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Edi(áo oÍrqrnal

Gesammehe Súiften Unt€Í Mrtwirkung von TheodoÍ W Adorno und Ge6hom Scholem
hq von RolÍ T edemànn und HerÍnann schweppenháuser Volumes ll, lll, lV e Vl.

copyÍighl da líadu(ào o 2018 Joáo Baíento


Copyíight O 2018 Aulênli(a EditoÍã Fitosofia e sociotogia da tinguagem
9. Sobre a [inguagem em geraI e sobre a Iinguagem
Todoso!drÍorlo5 Íe\oÍvddo! pela Autêntica Editora. Nenhuma partê desta publicaçáo
podeÍá seí ÍepÍoduzrda, leld poí meios mecànicos, eletrÔnicos ou em cópia humana
ÍepíoqÍáíi(d, spm à autonzaçâo prévia da Editorâ. 29. Fragmentos de fiLosofia da [inguagem e epistemotogia
' 29, Fragmentos sobre a percepcào
.ooRDrNÂDoR o (o(r(Ào nrô 31. Simbolismo do conhecimento
33. Anatogia e pã rentesco
cilson tannni (U.MG); Edbarà Cassin (Paris) Carlà 36. Teoria do conhecimento
Rcdrtques (UfN); Chudn Oliuetra (UFF) Danilo 38. Sobre o enigma e o mistério
MaÍcondes (PuC-Rio); Ernàni Chàves (UFPA);
cülhetme tàstelo Ben@ tuFfu). todo Catla\ 5àlle\
Diago Drosthi 40. Linguagem e Lógica
tuFBA), Monique David-Ménàd (PaÍis); Olínpio 44. Tipos de sa ber
Pinenta (UFOA: Mro Sússekind UFf);
Rqétio LorEs (UíMG); Rúrigo Duafte (UFMG), 45. Reflexões sobre H umboldt
Ramero Atves frej:tas (UF)P); qarcjZzek (Liublianal
waldênia Alvàrenga
47. Doutrina das semelhanças
Vhdini :,afatle (USP)
53. Sobre a faculdade mimética
57. Probtemas da sociotogia da [inguagem
Dâdos lnterna(ionais dê Catalogâ(âo na Publitação (ClP)
(Câmara BÍasileiÍa do tivío, 5P, Brasil) Tradução

Eenjamin, wa te( 1892-1940.


87. A tarefa do tradutor
Linquaqem, Íadu(áo, literâtura if ilosoÍia, teoria e cÍítica) /Walter 101. A tradução: os prós e os contras
Beniaínin ; tradução loáo BaÍento .. l. ed. - Belo Horzonte:
Autênncã Editora, 2018. '' (F lô/Benjàmin)
Teoria e crítica titerárias
tsBN 978-85-513'0359 7

l. L nguisticô 2. Lrteratura - HrstóÍia e crítica _ Teoria etc 107. Fragmentos sobre crítica literária
3. Linguagem e línguas Filosofia l.lannini, Gilson ll.Título.lV Séíe 107. Programa da crítica Literária
18-20128 cDD-418 1 15. Perfit da nova geração

1 1ó. Conselho aos mecenas


índices pàra catálogo sittemático:
1. LinguGt ca aplicada : Linguãgem : nadução : LiteÍatuIa 418 1 17. Antíteses
rolanda Âodr!úes &ôdê - B b ore.á '119. A tareÍa do crítico
124. Falsa crítica
128. Para uma crítica da "Nova 0bjetividade
131. História literária e ciência da [iteratura
@ cnu eo eurÊxttcr
139, 0 contador de histórias: reflexôes sobre a obra
Belo HoÍizontê Rio de Jânêiro São Paulo de Nikolai Leskov
Rua Carlos Turner, 420 Ruà Debret, 23, sâla 401 Av. Pau ista, 2.073,
S lvería 11140'520 CenÍo . 20030'080 Conjunto Nac onal, Homa I
Beo Hoíizonte . lúG Rio de laneÍo. tu 23'andar . Conj. 2310-2ll2 1ó9. Comentário
Tel : (55 31) 3465 4500 Te.: (55 21) 3179 1975 CerqueÍa CésaÍ. 01311-940 5ão
Paulo . SP
Te : (55 11)3034 4468
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I
que pode, â razão dar conta de uma obra de arte. Estamos rnuito lor rur
do reconhecimento de que a suaexistência no tempo e o processo (l,r
O contador de histórias:
sua compreensão são apenas duas faces de uma e da mesma realidurlc reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov
Penetrar nessa realidâde é a tarefa dos trabalhos monográficos sobr,
âs obras e as formas.
"Quanto ao presente", lerlos em'Walter Muschg, "pode dizer
',.
que ele está, nos seus trabalhos essenciâis, quase exclusivamente orrL r r

tado para a monogrâfiâ. A geração atual perdeu em grande pllr,.


a crença no sentido de uma representação globâI. Em vez cliss,,.
confronta-se com figurâs e problemas que, naquela época das histirr r,',,
universais, the pareciarn primar pela ausência". Confronta-se ,,,r1
figuras e problemas - pode ser que esteja certo. Na verdâde, o (lur
I
acimâ de tudo devia fazer seria confrontar-se com as obras. O t ir 1,, O contador de históriasra2
- por muito familiar que o nome
global de vida e de inflrrência das obras deve ser tratado com iguald,r,l, goe - deixou de ser entre nós uma presença viva e eficaz. É pa.a r.rós
de direitos, e mesmo com preponderância, em face da história d.r srr, qualquer coisa já distante, e sê-lo-á cada vez r.nais. Apresentar um
gênese, ou seja: o seu destino, a recepção pelos contemporâncos..,.. Leskovla3 como contador de histórias não significa aproximá-lo de
traduções, a sua fama. l)essa forma, a obra configura-se no seu rrt(.
rior cor-no um nticrocosmo, ou melhor, como un] micro-eor. I)orr1rr, r'2Traduzo esre títtrlo
não se trata, realmente, de apresentar as obras literárias no corlt(.\r(, lDer Erzàhler no original), a contrapelo do que tem sido
habitual noutras versôes, por "O contador de históriaí'. Por um lado, para rr
geral do seu tempo, nras sir-t-l de levar à representação, no t('rrl',, ao encontro de toda a inrenção do ensaio de Benjamin, que é a de recuperar
em que surgiram, do ten.rpo que as reconhece - e que é o nos,ro. I uma forma e uma frgurâ que o rornance e o progresso técnico e social (arravés
da informação) colocaram na sombra ou Íizeram mesmo desaparecer, e que o
assim a litelatura se transforma rrun:. orgdnofl da História. E u t,rr r.t r
tcxto remctc nluitas vczcs para a tradição oral. Por outro, porque o termo sempre
da história literária é transformá-la nisso, e não âs obras escrit.rs (.rr utilizado ("O narrador", corn a exceção da 1íngua inglesa, que usa tan, bém "The
materiais da História. sroryteller") perverte o sentido original: enquânto terrno técnico, "narrador"
é uma categoria da teoria da nârrâtiva; e no seu uso corrente a palavra perde
per6l próprio, na medida em que se refere a todo aquele que narra incluindo,
naturalmente, o romancista, que está ôra do ânrbito semântico do "contador de
histórias". O próprio Benjamin parece ir neste sentido quando, numa carta de
l3 dc dezernbro de 1939, ao 6lósofo Paul Landsberg (entào também exilado em
l'aris, e que viria a morrer em l944 no campo de concentraçâo de Oranienburg),
.rrrota, enr francês: "Voili 'Le narrateur' (mais il faudrait bien plutôt traduire: 'Le
t'orrteur')..." ["Eis 'O narrador? (lnas seria mais correto traduzir por 'O contador
rlc hisci,riaí)..."1 (GB VI, 367). (N.T.)
r'' Nikohi Lcskov nasceu enr 1831 no distrito de Oryol e morrcu em 1895 em S.
Ictcrsburgo, O seu interesse e a sua simpatia pelo campesinato aproxirnam no
rlc'li:lstói, r sul orientrção religiosa revela afinidadcs com l)os[oióvski. Mrs
prccisarncntc aquelas obr:rs quc dào expressio funrlanrental e doutrinárir a essrs
terrlôrrcies. or rorrrlrrccr cl;r sul prinrcira irsc, rcvel;rr.rm rer a plrre nrais cftrlc-
rl rll srr;r rrbr:r. A irrrportincir tlc Lcskov cst:i nls sous his«lrils brcvcs. c css.rs
Icrtcll.! Dr .r rrrrr.r í.rs. l)(\teri()r (l,r su,r Iroduçio. I )c\(lf () firrr ,lrr irrcrIu Íirr'.rrrr
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fcitirs. rr,r cr|,r1,, ,rl, rrr,io, r',ilr.rs tcrrt.rt ir',r,i prrr'.r t,,rrr.r r ,r,rr hc, i,l,,\ c\\r'\ \ru\ (1r rtr)\.

