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Gesammehe Súiften Unt€Í Mrtwirkung von TheodoÍ W Adorno und Ge6hom Scholem
hq von RolÍ T edemànn und HerÍnann schweppenháuser Volumes ll, lll, lV e Vl.
l. L nguisticô 2. Lrteratura - HrstóÍia e crítica _ Teoria etc 107. Fragmentos sobre crítica literária
3. Linguagem e línguas Filosofia l.lannini, Gilson ll.Título.lV Séíe 107. Programa da crítica Literária
18-20128 cDD-418 1 15. Perfit da nova geração
I
que pode, â razão dar conta de uma obra de arte. Estamos rnuito lor rur
do reconhecimento de que a suaexistência no tempo e o processo (l,r
O contador de histórias:
sua compreensão são apenas duas faces de uma e da mesma realidurlc reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov
Penetrar nessa realidâde é a tarefa dos trabalhos monográficos sobr,
âs obras e as formas.
"Quanto ao presente", lerlos em'Walter Muschg, "pode dizer
',.
que ele está, nos seus trabalhos essenciâis, quase exclusivamente orrL r r
t38 LIr
,/
r)(is, sillnifica, pelo contrário, âunrentâr a distância que nos scp:rr,r de trincheiras, as econômicas pela inflação, as fisicas pela guerra das
dclc. ()bservados a partir de unla certa distância, os traços marcarlc\ ermas Pesadas, âs morâis pelos detentores do poder. Uma geraçâo que
e sirrrples que carâcterizam o contador de histórias revelam-se coru,, ainda tinha ido para â escolâ no carro puxâdo a cavalos üüfFdespro-
os que nele são nais importantes. Melhor dizendo, manifestrrrr s,' teàida, numa paisagem em que nada mais era o mesmo.-a nàÔ seras
nele como uma cabeça hurttana ou o corpo de um animal nurrr r,, iúvens e, debaixo delas, num campo de forças dominado por energias
chcdo, para o observador colocado à distância certa e no ângulo .'1,' destruidoras e exPlosões, o minúsculo e frágil corpo humano'tt'
visão adequado. Essa distância e esse ângulo de visão são-nos ditrtkr.
II
por uma experiência pela qual pâssan)os quase diariamente. E rrrrr.r
experiência que nos diz que â arte de contâr está chegando ao firrr A experiência que anda de boca em boca é a fonte a que forarn
É cada vez mais raro encontrarmos pessoas capazes de contar urr,r beber todos os contadores de histórias. E entre os que :llrgYqram
história como deve ser. É cada vez mais manifesto o entbaraço rrtrrrr histórias, os grandes são aqueles cuja escr"ita menos se afasta do dis-
grupo de pcssoas quando alguém pede para ouvir uma históri.r. í curso dos rnuitos contadores de histórias anônimos. Estes últimos,
p-õÍ süa vez, dividenr-se enr dois giupos que, aliás, se interpenetram
:
como se uma valiosa capacidade que parecia inalienável, a mais segtrr,r
entre as que eram segurâs, nos tivesse sido retirada: a capacidade rlt' de várias maneiras. E a figura do contador de histórias só ganha o
l
trocar experiências. seu perfil completo para quem tiver presentes esses dois grupos- A
A causa desse fenômeno é evidente: a cotação da experiênt r., voz do povo diz que "Quenr faz uma viagenr traz semPre muito que
baixou. E tudo indica que continuará a perdê-la, até desaparecer por contar",rr: e imagina o contador de histórias como alguém que vem
completo. Uln simples olhar para o jornal nos mostra que eh est,i I de muito longe. Mas não se escuta com nenos agrado aquele que,
hoje em baixa ainda mais âcentuada, que a imagem do mundo, rrio ganhando a vida honestamente, ficou na suâ terra e conhece as suas
apenas a do exterior mas tanrbém a do nrundo moral, sofreram clc trrrr histórias e tradições. Se quisermos imaginar esses dois grupos e os
seus representantes mais arcaicos, reconheceremos que um deles é o
dia para o outro trânslormações vistas como impossíveis. A Guerr.r
Mundial deu início a um processo que desde então nunca mais parotr. camponês e o outro o marinheiro que se dedica ao comércio- E na
Não é verdade que no fim da guerra os homens regressavam mudos cio verdade essas duas esferas de experiência produziram, de certo modo,
as suaslinhagens próprias de contadores de histórias, e cada uma delas
