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COPYRIGHT© 2003 by Carlos Nelson Coutinho e Andréa de Paula Teixeira

CAPA
Evelyn Grumach
PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
DFL

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L619 Ler Gramsci, entender a realidade / organização e apresen-
tação Carlos Nelson Coutinho, Andréa de Paula Teixira. -
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Conferências apresentadas nas mesas-redondas do seminário


internacional, patrocinado pela International Gramsci Society
{IGS) e pela Escola de Serviço Social da UFRJ, realizado no
Rio de Janeiro, de 19 a 21.09.2001
ISBN 85-200-0649-3

1. Gramsci, Antonio, 1891-1937 - Congressos. I. Coutinho,


Carlos Nelson, 1943-. II. Teixira, Andréa de Paula

03-1003 CDD 335.43


CDU 330.342.15

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou


em parte, sem autorização prévia por escrito da editora
sejam quais forem os meios empregados. '

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CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
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Ru a Argtn1ina l 71 - Jlio dt: Janeiro, RJ - 2092 J 1-380 -Tel.: 2585-2000
lm pn:i.bo no Ur ai, íl
2003

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Ca ixa Postal 23 .052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Sumário

APRESENTAÇÃO

Antonio Gramsci entre a Itália e o Brasil........................................ 13


GIORGIO BARATTA

27

_,.,.,
\ Educação e hegemonia .............. ... ...... .................. ... ..... .... .. ............ 39
) JOSEPH A. BUTTIGIEG
V'

$Hegemonia e contra-hegemonia na América Latina ....................... 51


e EL CAMPIONE

...O conceito de política no~ Ǫdern~s do cárcere.............................. ~


CARLOS NELSON COUTINHO -r ~
,...
~~ Gramsci e os direitos humanos........................................................ 83
ALASTAIR DAVIDSON E KATHLEEN WEEKLEY
~

f O "pos-m
,, o d erno ": verdad e d o "'" mo d erno " ................................... .. 99
ROBERTO FINELLI

" Hegemonia e nova ordem mundial .............................................. •••• 113


1

~ NEDETTO FONTANA

'tÍnterpretando Granisct .................................................................... 127


/DANTE GERMINO
4

rI N 1) 1 IC A 1( I A 1 10 A O
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Cf) l ttf 'it u s de histó ria
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da de ci11il : c11tc11dcr Cr an ,sci pa ra en te nd er a


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GUIDO LIGUOHI

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civ il e os gru/1 0s su
Gramsci, a sociedade
ISAB EL MONA L

"n ação he ge m ôn íca " ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. 201
O conceit o gra111sciano de
RITA MEDICI
5
cie da de civ il, o Es ta do e a p ol itiza çã o ... ... ... ... ... . 21
As três idéias de so
A
MARCO AUR l: LIO NOGU EIR

... ... ... ... ... ... .. 23 5


Japã o ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
A recefJ çã o de Gr am sc i no
MATS UDA
KOICl-11 Ol·IAílA E HIROSI li

mu ni ca çã o e lu ta s ele cla sse. Gr am sc i e a so cio lo gi a


Jnclividualisrn o, co ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... . 251
ea ... ... ... ... ... ...
política conte1nporân
ANTONIO A. SANTUCCI

oj et o de Gra1nsci no m un
do
'fornar•se "d iri ge nt e" . O pr ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. 26
1
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
globaliz ad o ... ... ...
GIOVANNI SE MtnAHO

s
ra do ca pi ta lis mo gl ob al iza do. No vo s co ns en so s e no va ... . 27 5
A cultu ... ...
ic/c1clcs ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
suba!ter11
IV[ í E !>IM ION A·1 10

........................ ........ . 29 '1


SOIJ HL O~ AUTO l(LS
···· ····················· .. ·················· ......

u
Apresentação

Entre 19 e 2 1 d e setembro d e 2 00 1, rea lizou -se no R io de Janeiro um sem i-


n ário internaóonal sobre Anton io G ramsci , patrocin a do pe la Internatio n<ll
Gram~ci S0ciet y (IGS ) e pe la Esc o la de Sen·iço Social da Unive rsid~1de Fe-
dervl do R 10 de J anei r o, co m o título Ler G ramsci, e!lto 1dcr a rt\ zlidf,dc. A
JC) fcJi fundada em Fó rm ia (Itália ) em 1989, com a participação d e pesqui-
&;Jdo rc·, de vá r ios co ntin entes, p o r ocasião do seminá ri o Gran1sci ncl rnondo.
p, orno"1do pela Fon d azio n e lstituto Gramsci de Ro ma. Em 1997 , a IGS pro-
moveu cm N::ípo lc~, com o a poi o d a Università di Napoli e do ls titlHO ltali~ -
11 0 rcr gl1 ~f ucJi Fil o~ofí ci, o se u primeiro encontro intc rn ncional ck ~:.;;tudos
f~r .1 11h( J,lJlO " 1•

Nnrc· cm t r o, fo i J l·c idid o qul' a IGS org a n iz:t ri a , sempre n o-; Jn üs


<' Ih
, n111, n1nr .111vo:,, J o 11 .1~ci m ent o e th mo rtt.: dl' Gr;:i m \c i (que n ~~n·u t: in 189 l
< 111n11 e 11 e n1 19, 7) , scrn i ,u n os que cong n :gass<: m <:~rudi o~o, d ~.: \ lt ..1 o br.1 c tn
, ,11 1ch ,,.,ht'• do 1nu11du . N um,1 post erio r reundo da d1 n.:,·.io d ..i J(.;\ o<.:0rn~

d ., c'm 11 . l l 1:-, e Ili 1->,>s, f (,)t J t.· ciJiJo - por sugcsrão ck Gwrgio b ~lr-Ht'-1 - <.J Ut
o :, e ni111.i 11(1 lit ~()t) 1 f <,~:-c re.1 li L.1Ju no Br a4:,i l, em p trttLUL.tr 110 R10 J,.:
J.1 1lC 11 li

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LER GRAMS CI, ENTEND ER A REALID ADE

