” política resultaria
rém, não se presta à democratização, como se pode ver facil realm ente num a democratização social. A “democracia” polí
mente. Esse conceito é de grande influência política, mas o tica ilim itada na Am érica, por exemplo, não impede o cresci
ponto política e socialmente importante não é — como se afir mento de um a plutocracia rude, ou mesmo um grupo de pres
m a freqüentemente — que um chamado “código de honra”, no tígio “aristocrático”, que emerge lentamente. O crescimento
sentido lim itado, exista no quadro de oficiais. Ele está, ali, dessa “aristocracia” é cultural e historicamente tão importante
absolutamente em seu lugar. O fato de que um a L an d rat 3 quanto o da plutocracia, embora habitualm ente passe desper
prussiana deva qualificar-se para o duelo, no sentido do corpo cebido.
de duelistas penalistas, a fim de se m anter em seu posto — é
o que tem relevância política. Isto também ocorre com qu al O desenvolvimento de um a “forma alem ã” realm ente culta,
quer outro funcionário adm inistrativo que seja facilmente afas- que seja ao mesmo tempo adequado ao caráter da cam ada social
tável. Contrasta, por exemplo, com o A m tsrich ter , 4 que, em mente dominante dos plebeus, cabe ao futuro. O desenvolvi
virtude da lei, é “independente”, e que, devido a essa indepen mento incipiente dessas convenções civis nas cidades hanseáticas
dência, é socialmente déclassé, em comparação com o Lan d rat. não continuou sob o impacto das modificações políticas e eco
Como ocorre com todas as outras convenções e formas m anti nômicas, desde 1870. E a presente guerra [P rim eira Guerra
das pela estrutura da burocracia e modeladas decisivamente M undial] nos proporcionou muitos parv en u s cujos filhos ado
pela idéia da honra do estudante alemão, de um ponto de vista tarão ardentemente as convenções habituais dos corpos duelistas
formal o conceito da qualificação duelista constitui um a con nas universidades. Essas convenções não criam exigências de
venção de casta devido à sua natureza peculiar. N enhum a um a tradição culta; servem como um modo cômodo de domes
dessas formas pode ser dem ocratizada. Em substância, porém, ticar os homens para que possam merecer a patente de oficial.
não são de caráter aristocrático, mas absolutamente plebeu, por D aí não haver, no momento, esperanças de um a modificação.
que faltam a todas elas a dignidade estética e o cultivo requin De qualquer modo, isso é válido: para que a “democratização”
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resulte na elim inação do prestígio social dos homens que fre mais próximo! N ada podemos aprender com eles sobre o fu
qüentaram as academias — o que não é de forma algum a certo turo. Os clássicos alemães, entre outras coisas, podem eisin a r-
e que não pode ser discutido aqui — então nenhum a forma -nos que poderíamos ser um a nação culta num período de
social politicamente valiosa seria abolida na Alem anha. Como pobreza m aterial e impotência política, e mesmo de uomínio
tais formas não existem, não podem ser elim inadas. A demo estrangeiro. Mesmo quando se preocupam com Política e Econo
cracia talvez pudess:, então, liberar o caminho para o desenvol m ia, suas idéias vêm dessa época não-política. A s noções dos clás
vimento de formas valiosas adequadas à nossa estrutura civil, sicos alemães, inspiradas pela discussão da Revolução Francesa,
social e econômica, que portanto seriam valores “genuínos” e foram projeções num a situação política e econômica às quais
culturais. Não podemos inventar tais valores, tal como não faltou paixão popular. Mas na m edida em que qualquer paixão
podemos inventar um estilo. Somente isto (de um modo essen política as inspirou, além da irada rebelião contra o domínio
cialm ente negativo e form al) podemos dizer, e isso se aplica a estrangeiro, foi o entusiasmo cultural pelos imperativos morais.
todos os valores de tal natureza: tais formas jam ais podem ser O que está atrás disso são idéias filosóficas, que podemos utili
desenvolvidas em qualquer outra base que não a de um a atitude zar como um estim ulante para definir nossa posição, segundo
de distância e reserva pessoais. N a A lem anha, esse pré-requisito nossa realidade política e de acordo com as exigências de nossa
de toda dignidade pessoal faltou freqüentem ente entre as altas e época, mas não como guias. Os modernos problemas do Go
baixas camadas. Os letrados m ais recentes com sua impaciência verno e democracia parlamentares, e a natureza essencial de
em falar alto e publicar as suas “experiências” pessoais — eróti nosso Estado moderno em geral, estão completamente além do
cas, religiosas ou quaisquer outras — são os inimigos de toda horizonte dos clássicos alemães.
dignidade, qualquer que seja. A “distância”, porém, não H á pessoas que condenam o sufrágio universal como a vi
pode de modo algum ser conquistada exclusivamente no “co tória de instintos da massa incapaz de razão, em contraste com
turno” de uma posição esnobativa de alheamento aos “exces a convicção política judiciosa; afirm am que constitui um a vitó
sivamente dem ais”, como o pretendem as várias e errôneas “pro ria da política emocional sobre a política racional. Quanto a
fecias” que remontam a Nietzsche. Pelo contrário, quando ne isso, devemos dizer que a política externa da A lem anha é prova
cessita hoje desse apoio interior, a distância é sempre espúria. de que um a m onarquia que governa através de um sistema de
T alvez a necessidade de m anter a dignidade própria em meio sufrágios de classe destaca-se pela emoção exclusivam ente pes
de um mundo democrático possa servir de prova da autentici soal e como um a forma de liderança irracional. A Prússia tem
dade da dignidade. a hegem onia e é sempre o fator decisivo na política alemã. Para
O que dissemos acima mostra que nisto, como em muitos prová-lo, basta comparar o caminho ziguezagueante dessa polí
outros aspectos, a pátria alem ã não é, e não deve ser, a terra tica barulhenta, sem êxito há décadas, com a objetividade calma,
de seus pais, mas a terra de seus filhos, como A lexander H er- por exemplo, da política externa inglesa.
zen tão bem disse da Rússia. E isso é particularm ente válido Quanto aos instintos da massa irracional, eles só governam
para os problemas políticos. a política quando as massas são compactas e exercem pressão:
O “espírito alemão” para a solução dos problemas políticos na metrópole moderna, particularm ente nas condições de formas
não pode ser destilado da obra intelectual de nosso passado, de vida urbana neolatinas. A li, a civilização do café, bem como
por m ais valiosa que possa ser. Prestemos deferência às grandes as condições clim áticas, perm item que a política de “rua” —
sombras de nossos ancestrais espirituais e usemos seu trabalho como foi adequadam ente cham ada — domine o país partindo
intelectual para todo treinamento form al da mente. Nossos de sua capital. Por outro lado, o papel do “homem da ru a”
letrados, em seu conceito, reivindicam do passado o título de inglês está ligado às características específicas da estrutura das
governar o planejam ento de nosso futuro político, como mes- massas urbanas, totalmente ausentes na A lem anha. A política
tres-escolas com um a vara, simplesmente porque é sua profis de rua da Rússia metropolitana está ligad a às organizações sub
são interpretar o passado para a nação. Se eles tentarem esta terrâneas que ali existem. Todas essas condições prelim inares
belecer as leis, deveremos então lançar os velhos livros ao desvão estão ausentes na A lem anha, e a moderação da vida alem ã torna
448 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA

improvável que a A lem anha corra esse perigo ocasion al — pois


é ocasional em contraste com aquilo que, na A lem anha Im
perial, influenciou a política exterior como um perigo crônico.
N ão a mão-de-obra presa às oficinas, mas os ociosos e os inte
lectuais de café em Roma e Paris fabricaram a política guerreira
das ruas — incidentalm ente, apenas a serviço do Governo e XVI. índia: O Brâmane e as Castas
som en te nas proporções em que o Governo a desejou ou per
m itiu.
N a França e Itália, faltava equilíbrio ao proletariado in
dustrial. Quando ele age com solidariedade, constitui, sem
dúvida, um poder imenso, dominando a rua. Em comparação,
porém, com os elementos totalmente irresponsáveis, é um a força
A po siç ã o do no hinduísm o clássico bem como hoje,
br â ma n e
só pode ser compreendida em relação à
,
sem cujo entendi
casta,
capaz de, pelo menos, ordem e liderança ordenada, através de
seus funcionários e, portanto, através de políticos que pensam mento é impossível compreender o hinduísm o. T alvez a lacuna
racionalmente. Do ponto de vista de nossa política estatal, o m ais importante no V eda antigo seja a sua falta de qualquer
importante é aum entar o poder desses líderes, na A lem anha referência à casta. O V eda só se refere aos quatro últim os no
dos líderes sindicais, sobre as paixões do momento. A lém disso, mes de castas em apenas um lugar, que é considerado como um
é necessário aum entar a im portância dos líderes responsáveis, a trecho bastante recente; em parte algum a ele se refere ao con
im portância da liderança política em si. U m dos argumentos teúdo substantivo da ordem de castas, no sentido que esta
m ais fortes em favor da criação de um a orientação ordenada e adotou e que é característica apenas do h in duísm o .1
responsável da política pela liderança parlam entar é que com A casta, isto é, os direitos e deveres rituais que ela dá e
isso a eficiência dos motivos puramente emocionais, “do alto” impõe, e a posição dos brâmanes, é a instituição fundam ental
e “de baixo”, é enfraquecida na m edida do possível. O “domí do hinduísm o. Antes de qualquer outra coisa, sem casta não
nio da rua” nada tem a ver com o sufrágio igu al; Roma e Paris há hindu. M as a posição do hindu em relação à autoridade do
foram dominadas pela rua mesmo quando na Itália a mais plu- brâmane pode variar extraordinariam ente, desde a submissão
tocrática influência do mundo, e em Paris, Napoleão III, gover incondicional até o desafio de sua autoridade. A lgum as castas
navam com um parlamento de fachada. Som en te a orientação contestam a autoridade do brâmane, mas praticam ente isto sig
ordenada das massas, pelos políticos responsáveis, pode romper nifica m eram ente que o brâmane é desdenhosamente rejeitado
com o domínio irregular da rua e a liderança dos demagogos como sacerdote, que seu juízo nas questões controversas de
do momento. ritual não é reconhecido como autorizado, e que seu conselho
jam ais é buscado. À prim eira vista isto parece contrariar o
fato de que as “castas” e os “brâmanes” pertencem ambos ao
hinduísm o. M as na realidade, se a casta é absolutamente essen
cial para todo hindu, o inverso, pelo menos hoje em dia, não
é válido, isto é, nem toda casta é um a casta hindu. H á também
castas entre os maometanos da índ ia, copiadas dos hindus. E
as castas existem também entre os budistas. A té mesmo os

G esa m m elte A u fsa e tze zu r R eligionssoziologie, vol. II, pp.


32-48, 109-113. O estudo do qual esta seleção foi extraída foi publi
cado originalm ente em A rc h iv , abril e dezembro de 1916 e maio de
1917.
20
450 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA ín d ia : o b r â m a n e e a s c a st a s 451

cristãos indianos não foram capazes de evitar, por motivos prá Temos, primeiro, de indagar: com que conceitos defini
ticos, o reconhecimento das castas. Essas castas não-hindus ca remos um a “casta” ? * Perguntamos de forma negativa: o que
receram da ênfase trem enda que a doutrina de salvação espe não é um a casta? Ou que traços de outras associações, real
cificamente hinduísta dava à casta, como iremos ver m ais adian ou aparentem ente relacionadas com a casta, faltam num a casta?
te, e lhes faltou ainda um a característica, ou seja a determ ina Q ual, por exemplo, a diferença entre casta e tribo?
ção da posição social das castas pelas distâncias sociais em re
lação às outras castas hinduístas, e com isso, em últim a análise,
do brâmane. Esse aspecto é decisivo para a ligação entre as 1. C a st a e T r ibo
castas hindus e o brâm ane; por m ais intensamente que uma
casta hindu possa rejeitá-lo como sacerdote, como autoridade Enquanto a tribo não se tornou totalm ente hóspede ou
doutrinária e ritual, e mesmo sob qualquer outro aspecto, a pária, dispôs, habitualm ente, de um território tribal fixo. U m a
situação objetiva continua sendo inegável: em últim a análise, a casta autentica jam ais tem territorio fixo. Em proporção bem
posição social é determ inada pela natureza de sua relação po considerável, os membros da casta vivem no interior, segrega
sitiva ou negativa com o brâmane. dos em aldeias. H abitualm ente, em cada aldeia há, ou havia,
A “casta” é, e continua sendo essencialmente, um a posição apenas um a casta com pleno direito ao solo. M as artesãos e
social, e a situação central dos brâm anes no hinduísm o baseia-se trabalhadores dependentes também vivem com essa casta, na
m ais no fato de que a posição social é determ inada com refe aldeia. De qualquer modo, a casta não forma um a entidade
rência a eles do que em qualquer outro aspecto. P ara com local, territorial, corporada, pois isso seria contra a sua natureza.
preender isso, examinaremos a condição presente das castas hin U m a tribo está, ou pelo menos estava originalm ente, unida pela
dus, tal como é descrito nos Relatórios do Censo, científicos e obrigação de vingar o sangue, exercida direta ou indiretam ente
em parte excelentes. Examinaremos também, rapidam ente, as através do clã. A casta jam ais teve qualquer relação com as
teorias clássicas de casta encerradas nos velhos livros de Direito vinganças.
e outras fontes. O riginalm ente, um a tribo compreendia muitas, geralm ente
Hoje, a ordem de casta hinduísta está profundamente aba quase todas, as atividades possíveis necessárias à subsistência.
lada. Especialmente no distrito de Calcutá, principal portão U m a casta pode compreender pessoas que têm profissões muito
da velha Europa, m uitas norm as perderam praticamente a sua diferentes; pelo menos é o que ocorre hoje, e, para certas cas
força. As ferrovias, os bares, as m udanças na estratificação tas superiores, isso tem ocorrido desde os tempos antigos. Não
ocupacional, a concentração da força de trabalho através da in obstante, enquanto a casta não tiver perdido seu caráter, os
dústria im portada, colégios etc., contribuíram para isso. Os tipos de ocupações admissíveis sem perda de casta são sempre,
“freqüentadores de Londres”, isto é, os que estudavam na Eu de certo modo, rigorosamente limitados. H oje mesmo, com
ropa e m antinham livremente o intercâmbio com europeus, cos m uita freqüência “casta” e “modo de vida” estão firmemente
tum avam tornar-se párias até a últim a geração; tal situação, ligados de tal modo que a m udança de ocupação está relacio
nada com um a divisão de casta. Isso não ocorre na “tribo”.
porém, desaparece cada vez mais. E foi impossível adotar car
ros para as diferentes castas nos trens de ferro, ao modo do N orm alm ente, a tribo compreende pessoas de todas as ca
que se faz nos trens americanos ou nas salas de espera das esta madas sociais. A casta bem pode dividir-se em subcastas, com
ções, que segregam “brancos” e “negros” nos Estados do Sul. classificações sociais extraordinariam ente diferentes. Hoje, esse
Todas as relações de casta foram abaladas, e a cam ada de in caso e quase que a regra; um a casta contém freqüentemente
telectuais formada pelos ingleses são, ali, como em toda parte, varias centenas de subcastas. Nesses casos, as subcastas podem
os veículos de um nacionalismo específico. Fortalecerão m uito
esse lento e irresistível processo. N o momento, porém, a estru * A palavra inglesa “caste” é de origem portuguesa. A antiga
tura de castas mantém-se bastante firm e. denominação indiana é va rn a , “cor”.
452 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA Ín d ia : o b r â m a n e e a s c a st a s 453

estar relacionadas entre si exatam ente, ou quase, como as dife Já observamos que, quando um a tribo perde sua base ter
rentes castas. Se isso ocorre, as subcastas são, na realidade, cas ritorial, torna-se hóspede ou pária. Pode, então, aproximar-se
tas; o nome comum a todas tem um a significação meramente da casta até o ponto de tornar-se indistinguível dela, na prá
— ou pelo menos quase — histórica e serve de apoio às preten tica. 3 A s diferenças que perduram serão discutidas quando
sões sociais das subcastas degradadas em relação a terceiras cas determinarmos as características positivas da casta. Primeiro,
tas. D aí, pela sua natureza mesma, a casta está inseparavel porém, surge a seguinte questão: em contraste com a “tribo”,
mente ligada às posições sociais dentro de um a comunidade a casta em geral se relaciona intim am ente, de formas especiais,
maior. com os modos de ganhar a vida, de um lado, e com a classifi
É decisivo para um a tribo que tenha sido original e nor cação social, de outro. Ora, como a casta se relaciona com as
m alm ente um a associação política. A tribo forma um a associa associações ocupacionais (corporações mercantis e artesanais) e co
ção independente, como ocorre sempre na origem , ou a asso mo se relaciona com os “estamentos” ? Comecemos com o pri
ciação é parte de um a lig a trib al; ou pode constituir uma meiro caso.
ph y le, isto é, parte de um a associação política comissionada com
2. C a st a e C o r po r a ç ã o
determ inadas tarefas políticas e tendo certos direitos: de voto,
de participação nos cargos políticos, e o direito de assumir sua As “corporações” de comerciantes, e de mercadores que fi
parte nas obrigações políticas, fiscais e litúrgicas. *Uma casta guravam como comerciantes ao venderem m ercadorias de sua
jam ais é um a associação política, mesmo quando as associações produção, bem como as “corporações artesanais” existiram na
políticas, em casos individuais, tenham onerado as castas com ín d ia durante o período de desenvolvimento das cidades e es
liturgias, como ocorreu repetidamente durante a Idade M édia pecialmente no período em que se originaram as grandes re
indiana (B en gala). Nesse caso, as castas estão na mesma posi ligiões salvadoras. Como iremos ver, as religiões de salvação
ção das corporações comerciais e artesanais, clãs e todas as es e as corporações estavam relacionadas. As corporações surgi
pécies de associações. Pela sua própria natureza, a casta é sem ram habitualm ente nas cidades, mas ocasionalmente também
pre um a associação exclusivamente social e, possivelmente, ocupa- fora delas, havendo ainda remanescentes destas. No período
cional, que faz parte de um a com unidade social, dentro da qual do florescimento das cidades, a posição das corporações era com
se situa. Mas a casta não é necessariamente, e de forma algum a parável à ocupada nas cidades do Ocidente m edieval. A corpo
regularm ente, um a associação que faz parte de apenas uma ração (a m ah ajan , literalm ente o mesmo que popolo grasso)
associação política. Pode ultrapassar ou ficar aquém dos lim ites enfrentava de um lado o príncipe e de outro os artesãos econo
de qualquer associação política. H á castas espalhadas por toda micam ente dependentes. Essas relações eram aproxim adamente
a ín d ia .2 Hoje, porém, cada um a das subcastas, e também a as mesmas que havia entre as grandes corporações dos letrados
m aior parte das castas pequenas, existem apenas em seus respec e comerciantes e as corporações artesanais inferiores (popolo
tivos distritos, que são pequenos. A divisão política influiu m inutai) do Ocidente. D a mesma forma, associações de corpo
fortemente, com freqüência, na ordem de castas das áreas indi rações artesanais inferiores existiram na ín d ia (o pan ch ). Além
viduais, mas precisamente as castas m ais importantes continua disso, a corporação litúrgica de caráter egípcio e romano talvez
ram a ter âmbito interestadual. não estivesse totalmente ausente nos estados patrim oniais que
Com relação à substância de suas norm as sociais, a tribo ha começavam a surgir na índia. A singularidade da evolução da
bitualm ente difere da casta pelo fato de a exogamia do totem ín d ia está no fato de que esse início da organização de corpo
ou das aldeias coexistir com a exogam ia dos clãs. A endogam ia rações nas cidades não levou à autonom ia urbana do tipo oci
só existiu sob certas condições, mas nem sempre, para a tribo dental nem, após o desenvolvimento dos grandes estados patri
como um todo. A s regras da endogam ia, porém, form am sem moniais, a um a organização social e econômica dos territórios
pre a base essencial de um a casta. R egras de dieta e de comen- correspondente à “economia territorial” 4 ocidental. O sistema
salidade são sempre características da casta, mas de forma algu hinduísta de castas, cujo início certamente precedeu a essas orga
m a características da tribo. nizações, tornou-se destacado. Em parte, esse sistema de castas
454 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA Ín d ia : o BRÂMANE E AS CASTAS 455

deslocou totalm ente as outras organizações, e, em parte, as m u ocupações avaliadas de forma diferente, m as não havia barrei
tilou, impedindo que alcançassem im portância considerável. O ras rituais, como as que são absolutamente essenciais à casta.
“espírito” desse sistema de casta, porém, era totalmente dife Dentro do círculo de pessoas “honradas”, as barreiras rituais
rente do espírito das corporações mercantis e artesanais. do comensalismo estavam totalmente ausentes; mas tais bar
Essas corporações, no Ocidente, cultivaram interesses reli reiras pertencem à base das diferenças de castas.
giosos, tal como as castas. Em relação a esses interesses, as A lém disso, a casta é essencialmente hereditária. E esse
questões de classificação social também tiveram considerável pa caráter não foi, nem é, apenas o resultado da monopolização
pel entre as corporações. Que ordem de posição as corporações e restrição das oportunidades de lucro a um a quota m áxim a
deviam ter, por exemplo, durante as procissões, foi um a ques definida, como ocorria entre as corporações totalmente fechadas
tão que serviu ocasionalmente de motivo de discussão, com do Ocidente, que em momento algum foram predominantes
m ais insistência do que as questões de interesse econômico. Além numericamente. Essa restrição de quotas existiu, e ainda existe
disso, num a corporação “fechada”, ou seja, com um a quota em parte, entre as castas ocupacionais da ín d ia ; é m ais forte,
num ericam ente fixa de oportunidades de renda, a posição do porém, não nas cidades, mas nas aldeias, onde a restrição de
mestre era hereditária. H avia também associações quase-corpo- oportunidades, na m edida em que existiu, não teve ligação com
rativas e associações derivadas de corporações, nas quais o direito a organização de “corporações” e não teve necessidade dela.
à participação era adquirido em sucessão hereditária. Em fins Como iremos ver, os artesãos típicos da aldeia indiana foram
da A ntigüidade, a participação nas corporações litúrgicas era os “artesãos domésticos” da aldeia.
até mesmo um a obrigação compulsória e hereditária, ao modo As m ais importantes, embora nem todas, garantiram ao
de um a glebae adscriptio, que prendia o camponês ao solo.
membro individual um a certa subsistência, como ocorreu entre
Finalm ente, havia também os ofícios que representavam “opró
os mestres-artesãos. M as nem todas as castas m onopolizaram a
brio” no Ocidente medieval, e que eram religiosamente dêclas-
totalidade de um comércio, como a corporação pelo menos pro
sés; correspondiam às castas “im undas” da ín d ia. A diferença
curou fazer. A corporação do Ocidente, na Idade M édia, base
fundam ental, porém, entre associações ocupacionais e castas não
é afetada absolutamente por essas circunstâncias. ou-se regularm ente na livre escolha de um mestre pelo apren
diz, e assim possibilitou a transição dos filhos para ocupações
Prim eiro, aquilo que é em parte um a exceção e em parte diversas da paterna, circunstância que jam ais ocorre no sistema
um a conseqüência ocasional para a associação ocupacional é de castas. Essa diferença é fundam ental. Enquanto o fecha
realm ente fundam ental para a casta: a distância m ágica entre mento das corporações para o exterior se tornava mais rigoroso
as castas em suas relações m útuas. Em 1901 nas “Províncias com a redução das oportunidades de renda, entre as castas obser
U nidas” aproximadamente 10 milhões de pessoas (de um total
vou-se freqüentemente o inverso: elas m antêm seu modo de
de aproxim adamente 40 m ilhões) pertenciam a castas com as
vida exigido ritualm ente, e daí o comércio herdado, com mais
quais o contato físico é, ritualm ente, poluidor. N a “Superinten
facilidade quando as oportunidades de renda são abundantes.
dência de M adrasta”, aproxim adam ente 13 milhões de pessoas
(em 52 m ilhões) podiam contam inar outras, mesmo sem con O utra diferença entre corporação e casta é de importância
tato direto, se delas se aproximassem a um a determ inada dis ainda maior. As associações ocupacionais do Ocidente m edie
tância, embora variável. A s corporações mercantis e artesanais val empenharam-se, com freqüência, em lutas violentas entre
da Idade M édia não aceitavam barreiras rituais entre as corpora si, mas ao mesmo tempo evidenciaram um a tendência para a
ções individuais e dos artesãos, à parte a pequena cam ada de fraternização. A m ercan z ia e o popolo na Itália, e os “cidadãos”
pessoas dedicadas nos misteres degradantes, como dissemos no Norte, eram regularm ente federações de associações ocupa
acim a. Os párias e os trabalhadores párias (por exemplo, o cionais. O capiían o dei popolo no Sul e freqüentemente, em
m atador de cavalos e o carrasco), em virtude de suas posições bora nem sempre, o Burgerm eister no Norte eram chefes de
especiais, aproximam-se sociologicamente das castas im undas da organizações das associações ocupacionais, pelo menos de acordo
índ ia. E havia barreiras concretas restringindo o conúbio entre com seu significado original e específico. T ais organizações
456 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
Ín d ia : o b r Âm a n e e a s c a st a s 457

apoderaram-se do poder político, legal ou ilegalm ente. A des de riscos de giz traçados em torno das mesas, e recursos seme
peito de suas formas legais, a cidade em fins da Idade M édia lhantes. À parte o fato de que frente à fome até mesmo as
baseava-se, de fato, na associação de seus cidadãos produtivos. mais vigorosas forças mágicas perdem valor, toda religião rigo
Isso ocorreu pelo menos quando a forma política da cidade rosamente ritualista, como a indiana, hebraica e rom ana, é ca
m edieval encerrava suas características sociológicas m ais im paz de abrir portas traseiras ritualistas, em situações extremas.
portantes. Não obstante, de-ssa situação a um possível comensalismo e fra
ternização, tal como são conhecidos no Ocidente, há um longo
V ia de regra, a estruturação da cidade em associações se caminho. Na verdade, durante a ascensão dos reinos, vemos
realizava pela fraternização das corporações, tal como a polis que o rei convidava várias castas, inclusive os sudras, para a
antiga, em seu m ais íntimo ser, se baseava na constituição das sua mesa. Sentavam-se, porém, pelo menos de acordo com a
associações m ilitares e clãs. Note-se que a base era a “frater concepção clássica, em salas separadas, e o fato de que um a
nização”, ou “associação”. N ão teve im portância secundária casta que pretendia pertencer aos vaixás se sentou entre os sudras
o fato de que toda base da cidade ocidental, durante a A n tigü i no V ellala C harita provocou um famoso conflito (sem ilendá-
dade e a Idade M édia, cam inharam de mãos dadas com o es rio), que teremos de exam inar mais adiante.
tabelecimento de um a comunidade de culto dos cidadãos. A lém
disso, é significativo que a refeição comum dos pry tan es, os sa Vejamos, agora, o Ocidente. Em sua epístola aos gálatas
lões de bebida das corporações mercantis e artesanais, e suas (II, 12, 13 e ss.) Paulo censura Pedro por ter comido em An-
procissões comuns à Igreja, desempenhassem um papel tão gran tioquia com os gentios e por se ter isolado e separado, posterior
de nos documentos oficiais das cidades ocidentais e que os cida mente, sob a influência dos hierosolimitas. “E os outros judeus
dãos medievais tivessem, pelo menos na Ceia do Senhor, o co- separam-se tal como ele.” O fato de não ter sido a acusação
mensalism o mútuo na forma mais festiva. A fraternização de dissimulação, feita a esse apóstolo, apagada mostra talvez tão
supõe, em todas as épocas, o comensalismo; não precisa ser pra claram ente quanto a própria ocorrência a temenda importância
ticada na realidade na vida cotidiana, mas deve ser ritualm ente que o fato teve para os primeiros cristãos. N a verdade, essa
possível. A ordem de castas im pedia isso. derrubada das barreiras rituais contra o comensalismo não sig
nificava um a derrubada do gueto voluntário, que em seus efeitos
A “fraternização” completa 5 das castas foi, e é, impossível é muito m ais incisivo do * ue o gueto compulsório. Significava
porque um dos princípios constituintes das castas foi que deve o desaparecimento da situação dos judeus como povo pária,
ria haver barreiras pelo menos ritualm ente irrem ediáveis contra situação ritualm ente imposta a ele. P ara os cristãos, significava
o comensalismo completo entre as diferentes castas.6 Se o m em a origem da “liberdade” cristã, que Paulo celebrou triunfalm ente,
bro de um a casta inferior olhar, simplesmente, para a refeição repetidas vezes; essa liberdade significava o universalism o da
de um brâmane, está ritualm ente degradando o brâmane. Q uan missão de Paulo, que se sobrepunha a nações e estamentos. A
do a últim a grande fo m e7 lev^u a adm inistração britânica a elim inação de todas as barreiras rituais de nascimento para a
abrir cozinhas públicas acessíveis a todos, os registros mostra comunidade dos eucaristas, tal como realizada em A ntioquia,
ram que pessoas pobres de todas as castas, tinham , movidas pela foi, em relação às condições religiosas prelim inares, a hora da
necessidade, visitado essas cozinhas, embora fosse rigorosa e concepção do “cidadão” ocidental. Isso ocorreu, m uito embora
ritualm ente tabu comer de tal forma, à vista de pessoas que o seu nascimento só se viesse a consubstanciar m ais de mil
não pertenciam à mesma casta. À quela época, as castas rigo anos depois, nas con juration es revolucionárias das cidades me
rosas não se contentaram com a possibilidade de se redim irem dievais, pois sem o comensualismo — em termos cristãos, sem
da degradação m ágica pela penitência ritual. Não obstante, a C eia do Senhor em comum — nenhum a fraternidade à base
sob a ameaça de excomunhão, conseguiram fazer que fossem de juram ento e nenhum corpo de cidadãos m edieval urbano teriam
empregados cozinheiros de alca casta, cujas mãos eram consi sido possíveis.
deradas como ritualm ente lim pas por todas as castas interes
sadas. A lém disso, fizeram que se criasse, com freqüência, um a A ordem de castas da ín d ia constituiu um obstáculo a
espécie de ch am bre separée simbólica, para cada casta, por meio isso, que era insuperável, pelo menos às suas próprias forças.
458 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ÍNDIA: o BRÂMANE E AS CASTAS 459

