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r PIERRE BOURDIEU

,
O PODER SIMBOLICO
Tradução
de
Fernando T omaz

TOMH0:116069

■ru•
SBD-FFLCH-U:3P

Memória e Sociedade
NOTA DE APRESENTAÇÃO

© 1989, Pierre Bourdict1.


Todos os direitos par~ pub!icaçào des1:1 obrn em Portugal
r<::snv:idos por:
A. obra de Pierre Bourdie11 tem-se afirmado, ao longo dos últimos
trinta anos, como uma das mais estimulantes e inovadoras na área das
ciências sociais, inf!11enciando numerosas pesquisas sociológicas, antro-
Ru:1 O. F.stefünb, 46•8 pológicas e históricas em todo o m1mdo. A novidade encontra-se na
1000 LISBOA
escolha dos objectos de análise (sociedades tribais, sistemas de ensino,
Tckfs.: 537677-545886•545839
Telex: 64030 DIFEL P
processos de reprodução, critérios de classificação e lógicas de distinção),
na reorientação do olhar (atento aos fenómenos de percepção social, da
Todos os din:i1os <.kMa nliç,io rcserv,1dos no lk:t~i! ;i, produção simbólica e das relações informais de poder), na f1Jrmulação
de noções operatórias (habitus, reprodução, poder simbólico, capital,
distinção, campo, etc.) e no constante recurso à sociologia do conheci-
mento ( onde a posição do investigador é questionada como forma de
controle do seu trabalho de produção de sentido). Compreender o
ED!TOHA 1\1:!ffRA'.'-J!l ll!<A:-.11. ~ /\.
Ru:1 lk:1i:m1iu1 (:,,11,1:1111. 1·1.'.. t,l,,ri.1
percurso científico de Bourdieu implica atender a pelo menos duas
20241 - l<io lk' Jandro Ili lógicas de leitura: por um lado, uma lógica da evolução da obra, por
Tel:(021)!21 ll.\! 'l'dex:(21).1807--J F:tx:(021)2)1•075•i outro, uma lógica da sua tipologia.
Num primeiro momento, o objecto de análise são os cabilas do
Memória e Sodnhdc Norte de África, ou seja, uma sociedade tribal que vive nas margens
Cu!ecçào coordn1,1d,1 p,H fl':inclsco Bethencourt e Diogo Ramada Cuno da sociedade moderna. cujos fenómenos de aculturação são caracteriza-
dos a partir da organização social e familiar, da percepção do tempr;
Capa: Emffio Tâmm t"i/ar e do espaço e da !'isão do mundo (Esquisse d'une théorie de la
Revisão: Fernando f',,r111.~a!
Índices: Claudino Far,·/m
pratique, prêcédé de trois études d'éthnologie kabyle, Geneve,
Composi\·;io: Maria f:sllwr - Gab. Fotocomposição
Droz, 1972 ). Este campo de observação, inserido nas restantes áreas
impressão e acab:imento: 1'ipogmfia (,'uerra. Visrn da sociedade argelina (Sociologie de l'Algérie, Paris, P.U.F.,
Dqiúsito Legal n" 26 r~9/8') 1958 ), permite supemr as divis&:s tradicmnais do saber entre antropo-
!~BN 972-29-001·1 ~/. logia, J11áofogia e economia, e .rerâ objecto de comparação atraz'és das
análises tonchnidas na própria ref!,1áo de ,irigem, isto é, no Béarn
(Etudes rurales, .5-6, 1962, pjJ. 32-136). A. transjérência dr;
campo de ,mâlise d,ts 111ttrgeriJ' para o centro da soâedade moderna
1mf'lm1 :t refornmlaçãr; de l'l:lhos prohlemaJ da soaolog1a e a escolha de
11or<11 .//,·"' ti!! estndo. Neste caso, en<"ontramo-ni;s no âmago dos meca-
,..
2 O PODER SIMBÓLICO NOT,1 DE ,1PRESENTAÇÃO l

nismos de reprodução, c,71zando-se a problemática da edJJcação com a sociaux de la phorographie, Paris, Minuit, 1965; «Les utilisa-
da origem social dos estudantes. A posição central do sistema de ensino te~rs de la bibliothe'!11e ~niversitaire de Lil!e», in Rapport pédago-
na reprodução de práticas e de representações é relacionada com a g1que et commumcat1on, Paris-Haia, Mo11ton, 1965, pp. 109-
aparente igualdade de oportunidades e questionada em /unção daJ -120'.· L'am?ur de l'art, les musées d'art européens et Ieur
diferenças de capital económico, social e cultural entre os estudantes, as publtc, ParJS, Minuit, 1966). Por outro lado, as análises relativas
quais são decisivas nas escolhas dos níveis superwres de formação (Les a gr11~os específicos de «especialistas da produção simhó!ica» permiti-
héritiers. Les étudiants et la culture, Paris, Minuit, 1964; La ram s1t11ar o acto. de criação individual no âmbito de um campo 011 de
reprod.uction. Eléments pour une théorie de la violence symbo- um mercado parllculares ( «Champ intellectuel et projet créateur», Les
lique, Paris, Minuit, 1970, ambas escritas com J. C. Passeron). temps 1:1º?ernes, 2~6.' 1966, pp. 865-906; «Une interprétation
Convergindo no mesmo interwe pela instituição escolar, a leitura de de la theone de la rehg,on selon Max Weber», Archives européen-
Panofsky permite isolar um caso em que a incukaçâo de habitus n~s. de soci?,logie, XI!, 1, 1971, pp. 3-21). A reflexão sobre o
idênticos poderá ret'estir mmlalúk,des diversaJ ( E. Panofiky, Archi- o/mo de soaologo também pode ser considerada como análise de um
tecture gothique et pensée scolastique, tradução e posfácio de grup~ _Partiwlar de_ especialistas, desde que se salvag11ardem os
P. B011rdie11, P,m.L Mimllt. 1967 ). pr~powo.r, 1e a const1t11ir em ponto de partida - ou de vigilância
De pas.wgem, note-.ie qm tais territórios de investigação se eptstemolog1ca - de uma teoria da prdtica (Le métier de sociolo-
desenvolvem em tempoJ marcados pela descolonização francesa da gue, Paris-Haia, Mo1tton, 1968, com J. C. Chamboredon e j. C.
Argélia e, !füJJJ t,1rde, pela rn,ofta estudantil de Maio de 68. Passeron).
Contudo, remnstit1tir. mesmo q11e de forma simplificada, este contexto A entrada ~os a_nos oitenta., assinalada pelo ingresso no College de
obriga a ter presenll: <1.1 IJJtas entre intelectuais, qJJe caracterizam o France, do entao d1rector de mvestigações da E.H.E.S.S., constitui
campo mlt11ral /rance\ tfr,s anos sessenta. O impacto e o grau de outro dos tempos forter de afirmação de 11ma obra que não pára de
consagração de autorrs romo Sartre ou Levi-Strauss e a discussão crescer (Leçon sur la leçon, Paris, Mimút, 1982j. i\s dreas
difusa em torno das obrt1J de Marx e de Freud ( mais propriamente dos anteriormente definidas. são recobertas por um con;Unto de obr.a,, ao
seus comentaristas) ou, 111mM outra escala, de SaJts.rnre e de 011tros mesmo tempo qt,e .se assiste a uma tentativa cada vez mais nítida para
linguistas são alguns dos d,ulos a ter em conta. Neste quadro, abater as barreiras aparentemente inscritas na realidade social e
fortemente dominado pelos «maftres à penser», a obra de Bourdieu constr11ir Ullla teoria geral dos campos. Assim, a sociologia do gosto_
afirma-se como instrumento de relatn,ização, através de mn duplo revelado nas opiniões emitidas espontaneamente, nas apreciações estéti-
mt'estimento. Por um lado, os inquéritos wbre o conmmo da fotogra- cas OJI ~e forma ger.at no cons11mo de objectos culturais ou classificados
fia, do liz,ro ott da pin11,ra contribuirttm para valorizar as práticas ,·omo htJs - Pemute Jll,Preender os mecanismos de diferenciação ou de
dos gmpos sociais constituídos nOJ acto.r de ttpropriaçdo de t,Jis objectos ,1/nW<1\tio da distânaa pelos grupos sociais dominantes; nesta per-specti-
mlturais (obras colertitm mmo Un arr moyen, essai sur les usages l'd. 1/llc lm1 n11merosfü pontos de contacto com a obra de Norbert Elia.1.

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4 O PODER SIMBÓLICO NOTA DE APRESENTAÇÃO 5


"

a dinâmica da distinção social não se esgota no conflito simbólico pda individual, acrescem duas outras iniciativas de carácter acentuada-
imposição de uma dada represenlafâo da sociedade, mas prolonga-se na 1nente colectivo. A colecção Le sens commun e a revista Actes de la
produção incessante de novos gostos socialmente diferenciadores e no recherche en sciences sociales, ambas dirigidas por Pierre Bourdieu
abandono progressivo das práticas culturais entretanto apropriadas e organizadas editorialmente pela Minuit, constituem as duas princi-
pelas camadas subalternas (La distinction. Critique sociale du pais bases de um trabalho colectivo de invenção de novos objectos de
jugement, Paris, Minuit, 1979). A reelaboração dos materiais estudo e de afinação de certas noções operatórias.
etnológicos - inscrita num aprofundamento experimental da lógica Finalmente, há que ter em conta as formas de apropriação da obra
relacional, afecta à noção de campo - constittti peça essencial da de Bourdieu. Do ponto de vista portttguês, as traduções brasileiras -
denúncia das concepções estratigráficas da realidade social, caso dos reveladoras de uma atenção mantida como comtante vai para quinze
«inimitáveis patamares em profundidade de Gurvitch» (Le sens anos - constituem investimentos potenciadores de leituras partilhadas,
pratique, Paris, Minuit, 1980, p. 224). Por .sua vez, o prolonga- nomeadamente a partir de programas e de referências escolares. À escala
mento das investigações sobre as instituições escolares orientou-se no de Portugal, duas perspectivas podem ser seguidas. Por um lado, as
sentido de dar a conhecer o conjunto de campos e de poderes inerentes à escassas traduções de artigos ou de extractos, apesar de iniciadas em·
ttniversidade - no quadro da qual se assistem aos conflitos de 1971, não provocaram um interesse pela tradução de obras de vulto,
representações q11e dão sentido ao trabalho científico - e às escolas excepção feita para La reproduction, isto num mercado em que a
Strperiores (Homo academicus, Paris, Minuit, 1984; La noblesse presença de outros autores franceses não deixa de se fazer sentir. Por
d'Etat. Grandes écoles et esprit de corps, Paris, Minuit, 1989), outro lado, a atenção concedida à obra de Bourdieu manifesta-se em
Se os referidos conflitos políticos e as lutas científicas, associadas Portugal desde finais dos anos se.rsenta. A este propósito, pode-se discutir
à imposição de sentidos ou de formas de classificaçã,9, ajudam a natureza do comentário ou o sentido da referência - incluindo aqui a
a compreender a trajectória de Bourdieu e da sua obra, interessará citação a benefício de inventário, a leitura simplificadora ou a
também ter present; as estratégias implicadas na ma afinnação. combinação mais 011 menos aberrante - , mas é inegável o papel aqui
,1 compilação em livro de entrevistas de fácil acesso, conferências ou desempenhado pelo grupo reunido em torno da revista Análise social.
pequenos artigos revela a impressionante extensão do seu campo de Assim, é num momento em que os eminamentos de Bourdieu estão
interesses - do desporto à religião ou à publicidade - , , presentes em Portugal, nos mais diversos campos das ciências sociais, que
int'estimento aplicado na wa ampla div11lgação (Questions de a compilação de um conjunto de trabalhos recentes - preparada pelo
sociologie, Paris, Minuit, 1980; Ce que parler veut dire. autor para esta colecção - constitui, antes de mais,.um incentivo à
L'économie des échanges linguistiques, Paris, Fayard, 1982; reflexão sobre as trocas desiguais registadas no interior do campo
· Choses dites, Paris, Minuit, 1987), Numa outra }erspectiva, m:ntífim.
repare-se que, à dinâmica de uma obra -- entendida como um
conjunto de títulos publicados - progressivamente assumida em nome Memória e Sociedade - Os Cl)(!Ydenad?res
CAPÍTULO I
Sobre o poder simbólico

Este texto, nascido de uma tentativa para apresentar o


balanço de um conjunto de pesquisas sobre o simbolismo numa
situação escolar de tipo particular, a da conferência numa
universidade estrangeira (Chicago/Abril de 1973), não deve ser
lido como uma história, mesmo escolar, das tt-orias do simbo-
lismo, nem sobretudo como uma espécie de reconstruçllo
pseudo-hegeliana do caminho que teria conduzido, por supera-
ções sucessivas, à «teoria final».
Se <<a imigração das ideias», como diz Marx, raramente se
faz sem dano, é porque ela separa as pro<luçôes culturais do
sistema de referências teóricas em relação lls quais as ideias se
definiram, consciente ou inconscientemenrc, quer dizer, Jo
campo de produção balizado por nomes próprios ou por rnm.-ei-
tos em -ismo para cuja definição elas contribuem menos do (jllt:
ele as define. Por isso, as situações de «im1grnçiio» 1mpúem
com uma força especial que se torne visivd o horiwnte de
referência o qual, nas situações correntes. pode permanecer cm
estado implícito. Embora seja escusado dizer que rejiafr1<1r este
produto de exportação implka riscos graves de ingenuidade e
de simplificação - e rambCm grandes innmvcn1cntcs, pois
fornece um instrumento de objectivaçilo.
- No entanto, num estado do campo em que se vi: o poder
por toda a parte, como cm outros tempos nfro se queria
reconhecê-lo nas situações em que ek entrava pdos olhos
dentro, não e inútil lembrar que ~- sem nunca fi,zcr dek.
numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de ,,círculo
cujo _centro está em toda a parte e em parte alguma» - __ C
neccssãrio saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde
de i· m,1is completamente ignorado, portanto, reconhecido: o
poder s;irnhúhw e, com efeito, esse poder invisível o qual só
8 SOBRE O PODER SIMBÓLICO CAPÍTULO l 9

pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não que- 2. Os «Jistemas simbólicos» como ntrutt,ras ntrut11radas (passíveis
rem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem*.·: de uma análise estmtura/).

A análise estrurural consrirui o insrrumenro merodológico


1. Os «sistemas simbólicos» (arte, religião, línguaj como estruturas que permite realizar a ambição neo-kanriana de apreender a
estmt11rantes lógica específica de cada uma das «formas simbólicas»: proce-
dendo, segundo o desejo de Schelling, a uma leitura propria-
A rradição neo-kantiana (Humboldt-Cassiter ou, na vanan- mente tautegórica (por oposição a alegórica) que não refere o mito
te americana, Sapir-Whorf para a linguagem) trara os diferen- a algo de diferenre dele mesmo, a análise estrutural tem em
res universos simbólicos, miro, língua, arte, ciência, como visra isolar a estrutura imanente a cada produção siinbólica.
insrrumentos de conhecimenro e de construção do mundo dos Mas, de modo diferenre da tradição neo-kantiana que insiste no
objectos, como «formas simbólicas», reconhecendo, como nota modm operandi, na actividade produtora da consciência, a tradi-
Marx (Teses sobre Feuerbach), o «aspecto activo» do conhecimen- ção estruturalista privilegia o opus operat11m, as estruturas estru-
to. Na mesma linha, mas com uma intenção mais propria- turadas. É o que se vê bem na representação que Saussure, o
mente histórica, Panofsky rrara a perspectiva- cqmo uma forma fundador desta rradição, fornece da língua: sistema estrutura-
histórica, sem todavia ir até à reconstrução sistemárica das suas do, a língua é fundamentalmente tratada como condição de
condições sociais de produção. inreligibilidade da palavra, como intermediário estmrurado
Durkheim inscreve-se explicitamente na tradição Kantiana. que se deve construir para se explicar a relação constante entre
Todavia, porque quer dar uma resposta «positiva» e «empíri- o'·som e o senrido. (Panofsky -- e todo o aspecto da sua obra
ca» ao problema do conhecimenro evitando a alternativa do que tem em mira isolar as esrrururas profundas das obras de
apriorismo e do empirismo, lan_ça os fundamentos de uma arre ~, pela Óposição que estabelece entre a iconologia e a
sociologia das formas simbólicas (Cassirer dirá expressamente que iconografia e que é o equivalenre exacto da oposição entre
ele uriliza o conceito de «forma simbólica» como equivalente a a fonologia e a fonérica, situa-se nesta rtadição).
«forma de classificação») 1 • Com Durkheim, as formas de
classificação deixam de ser formas J.mivetsais (transcendentais)
para se tornarem (como implicitamente em Panofsky) em for-
mas s_ociais, quer dizer, arbitrárias_ (relarivas a um grupo patri- Primeira síntese
cular) e socialmente dererminadas 2 •
Nesra tradição idealisra, a objectividade do sentido do Os «sisremas simbólicos», como instrumentos de conheci-
mundo define-se pela concordância das subjectividades estrutu- mento e de comunicação, só podem exercer um poder esrtutu-
ranres (senso = consenso)**. rante porque são esrrururados. O poder simbólico é um poder
de consrrução da realidade que tende a estabelecer uma ordem
t Ernst Cassirer, The Myth o/ 1he S1ate, New Haven, Yale University gnoseológica: o sentido imediaro do mundo (e, em particular, do
Press, 1946, p. 16. mundo social) supõe aquilo· a que Durkheim chama o conformis-
i Pensamos no sentido etimo!ógiçode katigoreiit, como lembra Heidegger: mo lógico, quer dizer, «uma concepção homogénea do tempo,
«acusar publicamente» e, ainda, na terminologia do parentesco, exemplo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concor-
por excelência, de categorias sociais (termos de tratamento).
• Cf. esquema na p. 16.
d:1ncia entre as inteligências». Durkheim ~ ou, depois dele,
•• «sensus ""' consensus», no texto original (N. T.). Radt !iHi:-Brown, que faz assentar a «solidariedade social» no
lO SOBRE O PODER SIMBÓLICO CAP{TULO I 11

facto de participar num sistema simbólico - tem o mérito de a cultura dominante dissimulando a função de divisão na
designar explicitamente a função social (no sentido do estruturo~ função de comunicação: a cultura que une (intermediário de
-funcionalismo) do simbolismo, autêntica função política que comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de
não se reduz à função de comunicação dos estruturalistas. Os distinção) e que legitima as distinções compelindo toda$ as
símbolos são os instrumentos por excelência da s<Íntegração culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua
social»: enquanto instrumentos de conhecimento e de comuni- di$tância em relação à cultura dominante.
cação (cf. a análise durkheimiana da festa), eles tornam possível
o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a inte- Segunda JÍntese
gração «lógisa» é a condição da integração_ «moral» 3 •
Contra todas as formas do erro « interac~onista»; o qual
consi$te em reduzir as relações de força a relações de comunica-
3. As produções Jimhólicas como instrumentOJ de dominaçào ção, não basta notar que a$ relações de comunicação são, de
modo inseparável, sempre, relações d_e_poder que dependem, na
A tradição marxista privilegia as funções políticas dos «siste- forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumula-
mas simbólicos» em detrimento da sua estrutura lógica e da do pelo$ agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas rela-
sua função gnoseológica (ainda que Engels fale de «expressão ções e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir
sistemática» a respeito do direito); este funcionalismo - que acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estrutura-
nada tem de comum com o esrruturo-funcionalismo à maneira dos e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os
de Durkheim ou de Radcliffe-Brown - explica as produções «sistemas simbólicos» cumprem a sua função política de ins-
simbólicas relacionando-as com os interesses da classe dominan- trumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que
te. As ideologias, por:_ oposição ao mito, produto colectivo e contri~uem para assegurar a dominação de uma classe sobre
colectivamente apropriado, servem interesses particulares que outra (violência simbólica) dando ~çq___da sua própria força
tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim,
conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a segundo a expressão de Weber, para a «domesticação dos
integração real da classe dominante (assegurando uma comuni- dominados».
cação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os ·,-.:. As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas
das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu numa luta propr.iamenre simbólica para imporem a definição
conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem
classes dominadas; para a legirimação da ordem estabelecida o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em
por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para forma transfigurada o campo das posições sociais 4 • Ela!> podem+--:
a legitimação dessas distinções. Este efeito ideológico, produ-lo conduzir esta luta quer directamente, nos conflitos simbólicos
da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta
·' A tradição neo-fe-nomeno!ôgica (Schüt:r., Peter Berger) e cen:as formas travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a
de ernometodo!ogia aceiram os mesmos pressupostos apenas por omitirem a
quesrão das condições sociais de possibilidade da experiência dóxka (Husserl)
do mundo - e, em particular, do mundo social ~ quer dizer, a 4
As tomadas de posição ideolôgica dos dominames são estratégias de
experiência do mundo social como evidente (taken jiir gr-anted, como diz rcprodm;iio que tendem a reforçar dentro da classe e fora da classe a crença na
Schürz). !rµiti1n1<b,k d:1 dominação da classe.
12 SOBRE O PODER SIMBÓLICO CAPÍTULO 1 13

tempo inteiro) e na qual está em jogo o mqnopólio da violência progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele próprio, uma
simbólica legítima (cf, Weber), quer dizer, do poder de impor dimensão do progresso da divisão do trabalho social, portanto,
- e mesmo de inculcar - instrumentos de conhecimento e de da divisão em classes e que conduz, entre outras consequências,
expressão (taxinomias) arbitrários - embora ignorados como a que se desapossem os laicos dos instrumentos de produção
tais -- da realidade social. O campo de produção simbólica é simbólica 5 •
um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais espe-
servirem os seus interesses na lura interna do campo de. cíficas às condições sociais da sua produção e da sua circulação,
produção (e só nesta medida) que os produtores servem os quer dizer, às funções que elas cumprem, em primeiro lugar,
interesses dos grupos exteriores ao campo de produção, para os especialistas em concorrência pelo monopólio da
A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia competência considerada (religiosa, artística, etc.) e, em
dos princípios de hierarquização: as fracções dominantes, cujo segundo lugar e por acréscimo, para os não-especialistas. Ter
poder assenta no capital económico/· têm em vista impor a presente que as i_d_eologil1;;.lsão sempre duplamente determinadas,
legitimidade da sua dominação q'uer por meio da própria - que elas devem as suas características mais específicas não só
produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conser- aos interesses das classes ou das fracções de classe que elas
vadores os quais só verdadeiramente servem os interesses dos exprimem (função de sociodiceia), mas também aos interesses
dominantes por acréscimo, ameaçando sempre desviar em seu específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do
proveito o poder de definição do mundo social que detêm por campo de produção (comummente transfigurado em ideologia
delegaçãoi a fracção dominada (letrados ou «intelectuais» e da «criação» e do iicriador») - é possuir o meio de evitar a
«artistas», ~egundo a época) tende sempre a colocar o capital redução brutal dos produtos ideológicos aos interesses das
específico a que ela deve a sua posição, no topo da hierarquia classes que eles servem (efeito de «curro-circuito» frequente na
dos princípios de hierarquização. crítica «marxista») sem cair na ilusão idealista a qual consiste
em tratar as produções ideológicas como totalidades auto-
-suficientes e autogeradas, passíveis de uma análise pura e
4. Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a Íllla puramente interna (semiologia) 6,
pelo monopólio da produção ideológica legítima - e por meio dessa A função propriamente ideológica do campo de produção
!1tta --, sendo mstrumentos de dominação estmturantes pois que estão ideológica realiza-se de maneira quase automática na base da
estruturadns, reproduzem sob forma imconhecível, por intermédio da homologia de estrutura entre o campo de produção ideológica e
homologia entre o campo de prodnção ideológica e o campo·das classes o campo da luta das classes. A homologia entre os dois campos
soctaJJ, a estrutura do campo das classes sociais. faz com que as lutas por aquilo que está especificamente em

Os «sistemas simbólicos» distinguem-se fundamenralmente 5


A existência de um campo de produção espec.:ializado é condição do
conforme sejam produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados aparecimemo de uma luta enrre a ortodoxia e a heterodoxia as quais têm de
pelo conjunto do grupo ou, pelo contrário, produzidos por um comum o distinguirem-se da dox:a, quer dizer, do indiscurido.
6
corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de É evitar também o etno!ogismo (visível em especial na análise do
produção e de circulação relativamente autónomo: a história da pensamemo arcaico) que consiste em tratar as ideologias como mitos, quer
dizer, como produtos indiferenciados de um trabalho colectivo, passando
transformação do mito em religião (ideologia) não se pode
assim em silêncio tudo o que elas devem âs características do campo de
separar da história da constituição de um corpo de produtores produção (v. g., na tradição grega, as reinterpretações esotéricas das
especializados de discursos e de ritos religiosos, quer dizer, do ira,!i\êws míticas).
,...

14 SOBRE O PODER SIMBÓLICO CAPÍTULO l 15

jogo no campo aurónomo produzam auromaricamente formas reproduz a crença 7 . O que faz o poder das palavras e das
eufemizada.r das luras económicas e políticas entre as classes: palavras de ordem, poder de manrer a ordem ou de a subverrer,
é na correspondência de estrurura a esrrurura que se realiza a é a crença na legirimidade das palavras e daquele que as
função propriamenre ideológica do discurso dominanre, inrer- pronuncia, crença cuja produção não é da comperência das
mediário estruturado e esrrururanre que tende a impor a palavras.
apreensão da ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por O poder simbólico, poder. subordinado, é uma forma
meio da imposição mascarada (logo, ignorada como ral) de rransforin.acia", quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legiti~
sistemas de classificação e de esrruturas mentais objecrivamenre mada, das outras formas de poder: só se pode passar para além
ajusradas às estruturas sociais. O facto de a correspondência não da alternativa dos modelos energéticos que descrevem as rela-
se efecruar senão de sistema a sisrema esconde, ramo aos olhos ções sociais como relações de força e dos modelos cibernéticos
dos próprios produtores como aos olhos dos profanos, que os que fazem delas relações áe comunicação, na condição de se
sisremas de classificação internos reproduzem em forma irreco- descreverem as leis de transformação que regem a transmutação
nhecível as raxinomias directamenre políricas e que a axiomári- das diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em
ca específica de cada campo especializado é a forma transforma- especial, o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa
da (em conformidade com as leis específicas do campo) dos palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira transubstan-
princípios fundamenrais da divisão do trabalho (por exemplo, o ciação das"°~eiações de força fazendo ignoni.r-reconhecet* a
sisrema de classificação universitário que mobiliza em forma violência que elas encerram objectivamente e transformandoMas
irreconhecível as divisões objectivas da esrrutura social e espe~ assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem
cialmente a divisão do trabalho - reórico e prático - converte dispêndio aparente de energia 8 •
propriedades sociais em propriedades de ordem natural). O
efeito propriamenre ideológico consiste precisamente na impo-
sição de sistemas de classificação políricos sob a aparência
legírima de taxinomias filosóficas, religiosas, jurídicas, erc. Os
sistemas simbólicos devem a sua força ao facto de as relações de
força que neles se exprimem só se manifestarem neles em forma
irreconhecível de relações de sentido (deslocação).
O poder simbólico como poder de constituir o.dado pela
enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a acçdü sobre o
mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite 7
Os símbolos do poder (trajo, ceprro. etc.) são apenas capital simbóli,
obter o equivalenre daquilo que é obtido pela força (física ou co ohjectivado e a sua eficácia está sujeita âs mesmas condições.
económica), graças ao efeiro específico de mobilização, sô se 8
A destruição desre poder de imposição simbólico radica.do no desco-
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. nhecimenro supõe a tomada de crmsáincia do ,ubirrârio, quer dizer, a
Isro significa que Q_pç,der simbólico não reside nos «sistemas revelação da verdade objecriva e o aniquilamento da crença: é na medida em
que o discurso heterodoxo desuôi as falsas evidências da on:odoxia, restaura,
simbólicos» em forma de uma «illocutionary force» mas que se
ção ficticia da doxa, e lhe neutraliza o poder de desmobilização, que ele
define numa relação determinada ·- e por meio desta - entre rnn:rra um poder simbólico de mobilização e de subversão, poder de romar
os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, '" tua! o poder potencial das dasses dominadas.
isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se • ,-mfronnaitre,reconnaí"tre» no texro origina! (N. T.).
16 SOBRE O PODER SIMBÓLICO

Instrumentos simbólicos

rnmo çomo
CAPÍTULO II
estruturas estruturas instrumentos Introdução
estruturantes estruturadas de dominação
a uma sociologia reflexiva
Instrumentos de conheci- Meios de comunicação Poder
memo e de construção (língua ou culturas, vs.
do mundo objecrivo dist:urso ou conduta) Divisão do trabalho
(dasses sociais) «E por pouco que eu não assimilo as regras de Descartes ao Seguinte
Divisão do trabalho ideo!ó-- preceito de não sei que cientista quimice: muni-vos daquilo que e indispen-
girn (manual/inrdecrua!) sável e procedei como é preciso proceder, obtereis então aquilo que desejais
Função de dominação obter. Não admitais nada que não seja verdadeiramente evidente (quer
dizer, apenas aquilo que deveis admitir); dividi o assunro segundo as partes
Fr;rmm simbólica1 Obj«M ,imbrili,w !Je&l9gia>
estruturas subjcctivas
requeridas (quer dizer, fazei o que deveis fazer); procedei por ordem (a
estrumi:a.s objecrivas (vs. mitos, !inguas)
(motim operand1) (opm of'",1tum) Karl Marx
ordem segundo a qual deveis proceder); fazei enumerações completas (quer
Kam-Cassiret Hegel -Saussu,e Max Weber dizer, aquelas que .deveis fazer): e exactamente assim que procedem as
pessoas que dizem ser preciso procurar o bem e evitar o mal. Tudo isto esta,
Sapir-Whorf Durkheim-Mauss Uvi-Strauss Corpos de especialisras sem dUvida, certo. ~imp!esmeme, faltam os critérios do bem e do mal.»
culrutalismo Formas mciais de {semiologia) em concorrência pelo
dassific~iio monopólio da produção
Leibniz, Philwophischen Schriften,
cultural legitima
ed. Gerhardt, tomo IV, p. 329.
Significação: objecdvida- Significação: sentido
de como concordânôa obje<:tivo como prodmo
dos sujeitos (consenso) da rnmunicação que e a
(ondiçiio da comunicação
Ensinar um ofícifJ
sociologia das formas simbólicas:
conrribui\·ão do poder simbólico
rar:i a.o.tclem gllQSruógk.t. Senso- Gostaria hoje*, excepcionalmente, de procurar explicitar
=Consenso, isto é, doxa. um pouco as intenções pédagógicas que tento seguir na prática
deste ensino. Na próxima sessão pedirei a cada um dos partici-
P_od;r _ideológfc_o rnmo contribuição espeôfica da
pantes que apresente de modo breve e exponha em termos
v1o!enc,a_ simbólica ( o ~ ) para a violência polfti- sucintos o tema do seu trabalho -· isto, insisto, sem prepara-
ca (dominação) ção especial, de modo muito natural. O que esi,ero, não é um
Dfrisiit dr- lrabalho d,, dwlina;iiQ
discurso em forma, quer dizer, defensivo e fechado em si
mesmo, um discurso que procure antes de mais (e é compreen-
sível) esconjurar o medo da crítica, mas uma apresentação

"' Introdução a um seminário da Ecole des Hautes Etudes en Sciences


Sociuks (Omubro de 1987).
18 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO li 19

simples e modesta do trabalho realizado, das dificuldades «liquidar» os erros - e os receios que muitas vezes os
encontradas, dos problemas, etc. Nada é mais universal e ocasionam - seria podermos rir-nos deles, todos ao mesmo
universalizável do que as dificuldades. Cada um achará uma tempo).
certa consolação no facto de descobrir que grande número das Hei-de apresentar aqui - será, sem dúvida, mais· adiante
dificuldades imputadas em especial à sua falta de habilidade ou - pesquisas em que ando ocupado. Terão ocasião de ver no
à sua incompetência, são universalmente partilhadas; e todos estado que se chama naJcente, quer dizer, em estado confuso,
tirarão melhor proveito dos conselhos aparentemente pormeno- embrionário, trabalhos que, habitualmente, vocês encontram
rizados que eu poderei dar. em forma acabada. O homo academicJJJ gosta do acabado. Como
Gostaria de dizer, de passagem, que, entre as várias atitu- os pintores académicos, ele faz desaparecer dos seus trabalhos os
des que eu desejaria poder inculcar, se acha a de se ser capaz de vestígios da pincelada, os toques e os retoques: foi com certa
apreender a pesquisa como uma actividade racional - e não ansiedade que descobri que pintores como Couture, o mestre
como uma espécie de busca mística, de que se fala com ênfase de Manet, tinham deixado esboços magníficos, muito próximos
para se sentir confiante - mas que tem também o efeito de da pintura impressionista - que se fez contra eles - e tinham
aumentar o temor ou a angústia: esta post._ura realista - o que muitas vezes estragado obras julgando dar-lhes os últimos
não quer dizer cínica - está orientada para a maximização do reroques, exigidos pela moral do trabalho bem feito, bem
rendimento dos investimentos e para o melhor aproveitamento acabado, de que a estética académica era a expressão. Tentarei
possível dos recursos, a começar pelo tempo de que se dispõe. apreseptar estas pesquisas na sua grande confusão: dentro de
Sei que esta maneira de viver o trabalho científico tem qual- certos limites, é claro, pois sei que, socialmente, não tenho
quer coisa de decepcionante e faz correr o risco de perturbar a tanto direito à confusão como vocês e conceder-mo-ão menos
imagem que de si" próprios muitos investigadores desejam do que eu vo-lo concederei - em cerco sentido, com razão
conservar. Mas é talvez a melhor e a única maneira de se evitar (mas, em todo o caso, em referência a um ideal pedagógico
decepções muito mais graves -- como a do investigador que cai implícito - que merece sem dúvida ser discutido - já que
do pedestal, após bastantes anos de automistificação, durante leva, por exemplo, a medir o valor de um curso, o seu
os quais despendeu mais energia a tentar conformar-se com a rendimento pedagógico, pela quantidade e pela clareza das
ideia exagerada que faz da pesquisa, isto é, de si mesmo como notas tomadas).
investigador, do que a exercer muito simplesmente o seu Uma das funções de um seminário como este é a de vos
ofício. dar a oportunidade de verem como se processa realmente o
Uma exposição sobre uma pesquisa é, com efeito, o contrá- trabalho de pesquisa. Não terão um registo integral de todos
rio de um JhüW, de uma exi,bição na qual se procura ser visto e os erros e de tudo o que foi preciso repetir para se chegar ao
mostrar o que se vale. É um discurso em que a gent(f 1e expõe, no registo final. Mas o filme acelerado que vos será apresentado
qual se correm riscos (para estar mais certo de desarmar os deverá tornar possível fazer uma ideia do que se passa na
sistemas de defesa e de neutralizar as estratégias de apresenta- intimidade do «laboratório» ou, mais modestamente, da ofici-
ção, gostaria de poder ·apanhar-vos de surpresa, dando-vos a na - no sentido do artífice ou do pintor do Quattrocento: com
palavra sem .que vocês estejam prevenidos nem preparados - todas as hesitações, todos os embaraços, todas as renúncias,
mas, não tenham receio, eu saberei respeitar as vossas hesita- etc. fnvestigadores com trabalhos mais ou menos avançados
ções). Quanto mais a gente se expõe, mais possibilidades exis.- apresentarão os objectos que tentaram construir e submerer-
tem de tirar proveito da discussão e, estou certo, mais ~nevo- -se-ão a perguntas - e, à maneira de um velho «oficial»
lentes serão as críticas ou os conselhos (a melhor maneira de como se dizia na linguagem das corporações de ofícios, tenta:
CAPÍTULO II 21
20 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA
em Le Métier de soàologue - é preciso construir o objecto; é
rei contribuir com a experiência que retirei dos ensaios e erros preciso pôr em causa os objectos pré-construídos - ainda que
do passado. tenham a faculdade de despertar a atenção e de pôr de
O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em sobreaviso, não prestam grande ajuda. É assim, sem dô.vida,
ser-se capaz de pôr em jogo «coisas teóricas» muito importan- porque não há outra maneira de adquirir os princípios funda-
tes a respeito de objecros ditos «empíricos» muito precisos, mentais de uma prática - e a prática científica não é excepção
frequentemente menores na aparência: e até mesmo um .~o~co - que não seja a de a praticar ao lado de uma espécie de guia
irrisórios. Tem~se demasiada tendência para crer, em cienc1as ou de treinador, que protege e incute confiança, que dá o
sociais, que a importância social ou política do objecto é por si exemplo e que corrige ao enunciar, em situação, os preceitos
mesmo suficiente para dar fundamento à importância do directamente aplicados ao caso particular.
discurso que lhe é consagrado -- é isto sem dúvida que explica Evidentemente, há-de acontecer que, após terem assistido a
que os sociólogos mais inclinados a avaliar a sua importância duas horas de discussão sobre o ensino da música, sobre os
pela importância dos objecros que estudam, como é o caso desportos marciais, sobre o aparecimento de uma crítica de jazz
daqueles que, acrualmente, se interessam pelo Estado ou pel.o ou sobre os teólogos franceses, perguntem a vocês mesmos se
poder, se mostrem muitas vezes os menos atentos aos procedi- não perderam o vosso tempo e se aprenderam realmente alguma
mentos metodológicos. O que conta, na realidade, é a consrru- coisa. Não sairão daqui com belos discursos sobre a acção
ção do objecro, e a eficácia de um método de pensar num;a ~e comunicacional, sobre a teoria dos sistemas ou mesmo sobre a
manifesra rão bem como na sua capacidade de constituir noção de campo ou de habitus. Em vez de fazer, como fazia há
objecros socialmente insignificantes em objectos ciendficos vinte anos, uma bela exposição sobre a noção de estrutura na
ou, o que é o mesmo, na sua capacid~e de rec~nstruir cien- matemática e na física modernas e sobre as condições de
tificamente os grandes objectos socialmente importantes, aplicação em sociologia do modo de pensamento estrutural (era
apreendendo-os de um ângulo imprevisto - como eu proc,uro sem dúvida mais «impressionante» ... ), direi a mesma coisa
fazer, por exemplo, ao partir, para compreender um dos efeitos mas de forma prática, quer dizer, por meio de observações
maiores do monopólio estatal da violência simbólica, de uma perfeitamente triviais, perfeitamente banais, por meio de ques-
análise muito precisa do que é um certificado: de invalidez, de tões elementares - tão elementares que nos esquecemos mui-
aptidão, de doença, etc. Neste sentido, o sociólogo en~ontra-se tas vezes de as pôr - e passando, em cada caso, ao pormenor
hoje numa situação perfeitamente semelhante - mutatts mutan- do seu estudo particular. Só se pode realmente dirigir uma
dú - à de Manet ou de Flaubert que, para exercerem em pleno pesquisa - pois é disso que se trata - com a condição de a
o modo de construção da realidade que estavam a inVentar, o fazer verdadeiramente com aquele que tem a responsabilidade
aplicavam a projectos tradicionalmente excluídos da arte aca~é- directa dela: o que implica que se trabalhe na preparação do
mica exclusivamente consagrada às pessoas e às coisas social- questionário, na leitura dos quadros estatísticos ou na interpre-
men;e designadas como importantes - o que levou a acusá-los tação dos documentos, que se sugiram hipóteses quando for
de «realismo». O sociólogo poderia tornar sua a fórmula de caso disso, etc. - é claro que não se pode, nestas condições,
Flaubert: «pintar bem o medíocre». dirigir verdadeiramente senão um pequeno número de traba-
É preciso saber converter problemas muito abstractos :m lhos, e aGueles que declaram «dirigir» um grande número
operações científicas inteiramente práticas - o que supoe, deles não fazem verdadeiramente o que dizem.
como se verá, uma relação muito especial com o que se chama Visto que o que se trata de ensinar é, essencialmente, um
geralmente «teoria» ou «prática». Neste processo, os preceitos 111odm opeYandi, um modo de produção científico que supõe um
abstractos, tais como aqueles que se encontram, por exemplo,
r
1,
22 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO 11 23

modo de percepção, um conjunto de princípios de visão e de métodos, de técnicas, de conceitos ou de teorias. Mas ela e~tá
divisão, a única maneira de o adquirir é a de o ver operar ainda pouco codificada e pouco formalizada. Não se p~de pois,
praticamente ou de observar o modo como este habituJ científi~ tanto como em outros domínios, confiar nos automatismos de
co - é bem este o seu nome - , sem necessariamente se tornar pensamento ou nos automatismos que suprem o pensamento
explícito em preceitos formais, «reage» perante opções práticas (na evidentia ex terminis, a «evidência cega» dos símbolos, que
- um tipo de amostragem, um questionário, .etc Leibniz opunha à evidência cartesiana) ou ainda nos códigos _de
O ensino de um ofício ou, para dizer como Durkheim, de boa conduta científica - métodos, protocolos de observaçao,
uma «arte», entendido como «prática pura sem teoria», exige etc. - que constituem o direito dos campos científicos mais
uma pedagogia que não é de forma alguma a que convém ao codificados. Deve-se pois contar sobretudo, para se obterem
ensino dos saberes. Como se vê bem nas sociedades sem escrita práticas adequadas, com os esquemas incorporados do habitus.
e sem escola - mas também é verdadeiro quanto ao que se O habituJ científico é uma regra feita homem ou, melhor,
ensina nas sociedades com escola e nas próprias escolas um modm operandi científico que funciona em estado prático
- numerosos modos de ~nsamenro e de acção - e muitas segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua
vezes os mais virais - transmitem-se de prática a prática, por origem: é esta espécie de sentido do jogo científic? q.ue faz com
modos de transmissão totais e práticos, firmados no contacto que se faça o que é preciso fazer no momento proprio, sem ter
directo e duradouro entre aquele que ensina e aquele que havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos
aprende («faz como eu»). Os historiadores e os filósofos das ainda a regra que permite gerar a conduta adequada. O
ciências - e os próprios cientistas, sobretudo - têm frequen- sociólogo que procura transmitir um habituJ científico parece-
temente observado que uma parte importante da profissão de -se mais com um treinador desportivo de alto nível do que com
cientista se obtém por modos de aquisição inteiramente práti- um professor da Sorbonne. Ele fala pouco em term_~s de
cos - a parte da pedagogia do silêncio, dando lugar à princípios e de preceitos gerais -· pode, decerto, enuncia-los,
explicitação não só dos esquemas transmitidos como também como eu fiz em Le Métier de sociologue, mas sabendo que é
dos esquemas empregados na transmissão, é sem dúvida tanto preciso não ficar por aí (nada há pior, em certo sentido,_ que a
maior numa ciência quanto nela são menos explícitos e menos epistemologia, logo que ela se transforma em tema d~ d1.sser:a-
codificados os próprios conteúdos, saberes, modos de pensa- ção ou em JubJtitttto da pesquisa). Ele ~rocede por ~n~icaçoes
mento e de acção. práticas, assemelhando-se nisso ao treinador que 1m1ta um
A sociologia é uma ciência relativamente avançada, muito movimento («no seu lugar, eu faria assim ... ») ou por «correc-
mais do que habitualmente se julga, mesmo entre os sociólo- ções» feitas à prática em curso e concebidas no próprio espírito
gos. Um bom sinal do lugar que um sociólogo ocupa na sua da prática ( «eu não levantaria essa questão, pelo menos dessa
disciplina seria sem dúvida o da ideia - maior ou menor - forma,>).
que ele tem daquilo que precisaria de dominar para estar
realmente à altura do saber adquirido• da sua disciplina, já que
a propensão para uma apreensão modesta das suas capacidades Pensar relaciona/mente
científicas só pode crescer à medida que cresce o conhecimento
do que mais recentemente foi adquirido•• em matéria de Nunca tudo üto é tão verdadeiro como quando se trata da
construção do objecto-, -.em dúvida a operação mais importante
• «acquis» no texro original. (N. T.) e no entanto, a mais completamente ignorada, sobretudo na
•• «acquisitions» no texto original. (N.T.) t~dição dominante, organizada em torno da oposição entre a
,...
24 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. C'\PÍTULO II 25

«teoria ►► e a «metodologia». O paradigma (no sentido de a própria definição da evidence; o investigador não concede 0
realização exemplar) da «teoria» teórica é a obra de Parsons, estatuto de dados, data, senão a uma pequeníssima fracção do
melting pot conceptual obtido pela compilação puramente teóri- dado, não, como seria preciso, àquela que é chamada a exis-
ca (quer dizer, alheia a toda a aplicação) de algumas grandes tência científica pela sua problemática (o que é inteiramente
obras (Durkheim, Pareto, Weber, etc.), reduzidas à sua di- normal), mas àquela que é validada e garantida pela tradição
mensão «teórica» ou, melhor, professoral, ou ainda, mais perto pedapógica em que ele se situa, e só a ela.
de nós, o neofuncionalismo de Jeffrey Alexandre. Nascidas do E significativo que «escolas» ou tradições se possam consti-
ensino, estas compilações eclécticas e classificatórias são boas tuir em torno de uma técnica de recolha de dados. Por
para o ensino ~ mas para isso somente. A par disto, há a exemplo,. actualmente, certos etnometodólogos só se interessam
«metodologia» catálogo de preceitos que não têm que ver nem pela análise de conversação reduzida à análise de um texto
com a epistemologia, como reflexão que tem em vista trazer à separado do seu contexto, ignorando totalmente os dados
luz os esquemas da prática ciendfica apreendida tanto nos seus - que podemos chamar etnográficos - sobre o contexto
erros como nos seus êxitos, nem com a teoria científica. Penso, imediato (o que se chama tradicionalmente a situação), sem
neste caso, em Lazarsfeld. O par Parsons-lazarsfeld (e, entre os falar dos dados que tornariam possível que se situasse a situação
dois, Merton e as suas teorias de médio alcance) constituiu uma na estruturação social. Estes «dados», que são tomados por 0
espécie de holding «científico» socialmente muito poderoso, próprio concreto, são de facto produto de uma formidável
que reinou na sociologia mundial durante trinta anos. A abstracção - o que sucede sempre, pois o dado é sempre
divisão «teoria»/«metodologia» constitui em oposição episte- construído ~ mas trata-se, neste caso, de uma abstracção que
mológica uma oposicão constitutiva da divisão social do traba- não se conhece como tal. Há assim monomaníacos das distri-
lho científico num dado momento (como a oposição entre buições estatísticas, ou da análise de discursos, ou da observa-
professores e investigadores de gabinetes d~ estudos). Penso ção ~articip~mte, ou da entrevista livre (open-ended) ou em pro-
que se deve recusar completamente esta divisão em duas fundidade (m-ckpth), ou da descrição etnográfica, etc. A adesão
instâncias separadas, pois estou convencido de que não se pode rígida a um ou outro destes métodos definirá a filiação numa
reencontrar o concreto combinando duas abstracções. escola, os interaccionistas sendo conhecidos por exemplo pelo
Com efeito, as opções t&nicas mais «empíricas» são insepa- seu culto da «etnografia», os etnometodólogos pela sua exclusi-
ráveis das opções mais «teóricas» de construção do objecto. va paixão pela análise de conversação. E será tido como uma
É em função de uma certa construção do objecto que tal ruptura estrondosa com o monoteísmo metodológico o facto de
método de amostragem, tal técnica de recolha ou de ánálise dos se combinar a análise de discurso com a análise etnográfica!
dados, etc. se impõe. Mais precisamente, é somente em função A mesma análise poderia fazer-se ~m relação às técnicas de
de um corpo de hipóteses derivado de um conjunto de pressu- análise, análise multivariada, análise de regn ssão, path analysis,
posições teóricas que um dado empírico qualquer pode funcio- network analysis, factor analysis. Também aqui o monoteísmo é
nar como prova ou, como dizem os anglo-saxónicos, como rei. Assim é, sem dúvida, porque ele dá à arrogância da
evidence. Ora, procede-se frequentemente como se o que pode ignorância a aparência de um fundamento metodológico: a
ser reivindicado como e1 idence fosse evidente. O que se faz em
1 mais elementar sociologia da sociologia ensina que, frequente-
função de uma rotina cultural, a maior parte das vezes imposta e mente, as condenações metodológicas são uma maneira de
inculcada pela educação (os famosos cursos de «methodology» tornar a necessidade em virtude, de fingir que se ignora (no
das universidades americanas). O íeiticismo da evidente leva à sentido activo) o que, muito simplesmente, se ignora.
recusa dos trabalhos empíricos que não aceitem como evidente Haveria que analisar ainda a retórica da apresentação dos
26 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO li 27
resultados que, quando se transforma em exibição ostentatória de uma assentada, pdr uma espécie de acto teórico inaugural, e
dos data, dos processos e dos procedimentos, serve geralmente o prog_rama de observações ou de análises por meio do qual a
para encobrir erros elementares de construção do objecto, operaça~ se ~tua não é um plano que se desenhe antecipada-
enquanto, pelo contrário, uma exposição rigorosa e económica ~ente, a maneira ~e um engenheiro: é um trabalho de grande
dos resultados pertinentes medida pela bitola deste exibicionismo folego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos
do datum brutum suscita muitas vezes a desconfiança a priori dos por toda uma série de correcções, de emendas, sugeridos por ~
feiticistas do protocolo (no sentido duplo) de uma forma de qu;,e .s'! chama ~ ofício, quer ~izer, esse conjunto de princípios
evidence ... Mas para tentar converter em preceito positivo todas pra~i:os que orientam as opçoes ao mesmo tempo minúsculas e
estas críticas, direi apenas que é preciso desconfiar das recusas deo_s,vas. Denota. pois uma ideia um tanto delirante e pouco
sectárias que se escondem por detrás das profissões de fé realista da pesquisa que se fique surpreendido por podermos
demasiado exclusivas e tentar, em cada caso, mobilizar rodas as passar tanto tempo a discutir pormenores aparentemente ínfi-
técnicas que, dada a definição do objecto, possam parecer mos - ~ até insignificantes - , tais como a questão de saber se
pertinentes e que, dadas as condições práticas de recolha dos o pesqmsador deve declarar a sua qualidade de sociólogo ou
dados, são praticamente utilizáveis. Pode-se, por exemplo, apresentar-se com uma identidade mais aceitável - a de
utilizar a análise das correspondências para fazer uma análise de etnólogo ou de historiador, por exemplo-, ou antes encobri-
discurso (como fiz, por exemplo, em relação aos discursos -la completamente, ou ainda se ê melhor incluir uma dada
publicitários das diferentes empresas de produção de casas pré- pergunta num questinário destinado à exploração estatística ou
-fabricadas) ou combinar a mais clássica análise estatística com reservá-la para a interrogação de informadores, etc.
um conjunto de entrevistas em profundidade ou de observações Es~a ate~ção aos. pormenores de procedimento da pesquisa,
etnográficas (como fiz em La Distinction). Em suma, a pesquisa Cuja d1mensao propnamente social - como achar bons informa-
é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder dores, como .□ os apresentarmos, como descrever-lhes os objecti-
tomar a liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da vos da pesquisa e, de modo mais geral, como « penetrar» 0 meio
inteligência e da invenção, com o rigor, e se ficar privado deste estudac!~, etc. ·- não_é a menos importante, poderá pôr-vos de
ou daquele recurso entre os vários que podem ser oferecidos prevençao contra o fe1ticismo dos conceitos e da «teoria», que
pelo conjunto das tradições intelectuais da disciplina - e das nas':e da propensão para considerar os instrumentos «teóricos»,
disciplinas vizinhas: etnologia, economia, história. Apetecia- hab11J1s, campo, capital, etc., em si mesmos, em-vez de os fazer
-me dizer: «É proibido proibir» ou «Livrai-vos dos cães de func_ionar, de os pôr em acção. A noção de campo é, em cerro
guarda metodológicos». Evidentemente, a liberdade extrema senttd?, uma estenografia conceptual de um modo de construção
que eu prego, e que me parece ser de bom senso, tem como do º.bJecto que v~i cimandar -:-~ ou orientar - todas as opções
contrapartida uma extrema vigilância das condições de utiliza- práttcas da pesqmsa. Ela funciona como um sinal que lembra 0
ção das técnicas, da sua adequação ao problema posto e às qu: ~á que fazer, a saber, verificar que o objecto em questão não
condições do seu emprego. Acontece-me frequentemente desco- esta isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial
brir que os nossos pais-do-rigor-metodológico se revelam bem d~ s1:1as pro~riedades. Por meio dela, torna-se presente 0
laxioristas, e até relaxados, na utilização dos próprios métodos pn~eiro preceito do método, que impõe que se lute por todos os
de que se têm por zeladores ... meios contra a inclinação primária para pensar o mundo social de
O que nós faremos aqui parecer-vos-á talvez irrisório. Mas, maneira realista ou, para dizer como Cassirer, substancialista 1: é
1
antes de mais, a construção do objecto - pelo menos na minha E. Cassire:, S11bsta11ce et fr111ction. Éléme111J pour une thkrie du concept, rrad.
experiência de investigador - não é uma coisa que se produza P_ Caussat, Paris, Minuit, 1977.
28 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO II 29
preciso pensar relaciona/mente. Com efeito, poder-se-ia dizer, soei~! .-.- ou de capital - de modo a que estes tenham a
deformando a expressão de Hegel: o real é relacional. Ora, ê possibilidade. de entrar nas lutas pelo monopólio do poder,
mais fácil pensar em termos de realidades que podem, por entr~ as quais ~s~em uma dímensão capital as que têm por
~sim dizer, ser visras claramente, grupos, indivíduos, que finalidade a defimçao da forma legítima do poder (penso, por
pensar em termos de relações. É mais fácil, por exemplo, e~emplo, nos confrontos entre «artistas» e «burgueses» no
pensar a diferenciação social como forma de grupos definidos seculo XIX).
como populações, através da noção de classe, ou mesmo de Dito isto, uma das dificuldades da análise relacional está
antagonismos entre esses grupos, que pensá-la como forma de na maior parte dos casos, em não ser possível apreender 0 ;
um espaço de relações. Os objectos comuns da pesquisa são espaç~s sociais de outra furma que não seja a de distribuições de
realidades que atraem a atenção do investigador p()r serem prop~iedade~ entre. indivíduos. É assim porque a informação
«realidades que se tornam notadas» por assim dizer, ao porem acessivel esta associada a indivíduos. Por isso, para apreender 0
problemas - por exemplo, «as mães solteiras no gueto negro . su~~mpo do poder económico e as condições económícas e
de Chicago». E, frequentemente, os investigadores tomam sociais da sua re~rodução, é na verdade obrigatório interrogar
como objecto os problemas relativos a populações mais ou os duzentos patroes franceses mais importantes. Mas é preciso,
menos arbitrariamente delimitadas, obtidas por divisões suces~ custe o_ que custar, precaver-se contra o retorno à «realidade»
sivas de uma categoria ela própria pré-construída, «os velhos», das ~ntdades pré-construídas. Para isso, sugiro-vos o recurso a
«os jovens», «os imigranres», etc.: como, por exemplo, «os esse :nsttumento de construção do objecto, simples e cómodo,
jovens do subúrbio oeste de Villeurbanne». (A primeira urgên- que. e ~ q~adro dos caracteres pertinentes de um conjunto de agentes 011
cia, em todos estes casos, seria tomar para objecto o trabalho de msflt111ções: se se trata, por exemplo, de analisar diversos
social de construção do objecto pré-construído: ê aí que está o desportos de combate (luta, judo, aiquido, etc.) ou diversos
verdadeiro ponto de ruptura). estabelecime_ntos de ensino superior ou ainda diversos jornais
Mas não basta empregar os termos empolados da «grande pansienses, inscreve-se cada uma das instituições em uma linha
teoria» para se escapar _ao~odo de pensamento realista. Por e abre-s~ uma coluna sempre que se descobre uma propriedade
exemplo, a respeito do{poderi põem-se questões de localização necessária _para caracterizar uma delas, o que obriga a pôr a
em termos substancialistas e realisras (à maneira dos antropólo- tnterrogaçao sobre a presença ou a ausência dessa propriedade
gos rulturalistas que se interrogavam indefinidamente sobre the em to~as as º.utras - isto, na fase puramente indutiva da
locus o/ culture): alguns pergunrar-se-ão onde está ele, quem o operaçao; depois, fazem-se desaparecer as repetições e reunem~
detém (Who gwerns?), outros se ele vem de cima ou de baixo, -se as colunas que registam características estrutural ou funcio-
etc., do mesmo modo que certos sociolinguistas se preocupam nalmente equivalentes, de maneira a reter tod~ as característi-
em saber em que lugar se dá a mudança linguística, entre os cas.- e essas somente ·- que permitem descriminar de modo
pequenos burgueses ou entre os burgueses, etc. É para romper mais. ou menos rigoros? as diferentes instituições, as quais são,
com este modo de pensamento ~~ e não pelo prazer de colar imr tsso mesmo, pert1n.entes. Este utensílio, muito simples,
um novo rótulo em velhos frascos teóricos - que empregarei o te~ a faculdade de obngar a pensar relacionalmenre tanto as
termo campo de potkr (de preferência a classe dominante, conceito nnidades sociais em questão como as suas propriedades, poden-
realista que dCSigna uma população verdadeiramente real de do Aest.as s~r caracterizadas em termos de presença ou de
detentores dessa realidade tangível que se chama poder), enten- ausenc1a (sim/não).
dendo por tal as rela..Ç_Qes de fo_rças entre as posições sociais que ~ediante um tra~lho de construção desta natureza - que
garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força se nao faz de uma so vez mas por uma Série de aproximações
30 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO ll

constroem-se, pouco a pouco, espaços sociais os quais - das instituições de ensiao superior e que ligam esta mesma rede
embora só se ofereçam em forma de relações objectivas muito ao conjunto das posições no campo do poder às quais dá acesso
abstractas e se não possa tocá-los nem apontá-los a dedo -- são a passagem pelas escolas superiores. Se é verdade que o real é
0 que constitui toda a realidade do mundo social. Vejam, por
relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição
exemplo, o trabalho que acabo de publicar sobre ~ esco!as acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das
superiores e em que contei, numa espécie de crómca m1:1-1to suas relações com o todo.
concisa de uma pesquisa que se estendeu por perto de vmte Daqui resultam os problemas de estratégia que encontra-
anos, como se consegue passar da monografia - que tem ~ seu mos sempre e que se colocarão constantemente nas nossas
favor todos os aspectos da ciência - a um verdadeiro ob1ecto discussões de projectos de pesquisa: será que vale mais estudar
construído, o campo das instituições escolares que assegurai:n a extensivamente o conjunto dos elementos pertinente$ do objec-
reprodução do campo do poder. Proc1:1-rar não cai.r na armadilha to construído, ou antes, estudar intensivamente um fragmento
do objecto pré-construído não é fácil, na medida em que se limitado deste conjunto teórico que está desprovido de justifi-
trata, por definição, de um objecto que me interessa, sem que eu cação científica? A opção socialmente mais aprovada, em nome
conheça claramente o princípio verdadeiro desse «inter~sse». de uma ideia ingenuamente positivista da precisão e da «serie-
Seja, por exemplo, o caso da Escola Normal Sup:nor:. o dade» é a segunda: a de «estudar a fundo um objecto muito
conhecimento incipiente que dela possa ter, e que e nocivo preciso, bem circunscrito», como dizem os directores de teses.
na medida em que é tido por desmistificado e desmistificador, (Seria bastante fácil mostrar como virtudes pequeno-burguesas
dá origem a toda uma sêrie de perguntas extremamente ingé- de «prudência», de «seriedade», de «honestidade», etc., que
nuas, que todo o normaliano achará interessante~ porque poderiam outrossim exercer-se na gestão de uma contabilidade
«surgem de repente no espírito» daquele que se interroga comercial ou num emprego administrativo, se convertem aqui
acerca da sua escola, isto é, acerca dele mesmo: são os norma- em «método científico»).
lianos literários de uma origem social mais elevada que os Na prática, veremos que se porá a questão dos limites do
normalianos científicos? contribui o escalão de entrada para campo, questão com aparência positivista a que se pode da"r
a escolha das disciplinas: matemática ou física, filosofia ou uma resposta teôrica (o limite de um campo é o limite dos seus
letras? etc. De facto, a problemâtica espontânea, em que entra efeitos ou, em outro sentido, um agente ou uma instituição faz
uma enorme parcela de complacência narcisista, é geralmente parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que
muito mais ingénua ainda. Vejam as obras com ambições nele os produz), resposta esta que poderá orientar as estratégias
científicas que, de há uns vinte anos, têm tido por objecto esta de pesquisa que têm em vista estabelecer respostas de facto.
ou aquela escola superior. Ao fim e ao cabo, poder-se-â ~sir_n Isto terá como consequência que quase sempre nos acharemos
escrever um volumoso livro cheio de factos com aparenc1a expostos à alternativa da análise intensiva de uma fracção do
inteiramente científica, mas que falhará no essencial: se, pelo objecto praticamente .apreensível e da análise extensiva do
menos, como creio, a Escola Normal Superior, à qual podem objecto verdadeiro. Mas o proveito cientifico que se retira de se
ligar-me laços afectivos, positivos ou negativos, _produto dos conhecer o espaço em cujo interior se isolou o objecto estudado
meus investimentos anteriores, não passa na realidade de um (por exemplo, uma dada escola) e que se deve tentar apreender,
ponto num espaço de relações objectivas (u~ ponto, de rest~, mesmo grosseiramente, ou ainda, à falta de melhor, com dados
cujo «peso» na estrutura terá de ser determ1~0); e se, mais de segunda mão, consiste em que, sabendo-se como é a
precisamente, a verdade desta inst_ituição r~side na red.e de realidade de que se abstraiu um fragmento e o que dela se faz,
relações de oposição e de concorrência que a ltgam ao conjunto .~e podem pelo menos desenhar as grandes linhas de força do
r
CAPÉTULO li 33
32 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA

espaço cuja pressão se exerce sobre o ponto considerado (um consiste em pensá-lo verdadeiramente como tal. Este modo de
pouco à maneira dos arquitectos do século XIX, que faziam pensamento realiza-se de maneira perfeitamente lógica pelo
admiráveis esboços a carvão do conjunto do edifício no interior recurso ao método comparativo, que permite pensar relacional-
do qual estava situada a parte que eles queriam figurar em mente um caso particular constituído em caso particular do
pormenor). E, sobretudo, não se corre o risco de procurar (e de posiüvel, tomando-se como base de apoio as homologias estru-
«encontrar») no fragmento estudado mecanismos ou princípios turais entre campos diferentes (o campo do poder universitário
que, de facto, lhe são exteriores, nas suas relações com outros e o campo do poder religioso por meio da homologia das
objectos. relações professor/intelectual e bispo/teólogo) ou entre estados
• Construir o objecto supõe também que se tenha, perante os diferentes do mesmo campo (o campo religioso na Idade Média
factos, uma postura activa e sistemática. Para romper com a e hoje).
passividade empirista, que não faz senão ratificar as pré- Se este seminário funcionar como eu desejo, ele apresentar-
-construções do seniw comum, não se trata de propor grandes -se-á como uma realização social prática do método que tento
construções teóricas vazia~, mas sim de abordar um caso promover: vocês ouvirão pessoas que, trabalhando em objectos
empírico com a intenção de construir um modelo - que não extremamente variados, serão sujeitos - e sujeitar-se-ão - a
tem necessidade de se revestir de uma forma matemática ou perguntas orientadas sempre pelos mesmos princípios; deste
formalizada para ser rigoroso - , de ligar os dados pertinentes modo, o modus operandi que desejo ensinar transmitir-se-á, de
de tal modo que eles funcionem como um programa de certa maneira, praticamente, sem que haja necessidade de o
pesquisas que põe questões sistemáticas, apropriadas a receber, explicitar teoricamente, pelo acto repetido a respeito de casos
respostas sistemáticas; em resumo, trat~ de construir um · diferentes. Cada um, ao ouvir os outros, pensará. na sua própria
sistema coerente de relações, que deve ser posto à prova como pesquisa, e a situação de comparação institucionalizada que é
tal. Trata-se de interrogar sistematicamente o caso particular, assim criada (como a moral, o método só funciona se conseguir
constituído em «caso particular do possível», como diz Bache- inscrever-se nos mecanismos de um universo social) obrigá-lo-
lard, para retirar dele as propriedades gerais ou invariantes que -á, a um tempo e sem qualquer contradição, a particularizar o
só se denunciam mediante uma interrogação assim conduzida seu objecto, a percebê-lo como um caso particular (isto contra
(se esta intenção está ausente, frequentemente, dos trabalhos um dos erros mais comuns da ciência social, a universalização
dos historiadores, é sem dúvida porque a definição social da sua do caso particular), e a generalizá-lo, a descobrir, pela aplicação
tarefa, que está inscrita na definição social da sua disciplina, é de interrogações gerais, os caracteres invariantes que ele pode
menos ambiciosa ou pretenciosa, mas também menos exigente, ocultar debaixo das aparências da singularidade (sendo um dos
deste ponto de vista, do que a que se impõe ao sociólogo). efeitos mais directos deste modo de pensamento o de excluir a
O raciocínio analógico, que se apoia na intuição racional semigeneralização, que leva a produzir conceitos concreto-
das homologias (ela própria alicerçada no conhecimento das leis -abstractos, resultantes da introdução clandestina, no discurso
invariantes dos campos), é um espantoso instrumento de científico, de palavras ou factos nativos• não analisados). No
construção do objecto. É ele que permite mergulharmos com- /' tempo em que eu era mais directivo, aconselhava firmemente
pletamente na patticularidade do caso estudado sem que nela os investigadores a estudarem pelo menos dois objectos: por
nos afoguemos, como faz a idiografia empirista, e realizar- exemplo, em relação aos historiadores, além do seu objecto
mos a intenção de generalização, que é a própria ciência, principal, um dado editor do século XVIII, os coleccionadores
não pela aplicação de grandes construções formais e vazias, mas
• "fair~ indigê-nes» no rexto original. (N·. T.).
por essa maneira particular de pensar o caso particular que
34 INTRODUÇ,1O A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO Il 35

durante o Sezundo Império, ou o equ valente contemporâneo e levado assim a sentir-se como peixe na água no seio desse
desse objecro· -·- uma casa editora parisiense, um grupo de mundo social cujas estruturas interiorizou? Como pode ele
coleccionadores - , pois o estudo do presente tem pelo menos evitar que o mundo social faça, de certo modo, através dele,
como resultado obrigar a objectivar e a controlar as pré-noções por meio das operações inconscientes de si mesmas de que ele é
que o historiador projecra sempre sobre o passado, nem que o sujeito aparente, a construção do mundo social do objecro
seja empregando palavras do presente para o designar - como científico? Não construir, CO!T}O faz o hiperempirismo positivis-
a palavra artista, a qual faz esquecer que a noção corresponden- ta, que aceita sem crítica os conceitos que lhe são propostos
te é uma invenção extraordinariamente recente. (achievement, ascription, profé!:sion, role, etc.) é ainda construir,
porque é registar - e confirmar - o já construído. A
sociologia corrente• - que se exime a pôr em causa de modo
Uma dúvida radical radical as suas próprias operações e os seus próprios instrumen-
tos de pensamento, e que veria sem dúvida em tal intençã.o
Todavia construir um objecto científico é, antes de mais e reflexiva um vestígio de mentalidade filosófica, logo, uma
sobretudo, romper com o senso comum*, quer dizer, com sobrevivência pré-científica - é inteiramente atravessada pelo
representações partilhadas por todos, quer se trate dos simples objecro que ela quer conhecer e que não pode realmente
lugares-comuns da existência vulgar, quer se trate das represen- conhecer, pelo facto de não se conhecer a si mesma. Uma
tações oficiais, frequentemente inscritas nas instituições, logo, p~ática científica que se esquece de se pôr a si mesma em causa
ao mesmo tempo na objectividade das organizações sociais e não sabe, propriamente falando, o que faz. Presa no objecro
nos cérebros. ·o pré-consrruído esrá em toda a parte. O que toma para objecto, ela descobre qualquer coisa do objecto,
sociólogo está literalmente cercado por ele, como o esrá qual- mas que não é verdadeiramente objecrivado pois se trata dos
quer pessoa. O sociólogo tem um objecto a conhecer, o mundo próprios princípios do objecto.
social, de que ele próprio é produto e, deste modo, há todas as Seria fácil mostrar que esta ciência meio-douta rerira do
probabilidades de os problemas que põe a si mesmo acerca mundo social os seus problemas, os seus conceitos e os seus
desse mundo, os conceitos - e, em especial, as noções classi- imtr11mentos de conhecimento e regista amiúde como um datum,
ficatórias que emprega para o conhecer, noções comuns como como um dado empírico independente do acro de conhecimen-
os nomes de profissões, noções eruditas como as transmitidas to e da ciência que o realiza, factos, representações ou institui-
pela tradição da disciplina - sejam produto desse mesmo ções os quais são produto de um estado anterior da ciência, em que
objecto. Ora isto contribui para lhes conferir uma evidência - ela, em suma, se regista a si mesma sem se reconhecer ...
a que resulta da coincidência entre as estruturas objecrivas e as Vou deter~me um pouco em cada um destes pontos. A
estruturas subjecrivas - que as põe a coberto de serem postas ciência social está sempre exposta a receber do mundo social
em causa. que ela estuda os problemaJ que levanta a respeito dele: cada
Como pode o sociólogo efectuar na prática a dúvida radical sociedade, em cada momento, elabora um corpo de problemm
a qual é necessária para pôr em suspenso rodos os pressupostos sociaiJ tidos por legítimos, dignos de serem discutidos, públi-
inerentes ao facto de ele ser um ser social, portanto, socializado cos, por vezes oficializados e, de certo modo, garantidos pelo
Estado. São, por exemplo, os problemas postos às grandes
• «sens commun» -" traduzimos, neste passo, como em outros, por comiHt)es oficialmente mandatadas para os estudar, postos
senso comum, que não deve ser entendido como hom senso, tratando-se tão-só
do sentido que é comum a um grupo ou conjunto de agentes. (N. T.) "' "La ~ocio!ogic ordinairc» no texw original. (N. T.).
36 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO li . 37

também, mais ou menos directamente, aos ptóptios sociólogos, divulga na revista Actes de la recherche en sciences soàales incide
pot meio de todas as formas de procura burocrática, concursos sobre a história social dos objectos mais comuns da existência
públicos*, programas de estudos, etc., e de financiamento, corrente: penso, pot exemplo, em todas essas coisas que se
contratos, subvenções, etc. Numerosos objectos reconhecidos tornaram tão comuns, logo, tão evidentes que ninguém lhes
pela ciência oficial, numerosos trabalhos não são outra coisa presta atenção - a estrutura de um tribunal, o espaço de um
senão problemas sociais que entraram de contrabando na socio- museu, o acidente de trabalho, a cabina de voto, o quadro de
logia - pobreza, delinquência, juventude, educação, lazeres, dupla entrada ou, muito simplesmente, o escrito ou o registo.
desporto, etc. -- e que, como testemunharia- uma análise da A história concebida assim não está inspirada pot um interesse
evolução no decurso do tempo das grandes divisões realistas da de antiquário, mas sim preocupada em compreender porque se
sociologia ~- tal como se exprimem nos títulos das grandes compreende e como se compreende.
tevistas ou nas denominações dos grupos de trabalho dos Para se não ser ob jeno dos problemas que se tomam para
congressos mundiais da disciplina - , variam ao sabor das objecto, é preciso fazer a história social da emergência desses
flutuações da consciência social do momento. Aí está uma das problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do
mediações por meio das quais o mundo social consttói a sua trabalho colectivo - frequentemente realizado na concorrência
própria representação, servindo-se para isso da sociologia e do e na luta - o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer
sociólogo. Deixar em estado impensado o seu ptÓptio pensa- reconhecer estes problemas como problemas legítimos, confessá-
mento é, para um sociólogo mais ainda que para qualquer veis, publicáveis, públicos, oficiais: podemos pensar nos pro-
outro pensador, ficar condenado a ser apenas in.strurrwnto daquilo blemas da família, do divórcio, da delinquência, da droga, do
que ele quer pensar. trabalho feminino, etc. Em todos os casos, descobrir-se-á que o
Como romper com esta situação? Como pode o sociólogo problema, aceite como evidente pelo positivismo vulgar (que é
escapar à persuasão clandestina que a cada momento sobre ele a primeira tendência de qualquer investigador), foi socialmente
se exerce, quando lê o jornal, ou quando vê televisão, ou produzido, num trabalho colectivo de construção da realidade
mesmo quando lê os trabalhos dos seus colegas? Estar alerta é social e por meio desse trabalho; e foi preciso que houvesse
já importante, mas não basta. Um dos instrumentos mais reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos,
poderosos da ruptura é a história social dos problemas, dos manifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos,
objectos e dos instrumentos de pensamento, quer dizer, do tomadas de posição, projectos, programas, resoluções, etc. para
trabalho social de construção de instrumentos de construção que aquilo que eta e podetia tet continuado a set um ptoblema
da realidade social (como as noções comuns, papel, cultura, privado, particular, singular, se tornasse num problema social,
velhice, etc., ou os sistemas de classificação) que se realiza num ptoblema público, de que se pode falar publicamente
no próprio seio do mundo social, no seu conjunto, neste ou - pense-se no abotto, ou na homossexualidade - ou mesmo
naquele campo especializado e, especialmente, no campo das num problema oficial, objecto de tomadas de posição oficiais, e
ciências sociais (o que conduziria a atribuir um programa e uma até mesmo de leis ou decretos. Setia preciw analisar aqui o
função muito diferentes dos actuais ao ensino da história social papel patticulat do campo político e, sobretudo, do campo
das ciências sociais - história que, no essencial, está ainda pot but0ctático: por meio sobretudo da lógica muito especial da
fazer). Uma parte importante do trabalho colectivo que se comissão h11rocrática, de cuja análise me ocupo actualmente a
respeito da elaboração de uma nova política de ajuda ao
alojam<:nto em França por volta de 1975, este campo conttibui
* «appels d"<.Jffre» no texto original. (N. T.). de manrira muito intensa para a consagração e para a constitui-
38 JNTRODUÇÂO A UMA SOCIOLOGIA REPLEXIVA CliPiTULO ll 39