campo de batalha? Nâo mais ricos, antes mais pobres de experiênci.rr
partilháveis? Aquilo que, dez anos mais tarde, veio inundar a literatur.r preserva ainda, séculos mais tarde, algumas das suas características'
Assim, entre os narradores alemães mais recentes, Hebel e Gotthelf
sobre a guerra era tudo menos a experiência que passa de boca errr
provêm da primeira linha, enquanto Sealsfield e Gerstãcker se in-
boca. O que não é de estranhar, porque nuncâ as experiências for.rrrr
serem na segunda.rrt' Mas, em ambas as linhagens, trata-se sempre,
desmentidas de fornra mais radical do que as estratégicas pela gucrr.r
140 r) Í oNr^rrnr tÍ tltil(rrrr^ L lrl l l l (rl !,1)lllil olrll^ lÍ N xr)L l',kov l4l
^ ^r
c()n)() se disse, dc tipos fundamentais. A extensão real do nrund,, privilegia o sólido e Iratural. O seu idcal é o do honrenr caPaz de st:
clrs rrrrrativas em toda a sua ar.nplitude histórica é impensável serl orientâr neste mundo, senr se envolver denrasiado cont ele E essa era
rurna íntima interpenetração desses dois tipos arcaicos. Uma tal firsio tembém a suâ âtitude no âmbito secular, o que explica ben) o íâto dc
-ter
é a que podemos constatar em especial na ldade Média, conr o ,icrr começado a escrever relativamente tarde, com vinte e nove anos,
sistema corporativo. O mestre sedentário e os aprendizes viandarrtt.' depois das suâs viagens de negócios. A sua primeira obra publicada
trabalhavam na mesnla oficina; e todos os nrcstres tinham fcit().r\ intitula-se Por que sào os livros tão catos em Kirz? E segue-se unra série de
suas andanças antes de se fixarem na suâ terrâ ou em terra estranlr,r. outros escritos sobre as classes trabalhadoras, o alcoolismo, os Inédicos
Se os camponeses e os rnarinheiros eram ntestres da arte de narmr. .r. da pplícia ou os caixeiros-viajantes setu elnprego, conlo antecessores
corporações artesanais foram a sua alta escola. Nelas se encontravurrr , ' das obras narrâtivas.
saber de lugares distantes, trazido para casa pelos viajantes, e o srbcr
do passado que o sedcntário donrinava. IV
III A orientação para assuntos de natureza prática é um traço ca-
ract€rístico dê muitos contadores de histórias natos. Podemos encon-
Leskov conhece tanto as distâncias do espaço como as do terrrl,,'
trá-la de forma mais evidente do que em Leskov, por exemplo, nunl
Pertenceu à Igreja ortodoxa grcga, e era unr hotrrem de sinceras c,rr
Gonhelf, que dâva aos seus camponeses conselhos sobre agriculturâ;
vicçôes religiosas. Mas ao mesnto tempo foi uln opositor deciditlo rl.r
ou em Nodier,lai que se octlpou dos perigos da ilurrinação a gás; e
burocracia eclesiástica. E como tâmbém não se entendia com o furrcro
nesta série cabe tambénr Hebel, que dava aos seus leitores pequenas
nalismo secular, os cargos públicos que exerceu nunca duraranr rrrrrrt,,
instruçôes sobre ciências da natureza no seu "Cofrezinho dos tesou-
O lugar que mais terá favorecido a sua produçâo literária terá sido ,,
ros".ras Tudo isso remete para a natureza de uma autêntica prática
de representante russo de uma grande firma inglesa. Ao serviço tlcsr,r
de contar histórias. De forma âberta ou escondidâ, essa prática traz
firnra viajou por toda a Rússia, e essrs viagens proporcionarrrrr-llr,
sempre consigo alguma utilidâde. Essa utilidade tanto pode estâr nunl
quer um saber do mundo, quer um conhecinrento da situaçào rl,'
princípio moral como nunra indicação de ordem prática ou num pro-
seu país. Desse modo pôde conhecer bem as seitas da Rússia, o ..1rr,.
vérbio, numa regra de vida - em quâlquer caso, o contâdor de históries
deixou marcas nas suas histórias. Leskov descobre nas lendas rtr..,r' "dar
é um homem que sâbe dar conselhos âos seus ouvintes Mas se
aliados para a su a luta contra a bu rocracia da lgreja ortodoxa. I )cr r,
conselhos" começa hoje â soar antiquâdo, a culpa é de uma situação
, r r
Triri e Austrálil, e unr.r lisra infindávcl dc obras nusci.i:rs dcss:n vi.rgcrrs. (N I I lllll rrurrr .rlrrr.rrrlqrrc c,lit.r.Lr p,rr llebel. (N.1.)