As castas não são governadas apenas por essa divisão ritual poração”, ou qualquer outra “associação ocupacional”, é revelado
etern a.8 Mesmo não havendo antagonismos de interesses eco de forma notável.
nômicos, existe habitualm ente um a distância profunda entre elas, Se a casta difere fundam entalm ente da corporação e de qu al
e com freqüência também um ciúm e e hostilidade mortais, pre quer outro tipo de associação m eram ente ocupacional, e se a
cisamente porque as castas são totalmente orientadas no sentido essência do sistema de castas está ligad a à classificação social,
da “posição social”. Essa orientação contrasta com as associações como, então, ela se relaciona com o “estamento”, que encontra
ocupacionais do Ocidente. Q ualquer que tenha sido o papel sua expressão autêntica na posição social?
das questões de precedência e etiqueta entre essas associações,
papel esse que foi, com freqüência, considerável, tais questões
jam ais poderiam ter adquirido a significação religiosa que ti 3. C a st a e “E s t a me n t o ”
veram para os hindus.
A s conseqüências dessa diferença foram de considerável im O que é um “estamento” ? As “classes” são grupos de
portância política. Pela sua solidariedade, a associação das cor pessoas que, do ponto de vista de interesses específicos, têm a
porações indianas, a m ah ajan , era um a força que os príncipes mesma posição econômica. A propriedade ou não-propriedade
tinham de levar em consideração. D izia-se: “O príncipe tem de de bens m ateriais ou habilitações definidas constitui a “situação
reconhecer o que as corporações fazem para o povo, quer seja de classe”. O estamento é uma qualificação em junção de hon
êle misericordioso ou cruel”. A s corporações adquiriram privi ras sociais ou falta destas, sendo condicionado principalm ente,
légios dos príncipes, para empréstimos de dinheiro, que são re bem como expresso, através de um estilo de vida específico. A
manescentes de nossas condições m edievais. Os sh resh ti (anciãos) honra social pode resultar diretamente de um a situação de clas
das corporações pertenciam aos nobres m ais poderosos e se clas se, sendo, na m aioria das vezes, determ inada pela m édia da
sificavam em igualdade com a nobreza guerreira e sacerdotal situação de classe dos membros do estamento. Isso, porém, não
de sua época. N as áreas e durante os períodos em que essas ocorre necessariamente. A situação estam ental, por sua vez,
condições predom inaram , o poder das castas não se desenvolveu, influi na situação de classe, pelo fato de que o estilo de vida
e foi em parte obstado e abalado pelas religiões de salvação, que exigido pelos estamentos leva-os a preferir tipos especiais de
eram hostis aos brâmanes. A tendência posterior em favor do propriedade ou empresas lucrativas, e rejeitar outras. U m esta
Governo monopolista do sistema de casta não só aum entou o mento pode ser fechado (estamento por descendência) ou
poder dos brâmanes, mas também o dos príncipes, e rompeu aberto. *
com o poder das corporações. As castas excluíam qualquer Ora, um a casta é, sem dúvida, um estamento fechado, pois
solidariedade e qualquer fraternização, politicamente poderosa, todas as obrigações e barreiras que a participação num esta
dos cidadãos e dos ofícios. Se o príncipe observasse as tra mento encerra também existem num a casta, na qual são in
dições rituais e as pretensões sociais baseadas nelas, que exis tensificadas em grau extremo. O Ocidente conheceu “estados”
tiram entre as castas m ais im portantes para ele, podia não só legalm ente fechados, no sentido de que o interm atrim ônio com
jogá-las umas contra as outras — o que fez — como nada não-membros do grupo estava ausente. M as, em geral, essa
tinha a temer delas, especialmente quando os brâmanes esta barreira ao conúbio só era válida na m edida em que os m atri
vam do seu lado. Assim, não é difícil, mesmo a esta altura, mônios contratados a despeito da regra constituíam m ésalh an -
im aginar os interesses políticos que influíram durante a trans
formação em Governo monopolista do sistema de castas. Essa
* É incorreto considerar o “estamento ocupacional” como uma
transformação levou a estrutura social da ín d ia — que durante alternativa. O “estilo de v id a”, e não a ocupação, é sempre deci
certo tempo pareceu aproxim ar-se do um bral do desenvolvimento sivo. Esse estilo pode exigir um a certa profissão (por exemplo,
urbano europeu — a um a evolução que a afastava de qualquer o serviço m ilitar), mas a natureza do serviço ocupacional resultan
possibilidade semelhante. Nessas diferenças histórico-mundiais te das pretensões de um estilo de vida continua sendo decisiva (por
exemplo, o serviço m ilitar como cavaleiro e não como m ercenário).
o contraste fundam entalm ente im portante entre “casta” e “cor
460 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA Ín d i a : o b r a ma n e e a s c a st a s 461

ces, com a conseqüência de que os filhos do casamento “infe mais elevadas, ele se lim itava à sua própria casta. A lém disso,
rior” seguiam a posição social do cônjuge menos importante. em virtude da competição das primeiras, esse lim itado mercado
A Europa ainda reconhece essas barreiras de estamento para não estava, de modo algum , monopohsticamente assegurado às
a alta nobreza. A A m érica a adm ite entre brancos e pretos moças da casta superior. E isso fez que as mulheres de casta
(inclusive todos os sangues mistos) nos estados sulistas da União. inferior, em virtude da procura geral de m ulheres, tivessem
M as na A m érica tais barreiras significam que o casamento é altos preços como noivas. E foi em conseqüência da falta de
aboluto e legalm ente inadmissível, à parte o fato de que tal mulheres, em parte, que se originou a poliandria. A forma
interm atrim ônio provocaria um boicote social. ção de cartéis de matrim ônio entre as aldeias ou entre associa
ções especiais, Golis, como se encontram freqüentemente, por
Entre as castas hindus, no presente, não só o interm atrim ô exemplo, entre os vânias (m ercadores) em G ujarat e também
nio entre castas, como até mesmo entre subcastas, é abolido de entre as castas camponesas, é uma contramedida contra a hiper-
forma habitualm ente absoluta. Já nos “Livros da L ei” os san gam ia dos ricos e moradores da cidade, que elevava o preço
gues mistos de diferentes castas pertencem a um a casta inferior das noivas para as classes médias e para a população ru r a l.11
à de qualquer dos pais, e em caso algum pertencem a uma
das três castas superiores ( “nascidas duas vezes”). U m a situa Entre as castas superiores, porém, a venda de moças a um
ção diferente, porém, predom inava nos dias antigos e ainda noivo de classe era difícil e tornava-se ainda m ais difícil na
existe hoje para as castas mais importantes. Hoje, encontramos m edida em que a incapacidade de encontrar casamento era con
habitualm ente conúbios totais entre subcastas da mesma casta, siderada um a desgraça tanto para a moça como para seus pais.
bem como entre castas de igual posição social.9 Nos tempos O noivo tinha de ser comprado pelos parentes com dotes incri
antigos, isso sem dúvida aconteceu com mais freqüência. Acim a velmente altos, e seu recrutamento (através de casamenteiros
de tudo, o conúbio original não estava excluído de forma abso profissionais) tornara-se a preocupação m ais importante dos pais.
luta, evidentemente, predominando em lugar dele a hiperga- Até mesmo durante a infância da moça, isso constituía motivo
m ia .10 O casamento entre um a moça de casta superior e um de sofrimento para os pais. Finalm ente, considerava-se um ver
homem de casta inferior era considerado como um a ofensa à dadeiro “pecado” para um a m enina alcançar a puberdade sem
honra estam ental, por parte da fam ília da moça. M as ter uma estar casada. Isso levou a resultados grotescos: por exemplo,
m ulher de casta inferior não era considerado como ofensa, e as práticas m atrim oniais dos brâmanes culinos, que gozam de
seus filhos não eram considerados como degradados, ou, pelo certa fam a. Eles são procurados como noivos; fizeram um
menos, considerados apenas parcialm ente degradados. Segundo negócio do casamento contratual in absen tia, a pedido e por
a lei da herança, que é certamente produto de um a época pos dinheiro, com moças que assim escapavam à ignom ínia do esta
terior, os filhos ocupavam o segundo lugar na herança (tal do de solteira. As moças, porém, continuavam com as suas
como em Israel a sentença de que “os filhos do servo” — e fam ílias e só conheciam o noivo se os negócios ou outras razões
da m ulher estrangeira — “não devem herdar em Israel” fora o levassem acidentalm ente a um lugar onde ele tivesse um a (ou
a lei de um período posterior, como acontece em todos os ou várias) dessas “esposas”. Nesse caso, mostra seu contrato de
tros lugares). casamento ao sogro e usa a casa deste como um “hotel barato”.
A lém disso, sem qualquer despesa, pode desfrutar a môça, que
O interesse dos homens da cam ada superior na legalidade
é considerada como sua m ulher “legítim a”.
da poligam ia, que tinham condições econômicas de m anter, conti
nuou existindo, mesmo depois de term inada a aguda escassez Em outros lugares, o infanticídio é habitualm ente o resul
de m ulheres entre os guerreiros invasores. Essas escassezes for tado de oportunidades restritas de sobrevivência entre as popu
çaram , em toda parte, os conquistadores a desposar moças das lações pobres. M as, na ín d ia, o infanticídio fem inino era ins
populações dominadas. O resultado na índia, porém, foi que tituído precisamente pelas castas superiores,12 e existia junta
as moças de casta inferior tiveram um grande mercado m atri mente com o casamento infantil. Este determ inou, primeiro, o
m onial, e quanto mais inferior a casta, tanto maior era o seu fato de que na ín d ia algum as m eninas nos grupos etários de
mercado m atrim onial; ao passo que, para as moças das castas 5 a 10 anos já fossem viúvas e, portanto, continuassem viúvas por
462 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA Ín d ia : o b r â m a n e e a s c a st a s 463

toda a vida. Isso tem relação com o celibato das viúvas, ins na água ( \ach ch a) , ou de ter sido o alim ento cozido em m an
tituição que, na ín d ia como em outros lugares, existia junta teiga derretida {p a \ \ a ) . O primeiro é m ais exclusivo. A ques
m ente com o suicídio das viúvas. Este veio de um hábito cava- tão de com quem se pode fum ar está intim am ente relacionada
leiresco: o enterro dos pertences pessoais, especialmente as m u com as normas de comensalidade no sentido m ais estreito. Ori
lheres, com o senhor morto. Segundo, os casamentos de moças ginalm ente, fum ava-se num mesmo cachimbo, que era passado
im aturas provocou um a alta taxa de mortalidade de parto. de mão em m ão; portanto, fum ar em conjunto dependia do
Tudo isso deixa claro que, no setor do conúbio, a casta grau de pureza ritu al do companheiro. Todas essas regras, po
intensifica os princípios de estamentos de forma extrema. Hoje, rém, pertencem a um a e mesma categoria de um conjunto de
a hipergam ia existe como um domínio geral de casta apenas normas muito m ais amplo, todas características de estamentos
dentro da mesma casta, e ainda assim há um a especialidade da de um a posição ritu al de casta.
casta R ajput e outras que se aproxim am dos Rajputs socialmen A posição social de todas as castas depende da questão de
te, ou de seu antigo território tribal. É o que ocorre, por exem quem as castas m ais elevadas aceitam \ach ch a e p a\ k a e com
plo, com os Bhat, K hatri, K arw ar, Gojar e Jat. Não obstante, quem jantam e fum am . Entre as castas hindus os brâmanes
a regra é a rigorosa endogam ia da casta e da subcasta; no caso estão quase sempre na cúpula, em tais aspectos. M as as ques
da últim a, essa regra só é desobedecida pelos cartéis matrim o tões seguintes têm importância igual às já form uladas, e estão
niais em geral. intim am ente ligadas a elas: realiza o brâm ane os serviços re
As norm as de comensalismo são semelhantes às do conú ligiosos dos membros de um a casta? E possivelmente: a qual
bio: um estamento não tem relações com os que lhe são infe das várias subcastas, avaliadas de forma diferente, pertence o
riores socialmente. No Sul dos Estados Unidos, todo intercâmbio brâm ane? T al como ele é a últim a, embora não a única, auto
social entre um branco e um negro resultaria no boicote do ridade capaz de determ inar, pelo seu comportamento em ques
primeiro. Como um “estamento”, a “casta” intensifica e trans tões de comensalismo, a posição de um a casta, assim ele deter
m ina também as questões de serviços. O barbeiro de um a
põe esse fechamento social para a esfera da religião, ou antes,
casta ritualm ente lim pa serve, incondicionalmente, apenas certas
da m ágica. Os antigos conceitos de “tabu” e suas aplicações
castas. Ele pode barbear e “m anicurar” outros, mas não pode
sociais eram , na verdade, muito difundidos nas proximidades
servir-lhes de “pedicuro”. E não serve, absolutamente, a deter
geográficas da ín d ia e bem podem ter contribuído para esse
m inadas castas. Outros trabalhadores assalariados, especialmen
processo. A tais tabus foram acrescentados ritualismos totê-
te os lavadores de roupa, comportam-se de form a semelhante.
micos e, finalm ente, noções da im pureza m ágica de certas ati
H abitualm ente, embora com algum as exceções, a comensalidade
vidades, tais como existiram em toda parte com um conteúdo
está relacionada com casta; o conúbio está quase sempre rela
e intensidade que variaram muito.
cionado com a subcasta; ao passo que habitualm ente, embora
As regras da dieta hinduísta não são exatamente simples e com exceção, os serviços pelos sacerdores e trabalhadores assa
de form a algum a se relacionam apenas com as questões: lariados estão relacionados com a comensalidade.
1) o que pode ser comido, 2) quem pode comer junto na mes A análise acim a pode bastar para demonstrar a complexi
m a mesa. Esses dois pontos são cobertos pelas regras rigorosas, dade extraordinária das relações de posição do sistema de castas.
restritas principalm ente aos membros da mesma casta. As re Tam bém pode mostrar os fatores pelos quais a casta difere de
gras de dieta relacionam-se, acim a de tudo, com mais estas ques um a ordem estam ental comum. A ordem de castas é orientada
tões: 3) de que mão se pode tom ar alimentos de um certo tipo? religiosa e ritualm ente, em proporções que não foram alcança
P ara as casas nobres, isso significa, acim a de tudo: Quem pode das nem mesmo aproximadamente, em outros lugares. Se a
ser usado como cozinheiro? E ainda outra pergunta: 4) Quem expressão “igreja” não fosse inaplicável ao hinduísm o, talvez
deve ser excluído até mesmo da simples vista da com ida? Com pudéssemos falar de um a ordem de posições de Estamentos-
3) há um a diferença, que devemos assinalar, entre alimentos -Igreja.
e bebidas, dependendo de ter sido a água e o alim ento cozido
464 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA ín d ia : o b r â m a n e e a s c a st a s 465

4. A Or dem de C l a ssif ic a ç ã o S o c ia l d a s C a st a s e m G e r a l não obstante no todo ele pode ser bem mantido. Dentro desses
agrupamentos poderíamos fazer novas distinções de posição de
Quando o Censo da ín d ia (1901) procurou ordenar pela casta, mas essas graduações apresentariam características extre
classificação as castas hindus contemporâneas nas superintendên mamente variadas: entre as castas superiores, o critério seria a
cias — duas a três m il, ou mesmo mais, segundo o método de correção das práticas de vida relacionadas com a organização
contagem usado — certos grupos de castas foram estabelecidos, do clã, endogam ia, casamento infantil, celibato das viúvas, cre
sendo indistinguíveis entre si, segundo os critérios seguintes: mação dos mortos, sacrifício ancestral, alimentos e bebidas, e o
Prim eiro, vêm os brâmanes, e, em seguida, um a série de intercâmbio social com as castas imundas. Entre as castas infe
castas que, certo ou errado, pretendem pertencer às duas ou riores, teríamos de distinguir entre a posição dos brâmanes que
tras castas “duas vezes nascidas”, da teoria clássica: xátria e ainda estão prontos a servi-las ou os que já não o fazem, depen
vaixá. P ara demonstrar isso, elas pretendem o direito de usar dendo de aceitarem água de suas mãos outras castas além dos
a “cinta sagrada”. Trata-se de um direito que algum as delas brâmanes. Em todos esses casos, não é de forma algum a raro
só redescobriram recentemente e que, n a opinião das castas que as castas de posição inferior criem exigências m ais rigorosas
brâmanes, que são de posição superior, certamente pertencia do que as castas que são consideradas como de maior posição.
apenas a alguns membros das castas “nascidas duas vezes”. Mas A variedade extraordinária dessas regras de classificação proíbe
tão logo o direito de um a casta a usar a cinta sagrada é reconhe seu maior exame aqui. A aceitação ou rejeição da carne, pelo
cido, essa casta é aceita, incondicionalmente, como sendo abso menos da carne de vaca, é decisiva para a posição de casta, e
lutam ente “lim pa”, ritualm ente. Dessa casta, os brâmanes de constitui portanto um sintoma dela, embora incerto. Os tipos
alta casta aceitam qualquer tipo de alimento. Em todo o sis de ocupação e renda, que encerram as conseqüências de maior
tema, segue-se um terceiro grupo de castas. São incluídas entre alcance para o conúbio, comensalismo e classificação ritual, são
os satsudras, os “limpos sudras” da doutrina clássica. N a ín d ia decisivos no caso de todas as castas. Falarem os mais adiante
dêsse aspecto.
setentrional e central, há os Jalach aran iy a, ou seja, castas que po
dem dar água a um brâm ane e de cuja lota (pote de água) o A lém de todos esses critérios encontramos um a massa de
brâm ane aceita água. Próximos dele encontram-se as castas traços in d ivid u ais.13 Mesmo, porém, que as levássemos tôdas
na ín d ia setentrional e central cuja água um brâmane nem em conta, não poderíamos estabelecer um a lista de castas se
sempre aceita (isto é, a aceitação ou não-aceitação possivelmente gundo a classificação, simplesmente porque esta difere absolu
depende da posição do brâm ane) ou cuja água jam ais aceitaria tamente de lugar para lugar, e porque somente algum as das
( Jalaby abah ary a) . O barbeiro de alta casta não as serve incon castas são universalm ente difundidas e porque muitas delas, es
dicionalmente (não presta serviços de pedicuro) e o lavador não tando representadas apenas localmente, não têm um a classifica
lhes lava a roupa. M as não são considerados como absoluta ção de posição interlocal. Além disso, há grandes diferenças
mente “im undos”, ritualm ente. São os sudras, no sentido habi de situação entre as subcastas de um a mesma casta, especial
tual no qual os ensinamentos clássicos se referem a eles. F in al mente entre as superiores, m as também entre algum as das cas
mente, há castas que são consideradas “im undas”. Todos os tas interm ediárias. Teríam os de colocar, com freqüência, as
templos estão fechados para elas, e nenhum brâm ane e nenhum subcastas individuais muito atrás de outra casta que, em outros
barbeiro as serve. Devem viver fora da aldeia distrital e con aspectos, poderia ser considerada como inferior.
tam inam pelo contato ou, no Su l da índ ia, até mesmo pela sua Em geral, surgiu (para os trabalhadores do censo) o pro
presença à distância (dois metros, entre os Paraiy an s). Todas blema seguinte: que unidade pode ser realm ente considerada
essas restrições estão relacionadas com as castas que, de acordo um a “casta” ? E)entro de um a e mesma “casta”, isto é, um
com a doutrina clássica, se originaram de relações sexuais ritu al grupo considerado como casta na tradição hindu, não há neces
mente proibidas, entre membros de castas diferentes. sariamente o conúbio e nem sempre o comensalismo pleno. O
Embora esse agrupam ento de castas não se observe ig u al conúbio só ocorre num as poucas castas, e mesmo com elas há
m ente por toda a ín d ia (há, na verdade, exceções notáveis), reservas. A “subcasta” é um a unidade predom inantemente en-
30
466 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA ÍN D IA : O B R Â M A N E E AS C A ST A S 467

dógam a, e em certas castas há várias centenas de subcastas. Es tilista” — num sentido semelhante ao dos Estados territoriais
tas são castas puramente locais (distribuídas por distritos de no início dos tempos modernos. De qualquer modo, no que se
tamanhos variados), e (o u) constituem associações delim itadas e relaciona com a e s t r a t i f i c a ç ã o S G c ia l, não só a p o s i ç ã o do artesão
especialmente planejadas de acordo com a descendência real ou da aldeia, mas também a ordem de castas como um todo, deve
suposta, o tipo presente ou anterior de ocupação, ou outras dife ser vista como o veículo da estabilidade. N ão se deve im aginar
renças no estilo de vida. Consideram-se como partes da casta que esse efeito tenha sido demasiado direto. Poderíamos crer,
e além de seus próprios nomes levam o nome da casta. Podem por exemplo, que os antagonismos rituais de casta tinham im
ser legitim adas, nisso, por um a divisão da casta, ou pela re possibilitado o desenvolvimento de “empresas de grande escala”,
cepção por ela, ou simplesmente por um a usurpação de posi com um a divisão do trabalho na mesma oficina, e poderíamos
ção. Somente as subcastas realm ente levam um a vida de regu também ju lgar que esSe aspecto foi decisivo. M as não foi esse
lamentação unificada, e somente elas são organizadas — na o caso.
m edida em que a organização de casta existe. A própria casta
A lei da casta mostrara-se tão elástica frente às necessidades
designa, com freqüência, apenas um a reivindicação social for
da concentração de trabalho nas oficinas quanto frente a uma
m ulada por essas associações fechadas; e, em ocasiões raras, a necessidade de concentração do trabalho e dos serviços na casa
casta se caracteriza por determ inadas organizações, comuns a nobre. Todos os servos domésticos exigidos pelas castas supe
todas as subcastas. M ais freqüentemente, ela tem certas carac
riores eram ritualm ente limpos, como já vimos. O princípio,
terísticas de conduta de vida tradicionalm ente comuns a tôdas “a mão do artesão está sempre lim pa em sua ocupação”, 14 é
as subcastas. Não obstante, em geral a unidade de casta existe um a concessão semelhante à necessidade de utilizar serviços
lado a lado com a unidade das subcastas. H á sanções contra o
pessoais, ou m andar fazer trabalhos por trabalhadores assala
m atrim ônio e o comensalismo fora da casta, que são m ais for riados que não pertencem à fam ulagem doméstica ou por outros
tes que as impostas aos membros de diferentes subcastas den itinerantes. D a m esm a forma, a o ficin a15 ( ergasterium ) era
tro da mesma casta. Tam bém , tal como as novas subcastas
reconhecida como “lim pa”. D aí nenhum fator ritual se ter
se formam facilmente, as barreiras entre elas podem ser mais
colocado no caminho do uso conjunto de diferentes castas na
instáveis, ao passo que, entre as com unidades reconhecidas como
mesma sala de trabalho, da mesma forma que a proibição do
castas, essas barreiras são m antidas com extraordinária perse
juro, durante a Idade M édia, pouco prejudicou o aparecimento
verança. ..
do capital industrial que não tomou nem mesmo a forma de
investimento a juro fixo. A essência do obstáculo não está nas
5. C a st a s e T r a d ic io n a l ism o dificuldades particulares como tal, que cada um dos grandes
sistemas religiosos, por sua vez, colocou, ou pareceu colocar, à
K. M arx caracterizou a posição peculiar do artesão na al economia moderna. A essência da obstrução estava antes no
deia indiana — sua dependência do pagam ento fixo em m er “espírito” da totalidade do sistema. N as épocas modernas nem
cadorias, ao invés da produção para o mercado — como a razão sempre foi fácil, mas finalm ente tornou-se possível, em pregar
da específica “estabilidade dos povos asiáticos”. Nisto, M arx o trabalho de casta indiano nas fábricas modernas. E, antes
estava certo. disso, foi mesmo possível explorar o trabalho dos artesãos in
A lém do antigo artesão da aldeia, porém, havia também dianos de forma capitalista, tal como se fazia habitualm ente
o comerciante e o artesão urbano; este últim o trabalhava para nas áreas coloniais, depois que o mecanismo acabado do capita
o mercado ou dependia economicamente das corporações m er lismo moderno pôde ser importado da Europa. Apesar de tudo
cantis, como no Ocidente. A ín d ia sempre foi predom inante isso, ainda devemos considerar extrem am ente improvável que
mente um país de aldeias. N ão obstante, o início das cidades a m oderna organização do capitalismo industrial se teria origi
também foi modesto no Ocidente, especialmente no interior, e nado à base do sistema de castas. U m a lei ritual na qual toda
a posição do mercado urbano na ín d ia foi regulam entada pelos modificação de ocupação, toda modificação da técnica de traba
príncipes de um a forma que, sob m uitos aspectos, era “m ercan lho, podia resultar num a degradação ritual, certamente não é
468 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA ín d ia : o b r â m a n e e a s c a st a s 469

capaz dc dar origem às revoluções econômica e técnica por mente m ais industrioso do que o artesão indiano, que é de fé
si própria, ou mesmo facilitar a prim eira germinação do capi islâmica. E, no todo, a organização de casta hinduísta desen
talism o em seu seio. volveu com freqüência um a grande intensidade de trabalho
O tradicionalismo do artesão, grande em si mesmo, foi ne e de acum ulação de propriedade, dentro das antigas castas
cessariamente intensificado ao extremo pela ordem de castas. O ocupacionais. A intensidade do trabalho predominou mais en
capital comercial, em sua tentativa de organizar o trabalho in tre as castas artesanais do que entre as castas agrícolas antigas.
dustrial à base do sistema de produção, teve de enfrentar um a Incidentalmente, os K u n b is (por exemplo, os do Sul da ín d ia)
resistência, essencialmente m ais forte na ín d ia do que no Oci conseguem acum ular m uita riqueza, e hoje em dia, na verdade,
dente. Os próprios comerciantes, em sua solidão ritual, per essa acum ulação adquire formas modernas.
m aneciam nas barracas da classe m ercantil oriental típica, que O capitalismo industrial moderno, em particular, a fábrica,
em si jam ais criara um a m oderna organização capitalista do entrou n a ín d ia sob a administração britânica e com incen
trabalho. Era como se apenas os diferentes povos hóspedes, como tivos fortes. M as, relativam ente falando, como era pequena a
os judeus, ritualm ente exclusivos entre si e para com terceiros, escala e grandes as dificuldades! Depois de várias centenas de
pudessem seguir seus ramos na área econômica. A lgum as das anos de domínio inglês há hoje apenas cerca de 980.000 traba
grandes castas mercantis hinduístas, particularm ente, por exem lhadores industriais, ou seja, cerca de um têrço de 1% da popu
plo, a vânia, foram cham adas de os “judeus da ín d ia”, e, nesse lação .18 A lém disso, o recrutamento do trabalho é difícil, mes
sentido negativo, com razão. Eram , em parte, especialistas em mo nas indústrias de m anufatura com os salários m ais elevados.
conseguir lucros inescrupulosos. (E m Calcutá, a mão-de-obra freqüentemente tem de ser recru
H oje, é singularm ente evidente um ritm o considerável de tada no exterior. N um a aldeia próxima, nem mesmo um quin
acum ulação de riqueza entre as castas antes consideradas como to da população fala a lín gu a nativa de B engala.) Somente os
socialmente degradadas ou im undas e que, portanto, estavam atos m ais recentes para a proteção do trabalho tornaram o em
sujeitas a m uito poucas exigências “éticas” (em nosso sentido). prego nas fábricas mais popular. O trabalho fem inino só é en
N a acum ulação da riqueza, essas castas competem com outras contrado esporadicamente, e recrutado entre as castas m ais des
que anteriormente monopolizavam as posições de escribas, fun prezadas, embora existam indústrias têxteis nas quais as m u
cionários ou coletores de impostos arrendados, bem como opor lheres podem realizar duas vezes m ais do que os homens.
tunidades semelhantes de obter rendim entos determinados poli O trabalho fabril indiano mostra extamente os traços tra
ticam ente, típicos dos Estados patrim oniais. A lguns dos em dicionalistas que também caracterizaram o trabalho na Europa
presários capitalistas também vieram das castas mercantis. Mas durante o período inicial do capitalismo. Os trabalhadores de
na empresa capitalista só podiam acom panhar as castas dos le sejam ganhar m ais dinheiro rapidam ente a fim de se estabele
trados na m edida em que adquiriam a “educação”, então neces cerem independentemente. U m aumento nos salários não sig
sária — como observamos ocasionalmente acim a .16 O treina nifica, para eles, incentivo para trabalhar m ais ou para um m e
mento para o comércio é, entre eles, em parte tão intenso — lhor padrão de vida, mas o inverso. Eles passam a trabalhar
pelo que nos perm item deduzir as informações — que seu “dom” menos porque podem prescindir do trabalho, ou suas mulheres
específico para o comércio não deve, absolutamente, basear-se se enfeitam mais. F altar ao trabalho de acordo com a vontade
é aceito como fato natural, e o trabalhador retorna à sua aldeia
em nenhum a “disposição natural”. 17 M as não temos indica
natal com sua m agra poupança, tão logo possível.19 Ele é
ções de que, por si mesmos, eles pudessem ter criado a emprêsa
simplesm ente um trabalhador casual. “D isciplina”, no sentido
racional do capitalismo moderno.
europeu, é um a idéia desconhecida para ele. D aí, apesar de
Finalm ente, o capitalismo moderno sem dúvida jam ais se um salário quatro vezes m ais baixo, a concorrência com a
teria originado dos círculos dos ofícios totalm ente tradiciona Europa só é m antida com facilidade na indústria têxtil, já que
listas da índ ia. O artesão hinduísta é, não obstante, notório se torna necessário um número 2,5 vezes maior de trabalhadores
pela sua industriosidade extrem a; é considerado como essencial e um a supervisão mais intensa. U m a vantagem dos empresá-
470 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

rios é que a divisão de casta dos trabalhadores tornou impos


sível, até agora, a organização sindical e as greves. Como obser
vamos, o trabalho na oficina é “lim po” e realizado em conjunto.
(São necessárias apenas canecas separadas na fonte de água
potável, pelo menos um a para os hindus e outra para os islam i-
tas, e, nos dormitórios, os homens da mesma casta devem ser xvn. Os Letrados Chineses
colocados juntos.) A fraternização dos trabalhadores, porém,
foi (até agora) tão pouco possível quanto um a con iuratio dos
cidadãos.20

D u r a n t e d o z e s Éc u l o s , a posição social na C hina foi deter


m inada m ais pelas qualificações para a ocupação de cargos do
que pela riqueza. Essa qualificação, por sua vez, era determ i
nada pela educação, e especialmente pelos exames. A China
fizera da educação literária a m edida do prestígio social de
modo o m ais exclusivo, muito mais do que na Europa durante
o período dos hum anistas, ou na A lem anha. Mesmo durante
o período dos Estados Belicosos, a cam ada de aspirantes a car
gos que tinham educação literária — e originalm ente isto sig
nificava apenas que tinham conhecimento da escrita — estendia-se
por todos os estados individuais. Os letrados foram os porta
dores do progresso no sentido de um a adm inistração racional
e de toda “inteligência”.
T al como ocorreu com o bramanismo na ín d ia, os letrados
chineses foram os expoentes decisivos da unidade da cultura.
Os territórios (bem como os enclaves) não-adm inistrados por
funcionários de educação literária, segundo o modelo da idéia
ortodoxa do Estado, eram considerados heterodoxos e bárbaros,
da mesma forma que os territórios tribais, dentro do território
do hinduísm o mas não-regulamentados pelos brâmanes, ou co
mo as áreas não-organizadas como polis pelos gregos. A es
trutura cada vez m ais burocrática das organizações políticas
dos estados chineses e de seus veículos deu à tradição literária
da C hina a sua m arca característica. D urante mais de dois
m il anos, os letrados foram, claram ente, a cam ada dominante
na C hina, e ainda o são. Seu domínio foi ininterrupto, e