ção dos problemas sociais universais. A imposição da problemá- fundamentais de um grupo e, por vezes, com as crenças
tica a que o investigador está sujeito - como qualquer agente fundamentais do corpo de profissionais, com o corpo de cerre-
social - e que assume sempre que toma à sua conta as zas partilhadas que fundamenta a comm11nis doctorum opmio.
questões que andam no ar do seu tempo mas sem as submeter a Praticar a dúvida radical em sociologia é pôr-se um pouco fora
exame - incluindo-as, por exemplo, nos sem; questionários - da lei. É, sem dúvida, o que tinha sentido Descartes o qual,
torna-se mais provável na medida em que os problemas que são com grande espanto dos seus comentadores, nunca estendeu à
taken ffJr granted num universo social são aqueles que têm mais política - é conhecida a prudência com que fala de Maquiavel
probabilidades de receberem [!,rants, materiais ou simbólicos, de - o modo ·de pensamento que tinha iniciado tão corajosamente
serem, como se diz, bem vistos pelos administradores científicos no domínio do conhecimento.
e as administrações - é, por exemplo, o que faz com que as Passo aos conceitos, às palavras, aos métodos que a profissão
sondagens, essa ciência sem cientista*, sejam aprovadas por emprega para falar do mundo social e para o pensar. A
aqueles que dispõem de meios para as encomendar e que se linguagem levanta um problema particularmente dramático
mostram, de resto, tanto rnais críticos para com a sociologia para o sociólogo: ela é, com efeito, um enorme depósito de
quanto mais esta se desliga das suas encomendas ou dos seus pré-construções naturalizadas, portanto, ignoradas como tal,
pedidos. que funcionam como instrumentos inconscientes de construção.
Acrescento ainda, para complicar um pouco mais e para Poderia tomar o exemplo das taxinomias profissionais, quer se
fazer ver como a situação do sociólogo é difícil, quase desespe- trate de nomes de profissões em uso na vida quotidiana, quer se
rada, que o trabalho de produção dos problemas oficiais, quer trate da CSP, do INSEE *, belo exemplo de conceptualizarão
dizer, dotados dessa espécie de universalidade que lhes vem do burocrática, de universal burocrático, como poderia tomar, mais
facto de estarem garantidos pelo Estado, dá quase sempre geralmente, o exemplo de todas as classificações (classes etárias,
lugar, hoje em dia, àquilo a que se chama peritos, entre os quais jovens/velhos; classes sexuais, homens/mulheres, etc. que,
se acham sociólogos, que se servem da auroridade da ciência como se sabe, não escapam ao arbitrário) que os sociólogos
para garantirem ou afiançarem a universalidade, a objectivida- empregam sem nelas pensarem quanto baste, porque são cate-
de, o desinteresse da representação burocrática dos problemas. gorias sociais do entendimento que é comum a toda uma
O mesmo é dizer que o sociólogo digno deste nome, que faz o sociedade ou porque, como aquilo a que chamei categorias do
que é preciso fazer, em meu entender, para ter alguma proba- entendimento professoral (os sistemas de adjectivos - bri-
bilidade de ser verdadeiramente o .sujeito dos problemas, que se lhanteiapagado, etc. - usados para classificar os pontos dos
podem pôr a respeito do mundo social, deve tomar para objecto alunos ou as qualidades dos colegas) são próprias da corporação
a construção que a sociologia, os sociólogos, quer dizer, os seus (o que não impede que se firmem, em última análise, na base
próprios colegas, dão, com toda a boa fé, para a produção dos das homologias de estrutura, nas oposições mais fundamentais
problemas oficiais - e há todas as probabilidades de que isto do espaço social, como raro/banal, único/comum, etc.).
apareça como um sinal inadmissível de arrogância ou como Mas creio que é preciso ir mais além e disrntir não só a
uma traição à solidariedade profissional, aos interesses corpora.- classificação das profissões e os conceitos empregados para
tlvos. designar as classes de ofícios, mas também o próprio conceito
Nas ciências sociai!>, como se sabe, as rupturas epistemoló- de profissão ou, para dizer em inglês, profe.ssion, que cem
gicas são muitas vezes rupturas sociais, rupturas com as crenças
!lo CSP = catégories socioprofessionnelles (categorias socioprofissio-

,i; «science sans savam» no texto original. (N. T.). 11ais). INSf.I' -= lnstinit N,1tion11l de Statistique et d"Erudes Ernnomiques.
r

40 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPiTULO ll 41

servido de base a todo um conjunto de pesquisas e que, para Enquanto vocês tomarem o dado - os famosos data dos
alguns, representa uma espécie de palavra de ordem metodoló- sociólogos positivistas - tal como ele se dá, dar-se-vos-á sem
g1ca. Profession é uma noção perigosa e tanto mais quanto é problemas. Tudo anda por si, naturalmente. As portas abrem-
certo que, como sucede em casos idênticos, as aparências jogam -se e as bocas também. Que grupo recusaria o registo sacraliza-
a seu favor e, em certo sentido, o seu emprego tem sido dor do historiógrafo? O inquérito sobre os bispos ou sobre os
acompanhado de um progresso em relação à papa teórica, à patrões que aceita -· taciramente -- a problemática episcopal
maneira de Parsons. Falar de profession, era tratar de uma ou patronal tem o apoio do secretariado do episcopado do
verdadeira realidade, de conjuntos de pessoas com o mesmo CNPF •, e os bispos e os patrões que se apressam a vir
nome, os lawyers por exemplo, dotados de um estatuto econó- comentar os resultados não deixam de conferir uma espécie de
mico quase equivalente e, sobretudo, organizados em associa- diploma de objectividade ao sociólogo que soube dar uma
ções profissionais dotadas de uma deontologia, de instâncias realidade objectiva - pUblica - à representação subjectiva
colecrivas que definiam regras de entrada, etc. Profession é uma que eles têm do seu próprio ser social. Em suma, enquanto
palavra da linguagem comum que entrou de contrabando na vocês permanecerem na ordem da aparência socialmente consti-
linguagem científica; mas é, sobretudo, uma construção s()(ial, tuída, todas as aparências estarão a vosso favor, convosco, ~
produto de todo um trabalho social de construção de um grupo até mesmo as aparências da científicidade. Pelo contrário,
e de u'.ma representa_ção dos grupos, que se insinuou docemente desde que vocês comecem a trabalhar num verdadeiro objecto
no mundo social. É isso que faz com que o «conceito» caminhe construído, tudo se tornará difícil: o progresso «reórico" gera
tão bem. Bem demais, de certo modo: se vocês o aceitarem um açrésçimo de dificuldades «metodolôgiGis,,. Os «metodólo-
para construírem o vosso objecto, encontrarão listas já feitas, gos» não terão dificuldade em encontrar o pequeno erro nas
centros de documentação que reunem informações a seu respei- operações que é preciso fazer para apreender, assim-assim, o
to e, talvez, por pouco hábeis que sejais, fundos para o estudar. objecto construído. (A metodologia ê como a orrografia, de que
Ele refere-se a realidades em certo sentido demasiado reais se dizia: «é a ciência dos burros". É um arrolamento de erros
pois apreende ao mesmo tempo uma categoria social - social: acerca dos quais se pode dizer que ê preciso ser-se estúpido para
mente edificada passando, por exemplo, para além das diferen- os cometer. Para ser honesto, devo dizer que entre as fallaaes
ças económicas, sociais, étnicas, que fazem da profassion dos arroladas, há algumas que eu não teria talvez encontrado
lawyers um espaço de concorrência - e uma categoria mental. s0zinho. Mas, na maior parte, são faltas triviais, que fazem a
Mas se, tomando conhecimento do espaço das diferenças que o felicidade dos professores. Os sacerdócios, como lembra Nietz-
trabalho de agregação necessário para construir a profassitm teve sche, vivem do pecado ... ). Entre as dificuldades, hâ a quesrão
de superar, eu perguntar se não se trata de um campo, então de que falei hâ pouco, a dos limites do campo que os
tudo se torna difícil. Como obter uma amostra num campo? positivistas mais intrépidos -- quando não se esquecem pura e
Se, num estudo do campo da magistratura, não se considerar o simplesmente de a colocar utilizando sem qualquer modificação
presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou se, num estudo listas jâ feiras - resolvem por meio de uma «definição
sobre o campo intelectual ·em França em 1950, não se conside- operatória" ( «chamo escritor») sem verem que a questão da
rar Jean-Paul Sartre, o campo fica destruído, porque estas definição («fulano não é um verdadeiro escritor") está em jogo
personagens marcam, só por si, uma posição. Há posições de no próprio objecto. Combate-se então para se saber quem faz
um só lugar que comandam toda a estrutura. Numa amostra parte do jogo, quem merece verdadeiramente o nome de
representativa dos escritores concebidos como profession., rw
problem. "CNPF = Conseil National du Panonat Français.
42 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPiTULO li 43

escritor. A própria noção de escritor - e também, apesar de que actualmente se multiplicam. (Penso naqueles que introdu-
todos os esforços de codificação e de homogeneização pela zem a velha crítica filosófica das ciências sociais, mais ou
homologação, a noção de !awyer - esrá em jogo no campo dos menos ajustada aos gostos acruais, no mundo das ciências
escritores - ou dos lawyers -: a luta a respeito da definição sociais americanas, cujas defesas imunitárias foram aniquiladas,
legítima, em que está em jogo - di-lo a palavra «definição» paradoxalmente, por várias gerações de «metodologia,> positi-
- a fronteira, o limire, o direito de entrada, por vezes o numerus vista). Entre essas críticas, é preciso dar um lugar à parte
dausus, é a característica dos campos na sua universalidade. àquelas que vêm da etnometodologia, embora, em certas
A abdicação empirista tem todas as aparências e rodas as formulações, elas se confundam com as conclusões dos mais
aprovações a seu favor porque, eximindo-se à construção, deixa irresponsáveis leitores dos filósofos franceses contemporâneos,
ao mundo social tal como é, à ordem estabelecida, as operações que reduzem os discursos científicos a estratégias reróricas a
essenciais da comtrução cienrífica - escolha do problema, respeito de um mundo reduzido, ele prôptio, ao estado de
elaboração dos conceitos e das categorias de análise •-, preen- texto. A análise da lógica prática e das teorias espontâneas, de
chendo assim, pelo menos por defeiro, a título de rarificação da que ela se arma para dar sentido ao mundo, não tem o seu fim
<loxa, uma função essencialmente conservadora. Entre os obstá- em si mesma -- como aliás, a crítica das pressuposições das
culos ao desenvolvimento de uma sociologia científica, um dos análises da sociologia corrente (a-reflexiva), sobretudo em ma-
piores está nas descoberras verdadeiras implicarem os custos téria de estatísticas; ela é um momento, perfeiramente decisi-
mais elevados e os ganhos mais reduzidos, não só nos mercados vo, da ruptura com as pressuposições do senso comum, vulgar
ordinários da existência social mas rambém no mercado univer- ou douto. Se é preciso objectivar os esquemas do senso prático,
sitário, de que se esperaria uma maior auronomia. Como renrei não é para provar que a sociologia nunca poderá ser mais que
mostrar a respeito dos cusros e dos ganhos científicos e sociais um ponto de vista acerca do mundo, nem mais nem menos
das noções de profissão e de campo, é preciso muitas vezes, para científico que outro qualquer, mas para subtrair a razão cienrí-
se fazer ciência, evitar as aparências da cientificidade, contradi- fica à razão prática, para impedir que esta chegue a contaminar
zer mesmo as normas em vigor e desafiar os critérios correntes aquela, para evitar que se trate como instrumento de conheci-
do rigor científico (poder-se-ia, deste ponto de vista, examinar mento aquilo que deveria ser objecto de conhecimento, quer
os estatutos respectivos da sociologia e da economia). As dizer, tudo o que faz o sentido prático do mundo social, os
aparências são sempre pela aparência. A verdadeira ciência, na pressupostos, os esquemas de percepção e de compreensão.
maior parte das vezes, tem má aparência e, para fazer avançar a Tomar para objecto o senso comum e a experiência inicial do
ciência, é preciso, frequentemente, correr o risco de não se ter mundo social, como adesão não-tética a um mundo que não
todos os sinais exteriores da científicidade (esquece-se que é está constituído em objecto peranre um sujeito, é uma maneira,
fácil simulá-los). Entre outras razões, porque os meio-hábeis se precisamente, de evitar o ser apanhado no objecto, de trans-
prendem com as violações aparenres dos cânones da «merndolo- portar para a ciência tudo o que torna possível a experiência dóxica
gia» elemenrar que, por razões de certeza positivisra, são do mundo social, quer dizer, não só a construção pré-
levados a encarar como "erros» e como efeiros da inépcia ou da ' -construída deste mundo, mas também os esquémas cognitivos
ignorância das opções merodológicas firmadas na recusa das que estão na origem da construção desta imagem. E os etnome-
facilidades da «metodologia». todólogos que se limitam à descrição desta experiência, sem se
Será escusado dizer que a reflexividade obsessiva, que é a interrogarem acerca das condições sociais que a tornam possível
condição de uma prática cienrífica rigorosa, nada tem de - quer dizer, a adequação das estruturas sociais e das estrutu-
comum com o falso radicalismo das discussões acerca da ciência ras mentais, das estruturas objectivas do mundo e das estrutu-
r
44 lNTRODUÇi..O A. UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA C,4PÍTULO 11 45

ras cognitivas por meio das quais ele é apreendido - , não que lhe é imposta, sem ele mesmo saber, pela sua formação e
fazem mais que reconduzir as interrogações mais tradicionais da pela censura do establishment sociológico.
filosofia mais tradicional sobre a realidade da realidade. E para Mas não é fácil escapar à alternativa da ignorância desarma-
medir os limites das aparências de radicalismo que o seu da do autodidacta desprovido de instrumentos de construção e
populismo epistemológico (ligado à reabilitação do pensamento da meia-ciência do meio-cientista, que aceita sem exame cate-
vulgar) por vezes lhes confere, basta por exemplo observar que gorias de percepção ligadas a um estado do mundo douto, dos
eles nunca viram as implicações políticas da experiência dóxica do conceitos semiconstruídos, mais ou m_enos directamente tirados
mundo que - enquanto aceitação fundamental, situada fora do do mundÜ social. Nunca se experimenta tão bem a contradição
alcance da crítica, da ordem estabelecida - é o fundamento como no caso da etnologia na qual, em consequência da
mais seguro de um com;ervadorismo mais radical relativamente diferença das tradições culturais e do étrangement daí resultante
àquele que tem em vista instaurar a ortodoxia política (como se não pode viver, como no caso da sociologia, na ilusão da
doxa recta e de direita*). compreensão imediata. Por exemplo, devo confessar que se,
antes de ir «para o terreno», eu não tivesse lido os antropólo-
gos, não me teria talvez apercebido da diferença radical estabe-
Double bind e connrsdo lecida pelos meus informadores e a própria linguagem que
empregavam entre a prima paralela e a prima cruzada. Neste
O exemplo que acabo de dar, com a noção de pr1Jfissão, é caso, ou não se vê nada, ou então fica-se sujeito às categorias de
apenas um caso particular. De facro, é toda uma tradição douta percepção ou aos modos de pensamento (o juridismo dos
da sociologia que é necessário pôr constantemente em dúvida, e etnólogos) recebidos dos antepassados - que, a maior parte
da qual há que desconfiar incessantemente. Daí, esta espécie de das vezes, os receberam de uma outra tradição douta, como a
double bind a que todo o sociólogo digno deste nome está do direito romano). Isso favorece uma espécie de comervadorismo
constanterÚente exposto: sem os instrumentos de pensamento estrut11ral, que leva a reproduzir a doxa douta.
oriundos da tradição douta, ele não passa de um amador, de Daí, a antinomia da pedagogia da pesquisa; ela deve
um autodidacta, de um sociólogo espontâneo - e nem sempre transmitir ao mesmo tempo instrumentos de rnnstrução da
o mais bem colocado, tão evidentes são, frequentemente, os realidade, problemáticas, conceitos, técnicas, métodos, e uma
limites da sua experiência social - , mas estes instrumentos formidável atitude crítica, uma tendência para pôr em causa
fazem que ele corra um perigo permanente de erro, pois se esses instrumentos - por exemplo, as classificações, as do
arrisca a substituir a doxa ingénua do senso comum pela doxa INSEE ou outras, as quais nem tombaram do ·céu, nem saíram
do senso comum douto, que atribui o nome de ciê~cia a uma completamente armadas da realidade. Escusado será dizer que,
simples transcrição do discurso de senso comum. E aquilo a como qualquer mensagem, esta pedagogia tem probabilidades
que chamo o efeito Diafoirus: observei frequentemerke, sobre- muito desiguais de ser bem sucedida, segundo as atitudes
tudo nos Estados Unidos, que, pata se compreender verdadeira- socialmente constituídas dos destinatários: a situação mais
mente aquilo de que este ou aquele sociólogo fala, ê preciso (e favorável é a das pessoas que reunem uma cultura douta e uma
basta) ter lido o New York Times da semana ou do mês certa revolta contra essa cultura -- ligada, a maior parte das
anteriores, que ele retraduz nessa terrível linguagem-barreira, vezes, a uma experiência estranha ao universo culto, que faz
nem verdadeiramente concreta nem verdadeiramente abstracta, com que se não deixem enganar - ou, muito simplesmente,
uma forma de resistência perante a representação assepsiada
• -«doxa droire et de droite», no texto origina!. (N. T. ). e des-r,•,diiada do mundo social proposta pelo discurso social-
46 /NTRODUÇ10 A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO // 47

mente dominante em sociologia. Penso em Aaron Cicourel, eternamente as batalhas do passado - é essa uma das funções
que tivera, na juventude, convivência bastante com os «de- do culto escolar dos clássicos, inteiramente contrária a uma
linquentes» dos slums de Los Angeles para ser espontanea- verdadeira história crítica da ciência.
mente levado a pôr em dúvida a representação oficial dos Gostaria ainda, mesmo correndo o risco de parecer levar ao
«delinquentes»: foi sem dúvida esta familiaridade com o uni- extremo a dúvida radical, de evocar as formas mais perversas
verso estudado que, associada a um bom conhecimento da que o pensamento preguiçoso pode assumir em sociologia:
esratistica, o incitou a pôr às estatísticas da delinquência penso, por exemplo, no caso, bastante paradoxal, de um
questões que nenhum preceito metodológico reria podido ge- pensamento crítico, como o de Marx, poder funcionar em
rar. estado de impensado, não só nos cérebros dos investigadores
Entre os obstáculos com os quais deve contar uma verdadei- ·- e isto quer se afirmem adeptos de Marx, quer o combatam
ra pedagogia da pesquisa, há, antes de mais, a pedagogia - mas também na realidade por eles registada em forma de
corrente dos professores vulgares, a qual reforça as atitudes pura atestação. Inquirir, sem mais nem menos, acerca das
conformistas inseriras na própria lógica da reprodução escolar e classes sociais, sobre a sua existência ou não-existência, sobre o
também, como já disse, na impossibilidade de «ir às próprias seu número e o seu carácter antagonista ou não-antagonista,
coisas» sem qualquer instrumento de percepção. É minha como se faz com frequência sobretudo com a intenção de se
convicção que o ensino corrente da sociologia e as produções refutar a teoria marxista, é tomar para objecto, sem se saber, as
intelectuais saídas desse ensino e condenadas a voltar a ele, marcas que os efeitos exercidos pela teoria de Marx deixaram na
constituem hoje o principal obstáculo que se levanta ao desen- realidade, sobretudo atravês dos esforços dos partidos e dos
volvimento da ciência social. É assim por muitas razões. sindicatos que se dedicaram a «elevar a consciência de classe».
Lembro apenas uma, que já por vezes evoquei: o ensino O que acabo de dizer sobre o efeito de teoria que a teoria
perpetua e canoniza oposições fictícias entre autores (Weber/ marxista das classes pôde exercer e de que a «consciência de
/Marx, Durkheim/Marx, etc.), entre métodos (quantitativo- classe» empiricamente medida é, em parte, produto, constitui
/qualitativo, macro-sociologia/micro-sociologia, estrutura/his- apenas um caso particular de um fenómeno mais geral: a
tória, etc.) entre conceitos, etc. Se, como todas as falsas existência de uma ciência social e de práticas sociais que a
sínteses de uma teoria sem prática e todas as prevenções invocam por caução - como as sondagens de opinião, os
esterilizantes e inúteis de uma «metodologia» sem conceitos, conselhos de comunicação, a publicidade, etc., mas também a
estas operações de catalogação são muito úteis para afirmarem a pedagogia ou mesmo, cada vez mais. a acção dos homens
existência do professor, colocado assim acima das divisões por políticos ou dos altos funcionários, dos homens de negócios ou
ele descritas, é sobretudo como sistemas de defesa contra os dos jornalistas, etc. - faz com que haja cada vez mais agentes,
progressos verdadeiros da ciência, que ameaçam o falso saber no próprio seio do mundo social, que fazem entrar conheci-
dos professores, que elas funcionam. As primeiras vítimas são, mentos doutos, senão científicos, na sua prática e, sobretudo,
evidentemente, os estudantes: com excepção de atitudes espe- no seu trabalho de produção ou de manipulação dru, representa-
ciais, quer dizer, salvo se forem particularmente indóceis, eles ções do mundo social. De modo que, cada vez com mais
estão condenados a deixarem sempre uma guerra científica ou frequência, a ciência arrisca-se a registar, sem saber, os produ-
epistemológica para trás, como os professores, porque, em vez tos de práticas que invocam a seu favor a ciência.
de os fazerem começar, como deveria ser, pelo ponto a que Enfim, mais subtilmente, a submissão aos hábitos de
chegaram os investigadores mais avançados, fazem-nos percor- pensamento, ainda que sejam os que, em outras circunstâncias,
rer constantemente domínios já conhecidos, em que repetem podem n:ercer um formi<lávcl efeito de rupi:ura, pode conduzir
r 48 INTRODUÇ,{O A UMi\. SOCIOtOGIA REFLEXIVA. CAPÍTULO ll 49
também a formas inesperadas de ingenuidade. E eu não hesita- TratandÓ-se de pensar o mundo social, nunca se corre o
rei em dizer que o marxismo, nos seus usos sociais mais risco de exagerar a dificuldade ou as ameaças. A· força do
comuns, constitui, frequentemente, a forma por excelência, pré-construído está em que, achando-se inscrito ao mesmo
por ser a mais insuspeita, do pré-construído dout0. Suponha- tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as
mos que se pretende estudar «a ideologia jurídica», ou «reli- aparências da evidência, que passa despercebida porque é
giosa», ou «professoral». O termo ideologia pretende marcar a perfeitamente natural. A ruptura é, com efeito, uma conversão
ruptura com as representações que os próprios agentes querem do olhar e pode-se dizer do ensino da pesquisa em sociologia
dar da sua própria prática: ele significa que não se deve tomar à que ele deve em primeiro lugar «dar novos olhos» como dizem
letra as suas declarações, que eles têm interesses, etc.; mas, na por vezes os filósofos iniciáticos. Trata-se de produzi_r, senão
sua violência iconoclasta, ele faz esquecer que a dominação «um homem novo», pelo menos, «um novo olhar», um olhar-
à qual é preciso escapar para o objecrivar só se exerce porque sociológico. E isso não é possível sem uma verdadeira conversão,
é ignorada como tal; o termo ideologia significa também que é uma metamia, uma revolução mental, uma mudança de toda a
preciso reintroduzir no modelo científico o facto de a represen- visão do mundo social.
tação objectiva da prática dever ter sido construída contra a Aquilo a que se chama a «ruptura epistemológica,,, quer
experiência inicial da prática ou, se se prefere, o facto de a dizer, o pôr-em-suspenso as pré-construções vulgares e os
«verdade objectiva» desta experiência ser inacessível à própria princípios geralmente aplicados na realização dessas constru-
experiêp.cia, Marx permite que se arrombem as portas da doxa, ções, implica uma ruptura com modos de pensamento, concei-
da adeSão ingénua à experiência inicial; mas, por detrás da tos, métodos que têm a seu favor todas as aparências do senso
porta, há um alçapão, e o meio-hábil que se fia no senso rnm11m, do bom senso vulgar e do bom senso científico (tudo o
COfr!.uih douto esquece-se de voltar à experiência inicial que que a atitude positivista dominante honra,e reconhece). V-Ocês
a coôstrução douta deve ter posto em suspenso. A «ideologia» compreenderão, sem dúvida, que quando se está conveÓcido,
(a que seria preferível de futuro dar outro nome) não aparece e como eu, de que a primeira tarçfa da ciência social - por-
não se assume como tal, e é deste desconheci~ento * que lhe tanto, do ensino da pesquisa em ciência social - é a de
vem a sua eficácia simbólica. Em resumo, nãÓ basta romper · instaurar em norma fundamental da prática científica a conver-
com o senso comum vulgar, nem com o senso comum douto na são do pensamento, a revolução do olhar, a ruptura com o
sua forma corrente; é preciso romper com os instrumentos de pré--construído e com tudo o que, na ordem social ~ e no
ruptura que anulam a própria experiência contra a qual eles se universo douto --· o sustenta, se seja condenado a ser-se
construíram. E isto para se construirem modelos mais comple- constantemente suspeito de exercer um magistério profético e
tos, que englobem tanto a ingenuidade inicial como a verdade de pedir uma conversão pessoal.
objectiva por ela dissimulada e à qual, por outra forma de Dado que tenho uma consciência muito dara das contradi-
ingenuidade, se prendem os meio-hábeis, aqueles que se ções propriamente sociais do desígnio científico que tentei
julgam astutos. (Não pos~ deixar de dizer aqui que o prazer de descrever, vejo-me frequentemente obrigado a perguntar a
se sentir astutO, desmistificado e desmistificador, de brincar mim próprio, perante um trabalho submetido à minha aprecia-
aos desencantadores desenganados, tem boa parte em muitas ção, se devo procurar impor a visão crítica que me parece a
vocações sociológicas. E o sacrifício que o método rigoroso condição da construção de um verdadeiro objecto científico,
exige é ainda maior, .. ). entregando-me a uma crítica do objecto pré-construído que se
arnsca a aparecer como uma violência, uma espécie de anexa-
" «mêconnaissance» (mais propriamente não-reconhecimento) (N. T.). \<Hl. A t:ificuldade é tanto maior quanto é certo que, <:m
50 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO II 51

ciências sociais, a origem do erro reside quase sempre, pelo favoráveis ou desfavoráveis que estão associadas às suas caract~-
menos segundo a minha experiência, em atitudes socialmente rísticas sociais, escolares ou sexuais, dá uma probabilidade, sem
constituídas, e também em temores sociais, em fantasmas dúvida limitada, de actuar sobre essas atitudes. Como a sabe-
sociais - de forma que é muitas vezes difícil enunciar publica- doria, segundo os Estóicos, a sociologia da sociologia nada
mente um juízo crítico que, por meio das práticas doutas, pode em relação ao primeiro movimento, mas permite que se
atinja de facto as atitudes mais profundas, tão estreitamente controle o segundo ... Os artifícios das pulsões sociais são
ligadas à origem social, ao sexo, e também ao grau de inúmeros, e fazer a sociologia do seu próprio universo pode ser
consagração escolar anterior: penso, por exemplo, na humilda- a maneira mais perversa de satisfazer, por caminhos subtil-
de excessiva (mais provável nas raparigas que nos rapazes, nos mente desviados, essas pulsões reprimidas. Por exemplo, um
investigadores de origem «modesta» ~ como se diz por vezes ex-teôlogo que se fez sociólogo pode, quando começa a estudar'
- e escolarmente menos consagrados, etc.) que é quase tão os teólogos, proceder a uma espécie de regressão e pôr-se a falar
nefasta como a arrogância (a postura equilibrada implica, em como teólogo ou, pior, servir-se da sociologia para acertar as
meu entender, uma combinação, muito improvável, de alguma suas contas de teólogo. O mesmo se passará com um ex-filóso-
ambição, que leve a ver em grande, e de uma grande modêstia, fo, que se arriscará sempre a encontrar na sociologia da filosofia
indispensável para se penetrar no pormenor do objecto). E o uma maneira de prosseguir guerras filosóficas por outras vias.
director de pesquisa, se quisesse cumprir verdadeiramente a sua
função, deveria desempenhar por vezes o papel, efectivamente
perigoso e em 9ualquer caso injustificável, de «director de A objectivação participante
consciência».
De facto, a ajuda mais decisiva, que a experiência permite Aquilo a que chamei a ob;ectJvação partmpante (e que é
que se dê ao investigador principiante, é a que consiste em preciso não confundir com «a observação parttctpante», análise
incitá-lo a ter em consideração, na definição do seu projecto, as de uma - falsa --· participação num grupo estranho) é sem
condições reais da realização, quer dizer, os meios, sobretudo dúvida o exercício mais difícil que existe, porque re9uer a
em tempo e em competências específicas, de que ele dispõe (em ruptura das aderências e das adesões mais ptofundas e mais
especial, a natureza da sua experiência social, a formação que inconscien~es, justamente aquelas que, muitas vezes, consti-
recebeu) e também as possibilidades de acesso a informadores e tuem o «mteresse» do próprio objecto estudado para aquele
a informações, a documentos ou a fontes, etc. Muitas vezes, é que o estuda, tudo aquilo que ele menos pretende conhecer na
só ao cabo de um verdadeiro trabalho de socioanálise que se sua relação com o objecto que ele procura conhecer. Exercício
pode realizar o casamento ideal de um investigador e do seu mais. difícil, mas também o mais necessário porque, como
<,objecto», por meio de tOda uma série de fases de sobreinvesti- tentei fazer em Homo academia1J, o trabalho de objectivação
mento e de desinvestimento. incide neste caso sobre um objecto muito particular, em 9ue se
A sociologia da sociologia, em forma muito concreta de acham inscritas, implicitamente, algumas das mais poderosas
uma sociologia do sociólogo, do seu projecto científico, das determinantes sociais dos próprios princípios da apreensão de
suas ambições ou das suas demissões, das suas audácias e dos qualquer objecto possível: por um lado, os interesses específicos
seus temores, não é uma inutilidade sentimental• ou uma associados à pertença ao campo universitário e à ocupação de
espécie de luxo narcisista: a tomada de consciêncta das atitudes uma posição particular nesse campo; e, por outto lado, as
categorias socialmente constituídas da percepção do mundo
" «supplémem d'âme» no texto original (N. 'f. ). universitário e do mundo social, essas categorias do entendi-
52 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTULO li 53

mento professoral que, como disse há pouco, podem estar A consciência dos limites da objecrivação objectivisra
envolvidas numa estética (através da arte convencional) ou levou-me a descobrir que existe no mundo social, em especial
numa epistemologia (atravês da epistemologia do ressentimento no mundo universitário, toda uma série de instiruições que
que, fazendo da necessidade virtude, valoriza sempre as peque- produzem o efeito de tornar aceitável a distância entre a
nas cautelas do rigor positivista contra rodas as formas de verdade objecriva e a verdade vivida daquilo que se faz e
audácia cienrífica). daquilo que se é - tudo o que os sujeitos objectivados
Sem querer explicitar aqui todos os ensinamentos que uma pretendem lembrar quando opõem à análise objecrivista que
sociologia reflexiva pode retirar desta análise, gostaria de « isso não se passa assim». Encontram-se, por exemplo, nesre
indicar somente um dos pressupostos mais escondidos do campo particular, os sistemas de defesa colecrivos que - em
projecto científico, que tornei claro, compelido pelo próprio universos em que cada um luta pelo monopólio de um mercado
trabalho de inquérito sobre ta! objeno, com a consequência no qual não há como clientes senão concorrentes, e em que a
imediata - prova de que a sociologia da sociologia não é um vidà é por consequência muiro dura - permitem que cada um
luxo - de um melhor conhecimento do prôpno objecto. Num se aceite a si mesmo aceitando os subrerfúgios ou as gratifica-
primeiro tempo, tinha construído um modelo do espaço uni- ções compensatórias oferecidas pelo meio. É esta dupla verda-
versirârio, como espaço de posições ligadas por refaçôes de força de, objectiva e subjectiva, que constitui a verdade completa do
especificas, como campo de forças e c:,mpo de lutas para mundo social.
conservar ou rransformar este campo de forças. Poderia ter Gostaria de evocar, embora hesite um pouco em fazê-lo, a
ficado por aí, mas estava de prevenção pelas observações que título de último exemplo, uma exposição apresentada aqui
em outro tempo, no decurso dos meus trabalhos de ernologia, mesmo a respeito de uma sessão eleiroral na televisão, objecto
tinha podido fazer acerca <lo «epistemocentrismo» associado à que, na sua aparente facilidade - tudo se dá, de imediato, à
postura douta. Além disso, o mal-estar que em mim suscitava, intuição. imediata - reúne todas as dificuldades que um
no momento da publicação, o sentimento de ter cometido uma sociólogo pode encontrar. Como passar para além de uma
espécie de deslealdade, erigindo-me em observador de um jogo descrição inteligente, mas sempre sujeita a «fazer pleonasmo
que eu continuava a jogar, obrigou-me a volrar ao meu com o munao», como dizia Mallarmé? É um grande perigo,
proiecto. Senti pois de maneira particularmente viva o que com efeito, dizer por outras palavras o que os acrores rinham
estava implicado na pretensão de adoprar a posição de observa- dito ou feito, e destacar significações de primeiro grau (há uma
dor imparcial, ao mesmo tempo omnipresente e ausen!e, porque dramatização da expecrariva do resultado, há uma luta entre os
dissimulado por detrás da impersona!idade absoluta dos procedi- participantes a respeito do sentido do resulrado, etc.) das
mentos, e capaz de assumir um pomo de vista quase divino significações que são produto de intenções conscientes e que os
acerca dos colegas que são tambêm concorrentes. Objecrivar a próprios actores poderiam enunciar se tivessem tempo para isso
pretensão à posição realenga que, como hâ pouco disse, leva e se não temessem pôr o seu jogo a descoberto. fates sabem
a fazer da sociologia uma arma nas lutas no interior do campo em bem - pelo menos na prática e, actualmente, com uma
vez de fazer dela um instrumento de conhecimento dessas lutas, frequência cada vez maior, de modo consciente - que, numa
portanto do próprio sujeiw cognoscente o qual, faça o que fizer, situação em que o que está .em jogo é a imposição da represen-
não deixa de estar nelas envolvido, é conferir a si mesmo os tação mais favorável da sua própria posição, a confissão pública
meios de reintroduzir na análise a consciência <los pressupostos e do fracasso, conto acto de reconhecimento, é de facto impossí-
dos preconceitos, associados ao ponto de vista local e localizado vel; que não há, p~priamente falando, evidência universal dos
daquele que constrôi o espaço dos pontos de vista. números e da sua signtficação e que .a estratégia que consiste
INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPÍTUW II 55

em «negar a evidência» (52% é superior a 48%), embora reconhecida de dizer a verdade a respeito do que está em jogo
aparentemente condenada ao insucesso, conserva uma certa no debate, são a expressão das relações de força objecrivas entre
validade (os X ganharam, mas os Y não perderam; os X os agentes envolvidos e, mais precisamente, entre os campos
ganharam, mas de modo menos acentuado do que da última diferentes em que eles estão implicados - e em que ocupam
vez -· ou menos acentuado do que tinham previsto, etc.). posições mais ou menos elevadas. Dito por outras palavras, a
Estará de facto aí o essencial? O problema do corte põe-se interacção é a resultante visível e puramente fenoménica, da
com uma força especial, porque o analista encontra no objecto intersecção dos campos hierarquizados.
concorrentes à interpretação do objecto que, frequentemente, O espaço da interacção funciona como uma situação de
também se apoiam na autoridade da ciência. Também se põe mercado linguístico, que tem características conjunturais cujos
de maneira particularmente aguda porque, de modo diferente princípios podemos destacar. Em primeiro lugar, é um espaço
do que se passa em outras ciências, a simples descrição, menos pré-consttuído: a composição social do grupo está antecipada~
construída - qu!:'r dizer, empenhada em restituir todas as mente determinada. Para compreender o que pode ser dito e
características pertinentes e só essas - não tem o valor sobretudo o que não pode ser dito no palco, é preciso conhecer as
intrínseco de que se reveste· quando se trata da descrição de leis de formação do grupo dos locutores - é preciso saber
uma cerimónia secreta entre os Hopis ou da sagração de um rei quem é excluído e quem se exclui. A censura mais radical é a
na Idade Média: a cena foi vista e compreendida (em certo nível e ausência. É preciso pois considerar as taxas de representação (no
até certo ponto) por vime milhões de espectadores e o registo sentido estatístico e no sentido social) das diferentes categorias
faz dela uma restituição que nenhuma transcrição positivista (sexo, idade, escudos, etc.), logo, as probabilidades de acesso
pode ultrapassar ou mesmo tocar de perto. ao local da palavra ~- e, depois, as probabilidades de acesso à
De facto, só se pode sair da série indefinida das interpreta- palavra, mensurável em tempos de expressão. Outra caracterís-
ções que se refuram umas às outras - o hermeneuta está tica ainda: o jornalista exerce uma forma de dominação (con-
perante uma luta entre hermeneutas que se batem pela última juntural não estrutural} sobre um espaço de jogo que ele cons-
palavra a respeito de um acontecimento ou de um resultado truiu, e no qual ele se acha colocado em situação de árbitro,
- se se construir realmente o espaço das relações objectivas impondo normas de «objectividade» e de «neutralidade».
(estrutura) de que são manifestação as permutas comunicacio- Mas não se pode ficar por aí. O espaço de imeracção é o
nais directamente observadas (interacção). Trata-se de apreen- lugar da actualização da intersecção entre os diferentes campos.
der uma realidade oculta, que só se descobre encobrindo-se, Os agentes na sua luta para imporem o veredicto «imparcial»,
que só se mostra enquanto facto banal das interacções em que quer dizer, para fazerem reconhecer a sua visão como objectiva,
se dissimula a si própria. Que quer isto dizer? Temos diante de dispõem de forças que dependem da sua pertença a campos
nós um conjunto de indivíduos, designados por nomes pró- objectivamente hierarquizados e da sua posição nos campos
prios, o senhor Paul Amar, jornalista, o senhor René Rémond, respectivos. Existe, em primeiro lugar, o campo político: os
hisroriador, o senhor X, politólogo, etc., que trocam, como se homens políticos, directamente implicados no jogo, portanto
diz, palavras aparentemente passíveis de uma «análise de directamente interessados e percebidos como tais, são imediata-
discurso» e de que todas as «interacções,; visíveis fornecem na mente percebidos como juízes e partes, logo, sempre suspeitos
aparência todos os instrumentos da sua própria análise. De de produzirem interpretações interessadas, enviesadas e, por
facto, a cena que se representa no palco, as estratégias que os isso mesmo, desacreditadas. Eles ocupam posições diferentes no
agentes empregam para levarem a melhor na luta simbólica campo político: estão situados neste espaço·~pela sua filiação
pelo monopólio da imposição do veredicto, pela capacidade num partido, mas também pelo seu estatuto nesse partido, pela
'

56 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA CAPiTULO II 57

sua notoriedade, local ou nacional, erc Vem depois o campo estratégias retóncas: estas relações objectivas determinam no
jornalístico: os jornalistas podem e devem adoptar uma retôrica essencial quem pode cortar a palavra, interrogar, responder fora
da objectividade e da neutralidade (apoiando-se evenrualmente do que foi perguntado, devolver as questões, falar longamente
nos «politólogos»). Segue-se o campo da «ciência polírica», no sem ser interrompido ou passar por cima das interrupções, etc.,
interior do qual os «politólogos mediáticos» ocupam um lugar quem está condenado a estratégias de denegação (inreresses,
pouco glorioso, mesmo que gozem de prestígio no exterior estratégias interessadas, etc.), a recusas de respostas riruais, a
(sobretudo junto dos jornalistas a quem se sobrepõem estrutu- formas estereotipadas, erc. Seria preciso it mais longe, e
ralmente). Logo depois, está o campo do «marketing» político, mostrar como ê que a apreensão das estruturas objectivas
com os publicitários e os conselheiros em comunicação política, permite explicar o pormenor dos discursos e das estratégias
que cobrem com justificações «científicas» os seus veredictos retóricas, das cumplicidades ou dos antagonismos, dos
acerca dos homens políricos. Finalmente, encontra-se o campo «golpes» desferidos e bem sucedidos, etc., em resumo, tudo o
universitário propriaffieme dito, com os especialistas da histó- que a análise de discurso julga que pode compreender a parrit
ria eleitoral que se especializaram no comentário dos resultados unicamente dos discursos.
eleirorais. Tem-se assim uma progressão, desde os mais «empe- Mas por que razão a análise é, neste caso, particularmente
nhados» atê aos mais desligados estruturalmenre e esraturaria- difícil? Sem dúvida, porque aqueles que o sociólogo prerende
mente: o universitário é aquele que, como se diz, tem mais objectivar são concorrentes pelo monopólio da objectivação
«recuo», «distância». Tratando-se, como é o caso da sessão objectiva. De facto, o sociôlogo, segundo os objecros que
1 eleitoral, de produzir uma retórica da objectividade tão eficaz estuda, está, ele mesmo, mais ou menos afastado dos actores e
1
quanto possível, ele derém uma vantagem estrutural sobre das coisas em jogo por ele observadas, mais ou menos directa-
todos os ourros. mente envolvido em rivalidades com eles, mais ou menos
As estratégias discursivas dos diferentes actores, e em tentado, por conseguinte, a enrrar no jogo do metadiscurso,
especial os efeitos retóricos que têm em vista produzir uma com a aparência de o objectivar. Quando, no jogo analisado, se
fachada de objectividade, dependerão das relações <le força trata, como aqui, de sustentar um metadismrso a respeito de
simbôlicas entre os campos e dos trunfos que a perrença a esses todos os ourros discursos ~ o do homem político que afirma
campos confere aos diferentes participantes ou, por outras ter ganho, o do jornalista que declara fazer uma exposição
palavras, dependerão dos interesses específicos e dos trunfos objectiva dos desvios, o do «polirólogo» e especialista de
diferenciais que, nesta situação particular de luta simbólica história eleitoral que têm a pretensão de fornecerem a com-
pelo veredicro «neutro», lhes são garantidos pela sua posição preensão a explicação objecriva do resultado apoiando-se na
nos sisremas de relações invisíveis que se estabelecem entre os comparação dos desvios e na análise das tendências de evolução
diferentes campos em que eles participam. Por exemplo, o ~ quando se trara, numa palavra, de se situ tr meta, acima de,
politôlogo rerá, como ral, uma vantagem em relação ao homem unicamente pela força do discurso, é-•se tentado a fazer uso da
político e ao jornalista, pois se lhe concede mais facilmente o ciência das estratégias que os diferentes acrores aplicam, a fim
crédito de objectividade, e tem a possibilidade de recorrer à sua de fazerem triunfar a sua «verdade» para dizer a verdade do
competência específica, por exemplo, à história eleitoral que jogo, e para triunfarem assim no jogo. Ê ainda a relação
lhe permite fazer comparações. Ele poderá aliar-se aos jornalis- objectiva entre a sociologia politica e a «politologia mediârica,,
ras, cujas pretensões à objectividade reforça e legitima. O que ou, mais precisamente, entre as posições que observador e
resulta de todas estas relações objectivas, são relações de força observado ocupam nos respectivos campos, objectivamente hie-
simbólicas que se manifesram na interacção em forma de rarquizados, que comanda a percepção do observador, sobreru-
,,...,..

58 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA

do impondo~lhe as cegueiras reveladoras dos seus próprios vested


interests.
A objectivação da relação do sociólogo com o. seu objecro
é, como se vê bem neste caso, a condição da ruptura com a CAPÍTULO Ili
propensão para investir no objecto, que esrá sem dúvida na
origem do seu «interesse» pelo objecto. É preciso, de cerro A génese dos conceitos de hab.itus e de campo
modo, ter-se renunciado à tentação de se servir da ciência para
intervir no objecto, para se estar em estado de operar uma
objectivação que não seja a simples visão redutora e parcial que Ao apresentar aqui, de modo mais sintético e mais. sistemá-
se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a tico, os conhecimentos que pude obter, no decurso dos anos,
visão global que se tem de um jogo passível de ser apreendido pela aplicação a universos diferentes do mesmo modo de
como tal porque se saiu dele. Só a sociologia da sociologia - e pensamento - aquele que é designado pela noção de campo -
do sociólogo - pode dar um certo domínio dos fins sociais que conto realizar a confluência da diversidade aberta pela pesquisa
podem estar na mira dos fins científicos directamente prosse~ em acção com a coerência reforçada por um olhar retrospectivo.
guidos. A objectivação participante, sem dúvida, o cume da Diferente da teoria teórica-~ discurso profético ou programáti-
arre sociológica, por pouco realizável que seja, só o é se se co que rem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive
firmar numa objectivação tão completa quanto possível do da defrontação com outras teorias - , a teoria científica apre-
interesse a objecrivar o qual está inscrito no facto da participa- se_nta-se como um programa de pe_rcepção e de acção só
ção, é num pôr-em-suspenso desse interesse e das representa- revelado no'. trabalho empírico ,em que se realiza. Construç®
ções que ele induz. provisória elaborada para o trabalho empírico e por meio dele,
ganha menos com a polémica teórica do que com a defrontação
com novos objecros. Por esta razão, roma( verdadeiramente o
partido da ciência é optar, asceticamente, por dedicar mais
tempo e mais esforços a pôr em acção os conhecimentos teóricos
adquiridos invesrindo-oS em pesquisas novas, em vez de os
acondicionar, de certo modo, para a venda, metendo-os num
embrulho de meradiscurso, destinado menos a controlar o
pensamento do que a mostrar e a valorizar a sua própria
importância ou a dele retirar directamente benefícios fazendo-o
circular nas inúmeras ocasiões que a idade do jacto e do colóquio
oferece ao narcisismo do pesquisador. Mas é também correr o
risco de dar a imagem de um isolacionismo provinciano ou
sectário, sobretudo quando o emprego colectivo do mesmo modm
1perandi - embora seja coisa banal nas ciências mais avançadas
- vem ·reforçar esta impressão de monismo totalitário 1 .
' Alguns dos trabalhos cujos resultados são aqui apresentados foram já
"bieno de publicação, tendo eles próprios servido de base, desde há uns vime
anns, pant pesquisas em que me apoiarei nos text0s que têm em vista
..-

A GÉNESE DOS CONCEITOS CAPiTULO lll 61


Tratar da teoria como um mndus oJ!.erandi que orienta e escolástico no terreno da arquitectura, o outro sobre o Abade
organiza praticamente a prática científica e, evidentemente, Suger em que ela podia também tornar-se útil 2 - , tal noção
romper com a complacência um pouco feiricista que os «teóri- permitia-me 'romper com o paradigma estruturalista sem cair
cos» costumam ter para com ela. Assim, nunca me pareceu na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia
indispensável fazer a genealogia de conceitos que, não tendo clássica e do seu homo economicus que regressa hoje com o nome
nascido da partenogénese teórica, não ganham muito em serem de "individualismo metodológico._ Retomando a velha noção
re-situados em relação aos usos anteriores, tendo por função, aristotélica de he,2;_is, convertida pela escolástica em habitus, eu
sobretudo, designar, de maneira estenográfica, Uma postura desejava reagir contra o estruturalismo e a sua estranha filosofia
teórica, princípio de opções metódicas, tanto negativas como da aqj:o que, implícita na noção levi-straussiana de inconscien-
positivas, na condução da pesquisa. Neste sentido, por exem- te, se exprimia com toda a clareza entre os althusscrianos, com
plo, a noção de habitus exprime sobretudo a recusa a toda uma 9 seu agente reduzido ao papel de suporte - Trager - da
série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da estrutura; e fazia-o arrancando Panofsky à filosofia néo-
consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e -kantiana das «formas simbólicas» em que ele ficara preso
do mecanicismo, etc. Quando introduzi aquela noção, por (correndo o risco, com isso, de tirar partido um tanto forçado
ocasião da publicação em francês de dois artigos de Panofsky do uso, único na sua obra, que ele fazia da noção de habitus).
que· nunca tinham sido cotejados - um sobre a arquitectura · Sendo as minhas posições próximas das de Chomsky que
gótica, no qual a palavra era empregada, a título de conceito elaborava, por então, e quase contra os mesmos adversários, a
«nativo»*, para dar uma explicação do efeito do pcnsamcnro noção de generative grammar, eu desejava pôr em evidência as
capacidades~riadoras», activas, inventivas, do habitus e do
fazer a síntese dos conhecimentos adquiridos. Os prindpios tcôricos e
agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a
metodolõgicos que orientaram estes trabalhos forain aptesemados, origina-
riamente, no quadro de um scmimirio que se realizou na Escola Normal atenção para a ideia de que este poder gerador não é o de um
Superior entre os anos 60 e os anos 80. Este seminãrio, ainda que tenha tido espírito universal, de uma natureza ou de uma razão humana,
sempre um ntimero muito testrito de patticipant('S (sobrnudo Jenn-Claude co1:1-o em Chomsky -- o habitus, como indica a palavra, é um
Chamboredon, Christophe Chade, Rémi Ponron. Jean-Louis Fabiani, ,conhecimento adquirido_· e também um haver, um capital (de
Menger e alguns outros) tinha sido concebido, de começo, como um vasto
um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitm, a hexis,
trabalho colectivo destinado a cobrir o çonjunto da produção litetãria e
artística do século XIX francês - gtaças sobretudo à elaboração de um indica a disposição incorporada, quase postural - , mas sim
ficheiro comum, destinado a servir de base para diferentes anãlises. O método o de um agente em acção: tratava-se de chamar a atenção para
só se vê bem pelos resultados que produz e, quando é exigente, a sua aplicação o «primado da razão prática» de que falava Fichte, retomando ao
requer muita inteligência e invenção e tambem muito nabalho. Resulta daqui idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o «lado
que é difici! pôr em evidência e fazer valer principios teôricos e conceitos que
funcionaram praticamente em forma de sugestões, de incitações, de conselhos
activo» do conhecimento prático que a tradição materialista,
ou de correcções no quadro de seminátios ou de grupos de nabalho sem se correr sobretudo com a teoria do «reflexo», tinha abandonado.
o risco de se set injusto para com todos aqueles que os fizeram funcionar, Não há dúvida de que as primeiras aplicações por mim
contribuindo, por isw mesmú, i,ara os aperfeiçoar. E assim, visto que, no país feitas da noção de habitus comportavam pouco mais ou menos
dos mestres de pensat, a a<lopção de um conjumo de 11temi!ios de pensamento só tudo isso, mas apenas em estado implícito: eram, com efeito, o
pode aparecer como um testemunho de submis$àO seguidista a um patrão
produto não de um cálculo teórico semelhante ao que acabo de
rotalitário ou de entrega de si mesmo a um mestre catismático. Trata-Se de
uma representação colectiva do trabalho intelectual que é, sem dUvida, uma
das causas maiores do fracasso total ou parcial dos ttabalhos colenivos. -' F. Panofsky, Architea11re gothiq11e et pemk scolastiqtte, trad. fr.tncesa de
• «indigCne» no texto (N. T.). Pirrrç Boutdini, Paris, Minuit, l967,
62 A GÉNESE DOS CONCEITOS CAPiTULO lll 63

fazer mediante uma balizagem sistemática do espaço teórico um neologismo ou, segundo o modelo das ciências da natureza,
mas sim de uma estratêgia prática do habitm científico, espécie a um efeito, mesmo menor, fazendo assim subir a sua cotação
de sentido do jogo que não tem necessidade de racjocinar para no C itation I ndex 3 .
se orientar e se situar de maneira racignal num espaço. Creio, A procura da originalidade a todo o custo, frequentemente
no entanto, que a escolha desta velha palavra há muito fora de facilitada pela ignorância e a fidelidade religiosa a este ou
uso, por não ter herdeiros e só ocasionalmente empregada, não àquele autor canônico que leva à repetição_ritual, impedem,
é estranha à realização ulterior do conceito. Os que quiserem uma e outra, a justa atitude para com a tradição teórica, que
ligar a palavra à sua origem, na intenção de a reduzir ou de a consiste em afirmar, ao mesmo tempo, a continuidade e a
destruir, não deixarão de descobrir, por pouco inteligente que rupnJra, a conservação e a superação, em se apoiar em todo o
seja o modo de conduzir o inquérito, que a sua força teôrica pensamento disponível sem temer a acusação de seguidismo ou
residia precisamente na direcção da pesquisa por ela designada de ecletismo, para ir para além dos antecessores, ultrapassados
a qual está na própria origem da superação que tornou possível. assim por uma utilização nova dos instrumentos para cuja
Parece~me, com efeito que, em todos os casos, os utilizadores produção eles contribuíram 4 . A capacidade de reptoduzir acti-
da palavra habitus se inspiravam numa intenção teórica próxima vamente os melhores produtos dos pensadores do passado
da minha, qu~ era a <le sair da filosofia da consciência sem pondo a funcionar os instrumentos <le prrn:lução que eles
anular o agente na sua verdade de opetador prático de constru~ deixaram é a condição do acesso a um pensamento realmente
ções de objecto. É o que se afigura, tanto no caso em que, produtivo.
como em Hegel que também recorre na mesma perspectiva à Também a elaboração e a transmissão de métodos de
noção de etos, a noção de he_!is (equivalente grego de habitus) pensamento eficazes e fecundos nada têm de comum com a
exprime a vom,g:le de rorq.pef com o dualismo kantiano e de circulação das «ideias» tal como é geralmente pensada: se é
reintroduzir as disposições duradouras constitutivas da «moral permitida esta analogia, diria que os trabalhos científicos são
realizada» (Sittltchkeit) em oposição ao moralismo abstracto da parecidos com uma mt.isica que fosse feita não para ser mais ou
moral pura e formal do dever; como no caso em que, como em menos passivamente escutada, ou mesmo executada, mas sim
Husserl, o mesmo conceito e noções vizinhas, como a de para fornecer princípios de composição. Compreender trabalhos
Habit11alitdt, assinalam o esforço para \",ôair da filosofia da científiCos que, diferentemente dos textos teóricos, exigem não
consciência.reintroduzindo - como em Heidegger e Merleau- a contemplação mas a aplicação prática, é fazer funcionar
-Ponty, que, de resto, não empregam a palavra - up"l.a relação
de cumplicidade ontológica com o mundo; ou ainda no caso em 3
Esta estratêgia, que ê a moeda miUd"' da ambição positivista rradicio-
que - como Mauss, o qual reconhece a dimensão corporal da nal de ligar o nome a uma escola ou a um sistema e, deste modo, a uma
hextJ como porte ou postura - a noção serve para referir o visiio do mundo, tem a seu favor as aparências da modêstia cientista.
" Tambêm aqui as ciências sociais estão numa posição pouco favorâvel
funcionamenco sistemático do corpo socializado.*
à instituiçáo de ral relação realista com a herança teôrica: os valores de
A decisão de retomar uma palavra da tradição para a originalidade, que são os dos campos literãrio, artístico ou filosófico
reactivar assenta na convicção de que o trabalho de conceptuali- cominuam a orientar os juízos; eles desacreditam como servi! üU seguidista a
zação pode, tambêm ele, ser cumulativo, e ê diametralmente vontade de adquirir instrumentos de pro<lução específicos ligada a uma
oposta à estratêgia que consiste em tentar associar o seu nome a tr,1diç:lo e, deste modo, a um trabalho co!ecrivo e, assim, favorecem os
,·inhusn·s sem futuro pelos quais os pequenos empresâtios sem capital têm
ein 111ini ,1ssociar o seu i_inme a uma marca de fabrica -- cumo se vê no
" O termo "Jisposition·,, na acepção em que o toma o autor, será por nús dmniuio da rritir,i t·m qrn· n:lo h,i, hoje, autor que se não atribua um nome
trnduzidü por ,1tit11de ao longo destes textos, salvo ocorrênda f'Spt:Ci'II (N T. ). ,·m !\!IH> • I<" nu lu;.'.Í-!
r