Foram convida dos e compar eceram a Ler Gramsc i, entend er a realidade


· adores gramsc ·
pesquis ianos d e 13 paises
,, (Alema nha , Argent
,, . ina_, Austrál
,, . ia ,
Brasil, Cuba, Espanh a, Estados Unidos , Holand a, Itaha, Japao, Mexico ,
Reino Unido e Romên ia), oriundo s de cinco contine ntes. Todos eles enfre~-
taram e superar am as muitas dificuldades decorre ntes do fato ~e que o semi-
nário, program ado com bastant e anteced ência, ocorreu precisa mente uma
semana depois dos trágicos eventos de 11 de setemb ro de 2001.
De acordo com a program ação previam ente estabel ecida, o seminá rio
realizo u-se em cinco mesas- redond as (Por que Grams ci, Hegem onia e
contra- hegemo nia no início do milênio , Americ anismo e fordism o hoje,
Sociedade civil e Estado na era da globalização e Gramsc i no mundo de hoje)
e quatro grupos de trabalh o (Educação e sociedade, Questõ es de hoje à luz
de Gramsci, O marxismo de Gramsci e Edições e traduções).
Por razões de espaço, reunimos neste volume apenas os textos decorre n-
tes das conferências apresentadas nas mesas-r edonda s, lament ando a exclu-
são de importa ntes intervenções feitas nos grupos de trabalh o (como as de
Alberto Aggio, Antonio Carlos Máxim o, Aparec ida F. T. dos Santos, Carlos
Eduard o Vieira, Derek Boothm an, Eduard o M. Vascon celos, Gheorg he
Stoica, Ion Goian, José Mário Angeli, Leonar do C. S. Ramos , Lúcia Neves,
Marco A. Monda ini, Marcos del Roio, Marina Maciel Abreu, Rosem ary
Dore Soares e Rodolfo Rosales), que esperam os venham a ser editada s em
outras publicações.
Como nem sempre os trabalho s apresen tados nas mesas- redond as cor-
resp_o~d_eram ex~tamente aos temas propost os na progra mação inicial do
semma no, prefenmos reuni-los neste volume não segund o os temas inicial-
mente sugeridos, mas de acordo com a ordem alfabéti ca do sobreno me dos
conferencistas. Estamos seguros de que os textos aq ·
u1 reuni"d os, na d"1vers1-·
dade dos temas . abordados e das interpre tações adot a d as, express ·
. am a rique-
za e o pluralismo da atual pesquisa gramsc iana e · l mternac
· · 1.
m mve 1ona
Todas
. as
. citações . _dos Cadernos do cárcere p resentes nesta e d 1çao " - sao-
reme ndas ,a nova ed1çao temático-crítica brasilei·r 2
, . a , com a mençao -
ao vo lu-
mt e ~o numero da pagma (por exe mplo: CC, 3, 145).
. Fm. almcnte
_ , gostaría mos de agra dece r a rodos
. , . . _ ' O s que torn ara m poss1ve • l
a rca l1 zaçao du semm a n o e a publicaçao deste livro.
Antes de mab nada, somos gra tos aos estudi osos .
. ,, g1a msc1·anos que, aten-
dendo ao co nv ite da IGS , compa reccr~m ao evei,to e/ · m seus
o u nos enviara

10
APRESENTAÇÃO

textos. Embora cada um deles tenha assegurado, junto às instituições a que


estão vinculados, os meios para se deslocarem até o Rio de Janeiro, 0 apoio
financeiro da UFRJ, da FAPERJ e do CNPq foi decisivo para hospedá-los no
Rio e para garantir a infra-estrutura material do seminário, em pardcular os
imprescindíveis serviços de sonorização e de tradução simultânea. Contamos
também com o apoio solidário de muitos professores, alunos e funcionários
da Escola de Serviço Social da UFRJ.
Para a concepção do seminário, foi decisiva, em particular, a participa-
ção de Giorgio Baratta, Joseph A. Buttigieg e Guido Liguori. A publicação
do presente livro não teria sido possível sem a lucidez editorial de Luciana
Villas-Boas, que já fora decisiva para a nova edição brasileira dos Cadernos
do cárcere; e, tal como no caso dos Cadernos, a confecção final deste volu-
me deve muito à competência de Ana Paula Costa e sua equipe. Um agrade-
cimento especial é devido a Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio
Nogueira, que - além de traduzirem, com sua habitual competência, vários
textos desta coletânea - deram boas sugestões não só para a concepção do
seminário, mas também para a organização deste volume.

C.N.C e A.P. T.

NOTAS

1 Os resultados deste encontro estão recolhidos em lnternational Gramsci Society, Antonio


Gramsci da un seco/o all'altro, org. de G. Baratta e G. Liguori, Roma, Riuniti, 1999, 275 p. A
IGS é responsável pela publicação de um boletim, Internationa/ Gramsci Society. Newsletter,
onde são periodicamente divulgadas informações sobre eventos e publicações acerca da obra
de Antonio Gramsci em rodo o mundo. Na Internet, estes vários boletins já publicados podem
ser lidos em <www. iraln et.nd. edu/gramsci>. Em nosso país, a IGS é representada pelo site
"Gramsci e o Brasil", editado por Luiz Sérgio Henriques, cujo endereço eletrônico é
<www.~ramsci.oqp
2 A. Gramsci,Cadernos do cárcere, edição de C. N. Coutinho, com a colaboração de L. S.
Henriques e M. A. Nogueira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 6 vols., 1999-2002.