De “Konfuzianismus und Taoismus”, capítulo 5, D er L itera


tenstand, em G esam m elte A u fsa etze zu r R eligionssoziologie, vol. I,
pp. 395-430. Este capítulo foi originalm ente incluído na série do
A rc h iv “Die W irtschaftsethik der W eltreligionen” — ver nota ao
capítulo II.
472 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA OS LETRADO S C H IN E S E S 473

contestado por vezes com vigor, embora sempre renovado e Astrologia. M as não era sua tarefa ajudar pessoas privadas
am pliado. Segundo os Anais, o Imperador dirigiu-se aos le através da feitiçaria, curar os doentes, por exemplo, como faz
trados e apenas a eles, como “M eus Senhores”, pela prim eira o mágico. P ara esses objetivos havia profissões especiais, que
vez em 1496.1 discutiremos m ais adiante. Certamente, a significação da m á
Foi de imensa importância para a forma tomada pela cul gica na C hina, como em toda parte, era um a pressuposição
tura chinesa em sua evolução o fato de que essa camada des entendida por si mesma. Não obstante, no que se relacionava
tacada de intelectuais jam ais tivesse adquirido o caráter dos com os interesses da comunidade, cabia aos seus representantes
clérigos do cristianismo ou do islã, ou dos rabinos judaicos, ou influenciar os espíritos.
dos brâmames indianos, ou dos sacerdotes do Egito antigo, ou O imperador como o pontífice supremo, bem como os prín
dos escribas egípcios ou indianos. É significativo que a cam a cipes, funcionavam para a comunidade política. E, quanto à
da dos letrados chineses, embora desenvolvida pelo treinamento fam ília, o chefe do clã e chefe da casa influenciava os espíritos.
ritual, tivesse origem num a educação para um a nobreza leiga. O destino da comunidade, acima de tudo a colheita, foi influen
Os “letrados” do período feudal, então oficialm ente chamados ciado, desde os tempos antigos, pelos meios racionais, ou seja,
de pu o ch e, ou seja, “bibliotecas vivas”, eram, em prim eiro pela regulam entação da água; e, portanto, a “ordem ” correta de
lugar, eficientes no ritualism o. N ão nasceram, porém, dos clãs adm inistração foi sempre o meio básico de influenciar o mundo
de um a nobreza sacerdotal, tal como os clãs R ish i do R ig-V ed a, dos espíritos.
ou de um a corporação de feiticeiros, como ocorria, com toda
a probabilidade, com os brâmanes do A th arv a-V eda. À parte o conhecimento das escrituras como um meio de
discernir a tradição, o conhecimento do calendário e das es
N a C hina, os letrados remontam , em sua m aioria pelo
trelas era necessário para discernir a vontade celestial e, acima
menos, aos descendentes, provavelmente filhos mais novos, de de tudo, para o conhecimento do dies fasti e n efasti, e parece
fam ílias feudais que haviam adquirido um a educação literária, que a posição dos letrados também evoluiu do papel dignificado
especialmente o conhecimento da escrita, e cuja posição social do astrólogo da corte. * Os escribas, e somente eles, podiam re
se baseava nesse conhecimento da escrita e da literatura. U m conhecer essa ordem importante ritualm ente (e originalm ente
plebeu podia também adquirir um conhecimento da escrita,
também por meio de horóscopos, com toda a probabilidade) e
embora, considerando o sistema chinês de escrita, fosse difícil.
aconselhar, com base nisso, as autoridades políticas adequadas.
M as, se o plebeu conseguisse, partilhava do prestígio de q ual
U m a anedota dos A n ais 5 mostra os resultados de forma no
quer outro erudito. Mesmo no período feudal, a cam ada dos tável.
letrados não era hereditária ou exclusiva — outro contraste com
os brâmanes. N o Estado feudal de W ei, um general comprovado — U
A té épocas históricas recentes, a educação védica baseava-se K l, suposto autor de um livro didático sobre a estratégia ritual
na transm issão oral; abom inava a fixação da tradição na es mente correta, que foi autoridade até nossa época — e um
crita, posição de que todas as corporações de mágicos profis homem letrado concorreram ao cargo de prim eiro-m inistro. Sur
sionais se inclinam a partilhar. Em contraste com isso, n a C hina giu um a disputa violenta entre os dois, depois que o letrado foi
a escrita dos livros rituais, do calendário e dos A n ais remonta nomeado para o cargo. Ele adm itiu im ediatam ente que não
às épocas pré-históricas.2 A té mesmo na mais antiga tradição, podia d irigir guerras nem dominar tarefas políticas semelhan
as escrituras antigas eram consideradas como objetos m ágicos,3 tes ao modo do general. Mas quando o general se declarou,
e os homens habituados a eles eram considerados como detento ao ouvir isso, como homem melhor qualificado, o letrado obser
res de carism a mágico. Como iremos ver, forma fatos persisten vou que um a revolução ameaçava a dinastia, ao que o general
tes na C hina. O prestígio dos letrados não consistiu num caris adm itiu, sem hesitação, que o letrado era o melhor homem para
m a de poderes mágicos de feitiçaria, mas antes num conheci im pedi-la.
mento da escrita e da literatura como tal. T alvez seu prestígio Somente o adepto das escritas e da tradição era considerado
se baseasse originalm ente num acréscimo ao conhecimento da competente para ordenar, corretamente, a adm inistração interna
474 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA o s LETRADO S C H IN E S E S 475

e o comportamento de vida carismaticam ente correto do prín construção de fortificações pelo Governo, recursos pelos quais
cipe, ritual e politicamente. No m ais agudo contraste com os os príncipes se tornavam “senhores de suas terras”. 11
profetas judeus, que eram essencialmente interessados na polí Essa relação íntim a entre os letrados e o serviço ao prín
tica externa, os políticos-letrados chineses, treinados no ritual, cipe surgiu durante a luta do príncipe com os poderes feudais.
orientavam-se prim ordialm ente para com os problemas de adm i Ela distingue os letrados chineses dos leigos educados da H éla-
nistração interna, mesmo que esses problemas envolvessem um a de, bem como da ín d ia antiga (x átrias). Torna-os semelhantes
política de poder absoluta, e, embora estando encarregados da aos brâmanes, dos quais, porém, diferem muito em sua subordi
correspondência do príncipe e da chancelaria, eles podiam estar nação ritualista sob um pontífice cesaropapista. A lém disso,
profundamente envolvidos, em caráter pessoal, na orientação da nenhum a ordem de casta existiu na C hina, fato intim am ente
diplomacia. relacionado com a educação literária e a subordinação sob um
Essa orientação constante para com os problemas da adm i pontífice.
nistração “correta” do Estado determinou um racionalismo prá A relação entre os letrados e o cargo mudou de natureza
tico e político de longo alcance, entre a cam ada intelectual do [no curso do tem po]. No período dos Estados feudais, as vá
período feudal. Em contraste com o tradicionalismo rigoroso rias cortes competiam pelos serviços dos letrados, que buscavam
do período final, os A n ais ocasionalmente mostram os letrados oportunidades de poder e, não devemos esquecer, de re n d a.12
como audaciosos inovadores políticos.6 Seu orgulho pela edu T oda um a cam ada de “sofistas” errantes ( ch e-she ) surgiu, com
cação não conhecia lim ite s,7 e os príncipes — pelo menos de paráveis aos cavaleiros guerreiros e aos eruditos da Idade M édia
acordo com a disposição dos A n ais — prestaram-lhes grande ocidental. Como iremos ver, houve também letrados chineses
d eferência.8 Suas relações íntim as com o serviço dos príncipes que, em princípio, permaneceram desligados de cargos. Essa
patrim oniais existiram desde as épocas antigas e foram decisivas cam ada livre e móvel dos letrados eram os portadores das es
para o caráter peculiar dos letrados. colas e antagonismos filosóficos, situação comparável à da índia,
da A ntigüidade helénica e da Idade M édia, com seus monges
A origem dos letrados está envolta em sombras. Eviden
e eruditos. Não obstante, os letrados como tal consideravam-se
temente, eles eram os áu gu res chineses. O caráter pontifical
como um estamento unitário. Pretendiam honras estamentais
cesaropapista do poder im perial foi decisivo para a sua posição,
com uns13 e estavam unidos no sentimento de serem os únicos
e o caráter da literatura chinesa foi também determ inado por depositários da cultura homogênea da China.
ele. Houve A n ais oficiais, hinos de guerra e sacrifício m agica
mente comprovados, calendários, bem como livros de ritual e A relação entre os letrados chineses e o serviço ao príncipe,
cerimônia. Com seu conhecimento, os letrados apoiaram o como a fonte norm al de renda, distinguiu-os como estamento,
dos filósofos da A ntigüidade, e, pelo menos, do leigo educado
caráter do Estado, que era da natureza de um a instituição ecle
da ín d ia, que, no todo, estavam socialmente ligados a setores
siástica e compulsória; aceitavam o Estado como um pressuposto
distantes de qualquer cargo. Em geral, os letrados chineses lu
axiomático.
tavam pelos cargos junto ao príncipe como um a fonte de renda
Em sua literatura, os letrados criaram o conceito de “cargo”, e como um setor norm al de atividade. Confúcio, como Lao-tsé,
acim a de tudo, o eth os do “dever oficial” e do “bem-estar pú era funcionário antes de viver como professor e escritor, sem
blico”. 9 Se podemos confiar nos A n ais, os letrados, sendo adep depender de cargos. Veremos que essa relação com o cargo
tos da organização burocrática do Estado como instituição com público (ou o cargo num “Estado religioso”) foi de importância
pulsória, foram adversários do feudalism o desde o início. Isso fundam ental para a natureza da m entalidade de tal camada,
é perfeitamente compreensível, porque, do ponto de vista de pois essa orientação tornou-se cada vez m ais im portante e exclu
seus interesses, os adm inistradores devem ser apenas homens siva. A s oportunidades dos príncipes de concorrer em busca
que tinham qualificações pessoais por um a educação lite rá ria .10 dos serviços dos letrados deixaram de existir no império unifi
Por outro lado, eles pretendiam ter mostrado aos príncipes o cado. Os letrados e seus discípulos passaram então a disputar
caminho da administração autônoma, do fabrico de armas e os cargos existentes, e isso não pôde deixar de resultar num a
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doutrina adm inistrativa unificada, ortodoxa, ajustada à situa mente certos e porque as suas virtudes carismáticas são supe
ção. Essa doutrina seria o con fucion ism o. riores, ao passo que seus inim igos são criminosos ímpios, que,
pela opressão e infração dos costumes antigos, enganaram seus
À m edida que o prebendalismo chinês crescia, a m obili súditos e, com isso, perderam seu carisma. A vitória é a oca
dade m ental originalm ente livre dos letrados interrompia-se. sião de reflexões m oralizantes, e não de alegria heróica. Em
Essa situação já estava em plena evolução na época em que os contraste com as sagradas escrituras, de quase todas as outras
A n ais e a maior parte dos escritos sistemáticos dos letrados se éticas, surpreende-nos im ediatam ente a falta de qualquer ex
originaram e em que os livros sagrados, que Sh i-H w ang-T i pressão “chocante”, ou de qualquer im agem concebivelmente
havia destruído, foram “redescobertos”. 14 Foram “redescober- “indecente”. Evidentemente, houve ali um expurgo sistemático,
tos” a fim de que pudessem ser revistos, retocados e interpre e isso bem pode ter sido a contribuição específica de ConfÚcio.
tados pelos letrados e, com isso, ganhassem valor canônico.
A transformação pragm ática da antiga tradição nos A n ais,
É evidente pelos A n ais que tudo isso surgiu com a pacifi produzida pela historiografia oficial e pelos letrados, evidente
cação do império, ou ainda, foi levado à sua conclusão durante mente foi além dos paradigm as sacerdotais do Velho Testa
esse período. Em toda parte, a guerra foi atribuição da juven mento, por exemplo, no Livro dos Juizes. A crônica atribuída
tude, e a frase sexagen arios de pon te foi um slogan dos guer expressamente à autoria de ConfÚcio encerra a m ais seca e só
reiros contra o “senado”. Os letrados chineses, porem, eram bria enumeração de campanhas m ilitares e expedições punitivas
os “homens velhos”, ou representavam os homens velhos. Os contra rebeldes; sob esse aspecto, é comparável aos protocolos
A n ais, como confusão paradigm ática do príncipe M u kong (de hieroglíficos da A ssíria. Se ConfÚcio realm ente expressou a
T sin ), transm itiram a idéia de que o príncipe pecara por ter opinião de que seu caráter poderia ser reconhecido com espe
dado ouvidos à “juventude” (os guerreiros) e não aos “anciãos”, cial clareza pela sua obra — como afirm a a tradição — então
que, embora não tendo forças, tinham experiência.15 De fato, teríamos de endossar a opinião daqueles eruditos (chineses e
foi esse o aspecto decisivo na tendência para o pacifismo e, europeus) que interpretam isto como significando que sua rea
com isso, para o tradicionalismo. A tradição substituiu o ca lização característica foi a correção sistemática e pragm ática dos
rism a. fatos, do ponto de vista da “propriedade”. Seu trabalho deve
ter surgido sob essa luz, para seus contemporâneos, mas para
1. C o n f Úc i o
nós seu significado pragmático, no todo, tornou-se obscuro.16
A té mesmo os trechos m ais antigos dos escritos clássicos que Os príncipes e ministros dos clássicos agem e falam como
têm como organizador o nome de K ung Tse, ou seja, ConfÚcio, paradignas dos governantes cujo comportamento ético é recom
nos perm item reconhecer as condições dos reis guerreiros caris pensado pelos Céus. O funcionalismo e a promoção de funcio
máticos. (ConfÚcio morreu no ano 478 a .C .) A s canções he nários de acordo com o mérito são tópicos para a glorificação.
róicas dos hinários (Sh i-fy n g) nos falam de reis que lutavam Os reinos principescos ainda são governados hereditariam ente;
em carros de guerra, como os épicos helénicos e indianos. M as alguns dos cargos locais são feudos hereditários; mas os clás
considerando-lhe o caráter como um todo, até mesmo essas can sicos viam esse sistema ceticamente, pelo menos os cargos he
ções já não são arautos do heroísmo individual, e, em geral, reditários. Em últim a análise, consideram este sistema como
puramente humano, como os épicos homéricos e germânicos. sendo simplesmente provisório. Teoricam ente, isso pertence até
Mesmo quando o Sh i- \in g foi organizado, o exército real nada mesmo à natureza hereditária da dignidade do imperador. Os
tinha do romantismo dos grupos guerreiros ou das aventuras imperadores ideais e legendários (Y ao e Shun ) designam seus
homéricas. O exército já evidenciava o caráter de um a buro sucessores (Shun e Y ü ) sem considerações de nascimento, entre
cracia disciplinada, e, acima de tudo, tinha “oficiais”. Os reis, o círculo de seus ministros e por cim a de seus próprios filhos,
mesmo no Sh i- \in g, já não venciam simplesmente por serem exclusivamente de acordo com o seu carism a pessoal, tal como
os maiores heróis. E isso é decisivo para o espírito do exército. certificado pelos m ais altos funcionários da corte. Os im pera
Eles vencem porque, perante o Espírito do Céu, estão m oral dores designam seus ministros da mesma forma, e somente o
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terceiro imperador, Yü, não nom eia seu primeiro-ministro (Y ), ter um templo para os ancestrais (ou um a simples mesa de
m as seu filho (K i) para seu sucessor. ancestrais, como ocorria entre os não-letrados). O número de
ancestrais que alguém podia mencionar era determ inado pela
Em contraste com os velhos e autênticos documentos e mo
posição social o ficia l.21 Até mesmo a posição de um deus urba
numentos, busca-se em vão mentes genuinam ente heróicas na
no no Panteão dependia da posição do m andarim da cidade.
m aior parte dos escritos clássicos. A opinião tradicional m an
tida por Confúcio é que a cautela é a melhor parte do calor e No período confuciano (séculos V I a V a .C .) a possibili
que o m al procura seduzir o homem sábio para que arrisque dade de ascensão às posições oficiais bem como o sistema de
a própria vida de forma inadequada. A profunda pacificação exames ainda eram desconhecidos. Parece que, em geral, pelo
do país, especialmente depois do domínio dos mongóis, forta menos nos Estados feudais, as “grandes fam ílias” dispunham do
leceu muito esse estado de espírito. O império tornou-se um poder. Somente com a dinastia H an — que foi estabelecida
im pério de paz. Segundo Mêncio, não houve guerras “justas” por um parv en u — a concessão de cargos pelo mérito foi ele
dentro das fronteiras do império, que foi considerado como vada à condição de princípio. E somente com a dinastia T ang,
um a unidade. Comparado ao tamanho do império, o exército no ano 690 da era cristã, foram estabelecidos regulam entos para
finalm ente tornara-se m uito pequeno. Depois de ter separado os m ais altos postos. Como já dissemos, é muito provável que
o preparo dos letrados e o preparo dos cavaleiros, os Im pera a educação literária, talvez com umas poucas exceções, fosse a
dores conservaram os certames esportivos e literários e em iti princípio monopolizada de fato pelas “grandes fam ílias” (e de
ram certificados m ilitares,17, além dos exames dos letrados pelo pois talvez também legalm ente), tal como a educação védica
Estado. Depois de longo tempo, a obtenção desses certificados na ín d ia. Vestígios disso continuaram até o fim . Membros
m ilitares pouca relação tinha com um a carreira real no exér do clã im perial, embora não-livres de todos os exames, isentos
cito. 18 E continuou ocorrendo que os m ilitares eram tão des dos exames de prim eiro grau. E, até recentemente, testemunhas
prezados na C hina quanto na Inglaterra, por 200 anos, e que indicadas pelos candidatos tinham de comprovar que ele vinha
um homem culto não se perm itia intercâmbio social em pé de de “boa fam ília”. N as épocas modernas, esse testemunho sig
igualdade com oficiais do exército.19 nificou apenas a exclusão de descendentes de barbeiros, bailios,
músicos, faxineiros, carregadores e outros. N ão obstante, jun
tamente com esta exclusão, houve a instituição de “candidatos
2. A Ev o l u ç ã o do S ist e ma de Ex a me s ao m andarinato”, isto é, os descendentes dos m andarins gozavam
de um a posição especial e prioritária, na fixação da quota m á
D urante o período da m onarquia central, os m andarins tor xim a de candidatos a exam e em cada província. As listas de
naram -se um estamento de pretendentes certificados às prebendas promoções usavam a fórm ula oficial “de um a fam ília de m an
públicas. Todas as categorias de servidores públicos chineses darim e do povo”. Os filhos dos funcionários aplicados tinham
eram recrutadas entre eles, e sua qualificação para o cargo e a o grau mais baixo como título de honra. T udo isso representa
posição social dependia do número de exames em que eram um resquício das velhas condições.
aprovados. O sistema de exames vinha sendo plenam ente realizado
Esses exames consistiam em três graus mais im portantes20 desde o fim do século VII. Esse sistema foi um dos meios que
consideravelmente aumentados pelos exames interm ediários, de o governante patrim onial usava para im pedir a formação de
repetição e prelim inares, bem como por numerosas condições um estamento fechado, que, ao modo dos vassalos feudais e no
especiais. Somente para o prim eiro gra u havia dez tipos de bres funcionários, m onopolizaria os direitos às prebendas. Os
exames. A pergunta habitualm ente feita a um estranho, de primeiros traços do sistema de exames parecem surgir aproxi
posição social ignorada, era quantos exames havia realizado. m adamente à época de Confúcio (e H u an g K ’an ), no subestado
Assim , apesar do culto dos ancestrais, não era decisivo, para a de Chin, localidade que m ais tarde se tornou autocrática. A
classificação social, o número de ancestrais havidos. A recíproca seleção de candidatos era determ inada essencialmente pelo mé
era verdadeira: dependia da posição oficial a permissão para rito m ilitar. N ão obstante, até mesmo o L i Ch i e o Ch ou L i 22
o s LETRADOS CHINESES 481
480 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

dida em 1393, mas de forma modificada. Os candidatos apre


exigem , de forma bastante racional, que os chefes distritais exa
sentados eram m atriculados preferencialmente em colégios, as
m inem seus funcionários inferiores, periodicamente, tendo em
prebendas ficariam reservadas para eles: em 1465 para três filhos,
vista sua moral, e em seguida proponham ao imperador as pro
em 1482 para um filho. Em 1453 encontramos a compra de
moções devidas. No Estado unificado dos Imperadores H an,
lugares nos colégios e em 1454 a compra de cargos. D urante o
o pacifismo começou a d irigir a seleção de funcionários. O
século X V , como sempre ocorre, esses fatos foram provocados
poder dos letrados foi tremendamente consolidado depois de
pela necessidade de fundos militares. Em 1492 tais medidas fo
terem conseguido elevar o correto K uang w u ao trono, no ano
ram abolidas, mas em 1529 foram reintroduzidas.
21 da era cristã, e m antê-lo contra o “usurpador” popular W an g
M ang. D urante a luta pelas prebendas, travada durante o pe Os departam en tos também lutavam uns contra os outros.
ríodo seguinte e da qual nos ocuparemos m ais adiante, os letra A Junta dos Ritos esteve encarregada dos exames depois de 736,
dos se transformaram num estam en to unificado. mas a Junta de Cargos Civis nomeava os funcionários. Os can
didatos exam inados eram por vezes boicotados por esse segundo
A inda hoje, a dinastia T an g irrad ia a glória de ter sido
departamento, respondendo o primeiro com greves durante os
a criadora real da grandeza e cultura da C hina. Pela prim eira
exames. Form alm ente, o M inistro dos Ritos e, na prática, o
vez, ela regulam entou a posição dos letrados e criou colégios
M inistro dos Cargos (o mordomo) eram , em últim a análise, os
para a sua educação (no século V II). Tam bém criou a H an
homens mais poderosos da China. Depois os comerciantes, dos
lin y uan , a cham ada “academ ia”, que publicou pela prim eira
quais se esperava que fossem menos avarentos, ocupavam os
vez os A n ais a fim de estabelecer precedentes, e em seguida
cargos.24 É claro que essa esperança era totalm ente injustifica
controlou o comportamento adequado do imperador. Finalm ente,
da. Os manchus favoreciam as velhas tradições e assim os le
depois dos ataques dos mongóis, a dinastia nacional M ing, no trados e, na m edida do possível, a “pureza” na distribuição de
século X IV , decretou leis que, em essência, eram definitivas.23 cargos. M as hoje, como antes, havia lado a lado três caminhos
Escolas deveriam ser criadas em todas as aldeias, um a para cada para alcançar um cargo: 1) preferência im perial para os filhos
25 fam ílias. Como tais escolas não eram subvencionadas, o das fam ílias nobres (privilégios de ex am e); 2) exames fáceis
decreto continuou letra morta — ou antes, já vimos quais as (oficialm ente, três a seis anos) para os funcionários inferiores
forças que adquiriram controle sobre as escolas. Os funcioná pelos funcionários superiores que controlavam os cargos: isso
rios escolheram os melhores alunos e m atricularam certo núm ero levava inevitavelm ente, cada vez, também ao avanço para posições
dêles nos colégios. No todo, esses colégios entraram em deca m ais altas; 3) o único caminho legal: qualificar-se efetiva e
dência, embora em parte tenha havido alguns novos. Em 1382, exclusivamente pelos exames.
as prebendas na forma de tributos em arroz eram reservadas para
os “estudantes”. Em 1393, o núm ero de estudantes era fixo. No conjunto, o sistema de exames preencheu as funções
Depois de 1370, somente pessoas exam inadas tinham direito aos para as quais fora concebido pelo imperador. Ocasionalmente
cargos. (em 1372), sugeriu-se ao imperador — podemos im aginar quem
sugeriu — que ele tirasse a conclusão do carism a ortodoxo das
S urg iu im ediatam ente a luta entre várias regiões, especial virtudes, abolindo os exames, já que somente a v irtude legitim a
mente entre o Norte e o Sul. Este fornecia, até então, candidatos e qualifica. Esta conclusão foi abandonada sem demora, o que
a exam es melhor preparados, com m ais experiência. M as o Norte é bem compreensível. Pois afinal de contas, ambas as partes,
era a base m ilitar do império, e portanto o imperador interveio o imperador e os diplomados, tinham interesse no sistema de
e pu n iu ( ! ) os exam inadores que haviam dado o “prim eiro lu exames, ou pelo menos julgavam ter. Do ponto de vista do
g a r” a um sulista. Foram estabelecidas listas separadas para o imperador, o sistema correspondia totalmente ao papel que o
Norte e o Sul, e, além disso, começou im ediatam ente um a luta m jestn itsh estv o, um meio tecnicamente heterogêneo, do despo
pelos cargos. Mesmo em 1387 eram realizados exames especiais tismo russo desempenhava para a nobreza russa. O sistema fa
para os filhos de oficiais. Os oficiais e os funcionários, porém, cilitou um a luta competitiva pelas prebendas e cargos entre os
foram m ais além , e exigiram o direito de designar seus sucesso candidatos, o que os impedia de se unirem num a nobreza feu-
res, o que significava um a exigência de refeudalização, conce 31
482 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA
os LETRADO S C H IN E S E S 483
dal de funcionários. A admissão às fileiras dos aspirantes estava A pedagogia do cultivo, finalm ente procura educar um tipo
aberta a todos os que provassem suas qualificações. O sistema de homem culto, cuja natureza depende do ideal de cultura
de exames realizava, assim, seus objetivos. da respectiva cam ada decisiva. E isto significa educar um ho
mem para certo comportamento interior e exterior na vida.
Em princípio, tal coisa pode ser feita com todos, e apenas as
3. P o s iç ã o T i po l ó g i c a d a E d u c a ç ã o Co n f u c ia n a metas diferem . Se um a camada de guerreiros à parte forma o
estamento decisivo — como no Japão — a educação visará a
Vam os exam inar agora a posição desse sistema educacional fazer do aluno um cavalheiro e um cortesão estilizado, que
entre os grandes tipos de educação. N a verdade, não podemos, despreza ps homens que usam a pena, tal como os samurais
aqui, de passagem, dar um a tipologia sociológica dos fins e japoneses os desprezaram. Em casos particulares, a camada
meios pedagógicos, m as talvez possamos fazer algum as obser pode evidenciar grandes variações de tipo. Se a cam ada sa
vações. cerdotal é decisiva buscará fazer do aluno um escriba, ou pelo
Historicamente, os dois pólos opostos no campo das fin a menos um intelectual, também de caráter m uito variado. Na
lidades educacionais são: despertar o carisma, isto é, qualidades realidade, nenhum desses tipos jam ais surge na forma pura.
heróicas ou dons mágicos; e transm itir o conhecimento espe As numerosas combinações e elos interm ediários não podem ser
cializado. O primeiro tipo corresponde à estrutura carism ática discutidos neste contexto. O importante, no caso, é definir a
do dom ínio; o segundo corresponde à estrutura (m oderna) de posição da educação chinesa em termos dessas formas.
domínio, racional e burocrático. Os dois tipos não se opõem, Os remanescentes desse treinamento carismático primevo
sem ter conexões ou transições entre si. O herói guerreiro ou para a regeneração, o nome provisório na infância, os ritos de
o mágico também necessita de treinamento especial, e o fun iniciação da juventude, já discutidos, a m udança no nome do
cionário especializado em geral não é preparado exclusivamente noivo, e assim por diante, foram durante muito tempo, na
para o conhecimento. São porém pólos opostos dos tipos de China, um a fórmula (no modo da confirmação protestante)
educação e formam os contrastes m ais radicais. Entre eles estão sim ultânea com a comprovação das qualificações educacionais.
aqueles tipos que pretendem preparar o aluno para um a con ­ Essas provas foram monopolizadas pelas autoridades políticas.
d u ta de v ida, seja de caráter m undano ou religioso. De q u al A qualificação educacional, porém, em vista dos meios educa
quer modo, a conduta de vida é a conduta do estamento. cionais empregados, foi um a qualificação “cultural”, no sentido
de um a educação geral. Foi de um a natureza semelhante, e
O procedimento carismático do ascetismo mágico antigo e não obstante m ais específica, do que por exemplo a qualificação
os julgam entos dos heróis, que feiticeiros e heróis guerreiros educacional h u m an ista do Ocidente.
aplicavam aos rapazes, tentavam ajudar o noviço a adquirir N a A lem anha, essa educação foi, até recentemente e de
um a “nova alm a”, no sentido anim ista e, portanto, a renascer. forma quase exclusiva, um a condição prelim inar para a carreira
Em nossa linguagem , isto significa que eles simplesmente dese oficial que leva a posições de comando na adm inistração civil
javam despertar e testar um a capacidade considerada como um e m ilitar. Ao mesmo tempo, essa educação h um an ista marcou
dom de graça exclusivamente pessoal, pois não se pode ensinar os alunos que se preparavam para tais carreiras, como perten
nem preparar para o carisma. Ou ele existe in nuce, ou é in cendo socialmente ao estamento culto. N a A lem anha porém —
filtrado através de um m ilagre de renascimento mágico — de e trata-se de uma diferença m uito im portante entre a China
outra forma, é impossível alcançá-lo. e o Ocidente — o treinamento racional e especializado foi acres
As tentativas especializadas de trein ar o aluno para fina centado a essa qualificação educacional honorífica, que substituiu
lidades práticas úteis à adm inistração — na organização das em parte.
autoridades públicas, escritórios, oficinas, laboratórios industriais, Os chineses não comprovavam habilitações especiais, como
exércitos disciplinados. Em princípio, isto pode ser realizado com os nossos modernas e racionais exames burocráticos para juristas,
qualquer pessoa, embora em proporções variadas. médicos, técnicos. Nem comprovavam os exames chineses a
484 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA OS LETRADOS CHINESES 485

posse de carisma, como o fazem os “ju lgam :ntos” típicos dos substancialmente em hinos, contos épicos e casuística em ritual
mágicos e das ligas de solteiras. N a verdade, essa afirmação e cerimônia. N a ín d ia, porém, isso se revestia de especulações
exige, como iremos ver, algum as observações restritivas. Não cosmogênicas, bem como religiosas e metafísicas. T ais espe
obstante, ela é válida pelo menos para a técnica dos exames. culações não estavam totalmente ausentes dos clássicos e dos
Os exames da C hina comprovavam se a mente do candi comentários transmitidos na China, mas evidentemente sempre
dato estava embebida de literatura e se ele possuía ou não os desempenharam ali apenas um papel menor. Os autores chi
m odos de pensar adequados a um homem culto e resultantes neses desenvolveram sistemas racionais de ética social. A ca
do conhecimento da literatura. Essas qualificações eram válidas m ada educada da C hina simplesmente jam ais fora um esta
muito m ais especificamente na C hina do que no ginásio hum a mento autônomo de eruditos, como eram os brâmanes, mas
nista alemão. Hoje, ninguém costuma justificar o ginásio assi antes um a cam ada de funcionários e aspirantes a cargos.
nalando o valor prático da educação formal pelo estudo da A educação superior, na China, nem sempre teve o caráter
A ntigüidade. Pelo que podemos ju lgar dos trabalhos25 dados que apresenta hoje. As instituições educacionais públicas ( Pan
aos alunos das séries m ais baixas na C hina, eles eram antes se \ u n g ) dos príncipes feudais ensinavam as artes da dança e das
melhantes aos trabalhes solicitados nas séries finais de um gin á armas, além do conhecimento dos ritos e literatura. Somente
sio alemão, ou, talvez ainda melhor, a uma classe seleta de a pacificação do império, transformado num Estado patrimo
um colégio alemão de moças. Todas as séries encerraram provas nial e unificado, e, finalm ente, o sistema exclusivo de exames
em redação, estilo, domínio dos autores clássicos,26 e finalm ente para os cargos, transformaram essa educação mais antiga, muito
— da mesma forma que nossas lições em religião, história e mais próxima da educação helénica inicial, naquilo que existiu
alemão — de conformidade com a perspectiva m ental prescrita.27 até o século XX. A educação médica, tal como representada
Em nosso contexto, foi decisivo o fato de ter essa educação, de pelo abalizado e ortodoxo Siao-H io, ou seja, “livro de escola”,
um lado, um a natureza exclusivàmente secular, mas, de outro, ainda dava importância considerável â dança e à música. Na
estava presa à norma fixa da interpretação ortodoxa dos autores verdade, a velha dança de guerra parece ter existido apenas de
clássicos. Era uma educação literária altam ente exclusiva e forma rudim entar, mas quanto ao resto as crianças, segundo
livresca. os grupos de idade, aprendiam certas danças. A finalidade
O caráter literário da educação na ín d ia, judaísmo, cris disto era, ao que se afirm ava, dominar as paixões malignas.
tianismo e islã, resultou do fato de que estava completamente Se a criança não se saía bem durante sua instrução, devia-se
nas mãos dos brâmanes e rabinos dotados de conhecimentos deixá-la dançar e cantar. A música melhora o homem, e ritos
literários, ou de clérigos ou monges de religiões livrescas, pro e músicos formam a base do autocontrole.2S A significação
fissionalmente treinados em literatura. Enquanto a educação m ágica da música foi um aspecto primário de tudo isso. A
foi helénica, e não “helenista”, o homem de cultura helénica “música correta”, isto é, música usada segundo as regras antigas
era, e continuou sendo, principalm ente, efebo e hoplita. As con e seguindo rigorosamente os ritmos antigos — “mantém os es
seqüências disso são mostradas na conversação do Simpósio, píritos encadeados”. 29 A inda na Idade M édia, as artes do arco
quando se diz do Sócrates de Platão que ele jam ais titubeara. e do carro de guerra eram consideradas como temas educacionais
P ara Platão, dizer isso é evidentemente de importância idêntica gerais para as crianças nobres.30 M as isso era, em essência, mera
a tudo o m ais que ele faz A lcibíades dizer. teoria. Exam inando o “livro de escola”, vemos que, a partir
N a Idade M édia, a educação m ilitar do cavaleiro, e mais do sétimo ano de vida, a educação doméstica era rigorosamente
tarde a educação nobre do salão da Renascença, proporcionaram separada segundo o sexo; consistia essencialmente em instilar
um suplemento correspondente, embora socialmente diferente, um cerimonia], que ia m uito além de todas as idéias ocidentais,
à educação transm itida pelos livros, sacerdotes e monges. No um cerim onial especialmente de piedade e medo para com os
judaísm o e na China, esse elemento contrabalançador esteve em pais e todos os superiores e pessoas mais velhas em geral. Q uan
arte totalmente ausente, e em parte quase totalmente. Na to ao resto, o livro de escola consistia quase que exclusivamente
f ndia, como na China, o meio literário de educação consistia em regras para o autocontrole.
486 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA os l et r a d o s c h in e se s 487