t38 LIr
,/
r)(is, sillnifica, pelo contrário, âunrentâr a distância que nos scp:rr,r de trincheiras, as econômicas pela inflação, as fisicas pela guerra das
dclc. ()bservados a partir de unla certa distância, os traços marcarlc\ ermas Pesadas, âs morâis pelos detentores do poder. Uma geraçâo que
e sirrrples que carâcterizam o contador de histórias revelam-se coru,, ainda tinha ido para â escolâ no carro puxâdo a cavalos üüfFdespro-
os que nele são nais importantes. Melhor dizendo, manifestrrrr s,' teàida, numa paisagem em que nada mais era o mesmo.-a nàÔ seras
nele como uma cabeça hurttana ou o corpo de um animal nurrr r,, iúvens e, debaixo delas, num campo de forças dominado por energias
chcdo, para o observador colocado à distância certa e no ângulo .'1,' destruidoras e exPlosões, o minúsculo e frágil corpo humano'tt'
visão adequado. Essa distância e esse ângulo de visão são-nos ditrtkr.
II
por uma experiência pela qual pâssan)os quase diariamente. E rrrrr.r
experiência que nos diz que â arte de contâr está chegando ao firrr A experiência que anda de boca em boca é a fonte a que forarn
É cada vez mais raro encontrarmos pessoas capazes de contar urr,r beber todos os contadores de histórias. E entre os que :llrgYqram
história como deve ser. É cada vez mais manifesto o entbaraço rrtrrrr histórias, os grandes são aqueles cuja escr"ita menos se afasta do dis-
grupo de pcssoas quando alguém pede para ouvir uma históri.r. í curso dos rnuitos contadores de histórias anônimos. Estes últimos,
p-õÍ süa vez, dividenr-se enr dois giupos que, aliás, se interpenetram
:
como se uma valiosa capacidade que parecia inalienável, a mais segtrr,r
entre as que eram segurâs, nos tivesse sido retirada: a capacidade rlt' de várias maneiras. E a figura do contador de histórias só ganha o
l
trocar experiências. seu perfil completo para quem tiver presentes esses dois grupos- A
A causa desse fenômeno é evidente: a cotação da experiênt r., voz do povo diz que "Quenr faz uma viagenr traz semPre muito que
baixou. E tudo indica que continuará a perdê-la, até desaparecer por contar",rr: e imagina o contador de histórias como alguém que vem
completo. Uln simples olhar para o jornal nos mostra que eh est,i I de muito longe. Mas não se escuta com nenos agrado aquele que,
hoje em baixa ainda mais âcentuada, que a imagem do mundo, rrio ganhando a vida honestamente, ficou na suâ terra e conhece as suas
apenas a do exterior mas tanrbém a do nrundo moral, sofreram clc trrrr histórias e tradições. Se quisermos imaginar esses dois grupos e os
seus representantes mais arcaicos, reconheceremos que um deles é o
dia para o outro trânslormações vistas como impossíveis. A Guerr.r
Mundial deu início a um processo que desde então nunca mais parotr. camponês e o outro o marinheiro que se dedica ao comércio- E na
Não é verdade que no fim da guerra os homens regressavam mudos cio verdade essas duas esferas de experiência produziram, de certo modo,
as suaslinhagens próprias de contadores de histórias, e cada uma delas
campo de batalha? Nâo mais ricos, antes mais pobres de experiênci.rr
partilháveis? Aquilo que, dez anos mais tarde, veio inundar a literatur.r preserva ainda, séculos mais tarde, algumas das suas características'
Assim, entre os narradores alemães mais recentes, Hebel e Gotthelf
sobre a guerra era tudo menos a experiência que passa de boca errr
provêm da primeira linha, enquanto Sealsfield e Gerstãcker se in-
boca. O que não é de estranhar, porque nuncâ as experiências for.rrrr
serem na segunda.rrt' Mas, em ambas as linhagens, trata-se sempre,
desmentidas de fornra mais radical do que as estratégicas pela gucrr.r

rrnEste parágrafo corresponde, em forma ligeiranrente modificada' a unl outro


A par das pequenas antologias das ediroras Musarion e Georg Miiller, dcstrc,r .lo te*to
;E*p.riêncii e indigência"' incluído errr O anio da hístória (AtrtêIrrica'
',
a edição enr nove volurrres da editora C. H. Beck. (N.4.)
2012). (N.T.)
As ediçôcs referidas sâo as seguintes: Dt:r stàhlcme Floh [Â pulga de açol- Mrrrl
que, Musrrion, 192'11 Der wrsiegehe Ergtl und andut C,:sthirirttrr lO arrjo scl.rrlr, , "'A origent dcsse ditlclo encorrtra se no poema de Matthias Claudius (17'l{)-1t315)
"Urirns llcise url die Welt" IUriano e a sua voltl ao munclol, incluído n:r co-
outras históriasl. Munique, Musarion, 1922, De/ oiÍ?úlith( OolLttart ntl ,nltt,
lctârre:r Ilhrtrlsúrr/rlr lirrrc lO nrcnsagciro de Wandsbcckl. dc l7ll6 (N'I )
Gcsriidte,l [Golorvan. o imortal, e outras históriasl. Muniquc. Mrrsarx)n. lt)] l,
t'' (1760-182r)). sobrc.Itettr llerÚlr)rin cs(rcvc v:'rrios tcrt'x tl
Ausgeu,àhlrc Norcllu lNovelas escolhidasl. 3 vols.. Munique, (icorg Miillcr. l')-l \. -l,lnnnt l\tr'r tII,rí
(ksamncltc Wtrkt in naun IJ,ilúrr [Obres rcuniclus cnr 9 volurrcsl. Mrrrrrrgtre. .rirrrl.r holt trrrr .ttttor tie rclirôrrt'irt par.r rttlr "c0tlt tdt'r tlc hlrtririrr'i tio srrrgtrl'rI
lleck. 1()2.1-1929. (N.-l-.) r orrro W. ( i. Sch.rlil (v11,r st í ),alrirrlarrrrr'',r/it,iri" lrslror. lr('r(r)r'r'llx)'))l/'1rrnr'r'

140 r) Í oNr^rrnr tÍ tltil(rrrr^ L lrl l l l (rl !,1)lllil olrll^ lÍ N xr)L l',kov l4l
^ ^r
c()n)() se disse, dc tipos fundamentais. A extensão real do nrund,, privilegia o sólido e Iratural. O seu idcal é o do honrenr caPaz de st:
clrs rrrrrativas em toda a sua ar.nplitude histórica é impensável serl orientâr neste mundo, senr se envolver denrasiado cont ele E essa era
rurna íntima interpenetração desses dois tipos arcaicos. Uma tal firsio tembém a suâ âtitude no âmbito secular, o que explica ben) o íâto dc
-ter
é a que podemos constatar em especial na ldade Média, conr o ,icrr começado a escrever relativamente tarde, com vinte e nove anos,
sistema corporativo. O mestre sedentário e os aprendizes viandarrtt.' depois das suâs viagens de negócios. A sua primeira obra publicada
trabalhavam na mesnla oficina; e todos os nrcstres tinham fcit().r\ intitula-se Por que sào os livros tão catos em Kirz? E segue-se unra série de
suas andanças antes de se fixarem na suâ terrâ ou em terra estranlr,r. outros escritos sobre as classes trabalhadoras, o alcoolismo, os Inédicos
Se os camponeses e os rnarinheiros eram ntestres da arte de narmr. .r. da pplícia ou os caixeiros-viajantes setu elnprego, conlo antecessores
corporações artesanais foram a sua alta escola. Nelas se encontravurrr , ' das obras narrâtivas.
saber de lugares distantes, trazido para casa pelos viajantes, e o srbcr
do passado que o sedcntário donrinava. IV
III A orientação para assuntos de natureza prática é um traço ca-
ract€rístico dê muitos contadores de histórias natos. Podemos encon-
Leskov conhece tanto as distâncias do espaço como as do terrrl,,'
trá-la de forma mais evidente do que em Leskov, por exemplo, nunl
Pertenceu à Igreja ortodoxa grcga, e era unr hotrrem de sinceras c,rr
Gonhelf, que dâva aos seus camponeses conselhos sobre agriculturâ;
vicçôes religiosas. Mas ao mesnto tempo foi uln opositor deciditlo rl.r
ou em Nodier,lai que se octlpou dos perigos da ilurrinação a gás; e
burocracia eclesiástica. E como tâmbém não se entendia com o furrcro
nesta série cabe tambénr Hebel, que dava aos seus leitores pequenas
nalismo secular, os cargos públicos que exerceu nunca duraranr rrrrrrt,,
instruçôes sobre ciências da natureza no seu "Cofrezinho dos tesou-
O lugar que mais terá favorecido a sua produçâo literária terá sido ,,
ros".ras Tudo isso remete para a natureza de uma autêntica prática
de representante russo de uma grande firma inglesa. Ao serviço tlcsr,r
de contar histórias. De forma âberta ou escondidâ, essa prática traz
firnra viajou por toda a Rússia, e essrs viagens proporcionarrrrr-llr,
sempre consigo alguma utilidâde. Essa utilidade tanto pode estâr nunl
quer um saber do mundo, quer um conhecinrento da situaçào rl,'
princípio moral como nunra indicação de ordem prática ou num pro-
seu país. Desse modo pôde conhecer bem as seitas da Rússia, o ..1rr,.
vérbio, numa regra de vida - em quâlquer caso, o contâdor de históries
deixou marcas nas suas histórias. Leskov descobre nas lendas rtr..,r' "dar
é um homem que sâbe dar conselhos âos seus ouvintes Mas se
aliados para a su a luta contra a bu rocracia da lgreja ortodoxa. I )cr r,
conselhos" começa hoje â soar antiquâdo, a culpa é de uma situação
, r r

urtta série de histórias lendárias ertt cujo ccntro encontràrn()s () r rl\,,


em que a experiência se foi tornando cadâ vez menos comunicável'
do hornemjusto, raramente un1 asceta, as mais das vezes um hor rrcr r
A consequência é a nossa impossibilidade de dar conselhos, quer a
r

simples e ativo capaz de se transôrmar em santo da forrn.r rrr.rr.,


nós próprios, quer aos outros. Um conselho é menos resposta a uma
natural. Leskov não é dado a arrebatanrentos nrísticos. Airrrl.r,1rr,
pergunta do que uma sugestão que tenl a vcr com â continuação de
por vezes se deixasse arrestar pelo maravilhoso, a sua religiosirl.r,i,
uma história que está se desenrolando. Para aceitar um conselho de-
vcríanros, em prinreiro lugar, ser capazes de contar essa história (isto,
CotthetJ 0797-1851) é o nome literário do auror suíço Altrert llitziur. , ,,rrr.r,1,,, parr nio tllarnlos de que alguém só estârá receptivo â uur conselho se
de histórias fantásticas como Diesc/ra,ar:r Spiutc (A ara ,:r,ltgm,trad.prrrrrrLirr,.,
de Elviro da Rocha Gomes, Porto Editora, s.d.); Clrarlcs .§r,a/-.licll (178J l)rr,lr,
rontântico fr;rncês (N T)
o nome literário adotado pelo austríaco Cârl Anton l)osrl, que cnrigrorr p,rr.r ,,. 'r'(liartcs À',rríilr (l7tiO-1t344): acadênrico c cscrilor
Esrâdos Unidos; Fiedfuh Cersta&er (1t11ír-1872) nrsccu cnr Hrr:rhrrrgo r. lor rrrrr r'* Flnr ltcrrrio Sdr,rt--l'r'irt/r'itr, crtr llusão ao tittrlo da coletirrer rlc histírrias e crti"i' rt
escritor de viagens, corn várias deslocações aos Estados Unidos, Aruór rr,r rLr \rrl. Sr /r a t^'/.r, istlr'irr r/ts rirr'r tti!tltt'tt I l,tr!li\ rrlrs,Prr[rliclldrrs origirlrrlrlrcr)lc elltrc lllo3 c

Triri e Austrálil, e unr.r lisra infindávcl dc obras nusci.i:rs dcss:n vi.rgcrrs. (N I I lllll rrurrr .rlrrr.rrrlqrrc c,lit.r.Lr p,rr llebel. (N.1.)