l4? o (ioNl^lnrr l)l llr,l()lll^" lrl l l l rrr í)lrlll (rlll^ l)l Nlxol t l'rr)v l4 J
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l' -/
firr cupnz clc expor a sua situação ern pãlavras). O conselho, entretecido de peregrinação de Wílhelm Meíster), o que acontece é que tais tentâtiv.rs
rir ruâtéria de uma vida vivida. é sabedoria. À arte de contar histórias resultam senrpre em r.r.rodificações da própria forrna do ronance. Já
cstír clregando ao fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, o romance de fornração não se afastâ de rlodo nenhum da estruturir
cstá desaparecendo. Mas esse é um processo que já vem de longc. Fi básica do romance. Integrando o processo de vida social na evoluç.io
nada de mais descabido do que querer ver nele um "sintorna de de- de um indivíduo, justiÍica da lorma n.rais frágil que se possa imagrrrar
cadência" ou, pior ainda, de decadência "nroderna". Pelo contrário, as leis que determinanr tal processo. A legitimação dessas leis não sc
trata-se apenas de um sintoma que surge concomitantemente a forç.r. ajusta bem à sua realidade. O inalcançável acontecerl" precisamentc
produtivas hi.tórtcls c seculares que trrancdranl progrcssi va n lcnt e t,l i. no lonrance de forrnação.
narrativas do espaço do discurso lalado, conferindo simultaneameDtc
uma nova beleza àquilo que vai desaparecendo.
VI
,..--- Temos de imaginar que a transformação das forntas épicas se
V processou a um ritnro comparável ao das transformações da superficie
O prin.reiro indício de urn processo que cuh.ninará coln a dc da Têrra ao longo de milênios. Poucas outras formas da comunicaçào
cadência da arte de narrar é o advento do romance no início da er.r hunrana se constituíram ou se perderam mais lentanrente. O romance,
nroderna. O que distingue o rornance da história tradicional (e da épic.r cujos conreços remonranl a Anriguii:la.lc. rcve dr esperar centenas dc
no sentido mais restrito) é o lato de não poder prescindir do livro. A ãíõ§à-té encontrar na burguesia aScendente os elementos que o levaram à
difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensl. sua época de ouro. A afirmação desses elenentos levou a unt progrcssivo
A tradiçào oral, o patrimônio da épica, tem uma natureza diferente retrôiesso das antigas narrativas para a esfera do arcaico; é certo que estâs
- 1^
dr rnatéria do ronrancc/O que distingue o romance de todas as outrJ\ se serviran.r de formas diversas dos novos conteúdos, mas de fato o seu
formas da prosa-o c..-,hto de fada". ar lendas e mestno a novela -c,' caráter não era deterrrrinado por eles. Por outro lado, é possível reco-
fato de ele não provir da tradição oral nem ser assimilado por ela. M,rs nhecer que, quando a burguesia alcança o seu apogeu - e un.r dos seus
a distinção nraior é enr relação à arte de contar histórias. O contadot instrumentos mais importantes, na lase do capitalisnro avançado, foi a
de histórias vai buscar a sua nâtéria à experiência, a própria ou as cltrc imprensa -, surge unra forma de comunicaçào que, por nrais rcntota que
lhe forarn relatadas. E volta a trânsformar essa matéria em experiência seja a sua origem, nunca antes havia influenciado de rr.rodo determinante
daqueles que o ouvenr contar. O romancista isolou-se. O lugar dc as formas épicas. Mas agora é isso que acontece. E torna-se evidente que
nascimento do romance está no indivíduo e na sua solidão, naquclc ela será, mais do quc o ronlance, estranha à antiga narrativa, e muito
que já não é capaz de falar de forma exemplar das suas necessidatlcs mais ar.neaçadora do que aquele, que, aliás, entrará por isso nun.ra fase
í'
r essenciais, que não pode dar conselhos porque ele próprio não os recebr'.
Escrever um ror.r'rance é representar a vida humana levando ao extrertr,,
crítica. Esta nova fornra de comunicação é a da inforruação.