Essa educação doméstica era completada pela instrução es muito m ais consideradas do que a arte do dram a, que, carac
colar. Deveria haver um a escola básica em todo H sieti. A edu teristicamente, floresceu durante o período dos mongóis.
cação superior pressupunha a aprovação num vestibular. Assim,
duas coisas eram peculiares à educação superior chinesa. P ri Entre os conhecidos filósofos sociais, M eng T se (M êncio)
meiro, ela era totalmente não-m ilitar e puramente literária, como fêz uso sistemático da forma do diálogo. É precisamente por isso
toda educação m inistrada pelos sacerdotes. Segundo, seu caráter que êle nos parece, facilmente, como o único representante do
literário, isto é, seu caráter escrito, foi levado a extremos. Em confucionismo que amadureceu até a “lucidez” plena. O im
parte, isso parece ter sido resultado da peculiaridade da escrita pacto m uito forte que nos transm item os “Analectos Confu-
chinesa e da arte literária, que dela nasceu .31 cianos” (como L egge os chamou) também se baseia no fato
de que na C hina (como em outros lugares, ocasionalmente) a
Como a escrita conservou seu caráter pictórico, e não foi doutrina está revestida da forma de respostas sentenciosas (em
racionalizada em forma alfabética, como a dos povos comer parte provavelmente autênticas) do mestre a perguntas dos dis
ciantes do Mediterrâneo, o produto literário dirigia-se ao mesmo cípulos. D aí, para nós, ser ela transposta na forma de discurso.
tempo aos olhos e aos ouvidos, e essencialmente m ais aos pri Quanto ao resto, a literatura épica encerra os discursos de anti
meiros. Q ualquer “leitura em voz alta” dos livros clássicos era, gos reis guerreiros ao exército; em sua força lapidar, são bas
em si, um a tradução da escrita pictórica para a palavra não- tante impressionantes. Parte dos Analectos didáticos consistia
-escrita. O caráter visual, especialmente da escrita antiga, era em discursos, cujo caráter corresponde às “alocuções pontificais”.
pela sua natureza mesma remoto da palavra falada. A língua Sob outros aspectos, os discursos não têm representação na lite
monossilábica exige a percepção do som, bem como a percepção ratura oficial. Sua falta de desenvolvimento foi determ inada
do tom. Com sua sóbria brevidade e sua compulsão à lógica tanto por motivos sociais quanto políticos.
sintática, ela se coloca num contraste extremo com o carater
exclusivam ente visual da escrita. Mas, apesar disso, ou antes Apesar das qualidades lógicas da língua, o pensamento chi
— como Grube mostrou de forma engenhosa — em parte devido nês continuou apegado ao pictórico e descritivo. O poder do
às qualidades racionais mesmas de sua estrutura, a lín gu a chi logos, da definição e raciocínio, não foi acessível aos chineses.
nesa foi incapaz de oferecer seus serviços à poesia ou ao pen M as, por outro lado, essa educação puramente escriturai desta
samento sistemático. Nem pôde servir ao desenvolvimento das cou o pensamento do gesto e do movimento expressivo em pro
artes da oratória, como ocorreu com as estruturas dos idiomas porções m ais do que habituais com a natureza literária de qual
helénico, latino, francês, alemão e russo, cada qual ao seu modo. quer educação. D urante dois anos, antes de ser introduzido ao
O estoque de símbolos escritos continuava muito mais rico do seu significado, o aluno aprendia simplesmente a pintar cerca
que o estoque de palavras monossilábicas, inevitavelm ente muito de 2.000 caracteres. A lém disso, os examinadores focalizavam
lim itado. Daí, toda fantasia e ardor fugir do intelectualismo a atenção no estilo, a arte de versificação, um conhecimento
pobre e form alista da palavra falada, refugiando-se na beleza firm e dos clássicos, e, finalm ente, na m entalidade expressa do
silenciosa dos símbolos escritos. O discurso poético habitual es candidato.
tava fundam entalm ente subordinado à escrita. Não a palavra A falta de todo o preparo em cálculos, até mesmo nas es
falada, mas a escrita e leitura silenciosa eram valorizadas artis colas secundárias, é um a característica notável da educação chi
ticamente e consideradas como dignas do cavalheiro, pois eram nesa. A idéia dos números posicionais, porém, foi desenvolvi
depositárias dos engenhosos produtos da escrita. A palavra fa da 32 no século V I antes de Cristo, ou seja, durante o período
lada continuou sendo, na verdade, assunto da plebe. Isto con dos Estados belicosos. U m a atitude calculativa no intercâmbio
trasta acentuadam ente com o helenismo, para o qual a conver comercial havia impregnado todas as cam adas da população,
sação significava tudo. e a tradução no estilo do dialogo era a e os cálculos finais dos departamentos adm inistrativos eram tão
forma adequada de toda experiência e contemplação. N a C hina, detalhados quanto difíceis de exam inar, pelos motivos mencio
as melhores manifestações da cultura literária brilharam , por nados acima. O livro de escola m edieval ( Siao- H io, I, 29)
assim dizer, surdas e mudas em seu esplendor de seda. Eram enum era o cálculo entre as seis “artes”. E na mesma época
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dos Estados belicosos, havia uma M atem ática que, supostamente, diretos nas prebendas, e exclusivamente dedicada à formação
incluía a Trigonom etria, bem como a regra de três e o cálculo do “cavalheiros” ( Caloicagath oi) helénico.
comercial. Presumidamente, essa literatura, à parte os frag
A educação chinesa servia ao interesse pelas prebendas e
mentos, perdeu-se durante a queim a de livros de Shi-H w ang-
estava ligad a à escrita, mas ao mesmo tempo era puramente
- T i .33 De qualquer modo, o cálculo não é nem mesmo men
uma educação leiga, em parte de um caráter ritualista e cerimo
cionado na pedagogia posterior. E, no curso da história, ele
nial, e em parte de um caráter tradicionalista e ético. As es
perdeu cada vez mais importância na educação dos m andarins,
colas não se interessavam pela M atem ática nem pelas Ciências
desaparecendo totalmente, por fim . Os comerciantes educados
N aturais, Geografia ou Gramática. A própria Filosofia chinesa
aprendiam a calcular em seus escritórios. Como o império
não tem um caráter especulativo, sistemático, como a Filosofia
havia sido unificado e a tendência para uma adm inistração ra
helénica, e, em parte em sentido diferente, o ensino teológico
cional do Estado havia enfraquecido, o m andarim tornou-se
indiano e ocidental. A Filosofia chinesa não tinha um caráter
um requintado literato, que não se ocupava de cálculos.
racional formalista, tal como o tem a jurisprudência ocidental.
O caráter mundano dessa educação contrasta com os ou E não era de caráter casuísta em pírica, como a Filosofia rabínica,
tros sistemas educacionais que não obstante com ela se relacio islam ita e, em parte, a indiana. A Filosofia chinesa não deu
nem pelo seu aspecto literário. Os exames literários na C hina origem ao escolasticismo porque não se dedicava profissional
eram, exclusivamente, questões políticas. A instrução era m i mente à lógica, como as Filosofias do Ocidente e Oriente Médio,
nistrada em parte por pessoas e instrutores particulares, e em ambas baseadas no pensamento helenista. O conceito mesmo de
parte pelos quadros m agisteriais das fundações colegiais. Mas lógica continuou absolutamente estranho à Filosofia chinesa, que
nenhum sacerdote participava deles. se orientava para a escrita, não era dialética, e continuou orien
A s universidades cristãs da Idade Média originaram -se da tada para problemas exclusivamente práticos, bem como para os
necessidade, prática e ideal, de um a doutrina jurídica racional, interesses sociais da burocracia patrim onial.
m undana e eclesiástica, e de um a teologia racional (d ialética). Isto significa que os problemas básicos a toda Filosofia oci
As universidades do islã, seguindo o modelo das últim as escolas dental continuaram desconhecidos da Filosofia chinesa, fato que
de Direito romanas e da Teologia cristã, praticavam os pro se destaca pelo pensamento categórico dos filósofos chineces,
cessos sagrados e a doutrina da fé; os rabinos dedicavam-se à acim a de tudo em Confúcio. Com a maior objetividade prática,
interpretação da lei; as escolas de filósofos brâmanes em penha- os instrumentos intelectuais continuaram tendo a forma de pa
vam-se na filosofia especulativa, no ritual, bem como na lei rábolas, lembrando-nos dos meios de expressão dos chefetes in
sagrada. Os dignitários eclesiásticos ou teólogos form aram , sem dianos, e não da argumentação racional. Isso se aplica precisa
pre, o único quadro m agisterial ou pelo menos o seu corpo mente a algum as das afirmações realm ente engenhosas atribuídas
básico. A este se juntavam os professores mundanos, em cujas a Confúcio. A ausência da fala é palpável, ou seja, o discurso
mãos os outros ramos de estudos ficavam. No cristianism o, é um meio racional de obter efeitos políticos e forenses, o discurso
no islã e no hinduísmo, as prebendas eram as metas, e por tal como foi cultivado primeiro na polis helénica. T al discurso
causa delas lutava-se para conseguir os diplomas. A lém disso, não se pôde desenvolver no Estado burocrático patrim onial que
é claro, o aspirante desejava qualificar-se para a atividade ritual não dispunha de justiça form alizada. A justiça chinesa continuou,
e para a cura de almas. Com os antigos professores judaicos em parte, um processo sumário da C âm ara de Estrelas (de altos
(precursores dos rabinos) que trabalhavam “de graça”, a meta funcionários) e, em parte, valia-se exclusivamente de documen
era, exclusivamente, adquirir conhecimento para instruir o leigo tos. N enhum a defesa oral dos casos existia, apenas as petições
na lei, pois esta instrução era religiosamente indispensável. M as, escritas e as audiências orais das partes interessadas. A burocra
em tudo isso, a educação era sempre orientada pelas escrituras cia chinesa interessava-se pela propriedade convencional, e esses
sagradas ou cúlticas. Somente as escolas dos filósofos helénicos laços predom inaram e funcionaram no mesmo sentido de obs
se dedicavam à educação exclusivamente dos leigos e livre de trução do discurso forense. A burocracia rejeitou o argumento
todos os laços com as escrituras, livre de quaisquer interesses dos problemas especulativos “últimos” como praticamente es
490 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA os LETRADOS CHINESES 491

téreis. A burocracia considerou tais argumentos impróprios e x a d o .37 O resultado desses registros de conduta não era deter
os rejeitou como demasiado delicados para a posição dos inte minado exclusivamente por fatores objetivos. O importante era
ressados, devido ao perigo das inovações. o “espírito”, e este tinha o caráter de um penalismo pela auto
Se a técnica e a substância dos exames tinham natureza ridade oficií 1, que durava a vida toda.
exclusivamente m undana e representavam uma espécie de “exa
me cultural dos letrados”, a opinião popular a seu respeito era
m uito diferente: atribuía-lhes um sentido mágico-carismático. 4 A H o n r a Est a me n t a l dos L e t r ad o s
Aos olhos das massas chinesas, um candidato e funcionário apro
vado nos exames não era, de modo algum , um simples candi Como estamento, os letrados eram privilegiados, mesmo os
dato a cargo, preparado pelo conhecimento. Era o detentor que haviam sido apenas examinados, mas não estavam empre
comprovado de qualidades m ágicas que, como iremos ver, eram gados. Pouco depois de fortalecida a sua posição, os letrados
atribuídas ao m andarim , tal como ao sacerdote examinado e gozavam de priv ilégios estam en tais. Os mais importantes eram :
ordenado de uma instituição eclesiástica da graça, ou um m á primeiro, liberdade em relação à sórdida m un era, a corv ée; se
gico comprovado e julgado pela sua corporação.34 gundo, liberdade de punição corporal; terceiro, prebendas (esti
pêndios). D urante muito tempo, esse terceiro privilégio teve
A posição do candidato aprovado e do funcionário corres
sua influência muito reduzida em seus objetivos devido à posi
pondia, sob aspectos importantes, por exemplo, à do capelão ca
ção financeira do Estado. O Sen g (bacharelato) ainda equi
tólico. P ara o aluno, completar seu período de instrução e seu
valia a um estipêndio anual, mas com a condição de que os
exam e não significava o fim de sua im aturidade. U m a vez
interessados se submetessem, cada três a seis anos, ao Ch u jen,
aprovado, o candidato fic a v a ' sob a disciplina do diretor da
ou exame para um grau superior. Isso, porém, nada signifi
escola e dos examinadores. No caso de m á conduta, seu nome
era riscado das listas. Sob certas condições, suas mãos eram cava de decisivo. O ônus da educação e dos períodos de salário
bastonadas. Nas celas reclusas de exames, os candidatos fre nominal recai, na realidade, sobre o clã, como já vimos. O
qüentem ente adoeciam seriamente e ocorriam suicídios. Se clã esperava recuperar essas despesas quando o seu membro
gundo a interpretação carismática do exame como um “ju lg a finalm ente obtivesse o cargo. Os dois primeiros privilégios ti
mento” mágico, tais acontecimentos eram considerados como veram importância até o fim , pois a corvée ainda existia, em
um “julgam ento” mágico, tais acontecimentos eram considera bora em proporções decrescentes. A vara, porém, continuou
dos como prova de um a conduta inadequada por parte da pes sendo o meio de castigo nacional. A palm atória vinha da pe
soa em questão. Depois que o candidato conseguia passar nos dagogia terrível dos castigos corporais nas escolas prim árias da
exames para os graus superiores, com sua reclusão rigorosa e China. Seu caráter excepcional consistiu, ao que se afirm a, nos
depois que, finalm ente, conseguia um posto correspondente ao traços seguintes, que perduraram em nossa Idade M édia quando,
número e im portância dos exames a que se submetera, conti evidentemente, tiveram então um desenvolvimento ainda m aio r.38
nuava durante toda a sua vida sob o controle da escola. A lém Os chefes dos clãs ou das aldeias compilavam os “cartões ver
de estar sob a autoridade de seus superiores, sofria a vigilância melhos”, isto é, a lista de alunos ( K u an - t an ) . Depois, durantt
e crítica constantes dos censores, que iam até mesmo à correção certo tempo, contratavam um mestre-escola entre o grande núme
ritualista do próprio Filho do Céu. O impedimento dos fun ro de letrados sem emprego, que sempre houve. O templo an
cionários 35 era previsto desde épocas mais antigas, e considera cestral (ou outros aposentos não-usados) era o local preferido
do como meritório, tal como a confissão católica dos pecados.
Periodicamente, em geral cada três anos, o registro de sua con
duta, isto é, a lista de seus méritos e faltas, determinados pelas
investigações oficiais dos censores e seus superiores, era publi
cado pela Gaz eta Im perial . 38 De acordo com as notas publi
cadas, ele podia conservar seu posto, era promovido ou rebai
492 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA OS LETRADOS C H IN E S E S 493

das mães de fam ília alemãs, era chamado de “lugar ordenado


por Deus”. 5. O Id e a l do C a v a l h e ir o
Os formados de alta posição estavam completamente livres
desses castigos, enquanto não fôssem rebaixados. E na Idade O espirito peculiar dos eruditos, alim entado pelo sistema
M édia a liberdade em relação à corvée foi firmemente estabe de exames, estava intim am ente ligado com as suposições preli
lecida. Não obstante, apesar e também devido a esses privilé minares básicas das quais procediam as teorias chinesas orto
gios, o desenvolvimento das idéias feudais de honra foi impos doxas, e, incidentalm ente, também quase todas as heterodoxas.
sível, nessa base. A lém disso, como dissemos, tais privilégios O dualismo do shen e k jvei, dos espíritos bons e maus, da subs
eram precários porque eram perdidos im ediatam ente, no caso tância celestial y an g em contraposição à substância terrestre yin,
de rebaixamento, o que ocorria freqüentemente. A honra feu também dentro da alm a do indivíduo, necessariamente dava à
educação a tarefa exclusiva, mesmo n a auto-educação, de reve
dal não se podia desenvolver à base dos certificados de exame
como qualificação de estamento, degradação possível, castigo cor lar a substância y an g na alm a do h om em .42 O homem no
poral durante a juventude, e o caso, não raro, de rebaixamento, qual a substância y an g conseguiu predom inar completamente
mesmo na velhice. Mas, no passado, essas noções feudais de sobre as demoníacas forças \ w e i que também existem nele tem
honra dominaram a vida chinesa com grande intensidade. poder sobre os espíritas; isto é, segundo a idéia antiga, tem
poder mágico. Os bons espíritos, porém, são os que protegem
Os velhos A n ais louvam a “fraqueza” e “lealdade” como
a ordem e beleza e harm onia no mundo. Aperfeiçoar-se, e com
virtudes fun dam entais.39 “M orrer com honra” era a velha pala
isso espelhar tal harm onia, é o meio supremo, e único, pelo
vra de ordem. “Ser infeliz e não saber como morrer é covar
qual é possível alcançar tal poder. D urante a época dos le
dia”. Isto se aplicava particularm ente ao oficial que não “com
trados, o Kiü n -tse, o “homem nobre”, e outrora o “herói”, era
batia até a m orte” . 40 O suicídio era um a morte que o general
aquele que havia alcançado a perfeição total, que se transfor
derrotado em batalha considerava como um priv ilégio. Perm i
tir que ele se suicidasse significava abrir mão do direito de m ara num a “obra de arte”, no sentido de um cânone clássico,
puni-lo e, portanto, era m edida que se estudava com hesitação.41 eternamente válido, de beleza psíquica, que a tradição literária
O significado dos conceitos feudais foi modificado pela idéia im plem entava nas alm as dos discípulos. Por outro lado, desde
patriarcal do hiato, segundo a qual se devia enfrentar a calúnia pelo menos o período H a n ,43 era convicção generalizada e firm e
e mesmo a morte como sua conseqüência, se isso servisse à honra entre os letrados que os espíritos recompensavam a “beneficên
do senhor. Todos os erros do senhor podiam ser compensados cia”, no sentido de excelência social e ética. A benevolência
pelo serviço leal, e o general deveria prestar e?se serviço. O combinada com a beleza clássica (canônica) era, portanto, a
\ot ow ante o pai, o irm ão mais velho, o credor, o funcionário meta da autoperfeição.
e o imperador não era, certamente, um indício de honra feudal. As realizações canonicamente perfeitas e belas eram as mais
Para o chinês correto, ajoelhar-se perante o seu amor, por outro altas aspirações de todo erudito, bem como a m edida últim a
lado, teria sido totalmente tabu. T udo isso era o inverso do da m ais alta qualificação, certificada pelo exame. A ambição
que ocorria com os cavalheiros e os cortegian i do Ocidente. de juventude de L i H ung C hang era tornar-se um perfeito
A honra do funcionário conserva, em acentuadas propor letrad o ,44 isto é, um “poeta coroado”, alcançando os m ais altos
ções, um elemento da honra estudantil, regulada pelas realiza graus. O rgulhou-se sempre de s:r um calígrafo de grande
ções no exame e pelas censuras públicas por superiores. Isso habilidade e de ser capaz de recitar os clássicos de memória,
ocorria mesmo que ele tivesse sido aprovado nos exames mais especialmente “Prim avera e Outono” de Confúcio. Essa capa
elevados. N um certo sentido, isso acontece em toda burocra cidade fez que seu tio, depois de tê-lo posto à prova, per
cia (pelo menos em seus níveis inferiores; e em W ürttem berg, doasse-lhe as imperfeições da juventude e lhe obtivesse um car
com seu famoso “Nota A , Fischer”, até mesmo nos mais altos go. Para L i H u ng C hang, todos os outros ramos do conheci
cargos). Suas proporções na C hina, porém, eram muito d i mento (Á lgebra, Astronom ia) eram apenas os meios indispen
ferentes. sáveis de “tornar-se um grande poeta”. A perfeição clássica
494 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA
O S LETRADO S C H IN E S E S 495

do poema que concebeu, sobre o nome da Im peratriz-M ãe, como


6. O P r e st íg io do F u n c io n a l ism o
um a oração no templo da deusa tutelar da cultura da seda,
trouxe-lhe a proteção da Im peratriz.
O ódio e a desconfiança dos súditos, comuns em todo pa-
Trocadilhos, eufemismo, alusões a citações clássicas e um a trim onialismo, na C hina como em toda parte voltaram-se con
intelectualidade requintada e puramente literária eram consi tra os níveis inferiores da hierarquia, que tinham o maior con
derados os ideais da conversação do homem educado. Toda a tato prático com a população. Os súditos evitavam todo contato
política do dia era excluída dessa conversação.45 Pode parecer- com o “Estado” que não era absolutamente necessário, numa
-nos estranho que essa educação sublim ada de “salão”, ligada atitude apolítica típica da C hina, bem como de outros sistemas
aos clássicos, permitisse ao homem adm inistrar grandes terri patrim oniais. M as essa atitude apolítica não dim inui a signifi
tórios. E, na verdade, não se dirigia a administração com a cação da educação oficial para a formação de caráter do povo
simples poesia, nem mesmo na C hina. Mas o funcionário pre- chinês.
bendário chinês provava a sua qualidade estamental, isto é, seu
As fortes exigências do período de treinamento eram de
carisma, através da correção canônica de suas formas literárias.
vidas, em parte, à peculiaridade da escrita chinesa e em parte
Portanto, dava-se considerável pêso a essas formas nas comuni
a peculiaridade do assunto. T ais exigências, bem como os pe
cações oficiais. Numerosas importantes declarações dos Impe
ríodos de espera, freqüentemente m uito longos, forçavam os
radores, os sumos sacerdotes da arte literária tinham a forma
que não tinham fortuna própria, não levantavam empréstimos
de poemas didáticos. Por outro lado, o oficial tinha de provar
ou não dispunham de economias fam iliares do tipo discutido
seu carism a pelo curso “harmonioso” de sua administração; isto
acim a a aceitar ocupações práticas de todos os tipos, desde
é, não devia haver perturbações provocadas pelos espíritos in
comerciantes até médicos milagrosos, antes de concluir suas car
quietos dos homens. O “trabalho” adm inistrativo real podia re
reiras educacionais. Não alcançam, então, os próprios clássicos,
pousar nos ombros dos funcionários subordinados. Observa
m as apenas o estudo do último (sexto) livro didático, ou “livro
mos que acim a do funcionário estavam o pontífice im perial, sua
de escola” (Siao H i o h ) ,if> consagrado pelo tempo e que con
academ ia de letrados e seu corpo colegiado de censores. Eles
tinha m uitos excertos dos autores clássicos. Somente essa dife
recompensavam, puniam , censuravam, exortavam, estim ulavam
rença no nível de educação, e não diferenças no tipo de edu
ou louvavam publicamente os funcionários.
cação, distingue esses círculos da burocracia, pois havia somente
Devido à publicação dos “arquivos pessoais” e de todos os a educação clássica.
relatórios, petições e memoriais, a adm inistração e as carreiras
A percentagem de candidatos reprovados era extremamente
dos funcionários, com suas (supostas) causas, se faziam perante
alta. Em conseqüência das quotas fix a s,47 a fração dos formados
o m ais amplo dos públicos, m uito m ais do que em qualquer
dos exames superiores era proporcionalmente pequena, e mesmo
de nossas administrações sob controle parlam entar e que atribui
assim eles sempre eram muito m ais numerosos do que os cargos
grande im portância aos “segredos oficiais”. Pelo menos se
existentes. Competiam , então, pelas prebendas, através da pro
gundo a ficção oficial, a Gaz eta governam ental era, na C hina,
teção pessoal,48 pela compra, ou empréstimos. A venda de
um a espécie de prestação de contas do Imperador perante o
prebendas funcionava, no caso, como na Europa; era um meio
Céu e perante seus súditos. A Gaz eta era a expressão clássica
de levantar capital para as finalidades do Estado, substituindo
do tipo de responsabilidade advinda da qualificação carismatica
com freqüência o critério de m erecim ento.49 Os protestos dos
do imperador. Por m ais dúbia que fosse, na realidade, a argu
reformadores contra a venda de cargos continuou até os últimos
mentação oficial e a m inúcia da publicação — o que tambem
dias do velho sistema, como se vê pelas numerosas petições desse
é válido para as comunicações de nossa burocracia aos parla tipo, na Gaz eta de Pequim .
mentos — o processo chinês tendia, pelo menos, a abrir um a
válvula de segurança, forte e por vezes realm ente eficiente, à O curto mandato dos funcionários (três anos), igual aos
pressão da opinião pública, em relação às atividades adm inis das instituições islâmicas semelhantes, só perm itia um a influên
trativas oficiais. cia intensiva e racional da economia, através da administração
496 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA OS LETRADQ S C H IN E S E S 497