l4? o (ioNl^lnrr l)l llr,l()lll^" lrl l l l rrr í)lrlll (rlll^ l)l Nlxol t l'rr)v l4 J
" ^ ^r
l' -/
firr cupnz clc expor a sua situação ern pãlavras). O conselho, entretecido de peregrinação de Wílhelm Meíster), o que acontece é que tais tentâtiv.rs
rir ruâtéria de uma vida vivida. é sabedoria. À arte de contar histórias resultam senrpre em r.r.rodificações da própria forrna do ronance. Já
cstír clregando ao fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, o romance de fornração não se afastâ de rlodo nenhum da estruturir
cstá desaparecendo. Mas esse é um processo que já vem de longc. Fi básica do romance. Integrando o processo de vida social na evoluç.io
nada de mais descabido do que querer ver nele um "sintorna de de- de um indivíduo, justiÍica da lorma n.rais frágil que se possa imagrrrar
cadência" ou, pior ainda, de decadência "nroderna". Pelo contrário, as leis que determinanr tal processo. A legitimação dessas leis não sc
trata-se apenas de um sintoma que surge concomitantemente a forç.r. ajusta bem à sua realidade. O inalcançável acontecerl" precisamentc
produtivas hi.tórtcls c seculares que trrancdranl progrcssi va n lcnt e t,l i. no lonrance de forrnação.
narrativas do espaço do discurso lalado, conferindo simultaneameDtc
uma nova beleza àquilo que vai desaparecendo.
VI
,..--- Temos de imaginar que a transformação das forntas épicas se
V processou a um ritnro comparável ao das transformações da superficie
O prin.reiro indício de urn processo que cuh.ninará coln a dc da Têrra ao longo de milênios. Poucas outras formas da comunicaçào
cadência da arte de narrar é o advento do romance no início da er.r hunrana se constituíram ou se perderam mais lentanrente. O romance,
nroderna. O que distingue o rornance da história tradicional (e da épic.r cujos conreços remonranl a Anriguii:la.lc. rcve dr esperar centenas dc
no sentido mais restrito) é o lato de não poder prescindir do livro. A ãíõ§à-té encontrar na burguesia aScendente os elementos que o levaram à
difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensl. sua época de ouro. A afirmação desses elenentos levou a unt progrcssivo
A tradiçào oral, o patrimônio da épica, tem uma natureza diferente retrôiesso das antigas narrativas para a esfera do arcaico; é certo que estâs
- 1^
dr rnatéria do ronrancc/O que distingue o romance de todas as outrJ\ se serviran.r de formas diversas dos novos conteúdos, mas de fato o seu
formas da prosa-o c..-,hto de fada". ar lendas e mestno a novela -c,' caráter não era deterrrrinado por eles. Por outro lado, é possível reco-
fato de ele não provir da tradição oral nem ser assimilado por ela. M,rs nhecer que, quando a burguesia alcança o seu apogeu - e un.r dos seus
a distinção nraior é enr relação à arte de contar histórias. O contadot instrumentos mais importantes, na lase do capitalisnro avançado, foi a
de histórias vai buscar a sua nâtéria à experiência, a própria ou as cltrc imprensa -, surge unra forma de comunicaçào que, por nrais rcntota que
lhe forarn relatadas. E volta a trânsformar essa matéria em experiência seja a sua origem, nunca antes havia influenciado de rr.rodo determinante
daqueles que o ouvenr contar. O romancista isolou-se. O lugar dc as formas épicas. Mas agora é isso que acontece. E torna-se evidente que
nascimento do romance está no indivíduo e na sua solidão, naquclc ela será, mais do quc o ronlance, estranha à antiga narrativa, e muito
que já não é capaz de falar de forma exemplar das suas necessidatlcs mais ar.neaçadora do que aquele, que, aliás, entrará por isso nun.ra fase
í'
r essenciais, que não pode dar conselhos porque ele próprio não os recebr'.
Escrever um ror.r'rance é representar a vida humana levando ao extrertr,,
crítica. Esta nova fornra de comunicação é a da inforruação.
Villemessant, o fundador do Figaro, condensou nurna célebre
o inconrensurável. No n.reio da plenitude da vida, e representando css,r Íórmula a essência da inforn.ração: "Para os meus leitores" costun'ra-
plenitude, o romance testenrunha a profunda desorientação clos r tr,,. va elc dizer - "é rnais importante um incêndio numa ntansarcla do
O prir.rreiro grande livro desse gênero, o Dom Quixott, nrostra tlcstlt Quarticr Latin do que urna revolução en.r Madrid". Ficanros sabe'nclo,
logo conro a grandeza de altna, a audácia, a generosidade de untl pcss,,,, scnl nrirrgcrn de dúvida, que aquilo que mais interessa lo pÍrblic,.r n.i,.r
nobilíssima - precisamente Dom Quixote se veem senr oriettt.tl ,r, ' í'a rrotícia lluc verrr clc longe, nras a inloruraçào que r)re trlz Lu)rir
nem conselho, e não contêrrr a mínima centelha cle sabecloril. E st .r,,
lonpço dos séculos se procurou, por vezes, introcluzir ensitrarrlcr)t()\ n( r r''A Ír:rsc cit,r tltr:rs lirrlr.rr ikr "(irnr rr:ístico r|r tlr.rl do /iurJl() dc (;octl)c: /)ri
ronlence (o exentplo rnais evidente scrá o rolrtlrrce dc (iocrhc ( )r ,ttr,,' I it:tlnttlirll / I liü úül\ /itiqrris (N I )

t 44 í)(oNt^trotlrt l1r,l(Í ti txol ,,rltltl NhoL^t t ,,()v I4,,


^, ^olnr^trl
trate de ttttt triunfàl dos [)crsas. E organizou ainda as coisas de Irrodo a quc (' prt-
relerêÍrcia Próxima. A nratéria vinda de longe - quer se
sioneiro visse passar a filha, agora na condição de serva, cot:t o cârttartr
país distante no espaço, quer da tradição, distante no tempo -
cr'r
para ir à fonte. Enquanto todos os egípcios se lamentavam e clattravlttr
portrdom d..rn.,, eutoridade que lhe conferia um valor próprio'
aintl r

que nâo suscetível de controle. A iníorrnaçâo, porém' tem


preten'i.' a perante esse espetáculo, Psamênite pennaneceu calado e impassível, tle
olhos postos no chão; e pouco depois, ao ver passar o Íilho,
imediatanrente controlável' O que conta' em primeiro lug'rr''
arrastad<r
áe ser
ela não é ntrtr' na fileira dos que iam ser executados, nlanteve-se tarnbém impassível.
é ela ser, "em si mesma, compreensível" Muitas vezes
Mas, ao deparar com urn dos seus criados, um homem velho e pobre,
exata do que foi a mâtéria vinda de séculos anteriores' Mas'
enquartlrr se

iníormaçào nào prescitrtlt


mlravilhoso, a no rqeio dos prisioneiros, comeÇou a bater com os punhos na cabeça,
esta gostavâ de recorrer ao
cotrr dando sinais da nrais profunda tristeza.
do sJu estatuto de plausibilidade. E isso torna-a incompatível "
O progressivo recuo da arte de cotrt tt Por essa história se pode ver como deve ser a autêntica arte
espírito da antiga narrativa.
de narrar. A infornração es€lotou o que valia no nlomcnto em que
deve-se em grande parte ao avanço da informação'
Todas as manhàs somos infornlados sobre o que de novo acont(
(( foi novidade. Vive apenas nesse rnomento. Tem de se lhe entregâr
por cornpleto, e explicar-se perante ele, sem perda de ternpo. Outra
.l à supe.fici. da Terra. E no entanto somos cada vez nrais pobres tl'
,l'{ lir,À.i dc esDanto. Isso se dcve ao fato dc ncnhum acontccilrrcrrlt' coisa é o quc se pâsse com a arte de narrar: nào se esgotâ. Mantéln
a sua força concentrada no seu interior, e é suscetívcl de desenvolvi-
.h.nr até nós senr est.rr-iá intpregnrdo de uma série de explic'tçi" '
I Enl'ou,rrt palavras: quase nada do que acontece tem utilidacle pirr'r 'r mentos muito tempo depois. Assim, Montaigne lembrou a história

narrativa, praticamente tudo serve antes a informação' Na


verclrltlt ' do rei egípcio e perguntou-se: por que razão se lamenta ele ao ver
já é meio caminho andado na arte da narraçào conseguir contar rtttt t o criado, e não antes? E responde: "Como estava já transbordando
de tristeza, uüra €lotâ mais bastou para rebentar os diques". É assinr
história sem necessidade de explicaçôes' E Leskov é nlestre
nessa 'rrt(
que Montaigne entende a história.'5' Mas também se poderia dizer:
(vejam-se histórias como "A fraude" ou "A águia branca") O
qtrt ''
conr a ttt'ttt't "O rei não se sente tocado pelo destino dos que são de estirpe régia,
da ordem do extraordinário e do maravilhoso é narrado
psicoli' porque esse é o seu próprio destino". Ou então: "No palco, somos
precisão, mas não se sobrecarrega o leitor com o contexto
de ler os fetos t rl tocados por muita coisa que na vida nos deixa insensíveis; esse criado
gi.o do qu. vai âcontecendo. Este tem a liberdade
é apenas um ator para o rei". Ou ainda: 'A grande dor acumula, e só
aorro o, entende, e assim a nlatéria narrâda alcança uma âlllplittr(lr'
irrompe quando desaparece o estado de tensão. Esse momento deu-se
vibratória que falta totalmente à informaçâo'
conr o aparecimento do criado". - Heródoto não perde uma palavra
VIIrs0 para explicá-lâ. O seu relato é o mais seco possível. É por isso que
(ll essa história do antigo Egito ainda consegue, milênios mais tarde,
Leskov aprendeu na escola dos Antigos' O primeiro corltld()r
despertar em nós espanto e reflexão. É corno as senrentes que ficarar.u
histórias entrets Gregos íoi Heródoto' No décimo quarto capítrrLt 'i"
il (ltr'rl durante rrilênios hcrneticamente fechadas nas câmaras funerárias das
terceiro livro das suas Hisrórías encontramos uma história col)l
podemos aprender muito. Trata do rei Psamênite' Quando
o rci '1" pirânrides e conservaranl âté hoje o poder de gernrinar.
l't r ' r.'
egípcior, Psamênite, foi vencido e feito prisioneiro pelo rei dos VIII
árrbir.t, humilhar o seu prisioneiro l)c'tt ot'l' tr"
este fez questão de
() (1)r l( lt Nucla rec<.lntenda clurante rnâis terrtpo as histi>rias à Irossa tttetrró-
para que expusessem Psamênite na estrada pela qual iriil Pâsslr '
ril tlo qttc cssl sobrit'd:rtlc ncutril quc its subtrri à rrrírlisc psicoltigie.r.
ií" Esta partc, e o final da anterior' aparecenrjá, ligciramenrc nroditit
rrtl:rs' rro v.
rlr (il. M,rrrt.rr;1rc. l:l,ri,. I rr to prirrcrrrr, t,rp. ll. (N. L)
lnnptns lt pcnsdnn,to. P. 130-l3l (Atrtôrrticir' 2ol3). (N:L)'