C/1P{TULO lll
64 A GÉNESE DOS CONCEITOS

pratteamente, a respeito de um objecto diferente, o modo de Lewin - daria infinitamente menos resultados do que a
pensamento que nele se exprime, é reactivá-lo num novo acto referência à linhagem ou à linha teórica em que o emprego da
palavra inscrevia tudo o que se empreendia: o modo de
de produção tão inventivo e original como o acto inicial que se
pensamento rela(jo.nal (de preferência a estruturalist,1) qut: é o
opõe absolutamente ao comentário des-realizante do lector, meta~
discurso ineficaz e esterilizante.'.Por isso a apropriação activa de de toda a ciência moderna 5 , como mostrou Cassirer ao torná"lo
um modo de pensamento científico, ainda que muitas vezes explícito 6, é sem dúvida o que liga trabalhos tão diferentes na
desacreditada como imitação servil de epígono ou como aplica~ aparência como os dos formalistas russos -· em fYd.rticular
ção mecânica de uma arte de inventar jâ inventada, ê tão difícil Tynianov 7 - , os de LeYIDn ou os de Elias e também, evident-e-
e tão rara, não só pelos efeitos de conhecimento qtie produz, mente, os estruturalismos linguísticos ou antropológicos 8 •
A difiq1ldade que é particular à aplicação deste modo de
como também pela sua elaboração inicial~ Uma das inúmeras
pensamento às coisas do mundo social provém da ruptura com
razões da particular dificuldade das ciência; sociais está no facto
a percepção comum do mundo social por este exigida. Assim,
de exigirem união de uma grande ambição com uma extrema
para construir realmente a noção de campo, foi preciso passar
humildade: humildade necessária para conseguir dominar prati-
camente todo o conjunto dos conhecimentos adquiridos, para além da primeira tentativa de análise do «campo intelec-
tual» 9 como universo relativamente autónomo de relações
dispersos e pouco formàlizado.s, da disciplina, incorporando-o,
5
como modo de habitu.s (apesar da falsa originalidade da arrogân- Tentei pôr em evidência, num artigo escrito no acmé do estrurnralis-
cia ou da ignorância continuarem a ter crédito); ambição mo, as condições da aplicação às ciências sociais do modo de pensamento
relacional que se impôs às ciências da natureza e que, por não ter sido
indispensável para tentar. totalizar numa prática realmente
claramente pensado n111 1em prini:fpior, :;e viu aos poucos deformado, desviado
cumulativa o conjunto dos saberes e do saber-fazer acumulados ou pervertido, nas diferentes formas de estruturalismo (cf_ P. Bourdieu,
em todos os acros de conhecimento -- e por meio deles - «Strucruralism and Theory of Sodological Knowledge», Social Rmarch,
realizados pelo colégio dos melhores, no passado e no presente. XXV, 4, Verão 1968, pp. 681-706).
r, Ernst Cassirer, S!fbstance et F11nction, Paris, Minuit, 1977, p. 19.
A mesma atitude esteve na origem do emprego do conceito 7
Sobre a ligação entre os formalistas russos e Cassirer, pode ver-se:
de caJJJpo. Também aqui a noção serviu primeiro para indicar
P. Steiner, Russian fionnalúm, A Metapoelio, Ithaca, Cornell University
uma direcção à pesquisa, definida negativamente como recusa à Press, 1984, pp. lO l- 104.
alternativà da interpretação interna e da explicação externa, ~ Esra unidade de linha teórica está na origem das afinidades, de inicio
perante a qual se achavam colocadas todas as ciências das obras confusamente sentidas, e dos pontos de encontro, as mais das veze~
culturais, ciências religiosas, história da arte ou história literá- descobertos fora de tempo, que importa não descrever como produtos de um
empréstimo, pois são o resultado da aplicação separada dos mesmos esque-
ria: nestas matérias, a oposição entre um formalismo nascido da
mas (veremos isro mais adiante a respeito dos formalistas russos). Nada há
teorização de uma arte que chegara a um alto grau de aurono- de mais diven:ido, no rrabalho inrelenual, que descobrir a mesma ideia,
mia e um reducionismo empenhado em relacionar directamente com poucas diferenças de forma, em aurores diferentes, sobretudo quando a
as formas artísticas com formas sociais - com o qual o origem desre encontro ê perfeitamenre clara. Pensamos neste caso em
marxismo, apesar da noção de auronomia relativa, tendia a Baudelaire: «Pois bem, acusam-me, a mim, de imirar Poe! Sabe por que
razão traduzi Poe com rama paciência? Porque ele se parecia comigt/_ A
identificar-se, especialmente com Lukacs e Goldmann •- enco-
primeira vez que abri um livro dele, vi com espanto e enlevo, não só
bria o que as duas correntes tinham de comum, a saber, o facto moriv?s sonhados por mim, mas fram, pensadas por mim, e escritas por
de ignorarem o campo de produção como espaço social de ele, vmre anos anres ... » (Cf. C. Baudelaire II Théophile Thoré, 1863, in
relações objectivas. Segue-se daqui que, uma vez mais, a Ba11delaire Critique d'Art, Paris, Club des 1-'.'oraires, p. 179.
~ P. Bourdicu, «Ch;imp forellectuel et --:'rojet Crêareur», in Us Temps
investigação genealógica - que conduziria a autores tão
111odrmri. n." 2'1(,. Nov. ,k !966, pp. 86'. .()O(;
distantes uns dos outros, como é o caso de Trier e de Kurr
(,(, A GÉNESE DOS CONCEITOS
CAPÍTULO li/ 67
específicas: com efeito, as relações imed •atamente visíveis entre
os agentes envolvid_os na vida intdectual - sobretudo as hipótese de que existem homologias estruturais e funcionais
interacções entre os autores ou entre os autores e os editores - entte todos os campos, ao invé~ de funcionarem como simples
tinham disfarçado as relações objectivas .entre as posições metáforas orientadas por intenções retóricas de persuasãO, têm·
ocupadas por esses agenres, que determinam a forma de tais uma eficácia heurísrica eminente, isto é, a que toda a tradição
interacções. Foi assim que a primeira elaboração rigorosa da epistemológica reconhece à analogia. Além disso, a paciência
noção saiu de uma leitura do capítulo de _Wirtschaft ,md das aplicações prâricas tepetidas deste método é uma das vias
Gesellschaft consagrado à sociologia religiosa, leirura que, domi- possíveis (para mim a mais acessível e a mais aceitável) da
nada pela referência permanente ao campo intelectual, nada «ascensão semântica» (no sentido de Quine) permitindo levar a
tinha de comentário escolar. Com efeito, mediante uma crítica um nível de generalidade e de formalização mais elevado os
da visão interacc}oni;;ra das relações entre os agentes reliiiõ~os princípios teóricos envolvidos no estudo empírico de·universos
~ proposta por Weber que impliÚva uma crítica retrospectiva da
diferentes e as leis invariantes da estrutura e da hisrôria dos
minha representação inicial do campo intelectual, eu propunha diferentes campos. Estes, em consequência das particularidades
um.a construção do campo religioso como estrut11ra de relações das suas funções e do seu funcionamento (ou, mais simples-
objfdÍl'aS q:ie pudesse explicar a forma concreta da; interações
mente, das fontes de informação respectivas), denunciam de
que Max Weber descrevia em forma de uma tipologia realista 10 . maneira mais ou menos dara propriedades comuns a todos os
Nada mais testava fazer do que pôr a funcionar o instrumento campos: assim, o campo da alta cosrura levou, mais directa-
de pensamento assim elaborado para descobrir, aplicando-o a mente do que qualquer outro universo, a uma das propriedade's
domínios diferentes, não só as propriedades específiqs de cada mais importanres de rodos os campos de produção cultural, que
campo - alta costura, literatura, filosofia, política, etc. - ê a da lógica propriamente mágica da produção do produtor e
mas também as invariantes reveladas pela comparação dos do produto como feitiços - sem dúvida porque, sendo mais
diferentes universos tratados como «casos particulares do possí- legítimo culturalmente, ele censura de modo menos vivo o
vel» 11 • As transferências metódicas de modelos baseados na aspecto «económico» das práticas e está menos protegido
contta a objecrivação, que implica sempre uma forma de des-
lü P. Bourdieu, a Une imetprêrarion de la sociologie rdigieuse de Ma..x -sacralização.
Weber», in Arrhivti europêenneJ de mâologic, Xll, 1, 1971, pp. 3-2 L Embora Todavia, procurar a solução de um problema canônico neste
tambêm aqui conte evidentemente a intenção de reduzir o efeito prôprio da ou naquele estudo de casos, sobretudo se este se dedica ao
leitura, a evidência - ex posr ~ da reinterpretação est;uturalista por mim
proposta faz com que, desde que o primeiro volume de Wirtscha/t 1mdGml/Jchaft umvetso frívolo da moda, implicava uma transformação do
foi, enfim, traduzido, se atribua geralmenre ao prôprio Weber (<;ompreender- trabalho inrelectual que não deixa de ter relação com o que,
-se-â que eu não faça ciraçóes) conceiros como os de campo religioso ou segundo Erich Auerbach, fizeram os inventores do romance
capital simbôlico e rodo um modo de pensamento que são evidentemente · moderno, Vitginia Woolf, Joyce e Faulkner: «Dá-se menos
estranhos à lógica do seu pensamento. [Trata-se do t. J inrirulado Eamomie et importância aos grandes acontecimentos exteriores e aos acasos
SIJ(idé, trad. dirigida por J. Chavy e E. de Dampierre, Paris, P!on, 1971].
11 Se a aplicação reire111da dos mesmos esquemas a objectos diferentes da fatalidade, pensa-se que eles são pouco capazes de revelar
conduz a algumas repetições fastidiosas, ela justifica-se sem dUvida do ponto alguma coisa de essencial a respeito do objecto considerado;
de vista da pedagogia da pesquisa, na medida em que estes esquemas podem crê-sé, ao invés, que qualquer fragmento da vida, tomado ao
deste modo passar directamente para a prâtica. do leitor acdvo, capaz de acaso, em qualquer momento, contém a totalidade do destino e
trarar o proroco!o científico como exercício de trabalhos prâdcos - isto sem
que pode servir para representá-lo. Tem-se mais confiança nas
excluir os efeitos, sem dUvida muito diferentes, da transmissão em furma de
tradução formalizada dos esquemas prâticos do habitw científico. síntt·ses obtidas pd1i aprofundamento de uma circunstância
<J1H1ti,li;1r1a ,i,1 (Jtu· 1111111 trat;1rnc:nto global, ordenado cronologi-
68 A GÉNESE DOS CONCEITOS CAPÍTULO lll 69

camente, que segue o seu objecto do começo ao fim, se esforça que· se especificam segundo a estrutura das relações entre os
por nada omitir de exteriormente importante e põe em relevo capitais linguísticos ou culturais dos interlocutores ou dos seus
as grandes viragens da vida para fazer delas as articulações da grupos. Tudo leva a supor que a teoria económica, como se
intriga» 12 . Pode-se, com efeito, «regressar às próprias. coisas» espera poder um dia demonstrar, em vez de ser modelo
mergulhando na particularidade de um caso particular (a revo- fundador, deve ames ser pensada como um caso particular da
lução impressionista, por exemplo) para tentar descobrir nele teoria dos caQ1pos que se constrói pouco a pouco, de generaliza-
alguma coisa de essepcial (a verdade trans-histórica das revolu- ção em generalização e que, ao mesmo tempo permite com-
ções simbólicas), mas tão-só com a condição de se repudiar a preender a fecundidade e os limites de validade de transferên-
hierarquia académica dos géneros e dos objectos a qual, banida cias como as com que Weber opera, e obriga a repensar os
da literatura e da pintura desde o século XIX, se perpetua na pressupostos da teoria económica à luz sobretudo dos conheci-
tradição filosófica - através, por exemplo, da condenação mentos adquiridos a parrir da análise dos campos de produção
altiva do «historicismo». cultural 14 .
A teoria geral dos campos que, pouco a pouco 13, se foi A teoria geral da economia dos campos permite descrever e
assim elaborando, nad~-deve, ao contrário do que possa pare- definir a forma espedfica de que se revestem, em cada campo, os
cer, à transferência, mais ou menos repensada, do modo de mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento,
pensamento económico, embora, ao reinterpretar numa ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a
perspectiva relacional a análise de Weber, que aplicava à começar pelo economismo, que nada mais conhece além do
religião um certo número de conceitos retirados da economia interesse material e a busca da maximização do lucro monetá-
(como concor,!!ncia, monopólio, oferta, procura, etc.), me rio. Compreender a génese social de um campo, e apreender
achei de repente no meio dé propriedades geÍ~is, válidas nos aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta,
diferentes campos, que a reoria económica tinha assinalado sem do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e
delas possuir o adequado fundamento teórico. Em vez de ser a simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar
transferência que está na origem da construção do objecto - necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado
como quando se vai buscar a outro universo, de preferência os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não,
prestigioso, etnologia, linguística ou economia, uma noção como geralmente se julga, reduzir ou destruir. Não há dúvida
descontextualizada, simples metáfora com função puramente que é tentador, como nota Wittgenstein nas Leçons s11r f'Éthi-
emblemática - é a construção do objecto que exige a transfe- qm, abandonar-se ao prazer de «destruir os preconceitos»,
rência e a fundamenta: assim, tratando-se de analisar os usos sendo certo que algtins tipos de explicação exercem uma
sociais da língua, a ruprura com a noção vaga e vazia de atracção irresistível», como em especial uma explicação do
«situação» - que introduzia, ela própria, uma ruptura com o
14
modelo saussuriano ou chomskiano - obriga a que se pensem A análise, em curso, de um universo econômico como o do campo
as relações de permuta liriguística como outros tantos mercados Jos produtores de habitação, reconhece um certo número de características
jâ observadas em campos como o da alta costura ou mesmo o da pintura e da
12
E. Auerbach, Mimesis, la représentatil)n de la réalité dam la littêrature literatura: sobretudo o papel dos investimenros destinados a produzir a
<:rença no valor de um produto simultaneamente económico e simbólico ou
l)ccidentale, Paris, Gallimard, 1968, p. 543.
13 o facto de, neste domínio como em outros, as estratégias das oper~ões
Procurei isolar as propriedades gerais dos campos, levando as
dcp('n<.krem da sua posição no campo da produção, 9uer dizer, na estrututa
diferentes análises realizadas a um nivel superior de formalização, n9s cursos
dil ,fotrilmição 1lo ,,,pit,il r.r/m-í/i111 (no qual hâ que incluir a «reputação" do
que dei no College tk Franct em 1983 e 1984 e que serão ohjecw de
IHllm· da mnnn).
publicação.
70 A GÉNESE DOS CONCEITOS CAPÍTULO li/ 71

tipo: «isro é apenas aquilo». É certo, no entanto, que, contra dade, é tão-só uma espécie de q11inta-we"ncia hifMrica, quer
todas as espécies de escapúm que levam a achar na arte uma dizer, o produto do lento e longo trabalho de alquimia
nova forma da ilusãç> dos mundos ÍIT!aginários, a ciência deve histórica que acompanha o processo de autonomização dos
apreender a obra de arte na sua dupla necessidade: necessidade campos de produção cultural. Com efeito, de depuração em
interna desse objecto maravilhoso que parece subtrair-se â depuração, as lutas que têm lugar no campo da produção
contingência e ao acidente, em suma, tornar-se necessário ele poética conduziram a que se isolasse, pouco a pouco, o princí-
próp.rio e necess~rar ao mesmo tempo do seu referente; necessi- pio ess.~ncial do efeito.poético, quer dizer, o essencial daquilo
dade externa do encontro entre uma trajecrória e um campo, que separa a poesia da prosa: ao fazer desaparecer, por exemplo,
entre uma pulsão expressiva e um espaço dos possíveis expressi- com o verso livre, características secundárias como a rima e o
vos, que faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que ritmo, essas luras não deixaram subsistir mais que uma espécie
ela é produto, as supere. de extracto altamente concenrrado (como em Francis Ponge,
Nunca se passa para além da história e a ciência do homem por exemplo) das propriedades mais indicadas para produzir o
não pode pôr a si mesma outro fim que não seja o de se efeito poético de desbanalização das palavras e das coisas, a
reapropriar, pela tomada de consciência, da necessidade que ostranenie dos formalistas russos, sem se recorrer a técnicas
está inscrita na história e, em particular, de conferir a si mesma socialmente designadas de «poéticas». Sempre que se institui
o dom,ínio reórico das condições históricas effi que podem um destes universos relativamente autónomos, campo artístico,
emergir necessidades trans-históricas. Por exemplo, é cair pro- campo científico ou esta ou aquela das suas especificações o
fundamente na ilusão feiticista não querer ver que a solução do processo histórico aí instaurado desempenha o mesmo papel de
problema da «literalidade», caro aos formalistas russos, não abs_tr_actor de qtnnt.a-essincia. Donde a análise da história do
.pode ser encontrada noutro domínio que não seja o da história campo ser, em s1 mesma, a única forma legítima da análise de
do campo literário: nenhuma análise de essência, nenhuma essência 15 .
definição formal pode, com efeito, esconder que a afirmação da Mas, dir-se-á, que é que se ganhou, a não ser o prazer um
especificidade do «literário» ou do «pictórico» e da sua irredu- pouco perverso do desencanto, com esta redução histórica
tibilidade a qualquer outra forma de expressão é inseparável da daquilo que se quer viv(•r como experiência absoluta, estranha
afirmação da autonomia do catp.po de produção que ela supõe e, às contingências de uma génese histórica? Há uma história da
ao mesmo tempo, reforça. O movimento do campo literário ou razão que não tem a razão como princípio; uma história do
do campo artístico para a autonomia pode ser compreendido verdadeiro, do belo, do bem, que não tem apenas como motor
como um processo de depuração em que cada género Se orienta a procura da verdade, da beleza, da virtude. A autonomia
para aquilo que o distingue e o define de modo exclusivo, para relativa do campo artístico como espaço de relações objectivas
além mesmo dos sinais exteriores, socialmente conhecidos e em referência aos quais se acha objectivamente definida a
reconhecidos, da sua identidade. Os formalistas - e sobrerudo relação entre cada agenre e a sua própria obra, passada ou
Jakobson, familiarizado com a fenomenologia - nada mais presente, é o que confere à história da arte a sua autonomia
fizeram do que retomar, de maneira mais meródica e mais relativa e, portanro, a sua lógica origina!J Para explicar o facto
consequente, as velhas interrogações da crítica e da tradição de a arte parecer encontrar nela própria o princípio e a norma
escolar acerca da narureza dos géneros, reatro, romance ou
'\ Assim, a análise <la aritude estética pura, que é exigida pelas formas
poesia; eles tornaram-se assim culpados, com toda a tradição de inais avaru;adas da am.:, ê inseparável do processo de autonomização do
reflexão sobre a «poesia pura» ou sobre a «tearralidade», de t ,unpn de pm<hu,·;fo. Do mesmo modo, a epistemologia não pode ser
constituírem em essênci~ trans-históricas aquilo que, na reali- \ep,1r:1d;1. !'t'Hl dt• 111< to iwm ,k direito, da história social da ciência.
72 A GÉNESE DOS CONCEITOS CAPÍTULO lll 7.l

da sua transformação - como se a história estivesse no interior nos interesses ligados à pertença a um campo qe produção
do sistema e como se o devir das formas de representação ou de cultural e, mais largamente, ao campo social no seu conjunto,
expressão nada mais fizesse além de exprimir a lógica interna o princípio da existência da obra tanto naquilo que ela tem de
do sistema - não há necessidade de hipostasiar, como frequen- histórico como naquilo que ela rem <le trans-histôrico - ,,o
temente se faz, as leis desta evolução; se existe uma hisrôria eterno encanto da arte grega» - , trarn a obra como uin sinal"'
propriamente artística, é, além do mais, porque os artistas e os intencional dominado e regulado por qualquer coisa de diferen-
seus produtos se acham objecrivamente situados, pela sua te, de que ela é também sintoma. O analista procura a inten-
pertença, ao campo artístico, em relação aos outros artistas e ção objectiva escondida por debaixo da intenção declarada, o
aos seus produtos e porqúe' as rupturas mais propriamente querer-dizér que ê denunciado no (JUC da declara. E supõe que
estéticas com uma tradição artística têm sempre algo que ver nela se enuncia um sentido profundo, uma pulsão expressiva,
com a posiçãp rel.ativa, naquele campo, dos q4e defendem esta biolôgica ou social que a alquimra d;1 forma imposta pela
tradição e dos que se esforçam por quebrá-la. «A acção das necessidade social do campo rendt• ;1 tornar irreconhecivd,
obras sobre as obras», de que falava Brunetiêre, só se exerce sobretudo obrigando a pulsão a negar-se e a universalizar-se.
por intermédio de autores cujas estratégias devem à posição Ao contrârio do angelismo do interesse puro pela forma pura, a
relativa que têm na estrutura do campo intelectual a forma, a anâlise que apreende num movimento Unico a pulsão expressi-
lógica e o conteúdo que apresentam 16 • O analista que procura va, a censura e a sublim;ição garantida pelo trabalho de dar
16 forma dá uma visão rcalisr;1, qticr dizer, ;10 mesmo tempo mais
A resisrência â anâlise cientifica rem recursos quase infinitos, como
se pode ver nesta apresentação das minhas anâlises: «Bourdieu, ao contrârio verdadeira, e, por fim, m;11s tr;lthJLHlizadora do trabalho cokc-
(de Adorno), defende uma abordagem funcionalisra. Ele analisa as acções rivo de sublimaçiio que esta n;1 ori,-;em das conquistas mais
dos sujeiros naquilo a que chama «o campo cultural» levando em linha de altas da acção human;i:';1 his.torrn só pode produzir a unive_rsali-
conta excLuúmmente as probabilidades de conquista do poder e do prestigio, dade trans-hisrórirn produzindo, por meio das luras tantas
e considera os objectos Jimp/e.rmente como meios estratêgicos que os produto-
vezes impiedosas dos imert.'sses particulares, universos sociais
res empregam na luta pelo poder» (P. Bürger, «On the Literary History»,
Poetics, vol. 14, n. 0 3/4, August 1985, PP- 199-207 ~ sublinhado por que, por efeito da alquimia soóal ,fas suas leis hisrôricas de
mim). Estratégia muito comum, que consiste em acusar de nduâ,;ni,mo uma funcionamento, n:ndern ;1 extrair d;i defrontação dos interesses
teoria previamente reduzida: as estratégias prâticas e sobredeterminadas, 1wrticularcs a essência sublim;1da do universal.' A exalração
que não são necessariamente conscientes e calculadas e que exprimem os hagiogrâfica e o rebaixamento redtitor têm isto <le comum:
interesses, ao mesmo tempo estéticos e sociais, associados a uma posição no
procurar nos grandes homens o principio das grandes obras; e
campo, são por Peter Bürger substimidas por estratêgias exclusivamente e
explicitamente orientadas por uma espécie de vonrade de poder genêrica que ignorar tudo o que, nas prúticas e nas produções mais subli-
poderia ser exercida tanto no campo político como no campo económico. mes, resu!ra da lôgica desses mundos paradoxais em que -
Ele faz desaparecer assim a especificidade das lutas estéticas e dos inreresses enrre ourras razôes, porque pode-st: ter interesse em se mostrar
nelas envolvidos, em suma, precisamente aquilo que a noção de campo desinteressado - certos homens podem encontrar uma incita-
tinha em vista explicar: na realidade, as lmas que têm lugar no campo
çl.o para se superarem ou, pelo menos, parn. produzirem actos
intelectual têm o poder simbólico como coisa em jogo, quer dizer, o que
nelas estâ em jogo ê o poder sobre um uso particular de uma categoria ou obras que vão para alêm das suas intenções e <los seus
particular de sinais e, deste modo, sobre a visão e o sentido do mundo mreresses.
natural e sociaL Trara-se de um equivoco demasiado grosseiro a respeito de
um ponto demasiado evidenre para não ser de certo modo interessado, logo,
mratigico (n9 senrido que eu dou a esra palavra), quer dizer, orientado, com
t0da a inocência, como em todas as formas de recusa de saber, pelos interes-
ses ligados a uma posição.
r
CAPÍTULO IV

Le mort saisit !e vif•


As relações entre a história reificada
e a história incorporada

A filosofia da história que está inserira no uso mais corrente


da linguagem corrente e que leva as palavras que designam
instituições ou entidades colecrivas - Estado, Burguesia,
Patronato, Igreja, Família, Justiça, Escola - a constituirem-se
em sujeitos históricos capazes de originar e realizar os seus
próprios fins («o Estado - burguês - decide ... », «a Escola
- capitalista - elimina... », «a Igreja de França combate ... »,
etc.) encontra a sua forma mais acabada na noção de Aparelho
(ou de «dispositivo»), a qual voltou a estar em moda no
discurso com maiúsculas denominado «conceptual». Enquanto
operador mecânico de finalidade, Deus (ou Diabolus) in machina,
o «Aparelho», máquina divina ou infernal, consoante o humor
ideológico, bom ou mau funcionalismo, está preparado para
funcionar como Deus ex machina, «asilo da ignorância», causa
final capaz de justificar tudo, e com menor custo, sem nada
explicar: dentro desta lógica, que é a da mitologia, às grandes
figuras alegóricas da dominação só se podem opor outras
personificações míticas, tais como a Classe operária, o Proleta-
riado, os Trabalhadores, até mesmo as Lutas, encarnação do
Movimento social e das fúrias de vingança 1•

• Fórmula jurídica consagrada em direito civil para exprimir o direico


que cabe ao herdeiro legfrimo de entrar na posse imediata da herança do
defunto. Não há expressão correspondente na língua portuguesa mas poderá
traduzir-se por «O morto apodera-se do vivo» (N.T.).
1
É, sem dúvida, no trabalho de mobilização e, mais precisamente, no
trabalho de unificação e de universalização que se gera uma grande pane das
representaçiies (no sentido da psicologia, e rambém no do direico e do teatro)
qut" os /,(fU['(>S (e, em particular, as dasses dominantes) dão de si pl"Óprios e

l •
76 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPÍTULO IV 77

Se esta versão da filosofia teleológica da história, sem definem em dado momento os processos de selecção e de
dúvida menos afastada do que parece do «tudo isto é de formação daqueles que fazem da filosofia uma profissão. De
propósito» da indignação moral, pôde e pode ainda apatec~t facto, ela satisfaz tanto a exigência de elevação «teórica», que
como intelectualmente aceitável, é porque ela encontra e expri- estimula o sobrevoar dôs facto$ e a generalização vazia e
me as atitudes constitutivas da «postura filosófica» tal como a apressada 2 , como a pretensão hermenêutica que manda procurar
a _essência por detrás da aparência, a esttutuia para além da
da sua unidade as quais des condensam, para as exigências da !ma história e tudo o que a define em exclusivo, quer dizer, todas
(compleramente diferentes das da análise) em « ideias-forças» ou em sinais as realidades vagas, misturadas e ambíguas que pesam sobre as
de reagrupamento («classe opeciria», «prolei:ariado», «quadros», «PME», ciências sociais, disciplinas auxiliares e ancilárias que apenas
etc.) frequentemenre retomados ta! e qual pelo dis.::,1rso, mesmo «erudiw», servem para «tema de reflexão» e sempre suspeitas de cumpli-
sobre o mundo social. Assim quando, por meio dessa es{)ecie de inclinação
para o romantismo social que inspira ranras vezes a história 5-0cia!, se fula de cidade com a realidade que elas se esforçam por conhecer ~--· é
«movimento operário», fazendo desta entidade o sujeito colectivo de uma assim que Althusset, com o pretexto de restauração teórica,
cultura imediaramenre polirizada, se corre o risco de encobrir a génese e a reavivou a condenação que a ortodoxia marxista sempre fez
função sociais desta designação estenográfica da representação mediante a pesar sobre todos aqueles que, pelo facto de procurarem,
qual a classe operária contribui para se produzir como tal (pense-se em revelam que nem tudo está encontrado; matando de uma
operações de alquimia social tão complexas como a lklegaçiio e a m,mifetaçiil!)
e de que faz parte, na qualidade de condição e de produto, aquilo a que se cajadada dois coelhos, ele reforçava, se necessário, o desprezo
chama por vezes o ~movimento operário», quer dizer, o conjunto das - inquieto - que a ortodoxia filosófica nunca deixou de
organizações sindicais ou politicas que se reclamam da classe opeci.ria e cuja professar em relação às «ciências ditas sociais», disciplinas
função é representar a classe operária. Quanto à mitologia pessimista e ao mau plebeias e importunas. Reduzir os agentes ao papel de exe-
funcionalismo que a orienta, o seu sucesso advém, evidentemente, de terem cutantes, vítimas ou cúmplices, de uma política inscrita na
um alto rendimentO na polémica: aplicando-se, com efeito, às mil maravi-
lhas, a adversãrios que C preciso desacredirar expondo o princípio dos seus Essência dos aparelhos, é permitirmo-nos deduzir a existência
discursos, dos seus escritos, ou das suas acções (v.g. «pasquineiro do da Essência, ler as condutas na descrição d•)s Aparelhos e, ao
episcopado», «lacaio do capiralismo»). Sendo tambem válidos contra insti- mesmo tempo, fugir à observação das práticas e identificar a
tuições como a Igreja, concebida pelo anticlericalismo comum como um pesquisa com a leitura de disc/j.fsos encarados como matrizes
organismo com mil olhos e mil braços, todo ele virado para a realização dos reais das práticas.
seus fins objectivos, quer dizer, temporais e políticos. Enquanto que, como
tentaremos mostrar num próximo trabalho, é nas lutas internas - e por meio Se é verdade que a propensão pata tratar um universo social
delas - dos dCrigos, lutas em que o que estã em jogo não é nem nunca
poderá ser exclusivamente e explicitamente temporal, que eles mesmos «Os sábios, os filósofos muiro propensos à generalização, à classificação,
produiem - sem necessariamente as pensare:11 como t~i~ - as esrr-.u-~gi~ muito fecundos na criação de novas palavras ou de novos rótulos para os
adequadas a assegurar as condições económJCas e soorus da sua propna géneros e as classes que imaginam, não são os que mais fazem progredir as
reprodução social. Para compreender, por exemplo, o que se descreve como ciências e a filosofia. É preciso, pois, que o princípio verdadeiramenre
um «deslizar da Igreja» (ou dos «católicos») para a esquerda», é preciso activo, o princípio de fecundidade e de vida, em tudo o que diz. respeit◊ ao
dispor dos meios para interpretar as inúmeras mni-ersõi:1 individuais que os desenvolvimento da razão e do espírito filosófico, não resida na faculdade de
laicos (e também IJJ clérigrJS) tiveram de realizar para fuzerem entrar a polfrica na abstrair, de classificar e de generalizar. Conta-se que o grande geómetra
sua definição da religião; sendo o pape! dos clérigos, eles próprios empenha- Jean Bernouilli, desgostoso por ver que o seu contemporàneo Varignon
dos neste trahalho 1k com,miio, o de acompanhar este movimento, de o p,ueó<1 guercr apropriar-si! d,~, suas descobertas, a pretexto de nelas inrrodu-
,,rqueJtrar, o que era tanto mais facil para el(:!; quanto esravam, como hons út uma generalidade qut· o .iumr descurara, e que não exigia grande esforço
profissionais da palavra religiosa, preparados para fu!ar dele, e quanto 'I 1tw<:nrivn, dizia m11!kio~unwnn·, :m terminar cada memória que fazia:
estrurura das suas divisões reproduzia, na lógica autónoma do campo , km ,i!. -•Variµno11 !ui-de- nc111 j,{rnrru!i,.ar isto" (A.A. Cournot, Omrr,;s mmp!etu,
as experiências, as transformações e as oposiçôes do mundo d," l,11, "~- romo li. rdimdo por J. ( l'um·11w, P:iris Vrin. p. 20).


r 78 HISTÓRIA RElFICADA E INCORPORADA CAPÍTULO IV 79

como Aparelho é proporcional à distância, que condena ao nascimento do capíralismo ou do aparecimento do artista
objectivismo, e à ignorância, que simplifica a visão, moderno, cujo sucesso infalível só se explica porque elas dão à
compreende-se que os historiadores, de resto dados a desígnios regressio ad infinitum uma superação erudita. Esres efeitos da
teóricos menos ambiciosos, pela sua posição no espaço universi- lógica própria do campo de produção combinam-se muitas
tário, sejam menos levados a heroicizar entidades colecrivas. vezes com os efeitos do humor político para inspirar os derra-
A verdade é que a sua relação com o objecto determina ainda deiros investimentos que se escondem por detrás das tomadas
amiúde a sua visão do objecro. Primeiro, porque as tomadas de de posição sobre problemas de tal forma mal postos que só
posição sobre o passado radicam frequentemente (sendo o podem dar origem a debates, imermináveis, como a questão de
exemplo da Revolução Francesa o mais evidente) em tomadas saber se o aparecimento das primeiras medidas de prorecção
de posição latentes sobre o presente ou, mais exacramente, social se deve atribuir à boa. vontade dos «filantropos» ou às
contra os adversários intelectuais do presente (segundo a lógica «lutas dos trabalhadores»; ou a questão do papel, benéfico ou
do «duplo resultado»• que se inscreve na autonomia relativa maléfico, que reria desempenhado o poder régio na pintura
dos espaços de produção cultural). Além disso, os historiadores francesa do século XVII, podendo os veredictos, tão bem
nem sempre escapam a uma forma subtil de misrificação: argumentados e documentados do rigor académico, sancionar a
primeiro, porque não só a ambição, legada por Micheler, de hostilidade ao absolutismo régio por parte dos professores
ressus<Útar o passado e de restituir o real como também a republicanos·de fins de século XIX ou, hoje em dia, a referência
desconfiança em relação aos conceitos os incita a utilizarem tácita ao Estado_soviético 4 ; ou ainda o problema do limite
intensivamente a metáfora, a qual como sabemos desde Max entre a Idade Média e o Renascimento, que encheu bibliotecas
Müller, está repleta de mitos; depois, porque roda a sua e que sempre opôs os «liberais» aferrados em delimitar a
posrura de especialistas das fontes e das origens os leva a ruptura entre as Trevas e a Luz, e os defensores das origens
situarem-se na lógica mítica das origens e do primeiro começo. medievais (e, em especial, franciscanas) do Renascimento ...
Às causas comuns, que levam a pensar a história como procura De facto, a propensão para a visão reológico~política que
das responsabílidades, junta-se no caso deles uma espécie de permite censurar ou louvar, condenar ou reabilitar imputando a
hábito _p_r_ofissional: a busca da superação distintiva incita os vontades benéficas ou malignas as propriedades aprovadas ou
historiadores a recuarem cada vez mais no passado, a mos- reprovadas do passado, depende do grau em que o passado das
trarem que rudo começou mais cedo do que se julgava, a instituições em causa é considerado como algo que está em jogo
descobrirem predecessores dos precursores, a revelarem pre-
núncios dos sinais anunciativos ·- ao invés dos àrtistas de
vanguarda que são levados por ela a acelerar o processo que lhes primeitos esboços na 7.ª Carta de Platão ou no Brutus de Cícero_ E só
poderemos escapar à regrmio ad in(initmn subsrituindo a questão das otigeos
pode escapar 3 • Basta-nos pensar em questões como as do absolutas pela questão das origens da autobiografia «moderna». Porém, como
dar inicio à «modernidade» ou ao «modernismo» com Rousseau sem que
• «coup double» no texto original (N.T.). venha de imediaw à meme que o titulo de «primeiro dos modernos» pode ser
·' Um exemplo, entre muitos, é o da autobiografia. Não podemos reivindicado por Santo Agostinho ou Peuarca, para não falar de Montaigne,
apresentar as ConfissikJ de Rousseau sem nos perguntarmos se esta obra criou ;1pesar do seu «modernismo» ser diferente? O que nos obtiga a perguntar
o género autobiográfico, e evocar imediatamente Montaigne ou Benvenuto qu;mdo começa o modernismo moderno. E assim vai a vida erudita.
Cellini ou, indo mais !onge, SantO Agostinho. - para sermos de imediato ' Estas problcmátil-as subterrâneas são evocadas no estudo de Natha!ie
ultrapassados pelo erudito (alemão) que, em alguma história monumental l kinidi sobrt· a nmsrirui,:10 do n1mpo da pintura francesa 110 século XVII:
da autobiografia (o exemplo não é imaginário) mostrará que as origens do --!." pnspntivt ;11.11k111iq11,· Pl·i11rnre et tradition !ettrée», Actes de /a
género se devem procurar no Próximo ou no Medio Oriente e cn,·onir;it,i o~ ,..,fN'lll•r 011 '<Ml,n HHl,il,,. ·l'J. IWH, pp. 47-70 .


80 HISTÓRIA REIFECADA E INCORPORADA
CAPÍTULO IV 81
e como instrumento de luta, através dessas próprias institui-
Paul Bois mostram bem que, no caso dos campos da Sarthe, as
ções, no espaço soda! em que se situa o historiador, isto é, no
medidas mais generosas (como a abolição de muitos dos impos-
campo das lutas sociais e no campo de produção cultural, ele
tos que pesavam sobre os camponeses) foram sendo contorna-
próprio mais ou menos autónomo em relação a essas lutas 5 • A
das, deformadas e viradas do avesso pela lógica do campo em
tendência para pensar a pesquisa hístórica na lógica do processo,
que elas intervinham 7 • Que o carácter abstracto, formal e, por
quer dizer, como, uma pesquisa das origens e das 'fponsabilida-
assim dizer, «idealista» de medidas tomadas na mais completa
des, e até mesmo dos responsáveis, está na origem da ilusão
ignorância das condições da sua concretização tenha contribuí-
teleológica e, mais precisamente, dessa forma da ilusão retros-
do, à revelia, para a inversão paradoxal que as fez reverter, por
pectíva que permite atribuir aos agentes individuais ou aos colec-
fim, a favor dos seus autores ou - o que já não é a mesma
tivos personalizados intenções e premeditações. É fácil, de facto,
coisa - da sua classe ê um facto em que não podemos ver o
quando se conhece a p?-lavra final, transformar o fim da história
resultado de um cálculo cínico e, menos ainda, de uma espécie
em fim da acção histórica, a intenção objectiva sô revelada no
de milagre do inconsciente «burguês». O que é. necessário
seu termo, após a batalha, e:m intenção subjectiva dos agentes,
compreender é a relação entre estas medidas (ou o habitus,
em estratégia consciente e calculada, deliberadamente orientada
característico de uma classe, que aí se exprime em termos, por
pela procura daquilo que acabará por daí advir, constituindo
exemplo, do universalismo e do formalismo das suas intenções)
assim o juízo da história, quer dizer, do historiador, em juízo
e a lógica do campo em que se geram - em função de habitus
final. Desta forma, contra a ilusão teleológica que domina
que nunca se circunscrevem completamente a ele - as reacções
tantas obras consagradas à Revolução Francesa 6, as análises de
por elas suscitadas. ·,A razão e a razão de ser de uma instituição
5
(ou de uma medida administrativa) e dos seus efeitos sociais,
Uma das virtudes da objenivação da relação com o objecto que se não está na «vontade» de um indivíduo ou de um grupo mas
impõe, tanto ao historiador como ao sociólogo, é a de os prover dos meios
para combater a filosofia C!>pomânea da histôria (e da prática) que orienta as sim no campo éfe forças antagonistas ou complementares no
opções científicas mais elememares: ê aqui que a sociologia e a histôria da qual, em função dos interesses associados às diferentes posições
sociologia e da história (e, em particular, das problemáticas obrigatôrias que e dos habitus dos seus ocupantes, se geram as «vontades» e no
elas adoptam, dos conceiros que elas empregam, dos métodos que põem em qual se define e se redefine continuamente, na luta- e através
prâtica, e das condições sociais em que elas fazem funcionar esta herança) da luta - a realidade das instituições e dos seus efeitos sociais,
desempenham um papel determinante. Se bem que esta polêmica da razão
científica se possa rambêm exercer contra certos advei:sários, prestando-se previstos e imprevistoS.(-1'"-
assim a mal-entendidos interessados quando as «vitimas» se protegem A forma particular de ilusão retrospectiva que conduz à
identificando-se com as vítimas de uma polémica, até mesmo de um terror ilusão teleológica leva-nos a conceber como produto de uma
político, ela é dirigida, em primeiro lugar, contra aquele que a exerce, comra estratégia consciente e calculada, e até mesmo cínica, a acção
tudo o que lhe permite participar naquilo que descreve -- e de que sô se com finalidade objectiva do habitus, estratégia objectiva que,
poderâ li berrar pela crítica obstinada da ciência, quer dizer, dos limites
inscritos nas condições sociais da sua produção. (Esta exploração dos limites
que está no centro do profeno raciona!isra tal como Kant o pensava estâ no revolta da fome, actos de força de notâveis. etc.) parcialmente sincronizadas
extremo oposro ao da leitura relativista que amitlde se faz - com todos os 1; imperfeitamente encadeadas {o que leva a evitar a questão da natureza da
tópicos sobre a historicidade do historiador - dos escritos neokantianos rdaçiio entre estas diferentes revoluções).
sobre a ciência histórica). · P. Bois. P,n «m< dr /"()11m. des stmçfures kwomiques et soâales aux options
b Seria preciso analisar tudo o que está implicado unicamente no facto p,,/111tf//tf dr/lllli l"i/,;11111r m·1,/ul!M1t11re, Paris-Haia, Mouton, 1960. (É digno de
de se escrever Revolução no Jingular (e com maitlscula) e, em especial, a mltil quç c~tc ]ivrn dt lmrorhdor se inspire no designio explícito de dar conta
hipótese de que houve uma revolução una e indivisive! onde se poderia, d,i histori( ,1mr:1tc dt" um fa( to \<I\ ia! do presente seja assim levado a obt(X'.ti-
mesma forma, ver um conjunto de revoluções (insurreiçi'ies ,k f-1m11<•m·.~n. v.,r (. a ,!inn1nur '" r!r1t,1\ ( orrd;itivos muito mais do aue é corrente).
1 CAPÍTULO IV 83
82 HISTÓRIA RElFICADA E INCORPORADA
consequência do habitus, produto de uma aquts1ção histórica
muitas vezes, só tem sucesso devido à sua inconsciência e ao que permite a apropriação do adquirido histórico. A história no
seu «desapego»: é assim que os que são bem sucedidos, em sentido de res gestae constitui a história feita coisa a qual é
política ou mesmo nas artes ou na literatura, podem aparecer levada, «actuada», reactivada pela história feita corpo e que não
retrospectivamente como estrategas inspirados, enquanto que o só actua como traz de volta aquilo que a leva (segundo a
que era objectivamente um investimento• racional pôde ser dialéctica do levar e do ser-levado, bem descrita por Nicolaí
vivido como uma aposta arriscada e até como uma loucura. A 9
Harrmann .,,Do mesmo modo que o escrito só escapa ao estado
illusio, que a pertença a um campo exige e produz, exclui o de letra morra pelo acto de leitura o qual supõe uma atitude e
cinismo, e os agentes quase nunca dominam explicitamente uma aptidão para ler e para decifrar o sentido nele inscrito,
aqueles mecanismos cujo domínio prático é a condição do seu também a história objecrivada, instituída, só se transforma em
êxito; assim, por exemplo, no campo literário ou artístico, as acção histórica, isto é, em história «actuada» e actuance, se for
reconversões - de um género para outro, de um estilo para assumida por agentes cuja história a isso os predispõe e que,
outro, etc. - são vividas - e devem, sem dúvida sê-lo para pelos seus inustimentos anteriores, são dados a interessar-se pelo
terem êxiro - como conversões. Em suma, o recurso à noção de seu funcionamento e dotados das aptidões necessárias para a pôr
estratégia que permite romper com a ilusão bem fundamentada a funcionary A relação com o mundo social não é a relação de
do desinteresse e também com todas as formas de mecanicismo causalidade mecânica que frequentemente se estabalece entre o
- ainda que se tratasse do mecanicismo finalista do Deus in «meio» e a consciência, mas sim uma espécie de cumplicidade
machina - não implica o regresso a uma forma ingénua de ontológica: quando a história que frequenta o hab_itm e o
finalismo (e de interaccionismo). habitat, as atitudes e a posição, o rei e a sua corte, o patrão e a
Para escapar às alternativas mortais nas quais se encerrou a su; empresa, o bispo e a sua diocese, é a mesma, então é a
i história ou a sociologia e que, tal como a oposição entre o história que comunica de certo modo com ela própria, se
,1 acontecimento•• e a longa duração ou, noutra ordem, entre os reflecte nela própria, se reflecte ela própria. A história «sujei-
1 «grandes homens» e as forças colectivas, as vontades singulares to» descobre-se ela mesma na história «objecto»; ela reconhece-
e os determinismos estruturais, assentam todas na distinção -se nas «sínteses passivas», «antepredicativas», estruturas es-
entre o individual e o social, identificado com o colectivo, truturadas antes de qualquer operação estruturante ou de
basta observar que toda a acção histórica põe em presença dois qualquer expressão linguística. A relação dóxica com o mundo
estados da história (ou do social): a história no seu estado natal, essa espécie de empenhamento ontológico que o senso
objectivado, quer dizer, a história que se acumulou ao longo do prático instaura, é uma relação de pertença e de posse na qual o
tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumeni"os, livros corpo apropriado pela história se apropria, de maneira abMiluta
teorias, costumes, direito, etc., e a história no seu estado e imediata, das coisas habitadas por essa hisrória w.
incorporado, que se tornou habitas. Aquele que tira o chapéu A relação originária com o mundo social a que estamos
para cumprimentar reactiva, sem saber, um sinal convencional acostumados, quer dizer, para. o qual e pelo qual somos feitos,
!1erdado da Idade Média no qual, como relembra Panofsky os
homens de armas costumavam tirar o seu elmo para manifesta~ ., N. Hartmann, Das Proh/em de., .1;âstigm Sâm, Berlim, 1933, p. 172.
rem as suas intenções pacíficas 8 • Esta actualização da história é "' É, ao que me parece, o que o Heidegger dos últimos escritos e
Merk;m-Pomy (espteia!mtnte em Le Viúble et tlm'!Sibíe) tentaram exprimir
*«placemenr» no rexto original (N.T.). n;1 linpm;.:cm d.1 onroln;.:ia, quer dizer, um aquém ~selvagem» ou ~bárba-
*• «révénememie!» no texto original (N.T.). ro~ n1 diria simpk~rnenn· pnitico ~ da relação intencional com o
~ E. Panofsky, E.rsais d'konologie, les thêmes h11111anúte.1 dam /"art d,· la ohJn ro.
RmaiJsance, trad. deC. HerbetteeB. Teyssedre, Paris,GallimarJ, 1967. p. l"i
84 HISTÓRIA RUFICADA E JNCORPOl?ADA CAPÍTULO IV 85

é uma relação de posse, que implica a posse do possuidor por tinha direito a fazer parte da «terceira entrada» e não admitia,
aquilo que ele possui. Quando a herança se apropriou do de forma alguma, ceder-lhe o lugar. O príncipe sentia-se
herdeiro, como diz Marx, o herdeiro pode apropriar-se da superior ao duque, o duque superior ao marquês e, no conjun-
herança. E esra apropriação do herdeiro pela herança, esta to, enquanro membros da «nobreza» nem podiam nem admi-
apropriação• do herdeiro à herança, que é a condição da tiam ceder perante os plebeus sujeitos ao imposto. Uma atitude
apropriação da herança pelo. herdeiro (e ~ue na~a tem de gerava a outra; pelos efeitos de acção e de reacção, o mecanismo
mecânico nem de fatal), realiza-se pelo efetto conJugad.o dos social equilibrava-se, estabilizava-se numa espécie de equilíbrio
condicionamenros inscritos na condição do herdeiro e da acção instável» 11 • Assim, um «Estado» que se tornou no símbolo do
pedagógica dos predecessores, proprietários apropriados. O absolutismo e que apresenta ao mais alto nível, para o próprio
herdeiro herdado, apropriado à herança, não precisa de querer, monarca absoluto («o Estado sou eu»), o mais directamente
quer dizer, de deliberar, de escolher, ou de decidir cons~iente- interessado nesra representação, as aparências do Aparelho, dissi-
mente, para fazer o que é apropriado, aquilo que convem aos mula na realidade um campo de lutas no qual o detentor do
interesses da herança, da sua conservação e do seu aumento: «poder absoluto" deve, ele próprio, envolver-se pelo menos
embora possa não saber nem o que faz nem o qu~ diz, ele quanto baste para sustentar as divisões e as tensões, quer dizer,
nunca fará nem dirá nada que não esteja em conformidade com o próprio campo, e para mobilizar a energia gerada pelo
as exigências da herança. Luis XIV está de tal forma iden~ific~- equilíbrio das tensões. O princípio do movimento perpétuo
do com a posição por ele ocupada no campo da gravitaçao que agira o campo não reside num qualquer primeiro motor
do qual é o sol que seria inútil tentar determin~r, entre tod_:15 imóvel - o Rei-Sol neste caso - mas sim na própria luta que,
as acções que se desenrolam no campo, quais as que sao sendo produzida pelas estruturas constitutivas do campo,
produto da sua vontade, como disce~ir, num_a sinfoni~, aquilo reproduz as estruturas e as hierarquias desre. Ele reside nas
que é produzido pelo maestro daquilo que e produzido pelos acções e nas reacções dos agentes que, a menos que se excluam
músicos. A sua própria vontade de dominar é produto_ do cam- do jogo e caiam no nada, não têm outra escolha a não ser lutar
po que ela domina e faz reverter para ele todas as coisas: «Os para manterem ou melhorarem a sua posição no campo, quer
privilegiados, presos nas redes que lançavam uns aos ou~~s, dizer, para conservarem ou aumentarem o capital específico que
mantinham-se, por assim dizer, uns aos outros nas pos1~oes só no campo se gera, contribuindo assim para fazer pesar sobre
respectivas, mesmo que só contra vontade suportass~~ o ~iste- rodos os outros os constrangimentos, frequentemente vividos
ma. A pressão que os inferiores ou os menos pnv_il~~1~os como insuportáveis, que nascem da concorrência 12 • Em suma,
exerciam sobre eles forçava-os ,a defenderem os seus pnvileg1os. ninguém pode lucrar com o jogo, nem mesmo os que o
E vice-versa: a pressão vinda de cima impelia os menos dominam, se se envolver no jogo, sem se deixar levar por ele:
favorecidos, para se libertarem dela, a imitarem aqueles que significa isto que não haveria jogo sem a crença no jogo e sem
tinham conseguido chegar a uma posição mais favorável; por as vontades, as intenções, as aspirações que dão vida aos
outras palavras, entravam no círculo vicioso de rivalidru:1e ~
11
precedências. O que tinha o direito de fazer parte da «pnme1ra N. Elias, La Jaciité de rour, Paris, Calmann-Lévy, 1974, p. 75-76
entrada»••, de apresentar a camisa ao rei, desprezava o que r,Ó ;rrad. porruguesa, A wcieáadt de cone, nad. Ana M. Alves, Lisboa,
Estampa, 1986] .
., para não perturbar o desenvo!vimento do raciodni~ mamemos a i i A tinica liberdade absoluta que o jogo concede é a liberdade de Jair

palavra «apropriação»: o sentido ê, evidentemente, acomodaça-0 a ou adtqua- d1J fer.o por meio de uma renúncia heróica a qual, a não ser que crie um
çâo a (N.T.). :mrro ~J~o, não obtém n ataraxia senão à cusra daquilo que é, do ponro de
•• a saber, no quarto do rei (N. T.). vista do in110 r du i/luii", umi1 morte social.
86 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPÍTULO IV 87

agentes e que, sendo produzidas pelo jogo, dependem da sua de orquestração sem maestro, só se realiza mediante a concor-
posição no jogo e, mais exaccamente, do seu poder sobre os dância que se instaura, como por fora e para além dos agentes,
títulos objectivados do capital específico ~ precisamente aqui- entre o que estes são e o que fazem, entre a sua «vocação»
lo que o rei controla é manipula jogando com a margem que o subjectiva (aquilo para que se sentem «feitos») e a sua «mis-
jogo lhe deixa 13 . são» objectiva (aquilo que deles se espera), entre o que a
Ao atribuirmos, como faz o mau funcionalismo, os efeitos história fez deles e o que ela lhes pede para fazer, concordância
de dominação a uma vontade única e central, ficamos impossi- essa que pode exprimir-se no sentimento de estar bem «no seu
bilitados de apreender a contribuição própria que os agentes lugar», de fazer o que se tem que fazer, e de o fazer com gosto
(incluindo os dominados) dão, quer queiram quer não, quer - . no sentido objectivo e subjectivo - ou na convicção
saibam quer não, para o exercício da dominação por meio da resignada de não poder fazer outra coisa, o que também é uma
relação que se estabelece entre as suas atitudes, ligadas âs suas maneira, menos feliz certamente, de se sentir destinado para o
condições sociais de produção, e as expectativas e interesses que se faz.
inscritos nas suas posições no seio desses campos de luta, A história objectivada, institucionalizada, só se torna
designados de forma estenográfica por palavras como Esvdo, «actuada» e actuante se o posto - mas também o instrumen-
Igreja ou Partido 14 . A submissão a certos fins, significações ou to ou o livro, ou até mesmo o «papel» socialmente designado
interesses tránscendentes, quer dizer, superiores e exteriores aos e. reconhecido, «assinar uma petição», «participar numa ma-
interesses individuais, raramente é efeito de uma imposição nifestação», ou ainda a «personagem» historicamente reco-
imperativa e de uma submissão consciente. É assim, porque os nhecida, o intelectual aventureiro ou a boa dona de casa 0
fins ditos objectivos, que só se revelam, no melhor dos casos, funcionário íntegro ou o «homem de palavra» - encont~r,
tarde demais e do exterior, nunca são apreendidos e postos como _se de um fato ou de uma casa se tratasse, alguém que 0
como tais de modo imediato, na própria prática, por nenhum ache interessante e nele veja vantagens, alguém que nele se
dos agentes, nem mesmo pelos mais interessados - aqueles reconheça quanto baste para se responsabilizar por ele e 0
que teriam mais interesse em fazer deles os seus fins conscientes assumir . " . Isto eraz com que tantas acções, e não só as do
- quer dizer, os agentes dominantes. A subordinação do funcionário identificado com a sua função 16, se apresentem
conjunto das práticas a uma mesma intenção objectiva, espécie como cerimónias por meio das quais os agentes - que nem por
13 isso são actores desempenhando papéis - entram na pele da
«O rei não se limita a observar a ordem hierárquica rransmitida
pelos seus predecessores. A etiqueta permite-lhe uma cena margem de personagem social que deles se espera e que eles esperam de si
manobra, de que ele se serve para determinar a parre de prestigio de cada próprios (é a voc~ção), e isto pela força desta coincidência
um, mesmo nos assuntos pouco imporrnnres. Ele rira proveito das disposi- imediata e total do habit11S e do hábito que faz o verdadeiro
ções psicológicas que reflectem as estrutums hierárquicas e aristocrâticas da monge. O criado de café não brinca aos criados de café, como
sociedade; ele tira proveito da rivalidade dos cortesãos, sempre à procura de
prestígio e de graças, para modificar, por meio de um doseamento hábil dos
sinais de favor, a posição e a consideração dos membros da sociedade de
corte em função d,ts necessidades do seu poder, para criar rensões internas is Pensamos em Marx quando evoca os revolucionários de 1789 e os
e deslocar a seu bel-prazer os cenrros de equilíbrio~ (N. Elias, op. ât., seus modelos romanos, e no que ele poderia rer dito se tivesse visto 1968 e
pp. 77-78). rodas as personagens directamente saídas de um filme de cine-dube
14 16
A teoria dos Aparelhos deve, sem dúvida, uma parte do seu sucesso • • _O fu°:cionário quando lembra que «o regulamento é o regulamento~
ao facto de permitir uma denúncia absrracta do Estado ou da Escola que reivindica a identificação, exigida pelo regulamento, da «pessoa» com 0
reabilita os agentes, consentindo que eles vivam no desdobramcmo da su;t regul~mento, contra aqueles que fazem apelo à «pessoa», aos seus sentimen-
prática profissional e das suas opções polírkas. ros, ;1 -~UH «rompnTn.~iio~, à sua «indulgência», etc.
í 88 HISTÓRIA RE/F/CADA E INCORPORADA

prerende Sartre•. Ao vestir a sua farda, feita de maneira a


exprimir uma forma democratizada e burocratizada da dignida-
CAPÍTULO IV

dizer, do seu destino social, função para a qual não se senre


89

ralhado e na qual, como diz o consumidor sartriano, não está


de dedicada do servidor da grande casa, e ao cumprir o disposto a «ficar preso», E para provar que a relação do
cerimonial da diligência e da solicitude -- que pode ser uma inrelectual com a posição de intelectual não é de outra narure-
estratégia para disfarçar um atraso, um esquecimento ou para za, e que o intelectual não se distancia mais da sua posição do
vender um mau produto - ele não se faz coisa (ou «em si»). O que o criado de café em relação ao seu posto e daquilo que o
seu corpo, em que esrá inscrita uma história, casa-se com a sua define em exclusivo - quer dizer, a ilusão da distância em
função, quer dizer, uma história, uma tradição, que ele nunca relação a todos os postos, - basta-nos ler como 11m documento
viu senão encarnada em corpos ou, melhor, nessas vestes antropológico 18 a análíse pela qual Sartre prolonga e «universali-
«habitadas» por um cerro habitus a que chamamos criados de za» a célebre descrição do criado de café: «Por mais que
café. O que não significa que ele tenha aprendido a ser criado desempenhe as funções de criado de cafê, só posso sê-lo em
de café imitando outros criados de café, deste modo constituí- modo neutralizado, como o actor é Hamlet, fazendo mecanica-
dos em modelos. Ele identifica-se com a função de criado de mente os gestos típicos da minha condição e visando-me como
café, como a criança se identifica com o seu pai (social) e criado de café imaginário por meio desses gestos romados como
adopra, sem sequer precisar de «fingir», uma maneira de analogon. O que eu tenro realizar é um ser-em-si do criado
mexer a boca ao falar ou de mexer os ombros a andar, que lhe do café, como se não estivesse nas minhas possibilidades
parece consrituir o ser social do adulto perfeito 17 • Nem sequer conferir aos meus deveres e aos direitos da minha condição o
se pode dizer que ele se toma por um criado de café; ele está seu valor e a sua urgência, como se não fosse da minha livre
demasiado apanhado pela função que lhe era naruralmente (isto escolha levanrar-me rodos os dias às cinco horas da manhã ou
é, socio-logicamenre) destinada (como, por exemplo, filho de ficar na cama, sujeitando-me a ser despedido. Como se pelo
pequeno comerciante que tem de ganhar o suficiente para se facto de eu dar existência a este papel, eu não o transcendesse
insralar por conta própria), para ter mesmo uma ideia dessa em rodos os sentidos, eu me não constituísse como um
distância. E basra que ponhamos um estudante na posição dele para-além da minha condição. No entanto, não há dúvida de
(como se vê, hoje em dia, à testa de certos restaurantes de que eu sou, em certo sentido, criado de café - em caso con-
«vanguarda») para esre marcar, por muitos sinais, a distância trário, não poderia eu, do mesmo modo, chamar-me diplomata
que prerende manter, fingindo precisamente desempenhá-la ou jornalisra?» 19 . Seria preciso determo-nos em cada pala-
com um papel, em relação a uma função que não corresponde à vra desra espécie de produto maravilhoso do inconsciente social
ideia (socialmente constituída) que ele tem do seu ser, quer que, graças ao duplo jogo consentido por um uso exemplar do
m fenomeno16gico, projecta uma consciência de intelectual
Ili' O passo célebre, de L'Être et le Néant diz: «II joue, i! s'amuse. Mais
numa prática de criado de café, ou no analog, ,i imaginário desta
à quoi donc joue+il? .. il joue à êlre garçon de café» (Ed. 1957, p. 99).
(o criado de café diverte-se, pois, fingindo ser criado de café) - (N.T.). prárica, produzíndo uma espécie de quimera social, monstro
17
Como bem mostra Carl Schorske, no caso de Freud, (C. Schorske,
Fi11-de-sikle Vien11a, PQ/itics and CTJÍtTJre. New York, A. Knopf, 1980,
pp. 181-203), os obsráculos «psicológicos» e os obstáculos sodais à
identificaçio estão inextricavelmente misturados e deveriam ser levados em
18
'
É um pouco injusto tomar para objecto de análise um texto querem
o mérito de conduzir à explicitação completa - daí o seu interesse - as
conta conjuntamente- em qualquer análise que tenha em vista explicar a dimensões mais encobertas, até mesmo mais secretas, de uma experiência
razão dos desvios em relação à trajectória inscrita no património social vivida do mundo social de que podemos ver cada dia as manifestações
(«falhanços» que podem evidentemente ser êxitos de outro ponto de vista, parciais ou enfraquecidas.
' J. P. Sartre, l.'i?trt tt lt Niant, Paris, Ga!limard, 1942, p. 100.
9
como quando o filho do banqueiro se faz pintor).
90 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPÍTULO IV 91
com corpo de criado de café e cabeça de intelectual 20: não será postos, a fazer mais propriamente do que feitos - feitos para
preciso ter a liberdade de ficar na cama sem se ser despedido serem feitos --, são feitos para aqueles que são e se sentem
para descobrir aquele que se levanta às cinco horas da manhã feitos para faze;em o seu posto, que não se sentem feitos para
para varrer as salas e pôr a funcionar a máquina do café ames da os postos já feitos e que, entre as velhas alternativas, escolhem
chegada dos clientes como libertando-se (livremente?) da liber- contra o já feito e por o que se faz, contra o fechado e pelo
dade de ficar na carna, correndo o risco de ser despedido? Reco- aberto* 22 . A definição destes postos mal definidos, mal deli-
nhece-se aqui a lógica -- a da identificação narcisista com um mitados, mal garantidos, reside, paradoxalmente, na liberdade
fantasma - , segundo a qual outros produzem hoje um operá- que consentem aos seus ocupantes de os definir e de os deli-
rio totalmente empenhado nas «lutas» ou, pelo contrário, por mitar introduzindo-lhes os seus limites, a sua definição, toda a
simples inversão, como nos mitos, desesperadamente resignado necessidade incorporada que é constitutiva do seu hahitus. Estes
a não ser senão aquilo que é, ao seu «ser-em-si» de operário, postos serão o que são os seus ocupantes ou, pelo menos,
desprovido da liberdade que é dada a outros por contarem, aqueles que, nas lutas internas da «profissão» e nas confronta-
entre as suas possibilidades, com posições como as de diploma- ções com as profissões afins e concorrentes, consigam impôr a
. a1·tsta " .
ta ou d e JOrn definição da profissão mais favorável àquilo que eles são. Isto
Significa isto que, nos casos de coincidência mais ou menos não depende somente deles ou dos seus concorrentes, quer
perfeita entre a «vocação» e a «missão» - entre a «procura» dizer, da relação de forças no interior do campo em que se
inscrita quase sempre de maneira implícita, tácita, até mesmo situam, mas também do estado da relação de forças entre as
l
;
secreta na posição e a «oferta» oculta nas atitudes - seria
inútil procurar distinguir o que nas práticas decorre do efeito
classes que, fora de qualquer estratégia consciente de «recupera-
ção», decidirá acerca do sucesso social partilhado pelos diferentes
das posições e o que decorre do efeito das atitudes introduzidas bens ou serviços produzidos na luta e pela luta com os concor-
1 pelos agentes nessas posições que são próprias para comand~ a rentes imediatos e da investidura institucional concedida àqueles
sua percepção e a sua apreciação da posição, logo, a sua maneira que os produzem. E a institucionalização das divisões «espon-
de a manter e, ao mesmo tempo, a própria «realidade» da tâneas» - que se opera pouco a pouco, à prova dos factos, quer
posição. Esta dialéetica nunca se mostra tão bem, paradoxal- dizer, das Janções (positivas ou negativas) de toda a espécie
mente, como no caso das posições situadas em zonas de
incerteza do espaço social e das profissões pouco «profissionali- • de «estes posros» até «abeno» a rradução esrá feita, quase exacta·
zadas», quer dizer, ainda mal definidas em relação tanto às mente, à letra - Sllhlinhado nosw (N.T.).
H Temos sempre uma filosofia espontânea da história; e a filosofia da
condições de acesso como às condições de exercício: estes
história da sua história, quer dizer, da sua posição e da sua trajectória no
espaço social. Esta espêcie de «intuição central», que permite que nos
zo Vemos o que se ganha em substituir o eu pessoal-impessoal que
situemos em relação às grandes a!rernativas «teóricas» ou «políticas» do
oferece tanras facilidades às prOjeçções fanrasmáticas por um sujeito social-
momenro (dererminismo/liberdade; «estrururalismo»/esponraneísmo;
mente caracterizado (os empreg.tcl.os de comércio, os quadros do secror
PC/esquerdismo, etc.), e em que se exprime muito direcramenre a relação
privado). com o mundo social, está na origem da visão do mundo social e das tomadas
21
Como tentei mostrar noutro lugar, esta propensão para dar a relação
de posição políticas, como também das opções aparentemente mais elemen-
~intelecrual» com a condição operária pela relação operária com esta
tares e mais inocenres da pcitica cientifica. (A científicidade da ciência
condição não desaparece necessariamenre pelo fucro de se ocupar, por um
social mede-s"e pela sua capacidade de constiruir estas a!temarivas como
\ momento, como observador ou como acror, a posição do operário (a
excepçâo é, para mim, o livro de Nicolas Dubost, F!ins sam fin: ~aris,
objçcto e de apreender as dererminantes .sociais das opções que se determi-
nam em relação a das. F. uma das dificuldades da escrita advém, no caso das
Maspero, 1979 - documento notável, enrre ourras coisas, sobre a log1ca da
riências sociais, Je <Jut· da ,leve tentar iludir e desmentir de antemão as
mistificação e da desmistificação da classe operâria).
kiruras que ap!iqurm i1 ,uuilisi· "~ ,i.:rdh:is que ela se esforça por objectivar).
92 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPITULO IV 93