como tal, de forma interm itente e esporádica. Isso ocorreu tinha essa camada, dentro e fora de seus próprios clãs, era
apesar da onipotência teórica da administração. É espantoso aproxim adam ente tão grande quanto a influência combinada
o pequeno número de funcionários permanentes que o Governo dos escribas e sacerdotes no Egito. Dentro do clã, porém, a
julgava suficiente. Esses números, por si sós, deixam claro que autoridade da velhice era um forte contrapeso, como já ressal
em geral as coisas seguiam seu próprio curso, enquanto os tamos. Independente do “valor” dos funcionários individuais,
interêsses do poder estatal e do tesouro não eram afetados e freqüentemente ridicularizados nos dram as populares, o pres
enquanto as forças da tradição, dos clãs, aldeias, corporações e tígio dessa educação literária, como tal, tinha raízes firmes na
outras associações ocupacionais continuavam como os veículos população, até ser solapada pelos modernos membros da classe
norm ais da ordem. dos m andarins que haviam sido educados no Ocidente.
Apesar da atitude apolítica das massas, que mencionamos
acima, as opiniões da cam ada de pretendentes a cargos exerciam 7. O p i n i õ e s so b r e P o l í t i c a E c o n ô m i c a
um a influência considerável sobre o modo de vida das classes
médias. Isso resultava, acim a de tudo, do conceito popular O caráter social da camada educada determ inou a sua po
mágico-carismático da qualificação para cargos, obtida através sição em relação à política econômica. Segundo sua própria
dos exames. Passando no exame, o estudante provava que era lenda, por milênios o Estado tivera o caráter de um Estado de
portador de shen. Os altos m andarins eram considerados bem-estar, religioso e utilitário, caráter que está de acordo com
como qualificados magicamente. Podiam tornar-se, sempre, tantos outros traços típicos das estruturas patrim oniais burocrá
objetos de um culto, depois de sua morte bem como du ticas que têm marcas teocráticas.
rante sua vida, desde que seu carisma fosse “comprovado”.
Desde a A ntigüidade, na verdade, a política estatal real, pelos
Essa significação m ágica primeva da obra e dos documentos
motivos mencionados acima, deixara a vida econômica entre
escritos dava uma significação apotropaica e terapêutica aos
gue a si mesma, pelo menos no que se relacionava com a pro
seus selos e sua escrita, e isso se podia estender também
dução e a economia de lucro. Isso aconteceu na C hina, tal
à parafernália de exames do candidato. A província conside
como no O riente antigo — a menos que novos aldeamentos,
rava uma honra e uma vantagem ter um de seus filhos esco
m elhoria pela irrigação e interesses fiscais ou m ilitares passassem
lhido pelo imperador como o melhor candidato ao mais alto
a existir. M as os interesses m ilitares e os interesses nas finanças
g r a u ,50 e todos os que tinham seus nomes divulgados publica
m ilitares haviam demandado sempre intervenções litúrgicas na
mente como aprovados nos exames gozavam de fama na aldeia.
vida econômica. Essas intervenções foram determ inadas mono-
Todas as corporações e outros clubes de algum a importância
pohsticamente ou financeiram ente, sendo com freqüência muito
tinham de em pregar um letrado como secretário, e tais cargos,
incisivas. Eram , em parte, regulamentações mercantilistas e, em
e outros semelhantes, estavam ao alcance dos aprovados, que
parte, tinham a natureza de regulam entação da organização esta-
não conseguiam prebendas oficiais. Os ocupantes de cargos e
mental. Já no fim do m ilitarism o nacional, essa “política eco
os candidatos examinados, em virtude de seu carisma mágico e
nômica” planificada acabou sendo suspensa. O Governo, cons
de suas relações — especialmente quando vinham de círculos
ciente da fraqueza de seu aparato adm inistrativo, lim itou-se ao
pequeno-burgueses — eram os “padres confessores” e conselhei
cuidado com a m anutenção das vias fluviais, indispensáveis ao
ros naturais em todas as questões importantes de seu clã. Cor
abastecimento de arroz das principais províncias; quanto ao resto,
respondiam, sob esse aspecto, aos brâmanes ( Gu ru s) que exer
lim itou-se à política tipicamente patrim onial de escass:z e consu
ciam a mesma função na índia. mo. Não teve um a “política comercial” no sentido m oderno.61
Juntam ente com o fornecedor do Estado e o grande comer Os tributos que os m andarins fixavam pelo uso das vias fluviais,
ciante, o detentor de cargos, como já vimos, era a personagem pelo que se sabe, eram simplesmente de natureza fiscal e ja
que mais oportunidades tinha para acum ular posses. Econômi mais serviram a qualquer política econômica. O Governo, no
ca e pessoalmente, portanto, a influência que sobre a população todo, visava apenas aos interêsses fiscais e mercantilistas, se não
32
498 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA os l e t r a d o s c h in e s e s 499

levarmos em conta as situações de em ergência que, considerando m ais!) de força suficiente, como na Inglaterra, para colocar a
a natureza carism ática da autoridade, eram sempre politica adm inistração do Estado a seu serviço.
mente perigosas. Pelo que se sabe, as tentativas mais grandiosas
de estabelecer um a organização econômica unificada foi plane
8. Su l t a n ism o e Eu n u co s c o mo A d v e r sá r io s
jada por W an g A n Shi, que no século XI tentou estabelecer
P o l ít ic o s d o s L etrados
um monopólio comercial estatal de todos os gêneros. A lém das
vantagens fiscais, o plano pretendia conseguir a regularização A situação política total dos letrados só pode ser compre
dos preços e tinha relação com um a reforma dos tributos agrá endida ao compreendermos as forças contra as quais tinham
rios. A tentativa falhou. de lutar. Podemos ignorar, no caso, as heterodoxias, pois delas
Como a economia estava praticam ente entregue a si mesma, trataremos mais adiante.
a aversão à “intervenção estatal” nos assuntos econômicos tor N a A ntigüidade, os principais adversários dos letrados eram
nou-se um sentimento duradouro e básico. D irigiu-se parti as “grandes fam ílias” do período feudal que não desejavam
cularm ente contra os privilégios m onopolistas,52 que, como me ser afastadas de seu monopólio dos cargos. Tendo de acomo
didas fiscais, são comuns ao patrim onialism o em toda parte. dar-se às necessidades do patrim onialism o e à superioridade do
T al sentimento, porém, era apenas um a atitude, entre as muitas conhecimento da escrita, elas encontraram formas de abrir o
que resultaram da convicção de que o bem-estar dos súditos caminho para seus filhos, através da preferência im perial.
dependia do carisma do governante. Essas idéias existiam, com Houve, em seguida, os capitalistas compradores de cargos:
freqüência, ao lado da aversão básica à intervenção estatal e resultado natural do nivelamento dos estamentos e da economia
levavam continuamente, ou pelo menos ocasionalmente, à in m onetária fiscal. No caso, a luta não podia levar a um êxito
terferência burocrática em tudo, o que também é típico do pa constante e absoluto, mas tão-somente ao êxito relativo, porque
trim onialismo. A lém disso, a adm inistração se reservava natu tôda exigência de guerra levava a adm inistração central, carente
ralm ente o direito de regular o consumo em épocas de escassez de dinheiro, à venda de preben das, como o ún ico meio de finan
— política que também é parte da teoria do confucionismo ciar a guerra. Isso ocorreu até épocas recentes.
(tal como se reflete) em numerosas normas especiais relativas Os letrados também tinham de combater os interesses ra-
a todos os tipos de gastos. A cim a de tudo, havia a aversão cionalistas da adm inistração, por um funcionalism o especializado.
típica contra um a diferenciação social demasiado aguda, deter Os funcionários especializados surgiram com destaque já em 601,
m inada de forma exclusivam ente econômica pela livre troca sob o Governo de W en ti. D urante as dificuldades das gu er
no mercado. Essa aversão existe, é claro, em toda burocracia. ras defensivas, em 1068, no regim e de W an A n Shi, eles des
A crescente estabilidade da situação econômica sob condições frutaram um triunfo rápido e completo. M as a tradição voltou
de um império m undial social e homogeneamente composto, a impor-se, e dessa vez para sempre.
economicamente auto-suficiente, não perm itia o aparecimento Restava apenas um inim igo im portante e permanente dos
de problemas econômicos como os discutidos na literatura in letrados: o sultanism o e o sistema de eunucos que o ap o iava.63
glesa do século X VII. Não havia um a cam ada burguesa cons A influência do harém foi, portanto, vista com profunda des
ciente de si, que não pudesse ser ignorada politicamente pelo confiança pelos confucianos. Sem a percepção dessa luta, a
Governo e a cujos interesses os panfletários da época, na In gla H istória chinesa é difícil de ser compreendida.
terra, se dirigissem prim ordialm ente. Como ocorrc sempre em
condições burocráticas patrim oniais, o Governo só teve de tomar A luta constante dos letrados contra o sultanismo, que durou
conhecimento sério da atitude das corporações mercantis de uma dois milênios, começou sob Sh i-H w ang-T i. Continuou em todas
as dinastias, pois naturalm ente os governantes enérgicos procura
forma “estática” e quando a manutenção da tradição e dos pri
ram sempre romper os laços que os prendiam ao estamento dos
vilégios especiais das corporações estavam em jogo. D inam ica
letrados, com a ajuda dos eunucos e dos parv en u s plebeus. N um e
mente, porém, as corporações mercantis não entravam em jogo,
rosos letrados que tomaram posição contra essa forma de abso-
porque não constituíam interesses capitalistas expansivos {n ão
500 ENTSAIOS DE SOCIOLOGIA OS LETRADO S C H IN E S E S 501
lutismo tiveram de dar a vida para m anter o seu estamento no dos Boxers, fé que lhe explica toda a política, certamente deve
poder. M as a longo prazo, e repetidamente, os letrados ven ser atribuída à influência dos eunucos.59 Em seu leito de mor
ceram. 54 Cada seca, inundação, eclipse do sol, derrota m ilitar te, essa impressionante m ulher deixou seu conselho: 1) jam ais
e qualquer acontecimento que representasse um a ameaça geral perm itir que um a m ulher voltasse a governar na C hina, e 2)
aum entavam o poder dos letrados, pois eram considerados como abolir para sempre o sistema de eunucos.60 Esse conselho foi
conseqüência da quebra da tradição e do afastamento do modo seguido de modo diverso do que ela sem dúvida pretendera —
de vida clássica, que os letrados protegiam e que era repre se as notícias são exatas. Mas não podemos duvidar de que
sentado pelos censores e pela “A cadem ia H anlin ”. Em todos para o confuciano autêntico tudo o que ocorrera, desde a “revo
esses casos, a “livre discussão” estava assegurada, pedia-se o lução” e a queda da dinastia, apenas confirma a veracidade da
conselho do trono e o resultado era sempre a cessação da forma fé na significação do carisma da virtude clássica da dinastia.
não-clássica de Governo, execução ou banimento dos eunucos, N a hipótese improvável, mas possível, da restauração confu-
um a retração da conduta que voltava aos esquemas clássicos, em ciana, a convicção seria explorada nesse sentido. Os confucio-
suma, o ajuste às exigências dos letrados. nistas, que são em últim a análise os letrados pacificistas orien
O sistema de harém foi um perigo considerável, devido à tados para o bem-estar político interno, naturalm ente viam com
forma pela qual a sucessão ao trono estava determ inada. Os aversão, ou falta de compreensão, o poder m ilitar. Já falamos
imperadores que não tinham idade ficavam sob a tutela das de sua relação com os oficiais e vimos que todos os A n ais estão
m ulheres; por vezes, esse Governo de saias tornava-se habitual. cheios delas. Encontram-se neles protestos contra a transforma
A últim a Im peratriz-M ãe, Tsu hsi, tentou governar com a ajuda ção dos “pretorianos” em censores (e funcionários). 61 Como
de eunucos.55 Não discutiremos a essa altura os papéis que os eunucos eram especialmente populares como favoritos e ge
tauístas e budistas desempenharam nessas lutas, que percorrem nerais, ao modo dos Narses, a inim izade contra o exército pa
toda a H istória da C hina — por que e até que ponto foram os trim onial exclusivamente sultanista se im punha. Os letrados
participantes naturais das coalizões, especificamente dos eunucos, orgulhavam -se de ter derrubado o usurpador m ilitar popular
e até que ponto foram coalizacionistas por constelação. W an g M ang. O perigo de governar com plebeus foi sempre gran
Mencionaremos, de passagem, que, pelo menos ao confucio- de, com os ditadores, mas essa foi a única tentativa conhecida na
nismo moderno, a Astrologia foi considerada como um a supers C hina. Os letrados, porém, sujeitaram -se ao poder de facto,
tição não-clássica.56 Julgava-se que ela competia com a signi mesmo quando puram ente usurpador, como o de H an, ou fruto
ficação exclusiva do carisma T ao do Imperador, para o curso da conquista, como o poder dos manchus mongóis. Submete
do Governo. O riginalm ente, isso não ocorrera. A concorrên ram-se embora tivessem de fazer sacrifícios — os m anchus ocupa
cia departam ental da Academ ia H anlin contra o corpo cole- ram m ais de 50% dos cargos, sem terem qualificações educa
giado de astrólogos talvez tenha desempenhado um papel deci cionais. Os letrados submetiam-se ao governante, desde que
sivo; 07 talvez também a origem jesuítica das medidas astronô esse, por sua vez, se sujeitasse às suas exigências ritualistas e
micas tivesse influência nisso. cerim oniais; somente en tão, na linguagem m oderna, eles se aco
N a opinião dos confucianos, a fé na m ágica cultivada pelos modavam e adotavam um a posição “realista”.
eunucos provocava toda desgraça. Tao Mo, em seu M emorial “Constitucionalm ente” — e foi essa a teoria dos confucianos
do ano de 1901 censurava a Im peratriz pelo fato de em — o im perador só podia governar usando os letrados aprovados
1875 o verdadeiro herdeiro do trono ter sido elim inado por nos exames como funcionários; “classicam ente”, ele só podia
sua culpa, e apesar do protetto do censor, pois o censor W u governar usando os funcionários confucianos ortodoxos. Q ual
Ko T u havia manifestado essa opinião pelo suicídio. O memo quer desvio em relação a essa regra era considerado como capaz
rial póstumo de Tao Mao à im peratriz e sua carta ao filho de provocar desastre e, no caso de insistência, a queda do impe
distinguiam -se pela sua beleza m áscu la.08 Não pode haver a rador e a ruína da dinastia.
menor dúvida de sua convicção sincera e prcfunda. Tam bém
a fé da im peratriz, e de numerosos príncipes no carisma mágico
Notas

I. ESCORÇO BIOGRÁFICO

1. M arianne Weber, M a x W eb er : ein L eb en sb ild (Tübingen,


1926), pp. 57-8. Essa bela e completa biografia escrita pela viúva
de Max W eber é nossa principal fonte de fatos, bem como das
várias interpretações nesse esboço da vida de Weber. Uma segunda
fonte prim ária de grande valor é o Ju g en d b riefe de W eber (Tü
bingen, s .d .) .
2. ibid., p. 61.
3. Ibid ., p. 72.
4. ibid., p. 75.
5. Ibid., pp. 75 e s.
6. Ibid., p. 77.
7. M ax W eber, Ju g en d b riefe, pp. 191-2.
8. Ver este volume, pp. 140-53 e pp. 382-6.
9. J u g en d b riefe, p. 221.
10. M arianne W eber, op. cit., p. 102.
11. Ibid., p. 393.
12. Ibid., p. 249.
13. Ibid., p. 254.
14. Ibid., p. 255.
15. Ibid., p. 261.
16. Ver este volume, “Rejeições Religiosas do M undo”, p. 407.
17. Ver capítulo XIV, “Capitalismo e Sociedade R ural na Ale
m anha”, neste volume.
18. T he A u to b iog raphies of E d w a rd G ibbon, organizado por
John M urray (Londres, 1896), p. 270.
19. M arianne Weber, op. cit., p. 296.
20. Ibid., p. 300.
21. Ib id ., p. 315.
22. As observações sobre as seitas americanas, pp. 348-51 deste
volume, incorporam , quase que literalm ente, trechos encerrados ori
ginalmente nas cartas que Weber escreveu à mãe, durante suas via
gens pela América.
23. Charles Sealsfield, L ebensbilder aus beiden H em isphaeren
(Zurique, 1835), Zw eiter Teil, pp. 54, 236.
24. G esa m m elte P olitische S c h rifte n (M unique, 1921), p. 483.
25. M arianne Weber, op. cit., p. 359.
26. Ibid., pp. 361-2.
504 E N S A IO S DE SO CIO LO G IA NOT AS 505

27. Ibid., p. 379. 17. Ibid., pp. 664-5.


28. Ibid., p. 610. 18. C arl Jentsch, “Parlam ente und Parteien in Deutschten
29. ibid., p. 527. Reiche”, D ie N eu e R undschau (abril de 1906), pp. 385-412.
30. Gesammelte Aufsaetze zur Relig'ionssoziologie (Tübingen, 19. P olitische S ch riften , pp. 469 e s.
1922-3), vol. II, p. 174. 20. E rnst Troeltsch, “Das logische Problem der Geschichtsphi
31. M arianne Weber, op. cit., p. 360 (28 de fevereiro de 1906). losophie”, Der H istorism us und seine P roblem e (Tübingen, 1922),
32. Ver, por exemplo, Gesammelte Aufsaetze zur Relig'ionssozio Erstes Buch, p. 754.
logie, vol. III, pp. 295, 319-20. 21. John S tuart Mill, P rinciples of P olitical E conom y (Boston,
33. M arianne Weber, op. cit., p. 403 (1907). 1848), vol. I, p. 379.
34. “La famille est donc, si l ’on veut, le prem ier modèle des
sociétés politiques: le chef est l ’image du père, le peuple est l ’image
des enfants; et tous, étant nés égaux et libres, n ’aliènent leur liberté III . ORIENTAÇÕES IN TELECTUAIS
que pour leur utilité. Toute la différence est que, dans la famille,
l ’am our du père pour ses enfants le paye des soins q u ’il leur rend; 1. A u g u s t B e b e l, A lts m ein em L eb en ( S t u t t g a r t , 1911), Z w e ite r
et que, dans l ’Etat, le plaisir de com mander supplée à cet am our T e il. p . 419.
que le chef n ’a pas pour ses peuples.” Contrat Social, capítulo 2, 2. L u d w ig B a m b e r g e r , E rinnerun gen ( B e r lim , 1899) p. 46.
parágrafo 3. 3. M a x W e b e r , “D e r S o z ia lis m u s ”, em G esa m m elte A u fsa etze
zur Soziologie u n d S o zia lp o litik (T ü b in g e n , 124). p. 508.
II. pr e o c u pa ç õ e s po l ít ic a s 4. “ A g r a r g e s c h ic h t e d e s A lt e r t u m s ”, H a ndw örterbuch des Staats
w issenschaften ( I e n a , 1895-7), v o l. I. p. 182.
1. M arianne Weber, Max Weber: ein Lebensbild, pp. 124-5. 5. C f. W irtsc h a ft u n d G esellschaft, p. 768.
2. Ibid., p. 126. Escrito em fins da década de 1880. 6. C f. W irtsch a ft u n d G esellschaft, p p . 758 e s.
3. Ibid., pp. 129, 130. 7. W . E . H . L e c k y , H istory of R ationalism (N o v a Y o rk , 1867),
4. Ibid., pp. 137-8. v o l. I, p . 310.
5. Gesammelte Politische Schriften (Munique, 1921), capítulo I. 8. W irtsch a ft u n d G esellschaft, v o l. I, p. 148.
6. Ibid., pp. 24-5. 9. C f. G esam m elte A u fsa etze zu r W issenschaftslehre (T ü b in g e n ,
7. Sobre esses aspectos, cf. E ckart Kehr, “Englandhass und 1922), p p . 132, 142.
W eltpolitik”, em Zeitschrift für Politik, organizado por Richard 10. G esam m elte A u fsa etze zu r W issenschaftslehre, p. 415; cf.
Schm idt e Adolf Grabowsky (1928), vol. VII, pp. 500-26, e sua análise ta m b é m W irtsc h a ft u n d G esellschaft, p a r te I, p . 1.
mais geral do período em “Schlachtflottenbau und Parteipolitik, 11. A . C o m te , P hilosophie P ositive, v o l. IV , p. 132.
1894-1901” (1930). De um ponto de vista diferente, Johannes H aller 12. C f . A ro o n , R .. L a Sociologie A llem a n d e ( P a r is , 1935), p .
chega a conclusões idênticas. Cf. seu Die Aera Bülow (S tuttgart 146.
e Berlim, 1922). 13. W irtsch a ft u n d G esellschaft, v o l. I, p. 800.
8. O ensaio de Weber, “As Seitas Protestantes e o Espírito 14. R eligionssoziologie, v o l. I, p . 265.
do Capitalism o” (capítulo X II), começou como um artigo de jornal 15. Ibid., v o l. I, p . 128, n o ta 3.
no Frankfurter Zeitung; foi depois ampliado e reproduzido em 16. A lé m id o Bern e do M al, c a p ítu lo 4, a fo ris m o 69.
Christliche Welt. Cf. capítulo XII, nota 1. 17. Reliçfionssoziologie, v o l. III, p p . 321-2.
9. “Queremos que a social-democracia se torne nacional. Se 18. Relig'ionssoziologie, v o l. I, p. 252. C f. c a p ítu lo X I. p. 323
eles não realizarem tal desejo, é sua culpa. Nossa tarefa é apoiar d ê s te v o lu m e .
o Nacional Socialismo.” Pastor Naum ann citado em Eugen Richter, 19. L e o n T r o ts k y , G erm any, W h a t N ext? (N o v a Y o r k , 1932),
Politisches A B C Buch (Berlim, 1903)), p. 145. É interessante que p . 183.
esse pequeno partido tenha recebido mais de 27.000 votos em 1898. 20. P a r a u m a h is tó r ia p le n a m e n te d o c u m e n ta d a d e s s a c o n tro
Mais de um quarto do total de votos verificou-se na província v é r s ia , v e r E p h ra im F is c h o ff, “ T h e P r o t e s t a n t E th ic a n d th e S p ir it
de Schleswig-Holstein, onde os nacionais-socialistas de H itler con o f C a p it a lis m ” , Social R esearch (v o l. X I, n'' 1, f e v e r e ir o d e 1944,
seguiram a m aioria absoluta na últim a eleição “liv re” em 1932. p p . 53-77). A t e n t a t iv a d e s s e a u t o r d e p ô r e m d ú v id a o in te ro s s e
10. M arianne Weber, op. cit., p. 238. d e W e b e r p e la é t ic a p r o te s ta n te co m o f a t o r c a u s a l in d is p e n s á v e l p a
11. Ibid., p. 413. re c e in d ic a r u m a d ir e ç ã o e r r a d a . W e b e r r e a lm e n t e “r e c o n h e c ia q u e
12. Ibid., p. 416. o c a p it a lis m o t e r i a s u r g id o s e m o p r o te s ta n tis m o , n a v e r d a d e q u e
13. Ibid., pp. 544, 562, 563. s u r g iu s e m e le em m u ito s c o m p le x o s c u lt u r a i s ” (p . 67). M a s isto
14. Ibid., p. 567. s e r e f e r e a p e n a s a o c a p it a lis m o político: a f ir m a r q u e W e b e r n ão
15. Ibid., p. 571. Cf. Politische Schriften, pp. 64-72. p r e t e n d e u “e s f o r ç a r - s e p o r a t r ib u ir a in f lu ê n c ia c a u s a l d a é t ic a p r o
16. M arianne Weber, op. cit., p. 591. t e s t a n t e ao a p a r e c im e n t o do c a p it a lis m o ” ( p . 76) é s u b e s t im a r o
506 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
NOTAS 507

t íg io do p o d e r ” . T o d a g u e r r a v ito r io s a a u m e n t a o p r e s tíg io d a
in t e r e s s e d e W e b e r p e la e x p lic a ç ã o c a u s a l e m fa v o r d e u m a s im p le s
c u lt u r a ( A le m a n h a [1 8 7 1 ], J a p ã o [1 9 0 5 ], e t c .) . A q u e s tã o d e s e a
“ e x p o s iç ã o d a r ic a c o n g r u ê n c ia d e a s p e c to s tã o d iv e r s o s d e u m a
g u e r r a c o n tr ib u i p a r a o “ d e s e n v o lv im e n to d a c u l t u r a ” n ão p o d e s e r
c u lt u r a co m o a r e lig iã o e a E c o n o m ia ” . P e lo c o n tr á r io , W e b e r
r e s p o n d id a d e u m a fo r m a “ is e n t a d e v a l o r ”. C e r t a m e n t e , n ão h á
s u s t e n ta v a q u e os f a to r e s e x c lu s iv a m e n te ec o n ô m ic o s e r a m in d is p e n
r e s p o s ta c l a r a ( A le m a n h a a p ó s 1 8 7 0 !), n e m m e s m o q u a n d o c o n s id e
s á v e is , m a s em s i m e sm o s in s u f ic ie n te s . E s ta v a c o n v e n c id o d e q u e
ra m o s a s e v id ê n c ia s e m p ír ic a s , p o is c a r a c t e r is t ic a m e n t e a a r t e e a
u m “f a t o r s u b je t iv o ” ta m b é m e r a n e c e s s á r io p a r a u m a e x p lic a ç ã o
l i t e r a t u r a a le m ã s n ã o s e o r ig in a r a m n o c e n tr o p o lític o d a A le m a n h a
c a u s a lm e n te s u f ic ie n t e . É e s s a a r a z ã o d e s u a in d a g a ç ã o in c e s s a n te
(N o ta d o s o r g a n iz a d o r e s a le m ã e s .)
d a fu n ç ã o d a s id é ia s no p ro c esso h is tó r ic o . A s id é ia s d ã o v a lo r a
tr a ç o s p s íq u ic o s e s p e c ia is ; a t r a v é s d e s s e v a lo r , e a t r a v é s d a c o n d u ta O tr e c h o s u p le m e n t a r q u e s e s e g u e é d e u m c o m e n tá r io d e M a x
h a b it u a l ( e p o r ta n to s o c ia lm e n t e c o n t r o la d a ) , p r o d u z -s e u m tip o d e W e b e r s ô b r e u m t r a b a lh o d e K a r l B a r t h ; Gesammelte Aufsaetze zur
p e r s o n a lid a d e e s p e c ia l. U m a v e z f ix a d o , m a n tid o e s e le c io n a d o p e la s Sociologie und Sozialpolitik (T ü b in g e n , 1 9 24), p p . 484-6. [G . & M .]
o r g a n iz a ç õ e s ( s e it a s ) , e s s e tip o d e p e r s o n a lid a d e a g e s e g u n d o os 7 . U m a a m e a ç a d e g u e r r a e m p r in c íp io s d a d é c a d a d e 1900.
p a d r õ e s d e c o n d u ta . E ste s são r e lig io s a m e n t e o r ie n ta d o s , m a s le v a m
a r e s u lt a d o s ec o n ô m ico s im p r e v is to s , o u s e ja , o c a p ita lis m o m e tó
d ic o do t r a b a lh o c o tid ia n o , co m s e u c o n s ta n te r e in v e s tim e n to d e V II. CLASSE, ESTAM EN TO , PARTIDO
lu c r o s em e m p r e s a s p r o d u tiv a s . C f. c a p ítu lo X II d e s te liv r o .
21 . M o e lle r v a n d e n B r u c k , Das D ritte Reich (H a m b u rg o , 1931; U m a r e f e r ê n c ia , f e it a em n o ta a o p é d e p á g in a , a u m tre c h o
3* e d iç ã o ) , p . 189. d e Wirtschaft und Gesellschaft, p . 277, fo i o m itid a , e u m a n o ta d e
2 2 . Archiv für Socialwissenschaft und Sozialpolitik, v o l. X II, p é d e p á g in a c o lo c a d a n o te x to . U m r á p id o esb o ço in a c a b a d o d e
p p . 347 e ss. u m a c la s s if ic a ç ã o d o s e s ta m e n to s fo i a c r e s c e n ta d o no te x t o a le m ã o
23. Wirtschaft und Gesellschaft, p. 817. e o m itid o a q u i.

VIII. BUROCRACIA
IV . A POLÍTICA COMO VOCAÇÃO

1. F r e d e r ic o II d a P r ú s s ia .
1 . Trachtet nach seinem Werk.
2 . C f . W irtschaft und Gesellschaft, p p . 73 e ss. e p a r t e II. (O r
2 . A lto f u n c io n á r io m in is t e r ia l e n c a r r e g a d o d e u m a d iv is ã o e s
g a n iz a d o r a le m ã o .)
p e c ia l e o b r ig a d o a a p r e s e n ta r r e la t ó r io s r e g u la r e s so b re s u a fu n ç ã o .
3 . “M in is t e r ia le n . ”
3 . C h e fe d e u m a d iv is ã o a d m in is t r a t iv a n u m m in is té r io .
4 . Geist. 4 . E s c rito a n t e s d e 1914. (N o ta do o r g a n iz a d o r a le m ã o .)
5 . O s “ a g e n t e s lo c a is ” do p a r tid o . 5 . L e m o s “T c h n is c h e L e is t u n g ” p o r “ T e c h n is c h e L e it u n g " . C f.
6 . W e b e r a lu d e à e v a s ã o do r a c io n a m e n t o e r e g r a s d e p r io a d ia n te , n» 6, p p . 249 e ss.
r id a d e e a o a p a r e c im e n to d e “m e r c a d o s n e g r o s ” d u r a n t e a a d m in is 6 . Erwerbende Schichten.
tr a ç ã o d e g u e r r a n a A le m a n h a , 1914 a 1918. 7 . L e m o s “V e r b r e it u n g d e r E in f lu s s s p h ä r e ” ao in v é s d e “V e r
7 . C o n s e lh o F e d e r a l. t r e ib u n g d e r E in f lu s s s p h ä r e ” .
8 . Landwirtschaftskammer. 8 . Q u a n d o , e m 1899, o R e ic h s t a g a le m ã o d is c u t iu u m p r o je to
9 . Handwerkskammer. p a r a a c o n s tr u ç ã o do M it t e lla n d K a n a l, o p a r tid o Junker c o n s e r v a
d o r c o m b a te u o p r o je t o . E n tr e o s c o n s e r v a d o r e s d o g r u p o p a r la
m e n t a r h a v ia v á r io s f u n c io n á r io s a d m in is tr a t iv o s Junkers, q u e se
c o lo c a r a m e m d e s o b e d iê n c ia ao K a is e r , q u e h a v ia o rd e n a d o a v o t a
VI. ESTRUTURAS DO PODER
ç ã o e m f a v o r do p r o je to . Os fu n c io n á r io s d e s o b e d ie n te s fo ra m
c h a m a d o s d e Kanalrebellen e t e m p o r a r ia m e n t e s u s p e n s o s d e se u s
1. E s c rito a n te s d e 1914. (N o ta do o r g a n iz a d o r a le m ã o .) carg o s. C f. B e r n a r d F ü r s t v o n B ü lo w , Denkwürdigkeiten ( B e r lim ,
2 . A ss o c ia ç ã o a lf a n d e g á r ia d o s E s ta d o s c e n t r a is a le m ã e s n a
19 30), v o l. I, p p . 293 e ss.
d é c a d a d e 1830.
9 . P r ín c ip e s t e r r i t o r ia i s a le m ã e s , d e s d e os s é c u lo s X III e X IV ,
3 . E s c rito a n t e s d e 1914. (N o ta do o r g a n iz a d o r a le m ã o .)
o c a s io n a lm e n te r e c o r r ia m a o s n o tá v e is f e u d a is e e c le s iá s t ic o s , p e
4 . C e r c a d e 590 a . C .
d in d o c o n s e lh o s . E co m o e s s e s c o n s e lh e ir o s a p e n a s v is it a v a m a c o rte ,
5 . O rg ã o d o s Junkers p r u s s ia n o s .
e r a m c h a m a d o s d e Räte von Haus aus, o u familiares domestici,
6 . O t e x t o s e in t e r r o m p e a q u i. N o ta s n o m a n u s c r ito in d ic a m
consiliarii, e tc .; cf. G e o rg L u d w ig v o n M a u r e r , Geschichte der Fronhö
q u e W e b e r p r e t e n d ia t r a t a r a id é ia e d e s e n v o lv im e n to do E sta d o
fe, der Bauernhöfe, und der Hofverfassung in Deutschland ( E r la n
n a c io n a l a t r a v é s d a H is tó r ia . A f r a s e s e g u in t e e n c o n tr a - s e à m a r
g e n , 1 8 6 2 ), v o l. II, p p . 237, 240 e ss., 312 e s.
g e m : “H á u m a ín t im a lig a ç ã o e n t r e o p r e s t íg io d a c u lt u r a e o p r e s
508 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA N OT AS 509

IX . A SOCIOLOGIA DA AUTORIDADE CARISM ÁTICA


11. P a r a a n á lis e m a is d e t a lh a d a , W e b e r r e f e r e - s e a tr e c h o s em
W irtsch aft un d Gesellsch aft.
1. C f. W irtsch aft und Gesellsch aft, s e ç õ e s 2 e 5 d a p a r te II. 12. A n stalt.
2. O m a n u s c r ito s e in te r r o m p e a q u i. (O rg a n iz a d o r a le m ã o .)