o(l)Nl^tx»it)t llr',tiÍd^', Itlrlri)t',.{rttit Nth0t^ttl,r(rv t4t


^r)ttli^t,t
l4{)
I -r'
dele. Desse modo, a marca própria de quem conta é detectável rrrr
I E qu"n,o ntais o narr.rdor for capaz de renunciar naturahnente
aos
história narrada, tal como a marca do oleiro no vaso de barro..()s
I "f.ito, osicolósicos, tanro mais factlntente a sua história encontrlr'i
contadores de histórias gostam de iniciar a narrativa dando conta clls
I t'o.r, nr,rr.-iria dos ouvintes, tanto melhor ela será assimilada à sr'rrr
circunstâncias enr que eles próprios passaram pela experiência do qtre
II .*.-p.riên.i, pessoàl e tanto mais eles sentirão necessidade de' mais cecltr vão contar, quando não apresentam pura e simplesmente a histirria
.r,. rl"i, taràe. tr;nsnlitindo a outros Esse processo de assimilaçio'
livr-e como fazendo parte da sua experiência pessoal. Leskov abre o conto
que acontece no mais íntimo de cada ulrr, exige uma disposição
potltrr "A íraude" com a descriçào de uma viagem de trem eur que ouviu
, ie tensões, algo que se torna cada vez mais raro Se o sono é o
(Langeutdll'r'1 de um cornpanheiro de viagem os fatos que depois vai narrar; ou
' culminante do relaxamento do corpo, a disponibilidaáe
é então pensa no enterro de Dostoiévski como a ocasiào enr que trava
corresponde a esse ponto no plano mental' A-disponibilidl9e "
cônheci,.rento com a heroína do .or,í{ãI}Eé-.iÉ.i'i
pásarà onírico -guq .çhaçÀ-o ovo da experiênôiã'- õsusiurrar da íi'
nou,.o
rlrrt' caso evoca uma comuni<iade de leitores náa-tlã- d" qual foranr
lhrg.n., nr'flo...ta esPântâ-o. Os seus ninhos - aquelas atividades
discutidos os acontecin.rentos que relata em "Homens interessentes".
rnais intimamente se adequam a essa disposição de quem
sabe usar
"
Desse modo, as rnârcas pessoais são diversamente postas à vista na
tempo -já desapareceram das cidades, e estão em vias de desaparect
t

matérie narrâdâ, se não como as de quem a viveu, pelo nlenos conlo


.ro frrrpo. E com isso perde-se o dom de saber ouvir' e desaparct
t'

a comuniclade clos que saberlr ouvir' Contar histórias


é sempre a lrt( as de alguém que relata essa matéria.

de cotrtinuar â contá-lâs, e estr se perde quando as histórias


nâo r'...' O próprio Leskov, aliás, sentia conlo trabalho artesanal essa
arte de narrar. Numa das suas cartas lenros: "O oficio da escrita nào
preservatlas. Perdc'-se porque já nào se tecem nem se fiam os fior 'lo
é para mim uma arte livre, mas um trabalho artesanal". Não é de
tempo necessário para ouvi-las. Quanto mais os ouvintes se esqueccttr
tlc estranhar, por isso, que ele sentisse uma grande afinidade com o tra-
de si, tanto mais fundo permanece neles o que ouviram Quando
tal trrotl" balho manual, enquanto â técnica industrial lhe era completamente
les se apodera o ritmo do trabalho, escutâm âs histórias de
E estranha. Tolstói, que naturalmente compreendia muito bem essa
que adluirem naturalmente o dom de voltar a contá-las assirrr
''
posição, toca de vez em quando nesse nervo do dorn de contador de
*..- ,, malhas que acolhem esse dom de contar' Malhas que lr'r1''
Leskov, ao referir-se a ele como o primeiro "que chamou a atenÇão
em dia deslaçam em todos os cantos, depois de, há milênios'
tclcrrr
mantnl' para a insuficiência do progresso econômico... É est.rnho, .omo se
sido tecidas no seio das mais antigas formas do trabalho
lê tânto l)ostoiévski..., e não consigo compreender por que razâo
tx Leskov não é lido, quando se trata de um escritor que persegue a
verdade".rsr Na sua história maliciosa e bem-humorada "A pulga
A arte de nârrar, que prosperâ por muito tempo no âmbito '1"
trabalho das nrãos - nos câmpos' nos mâres e depois nas cidatles ''
de aço", que se situâ entre os gêneros da lenda e da farsa burlesca,
( ) rrrr Leskov glorifica os artesãos russos na figura dos ourives de Tula. A
ela rnesnta uma espécie de forma artesanal da comunicaçào
sua obra-prima, a pulga de aço, chega âo conhecimento de Pedro,
portante para ela não é transnritir o purÔ "enl si" da matérir' t "rrr"
,a ,a ,rr,"rra de uma informação ou de um relatório Faz dcs' t t 't
o Grande, e convence-o de que os Russos não devem temer o con-
ttt fronto com os I ngleses.
matéria à vida de quenr contâ, Para fazê-la enrergir de ttovo rt 1t 't
A irrragenr cspiritual dessa esfera artesanll, de orrde nlscc a
nrrrativJ traclicionll, tllvcz nurrca tenha sido tlcscrit:r tlc tbrrrr.r t.io
trlduzido por "t édio'. Aqtri, P,rt,'ttt
''r O tcrrno alenrio Larlqcrl't'ilr é nornlllmerlte
elc rrio tc:tr rs cc:not;tçiros gerrJttlcltre ncgltivls dcssc tcr-rtr o, c Por isso l,rr'lrt,,
r"(lxrtir (lc'lirlstr-ri ;r Arr.rtolv l:.rrtsov. rlc lSrrli. llc')j:r"rIr ( rtr r |,rrtir tl.r r(lr\i,)
trrcitrzi-lo no rcntido (poritivo) rle clispotril'illL1'rde rrr' rrtrrl' i:lrtc
(lc \.rlx r rrrrr
(N-'1 .r[.rrri rl.rr olrr'.rr rle I erkr»'. rcli rrrl.r .rtr.i\. r],r not,r l.l l. (N.'1 .)
o tctttlro, o srtl,tr d;r cspcrrr' .)

oÍroNt^tx)tlrl r',tanr^, tllltii)I , írlrfl Nrxol^|t,rlov I 4''


l4l.l
À
^r)llr^u -/
significativa como num texto de Paul Valéry.'5t Aí, fala das coisas perfei- a possibilidade de se furtarcm ao confronto com os que morrerrr. A
tas tla natureza, pérolas sem mácula, vinhos cheios e maduros, criaturas morte, em tenrpos um acontecinrento público na vida dos indivíduos.
acabadas, e chama-lhes "a mais preciosa obra de uma longa cadeia de e de natureza exenrplar pense-se nos quadros da Idade Médir enr
causas que se assemelhanr". Mas a acumulaçâo de tais causâs tem os que o leito de morte se transforrDa nunt trono para o qual acorre <.r
seus limites temporais âpenâs na perfeição. "Esse processo paciente da povo através das portas abertas da casa do moribundo _, a Ínorte vai_sc
natureza", prossegue Valéry, "loi outrora imitado pelos seres hunranos. retirândo progressivamente, e cada vez nrais, do olhar dos vivos no
Miniaturas, peças de marfim entalhadas con.r perfeição extrerna, pedras decurso da Idade Moderna. Antes, não havia casa, nem quârto, onde
polidas e belamente gJravadas, trabalhos ern esmalte ou pintura em que não já tivesse morrido alguém (a ldade Média sentia tânlbém no âm_
uma série de camadas transparentes se sobrepôem... - todos esses produ bito espacial aquilo que unra inscrição num relógio de sol em lbiza
tos de um esforço persistente e generoso estão enr vias de desaparecer, tornava evidente ent termos de vivência temporal: Llltima multist..).
e passarân1 os tempos cnr que o tempo não contava. O homem de hojc Hoje, as classes burguesas vivem ern espaços ciue mantênl livres da
já não trabalha enr nada que não possa ser feito ern pouco tempo". N.r nrorte, habitantes seguros da eternidade; e quando venr chegando a
verdade, até as histórias ele conseguiu encurtar. Assistirnosjá à ascensàtr sua hora, são nrandados pelos herdeiros para sanatórios e hospitais,
da síorr srory, que se afastou da tradição oral ejá não permite aquela lent:r onde se vão acumulando. Ora, acontece que nào são apenas o saber
sobreposição de camadas finas e transparentes, a mais exata imagern ou a sabedoria dos homcns, mas sobrctudo a sua vida vivida (e é essa
do -riiodo ôóino a narração perfeita se vai configurando a partir das a matéria de que se lazem as histórias) que ganha lorma transmissível
canradas de succssivas transmissôes. precisamente naquele que morre. Do mesmo rnodo que, no interior
da pessoa humana, o Ílm da vida põe erlt Ínovinlento uma série de
x imagens - visões de si própria com.rs quais se encontrou senr se dar
Valéry conclui a sua reflexão conr a seguinte frase: "f)ir-se-i.r conta -, assim tanrbénr, subitantente, aquilo que É.inesquêcível se
que o recuo da ideia de eternidade no espírito das pessoas coincidc maniÊsta nos seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz
com a sua rejeição do trabalho de longa duração". Desde sempre u respeito aquela autoridade que até o rrrais desgraçado ladrâo tem, na
ideia de eternidade teve na morte a sua mais importânte fonte. Daqtri hora da morte, em relação aos vivos que o rodeiam. Na origenr da
concluímos que quando essa ideia desaparece o rosto da morte sc maté'ria das histórias está essa autoridade
trensformâ. E isso mostra como essa transformação é a mesma quc
reduziu a possibilidade de comunicação da experiência à medida que XI
ia chegando ao fim a arte de contâr. 'A nrorte é a sançâo
de tudo aquilo que o contador de histórias
Há séculos que é possível constater como a ideia da morte Íiri pode narrar-,- À morte firi ele buscar a sna autoridade. Ern outras pa-
I
perdendo na consciência coletiva a sua onipresença e força plástrc.r. lavras: as suas histórias reenvianr-nos para a história cla natureza. E
E as últimas etapas aceleraram esse processo. No decorrer do sécrrkr isso ganhou expressão exenrplar nunra das histórias que nos deixou
r.r
XlX, a sociedade burguesa operou, com as suas instituições higiénrc,r. inconrparável Johann Peter Hebel. Está na coletânea Sdtãtzkiisth,it (l$
e sociais, privadas e públicas, um efeito secundário que talvez tcrlr,r rhcínísdru Hausfrewdes,t.í,terrr o título,.Unverhofftes \íiedcrsehen,,
correspondido à sua finalidade última e inconsciente: dar às 1res,,,,.r'
t\'(lhina nnlltis "a últinra
lhorrl pau nrtriros,,. A lrasc anrige conrpl«a, qrrc sc
r5' As citaçôes de Valéry que se segtrenr provênr do rcxco irrtitulado "l-cs br'rxlcr rr'' cnt ontrr l'rcquentcntcntc cnr irrscriçr)cs dc relirgios ptiblicos. d rz.. Ijuhí,t onntiltr,.r,
Llc Marie Mon n icr" l()s bordados de M erie Mon n ierl (192.1),in: ()rlr,,r'Jll l(l tlli t,t tr lti\ (lnctrt:t pâr'r «xi()\. c .r últirtr.r prrrl n:rritor..). (N. l_)
tlc.lclrr Hvticr. l'rris. l9ír0. (N.1.) t""1,4 tai.rittltr
l. 12.1.1. lo tt:,'It,, ln, ifo h lnl,titia rio /li,rr,, I Vrl.. ,rrrrt.s. :r r)r,r l.l(, (N. I l