que a ordem social inflige aos empreendimentos (subvenções, ilusão retrospecriva, como se «inventou a fórmula», - como
encomendas, nomeações, titularizações, etc.) - conduz ao que também se supreendem que elas possam existir como existem,
se revelará posreriormente como uma nova divisão do rrabalho rão bem adaptadas a fins 24 nunca formulados expressamente
de dominação, mas cujos desígnios não poderiam ser concebi- pelos seus fundadores,
dos pelo mais consciente ou pelo mais inspirado dos tecnocra- Mas os efeiros da dialécrica enrre as propensões inseriras nos
tas 23 . O mundo social esrá assim povoado de insrituições que habitus e nas exigências implicadas na definição do posto não
ninguém concebeu nem quis, cujos «responsáveis» aparentes são menores, embora sejam menos aparentes, nos secrores mais
não só não sabem dizer -- nem mesmo mais tarde graças à regulados e rígidos da estrurura social, como as profissões mais
anrigas e as mais codificadas da função pública. É assim que
n Seria (será) preciso analisar nesta lógica roda a transformação das
relações entre as fracções dominantes e as fracções da classe dominante que
algumas das características mais marcadas da conduta dos
se operou em França desde há vinte anos, quer dizer, a redução progressiva, pequenos funcionários, quer se rrate da tendência para o
pelo efeito de diferentes factores, da autonomia relativa do campo intelec- formalismo, feiticismo da pontualidade ou da rigidez em
'
1 tual, redução cujo indicador mais significativo ê, sem dúvida, o apareci- relação ao regulamento, ao invés de ser produto mecânico da
menro de um mecenata b1mxrdtiCfi ·e, correlarivamente, o peso crescente (pelo organização burocrática, são a manifestação, na lógica de uma
menos numericamente) dos intelectuais ligados directamente e, por vezes,
administtarivamente, a uma procura butoctática. O efeito principal de um
situação particularmente favorável à sua passagem ao acto, de um
financiamento directo da pesquisa controlado por funcionários especializados sisrema de atitudes que se ma11ifesta rambém fora da situação
poderia ser o de ter habituado os investigadores a reconhecerem uma furma burocrárica e que bastaria para predispor os membros da
de dependência dincra em relação a autoridades e a exigências txternas ao pequena burguesia às virtudes exigidas pela ordem burocrárica
prôprio campo de produção. Este efeito sô podia ser obtido com a e enaltecidas pela ideologia do «serviço público», probidade,
cumplicidade dos investigadores ou, mais exacramente, graças à cumplici-
dade entre os investigadores (ou pelo menos, aqueles que, entre eles,
minúcia, rigorismo e propensão para a indignação moral 25 .
tinham mais interesse na hereronomia -· em relação a qualquer poder Esra hipórese enconrrou uma espécie de verificação experimen-
exterior) e a vanguarda da tecnocracia da ciéncia cuja oposição (socialmente ral nas rransformações surgidas, desde há alguns anos, em
fundamentada) os sectores dominantes da burocracia predispunha a favorecer diferentes serviços públicos, e em particular nos Correios,
a instautação, perante o discurso tecnocrático, de um «discurso te<:nocríti- ligadas ao aparecimento, entre os jovens funcionários subalrer-
co» (como diz Jean-Claude Chamboredon). Para passar mais além e romper
com as filosofias da história que, ao situarem o processo histôrico muito alto
nos - vítimas de uma desqualificação esrrurural - , de
(ou muiro profundo), produzem o efeito de pôr fota de jogo os agentes e os arirudes menos conformes às expectarivas da instituição 26 . Só
seus desprendimentos insensíveis e frequentemente imperceptíveis, seria se pode, pois, compreender o funcionamento das insriruições
preciso analisar ao mesmo tempo as mudanças estruturais (como as que burocráricas se se ultrapassar a oposição ficrícia enrre uma visão
aconteceram no campo das escolas superiores e na reprodução das divisões no «estruturalisra», por um lado, que rende a procurar nas carac-
seio da classe dominanre) e a sêrie infinita dos diferenciais SIJ(iais que, ao
acumularem-se imperceptivelmente, dão origem a um estado toralmente
terísricas morfológicas e estruturais o fundamenro das «leis de
novo do campo intelectual e das suas relações com o campo do poder bronze» das burocracias, consideradas como mecanismos capa-
económico e político. Seria preciso analisar os deslizes insensíveis que
conduziram, em menos de trinta anos, de um esra.do do campo imeleçrua! H É o que mosrra bem, por exemplo, Jean Tavares na sua análise
em que era tão necessário ser~se comunista que não era preciso ser-se (a publicar) da génese e do funcionamenro do «Cenrre catholique des inte-
marxista a um estado em que era tão chique ser-se marxista que até se podia
1 ~ler» Marx, para se chegar a um estado em que a última palavra da moda é
!cctue!s frança.is».
L< Cf. P. Bourdieu e J.C. Passeron, La reprod,1etion, i/emmts pm1r une
de se ser indiferente a tudo, e em primeiro lugar, ao marxismo. (Quantas thhirie d11 ry.rtéme d"en.1riw1rmmtr, Paris, Minuit, 1970, p. 227.
histôrias de vida nesta hisrória! Quanta necessidade nestas I ihetda,b ;ft Cf. P. Bnurdicu, /.,, diiti11,1in11, critiqffe soci4fe d1f j11gemmt, Paris,
sucessivas!). Minuit, 1979, pp. l'\9-16'

l
r 94 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA

zes de estabelecet os seus ptóptios fins e de os impot aos


CAPÍTULO IV

consciente de certos agentes ou com a cumplicidade inconscien-


95

agentes e, pot outro lado, uma visão «interaccionista» ou te das suas atitudes - o que deixa um lugar para a eficácia
psico-sociológica, que tende a considerat as práticas butoctáti- libertadora da tomada de consciência. Quanto mais nos afasta-
cas como produto das estratégias e das interacções dos agentes, mos do funcionamento normal dos campos como campos de
ignorando tanto as condições sociais de produção dos agentes lutas para passar a estados-limites, sem dúvida nunca atingi-
(dentro da instituição mas também fora dela) como as condi- dos, nos quais, com o desaparecimento de toda a luta e de toda
ções institucionais do exercício da sua função (como as formas a resistência à dominação, o campo se torna tígido, reduzindo-
de conttole sobre o recrutamento, a promoção ou a renumera- -se a uma «instituição totalitária» no sentido de Goffman ou,
ção). É verdade que a especificidade dos campos burocráticos em sentido rigoroso, a um aparelho, que está à altura de tudo
como espaços relativamente autónomos de posições institucio- exigir sem condições nem concessões e que, nas suas formas
nalizadas, reside na capacidade, que constitui essas posições extremas - quartel, prisão ou campo de concentração - ,
(definidas na sua categoria, na sua alçada, etc.), de conseguir dispõe dos meios para aniquilar simbolicamente e praticamente
que os seus ocupantes produzam todas as práticas inscritas na o «velho homem», tanto mais a instituição tende a consagrar
1 definição do posto, através do efeito ditecto e visível - logo agentes que tudo dão à instituição (ao «Partido» ou à «Igreja»,
1 geralmente associado â ideia de burocracia - dos regulamen-
tos, das ditectivas, das circulares, etc., e, sobretudo, pot
pot exemplo) e que realizam esta oh/ação de maneira tanto mais
fácil quanto menos capital possuírem fora da instituição, logo,
intermédio do conjunto de mecanismos de vocação-cooptação quanto menos liberdade tiverem em relação a ela e em relação ao
que contribuem pata ajustar os agentes ao seu posto ou, mais capital e aos ganhos específicos que ela oferece 27. O apparatchik,
precisamente, as suas atitudes às suas posições; e, em seguida, que tudo deve ao aparelho, é o aparelho feito homem e
de conseguir que a essas práticas, e somente a essas, seja podem-se-lhe confiar as mais altas responsabilidades pois ele
reconhecida uma certa autoridade estatutária. Mas, mesmo nada pode fazet em ptol dos seus interesses que contribua eo ipso
neste caso, é tão errado tentar compteendet as práticas a pattit pata defender os interesses do aparelho; tal como o oblato, ele
da lógica imanente do espaço das posições.(definidas, em dado está predisposto a proteger a instituição, com a mais firme
momento, quet dizer no termo de uma certa história, no seu convicção, dos desvios heréticos daqueles a quem um capital
número, no seu estatuto jurídico, etc.), como tentat explicá-las adquirido fota da instituição autoriza e impele a distanciarem-
unicamente a pattit das atitudes «psico-sociológicas» dos agen- -se das crenças e das hierarquias internas 28 . Em suma, nos
tes, sobretudo separadas das suas condições de ptodução. Na
realidade, trata-se aqui ainda de um caso patticulat de encon- n Cf. J. \rerdês-1.eroux, «L·an: de parti; le pan:i communiste français
tro, mais ou menos «bem sucedido», entte as posições e as er ses peintres (1947-1954)», ActeJ de la r«herr:he en Jcienm wâales, 1979,
atitudes, quer dizer, entre a história objectivada e a história n. 0 28, pp. 33-55, e os seus trabalhos (a publicar) sobre as relações entre o
incorporada: a tendência do campo burocrático para «degene- Partido Comunista e os «seus» intelectuais.
rar» em instituição «totalitária», que exige a identificação [Cf., por exemplo, ~une insritucion rota!e auto-perpéruée: le parti
communiste français» e «Les invariants du pani communisre français»,
completa e mecânica (perinde ac cadaver) do «funcionário» com a Acw de la recherche en sâenas sociales, 1981, n. 0 36-37, pp. 33-81).
função, do apparatchik com o aparelho, não está ligada de zx As remadas de posição dos diferenres partidos e a sua evolução no
maneira mecânica aos efeitos morfológicos que a dimensão e o decurso do tempo compreendem-se ramo melhor, a partir unicamente da
número podem exercer sobre as estruturas (através, por exem- história interna do corpo dos membros permanentes e da lei que tende a
plo, dos constrangimentos impostos à comunicação) e sobre as subordinar o êxirn no aparelho à conformidade com a lógica do aparelho,
quanto mais importante for - como no caso do Partido Comunista Francês
funções; ela só se poderá realizar se contat com a colaboração Mt1rn!rnt•me - a parte dos mandantes inertes e inoperantes por estarem
r 96 HISTÓRIA REIFICADA E ENCORPORADA

casos mais favoráveis a uma descrição mecanicista das ptáticas,


CAPÍTULO IV

das suas condições de trabalho e que os faz ape_garem-s,e ~o seu


97

a análise descobre uma espécie de ajustamento inconsciente das ofício (em todos os sentidos do termo) por intermédio das
posições e das atitudes, verdadeiro ptincípio do funcionamento própr1as liberdades (ínfimas m~itas vezes ~ quase sempre
da instituição justamente naquilo que lhe confere a aparência «funcionais») que lhes são concedidas e, também, claro, sob o
trágica de máquina infernal. efeito da concorrência que se gera nas diferenças (em relação aos
Deste modo as condições de trabalho mais alineantes, mais OS•, aos emigrantes, às mulheres, etc.) consti~utivas do espaço
repugnantes, mais próximas do trabalho forçado, são ainda profissional que funciona como campo;· Com efeito, exceptuando
apreendidas, assumidas e suportadas por um trabalhador que as as situações-limites, próximas do ttabalho forçad?, vemos que a
percebe, as aprecia, as ordena, as acomoda e se lhes acomoda vetdade objectiva do trabalho assalariado, quer dizer, a explo~a-
em função de toda a sua história própria e até mesmo da da sua ção, se torna possível, em parte, porque a verdad.f __ sub_iecuva
descendência. Se a descrição das condições de trabalho mais do trabalho não coincide com a sua verdade._ obJectiva. A
alienantes e dos trabalhadores mais alienados soa frequente- próptia indignação que ela suscita é testemunha ,disso, já que a
mente a falso - e, antes de mais, porque ela não permite que experiência profissional, na qual o trabalh~o_r so, es~~ do seu
se compreenda que as coisas sejam e continuem a ser o que são trabalho (e do seu meio de trabalho) o salano, e vivida como
- é porque, funcionando na lógica da quimera, ela não mutilada, patológica e insustentave , 1 po~~ue e, d esuma?a." •
consegue explicar o acordo tácito estabelecido entre as condi- O acto de força objectivante necessano para const1tutr o
ções de ttabalho mais desumanas e os homens que estão trabalho assalariado na sua verdade objectiva de trabalho explo-
preparados pata as aceitar por terem condições de existência rado, fez esquecer àquele que o cometia ~ue .esta verdade teve
desumanas. As atitudes inculcadas pela experiência inicial do de ser conquistada contra a verdade sub1ect1va .do .trab~lho a
mundo social, a qual, em cenas conjuntutas, pode predispor os qual só no limite se encontra com a verdade ob1ecuva. E este
jovens trabalhadores a aceitarem, ou mesmo a desejarem, a limite que o ptóprio Marx evoca quando observa que o des~pa-
entrada no mundo do trabalho, identificado com o mundo dos recimenro das dispatidades entre as taxas de lucro supoe_ a
adultos, são reforçadas pela própria experiência do trabalho e mobilidade da força de trabalho, a qual por seu lado supoe,
pot todas as ttansfotmações das atitudes que ela implica (e nas entre outras coisas, «a indiferença do operário em relação ao
quais se pode pensar por analogia com as que Goffman descreve conteúdo (lnhalt) do seu trabalho; a redução, levada aos extre-
como constitutivas do processo de «asilização» ): seria preciso mos do trabalho a trabalho simples, em todos os domínios da
evocat aqui todo o processo de investimento que leva os trabalha- produção; o abandono, pot parte _d~ todo: os trabalhadores, de
todos os preconceitos de vccação profmtonal» · . o, q~e deste modo
0
dores a contribuírem para a sua própria exploração pelo pró-
ptio esforço que fazem para se aproptiarem do seu trabalho e se lembra, é que existe um investimento no próprio trabalh~ que
faz com que o trabalho proporcione um ganho especifico,
irredutível ao lucro monetário: este «ganho" do trabalho, q~e
condenados à fide, implícita e à enrrega de si próprios, ou actuantes mas tem- constitui em parte o «interesse» pelo facto de trabalhar e que e,
porários (cf. P. Bourdieu, (Jp. ât .. pp. 500 S@>.): esra «maioria silenciosa», ao
mesmo rempo real e ausente, é a garantia de um «obreirismo» que é a arma
com que sonham - sobretudo no seu uso contra a critica intelectual - os
membros permanentes de origem operária ou pequenq-burguesa, ou os intelec- • OS = operário especializado. . .
:'> P. Bourdieu e ai., 1·r-avail et trai-aille,rrJ m Aíg'::e, 1:1-n5:"La Haye,
tuais que, segundo a lei fundamental, propendem tanto mais a participar mm
eles num processo de legitimaçáo mútua quanto menor é o capital inte!enual
, l'",l-, p · Bourdieu ' AJ:;érie
Mouron & e1c. :,11., ,
60, Paris, Mmu1t, 1977-
. · rd
de que dispõem, encontrando, ao mesmo rempo, maiores ,i.tanhi>s objc•qivns e '" Klrl Marx, Lr C,1j11MÍ, Ili. 2.ª secção, cap. X, Paris, Galhma ,
subjectivos na repressão dos inre!ecruais mais indina,.ltm li a11mmH11in. J<)(,8 \BibL de 1!1 pJi-imkJ. i<nm• li. P· 988.
r 98 HISTÓRIA REIF!CADA E INCORPORADA
CAPÍTULO IV

do trabalho industrial no sentido limite indicado por Marx,


isto é, no sentido do desaparec<mento do trabalho «interessan~
99

por outra parte, efeito da ilusão cons, itutiva da participação


num campo, contribui para tornar o trabalho aceitável para o te», da «responsabilidade» e da «qualificação» (com todas as
trabalhador apesar da exploração; ele contribui até, em certos hierarquias correlativas) é percebida, apreciada e aceite de
casos, para uma forma de auto-exploração. Este investimento modo muitO diferente, consoante se trate daqueles que, pela
na própria acrividade, que faz com que esta possa (no caso do !illa antiguidade na classe operária, pela sua qualificação e os
artista ou do intelectual, por exemplo) ser vivida como livre e seus «privilégios» relativos, são levados a defender «as conquis-
desinteressada em referência a uma definição restrita do interes- tas», quer dizer, o interesse pelo trabalho, a qualificação mas
se, identificada com o ganho material, com o salário, supõe de também as hierarquias e, deste modo, uma forma de ordem
facto um acordo tácito infraconscienre entre as atitudes e a estabelecida; ou daqueles que, nada tendo a perder por não
posição. Este ajustamento prático 3 1, condição do investimento, serem qualificados e já estarem próximos de uma realização
do interesse (por oposição à indiferença) pela actividade exigida popular da quimera populista (como os jovens que passaram
pelo posto, acha-se, por exemplo, realizado quando atitudes mais tempo no sistema escolar do que os mais velhos), são mais

\ como aquelas a que Marx chama «os preconceitos de vocação


profissional» e que se adquirem em certas condições (a heredi~
dados à radicalização das lutas e à contestação de todo o
sistema; ou ainda daqueles que, também eles totalmente des-
tariedade profissional, por exemplo), encontram a!i condições providos - como os operários de primeira geração, as mulhe-
da sua actualização em cenas características do próprio traba- res e, sobretudo, os imigrantes 34 - , têm uma capacidade de
lho, como uma certa liberdade de jogar com a organização das tolerância à exploração que parece ser de outra época 35 . Em
tarefas ou cenas formas de concorrência no espaço do trabalho suma, nas mais extremas condições de constrangimento, as
(prémios ou simples privilégios simbólicos, tais como os que
são atribuídos aos operários mais velhos nas pequenas empresas
familiares) 32 . coisas que um operário preso à sua cadeia de produção durante dez anos?
As diferenças nas atitudes, tal como as diferenças de E, no entanto, o OP também se revolta.» (N. Dubost, op. cit., p. 65).
_q Ainda neste caso, em graus diferentes segundo a sua origem
posição (às quais elas se acham frequentemente associadas) estão geográfica e social e o tempo de imigração (cf. A. Sayad, "Les trois "'âges··
na origem de diferenças de percepção e de apreciação e, por de l"immigration algêrienne en Fram:e», in Actes de la recherche en Jciences
isso, de divisões bem reais 3 ·'. É assim que a evolução recente mâafeJ, 1977, n. 0 15, pp. 59-79).
-'~ As divisões aparenres entre os sindicatos encobrem frequentemenre
1
' Esra correspondência entte as atitudes e a posição nada tem, aquelas divisões com que se debarem (H diferenres sindicaros e que os
evidememente, da submissão «psicohigica», por vezes descrita como «frui~ dirigentes apreendem e tratam de maneira diferente em função da sua própria
ção» («desfrutar do fascismo») 9ue permite imputar aos dominados a história e sobretudo em função da rradição na sua organização. (Não há
«responsabilidade» da opressão que eles sofrem ("o poder vem de baixo»). dúvida de que a percepção e a apreciação das diferentes fracções da classe
·''- A lógica da mobilização a 9ual !eva a privilegiar aquilo que une em operária - e, em particular, do proletariado e do subproletariado- e da sua
detrimemo daquilo que divide não explica compktamente a tendência das possivel contribuição para a acçfü;i revolucionária dependem estreitamente da
organizações de trabalhadores para ignorar as diferenças ligadas à rrajectôria. posição e da trajectória sociais daqueles 9ue, inrelectuais ou militantes, têm
É toda a lógica da politizaçã{J como esforço para «desprivatizar» a experiência de tomar posição relativamente a esres problemas, e da afinidade que eles rêm
da exploração e tambtm a habi~uaç--:io a um modo de pensamento mecaniâs/4 com a classe operária «estabelecida» e com as suas reivindicações ou com a
que levam as anâlises mais subtis e mais rigorosas das condições de trabalho dasse operâria «instável» e com as suas revoltas; de modo que os debates
1 {cf., por exemplo, CFDT. ÚJ dégâts d11 progrês, Paris, Ed. du Seuil, 1977) a
reduzirem o trabalhador ao seu posto de trabalho, ignorando tudo o que ele
~(lbrc n «emburguesamento» da classe operária e outras questões de filosofia
d,1 história revelam mais acerca daqueles que neles se envolvem do que acerca
deve ao seu passado e rudo o que ele é fora da sua existência profissional. do objcno aparente do seu discurso (cf. P. Bourdieu, «Le paradoxe du
33
~Como pode um OP de manutenção, que pensa nn seu rrabal!m 1· s,~inlni,:ut·•· . .\"11(i,,/11f.:1" ti ruúf/h, XI, Abril de 1979, pp. 85-94).
que, por vezes, gosta dele, censurar o trabalho rnpir;i!ista pd,1, !!lPS!Hu,
100 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPÍTULO IV 10 l

mais favoráveis aparentemente à interpretação mecanicista que suporia a destruição, a neutralização ou a reconversão de uma
reduz o trabalhador ao seu posto de trabalho, que o deduz parte maior ou menor da herança histórica -- que é também
direcramente do seu posto de trabalho, a actividade é bem o um capital - , e mesmo mais difíceis de pensar, porque os
relacionar de duas histórias, e o presente o encontro de dois esquemas de pensamento e de percepção são, em cada momen-
passados 36 . to, produto das opções anteriores transformadas em coisas 37 .
Wesen iJt waJ gewesen ist. Podemos compreender que o ser Qualquer acção que tenha em vista opor o possível ao provável,
social é aquilo que foi; mas também que aquilo que uma ~ez isto é, ao porvir objectivamente inscrito na ordem estabelecida,
foi ficou para sempre inscrito não só na história, o que é óbv10, tem de contar com o peso da história reifkada e incorporada
mas também no ser social, nas coisas e nos corpos. A imagem que, como num processo de envelhecimento, rende a reduzir o
do porvir aberto, com possíveis infinitos, dissimulou que ~da possível ao provável.
uma das novas opções (mesmo tratando-se das opções não-feiras Não há dô.vida que é preciso ter sempre presente - contra
do deixar-fazer) contribui para restringir o universo dos possí- todas as formas de determinismo tecnológico - que as poten-
veis ou, mais exactamente, para aumentar o peso da necessida- cialidades oferecidas pela lógica relativamente autónoma do
de instit11ída nas coisas e nos corpos, com a qual deverá contar desenvolvimento científico sô podem advir à existência social
uma política orientada para outros possíveis e, em particular, enquanto técnicas - e intervir, se for caso disso, como
para rodos aqueles que foram, a cada i_nomento, afasra~os. O motores da mudança económica e social na medida em que os
processo de instituição, de estabelenmento, quer _dizer, a seus efeitos económicos e sociais parecerem conformes aos
objectivação e a incorporação como acumulação nas coisas e nos interesses dos detentores do poder económico, quer dizer,
corpos de um conjunto de conquistas históricas, que trazem a apropriados a contribuirem para a valorização máxima do
marca das suas condições de produção e que rendem a gerar as capital nos limites da reprodução das condições sociais da
condições da sua própria reprodução (quanto mais não fosse dominação necessária à obtenção dos ganhos Js. Mas não deixa
pelo efeito de demonstração e de imposição das necessi~ad_es
que um bem exerce unicamente pel_a sua existência), a~1qm~a 37
Assim, as irrupções, atravês das revoltas estudantis, de novas formas
continuamente possíveis laterais. A medida que a história de lura, atribuindo maior relevo às manifestações simbôlicas, fez aparecer
avança, estes possíveis tornam-se cada vez mais improváveis, retrospecrivamenre os limites (até as criticas) que o movimento operário, de
algum modo prisioneito da sua confiança em formas de acção experimenta-
mais difíceis de realizar, porque a sua passagem à existência
das, tinha imposto aos seus projectos.
Jt> Poder-se-ia, da mesma forma, descrever nesta Jôgica a relação enrre Js Devemos abster-nos, mais uma vez, de ler este processo numa

os operârios e as organizações sindicais ou polirica<;: rambê_m ~qui o presente lógica puramente teleolôgi<a, como faz cena crfrica ingênua e falsamente
é O pôr-em-presença de dois passados que são, eles propnos, em parte, radical da ciência: a ciência não serviria tão bem a ind\lsrria (e até, sendo
produto da sua inreracção passada (ê assim que, por exemplo, qua~do se caso disso, a indúsrtia de guerra) se todos os investigadores (e sobretudo
mede empiricamente a consciência que os operários de uma dada socied~e aqueles que, pela sua fone competência, quer dizet, pelo seu capital
podem rer, em dado momento, da divisão em classes ou da represenraçao específico, são levados a uma grande distância em relação às pressões
que rêm do uabalho, dos seus direitos -:-- em n:iatêria de_ acidentes de externas) estivessem directamente orientados para os fins que as suas
descobertas poderão vir a servir (da mesma forma, devemos abster-nos de
J trabalho, de despedimentos, erc. - se regista o efeuo da ~ça~ passada d~s
sobrestimar, como faz a visão criprocrática, a capacidade dos dirigentes para
sindicatos e dos partidos e se pode pensar que uma históna diferente teria
avaliarem racionalmenre os efeitos económicos e sobretudo sociais das
1 produzido representações e -- num domínio em qu~ a rep~~sentação
contribui largamente para consriruir a realidade - reah~des diferentes).
Por outras palavras, a representação que eles têm da sua ~~i~ão depende da
invenções bem recebidas). Os investigadores não conhecem nem reconhecem
fins a não ser os intere.ru.l' {vividos como desinteressados e implicando,
relação entre as tradições que as organizações (e as suas divisoes) oferecem e frequentemente, a indifcrern;a em relação âs utilizações técnicas possíveis)
as suas atirudes. q!l!;' St' ;i:t•rnm na conrorrf-o( in 1m srin do campo relativamente autônomo <la

l
r 102 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA

de ser certo que, como resultado de uma longa série de opções


CAPÍTULO IV

formação das estruturas 39 . As situações revolucionárias e pós-


103

sociais que se apresenta em forma de um conjunto de necessida- -revolucionárias oferecem numerosos exemplos de desvios, pa-
des técnicas, a herança tecnológica tende a tornar-se num téticos e grotescos, entre a história objectivada e a história
verdadeiro destino social, que exclui não só certos possíveis ainda incorporada, entre habitus feitos para ourros postos e postos
no esradó de possíveis mas também a 1mssibilidade real de feitos para outros habitm, os quais também se observam, numa
excluir muitos dos possíveis já realizados. Basta pensar nas escala menor, em qualquer ordem social, e muito especial-
centrais nucleares que, uma vez construídas, tendem a impor-se mente nas zonas de incerteza da estrutura social. Em todos
não só pela sua função técnica mas também por todas as cumpli- estes casos, a acção é uma espécie de luta entre a história
cidades que encontram naqueles que nelas ou nos seus produtos objectivada e a história incorporada, luta essa que dura por
têm interesses. Podemos também evocar a opção que se esboçou vezes uma vida inteira para modificar o posto ou modificar-se a
por volta dos anos sessenta, para favorecer o acesso à propriedade si mesmo, para se apropriar do posto ou ser por ele apropriado
imobiliária, para grande proveito dos bancos e, em particular, (nem que seja no próprio esforço para se apropriar dele,
dos inventores do «crédito personalizado», em lugar de se seguir transformando-o). A história faz-se nesta luta, neste combate
uma política de habitação social (bairros sociais•, etc.) e que obscuro em que os postos moldam de modo mais ou menos
teve como efeito, entre outras coisas, ligar uma fracção dos completo os seus ocupantes que se esforçam por se apropriar
membros da classe dominante e das classes médias à ordem deles; em que os agentes modificam de maneira mais ou menos
política que lhes parecia mais adequada a garantir o seu capital. completa os postos, talhando-O$ à sua medida. Ela faz-se em
Assim, quanto mais um poder dura, maior é a parte irreversível todas as situações em que a relação entre os agentes e o seu
com a qual terão de contar aqueles que conseguirem derrubá-lo. posto assenta num mal-entendido: é o caso daqueles responsá-
É isto que bem se vê nas situações pós-revolucionárias em veis das quintas autogeridas, daqueles ministros, daqueles
que a história reificada e incorporada opõe a sua resistência empregados que, a seguir à libertação da Argélia, entravam
surda e dissimulada às atitudes e às estratégias reformistas ou no posto e na pele do colono, do director, do comissário de
revolucionárias, elas próprias em grande parte definidas pela polícia, deixando-se assim dominar, no próprio acto de apro-
mesma história que tencionam combater. A história instituída priação, por uma história estrangeira 40; é o caso daqueles
vence necessariamente as revoluções parciais ou, mais exacta-
3
mente, 11nilaterais: as transformações mais radicais das condi- ~ Se é vetdade que a história pode desfazer o que a história fez, tudo
se passa como se fosse preciso tempo para destruir os efeitos do tempo; como
ções de apropriação dos instrumentos de produção dão à se as acelerações artificiais da histótia - que a vontade política pode, no
história incorporada a possibilidade de reintroduzir insensivel- melhor dos casos, ptoduzir refotçando decisivamente as tendências imanen-
mente as estruturas objectivas (económicas e sociais), de que tes que são confotmes aos seus objectivos ou neutralizando pela violência as
são produto; pelo contrário, é sabido o que acontece às políticas que vão em sentido oposto - tivessem como contrapartida os vestígios por
que esperam de uma simples conrnrsão das atitudes uma rrans- elas deixados nas esttuturas económicas e sociais (butocratização totalitária)
e nos cérebros as quais, como se vê no caso da URSS, são tanto mais
duradoitas (e tanto mais funestas, do próptio ponto de vista dos objectivos
Jedarados) quanto maiot tiver sido a violência exercida (cf. M. Lewin,
pesquisa; e podem, com plena (boa) consciência, denunciar como desvioJ «L'État et !es classes sociales en URSS, 1929-1933, in Actes dt la rechtrche en
mdignos as utilizações feitas das suas descobertas as quais nascem do enc1,111m .1áma:, s1;ciale,, 1976, n. 0 1, pp. 2~31.
não desejado entre certos ptodutos do campo cientifico e as exigências da "'A imposição explícita de uma histótia estrangeira - «Os Gauleses,
indústtia. nossos antepassados» - não passa do limite extremo, e deste modo,
• «H.L.M.» no text◊ original (Habitations à loyer modéré = casas de ratirnrural, de formns muito mais insidiosas de imposição de uma outra
renda limitada) (N. T. ). hiMurin, através d11 llnJ,tun, dn ndrnrn e também através dos objectos, das
104 HISTÓRIA REIFICADA E INCORPORADA CAPiTVLO IV 105

membros permanentes da C.G.T, * que, como bem mostra Pierre encontro fortuito e ignorado de séries históricas independentes.
Cam, se «reconhecem» perfeitamente, devido às suas atitudes de A hi!itória é também, como se vê, uma ciência do inconsciente.
classe, no «Conseil de Prud'hommes» ••, uma dessas numerosas Ao trazer à luz tudo o que está oculto tanto pela doxa,
instituições criadas no século XIX por iniciativa das fracções cumplicidade imediara com a própria história, como pela
«esclarecidas» da classe dominante na esperança de «reconciliar» o alodoxia, falso reconhecimento baseado na relação ignorada
patrão e o operário: a justiça tipicamente paternalista proposta por entre duas histórias que leva a reconhecer-se numa outra
este <,tribunal familiar», explicitamente mandatado para exercer história, a de uma outra nação ou de uma outra classe, a
uma autoridade «paternal» e para regular as de!>avenças por meio pesquisa histórica fornece os instrumentos de uma verdadeira
do conselho e da conciliação, à maneira de um conselho de tomada de consciência ou, melhor, de um verdadeiro autodo-
família, e des-$0Cializando o conflito, encontra nos operários per- mínio. Caímos constantemente na armadilha de um sentido
manentes a expectativa de uma jurisprudência clara e rápida e nos que se faz, fora de nós, sem nós, na cumplicidade incontrolada
seus representantes sindicais «a preocupação de dar uma imagem que nos une, coisa histórica, à história coisa. Ao objectivar o
honrosa da classe operária» 41 . Deste modo, a história reificada que há de impensado social, quer dizer, de história esquecida,
aprovei ta-se da falsa cumplicidade que a une à história incorporada nos pensamentos mais vulgares ou nos mais cultos - proble-
para se apropriar do portador desta história, como fazem os máticas atacadas de necrose, palavras de ordem, lugares-
dirigentes de Praga ou de Sófia, quando reproduzem uma versão -comuns - a polémica científica, armada com tudo o que a
pequeno-burguesa dos fastos burgueses. Estas astúcias da razão his- ciência produziu, na luta permanente contra si própria e por
tórica .ii têm como princípio o efeito de allodoxia o qual resulta do meio da qual ela se supera a si própria, oferece àquele que a
exerce e que a ela se submete uma probabilidade de saber o que
diz e o que faz, de se tornar verdadeiramente no sujeito das
instituições, das modas (seria pteóso analisar nesta lôgica as vias mais suas palavras e dos seus actos, de destruir tudo o que existe de
dissimuladas do imperialismo americano).
1
~ P. Cam, S//Cialogie de.r ('f)nJÚÚ de pmd"hmn111es, Paris, Êcole des Hautes
necessidade nas coisas sociais e no pensamento do social. A
Êtudes en Sciences Sociales, tese de terceiro ciclo, 1980, e Un trib1111al liberdade não consiste em negar _!fiagicamente esta necessidade,
fami!ial. /e comei/ de pmd"hommes (a publicar). [Cf. infra capitulo sobre «A mas sim em conhecê-la, o que em nada obriga nem a autoriza a
força do direito», nota 31]. reconhecê-la; o conhecimento científico da necessidade encerra
,i Seria necessário acrescentar todas as que as homo!ogias estruturais
a possibilidade de uma acção que tem em vista neutralizá-la,
entre campos diferentes produzem e, em particular, todos os equivocos
favorecidos pela homologia de posição entre os dominantes-dominados ( □o logo, uma liberdade possível - quando o desconhecimento•
campo da classe dominante) e os dominados (no campo das classes). Uma da necessidade implica a forma mais absoluta de reconhecimen-
forma particularmente exemplar da comunicação no mal-entendido que a t0: enquanto a lei é ignorada, o resultado do deixar-fazer,
homologia de posição na diferença de condição torna possível ê a que se cúmplice do provável, aparece como um destino; quando ela é
estabelece entre indivíduos que, embora situados em classes diferentes e, conhecida, ele aparece como uma violência.
assim, fundamenta!meme separados, têm no entanto de comum o estarem em
posição instâvel nas classes respectivas-· o que os predispõe a acolherem e a A sociologia só deixará de ser cümpletamente aquilo que
veicularem os discursos transclassistas (como os discursos religiosos). frequentemente se faz dela, isto é, uma ciência empenhada em
"" «Confédération Gênérale du Travail» = Confederação Geral do revelar «os pensamentos dissimulados»••, como dizia Montai-
Trabalho (N.T.). gne, um olhar desconfiado e maldoso que desengana, destruin-
° Conselho constituido, em composição paritária, por membros elei-
tos por patrões e empregados e que tem como função julgar desave □ ~11.s
decorrentes das relações contratuais de trabalho (em diversas profis~iks <h • «mfronnaiss.-in,e» (ignorância, não-reconhecimento) (N.T.).
indústria e do comêrcio) (N. T. )_ •• ··ks pçnsêrs <rurril·rt-houtique» no texto original. (N.T.).
r
1

l06 HISTÓRIA REIF!CADA E JNCORPURADA

do a impostura e também as ilusões, um propósito de «redu-


ção» mascarado de «virtudismo» * do pensamento intransigen-
te, na medida em que for capaz de se submeter completamente CAPÍTULO V
à interrogação a que ela submete toda a prática. Só podemos
produzir a verdade do interesse se aceitarmos questionar o
interesse pela verdade e se estivermos dispostos a pôr em risco a
A identidade e a representação
ciência e a respeitabilidade científica fazendo da ciência o Elementos para uma reflexão critica
instrumento do seu próprio pôr-se-em-causa. E isto na esperan- sobre a ideia de região
ça de ter acesso à liberdade em relação à liberdade negativa e
desmistificadora que a ciência oferece.
A intenção de submetet os instrumentos de uso mais
comum nas ciências sociais a uma crítica epistemológica alicerçada
na história social da sua génese e da sua utilização encontra no
conceito de tegião uma justificação particular 1• Com efeito,
àqueles qll.e vissem neste projecro de tomar para objecto os
instrumentos de construção do objecto, de fazer a história
social das categorias de pensamento do mundo social, uma
espécie de desvio perverso da intenção científica, poder-se-ia
objectat que a certeza em nome da qual eles privilegiam o
conhecimento da «realidade» em relação ao conhecimento dos
1
Este texto é o resultado de um trabalho empreendido, com o apoio
da DGRST, no quadro de um grupo composto por economjstas, etnólogos,
historiadores e sociólogos. Sô um coníunto de <';Studos de caso orientados
pela intenção de apteender a génese do conceito de região e das representa-
ções que lhe estão associadas, de descrever os processos em jogo nos quais e
por meio dos quais aquele conceito é produzido - o campo literário no caso
do estereótipo elaborado pelos romancistas regionalistas, o campo universi-
tátio no caso da unidade física e social delimitada pelos historiadores, pelos
geógrafos ou pelos politólogos, o campo social no seu conjunto no caso da
unidade política reivindicada pelos movimentos regionalistas - podia dar
uma ideia do universo de pressupostos, mais ou menos disi;imulados, que se
acham envolvidos em cada um dos usos do conceito. É por isso que, a estes
estudos, se juntarão mais tarde o de Rémi Ponton sobre os romancistas
regionalistas e sobre a evolução da temática dos romances regionais (em
relação com as transformações do campo literário e do sistema escolar) e o de
Jean-Louis Fabiani sobre o mercado dos bens culturais regionais (no caso da
Córsega), e também o arcigo de Enrico Castelnuovo e de Cario Ginzburg
sobre os efeitos da dominação simbólica na produção pictótica em Itália
• ttaduzimos assim a palavrn (aparente neologismo) «ven:uisme» em- depois do Renascimento. [Este último estudo será publicado em versão 1
!
pregada pelo autor sem qualquer sinal - aspas ou sublinhado - a portuguesa na obro intirnlada A Micro-hút6ria de C. Ginzburg, que sairá na
destacá-la. (N.'f.). cokc(,ão Mcmóri11 e Sod«l11del.
1
108 A IDEIA DE REGIÃO CAPÍTUW V 109

insttumentos de conhecimento nunca é, indubitavelmente, tão reg1ao. Daqui, a tendência que ele tem para tratar a economia
pouco fundamentada como no caso de uma «realidade» que, de uma região como uma entidade em que as relações intetnas
sendo em primeito lugar, representação, depende tão profunda- são pteponderantes. Para o economista, pelo contrátio, a tegião
mente do conhecimento e do reconhecimento. setia ttibutária de outros espaços, tanto no que diz respeito aos
seus aptovisionamentos como no que diz respeito aos seus
escoamentos; a natureza dos fluxos e a importância quantitativa
As l11tas pe!{) poder de di-visão desces, por acentuarem a interdependência das tegiões, sedam
um aspecto a ptivilegiar. Se o geógrafo consideta a localização
Ptimeita observação: a tegião é o que está em jogo como das actividades numa região como um fenómeno espontâneo e
objecto de lutas entte os cientistas, não só geógrafos é dato, comandado pelo meio natural, o economista introduz nos seus
que, por retem que vet com o espaço, aspiram ao monopólio da estudos um instrumento de análise particular - o custo» 1 .
definição legítima, mas também histotiadotes, etnólogos e, Este texto, que merecia set citado mais longamente ainda,
sobretudo desde que existe uma política de «regionalização,, mostra bem que a telação ptopriamente científica entre as duas
e movimentos «regionalistas», economistas e sociólogos. Basta- ciências tem as suas raízes na relação social entre as duas
rá um exemplo, colhido dos acasos da leitura: «É preciso disciplinas e os seus tepresentantes 3 • Com efeito, na luta para
prestar homenagem aos geógrafos, eles foram os ptimeiros a anexar uma região do espaço científico já ocupada pela geografia, o
interessarem-se pela economia tegional. Por vezes mesmo eles economista - que reconhece àquela o métito de ptimeito
tendem a reivindicá-la como uma coutada». A este respeito, ocupante - designa de modo insepatável os limites das
escteve Mautice Le Lannou: «Admito que deixemos ao cuidado estratégias científicas do geógtafo (a sua tendência pata o
do sociólogo e do economista a descobetta das regras gerais « intemalismo» e a sua inclinação para aceitat o detetminismo
-- se as há -- a partit do compottamento das sociedades «geogtáfico») e os fundamentos sociais destas estratégias. Isto é
humanas e do mecanismo das ptoduções e das trocas. A nós, feito pot meio das qualidades e dos limitei, que ele atribui à
pettence-nos o concteto presente e divetsificado que é a manta geografia e que são claramente reconhecidos pelo porta-voz desta
de retalhos multicolot das economias tegionais ( ... ). Os inqué- disciplina dominada e dada a contentat-se «m•xiestamente»
titos tegionais dos geógtafos apresentam-se frequentemente com aquilo que lhe é concedido, a isolat-se na região que as
como estudos exttemamente minuciosos, extremamente apro- disciplinas mais «ambiciosas», sociologia e economia, lhe dão
fundados de um espaço determinado. Em geral, estes trabalhos em partilha, quet dizet, o pequeno, o particulat, o concreto, o
têm o aspecto de monogtafias desctitivas de pequenas regiões; a real, o visível, a minúcia, o potmenot, a monografia, a
sua multiplicidade, a abundância dos potmenotes impedem desctição - pot oposição ao grande, ao geral, ao abstracto, à
que se compreendam os gtandes fenómenos que levam ao teoria, etc. Assim, pot um efeito que caractetiza, de modo
progresso ou ao declínio das regiões consideradas. Dá-se igual-
mente demasiada importância aos fenómenos físicos, como se o i R. Gendarme, L"analyse économique régionale, Paris, Cujas, 1976,
Estado não interviesse, como se os movimentos de capitais ou pp. 12-13 (e M. Le Lannou, La Géographit Humaine, Paris, Flammarion,
as decisões dos grupos não ptoduzissem efeitos. O geógtafo 1949, p. 244).
ptende-se talvez demasiado ao que se vê, enquanto o economis- ·' Sabe-se que os geógrafos e a geografia se acham no nível mais baixo
da hierarquia social (medida por índices como a origem social e regional dos
ta se deve prendet ao que se não vê. O geógrafo limita-se professores) das disciplinas das faculdades de Letras, enquanto a economia
frequentemente à análise do conteúdo do espaço; ele olha muito on1pa uma posição elevada nas faculdades de Direito, globalmente situadas
pouco para além das fronteiras políticas ou administrativas da nn níveis mais alto~ do qut: as faculdades de Letras nesta hierarquia.
""'" 110 A IDEIA DE REGIÃO CAPÍTl!l,O V 111

próprio, as relações de (mal)çonhecimento* e de reconhecimen- diferente do dos etnólogos - suspeitos de passadismo e de


to, os ~efensores da identidade dominada aceitam, quase sem- localismo -· estavam interessados no transregional, e até
pre tacttamente, por vezes explicitamente os princípios de mesmo no transnacíonal - e de modo tanto mais claro quanto
identíficação de que a sua identidade é p;oduto, mais preocupados se mostravam com a sua identidade -
Outra observação importante; esta lura pela autoridade parece ter coincidido com o aparecimento (e foi mesmo um
cíentífica é menos autónoma do que querem crer os que nela se aspecto deste) em 1968 e depois, dos movimentos «regionalis-
acham envolvidos e verificar-se-ia facilmente que as grandes tas» de novo tipo que, graças a uma política de contratos,
etapas da concorrência entre as disciplinas a respeito da noção ofereciam ao investigador, mediante uma redefinição laxiorista
cor~espondem, através de diferentes mediações - entre as da observação participante, o papel de companheiro de viagem
quais os contratos de pesquisa não são das menos importantes que analisa o movimento no movimento.
- a momentos da política governamental em matéria de Estas poucas indicações, que não são apresentadas com a
«ordenamento do território» ou de «regionalização» e a fase pretensão de servirem de análise metódica das relações entre as
da acção «regionalista» 4. É assim que a concorrência entre diferentes ciências sociais, deveriam ser suficientes para dar a ideia
os geóg~afos, até então em situação de quase monopólio, e os de que o ob jecro da ciência, a saber a concorrência pelo monopólio
economistas parece ter-se fortemente desenvolvido a partir da divisão* legítima também pertence ao domínio da ciência, isto
do momento em que a «região» (no sentido administrativo do é, está também no campo científico e em cada um dos que nele se
termo - mas haverá outro?) começou a revestir-se de interesse acham envolvidos. Isto não implica de forma alguma - antes
para os economistas os quais, na Alemanha com August pelo contrário - que este facto esteja claramente presente na
Loesch, e nos Estados Unidos com a regional Jcience, e depois em consciência dos investigadores. Ora, a ciência social, que é obri-
França com a voga do «ordenamento do território», «aplicaram gada a classificar para conhecer, só tem alguma probabilidade,
à realidade regional a sua aptidão específica de generalização» não já de resolver, mas de, pelo menos, pôr correctamente o pro-
como diz um geógrafo com a «modestia» estatutariament; blema das classificações sociais e de conhecer tudo o que, no seu
atribuída à profissão 5. A irrupção dos sociólogos que, de modo objecto, é produto de actos de classificação se fizer entrar na sua
pesquisa da verdade das classificações o conhecimento da verdade
"' (mé)connaissance» no rexro original (N. T.).
4
dos seus próprios acros de classificação. O que quer dizer que não é
. Encont~-se elei:1em~s úteis para uma história social da política possível dispensar, neste caso menos que em qualquer outro, uma
oficial em matena de regmnalização e dos debates que a rodearam no seio do
análise da relação entre a lógica da ciência e a lógica da prática 6 •
pessoal político, a par de uma evocação das teses dos regionalistas, em
P. Lagarde, La rigiona/isatirm, Paris, Seghers, 1977.
5
E. Juil!ard, «La région, essai de définition», Annales de géographie,
~r ./Our •, 1962, pp. 483-499. Seria preciso analisar as diferentes esrraté- facto de comum a aceitação da definição dominante na sua forma directa ou
g~-q~e o cor_po dos geógrafos opôs às tenra.tivas de anexação da economia, inversa.
6
d1sciplma sooa/meme mais poderosa e capaz, por exemplo, de dar um A respeito das relaçôes entre a noção de região dos geógrafos e a
fundamento e1;1?frico, se ~o uma j~srificação teórica, à região dos geógra- noção de região tal como funciona na prática e, em panicu!ar, no discurso
fos,, com a anaim e~ra_tfsnca dos_ efei_ros de contig11idade (cf. J .R. Boudeville, regionalista, dir-se-iam renovar as análises por nõs propostas em outro
Amenagement d11 temtotre et pofartsatum, Paris, Ed. M. Th. Génin, 1972, trabalho acerca do desvio eure o parentesco prático e o parentesco reóri.:::o,
pp, 25~27). Como sempre acontece no caso das luras simbólicas os registado na genealogia (ou entre o esquema teórico das oposições míticas e
geógrafos parece°; te_r-se visto divididos entre estratégias que, perkitam~nte os esquemas práticos da acção ritual) e acerca dos efeitos científicos Ja
opostas ~a aparen~1a (como a recusa itredemista pela politização e a 1gnorilncia deste desvio inultrapassável, cf. P. Bourdieu, /,i- JWJ pratique,
ac~mulaçao smc~énca das tradições próprias e das tradições alógenas, da Paris, Minuit, 1980, espçcia!mente, pp. 59-60.
Patsagem dos antigos e dos e.rpaços /unâonah dos economistas), tinham ,k • .. dúour,,1w·~ no n·xw origin;i.l {N. T. ).
112 A IDEIA DE REGIÃO CAPÍTUl,O V 113

Com efeito, a confusão dos debates em torno da noção de Só se pode comprender esta for~~i parr!cula~ de luta ~~
região e, mais geralmente, de «etnia» ou de «ernicidade» classificações que é a luta pela defimçao d,1 identi~ade «regi~
(eufemismos eruditos para substituir a noção de «raça», rnn~ na!» ou «étnica» com a condição de se passar para alem da oposi-
tudo, sempre presente na prática) resulta, em parte, de que a ão ue a ciência deve primeiro operar, para romper c~m as
preocupação de submeter à crítica lógica os categoremas do ç ré-Jo ões da sociologia espontânea, e_ntre a representaçao e_ a
senso comum, emblemas ou estigmas, e de substituir os p 1·d çde e com a condição de se inclmr no re-,1.l a representaçao
rea1 a , - osen
princípios práticos do juízo quotidiano pelos critérios logica- do •eal ou mais exactamente, a luta das representaçoes,. n_ d -
mente controlados e empiricamente fundamentados da ciência, "d ' d imagens
' · d e manuestaçoes
mentais e também ·r - socia1s .es-
faz esquerer que as classificações práticas esrão sempre subordi~ ~;n:da: a manipular as imagens mentais (e até mesmo n~ sentido
nadas a /11nções práticas e orientadas para a produção de efeitos de delegações encarregadas de organizar as represe~taçoes co:110
s0<:iais; e, ainda, que as representações práticas mais expostas à manifestações capazes de modifi~ar as ~ep.resentaçoe~ mentais).
crítica científica (por exemplo, os discursos dos militantes As lutas a respeito da idenudade et~ica ou regmna-1, quer
regionalisras sobre a unidade da língua occitânica) podem dizer a respeito de propriedades (est1g1:1as ou emble~a~)
contrib11ir para prod11zir aquilo por elas descrito ou designado, li adas ' à ori(;,tnl
, . do Iugar d e or ,gem e dos srnais
atraves
quer dizer, a realidade objectiva à qual a crítica objectivista as d~radoiros q~e lhes são correlativos, _como o sotaque, são .,~1:°
ref.ere para fazer aparecer as ilusões e as incoerências delas. caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopohio
, Mas, mais profundamente, a procura dos critérios «objecti- d.e fazer ver e fazer crer' de dar a conh~c~r -e de fazer recoo _e-
vos,, de idenridade «regional,, ou «étnica» não deve fazer cer de impor a definição legítima das d1VIsoes do mundo s°:ial
esquecer que, na prática social, estes critérios (por exemplo, a e ~or este meio, de fazer e de desfazer os grupos. Com_ e_fe1ro,
língua, o dialecto ou o sotaque) são objecto de representações O, que nelas está em jogo é o poder de impor uma visado do
mentais, quer dizer, de acros de percepção e de apreciação, de . · - que, quan o se
mundo social attavés dos princípios d e d i-v1sao_
conhecimenro e de reconhecimento em que os agentes investem . õem ao conjunto do grupo, realizam o senudo e o con~enso
os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações ~
:::re sentido e, em particular, sobre_ª identida~e e a_~n~da1e
objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou do grupo que fazem a realidade da unidade e ~a idenn a e o
em acros, estratégias interessadas de manipulação simbólica po À etimologia da palavra região (regto), ral c_o~~ a
que têm em vista determinar a representação mental que os â:~cre~e Emile Benveniste, conduz ao pri~cípio d~ d~-:,1sao,
outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores. aeto mágico quer dizer' propriamente social, de d1acrms_ q~e
Por outras palavras, as características que O$ etnólogos e os introduz po/ decreto um~ descontinuidade decisória na conu;;i-
sociólogos objectivistas arrolam funcionam como sinais, emble- dade natural (não só entre as regiões ?º
espaço mas tam . m
mas ou estigmas, logo que são percebidas e apreciadas como o entre as idades, os sexos, etc.). Re1;ere jmes, o acto que consiste
são na prática. Porque assim é e porque não há sujeito social
que possa ignorá-lo praticamenre, as propriedades (objecriva-
mente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utili- ----=---d d by N Glazet and D.P. Moynihan,
Eth11iáty. Theory an Expenence: _e · . p · 75 PP 305-349) 9ue,
zadas estmregicamente em função dos interesses materiais e b 'd Mass Harvard lm1vers1ry ress, 19 ' ·
Cam n ge, ., -
. .. ando por excepçao ao I ea is ""d 1· ffi" culturalista o qual é .de regta . nestas
também simbólicos do seu portador 7 •
tscap , . ! - stratégica das caracrerísncas «étnicas» e
7
m;lt(:rias, dá lugar ª m~nip~haç~f e, origem destas estratégias ao interesse
A dificuldade em pensar adequadamente a economia do simbôlirn ,.,J, 1 1. 0 interesse po; si ,itn m,o a d ·r,
vê-se, por exemplo, em cerw auror (O. Patte!"$on, «Context and Choice in ' ,, '
{·s;ciranwntc 1 a~s_1m
no116mil'o, i;.:nor:in,o h .
· ~ud o o que nas lutasbôl" as e1ass1
· 1-
Ethnic Al!egiance: A Theoretical framework and Caribbean C..ase Study», ,,1~úcs. olwdnt· ,) ptrnur:i da maxim11-,u,ao do gano sim ico.
114 A lDElA DE REGIÃO
CAPÍTULO V 115
em «traçar as fronteiras em linhas reeras_», em separar «o
interior do exterior, o reino do sagrado do reino do profano, o elementos não idênticos que a taxinomia trata como seme-
território nacional do território estrangeiro», é um acto religio.10 lhantes). Cada um estíl. de acordo em notar que as «regiões»
realizado pela personagem investida da mais alta autoridade, o delimitadas em função dos diferentes critérios concebíveis
rex, encarregado de regere sacra, de fixar as regras que trazem à (língua, httbitat, amanho da terra, etc.) n"unca coincidem
existência aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de perfeitamente. Mas não ê tudo: a «realidade», neste caso, é
pré-dizer no sentido de chamar ao ser, por um dizer executório, social de parte a parte e as classificações mais «naturais»
o gue se diz, de fazer sobrevir o porvir enunciado 8. A regio e as apoiam-se em caracteristicas que nada têm de natural e que
suas fronteiras (fines) não passam do vestígio apagado do ano de são, em grande parte, prodmo de uma imposição arbitrária,
autoridade que consiste em circunscrever a região, o território quer dizer, de um estado anterior da relação de força~ no campo
(que também se diz fines), em impor a definição (outro sentido das lutas pela delimitação legitima. A fronteira, esse produto
de finiJ) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do de um acto jutídico de delimitação, produz a diferença cultural
território, em suma, o princípio de <li-visão legítima <lo mundo do mesmo modo que é produto desta: basta pensar na acção do
social. Este acto de direito que consiste em afirmar com sistema escolar em matéria de língua para ver que a vontade
autoridade uma verdade que tem força de lei ê um acro de política pode desfazer o que a histôria tinha feito 10• Assim, a
conhecimento, o qual, por estar firmado, como todo o poder ciência que pretende propor os critérios mais bem alicerçados
simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que na realdade não deve esquecer que se limita a registar um
enuncia (a a11ctoritas, como lembra Benveniste, é a capacidade estado da luta das classificações, quer dizer, um estado da
de produzir que cabe em partilha ao auctor) 9 • O auctor, mesmo relação de forças materiais ou simbólicas entre os que têm
quando só diz com autoridade aquilo que é, mesmo quando se interesse num ou noutro modo de classificação e que, como ela,
limita a enunciar o ser, produz uma mudança no ser: ao dizer invocam frequentemente a autoridade científica para funda-
as coisas com autoridade, quer dizer, à visra de todos e em mentarem na rea.lidadc e na tazão a divisão arbitrâria que
nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai~as ao querem impor.
arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra~as, fazendo-as
"' A Jifnençil cukutal é sem Jtivida ptoduto de uma dia!ênica
existir como dignas de existir, como conformes à natureza das his\Ófl(a <lil difrrcnfiação cumuhitiva. Como mostrou Paul Bois a respeito
coisas, «naturais». dos c:unponesçs do (km: cu j.is opç(}{:s po!iticas desafiavam a geogtafia
Ninguém poderia hoje sustentar que existem critérios capa- deitllral. o qm: faz :1 n:giãii niio é n espaço, mas sim o tempo, a histôtia
zes de fundamentar classificações «naturais» em regiões «natu~ (P. Bois. P,iptfll.l ,/e [011e,t. dr; 1tm111tres ffono111iq11es et Jociales ,mx r,pti11ns
/'f;/itiq1tes depú, [l!j//H/IIC 1"(p,/11ti1m11<1in:, Patis-Hilia, Mouton. 1960). Poder-se-
rais», separadas por fronteiras «naturais». A fronteira nunca é
-ia fazer uma Jcmnnstmç:io strm:lhante ::. respeito das "re&:ii'•,·· •
mais do que o produto de uma divisão a que se atribuirá maior riifonas (JUC. :l.Jl caho de um:; hist<Jria difo-reme, etam sut,t;nitc<=iitt"
ou menor fundamento na «realidade» segundo os elementos --diferentes» das -,rcgiõt:5·· r1mbôfon.tS par.1 suscit,irem da pane Jo coloniza-
que ela reúne, tenham entre si semelhanças mais ou menos dor tratamentos difáe1ncs (cm rn:1térü1 de cscolarÍ:l:ação, pot t:xemplo),
numerosas e mais ou menos fones (dando-se por entendido que logo, ptúprios pata tdim;,ir as difrrenças que lht· tinham si:rvido de prnexto
t· pat=l ptoduzir novas difen:nças (ais qm: estão lig1das à emigcação parn
se pode discutir sempre acerca dos limites de variação entre os Ftan,;;.i. pnt exemplo) e assim sucessivament,: N:ida hã. nem mesmo ~s
8 E. Benveniste, Le rncabu!aire des institutions indv-mropétmm, II, Pm1- ··p:1isap:n1s» ou ns «snlns». caros aos geógrafos, que não seja herança, <jUtr
voir, droit, rtíigion, Paris, Minuit, 1969, PP· 14-15 (e tambêm, il n:.sp,:iw ,li1.l'f. prod\1tJJs histiiricn.s d:is detetminames S0<:iais (çf_ C. Reboul, "Dêtt:r-
de kraintin. como poder de predizer, p. 41). 111i11.u1ts Sllt i,n1x ,!,. l-1 fn1i!i11' ,ks .mls». Af!f.i de la recherche en Jâenrn wâales.
9 E. Benveniste, (Jp. ât., pp. 150-151. 17-IH. Ni,v l!)Jl. !'I' >!-'-! 112. N:i mesma lógica e para alêm do uso
1up·m1.JJJW!ll1· •· n.11111.,!"1.1 •· , l-1 ll<>~-", , !t- ·· p,iis,igcm~. seria ptcciso ilnalisat a
, ,,1111d,t11\.l<• di>~ 1.,. 1'1!< ·. ·.,h 1.,, .. 1·.q.1 "' prutc.s.s<ls de ,-dcsntifi(,,ç.in-
116 A IDEIA DE REGIÃO CAPÍTULO V 117

O discurso regionalista é um discurso perfimnatwo, que tem tem autoridade para autorizar. Mas o efeito de conhecimento
em vista impor como legítima uma nova definição das frontei- que o facto da objectivação no discurso exerce não depende
ras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimita- apenas do reconhecimento consentido àquele que O detém· ele
da -- e, como tal, desconhecida - contra a definição domi- · depende ta~bém _do grau em que o discurso, que anunci~ ao
nante, portanto, reconhecida e legítima, que a ignora. O acto grupo a sua identidade, está fundamentado na objectividade do
de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crença
quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas
poder por si: as categorias «êtnicas» ou «regrànais», como <>s propriedades econômicas ou culturais que eles têm em comum
categorias de parentesco, instituem uma realidade usando pois é somente em função de um princípio determinado d;
do poder de revelação e de amstr11ção e;ercido pela objectiraçtlo pertinência que pode aparecer a relação entre estas p-roprieda-
no dismrso. Não é uma ficção sem eficácia chamar-se «occirâni- des. O poder sobre o grupo que se trata de trazer à existência
co» 11 à língua que falam os que são chamados «Occirànicos» enquanto grupo~'. a um tempo, um _poder de fa7..er O grupo im-
porque falam esta língua (que ninguêm fala, propriamente pondo~l~e ?r~netptos de visão e de divisão comuns, portanto,
dito, pois ela não passa d.a soma d.e um grande ntimero de uma v1sao umca da sua identidade, e uma visão idêntica da sua
falares diferentes) e nomear-se «Occir.inia» a região (no sen- unidade !J. O facto de estar em jogo, nas lutas pela identidade
tido çle espaço físico) onde esta língua é fo.lad<>, preten- - e~se ser percebido que existe fundamentalmente pelo reco-
dendo-se assim fazê-la existir como «região,. ou como «nação,, nheom~nto dos outros - , a imposição de percepções e de
(mm todas as implicações hisroricamtnre constituídas que esrns categon~s. de percepção explica o lugar determinante que, como
noções encerram no momento considerado) 1". O ano da magia a estrateg1a do manifesto nos movimentos artísticos a dialéctica
social que consiste em tentar trazer ii. existência a coisa nomea- da i:nani_fe~;ação detém em todos os movimentos re~iohalistas ou
da pode resultar se aquele que o realiza for capaz de fazer naoonats : o poder quase mágico das palavras resulta do efeito
reconhecer à sua palavra o p<xler que ela se arroga por uma que têm a objectivação e a oficialização de facto que a nomea-
usurpação provisória ou definitiva, o de impor uma nova visiio çã? pública rea_liza à vista de todos, de subtrair ao impensado e
,t uma nova divisão do mundo social: regere fines, regere sacra, ate mes_mo a~ impensável a particularidade que está na origem
consagrar um novo limite. A efickia do discurso performativo do parrtculansmo (é o caso quando a «algaravia•> sem nome se
que pretende fazer sobrevir o que ele enuncia no prôprio acrn afirma como língua susceptível de ser falada publicamente); e a
d.e o enunciar ê proporcional à autoridade daquele que o
I ~~m~ tentei mostrar em outro trabalho· (cf. Bourdieu e L. Boltanski,
13
enuncia: a formula «eu autorizo-vos a partir,, só ê eÕ ips(I uma
autorização se aquele que pronuncia estú autorizado a autorizar, ~ .e fetich1sme de la langue», Acte.r de la m:herche em sâem:es wâales n ° 4
197~,. PP: 2-33), os fundadores da Escola republicana tinham por fi~alidad;
'' O adjcnivo ·•(X.citan•· e," J;,rtmri. o subst,mtivo ~()cc;tanit•· são cxp!icita inculcar, entre outras_coisas pela imposição da Jingua ~nacional,,,
palavras eruditas e tecentes (forjad;1s pda latit1iZ11('ào da lingua de oc, !iJ1_ç1w ('. sistema comum de categonas de percepção e de apreciação capaz de Ji
fundamentar uma visão unitâria do mundo social .
IJ1.Ú1'f//t1), destinadas a design,ir n:a!idndes cmditas que. pelo menos de
momento, só existem no pape!.
IJ
O
.
liame, se:m!menre atestado, entre os movimentos regionalistas e I'1
•~ De fano, esta J;ngu;t \:, da mesma, um arte/ado sochl. ;rwcnta<lo ;i HS movimentos femmi~rns _(e t_ambê1:1 ecolôgicos) resulta de que, dirigidos

custa de uma indiferença dccis,itia para com as diferenç;is. que rcl't<>duz a() nintr.1 formas de do~1naçao simbólica, estes movimentos supõem disposi-
nivd da -regifo» a impusição arbittiiria de uma norm,i ú11i<a ,o,11r,, ;i qual t,úcs i-tninis e ("(!ffi!'lCH"!J1ms cu 1rurais
· (vis1ve1s
· • · nas estratêgias utilizadas) que
se levanta o regionalismo e que sú po1.kr;a tornar-se nn prn1, ipio n-al ,h., s1· (·iKonrr;1m mais prnpri,1m1·ntc na intel!t"entsia e na nos,
1 · ,· . " pequena
pniticas ling:uisrk;is mediante uma inn1h :iç:i.o si,1,-111.!!" ., -m.d<>i:-1 ., , I"'" mr~ucsw (1 . Uni1t, 1icu. /.,, •Íl!/11J<f1,m. Patis, Minuit, 1979, especialmente
PI'· ,lo'\ '1 \ !).
imp<a., <l usii .~cm·t:i!i~:i•lu ,J., fram·(·~-
CAPÍTULO V 119
!18 A IDEIA DE REG!AO
Compreende~se melhor a necessidade de explicitar comple-
oficialização tem a sua completa realização na manifestação, acto tamente a relação entre as lutas pelo princípio e di-visão
tipicamente mágico (o que não quer dizer desprovido de legítima que se desenrolam no campo científico e as que se
eficácia) pelo qual o grupo prático, virtual, ignorado, negado, situam no campo social (e que, pela sua lógica específica,
se torna visível, manifest0, para os outros grupos e para ele concedem um lugar preponderante aos intelectuais). Toda a
próprio, atestando assim a sua existência como grupo conhecido tomada de posição que aspire à «objectividade» acerca da
e reconhecido, que aspira à institucionalização. O mundo social existência actual e potencial, real ou previsível, de uma região,
é também representação e vontade, e existir socialmente é de uma etnia ou de uma classe social e, por esse meio, acerca
também ser percebido como distinto. da pretensão à instit11ição que se afirma nas representações «partidá-
De facto, não há que escolher entre a arbitragem objectivis~ rias», constitui um certificado de realismo ou um veredicto de
ta, que mede as representaçõa (em todos os sentidos do termo) utf)pismo o qual contribui para determinar as probabilidades
pela «realidade» esquecendo que elas podem acontecer na objectivas que tem esta entidade social de ter acesso à existên-
realidade, pela eficácia própria da evocação, o que elas represen- cia u,_ O efeito simbólico exercido pelo discurso científico ao
tam, e o empenhamento subjectivista que, privilegiando a consagrar um estado das divisões e da visão das divisões, ê
representação, confirma no terreno da ciência a falsificação na
escriq1. sociológica pela qual os militantes passam da representa-
por isso, condenado a aparecer como rritil'(} o~ c1impli<"e conf~rme a rela_ção
ção da realidade à realidade da representação. Pode-se escapar à cllmplice ou critica que o próprio leitor mantem com a realidade de~ma.
alternativa tomando-a para objecto ou, mais precisamente, É assim que o simples fano de IJ/1/Jtr,,r pode funcionar como _uma ma~e1ra de
levando em linha de conta na ciência do objecto os fundamen- mostrar com 9 dedo, de pôr no index, de acusar (kate[!,orem), ou, inversa-
tos objectivos da alternativa do objectivismo e do subjenivismo mente como uma maneira de fazer ver e de fazer valer. Isto tanto vale para a
que divide a ciência, impedindo que apreenda a lógica específi- dassif:cação f"m dasses sociais como para a classificação cm \regi~» ou em
..«etnias». O sociólogo expõe-se, a partir do momento em que aceita tornar
ca do mundo social, essa «realidade» que ê o lugar de uma luta p,iblicl/J os resultados das suas pesquisas, a que lhe atribuam (na proporç~ do
permanente para definir a «realidade». Apreender ao mesmo reconhecimento que se lhe concede) o papel do cemnr romano, re~ponsavcl
tempo o que é instituído, sem esquecer que se trata somente da pelo amm ("justa estimação pU.bl ica» do valor e do nível atribuídos as pessoas
resultante, num dado momento, <la luta para fazer existir ou - G. Dumêzil, Serrim et la Farl1me, Paris, Gallimard, 1943, p.188 - e,
«inexistir» o que existe, e as representações, enunciados perfor- mais tarde rei-emeàmento das fortunas) ou, o que ê o mesmo, a despeito das
aparências,' o do censor (idanoviano) que reduz as pessoas dassifi~adas à ver-
mativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam, dade objecriva que a classificação lhes determina. (Esta leitura e ao mesmo
restituir ao mesmo tempo as estruturas objectivas·e a relação rempo provável, porque não basta objectivar a lura_das dass_ific~ç~ pata a
com estas estruturas, a começar pela pretensão a transformá-las, é suspender e anrecipadameme a desmentir: com efeito, a ob,ecnvaçao desta
munir-se de um meio de explicar mais completamente a «reali- luta e, em particular, na forma especifica que ela assume n~ seio do ca~I:°
dade», logo, de compreender e de prever mais exactamenre as científico, atesta que ê possivel apartar-se da luta pelo monopolio da ddiniçao
do princípio da classificação legítima pelo me~os quanto baste_ parn a compr:-
potencialidades que ela encerra ou, mais precisamente, as possibi- ender e para controlar os efeitos associados aos interesses envolvidos nesta lut~)-
lidades que ela oferece às diferentes pretensões subjectivistas 15 '" Como compreender, a não ser como outras ramas _afirmaçoes
rnmpulsivas da pretensão â ,mctorita.1 mágica do <"l!mor dumêzilmno ~u: se [1
15
Sem deixar por isso de estar sujeito a apare.;:er como censor ou inscreve na ambição do sociôlogo, as recitações rimais dos textos _ca~omcos 1
cúmplice. Quando o diswrso científico ê retomado nas lutas das classifica- ~obre ;is classes sociais (ritualmente confrontadas com o a:mm estansnco) ou,
ções que se esforÇa por objectivar - e, sal"o a interdição da sua divul- t:m grau de ambição superior e em estilo menos dâssico, as profe_cias 1
gação, não se vê como impedir este uso - , passa a funcionar como na •HllmÓ=idoras d,1~ ••nov,,s dasses" e das «novas lutas» (ou o declmm
realidade das lutas de classificação, isto ê, como um di.rmr,9 ,/,- 11w1,1t_r,1,,io indm,ivd ,l;is --vdlias \hsses,· e das ~velhas» lutas); dois gêneros que
que diz, por um dizer autorizado que auwriza, que o <p•e e d(·V(· wr· d,· n!-1 "' up. 1111 rr.nd1· !111-(,U 1<-1 prnd11,:,io dita s,xinlàgic;t!