Villemessant, o fundador do Figaro, condensou nurna célebre
o inconrensurável. No n.reio da plenitude da vida, e representando css,r Íórmula a essência da inforn.ração: "Para os meus leitores" costun'ra-
plenitude, o romance testenrunha a profunda desorientação clos r tr,,. va elc dizer - "é rnais importante um incêndio numa ntansarcla do
O prir.rreiro grande livro desse gênero, o Dom Quixott, nrostra tlcstlt Quarticr Latin do que urna revolução en.r Madrid". Ficanros sabe'nclo,
logo conro a grandeza de altna, a audácia, a generosidade de untl pcss,,,, scnl nrirrgcrn de dúvida, que aquilo que mais interessa lo pÍrblic,.r n.i,.r
nobilíssima - precisamente Dom Quixote se veem senr oriettt.tl ,r, ' í'a rrotícia lluc verrr clc longe, nras a inloruraçào que r)re trlz Lu)rir
nem conselho, e não contêrrr a mínima centelha cle sabecloril. E st .r,,
lonpço dos séculos se procurou, por vezes, introcluzir ensitrarrlcr)t()\ n( r r''A Ír:rsc cit,r tltr:rs lirrlr.rr ikr "(irnr rr:ístico r|r tlr.rl do /iurJl() dc (;octl)c: /)ri
ronlence (o exentplo rnais evidente scrá o rolrtlrrce dc (iocrhc ( )r ,ttr,,' I it:tlnttlirll / I liü úül\ /itiqrris (N I )
t54
(, aoNr^tx)k 0l lil,tólll^,, ílt r || xÔt5:,orfit otk^ r,t NrKol Ll r,l({,v
^ ^r
a.
Ârnold Bennett, em que da morta se diz que "a vida real não lhe tlcrr essa sua amizadejuvenil. E uma pequena história que lhes aconteceu:
praticamente nada"; o mesruo se passa geralmente com a totalidirrl' um dia apresentaram-se, às escondidas e bastante amedrontados, rro
da herança que o romancista recebe. Sobre esse aspecto do problern,r bordel da sua cidade natal, e mais não fizeram do que oferecer à patrourc
devemos a Cieorg Lukács um dos mais elucidativos comentários. um ramo de flores que tinham colhido no jardim. "Três anos urars
quando ele vê no romance "a forma transcendental da ausência tl,.' tarde, ainda falavam dessa história. E agora voltavam a contá-la enl
pátria". Ao nlesmo tempo, ainda segundo Lukács, o romance é a únicu pormenor, e cada um completava as recordações do outro. 'Esse foi
forma que âcolhe o tempo entre os seus princípios constitutivos. N.r talvez', disse Frédéric quando terminaram, 'o mais belo momento das
Teorid do romance diz-se que "o tempo só pode tornar-se constittltr\'() no;sas vidas'. 'Sim, talvez tenhas razão', respondeu Deslauriers, 'esse
quando cessa a ligação a uma pátria transcendental. Só no romatrcc pode ter sido o mais belo momento das nossas vidas"'. Chegados a
se separam o sentido e â vida, portanto, a essência e a temporalida(lc. essa conclusão, chega também ao fim o romance. Um final que se lhe
Quase se poderia dizer que toda a ação interior do romance mais tt.ro ajusta de um modo perfeito, como não poderia acontecer com ne-
é do que uma luta contra as forças do tempo... E dessa luta nascent .t. nhuma narrativa tradicional.jDe fato, não existe narrativa para a qual
autênticas vivências épicas do tempo: a esperança e a recordação. Si, não faça sentido perguntar: Ê como é que a história continuou? Já o
no românce encontramos uma forma de recordação criadora capaz tlc rômance não pode esperar dar o menor passo para além desse limite,
se ajustar ao objeto e de transformá-lo. O dualismo constituído p(), quando convida o leitor a escrever a palavra "Finis" ao pé da página.
interioridade e vida exterior só pode aí ser superado, para o sujcrt, '. interiorizando assim a reflexão sobre o sentido da vida.
se este apreender a unidade de toda a sua vida... a partir do ri() (l,r
vida passada, cujo fluxo é condensado pela recordação... Â visão tltr'
XV
aprecndc cssa unidade tornJ-se pres\entimento c aprccntào tnttt lt t r.r Quem ouve contâr uma história está em companhia do narrador;
de um sentido não alcançado, e por isso inefável, da vida".ro" e âté aquele que a lê partilha dessa comunidade. O leitor do roman-
"O sentido da vida" é, de fato, o centro em torno do qual gravrt.r ce, porém, está só. Muito mais do que qualquer outro leitor (porque
o ror?táIraê. Mas a pergunta sobre esse sentido não é mais do que u cr mesmo quem lê um poeme está predisposto a dar voz às palavras para
pressão da perplexidade com que o leitor desde logo se vê confrortt,r,l,, transmiti-las ao ouvinte). Na sua solidão, o leitor de romances absorve
e introduzido nessa vida escrita. De um lado "o sentido da vida", tl,, a sua matéria de forma mais ciumenta do que qualquer outro. Está
outro "a moral da história": são esses os lemas que opõem o ron.rlnt r' , disposto a apropriar-se totalmente dela, de certo modo a devorá-la.