XII. AS SF.ITAS PROTESTANTES E O ESPÍRITO DO C A PIT A LISM O


X. O SIGNIFICADO DA DISCIPLINA
N o ta : A lg u m a s n o ta s de pé de p á g in a n e s te c a p ítu lo fo ra m
c o lo c a d a s no te x to .
1. S o ld a d o in f a n t e p e s a d a m e n te a r m a d o .
2. U n id a d e m ilit a r , c o m p a n h ia .
1. E ste e n s a io é u m a v e r s ã o m u ito a m p lia d a d e u m a r t ig o p u
3. A sarissa é a la n ç a m a c e d ô n ia , c e r c a d e 4 m e tro s , d e m a io r b lic a d o no Fran k fu rter Z eitun g, p á s c o a d e 1906, e e m s e g u id a a m
a lc a n c e q u e a la n ç a g r e g a c o m u m . p lia d o no Ch ristlich e W elt, 1906, p p . 558 e ss., 577 e ss., sob o t ítu lo
4. S u b d iv is ã o d a le g iã o r o m a n a , q u e t in h a 120 ou 60 h o m e n s. “I g r e ja s e S e it a s " . C it e i r e p e tid a m e n t e e s s e a r t ig o co m o u m a
5. H o m e n s e q u ip a d o s co m a la b a r d a , a r m a d e lo n g o ca b o . c o m p le m e n ta ç ã o d e A Ética Protestan te e o Espírito do Capitalism o.
6. C in c o m a g is tr a d o s e s p a r ta n o s . A p r e s e n te v e r s ã o é m o tiv a d a p e lo fa to d e q u e o c o n c e ito d e s e ita ,
t a l co m o d e s e n v o lv id o p o r m im (e m c o n tr a s t e co m o c o n c e ito d e
“ i g r e j a ” ) fo i — n e s s e m e io -te m p o e p a r a m in h a a le g r ia — a d o ta d o
X I. A PSICOLOGIA SOCIAL DAS RELIGIÕES M U N D IA IS e t r a ta d o d e fo r m a c o m p le ta p o r T ro e lts c h e m s e u Soz ialleh ren der
ch ristlich en Kirch en [O s En sinam entos So c ia is das Igrejas Cristãs].
1. A e s t a a lt u r a , W e b e r r e m e te o le it o r p a r a A Ética Protes­ A s d is c u s s õ e s c o n c e p tu a is , p o rta n to , p o d e m s e r t a n t o m a is f a c ilm e n t e
tan te e o Espirito do Capitalism o. C f. t a m b é m o e n s a io “A s S e it a s o m itid a s p o r q u a n to o n e c e s s á r io j á fo i d ito e m A Ética Protestan te e
P r o t e s t a n t e s e o E s p ír ito do C a p it a lis m o ”, c a p ítu lo 12 do p r e s e n te o Espírito do Capitalism o. E ste e n s a io e n c e r r a a p e n a s os d a d o s e s
liv r o . s e n c ia is q u e s u p le m e n t a m a q u e le t r a b a lh o .
2 . In brün stige. 2 . Os d e t a lh e s n ã o in te r e s s a m a q u i. F a z e m o s r e f e r ê n c ia ao s
3 . M is tic is m o m a o m e ta n o , o r ig in á r io d a P é r s ia do s é c u lo V III. r e s p e c tiv o s v o lu m e d e " A m e r ic a n C h u r c h H is t o r y S e r i e s ” — u m a
D e s e n v o lv e u u m s im b o lis m o c o m p le x o , m u ito u s a d o p e lo s p o e ta s . o b r a d e v a lo r d e s ig u a l.
4 . W undbrusche. 3 . A o r g a n iz a ç ã o d e s s a c o n g r e g a ç ã o r e lig io s a d u r a n t e a im i
5. N e sses c o n te x to s , to d o a s p e c to a v a lia t iv o d e v e s e r e lim in a d o g r a ç ã o p a r a a N o v a I n g la t e r r a f r e q ü e n t e m e n te p r e c e d e u a s o c ia liz a
do c o n c e ito d e “ v ir t u o s id a d e ”, t a l co m o h o je e x is t e . P r e f ir o a ç ã o p o lít ic a (a o m o d o do co n h e c id o p a c to d o s p e r e g r in o s ) . A ss im ,
e x p r e s s ã o “r e lig io s id a d e h e r ó ic a ” , d e v id o ao c a r á t e r b a s t a n t e c a r os I m ig r a n te s d e D o r c h e s te r d e 1619 u n ir a m - s e , p e la p r im e ir a v e z ,
r e g a d o d e “v ir tu o s o ”, m a s “h e r ó ic o ” é d e m a s ia d o in a d e q u a d o p a r a o r g a n iz a n d o u m a c o n g r e g a ç ã o r e lig io s a an tes d e e m ig r a r , e e le g e n d o
a lg u n s do s fe n ô m e n o s in c lu íd o s a q u i. [ M . W . ] W e b e r s e g u iu in u m p a s to r e u m p r o fe s s o r . N a c o lô n ia d e M a s s a c h u s e tts , a I g r e ja
v o lu n t a r ia m e n t e B r u n o B a u e r . V e r o c o n c e ito d e B a u e r d e “h a e r a u m a c o r p o ra ç ã o f o r m a l e c o m p le ta m e n te a u tô n o m a , q u e só
b it u e lle , k ü n s t le r is c h e V ir t u o s it ä t g e w o r d e n e F r ö m m ig k e it ”, e m seu a d m it ia , p o ré m , c id a d ã o s co m o m e m b ro s , e a f ilia ç ã o a e la e r a
Ein flu ss des en glisch en Quäk erth um s au f die deutsch e Cultur und a c o n d iç ã o p r e lim in a r p a r a a c id a d a n ia . D a m e s m a fo r m a , a p r in
au f das en glisch -russisch e Project ein er W eltk irche ( B e r lim , 18 78), c íp io , a p a r t ic ip a ç ã o n a I g r e ja e a b o a c o n d u ta (s ig n if ic a n d o a d m is
p p . 17 e s., 21, 60, 94, 99, 102, 140. sã o à C e ia do S e n h o r ) e r a m e x ig ê n c ia s p r e lim in a r e s p a r a o d ir e ito
6 . O U le m á r e p r e s e n t a u m c o n ju n to d e e r u d ito s t r e in a d o s n a d e c id a d a n ia e m N e w H a v e n ( a n t e s d e s e r e s t a in c o r p o r a d a ao
r e lig iã o e l e i m u ç u lm a n a s . S ã o os g u a r d iã e s d a t r a d iç ã o s a g r a d a . C o n n e c tic u t, a p e s a r d a r e s is t ê n c ia ) . No C o n n e c tic u t, p o ré m (em
A e le s s e o p õ em os líd e r e s r e lig io s o s q u e p r e te n d e m o c o n h e c im e n 1 6 50), a m u n ic ip a lid a d e e r a o b r ig a d a a m a n t e r a I g r e ja (u m a q u e b r a
to d a in t e r p r e t a ç ã o m ís tic a , e n ã o in t e le c t u a l, d a t r a d iç ã o . do r ig o r o s o p r in c íp io do in d e p e n d e n tis m o p a r a o p r e s b it e r ia n is m o ) .
7 . F r a d e m e n d ic a n te . Isso s ig n if ic o u im e d ia ta m e n t e m a io r f l e x ib ilid a d e , p o is a p ó s a
8 . E m p a r t e isto fo i a p r e s e n ta d o n o s e n s a io s s o b re o p r o te s in c o r p o r a ç ã o d e N e w H a v e n a I g r e ja a l i fic o u r e s t r it a à e m is s ã o de
ta n tis m o ; s e r á d is c u tid o co m m a is d e t a lh e s p o s te r io r m e n te . [M . W .] c e r t if ic a d o s d e q u e a r e s p e c tiv a p e s so a e r a r e lig io s a m e n te in o f e n s iv a
9 . Plam n ässigk eit. e d e r e c u r s o s s u f ic ie n t e s . M e sm o d u r a n t e o s é c u lo X V II, p o r o c a s iã o
10 . A seqüên cia d a s r e f le x õ e s — p a r a m e n c io n a r ta m b é m e s s e d a in c o r p o r a ç ã o d o M a in e e N e w H a m p s h ir e . o M a s s a c h u s e tts te v e
a s p e c to — é g e o g r á f ic a . S im p le s m e n te p o r a c a s o e la p a s s a do L e s t e d e a f a s t a r - s e d o r ig o r is m o d a s q u a lif ic a ç õ e s r e lig io s a s d o s d ir e ito s
ao O e ste . N a v e r d a d e , n ã o a d is t r ib u iç ã o e s p a c ia l e x t e r n a , m a s p o lític o s . N a q u e s t ã o d a f ilia ç ã o à I g r e ja , fo r a m n e c e s s á r ia s t a m
a s r a z õ e s in t e r n a s d a a p r e s e n ta ç ã o fo r a m m e n o s d e c is iv a s , co m o t a l b é m c o n c e ss õ e s , a m a is f a m o s a d a s q u a is é o A c o rd o do M e io - C a -
v e z s e to r n e c la r o a o b s e r v a ç ã o m a is a t e n ta . [M . W .l m in h o d e 1657. A lé m d isso , os q u e n ão p o d ia m m o s t r a r - s e r e g e n e
510 EN'SAIOS DE SOCIOLOGIA N o T a s 511

r a d o s fo ra m , n âo o b s ta n te , a c e ito s co m o m e m b ro s . M as até o t á v e l s e g u n d o a s E s c r it u r a s . U m a p e tiç ã o b r o w n is ta d e 1603 ao R e i


in íc io do s é c u lo X V III, n ão e r a m a d m itid o s à co m u n h ão . J a im e I e x i g ia a e x c lu s ã o d e to d o s os “m a lig n o s m e n tir o s o s ” d a ig r e ja
e s ò m e n te a a d m is s ã o d o s “f i é i s ” e s e u s filh o s . M a s o D ir e tó r io
4 . P o d e m o s r e la c io n a r c e r t a s r e f e r ê n c ia s d e lit e r a t u r a m a is
( P r e s b it e r ia n o ) do G o v e rn o d a I g r e ja d e ( p r o v a v e lm e n t e ) 1584 (p u
a n t ig a , n ão m u ito c o n h e c id a n a A le m a n h a . U m esboço d a h is tó r ia
b lic a d o p e la p r im e ir a v e z n a t e s e d e d o u to ra d o d e H e id e lb e r g , d e
b a t is t a é a p r e s e n ta d o em V e d d e r , A Short History of the Baptists
A . F . S c o t t P e a r s o n , 1912) e x i g ia no a r t ig o 37 q u e s o m e n te p e sso a s
(L o n d r e s , 1 8 97). S ô b r e H a n s e r d K n o lly s : C u lr o s s , Hanserd Knollys,
q u e s e h a v ia m s u b m e tid o ao c ó d ig o d e d is c ip lin a , o u litteras testimo-
v o l. II d o s M a n u a is B a t is t a s , o r g a n iz a d o s p o r P . G ou ld (L o n d re s ,
niales idôneas aliunde attulerint [ h a v ia m fo r n e c id o c a r t a s d e t e s t e
18 91).
m u n h o d e o u t r a s r e g iõ e s ] d e v ia m s e r a d m it id a s à co m u n h ã o .
P a r a a h is tó r ia do a n a b a tis m o : E. B . B a x , Rise and Fall of the 8. A n a t u r e z a p r o b le m á t ic a do p r in c íp io v o lu n t a r is t a s e c tá r io
Anabaptists (N o v a Y o r k , 1 9 02). S ô b r e S m y t h : H e n ry M . D e x te r,
s e g u e - s e lò g ic a m e n t e d a e x ig ê n c ia d e ecclesia pura p e la I g r e ja r e
The True Story of John Smyth, the Se-Baptist, as to ld by himself fo r m a d a ( c a lv in is t a s ) . E sse p r in c íp io d o g m á tic o , e m o p o siçã o ao
and his contemporaries (B o sto n , 1 8 81). A s im p o rta n te s p u b lic a ç õ e s
p r in c íp io d e s e it a , é n o t a v e lm e n te e v id e n t e n a s é p o c a s m o d e r n a s em
d a H a n s e r d K n o lly s S o c ie t y ( printed for the S o c ie ty by J . H adden ,
A . K u y p e r (o c o n h e c id o e x - p r im e ir o - m in is t r o ) . A p o s iç ã o d o g
C a s t le S t r e e t , F in s b u r y , 1846-54) j á fo r a m c it a d a s . O u tro s d o c u m e n m á tic a e m s e u e n s a io p r o g r a m á tic o f i n a l é e s p e c ia lm e n t e ó b v ia : Se-
to s o f ic ia is e m The Baptist Church Manual, p o r J . N ew to n B ro w n , paratie en doleanti (A m e s t e r d ã , 1 8 9 0 ). P a r a e le , o p r o b le m a é
D . D . ( F ila d é lf ia , A m e r ic a n B a p t is t P u b lis h in g S o c ie ty , 30 S . A r c h c o n s e q ü ê n c ia d a a u s ê n c ia d e u m p o sto d o u t r in á r io in f a l ív e l e n tr e
S t r e e t ) . S o b r e o s q u a e r e s , a lé m d a o b ra c it a d a d e S h a r p le s s : A .C . os c r is tã o s n ã o - c a tó lic o s . E ssa d o u t r in a a s s e v e r a q u e o Corpus d a
A p p le g a r th , The Quakers in Pennsylvania, s é r ie X , vo l. V III, IX dos I g r e ja v i s í v e l n ã o p o d e s e r o Corpus Christi d a a n t ig a I g r e ja R e
J o h n s H o p k in s U n iv e r s it y S t u d ie s in H is t o r y a n d P o lit ic a l S c ie n c e . fo r m a d a , m a s q u e d e v e p e r m a n e c e r d iv id id o no te m p o e e sp a ç o ,
G . L o r im e r , Baptists in History (N o v a Y o r k , 1 9 0 2 ), J . A . S e is s , B a p tis t e a s d e f ic iê n c ia s d a n a t u r e z a h u m a n a d e v e m c o n tin u a r p e c u lia r e s a
System Examined ( L u t h e r a n P u b lic a t io n S o c ie ty , 1902). e le . U m a I g r e ja v i s í v e l s e o r ig in a e x c lu s iv a m e n t e a t r a v é s d e u m
S o b r e a N o v a I n g la t e r r a ( a lé m d e D o y le ) : The Massachusetts ato da vontade, p o r p a r t e d o s c r e n te s , e e m v ir t u d e d a a u t o r id a d e
Historical Collection; a lé m d isso , W e e d e n , Economic and Social His q u e lh e s é d a d a p e lo C ris to . D a í a potestas ecclesiastica p o d e e s t a r
tory of New England, 1620-1789, 2 v o ls . D a n ie l W . H o w e, The Puritan d e p o s ita d a n ã o n o p r ó p r io C r is to , n e m n o s m inistri, m a s a p e n a s n a
Republic ( I n d ia n á p o lis , B o b b s - M e r r ill C o .). c o n g r e g a ç ã o d e c r e n te s . (N isso , K u y p e r s e g u e V o ê t.) A c o m u n id a
S o b r e o d e s e n v o lv im e n to d a id é ia do “A c ô r d o ” no v e lh o p r e s - d e m a io r s e o r ig in a a t r a v é s d a a s so c ia ç ã o , l e g a l e v o lu n t á r ia , d a s
b it e r ia n is m o , s u a d is c ip lin a e c le s iá s t ic a e s u a s r e la ç õ e s co m a I g r e ja co n g reg açõ es. E ssa a s so c ia ç ã o , p o ré m , d e v e s e r u m a obrigação re
o f ic ia l, e co m o s c o n g r e g a c io n a lis ta s e s e c tá r io s v e r : B u r r a g e , The ligiosa. O p r in c íp io ro m a n o , s e g u n d o o q u a l u m m e m b r o d a I g r e ja
Church Covenant Idea (1904) e The Early English Dissenters (1 9 1 2 ). é eo ip so m e m b r o d a p a r ó q u ia d e s u a c o m u n id a d e lo c a l, d e v e s e r
A lé m d isso , W . M . M a c p h a il, The Presbyterian Church (1 9 1 8 ). J . r e je it a d o . O b a tis m o f a z d ê le u m s im p le s membrum incompletum
B r o w n , The English Puritans (1 9 1 0 ). D o c u m en to s im p o r ta n te s e m p a s s iv o , s e m lh e c o n c e d e r d ir e ito s . N ão o b a tis m o , m a s a p e n a s a
U s h e r , The Presbyterian Movement, 1584-89 (C o m . S o c., 1905). D am o s belijdenis en stipulatie (c o n fis sã o d e f é e p r o f is s ã o d e b o a v o n ta d e )
a q u i a p e n a s u m a lis t a m u ito a p r e s s a d a do q u e é r e le v a n t e p a r a d á a f ilia ç ã o à c o n g r e g a ç ã o , n o s e n tid o le g a l. A s im p le s f ilia ç ã o é
n ó s. id ê n t ic a à s u b o r d in a ç ã o à disciplina ecclesiae (n o v a m e n te , d e ac o rd o
5 . N o s é c u lo X V II isto e r a tã o a c e ito q u e B u n y a n , co m o d is s e co m V o ê t ) . A l e i d a I g r e ja , ao q u e s e a c r e d it a , o c u p a -s e d e
m o s a n t e r io r m e n t e , fa z o S r . A m a n te - d o - D in h e ir o a r g u m e n t a r q u e r e g r a s feitas pelo homem p a r a a I g r e ja v is ív e l, q u e , e m b o r a d e p e n
a p e s s o a p o d e a t é m e sm o t o m a r - s e r e lig io s a a fim d e e n r iq u e c e r , d e n te d a o r d e m d e D eu s, n ã o r e p r e s e n t a e s s a o r d e m e m s i m e s m a .
e s p e c ia lm e n t e p a r a c o n s e g u ir c lie n t e s ; isso p o r q u e n ão d e v e t e r im (C f. V o e t, P o l. Eccles. vo L I, p p . 1 e 1 1 ). T o d a s e s s a s id é ia s são
p o r t â n c ia a r a z ã o p e la q u a l a p e s s o a s e t o r n a r e lig io s a . ( Pilgrims’ v a r ia n t e s in d e p e n d e n t is ta s d a l e i c o n s t it u c io n a l a u t ê n t ic a d a s I g r e ja s
Progress, e d . T a u c h n itz , p . 114.) r e f o r m a d a s e im p lic a m u m a p a r tic ip a ç ã o a t iv a d a congregação, e
6 . T h o m a s C la r k s o n , Portraiture of the Christian Profession p o r ta n to do la ic a t o , n a a d m is s ã o d e n o v o s m e m b ro s . (V o n R ie k e r
and Practice of the Society of the Friends. T e r c e ir a e d iç ã o (L o n d e s c r e v e u e s s a l e i e s p e c ia lm e n t e b e m .) A p a r t ic ip a ç ã o c o o p e r a tiv a
d r e s , 1 8 67), p . 276. (A p r im e ir a e d iç ã o fo i p u b lic a d a a p r o x im a d a d e to d a a c o n g r e g a ç ã o ta m b é m c o n s t it u ía o p r o g r a m a d o s in d e p e n
m e n te e m 1830.) d e n te s b r o w n is ta s d a N o v a I n g la t e r r a . A ê l e a d e r ir a m n u m a lu t a
c o n s ta n te c o n tr a a f a c ç ã o “jo h n s o n is t a ”, q u e a v a n ç a v a co m ê x ito , e
7 . A s fo n te s são a s d e c la r a ç õ e s d e Z w in g li, F ü s s li I, p . 228, cf.
q u e d e f e n d ia o g o v e r n o d a I g r e ja p e lo s “a n c iã o s ”. N ão é p r e c is o
ta m b é m p p . 243, 253, 263, e s e u “Elenchus contra catabaptistas”,
d iz e r q u e s o m e n te o s “r e g e n e r a d o s ” d e v e r ia m s e r a d m itid o s ( s e
Werke III, p p . 357, 362. E m s u a p r ó p r ia c o n g r e g a ç ã o , Z w in g li c a
g u n d o B a i lli e , “s o m e n te u m e m q u a r e n t a ” ) . N o s é c u lo X I X , a
r a c t e r is t ic a m e n t e t e v e m u it a s d if ic u ld a d e s c o m o s a n t ip e d o b a tis t a s
t e o r ia d a I g r e ja d o s in d e p e n d e n te s e s c o c e s e s e x i g ia , ig u a lm e n t e , q u e
[ c o n t r á r io s ao b a tis m o do r e c é m - n a s c id o ]. O s a n t ip e d o b a tis t a s , p o r
a a d m is s ã o só fo s s e c o n c e d id a p o r r e s o lu ç ã o e s p e c ia l ( S a c k , lo c.
s u a v e z , v ia m a “s e p a r a ç ã o ” b a t is t a , d a í o v o lu n ta r is m o , com o o b je -
512 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA NOTAS 513

cit.). M a s a t e o r ia d a I g r e ja d e K u y p e r , em s i, n ão tem , é c la r o a d e c is ã o é e s p e c ia lm e n t e a f ir m a t iv a q u a n d o o s c r e d o r e s s e c o n s i
um c a r á t e r “c o n g r e g a c io n a lis t a ” . d e r a m s a tis f e ito s p e lo a c o rd o e q u a n d o o d e v e d o r f a lid o c o n fe s s a a
S e g u n d o K u y p e r , a s c o n g r e g a ç õ e s in d iv id u a is e s tã o r e lig io s a s u a c u lp a . S o b r e a a d m is s ã o d o s lo m b a rd o s, v e r a c im a . A e x c lu s ã o
m e n te o b r ig a d a s a f i lia r - s e e a p e r t e n c e r à I g r e ja com o u m todo. d a s e s p o s a s e m c a so d e q u e r e la s , R e its m a III, p . 91. A r e c o n c ilia ç ã o
S ó p o d e h a v e r u m a I g r e ja le g ít im a n u m lu g a r . E s s a o b rig a ç ã o d e p a r t e s n u m a d is p u t a l e g a l é c o n d iç ã o p r e lim in a r p a r a a a d m is sã o .
d e f i lia r - s e só é a b a n d o n a d a , e a o b r ig a ç ã o d e separatie só s u r g e , D u r a n te o te m p o e m q u e d u r a r a d is p u t a , d e v e m p e r m a n e c e r a f a s
g u a n d o doleantie fa lh o u ; is to é, u m a t e n t a t iv a d e v e t e r sid o f e it a ta d a s d a c o m u n h ã o . H á a a d m is s ã o c o n d ic io n a l d e u m a p e s so a q u e
p a r a m e lh o r a r a I g r e ja m a lig n a co m o u m to d o , a t r a v é s do p ro testo te n h a p e r d id o u m a d e m a n d a e h a j a r e c o r r id o . Ib id., III, p . 176.
a tiv o e d a o b s tr u ç ã o p a s s iv a (doleeren, s ig n if ic a n d o p r o te s ta r , o co rre C a lv in o b e m p o d e t e r s id o o p r im e ir o a t e r fo r ç a d o , n a c o n g r e
co m o te r m o té c n ic o no s é c u lo X V I I ) . E f in a lm e n t e , s e fo ra m e s g a ç ã o d e S t r a s s b o r g d e e m ig r a n t e s fr a n c e s e s , a e x c lu s ã o d a C e ia
g o ta d o s to d o s os m e io s , e s e a t e n t a t iv a fo i in ú t il, e a fo r ç a p re d o do S e n h o r d a p e s s o a c u jo e x a m e d e d ig n id a d e n ã o fo sse s a tis f a t ó r io .
m in o u , e n tã o a s e p a r a ç ã o é o b r ig a tó r ia . N e sse caso , é c la ro , u m a (M a s e n tã o o m in is tr o , e n ã o a c o n g r e g a ç ã o , e r a q u e m d e c id ia .)
c o n s titu iç ã o in d e p e n d e n te é o b r ig a tó r ia , j á q u e n ão h á “s ú d ito s ” n a S e g u n d o a d o u t r in a g e n u ín a d e C a lv in o (I n s t. C h r . R e i. IV , c a p ítu lo
I g r e ja e j á q u e os c r e n te s , p e r se, t ê m u m p o sto d a d o p o r D eu s. 12, p . 4) a s e x c o m u n h õ e s só s e d e v ia m a p l ic a r le g it im a m e n t e aos
A r e v o lu ç ã o p o d e s e r u m d e v e r p a r a co m D eu s. (K u y p e r , De ré p ro b o s. (N d l u g a r c ita d o , a e x c o m u n h ã o é c h a m a d a d e p r o m u l
conflit gekcrmen, p p . 30-31.) K u y p e r (co m o V o é t) s e g u e a a n t ig a g a ç ã o d a s e n te n ç a divina.) M a s n o m e s m o lu g a r (c f. p . 5) e la t a m
o p in iã o in d e p e n d e n te d e q u e s o m e n te o s q u e p a r tic ip a m d a comunhão b é m é t r a t a d a co m o m e io d e “ a p e r f e iç o a m e n t o ”.
da Ceia do Senhor são m e m b r o s p le n o s d a I g r e ja . E s o m e n te e s te s N a A m é r ic a , h o je e m d ia , e n t r e o s b a t is t a s , a e x c o m u n h ã o fo r m a l,
p o d e m a s s u m ir a r e s p o n s a b ilid a d e p e lo s f ilh o s d u r a n t e o b a tism o . p e lo m e n o s n a s á r e a s m e tr o p o lita n a s , é m u it o r a r a . N a p r á t ic a , é
U m c r e n te , no s e n tid o teológ‘ico, é a q u ê le q u e se c o n v e r te u in t im a s u b s t itu íd a p e lo “a f a s t a m e n t o ”, e n e s s e c a s o o n o m e d a p e s so a é
m e n te ; no s e n tid o le g a l, o c r e n te é a p e n a s a q u ê le q u e é admitido s im p le s m e n te e d is c r e t a m e n t e r is c a d o d o r e g is t r o . E n tr e a s s e ita s e
à C e ia do S e n h o r. os in d e p e n d e n te s , le ig o s s e m p r e fo r a m o s p o r t a d o r e s t íp ic o s d a d is
9. O p r é - r e q u is it o f u n d a m e n t a l, p a r a K u y p e r , é q u e c o n s titu i c ip lin a ; ao p a s s o q u e a d is c ip lin a d a I g r e ja c a lv in is t a - p r e s b it e r ia n a
u m p e c a d o n ã o e x p u r g a r d a c o m u n h ã o s a c r a m e n t a l o s n ã o -c r e n te s . o r ig in a l lu t a v a e x p r e s s a e s is t e m a tic a m e n te p e lo d o m ín io s ô b r e o
( Dreigend ConjUct, 1886, p . 41; h á r e f e r ê n c ia a C o r. I, 11, 26, 27. 29; E stad o e a I g r e ja . N ão o b s ta n te , a t é m e s m o o “D ir e tó r io ” d o s p r e s
T im . I, 5, 22; A p o c. X V III, 4 ) . N ão o b s ta n te , d e ac o rd o com e le , a b it e r ia n o s in g le s e s d e 1584 (p. 14, n o ta 2 ) c o n v o c a v a u m n ú m e ro
I g r e ja ja m a is ju lg o u o e s ta d o d e g r a ç a “ p e r a n te D e u s ” — e m co n ig u a l d e a n c iã o s le ig o s e m in is tr o s à s c la s s e s e a o s p o sto s s u p e
t r a s t e co m os la b a d is t a s ( p ie t is t a s r a d i c a i s ) . M a s p a r a a d m is sã o r io r e s d o g o v e r n o d a I g r e ja .
à C e ia do S e n h o r , somente a crença e a conduta são d e c is iv a s . A s A s r e la ç õ e s m ú t u a s e n t r e os a n c iã o s e a c o n g r e g a ç ã o fo r a m
a t a s d o s S ín o d o s d a H o la n d a d o s s é c u lo s X V I e X V II estã o c h e ia s o c a s io n a lm e n te o r d e n a d a s d e fo r m a s d if e r e n t e s . T a l co m o o P a r
d e d is c u s s õ e s do s p r é - r e q u is ito s d e a d m is s ã o à C e ia do S e n h o r. P o r la m e n to L o n g o ( p r e s b it e r ia n o ) c o lo c a v a a d e c is ã o d e e x c lu s ã o d a
e x e m p lo , o S ín o d o d a H o la n d a do S u l d e 1574 c o n c o rd o u q u e a C e ia C e ia d o S e n h o r n a s m ã o s d o s a n c iã o s ( le ig o s ) , a s s im a P la ta f o r m a
do S e n h o r n ã o d e v ia s e r d a d a s e n ã o h o u v e s s e u m a congregação d e C a m b r id g e fe z o m e sm o a p r o x im a d a m e n t e e m 1647 n a N o v a
o r g a n iz a d a . O s a n c iã o s e d iá c o n o s d e v ia m t e r c u id a d o p a r a q u e I n g la t e r r a . A té m e a d o s do s é c u lo X I X , o s in d e p e n d e n t e s e sc o c e se s,
n e n h u m a p e s so a in d ig n a fo sse a d m it id a . O S ín o d o d e R o te r d ã d e p o ré m , c o s tu m a v a m t r a n s m it ir a n o t íc ia d e m á c o n d u ta a u m a co
1575 r e s o lv e u q u e to d o s os q u e tin h a m u m a v id a e v id e n te m e n te m is sã o . D e p o is d o r e la t ó r io d e s s a c o m is sã o , a t o t a lid a d e d a c o n g r e
o fe n s iv a n ã o d e v e r ia m s e r a d m itid o s . (O s a n c iã o s d a c o n g re g a ç ã o , g a ç ã o d e c id ia s o b r e a e x c lu s ã o , e m c o r r e s p o n d ê n c ia co m a o p in iã o
e n ão a p e n a s os p r e g a d o r e s , d e c id ia m a s a d m is sõ e s , e e r a q u a s e m a is r ig o r o s a d a r e s p o n s a b ilid a d e c o n ju n t a d e to d o s o s in d iv íd u o s .
s e m p r e a c o n g r e g a ç ã o q u e le v a n t a v a t a is o b je ç õ e s — co m f r e q ü ê n Isso c o r fe s p o n d ia a b s o lu ta m e n te à p o s iç ã o b r o w n is t a c it a d a c im a ,
c ia c o n tr a a p o lít ic a m a is f l e x ív e l d o s p r e g a d o r e s . C l , p o r e x e m s u b m e tid a a o R e i J a im e I e m 1603 (D e x te r , loc. cit., p . 303) ao p a sso
p lo , o c a so c ita d o p o r R e its m a [v o l. II, p . 2 3 1 ]. A q u e s tã o d e q u e os “jo h n s o n is t a s ” c o n s id e r a v a m a s o b e r a n ia d o s a n c iã o s ( e le ito s )
a d m is s ã o à C e ia do S e n h o r in c lu ía os c a s o s s e g u in te s : se o m a r id o co m o b íb lic a . O s a n c iã o s d e v e m s e r c a p a z e s d e e x c o m u n g a r a t é
d e u m a m u lh e r a n a b a t is ta p o d ia s e r a d m itid o à C e ia d o S e n h o r e r a m e sm o c o n tr a a d e c is ã o d a c o n g r e g a ç ã o (o c a s iã o d a s e c e s s ã o d e
c a s o r e s o lv id o p e lo S ín o d o d e L e y d e n , e m 1619, a r t ig o 114; s e u m A in s w o r t h ) . Q u a n to à s c o n d iç õ e s c o r r e s p o n d e n te s e n t r e os p r im e ir o s
c r ia d o d a L o m b a r d ia d e v ia s e r a d m it id o , S ín o d o P r o v in c ia l d e D e- p r e s b ite r ia n o s in g lê s e s , v e r a li t e r a t u r a c it a d a n a n o ta 4, a c im a , e
v e n t e r , 1595, a r t ig o 24; s e h o m e n s q u e d e c la r a v a m s u a b a n c a r r o t a , a t e s e d e d o u to r a d o d e P e a r s o n c it a d a n a n o ta 7, a c im a .
S ín o d o d e A lk m a a r , 1599, a r t ig o 11; ig u a lm e n t e o d e 1605, a r t ig o 10. Ò s p ie t is t a s h o la n d e s e s , in c id e n ta lm e n t e , a c r e d it a v a m no
28, e h o m e n s q u e h a v ia m fe ito a c o rd o . S ín o d o do N o rte d a H o la n d a m e sm o p r in c íp io . L o d e n s t e ijn , p o r e x e m p lo , a p e g o u - s e ao p o n to
d e E rik h u iz e n , 1618, G ra v . C la s s . A m s t e l N« 16, d e v ia m s e r a d m itid o s . d e v is t a d e q u e n ã o s e d e v e r ia c o m u n g a r co m n ã o - r e g e n e r a d o s ; e
A ú lt im a q u e s tã o é r e s p o n d id a n a a f ir m a t iv a , caso o consistorium e s t e s s ã o , p a r a e le , e x p r e s s a m e n t e o s q u e n ã o e v id e n c ia m o s sinais
ju lg u e s u f ic ie n t e a lis t a d e p r o p r ie d a d e s e o s ju iz e s a c h e m a s r e s e r d a r e g e n e r a ç ã o . F o i m e s m o a p o n to d e a c o n s e lh a r c o n tr a a o ra ç ã o
v a s d e a lim e n to e r o u p a a d e q u a d a s ao d e v e d o r e s u a f a m ília . M a s d o P a d r e -N o s s o c o m c r ia n ç a s , j á q u e e la s a in d a n ã o s e h a v ia m