11
Antonio Gra1nsci entre a Itália e o Brasil
GIORGIO BAnATTA

f>ara Luiz Sérgio I-1 enriques


e Roberto Vecchi

1. ITÁLIA, EUROPA, MUNDO

Em diversos locais estratégicos do seu pensamento, Gramsci "traduz" câno-


nes filológicos e lingüísticos em concepções de caráter ge.raL É exemplar, a
este respeito, o modo pelo qual ele reafirma, no caderno 29, intitulad o
"Notas sobre o estudo da gra111ática", a dialética de parti.cularidade e univer-
salidade na história: "A gramática histórica não pode deixar de ser 'com-
parativa': expressão que, analisada a fundo, indica a íntima conscjência de
que o fato lingüístico, como qualquer outro fato históri,co, não pode ter fron-
teiras nacionais estreitamente definidas, mas que a história é sempre 'histó-
ria mundial' e que as histórias particulares vivem somente no quadro da his-
tória mundial" (CC, 6, 143 ).
A expressão-chave desta passagem - a propósito da gramática e, em
sr ot ido lat ol da .. hi stória n que é sempre "histúri:.1 mundial,, - é "compar a-
r iv n,, . Grnm scí uso constantemente o mérodo compara tivo, ou relacional, no
cx :rnu: <los fr11ônwnos hí stóric.:o-sociais. Nfio se podl· prescind ir da com -
pn~t·11 ,:10 di :,so se se dcsl·jn rcco11 struir su;1 rcflcx íl o sobrl' n q11l'stão 11;1cional
11nli:1.n a no contexto i11tl'rnacional.
No~ Cwkn"J!, l (;rarnsc i 1r ..,vn 11ina int< ·11sa luta tcúri c~l para afirmar -

n

L E R GRAMS CI, ENTEND ER A REALID ADE

l' ITI ~rnt írcsc ao nnc ion a li smo-po pulista fascista , mas também a todo regiona.
lismo 0 11 loc:i li smo - a necess idade da constru ção na Itália de uma cultura
o u, em se nti do mai s :.1 mplo, de uma consciê ncia naciona l-popul ar. (Como se
sn bt.\ ~, " q tH: st:10 meri d io n a l'', que manife sta a grande atenção dada por
C rnrn sci ~s coo rd enadas territori ais d a problem ática política e social, é, pre.
cisa rn cnrc cnqtw nto ta l, um a "questã o naciona l".)
Um :1 uni ficaç ã o p op ular- nacio nal mais madur a da Itália é, para
Grn msci, um o bj etivo político e político -cultura l básico. Longe de represen-
t ~ll\ como fo i ::i firm ado por um a persiste nte tradiçã o interpre tativa, a suspen-
sil o dn nn~i li sc de cb sse, a atualidade desta unifica ção express a, na opinião
dL: G r:,msc i, n ão só o resultad o de uma história secular que conflui u na
1
• rcvo lução pass iva " qu e está nas origens
da unidade italiana , mas também
U ITl a co mpl exa probl emática social fundad a em antago nismos de
caráter
econôm ico, terri torial e cultural .
Po r o ut ro lado, Gramsc i pôs na ordem do dia - ainda que se trate de um
t'c m::i ma rgin a l nos Cadernos - a necessi dade historic amente madura e ina-
d i5vcl da '"uni ão européi a". Diz ele: "Existe , hoje, uma consciê ncia cultura l
euro péia e ex iste um a série de manifes tações de intelect uais e de político s que
sustenta m a necessid ade de uma união europé ia[ ... ]. Se em x anos essa união
se rea li zar, o pa lavra ' naciona lismo' terá o mesmo valor arqueo lógico da
at ua l ·municipalismo " ' (CC, 5,'249) .
G ramsc i é um pensado r organic amente internac ionalist a. Tanto a unida-
de da ltá I ia q uanto a união européi a são, para ele, compon entes da mais
ge ral ' un íficação do gênero humano ", que ele conside ra como objetiva men-
4

te insc ri ta no curso da história , mas que soment e a subjetividade comuni sta


é ca paz de levar a ca bo.
N a ót iG1 de G ra mscí, o "quadr o da história mundia l" é forteme nte
influ enciado pela a nti ga ce ntralida de ocident a l e européi a. Ele sublinh a a
;i rticula ç5 o, sob m ui tos aspecto s fa ta l para a Itália, entre consciê ncia nacio-
11 :11 e c.: onsciêncin curopé i:1 e cos mopolit a: "A Itá lia desemp enhou, durante
mui tos séc ulos, umo fu nç5o intern ac ional-e uropéia " (CC, 2, 85). O parado-
xo c.fo hi stória é q ue a essa fun ção - tão li sonj eira e prestigiosa - associou-
~e a fr ._1gmc: nri.Ui cd:1dc e vul nerab ili da de de um pa ís privado de unidade polí-
1 ll .J , , ~11b 11 1l' 1jdo :1 ond ri s de in va sões es tra ngeiras.
J;'1o j ov vrn C r, tl)l ~c i conside rava o "c~so" ita liano a lgo inteira mente par-
l 1( uL 1r, 0 1;11,, p1t·c i!)~1t11 L· 111 e por isso, cx cmp lnr e ra lvei <lecisivo para
o desen-

14
ANTONIO GRAMSCI ENTRE A ITÁLIA E O BRASIL

vo lvimento do processo revolucionário, que - segundo ele - tem alcance


epoca l, mas é ainda precário porque encaminhado "num só país" . A força
moral e política que o dirigente de L'Ordine Nuovo expressa vigorosamente
tem como base a convicção de que, seja no plano econômico e social, seja no
plano histórico e político, a Itália poderia representar um novo momento de
ruptura da dominação capitalista na perspectiva da revolução mundial. Nos
Cadernos, esta hipótese aparece como evidentemente in atual. Outras e diver-
sas são as urgências da história. Mas não perde importância, num horizonte
histórico mais amplo, o significado do "caso" italiano na ampliação e reno-
vação do processo revolucio nário para além da experiên cia soviética e
"oriental".
Podemos nos perguntar qual é o tema central dos Cadernos : a "crise"
italiana (raízes do fascismo, sua possível superação, reabertur a da luta pelo
socialismo) ou o andamen to do "mundo grande e terrível e complica do"
(através da contradiç ão entre revolução ativa e passiva)? Assiste-se, na reali-
dade, a um contrapo nto entre os dois temas, tornado possível por aquilo que
os une, ou seja, o fato de que a conquista, ainda inteiramente por se realizar,
de uma consciência nacional-popular italiana se conjuga e, em certo se ntido,
se funde com a necessidade de traduzir a tradição européia-cosmopo lita das
classes cultas italianas - que traíram a consciência nacional - num hori-
zonte intenl:lcionalista maduro, que é o único capaz de, finalmente, tornar
possíve l o ddlogo orgânico entre nação e povo.
Consc i~nciJ nacional, internacionalismo, análise de classe: esses são os
t rê:- ing redicnt<:s do cadinho carcerári o, que a história das interpret ações
muit:b vc?cs :;i presenrn como em contradiç ão entre si; a verdade, ao contrá-
rio, e qtH' um:i ~i bin (a indJ qu e difícil) combin ação constitui o segredo dcs-
~.1 1.1ci o n:1I ~1lq uimi .1 dt> pensame nw.