a narrativa tradicional, e com eles podemos reconstituir o lugar hisr,,r r Pode dizer-se que destrói e engole essa n.ratéria cor.no o fogo íaz com as
co, completanente divergente, dessas duas formas ârtísticas. Se o ttt,rt' achas na lareira. A tensão que atravessa o romance é muito semelhante
antigo rnodelo perfeito do romance ê o Dom Quixote, o mais rcccttt, âo sopro de ar que atiça as chamas na lareira e as anima no seu jogo.
talvez seja A edutação sentímental. Nas últimas palavras deste ron)irr(, É u- -"t".irl r..o, que alimenta o interesse ardente do leitor. E
ficou depositado, con.ro ferrnento no fundo da taça da vida, o scr)trrh, que quer isso dizer? "Um homenr que morre com trinta e cinco anos",
que se revelou à época burguesa e aos seus modos de vida no dealb.rr ,1.' disse Moritz Heimannr6rum dia, "é, em todos os pontos da sua vida,
sua decadência. Frédéric e Deslauriers, amigos dejuventude, relertrht,ttrr
"" 4 frrse rle Moritz Heimann é citada por Hugo von Hofrrannsthal cn Burlt úr
lrundc, Leipzig, 1929, p. 13 (cradução portuguesa deJosé A. Palrn;r (lactrno:
'""Â edição original do livro de Lukács urilizada por Benjanrin é: Di lrtr
'l Li,ro dos Ani,gt's. Lisboa: Assí: io & Alvim, 2(X)2, p. 30). ÀIorit"- I kinun (l,8(t8-
'l' '
Romans. Eir gesthichsphilosoThisthu Versuch über dic Formen der.qrollo r r7it. llt r lr rrr 1925) liri urrr cscritor cjorrr:r)ist:r llern:io dc origerljudlrce clrrc tr ab:rllrorr drr r,rrtt'
1920, p. 127 e 129, 131, 136,138. Existe unra tradução br;rsileir;r tlc Josi M.rr r or rlrr:rrc triutrr rr()\ nuur,r rlrrs r:r.ris irrrport:rrrtcr crlitor,rs dr'cntio. rr S. l:isrhcr
M:rrieni de Mrcedo: A rtoria dLt romanrL'. Sio I)rulo: Editoru 3,1, 2Íxnl (N I ) Vt rl.rg. (N.l'.)
do que essa frase. Simplesnrentc porque ela se engana no tempo vcrb.rl independentemente da função elementar que a narraçào desempenha
Um homem - é esta a verdade que aqui se pretendia defender - ,1r, na economia do humano, são muito diversos os conceitos nos quais se
morreu aos trinta e cinco ânos, apresentar- se-â, para a rem('fitoru\nn, podem subsurnir os frutos colhidos nas nârrativas do mundo. Aquilo
em cada ponto da sua vida como um homem que morre aos tlirt.r r' que em Leskov se pode apreender facilmente a partir de conceitos
cinco anos. Em outras palavras: a frase, que não faz sentido parl n vitl.r religiosos, parece inserir-se nâturalmente, no caso de Hebel, nas
real, torna-se incontestável para a vida renremorada. Nada melhor rl,, perspectivas pedagógicas do lluminismo, surge em Poe sob a forma
que essa lrase pode resumir a essência da personagcm de ronlan( c. ( ) de lradições herméticas e encontra em Kipling um último refúgio
que ela diz é que o "sentido" da sua vida só se pode apreender a pult rr no campo de ação de marinheiros e soldados coloniais britânicos- E
da sua morte. Ora, o leitor de românces procura precisamente f-igrrr.r. a todos os grandes contadores de histórias é comum a agilidade com
humanas das quais seja possível deduzir um "sentido de vida". P«rl i..,,, que sobem e descem os degraus da sua experiência como se de uma
e âconteçâ o que acontecer, tem de possuir de antemão a certcz.r tir' escada se tratâsse. ume escada que chega até o interior da Terra e se
que irá assistir à sua morte. Em último caso, a morte figurada: o tlrr.rl perde nas alturas das nuvens é a imagem de uma experiência coletiva
do romance. Mas melhor é sempre a morte real. E de que nrocfu llrr' para a qual nem o mais profundo choque da experiência individual,
dão esses personagens a conhecer que a mortejá está à espera delcs. r' a morte, pârece constituir impedimento ou barreira.