l'n) (r(joNl^txÍit)t llt.,tí)Rl^,, Íl|lllti)I,,,,Í)|kl Âlrtít^trt N]x0l^|t.,Nr)v


t
I'it
ll\eencontro inesperado], um rapaz quc
e começa com o noivado de nresrno o ponto da indiferença criadora entre
todas as lonnas r.pic.rs.
trabalha nas minas de Falun. Nas vésperas do casanlento é surpreen- Nesse caso, a história escrita estaria para a
épica tal como a luz brarrcr
dido pela morte no fundo da galeria. A noiva permanece-lhe fiel c está para âs cores do espectro.rss Seja como
for, não existe entre t()cras
vive o suficiente para um dia, já muito velhinha, assistir à descobert,r as formas da épica uma única cuja aparição
entre a luz pura e incolor
e recuperação de um cadáver numa galeria esquecida, que umâ car)ril da história escrita seja menos questionável do
que a crônica. E na
da de sulfato de ferro preservou da decomposição. E nele reconhecc ampla gama de cores da crônica as gradações possíveis
do contar de
o seu noivo. Depois desse reencontro, também a ela a ntorte veio uma história multiplicam-se como os nratizes de
uma única cor. O
buscar. Perante a necessidade, no decurso da narrativa, de dar cont.r crolisra é o contador da história.lLcrnbrelnos a passagern
de HeÍiel,
dos muitos anos passados, Hebel fê-lo apenas com as frases seguintcs: toda ela repassada dô toiri da crônica, prr, .orrr,"r"Ã.ros
sem difi_
"Entretanto, a cidade de Lisboa, em Portugal, foi arrasada por urrr culdade a distância que medeia entre aquele que
escreve a história, o
terremoto e terminou a Guerra dos Sete Anos, e morreu o imperador historiador, e aquele que a conta, o cronista. O historiador
está obri_
Francisco I, e a Ordem dosJesuítas foi extinta e a Polônia dividid.r. gado a explicar, de uma maneira ou de outra,
os acontecimentos de
e a imperatriz Maria Teresa morreu, e o conde de Struensee foi cx.' que se ocupa, e de nrodo nenhum se pode limitar
a mostrá_los como
cutado, a América ganhou a independência, e as forças reunidas tlt' casos exemplares do curso do mundo. Mas
é precisamente isso que
França e Espanha não conseguiram conquistar Gibraltar. Os Turcos faz o cronista, de forrrra mais evidente no
seu clássico representante, o
encerraram o general Stein numa gruta na Hungria, e morreu tarr cronista medieval, antecessor dos nrodernos historiadores.
O printeiro,
bém o imperador FranciscoJosé. O rei Gustavo da Suécia conquistorr ao colocar a sua narrativa da história sob a égide
do plano
salvífico
a Finlândia aos Russos, e começou a Revolução Francesa e a lorrg.r divino, que é insondável, furta-se desde logJro p.ro
d" explicação
guerra, e também o imperador Leopoldo II desceu à campa. Napolcii(l documental. Em seu lugar surge a exegese, que não
tem de se ater
conquistou a Prússia, e os Ingleses bombardearam Copenhag;eu, ,' a um encadeamento rigoroso de determinados
acontecimentos,mâs
os camponeses semearam e colheram. O moleiro moeu farinha e r,t apenas os insere no grande plano insondável
do curso do mundo.
ferreiros continuaram a ntartelâr o ferro, e os mineiros a cavar p.lr.r Para esse efeito, não inrporta saber se esse
curso do mundo
encontrar os veios do metal nas suas oficinas subterrâneas. Mas quirrrrlr encontra a sua determinaçâo na história salvífica
ou na natureza. ()
os mineiros de Falun, no ano de 1809...". Nunca entes de Hebel unr cronista continua-se no contador de histórias,
agora sob outra forma,
contador de histórias fundou dessa maneira a sua narrativa na históri.r que se podia dizer secularizada. Leskov é, entre
eles, aquele cuja obra
da natureza, como ele o faz nessa cronologia. Se lermos com aterrçi,,. melhor dá testemunho desse fato. O cronista,.o_
o ru, oriátação
venos que a morte surge nela a um ritmo tão regular como o horrr. rrr salvífica, o contador de histórias, conr o seu olhar profano,
pârticipem
da gadanhar5T nas procissões que, à hora do meio-dia, circularrr .'rrr ambos de tal ntaneira dessa obra que em algumas
histórias se torna
volta do relógio das catedrais. dificil dizer se o pâno de fundo,ob.ç g. qr"-i elas se constroem
cor_
responde a uma visão do mundo. drr.oirm vistos
XII à luz dourada da
religião, ou enr lunção do colorido variegado do
mundo. Lerrrbrenros
Toda pesquisa que se ocupe de uma qualquer forma épicl tt r,r o conto "A Alexandrite", que ,,leva o leitor para
aqueles terrrpos cnr
necessariamente de levar em conta a sua relação com a historiogr',r I r.r
Podemos até ir mais longe e perguntar se a historiogJrafia niio rcpr('\( r rr,r
rr" Há plrllclos e ccos dessl iclcia cm llgurrs clos lragruenros prepera«irios
dirs l cscs
"Sobre o conccito rie llist<irir.': vd.,
ncsrr sa,ria o *rf.,u. il ,r;,, ,1, irii,,r;r.
Fi "() honrem cla gadanha" (foice) corrcsponclc:i figrrr:r d,r Mortc lr,l\ r'cl)rc\cnt.rlr'\ rl.l p.trtc (lo (i,)r(.,t;irir, .s Íi.gnrcn«rs..N.virs
tescs 11,,, ..Nov.rs rcses K..c ..A",
r:rerlicruis, e rlrrc sc rrrrrrtivcrlrr: .rti' hoje. (N.'1.) rru.rgcrrr tli.rlérir.,r". (N l.)

llr.' o(.oNl^lxx )l llt,,tÍ,)k^,, kl I t xol ,, ,,0lílt r)|lk^ l)t Nrkl)t^l|l,,r(l)v


a ^ lr,l
quc rinda as pedras no seio dâ terra e os planetas nas alturas do cétl Mnemosina, aquela que recorda, era entre os gregos a rnusa dl
sc prcocupavâm com o destino dos seres hunranos, tempos diferentts fornra épica. Esse nonre leva o observador de volta a uma encruzilhadl
clos de hoje, enl que tanto rtos céus conto sob a terra tudo se tornott histórica. Na verdade, se aquilo que a recordação registra - a historio-
irrdiíerente ao dcstino dos filhos do hotnem, e de lugar nenhum che- graÍia - representa a indiferença criadora das várias formas épicas (tal
gâ até eles unrâ voz, ou alguma coisa lhes obedece. Todos os novos conro a grande prosa representa a indiferença criadora entre as diversas
planetas descobertos deixaram de desenrpenhar qualquer papel nos meclidas do verso), entào a sua forrna nrais antiga. a epopeia, integra
horóscopos, e existem tambénr muitas pedras novas, todas nredidas c por urna espécie de indiferença a narração e o romance. Quando mais
-
pesadas e testadas no seu peso específico e na sua densidade, mas qtrc tarde, no decorrer dos séculos, o romance conreçou a emancipar-se da
já não nos anunciarn nada e de nada nos servem. Passou o seu tenrP() epopeia, ficou claro que nele o elemento artístico do épico, ligado à musa
dc falar cortr os hontens". - a recordação -, se manifesta de forma muito diferente da narraçào.
Como se vê, é rnuito dificil caracterizar claranrentc o curso tlo A retordação fund,a a cadeia da tradição que transmite o acontecido
mundo tal como o ilustra essa história de Leskov. A sua determinrç.i' ' de geração em geração. É ela o elemento artístico de épica enr sentido
é salvífica ou natural? Certa é apenas unra coisa: que ele, precisamet:tc amplo. E engloba as variantes artísticâs da épica, entre as quais encon-
porque é o curso do mundo, está fora de todas as categorias propri.r- tranros, à cabeça, aquela que o contador de histórias representa. É ela
mente históricas. À época enr que o ser humano podia acreditar gtr.' que funda a rede constituída, finalmente, por todas as histórias. Uma
cstâva em sintonia com a natureza, diz Leskov, já terminou. Schillcr liga-se à outra, como sempre gostaram de mostrar os grandes contado-
chamava a este tempo do tnundo a época da poesia ingênua.'i" () res, em especial os orientais. Em cada urn deles vive unta Sherazade,
contador de histórias pernranece-lhe fiel, e o seu olhar nâo se desvi,r a quenr ocorre ulna nova história a propósito de cada passagem das
daquele mostrador de relógio diante do qual circula a procissão tl:r' suas histórias. Estanros perante tma nemóría épica, e o lado artistico
criaturâs em que, dependendo do ponto de vistâ, a l'norte apare(( da narraçào. Mas a este temos de opor um outro princípio, também
como guia ou então como último pobre-diabo atrasado. ele artístico em sentido específico, que no ronlance, e no início, ou
seja, na epopeia, ainda se não distingue do da novela. Quando nruito,
XIII é possível intuí-lo nas epopeias, sobretudo nas passagens nrais solenes
Raramente se reparou como a relação ingênua do ouvinte coltt rr da epopeia homérica, como a evocação das Musas no início. O que se
contador é dominada pelo interesse enl guardar na memória o quc sc artuncia nessas passagens é a memória imortrlizadora do romancista,
ouviu. O decisivo para o ouvinte ingênuo é assegurar a possibilidacle tl,r por conrâste com a mais eltmera do contador de histórias. A primeira
repetição. A memória é, entre todas, a fâculdade épica por excelén. r.r. é dedicada a arrl herói, a wna deriva ou a ln combate; a segunda aos
Só devido a uma memória alargada a épica pode apropriar-se, por rtttt nríÍos acontecimentos dispersos. Enr outras palavras, é l re rcmoraçàn
lado, do desenrolar das coisas e, por outro, aceitar o seu desaprtrc. r
fEiryedenken], que, como lado artístico do romance, sejunta à memória,
mento, o poder da norte. Por isso não adnlira que pârâ utn hotrtcttt ao lado artístico da narração, depois de, com a decadência da epopci.r,
sirrrples do povo, como Leskov um dia o imaginou, o czar, qtrc a I a unidade das suas origens se ter cindido na recordação.
cabeça do mundo, onde as suas histórias tênr lugar, tlisponha da trr.tr'
XIV
anrpla de todas as memórias. "O nosso czar, e toda a strl Íàluíli.r, rirr'
de lato urna espantosa nrenrória", lê-se nessa história. "Ninguénr", diz Pascal, "urorre tão pobrc que não tlcixe algurru
cois:r". (lertarnente tanrbénr recordaÇões - nras acontcce qur cst:rs ncnl
It'No 'l scrlprc cr)c()r)trilrrr lrcrdciros. É., l.»rr,rncist.r rltrcrrr rrcrbc r'ss.r hcr.rrr
ensaio dc 171)5 "Sobre pocsia irrgênu:t c scntinrentel". r:rtltrçio l'r.r'rl'rr'r
l\xsia in-qitut,t (lttltim,ttnl. Sio l)lrrlo: lltrrrrirrLrr.rs. l99l (N.I.) ('lr, ( r:lr;ls v('7('\ \(rr rtrcl.trrcoli.r. (lortro rtcotttccc rrLurr rorrr;rrrt-c tlt'