, A f URO PA E AS RAIZ ES DO BRASIL

U , 11 ,1 11! t,a ru1 ;J J o., C. 1..l,~t tto ":> clu cânne é a ,d i1lll<1\·.w do s tdlt1, de 11 ~1ç..i o
l( l!J1 11 1 ,, ·:..:.> 11po ) I U jM Jd a p k 11J pJH1L 1p.1\ ,io dl' urn povo ou ,k· t111u culwr.1
n u ··qu.id ,, , dt h1 '.) t dt l a 111umi1,\l' ' l) ,~ (\ ' pu11lo dv ~ l'i l ,l u pc1h.tllll' lll0 de
1

G1 ,11 1t:.\.l \ l t ., l c· 111\l1il1u , 111 \ l lj Ht{lº d,t 1,.\' ll lt ,llL d , ld l d ,1 ' 'qll l' 't t ,H ) 11 ,l l' IO ll , tl" no
LER GRAMS CI, ENTEN D ER A RCALIOAO f:

marxis mo e no socialismo-comunísmo do século XX: Umíl , t 1J1 r'dirl· ,


!
, J/ 1

qualqu er outra "qU(;Nf.iio" dct(.; rrní, ,r , ;,,'


'"
Poder-se-ia aduzir, que mais do que
luzes e as sombras do movimento operári o nesse século. '
Assim como o foi a Itália para Gramscí, o BraRíl rcprct,cntn h<JÍt f111 ; 1
,,

também ontem) um "caso" em certo sentido exempl ar para exa,m irrn,r r: :i •i;i ·
liar, à luz da metodologia gramscíana, a articulação entre quentílo n,1<., íon ;,/ ,.
dimensão internacional dos fenômenos sociais.
Vimos como, no processo que liga a "particularída dc" ítalíana à un ív,;r
salidade da história mundial, um elo de fund amenta / importâncía ·i[1r) a
Europa e a inadiável perspectiva da "união européia''. Para uma tentatív11,J,:
"comparação" entre o caso italiano e o brasileiro, é singular, maHdcchívrJ , ,,
fato de que a "questão européia" desempenhe, para o Brasil, um pape.d u1/
vez ainda mais fundamental do que para a Itália.
Nas primeiras linhas do seu livro clássico sobre as "raízes do Bra:úl",
Sérgio Buarque de Holanda escreve: "A tentativa de implantação da cultuNl
européia em extenso território, dotado de condições naturais, senão advtr-
sas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da socícda,fo
brasileira, o fato dominante e mais rico em conseq üêncías " 1. A verdade dc,',-
sa afirmação de Buarque envolve o destino não só do Brasil, mas também da
Europa. Este imenso espaço - que foi chamado "o duplo, a sombra, o nega-
tivo da grande aventura do Novo Mundo "2 - se agrega, ou mesmo nasce,
como uma Europa fora da Europa ou, como foi dito, uma "Europa nos tró-
picos".
Num excelente ensaio, Carlos Nelson Coutinho, mesmo sem citá -la, arti-
cula em termos histórico-materialistas a tese (não privada de dramaticídade)
de Buarque, sublinhando ademais a particularidade, a "di feren ça " do ''caso
brasileiro", que saltaria imediatamente aos olhos quando se pensa "no mun -
do árabe, na China e na Índia, ou mesmo no Peru e no México ". Co utinho
escreve: "Nossa pré-história como nação - os press upostos dos qu ais somos
resultado - não reside na vida das tribos indígenas que habitavam o terri tó-
rio brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se no contraditório proces-
so de acumulação primitiv a do capital, que tinha seu centro din âmico na
Europa ocident al" J.
Estabelecidas as devidas proporç ões e levando-se em conta todas as di fe-
renças res ul ta ntes da defa sagem temporal entre ambas, talvez não seja priva-
da de interesse a tenta tiva de comparar as obras de Buarque e de Co utinho
cm n.: b ç5o 21 J11 .,1' isc cb q uesrão nacional-i11ternJcional.