que essa é unrâ norte perfeitamente determinada, num lugar clctcr "E viveram felizes para sempre", dizem os contos de fadas. O
minado da ação? É esta a questão que alimenta o impaciente intcrt sr conto de fadas, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças,
do leitor pelos âcontecimentos do romance. porque em tempos foi o primeiro da humanidade, continua a viver
Assim, o romance não se torna significativo por nos âprescnt.u. secretânlente nes narrâtivas tradicionais. O primeiro e mais autêntico
eventualmente de forma edificante, o destino de uma outra pesso.r. contâdor de histórias continue a ser o dos contos de fadas. Quando
mas sim porque esse destino estranho, por força da chama quc,' um bom conselho tinha algum valor, o conto de fadas dispunha dele;
consome, nos passa parte do calor que o nosso próprio destino rttrrrt,r e quando a âflição erâ grande, ele lâ estava pâra oferecer ajuda. E essa
nos concederá. O o leitor para o romance é a esperarrçir ,lc aflição era a que o mito Provocâvâ. O conto de fadas dá testemunho
..qy: ]:r,
aquecer â friagem da sua vida com uma morte que a leitura lhc tr.rz dos mais antigos recursos da humanidade para sacudir o pesadelo que o
mito sobre ela fazia cair. Na Íigura do tolo, mostra-nos como a huma-
XVI nidade "se faz de tola" para enfrentar o mito; na Íigura do irn.rão mais
"Leskov", escreve Gorki, "é o escritor mais profundarncrrt,' novo, mostrâ-nos como as suas oportunidades aumentam à medida que
enraizado no povo, livre de todas as influências estranhas". O gnrrrrl,' se afasta das origens míticas; na figura daquele que foi correr mundo
contador de histórias terá sempre raízes no povo, acima de tutlr rr.r. para aprender o medo,rí'r mostra-nos que podemos desmistificar as
camadas de artesãos, Como estas, porém, abarcam, nos diverst>s 1,,.' coisas que nos meten medo; na figura do esperto, mostrâ-nos cÔmo
ríodos da sua evolução econômica e técnica, o elemento crrrrporri'', as perguntas do mito são simplistas, como já eram as da Esfinge; nas
o marítimo e o urbano, existe uma grande diversidade de conccrt.r figuras dos animais que vêm em auxílio das crianças nos contos, que
nos quais se plasma, para nós hoje, todo o legado da sua experiôrcr.r â naturezâ não se sujeita âpenâs ao mito, mas prefere juntar-se ao cír-
para não falar do contributo nada desprezível dos con.rercirntcs p.rr.r culo dos humanos. A coisa ntais sensata que se pode fazer - Íi>i o que
â arte de nârrâr: o seu papel foi menos o de aumentar os contcri(lo\
edificantes do que o de refinar os métodos astutos quc pcrrulcur "
r Alus:irr:ro corrto dos lrr)lios (;rinlnl Vrn titut,ltt drrs:o.q, tlds l;inlnt:ll.hrrutt
prender a atenção dos otrvintes, que deixanrnr prohrrrtlos vcstígi()s u(, (N.',t.)
de fadas). Essa leitura de Orígenes está na base do conto O pere.çritt,' Um exemplo significativo é o da personagenr principal do conto
"Kotin, o Provedor de comida e Platônida". Essa figura, um campo-
encantado. Nessa história, como em tantâs outras de Leskov, estantos
nês de seu norne Pisonski, é unr hermafrodita. Durante doze anos, a
perante um híbrido, entre o conto de fadas e a lenda, que tem algurtn;
mãe criou-o como unra rnoça; mas â sua parte masculina cresce ent
afinidades com aquele outro de que fala Ernst Bloch num context()
en.r que retoma, à sua maneira, a nossa distinção entre nito e cor)t()
simultâneo conr a feninina, e o seu hermafroditismo "converte-se
em símbolo da encarnação humana do divino".