t54
(, aoNr^tx)k 0l lil,tólll^,, ílt r || xÔt5:,orfit otk^ r,t NrKol Ll r,l({,v
^ ^r
a.
Ârnold Bennett, em que da morta se diz que "a vida real não lhe tlcrr essa sua amizadejuvenil. E uma pequena história que lhes aconteceu:
praticamente nada"; o mesruo se passa geralmente com a totalidirrl' um dia apresentaram-se, às escondidas e bastante amedrontados, rro
da herança que o romancista recebe. Sobre esse aspecto do problern,r bordel da sua cidade natal, e mais não fizeram do que oferecer à patrourc
devemos a Cieorg Lukács um dos mais elucidativos comentários. um ramo de flores que tinham colhido no jardim. "Três anos urars
quando ele vê no romance "a forma transcendental da ausência tl,.' tarde, ainda falavam dessa história. E agora voltavam a contá-la enl
pátria". Ao nlesmo tempo, ainda segundo Lukács, o romance é a únicu pormenor, e cada um completava as recordações do outro. 'Esse foi
forma que âcolhe o tempo entre os seus princípios constitutivos. N.r talvez', disse Frédéric quando terminaram, 'o mais belo momento das
Teorid do romance diz-se que "o tempo só pode tornar-se constittltr\'() no;sas vidas'. 'Sim, talvez tenhas razão', respondeu Deslauriers, 'esse
quando cessa a ligação a uma pátria transcendental. Só no romatrcc pode ter sido o mais belo momento das nossas vidas"'. Chegados a
se separam o sentido e â vida, portanto, a essência e a temporalida(lc. essa conclusão, chega também ao fim o romance. Um final que se lhe

Quase se poderia dizer que toda a ação interior do romance mais tt.ro ajusta de um modo perfeito, como não poderia acontecer com ne-
é do que uma luta contra as forças do tempo... E dessa luta nascent .t. nhuma narrativa tradicional.jDe fato, não existe narrativa para a qual
autênticas vivências épicas do tempo: a esperança e a recordação. Si, não faça sentido perguntar: Ê como é que a história continuou? Já o
no românce encontramos uma forma de recordação criadora capaz tlc rômance não pode esperar dar o menor passo para além desse limite,
se ajustar ao objeto e de transformá-lo. O dualismo constituído p(), quando convida o leitor a escrever a palavra "Finis" ao pé da página.
interioridade e vida exterior só pode aí ser superado, para o sujcrt, '. interiorizando assim a reflexão sobre o sentido da vida.
se este apreender a unidade de toda a sua vida... a partir do ri() (l,r
vida passada, cujo fluxo é condensado pela recordação... Â visão tltr'
XV
aprecndc cssa unidade tornJ-se pres\entimento c aprccntào tnttt lt t r.r Quem ouve contâr uma história está em companhia do narrador;
de um sentido não alcançado, e por isso inefável, da vida".ro" e âté aquele que a lê partilha dessa comunidade. O leitor do roman-
"O sentido da vida" é, de fato, o centro em torno do qual gravrt.r ce, porém, está só. Muito mais do que qualquer outro leitor (porque
o ror?táIraê. Mas a pergunta sobre esse sentido não é mais do que u cr mesmo quem lê um poeme está predisposto a dar voz às palavras para
pressão da perplexidade com que o leitor desde logo se vê confrortt,r,l,, transmiti-las ao ouvinte). Na sua solidão, o leitor de romances absorve
e introduzido nessa vida escrita. De um lado "o sentido da vida", tl,, a sua matéria de forma mais ciumenta do que qualquer outro. Está
outro "a moral da história": são esses os lemas que opõem o ron.rlnt r' , disposto a apropriar-se totalmente dela, de certo modo a devorá-la.
a narrativa tradicional, e com eles podemos reconstituir o lugar hisr,,r r Pode dizer-se que destrói e engole essa n.ratéria cor.no o fogo íaz com as
co, completanente divergente, dessas duas formas ârtísticas. Se o ttt,rt' achas na lareira. A tensão que atravessa o romance é muito semelhante
antigo rnodelo perfeito do romance ê o Dom Quixote, o mais rcccttt, âo sopro de ar que atiça as chamas na lareira e as anima no seu jogo.
talvez seja A edutação sentímental. Nas últimas palavras deste ron)irr(, É u- -"t".irl r..o, que alimenta o interesse ardente do leitor. E
ficou depositado, con.ro ferrnento no fundo da taça da vida, o scr)trrh, que quer isso dizer? "Um homenr que morre com trinta e cinco anos",
que se revelou à época burguesa e aos seus modos de vida no dealb.rr ,1.' disse Moritz Heimannr6rum dia, "é, em todos os pontos da sua vida,
sua decadência. Frédéric e Deslauriers, amigos dejuventude, relertrht,ttrr

"" 4 frrse rle Moritz Heimann é citada por Hugo von Hofrrannsthal cn Burlt úr
lrundc, Leipzig, 1929, p. 13 (cradução portuguesa deJosé A. Palrn;r (lactrno:
'""Â edição original do livro de Lukács urilizada por Benjanrin é: Di lrtr
'l Li,ro dos Ani,gt's. Lisboa: Assí: io & Alvim, 2(X)2, p. 30). ÀIorit"- I kinun (l,8(t8-
'l' '
Romans. Eir gesthichsphilosoThisthu Versuch über dic Formen der.qrollo r r7it. llt r lr rrr 1925) liri urrr cscritor cjorrr:r)ist:r llern:io dc origerljudlrce clrrc tr ab:rllrorr drr r,rrtt'
1920, p. 127 e 129, 131, 136,138. Existe unra tradução br;rsileir;r tlc Josi M.rr r or rlrr:rrc triutrr rr()\ nuur,r rlrrs r:r.ris irrrport:rrrtcr crlitor,rs dr'cntio. rr S. l:isrhcr
M:rrieni de Mrcedo: A rtoria dLt romanrL'. Sio I)rulo: Editoru 3,1, 2Íxnl (N I ) Vt rl.rg. (N.l'.)

o(:í)Nl^lxfi0t l]l,lrilr^ t t(ot Aotlt^ )t Nlx0t^ lt"xov


"r)tn
À
um homem que morre com trinta e cinco anos". Nada mais duvitlor,, círculo de influência das histórias das Mil e uma noítes. Enr sultta, e

do que essa frase. Simplesnrentc porque ela se engana no tempo vcrb.rl independentemente da função elementar que a narraçào desempenha
Um homem - é esta a verdade que aqui se pretendia defender - ,1r, na economia do humano, são muito diversos os conceitos nos quais se
morreu aos trinta e cinco ânos, apresentar- se-â, para a rem('fitoru\nn, podem subsurnir os frutos colhidos nas nârrativas do mundo. Aquilo
em cada ponto da sua vida como um homem que morre aos tlirt.r r' que em Leskov se pode apreender facilmente a partir de conceitos
cinco anos. Em outras palavras: a frase, que não faz sentido parl n vitl.r religiosos, parece inserir-se nâturalmente, no caso de Hebel, nas
real, torna-se incontestável para a vida renremorada. Nada melhor rl,, perspectivas pedagógicas do lluminismo, surge em Poe sob a forma
que essa lrase pode resumir a essência da personagcm de ronlan( c. ( ) de lradições herméticas e encontra em Kipling um último refúgio
que ela diz é que o "sentido" da sua vida só se pode apreender a pult rr no campo de ação de marinheiros e soldados coloniais britânicos- E
da sua morte. Ora, o leitor de românces procura precisamente f-igrrr.r. a todos os grandes contadores de histórias é comum a agilidade com
humanas das quais seja possível deduzir um "sentido de vida". P«rl i..,,, que sobem e descem os degraus da sua experiência como se de uma
e âconteçâ o que acontecer, tem de possuir de antemão a certcz.r tir' escada se tratâsse. ume escada que chega até o interior da Terra e se
que irá assistir à sua morte. Em último caso, a morte figurada: o tlrr.rl perde nas alturas das nuvens é a imagem de uma experiência coletiva
do romance. Mas melhor é sempre a morte real. E de que nrocfu llrr' para a qual nem o mais profundo choque da experiência individual,
dão esses personagens a conhecer que a mortejá está à espera delcs. r' a morte, pârece constituir impedimento ou barreira.
que essa é unrâ norte perfeitamente determinada, num lugar clctcr "E viveram felizes para sempre", dizem os contos de fadas. O
minado da ação? É esta a questão que alimenta o impaciente intcrt sr conto de fadas, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças,
do leitor pelos âcontecimentos do romance. porque em tempos foi o primeiro da humanidade, continua a viver
Assim, o romance não se torna significativo por nos âprescnt.u. secretânlente nes narrâtivas tradicionais. O primeiro e mais autêntico
eventualmente de forma edificante, o destino de uma outra pesso.r. contâdor de histórias continue a ser o dos contos de fadas. Quando
mas sim porque esse destino estranho, por força da chama quc,' um bom conselho tinha algum valor, o conto de fadas dispunha dele;
consome, nos passa parte do calor que o nosso próprio destino rttrrrt,r e quando a âflição erâ grande, ele lâ estava pâra oferecer ajuda. E essa
nos concederá. O o leitor para o romance é a esperarrçir ,lc aflição era a que o mito Provocâvâ. O conto de fadas dá testemunho
..qy: ]:r,
aquecer â friagem da sua vida com uma morte que a leitura lhc tr.rz dos mais antigos recursos da humanidade para sacudir o pesadelo que o
mito sobre ela fazia cair. Na Íigura do tolo, mostra-nos como a huma-
XVI nidade "se faz de tola" para enfrentar o mito; na Íigura do irn.rão mais
"Leskov", escreve Gorki, "é o escritor mais profundarncrrt,' novo, mostrâ-nos como as suas oportunidades aumentam à medida que
enraizado no povo, livre de todas as influências estranhas". O gnrrrrl,' se afasta das origens míticas; na figura daquele que foi correr mundo
contador de histórias terá sempre raízes no povo, acima de tutlr rr.r. para aprender o medo,rí'r mostra-nos que podemos desmistificar as
camadas de artesãos, Como estas, porém, abarcam, nos diverst>s 1,,.' coisas que nos meten medo; na figura do esperto, mostrâ-nos cÔmo
ríodos da sua evolução econômica e técnica, o elemento crrrrporri'', as perguntas do mito são simplistas, como já eram as da Esfinge; nas
o marítimo e o urbano, existe uma grande diversidade de conccrt.r figuras dos animais que vêm em auxílio das crianças nos contos, que
nos quais se plasma, para nós hoje, todo o legado da sua experiôrcr.r â naturezâ não se sujeita âpenâs ao mito, mas prefere juntar-se ao cír-
para não falar do contributo nada desprezível dos con.rercirntcs p.rr.r culo dos humanos. A coisa ntais sensata que se pode fazer - Íi>i o que
â arte de nârrâr: o seu papel foi menos o de aumentar os contcri(lo\
edificantes do que o de refinar os métodos astutos quc pcrrulcur "
r Alus:irr:ro corrto dos lrr)lios (;rinlnl Vrn titut,ltt drrs:o.q, tlds l;inlnt:ll.hrrutt
prender a atenção dos otrvintes, que deixanrnr prohrrrtlos vcstígi()s u(, (N.',t.)