16
ANTONIO GRAMSCI ENTRE A ITÁLIA E O BRASIL

Determinada a gênese "européia" da "nação" Brasil, o que mais preocu-


pa Buarque e Coutinho - de modo certamente diverso, mas com algumas
afinidades não irrelevantes - é evidentemente a questão do desenvolvimen -
to da nação e do Estado-nação. Ou, em outras palavras, a questão de sa ber
se se desenvolveu, e como, e de que modo pode se desenvolver ainda mais,
aquilo que, em termos gramscianos (retomados explicitamente por Couti-
nho), representa a elaboração e a difusão de uma autônoma consciênci a "n a-
cional-popular" no Brasil.
Tanto Buarque como Coutinho posicionam-se duramente contra a "tra-
dição" nacional hegemônica. Esta tradição, no caso de Buarque, pode ser
resumida, para simplificar, nas qualidades antropológicas, sociais e culturais
do "homem cordial" brasileiro (que entram em contraste com o desenvolvi-
mento da ''coisa pública")4, enquanto para Coutinho remete ao leitmotiv
econômico-soc ial da história do Brasil (com seus tardios estorvos pré-
capitalistas), que só teria alcançado a modernidade através do que Gramsci
chamava de "revolução passiva" e Lenin e Lukács, de "via prussiana" 5 •
Ambos os autores estão conscientes dos gravíssimos riscos ligados às
repetidas tentativas de solução "autóctone" do problema nacional e afir-
mam vigorosamente a dimensão européia-ocidental do desenvolvimen to, e
não só da gênese, deste problema. Para ambos, porém, coloca-se de modo
ineludível a necessidade de distinguir o desenvolvimento de uma moderna
sociedade brasileira dos modelos hegemônicos no mundo. Aqui se abre adis-
tância entre os dois: enquanto Buarque tem em mente a relação do Brasil
com o liberalismo euro-ocidental, Coutinho pensa no socialismo, o qual
apresenta a complicação dos dois "caminhos", o "oriental" e o "ocidental".
É difícil - dificílimo - conceber o justo equilíbrio entre peculiaridades
nacionais e horizonte internacional. Fernando Henrique Cardoso, em seu pre-
fácio à edição italiana de Raízes do Brasil, tende a mostrar a imersão de
Buarque no oceano liberal universal. Mas, com isso, deixa escapar o essen-
cial: ou seja, não percebe que - para retomar a expressão de Roberto
Schwarz - o liberalismo-americanismo seria, no contexto brasileiro, uma
"idéia fora do lugar"6 sem o contraponto dialético seja com a superação do
"familismo amoral" (que é uma expressão, afirmada na Itália, afim àquela do
"homem cordial"), seja com o seu contrário, igualmente necessário, isto é,
com a valorização política e social do "ritmo espontâneo" da vida popular.
A grandeza de Buarque consi.ste em ter pensado até o fundo o que ele

17
LER GRAM SCI, ENTE NDER A REAL IDAD E

mesmo, n.1s , ' tt·mns linhas do seu l.tvro,


u , .. · e11ama de "contr apon t o " entre ,, 0
. .. , .
J ,, e :l ''ordem natur al'', mas tamb
;
ém entre a soc1abil1da de public a de
Est:100J •,'\c •1,, tnodcrna e ·1 tradiç .. da " core1· 1·d d "
· ao . d
um 3 uemoct u Ll · e
ta t a e priva a.
• • ..
Assiste-se, cm Raízes do Brasil, :1 um descnvolv1mento 101c1almenre len-
ta e subtc rdnco, mns afinal livre e impetuoso de tal contr
aponto: quando se
chega 30 fim do percurso, o pensamento liberal-democrático ocidental,
com
su/ benthamiona "impessoalidade", revela seus limites, mas tamb ém
sua
incapacidade de valori z::i r plenamente as antigas e fundadoras "idéia
s da
Revo lu ção Francesa", as quais, ao contr ário, no conte xto brasileiro,
de
modo si ngul ar, "encontram apoio em uma atitude que não é estranha
ao
temperamento nacional". Depois da impiedosa acusação que sofre por
cau-
sa dos males e distúrbios que ele mesmo produz, o "homem cordial" encon
-
tra - ao preço de uma transformação de seus defeitos em virtudes - "uma
possibilidad e de articulação entre seus sentimentos e as construções dogm
á-
ticas da democracia liberal"7. Nestas páginas aparece cautelosamente,
no
horizonte, o fantasma do socialismo.
Por acaso (será mesmo que se trata de acaso?), a tradução desta tradição
··cordi al" num desenvolvimento que seja antagônico à traição secular
dos
grupos dominantes em face dos interesses populares, sugerida pelo pai
de
Chico Buarque, utiliza metáforas musicais ("ritmo espontâneo" do povo,
"contraponto" entre natureza e sociedade). Com efeito, como sabemos,
a
músic3 - que Gramsci considerava "a linguagem mais universal existe
nte
em nossos dias '' 8 - tem uma importância não secundária no cenário
cultu-
rJI e soc ial brJsileiro. Trata-se de algo também registrado por Carlos Nelso
n
Courin ho.
Coutinh o derun um a comp araçã o aprofundada e articulada entre o "ca-
~o" i1.1l i:1no e o bras ileiro, numa ótica gramsciana, 4(retraduzindo" gramscin-
11:1mt' t1 t e o pensame nro de auro res co mo Ca io Prado
Júnior e Flores cJn
Fc- rnJ11Ul""S e indicando impo rrante s ponto s de convergênc ia entre
as mecodo-
lng1.1~ de' Gnm sc i e de Lukács .
1 k t· !)\ :1 bdc>\.·e pre( isas afi nídJd es entre os "casos ,, da Idlia
~ do Brasil.
~ub linh o ,1qui 1r(·~ po 111 o s: 1) Hrcvo lu çilo pass iva", htransform:
1ção pelo
'"' 11l/ ', ., H •, 1, t u1 J\ ,10 1 l' volução., e ·1via pru ~s iaua ,, no Risorgimento
italiano e
na 111 d t' f h 111 iu,, 1..1 , umu /1dd<, cl() du L-> twlo-ndç,iu n o Br.1s il;
2) peculiarida-
J d du h11111 1nHt· L u ~nwpo l1 t ,l ( par ,l i\ Ir.il ia)
l:' euro peu -ocide nta l (para 0

18
ANTONIO GRAMSCI ENTRE A ITÁLIA E O BRASIL

Brasil) tanto na gênese quanto nas perspectivas da unidade nacional e, por


conseguinte, conexão entre desenvolvimento da consciência nacional-
popular e dimensão internacional dessa mesma consciência; 3) centralidade
da questão cultural para a ampliação da democracia, vinculações territoriais
dessa questão e, sobretudo, relação orgânica entre tarefas dos intelectuais ou
dos artistas e retomada-valorização do que Gramsci chamava de "espírito
popular criador", que é o equivalente ao que Buarque chama de "ritmo
espontâneo" do povo.
Fazendo expressamente apelo ao conhecido ensaio "Instinto de naciona-
lidade", de Machado de Assis, Coutinho repercorre todo o complexo e con-
traditório arco que caracteriza a gramsciana consciência nacional-popular,
desde a "doença infantil" das degenerescências populistas (ontem os roman-
ces de folhetim, hoje as telenovelas e a música de consumo) até a altitude de
uma "cultura popular"9 que, nos casos melhores, propõe-se como uma
expressão plenamente nacional-internacional. Deve-se recordar que Gramsci
indicava, como exemplos de literatura nacional-popular, nomes como
Shakespeare, Goethe, Tolstoi. Não se trata, obviamente, de "modelos", mas
de casos extremos de realização orgânica (horizontes de luz) da relação entre
povo e nação, bem como entre intelectuais e povo: uma luz que deve contras-
tar a tendência a repropor cores populístico-nacionalistaslO.