33
514 E N SA IO S DE SO CIO LO G IA NOTAS 515

to m a d o o s “filh o s do S e n h o r ”. N a H o la n d a , K õ h le r e n c o n tro u , r id a d e r e lig io s a e s e c u la r . ( C a r t w r ig h t e x i g ir a e x p r e s s a m e n t e q u e


a in d a o c a s io n a lm e n te , a o p in iã o d e q u e o r e g e n e r a d o n ã o p e c a a b s o a e x c o m u n h ã o d o s p r ín c ip e s ta m b é m fo s se p e r m it id a .) N a v e r d a d e ,
lu t a m e n t e . A o r to d o x ia c a lv in is t a e u m c o n h e c im e n to e sp a n to so d a o e x e m p lo d a E s c ó c ia , o so lo c lá s s ic o d a d is c ip lin a p r e s b it e r ia n a e
B íb lia e r a m e n c o n tra d o s p r e c is a m e n t e e n t r e a s m a s s a s b u r g u e s a s . do d o m ín io c l e r i c a l c o n tr a o r e i, d e v ia t e r u m e f e ito d is s u a s ó r io .
T a m b é m n o c a s o e r a o m u ito o rto d o x o q u e , d e s c o n fia n d o d a e d u c a ç ã o 19. A f im d e e s c a p a r à p r e s s ã o r e lig io s a d o s p r e g a d o r e s o rto
te o ló g ic a e e n fr e n ta n d o a r e g u la m e n t a ç ã o d a I g r e ja d e 1852, q u e ix a - d o xo s, o s c id a d ã o s li b e r a is d e A m e s t e r d ã h a v ia m m a n d a d o o s filh o s
v a - s e d a r e p r e s e n t a ç ã o in s u f ic ie n t e d o s le ig o s n o S ín o d o ( a lé m d a à s c o n g r e g a ç õ e s v iz in h a s p a r a s u a s liç õ e s d e c r is m a . O Kerkraad
f a lt a d e u m a censura morum s u f ic ie n t e m e n te r ig o r o s a ) . C e r ta m e n te , [c o n c ílio d a I g r e ja ] d a c o n g r e g a ç ã o d e A m e s t e r d ã r e je it o u (e m
n e n h u m g r u p o lu t e r a n o o rto d o x o d a A le m a n h a t e r ia p e n sa d o n isso 1886) o r e c o n h e c im e n to d o s c e r t if ic a d o s d e c o n d u ta m o r a l d o s c o m u n -
n a ép o ca. g a n te s e m itid o s p o r e s s e s m in is tr o s . O s c o m u n g a n te s f o r a m e x
11. C ita d o e m D e x te r , CongregationaXism of the Last Three c lu íd o s d a C e ia do S e n h o r p o r q u e a c o m u n h ã o t in h a d e p e r m a n e c e r
Hundred Years as Seen in its Literature (N o v a Y o r k , 1 8 80), p. 97. p u r a e p o r q u e o S e n h o r , e n ã o o h o m e m , t in h a d e s e r o b e d e c id o .
12. D u r a n te o s é c u lo X V II, a s c a r t a s d e re c o m e n d a ç ã o d e b a Q u a n d o a c o m is s ã o s in o d a l a p r o v o u a o b je ç ã o c o n tr a e s s e d e s v io , o
t is t a s n ã o - r e s id e n t e s d a s c o n g r e g a ç õ e s lo c a is e r a m o p r é - r e q u is ito c o n se lh o d a I g r e ja r e c u s o u - s e a o b e d e c e r e a d o to u n o v a s r e g r a s .
p a r a a a d m is s ã o à C e ia do S e n h o r . O s n ã o - b a t is t a s só p o d ia m s e r D e a c ô rd o c o m e s ta s , a s u s p e n s ã o do c o n se lh o d a I g r e ja d e u ao
a d m itid o s d e p o is d e t e r e m s id o e x a m in a d o s e a p r o v a d o s p e la co n c o n c ílio a d is p o s iç ã o e x c lu s iv a s o b r e a I g r e ja . R e je it o u a c o m u n i
g r e g a ç ã o ( A p ê n d ic e à e d iç ã o d a H a n s e r d K n o lly s C o n fe ssio n d e d a d e co m o s ín o d o , e o s a n c iã o s le ig o s ( j á e n t ã o s u s p e n s o s ), T .
1689, W e s t C h u r c h , P a ., 1817.) A p a r tic ip a ç ã o n a C e ia do S e n h o r R u t g e r s e K u y p e r , to m a r a m , p o r u m a a r t im a n h a , a Nieuwe Kerk
e r a compulsória p a r a o m e m b ro q u a lif ic a d o . A n ã o - f ilia ç ã o à c o n [N o v a I g r e j a ] , a p e s a r d o s v i g ia s q u e h a v ia m s id o c o n tra ta d o s . (C f.
g r e g a ç ã o le g it im a m e n t e c o n s t it u íd a do lo c a l d e r e s id ê n c ia e r a co n H o g e r f e il, D e kerkelijke strijd te Amsterdam, 1886, e a s p u b lic a ç õ e s
s id e r a d a com o u m c is m a . E m r e la ç ã o à c o m u n id a d e o b r ig a tó r ia d e K u y p e r m e n c io n a d a s a c im a .) N a d é c a d a d e 1820 o m o v im e n to
co m o u t r a s c o n g r e g a ç õ e s , o p o n to d e v is t a b a t is t a a s s e m e lh a v a - s e d e p r e d e s t in a ç ã o j á h a v ia c o m e ç a d o so b a lid e r a n ç a d e B i ld e r d i jk
a o d e K u y p e r (c f. a c im a , n o ta 8 ) . M a s toda a a u t o r id a d e ju r is d i- e s e u s d is c íp u lo s , I s a a c d a C o s ta e A b r a h a m C a p a d o s e (d o is ju d e u s
c io n a l s u p e r io r à d a I g r e ja in d iv id u a l e r a r e je i t a d a . S o b r e a s litte- b a t iz a d o s ) . ( Devido à d o u t r in a d a p r e d e s t in a ç ã o , e l e r e je i t a v a , p o r
rae testimoniales ( c a r t a s d e r e c o m e n d a ç ã o ) e n t r e os “C o v e n a n te r s ” e x e m p lo , a a b o liç ã o d a e s c r a v id ã o n e g r a , co m o “u m a in t e r f e r ê n c ia
e os p r im e ir o s p r e s b ite r ia n o s in g lê s e s , v e r n o ta 7 e a lit e r a t u r a n a P r o v id ê n c ia ”, t a l co m o r e je i t a v a a v a c in a ç ã o !) C o m b a te r a m ,
c it a d a n a n o ta 4. z e lo s a m e n te , a f l e x ib il id a d e d a d is c ip lin a d a I g r e ja e a a d m in is t r a
1 3 . S h a w , Church History under the Covmwnwealth, v o l. II, ç ã o d o s s a c r a m e n to s à s p e s so a s in d ig n a s . O m o v im e n to le v o u a
p p . 152-65; G a r d in e r , Commomoealth, v o l. III, p . 231. s e p a r a ç õ e s . O s ín o d o d a Afgeschiedenen çfereformeerten Gemeente
14. E sse p r in c íp io fo i e x p r e s s o , p o r e x e m p lo , em r e s o lu ç õ e s (C o n g r e g a ç ã o S e p a r a d a d a R e f o r m a ) d e A m e s t e r d ã e m 1840 a c e ito u
co m o a d o S ín o d o d e E d a m , 1585 ( n a C o le ç ã o d e R e its m a , p . 1 3 9 ). os Dordrecht Canouns e r e je it o u q u a lq u e r tip o d e d o m ín io ( gezag )
15. B a x t e r , Eccles. Dir., v o l. II, d is c u t e d e t a lh a d a m e n te o a f a s “ d e n tr o o u a c im a d a I g r e j a ”. G ro e n v a n P r i n s t e r e r f o i u m do s
ta m e n to d o s m e m b ro s d u v id o s o s d a C e ia d o S e n h o r, n a c o n g r e g a d is c íp u lo s d e B i ld e r d i jk .
ç ã o (d e v id o ao a r t ig o 25 d a I g r e ja d a I n g la t e r r a ) . 2 0 . A s f o r m u la ç õ e s c lá s s ic a s sã o e n c o n tr a d a s n a “A m s te r d a m
16. A d o u t r in a d a P r e d e s t in a ç ã o t a m b é m r e p r e s e n t a a q u i o tip o C o n f e s s io n ” d e 1611 ( P u b lic a ç ã o d a H a n s e r d K n o lly s S o c ie ty , v o l.
m a is p u ro . S u a r e le v â n c ia e g r a n d e im p o r t â n c ia p r á t ic a e v id e n c ia m - X ) . A s s im , o a rtig o i 16 a f ir m o u : “ Q u e o s m e m b r o s d e t o d a I g r e ja
- s e co m m u it a c la r e z a n a a c e r b a lu t a s o b r e a q u e s tã o d e s e os e c o n g r e g a ç ã o d e v e m c o n h e c e r -s e m u t u a m e n t e . . . p o r ta n to , u m a
f ilh o s d o s r é p r o b o s d e v e r ia m s e r a d m itid o s ao b a tis m o d e p o is d e I g r e ja n ã o d e v e c o n s is t ir n u m a m u lt id ã o q u e n ã o p o s s a t e r c o n h e c i
t e r e m p r o v a d o a s u a d ig n id a d e . A s ig n if ic a ç ã o p r á t ic a d a d o u tr in a m e n to p r á t ic o u n s d o s o u tr o s ” . D a í, q u a lq u e r g o v e r n o s in o d a l e
d a p r e d e s tin a ç ã o fo i, p o ré m , p o s ta e m d ú v id a r e p e tid a s v e z e s e d e q u a lq u e r e s t a b e le c im e n t o d e a u t o r id a d e s c e n t r a is d a I g r e ja e r a m
fo r m a in ju s t a . T r ê s d a s q u a t r o c o n g r e g a ç õ e s r e f u g ia d a s d e A m e s - c o n s id e r a d o s , e m ú lt im a a n á lis e , co m o u m a a p o s ta s ia . Isso a c o n
t e r d ã e r a m a f a v o r d a a d m is s ã o d o s f ilh o s (n o in íc io do s é c u lo te c e u e m M a s s a c h u s e t ts e ig u a lm e n t e n a I n g la t e r r a , n o r e g im e d e
X V I I ) ; m a s n a N o v a I n g la t e r r a s o m e n te o “A c o rd o d o M e io - C a m in h o ” C r o m w e ll. A s r e g r a s , n e s s a é p o c a , e s t a b e le c id a s p e lo P a r la m e n t o
d e 1657 p ro v o c o u u m r e la x a m e n t o d e s s e p o n to . P a r a a H o la n d a , e m 1641, p e r m it ia m a to d a c o n g r e g a ç ã o d is p o r d e u m m in is tr o o rto
v e r t a m b é m n o ta 9. d o x o e o r g a n iz a r c o n f e r ê n c ia s . E ssa m e d id a f o i o s in a l p a r a o
17. Loc. cit., v o l. II, p . 110. in f lu x o d o s b a t is t a s e in d e p e n d e n te s r a d ic a is . O s a n t ig o s P ro to c o lo s
18. J á n o in íc io do s é c u lo XVTI a p r o ib iç ã o d o s c o n v e n tíc u lo s p r e s b ite r ia n o s d e D e d h a m , p u b lic a d o s p o r U s h e r , t a m b é m p r e s s u p õ e m
(Slijkgeuzen) p ro v o c o u u m a Kulturkam pf g e r a l n a H o la n d a . A a c o n g r e g a ç ã o individual ( n a r e a lid a d e , n a q u e la é p o c a , m u ito p r o
R a in h a E lis a b e t e p r o c e d e u c o n tr a o s c o n v e n tíc u lo s co m u m a im v a v e lm e n t e ta m b é m o m in is tr o in d iv id u a l) co m o o t r a n s m is s o r d a
p ie d a d e t e r r í v e l (e m 1593 co m a m e a ç a d e p e n a c a p it a l) . A razão d is c ip lin a d a I g r e ja . A a d m is s ã o p e la v o ta ç ã o , co m o s e e v id e n c ia
d isso fo i o c a r á t e r a n t ia u t o r it á r io d a r e lig io s id a d e a s c é tic a o u, p e lo p ro to c o lo d e 22 d e o u tu b r o d e 1582, e s t ip u la : “ Q u e n in g u é m
m e lh o r a in d a n e s te c a so , o r e la c io n a m e n t o c o m p e titiv o e n t r e a a u t o s e ja a d m it id o co m o m e m b ro d e s te g r u p o s e m o c o n s e n tim e n to g e r a l
516 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA NOTAS 517

do todo”. Mas já em 1586 esses p u rita n o s declaravam sua oposição Cromwell, seus agentes p ara a imposição da disciplina na Igreja,
aos brownistas, que se inclinavam p ara o congregacionalismo. a proposta de exilar todas “as pessoas ociosas, debochadas e pro
21. As “classes” dos metodistas, como a base d a cura coopera fanas” surge repetidam ente.
tiva da alma, eram a espinha dorsal d e toda a organização. Cada E n tre os metodistas, o afastam ento dos noviços durante os
12 pessoas deveriam ser organizadas num a “classe”. O chefe da períodos experim entais era possível sem m aiores complicações. Os
classe deveria visitar cada m em bro sem analm ente, seja em casa ou m embros plenos deveriam ser afastados depois de um a investiga
na reunião da classe, durante a qual havia habitualm ente uma ção realizada por um a comissão. A disciplina religiosa dos hu-
confissão geral de pecados. O chefe devia m anter um registro da guenotes (que durante longo tempo existiram , na realidade, como
conduta dos membros. E ntre outras coisas, esse registro era a um a “seita”) se evidencia nos protocolos dos sínodos. Indicam
base da emissão de certificados p ara os m em bros que se afastavam eles, en tre outras coisas, censura à adulteração de m ercadorias e à
da comunidade local. J á então, e po r u m longo tempo, essa orga desonestidade no comércio. O Sexto Sínodo (Avert. Gen. X IV ).
nização se vinha desintegrando em toda parte, inclusive nos Estados Assim, encontram -se freqüentem ente leis suntuárias, e a proprie
Unidos. A forma pela qual a disciplina da Igreja funcionou no dade de escravos bem como seu comércio são perm itidos. Vigésimo
início do puritanism o pode ser julgada pelo mencionado Protocolo Sétimo Sínodo: um a prática bastante flexível p ara com as dem an
de Dedham segundo o qual devia fazer-se um a “adm oestação” no das fiscais predom ina (o fisco é um tirano), Sexto Sínodo, cas de
conventículo “se algumas coisas houvessem sido observadas ou es conc. dec, XIV; usura, ibid., xv (cf. Segundo Sínodo, Gen. 17; Dé
pionadas pelos irm ãos”. cimo Prim eiro Sínodo, Gen. 42). Em fins do século XVI os pres
22. Nos territórios luteranos, especialm ente os da Alemanha, a biterianos ingleses foram designados como “disciplinários” na cor
disciplina da Igreja era notoriam ente subdesenvolvida, ou então já respondência oficial (citações em Pearson, loc. cit.).
se revelava totalm ente decadente, desde um a data remota. A dis 23. Na “N arração Apologética” dos cinco “irmãos dissidentes”
ciplina da Igreja foi também de reduzida influência nas Igrejas r e (independentes) do Sínodo de Westminster, a separação en tre os
formadas da Alemanha, exceto em Jülich-C leve e outras áreas re- “cristãos casuais e form ais” é colocada em prim eiro plano. Isto
nanas. Isso se deve à influência do am biente luterano e ao ciúme significa, a princípio, apenas o separatismo voluntarista, e não a
en tre o poder do Estado e as forças hierocráticas, concorrentes dêle renúncia ao comércio. Mas Robinson, um calvinista rigoroso e
e autônomas. Esse ciúme existiu em toda parte, mas o Estado defensor do Sínodo de D ordrecht (sobre ele, cf. Dexter, C ongre
continuara todo-poderoso na A lem anha. (Não obstante, encontram-se g ationalism , p. 402) m antivera originalm ente a opinião, que mais
vestígios da disciplina da Igreja até o século XIX. A últim a exco tarde modificou, de que os separatistas independentes não deviam
m unhão no Palatinado ocorreu em 1855. N ão obstante, as regras te r intercâm bio social com os outros, mesmo se fossem electi, o
da Igreja de 1563 haviam sido transm itidas de io rm a realm ente que foi considerado como concebível. A m aioria das seitas, porém,
erastiana, desde um a data rem ota.) Som ente os menonistas, e mais evitou com prom eter-se abertam ente com este princípio, e algumas
tarde os pietistas, criaram meios efetivos de disciplina e organiza o rejeitaram expressam ente, pelo menos como princípio. Baxter,
ções disciplinares. (Para Meno, um a “Ig reja visível” existia so m en te C hristian D irecto ry, vol. II, p. 100 (ao pé da coluna 2) opina que,
quando a disciplina da Igreja existia. E a excomunhão devida a se o chefe d a casa e pastor assumisse a responsabilidade, então
m á conduta ou a um casamento misto era um elemento autocom- podia-se concordar em rezar junto com um a pessoa indigna. Isso,
preendido dessa disciplina. O s R ynsburg Collegiants não tinham porém, é não-puritano. O m ijd in g e (meio-term o) desempenhava
quaisquer dogmas e só reconheciam a “co nduta”.) E ntre os hugue- um papel m uito im portante nas seitas radicais batistas da Holanda
notes, a disciplina da Igreja p e r se era m uito rigorosa, m as repe durante o século XVH.
tidam ente foi relaxada devido a inevitáveis considerações da no
breza, politicam ente indispensáveis. Os partidários da disciplina 24. Isso se to m o u notavelm ente evidente até mesmo nas dis
da Igreja puritana n a In g laterra estavam principalm ente en tre a cussões e lutas dentro da congregação refugiada de Amesterdã, no
classe média capitalista e burguesa, como, por exemplo, na City inicio do século XVH. Igualm ente no L ancashire a rejeição de
de Londres. A cidade não tem ia o dom ínio do clero, mas preten um a disciplina m in isteria l, a exigência de um governo leigo na
dia usar a disciplina da Igreja como m eio de domesticação das Igreja e de um a disciplina imposta pelos leigos foram decisivas
massas. As camadas de artesãos tam bém aderiram firm em ente à para as atitudes nas lutas internas da Igreja da época de Cromwell.
disciplina da Igreja. As autoridades políticas eram adversárias da 25. A nomeação dos anciãos foi objeto de prolongadas contro
disciplina da Igreja. Assim, na In g laterra o Parlam ento estava vérsias nas com unidades independente e batista, que não nos inte
incluído en tre os opositores. Não os “interesses de classe”, m as ressam aqui.
como qualquer exame dos docum entos mostra, principalm ente os 26. A ordenação do Longo Parlam ento de 31 de dezembro de
interesses religiosos e, além deles, os interesses e convicções polí 1646 voltou-se contra isso. P retendia ser um golpe contra os in
ticas, tinham seu papel nessas questões. A rigidez, não só da Nova dependentes. O princípio da liberdade de profecia tam bém havia
Inglaterra, mas também da disciplina autênticam ente p uritana na sido defendido, em form a literária, por Robinson. Do ponto de
Europa, é conhecida. E ntre os generais e oficiais comissionados de vista episcopaliano, Jerem y Taylor, T he L ib e r ty o f P rophesying
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(1647) fez concessões a ela. Os “julgadores” de Cromwell solici a espinha dorsal da organização de “classe” e sua cura das almaa.
taram que a permissão de profietizar dependesse de certificado de Daí serem, n a prática, o órgão central da disciplina da Igreja.
seus membros da congregação, entre os quais quatro leigos. Du 30. E n tre outras coisas, a oposição de Cromwell ao “P arla
rante o período inicial da Reforma inglesa, os “exercícios” e “p ro mento dos S antos” tornou-se aguda, na questão das universidades
fecias” não só haviam sido freqüentemente tolerados pelos ardentes (que, com a eliminação radical de todos os dízimos e prebendas,
bispos anglicanos, mas tam bém estimulados por eles. Na Escócia teria entrado em colapso). Cromwell não pôde decidir-se a des
eram esses (em 1560) os elementos componentes das atividades da tru ir essas instituições culturais que, porém, deveriam ser especial
Igreja; em 1571 foram introduzidos em Northampton. Outros lu m ente instituições p ara a educação dos teólogos.
gares se seguiriam dentro em pouco. Mas Elisabete insistiu em
suprim i-los como resultado de sua proclamação de 1573 contra 31. Um exemplo é citado por G ardiner, F ali o f th e M onarchy,
C artw right. vol. I, p. 380.
27. As revoluções carismáticas dos sectários (do tipo de Fox 32. A W estm inster Confession também (XXVI, I) estabelece
e líderes semelhantes) nas congregações sempre começaram com a o princípio de obrigação in terio r e exte rio r de ajudarem -se m u
luta contra os prebendários ocupantes de postos, como “m ercená tuam ente. As respectivas regras são numerosas en tre todas as
rio s”, e com a luta pelo princípio apostólico da liv re pregação, seitas.
sem rem uneração para o orador, que é movimentado pelo espírito. 33. Todo caso de incapacidade de pagar, no início do meto
Disputas acaloradas no Parlam ento tiveram lugar entre Goodwin, dismo, era investigado por uma comissão de irmãos. Incorrer em
o congregacionalista, e Prynne, que o acusava, contra seu propalado dívidas sem a certeza de poder pagar era causa de exclusão —
princípio, de te r aceito um “meio de vida”, ao passo que Goodwin daí, a fixação do crédito. Cf. a resolução dos sínodos holandeses
declarara a aceitação apenas do que era dado' voluntariam ente. citada n a nota 9. A obrigação de aju d ar o irmão nas emergências
O princípio de que somente as contribuições voluntárias p ara a é determ inada por exemplo, na profissão de fé do batista Hanserd
m anutenção dos m inistros devem ser perm itidas é expresso na Knollys (c. 28) com a ressalva característica de que isso não deve
petição dos brownistas a Jaim e I, em 1603 (ponto 71: daí o protesto prejudicar a santidade de propriedade. Ocasionalmente, e com
contra as “subvenções papistas” e os “dízimos judaicos”). grande dureza, (como na plataform a de Cambridge de 1647, edição
28. Em 1793 o metodismo aboliu diferenças entre pregadores de 1653, 7, VT) os anciãos são lembrados de seus deveres de agir
ordenados e não-ordenados. Com isso, os pregadores itinerantes contra os m em bros que vivem "sem u m a p rofissão” ou se com
não-ordenados, e portanto os missionários, que seriam os divulga portam “ociosam ente em sua profissão".
dores característicos do metodismo, foram colocados em pé de igual 34. E ntre os metodistas, essas certidões de conduta tinham,
dade com pregadores ainda ordenados pela Igreja Anglicana. Ao originalmente, de ser renovadas cada três meses. Os velhos inde
mesmo tempo, porém, o monopólio da pregação em todo o circuito, pendentes, como dissemos acima, só adm itiam à Ceia do Senhor
e de adm inistração dos sacramentos, ficou reservado exclusivam ente os portadores de certificados. E ntre os batistas, o recém-chegado
aos pregadores itinerantes. (A administração autônoma dos sacra só podia ser adm itido à congregação se tivesse um a carta de reco
m entos era então realizada, mas ainda a horas diferentes da Igreja mendação de sua congregação anterior; cf. o apêndice à edição
oficial, a qual ainda se pretendia filiação, agora como antes.) Como, da profissão de fé de Hanserd Knollys, de 1689 (West Chester,
desde 1768, os pregadores foram proibidos de se dedicar às ocupações Pa., 1827). A té mesmo as três Comunidades B atistas de Amesterdã,
civis comuns, surgiu um novo “clero”. Desde 1836 a ordenação form al no início do século XVI, tinham o mesmo sistema, que desde então
se realizava. Em contraposição aos pregadores de circuito estavam se repete em toda parte. Em Massachusetts, a p a rtir de 1669, um
os pregadores leigos, para os quais essa ocupação era secundária. certificado do pregador e de homens selecionados sobre a ortodoxia
Tinham o direito de adm inistrar sacramentos, e sua jurisdição era e co nduta era a prova de que o portador tinha condições para
exclusivam ente local. Nenhuma dessas duas categorias de preg a adquirir a cidadania política. Esse certificado substituía a admissão
dores usava traje oficial. à Ceia do Senhor, originalm ente exigida.
29. Na realidade, pelo menos na Inglaterra, a m aioria dos 35. Gostaríamos de ressaltar enfaticam ente esse ponto im por
“circuitos” se haviam tornado pequenas paróquias, e a viagem tante do prim eiro desses dois ensaios. (A É tica P rotestante e o
do pregador passou a ser um a ficção. Não obstante, até o presente, E spírito do C apitalism o.) Um erro fundam ental dos meus críticos
tem sido m antido que o mesmo m inistro não deve servir ao mesmo foi não terem percebido esse fato. Na discussão da Ética Hebraica
circuito por m ais de três anos. Eram pregadores p rofissionais. Antiga, em relação com as doutrinas dos sistem as éticos egípcio,
Os “pregadores locais”, dentre os quais eram recrutados os p re fenício e babilônio, chegaremos a um a situação m uito semelhante.
gadores itinerantes, eram, porém, pessoas com um a ocupação civil,
36. Cf., en tre outras, a afirmação à p. 166 da Ética P rotestante
e com licença para pregar, que (originalm ente) era concedida p ara
e o E sp írito d o C apitalism o. A formação de congregações entre
o prazo de um ano, de cada vez. Sua existência era necessária
os judeus antigos, ta l como entre os prim eiros cristãos, tendeu,
devido à abundância de serviços e capelas. Acima de tudo, eram
cada qual a seu modo, na mesma direção (entre os judeus, o declí
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nio da significação social do clã, como irem os ver, está condicionado cada brinde, estaremos com isso abolindo a base da K neipge-
por ela, e o cristianismo, em princípios da Idade Média, teve efeitos m u e tlic h k e it [festas nas tavernas]. Se proibirm os o embebedamento
sem elhantes). de um membro, estaremos deitando fora um meio de educação!
Peço que essas palavras não sejam citadas fora de seu contexto.
37. Cf. L iv re des M étiers, do P révôt Étienne de Boileau, de
Afinal de contas, nossa vida associativa estudantil deve constituir
1268 (éd. Lespinasse & Bonnardot, na H istoire générale de P aris ) uma cadeia de m edidas educacionais: e todo m em bro de um a asso
pp. 211, seção 8; 215, seção 4. Estes exemplos valem para muitos ciação duelista confirm ará que, em sua vida depois da escola, jamais
outros. lhe disseram a verdade com tanta sinceridade, de form a tão incri
38. Não podemos analisar aqui, de passagem, essa relação cau velm ente franca quanto na associação duelista. E como aceitava
sai bastante complexa. isso? P or m ais ridículo que pareça, a aceitação era produto do
K neipe. P ara nós, o K neipe é o que o treinam ento do q uartel e o
passo de ganso, tão freqüentem ente criticados, são para o soldado.
X III. REJEIÇÕ ES RELIGIOSAS DO M UN D O E SUAS DIREÇÕES Tal como a ordem “dobrar os joelhos” repetida centenas de vezes no
campo de treinam ento faz que o homem supere a preguiça,
indiferença, teimosia, raiva, e cansaço, e tal como essa ordem faz
1. “Rigorismo ético a p rio ri”, como aqui usamos, refere-se a
a disciplina surgir do sentimento de ser totalm ente im potente e
um a fé nos princípios m orais baseados na “lei natu ral”, ou em
com pletam ente destituído de iniciativa, frente a um superior —
im perativos categóricos deduzidos da razão. A ética dos estóicos, da mesma form a que a ordem “beba tudo!” sem pre dá ao estudante
ou o culto da razão durante a Revolução Francesa, ou o kantismo, mais velho a oportunidade de m ostrar ao mais nôvo a sua superio
são exemplos. ridade absoluta. Pode punir, pode m anter distância e a atmosfera
2. A Ética P rotestante e o E spírito do Capitalismo. que é absolutam ente necessária à em presa educacional das associa
ções duelistas — pois, do contrário, elas se transform arão em clubes!
N aturalm ente, a ordem “beba tudo” nem sempre é aconselhável a
X IV . C A PIT A LISM O E SOCIEDADE R U R A L NA ALEM AN H A tôdas as pessoas, mas deve constituir um a arrreaça im inente ao K neipe
tal como o “dobrar os joelhos!” é no campo de treino. Não obs
tante, em ambas as situações, os homens podem divertir-se muito".
1. Sentenças judiciais que serviam como precedentes no velho [M. W.]
D ireito alemão.
3. A utoridade do condado.
2. St. Louis.
4. Ju iz de um tribunal inferior.