o (.oNt^lrok t, llt,lóltl^', íil l L l xa)| olrll^ l)l NiKoL l,xov


t58 "',(rlllll ^ ^l
o conto de fadas ensinou à humanidade desde tempos imemori.trs, c natureza. E há também nas personagens muito menos taoístlrs (lc
-Gotthelf oi uma relação desse tipo, que por vezes vai buscar às lencl:rs
continua a ensinar hoje às crianças - é enfrentâr as forças do murtrk,
mítico com astúcia e altivez corajosa (o conto de àdas polariza.rssrrrr esse elemento local próprio do esconjuro, para salvar a luz d:r vicll.
a coragem de lorma dialética, fazenclo coexistir o aquêm da coragctrt própria do humano, ardendo serenarnente dentro e fora".1í"'"Saídos
- a astúcia - e o além da coragem - a altivez). A magia libertador.r de um conto de fadas" são também os seres que abrem o cortejo das
que é apanágio do conto de fadas nâo faz entrar em jogo a naturcz.r criaturas de Leskov: osjustos, Pawlin, Figura, o artista das câbeleiras,
sob forma mítica; alude, pelo contrário, à sua cumplicidade cont urrr.r o guarda dos ursos, a sentinelâ solícita. Todas elas, materializaçõcs
humanidade libertada. O homem maduro só por vezes sente es\;r da sSbedoria, da bondade, da consolação do mundo, se reúneur err
cumplicidade, nomeadamente quando está feliz; a criança encontrir-,r volta do contador de histórias. E indisfarçável a inragem d.r rnàe que
primeiro no conto de fadas, e é esse encontro que a faz íeliz. as impregna a todas. Leskov descreve-a nos seguintes termos: "Ela
era tào bondosa que era incapaz de fazer mal fosse a quenr fosse, nenr
XVII sequ(r Jo\ arrinrais. Njo conria ncnr eJrnc ncnl peire, porquc senti.r
essa imensa compaixão parâ com os seres vivos. O meu pai por vezes
Poucos contâdores de histórias revelaram tão grande afiniclrtdc
com o espírito do conto como Leskov. Isso se deve â tendências k) censurava-â por isso, mas ela respondia: 'Se eu mesma criei os bi-
chinhos cor-no se fossem meus filhos, corno posso eu comer os meus
mentadas pela dogmática da Igreja ortodoxa grega. Aí tem lugar,lc
próprios filhos?'. E tar.nbérn na casa dos vizinhos não comia carne. E
destaque, conro se sabe, a especulação de Orígenes sobre a apocatÍt',
taser6l - a entrada de todas as almas no Paraíso -, que a Igreja ronrarr,r
dizia. 'Eu vi-os vivos, conheço-os a todos. Como iria eu comer seres
que conheço tào bem?"'.1í'7
repudia. Leskov foi muito influenciado por Orígenes, e tencionrv;t
O justo é o advogado da criatura. e f,o nresr.llo tempo à sua su-
traduzir a sua obra Soúre os príncípios. Na linha das crenças populart t
prema encarnação. Em Leskov. tenr traço\ nraternais que por vezes
russâs, interpretâva a ressurreição menos como uma transfigurrçi,,
e mais como um desencantâInento (num sentido próximo do cotrttr
chegarrr a ser míticos (pondo corn isso em perigo a pureza do conto).

de fadas). Essa leitura de Orígenes está na base do conto O pere.çritt,' Um exemplo significativo é o da personagenr principal do conto
"Kotin, o Provedor de comida e Platônida". Essa figura, um campo-
encantado. Nessa história, como em tantâs outras de Leskov, estantos
nês de seu norne Pisonski, é unr hermafrodita. Durante doze anos, a
perante um híbrido, entre o conto de fadas e a lenda, que tem algurtn;
mãe criou-o como unra rnoça; mas â sua parte masculina cresce ent
afinidades com aquele outro de que fala Ernst Bloch num context()
en.r que retoma, à sua maneira, a nossa distinção entre nito e cor)t()
simultâneo conr a feninina, e o seu hermafroditismo "converte-se
em símbolo da encarnação humana do divino".
de fadas. "Um híbrido entre o conto e a lenda", escreve Bloch, "ó
Para Leskov, essa figura representa o nível máximo a que:r
o elemento impropriamente mítico da lenda, um elemento mítico
que tem um efeito certamente atraente e estático, sem com isso srtit criatura pode aspirar, sendo ao nlesmo ternpo uma ponte entre estc
da esfera humana. Neste sentido, são'míticas'nas lendas as ligurls
mundo terreno e o outro. De fato, essas figuras potentes e ctônicas,
de recorte taoísta, sobretudo as mais velhas, como o par Filérrrorr
t"'Jt:remias Cotthelf: vd., atrás, a nota 146. (N.T.)
e Baucisl6a: saídas de um conto de fadas, mas repousando coÍlto I),r
l''r'O livro de Errrst Bloch de oncle provênr cicaçôes é Erüsch4[ ditstr Zeit
as lHcrtnç.:
clo nosso tempol. Zuriquc, 1935, p. 127. (N.T.)
16r
Cf. Orígenes, Sobrc os princípios (Peri arkwn), IIt, I, 3. (N.T.) r''7
N. l-eskov, Der utsttrllidrc Colotuat tntl dndtrt Ctthirlrttrr l(iolorvlrr, o irrrolt,rl,
rna
Este par mítico aparece na segunda parte do Fdrrlo de Goethe (V At(), vv. l lo'l \ c orrtror torrrosl, trld. alcnr.i de Alcx.rndcr E)ilsbcrg. MLrrriquc, li)2-1, p ()1 A
e segs.), representando aí estâ ligàção à narureza, frente ao processo dr crvilr z.r1i, r urie tlc quenr ;rqtri sL iirl;r nio i'. dc Íirto.:r rlc Lcskov. nus r du,iLr,r l)crs()r).rqcn)
quc evrnça. (N.T.) r h,rrtr,rtl,r I:igtrr.r. (N. L)