3. A QUESTÃO AMERICANA

Depois da publicação da edição crítica dos Cadernos, tornou-se imprescindí-


vel - mas, infelizmente, ainda é pouco difundido - o uso do método dia-
crônico no exame do pensamento de Gramsci. O estudo do caderno 1 é, des-
se ponto de vista, uma mina de revelações. Tomemos o tema que aqui nos
interessa: a questão nacional-internacional. Pode-se ver, na seqüência apa-
rentemente caótica e casual dos muitos "temas" tratados, que por volta da
metade do caderno 1 tem lugar uma reviravolta decisiva que ilumina a cons-
trução do mosa ico. Com efeito, o § 61, que tem como título "America-
nismo" , representa a demonstração concreta de que os complexos proble-
mas da reconstru ção da hi stó ri a na ciona l e da análise da estrutura geossocial
da Itália, enfrentados por Gra msci de modo sistc nuí tico sobretudo nos §§

19

LER GRAMSCI, ENTENDER A REALIDADE

43 _44, não podem encontrar um tratamento adequado sem enquadrar a


situação italiana no contexto europeu, por um lado, e, por outro, sem "com .
!, parar" a Velha Europa - com suas "incrustações" e "sedimentos passivos,,
1
(a partir da "composição demográfica" até os mais agudos problemas c.:co~
nômicos, culturais, "sexuais", etc.) - com o Novo Mundo americano.
"Racionalidad e" e "modernização " da produção de massa, enqu anto
fundamentos de americanismo e fordismo, determinaram nos Estados
Unidos, segundo Gramsci, a abertura de uma nova fase do capitalismo e, ao
mesmo tempo, a formação de um "novo tipo psicofísico", de um "homem
novo", cujo protótipo é o "operário-mass a". Nos cadernos 3 e 4, Gramsci
sublinha a "brutalidade" e o "cinismo" da nova "sociedade americana, fun -
dada na tentativa de reduzir o operário a um gorila amestrado", mas afirma
também que somente a partir desta "nova ordem" americanista é possívcl
buscar e "encontrar o sistema de vida 'original' e não de marca americana, a
fim de transformar em 'liberdade' o que é hoje 'necessidade"' (CC, 4, 280).
Deve-se observar que o trecho em itálico foi introduzido somente na segun-
da versão deste texto, ou seja, aquele presente no caderno 22.
Muitas vezes mal entendido ou mal interpretado, até hoje, tanto à direi-
ta como à esquerda (também em função da ausência de um exame genético-
diacrônico dos textos), o discurso gramsciano sobre americanismo e fordis-
mo - longe de oscilar entre demonização e exaltação - é um exemplo
admirável, e por isso mesmo tão difícil de entender, de análise dialética. Ele
lança luz, em particular, sobre a abordagem gramsciana dos grandes fenôme-
nos políticos (socialismo contra americanismo) e territoriais (centro-perife-
ria, norte-sul, ocidente-orient e, Europa-Améric a, etc.).
A relação de Gramsci com o americanismo é complexa, não privada de
problemas. Na evolução do seu pensamento "carcerário", verifica-se, depois
do caderno 4, um certo redimensionam ento da sua ... descoberta da América,
a qual, no caderno 1, determinara uma autêntica internacionalização da
"questão meridional", questão que, como sabemos, foi sob muitos aspectos
o ponto de partida de sua reflexão. Gramsci se torna cada vez mais cautelo-
so na comparação entre Europa e América; sublinha cada vez mais como ª
situação desta última se encontra condicionada pela dinâmica econômica
imediata, ou seja, como ainda não está atravessada (como a "histórica"
Europa) ptla complexa experiência das lutas hegemôn icas e pelo duro labor
de constr ução das superestrut uras.

20
ANTONIO GRAMSCI E NTR E A 11'ÁLIA E O 0RASIL

Trata-se de mudanças relevantes, embora n:io decisivas, nJ estruturação


orgânica do pen samento gramsciano (portanto, é preciso ter cuidado para
não exagerar no emprego do mét·odo diacrônico!): "americanismo " (e "ame-
ricanismo e fordismo") continua a ser, d<.: qualquer modo, um fio vermelho na
mente de Gramsci. Creio ser possível afirmar qu e hoje, na passagem ''de um
século a outro", a centralidade da questão da "América" e do americani smo
constitui um dos indiscutíveis motivos de atualidade - ou, melhor dizendo,
de capacidade de incidência na atualidade - do pensamento de Gramsci.
Um brevíssimo e iluminador texto de Sérgio Buarque, escrito entre 1940
e 1941, tem como título "Considerações sobre o americanismo" . Pode-se lê-
lo em contraponto a Raízes do Brasil. O ponto de partida deste texto é igual-
mente dramático e dilemático. À alienação originária do Brasil, que Raízes
atribui à sua "gênese" européia, corresponde aqui a ameaça de uma "nova
forma de colonização, pouco mais tolerável do que a antiga - colonização
de idéias, de maneiras e até de entusiasmos e ódios"l l. Com a finíssima capa-
cidade dialética que caracteriza seu estilo de pensamento - como sublinhou
Antonio Candido em seu prefácio à quinta edição de Raízes do Brasi/ 12 - ,
utilizando .. uma admirável metodologia dos contrários"13, Buarque traça
em poucas palavras uma complexa fenomenologia das figuras que assume
ou pode assumir a consciência nacional brasileira diante do americanismo.
Os dois pólos opostos são, neste caso, por um lado, a afirmação orgulhosa
d3 própria singularidade Hlusitana", fonte de um pretenso estranhamento
~ub su1nci3J e m face da HAmérica"; e, por outro, a reivindicação de um
.. mo no póli o de autêntico americanismo: Brasi/e sive Ame rica, já di sse ram
vel ho~ c urógrafos e velhas crônicas"t4.
De modo a lgum é uma "dialética negativa,, a de Sérgio Buarque. Seu
"scnr ime mo d a di a lética" - para usar a feli z expressão que dá título a um
irnpon:1nre livro de Pa ul o Edu a rd o Arantes 15 - tem um ancfamcnto por
,h~lll) J11n cl jssico: Bu arqu e vê ou enrrt vê, prefigura o u mes mo prop0c so-
lu1J>n p,Ha :l~ conrradiçõe~ qu e, co m se u "senso ag ud o das csrruwras "
(( J 11 d 1Jo )t elr 1nvc'~rig,1 no fu ndo da rea lidade (que se pen-;e na ch.1lt;tic:a do
·· hun1<·111 Lurdi .tl " ). Bua rque tscreve u t') f l' breve cn"a io dcpo i-; dt' l.,l'U rcro rno
Lll' ll lll ,J \'I.Jg l' I)) J() ') r :> 1.1do~ U1údo\, qu t O CO JIV ~JlCl'll d,l lll'l't '> ~id ,1dl' (k' corn -
1