de fadas. "Um híbrido entre o conto e a lenda", escreve Bloch, "ó
Para Leskov, essa figura representa o nível máximo a que:r
o elemento impropriamente mítico da lenda, um elemento mítico
que tem um efeito certamente atraente e estático, sem com isso srtit criatura pode aspirar, sendo ao nlesmo ternpo uma ponte entre estc
da esfera humana. Neste sentido, são'míticas'nas lendas as ligurls
mundo terreno e o outro. De fato, essas figuras potentes e ctônicas,
de recorte taoísta, sobretudo as mais velhas, como o par Filérrrorr
t"'Jt:remias Cotthelf: vd., atrás, a nota 146. (N.T.)
e Baucisl6a: saídas de um conto de fadas, mas repousando coÍlto I),r
l''r'O livro de Errrst Bloch de oncle provênr cicaçôes é Erüsch4[ ditstr Zeit
as lHcrtnç.:
clo nosso tempol. Zuriquc, 1935, p. 127. (N.T.)
16r
Cf. Orígenes, Sobrc os princípios (Peri arkwn), IIt, I, 3. (N.T.) r''7
N. l-eskov, Der utsttrllidrc Colotuat tntl dndtrt Ctthirlrttrr l(iolorvlrr, o irrrolt,rl,
rna
Este par mítico aparece na segunda parte do Fdrrlo de Goethe (V At(), vv. l lo'l \ c orrtror torrrosl, trld. alcnr.i de Alcx.rndcr E)ilsbcrg. MLrrriquc, li)2-1, p ()1 A
e segs.), representando aí estâ ligàção à narureza, frente ao processo dr crvilr z.r1i, r urie tlc quenr ;rqtri sL iirl;r nio i'. dc Íirto.:r rlc Lcskov. nus r du,iLr,r l)crs()r).rqcn)
quc evrnça. (N.T.) r h,rrtr,rtl,r I:igtrr.r. (N. L)
l(). r)( oNt^t)(Ír t)l rJ',ti)t lrl t t t (Í,,r)llrt lú NlxrÍ r t',hov lr,l
^, ^,Írt^ ^
I
que desce tagarelando pela encosta até o moinho. Entre as narrativ.rs assim desde a origem do mundo, rnas ela escondeu-se durar)tc nrLut()
históricas de Leskov há várias nas quais as paixões atuam de formr tio tempo e ficou escondida na terra, e só perrnitiu que ir eltcolltrasscnl
destrutiva como a ira de Aquiles ou o ódio de Hagen. É espantoso no dia em que o czar Alexandre chegou à maioridade, quando uru
como o mundo se pode tornar sombrio para este autor, e coÍno () grande mago veio à Sibéria para encontrá-la, a essa pedra...'.'Mus
mal ergue majestosamente o seu cetro nele. Leskov - e este é um c'los que disparates está dizendo por aí?', disse eu, interrompendo-o. 'Esta
poucos traços que o poderão aproximar de Dostoiévski - conhecerr pedra, não foi nenhum mago que a encontrou, foi um sábio charrr:r-
senr dúvida estados de espírito nos quais se aproxilt.rou de uma étic.r do Nordenskjôld!''Urn mago, é o que lhe digol Unr mago!', gritorr
ântinônica. As naturezas elementares das suas "Histórias dos velhos Wenzel ern voz rluito alta. 'Veja só que pedra é esta! Dentro deh
tempos" levam eté o finr, sem contemplações, es suas paixões extrc está unrà manhà verdc c um entardecer de sanguc... É um destino.
mas. Esse fim, os místicos gostavam de vê-lo como aquele ponto enr o destino do nobre czar Alexandre!' E com essas palavras o velho
que a depravaçào se transforr»a em santidade. Wenzel voltou-se para a parede, apoiou a cabeça nos cotovelos e...
começou a soluçar."