.li
120 A IDEIA DE REGIÂO CAPÍTULO V 121

inevitável na medida em que os critérios ditos «objectivos», Quando os investigadores entendem erigir~se em juízes de todos
precisamente os que os doutos conhecem, são utilizados como os juízos e em críticos de todos os critérios, com a sua formação e
armas nas lutas simbólicas pelo conhecimento e pelo reconheci~ os seus interesses específicos a isso os impelem, ficam privados
menta: eles designam as características em que pode firmar-se a de apreender a lógica própria de uma luta em que a furça social
acção simbólica de mobilização para produzir a unidade real ou das representações não está necessariamente proporcionada ao
a crença na uni é.ade ( tanto no seio do próprio grupo como nos seu valor de verdade (medido pelo grau em que elas exprimem o
outros grupos), que - a prazo, e em particular por intermédio estado da relação de forças materiais no momento considerado).
das acções de imposição e de incukação da identidade legítima Com efeito, enquanto pré-visões, estas mitologias «científicas»
(como as que a escola e o exército exercem) - tende a gerar a podem produzir a sua própria verificação se conseguirem impor-
unidade real. Em suma, os veredictos mais «neutros» da -se à crença colectiva a criar, pela sua energia mobilizadora, as
ciência contribuem para modificar o objecto da ciência: logo condições da sua própria realização. A região que se torna em
que a questão regional ou nacional é objenivamenre posta na nação aparece retrospectivamente na sua verdade, quer dizer,
realidade social, embora seja por uma minoria actuante (que à maneira da religião segundo Durkheim, como «uma ilusão
pode tirar partido da sua própria fraqueza jogando com a bem fundamentada». Mas esses investigadores não fazem melhor
estratégia propriamente simbólica da provocação e do testemunho quando, abdicando da distância do observador, retomam à sua
para <>;rrancar réplicas, simbólicas ou não, que impliquem um própria conta a representação dos agentes, num discurso que,
reconhecimento), qualquer enunciado sobre a região funciona à falta de meios para descrever o jogo em que se produz esta
como um argumento que contribui - tanto mais largamente representação e a crença que a fundamenta, não passa de uma
quanto mais largamente é reconhecido - para favorecer ou contribuição entre outras para a produção da crença acerca da
desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e, por este qual haveria que descrever os fundamentos e os efeitos sociais 18 .
me10, à ex1stênc1a.
Nada há de menos inocente do que a questão, que divide o
mundo douto de saber se se devem incluir no sistema dos menos seguro5 estilo da sua ciência e do seu estatuto - a multiplicarem os
sinais de r1ip111ra com as representações do senso comum e que os condena a
critérios pertinentes não só as propriedades ditas «objectivas»
um ohjectil'isl/ll, tedutor, perfeitamente inadequado a fazer entrar a realidade
(como a ascendência, o território, a língua, a religião, a das representações comuns na representação científica da realidade.
actividade económica, etc.), mas também as propriedades ditas lK Pode admitir~se que os sociôlogos, enquanto não submetem a sua

<.Subjectivas» (como sentimento de pertença, etc.), quer dizer, prática â crfrica sodolôgica, estão sempre determinados, na sua orienração
as representações que os agentes sociais têm das divisões da para um pólo ou para outro, objeaivista ou subjectivisrn, do universo das
relações possíveis com o objeno, por factores sociais tais como a sua posição
realidade e que contribuem para a realidade das divisões n.
na hierarquia social da sua disciplifµl,, quer dizer, do ,eu nível de competên-
17 cia estatutâria que, num espaço geogrâfico socialrr ~nte hierarquizado, se
As razões da repugnância esponrânea dos «doutos» em relação aos
traduz frequentemente por uma posição central ou loca!, factot particular-
critérios ~subjectivos» mereceria uma longa análise: hâ o tealismo ingênuo
mente importante se se trata de região ou de regionalismo; mas também na
que leva a ignorar tudo o que se não pode mostrar ou tocar com o dedo; há
hierarquia técnica: pois que estratégias «epistemolôgicas» tão opostas como
o economismo que leva a não reconhecer outras dererminantes da acção
{) dogmatismo dos guardiães da onodoxia reórica e o espomaneísmo dos
social a não ser as que estão visivelmente inscritas nas condições materiais de
apósrolos da panicipação no movimento podem ter de comum o fornecer
existência; há os interesses ligados às aparências da «neutralidade axiológi-
uma maneira de escapar às exigências do trabalho científico sem renunciar âs
ca» que, em mais de um caso, constituem toda a diferença entre o «douro»
pretensões à a/frt11ri1,,r. quando se não pode ou se não quer satisfazer estas
e o militante e que impedem a introdução no discurso ~douto·, de •111t·srões
O{igi'nrias 011 simpksmcnrc as mais aparentes, quer dizer, as mais escolareJ
e de noções contrárias à decência; hâ, enfim e sobretudo. o pm1/,, ,k /,r11m1
,k nnrc nas ((O!!ln II fiuni!iaridRtk com os textos canónicos). Mas eks
cientifico que leva os observadores - e de modo r,uno mai~ r111'r,1,:i," <pM!H<>
,i

CAPÍTU/,0 V 123
122 A IDEIA DE REGIÃO

Em suma, neste caso como em outros, trata-se de escapar à materiais ou símbólícos, ou conservá-las e transformá-las; h) as
alternativa do regísto «desmíscificador» dos crítéríos objectívos relações de forças objectívas, materíaís e simbólícas, .e os
e da ratíficação místificada e místíficadora das representações e esquemas práticos (quer dizer, ímplícíros, confusos, e. mais ou
das vontades para se manter junto o que está junto na realída- menos contraditóríos) graças aos quaís os agentes classificam os
de, a saber, a) as dassíficações objecrivas, quer dízer, incorpora- 0t1trns agentes e apreciam a sua posição nestas relações obíecti-
das ou objectivadas, por vezes em forma de ínsrituíção (como as vas e, ,.,imultaneamente, as estratégias simbólicas de apresenta-
fronteíras jurídicas) e a relação prática, «acruada» ou represen- ção e de representação de si que eles opõem ás classí~caç~es e
tada, com essas dassíficações e, em partícular, as estr.itégias às representações (deles próprios) que os out~s lhes 1mpoem.
índívíduais colenivas (como as reívíndicações rcgíonalistas) pelas Em resumo, é com a condíçào de exornz~r o sonho da
quais os agentes procuram pô-las ao serviço dos seus interesses, «ciência régia» investida da regalia de reJ!,ere /me! e ·de regen:
J<1rm, do ~Jder nomocético de decretar a uníão_ e_ª separação,
que a ciência pode eleger como obíccto o própno Jogo ei:n que
podem também IJ:Scilar, ao acaso da relação Jiren.J.ment<: expcrimcmada parn se disputa o poder de roger as fronteiras sagradas, quer dt~er, ~
com o objeno, enrre o objenivismo e o subjçcrivismo, a censura e o elogio, a poder quase divino sobre a visão d~ m_undo, e _em q~e nao ha
cumplicidade mistificada e mistificadora e a de~mistificaciio redutora, porque
aceítam a ptoblemática objectiva, quer dizer a ptópria estrututa do rnmpo de
outra escolha para quem pretende ioga-lo (e nao resignar-se a
. -r. lq
luta no qual a tegião e o regionalismo estão cm ~Jgo, em vez de o ohfeCtivar: ele) a não ser mistíficar ou d esm1swicar -
porque eles entram no debare acerca dos i:ritétios tJue permitem dizer o senti-
do do movimento regionalista ou de lhe predizer n fotuto sem St: intenoga-
rem sobre a lógica de uma luta que incide ptcósameme sobre a determinação
do sentido do movimento (regiona! ou naci<)nal, progressivo ou regressivo, de
direita ou de esquerda) e sobre os nitérios que possam determinar esre senrido
- como a referência ao movimento opetário: ·, Pode-se falar neste sentido de
libertação nacional no caso dos movimentos regionalist'ls' Quant{) aos que "' A pesquiH marxista acne~ da questão nacional ou regional v~u-se
esrudei, a resposta é negativa. Por um lado, o comeúdú da reivindicação de bloquea<la. sem dúvida desde a ongem, p~!o ~feito_ co~J(!ga<lo do utop1s~o
"nação·· - quando é explicitamente formulado -- assema frequentemente na inccrn;icion,1lista (sutenwdo por um evoluc1omsmo mgenuo) (- do econom:s-
manutenção {)U no restabelecimento de rdaçôcs sociais pré-capitalistas. Isto mo sem falar dos efeicos das preocupações estratégicas do momento que
pode, de resto, passar-se sob a palavi-J de ordem de autogestão que, tomada frei;uentemente prcdetermin.irnm os .~ercdictos de _um'I •,ciêm:.i~» _voltada
neste contexto, nega a realidade da estrutura anual do processo de produção e p,ir'I a prática (e desptnvida Je uma uenna vn~a~o~ quer da cienu_a _quer
de troca (.,,), Que o projecto destes movimentos seja o de ter uma base das telações entre :i prática e a ciência). Não ha duvida Jc que a .e~rnoa do
popular, não o esqueço, mas o caso do I..anguedoc exposto por Louis Quéré aí ninjunto destes fanorcs se -v& particuhrmcnte bem na t~se, t'.pi~a1_°~nte
está para nos mosttar que a acção dos movimentos de produtores de palavtas performat·iw., do ptimado, embota muitas vez~ d~-sm:nndo '.-los fo'. . ws,
de ordem regionalistas se processa com desvios e n:tardamentos, e mesmo em das solídariedades "érnicas1 ou l!iK!OOais em tdaçao as solid,incda<le~ de
oposição, em relação aos intelenu.iis emisson:s da ideúlogia n.icionalitári.i. das 5 e. Mas a incapackh<le de histori(/::,tr ote pmh/011,i (q.ue, ao mes~o _tiHdo
Será desvaloríiar os movimentos regionalistil.s o mwi-los assim' Não, é
somente reconhecer que o que neles está cm jogo não é dado por .iquilo que
ue O primado J>is te!aç6cs espaciais ou das telações s:x:rn1s e_ genealogiGIS, (
qposto ,.~ r,.~olvido n:i hisróti,!) e a pretensão teüret1osta, m,essamememe
l
~~ __ _ .• . --. - .
deles dizem os militantes, que a sua signifo.:ação está em outra parte. e que o seu , firm.ida, p.in, designar as .,nações viave1s~ ou para_ pro,1uzit os I titcno~
1
impacto sobre a evolução do sistema soda! esni longe do conteúdo teivindicati- (ieutific:.mente válidos da identidade nadona! {d. G. H-:upt, M, I~Jwry,
vo explícito destes movimentos» (R. Dulong. lutei:venção em De11,"(fi:J!le e. Weill, Le; m,1r;,,;ii"ter i:t /,1 qmsti!Jll 11atil!11,rk, Paris, M:ispcrn, 1974)
1wco11tre e1m1péenne s11r les problémes r,:f!,irma1tx, (roneotipado) Paris, MSH, 1976), - n de=ndet direcramente do grau emf que _;i mtençao
patnci ,-~ <l J' teaknga
.
de
. .
«O problema essencial é pois o dos critérios que nos permitirão que creditemos rct1;cr e de dirigir orienta a ciência régia das .r~ntnr-Js_c os i~1'.es: nai'. .e
este tipo de movimento com esta ou aquela sígnificação M>cial» (L Quüi:, 11{'. pnr ,i.-,1so que E·,,,tinc
~• é o ,1utor da «defimçao" mais Jogmatica e m>1is
ât. p. 63 ~ poder-se-ão ler também as páginas 67 e 68, cm qut o autot w, •! dr ,H·11,1,i/i11.r d« n.i~üo.
passagem na obíeetivação da altetnaciva da particÍ[Y-•ç'.io t· ,!o ,,!,~·• i ,w,i1><>)
124 A IDEIA DE REGIÃO CAPÍTULO V 125

Dominação .simbólica e bilas rey,ionais que procura. impor senão novos princípios de di-visão, pelo
menos uma inversão dos sinais atribuídos às classes produzidas
O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso segundo os antigos princípios, é um esforço pela autonomia,
particular das lutas propriamente simbôlicas em que os agentes entendida como poder de definir os princípios de definição do
estão envolvidos quer individualmente e em esrado de disper- mundo social em conformidade com os seus próprios interesses
são, quer colectivamente e em estado de organização, e em que (nomos, a partilha legal, a atribuição legal, a lei, liga-se a nemo,
está em jogo a conservação ou a transformação das relações de partilhar segundo a lei). O que estâ nela em jogo é o poder de
forças simbólicas e das vantagens correlativas, tanto econômicas se apropriar, se não de todas as vantagens simbólicas associadas
como simbólicas; ou, se se prefere, a conservação ou a trans- à posse de uma identidade legítima, quer dizer, susceptível de
formação das leis de formação dos preços materiais ou simbôli- ser publicamente e oficialmente afirmada e reconhecida (identi-
cos ligados às manifestações simbólicas (objectivas ou intencio- dade nacional), pelo menos as vantagens negativas implicadas
nais) da identidade social. Nesta luta pelos critérios de avalia- no facto de já se não estar sujeito a ser-se avaliado ou a
ção legítima, os agentes empenham interesses poderosos, vitais avaliar-se (pondo-se à prova na vergonha ou na timidez ou
por vezes, na medida em que é o valor da pessoa enquanto procurando acabar com o velho homem mediante um esforço
reduzida socialmente à sua identidade sot:ial que est;i em incessante de correcção) em função dos critêrios mais desfavor.í.-
jogo 21:_ veis, A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os
Quando os dominados nas relações de forças simbólicas efeitos de intimidaçà/J que ela exerce tem em jogo não, como se
entram na luta em estado isolado, como é o caso nas interacções diz, a conquista ou a reconquista de uma identidade, mas a
da vida quotidiana, nào têm outra escolha a não ser a da reapropriação colectiva deste poder sobre os princípios de
aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da construção e de avaliação da sua prôpria identidade de que o
definição dominante da sua identidade ou da busca da assimila- dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita
ção a qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os ser negado ou negar-se (e negar os que, entre os seus, não
1
sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no querem ou não podem negar-se) para se fazer reconhecer i •
vestuârio, na pronllncia, etc.) e que tenha em vista propor, por O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa
meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem pela reivindicação pública do estigma, constituído assim em
de si o menos afastada possível da identidade legítima. Dife- emblema ~ segundú o paradigma «black is beautiful» -- e
rente destas estratégias gue encerram o reconhecimento da que termina na institucionalizaçilo do grupo produzido (mais
identidade dominante e portanto dos critérios de· apreciação ou menos totalmente) pelos efeitos económicos e sociais da
apropriados a constituí-la como legítima, a lura colectiva pela estigmatização. É, com efeito, o estigma que dâ â revolta
subversão das relações de forças simbólicas -- que tem em vista regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes
não a supressão das características estigmatizadas ruas a destrui- simbólicas mas também os seus fundamentos económicos e
ção da tábua dos valores que as constitui como estigmas - , sociais, prindpios de unificação do grnpo e pontos de .apoio
objectivos da acção de mobilização. Os que julgam poder
"' Sabe-se que os individuos e os grupos investem nas lutas de condemir o sionismo ao condenarem o racismo esquecem gue o
classificação wdo o seu ser social. tudo o que define a ideia que eles tl'm
deles próprios, mJo o impensado pdo qua! eles se constimem como «nús»
por oposição a ~des,., aos «outros» e ao qual esrão ligados por um,1 mksiio_ •
1
!-:sra aln.:rnariva impüc->c tambêm aos membros das classes domina~
quase corporal. Ê isto que explica a força mobilizadora exccpdomd d,· ,,.,i., ,l.,s, i1a ninl1<!n tlll 'll'(" ., ,!,,mio;iç;!O econômica é ~çompanhada qu,ist
o que roca à idenridade. 1,w1·1<.,vdl!ll"!Ht" ,k ,u11,1 ,!nu,iuci1,.io ~imh.i!ict.
126 A 1D/:JA DE REGIÃO CAPiTVLO V 127

s10nismo é, na sua origem, o produto histôrico do racismo (e das c.uacrerísticas estigmatizadas, e que a revolta contra a
também que, como mostram, por <:xemplo, as ficções da dominação em todos os seus aspectos - até mesmo económicos
política que têm em vista reconhe(er a «identidade cultural» - assume a forma da reivindicação regionalista 14 .
dos emigrados sem lhes conceder a sanção jurídica deste A fo universalista, que leva a recusar o reconhecimento dos
reconhecimento, se tem o direito de perguntar s;,_· uma identi- efeitos p,1rricu!ares e particularizante.> da reivindicação n~c.io~a~
dade cultural inicialmente firmada no estigma po<le ser real- lista, ;1inda que aceitando a reivmdieaçiio autonomista ·· ,
5

mente assegurada sem a garantia de um Estado independente). encontra uma justificação no facto de, como mostram entre
É assim, embora se possa deplorar que, por uma espécie de outros casos o destino do sionismo ou os t:feitos paradoxais da
desforra da história, aqueles que foram as primeiras vítimas das 11
autonomização (inacabada) dos cantões jurassianos ', a auto~
ideologias reaccionárias da terra e do sangue tenham sido determinação, que ê apenas a negação de uma hen:ró~determi~
obrigados a criar inteiramente, para realizarem a sua identida- nação, não fazer mais do que reproduzir o estigma, m;1s cm
de, a terra e a língua que servem geralmente de justificação forma invertida. Abolir o estigma realmente (e náo magica-
«objectiva» à reivindicação da identidade. mente, quer dizer, por uma simples inversão simbólica dos
A reivindicação regionalista, por muito longínqua que sinais de distmção <JUe pode levar até uma redefinição dos
pareça deste nacionalismo sem território, ê também uma res~ !i!l!ito no intt:rior dos quais a legitimidade da identidade assim
posta à estigmatização que produz o território de que, aparen~ definida se acha garantida) implicaria que se destruíssem os
temente, ela é produto. E, de facto, se a região não existisse próprios fundamentos do jogo que, ao produzir o estigma, gera
como espaço estigmatizado, como «província» definida pela ;1 procur.i de uma rcabi!iraçúo baseada na auto~afirmação exclu-
distância económica e social (e não geográfica) em relação ao siva que cst.i na própria origem do t:stigma, e que se façam
«centro», quer dizer, pela privação do capital (material e desaparccet os mecauismos por meio dos quais se exerce a
simbólico) que a capital concentra 22 , não teria que reivindicar dominaçiio simbólica e, ao mesmo tempo, os fundamentos
a existência B: é porque existe como unidade negativamente subjenivos e objenivos da reivindicação da diferença por da
definida pela dominação simbólica e económka que alguns ger.1dos. ~
dos que nela participam podem ser levados a \mar (e com Or.1, o paradoxo está cm (JUe, por uma cspêcie de des,1hn
probabilidades obje<tivas de sucesso e de ganho) para alte~ lançado;\ combinw.;ão Je racionalismo universalista e de econo-
rarem a sua definição, para inverterem o sentido e o valor mismo cvolucionisr,1 que fazia esperar dos dcitos universalizan-
tes da unificat.,-5.o d,1 economia o desapanx:imemo das naçôcs e
n O espaço propriamenr(· politko de- dominação dcfine-•·K pela relação Jos naoona\isrnos, estes mcc.mismos siio, com toda •1 evidên••
que se estabelece enrre a d1srribuição dos poderes t: dos bens no espaço eia, produto de um crnnt·ço de universaiizaçiio (historiolmentc
geográfico e a distribuiç.io dos agentes neste espaço, sendo a disrância
encarnada pda tradi;,;Jo jacobma). De modo que o sqx1r.uismo
gengrâfica em relação aos bens e aos poderes um bom indicc de poder.
JJ O argumento mobilizador «viver na região» deve a sua força real-· '' Podt: comprrt:Hda-s<: nest,t lógica por <-]UC r.,óío a op()si,;.1o t:ntr<: o
mesmo junro dos «burgueses» - a que. a!êm dos desenraizamemos afec- Norrc e o Sul s1: ,:n, :)11tre1 n,i lltituJe ,1sstm1id,1 a r1:sp,:iw ,h rq.;ifo ,, do
rivos, o exi!io imposto pela pro<:ura de trabalho ê acompanhado da experiên- rq.sio1rnlismo: ,is rq.;i,-,es ou~k ,1 rcivindic«<)O 1·cnnómic:: <: ,t lur,1 _u>nrrJ q
cia da desvalorização simbôlica, da desqualificação ligada ao facto de ser-se ,lo1niruçiio nii:i:1;1111 " form,1 region,dism .s;\o .iqud,1s 01;de o,; dnws ,j,,
levado pratkamenrc a oferecer Jirectamente no mercado lingufarico domi- domina~i\o nom>mica s,io m,1is nitida,ncntt ,Krcscidos dos cf<:JCos ,ia dumi-
l nante produçôes não conformes (daí, a função que cabe aos suhmercados n,iç,!O simbólic,1 (pronün,ia <:stigma[izad,1. t:tc.l.
proregidos que se reconsrituem no coração do mercado dorninnntc como i: o '' E. llohsb,iwm ....~>nic Rdknions on Tht Brc:1k~up of Brictin~
caso do frontão de Paris frequentado por Courri:ge~ ou o ,hi !\J111<,1/r •l<>s ,\f,11· 1.,/t /\',·1w1/'. 10'>. S,•1i011t. 1977. pp ..'i<2•1.
Basco-OCarncses no que diz respeiro nos cinprcJ.:.idns d(,~ ( h,·,1un l"''i.,.,l. 1\ < 11.11·1,,!l,,1. f, J..,,., n/,111J1,·· V,:n·y. lkrtil (f.ilhnd. 1976.
C,1.PiTUU) \! 129
128 A IDEIA DE REGlAO
Em rcsum{;, tl mercado dos bens simbólicos tem as suas
aparece bem como o único meio realista de combater ou de leis, que não s:'i.o as <la comunicação universal entre sujeitos
anuJar os efeitos de dominação que estão implícitos, inevitavel- universais: a tcndtncia para a partilha indefinida das nações que
mente, na unificação do mercado dos bens culturais e simbóli- impressionou todos os observadores compreende-se se se vir
cos, desde que uma categoria de produrores esteja em con<fü;ões que, na lógica propriamente simbólica da distinção - em que
de impor as suas próprias normas de percepção e de apreciação. existir não é somente ser diferente mas também ser reconhecido
É o que se vê bem no caso da língua na qual todos os efeiros de legitimamente diforeme e em que, por outras palavras, a
dominação estão ligados à múficr1ído tio mer{ad(I que, ao invés existência real da identidade supôt' a possibilidade real, juridi~
de abolir os particularismos, os constituiu em estigmas negati- camente e politicamenn: g.trantida, de afirmar oficialmente a
vos27. Assim, o verdadeiro suporte objectivo do regionalismo diferença - qualquer unificação, que a.rúmilr aquilo que é
occitânico reside não nos falares locais que, já heterogéneos, diferente, encerra o princípio da dominação de uma identidade
foram desnaturados e desenraizados pela confronrnç;io com a sobre outra, da neg.u;ão de uma identidade por outm.
língua dominante, mas sim no Jra11d.1 111endwn,d, bastante í: preciso, pois, romper com o economismo ·~ marxisra ou
diferente do francês legítimo na sua sintaxe, no seu vocabulário qualquer outro - que reduz o regionalismo à paixáo, ou
e na sua pronúncia para servir de base a uma <leprecia1,;áo mesmo à patologia, porque, por náo reconhecer a contribuição
sistemática de todos os seus utilizadores, independentemente da<la à construção do real pela representaçíio que os agentes têm
da classe a que pertençam (se bem que a propensão e a aptidão do real, e!e não pode compreender -a real contribuição que a
para a «correcção» aumente à medida que se sobe na hierarguia transformação coleniva da representação co!ectiva dá à trans-
social), e a uma forma doce e larvada de racismo (firmada na formação da realidade. Mas sern esquecer por isso que há uma
oposição mítica do Norte e <lo Sul) 2 x. economia do simbólico gue é irredutível ;[ ewnomia (t:m
sentido restrito) e que as lutas simbólicas têm fundamentos ~- 1
~1 P. Büurdieu e L Boltanski, oj,. út. m,t,1 13.
ta Po<le pensar-se que, it!ém cfos dl'iws da transinissiio direna das efeitos económirns (em sentido restrito) efectivameme reais. F
vanragens sociais que estão ligadas ao capital social, a prnnúnci,1 lcgfrima assim que, corno bem mostra Eric Hobsbawm.:", a mundiali;.,:a-
desempenha um papel não <lt>Scur.ivd rm privilép;io de qut· lwnefióam, para ção da economia, de qu<: se poderia ter esperado fizesse
o acesso à dasse dominante, as pessoas nascidas na região p,trisiense ou que desaparecer os micionalismos, poderia ter permitido caminho
fizeram nela ()S seus esru<los - (privilégio que vai ,iumemando à medida
livre à lógica da diforencíaç;lo simbólica, criando assim as
que se sobe na hierarquia <la~ funções, Jes<lc os bispos, os prefciws ou os
generais aré aos directores de ministérios, aos insrwuores de fin,u1ças (lU aos con<li<:/ws que tornassem possívc! um separatismo quase sem
PDG• das grandes sociedades, todos ,:;olo<:ados no o:ntro do poder cenrral) .
•Esta hipótese acha uma ,:;onfirmação no fano de a taxa de parisienses (n11s-
cidos em Paris ou residentes em Paris no momento <la enm1Ja em ("/f!me) Sl'llS ,danos na burµ:m·sia paris,cnse, quer duer, Ciêm "'s PO, HEC, ENA<.'"·'
ent~e os alunos das escolas superiores crescer segundo o mesmo princípio, Mines Je Pari,, e por outro bdo. ,L\ csn>Ll$ que recrur;un sohrnudo im blirgue-
quer dizer, segundo a hierarquia seguinte: Érn!e des P. et T., Mines de ~ia de prnvfnci.1, querdizrr, UI.M, S<:vr"s, Pnlytcdmiyue c A~rn. Tud() paren·
Saint-Etienne e Saim-Cloud, Fontenay, Ulm, Sevres, Agro, Mines <le Nan- pois indintr que o peso rresu:nrt· nn univnso d,1s vias ck .t('l'SSo às posi\·ôes
cy, Mines de Paris, Po!yte,:;hnique e, enfim, HEC, ENA e Cíi:ncias PO em chiminantes de Ciências PO, HEC ou ENA, que, sob ,i :tparênciadenwsider;ir
que existem mais de 50?f. dos ali.mos naquelas çondi\·tJt's. Vê-·se que as apen,is critério, de sek..::ç.lo univers-a.1s, umnxk um rn<,nh('rimcnto e~rx.-cial-
vanrn,-:ens associadas à pronúnria legítima, elemento do rapital associado ao nwr1ce marrnJo às propried:1des mai~ (MacteristiCi<S do h.1hit//.f !egítimu, qun
1'
nas,:;imento 1111 rnpirnl, vêm acrescer às vantagens assO<:iadas a uma origem ,!in·r, parisiense (como a pronúncia(" sem dúvida muitas nutra~ canKreríst!G!S),
,i,
social elevada. É assim que a oposição é ainda mais marcada enm_. esc;llas a·m , ontribuido p;1r,1 rcfon;,ir ;! inferioridade Ja burguesia de província.
superiores se se levar em linha de conta ao mesmo tempo o h,_..:ar d,· ~ pi)(; Pn-~id,-1u ,lirc,tn,r i:<·néral
residência dos pais no momento de entrada em Óátif e a <>ri;•,cm "" 1.1/· '" !'. 1!oli~htwfll, /,,, ui.
têm-se ;1ssim, de um lado, as esro!as que reautam uma ,gr,,,,.!,· 1'·'"'' "'"

l
130 A IDEIA DE REGIÃO CAPiTULO V 131

limites econAmicos. Com efeito, o l ·itério do t,m!d11h1J do movimentos regionalistas o empenhamento pelo regional, pelo
território a que se referiam os teóricos (marxistas, em especial) local, pelo provincial, fornece aos detentores de um capital
para determinarem os «Estados viáveis,,, quer dizer, capazes de cultural e simbólico, cujos limites são, muitas vezes, objectiva-
oferecer um mercado suficientemente extenso e diversificado e, mente imputáveis (e quase sempre subjectivamente imp~tados)
secundariamente, capazes de se protegerem contra as agressões ao efeito da estigmatização regional, um meio de obterem um
exteriores, perde uma grande parte d,t sua significação desde rendimento mais elevado cfoste capital nacional investindo-o
que se generalize a dependência dos Estados (e das nmJk•s) em num mercado mais restrito, em que a com:orréncia é mais
1
relação à economia internadonal e em relação âs empres,:is fraca ". No caso oposto, segundo uma !ôgica que se observa no
transnacionais -- e isto na medida em que o equilíbrio das conjunto da classe dominante e, em particular, entre os diri-
forças entre as grandes potências militares tende a assegurar gentes da indústria, os agentes activamente envolvidos na luta
uma protecção de funo aos pequenos paises. A nova divisão parecem tanto mais voltados para o transregional quanto mais
internacional do trabalho não só não cond<:na os pequenos ligado está ao poder central, nacional ou internacional o seu
Estados isolados, como tambêm se acomoda muito bem a essas capital econômico t cultural -11 .
unidades oficialmente autónomas e incapazes de impor
constrangimentos aos capitais estrangeiros (visto que os poderes
locais podem encontrar ganhos evidentes em cederem a sua '" Esrn lógica obs1;rva-se no rnmpo cientifico em que a fissão"' das
disóp!inas pcrmitç que se assegure uma dominação mais mmpkra sobre um
dependência âs grandes potências t..-conómica;;). Mas, simulta~
domínio mais rcstriro: é o que descreve, por exemplo, Ernst Kanrnrowicz
ocamente, a redistribuição dos investimentos no espaço, em que mostra com() os jurista~ de Bolonha conseguiram garantir, no século
função apenas da lógica das taxas diferennais de lucro, e a X.11, o monc)pólio do direito por meio de uma divisão dos püderes, em
deslocalização do poder, que dai resulta, tendem a estimular a relação ao rei, e de uma difcrcncia,;.-ão funcion;d das atribuições Jas diferen-
revolta contra o Esrado. tes mstirmçôcs nKarrcgaJas de administrar o direito (cf. f:. Kanrorowicz
Uma economia das lutas regionalistas <leve ria assim dnermi- uKinship under the Imrxin of Scientific Jurisprudcnceh, in Tu-e!fth-•Cmtttr;.
E11ropr a11d the Fo1111datitmJ 11/ .Moder11 Soáefr, M. Clagen, G. Posr e
nar os princípios segundo os quais as diforentes categori,1s de R. Reynolds cds. Madison, Universiry of Wisconsin Press, 1961,
agentes activamente ou passivamente envolvidos nas lutas regio- pp. 89-11 l).
nalistas se distribuem entre partidários e adversários dn poJer * ufission~ no texto origimil (N. T.).
local. Se todos os observadores cstiio de acordo em notar que os "Q uanro aos <1ue, nesra luta, estão t·ondcnados ao papel passivo de
mÍ.f<t.í f/11 jogl!, rndo permite supor que. a!êm dos facrores ordinârios da
intelectuais desempenham um papd derermin,mtc no trabalho
propensão para aceirnr a transformação ou : conservação (quer dizer. essen-
simbólico que ê necessário p,1ra contrariar as forças tendentes à cia!menrc, a posição na çscrurura social e a trajecrôria, ascendente ou
unifica<;ão do mercado dos bens culturais e simbólicos c os descenderite, que conduz ;1 esta posição), ê o bahi.nço dos ganhos anuais e
efeitos de desconhecimento• por elas imposto aos defensores dos ganhos t:!>pcr:idos, quer dizer, dos ganhos proporcionados pelo nacional
das línguas e das culturas locais, não se inten.•ssam por situar " (salàrio_s, reformas, etc.) t dos ganhos prometidos pelo regiona!, que
posição desses intelectuais no cainpo intdcctual nacional que determina as opções. Ao suspt•nder a eficâci'l. assimiladora da instituição
escolar corno via privilegiada de ascensão -- e d{' integração - social, a
poderia estar na origem d:is suas tomadas dt posiçiio sobre as ,!1:íd(l_1!//ic,,1(do (cf. P. Bourdicu, ~Classemcnt, dédassemenr, redasscmenr,,,
rdações entre o nacional t• o regional: tudo parece.:, com efeito, Attn dr /,1 mhadx em Himm Joáakr, n. 0 24, Nov. 1978, p. 2-22) favorece
indicar que, tanto no caso dos romancistas regiona!ü,ms, estu- 115 ,irirudcs anti-insriruóonais, dirigidas contra a Escola, o Estado e a
1 dados por Rêmi Ponton como no caso dos inspir:idnrcs dns Funi!i.t. e leva a ptqtwo~ nova burguesia a recusar o papel de correia de
! ransmiss,ío que rb ,ksnupn1h,1v.1 na !ura de concorrência integradora e a

"' ~mfronnaissance,• ((gnotância, niio-reronhn Í!lWP!1>) f "-i / l


.c1ur,1r 111,m.1 roi1t('.~f.1\,1<> (.11uhigu.1) ,!(> ccuna! {Jl!e ê ,u:-ompanhada por uma
(('i\'!!1<!1<.,\,!0 d., J\.!111, '!'·"··''' 111>\ f><klt-tcs !11,,iis.
132 A IDEIA DE REGIÃO

E reencontraríamos assim o ponto de partida, quer dizer, as


determinações que a posição, central ou loc~I, no espa~o de
jogo faz pesar sobre a visão do jogo, e .que so a construçao do CAPÍTULO VI
jogo enquanto ral pode permitir neutrahzar, pelo menos duran-
te O tempo de uma análise. füpaço social e génese das «classes~,

A construção de uma teoria do espaço social implica uma


série de rupturas com a teoria marxista 1 • Ruptura com a
tendência para privilegiar as substâncias -- neste caso, os
grupos reais, cujo número, cujos limites, cujos membros, etc.
se pretende definir-~ em detrimento das reÍafões e com a ilusão
intelectualista que leva a considerar a classe teórica, construída
pelo cientista, como uma classe real, um grupo efecrivamente
mobilizado; ruptura com o economismo que leva a reduzir o
campo social, espaço multidimensional, unicamente ao campo
económico, às relações de produção económica constituídas
assim em coordenadas da posição social; ruptura, por fim, com
o objectivismo, que caminha lado a lado com o intelectualismo
e que leva a ignorar as luras simbólicas desenvolvidas nos
diferentes campos e nas quais está em jogo a própria represen-
tação do mundo social e, sobretudo, a hierarquia no seio de
cada um dos campos e entre os diferentes campos.

O espaço social

Num primeiro tempo, a sociologia apresenta~se como uma


topologia social. Pode-se assim representar o mundo social em
forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de
princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo
conjunto das propriedades que actuam no universo social
(\msiderado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor

1
Uma versão abreviada deste texto foi pronunciada no quadro das 1.
V"r/1'.!rmgm zu dm (;rútt1 m1rlS01:idlwiuenschaften, na Universidade de Franc-
f(irit". nn h:vcrriro ,k l<JH-1.
134 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES CAPITULO VI

delas, força ou poder neste universo. Os agentes e grupos de pr<:stígio, reputa\àO, fama, etc que é a forma p<:rcebida e reconhecida como
agentes são assim definidos tJela.s suas poJ1ç1kJ re/,:1ti1·<1.1 neste kg-frima d,.,; dift·rentes espfries de capital. Pode-se assim construir um
moddo $Ímplificado do campo so<:ial no seu conjunto que J'><:rmitt pens.i.r a
espaço. Cada um deles está acantonado numa posiçáo ou numa posi~·ão de rnd.i agenre cm rodos os espaços de j{igo possíveis (,fando-,w JX)r
classe precisa de posições vizinhas, quer dizer, numa região entendido que, se cada campo t,:m a sua lógica própria e a sua hi<:rarquia
determinada do espaço, e não se pode ocupar re,tlmente duas própria, ;1 hi•:r;tr9uia que s<; estabelece entre ais <:spfries Jo capita! e a liga\·áo
regiões opostas do espaço - mesmo que tal sep concebível. c•sotística e:xisrente entre os diferentes havetes fazem com que o campo
Na medida em que as propriedades tidas em consideração para econúm1to rend,1 a impor a sua estrutura aos outros campos.
se construir este espaço são propriedades anuaotes, ek pode ser Pod<:-se descrever o campo social corno um espaço multidimen-
descrito também como campo de forças, quer dizer, como um sional Je posíçóes tal que qualquer posição actual pode ser definida
conjunto de relações de forç,t objectivas impostas li rodos os que em função de um sistema multidimensional de nxJrdenadas cujos
entrem nesse campo e irredutíveis às intem;ões dos agentes valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes:
individuais ou mesmo às interarçiitr directas entre os agentes~. os agentes distribuem-se assim nele, na primeirn dimensão, segundo
As proprietbdes actuantes, tidas eni consideru~·iio como prindpios _de o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão,
construção do espaço social, são as diferentes espécies de poder ou de capru! se,gundo a composi\'i'ÍO do seu capital -- quer dizer, segundo o
que 0<:orrem nos diferentes çampos. O capital - que pode c:xistir nu est<.tdo peso relativo das diforentes espénes no conjunto d;L~ suas posses .i.
obiectiva<lo, em foram de propricch1de.s materiais, ou, no (aso do UlpHal
cultural, no e.srndo incorporado, e que pode ser juridicamente g-,1rstnti<lo -- A formü de que se rcvestt', em <:ada 1nomento (· em <:ada nunp<.> soda!, o
representa um poder sobre um çampo (num dado momento) e, mitis pre(is,1- conjunto das disrribui1;ô,:s das diferentes esfX:'t·ies de capita.! (inrnrporaJo ou
mente, sobre o produw acumulado do trllbalho passado (em p1mi<ular sobff o mMerfalirado), (Omo instmmentos de aptopria1;ão do produw objeuivado do
conjunto dos insuumenrns de produção), logo sobre os mecanismos que rnn- trabalho soci.1] acumufado, define o estado <las re!m/ies de for1;a -- institucionaliza-
uibuem para assegurar a produção de uma <:ategoria de bens e, deste nwdo, das em esrntutos SIKiais dur.tdoiros, socialmente rcrnnheciJos ou juridicamente
sobre um conjunto de rendimentos e de ganhos. As espécies de capital, à garantidos--, entre itgente~ oí'iecriv-,encntc definidos pela sua posi\âo nestas
maneira dos trunfos num j<>go, são os poderes 9ue definem as probabilidades relações. Esw posição determina os rxxkrts acmaís ou porenoais nos diferi:ntc'S
de ganho num campo determinado (de fano, a ta&1 campo 1m subcampo cor~ rnmpos <: as prob.ibilidadcs de acesso aos g;mhos espi..x:ífaos que des (K:tsiorr,un·',
respünde uma espécie de capim! partiçular, 9ue ocorre, çomo poder e tomo
coisa em jogo, nesre campo), Por e:xemplo, o volume do çapirnl cu!mr,1! (o
mesmo valeria, 1md.ttÚ 11111!,a//hs, para o capital económico) dewrmina as pro- ' O in9uériro estatístico sü p:idc >1preender esta relação de fori;as em
b,,bilidades agregadas de ganho em rodos os jogos em que o capita! cultural é forma de pmprin-llfk', por vezes juridicunente ganmridiis por meio dos
eficiente, contribuindo deste modo para determinar a posição no espaço social tít,do.r de propri<:dadt econúmica, cultural -- títulos eSl.'olarcs - ou so<.'ia!
(na medida em que esrn posição é determinada pelo sucesso no campo cultural), -- títulos de nobreza _,,_; é isto qu<: explica o !iamt entre a p,:•sqc1isa
A posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser empírirn sobre as classes e as teorias d;1 estrutura social como ('J/1;,ti/1,A<i,,
definida pela posição que ele ocup,1 nos diferentes rnmpos, quer dizer, desnita em termos de distância t·m relação :tos instrumenros de apropri,1ç:io
na distribuição dos poderes 9ue auuam em cada um deles, seja, .sobretudo, ( «distância em rehição ao núcko dos valor<:s <:ulturnis» de H,dbwad1s),
o capital económico - nas sua$ diferentes espéóes - , o capita! cultural como faz o próprio Marx quando fala da «m.issa privad11 de propriedade»
e o <:apitai social e também o <:apitai simbó!Í((), geralmente chamado ·' Em certos universos sociais, aos princípios dt divisão qut, como o
volume e a estrutura do capita!, dNerminam a estrutura do esp-,1\0 soda!
acres<:<:m princípios de divisão relativamente independtmcs das proprieda-
' Pode--se julgar rer-se rompido com o substandalismo e ter-se intro- des económicas ou <:u!turais, rnmo a fiiiü~·;lo étnica ou religiosa. A Jistribui-
duzido um modo de pensamento relaóonal quando se estudam de fano as \·ão dos agentes aparet.·<: neste caso <:orno o pro<luro da interS<.'<-·çào de dois
interacções e as permutas reais (de fano, as solidatíedades prátin1s, rnmo as ('spaços qm: são parcialmemc independentes, podendo uma etnia siwa<la em
rivalidades prátirns, ligadas ao wnrano directo e à interaci;iio - vi,:inhan~·a posi~ão inferior no espaço <las ewias ocupar posições em todos os campos,
- podem ser um (JÍJ,rh{m/o à construção das solidariedade~ J,,,~t'adas na ,ti11da os mais altos, mas com rn.xas de representação inferiores às de uma
vizinhança no espaço ti~írico). etnia ~iwadi! numa posição supt'fÍOr. Cada etnia pode assim ser carnncriz.ida
136 ESPAÇO SOCIAL E GÊNESE DAS CLASSES CAPiTULO VI 137

O conhecimento da posição ocupada neste e~paço comporta uma infor- análise estatística que é o único meio de revelar a estrutura do
mação sobre as propriedades imrinsenis (condição) e relacionais {posição) dos espaço social) não existem como grupos reais embora expli-
agentes. Isso vê-se particularmente bem no t:aso dos (X.Uty&ntes das posiçôes
quem a probabilidade de se constituírem em grupos práticos,
imermêJias ou mêdias que, alêm dos val()fCS mêdios ou medianos das suas
propriedades, devem um çerto nUmero das suas t·arnncrísticas mais tipicas famílias (homogamia), clubes, associações e mesmo «movimen- li
ai

ao facto de estarem situadas mtn os dois pólos do campo, no pomo 11cNtm do tos» sindicais ou políticos. O que existe, ê um espç1ço de relações '1
espaço. e de oscilarem entre as duas posiçües extremas. o qual ê tão real como um espaço geogrâJico, no qual as 1

l
mudanças de lugar se pagam em trabalho, em esforços e
sobrerudo em tempo (ir de baixo pata cima é guindar-se, trepat
Class.e.r m1 pdpd e trazer as marcas ou os estigmas desse esforço). Tambêm as
distâncias se medem nele em tempo (de ascens·ão ou de
Com base no conhecimento do espaço das posiçôes, podemos reconversão, pot exemplo). E a ptobabilidade da mobilização
recortar c/aJJeJ no sentido lógico do termo, quer dizet, conjuntos em movimentos organizados, dotados de um aparelho e de
de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados porta--voz (precisamente aquilo que leva a falar de «classe») será
em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos seme- inversamente proporcional ao afastamento nesse espaço. Se a
lhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e intetesses probabilidade de reunit tealmente ou nominalmente ~ pelo
semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhanrcs. poder do delegado - um conjunto de agentes é tanto maior
Esta classe no papel tem a existência terJru,1 que é a das teotias: quanto maior ê a sua proximidade no espaço social e quanto
enquanto produto de uma classificação explicativa, perfeita- mais restrita, logo mais homogl:nea, ê a classe construída a que
mente semelhante à Jos zoôlogos ou dos botânicos, ela permite eles pertencem, a aproximaçáo dos mais chegados nunca é
explicar e prever as práticas e as propriedades das coisas nece.u,iria, fatal (pois que os efeitos da concorrência imediata
classificadas ~ e, entre outrns, as das condutas de reunião em podem fazer barreira) e a aproximação dos mais afastados nunca
grupo. Não ê realmente uma classe, uma classe actual, no é impossfrel: se há mais probabilidade de mobilizar no mesmo
sentido de gtupo e de grupo mobilizado para a !uta; poder-se-ia grupo real o conjunto dos operârios do que o conjunto dos
dizer, em rigor, que é uma d asse pn;uird, enquanto conjunto de patrões e dos operários, pode-se, graças a uma ctist inrernacio-
agentes que oporá menos obstáculos objtctivos às acções dt nal, por exemplo, conseguir um agrupamento baseado em
mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes. liames de identidade nacional (isto em patte porque, pela
Deste modo, ê pteciso afitmat, contra o rdati/!ismo nomina- história que lhe é prôpria, cada um dos espaços sociais nacio-
listd que anula as diferenças sociais ao reduzi-lãs a puros nais tem a sua estrutura própria ~ por exemplo cm matéria de
artefactos teútkos, a existência de um espaço objectivo que desvios hierárquicos no campo econômico).
determina compatibilidades e incompatibilidades, proximida- Como o ser segundo Aristóteles, o mundo social pode set
des e distâncias. É preciso afirmar, contra o rettb.rmo d(/ intelixí- dito e construído de diferentes modos: ele pode ser pratica-
t'el (ou reificação dos conceitos), que as classes que podemos mente percebido, diro, construído, segundo diferentes ptincí-
recortar no espaço social (por exemplo, por exigências da pios de visão e de divisão ~- por exemplo, as divisões étnicas
- , dando-se por entendido que os reagrupamentos na estrutu-
ta do espaço construído na base da distribuição do capital
pelas posições ~ociais dos seus membros, pela taxa de dispersão dessas
j
aptesentam maiores probabilidades de serem estáveis e duradoi-
posições e. enfim. pelo seu grau Je integração soei a!, apesar da dispersão
(podendo a solidariedade êtnirn produzir o efeito de assegurar um,1 form•t de ros e que as outras formas de reagrupamento estarão sempre
mobilidade colecriva). arnrn<:;adas pelas cisôes e oposições ligadas às distâncias no
1.l8 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CL15SES CAPÍTULO VI 139

espaço social. Falar de um espaço social, é dizer que se não Por uma espécie de falsificação de escrita, fazem-se desapa-
pode juntar uma pessoa qualquer com outra pessoa qualquer, recer as questões mais importantes: por um lado, a própria
descurando as diferenças fundamentais, sobretudo económícas e
culturais. Mas isso não exclui nunca completamente que se
questão do político, a da acção própria dos agentes que, em
nome de uma definição teórica da «classe», destinam aos seus
ii
possam organizar os agentes seg~ndo outros princípios de divi- membros os fins oficialmente mais conformes com os seus
são -~ êtnicos, nacionais, erc. E preciso-, de resto, notar que interesses «objectivos», quer dizer, teóricos, e a do trabalho l,,
estes esrão geralmente ligados aos princípios fundamenÍ:ais, pelo qual eles conseguem produzir, se não a classe mobilizada,
estando os conjuntos étnicos, eles prôprios pelo menos grossei- pelo menos a crença na existência da classe, fundamento da
ramente, hierarquizados no espaço social, por exemplo, nos autorid;tde dos seus porta-vozes; por outro lado, a questão das
E. U. A. (por intermédio do critério de antiguidade na imigra"' relações entre as classificações com ambição à objecrividade que
ção, à excepção dos Negros) 5 . o letrado, nisso pa.recido com o zoólogo, produz, e as classifica-
É isto que marca uma primeira ruptura com a tradição ções continuamente produzidas pelos próprios agentes na exis-
marxista. Com efeito, esta identifica, por vezes, sem outra forma tência corrente e por meio das quais tentam modificar a sua
de processo, a classe construída com a dasse real, quer dizer, as pM1ção nas dassificaçôes objectivas ou os próprios princípios
coisas da lógica com a lógica das coisas, como Marx dizia segundo os quais essas classificações são produzidas.
censurando Hegel; outras vezes, distinguindo-as pela oposição
entre a «classe-em-si», definida na base de um conjunto de
condições objecrivas, e a da «classe-para-si» radicada em factores A pem:pçiio do l!tlíndo stKi4/ e a luta prJ/ilica
subjectivos, ela desàeve a passagem de uma à outra, sempre
celebrada como uma vndadeira promoção ontológica, em A reoria mais acentuadamente objectivista tem de integrar
termos de uma lógica ora totalmente determinista, ora, pelo não só a representação que os agentes têm do mundo social,
contrário, plenamente voluntarista. No primeiro caso, a rransi- mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles
ção aparece como uma necessidade lôgica, mecânica ou orgânica dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para a
(a transformação do proletariado como das.re-em-st em daHe-para- própria construção desse mundo, por meio do trabalho de
~.ít ê aqui apresentada como um efeito incvitâvel do tempo, da representação (em todos os sentidos do termo) que continua-
«maturação das condições objectivas»); no segundo caso, ela mente realizam para imporem a sua visão do mundo ou a visão
apresenta-se como o efeito da «tomada de consciência», concebi- da sua prôpria posição nesse mundo, a visão da sua identidade
da como «tomada de conhecimemo» da teoria operada sob a social. A percepção do mundo social é produto de uma dupla
direcção esclarecida do partido. Em caso algum nada ê dito estruturação social: do lado «objectivo», ela está socialmente
acerca da alquimia misteriosa pela qual um «grupo em luta», estruturada porque as autoridades ligadas aos agentes ou às
colectivo personalizado, agente histórico que determina os seus instituições não se oferecem à percepção de maneira indepen-
próprios fins, surge das condições económicas objectivas. dente, mas em combinações de probabilidade muito desigual (e 1
tal como há mais probabilidades de que sejam os animais com il
\a
~ A mesma coisa se diria açerca das relações entre o espaço geogrâfü:o e penas a terem asas do que a tê-las os animais com pêlo,
o espaço social: estes dvis espaços nunca coincidem completamente; no
1
também há mais probabilidades de que os visitantes de museus
enrnnrn muitas diferenças gue, geralmente, se associam ao efeito do espaço
geográfico, por exemplo, à oposição entre o cemto e a periferia. são o efeito sejam os que possuem um forte capital cultural do que os que
da distância no t:spaço social, guer dizer, da disuibui,;:"io desigu;!] ,bs dele estão desprovidos); do lado «subjectivo», ela está estrurn~
diferenres espêcies de capital no espaço ,1;eoJ,1:rJ.firn. rnda porquf' os eSt1m·mas de percepção e de apreciação susceptí-
140 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSfü CAPITULO VI

veis de serem utilizados no momento considerado, e sobretudo sentido marxista, o sentido da posição ocupada no espaço social
os que estão sedimentados na linguagem, são produto das luras (aquilo a que Goffman chama o «sense of one's pJace») está no
simbólicas anteriores e exprimem, de forma mais ou menos domínio prático da estrutura social no seu conjunto, o qual se
transformada, o estado das relações de força simbôlicas. Ê descobre através do sentido da posição ocupada nessa estrutura.
certo, em todo o caso, que os objectos do mundo social podem As categorias de percepção do mundo social são, no essencial,
ser percebidos e enunciados de diferentes maneiras porque, produto da incorporação das estruturas objectivas do espaço
como os objectos do mundo natural, eles comportam sempre social. Em consequência, levam os agentes a tomarem o mundo
uma parte de indeterminação e de vago~- pois que, por exem- social tal como ele é, a aceitarem-no como natural, mais do que
plo, as combinações mais constantes de propriedades nunca a rebelarem-se contra ele, a oporem-lhe possíveis diferentes, e
têm outro fundamento que não sejam as ligações estatísticas até mesmo antagonistas: o sentido da posição como sentido
entre caracteres substituíveis - e também porque, enquanto daquilo que se pode ou se não pode «permitir-se a si mesmo»
objecros históricos, estão sujeitos a variações no tempo, estando implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites
a sua significaçJo, na medida em que se acha ligada ao porvir, («isso não é para nó'ii») ou, o que é a mesma coi$a, um sentido
em suspenso ela própria, em tempo de dilação, expectanu, e, das dis_tâncias, a marcar e a sustentar, a respeitar e a fazer
deste modo, relativamente indeterminada. Esta parte de jogo, respeitar . - e isto, sem dúvida, de modo tanto mais firme
de incerteza, é o que dá fundamento à pluralidade das visões do quanto mais rigorosas são as condições de existência e quanto
mundo, ela própria ligada à pluralidade dos pontos de vista, mais rigorosa é a imposição do princípio de realidade (dai o
como o dá a todas as lutas simbólicas pda produção e imposi- profundo realismo que caracteriza frequentemente a visão do
ção da visão do mundo legítima e, mais precisamente, a todas mundo dos dominados e que, funcionando como uma espécie
as estratêgias cognitivas de preemhimento que produzem o senti- de instinto de conservação socialmente constituído, só pode
do dos objectos do mundo social ao irem para além dos parecer conserw.dor em referência a uma represent'lção exterior,
atributos directamente visíveis pela referência ao futuro e ao portanto normativa, do «interesse objectivo» daqueles que ele
passado - esta referência pode ser implícita e tácita, através do ajuda a viver, ou a sobreviver) 6 •
que Husserl chama a protensão e a retenção, formas práçicas de
prospecção ou de retrospecção que excluem a posição do futuro 6
Este sentido das realidades não implica, de forma alguma, consâênâa
e do passado como tais; ela pode ser explícita, como nas luras de classe no sentido psicosociolôgico, o menos irreal que se pode dar a este
políticas, em que o passado, com a reconstrução retrospeniva termo, quer dizer, uma repreJl/1/Jafiio explíâta da posição ocupada na estrutura
de um passado ajustado às exigências do presente («La Fayette, social e dos interesses colenivos que lhe são correlativos; menos ainda uma
aqui estamos!»), e sobretudo o futuro, com a previsão criadora, teüt'ia das e/asses wciais, quer dizer, não sô um sistema de classificação
firmado em princípios explícitos e logicamente controlados mas também
são continuamente invocados para determinar, delimitar, defi- um conhecimento rigoroso dos mecanismos responsáveis pelas distribuições.
nir o sentido, sempre em aberto, do presente. De facco, para acabar de vez com a metafísica da tomada de consciência e da
Sustentar que a percepção do mundo social implica um acto consciência de classe, espêcie de cogito revolucionârio da consciência coleniva
de construção não implica, de modo algum, que se aceite uma de uma entidade personificada, basta examinar as condições económicas e
teoria intelectualista do conhecimento: o que é essencial na sociais que possibilitam esta forma de distância em relação ao presente da
pnlrica implicada pela concepção e a formulação de uma representação mais
experiência do mundo social e no trabalho de construção qut' ou mrnos elalxirada de um futuro colectivo. (É o que eu tinha esboçado na
eJa comporta opera-se, na prática, aquém do nívd da r<•presen- minha ,inâlise das rdaçôcs entre a consciência temporal - e sobretudo a
tação explícita e da expressão verbal. Mais dw;.:atlo a um aprid:io para o cákulo tx·om'>mirn racional - e a consciência política entre
inconsciente de classe que a uma «consrit"nô;1 d1· t hs\("•• 1H1 o~ r r,d'>'illiador..!S ,tr;.:<'liuusl.

l
CAPÍTULO Vi 143
142 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES
J
Se as relações de força objectivas rendem a reproduzir-se nas o trabalho de produção simbólica que os poetas excretam,
visões do mundo social que conrribuem para a permanência sobretudo em situações de crise, em que o senrido do mundo se
dessas relações, é porque os princípios estrururantes da visão do esquiva, lhes conferiam funções políricas eminentes, como as
mundo radicam nas esrrururas objecrivas do mundo social e de chefe de guerra ou de embaixador 7 • Mas com os progressos
porque as relações de força estão sempre presentes nas consciên- da diferenciação do mundo social e a constituição de campos
cias em forma de caregorias de percepção dessas relações. Mas a relativamente autónomos, o rrabalho de produção e de imposi-
parte de indererminação e de vago que os objecros do mundo ção do sentido faz-se ranto no seio das lutas do campo de
social comporram é, com o carácter prático, pré-reflexivo e produção culrural como por meio delas mesmas (e sobretudo
implíciro dos esquemas de percepção e de apreciação que lhes ~o seio do subcampo polírico): ele ê a função própria, o
são aplicados, o ponro arquimédio que se oferece objectiva- interesse especifico dos produtores profissionais de representa-
mente à acção propriamente política. O conhecimento do ções objectivadas do mundo social ou, melhor, de métodos de
mundo social e, mais precisamenre, as categorias que o tornam objecrivação.
possível, são o que estâ, por excelência, em jogo na luta $e o modo <le percepção legítimo é· objecto de luras tão
política, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de importantes, ê porque, por um lado, a passagem do implícito
conservar ou de transformar o mundo social conservando ou ao explícito nada tem de automático, podendo a mesma
rransformando as caregorias de percepção 1desse mundo. experiência do social reconhecer-se em expressões muiro dife-
A capacidade de fazer exisrir em estado explíciro, de rentes, e porque, por outro lado, as diferenças objecrivas mais
publicar, de rornar público, quer dizer, objectivado, visível, acentuadas podem estar dissimuladas por diferenças mais ime-
dizível, e aré mesmo oficial, aquilo que, por não ter acedido à diatamente visíveis (como as que separam as etnias, por exem-
existência objectiva e colectiva, permanecia em esrado de plo). Se é verdade que existem na objecrividade das configura-
experiência individual {;u serial, mal-esrar, ansiedade, e.xpecta- ções perceprivas, Gestalten sociais, e que a proximidade das
ção, inquietfü.;ão, representa um considerável poder social, o de condições, portanro, das atitudes, rende a retraduzir-se
constiruir os grupos, constiruindo o senso commn, o consenso em ligações e em reagrupamentos duradoiros das unidades
explícito, de qualquer grupo. De facro, este trabalho de sociais imediatamenre percepríveis, tais como regiões ou bair-
categorização, quer dizer, de explicitação e de classificação, 7
Neste caso, a produção do senso comum consiste, essencialmente,
faz-se sem interrupção, a cada momento da existência corrente, em reinterpretar ininterruptamenre o tesouro comum de discursos sagrados
a propósito das lutas que opõem os agentes acerca do senrido (provérbios, ditados, poemas gnómicos, etc.), em «dar um sentido mais
do mundo social e da sua posição nesse mundo, da sua puro às palavras Ja tribo». Apropriar-se das palavras em que se acha
identidade social, por meio de todas as formas do bem dizer e sedimentado n;Jo o que o grupo reconhece ê ter a garantia de uma
do mal dizer, da bendição ou da maldição e da maledicência, vantagem considerâvel .nas luras pelo poder. É o que se vé bem nas luras
pela auroridade religiosa: a palavra mais preciosa é a palavra sagrada e, como
elogios, congrarulações, louvores, cumprimenros ou insulros, nota Gershom Scholem, é por a contestação mísrica ter de se reapropriar dos
censuras, críticas, acusações, calúnias, etc. Não é por acaso que
kategorein de que vêm as nossas categorias e os nossos caregore-
simbolos para se fazer reconhecer que ela acaba por ser «recuperada,. pela
tradição. Objectos de luta, as palavras do léxico político trazem a marca da l
!
mas, significa acusar publicamente. polêmica _na forma da polimmia que ê o vestígio dos usos antagonisw que
Compreende-se que uma das formas elementares do poder grupos d1ferenres delas fizeram e delas fazem. Uma das estratégias mais
universais dos profissionais do poder simbólico - poetas nas sociedades
político tenha consistido, em muiras sociedades arcaicas, no ;1rciirns, profetas, homens políticos - consiste assim em pôr o senso C()mum
poder quase_mágico de nomear e de fazer exisrir pela virtude da do seu próprio lado apropriando-se das palavras que estão investidas de valor
nomeação. E assim que na Cabila, a função de cxp!icit;1çii•) e por rndo o grupo, porque são depositárias da crença dele.