1il) l)íoNl^ln)llirl lll'lt)lll^ llllllrol , i)lllll NrKi)l^ ll'XoV l{r I


^rrlnl^lrl
I
lr)âsculirlas e maternâis que tântas vezes tomarn conta da arte (lir vigiar o safado de um encarregado da nranutenção'. -'É isso nresnro,
efabrrlação de Leskov, foram subtraídas ao império da pulsão sextr'rl Excelência!', respondeu o anfitrião. 'Não quis ser eu a recortlur-vos do
no apogeu da sua lorça. Mas isso não significa que elas encarntrtt caso, preleri deixar falar a voz da natureza"'. O nrodo conro o scntitlo
um ideal ascético; pelo contrário, a castidâde dessesjustos tem nruiro prolundo dessa história se esconde atrás do seu lado nrais ÍTrtíÍ ili-n".
pouco de caráter privativo, de tal modo que se torna o contrapol)t() uma ideia do extraordinário humor de Leskov.
elementar do desejo desbragado que o nrrrador personiÍicou na figtrr'r Esse humor manifesta-se na nresnra história de unra íornra irirrrlir
de Lady Macbeth de Mzensk. Se o arco que vai de Pawlin a essa nrrrlhcr mais misteriosa. Já sabemos que o pequeno funcionário foi encarrcgl-
de um comerciante abarca o mundo criatural' por outro lado Leskov dode vigiar o encarregado da nranutenção devido à sua reconhecitlr
terá lançado, com a hierarquia de todas as suas criações figurais, unr'r honestidade. É o que ficanros sabendo no final, na cena do reconhc-
sonda até às profundezas desse mundo. cimento. Mas logo no início da história é-nos dito o seguinte sobrc
o anfitrião: "Todos os habitantes do lugar conhecianr o honrenr e
XVIII sabiam que ele nâo tinha nenhur.n posto de importância, já qu,,' uàtr
A hierarquia do mundo criatural, que tem nojusto o seu cullr(. era nem funcionário do Estado nem militar, mas tão somente um hu-
desce também em sucessivas gradações até o âbismo do ntundo inrr t t milde encarregado do depósito de provisões, onde, com as ratazanas,
mado. A esse propósito, será conveniente levar em conta uma circurr\ ia roendo as bolachas e as solas das botas do Estado... E com o tempo
tância particular. Todo esse mundo criatural se torna, para Leskor'. lá conseguiu construir, de tanto roer, uma bela casinha de madeira".
audível não na voz humana, Ílâs antes naquilo que, recorrendo rtt' Como se vê, nessa história sai ganhando a tradicional simpatia dos
título de uma das suas mais significativas histórias, poderíamos chattt'tt contadores de histórias pâre com os malandros e os vigaristas. Toda
"A voz da nâturezâ". Essa história treta do Pcqueno funcionário Filip a literatura picaresca da tradiçào oral disso dá testemunho, ao recusar
Filipovich, que move céu e terra para poder receber e alojar em sLr'r para si os píncaros da arte: urn Hebel teve por companheiros nrais
casa unr marechal que irá passar pela sua terra. E consegue-o. O h<is fiéis os seus personagens mais pícaros, Frieder e Heiner, e o seu velho
pede, que a princípio Íica admirado com a insistência do funcionárr". amigo Dieter, o Ruivo. E, no entanto, tarnbém para Hebel o papel
acabará porjulgar ver nele alguém que em temPosjá terá conhecitlt'. principal no theatrum mundí cebe ao justo. Mas como ninguém está à
Mas quem? Nào consegue recordar-se. O mais estranho, porénr, i altura de tal papel, ele passa de uns pâre outros. (Jmas vezes é o va-
que o seu anfitrião, por seu lado, não quer dar-se a conhecer. Peltr gabundo, outras o judeu agiota, outras o idiota que se apresentâ pâra
contrário, vai adiando e garantindo dia após dia àquela âlta persorrili desempenhar esse papel. E trata-se sempre de uma trupe convidada,
dade que soará a hora em que "a voz da nâtureza" nào deixará de lht' de uma improvisação moral de circunstância. Hebel age de fornrr
falar claramente. E isso continua, âté que o hóspede, pouco antes (1(' casuística. Nunca se solidariza com um único princípio, mas tambénr
seguir viagem, resolve autorizar o seu anfitrião (que publicamerrtc rr não rejeita nenhum, pois cada um deles pode um dia tornar-se o
tinha solicitado) a fazer ouvir "a voz dr naturcza". Ao que a mulho instrumento do justo. Conrpare-se âliora con) a posição de Leskov:
do funcionário sai de casa, para "regressar colll unra grande trottl "Tenho plena consciência", escreve ele no conto'â propósito cla
pa de cobre, rnuito polida, e entregá-lâ ao marido. Este pegott It" Sonata a Kreutzer", "de que o fundarlento dos meus pensanlerltos
instrumento, levou-o aos lábios, e foi conro se se transfortltasse ncss(. está nruito mais numa visão prática da vida do que nunra filosofi;t
momento. Mal tinha enchido as bochechas de ar e soltado ttlrr sotrt abstrata ou numa nroral superior; nras não deixo por isso cle pcrrsur
potente conlo trovão, e eis queo nlarechal exclanra: 'Alto!Já sci, Irrcrr cortto penso". Quanto ao resto, rs catástrofes nrorais que ltcr.lrrtccen) r)o
irnrão, assim já te reconheço! És o nrírsico do regintcttto rlc crtç.ttltr rrrtrrrclr dc Lcskov cstio pant os irtciclt'rttcs tttontis clo rlc I Iclrt l cortto
rcs que eu tttrt dia, rec<tnhecelrd() ll ttlll ltorlcstitllttlc, ettcltrrcgttt'i tlt' lt irrrporrcrrtc c silcnciosl t()rrctttc (l() Voltl p:rlr o pt'tltrt'rro li.rr'lro

l(). r)( oNt^t)(Ír t)l rJ',ti)t lrl t t t (Í,,r)llrt lú NlxrÍ r t',hov lr,l
^, ^,Írt^ ^
I
que desce tagarelando pela encosta até o moinho. Entre as narrativ.rs assim desde a origem do mundo, rnas ela escondeu-se durar)tc nrLut()
históricas de Leskov há várias nas quais as paixões atuam de formr tio tempo e ficou escondida na terra, e só perrnitiu que ir eltcolltrasscnl
destrutiva como a ira de Aquiles ou o ódio de Hagen. É espantoso no dia em que o czar Alexandre chegou à maioridade, quando uru
como o mundo se pode tornar sombrio para este autor, e coÍno () grande mago veio à Sibéria para encontrá-la, a essa pedra...'.'Mus
mal ergue majestosamente o seu cetro nele. Leskov - e este é um c'los que disparates está dizendo por aí?', disse eu, interrompendo-o. 'Esta
poucos traços que o poderão aproximar de Dostoiévski - conhecerr pedra, não foi nenhum mago que a encontrou, foi um sábio charrr:r-
senr dúvida estados de espírito nos quais se aproxilt.rou de uma étic.r do Nordenskjôld!''Urn mago, é o que lhe digol Unr mago!', gritorr
ântinônica. As naturezas elementares das suas "Histórias dos velhos Wenzel ern voz rluito alta. 'Veja só que pedra é esta! Dentro deh
tempos" levam eté o finr, sem contemplações, es suas paixões extrc está unrà manhà verdc c um entardecer de sanguc... É um destino.
mas. Esse fim, os místicos gostavam de vê-lo como aquele ponto enr o destino do nobre czar Alexandre!' E com essas palavras o velho
que a depravaçào se transforr»a em santidade. Wenzel voltou-se para a parede, apoiou a cabeça nos cotovelos e...
começou a soluçar."
xIx Dificilmente nos poderemos aproximar melhor do significado
Quanto mais Leskov desce na escala criatural, tanto mais o sctr dessa história do que com as palavras que Paul Valéry escreveu, nunr
ponto de vista se aproxima do dos místicos. I)c resto, como se velri. contexto muito distante do dela, ao dizcr: 'â observação do artista
há indícios abundantes de que nisso se esconde uma marca intrínsecl pode alcançar uma profundidade quase nrística. Os objetos sobre os
do próprio contador de histórias. E certo que só alguns se aventurararl quais recai o seu olhar perdem o nonre: sonrbras e luz constituem
nessas profundezas da natureza inanimada, e na mais recente literatur.r sistemas muito particulares, colocanr perguntas muito próprias que
narrativa não haverá muitos exemplos nos quais a voz do narrador nada devem às ciências, nem derivanr de nenhuma prática, mas que
anônimo, anterior â toda a escrita, ecoe tão fortemente como na nilr- apenas recebem a sua existência e o seu valor de determinados acordes
rativa de Leskov'â alexandrite". Trata de uma pedra semiprecios.r, que âcontecem entre a alma, o olhar e a mão de alguém que nasceu
o piropo. O estrato mais baixo da criatura é o mineral. Mas parr o para apreendê-los e fazê-los nascer dentro de si".1('lti
narrador ele está imediatanente abaixo do estrato superior. O nar Com essas palavras, alma, olhos e mão sào trazidós a unl mesmo
rador consegue ver nessa pedra semipreciosa, o piropo. uma profecii, contexto. A sua interação dá lugar a uma prática. Uma prática que
natural da natureza petrificada e inerte sôbre o nrundo histórico crrr já não nos é familiar. O papel da mão na produçào tornou-se ntàis
que ele próprio vive. Esse mundo é o mundo de Alexandre II. () modesto, e o lugar que ela ocupou na narração está deserto §econ-
narrador, ou melhor, o homem em quem ele delega o seu prírprio siderarmos o seu lado mais sensível, a narração de nro4o nenhun.r é
saber, é um gravador de pedras, de nome Wenzel, que, na sua artt'. apenas obra da vozi na autêntica situaçào de narrar inrervénr de forrrr.r
chegou à perfeição máxima. Podemos colocá-lo ao lado dos ourivr'' âtivâ â mão, que, com os seus gestos aprendidos no trabalho, acentua
das minas de prata de Tula e dizer que - no espírito de Leskov -,, e rnultiplica aquilo que se ouve). Aquela antiga convergência de alma,
artesão perl'eito tern acesso aos recessos mais íntimos do reino cri.r olhos e mão que surge nas palavras de Valéry é própria do trabalho
tural. É a encarnação do homem devoto. Desse gravador se diz rr.r artesanal, e encontranto-la no lugar próprio da arte de narrar.
-Podetnos
história: "Pegou de repente na nrinha mão, onde estava o ancl c,»rr .r ainda ir nrais longe e perguntar se a relação que o contador de histórirrs
pedra alexandrite, que, conlo se sabe, ganha retlexos vernrellros r'orrr tcnl c orrr a sua materla, â vidl hurrr.rn.r. não é ela própriir unra relaçio
a iluminação artificial, e soltou unr grito:'... ()lhenr só, cí cstí clrr, ,r
peclrl proféticr russa! Oh, âstutâ siberianr! Serrrprc firi vcrtlc .or:rrr ,r r''" f'arrl V:rl('ry, Autour fu ()trot (1932), iu: ()r'rrlnr, vol. II, ccl. -lcurr llyticr. l',rrrs
cspcrrrrç1, e sir ao c ltir clo tlil o srtngttc lhc crt hi:r lts vcilts. Iili sr'tttplr' l()60. |. l-lllJ- Illt). (N.'1.)

lÍ,4 o ( r)Nr^Íx)t l,t ri,l()kr^, ri|l l l rar,,,,0lrrí r)tni^ lrt Nlhrl L t,íi,v
^ ^t
a,
ârtesanal. E se a sua tareía não é a de trâbalhar a matéria-prima das
experiências - as alheias e as próprias - de fornta sólida, útil e úni.',r.
Trata-se de uma elaboração cuja ideia de íundo talvez nos seja tunis
bem comunicada pelos provérbios, se os virlnos como ideogramas
de uma narração. Os provérbios, poderíamos dizer, são ruínas qu.'
ficaram no lugar de antigas nerrativas, e nas quais, como a hera quc
se agarra a um muro, uma moral se enreda em volta de um gesto.
Visto âssim, o contador de histórias pertence à estirpe dos mestrcs
e dos sábios. Tem um conselho a dar - não como provérbio, apen.rs
para alguns cesos, mas como o sábio, para muitos. Porque pode re
correr a tode uma vida - uma vida, aliás, que não conta apenas con)
a experiência própria, mas lhe acrescenta muito da alheia. O corr
tador de histórias assimila ao seu próprio saber também aquilo clrrc
aprendeu com o que ouviu de outros. A sua vocação é a sua vida, .r
sua dignidade a de poder contat toda a sua vida. O contador de his
tórias é o homern que poderia deixar arder completamente o pavii)
da sua vida na chama suave da sua nârrâtiva. É nisso que reside a atrr.,
incomparável que envolve o contador de histórias - que tanto pod(' Comentário
ser Leskov como Hauff, Poe ou Stevenson. O contador de históri.tr
é aquela 6gura em que o justo se encontra consigo próprio.

I í,1,

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