xIx Dificilmente nos poderemos aproximar melhor do significado
Quanto mais Leskov desce na escala criatural, tanto mais o sctr dessa história do que com as palavras que Paul Valéry escreveu, nunr
ponto de vista se aproxima do dos místicos. I)c resto, como se velri. contexto muito distante do dela, ao dizcr: 'â observação do artista
há indícios abundantes de que nisso se esconde uma marca intrínsecl pode alcançar uma profundidade quase nrística. Os objetos sobre os
do próprio contador de histórias. E certo que só alguns se aventurararl quais recai o seu olhar perdem o nonre: sonrbras e luz constituem
nessas profundezas da natureza inanimada, e na mais recente literatur.r sistemas muito particulares, colocanr perguntas muito próprias que
narrativa não haverá muitos exemplos nos quais a voz do narrador nada devem às ciências, nem derivanr de nenhuma prática, mas que
anônimo, anterior â toda a escrita, ecoe tão fortemente como na nilr- apenas recebem a sua existência e o seu valor de determinados acordes
rativa de Leskov'â alexandrite". Trata de uma pedra semiprecios.r, que âcontecem entre a alma, o olhar e a mão de alguém que nasceu
o piropo. O estrato mais baixo da criatura é o mineral. Mas parr o para apreendê-los e fazê-los nascer dentro de si".1('lti
narrador ele está imediatanente abaixo do estrato superior. O nar Com essas palavras, alma, olhos e mão sào trazidós a unl mesmo
rador consegue ver nessa pedra semipreciosa, o piropo. uma profecii, contexto. A sua interação dá lugar a uma prática. Uma prática que
natural da natureza petrificada e inerte sôbre o nrundo histórico crrr já não nos é familiar. O papel da mão na produçào tornou-se ntàis
que ele próprio vive. Esse mundo é o mundo de Alexandre II. () modesto, e o lugar que ela ocupou na narração está deserto §econ-
narrador, ou melhor, o homem em quem ele delega o seu prírprio siderarmos o seu lado mais sensível, a narração de nro4o nenhun.r é
saber, é um gravador de pedras, de nome Wenzel, que, na sua artt'. apenas obra da vozi na autêntica situaçào de narrar inrervénr de forrrr.r
chegou à perfeição máxima. Podemos colocá-lo ao lado dos ourivr'' âtivâ â mão, que, com os seus gestos aprendidos no trabalho, acentua
das minas de prata de Tula e dizer que - no espírito de Leskov -,, e rnultiplica aquilo que se ouve). Aquela antiga convergência de alma,
artesão perl'eito tern acesso aos recessos mais íntimos do reino cri.r olhos e mão que surge nas palavras de Valéry é própria do trabalho
tural. É a encarnação do homem devoto. Desse gravador se diz rr.r artesanal, e encontranto-la no lugar próprio da arte de narrar.
-Podetnos
história: "Pegou de repente na nrinha mão, onde estava o ancl c,»rr .r ainda ir nrais longe e perguntar se a relação que o contador de histórirrs
pedra alexandrite, que, conlo se sabe, ganha retlexos vernrellros r'orrr tcnl c orrr a sua materla, â vidl hurrr.rn.r. não é ela própriir unra relaçio
a iluminação artificial, e soltou unr grito:'... ()lhenr só, cí cstí clrr, ,r
peclrl proféticr russa! Oh, âstutâ siberianr! Serrrprc firi vcrtlc .or:rrr ,r r''" f'arrl V:rl('ry, Autour fu ()trot (1932), iu: ()r'rrlnr, vol. II, ccl. -lcurr llyticr. l',rrrs
cspcrrrrç1, e sir ao c ltir clo tlil o srtngttc lhc crt hi:r lts vcilts. Iili sr'tttplr' l()60. |. l-lllJ- Illt). (N.'1.)
lÍ,4 o ( r)Nr^Íx)t l,t ri,l()kr^, ri|l l l rar,,,,0lrrí r)tni^ lrt Nlhrl L t,íi,v
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ârtesanal. E se a sua tareía não é a de trâbalhar a matéria-prima das
experiências - as alheias e as próprias - de fornta sólida, útil e úni.',r.
Trata-se de uma elaboração cuja ideia de íundo talvez nos seja tunis
bem comunicada pelos provérbios, se os virlnos como ideogramas
de uma narração. Os provérbios, poderíamos dizer, são ruínas qu.'
ficaram no lugar de antigas nerrativas, e nas quais, como a hera quc
se agarra a um muro, uma moral se enreda em volta de um gesto.
Visto âssim, o contador de histórias pertence à estirpe dos mestrcs
e dos sábios. Tem um conselho a dar - não como provérbio, apen.rs
para alguns cesos, mas como o sábio, para muitos. Porque pode re
correr a tode uma vida - uma vida, aliás, que não conta apenas con)
a experiência própria, mas lhe acrescenta muito da alheia. O corr
tador de histórias assimila ao seu próprio saber também aquilo clrrc
aprendeu com o que ouviu de outros. A sua vocação é a sua vida, .r
sua dignidade a de poder contat toda a sua vida. O contador de his
tórias é o homern que poderia deixar arder completamente o pavii)
da sua vida na chama suave da sua nârrâtiva. É nisso que reside a atrr.,
incomparável que envolve o contador de histórias - que tanto pod(' Comentário
ser Leskov como Hauff, Poe ou Stevenson. O contador de históri.tr
é aquela 6gura em que o justo se encontra consigo próprio.
I í,1,