1
f 144 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES
CAPiTULO VI 145
ros socialmente distintos (com a segregação espacial), ou dos
conjuntos de agentes dotados de propriedades visíveis perfeita~ quado do espaço social quando ela é percebida segundo as
mente semelhantes, tais como os Stdnde, também é verdade que categorias derivadas da estrutura desse espaço. O capital simbó-
só há diferença socialmente conhecida e reconhecida para um lico - outro nome da distinção - não é outra coisa senão o
sujeito capaz não só de perceber as diferenças, mas também de as capital, qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por
reconhecer como significantes, interessantes, quer dizer, para um um agente dotado de categorias de percepção resultantes da
sujeito dotado da aptidão e da inclinação parft fazer as diferenças incorporação da estrutura da sua distribuição, quer dizer,
que são ridas por significativas no universo social considerado. quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio. As
Assim o mundo social, por meio sobretudo das proprieda- distinções, enquanto transfigurações simbólicas das diferenças
des e das suas distribuições, tem acesso, na própria objectivida- de facto, e mais geralmente, os níveis, ordens, graus ou
de, ao estatuto de sistema simM/ico que, à maneira de um quaisquer outras hierarquias simbólicas, são produto da aplica-
sistema de fonemas, se organiza segundo a lógica da diferença, ção de esquemas de construção que, como por exemplo os pares
do desvio diferencial, constituído assim em distinção significan- de ad jectivos empregados para enunciar a maior parte dos
te. O espaço social e as diferenças que nele se desenham juízos sociais, são produto da incorporação das estruturas a que
«espontaneamente» tendem a funcionar simbolicamente como eles se aplicam; e o reconhecimento da legitimidade mais
e.1j)aço dos estilos de z,ida ou como conjunto de Stdnde, isto é, de absoluta não é ourra coisa senão a apreensão do mundo comum
grupos caracterizados por estilos de vida diferentes. como coisa evidente, natural, que resulta da coincidência quase
perfeita das estruturas objectivas e das estruturas incorporadas.
A distinção não implica necessariamente, <:orno frequentemente se <:rê, Resulta daqui, entre outras consequências, que o capital
na esteira de Vebleo e da sua teoria da mnspiwrim m11s11111ptirm, a procura da simbólico se incorpora no capital simbólico, não só porque a
distinção. Todo o consumo e, mais geralmente, to<la a prâti<:a, ê rnmpimom,
visivel, quer tenha sido ou niio realizado a fim de ser risto; ele ê distintivo, autonomia, real, do campo de produção simbólica não impede
quer tenha sido ou não inspirado pela intenção de dar nas vistas, de se que ele permaneça dominado, no seu funcionamento, pelos
sin.gularizar (to m,lke onmlf mmpimom), de se distinguir ou de a.sir com constrangimentos que dominam o campo social, mas também
distinção. Como ta!, estâ condenado a funóonar como ú11r1! distintl/,,, e, porque as relações de força objectivas tendem a reproduzir-se
quando se trata de uma diferença reconheóJa, legítima, aprovada, como nas relações de força_ simbôlicas, nas visões do mundo social
.riiJaÍ de dútinção (nos diferentes sentidos)_ No entanto, os agentes ,mçiais,
dado que são capares de perceber como distinções significantes as diferenças que contribuem para garantir a permanência dessas relações de
«espontâneas» que, a parrir das suas categorias de pçrcepção, têm por força. Na luta pela imposição da visão legítima do mundo
pertinentes, também são capazes de aumentar intencionalmente estas dife- social, em que a própria ciência está inevitavelmente envolvida,
renças espontâneas de estilo de vida por meio daquilo a que Weber chama a os agentes detêm um poder à proporção do seu capital, quer
«estilização da vida~ (Stilúiemnx der Lehem). A procura da distinção - que
dizer, em proporção ao reconhecimento que recebem de um
pode marcar-se nas maneiras de falar ou na recusa a um casamento desigual
- produz separações destinadas a serem percebidas ou, melhor, conhecidas grupo. A autoridade que fundamenta a eficácia performativa do
e reconhecidas como diferenças legítimas, quer dizer, na maior parte dos discurso sobre o mundo social, a força simbólica das visões e
casos, como diferenças de natureza (em francês fala-se de distinção natura!). das previsões que têm em vista impor princípios de visão e de
divisão desse mundo, é um percipi, um ser reconhecido e
A distinção ·- no sentido corrente ·do termo - é , reconhecido (nobilis), que permite impor um percipere. Os mais
diferença inscrita na própria estrutura do espaço social quando riJfreis do ponto de vista das categorias de percepção em vigor
percebida segundo as categorias apropriadas a essa c.:strutura; são os que estão mais bem colocados para mudar a visão
e o Stand weberiano que muitos gostam de opor ú dassc mudando as categorias de percepção. Mas, salvo excepção, são
marxista, é a classe construída por meio <lc um rn oni- ,ide- também os menos inclinados a fazê-lo.

L
r 146 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES CAPiTULO VI

prefaciador de prestígio ou certo autor consagrado ( «Taccuse»)


147

A ordem simbólica e o poder de nomeação e, sobretudo, o ponto de vista legítimo do porra-voz autorizado,
do mandatário do Estado, «geometral de todas as perspectivas»,
Na luta simbólica pela produção do senso comum ou, mais no dizer de Leibniz, a nomeação oficial, ou o rítulo que, como o
precisamente, pelo monopólio da nomeação legítima como im- rítulo escolar, vale em todos os mercados e que, enquanto defi-
posição oficial - isto é, explícita e pública ~- da visão nição oficial da identidade oficial, subtrai os seus detentores à
legítima do mundo social, os agentes investem o capital luta simbôlica de todos contra todos, dando acerca dos agentes
simbólico que adquiriram nas lutas anteriores e sobretudo todo sociais a perspectiva autorizada, reconhecida de to<los, universal.
o poder que detêm sobre as taxinomias instituídas, como os O Estado, que produz as classificações oficiais é, de certo modo,
títulos. Assim, roda'> as estratégias simbôlicas por meio das o Tribunal Supremo a que se referia Kafka quando puriha Block
quais os agentes procuram impor a sua visão das divisões do a dizer, a respeito do advogado e da pretensão deste a colocar-se
mundo social e da sua posição nesse mundo podem situar-se entre os «grandes advogados»: «Quem 9uer que seja pode natu-
entre dois extremos: o insulto, idiOJ logoJ pelo qual um simples ralmente qualificar-se de "grande'· se isso lhe agradar, mas na
particular rema impor o seu ponto de vist~ corre_ndo o_ risc? _da maréria cm questão siio os u~os do tribunal que decidem» 9 . A ver-
reciprocidade; a nomeação oficial, ano de 1mpos1ção s1mbôlica dade é que a análise científica não tem que escolher entre o pers-
que tem a seu favor toda a força do coJectivo, do consenso, do pectivismo e aquilo a que bem se deve dar o nome de absolutismo:
senso comum, porque ela é operada por um mandatário do com efeito, a verdade do mundo social é o que está em jogo numa
Estado, detentor do monopólio da violência simbôlica legítima. De luta entre \!.gemes arm\ldos de modo muito desigual para chega-
um lado, está o universo das perspectivas particulares, dos rem à visão e à previsão absolutas, quer dizer, autoverificantes.
agentes singulares que, a partir do seu ponto de vista parti-
cular, da sua posição parricular, produzem nomeações - deles Poder-se-ia analisar nesra perspectiva o func:ionamento de uma institui-
mesmos e dos outros - particulares e interessadas (sobreno- ção como o Instituto Nacionatl Jç Estatística e de Estudos Económicos
institutO do brado que, produzindo as rnxinomias oficiais, investidas d;
mes, alcunhas, insultos ou, no limite, acusações, calUnias, etc.)
um valor qu:isc iuridico, sohn:'rudo nas rdaçôes entre emprçgadore.s e
- e tanto mais ineficazes em se fazerem reconhecer, portanto, empregados -- a do titulo que pode nmfi:rir direitos independentes da
em exercer um efeito propriamente simbólico, quanto menos anividndc pmdurora eÍçniv,uneme exercida •·--· tende a fixar as hierarquias
autorizadm estão os seus autores, a título pessoal (a11ctoritas) ou e, ,10 fazê-lo, a s:inóon,ir e >l consagnir uma rd,u,:ão de força entre os af:enres
institucional (delegação) e quanto mais interessados estão em a rcspeiro dos nomes de profissüo e de ofioo, componnite e.sst:nóal da
idemidaJe social'". A gesdio dos nomçs i:: um dos insrrumcntns da gt:stân
fazer reconhecer o ponto de vista que se esforçam por impor 8 •
Do outro lado, está o ponto de vista autorizado de um agente
autorizado, a título pessoal, como certo grande crítico, certo
'' Fninz K:1fka, l.1" p,-.,'"'.-'· P,iris, Flammarion. 1983, pp. 2!9--220.
rn O dicion:irio dos oficios ê .J forma n:a!izHda desrç neumdismo social
8 Como bem mostrou Leo Spitzer a tespeiro do Dom QT1ixote, em que a
que :inul:i t,idas ,is difercnç,1s constirnri,•~s Jo espaço social tr,nando
mesma personagem estâ dorada de vários nomes, a Poli~nom~sia; quer uniformemcncc todas as pnsiç!lcs como pi>,fúrik;. medi,mte uma mud;mç~
dizer, a pluralidade dos nomes, sobrenomes, alcunhas que sao atribu1dos ao (Onst,mte do pomo Jc vista <!,1 definição {titulos. narmaa da arrivida,k.
mesmo agente ou à mesma instituição é, com a p_olissemia das palavras. ~u etc ): quando os ang!o-saxünicos çhamam .ios médiuis pm/en1tm,,/(, \'ln
das expressões e designam os valores fundamentais dos gru~, o vemp;io 10r11<tm c!:iro que es_res agen;cs são defin!Jos pch1 sw1 profissão. que é parn
visível das lutas pelo poder de nomear que se travam no seio Jç to<.h~ os <"li·., um ,lfriln//1; mcnâ11I; pe!o comrârio, o m1ba!lu1Jor que faz o engate das
universos sociais (L Spitzer, «Perspectivism in Don QuijDu.'~, in l.ini,,útio , .1rni:igcns (: pouni definido por çsre atributo, ZJttc o <ksigna simp!csme.nte
and Literary History, N. Y., Russell and Russd, 19·18). , <J!IH• P< up,111tc dc um post1> de tr.ib:dho; quanto ao professor a,g-r,:-gado. dr i
148 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES
CAPÍTULO VI 149
da raridade material e os nomes de grupos-·- sobretudo de grupos pwfissio-
nais - registam um estado das luras e das negociações a respeito das designa- possível adquírir direcramenre com a moeda) i i _ É a rarídade
ções oficiais e das vantagens materiais~ simbólicas que '.hes estão assoc1.a~as:
O nome da profissão de que os agentes estão doradi,~. o nt~lo que se lhes~ª-' e
simbólíca do rírulo no espaço dos nomes de profissão que tende
uma das retribuições positivas ou negativas (do mesmo rnulo que o sa!.1no) a comandar a retribuíção da profissão (e não a relação entre a
enquanto marca dwintim (emblema ou estigm~) que ~cebe o seu valor d,i oferta e a procura de uma certa forma de trabalho): segue-se
posição que ocupu num sistema de títuk:s Prg,uuzadn ~i:,rarquH:a_rnentc e que daqui que a retríbuíção do tírulo rende a tornar-se autónoma
contribui por este modo para a dnermmação das pos1çots rdanvas cn~fC os em relação à retribuição do trabalho, Assím, o mesmo trabalho
agentes e os grupos. Por esra razão, os agentes recorrem a cstrarégias prnncas
o~ simbólirns tendo em mira maximizar o ganho simbô!iw da nome-d\'iio: por
pode ter remunerações dífereotes, conforme os títulos daquele
exemplo, podem renunciar às vantagens <.....:onómloi.s garantida, po~ um_ po~tn que o exerce (rítular/ínteríno; titular/em exerdcío, etc,), Dado
para ocuparem uma posição de menor retribui\·_ão mas _á 9ti~! est':. ,u_nbuidn que o tírulo é em si mesmo uma rmtítuição (como a língua)
um nome prestigioso, ou orientarem"se p,1ra posiçOCs cuia desiRn:içao e menos maís duradoira que as caracrerístícas intrínsecas do trabalho, a
precisa, escapando assim aos efeitos da Jesv,i!orizaçii!l simbií!ica, da ffi\CSrna retribuição do rírulo pode manrer-se apesar das transformações
forma que, ao dedararem a sua identidade pe.\soal,_ podem atribuir ,1 ~l
mesmos um nome que os engloba numa dasse sufiqemememe vast:i par~
do trabalho e do seu valor relarívo: não é o valor relativo do
comportar também agentes que ocupam tima Jl(lSÍÇã() superio~ á deles. com;J !l rrabalho que determína o valor do nome mas o valor instírucío-
mestre-escola que se faz passar por «professor». De mod(J mais geral, eles tem nalizado do tírulo que serve de instrumento o qual permite que
sempre a faculdade de escolher entre vários nomes _e pwk'.m Joga~ ('(Jm ,is se defenda e se mantenha o valor do trabalho n,
indeterminações e o~ efeitos de imprecisiin que est~O ligados :1 pluralidade das Isto quer dízer que não se pode fazer uma cíência das
perspectivas pa.ra remarem csrapar a() veredicto da Nxinomia ofici,1L
classificações sem se fazer uma cíência da luta dessas classifica-
Mas a lógica da nomeação oficíal nunca se vê tão bem como ções e sem se tomar em linha de conra a posição que, nesta luta
no caso Jo IÍ!!IÍO - flobilíário, escolar, profissional--, capital pelo poder de conhecimento, pelo poder por meío do conheci-
simbólico, social e até mesmo juridicamente, garantido, O mento, pelo monopólio da violência símbólíca legírima, ocupa
nobre não é somente aquele que é conhecido, célebre, e mesmo cada um dos agentes ou grupos de agenres que nela se acham
conhecido como bem, prestigíoso, em resumo n11h;Ji.1, EJe é envolvidos, quer se rrate de simples particulares, condenados
também aquele que é reconheciJo por uma instância 1,Jiâ:tl, ,1os acasos Ja lura símbólica quotidiana, quer se trate de
«universal», quer Jizer, conhecido e reconheciJo por todos. profissionais aurorízados (e a rempo inteiro) - e entre eles
O título profissional ou escolar é uma espécie de regt~ juríJica rodos os que falam ou escrevem a respeito das classes socíais e
de percepção socí,il, um ser-percebido que l garantiJo rnmo que se distinguem conforme as suas dassíficações envolvem
um direito. É um capital simbólico institucionahzado, legal mais ou menos o Esrado, derentor do monopólio na nomeação
(e não apenas legítimo), CaJa vez mais indissociável do tí:ulo o/iát1!, da boa classificação, da boa ordem.
1. -1 · Se a estrutura do campo social é definída em cada momento
escolar, visro que o sistema escolar tende caJa vez ~ais <t
representar a última e única garanria de todos os titulos pela estrutura da dístribuição do capital e Jos ganhos caracre-
profíssíonais, ele tem em si mesmo um valor e, se bem que se '' A entrada na profissão dotada de um título é cada vez mais
rrate de um nome comum, funciona à maneira de um grande eHn·irn1m-me sub(Jrdinada à posse de um título escolar. e é estreita a relação
nome (nome de grande famílía ou nome próprio), conferindo <'!lfte os títulos escolares e a retribuição profissional, diferentemente do que
rodas as espécies de ganhos simbólícos (e dos bens que não é ~r i,hsnv,i nus ofícios não titulados em que os agentes que fazem o mesmo
i r<d>:dhp pudcm ter títulos escolares muito diferentes.
': Os; det<·nwres do mesmo título tendem a constituir-se em grupo e a
J.
definido, como o que faz o engate das carruagens, por_ U!11'! i-itd-1. ll!lh!
do(af-K di· <>tJ,::mizações permanentes - ordens de médicos, associações de '11
actividade - mas também por um druln, como P nwd1< "· .,1111.~"~ ,ifimP.\, etc -- destinados a assegurar a coesão do grupo-- reuniões i
1,,·r1<,,l1i.,,. i·ri t ,i pf(lmi,vn i~ seus interesses materiais e simbólicos.
r 150 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES
CAPÍTULO VI

boa classificação, ambição que define de mod9 próprio o rex,


151

rísucos dos diferentes campos particulares, ê certo em todo o


aquele a quem pertence, segundo Benveniste, regere fines e regere
caso que em cada um desses espaços de jogo, a prôpria Sr1cra, traçar, por meio do dizer, as fronteiras entre os gru~s e
definição daquilo que estâ em jogo e dos vários trunfos pode ser
tam.bé~ e~tre o sagrado e o profano, o bem e o mal, o vulgar e
posta t:m jogo. Todo o campo é lugar de uma luta mais ou o d1stmgu1do. O denrista, se não quer transformar a ciência
menos declarada pela definição dos princípios legítimos de social numa maneira de prosseguir a política por outros meios,
divisão do campo. A questão da legitimidade surge da própria
deve tomar para objecto a intenção de colocar os outros em
possibilidade deste pôr-em-causa, desta ruptura com a doxa_--i.
classes e de lhes dizer por este meio o que eles são e o que têm
que aceita a ordem corrente como coisa evidente. Posto isto, a que ser (é toda a ambiguidade da previsão); ele deve.analisar a
força simbólica <las partes envolvidas nesta luta nunca ê com-
ambição da visão do mundo criadora - esta espécie de mtuitm
pletamente independente da sua posição no jogo, mesmo que o originarilts que faria existir as coisas em conformidade com a sua
poder propriamente simbólico da nomeação constitua uma visiiu (& toda a ambiguidade da classe marxista que é, ao
força relariv.amente autónoma perante as outras formas de força mesmo tempo, ser e dever-ser) - e deve repudiá-la. Ele deve
social. Os constrangimentos da necessidade inscrita na própria objectivar a ambição de objectivar, de classificar objectiva-
estrutura dos diferentes campos pesam ainda nas lutas simbóli- men~e, do exterior, agentes que lutam para dassificat e para se
cas que têm em vista conservat ou transformar esta estrutura: o
d~ss;fic'.1rem. Se'. _de facto, de classifica - operando, por
mundo social é, em grande parre, aquilo que os agentes fazem,
ex1gencias da analise estatística, recottes no espaço contínuo
em cada momento, contudo eles não têm probabilidades de o
das posições sociais - í: precisamente para ter a possibilidade
desfazer e de o refazer a não ser na base de um coohc:cimento de ~bjectivar todas as formas Je objectivação, do insulrn singu-
realista daquilo que de é e daquilo de que nde são capazes em lar a nomeação oficial, sem esquecer a pretensão, característica
função da posição nele ocupada. da ciência na sua definição positivista e burocrática, de arbitrar
Em suma, o trabalho científico tem em vista estabdecer
e~sas .!~tas em nome da «neutralidade axiológica~. O poder
um conhecimento adequado não só do espaço das relações s1mbolteo dos agentes, como poder de fazer ver - theorein - e
object1vas entre as diferentes posiçôes constitutivas do campo de fazer crer, de produzir e de impor a classificação legítima ou
mas também das relaçôes necessárias estabelecidas, pela media-
legal, depende com efeito, como o caso do rex lembra, da
ção dos habitm dos sew: ocupantes, entre essas posições e as
posição ocupada no espaço (e nas classificações que nele estão
tomadas de posição correspondentes, quer dizer, entre os potencialmente inscritas). Mas objectivar a objectivação é,
pontos ocupados neste espaço e os pontos de vista sobre este antes de mais, objectivar o campo ck produção das representa-
mesmo espaço, que participam na realidade e no <levir deste
ções objectivadas do mundo social, e cm particular das taxino-
espaço. Por outras palavras, a delimitação objectiva de classes ~ias legiferantes, cm resumo, o campo de produção cultural ou
construídas, quer dizer, de n:giõeJ do espaço construído <las ideológica, jogo em que o próprio cientista estâ metido como
posições, permite compreender o principio e: a eficácia das todos os que discutem acerca das classes sociais. '
estratégias dassificatórias pdas quais os agentes têm em vista
conservar ou modificar este espaço - e em cuja primeira fila ê
O Ct:tmpo polítito e o efeito d<t.r hl)molopJ.tS
preciso contar a constituição de grupos organizados com o
objectivo de assegurarem a defrsa dos interessc:s dos seus É a este campo de lutas simbólicas, em que os profissionais
membros.
\ A análise da luta das dassifkaçôes traz a hu .1 ,1mh1<;."io
da representação, - em todos os sentidos do termo - se
opi-Km a respeirn de outro campo de luras simbólicas, que
política que atormenta a ambit.;ão gnoseo!\Í.~H;1 ,k 1,1.,,lu,ir .1
F,,
152 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES CAPÍTULO VI 153

temos de nos aplicar se queremos compreender, sem nos relações de produção económica, ignotando com isso as posi-
conformarmos com a mitolo8"ia da tomada de consciência, a ções ocupadas nos diferentes campos e subcampos - sobretudo
passagem do sentido prático da posição ocupada, em si mesma nas relações de produção cultural - da mesma forma que todas
disponível para diferentes explicações, a manifestações propriamente as oposições que estruturam o campo social e que são irredutí-
políticas, Os que ocupam as posições dominadas no espaço veis oposição entre proprietârios e não-proprietários dos meios
social estão tar.1bém em posições dominadas no campo de de produção económica. Ela põe assim um mundo social
produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os unidimensional, organizado simplesmente em torno· da oposi-
instrumentos de produção simbôlica de que necessitam para ção entre dois blocos (sendo uma das questões mais importantes
exprimirem o seu próprio ponto de vista sobre o social, se a a do limitt: entre estes dois blocos, com todas as questões
lógica própria do campo de produção cultural e os interesses anexas, eternamente debatidas, da aristocracia operâria, do
específicos que aí se geram não produzisse o efeito de predispor «emburguesamento» da classe operária, etc.). Na tealida<le, o i'
uma fracção dos profissionais envolvidos neste campo a oferecer espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto
aos dominados, na base de uma homologia de posição, os de campos relativamente autónomos, quer dizer, subordinados
instrumentos de ruptura com as representações que se geram na quanto ao seu funcionamento e às suas transformações, de I'
cumplicidade imediata das estruturas sociais e das estruturas modo mais ou menos firme e mais ou menos directo ao campo 1
mentais e que tendem a garantir a reprodução continuada da de produção económica: no interior de cada um dos subespaços,
distribuição do capital simbólico. O fenômeno que a ttadição os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das
marxista designa de «a consciência do exterior», quer dizer, a posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em
contribuição dada por certos intelectuais para a ptodução e para lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem neces-
a difusão - sobretudo em direcção aos dominados - de uma sariamente em grupos antagonistas).
visão do mundo social em ruptura com a visão dominante, só Mas, o mais importante, do ponto de vista do problema da
pode compreender-se sociologicamente se se tiver em conta a ruptura do círculo da reprodução simbólica, está em que, na
homologia entre a posição dominada que ê a dos produtores de base das homologias de posição no interior de campos diferen-
bens culturais no campo do poder (ou na divisão do trabalho de tes (e do que há de invariante, e até mesmo de universal, na
dominação) e a posição no espaço social dos agentes mais relação entre dominante e dominado) se podem instaurar alian-
desprovidos dos meios de produção económicos e culturais. {<IS mais ou menos duradoiras e sempre com fundamento num
Mas a construção do modelo do espaço social que sustenta esta mal-entendido mais ou menos consciente. A homologia de
análise supõe uma ruptura bem distinta com a tepresentação posição entre os intelectuais e os operários da indústria - os
unidimensional e unilinear do mundo social que subentende a primeiros ocupam no seio do campo do podet, isto é, em
visão dualista segundo a qual o universo das oposições constitu- relação aos patrões da indústria e do comércio posições que são
tivas da estrutura social se reduziria à opos1ç;1o entre os homólogas das que são ocupadas pelos operârios <la indústria no
proprietários dos meios de produção e os vendedores de força de t•spaço social tomado no seu conjunto - está na origem de
trabalho, uma aliança ambígua, na qual os produtotes culturais, domina-
As insuficiências da teoria marxisra das classes e, sobretu- i:os entre os dominantes, oferecem aos dominados, mediante
do, a sua incapacidade de explicar o conjunto das diferenças uma espécie de desvio do capital cultur,11 acumulado, os meios
objectivamente provadas, resultam de que, ao reduzit o mundo de constituírem objectivamente a sua visão do mundo e a
social unicamente ao campo económico, ela se vi: ohnµada :I' rcpn:sentação dos seus interesses numa teoria explícita e em
definir a posição social em referência unicamente i1 po\H,:\o n:i~ 111srrumcntos de representação institucionalizados -·- organiza-
154 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CL4.SSES CAPÍTULO VI 155

ções sindicais, partidos, tecnologias sociais de mobilização e de .<classes sociais» - penso, por exemplo, no problema da
manifestação, etc. 13 • ansrocrac1a operá.na» ou dos «quadros» - na<la mais fazem
que retomar as questões práticas que se impõem aos responsá-
Mas, há que se abster de tratar a homologia de posição, semelhança na
diferença, como uma identidade de condição (como faz, por exemplo, a
veis políticos. Estes têm sempre que fazer frente aos imperati-
ideologia dos «três PP» - patrão, pai, professor - desenvolvida pelo vos práticos (frequentemente contraditórios) que surgem da
movimento esquerdista dos anos 60). Não há dúvida de que a mesma lógica da luta no seio do campo político, como é a necessidade
estrutura - entendida como invariante das formas das diferentes distribui- de provar a sua representatividade ou a preocupação de mobili-
ções - se encontra, ela própria, nos diferentes campos, o que explica a zar o maior número possível de votos ou de mandatos sem
fecundidade do pensamento analógico em sociologia. Mas não deixa de ser
deixarem de afirmar a irredutibilidade do seu projecto ao dos
verdade que o princípio da diferenciação é, de çada vez, diforeOte, corno a
natureza do interesse e do que neste está em jogo, logo, a econ11111ia das outros mandatários, vendo-se assim obrigados a pôr o problema
práticas. Importa, com efeito, restabele<:er uma justa hierarquização, quer do mundo social em termos de lógica tipicamente substancia-
dizer, das espécies de capital. O conhecimento da hierarquia dos princípios lista das fronteiras entre os grupos e do volume do grupo
de divisão permite definir os limites em que operam os princípios subordi-
nados e, a par disso, os limites das similirndes ligadas à homologia; as
mobilizado. Eles podem, por isso, tentar resolver o problema 1
relações dos outros campos com o campo de produção económka são ao
que se põe a qualquer grupo preocupado em conhecer e fazer
mesmo tempo relações de homologia estrutural e relações de dependência reconhecer a sua força, quer dizer, a sua existência, recorrendo I!
causa!; a- forma das determinações causais ê definida pelas relações estrutu-
rais e a força de dominação ê tanto maior quanto mais aproximadas das
a conceitos de geometria variável como os de «classe operária»,
de «povo» ou de «trabalhadores». Mas ver-se-ia sobretudo que
,li
1 1
relações de produção econômica estiverem as relações em que ela se exerce. o efeito dos interesses específicos associados à posição por eles
Seria preciso analisar os interesses específicos que os manda.. ocupada no campo e na concorrência pela imposição de visões
1
tários devem à sua posição no campo político e no subcampo do do mundo social, incita os teóricos e os porta-vozes profissio-
partido ou do sindicato e mostrar todos os efeitos «teóricos» nais, quer dizer, todos aqueles a quem a linguagem comum
por eles determinados. Muitas discussões cultas acerca dali chama permanentes, a produzirem produtos diferenciados, distin-
tivos, que, em consequência da homologia entre o campo dos
iJ A mais perfeita ilustração desta anâlise pode ser encontrada, graças produtores profissionais e o campo dos consumidores de opi-
aos belos trabalhos de Robert Darnton, na história dessa espécie de revolução niões, são quase automaticamente ajustados às diferentes formas
cultura! que os dominados no seio do campo intelectual em via de constitui-
ção, os Brissot, Mercier, Desmou!ins, Hêbert, Marnt e rnnms outros, fizeram
de procura - definindo-se esta, neste caso mais do que em
em plerto movimento revolw:ionârio (destruição das academias, djspersão dos qualquer outro, como uma procura de diferença, de oposição,
salões, supressão das pensões, abolição dos privi!êgios) e que, encontrando o para cuja produção, de resto, eles contribuem ao permitir-lhe
seu princípio no estatuto dos «parias culturais», se apresentou com prioridade encontrar uma expressão. É a estrutura do campo político, quer
contra os fundamentos simbólicos do poder, tendo contribuído, com a dizer, a relação objectiva com os ocupantes das outras posições, e
«político-pornografia» e os libelos de boa meme escatológicos, para o
trabalho de «des~legitimação» 9ue ê, sem dúvida, uma das dimensões
a relação com as tomadas de posição concorrentes por eles
fundamentais do radicalismo revolucionârio (cf. Robert Darmon, «The High propostas que, tanto como a relação com os mandantes, determi-
En!ightenment and the Low-Life of Literature in Pre-revolutionary France», na as tomadas de posição, quer dizer, a oferta de produtos
Pttit and Pment (51), 1971, pp. 81-115; tradução francesa in Bohime littbaire políticos. Dado que os interesses directamente envolvidos na
et rfro!tdÍlill. Le monde deJ !ir-n:s att X\/11/e Ji,!c/e, Paris, Gallimard ·-· Le Seuil, luta pelo monopólio da expressão legítima da verdade do mundo
1983, pp. 7-41; sobre «o caso exemplar de Marat, de quem se ignora
frequentemente que foi também, ou em primeiro lugar, um mau fisirn, pode
social tendem a ser o equivalente específico dos inreresses dos
ler-se C.C. Gi!lispie, Science and Polity in France ,tt the Rml fl/t/,r O/d l?,:~1111r, ocupantes das posições homólogas no campo social, os discursos
Princeton, Princeton University Press, 1980, pp. 290- i \O). políticos acham-se tocados de uma espécie de duplicidade
f 156 ESPAÇO SOCIAL E GÊNESE DAS CLASSES

estrutural: na aparência directamente destinados aos mandantes,


CAPÍTULO VI

explica, entre outras coisas, as diferenças que separam as


representações das divisões sociais, logo, dos grupos representa-
157

eles são, na realidade, dirigidos aos concorrentes no campo.


dos, conforme os países). Para evitar que se seja iludido pelos
As tomadas de posição políticas num dado tempo (por
exemplo, os resultados eleitorais) são também produto de um efeitos do trabalho de naturalização, que rodo o grupo tende a
encontro entre uma oferta política de opiniões políticas objecti- produzir em vista de se legitimar, de justificar plenamente a sua
existência, é preciso pois reconstruir em cada caso o trabalho
vadas (programas, plataformas de partidos, declarações, etc.)
que está ligada a toda a história anterior do campo de produção e
hisflfrico de que são produto as divisões sociais e a visão social
uma procura política ligada, ela própria, à história das relações dessas divisôes. A posição social adequadamente definida é a que
entre a oferta e a procura. A correlação que se pode observar num dá a melhor previsão das práticas e das representações; mas, para
dado momento entre as tomadas de posição sobre esre ou aquele evitar que se confira àquilo a que outrora se chamava o estado,
problema político e as posições no espaço social só se pode isto é, à identidade social (hoje cada vez mais plenamente
compreender perfeitamente se se notar que as classificações identificada com a identidade profissional) o lugar do ser na
utilizadas pelos votantes para fazerem a sua escolha (direi- amiga metafísica, quer dizer, a função de uma essência de que
ta/esquerda, por exemplo) são produto de todas as lutas anterio- derivariam todos os aspectos da existência histórica-· segundo a
res e que o mesmo se passa com as classificações utilizadas pelo fórmula operatio setpútnr esse -- é preciso ter em atenção de modo
analista para classificar não só as opiniôes, mas também os muito claro que este ~tatus, como o habitm que nele se gera são
agentes que as exprimem. Toda a história do campo social esrá produtos da hisrària, susceptíveis de serem transformados, de
presente, em cada momento, em forma materializada - em modo mais ou menos difícil, pela história.
instituições tais como os serviços permanentes de partidos ou de
sindicatos --- e em. forma incorporada ·- nas atitudes dos
agentes que fazem funcionar estas instituições ou que as A classe com,; representação e como vontade
combatem (com os efeitos de histerese ligados à fidelidade).
Todas as formas de identidade colectiva reconhecida-- a «classe Mas para estabelecer como se constitui e se institui o poder
operária» ou a CGT, os «artífices», os «quadros,, ou os de constituição e de instituição que o porra-voz autorizado -
,iadidos», etc. - são produto de uma longa e lema elaboração chefe de partido ou de sindicato, por exemplo - detém, não
colectiva: não sendo completamente artificial, sem o que a basta explicar os interesses específicos dos teóricos ou dos
operação de constituição não teria sucesso, cada um destes corpos porta-vozes e as afinidades estruturais que os ligam aos seus
de representação que justificam a existência de corpos represen- mandantes; é preciso ainda analisar a lógica do processo de
tados dotados de uma identidade social conhecida e reconhecida, instituição, geralmente percebido e descrito como processo de
! ' existe por rodo um conjunto de instituições que são outras tantas delegação, pelo qual o mandatário recebe do grupo o pod'."r _de
invenções históricas, uma sigla, sigillum authenticmn, como fazer o grupo. Podemos seguir aqui os historiadores do d1re1to
diziam os canonistas, um selo ou um carimbo, um escritório ou (Kantorowicz, Post, etc.), transpondo as suas análises, quando
um secretariado dotado de um monopólio da assinatura e da eles descrevem o mistério do ministério - segundo o jogo de
plena potentia agendi et !oq11endi, etc. Esta representação, produro palavras mysterium/mini.rterium, prezado pelos canonistas. O
das lutas que se desenrolaram, no seio do campo político e mistério do processo de transubstanciação que faz com que o
também no exrerior dele, a propósito sobretudo do poder sobre o porta-voz se torne no grupo que ele exprime só pode ser
Estado, deve as suas caracrerísticas específicas à história parti- penetrado por uma análise histórica da génese e do funcionamen-
cular de um campo político e de um Estado espn ifi\lls (o que ro d;i repre.rentação, pela qual o representante faz o grupo que o faz
r 158 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES

a ele: o porta-voz dotado do pleno poder de falar e de agir em


CAPÍTULO VI

acha-se numa relação Je metonímia com o grupo; sendo parte


159

nome do grupo e, em primeiro lugar, sobre o grupo pela magia do grupo, ele funciona como sinal pela totalidade do grupo.
da palavra de ordem, é o substituto do grupo que somente por É ele quem, enquanto substituto perfeitamente real de um ser
esta procuração existe; personificação de uma pessoa fictícia, de perfeitamente simbólico, favorece um «erro de categoria»,
uma ficção social, ele faz sair do estado de indivíduos separados como diria Ryle, bastante semelhante ao da criança que, após
os que ele pretende representar, permitindo-lhes agir e falar, ter visto desfilar os soldados de que se compõe o regimento,
através dele, como um só homem. Em contrapartida, ele recebe pergunta onde está o regimento: unicamente pela sua existência
o direito de se assumir pelo grupo, de falar e de agir como se· visível, ele constitui a pura diversidade serial dos indivíduos
fosse o grupo feito homem: Status est magistratus, «l'État c'est separados em pessoa moral, a col!ectio personarum plurium em
moi», «O Sindicato pensa que ... » etc. corpo-ratio, em corpo constituído, e pode mesmo, pelo efeito da
O mistério do ministério é um desses casos de magia social mobilização e da manifestação, fazê-la aparecer como um
em que uma coisa ou uma pessoa se torna uma coisa diferente agente social.
daquilo que ela é, um homem (ministro, bispo, delegado, · - A política é o lugar, por excelência, da eficácia simbólica,
deputado, secretário-geral, etc.) que pode identificar-se e ser acção que se exerce por sinais capazes de produzir coisas sociais
identificíldo com um conjunto de homens, o Povo, os Traba- e, sobretudo, grupos. Pelo poder do mais antigo dos efeitos
lhadores, etc. ou com uma entidade social, a Nação, o Estado, metafísicos ligados à existência de um simbolismo, a saber,
a Igreja, o Partido. O mistério do ministério chega ao cúmulo aquele que permite que se tenha por existente tudo o que pode
quando o grupo só pode existir pela delegação num porta-voz ser significado (Deus ou o não-ser), a representação política
que o fará existir falando por e1e, quer dizer, a favor dele e no produz e reproduz a cada instante uma forma derivada do
lugar dele. O círculo fica então fechado: o grupo é feiro por argumento do rei calvo de França, que é caro aos lógicos: todo
aquele que fala em nome dele, aparecendo assim como o o enunciado predicativo que tenha como sujeito a «classe
princípio do poder que ele exerce sobre aqueles que são o operária», qua~quer que ele seja, dissimula um enunciado
verdadeiro princípio dele. Esta relação circular é a raiz da ilusão existencial (há uma classe operária). De modo mais geral, todos
carismática que faz com que, no limite, o porta-voz possa os enunciados que têm como sujeito um colectivo, Povo,
aparecer e apresentar-se como cama mi. A alienação política Classe, Universidade, Escola, Estado, supõem resolvido o pro-
encontra a sua origem no facto de só ser possível aos agentes blema da existência do grupo em questão e encobrem esta
isolados - sobretudo por estarem mais desprovidos simbolica- espécie de «falsificação de escrita metafísica» que foi possível
mente - constituírem-se como grupo, quer dizer, éomo força denunciar no argumento ontológico. O porta-voz é aquele que,
capaz de se fazer ouvir no campo político, desapossando-se em ao falar de um grupo, ao falar em lugar de um grupo, põe,
proveito de um aparelho, no facto de ser sempre preciso arriscar sub-repticiamente, a existência do grupo em questão, institui
o desapossamento político para escapar ao desapossamento este grupo, pela operação de magia que é inerente a todo o acto
político. O feiticismo é, segundo Marx, o que advêm quando de nomeação. É por isso que é preciso proceder a uma crítica da
« produtos da cabeça do homem aparecem como dotados de razão política, intrinsecamente dada a abusos de linguagem que
uma vida própria»; o feiticismo político reside precisamente são abusos de poder, se se quer pôr a questão pela qual toda a
em que o valor da personagem hipostasiada, esse produto da sociologia deveria começar, a saber, a da existência e do modo
cabeça do homem, aparece como carisma, misteriosa proprieda- de existência dos colectivos.
\ de objectiva da pessoa, encanto inapreensível mi.~tt"rio sem
nome. O ministro, ministro do culto ou mlni.~rro du Estado,
/ A classe existe na medida em que - e só na medida em
·1 que -" os mandatários dotados de plena potentia agendi podem
'
CAPÍTULO Vl 161

'
160 ESPAÇO SOCIAL E GÉNESE DAS CLASSES

ser e sentir-se autorizados a falar em nome dela - segundo a reprodução da crença, existe no corpo de mandatários - e poc
equação o Partido é a classe operária, ou a classe operária é o. meio dele ~-, os quais lhe dão uma palavra e uma presença
Partido, fórmula que reproduz a equação dos canonistas a !!!,reja visíveis, existe na crença na sua existência que este corpo de
é o Papa (ou OJ Bispos), o Papa (011 os Bispos) é a Igreja -- e a plenipotenciários consegue impor, pela sua existência e pelas
fazê-la existir assim como uma força real no seio do campo suas representações, na base das afinidades que unem objectiva~
político. O modo de existência daquilo a que hoje se chama, mente os membros da mesma «classe no papel» como grupo
em muitas sociedades (com variações, evidentemente), «classe provável 14 • O sucesso histórico da teoria marxista, a primeira,
operária,, é perfeitamente paradoxal: trata-se de uma espécie de entre as teorias sociais com pretensões científicas, a ter-se
existência em pensamento, de uma existência no pensamento de realizado de modo tão completo no mundo social, contribui
uma boa pane daqueles que as taxinomias designam como assim para fazer com que a teoria do mundo social menos capaz
operários, mas também no pensamenro dos ocupantes das de integrar o feito de teoria - que ela exerceu mais do que
qualquer outra - represente hoje, sem dúvida, o mais podero-

'
,i
!'
posições mais afastadas destes últimos no espaço social. Esta
existência reconhecida quase universalmeme assenta ela própria
na existência de uma classe operária em representação, quer dizer,
de aparelhos políticos e sindicais e de porta-vozes permanentes,
so obstáculo ao progresso da teoria adequada do mundo social,
progresso para o qual, em outros tempos, ela contribuiu mais
do que qualquer outra.
vitalmente interessados em crer que ela existe e em fazê-lo crer
tanto àqueles que a ela pertencem como àqueles que a rejei-
tam, capazes de fazer falar a «classe operária» - e de uma só
voz-, de a evocar, como se evocam os espíritos, de a invocar,
como se invocam os deuses e os santos patronos, e até mesmo
de a exibir simbolicamente através da manifestação, espécie de
aparato teatral da classe em representação, com o corpo dos
representantes permanenres e toda a simbólica constitutiva da
sua existência - siglas, emblemas, insígnias - por um lado
e, por outro lado, a fracção mais convicta dos crentes yue, pela
sua presença, permite que os representantes dêem a representa-
ção da sua representatividade .. Esta classe operâria como
«vontade e representação» - segundo o famoso título de
Schopenhauer -- nada tem da classe em acto, grupo real
realmente mobilizado, que a tradição marxista evocava. Mas
nem por isso ela é menos real, embora a sua realidade seja
aquela realidade mágica que (seguindo Durkheim e Mauss)
define as instituições como ficções sociais. Esta classe, verda~
deiro corpo místico, criada à custa de um imensO trabalho
histórico de invenção teôrica e prática -- a começar pelo do '·' P,rn, uma anâ!i~c scmdh;mtc d,t rdação entre o grupo df parentesco
próprio Marx - , incessantemente recriada pelos esforços e .-,u, papd,- e o grupo dr parentesco pdtico romo «representação e vonrn-
dedicações sem nô.mero e sem fim que são net:essúrios para ,Jt-.. ,Tr P. Bourdieu. [:1q11i.1.ii" d!tllc 1h.'ortf d.e la pralique, Genl:ve, Droz.
Produzir e reproduzir a crença e a instituiçáo que }-'.ar;Htrc a 1'02. e /.,· Jm1 pmll,J!tc. PRris, Minuit, 1980.
CAPÍTULO VII
li
A representação política !I
Elementos para uma teoria do campo político

À memória de Grorgei llaupt

O silêncio acerca das condições que colocam os cidadãos


- e de modo tanto mais brutal quanto mais desfavorecidos são
económica e culturalmente - perante a alternativa da demis-
são pela abstenção ou do desapossamento pela delegação é para
a «ciência política» o que o silêncio acerca das condições
económicas e culturais da conduta económica «racional» é para
a ciência económica. Toda a análise da luta política deve ter
como fundamento as determinantes económicas e sociais da
divisão do trabalho político 1 , para não ser levada a naturalizar
os mecanismos sociais que produzem e reproduzem a separação
entre os «agentes politicamente activos» e os «agentes politica-
mente passivos» 2 e a constituir em leis eternas as regularidades
históricas válidas nos limites de um esrado determinado da
estrutura da distribuição do capital.
O campo político, entendido ao mesmo tempo como
1
1
As teorias neomaquiavelianas só tomam em linha de conta esta
divisão para a inscrever na natureza humana. É assim que Michels fala de
«incompetência incurável» (R. Michels, LeJ partis politiqNtJ, Paris, Flaffima-
rion, 1971, p. 299) ou de «incompetência inata das massas» (op. ât.,
p. 302) e descreve a relação dos profanos com os profissionais em termos de
nemúdade («a necessidade de chefe nas massas», p. 49, «a necessidade de
veneração entre as massas», p. 59, etc.) ou de natureu, («À apatia das
multidões e à sua necessidade de serem guiadas corresponde, nos chefes,
uma sede ilimitada de poder. E é assim que o desenvolvimento da
oligarquia se acha favorecido, acelerado pelas propriedades gerais da nature-
1-a humana», p. 151).
1
Max Weber, Wimchaft und Gml/Jchaft, II, Berlim. Colónia,
Kiq-u:nheuer und Wiuch, 1956, p. 1067.
164 A REPRESENTAÇÃO POÜTICA CAPiTULO Vll 165

campo de forças e como campo das lutas que rêm em vista Dado que os produtos oferecidos pelo campo polírico são
transformar a relação de forças que confere a este campo a sua instrumenros de percepção e de expressão do mundo social (ou,
estrutura em <la<lo momenro, não é um império: os efeitos das se assim se quiser, princípios de di-visão) a distribuição das
necessidades exrernas fazem-se sentir nele por intermédio opiniões numa população dererminada depende do estado dos
sobrerudo da relação que os mandantes, em consequência da instrumenros de percepção e de expressão disponíveis e do
sua distância diferencial em relação aos instrumenros de produ- acesso que os diferentes grupos têm a esses instrumenros. Quer
ç;fo polírica, manrêm com os seus mandatários e da relação que isro dizer que o campo político exerce de facto um efeiro de
esres úlrimos, em consequência das suas ariru<les, mantêm com censura ao limitar o universo do discurso político e, por este
as suas organizações. O que faz com que a vida polírica possa modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao
ser descrita na lógica <la oferta e da procura ê a desigual espaço finito dos discursos susceptiveis de serem produzidos ou
distribuição dos instrumentos de produção de uma representa- reproduzidos nos limites da prohlemdtica política como espaço
ção do mundo social explicitamente formulada: o campo po!íri- das tomadas de posição efectivamente realizadas no campo,
co ê o lugar em que se geram, na concorrência entre o agentes quer dizer, sociologicamente possíveis dadas as leis que regem
que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, a entrada no campo. A fronteira entre o que é politicamente
programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, dizível ou indizível, pensável ou impensável para uma classe de
entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estaruto de profanos determina-se na relação entre os interesses que expri-
«consumidores», devem escolher, com probabilidades de mal- mem esta classe e a capacidade de expressão <lesses interesses
-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar que a sua posição nas relações de produção culrural e, por
de produção. esre modo, polírica, lhe assegura. «Uma intenção, nota
Wittgenstein, encarna-se numa situação, em costumes e em
insriruiçôes humanas. Se a têcnica do jogo de xadrez não
O monopólio dos profissionais existisse, eu não poderia ter ,, intençâo de jogar o xadrez. Se
posso ter em vista a construção de uma frase, é porque sei fa!ar
Sem reromar aqui a análise das condições sociais da consti- a língua em questão»~. A intenção política só se constitui na
tuição da competência social e técnica que a parridpação activa relação com um estado do jogo po!itico e, mais precisamente,
na «polirica» exige 3, ê preciso lembrar ao menos que os efeitos do universo das récnicas de acção e de expressão que ele oferece
dos obstáculos morfológicos que a dimensão das unidades em dado momento. Neste caso, como em outros, a passagem
políticas e o número dos cidadãos opõem a qualquer forma de do implícito ao explícito, da impressão subjecriva ã expressão
governo directo são de cerro modo aumentados pelos efeitos do objecriva, à manifestação pública num discurso ou num acto
desapossamento económico e cultural: a concenrração do capital público constitui por si um acro de m.1tituição e representa por
polírico nas mãos de um pequeno grupo é tanro menos isso uma forma de oficialização, de legitimação: não ê por acaso
contrariada e portanto ranto mais provável, quanto mais desa~
possados de instrumentos materiais e culturais necessários à sot.:ia! determinada (o seu «nível de Jesenvo!vimenw,-) e nmibém em fun~"ào
participação activa na política estão os simples aderentes d,1 estrutura, mais ou menos dissimêffica, da distribuição deste capital,
sobretudo, o tempo livre e o capital cultural (4). particularmente do cultural. Ê assim que a generalização do ac1..>sso ao ensino
serundârio esteve na origem de um rnnjumo de transformações da relação
Em particular, la diJtinctkm, Paris, Minuit, 1979, pp. 466-542.
.l elltre os partidos e os seus militantes ou os seus eleitores.
4
O que implica que a divisão do trabalho político varia ("!Tl funç;fo do ' L. Witrgenstein, Philrm,ph1Ml lm'f!JfiKatirms, New York, Macmi!lan,
volume global do capital econômico e cultural acum11hdo 11111m1 f.,rm,1v1n !')'i ), padgufo )17, p. !08.
r

166 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTULO Vil 167

que, como nota Benveniste, todas as palavras que têm uma ou partidos-associações 7 , tenham necessidade de partidos enten-
relação com o direito têm u-na raiz que significa dizer . .E a didos como organizações permanentes orientadas para a conquista
instituição entendida como o que já está instituído, já explici~ do poder e que propõem aos seus militantes e aos seus eleitores
tado, exerce ao mesmo tempo um efeito de assistência e de não só uma doutrina mas também um programa de pensaménto e
licitação e um efeito de arrematação e de mudança de posse. de acção, exigindo por isso uma adesão global e antecipada.
Dado que, pelo menos fora dos períodos de crise, a produção Como nota Marx em Miséria da Filosof;a, pode~se datar o nas-
das formas de percepção e de expressão politicamente actuanres cimento de um grupo social do momento em que 'os membros 'I
'i
e legítimas é monopólio dos profissionais e se acha portanto das suas organizações representativas não lutam só pela defesa
sujeira aos constrangimentos e às limitações inerentes ao fun~ dos interesses económicos dos mandantes mas também pela
cionamento do campo político, vê-se que os efeitos da lógica defesa e o desenvolvimento da própria organização. Mas como
censirária, que rege de facto o acesso às escolhas entre os não deixar de notar que se a existência de uma organização
prü<luros políticos oferecidos, estão acrescidos do~ efeitos da permanente, relativamente independente dos interesses corpora~
lógica oligopolística que rege a oferta dos produtos.! Monopólio tivos e conjunturais, é a condição da representação permanente
da produção entregue a um corpo de profissionais, quer dizer, a e propriamente política da classe, ela encerra também a ameaça
um pequeno número de unidades de produção, controladas elas do desapossamento dos membros «insignificantes» da classe?
mesmas pelos profissionais; constrangimentos que pesam nas A antinomia do «poder revolucionário estabelecido», como diz
opções dos consumidore!l, que estão tanto mais condenados à Bakounine, é perfeitamente semelhante à da Igreja reformada tal
fidelidade indiscutida às marcas conhecidas e à delegação incon~ como a descreve Troeltsçh. A fickJ impliâta, delegação global e
dicional nos seus representantes quanto mais desprovidos estão rotal pela qual os mais desfavorecidos concedem em bloco ao
de competência social para a política e de instrumentos próprios partido da sua escolha uma espécie de crédito ilimitado, deixa
de produção de discursos ou actos políticos: o mercado da caminho livre aos mecanismos que tendem a retirar-lhes a posse
política é, sem dúvida, um dos menos livres que existem. de qualquer controlo sobre o aparelho. Isto faz com que, por
Os constrangimentos do mercado pesam em primeiro lugar estranha ironia, a concentração do capital político nunca seja tão
sobre os membros das classes dominadas que não têm outra grande, salvo intervenção deliberada (e improvável) em sentido
escolha a não ser a demissão ou a entrega de si ao partido, oposto, como nos partidos que se propõem como objecto a luta
organização permamente que deve produzir a representação da contra a concentração do capital económico.
continuidade da classe, sempre ameaçada de cair na desconti-
nuidade da existência atomizada (com o recolhimento á. vida Gramsci evocou frequenrememe a propensão para o fideísmo milenarista
e para a representaçfüi providencialista do partido e dos seus chefes que se
privada e a procura de vias de salvação individual) ou na
particularidade das lutas ...estritamente reivindicativas 1>_ Isto faz
7
com que, mais do que os membros das classes dominantes, os Pode.-.se chamar partido-associação a uma organização cujo objectivo quase
exclusivo é a preparação das eleições e gue deve a esta função permanente uma
quais se podem contentar com associações, grupos de pressão permanência que as associações ordinárias não possuem; próxima da associação
pelo carácter !imitado e parcial dos seus objectivos e do empenbamemo que exige
~ A relação emre os profanos e os profissionais assume formas muito e, ao mesmo tempo, pela composição social fortemente diversifü-ada da sua
diferentes para os dominantes; sendo capazes, guase sempre, de produzir clientela (feira de eleitores e não de militames), está perto do partido pela
eles mesmos os seus anos e as suas opiniões políticas, nunca se resignam à permanência que lhe é imposta pela recorrência da funçioespeçífica, a preparação
delegação sem reticências nem ambivalência (delegação imposta pela lógica das eleições. {É de notar gue o partido ideal tal como o descreve Ostrogorski seja
específica da legitimidade gue, baseada no não reconhecimento, condena a cxactamente uma associação, guer dizer, uma organizru,.io tempwária, criada
tentação de aurocelebração). ,1,/ /w,: com v'sra a uma reivindicação detetminada ou a uma causa especifica).
168 A REPRESENTAÇ,10 POLÍTICA CAPITULO Vil 169

observa na diemela dos partidos comunistas; «Um outro aspecto do perigo dos instrumentos de produção dos interesses políticos, quer
que houve que lamentar no nosso Partido, é a esterilização de toda a dizer, politicamente expressos e reconhecidos, dos segundos.
actividade individual, a passividade da massa do Partido, a certeza estúpida Nada, a não ser esta forma de abstenção activa, a qual tem
de que, de qualquer modo, havia alguêm que pensava em rndo e que provia
a tudo» (A. Gramsci, Écrits palitiqtw, tomo II, Paris, Gallimard, 1974, raízes na revolta contra uma dupla impotência, impotência
p. 265). As massas, inquietas com esta sua condição de inferioridade perante a política e todas as acções puramente seriais que ela
absoluta, abdicaram completamente de toda a soberania e de mdo o poder, a propõe, impotência perante os aparelhos políticos: o apolitis-
organização e a pessoa do organizador tornaram-se para elas numa só e mo, que assume por vezes a forma de um antiparlamentarismo
mesma coisa, da mesma furma que, para um exéróto em campanha, a e que pode ser desviado para todas as formas de bonapartismo,
pessoa do rondottiere encarna a salvação comum, se torna no garame do
sucesso e da vitôria» (Ib., id., p. 82). Poder-se-ia wmbém ótar, a contrario, de boulangisrno ou de gaulismo, é fundamentalmente uma
Rosa Luxembourg, quando descreve (â maneira do wishjiif thinking) um contestação do monopólio dos políticos que representa o equi-
partido como limitando ele mesmo o seu prôprio poder por um esforço valente político daquilo que foi, em outros tempos, a revolta
consciente e constanre de chefes que se destituem para agirem como religiosa contra o monopólio dos clérigos.
execurantes da vontade das massas: «O único papel dos pretensos '"dirigen-
tes'' da social-democracia consiste em esclarecer a massa acerca da sua missão
hisrórica. A auroridade e a influência dos «chefes» na democracia não
aumenta senão em proporção ao trabalho de educação que eles realizam Competênc{a, coisas em ;ogo
nesse sentido. Por outras palavras, o seu prestígio e a sua influência só e interesses especificos
aumentam na medida em que os chefes destroem o que até a,t,>ora tem sido a
função dos dirigentes, a cegueira da massa, na medida em que se despojam Em matéria de política como em maténa de arte, o
eles próprios da sua qualidade de chefes, na medida em que eles fazem da
massa dirigente e deles próprios os órgãos executitws da acção consciente da desapossamento dos que são em maior número é correlativo, ou
massa~ (K Luxembourg, M.nm et cheft, Paris, Spanacus, 1972, p. 37). mesmo consecutivo, da concentração dos meios de produção
Seria interessante determinar aquilo que, nas tomadas de posição dos propriamente políticos nas mãos de profissionais, que só com a
diferentes ~teóricos» acerca deste problema (que, como Gramsci, podem condição de possuírem uma competência específica podem
oscilar entre o espontaneismo d_a Ordine Nflürn e o cemra!ismo do artigo entrar com alguma probabilidade de sucesso no jogo propria-
sobre o Partido Comunista -- Ecrit1 polititpm, I, pp. 389-403), se prende
com fa.cwres objectivos (como o nível da formação geral e polírka das
mente político. Com efeito, nada é menos natural do que o
massas) e, em particular, com a experiência directa das atitudes das massas modo de pensamento e de acção que é exigido pela participação
numa conjuntura determinada, e o que se prende com efeitos de campo e no campo político: como o habit11s religioso, artístico ou
com a lógica das oposições internas. científico, o habittts do político supõe uma preparação especial.