XV. O CARÁTER NACIONAL E OS “ jU N K E R s”


X V I. ín d ia : o b r m an e e as c a sta s

1. B iirgerlichen.
1. Os especialistas vêem no P urusha S u k ta do R ig V eda a
2. No K o rpszeitung alemão, n ç 428, citado aqui de um artigo “M agna C harta do sistema de castas”. É o produto mais recente
do Professor A. Messer, no W eserzeitu n g de 2 de junho de 1917, do período védico. Mais adiante discutirem os o A th a rva -V ed a .
encontram os as seguintes observações de crítica às “m odernas”
propostas de reform a: “As propostas não levam absolutam ente em 2. Das atuais castas hindus (as principais), podemos dizer que
conta a modificação m aterial dos calouros e membros ativos das 25 estão difundidas pela m aioria das regiões da índia. Essas castas
associações estudantis. Mencionando apenas um item: A obrigação compreendem cerca de 88 milhões de hindus num total de 217 m i
de beber deve ser abolida! Não deve haver obrigação de esvaziar lhões. E ntre elas, encontram os as antigas castas dos sacerdotes, dos
o copo! Não deve haver bebedeira! Experim entei, com freqüência, guerreiros e dos mercadores: os brâm anes (14,60 m ilhões); R a jp u ts
entre várias associações, esse tipo de K n e ip e n [festas das associa (9,43 m ilhões); B a n iya (3 milhões ou apenas 1,12 milhões — depen
ções estudantis destinadas às libações alcoólicas] sem essas reform as, dendo da inclusão ou não das subcastas); Cayastas (antiga casta
de escribas oficiais) (2,17 m ilhões); bem como as antigas castas tr i
por vezes durante semestres. E mais tarde passei noites nas m es
bais como os A h ir s (9,50 m ilhões); Ja ts (6,98 m ilhões); ou as gran
mas associações quando todos estavam bêbedos. Eram simples
des castas ocupacionais imundas como os C ham ars (trabalhadores
m ente homens diferentes, que acreditavam n a bebida. Com fre do couro) (11,50 m ilhões); a casta sudra do T e li (trabalhadores em
qüência, consideravam -na mesmo necessária. E é necessário d ar azeite) (4.27 m ilhões); a casta educada dos ourives, a Som ar (1,26
um a oportunidade para que bebam muito. Se cancelarmos tais m ilhões); as antigas castas dos artesãos das aldeias, a K u m h a r (cera
oportunidades, qualquer calouro que seja um bom bebedor poderá mistas) (3,42 milhões) e L ohar (ferreiros) (2,07 m ilhões); a casta
em bebedar os seus colegas m ais velhos na associação, e a autori inferior camponesa do K o li (cooli, derivado de Kul, clã, significando
dade terá desaparecido. Ou se abolirmos a obrigação de h o n rar
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algo como “p are n te” — G evatter) (3,17 m ilhões); e outras castas isso é, na verdade, tão pouco exato na índia como em qualquer outra
individuais de várias origens. As grandes diferenças nos nomes de parte.
casta bem como nas várias distinções de posição social que, nas dife
12. Especialm ente pelos R a jpu ts. Apesar das rigorosas leis
rentes províncias, derivam de castas de descendência evidentemente
igual tornam extrem am ente difíceis as comparações diretas. inglesas de 1829, ainda em 1869 em 22 aldieias de R ajputana havia
23 moças e 284 rapazes. Num levantam ento feito em 1836 em certas
3. Os B anjaras, por exemplo, estão em parte organizados em áreas R a jp u ts, nem um a única menina viva de m ais de um ano
“castas” nas Províncias Centrais. Em Mysore, porém, estão orga de idade foi encontrada numa população de 10.000 pessoas!
nizados como um a “trib o ” (“anim ista”) . Em ambos os casos, ga
13. Assim, por exemplo, os M a kish ya K a ibarthas (Bengala)
nham a vida da mesma forma. Ocorrem freqüentem ente casos seme rejeitam cada vez mais a comunhão com os C hasi K aibarthas, porque
lhantes. êstes vendem pessoalmente seus produtos agrícolas no mercado, o
4. “Economia te rrito ria l” designa um a fase no desenvolvimento que os M a kish ya não fazem. Outras castas são consideradas déclassées
econômico. A expressão foi criada por Gustav Schmoller, que dis porque suas m ulheres participam na venda nos armazéns; geralmente,
tinguiu en tre “economia aldeã” — “economia u rb an a” — “economia a corporação das m ulheres nas empresas econômicas é considerada
te rrito ria l” — “economia nacional”. [Nota dos Organizadores.] especificamente plebéia. A estruturação social e de trabalho, na
5. Como ocorre com todos os fenômenos sociológicos, o con agricultura, é fortem ente determ inada pelo fato de que várias ativi
traste, no caso, não é absoluto, nem faltam transições, e, não dades são consideradas como absolutamente degradantes. F reqüen
obstante o contraste nas características “essenciais” é que foi deci temente, a posição de casta determ ina se alguém usa bois ou ca
valos, ou outros animais de tiro e carga em trabalho lucrativo;
sivo historicam ente.
determ ina quais animais e quantos usa (por exemplo, o núm ero de
6. O comensalismo existente entre as castas realm ente apenas bois empregados pelos trabalhadores em azeite é determ inado dessa
confirma a regra. Refere-se, por exemplo, ao comensalismo entre form a).
certas subcastas R a jp u ts e brâm anes que se baseia no fato de que
as últim as foram, desde há muito, as famílias sacerdotais das p ri 14. Baudhâyana, Sacre,d B ooks o f th e East, 1, 5, 9, 1. Também
meiras. tôdas as m ercadorias oferecidas publicam ente à venda.
7. Uma casta inferior à parte (os1K allars) surgiu em Bengala 15. Baudhâyana, 1, 5, 9, 3. As minas e todas as oficinas, exceto
en tre pessoas que duran te a fome de 1866 haviam violado as leis as destilarias de álcool, são ritualm ente limpas.
rituais e de dieta, sendo, em conseqüência, excomungadas. Dentro 16. As relações das seitas indianas e religiões salvadoras com
dessa casta, por sua vez, a m inoria separa-se como um a subcasta da os círculos bancários e comerciais da índia serão exam inadas pos
maioria. A prim eira tom ou-se culpada do ultraje somente a um teriorm ente.
preço de seis seers a rupia, ao passo que os segundos haviam violado 17. Cf. C ensus R ep o rt para Bengala (1911) sobre o preparo
até mesmo ao preço de dez =seers a rupia. [M. W.] para o comércio entre os B aniyas. As castas antigas com acentuada
8. Um nababo de Bankura. a pedido de um Chandala, quis mobilidade ocupacional freqüentem ente se dedicam a ocupações cujas
obrigar a casta K arn a ka r (trabalhadores em m etal) a comer com o exigências de “disposição n atu ra l” proporcionam o m aior contraste
Chandala. Segundo a lenda da origem dos M ahm udpurias, essa soli psicológico imaginável com a forma de atividade anterior, m as que
citação levou parte da casta a fugir para M ahm udpura e constituir-se se aproxim am umas das outras através da utilidade comum de certas
num a subcasta à parte, com m aiores pretensões sociais. formas de conhecimento e aptidões adquiridas pelo treinam ento.
E s s e fato é um argum ento contra as alegações de “disposição natu
9. Segundo o relatório geral de G ait para 1911 (C ensus o f India,
R eport, vol. I, p. 378), isso ocorreu para as castas iguais de B aidya
r a l”. Assim, as mudanças freqüentes, mencionadas acima, da antiga
e K a ya sth a em Bengala, e K a n e t e K h a s no P anjabe e. esporadica
casta dos agrim ensores — cujos membros naturalm ente conheciam
m ente, entre os brâm anes e R a jp u ts, e os Sonars, N ais e K a n ets as estradas particularm ente bem — para a ocupação de motorista
(m ulheres). Camponeses de M aratha enriquecidos podiam conse podem ser consideradas como muitos exemplos semelhantes.
guir m ulheres de M oratha por um dote suficiente. 18. E s s e s n ú m e r o s s ã o d o censo d e 1911.
10. E ntre os R a jp u ts, no Panjabe, a hipergam ia freqüentem ente 19. V er Delden, D ie Indische J u te-In d u strie , 1915, p. 96.
ainda existe em proporções ta is que até mesmo as moças C ham ars 20. V er Delden, ibid., pp. 114-25.
são compradas.
11. Se na índia ( C ensus R eport, 1901, XIII, 1, p. 193) toda a
aldeia — inclusive as castas im undas — se considera “interaparen- X V II. OS LETRADOS CH IN ESES
ta d a ”, isto é, se o novo cônjuge é chamado de “genro” e a geração
m ais antiga é chamada por todos de “tio ”, é evidente que isso nada 1. Yu tsiuan tung kian kang mu, G eschichte der M ing-D ynastie
tem a ver com a derivação de um “m atrim ônio de grupo prim itivo”; des K aisers K ia n L u n g , traduzido por Delamare (Paris 1865), p. 417.
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2. A utoridade eminente, como von Rosthom, põe em dúvida minou e retocou bastante esses aspectos, em favor do tradiciona-
esse ponto, em seu “The B urning of the Books”, Journal o f th e lismo que, mais tarde, seria considerado correto. Por outro lado,
P ekin g O riental Society, vol. IV, Pequim , 1898, pp. 1 e ss. Acredita devemos te r cautela e não aceitar literalm ente todos os relatórios
ele que os textos sagrados foram transm itidos oralmente até o pe mencionados, que dem onstram uma espantosa deferência para com
ríodo Han, e daí que fazem p arte da mesma tradição que predominou os prim eiros letrados!
exclusivam ente na índia antiga. O estrangeiro não pode form ular 7. Embora o herdeiro real de Wei desça da carruagem , não
julgam entos, m as talvez sejam pertinentes as observações seguintes. recebe resposta às suas repetidas saudações do cortesão e literato
Os anais, pelo menos, não podem basear-se na tradição oral e, como do rei, que é um p a rven u . À pergunta “se o rico ou o pobre podem
o cálculo dos eclipses do Sol mostra, remontam ao segundo milênio. ser orgulhosos”, o litera tu s responde “o p obre” e justifica isso d i
M uita coisa do que se diz em outras partes (segundo a suposição zendo que poderia encontrar emprêgo a qualquer momento, em
geral, com exatidão) sobre os arquivos dos príncipes e a importância outra corte. (Tschepe, “H istoire du Royaume de H an ”, op. cit., p.
da comunicação escrita dos letrados, não seria reconciliável com o 43.) Um dos letrados é tomado de grande raiva contra um irmão
que foi dito acima, se a opinião do em inente perito fosse aplicada do príncipe p o r ter sido este preferido para o cargo de ministro,
a lém da literatura ritual (isto é, literatu ra colocada em forma poé em detrim ento dele. (Cf. ibid.)
tica) . Quanto a isso, é claro que som ente os sinólogos especialistas 8. O príncipe de Wei só ouve de pé o relatório do literatus
têm a últim a palavra, e um a crítica por parte do não-especialista da corte, que e ra discípulo de Confúcio (loc. cit.; cf. nota p re
seria um a presunção. O princípio da tradição rigorosamente oral cedente).
aplicou-se, em quase toda parte, apenas às revelações carismáticas e
aos comentários carismáticos a tais revelações, e não à poesia e 9. Cf. as afirmações de Tschepe, “H istoire du Royaume de
T sin”, p. 77.
didática. A grande era da escrita como tal surge em sua form a
pictórica e tam bém em sua disposição dos caracteres pictóricos: num 10. A transm issão hereditária do cargo m inisterial é considerada
período posterior, a coluna vertical dividida por linhas ainda se ritualm ente objetável pelos letrados (Tschepe, loc. cit.) Quando o
relacionava com a origem, de discos traçados em bambus, que eram príncipe de Chao ordena que seu m inistro investigue e encontre
colocados lado a lado. Os mais antigos “contratos” eram marcas terras adequadas para feudos para vários letrados dignos, o m inistro
de bam bu ou cordas com nós. O fato de que todos os contratos declara três vezes, depois de te r sido três vezes advertido, que ainda
e documentos eram feitos em duplicata é considerado, provàvel- não encontrou te rras dignas deles. O príncipe finalm ente compre
m ente com razão, um rem anescente dessa técnica (Conrady). ende e faz dêles funcionários. (Tschepe, “H istoire du Royaume de
H an”, pp. 54-5.)
3. Isto explica tam bém a padronização da escrita num a fase
extraordinariam ente inicial de desenvolvimento, e daí os seus efeitos 11.Cf. trecho relacionado com a respectiva questão, pelo Rei
remotos que se fazem sen tir ainda hoje. de U, em Tschepe, “H istoire du Royaume de U ”, V ariétés Sinologi
ques, 10, X angai, 1891.
4. E. de Chavannes, Jo u rn a l o f th e P ekin g O riental S o ciety,
12. Não é necessário dizer que a renda tam bém era um obje
vol. III, 1, 1890, p. iv, traduz T ai che ling por “grande astrólogo”,
tivo visado, como m ostram os A nais.
ao invés de “cronista da corte”, como se faz habitualm ente. Não
obstante, o período posterior, especialm ente o moderno, sabe que 13. C erta vez, quando um a das concubinas do príncipe riu-se
os representantes da educação literária são grandes adversários dos de um letrado, todos os letrados entraram em greve, até ser ela
astrólogos. Cf. adiante. executada. (Tschepe, “H istoire du Royaume de H an”, loc. cit.,
p. 128.)
5. P . A . Tschepe (S. J.), “Histoire du Royaume de H an”,
14. O fato perm anece como um a das “descobertas” da lei sa
V a riétés Sinologiques, 31 (Xangai, 1910), p. 48.
grada, sob Josias, com os judeus. O grande cronista contemporâneo,
6. D urante o século IV, os representantes da ordem feudal, Se m a tsien, não m enciona a descoberta.
principalm ente os clãs nobres interessados, argum entaram contra a
15. Tschepe, “H istoire du Royaume de T sin”, loc. cit., p. 53.
pretensa burocratização do Estado de T sin , observando “que os ante
passados haviam melhorado o povo pela educação, e não por m udan 16. A dissimulação individual é confirm ada (por exemplo, o
ças adm inistrativas” (isto se harm oniza com as doutrinas posteriores ataque do Estado de U contra seu próprio Estado L u ). Quanto ao
da ortodoxia confuciana). O nôvo m inistro Yang, pertencente aos resto, em vista da escassez de m aterial, podemos levantar, seria
letrados, com enta de form a altam ente não-confuciana: “a pessoa m ente, a dúvida de se devemos ou não considerar o grande co m en
comum v iv e segundo a tradição; os altos espíritos, porém, criam a tário aos A n a is, de forte caráter moralizante, como obra sua.
tradição, e para as coisas extraordinárias os ritos não oferecem p re 17. Em 1900 a Rainha-M ãe ainda recebia m uito m al a solicita
ceitos. O bem do povo é a mais alta le i”, e o príncipe concorda ção de um censor, para que fossem abolidas. Cf. os escritos da
com a sua opinião. (Cf. trechos na “H istoire du Royaume de T sin”, G azeta de P e q u im sobre o “exército ortodoxo” (10 de janeiro de
de Tschepe, V a riétés Sinologiques, 27, p. 118.) É provável que, 1899), sobre ac “revistas durante a guerra japonesa (21 de dezembro
quando a ortodoxia confuciana articulou e expurgou os A nais, eli de 1894), sôbre a im portância dos postos m ilitares ( lç e 10 de no
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vem bro de 1898), e de um período anterior, por exemplo (23 de 27. Isso ocorria especialm ente com o grau m ais alto (“douto
maio de 1878). rad o ”), p ara o qual o imperador, freqüentem ente em pessoa, dava
18. Sobre essa prática, ver E tienne Zi (S. J.), “P ratique des os tem as e para o qual ele classificava os aprovados. As questões
Exam ens M ilitaires en C hine”, V a riétés Sinologiques, n° 9. Ma de eficiência adm inistrativa, de preferência relacionadas com uma
térias de exame eram a arte do arco e certos feitos ginásticos de das “seis questões” do Im perador Tang, eram tópicos habituais.
força; e, anteriorm ente, um a dissertação por escrito; a p artir de 1807, (Cf. Biot, p. 209, nota 1, e Zi, loc. cit., p. 209, nota 1.)
porém, a escrita de um trecho de cem caracteres de U-King (teoria 28. Siao Hio, ed. de Harlez, v, 2, 1, 29, 40. Cf. a citação
da guerra) supostamente datado da época da dinastia Chou. Muitos de Chu Tse, ibid., p. 46. Sobre a questão das gerações, cf. 1, 13.
oficiais não eram examinados e os manchus estavam totalm ente 29. Loc. cit., 1, 25, e ainda 2. Introdução n« 5 e s.
isentos dos exames. 30. H avia prescrições literárias também para isto.
19. Um Taotai (prefeito) foi levado, pelos seus méritos m ilita 31. Não será necessário dizer que nossas afirmações sobre lin
res, das fileiras dos oficiais para a administração civil. Em resposta guagem e escrita reproduzem exclu siva m en te aquilo que sinólogos
a um a queixa, um edito im perial (G azeta de P equim , 17 de setem bro eminentes, em especial W. Grube, ensinam ao leigo. Não resultam
de 1894), com enta o seguinte: em bora a conduta do oficial no de estudos do próprio autor.
assunto em questão tenha sido considerada substantivam ente livre 32. J. Edkins, “Local Values in Chinese A rithm etical N otation”,
de culpa, não obstante ele revelara “suas ásperas m aneiras solda Jo u rn a l o f th e P ekin g O riental S o ciety, I, n* 4, pp. 161 e s. O ábaco
descas”, pela sua conduta, “e temos de indagar-nos se ele possui as chinês usava o valor de posição (decim al). O velho sistema de
m aneiras cultas que, para um a pessoa de sua classe e posição, devem posições que fora abandonado parece ser de origem babilônia.
ser indispensáveis”. Recomendava-se, portanto, que ele voltasse ao 33. de Harltz, Siao Hio, p. 42, nota 3.
posto m ilitar.
34. Também, Timkovski, R eise durch C hina (1820-21), tradução
A abolição da arte do arco e de outros esportes antigos como alem ã de Schm id (Leipzig, 1825), ressalta isso.
elem entos do treinam ento “m ilita r” tornou-se quase impossível pelos
ritos, que em seu início provavelm ente ainda estavam ligados à 35. P ara esse auto-impedim ento de um oficial da fronteira que
“casa de bacharéis”. Assim a Im peratriz, ao rejeitar as propostas fora desatento, v er n» 567dos documentos de A urel Stein, p rep ara
dos por E. de Chavannes. Data do período H an e, portanto, de
de reform a, refere-se a esses ritos. muito antes da adoção dos exames.
20. Os autores franceses, em sua maioria, designam seng yu e n , 36. O início da atu al G azeta de P eq u im rem onta à época do
siu tsai , por “bacharelato” [grau de bacharel], k iu jin por “licencia segundo governante da dinastia Tang (618-907).
do”, tie n se por “doutorado”. O grau mais baixo só dava direito a
37. Na realidade, encontram-se na G azeta de P eq u im , com re
estipêndios aos mais altos graduados. Os bacharéis que recebiam
um estipêndio eram chamados lin cheng (prebendários), os sele ferência aos relatórios, em parte de censores e em p arte de supe
riores, elogios e promoções (ou promessas de) p ara funcionários
cionados pelo diretor e enviados a Pequim eram chamados pao kong,
insuficientem ente qualificados (“para que possa adquirir experiên
e entre eles os que eram adm itidos ao colégio y u kong; os que h a
cia”, loc. cit., 31 de dezembro de .1897 e m uitos outros núm eros),
viam adquirido o grau de bacharel pela compra eram chamados de
suspensão do cargo com m etade do salário, expulsão dos funcionários
k ie n chentf.
totalm ente incapazes ou a declaração de que os bons serviços de um
21. As qualidades carismáticas do descendente eram simples funcionário são neutralizados pelos erros que ele terá de rem ediar
m ente um a prova para os m em bros de seu clã e, portanto, de seus antes de ser promovido. Quase sem pre são dadas as razões deta
antepassados. Na época, Chi H w ang-Ti abolira esse costume, pois lhadas. Esses comunicados eram especialmente freqüentes no fim
o filho não devia julgar o pai. Mas, desde então, quase todo funda do ano, mas tam bém eram numerosos em outras épocas. Encontram-
dor de um a nova dinastia atribui posições aos seus ancestrais. -se tam bém sentenças póstumas contra funcionários que haviam
22. Incidentalm ente, trata-se de um sintom a certo de sua o ri sido postum am ente (é claro) rebaixados. ( G azeta de P equim ,
gem recente! 26 de maio de 1895).
23. Cf. sobre isso: Biot, Essai sur l’histoire de l'in stru c tio n 38. Cf. A. H. Sm ith, V illage L ife in C hina (Edimburgo, 1899),
p u b liq u e en C hins et de la corporation d e s L e ttres (Paris, 1847). p. 78.
(Ainda é útil.) 39. V er K un Yu, Discours des R o ya u m es, A n n a les N ationales
24. Queixas a Ma Tuan Lin, traduzido em Biot, p. 481. des E ta ts C hinoises d e X au V siècles, ed. de H arlez (Londres, 1895),
25. Seus temas são dados por Williams, cf. Zi, loc. cit. pp. 54, 75, 89, 159, 189 e passim.
26. Isso ocorria especialm ente com os exames p ara o grau de 40. Tschepe, V a riétés Sinologiques, 27, p. 38. Ele im plora puni
licenciado, em que o tem a da dissertação freqüentem ente dem andava ção. Igualm ente em documentos de A. Stein, loc. cit., n 9 567.
um a análise erudita, filológica, literária e histórica do respectivo 41. Ver, porém, o edito da G azeta d e P e q u im de 10 de abril
texto clássico. Cf. o exemplo dado por Zi, loc. cit., p. 144. de 1895, pelo qual as promoções eram concedidas a oficiais que pre
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feriam a m orte à rendição do W ei-hai-wei (evidentem ente assumi 30 taéis, a fim de expandir o mercado e com isso proporcionar am
ram a responsabilidade e com isso im pediram que o carisma do Im plos fundos. Desde 1693 os compradores do grau de bacharel tam
perador sofresse desgraça). bém eram adm itidos aos exames superiores. Uma posição de Taotai,
42. Houve, porém, pelo menos num distrito, também um tem com todas as despesas secundárias, custava cerca de 40.000 taéis.
plo de Tai K i, a m atéria prim ária (caos), da qual essas duas subs 50. É por isso que os imperadores, sob certas condições, ao co
tâncias se teriam desenvolvido por divisão (“Schih L uh K uoh Kiang locarem os candidatos levavam em consideração se êle pertencia ou
Yuh T schi”, traduzido por Michels, p. 39). não a um a província que ainda não tinha candidatos aprovados e
43. Segundo De Groot. colocados em prim eiro lugar.
51. O tratado de Se Ma Tsien sobre o balanço de comércio
44. Cf. excertos traduzidos de suas memórias por G räfin Hagen
(pin shoan) (n* 8, capítulo 30, no vol. III da edição de Chavannes)
(Berlim, 1915), pp. 27, 29, 33.
representa um bom exemplo do cameralismo chinês. É tam bém o
45. Cf. as elegantes e engenhosas notas, embora superficiais, mais antigo docum ento sobre Economia chinesa preservado. Tópicos
de Cheng Ki Tong, escritas para os europeus. (C hina u n d die que, em nossa opinião, não pertencem ao “balanço de com ércio” são:
C hinesen, traduzidas para o alemão por A. Schultze [Dresden e grandes lucros comerciais durante o período dos Estados Beligerantes,
Leipzig, 1896], p. 158.) Sobre a conversação chinesa, há algumas degradação dos comerciantes no império unificado, exclusão dos
observações que concordam perfeitam ente com o que foi dito acima, cargos, fixação de salários e, de acordo com eles, fixação dos tr i
em H erm ann A . K eyserling, T he T ra vei D iary o f a P hilosopher, tra butos sôbre terras, tributos de comércio, floresta, água (apropriada
duzido por J. H olroyd Reece (Nova York, 1925). pelas “grandes fam ílias”), a questão das moedas privadas, o perigo
46. “Siao H ioh” (tradução de De Harlez, A n n ales du Musée, de um enriquecim ento excessivo das pessoas particulares (mas:
G u im et XV, 1889) é obra de Chou H i (século X II da nossa era). onde h á riqueza há v irtu d e , o que é um conceito bastante confu-
Sua realização m ais essencial foi a canonização definitiva do con- ciano), custos do transporte, compras de títulos, monopólios de sal
fucionismo na form a sistem ática que lhe deu. P ara Chou Hi, cf. e ferro, registro de comerciantes, tarifas internas, políticas de es
Gall, "L e Philosophe Tchou Hi, sa doctrine, etc.”, V a riétés Sinolo- tabilização de preços, lutas contra comissão dada aos fornecedores
giques, 6 (Xangai, 1894). É, essencialinente, um com entário popular atacadistas do Estado, ao invés de comissões diretas dadas aos
ao Li K i, usando exemplos históricos. Na China, todo estudante artesãos. O objetivo dessa política financeira cam aralista era a
estava fam iliarizado com ele. ordem in tern a através da estabilidade, e não um balanço favorável
47. O núm ero de "m estres” era distribuído às províncias. Se no comércio exterior.
era concedido um empréstimo de em ergência — mesmo depois da 52. Os com erciantes Ko Hong tiveram o monopólio do com ér
rebelião de Taiping — eram prom etidas quotas maiores, ocasional cio do porto de Cantão, o único aberto aos estrangeiros, até 1892,
m ente, às províncias, com o objetivo de recolher certas somas m í monopólio esse criado com o objetivo de estrangular qualquer
nimas. A cada exam e apenas dez “doutores” tinham permissão comércio dos bárbaros com os chineses. Os lucros enormes que
para se form arem , desfrutando os três prim eiros de um prestígio esse monopólio proporcionou fizeram que os prebendários se desin
especialm ente elevado. teressassem por qualquer modificação voluntária da situação.
48. A posição destacada da proteção pessoal é ilustrada pela 53. Não só a história oficial Ming (cf. nota seguinte) está
comparação entre a extradição dos três m ais altos aprovados e a cheia disso, m as tam bém a “Chi li kuo kiang yu chi” (H istoire
dos m ais altos m andarins, como se encontra em Zi, loc. cit., Apên géographique d e s X V I R oyaum es, ed. Michels, [Paris, 1891]. Assim,
dice II, p. 221, nota 1. D eixando de lado o fato de que das 748 em 1368 o harém é excluído dos assuntos de Estado, a pedido da
altas posições, ocupadas de 1646 a 1914, 398 couberam a manchus, Academia H aalin (p. 7); em 1498, representação da Academia Henlin
em bora apenas três deles estivessem entre os mais altos aprovados por ocasião do incêndio do palácio e a exigência (típica de aci
(os três tie n sh e colocados em prim eiro lu g ar pelo Im perador), a dentes) de “falar livrem ente” contra o eunuco favorito (cf. nota
província de H onan fornecia 58, isto é, um sexto de todos os altos seguinte).
funcionários, exclusivam ente em virtude da poderosa posição da 54. Numerosos casos ilustrativos dessa luta podem ser encon
fam ília Tseng, ao passo que quase dois terços dos aprovados com trados, por exem plo, no “Yu tsiuan tu n kien kang m u ” [ H istória
m aiores notas vinham de outras províncias que, em conjunto, tiveram M ing do Im p era d o r K ie n L u n g ] , traduzida por D elam are (Paris,
um a parcela de apenas 30% desses cargos. 1865). Vejamos o século XV: em 1404 um eunuco está à testa do
49. Esse meio foi usado sistem aticam ente, pela prim eira vez, exército (p. 155). Desde então, isso ocorre repetidam ente; assim,
pelos im peradores Ming em 1453. (Mas, como m edida financeira, em 1428 (p. 223). Daí a intrusão dos funcionários palacianos na
encontra-se até mesmo no regim e de Chi Hwang-Ti.) O decreto adm inistração, em 1409 (p. 168). Em 1443 um médico de Hanlin
mais baixo custava originalm ente 108 piastras, igual ao valor capi exige a abolição do Governo de Gabinete, redução da corvée e,
talizado das prebendas de estudo, então ao custo de 60 taéis. Depois acima de tudo, reuniões de consulta do Im perador com os letrados.
de um a inundação do Hoang-ho, o preço foi reduzido a cerca de 20 a Um eunuco o m ata (p . 254) . Em 1449 o eunuco favorito é morto
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a pedido dos letrados (p. 273), em 1457, porém, fundam-se tem plos
em sua honra.
E m 1471 os conselheiros se têm de com unicar com o Im perador
através do eunuco (p. 374). O mesmo é dito por Hiao Kong (361-28
a , C . ). Em 1472 encontram os eunucos como policiais secretos (p .
273), que em 1481 é abolido a pedido dos censores (p. 289). Em
1488 o velho ritu a l é restabelecido (o mesmo ocorre em num ero
sos casos).
O afastam ento de um eunuco em 1418 teve conseqüências desas
trosas p ara os letrados, quando se encontrou em poder dele uma
relação dos letrados que os haviam subornado. Os letrados conse
guiram m anter a lista em segredo e fazer que se encontrasse um
pretexto diferente p ara a eliminação dos letrados participantes do
suborno (i b i d p. 422).
55. Cf. E. Backhouse e J . O. P . Bland, C hina u n d e r th e E m -
press D ow ager (Heinemarui, 1910) e, contra isto, o famoso memo
ria l de Tao Mao, do ano de 1901.
56. Quando, em 1441, um eclipse do Sol previsto pelos astró
logos não ocorreu, a Ju n ta dos ritos congratulou-se com êle — mas
o Im perador rejeitou a congratulação.
57. V er o m em orial (já citado), 1878, da Academia Hanlin à
Im peratriz.
58. Loc. cit., capítulo 9, pp. 130 e s.
59. V er o decreto da Im peratriz, de fevereiro de 1901.
60. Loc. cit., p. 457.
61. P or exemplo, “Y u tsiuan kien kang m u", do Im perador
K ien L ung (loc. cit., pp. 167, 223), 1409 e 1428. Um edito proibindo,
de modo sem elhante, a interferência na adm inistração foi prom ul
gado para os m ilitares ainda em 1388 (ibid.).

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