k11 t: 1 JL h·tt r1,1» "~1 1npl1fiL;t\C)t:!> t·.x 1rt: rn a•/' ..,o bn: a 1\1n tr ic 1 ~ o ,un cr i~ani smo,
que .1prncnr Jv.1 rn ,, 11'>Lo k ,rn1d ,t ap rL''> t' nt ,111 t) dL· v111 n b r n sc11 -; o comum
du~ brn ~ilL·1ru) (L omu J o..,. u d JJ,h) "> du ,ouod u 1wt·ir o) 11tuna in ~an á vel oscila-

21
LER GRAMS CI, ENTEND ER A REALID ADE

ão entre a aceitação basbaque de uma subalter nidade neocolonial e o des-


çdém por "um mundo absurdo
e inumano, on de o excepc1. ona 1se f ez regra " .
Gramsc i escreveu que "o antiame ricanism o, antes de ser estúpid o, é
cômico". É também este, acredito, o ponto de vista de Buarque . O que os
aproxima é a firme convicção da necessidade de se contrap or a nacionalis-
mos e autodefesas banais e reacionárias em face do Novo Mundo que avan-
ça, e, ao mesmo tempo, a reivindicação de uma "origina lidade" das energias
popular es ainda abafada s nas respectivas socieda des de origem, as quais,
para se afirmarem cultural e politicamente contra a hegemo nia domina nte,
devem também propor uma interlocução ativa com as realizações (no bem e
no mal} da "nova ordem" americanista.
A "questã o america na", tanto para Gramsci como para Buarqu e, é uma
"questã o naciona l". Em que sentido?
Gramsci considera o fascismo como um "americ anismo de retorno " 16,
que busca conciliar a eficiência da modernização com a conservação das pio-
res "sedimentações passivas" da tradição tanto italiana como européi a: uma
propost a destinad a, a longo prazo, ao fracasso. Como sair do fascism o?
Simplificando, poder-se-ia dizer que Gramsci vê a necessidade, para o desen-
volvime nto de uma consciência naciona l-popul ar italiana , de retoma r os
aspectos progressistas de sua própria tradição "europé ia-inter naciona l", da
qual é ou deve se tornar portado r o movimento operário: tal movime nto é
convoca do a afirmar uma alternativa econômica e social, cultural e política ,
ao amenca msmo.
Buarque parte da constatação de que o Brasil, entre todos os países do
Novo Mundo, talvez seja "ainda hoje o menos compen etrado de sua posição
continental"1 7• Ele expressa a convicção de que "a América é antes uma for-
ma de sociedade do que uma área geográfica" 18. Penso que Buarqu e identifi-
cava na "americ anidade ", contrad itória e ainda embrion ária, a ocasião histó-
rica real para que o Brasil pudesse se livrar do seu estrutur al made in Europa.
Um outro elemento deve ser identificado na "Améri ca" de Buarque : a
urgência de uma consciência contine ntal alternativa, que ele põe em desta-
qu e) e qu e traz à mente uma nobre tradição de pensam ento, sobretu do cuba-
no, qu e vai de Martí a Carpentier. Mas a "nossa Améric a" de Buarqu e não
é apenas aquela "l atin a". Ele afirma que, "apesar de tudo quanto nos distin-
gue dos anglo-sa xões da Améri ca , aind a restam zonas de coincidê ncia nasci-
das já nas primeir as épocas da coloniza ção e que o tempo não apagou"19.