Os que dominam o partido e têm interesses ligados com a


É, em primeiro lugar, toda_ a aprendizagem necessária para
adquírir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, 1
existência e a persistência desta instituição e com os ganhos conceitos, tradições históricas, dados económicos, etc.) produ-
específicos que ela assegura, encontram na liberdade, que o zidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do
monopólio da produção e da imposição dos interesses políticos presente e do passado ou das capacidades mais gerais tais como
instituídos lhes deixa, a· possibilidade de imporem os seus o domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica
interesses de mandatários como sendo os interesses dos seus política, a do tribuno, indispensável nas relações com os profa-
mandantes, E isto passa-se sem que nada permita fazer a prova nos, ou a do debater, necessária nas relações entre profissionais.
completa de que os interesses assim universalizados e plebis- Mas é também e sobretudo esra espécie de iniciação, com as
citados dos mandatários coincidam com os int-eres$CS não svas provas e os seus ritos de passagem, que tendem a inculcar
expressos dos mandantes, pois os primeiros têm o monopólio o domínio prático da lógica imanente do campo político e a
170 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTULO Vll 111

1m por uma submissão de facto aos valores, às hierarquias e às eficácia desta mestria prática pondo ao seu serviço th:ni('IL'I
censuras inerentes a este campo ou à forma específica de que se racionais, como a sondagem, as relações públicas ou o "m1trkt'-
revestem os seus constrangimentos e os seus controlos no seio ring» político, ao mesmo tempo que tende a leRitim,i-la
de cada panido. Isto significa que, para compreender comple- dando-lhe a aparência da cientificidade e erigindo as questtlcs
tamente os discursos políticos que são oferecidos no mercado políticas em casos de especialistas que aos especialistas compt:tc
em dado momento e cujo conjunto define o universo do que resolver em nome do saber e não do interesse da classe 11•
pode ser dito e pensado politicamente, por oposição ao que é A autonomização do campo de produção ideológica é
relegado para o indizível e o impensável, seria preciso analisar acompanhada, sem dúvida, de uma elevação do direito de
todo o processo de produção dos profissionais da produção entrada no campo e, em particular, de um reforço das exigên-
ideológica, desde a marcação•, operada em função de uma cias em matéria de competência geral ou mesmo específica (o
definição frequentemente implícita 'da competência desejada, que contribui para explicar o aumento de peso dos profissionais
que os designa para estas funções e a formação geral ou formados nas escolas e mesmo nas escolas especializadas
específica que os prepara para as assumir, até â acção de - Ciências PO, ENA - em detrimento dos simples militan-
normalização contínua que os membros mais antigos do grupo tes 9. Mas também é acompanhada, sem dúvida, de um reforço
lhes impõem com a sua própria cumplicidade, em particular do efeito das leis internas do campo político - e em particular
quando, recém-eleitos, têm acesso a uma instância política para da concorrência entre os profissionais -- em relação ao efeito
onde poderiam levar um falar franco e uma liberdade de das transacções directas ou indirecras entre os profissionais e os
maneiras atentatórias das regras do jogo. profanos 10 • Isto significa que, tratando-se de compreender uma
O desapossamento correlativo da concentração dos meios de
8
produção de discursos ou de actos socialmente reconhecidos É assim por exemplo que a teoria elitista da opinião, que é aplicada
como políticos não deixou de aumentar à medida que o campo na elaboração ou na análise das sondagens de opinião ou nas lamentações
rituais acerca da abstenção, se denuncia efectivamente com tcx.l.a a inocência
de produção ideológica ganhava autonomia com o aparecimento nos inquéritos sobre os opinion-makers que, inspirando-se nwna filosofia
das grandes burocracias políticas de profissionais a rempo emanatista da «difusão» entendida como escoamento, têm em vista subir
inteiro e com o aparecimento de instituições (como, em França, pelos canais de circulação das opiniões atê à fome de onde se pensa que
o Instituto de Ciências Políticas e a Escola Nacional de jorram, quer dizer, atê à «élite» dos «fabricantes de opiniões», de quem
Administração) encarregadas de seleccionar e de formar os nunca ninguém pensa perguntar o que ê que fu a sua opinião (cf. por
exemplo, C. Kadushin, «Power, Influence and Social Greles: A New
produtores profissionais de esquemas de pensamento e de Methodology for Studying Opinion Makers», American So<iological Review,
expressão do mundo social, homens políticos, jornalistas políti- xxxm, 1968, pp. 685-699).
9
cos, altos funcionários, etc., e, ao mesmo tempo, de codificar Não ê menos certo que esta evolução poderia achar-se contrariada,
as regras do funcionamento do campo de produção ideológica e em certa medida, pela elevação geral do nível de instrução que, dado o peso
o corpus de saberes e de saber-fazer indispensáveis à respectiva determinante do capital escolar no sistema dos fanares explicativos das
variações da relação com a politica, ê sem dúvida pot natureza prôpria para
acomodação. A «ciência política» que se ensina em instituições entrar em contradição com esta tendência e para reforçar, em diferentes
especialmente ordenadas à este fim é a racionalização da compe- graus segundo os aparelhos, a pressão da base, menos dada a um ligação
tência que o universo da política exige e que os profissionais incondicional.
10
possuem no estado prático: ela tem em vista aumentar a O debate televisivo em que se acham frente a freme profissionais
escolhidos pela sua competência e também pelo seu sentido do decoro e da
respeitabilidade política, em presença de um público reduzido ao estatuto
• «marquage,. no texto origina! (marcação de animais ou de mercado-
rias) (N. T. ).
de espectador, realizando deste modo a luta de classes em forma de 1
:·onfromação teatralizada e ritualizada entre dois campeões, simboliza perfei-
1
[72 A REPRESENTAÇÃO POLiTICA CAPÍTULO Vil 173

tomada de posição política, programa, intervenção, discurso no jogo (em vez de serem reduzidos à indiferença e à apatia do
eleitoral, etc., é, pelo menos, tão importante conhecer o apolitismo), para não correrem o risco de se verem excluídos do
universo das tomadas de posição propostas em concorrência no jogo e dos ganhos que nele se adquirem, quer se trate do
interior do campo como conhecer as pressões* dos laicos de simples prdZer de jogar, quer se trate de todas as vantagens
quem os responsáveis por tais tomadas de posição sã? _os materiais ou simbólicas associadas à posse de um capital
mandatários declarados (a «base»): uma tomada de pos1çao, simbólico, aceitam o contrato tácito que está implicad() no
como o nome diz às mil maravilhas, ê um acto que só ganha facto de participar no jogo, de o reconhecer deste modo como
sentido relacionalmente, na diferença e pela diferença, do destw t'alendf) a pena ser jogado, e que os une a todos os outros
dhtmln'o. O político avisado ê o que consegue dominar pratica- participantes por uma espécie de conluio origin,irio bem mais 1
mente o sentido objectivo e o efeito social das suas tomadas de poderoso do que todos os acordos abertos ou secretos. Esta
posição graças ao domínio que ele possui d? ~spaço <las tomadas solidariedade de todos os iniciados, ligados entre si pela mesma
de posição actuais e, sobretudo, potenciais ou, melhor, do adesão fundamental aos jogos e às coisas que estão em jogo,
princípio dessas tomadas -de posiçã? a saber, o espaço da~ pelo mesmo respeito (ohseq11im11) do próprio jogo e das leis não
posições objectivas no campo e das atitudes do~ s_eus ocu~an_tes. escritas que o definem, pelo mesmo investimento fundamental
este «sentido prático» das tomadas de pos'.çao possiveis e no jogo de que eles têm o monopólio e que precisam de
impossíveis, prováveis e improvâveis para os d~ferentes ocupan- perpetuar para assegurarem a rentabilidade dos seus investi-
tes das diferentes posições é o que lhe permite «escolh~r» as mentos, não se manifesta nunca de modo tão claro como
tomadas de posição convenientes e convencionadas, e evitar as quando o jogo chega a ser ameaçado enquanto tal.
tomadas de posição «comprometedoras» que fariam com que se
enconttasse com os ocupantes de posições opostas no espaço do Os grupos unidos por uma fotma 9ual9uer de conluio (<:orno os
campo político. Este sentido do jogo político que permite_ ~ue o~ conjuntos de WÜ!(ú5) fazem da discriçd/J e do segredo ao::erca de rndo o 9ue diz
respeito às crenças íntimas do grupo um imperati •o fundam ema!. Eles
políticos prevejam as tomadas de posição dos outros ,~lmcos e condenam com a mâxima violência certas manifestaçi".es de cinismo quando
tambêm o que os torna previsiveis para ?s outr~s P?lmcos. ~re- elas se fazem notar no exterior mas 9ue, emre os iniciadm, são perfeitamente
visíveis, portanto responsâveis, no senndo do 1ngles resprmSJhli:, admitidas por9ue não podem, por definição, tocar ni cren~a fundamental
quer dizet, competentes, sérios, dignos de confiança, em suma, sobre o valor do grupo, sendo a liberdade a respeiro cios valores frequente-
prontos a desempenhar com constância e sem surpresas _nem mente vivida como um testemunho suplementar de valor -· é conhecida a
indignação com que os homens políticos e os jornalistas politicos, geral-
traições o papel que lhes cabe na estrutu~ do espaço de J~go. mente tão soliciros em fazer correr boatos e ditos decepdonantes sobre os
Nada há que seja exigido de modo mais absoluto pelo JOgo homens políticos, acolhem os 9ue, por momentos, mostram vontade de
político do que esta adesão fu~dam~ntal ao pt~prio jogo: «estragar o jogo» trazendo à exlstência politica o apolitismo popular e
i/lmú1 wi·oÍt'ement, cmm111tment, mvesnmento no 1ogo que e pequeno-burguês, 9ue ê ao mesmo tempo a condição e o produto do mono-
pólio dos politicos). Mas os grupos não desconfiam menos daqueles 9ue,
prod~ta do jogo ao mesmo tempo~ que é_ a, c_ondi~ão d?
levando ·demasiado a sério os valores proclamados, recusam os compromissos
funcionamento do jogo: todos os que tem o prinli!f!,111 de rnvest1r e os comprometimenros os quais são a condição da existência real do grupo.

rnmeme o termo de um processo de autonomização do jogo pro_priame?te


O j1go duplo
po!itico, mais do que nunca fechado nas suas técnicas, nas suas hierarqmas,.
nas suas regras internas. _ . A luta que opõe os profissionais é, sem dúvida, a forma por
" «demandes» nü texto original (emendemos as pressocs {]Ul" a protur.1 excelência da luta simbólica pela conservação ou pela trans-
exerce no mercado) ( '\ T. ). formação do mundo social por meio da conservação ou da
174 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTUW VII 175

rransformação da visão do mundo social e dos prmc1p1os de Assim, a produção das ideias acerca do mundo social
di-visão desre mundo: ou, mais precisamente, pela conservação acha-se sempre subórdinada de facto à lógica da conquista do
ou pela transformação das divisões estabelecidas entre as classes poder, que é a da mobilização do maior número. Daqui, sem
por meio da transformação ou da conservação dos sistemas de dúvida, o privilégio concedido, na elaboração da representação
classificação que são a sua forma incorporada e das instituições legírima, ao modo de produção eclesial, no qual as proposras
que contribuem para perperuar a classificação em vigor, (moções, plataformas, programas, erc.) são de imediaro subme-
legitimando-a 11 . Ela encontra as suas condições sociais de tidas à aprovação de um grupo e só podem pois ser impostas
possibilidade na lógica específica segundo a qual se organiza, por profissionais capazes de manipular ao mesmo tempo ideias
em cada formação social, o jogo propriamente político em que e grupos, de produzir ideias capazes de produzir grupos mani-
se jogam, por um lado, o monopólio da elaboração e da difusão pulando estas ideias de maneira a garantir-lhes a adesão de um
do princípio de <li-visão legírima do mundo social e, deste grupo - por exemplo, através da rerórica do «meecing» ou do
modo, da mobilização dos grupos e, por ourro lado, o monopó- domínio de rodo um conjunto de técnicas da palavra, da
lio da utilização dos instrumentos de poder objectlvados (capi- redacção, de manipulação da assembleia, que permirem o
tal político objectivado). Ela assume pois a forma de uma lura «fazer passar» de uma «moção», sem falar do domínio dos
pelo poder propriamente simbólico de fazer ver e fazer crer, de procedimentos e dos processos que, como o jogo do número
predizer e de prescrever, de dar a conhecer e de fazer reconhe- dos mandatos, controlam direcramente a própria produção do
cer, que é ao mesmo rempo uma lura pelo poder sobre os grupo.
,1 poderes públicos» (as administrações do Estado). Nas demo- Seria um erro subestimar a autonomia e a eficácia específica
crac ias parlamentares, a luta para conquistar a adesão dos de rudo o que acontece no campo político e reduzir a história
cidadãos (o seu voro, as suas quotizações, etc.) é rambém uma propriamente polírica a uma espécie de manifestação epifeno-
luta para manrer ou para subverter a distribuição do poder sobre os ménica das forças económicas e sociais de que os acrores
poderes públicos (ou, se se prefere, pelo monopólio do uso políricos seriam, de certo modo, os ríteres. Além de que isso
legítimo dos recursos políticos objectivados, direiro, exérciro, seria ignorar a eficácia propriamente simbólica da representação
polícia, finanças públicas, etc.). Os agentes por excelência e da crença mobilizadora que ela suscira pela força da objectiva-
desta luta são os partidos, organizações de combate especial- ção, equivaleria ainda a esquecer o poder propriamente político
mente ordenadas em vista a conduzirem esra forma sublimada de de governo que, por muiro dependenre que seja das forças
guerra cfril, mobilizando de maneira duradoura, por previsões económicas e sociais, pode garantir uma eficácia real sobre essas
prescritiveis, o maior número possível de agentes dotados da forças por meio da acção sobre os insrrumentos de administra-
mesma visão do mundo social e do seu porvir. Para garantirem ção das coisas e das pessoas.
esra mobilização duradoira, os partidos devem, por um lado, A vida polírica só pode ser comparada com um teatro se se
elaborar e impor uma representação do mundo social capaz de pensar verdadeiramente a relação enrre o partido e a classe,
obter a adesão do maior número possível de cidadãos e, por enrre a lura das organizações políricas e a lura das classes, como
outro lado, conquistar posros (de poder ou não) capazes de uma relação propriamente simbólica entre um significante e
assegurar um poder sobre os seus atriburários. um significado ou, melhor, enrre representantes dando uma
representação e agenres, acções e siruações representadas. A
concordância enrre o significante e o significado, enrre o
11 Sobre a lógica da luta pela imposição do princípio dt• di--vis.io, ver
representanre e o represenrado, resulra sem dúvida menos da
supra capírulo V. procura conscienre do ajustamento à procura da dienrela ou do
176 A REPRESENTAÇÃO POLITICA CAPÍTULO Vll 177

constrangimenro mecânico exercido pelas pressões exrernas do interesse pela política que determina cada categoria de manda-
que da homologia entre a estrurura do reatro político e a tários a consagrar-se à política e, por esre meio, aos seus
esrrutura do mundo representado, enrre a luta das classes e a mandantes. Mais precisamente, a relação que os vendedores
forma sublimada desta luta que se desenrola no campo políti- profissionais dos serviços políticos (homens políticos, jornalis-
co 11 É esta homologia que faz com que os profissionais, ao tas políticos, etc.) mantêm com os seus clientes é sempre
prosseguirem na satisfação dos inreresses específicos que lhes mediarizada, e determinada de modo mais ou menos completo,
impõe a concorrência no interior do campo, dêem ainda pela relação que eles mantêm com os seus concorrentes 14 . Eles
sarisfação aos inreresses dos seus mandantes e que as luras dos servem os interesses dos seus clienres na medida em que (e só
represenrantes possam ser descriras como uma mimesis política nessa medida) se servem também ao servi-los, quer dizer, de modo
das luras dos grupos ou das classes de que eles se assumem tanto mais exacto quanf{) mais exacta é a coincidência da sua posição
como campeões; ou, inversamenre, que, nas suas ramadas de na estrt1t11ra do campo político com a pos,ção dos seus mandantes na
posição mais adequadas ao interesse dos seus mandanres, eles estmtt1ra do campo SfJCia!. (O rigor da correspondência enrre os dois
prossigam ainda na satisfação dos seus próprios inreresses espaços depende, sem dúvida, em grande parte, da inrensidade
- sem necessariamente o confessarem a si mesmos - , tais da concorrência, quer dizer, antes de mais do número dos parridos
como lhes são determinados pela esrrurura dru; posições e das ou das rendências que comanda a diversidade e a renovação dos
oposições consrirurivas do espaço interno do campo político. produtos oferecidos obrigando por exemplo os diferenres parti~
A dedicação, por obrigação, aos interesses dos mandantes dos a modificar os seus programas para conquisrarem as novas
faz esquecer os interesses dos mandarários. Por outras palavras, dienrelas). Em consequência, os discursos políricos produzidos
a relação, aparente, entre os represenrantes e os representados, pelos profissionais são sempre duplamente determinados e
concebidos como causa determinante («grupos de pressão», afectados de uma duplicidade que nada tem de intencional visro
etc.) ou causa final («causas» a defender, inreresses a «servir», que resulta da dualidade dos campos de referência e da necessida-
etc.) dissimula a relação de concorrência entre os representantes de de servir ao mesmo rempo os fins esoréricos das lutas internas
e, ao mesmo tempo, a relação de orquesrração (ou de harmonia e os fins exotéricos das lutas exrernas 15 .
pré-esrabelecida) enrre os represenrantes e os representados.
4
Não há dúvida de que Max Weber tem razão em lembrar, com ' ~os oportunistas de todos os campos, que defendem os interesses
uma sã brutalidade marerialista, que «pode-se viver para a bem estabelecidos dos diversos conventkulos, interesses materiais, sem
dúvida, e para mai5 interesses que se prendem com a dominação política das
-polírica e da política» 13 • Para se ser perfeitamente rigoroso,
ma.ssas, são um obstáculo â unidade proletária» (A. Gramsci, Êcrits pol;1i-
seria preferível dizer que se pode viver da política com a ques, tomo I, Paris, Gallimard, 1974, p. 327).
5
condição de se viver para a polírica: é, com efeito, na relação ' A fotma paradigrnâtica desta duplicidade estrutura! ê sem dúvida
enrre os profissionais que se define a espécie parricular de representada por aquilo a que a tradição revolucionária da URSS chama a
«língua de Esopo», quer dizer, a linguagem secreta, codificada, indirecta, a
11
que os revolucionários recorriam para escaparem à censura czarista e que
Como prova, estão as difetenças que as necessidades ligadas à teapareceu no partido bokhevique, quando do conflito entre os partidârios
história e à lógica próprias de cada campo político nacional fazem surgir de Estal!ne e os de Boukharine, quet dizer, quando se tratou de evitar, por
entre as representações que as otganizações ~representativas» de classes «patnot1smo de partido,, que os conflitos no interior do Politburo ou do
sociais colocadas em posições equivalentes - como as dasses operátias dos Comité Central passassem para fora do panido. Esta linguagem dissimula,
diferentes países europeus -- dão dos interesses dessas classes - e isto numa aparência anôdina, uma verdade oculta que «todo o militante
apesar de todos os defeitos homogeneizantes (como a «bolchevização» dos suficientemente cultivado" sabe decifrar e pode ser objecto, segundo os
partidos comunistas). destin.ttários, de duas leituras diferentes (cf. S. Cohen, Nicolas Boukharim,
' Max Weber, op. cit., l!, p. 1052.
1
!., 11,· J·101 l;,1khel"ik, Paris, Maspero, 1979, pp. 330 e 435).
178 A REPRESENTAÇÃO POLiTICA CAPÍTULO VII 179

Um sistema de desvios pessoas é, sem dúvida, menos a complexidade da linguagem


em que ela se exprime do que a complexidade das relações
Deste modo, é a estrutura do campo político que, subjecti- sociais que constituem o campo político que nela se rexpr-ime:
vamente indissociável da relação directa -- e sempre proclama- esta criação artificial das lutas de Cúria afigura-se menos
da - com os mandantes, determina as tomadas de posição, por inteligível do que desprovida de razão de ser aos que, não
intermédio dos constrangimenros e dos interesses associados a participando no jogo, «não vêem nele interesse» e não podem
uma posição determinada nesse campo. Concretamente, a pro- compreender que este ou aquele distinguo entre duas palavras ou
dução de tomadas de posição depende do sistema das tomadas entre dois rodeios de frase de um discurso-jogo, de um
de posição propostas em concorrência pelo conjunto dos parti- programa, de uma plataforma, de uma moção ou resolução, dê
dos antagonistas, quer dizer, da problemática politica como lugar a tais debates, visto que não aderem ao princípio das
campo de possibilidades estratégicas objectivamente oferecidas oposições que suscitam os debates geradores desses distinguo.r 18 .
à escolha dos agenre·s em forma de posições efectivamente O facto de todo o campo político tender a organizar-se em
ocupadas e das tomadas de posição efectivameote propostas no t0rno da oposição entre dois pólos (que, como os partidos no
campo. Os partidos, como 3.s tendências no seio dos partidos, sistema americano, podem eles próprios ser constituídos por
só têm existência relacional e seria vão tentar definir o que eles v:rdadeiros campos, organizados segundo divisões análogas)
são e o que eles professam independentemente daquilo que são nao deve fazer e$quecer que as propriedades recorrentes das
e professam os seus concorrentes no seio do mesmo campo 16 . doutrinas ou dos grupos situados nas posições polares, «partido
Não há manifestação mais evidente deste efeito de campo do movimento» e «partido da ordem», «progressistas» e
do que esta espécie de cultura esotérica, feita de problemas «conse.rvadores», esquerda» e «direita», são invariantes que só
completamente estranhos ou inacessíveis ao comum, de concei- se realizam na relação com um campo determinado e por meio
tos e de discursos sem referente na experiência do cidadão dessa relação. Assim as propriedades dos partidos que as
comum e, sobretudo talvez, de disting11os, de matizes, de tipalogias realista,; registam compreendem-se, de modo ime-
subtilezas, de agudezas, que passam despercebidos aos olhos diato, se as relacionarmos com a força relativa dos dois pólos,
dos não-iniciados e que não têm outra razão de ser que não com a distância que os separa e que comanda as propriedades
sejam as relações de conflito ou de concorrência entre as dos. seus ocupantes, partidos ou homens políticos (e, em
diferentes organizações ou entre as «tendências» ou as «corren- parttcular, a sua propensão para a divergência para os extremos
tes ►► de uma mesma organização. Pode-se ainda citar o teste- ou à c.o,nvergência para o centro) e, ao mesmo tempo, a
munho de Gramsci: «Nós outros: afastamo-nos da massa: entre probabihdade de que seja ocupada a posição central, intermé-
nós e a massa forma-se uma barreira de quiproquos, de mal- dia, o lugar neutro. O campo, no seu conjunto, define-se cvmo
-entendidos, de jogo verbal complicado. Acabaremos por apa- um sistema de desvios de níveis diferentes e nada, nem nas
recer como pessoas que querem, a todo o custo, conservar o seu instituições ou nos agentes, nem nos actos ou nos discursos que
lugar» 17 • Na realidade, o que faz com que esta cultura eles produzem, tem sentido senão relacionalmente, por meio
propriamente política permaneça inacessível à maioria das do jogo d~ oposições e das distinções. É assim, por exemplo,
que a oposição entre a «direita» e a «esquerda» se pode manter
16
Dai o fracasso de todos os 9ue, como tamos hiscoriadores da
Alemanha na esteira de Rosenberg, tentaram definir o ~conservadorismo~ '~ _Emre os facrores deste efeito de «hermeúsmo»,. e da forma parti-
de modo absoluto, sem verem 9ue ele devia mudar in.::t'S~antemente de <"ularíssima de esoterismo 9ue ela gera, é preciso contar com a tendência
conteúdo substancial a fim de conservar o seu v4/or rdai.ion,1!. frc~u_entemenre observ~da, que têm os membros permanentes dos aparelh~
17
A. Gramsci, op. cit., tomo n, p. 22~- polmcos para só conviverem com outros membros permanentes.
180 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTUW Vil 181

numa estrutura transformada mediante uma permuta parcial campo implicasse uma distribuição dos papéis; como se cada
dos papéis entre os que ocupam estas posições em dois momen~ um dos protagonistas fosse levado ou remetido às suas tomadas
tos diferentes (ou em dois lugares diferentes): o racionalismo, a de posição tanto pela concorrência com os ocupantes das
fé no progresso e na ciência que, entre as duas guerras, em P?sições mais afastadas ou das mais chegadas, que ameaçam, de
França como na Alemanha, constituíam o ideário da esquerda d,1f~rentes maneiras, a sua existência, como pela contradição
enquanto que a direita nacionalista e conservadora se dava mais logica entre as tomadas de posição 2º.
ao irracionalismo e ao culto da natureza, tornaram-se hoje, Assim, certas oposições recorrentes, como a que se estabele-
nestes dois países, no coração do novo credo conservador, ce entre a tradição libertária e a tradição autoritária são tão-só a
fundamentado na confiança no progresso, na técnica e na transcrição no plano das lutas ideológicas da contradição funda-
tecnocracia, enquanto que a esquerda se vê recambiada para ~en~al do movimento revolucionátio, coagido a recorrer à
remas ideológicos ou práticas que pertenciam exclusivamente disciplina e à autoridade, e até mesmo à violência, para
ao pólo oposto, como o culto (ecológico) da natureza, o ~om~ter a autoridade e a violência. Contestação hetêtica da
regionalismo e um certo nacionalismo, a denúncia do mito do 1greJa herética, revolução contra «o poder tevolucionátio esta-
progresso absoluto, a defesa da «pessoa», tudo isto banhado de belecido», a crítica «esquerdista» na sua forma espontânea
ittacionalismo. esforça-~e por explorar, contra os que dominam o partido, a
A mesma esttutura diádica ou ttiádica que orgamza o contradição entre as estratégias «autotitátias» no seio do parti-
campo no seu conjunto pode reproduzit-se em cada um dos do e as estratégias «anti-autotitátias» do partido no seio do
seus pontos, quer dizet, no seio do partido ou do grupúsculo, campo político no seu conjunto. E encontramos até no movi-
segundo a mesma lógica dupla, ao mesmo tempo interna e mento anarquista, que censura ao. marxismo o seu autoritaris-
21
externa, que põe em relação os interesses específicos dos mo , uma oposição do mesmo ti.ro entre o pensamento «pla-
profissionais e os interesses reais, ou presumíveis dos seus taformista» o qual, preocupado em apresentar os fundamentos
mandantes, reais ou presumíveis. E, sem dúvida, no seio dos de uma organização anarquista poderosa, relega para segundo
partidos cujos mandantes são os mais desprovidos e, pot isso,
os mais dados a confiar no partido, que a lógica das oposições zu s . .
, . , e _se_ J~norar O que os conceitos devem à hisrória, fica-se privado da
internas se pode manifestar de modo mais dato. De modo que unica possibilidade rt.-al de os libetrar da hisrória. Sendo armas da anâ!ise e
nada dá melhor conta das tomadas de posição do que uma rambém do anárema, instrumentos de conhecimento e também instrumen-
tos d_e poder, rodos os conceitos em -ismo que a rradição marxo!ógica
topologia das posições a partir das quais elas se enunçiam: «No etermza ao trat~-los como puras consrruções concepruais, livres de quai(]uer
que diz respeito à Rússia, eu sempre soube que na topografia c_ontexro e desligadas de qualquer função esrratêgica, esrão «frequentemente
das fracções e das tendências, Radek, Trotsky e Boukharine ligados~ ~ircunsrâncias, maculados de generalizações premarnras, marcaJos
tinham uma posição de esquerda; Zinoviev, Kamenev e Estali- por polemKas acerbas» e gerados «na divergência, nas confronrações violen"
ne uma posição de direita, enquanto que Lénine estava no centn ras entre representanres das diversas correntes» (G. Haupt, «Les marxisres
face à la quesrio~ nationale: l"h1.~roire du problême», in G. Haupr,
e tinha função de árbitro no conjunto da situação, isto natural-
M. Lowy e C. Weill, Les marxwes el 1a quts1ir11111atio11ale, 1848-1914, Paris.
mente na linguagem política corrente. O núcleo que se chama Maspero, 1974, p. 11).
leninista sustenta, como bem se sabe, que estas posições i i É sabido que Bakounine. qu,· impõe a submissão absolura aos

«topográficas» são absolutamente ilusórias e falazes» 19 . Tudo órgãos _dirigentes nos movimenros q1.e ele constitui (por exemplo, a
se passa com efeito como se a distribuição das posições no Frarern~dad~ Nacional) e ~ue é no fundo partidário da ideia «blanquista»
d,1s «mmorias acruanres». e levado na sua polémica conrra Marx a denunciar
o auroritarismo e a enaltecer a esponraneidade das mas~ e a autonomla das
i~ A. Gramsó, op. â1 .. romo li, p. 258. sublmhud" i~•r mim fnlera~1ks.
A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPiTULO Vil 183
plano a reivindicação da liberdade ilimitada dos indivíduos e Palatras de ordem e ideias-força
dos pequenos grupos, e o pensamento «sintesista» que quer
deixar aos indivíduos a sua plena independência n_ . ~ tendênc_ia para a autonomização e a divisão indefinida em
Mas, ainda aqui, os conflitos internos sobrepõem-se aos mmus~ul'.15 seitas antagonistas que está inscrita, em estado de
conflitos externos. Assim, é na medida (e só nesta medida) em ~tencialtdade obj.ectiva, na constituição de corpos de especia-
que cada tendência é levada a valer-se da fracção correspondente 1:st~ dotados de tnteresses específicos e colocados em concor-
da sua clientela, graças às homologias entre as posições ocupa- rencia pelo poder no campo político (ou neste ou naquele sector
das pelos «leaders» no campo político e as posições ocupadas no do campo - por exemplo, um aparelho de partido) é contraba-
campo das classes populares pelos seus mandantes reais ou lançada em diferentes graus pelo facto de o desfecho das lutas
presumíveis, que as divisões e as contradições reais da classe
operária podem achar o seu correspondente nas contradições e
totem~ depender da força que os agentes e as instituições 1
envolvidos nesta luta podem mobilizar fora do campo. Em
nas divisões dos partidos operários: os interesses do subproleta- outros termos, a tendência para a fissão* tem o seu limite no 1
riado inorganizado só têm probabilidade de acesso à representa-
ção política (sobretudo se é composto de estrangeiros, desprovi-
facto .de a força de um discurso depender menos das suas
propnedades intrínsecas do que da força mobilizadora que ele
1
dos do direiro de voto, ou de etnias estigmatizadas) na medida exerce, _quer dizer, ao menos em parte, do grau em que ele é .1
1'
em que se tornem numa arma e numa coisa em jogo na lura reconheodo por um grupo numeroso e poderoso que se reconhece
que, em cerros estados do campo político, opõe o esponraneís- nele e de que ele exprime os interesses (em forma mais ou
mo ou, no limite, o voluntarismo ultra-revolucionário - sem- menos transfigurada e irreconhecível).
pre dados a privilegiar as fracções menos organizadas do A si_mples (<corrente de ideias» não se torna num movimen~
proletariado cuja acção espontânea procede ou excede a organi- to po_lfttco se,não quando as ideias propostas são reconhecidas no
zação - e o centralismo (qualificado pelos seus adversários extenor _do c1rc~lo d_os profissionais. As estratégias que a lôgica
como «burocrático-mecanicista») para o qual a organização, da luta interna ~m~e am; profissionais, e que podem ter como
quer dizer, o partido, precede e condiciona a classe e a luta 21 . f~ndamento ob1e~t1vo, p~ra alêm das diferenças professadas,
d1fe_renças de, h~b1t11s e de tnteresses (ou, mais precisamente, de
ll J. Maitron, Le mouvement ,.narrhúte en France, tomo II, Paris,

Maspero, 197'5, pp. 82-83. cap!t~l e~~;om1co e escolar e de rrajectória social), ligadas a
n A posição, mais ou menos central e dominante, no aparelho do pos1~oes 1 crentes no campo, só podem ser bem sucedidas na
partido e o capital cultural possuído estãü na origem das visões tliferentes, e ~ed1da em que encontrarem as estratégias (por vezes incons-
atê mesmo opostas, da acção revolucionâria, do porvir do capitalismo, das Ciem_es) de grupos. exteri_ores ao campo (toda a diferença entre 0
relações entre o partido e as massas, etc, que se defrontam no seio do utopismo e,.o realismo situa~se aí). Assim, as tendências p araa
movimento operârio. Ê certo, por exemplo, que o economismo e a propen- ._
são pata acentuar o pendor determinista, objectivo, científico, do marxismo
cisao sectarta acham-se contrabalançadas de modo continuo
é mais prôprio dos «cientistas» e dos «teôricos» (por exemplo, Tuga'1- pelas n~cessidades da concorrência que levam os profissionais,
-Baranowski ou os «economistas» no seio do partido social-democrata) do para triunfarem nas suas lutas internas, a ter de fazer apelo
que dos «militantes» ou dos «af;iradores», sobretudo se são autodidactas em a forças que nem sempre são totalmente internas (é diferente
matéria de teoria ou de economia (estâ af, sem dU.vida, um dos prindpios da o que se passa no campo científico ou artístico em que a
oposição entre Marx e Bakounine). A oposição entre o centralismo e o
·· espontanefsmo ou, se se quiser, entre o socialismo autoritário e o socialismo
libertário parece variar de maneira perfeitamente paralela, lvvando a propen-
são para o cientismo e o economismo a confiar aos dnrnwn·s do Ç()nhcri-
Marx ê percorrida por estas oposições que se resolvem, à medida que
rernpn V'li passando, a favor do ~sâbio»). 0 1
mento o direiro de definir autotirariamcnw as orit•ntm,út·~ {a l,io),(r 01fo1 ,k • «ft.%ion» no texro original (N.T.).
,,1

l
r

A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTULO Vll 185


184

invocação dos profanos desacredita). Os grupú~1:'los de v~n- «exclusivo». Os primeiros puxam o partido para a lógica au
guarda só podem importar para o campo po~tttco a ló~tca campo intelectual que, levada até ao limite, pode retirar-lhe
característica do campo intelectual porque esmo, desprovidos toda a força remporal; os segundos têm a seu favor a lógica da
de base, logo, de constrangimentos, mas tambem de força; Rea/pQ/itik que é a condição do acesso à realidade polfrica 24 .
Funcionando como Jeitas nascidas da cisão e, co~d~nad~s a O campo político é pois o lugar de uma concorrência pelo
dssiparidade, p-.xranto fundados sobre uma renuncia a univer- poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelos
salidade, esses grupúsculos pagam com uma pe~da. de p~e~ e profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de fular e de
de eficácia a afirmação da plena qualificação tecmca e etntea agir em nome de uma parte ou da toralidade dos profanos. O
que define a ecde.sia p11ra (os Puritanos), o universo dos ,."p~ros» porta-voz apropria-se não só da palavra do grupo dos profanos,
e dos «puristas», capazes de manifestar a sua_ excelencia d_e quer dizer, na maioria dos casos, do seu silêncio, mas também
virtuosos políticos no seu apego às rradiç~es mais puras e m~1s da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui
radicais («a revolução permanente», «a ditadura do prolera~ta- ao prestar-lhe uma palavra reconhecida como legítima no
do», etc.). Ao contrário, o partido, se n~~ quer ve_r-se exdu1do campo político. A força das ideias que ele propõe mede-se, não
do jogo político e da ambição ?e ~nci~ar _se~a? do poder, como no terreno da ciência, pelo seu valor de verdade (mesmo
pelo menos do poder de ter influenoa na d1~tr1bmçao do _Poder, que elas devam uma parte da sua força à sua capacidade para
não pode consagrar-se a virtudes tão excl,usi~~ Com efeito, do convencer que ele detém a verdade), mas sim pela força de
mesmo modo que a Igreja se consagra a m1ssao de ~s~alhar a mobilização que elas encerram, quer dizer, pela força do grupo
·, i
sua graça de instituição por to~os _os ~fiéis, )us~os_ ou miustos, e que as reconhece, nem que seja pelo silêncio ou pela ausência
l'i
de sujeitar os pecadores sem d1stmçao à disc1plma do manda- de desmentido, e que ele pode manifestar recolhendo as suas
vozes ou reunindo-as no espaço. É o que faz com que o campo
'
mento divino, também o partido elege como fi1;1 _traz~r para a
sua causa O maior número possível de refractano~ (e o c_aso da política -- onde se procuraria em vão uma instância capaz
sempre que O partido comunista se dirige, em r:rwdo _eleito- de legitimar as instâncias de legitimidade e um fundamemo da
ral a «todos os republicanos do progresso»), n~ hesttando, competência diferente do inreresse de classe bem compreendido
pa;a alargar a sua base e atrair a clientela dos ~artidos con~or- -- oscile sempre entre dois critérios de validação, a ciência e o
rentes, em transigir com a «pureza» ~a sua lmha e. e~ tirar plebiscito 25 .
proveito de modo mais ou menos consciente, das amb1gu1d~es Em política, «dizer é fazer», quer dizer, fazer crer que se
do seu programa. Segue-se daqui ~ue, entre as ,lut8: que tem pode fazer o que se diz e, em particular, dar a conhecer e fazer
lugar em cada partido, uma das mais consta~tes e a que ~e- esta- reconhecer os princípios de <li-visão do mundo social, as
belece entre os que denunciam os compromissos necessanos ~ palavraJ de ordem que produzem a sua própria verificação ao
aumento da /Qrça do partido (portanto daq':1-eles que o d~m1-
,., As· estratêgias de voto defrontam-se também com a alternativa da
nam) mas em detrimento da sua origina/idade_, ~u~r dize~, representação adequada mais desprovida de força e da representação imper-
mediante o abandono das tomadas de posição dis~mti;as, on- feita mas, por isso mesmo, poderosa. Quer dizer que a própria lógica que
ginais, nativas, e que reclamam por um regresso as ra1zes, por identifica isolamento e impotência obriga a esm!has de <ompromim, e confere
uma restauração da pureza original e, do outro l':'10, os que uma vantagem decisiva às tomadas de posição jâ confirmadas em relação às
propendem a procurar o reforço do partido, quer dizer,_ o alar- opiniües originais.
15
- Não ê por acaso que a sondagem de opinião manife1,ra a contradição
gamento da clientela, nem que seja à custa _de transacçoes e de , entre dois princípios de legitimidade antagonistas, a ôênóa tecnocrática e a
concessões ou mesmo de uma baralha metódica de tudo o q~e as vonntdc democrâtica, ah:ernando as questões que convidam ao juízo de
tomadas de posição originais do partido podem rn de dnn:isiado p,-riw ou ao desejo de milit:tnte.
186 ,1 REPRESENTAÇÃO POUTICA CAPITULO Vll 187

produzírem grupos e, deste modo, uma ordem sodaL A veracidade t:, portanto, nas suas probabilidades de êxito. Por
palavra polftíca - é o que a define de modo próprío outras palavras, a palavra do p,;rta-NJZ, deve uma parte da sua
empenha totalmente o seu autor porque ela constítuí um «força de elocução»* á força (ao número) do grupo para cuja
empenhamento em fazer que só é verdadeíramente político se produção rnmo tal ck nmtribui pelo acto de simboliza;;ão, de
estíver na maneíra de ser de um agente ou de um grupo de representação: da tem o sc11 princípio no acto de força pelo
agentes respomáveís politicamente, quer dizer, à altura de conse- qual o !ocuror investe no seu enunciado roda a força para cuja
guírem o empenhamento de um grupo e de um grupo capaz de prodm;Jo o seu :nunciado contribui ao mobílizar o grurxl a <]Ut.'.
a realízar; é só com esta condíção que ele equívale a um acto. de se dirige, E o que se vf bern na lúgirn tão tipicamente
A verdade da promessa ou do prognóstico depende da veracida- política da promtssa ou, melhor, da predição: verdadeiro
de e também da autorídade daquele que os pronuncia, quer re(FJit!Jil!ing Jm1phtt_r, a pahlvra pela qual o porta-voz anuncia
dízer, da sua capacidade de fazer crer na sua veracídade e na sua uma vonradt:, um proJeno, um,1 esperança ou, muíro símples~
autorídade. Quando se admíte que o porvír que está em mente, um porvir a um grupo, J;n 11 q11e d:1 diz na medida em
discussão depende da vontade e da acção colectívas, as ídeías- que os destmatilrios se reconhecem nda, conferinJo,.lhc a força
-forças do porta-voz capaz de suscítar esta acção são ínfalsíficá~ simbólica e ramix:m m,m:rial (em forma de votos t também de
veís, poís têm o poder de fazer com que o porvir que elas subvençõts, <li: quorirnções ou de força· de trabalho ou dt:
anunc~m se tome verdadeíro, Isto, sem dúvida, faz com que, combate, etc) que lhe perm1tt rea!izar-sc É porqu(; basta que
para toda a tradição revolucionáría, a questão da verdade seía as ideias sejam proít'.ssadas por reJ/11ms,hâs pf!/í1tror. para se
índíssocíável da questão da líberdade ou da necessídade hístórí- tornarem un ideias-forças rnpazes de se imporem ú nença ou
ca; se se admite que o porvír, quer dízer, a verdade p01ítica, mesrno em palavras de ordem capazes de mobilizar ou de
depende da acção dos responsáveís polítícos e das massas de'.>mobilizat, que os erros são J;t!t<1.1 ou, na linguagem nativa,
- sería precíso aínda determínar em que grau - Rosa « traições» >

Luxembourg teve razão contra Kautsky que contríbuíu para


fazer advír o que era provável e que ele anunciava, não fazendo
o que havia que fazer segundo Rosa Luxembourg; no caso Crédito ,: aenç.:.t
contrário, Rosa Luxembourg não teve razão pois não soube
prever o porvir mais prováveL O capital político é uma forma de capital simbólíco, rrédit,i
O que sería um «díscurso írresponsável» na boca de qual- firmado na rrença e no ncrmheámu1t11 ou, mais precisamente, nas
quer um é uma previsão razoável na boca de qualquer"outro, As inúmeras operações de crédito pelas quars os agenrcs conferem a
expressões polítícas, programas, promessas, prevísões ou pro-
gnóstícos ( «Ganharemos as eleições») nunca são veríficáveís ou * «foru; illocutionnaire~ no n:xw origin,11 (N.T.).
"· A violência d;, polérnirn polítirn t: o rt:ntrso comtafltt' a(J pôr-em-
falsificáveis logicamente; elas não são verdadeiras senão na -c:iusa ético armados frcqucntçnKntt <lc argumentos ,ui hmt1ir1r111, ,:xplica-se
medída em que aquele que as enunda (por sua própría conta ou tambtm pelo facto de as 1dcia5-fon,a d<:vcrnn um.i parte do seu crfdito <'(l
em nome de um grupo). é capaz de as tornar hístorícamente crédito Ja pessoa que <1.s professa e que niiu hii somenre que refutar, mas gue
verdadeíras, fazendo-as advir na hístóría - e isto depende ao 1icsacn:<litat desacreditando o seu ,tutor. A lógica do campo político, <lado
mesmo tempo da sua aptidão para apredar de maneira realísta qut: pi:rmitc cnmbatc·r as ideias e as pessoas dos adversários, forn,xt um
terreno altamente favorável ils estratégias do rt:sstntimento: t ,issim quc de
as probabílídades de êxíto da acção destínadas a pô-las em acto "frrcct a qualquer indivíJuu um meio de atingir, fregucmnnent<: por mdo
e das suas capacidades para mobílizar as forças nec:essárías para ,1,- urn;i l!1rma rudimcnnr Jc ~ociuiognt do nmht:cimenn,, teorias mi idtiia..,
o fazer, ao conseguir ínspirar a confiança na sua própria , Jllt de .>efrt incapaz de submewr á crítirn ciendfirn.

j
CAPÍTULO Vil 189
188 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
lo, em resumo, a tudo o que ameaça a crença, a confiança,
uma pessoa - ou a Jm objecro - os própri~s podere~ que eles fazendo aparecer à luz do dia os actos e os ditos secretos,
lhes reconhecem. E a ambiguidade da fuks, analisada por escondidos, do presenre e do passado, os quais são próprios
Benveniste 27 : força objecriva que pode ser objectivada nas para desmentir os actos e os ditos presentes e para desacreditar
coisas (e, em parricular, em tudo o que faz a simbólica do o seu autor - e isto, como se vetá, de modo tanto mais
poder, tronos, ceptros e coroas), produt~ de actos_ s_u?jecriv~ completo quanto o seu capital deve menos à delegação 30, Este
de reconhecimento e que, enquanro crédito e cred1b1hdade, so capital supremamente lábil só pode ser conservado mediante o
existe na representação e pela representação, na confiança e pela trabalho constante que é necessário não só para acumular o
confiança, na crença e pela crença, na obediência e pela crédito como também para evitar o descrédito: daí, roda a
obediência. O poder simbólico é um poder que aquele que lhe prudência, todos os silêncios, todas as dissimulações, impostos
está sujeiro dá àquele que o exerce, um crédito com que ele-o a personagens públicas incessantemente colocadas perante o
credita, uma/ides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele tribunal da opinião, pela preocupação constante de nada dizer
a sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe ou fazer que possa ser lembrado pelos adversários, princípio
está sujeiro crê que ele existe. Credere, diz Benvenisre, «é impiedoso da irreversibilidade, de nada revelar que possa
lireralmente colocar o kn:d, quer dizer, a potência mágica, num contradizer as profissões de fé presentes ou passadas ou
28
ser de que se espera protecção, por conseguinte, crer nele» . desmenrir-lhes a constância no decurso do tempo. E a atenção
O kred, o crédito, o carisma, esse não-sei~guê pelo qual se tem especial que os homens políticos devem dar a tudo o que
aqueles de quem isso se tem, é o produto do credo, da cre~ça ~ contribui para produzir a representação da sua sinceridade ou do
obediência, que parece produzir o credo, a crença, a obed1enc1a. seu desinteresse explica-se se se imaginar que estas atitudes
Como o campeão divino ou humano que, segundo Benve- aparecem como a garantia última da representação do mundo
niste, tem necessidade que se creia nele, que se lhe confie o social, a qual eles se esforçam por impor, dos «ideais» e das
kred, com a condição de ele espalhar os seus benefícios sobre os «ideias», que eles têm a missão de fazer aceitar 31 .
que assim o apoiaram» 2' \ o homero político retira a ~ua força
30
política da confiança que um grupo põe nele. Ele retira o seu A prudência extrema que define o político consumado e que se
poder propriamente mágico sob:e o grupo da fé ~a repres~nt~- mede de modo particular pelo alto grau de eufemização do seu discurso
explica-se, sem dllvida, pela vulnerabilidade extrema do capital político que
ção que ele dá ao grupo e que e uma represenraçao ~º. prop_r 10
faz do oficio de homem político uma profissão de aho risco, sobretudo em
grupo e da sua relação com os outro~ grupos. Mandat~no unido períodos de crise nos quais, como se vê em relação a De Gaulle e a Pétain,
aos seus mandantes por uma espécie de contrato racional ~ o pequenas diferenças nas atitudes e nos valores assumidos podem estar na
programa - , ele é também campeão, unido P?r um~ relação origem de escolhas tora!meore exdusivas (pelo facto de ser próprio das
mágica de idenrificação àqueles que, como se diz, «poem nele situações extra-ordinárias aniquilar a possibilidade dos compromissos, das
ambiguidades, dos jogos duplos, das filiações múltiplas, etc., autorizadas
rod~s as esperanças». E, devido ao seu capital específico ser um
pelo recurso comum a critérios de classificação mu!tiplos e parcialmente
puro Mlor fid11aário que depende da representação, da opinião, integrados, pela imposição de um sistema de dassificação organizado em
da 'crença, da /ides, o homem polírico, como homem de honra, torno de um único critério).
é especialmenre vulnerável às suspeitas, âs calúnias, ao escânda- 31
É o que faz com que o homem político esteja comprometido mm o
jornalista, detentor de um poder sobre os instrumentos de grande difusão
9ue lhe dá um poder sobre toda a espêcie de capital simbôlico (o poder de
n E. Benveniste, Le 1J()(ab1t!aire des instituú,;m indo-eurr,pk,mes, Tomo 1, «fazer ou desfazer reputações», de que o caso Watergate deu uma medida).
Paris, Minuit, 1969, pp. 115-121. Capaz, pelo menos em çettas conjunturas políticas, de conrtolar o acesso de
18
lbidem- um homem po!frico ou de um movimento ao estatuto de furça política que
29 Ibidem, p. 177.
190 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTULO Vll 191
As espécies de capital político ção», erc.) e também no facto de possuir um certo nUmero de
qualificações específicas que são a condição da aquisição e da
«Banqueiro de homens em regime de monopólio» H, como conservação de uma «boa reputação» - é frequentemenre
diz Gramsci a respeito dos funcionários sindicais, o homem produto da reconversão de um capital de notoriedade acumula-
político deve a sua autoridade específica no campo político do em outros domínios e, em particular, em profissões que,
-- aquilo a que a linguagem nativa chama o seu «peso como as profissões liberais, permitem tempo livre e supõem
específico» - à força de mobilização que ele detém quer a um certo capiral cultural ou, como no caso dos advogados, um
tírulo pessoal, quer por delegação, como mandatário de uma domínio profissional da eloquência. Enquanro este capital
organização (partido, sindicato) detentora de um capital políti- pessoal de notável é produto de uma acumulação lenra e
co acumulado no decurso das lutas passadas, e primeiro em contínua, a qual leva em geral toda uma vida, o capital pessoal
forma de postos - no aparelho ou fora do aparelho - e de a que se pode chamar herôico ou profético e no qual pensa Max
militantes ligados a esses postos 3 -'. O capital pessoal de «notorie- Weber quando fala de «carisma» é produto de uma acção
dade» e de ,ipopularidade» - firmado no facto de ser amheâdo e inaugural, realizada em situação de crise, no vazio e no silêncio
reronheâdo na sua pessoa (de ter um «nome», uma «reputa- deixados pelas instituições e os aparelhos: acção proférica de
doação de senrido, que se fundamenta e se legitima ela própria,
retrospectivamente, pela confirmação conferida pelo seu pró-
conte, o jornalista estâ condenado, como crítico, ao papcl de dar li apreâar, prio sucesso à linguagem de crise e à acumulação inicial de
incapaz de fazer para ele mesmo o que ele fu.z pata os outros (e as tentativas
que pode fozer para mobilizar a favor da sua pessoa ou da sua obra as
força de mobilização que ele realizou _i.;_
autoridades intelectuais ou politicas, que devem alguma coisa à sua acção de Ao contrário do capital pessoal que desaparece com a pessoa
valorizar, esd.o antecipadamente condenadas). Por isso liga-se àqueles que do seu portador (embora possa originar querelas de herança), o
ele contribuiu pata fazer (na proporção do seu valor como fazer-valer), por capital delegado da autoridade política ê, como o do sacerdote,
uma telação de profunda ambivalência que o leva a oscilar entre a submissão do professor e, mais geralmente, do fímriontirio, produto da
a<lmirariva ou servi! e o tessentimcnto pêtfido. ptonto a exptimir-se ao
primeiro passo em falso dado pelo ídolo para cuja produção contribuiu.
transferência limitada e provisôria (apesar de renovâvel, por
_,: «Estes chefes tornarnm-se banqueiros de homens em regime de vezes vitaliciamenre) de um capital detido e controlado pela
monopô!io, e a menor alusão a uma coneonência torna-os loucos de tetror e instituição e só por ela 35 : é o parrido que, por meio da acção
de <lesespeto» (A. Gramsci. op. ât., tomo II, p. 85). "Em muitos aspectos, dos seus quadros e dos seus militantes, acumulou no decurso da
os chefes sindicais representam um tipo social semelhante ao banqueito: um história um capital simbólico de rmmheamento e de firklidade e
banqueiro experimentado, que conhece os negôcios com um olhat, que sabe
prever com alguma exacridão as cotações da bolsa e a vida dos contratos, dâ que a si mesmo se dotou, pela lura política e para ela, de uma
crêdito à sua casa, atrai as poupanças e os clientes; um chefe sindical que, organização permanente de membros permanentes capazes de
em plena confrontação das forças sociais em luta, sabe prevet os resultados
possiveis, atrai as massas â sua organização, torna-se num btmq"eiro de
.l-l Pensar-se-â, sem dUvida. na avencura gaulista. Mas rambém se
homens» (11p. át., p. 181).
;;chatá o equival~me numa tegiiio perfeitamcntt.: oposta do espaço social e
-'-' A oposição entre as duas espêeies de capiral político está na otigem
de uma das diferenças fundamentais entte os eleitos do PC e os do PS: politico. É assim que Denis Lacotne obsnva tJUe os eleitos ,.;omunistas que
,. Enqt1a~t0 que a grande maioria dos presidentes de cãmata socialistas evocam gozam de uma notoriedade pessoal devem quase sempre o seu estatuto Je
«personalidade local» a um ~acw de nacute:rn hnüica» reali?.ado durante a
a sua "notori1..'<.la<lc·•, quet da radique no prestigio familiar, na comperência
segun<la guerra mundial (D. La.come, op. ât., p. 69).
pcofissiona!. quer radique nos serviços prestados a timlo de _uma actividade
'~ Dito isw. a missão politica distingm>se, mesmo neste caso, de um,,
qualquer, os dois terços dos comunis[as consideram-se, ptimei_ro e sobretudo,
simrles função burocrâtica visco que ê sempre, corno se viu. uma missào
delegados do seu partido» (D. Lacorne, Les twtableJ rw,1:;e.l'. Pans, Prcsses de la
rws~oal. em qut· a pessoa toda se empenha.
Fondarion Naúonale des Scienccs Pn]itiqut.:s, 1980. I'· (,7).
192 A REPRESENTAÇÃO POIÍTICA CAPÍTULO VII 193
i
mobilizar os militantes, os aderentes e os simpatizantes e de investiram na instituição: o mvesttmento consiste não só em
organizar o trabalho de propaganda necessário à obtenção dos
votos e, por este meio, dos postos que permitem que· se
mantenham duradoiramente os membros permanentes. Este
serviços prestados, frequentemente tanto mais ratos e preciosos
quanto mais custosos são psicologicamente (como todas as
«provas» iniciáticas), ou mesmo em obediência às instruções ou
'
1
1
aparelho de mobilização, que distingue o partido ou o sindicato na conformidade às exigências da instituição, mas também em
tanto do clube aristocrático como do grupo intelectual, assenta
ao mesmo tempo em estruturas objectivas como a burocracia da
investimentos psicológicos que fazem com que a exclusão,
como o retirar o capital de autoridade da instituição, assuma
1
organização propriamente dita, os postos que ela oferece, com frequentemente a forma de uma falência, de uma bancarrota ao
rodas as vantagens correlativas, nela própria ou nas administra- mesmo tempo social e psicológica (e isso ainda mais na medida
ções públicas, as tradições de recrutamento, de formação e de em que, como a excomunhão e a exclusão do sacrifício divino,
selecção que a caracterizam, etc., e em atitudes, quer se trate ela é acompanhada de uma «áspera boicotagem social como
da fidelidade ao partido, quer se trate dos princípios incorpora~ forma de recusa de relações com o exduído») 38 . Aquele que é
dos de <li-visão do mundo social que os dirigentes, os membros investido de um capital de função, equivalente à «graça institu-
permanentes ou os militante's põem em prática no dia-a-dia e cional» ou ao «carisma de função» do sacerdote, pode não
na sua acção propriamente política. possuir qualquer outra «qualificação» a não seta que a institui-
A aquisição de um capital delegado obedece a uma lógica ção lhe outorga pelo acto de investidura. E é ainda a instituição
muito particular: a investidura - acto ptoptiamente mágico de que controla o acesso à notoriedade pwoal, controlando pot
instituição pelo qual o partido consagra oficialmente o candidato exemplo o acesso às posições mais em vista (a de secretátio~geral
oficial a uma eleição e que marca a transmissão de um capital ou de porta-voz) ou aos lugares de publicidade (como actual-
político, tal como a investidura medieval solenizava a «tradi- mente a televisão ou as conferências de imprensa), embora o
ção» de um feudo ou de bens de raiz - não pode set senão a detentor de um capital delegado possa sempre obter capital
contrapartida de um longo investimento de tempo, de trabalho, pessoal pot meio de uma estratégia subtil, a qual consiste em
de dedicação, de devoção à instituição. Não é pot acaso que as tomar, em relação à instituição, o máximo de distância compa-
igrejas, como os partidos, põem frequentemente oblatas à sua tível com a manutenção da pertença e da conservação das
testa 36 . A lei que rege as permutas entte os agentes e as vantagens correlativas. Segue-se daqui que o eleito de aparelho
instituições pode enunciar-se assim: a instituição dá tudo, a depende pelo menos tanto do aparelho como dos seus eleitores
começar pelo poder sobre a instituição, àqueles que tudo deram - que ele deve ao aparelho e que ele perde em caso de tuptuta
à instituição, mas porque fora da instituição e sem a instituição
eles nada seriam, e porque não podem negar a instituição sem E mais além: «Um partido que dispõe de uma caixa bem provida pode não
se negarem a si mesmos pura e simplesmente privando-se de só renunciar ao apoio material dos seus membros mais afortunados e elimi-
tudo o que eles são pela instituição e para a instituição à qual nar assim a preponderância deles nos negócios internos, como também pode
rnnstituir um corpo de funcionários fiéis e devotados, pois que tiram do
tudo devem 37 . Em resumo, a instituição investe aqueles que partido os seus únicos meios de existência» (Ib., id., p. 105). Também se
poJe citar Gramsci: «Hoje, os representantes dos interesses constituídos,
' 6 Não é a única característica que sugere o facto do movimento
quer dizer, os representantes das cooperativas, das agências de emprego, das
operário desempenhar para a classe operária uma função homóloga àquela habitações operárias, das municipalidades, das caixas de previdência, ainda
que a Igreja desempenha para os camponeses e para certas fracções da que em minoria no parrido, prevalecem sobre os tribunos, os jornalistas, os
pequena burguesia. prnfrssorcs, os advogados, que prosseguem em inacessíveis e vãos planos
F Pode-se citar aqui Michels: «Os conservadores mais tenazes <le um idro!(igicos» (A. Gramsci, op. cit., tomo II, p. 193).
partido são os que mais dele dependem» (R. Micheb, op. ,iJ .• p. 10 O. -'" Max Weber, "Í'· ât., tomo II, p. 880 e 916.

l
19-1 A REPRBSENTAÇAO POUTICA CAPiTUUJ V!l 19'5

com o aparelho. Segue--se também que, 1 medida que a polítirn nova definição das posições correspondam caracterísncas novas
se «profissionaliza» e que os partidos se ,,burocratizam,,, a luta nas atitudes dos seus ocupant"s. Com efeito, quanto mais o
pelo poder político de mobilização tende cada vez mais a capital polínco st institucionaliza em forma de postos a tomar,
tornar-se numa competição a dois níveis: ê do resultado da maiores sã.o <L'> vantagens em entrar no aparelho, ao contrário do
concorrência pelo poder sobre o aparelho .:i qual se desenrola no que se passa nas fases iniciais ou nos tempos de crise - em
seio Jo aparelho só entre profissionais, qut> depende a escolha período tevolucionário, por exemplo --· em que os riscos são
daqueles que poderão entrar na luta pela conquista dos simples grandes e as vantagens reduzidas. O processo frequentemente
laicos - o mesmo f.: dizn que a luta pelo monopólio da designado pelo termo vago de «burocratização» compreende-se
elaboração e da difusão dos princípios de di-visão do mundo se se vir que, à medida que se avança no ciclo da vida do
social estâ cada vez mais estreitamente reservada <1-os profissio- empreendimento político, os efeitos exercidos pela oferta de
nais e às grandes unidades de produção e de difusão, exduindo postos estáveis de permanência sobre o recrutamento vêm
de facto os pequenos produtores independentes (a começar aumentar os efeitos, frequentemente observados 4 n, que siio
pelos «intdectu,ti~ livres»). exercidos pelo acesso às posiçôes de permanência (e o acesso aos
privilêgios, relativos, que tais posições garantem aos militantes
saídos da classe operária). Quanto mais avançado é o ptocesso
de institucionalização do capital polírico, tanto mais rende a
conquista do «espírito» a subordinar-se à conquista dos postos
A delegação d.o ~apitai politico pressupôe a objectivação e tanto mais os militantes, ligados apenas pela sua dedicação â
desra espêcie de -:apitai em instituições permanentes, a sua «causa», recuam em proveito dos «prebendaJos», como lhes
materialização em «mâqumas,, políticas, em postos e instru- chama Weber -- essa espêcie de dientes, ligados ao aparelho de
mentos de mobilização e a sua reprodução continua por meca- modo duradoiro pelos benefícios e os ganhos que ele lhes
rúsmos e estratêgias. Ela ê própria de empreendimentos políti- garante, dedicados ao aparelho na medida em que este os man-
cos* já com muitos anos, que acumularam um importante tenha com a redistribuição de uma parte do espólio material ou
capital político objecrivado, em forma de postos no seio do simbôlico que conquista graças a eles (por exemplo, os Jpoilr
próprio partido, em todas as organizações mais ou menos dos partidos americanos) ·H. Por outras palavras, à medida que
subordinadas ao partido e também uos or,1-ianismos do poder
· local ou cemral e em toda a rede de empresas industriais ou
no movimento de ~)vens, etc), o poder da Igreja tende a assentar cada vez menos
comerciais que vivem em simbiose com esses organismos. A o.a incukação e na «cura das almas», de tal modo que ele se mede sem dUvida
objectivação do capital político garante uma independência melhor pelo número de postos e de agentes controlados de forma mediata pela
relativa perante a sanção eleitoral, substituindo ..i. dominação Igreja do que pelo nUmero dos ~missalizantes» ou dos «pascalizames».
directa sobre as pessoas e as estratêgia.s de investimento pessoal "n ~o desenvolvimento normal da organização sindical gera resultados
inteiramente opostos aos que tinham sido previstos pelo sindicalismo: os
(«pagar com a sua pessoa»), pela dominação imediata, a qual
operários que se tomaram dirigentes sindicais perderam completamente a
permite que se mantenham duradoiramente os detentores dos vocação do trabalho e o espírito de dasse e adquiriram todas as caracterisd-
postos mantendo os postos Y>. Compreende-se assim que a esta cas do funcionário pequeno-burguês, imc!ectua!meme preguiçoso, moral-
mente pervertido ou facil de perverter. Quanto mais o movimento sindica!
,. "entreprises politiques» no texw origina! (N. T. ). se alarga, ao abarcar grandes massas, ramo mais o funcionarismo se espalha,,
'" Esr.,.s anâ!ises aplicam-se tambêm ao caso da l~rej,1: êi medid:J. que o (A. Gramsci, op. ât., tomo III, pg. 206-207).
capita! politico da Igreja se objeniv.1 em instituiçôcs e ,nino<· o raso no 1
· ' "Os presidentes de câmaras, são para o Partido Socialista o essencial
período rereme. em posws controhdos pd" !;;:reja <m• n,,111,,. 11., mq>ffl!~- ,l,)s nwios. dos homens, <las influências ( ... ). Enquanto os mantiver, o
f
1
1
196 A REPRESENTAÇÀO POLÍTICA
1
CAPÍTUW VI/ 197 1

o processo de institucionalização avança e o aparelho de mobili- i


do, quanto mais fortemente determinados estão nas suas estra~
zação cresce, o peso dos imperativos ligados à reprodução do 1
tégias pela preocupação de «defender as suas conquistas»*; ou ,/
aparelho e dos postos que ele oferece, vinculando os seus
ainda, quanto mais expressamente ordenados para a luta,
ocupantes por todas as espécies de interesses materiais ou
quanto mais organizados eles estão segundo o modelo militar
simbólicos, não deixa de aumentar, tanto na realidade como
do aparelho de mobilização; ou enfim, quanto mais desprovidos
nos cérebros, em relação àqueles que a realização dos fins
proclamados imporia: e compreende-se que os partidos possam de capital económico e cultural, mais dependentes em relação
ser assim levados a sacrificar o seu programa para se manterem ao partido estão os seus quadros e os seus membros perma-
nentes.
no poder ou simplesmente na existência.
A combinação da fidelidade intergeneracional e intragene-
racional - que garante aos parridos uma clientela relativa-
Campos e aparelhos mente estável, retirando à sanção eleitoral uma grande pane da
sua eficácia - e da fides implícita - que põe os dirigentes a
Se não há empreendimento político que, por muito mono- coberto do controlo dos profanos - faz com que, paradoxal-
lítico que possa parecer, não deixe de ser lugar de defrontações mente, não haja empreendimentos políticos que sejam mais
entre tendências e interesses divergentes 42 , não é menos verda- independentes dos constrangimentos e dos controlos da procura
de que os partidos estão tanto mais condenados a funcionarem e mais livres de obedecer apenas à lógica da concorrência entre
segundo a lógica do aparelho capaz de responder instantanea- Os profissionais (por vezes mediante as mais repentinas e
mente às exigências esrrarégicas inseriras na lógica do campo paradoxais reviravoltas) do que os dos partidos que mais
político quanto mais desprovidos culturalmente e mais presos claramente reivindicam para eles mesmos a defesa das massas
aos valores de fidelidade, logo, mais dados à delegação incondi- populares 43 . É assim na medida em que eles tendem a aceitar o
cional e duradoura estão os seus mandantes; e também quanto dogma bolchevique segundo o qual fazer intervir os profanos
mais antigos e mais ricos eles são em capital político objectiva- nas lutas internas do partido, apelar para eles ou, muito
simplesmente, deixar passar para fora os desacordos internos,
tem qualquer coisa de ilegítimo.
panido durará, manter-se-ã, aconteça o que acom:ecer. Compreende-se que
as municipalidades sejam a grande preocupação dos socialistas. Nfl limite, a Do mesmo modo, os membros permanentes não dependem
única preocupação séria. A ideologia, as declarações de princípio, os planos nunca tanto do partido como quando a sua profissão lhes não
de acção, os programas, os debates, as discussôes, os diálogos, são impor- permite participar na vida política a não set à custa de um
tantes, decerto ( ... ). Mas ao nível lrn::al o partido está no poder, ou pelo sacrifício de tempo e de dinheiro: só do pattido podem então
menos tem a ilusão disso. É por isso que já se não brinca quando se trata de
eleições municipais. Entra-se no concreto. A defesa é feita no terreno, sem
• «dêfendre les acquis» no texto original (N. T.).
tagarelices teóricas, asperamente, duramente, até ao fim» (P. Guidoni, 43
Se é conhecido o lugar que o sistema de valores popular concede
Hút(lire du no11veau Parti Sodaliste, Paris, Teffia-Aetion, 1973, p. 120).
1 a virtudes como a integridade («ser inteiro», «de uma só peça», etc.), a
~ É o que se observa no caso aparentemente mais desfavorável, o do
fidelidade à palavra dada, a lealdade para com os seus, a constância para
partido bolchevique: «Por detrâs da fachada de uma unidade política e
consigo mesmo («eu cá sou assim», «ninguém me fará mudar», etc.),
organizacional proclamada, conhecida pelo nome de «centralismo democrá-
atitudes estas que, em outros universos, apareceriam como uma forma de
tico», não havia em 1917, nem mesmo alguns anos depois, uma filosofia ou
rigidez, e até mesmo de estupidez, compreende-se que o efeito de fidelidade
ideologia políticas bolcheviques unifurmes. Pelo conrrário, o panido ofere-
âs opções originais - que rerufo a transformar a filiação política numa
cia uma notável variedade de pontos de vista: as diferenças iam <las questões
propriedade quase hereditária e capai de sobreviver âs mudanças de condição
de palavras aos conflitos acerca das op~Ues fundamentais» (S. Cohen, "Í'· cit.,
inttageracionais ou intergeracionais - se exerça com força especial no caso
1979, p. 19).
dns classes populares e aproveite particularmente aos partidos de esquerda.
198 A REPRESENTAÇÃO POLi11CA CAPÍTULO VII 199