22
ANTONIO GRAMSCI ENTRE A ITÁLIA E O BRASIL

4. SENTIMENTO DA DIALÉTICA

"Nascido no momento em que se forma o mercado mundi al, e como conse-


qüência de sua expansão, o Brasil -desde sua origem -já é herdeiro poten-
cial daquele patrimônio cultural universal de que fal avam M arx e Engels"20.
Esta lapidar afirmação de Carlos Nelson Coutinho pode ser ass umida como
fundamento daquele peculiar "sentimento da dialética" que suscita, ou deve-
ria suscitar, o diálogo entre intelectuais brasileiros e europeus.
Não só as "raízes do Brasil", mas sua realidade e suas contradições
atuais envolvem de modo imediato a realidade e as contradições da Europa.
A questão da "herança daquele patrimônio cultural universal de que falavam
Marx e Engels" toca de perto o destino do Velho Continente, hoje dramati-
camente dilacerado entre uma fortíssima tendência a aceitar um papel cada
vez mais subalterno diante da nova universalidade de "marca americana"
(como diria Gramsci) e a busca de um espaço de autonomia, na direção de
um mundo rico de pluralidade e diferenciação. É precisamente esta riqueza
ameaçada que se expressa hoje no sentimento da dialética enquanto tal,
como expressão de uma cultura milenar e articulada entre populações e civi-
lizações diversas, agora posta em questão pelos inúmeros fundamentalism os
antidialéticos que, em todo o mundo, minam a possível retomada de um
humanismo planetário.
"Nós somos o outro e o outro é necessário para a identidade do mes-
mo", disse Antonio Candido 21 • A Europa tem hoje, mais do que nunca,
necessidade deste Outro, já que só interrogando as sociedades e culturas pós-
coloniais - no sentido polivalente de sociedades nascidas depois da rapina
colonialista mas também liberadas dessa rapina, embora cada vez mais
ameaçadas pelo imperialismo e pelo neocolonialismo - é que a Europa pode
interrogar a si mesma como num espelho. A Europa em busca de si mesma
fora da Europa? Na realidade, como escreveu Etienne Balibar, "já no
momento inicial" da descoberta, "ou talvez fosse melhor dizer conquista" da
América, "a Europa se pensou e se vivenciou 'fora de si mesma'" 22 •
Entre Itália e Brasil, entre Europa e América Latina, passa uma corrente
que torn a a identidade tanto de uma como de outro(a) profundamente híbrida.
Roberto Schwarz esclareceu de modo magistral a má-fé implícita na rei-
vindicação de um a suposta necessidade de emancipar a cultura nacional bra-
sileira do hábito de "imitar" ou "copiar" a cultura européia. N a verdade, o
problema é outro. Por trás da verdade parcial de tal reivindicação, oculta-se

23
LER GRAM SCI, ENTE NDER A REAL IDAD E

de fato 3 bem mais densa verdade de u~a inveterada e estrutural


cisão, na
história brasileira, entre elites intelectuais e massas populares23.
Trata-se do
problema que Gramsci, a propósito da história e da sociedade italia
nas, defi-
niu como a inexistente construção de uma cultu ra e de uma
consciência
"naciona l-popular".
O mencionado ensaio de Coutinho - ainda que talvez privilegian
do
excessivamente o lado "programático" da categoria, na verdade
subordina-
do àquele "analítico" - fornece uma leitura brasileira da categ
oria grams-
ciana do "nacional-popular", em sua articulação vital e imprescind
ível com
a dimensão internacional (e internacionalista). Fizemos referência
a um vir-
tual enco ntro entre Cout inho e Sérgio Buarque. Este encontro
deveria
estender-se à linha Cand ido- Schw arz-A rante s, que é expressa
em O senti-
ment o da dialética. Devemos retomar este percurso e assumi-lo
como intelec-
tuais europeus que consideramos ser possível aprender muito com
a "expe-
riência intelectual brasileira"24. Ela nos pode ajudar a transporta
r Gramsci
- en tre Itália e Brasil - na dialética do "mundo grande e terrív
el e compli-
cado" que o novo século nos está fazendo conhecer.

[Tradução de Andréa de Paula Teixeira!

NOTAS

1
\ . B. dl· 1fol.rnd .1, R.1hes do Brusi/, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999, p. 3l · \ 1
~ C. . Vck)~ü, \!, rd.,1dc• rrop 1c~1l, S:io Paulo, Companhia das Letras
\(_ N ( 1 (' ultuu . Ensaio
, 1997, p. 14. ~
. ,LH1un 10 , t ' !> VCled.idt' no Brus,I. s sobre idéias e ( o rmd), tt ,o ('1• j.1 1· 1f(l ,
DPt\.' A, 2l)OO, p 45 e 4 J.
~ '.-1 H til l l1. ,l.111J.1 . R.11~c•~ du 13, ..i:,1/ , c1r. , cap. V.
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1

' ~ ;,d, ,...·" t Au I rtJl .. Jur .b l .1f.J1.b S:io Paul u, DuJ S C.1c.L1Jt~,
1
1 l 977 , p 1 \ 28.
1 '1 1 l ➔ , 1 l.tt1J,1 i, ,.fl o,l,J H1.1:i f,dL , p } ~4 .
t A 1 , t .. ,, 11,L I t
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1 ,,'!\ Ili 11 . t,il , ·.!\•li tu .. 11 Ih IJ ., 111 111 111~ 1.1 ~. \ • t (Lh 11111 ''
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C 1,lt,11 ,1 ( ~,1, ,r,iid, '1 <"1 P, , a,o l. CI L , r 74 )
p, 0( H (J l;i n rl1. l r -.,dr T ç -" fl.()l f"{' o .ilffi('T K"l.~n "- m<>"'. ,n ' ~' C','>b · J , ~ ' / , , ., " l ' J ( ' lt d, 1,
1 ( 1

r , r-r• 1ni.l.1 1r~ ri 2 ,


t: ~rm , m C.... nd1d0. Tc-r{!tna n r, Rm ck J..rnnr~ Pu , Tern . \IJº .' . r, 1.H l 1 1
11-, r· 1: -
• 1., t d, J--J , ,la nd .. "r-,.~ 'r-ç-,;, u b~c o.~ · ..:am,mo · .rn. p 14

. J f .\ r a r, r o.(,. ', r,nf1111"nt r, tÍa dialrt,c.:i '1 7 ' l ;;,, .,,: - la,. ·e-1 riu?//• ., I · • t I ) , ~h .J lf / , , J
I ·,1, , · ··rzmdr)A ntrm1r, Candzdú ( P.obt...·;· ,c.J..u.1 ~:. Rtotk J.tMtrO , P 11t. l cn 1, 111•1_'
' \X r H.iu u,. '--II d!J r lir r . r 1· 0 ôd fnrdr , m ~ {' ti t:1-tmdo (!(~nbl10 >" . 1' (, " li t i( 1 r \
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1

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1

I• ',, l 1v •;1 17. 'l~:tl Hma l pm i.u btr~ç~q - , in 1,i . Cul:ur.; ( / ' l)/1/11.J . , .•w l'.wlP , l' u r 1'r 11 1,
, H I 11 1(1;., , ,,,
, l 1 . 11 .1 -, d,, · 11h111ulr1 do l,v10 de P. } Ar,1n1 c,. O u·,1t1 m n11 0 du c/1J /c-,1 ( .i- , ~tt.

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