esperar o tempo livre que os noráveis devem aos seus rendimen- ao seu partido 45 . Também se compreende que, como Denis
tos ou à maneira como eles os adquirem, quer dizer, sem Lacorne estabeleceu, «o espíriro de parrido» e o «orgulho
trabalho ou por um trabalho intermirenre 44 • E a sua dependên- partidário» sejam claramenre mais marcados entre os membros
cia é ramo mais completa quando mais fraco for o capiral permanentes do partido comunisra do que enrre os membros
económico e cultural que eles possuíam antes da sua entrada no permanentes do parrido socialisra os quais, por serem frequen-
parrido. Compreende-se que os membros permanenres saídos temenre oriundos das classes médias e superiores - e especial-
da classe operária tenham o senrimento de tudo dever ao mente do corpo docente - esrão menos dependentes do
parrido, não só a sua posição, que os libetra das servidões da partido.
sua amiga condição, mas rambém a sua culrura, em suma, Vê-se que a disciplina e o amesrramenro *, tão frequenre-
rudo o que faz o seu ser act-.ial: «É que aquele que vive a vida mente sobrestimados pelos analistas, permaneceriam ineficazes
de um partido como o nosso nada mais faz do que guindar-se. sem a cumplicidade enconrrada nas arirudes de submissão
Parti com a bagagem da insrrução primária e o partido forçada ou elecriva que os agenres introduzem no aparelho e
obrigou-me a que me educasse. É preciso trabalhar, é preciso que são elas próprias reforçadas de modo contínuo pela con-
lidar com os livros, é preciso ler, é preciso empenhar-se na frontação com aritudes afins e pelos interesses inscritos nos
coisa ... É uma obrigação! Senão ... ainda hoje seria o mesmo postos de aparelho. Pode-se dizer, indiferentemente, que c.ertos
burrico de há cinquenta anos! Eu cá digo: Um militante deve t11do habitus acham as condições da sua realização, e até mesmo do
seu desenvolvimento, ~a lógica do aparelho; ou, inversamente,
·"' Ainda que apresente cataneristic:as in.vatiantes, a oposição entte os
que a lógica do aparelho «explora» em seu proveito as tendên-
111embms permanentes e os simples adetentes (ou, c:om mais ratin, os votantes
ocasionàis) reveste-se de sentidos muito diferentes segundo os partidos. Isto, cias inseriras nos habitm. Por um lado, poder-se-iam invocar
por intermédio da distribuição do capital e, sobretudo talvez, do tempo lirre, rodos os processos, comuns a rodas as insricuições rotais, pelos
entre as classes. (É sabido que se a democ:rac:ia ditecta não tesiste à quais o aparelho, ou os que o dominam, impõem a disciplina e
diferenciação económic-a e social, ê ·porque, por intermédio da desigual põem no bom caminho os heréricos e os dissidentes ou os
distribuição do tempo livre que dai resulta, se inttoduz a concenttação dos mecanismos que, com a cumplicidade daqueles cujos inreresses
cargos administrativos em proveito daqueles que dispõem do tempo nec:essâ-
rio para cumprir as funçôes graciosamente ou mediante uma fraca remunera- seryeIT_l, tendem a assegurar a reprodução das instituições e das
ção). Este princípio simples podetia tambêm contribuir para explkar a suas hierarquias. Por outro lado, seria um nunca mais acabar
participação diferencial das difetentes profissões (ou ainda dos diferentes com a enumeração e a análise das atitudes que oferecem à
estaruros numa mesma profissão) na vida polítka ou sindic:al e, mais mecanização militarista a sua força e os seus insrrumentos: quer
geralmente, em codas as tesponsabilidades semipoUticas: Max Webet se trate da relação dominada com a culrura que predispõe os
observa assim que os directotcs dos grandes insritutos de medióna e de
ciências da natureza são pouco dados e aptos a ocupar os postos de reitor membros permanentes saídos da classe operária a uma forma de
(M. Weber, r;p. át., tomo li, p. 698) e Robett Michels indic:a que os anti-intelectualismo próprio para servir de jusrificação ou de
cientistas que tiveram patte aniva na vida política «vitam as suas aptidões alibi a uma espécie de idanovismo espontâneo e de corporaris-
ciendficas sofrerem uma baixa knta, mas progtcssiva» (R_ Mkhels, op. át., mo obreirista, quer se trare do ressentimento que se satisfaz na
p. 155). Se a isto se juntat que as condições sociais que favorecem ou visão estaliniana - no sentido histórico - quer dizer, poli-
permitem a recusa de dar o seu wmpo à vida política ou à adminisrração
esrimulam tambêm, frequentemente, o desdêm aristocrático ou profêtico cial, das «fracções» e na propensão para pensar a história em
pelos ganhos temporais que as actividades podem prometer ou furnecer, termos de lógica da conspiração, quer se rrare ainda da culpabi-
compreende-se melhor algumas das invariantes estruturais da relação cmre
os inreleetuais do aparelho (político, administtativo ou outro) t· os intekc~ 4
-' D. Lacorne, op. cit, p. 114.
tuais «livres», entre teólogos e bispos, nu cntrc iuvestiµ;;«!or,·\ ,. ,ln·.111os ""' «drcssage» no texto origina! (N. T.).
universitários, reitores ou «dmlnistradotl·s cit·JJtifü,rs, ,·1,
CAPÍTUl~O Vll 20l
200 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
como diz pouco mais ou menos Weber, a situação de luta
lidade que, inscrita na posição de equilíbrio instável do intelec- reforça a posição dos dominanres no seio do aparelho de luta e
tual, atinge a sua intensidade máxima no imelecrual saído das faz passar os militantes do papel de tribunos, encarregados de
classes dominadas, trânsfuga frequentemenre filho de trânsfuga exprimir a vontade da base que eles podem reivindicar por
que Sarrre evocou de forma magnífica no prefácio a Aden vezes em nome da definição oficial da sua função, para a função
Arabie. E não se compreenderiam certos «êxiros» extremos da de simples «quadros» encarregados de fazer executar as otdens e
manipulação do aparelho se se não visse até que ponto esras as palavras de ordem da direcção central, condenados pelos
atitudes são objectivamente orquestradas, vindo as diferentes «camaradas competentes» à «democracia da ratificação» 4 H. E
formas de miserabilismo, que predispõem os intelectuais ao nada exprime melhor a lógica desta organização de combate do
obreirismo, por exemplo, ajustar-se ao idanovismo espontâneo que o processo do «Quem é contra?» como o descreve Boukha- 1
para favorecerem a instauração de relações sociais nas quais o nne: convocam-se os membros da organização, explica ele, e 1
perseguido se torna cúmplice do perseguidor. pergunta-se-lhes «Quem ê contra?»; e como eles têm rodos 1
Não deixa contudo de ser verdade que o modelo organiza- mais ou menos medo de ser conrra, o indivíduo designado é
cional de tipo bolchevique, o qual se impôs à maior parre dos nomeado secretário, a resolução proposta é adoptada, e sempre
1
partidos comunistas, permire que se realizem até às suas por unanimidade.i". O processo a que se chama «militarização» 1
;): ·f últimas consequências as tendências inseriras na relação entre as 1
-fJ 1classes populares e os partidos. O partido comunista, aparelho
escolhe!'J.m» (R. Michels, r,/1. â1. p. 163). Mas, é sem dllvidn com Estaline
~'J 1 (ou instituição rota!) ordenadÜ com vista à luta, real ou que a estratêgia da mi!it,1tita1,'do -- a tJual, cmno nota Stephcn Cohen, é
representada, e firmado na d1mplma que petmlte fazet ag1r um decerto a llnica comribuição original de Estaline pata o pensamento
!-
' 1·•

con Junto de agentes (neste caso militantes) «como um só bolchevique, portanto, a caracttristica principal do esralinismo - tem a sua
1 '-~ homem» com vista a uma causa comum, encontra as condições realização: os sectores de intervenção tomam-se cm «frentes» (freme do
1
1
, u. do seu funcionamento na luta permanente que tem lugar no"
'- 1J... campo político e que pode" ser reactivada ou intensificada sem
grão, freme da filosofia, freme da literatura, etc.); os objecrivos ou os
problemas são ~fortalezas~ que as «brigadas reóticas» devem «tomar de
assalto», etc. Este pensamento «militar» ê evidentemente maniqueu, pois
..~ restrições. Com efeito, já que a disciplina, como observa que celebra um grupo, uma escola de pens,,memo ou \!ma concepção
, 1 ~ Webec, "gacante a unifo_:- midade racional da obediência_de uma constituída em ortodoxia para melhor aniquilar todos os outros (cf.
, io pluraltdade de homens» 0 e rem a sua Justificação, se nao o seu S. Cohen, /Jp. ât., pp. 367-368 e 388).
•~ Vê~se que as lutas conduzidas no interior do partido comunista contra
t fundamento, na luta, basta invocar a lura real ou potencial, e
o auroritarismo dos dirigentes e contra a prioridade que eles dão aos interesses
até mesmo reavivá-la de modo mais ou menos artificial, para de aparelho em relação aos interesses dos mandantt'S nada mais fazem do que
restaurar a legitimidade da disciplina 47 • Segue-se daqui que, reforçar as prôprias tendências por elas combatidas: basta efccrivamentc qw.:
os dirigentes invoquem, ou mesmo suscitem, a lura po!itica, cm cspeci'll
46
Max Weber, op. àt. tomo II, p. 867. contra os concorrentes mais imcdiaws, para permitir o chamamento à
47
Robert Michels, que assinala a estreita cottespondência entre a disciplina, quer dizer, à submissão aos dirigentes, que se impõe em tempo de
organização do «partido democrático de combate» e a organização militar e luta. (Neste sentido, a denUncia do antirnmunismo i; uma arma absoluta nas
os vocâbulos sem número (em especial em Engels e Bebel) da terminologia mãos dos que dominam o aparelho, pois que ela desqualifica a crítica, e atê
socialista retirados da gíria militar, observa que os dirigentes, que, como ele mesmo a objectivação, e impõe a unidade contra o exrerior).
lembra, têm que ver com a disciplina e a centralização (R. Michels, op. ât., ~•, Cf. S. Cohen, op. át., p. 185. Uma etnografia das prâticas de
pp. 129 e 144), não deixam de apelar à magia do interesse wmum e aos ,1~5t:mbleiu forneceria inúmeras ilustrações dos processos de imposição auto~
«argumentos de ordem militar» sempre que a sua posição estâ ameaçada: ritúri:1 l]Ue se apoimu 11a impossibilidade pcitica de romper, iem im:tint'I!~
«Sustenta-se sobretudo que, quando só por razões de ordem táctica e a fim 111/mú, ;1 u11;1nimid;1de 1ma11i1ncmcntc cultivada (abstenção num voto de
de manter a coesão necessâria freme ao inimigo, os aderentes du p;1ttido não hra1,o lt-va11t;1do. 1·11111111-11,-10 de 111n non1t· 111m1:1 lista prê-esrabelecida, etc.).
deverão em caso algum recusar a sua confiança aos chd('~ q1w livrnnrntt"

l
l
1
202 A REPRESENTAÇÃO POÜTJCA

consiste em basear a autoridade na situação de «guerra» com


que se defronta a organização e que pode ser produzida por um
CAPÍTULO Vll

Apêndice
203
'
í
i:rabalho sobre a representação da situação, a fim de produzir e de U 111 doomlo interessado
reproduzir continuamente o medo de ser contra, fundamento
último de todas as disciplinas militantes ou militares. Se o
anticomunismo não existisse, o «comunismo de guerra» não A candidatuta de Coluche à Presidência da Reptiblirn foi, logo de
deixaria de o inventar. Toda a oposição do interior, dado que inicio, condenada pela quase totalidade dos profissionais da política com a
estâ condenada a aparecer como conluio com o inimigo, reforça acusação de po11µtliww. No entanto, em vão se procuraria na temática do
cômico parisiense os tópicos mais tipicos do livreiro de Sa.int-Cêrê tal como
a militarização por ela combatida ao reforçar a unanimidade do os anola o estudo dâssico de Stanley Hoffman '· nacionalismo, ami~
«nós» ameaçado que predispõe à obediência militar: a dinâmica -intelenualismo, amiparisianismo, xenofobia racista e fascizante, exahação
histórica do campo de Juras entre ortodoxos e heréticos, defen- das classes mêdias, motalismo. etc E cusra a rnmpreender como «obstrva-
sores do por e defendentes do contra, dá o lugar â mecânica do dores avisados" pudetam confundit o «candidato das minotia.~», de todos os
«que nunca são representados pelos partidos po!fricos", «ptderastas,
aparelho que anula qualquer possibilidade prâtica de ser contra
aprendizes, Negros, Árabes», etc com o defensor dos pequenos comer-
por meio de uma ~.xploração semi-racional dos efeitos psicos-so- Óantes em luta contra «os metecos» e «a m,1.fia ;ip;i.trida de traficantes e de
ll).âticos da exaltação da unanimidade das adesões e das aversões pederastas"~.
ou, inversamente, da angústia da exclusão e da excomunhão, Embora se nmhe\·am mal as bases sociais do movimento poujadista, ê
fazendo do «espírito de partido,, um verdadeiro espírito de corpo. incontestâvel que ele achou as suas primeiras tropas e os seus mais fiêis
apoios na pequena burguesia dos artífices e dos cometciames de prnvincia,
Assim, a prôpria ambiguidade da luta polítka, esse comba-
mais idosos e ameaçados pelas transformações econômicas e sodais. Ora,
te por «ideias,, e «ideais» que é ao mesmo tempo um combate dois inquêtitos, perfeitamente convergentes, um do lfRES, outto do IFOP,
por poderes e, quer se queira ql1er não, por privilêgios, está na estabelecem que os que deram a sua simpatia â ca11did,:1trm1 de Coluche
origem da contradição que obsidia todos os empreendimentos apresentam características em todos os pomos opostas. A propensão pata
políticos ordenados com vista â subversão da ordem estabele- aprovar a candidatura de Coluche varia na razão inversa da idade: ela atinge
a sua intensidade mâxima entre os jovens (e, entre esn:s, sobretudo nos
cida: todas as necessidades que pesam sobre o mundo social
homens), e ê somente aos olhos de uma patte (um terço aproximadamente)
concorrem para fazer com que a função de mobilização, que das pessoas de mais de 65 anos que ela parece escâ.n<lalo. Do mesmo modo,
necessita da lôgica mecânica do ãparelho, tenda a preceder a ela tende a aumentar com a Jimensiio da terra de residência: muito fraca nas
função de expn:ssão e de representação, que todas as ideologias comunas curais e na~ pequenas cidades, ela culmina nas grandes cidades e na
profissionais dos homens de aparelho reivindicam (a. do «inte- aglomeração parisiense. Se bem que as categotias utilizadas pelos
lectual orgânico» como a do partido «parteiro» da classe) e que dois institutos de sondagem sejam igualmente imptecisas e pouco comparâ-
veis, tudo parece indicar serem os opecirios e os empregados e rambêm os
só pode ser realmente assegurada pela lógica dialéctica do intelectuais e os attisrns, que se declaram m;1is claramente a favor do
campo. A «revolução por cjma», projecto de aparelho que candidaco anômico enquanto que as rejeições mais matcada.s se encontram
supõe e produz o aparelho, tem o efeito de interromper esta entre os patrões da indtisttia e do comêreio. O que se compreendi:
dialéctica, a qual é a própria história, primeiro no campo facilmente se se souber que os votos assim desviados são retirados principal~
mente â esquerda (claramente mais ao PS qut" ;to PC) e tambêm ganhos aos
político - esse campo de lutas a respeito de um campo de
lutas e da representação legítima dessas lutas - , depois no
próprio seio do empreendimento político, .Partido, sindicato,
associação, que só pode funcionar como um só homem se
'S. Hoffmann, Le 1t10//1'1!111n11 p,,1,1,uf,.. Cahiers de !a Fondation Nado-
sacrificar os intereSses de uma parte, quando não da totalidade, na!e des Sciences Polidgues, Patis, A. Colin, !956, PP- 209 .. 260.
·dos seus mandantes. ~ Ibidem, id.. p. 246.
204 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
CAPÍTULO VII lO"l
ecologistas e aos abstencionistas. A parte das pessoas interrogadas que, na
«garganra», pode ser que os operários que estão na sua secção uiio o
ausência de uma candidatura de Coluche, votariam pela direita ê fraca
designem nunca, para levar a bandeira da organização. Eles preferem
(muito especialmente entre os operârios) e ê sobretudo pata o partido
socialista que iriam os voros (sendo a pane daqueles que oprariam pela naturalmente um operârio que deu provas, eles preferem um comunista,
absrençâo certamente muito forte em todas as categorias). O facto de a patte mesmo que seja um intelectual, porque os hâ bons e maus.. Como na
classe operâria hâ os bons e os maus, isso é facto cerro!»
dos partidários de Coluche ser claramente mais elevada enne os homens do
que entre as mulheres permite a suposição de que esta escolha ê a expressão
(Ferreiro-ajudante, mineiro e depois operátio em <::orrentes de ferro,
de um abstencionismo activo, muito diferente da simples indiferença ligada
nascido em 1892 em Saim-Amand-les-Eaux, foi secretário da sec:çâo de
â incompetência estatutária.
Sainr-Nazaire du PCF em 1928, responsâvel da CGTU da região de
Assim, os profissionais, homens políticos e jornalistas, temam recusar
Saint-Nazaire).
ao «furador do jogo» o direito de entrn.da que os profanos !he concedem
maciçamente (eles são favorâveis, em dois terços, ao principin da sua
candidatura). Sem dU.vida porque ao enrrat no jogo sem o levar a sêtio, sem Autobiografias de militantes CGTU-CGT, apresentadas por Jean Penef, Les
se tomar a sério, este jogador extra-ordindrio ameaça o fundamento mesmo C1hiers d11 LERSCO, l, Dez. 1979, p. 28-29.
do jogo, quer dizer, a crença e a credibilidade dos jogadores ordi11âri1Js. Os
procuradores são apanhados em flagrante delito Je abuso de poder: ainda
que, como de costume, eles se apresentem como porra-voz da «opinião A rúão da 1111ião e da dll'isão
pública», caução de todas as palavras autorizadas, eles fornecem não a
verdl!,de do mundo social, mas sim a vetdade da sua relação com esse A luta entre os aparelhos de produção e de imposição dos princípios da
mundo, obrigando a que se pergunte se não ê assim <l'l.S nutras vezes. <li-visão do mundo social implica a lura pela imposição da visão dos aparelhos
(concorrentes) de produção dos prindpios de di-visâo, quer dizer, no <::aso
particular, pela imposição da visão das responsabilidades que incumbem a
"Pura mim. é-Je r1ml!111isr.1 011 11J// se é• estes aparelhos na divisão. Dando-se püt entendido que os aparelhos divididos
ac:er<::a das razões da divisão se aliarão certamenre pata combaterem a visão
«Quando me dizem: A gente não vos compreende, entre vocês, os segundo a qual o principio da divisão poderia residir nos interesses dos
comunistas, não hâ tendências: não hâ comunistas de direita, não hâ aparelhos divididos os quais, sem prejuízo de anexar o seu rnncotrente ou a 1
comunisras de esquerda, não hâ centristas, então a liberdade não existe!
A esses, respondo: A que é que você chama um comunista de direita, a que
ê que você chama um comunista de esquerda, a que ê que você chama um
sua clientela - por uma estratégia de «união na base~ - , têm de comum só
poderem reproduzir-se sem m11da11ça reproduzindo a divisão.
!
comunista centrisra? Para mim, ê-se comunista ou não se ê, e no seio da «O Bureau Político do PCF adoprou ontem a seguinte declaração:
organização comunista, quando se discute, cada um dâ o seu ponto de vista Esrâ actua!mente em curso uma campanha conduzida por diferentes
sobre a ordem do dia, e depois, quando ê importante, há uq1 voto. Ê a organizações trot,ky,taJ - entre as quais a OCI, estreitamenre ligada ao
maioria que decide. A que ê que você chama a democtacia? Para mim, a Partido Socialista - e tambêm pelo grupo abusivamente designado «União
nas Lutas» a favor de um acordo imediato PC-PS wm vista à segunda volta
democracia ê 50 vozes mais uma, ê compreensível! Ê a maioria que decide.
Se você vem ao partido comunista para combater as directivas que foram das eleições presidenciais, e mesmo à designação de um <::andidato U.nico. 1
livrememe discutidas e debatidas numa sessão de congress~, para fazer Especulando acerca da legitima aspiração à união de milhões de francesas
predominar o seu ponto de vista reformista sem reformas, porque isso e de franceses, esta campanha, abertamente apoiada e directamente organi-
corresponde naturalmente ao seu estado de espirito (você tem as nâdegas zada pelos dirigentes socialistas, tem em vista, de facto, enganar os
sensíveis, necessita de uma poll'fona bem estofada para não aque,::ê-las) então trabalhadores e voltar as costas aos interesses reais da união e da mudança
uma vez na sua poltrona, você dirâ: Ah! não estou de acordo com a direcção que eles esperam.
do partido, eu câ ·sou um comunista à direita, eu estou ... ao centro_ Se você A sua caraneristica principal ê, com efeito, a de escamotear completa-
ê um eleitoralista, digo de imediato: Vá para outro !ado, aqui não temos mente a inteira responsabilidade de ftançois Mittertand e dos outros
necessidade de si, porque você tem talvez uma grande cabeça, você é talvez dirigentes socialistas na ruptura da união e da detrota de 1978, e de passar
muiro inteligente, mas você tem uma má argumenra;,110 possui sobtetudo nn silêncio total a sua po!frica actua!.
uma mâ documentação. Então apesar de toda css,1 imdiµ(·u, h ,. css,1 Falar de um acordo imediato sem diier uma palavra acerca do abandono
pdo P:mido Socialisra da defesa das reivindicações dos trabalhadores, das
206 A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA CAPÍTULO Vll 207

justificações da austeridade e do encerramenro de empresas em nome da O senhor Marchais afirmou que «um do se estabe!e<:eu (. .. )que vai do
crise, do petróleo e da Europa, da sua aprovação ao alargamento do Mercado Panido Socialista ao R.P.R. e dos dois à U.D.F.» enquanto que O Partido
Comum, dos seus apelos ao reforço da Aliança Atlânrica sob o comando Comunista quer «a união». «Nús queremos - disse - construir um
americano, do seu apoio a uma aceleração da corrida às armas nucleares, é grande reagrupamento maiotitârio, realizar a união de todas as forças
muito simplesmente querer levar os trabalhadores a reboque de uma política populares, a união da esquerda para a mudança, e tomâ-la irreversível.
de gestão da crise em proveito do <:apitai. O que nós queremos ê a mudança. Queremos vencer a direita, vencer
Falar de união nas luras sem nocar que François Mitrerrand condena as Giscard d,Estaing. Queremos pôr em pcitica as grandes reformas amicapira-
lutas, que as considera ukrapassadas e prejudiciais e que os responsâveis !ista$ e democráticas sem as quais não pode haver mudança real. Nós
socialistas - incluindo os que dirigem cerras centrais sindicais ~ mdo queremos romat todas as nossas responsabilidades neste esforço de tenova-
farão para as impedir, é cobrir com belas palavras o apelo a uma combinação ção. Atê à governação. Estamos ptontos. »
eleitoralista sem conreUdo e sem principio ( ... )»
Le Monde, de 20 de Dezembro de 1980, P- IO.
L"Humanitê, de 18 de Dezembro de 1980, p. 5.

ªº Senlwr Man-hais lança t1m apelo am eleiMre> wâalistm para


suas forças» mm os ((Jmunistas
ª1tmm11 ai

O senhor Georges Marchais declarou, na quinta-feira !O de Dezembro,


no decurso de uma tt'União pública em Chelles (Seine-et-Mame) que «sô há
uma força política que luta com lealdade, coragem e lucidez pela realização
das esperanças de mudança dos trabalhadores: é o Parrido Comunista
Francês.
Dirigindo «em especial âqueles que votaram ou votam no socialismo
rendo no coração a vontade de ver as coisas mudar». o secretário-gera! do
PCF declarou: «Alguns de vós pensaram que o congresso de Épinay e a
assinatura do Progtama Comum tinha mudado o Partido Socialista. Ora, hâ
que aceitar hoje que a vossa vontade foi desviada da sua intenção. François
Mitterrand meteu-se pelos trilhos da velha SFIO. Ele consagra os seus
discutsos à exaltação de Lêon Bium. Ele volta à peregrinação a Washington.
Ele manobra com a diteita como no tempo da Frente Revolucionária de
1956. Ele ataca-nos, prosseguindo no seu objecrivo fundamental: enfraque-
cer o Partido Comunista. Vôs que quereis sinceramente â união e a
mudança, não podeis aprovat e apoiar esta orientação. Ela é perigosa.
Digo-vos com toda a franqueia: muita coisa depende daquilo que decidir-
des. Unamos as nossas forças, mesmo que não tenhamos a mesma opinião
sobre todas as questões, e poderemos afastar o regresso a um passado
derestâvel.
r

CAPÍTULO VIII

A força do direito
Elementos para u,na sociologia do campo jitrídico

Da mihi factum, dabo Tibi jw

Uma ciência rigorosa do direito distingue-se daquilo a que


se chama geralmente i,a ciência jurídica» pela razão de tomar
esta última como objeno. Ao fazê-lo, ela evita, desde logo, a
alternativa que domina o debate científico a respeito do direito,
a do formalismo, que afirma a autonomia absoluta da forma
jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, que
concebe o direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos
dominantes. A «ciência jurídica tal como a concebem os
juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identifi-
cam a história do direito com a história do desenvolvimento
interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o
direito como um sistema fechado e autónomo, cujo desenvolvi-
mento só pode ser compreendido segundo a sua «dinâmica
interna» 1 . A reivindicação da autonomia absoluta do pensa-
mento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria
de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do
peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma «teoria pura
do direito» não passa do limite ultra-consequente do esforço de
wdo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas
e de regras completamente independentes dos constrangimen-
tos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio
fundamento 2.
1
Cf., por exemplo, J. Bonnecase, La pemie juridique française. de
!804 à /"heure primm, ieI variatiom et les traits emntieh, 2 vols., Bordêus, j
Delmas, 1933. i
1
A tentativa de Kelsen, firmada no postulado da autolimitaçãó da
ptsquis,1 tão-só no enunciado das normas juriditas, com exclusão de qual-

l
210 ,-\ FORÇA DO DlREITO CAPhULO Vlll 211

Quando se toma a direcção oposta a esre espécie de ideologia própna base das relações produtivas» ➔: a preocupação de situar
profissional do corpo dos doutores constituída cm corpo de o direito no lugar profundo das forças histórica<; impede, mais
,,doutrina», é para se ver no direito e na jurisprudência um uma vez, que se apreenda na sua especificidade o universo
reflex(i directo das relações de força existentes, em que se expri- social específico em que ele se produz e se exerce.
mem as determinações económicas e, em particular, os interesses Para romper com a ideologia da independência do direito e
dos dominantes, ou então, um instrumento de dommaçào, como do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em
bem o diz a linguagem do Apare/ht!, reactivada por Louis linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, imernalis-
Alrhusser·1 • Vitimas de uma tradição que julga ter explirndo as ta e extemalista, ignoram uma e ourra, quer dizer, a existência
«ideologias» pela designação das suas funções («o ópio do de um universo social relativamente independente em relação às
povo»), os marxistas ditos estruturalistas 1gnorarnm paradoxal- pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a
mente a estr11t11ra dos sistemas simbólicos e, neste caso parti- autoridade Jurídica, forma por excelência da violência simbólica
cular, a forma específica do discurso juridirn. Isto porque, rendo legítima cujo monopôlio pertence ao Esrado e que se pode
reiterado a afirmação ritual da autonomia relativa das ><ideolo- combinar com o exercício <la força física. As práticas e os
gias,,, eles passaram em claro a questão dos fundamentos sociais discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento
desta autonomia, quer dizer, mais precisamente, a questão d,1s de um campo cuja lógica especifica está duplamente determina-
condições históricas que se devem verificar para poder emergir, da: por um lado, pelas relações de forç·a especificas que lhe
mediante lutas no seio do campo do poder, um universo social conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência
autónomo, capaz de produzir e de reproduzir, pela lógica do seu ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele rêm
funcionamento específico, um c!/lpt1s jurídico relativamente lugar e, por outro lado, pela lógica interna dos obras jurídicas
independente dos constrangimenros externos. Deste modo, absti- que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, desre
veram-se de determinar a contribuição específica que, pela própria modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.
eficácia da sua forma, o direito pode dar ao cumprimento das suas &ria preciso examinar ugui tudo o que separo ;1 noção de campo juridico
presumidas funções. E a metáfora arquitectural da infra-estrutura como espaço social da noçéio dt 5ÍJ/ema mi como a desenvolve Luhmann. por
e da superestrutura, que sustenta os usos comuns da noção de exemplo: em nome da recusa, perfeitamente legitima, do reducionismo, a
autonomia relariva, continua a guiar os que, como Edward teona dos sistemas püe ~a :nito-referência~ das ~estruturas legais», confun-
P. Thompson, julgam romper com o economismo quando, para dindo neste wnceito as estruturas simbólicas (o diwirn propriamente dito) e
as instituições sociais que :is produzem: compreende-se que, na medida enJ
restituírem ao direito toda a sua cficâcia hisrôrica, se conten- que a teoria dos sistem;1s apresenrn com um nome novo a velha teoria do
tam com afirmar que ele esrâ ,,profundamente imbricado na sistema jurídico que se transfotm'1 segundo as suas próprias leis, da fofl"".'Ç<l
hoje um quadro ideal â representação forma! e abstmcta do sistema
juridico~_ Por se niio distinguir a ordem propriamente simbúJic,i_ das normas
quer dado histôrico, psicológico ou social e de qualquer referência âs funções e das doutrinas - (quer dizer, o (<1mpo d:ts rnmada.~ de posição ou espa,;.o dos
sociais que a aplicação prâtica destas normas pode garantir, ê perfeitamente possíveis), a qual. como su~etem Nonet e &lmi(k, encerra potencialidades
semelhante à de Saussure que .fundamenta a sua teoria pura da língua na objcctivas de desenvo!vimr.nto e atê mesmo de direcçües de mudança, mas
distinção emre a !inguistica inrema e a linguistica e><tema. quer dizer. na
exclusão de qualquer referência âs condições histôricas, geogrâficas e sodo16-
gicas do funcionamento da !ingua ou das suas transfunnações. 'E. P. Thompson, U:-),1.:,,., ,,m! flrmters, The Origin ef the Bf,,ck A,'f.
'Encontra-se uma visão de conjunto dos trabalhos marxistas cm Nova Iorque, 1975, P- 261.
matêria de sociologia do direito e uma excelente biblioi.ir:ifi.i ón S. Spitit·r, 'N. Luhmann, Sozúl,· Sy1temr. GmndnJJ einer aligemeiven Thmric
«Marxisr Perspcctives in the Sociology of L1w». Am11u! Uf1'1rn· ,,/ s,~1"!".~\. l'rnncforte. 1984: "Die Einheit dcs Rechtilysier:15» ia Rechtstheom, 14.
9. 1983, pp. 103-124. l'm1. pp. !29~154.

i
CAPiTULO Vlll 213
2 !2 A FORÇA DO DIREITO
adquirido e reconhecido (o 9ue rem o efeito de inscrever na sua estrurura
que não contêm nela mesma o principio da sua pr~pr~a ~i~âmica - e a uma ambiguidade 9ue conrribui sem dtlvida para a sua eficâcia simbólica).
ordem das relações objectivas entre os agentes e as 1nstim1çoes em com:or- Já se mostrou, por exemplo, como os sindicaros americanos têm visro o seu
réncia pelo monopôlio do direiro de dizer o direiro, não se pode çOmp~e~- estatutO legal evoluir à medida que ganham em poder: enquanro 9ue, em
der que o campo jurídico, embora receba do espaço das romadas de posiçao começos do sêculo XIX, a acção colecriva dos assalariados era condenada
a lingm1pp11 em que os seus confliws se exprimem, enconrre nele m~smo, como «criminal conspiracy» em nome da prorecção do mercado livre, os 1
quer dizer, nas luras· !i_riadas aos interesses associados às diferenres posições, sindicaros foram pouco a pouco rendo acesso ao reconhecimenro lega! 5 •.
o principio da sua rransformação.
A lógica paradoxal de uma divisão do trabalho que se j
A dfrisão do trabalho j11rídico determina, fora de qualquer concertação consciente, na concor- '
rência estruturalmente regulada entre os agentes e as institui- li
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio
do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição
ções envolvidas no campo, constitui o verdadeiro princípio de
um sistema de normas e de práticas que aparece como funda- 1
(nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investi-
dos de competência ao mesmo tempo social e técnica que
mento a priori na equidade dos seus princípios, na coerência das
suas formulações e no rigor das suas aplicações, quer dizer,
I'
consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar
(de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpm de
como participando ao mesmo tempo da lógica positiva da
ciência e da lógica normativa da moral, portanto, como poden-
li
~
textos gue consagram a visão legítima, justa*, do mundo do impôr-se universalmente ao reconhecimento por uma neces-
social. E com esta condição que se podem dar as ra1.ões quer da sidade simultaneamente lógica e êtica.
autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente
simbólico de desconhecimento**, que resulta da ilusão da sua
autonomia absoluta em relação às pressões externas.
De modo diferente da hermenêutica literâria ou filosófica, a
prática teórica de interpretação de textos jurÍdicos não tem nela
prôpria a sua finalidade; directamente orientada para fins
rI
!
A concorrência pelo monopôlio do acesso aos meios jurídi- prâticos, e adequada à determinação de efeitos práticos, ela
mantém a sua eficácia à custa de uma restrição da sua autono-
:['
cos herdados do passado contribui para fundamentar a cisão
social entre os profanos e os profissionais favorecendo um mia. Assim as divergências entre os «intérpretes autorizados» 1
trabalho contínuo de racionafü.ação próprio para aumentar cada são necessariamente limitadas e a coexistência de uma plurali-
vez mais o desvio entre os veredictos armados do direiro e as
intuições ingénuas da equidade e para fazer com que o sistema
dade de normas jurídicas concorrentes está excluída por defini-
ção da ordem jurídica 6 • Como no texto religioso, filosófico ou
ti
li
das normas jurídicas apareça aos que o impõem e mesmo, em literário, no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é
maior ou menor medida, aos que a ele estão sujeitos, como uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se Í'
totalmente independente das relações de força que ele sanciona encontra em estado potencial. Mas, por mais que os juristas
e consagra. possam opor-se a respeito de textos cujo sentido nunca se lj
impõe de maneira absolutamente imperativa, eles permanecem
Ê claro que, como mosrra bem a histôria do direiro social, o corpus
juridico regisra em cada momenro um estad? de relação de forças, e A. W. Blumrosen, «Legal Process and Labor Law», in W. M.
.'I ..
l,l
~/
sanciona as conquisras dos dominados convertidas deste modo em saber Evan, ed., Law cmd S1,á1,/,;g;, New York, Tht> Free Press of Glencoe, 1962,
pp. 185-225.
~ A.-J. Arnaud, Critiq11e de l,1 rt11.f:,n JNridiq11e, Paris, LGDJ, 1981,
l
• «droite» (recta, jusra) no texto; parece haver jogo de palavras com
«droit» (direito).
pp. 28-29; e J.-M, Scholz, ~La raison juridique à l"oeuvre: !es krausistes J,
"°"' «méconnaissance» (ignorância, não reconhecimcnm), uo n·xw ori- ("spagnols», HJJhrúche S1;:,l/d1,_1;lf da Rfchtsu·is.wn.rcha/t, hrsg. von Erk li
ginal. (N. T.).
Vnlkmar Hcyen. Francforte, Klosrerman, !986, PP- 37-77. H
214 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 215

inseridos num corpo fortemente integrado de mstãncias hierar- sociais em que se manifesta. Mas, no caso das «fuculdades superiores»,
reo!ogia, direito ou medicina que, como nota Kant em O Conflito das
quizadas que estão à altura de resolver os conflitos entre os
Famldadi:1, estão claramente investidas de uma função social, é preciso urna
rntérpretes e as rnterpretações. E a concorrência entre os crise relativamente grave deste conrraro de delegação para que a questão do
intérpretes está limitada pelo facto de as decisões judiciais só flmdamento, que certos aurores, como Kelsen, transferindo para O direito,
poderem distinguir~se de simples actos de força políticos na uma questão tradicional da filosofia, tinham posro, mas de maneira muiro
medida em que se apresentem como resultado necessário de uma re~rica, venha a tomar a forma de uma questão real da prática social, como é
interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: hoie o caso. Pelo conrrârio, a questão do fundamenro do conhecimento
cientifico acha-se posta, na prôpria realidade da existência social, a partir do
como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita momento em que a ~faculdade inferior» (filosofia matemârica história
hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, etc.) 5:' constim_i wmo ral, sem outro suporte que não seja «a razão do pov~
portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se insrrwdo» "; e e a recusa em aceirar (com Wittgensrein ou Bachelard, por
apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua exemplo) que a mnrtitNiçâo do «povo instruído», quer dizer, a esrrurura
hisrôrica do campo cientifico, constitua o li.nico fundamento possível da
auroridade a essas decisões 7 • É pois um campo que, pelo menos
razão óentffica, que condena tantos filôsofos a estratégias aurofundadoras
em período de equilíbrio, tende a funcionar como um aparelho na dignas do Barão de Münchhausen ou a contestações niilistas da ciência
medida em que a coesão dos habit11s espontaneamente orquestra- insl:'iradas numa nostalgia propriamente metafísica do «fundamento~, prin-
dos dos intérpretes é aumentada pela disciplina de um corpo cípio não des-construido da «des-construção».
hierarquizado o qual põe em prática procedimentos codificados de
resolução de conflitos entre os profissionais da resolução regulada O efeito de apriorização, que está inscrito na lógica do
dos confliros. É tanto menos difícil ao corpo de juristas convencer- funcionamento do campo jurídico, revela-se com toda a clareza
na língua jurídica que, combinando elementos directamente
-se de que o direito tem o seu fundamento nele próprio, quer
dizer, numa norma fundamental tal como a "Constituição como retirados da língua comum e elementos estranhos ao seu
norma normamm de que se deduzem todas as normas de ordem sistema, acusa todos os sinais de uma retórica da impersonali-
inferior, quanro a communis opinio doctomm, com raízes na coesão dade e da neutralidade. A maior parte dos processos linguísri-
social do corpo dos intérpretes, tenda a conferir a aparência de um cos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito
fundamento transcendental às formas históricas da razão jurídica e para produzir dois efeitos maiores. O efeito de nmtralização é
à crença na visão ordenada da ordem social por eles produzida 8 • obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o
predomínio das construções passivas e das frases impessoais,
A rendência para apreender como experiéncia unive;sal de um sujeito próprias para marcar a impersonalidade do enunciado normati-
transcendental a visão comum de uma comunidade histôrica observa-se em vo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao
todos os campos de produção cultural, que são assim postos à prova como mesmo tempo imparcial e objecrivo. O efeito de 1mia:rsabzação
lugar de acrualixação de uma razão universal que nada deve âs condições
é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso
sistemático ao indicativo para enunciar normas 9 , o emprego,
1
A autoridade neste dominio reconhece-se, entre outras coisas, pela
arte de respeirar a ordem reconhecida como legitima na enumeração das ~ Os filôsofos do direito da rendénçia jusnarnralisra apoiaram-se nesta
autoridades (cf. J. M. Scholz, !1Jc. cit.). característica hâ muito übservada para sustentarem que os wxros juridicos não
"Segundo Andrew Fraser, a moralidade civiéa do corpo judicial enunciam normas, mas sim ~att·srações», e que o lcgisbdor f: algui:m que
assenrava não em um côdigo de regras expressas mas sim num «sentido da enuncia o ser e não O dever-sçr, (jUe diz o justo ou a justa prnporçio ins,:;rita
honra tradicional», quer dizer num sistema de atirudes p-.tra o qual o nas prôprias coisas a titulo Je propriedaJe objc:ctiva: "º JcgislaJor prefere
essencial daquilo que contava na aquisição das virtudes assodad,1s ao descrever as instituiçôes juridicas do que pôr directamente as regras» (G.
exercicio da profissão era tido como eridente. (A. Fraser, Trf,,f, 60, Verfo, Kilinowski, lr1tm/11,tirm ,i la /1,;;iq11e j11ridiq11e, Paris, LGDJ, 1964, p. 55).
1984, pp. 15-52). "'«peuple savant» no rexro original (N.T.).
216 A FORÇA DO DIREITO
CAPÍTULO VIII 217
própno da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos
atesttvos na terceira pessoa do singular do presente ou do com pretensão universal é produto de uma divisão do trabalho
passado composto que exprimem o aspecto realizado («aceita», que resulta da lógica espontânea da concorrência entre diferen-
«confessa», «compromete-se», «declarou», etc.); o uso de tes formas de competência ao mesmo tempo antagonistas e
indefinidos ( «todo o condenado») e do presente intemporal - complementares que funcionam como outras tantas espécies de
ou do futuro jurídico - próprios para exprimirem a generali- capital específico e que estão associadas a posições diferentes no
dade e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a campo. Não há dúvida de que a história comparada do direito
valores rransubjectivos que pressupõem a existência de um permite observar que, conforme as tradições jurídicas e confor-
consenso ético (por exemplo, «como bom pai de família»); o me as conjunturas no seio da mesma tradição, as hierarquias
recurso a fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco variam entre as grandes classes de agentes jurídicos - as quais
lugar às variações individua.is 10 . . . .
variam elas próprias consideravelmente segundo as épocas e as
Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universali- tradições nacionais e ainda segundo a especialidade: direito
dade, que pode ser o princípio de uma autonomia re~l dos público ou direito privado, por exemplo. Mas não é menos
pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples certo que o antagonismo estrutural que, nos mais diferentes
máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o sistemas, opõe as posições de «teórico» condenadas à pura
funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho construção doutrinal, e as posições de «prático», limitadas à
de raciÓnalização, no duplo sentido de Freud e de Weber, a aplicação, está na origem de uma luta simbólica permanente na
que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, qual se defrontam definições diferentes do trabalho jurídico
e isto desde há séculos. Com efeito, a9uilo a que se chama enquanto interpretação autorizada dos textos canónicos. As
«o espírito jurídico» ou «o sentido jurídico» e que constitui o diferentes categorias de intérpretes autorizados tendem sempre
verdadeiro direito de entrada no campo (evidentemente, com a distribuir-se entre dois pólos extremos: de um lado, a
uma mestria mínima dos meios jurídicos acumulados pelas interpretação voltada para a elaboração puramente teórica da
sucessivas gerações, quer dizer, do corpus de textos canónicos e doutrina, monopólio dos professores que estão encarregados de
do modo de pensamento, de expressão e de acção, em que ele ensinar, em forma normalizada e formalizada, as regras em
se reproduz e que o reproduz) consiste precisamente nesta vigor; do outro lado, a interpretação voltada para a avaliação
postura universalizante. Esta pretensão estatutária a uma forma prática de um caso particular, apanágio de magistrados que
específica de juízo, irredutível às intuições frequente°:ente realizam actos de jurisprudência e que podem, deste modo, -
inconstantes do sentido da equidade, pois que se baseia na pelo menos algum; deles - contribuir também para a constTu-
dedução consequente a partir de um corpo de regras sustent~d.o ção jurídica. De facto, 01:, p"vdutores de leis, de regras e de
pela sua coerência interna, é um dos fundamentos da cumplio- regulamentos devem contar sempre com as reacções e, por
dade, geradora de convergência e de cumulatividade, que une, vezes, com a1:, resistências, de toda a corporação jurídica e,
na concorrência pelas coisas em jogo e por meio dessa concor- sobretudo, de todos os peritos judiciais (advogados, notários,
rência, o conjt.Ínto, todavia muito diferenciado, dos agentes etc.) os quais, como bem se vê, por exemplo, no caso do
que vivem da produção e da venda de bens e de serviços direiro das suce1:,sões, podem pôr a sua competência jurídica ao
jurídicos. serviço dos interesses de algumas categorias da sua clientela e
A elaboração de um corpo de regras e de procedimentos tecer as inúmeras estratégias graças às quais as famílias ou as
empresas podem anular os efeitos da lei. A significação prática
w Cf. J.L. Souriaux e P. I.erar, Le lanxaxe du drrJit, Paris, PI!!', !•)7~ da lei não se determina realmente senão na confrontação entre
dit(:rentes corpos animados de interesses específicos divergentes
218 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 219

(magistrados, advogados, notários, etc.), eles próprios dívididos o estarnw da regra de direito, gue não se afirma fundado numa teoria mora!
ou numa ciência racional e que, tendo em mira apenas dar uma solução a
em grupos diferentes animados de interesses divergentes, e até
um litígio, se situa deliberadamente ao nível da casuística d;l<; apli,:;:açõts
mesmo opostos, em função sobretudo da sua posição na hierar- particu1ares, compreende-se se se souber que neste çaso o grande jurista é o
quia interna do corpo, que corresponde sempre de maneira i1úz saído da fila dos práticos.
bastante estrita à posição da sua clientela na hierarquia social. De facro, a força relativa das diferentes espécies de capim! juri<li<-o nas
Segue-se daqui que uma história social comparada da diferentes tradíçôes n:m, sem dúvida, que ser post.t em relação rnm a posição :_i
global do rnmpo iurfd)co no rnmpo do poder que, por meio do peso relRtivo
produção jurídica e do discurso jurídico sobre esrn produção
que rnbe ao «reino dR lei» (th mie ri} la1,-J ou à regulamenraçfto buro<:rática,
deveria esforçar-se por pôr metodicamente em relação as toma- determina os seus limites esrn1tur:iis pehl eficácia da acção propriamente
das de posição nesta luta simbólica e as posiçôes na divisão do Jurídirn. No caso da França, a acção jurídica adia-se hoje limirnda pda
trabalho jurídico: tudo leva a supor que a tendência para dominação que o Esta.do e os tecnocrmas saídos da faLola Nacional de
insistir na sintaxe do direito é mais própria dos teóricos e dos Adminisrrnção exercem em vastos sectores da administra~·ão pública e
privada. Nos EUA, pelo contr'.lfio, os l,;wynr saídos das esn,!as superiores de
professores, enquanto que a atenção à pragmática é, pelo
direito (Harvard, Yale, Chirngo, Stanford) podem ocupar posições para além
contrário, maís provável entre os juízes. Tal história deveria dos !imites do rampo propriamenrt· dito, m1 polfrka, na :,dministração, na
também considerar a relação entre as variações, segundo o lugar finança ou na indúsrria. Daqui resultam diferenças sistemátiuis, frequente-
e o momento, da força relativa das tomadas de posição a favor mente evocadas ,kpois de Torqueville, nos usos sociais do direito e, mais
de uma ou outra das orientações do trabalho jurídico e as pn:cisamcmc, no lugar qut ctbe ao re<.:urso jurídi(() no universo das acçües
possíveis, sobn·tudo em matfria de lutas reivindicativas.
variações da força relativa dos doís campos nas relações de força
que constituem a estrutura do campo.
O antagonismo entre os clen:ntores de espécies diferentes de
A própria forma do wrpm jurídiro, sobrerudo o st·u ,grau Je formalização capital jurídico, que investem interesses e visões do mundo
e de normalização, depende sem dúvida muiro estreitamente da força muito diferentes no seu trabalho específico de interpretação,
relativa dos ><teóricos» e dos «práticos», dos pro!-e5sores e dos juízes, dos não exclui a complementaridade das funções e serve, de facto,
exegetas e Jos peritos, nas relações de força ,aracterísricas de um esrado do de base a uma forma subtil de dfrisdo do trahalho de dt/lNÍnaçáo
campo (em dado momento numa tradição determinada) e da rnparidaJe
respectiva de imporem a sua visão do direirn e da sua inr,;,rpretação.
.wnh6lica na qual os adversários, objectivamente cúmplices, se
Podem"se compreender assim as diferenças sistemáticas que separam as servem uns aos outros. O cânone jurídico é como que o
trndi~·{)es nacionais e, sobretudo, a µranJ,;, divisão entre ;t tradição dita reservatório de autoridade que garante, à maneira de um banco
romano-germânica e a tradição anglo-ameri(ana. Na tradição alemã e central, a autoridade dos actos jurídicos singulares. É isto que
francesa, o direito (sobretudo o privado), verdadeiro «direito de .professores,, explica a fraca indinar.;ão do hahitm jurídico para as poHuras
(Prn};'J'JOro1raht), ligado ao primado da \f'1unnch,1/i, da doutrina,
sobre o procedimento e tudo o gue diz respeiro à prova ou à excrução da proféticas e, pelo contrário, a propensão, visível sohrerudo nos
decisão, retraduz e reforça o domínio da alta magistratura, intimamente juízes, para o papel de lertor, de imérprere que se refugia na
!ip;ada aos professores, sobre os juízes que, por terem passad() pela universi- aparência ao menos de uma simples aplicação da !ti e que,
,fade, são mais dados a renmhecer a legitimidade J;l~ suas <.:onsrruções do quando faz obra de criação jurídica, tende a dissimulá-la 11 • Da
que os l,myen formados de (erto modo na «rnrimh;t». Na tradição anglo- mesma forma que o economista mais clirectamente envolvido
-americana, pelo contrário, o direiw é um direito jurisprudenüal (case-lau'),
assente qua,;e exclusivamente nos acórdãos dos tribunais e na regra do
nos problemas práticos de gestão, permanece ligado, como
prcn·denw t fracamente codificado; ele dá o primado ,1os procedimentos, numa «grande cadeia do Ser» à Lovejoy, ao reórico puro que
que devem ser kú, (/,11r tna/) c n1ja mestria se adquire sobretudo peL;
prática. ou por cécnirns pedagóp:ic.1s que têm em visrn apruximairnn-se ª"
Cf. Tml'<llt.Y ,/,: tA.Hnâ,1t11111 f-frm·i Ct1p11,,111, Tomo V, 1949,
máximo da prátirn profissional - por exempio, com o ",ni·!th!o dos rn~n,,.
l'l' 7,f .. 7(,, lirndo por R. David, L!'! gr,mdJ" O!lfft111/\ r/11 dmit ,,1rilt'lflj111r,/l",
cm uso nessas venfadeiras escolas pr()/i<;$Íonais que sa,, a, c•;i,,I,,; ,1,, ,l1n·11,,
'l " n! , P-1ris, Dal!oz, 197.) pp. 124- U2.
220 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 221

produz alguns teoremas matemáticos pouco mais ou menos res, correria o risco de se fechar na rigidez de um rigorismo
desprovidos de referente no mundo económico real mas que se racional'. por meio da liberdade maior ou menor de apreciação
distingue ele mesmo de um puro matemático pelo reconheci- que lhes é permitida na aplicação das regras, eles introduzem as
mento que economistas mais impuros são obrigados a conceder mudanças e as inovações indispensáveis à sobrevivênci~ do
às suas construções, também o simples juiz de instância (ou, sistema que os teóricos deverão integrar no sistema. Por seu
para ir até aos últimos elos da corrente, o polícia ou o guarda lado, os juristas, pelo trabalho de racionalização e de formaliza-
prisional) está ligado ao teórico do direito puro e ao especialista ção a que submetem o corpo de regras, representam a função de
do direito constitucional por uma cadeia de legitimidade que assimilação, própria para assegurar a coerência e a constância ao
subtrai os seus actos ao estatuto de violência arbitrária 12 . longo do tempo de um conjunto sistemático de princípios e de
É difícíl, com efeito, não ver o princípio de uma comple- regras irredutíveis à série por vezes contraditória, comJ?lexa e, a
mentaridade fundonal dinâmica no conflito permanente entre longo prazo, impossível de dominar dos actos de jurisprudência
as pretensões concorrentes ao monopólio do exercício legítimo sucessivos; e ao mesmo tempo, oferecem aos juízes - sempre
da competência jurídica: os juristas e outros teóricos do direito inclinados, pela sua posição e pelas suas atitudes, a confiar
tendem a puxar o direito no sentido da teoria pura, quer dizer, apenas no seu sentído jurídico - o meio de subtraírem os seus
ordenada em sistema autónomo e auto-suficiente, e expurgado, veredictos ao arbitrário demasiado visível de uma Kadijustiz.
por mpa reflexão firmada em considerações de coerência e de Pertence aos juristas, pelo menos na tradição dita romano-
justiça, de todas as incertezas ou lacunas ligadas à sua génese -germânica, não o descrever das prática existentes ou das
prática; os juízes ordinários e outros práticos, mais atentos às condições de aplicação prática das regras declaradas conformes,
aplicações que dele podem ser feitas em situações concretas, mas sim o pôr-em-forma dos princípios e das regras envolvidas
orientam-no p-,1.ra uma espécie de casuística das situações con- nessas práticas, elaborando um corpo sistemático de regras
cretas e opõem, aos tratados teóricos do direito puro instru- assente em princípios racionais e destinado a ter uma aplicação
mentos de tral?alho adaptados às exigências e à urgência da universal. Participando ao mesmo tempo de um modo de
prática, repertórios de jurisprudência, formulários de actos, pensamento teológico -- pois procuram a revelação do justo na
dicionários de direito (e amanhã, bancos de dados) 13 . É claro letra da lei, e do modo de pensamento lógico pois pretendem
que os magistrados, por meio da sua prática, que os põe pôr em prática o método dedutivo para produzirem as aplica-
directamente perante a gestão dos conflitos e uma procura ções da lei ao caso particular - , eles desejam criar uma
jurídica incessantemente renovada, tendem a assegurar a função «ciência nomológica» que enuncie o dever-ser cientificamente;
de adaptação ao real num sistema que, entregue só â professo- como se quisessem reunir os dois sentidos separados da ideia de
«lei natural», eles praticam uma exegese que tem por fim racio-
12
Achar-se-ia uma cadeia da mesma forma, entre os teóricos e os nalizar o direito positivo por meio de trabalho de controle lógico
«homens do terreno», nos aparelhos poHticos ou, pelo menos, nos que por necessário para garantir a coerência do corpo jurídico e para
tradição invocam a caução de uma teoria económica ou polfrica. deduzir dos textos e das suas combinações consequências não
13
É um belo exemplo de trabalho juridico de codificação que produz o
jurídico a partir do judicial, a edição das decisões da «Cour de Cassation» e previstas, preenchendo assim as famosas «lacunas» do direito.
o processo de selecção, de normali7.ação e de difusão que, a partir de um Se é preciso evidentemente ter cuidado em não subestimar
conjunto de decisões seleccionadas pelos Presidentes de Câmara pelo seu a eficácia histórica deste trabalho de codificação que, ao
interesse jurídico, produz um corpo de regras racionalizadas e normalizadas incorporar-se no seu objecro, se torna num dos factores princi-
(cf. E. Serverin, «Une production communamaire de la jurisprudence:
pais da sua transformação, é preciso também não se deixar levar
l'édition juridique des arrêts», Annales de VaumJ.wn, 2}, 2." s(:mestre,
1985, pp. 73-89. rela representação exaltada da actividade jurídica que os teóri-
222 A FORÇA DO DIRElTO CAPÍTULO Vfll 223

cos nativos• propõem ~ como Motulsky que procura mostrar inspiram numa lógica e em valores muito próximos dos que
ser a «ciência jurídica» definida por um método próprio e estão nos textos submetidos à sua interpretação, têm uma
propriamente dedutivo de tratamento dos dados, o «silogismo verdadeira função <le m1·ençâo, Se a existência de regras escritas
jurídico», que permite subsumir o caso particular numa regra tende sem qualquer dúvida a reduzir a variabilidade comporta-
geral 14 . Para quem não participe da adesão Ím!'diara aos mental, não há dúvida também de que as condutas dos agentes
pressupostos inscriros no próprio fundamento do funcionamen- jurídicos podem referir-se e sujeitar-se mais ou menos estrita-
to do campo que a pertença ao campo implica (illusio), é difícil mente às exigências da lei, ficando sempre uma parte de
crer que as construções mais puras do jurista, sem mesmo falar arbitrário, imputável a variáveis organizacionais como a
dos actos de jurisprudência do juiz ordinário, obedeçam à composição do grupo de decisão ou os atributos dos que estão
lógica dedutivista que é o «ponto de honra espiritualista» do sujeitos n uma jurisd.içáo, nas decisões judiciais - há também
jurista profissional. Como os «realistas» bem mostraram, é uma parte de arbitrário no conjunto dos actos que os precedem
completamente vão procurar isolar uma metodologia jurídica e os predeterminam, rnso das decisões da política que dizem
perfeitamente racional: a aplicaç;ão necessária de uma regra de respeito :l prisão.
direito a um caso particular é na realidade uma confrontação de A interpreta,;ão opera tt hi1torio:,açti1i dtt 1/f,mld, adaptando
direitos antagonistas emre os quais o Tribunal deve escolher; a as fomes a órcunstáncias novas, descobrindo nelas poss1bi!ida-
«regra» tirada de um caso preçedente nunca pode ser pura e dc-s méditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que
simplesmente aplicada a um novo caso, porque não há nunca é caduco. Dada a extraordinúna elasti<..ídade dos textos, que vão
dois casos perfeitamente idênticos, devendo o juiz determinar por vezes até à indeterminação ou ao equívoco, a operação
se a regra aplicada ao primeiro caso pode ou não ser estendida hermenêutica de dtclttrdil11 dispôe <le uma imensa liberdade.
de maneíra a incluir o novo caso l-5_ Em resumo, o juiz, ao Não é raro, <leccrro, que o direito, instrumento dócil, adaptá-
invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da le1
as conclusões directamente aplicáveis ao caso particular, dispôe
antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a exempb ao propor um,1 inrerprttaçáo esueit;t dela--··· rnmo foi o caso {·om a
lei d,:;) de Abril de 19 !O sohre «as reformas de operários e camponeses») aos
melhor medida da sua posição na estrutura da dis'tribuiçio do
juízes dos rribun,iis de 1nsünci>l, os qu:ds, pela sm, formação escolar e pda sua
capital específico de autoridade Jurídica 16 ; os seus Juízos, que se «deforrrntção" profissional, siio dados a ,,hdícar d-,1 liberdade de inrerprernção
de que disp&-m teoricamente e a aplirar ;t sirn;H,'Õ('S co<lifica&is, interpre[il-
• «indig&nes» no texto or(gin,1L (N, T.). çôes codificadas (l"xposiçôes Jo5 mmivos da lti, dou[rina e come[]tário.s dos
'"'H. Motulsky, Pri11opi·.r 1t1me 1úli.>t1tio,1 méthr,diq1tr ,'11 Jn,it p.-1/'f, Li jurisrns, professores ou juiz('s dourns, e de(is<-.cs d,1 «Cnur de Cass,uion»).
tN,1nr dt.r il{mmts gà1(:,;1tmrs dr ,lroi1_1 111h_int1fi, tese, Paris, Sirey, 1948, Pode-se cirar, a parrir das ohservaçôes de R('.tni Lenoir, o exemplo de um
sobretudo pp. 47-48 à maneira destes Cpisn:múlogos yue dão para a pdtirn tribuna! de um bairro de Pari> onde, todas as se)(tas--frir1l> de manhã, ..1 sessáo
real do investig,1dor um11 reconstrução ex /m.ít do proçe<limemo ciemífiço tal i• especialmente consagrada a um contencimu, sempre n mesmo, sohre a
("(Jmo de deveria ser, Motulsky reconstrói o que seria (ou Jeveria ser) o ruptura de conrratos de vend,1 ou ,duguer, que é designmlo pdo nome de- uma
«méwJo Je realização» (O[]Ve[]ieme <lo direito, disringuindo uma fase de empresa de alu,guer e de venda a uéditn de aparelhos domésticos e de (ek-
pt,squisa da «rqi;ni possivd»; espécie de exploração metódirn do U[]iverso visáo: os iulgamenros, completamente predeterminados, sáo muito hreves, e
das regras do direito, e uma fasç de aplicação, com a passagem à regra nem mes~o os advog.1dos, qui,ndo os hii ---- o qne é raro----- neles tomam a
direnameote aplieada ao rnso considerado. p.i!avrn. (Se ;1 presença de um advog;tdo se rnosu:1 úril, provando desre moJo
15
F. Cohen, «Trans,:endental Nonsense an<l the Funnional Approach», que há, nwsmo ;1 este nivd, um puder de intcrptr;ta~ão, é sem düvid11 porque
Col11111búi Ltw Rei·iew, vo!. .J5, 1935, pp. 808-819, {, p<c>rcebiJa como uma manifestação de reverl'ncia para com o juiz e a institui-
•~ A liberdade de interpretação varia rnnsider;1vdmenre <Jtl<tndo se <.;,\o qut", a este tím!o, merece alguma considernçiío - a lei não é aplicada com
passa da «Cour de Cassation» (que pode anular a «fon,a d., ki •'. por rndo o seu rigor-; e é também porque ela rnnstitui uma indirn<.,·iío acen,1 dil
nnpordnci,t dada ao julgamento e sobre a possibilidade de apelaç:io).
224 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 225

vel, flexível, polimorfo, seja de facto chamado a contribuir para nais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder
racionalizar ex post decisões em que não teve qualquer participa- (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na
ção. Os juristas e os juízes dispõem todos, embora em graus equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os
muito diferentes, do poder de explorar a polissemia ou a que estão sujeitos à jurisdição respectiva.
anfibologia das fórmulas jurídicas recorrendo quer à restrictio, O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de
processo necessário para se não aplicar uma lei que, entendida veredicto uma decisão judicial que deve, sem dúvida, mais às
literalmente, o deveria ser, quer à extensio, processo que permi- atitudes éticas dos agentes do que às normas puras do direito,
te que se aplique uma lei que, tomada à letra, não o deveria confere-lhe a eficácia simbólica exercida por toda a acção quando,
ser, quer ainda a todas as técnicas que, como a analogia, ignorada no que têm de arbitrário, é reconhecida como legíti-
tendem a tirar o máximo partido da elasticidade da lei e ma. O princípio desta eficácia reside, pelo menos em parte, em
mesmo das suas contradições, das suas ambiguidades ou das que, salvo vigilância especial, a impressão de necessidade lógica
suas lacunas 17 • De facto, a interpretação da lei nunca é o acto sugerida pela forma tende a contaminar o conteúdo. O forma-
solitário de um magistrado ocupado em fundamentar na razão lismo racional ou racionalizànte do direito racional, que se
jurídica uma decisão mais ou menos estranha, pelo menos na tende a opor, com Weber, ao formalismo mágico dos rituais e
sua génese, à razão e ao direito, e que agiria como hermeneuta dos procedimentos arcaicos de julgamento (como o juramento
preocupado em produzir uma aplicação fiel da regra, como individual ou colectivo), participa na eficácia simbólica do
julga Gadamer, ou que actuaria como lógico agarrado ao rigor direito mais racional u•. E o ritual destinado a enaltecer a
dedutivo do seu «método de realização», como queria Motul- autoridade do acto de interpretação - leitura dos textos,
sky. Com efeito, o conteúdo prático da Jei que se revela no análise e proclamação das conclusões, etc. - ao qual, desde
veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissio- Pascal, a análise se agarra, não faz mais do que acompanhar
nais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, t0do o trabalho colectivo de sublimação destinado a atestar que
portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os a decisão exprime não a vontade e a visão do mundo do juiz
meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das mas sim a voluntas legis ou legislatoris.
«regras possíveis», e de os utilizar eficazmente, quer di.r.er,
como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o
efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua Jignificação real, A instituição do monopólio
determina-se na relação de força específica entre os .profissio-
Na realidade, a instituição de um «espaço judicial» implica
17
Mario Sbriccoli propõe um inventário dos processos codificados que a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para
permitiam aos juristas (advogados, magistrados, peritos, conselheiros politi- entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados,
cos, etc.) das pequenas comunidades italianas da Idade Média, «manipula-
permanecem de facto dele excluídos, por não poderem operar a
rem» o corpm juri_dico: por exemplo, a dedaratio pode apoiar-se na rubrica,
na matéria da norma, no uso e na significação conente dos termos, na sua conversão de todo o espaço menral - e, em particular, de toda
etimologia, instrumentos que por sua vez se subdividem, e pode jogar com a postura linguística - que supõe a entrada neste espaço
as contradições entre a rubrica e o texto, partindo de uma para compreender
o outro ou vice-versa. (cf. M. Sbriccoli, Cinterpretazzir,ne delio staff.ti,.
social. A constituição de uma competência propriamente jurí- li
Contributo alio studio dei/a funzir,ne dei gi11risti nell'etá m1111N1111ak, Milano, A.
18
Giuffre, 1969, e «Politique et imerprétation juridiqtKs d,ms ks vilks Cf. P. Bourdieu, Cequeparlerveutdire, Paris, Fayard, 1982, sobre o
italiennes du Moyen-Âge», Archive.s de Philo.wphie d11 /)rwl, XVJI, 1972, efeito de «pôr-em-forma», pp. 20*21, e sobre o efeito de instituição,
pp. 99-113). pp. 125 e segs.
226 A FORÇA DO DIREITO CAPITULO Vlll 227

dica, mestna técnica de um saber cit ntífico frequentemente daquilo por si designado no uso vulgar, é gue os dois usos estão
antinómico das simples recomendações do senso comum, leva associados a posturas linguísticas que são tão radicalmente
à desqualificação do sentido de equidade dos não-especialistas exclusivas uma. da outra com() a consciência perceptiva e a
e à revog-ação da sua construção espontânea dos factos, <la sua consciência imaginária segundo a fenomenologia, de tal· modo
«visão do caso». O desvio entre a visão vulgar daquele que se que a ,,colisão homonímica» (ou o mal-entendido) resultante
vai tornar num «;mticidvel», quer dizer, num cliente, e a visão do encontro no mesmo espaço dos dois significados é perfeita-
científica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurídico, erc., mente improvável. O princípio do desvio entre os dois signifi~
nada tem de acidental; ele ê constitutivo de uma relação de cados, que é geralmente procurado num efeito de contexto, não
poder, que fundamenta dois sistemas diforemes de pressupos- é mais do que a dualidade dos espaços mentais, solidários de
tos, de intenções expressivas, numa palavra, duas visões do espaços sociais diferentes, que os sustentam. Esta discordância
mundo. Este desvio, que é o fundamento de um desapossamcn- post1tral é o fundamento t.rtmt11ral de wdos os mal~entendidos
to, resulta do facro de, atravês da prôpria estrutura do campo e que podem produzir-se entre os utilizadores de um côdigo
<lo sistema de princípios Jc visão e de divisão que estâ inscrito erudito (mêdicos, juízes, etc.) e os simples profanos, tanto ao
na sua lei fundamental, na sua constituição, se impor um sistema nível sintático como ao nível lexicológico, sendo os mais
de exigências cujo coração é a a<lopção de uma postura global, significativos os que surgem quando as palavras da linguagem
visível sobretudo em matêria de linguagem. vulgar, desviadas do seu sentido comum pelo uso erudito,
Se há acordo para notar que, como toda a linguagem douta funcionam para o profano como «falsos amigos» 20
(a linguagem filosófica por exemplo), a linguagem iuridica A situação judicial funciona como lugar nmtro, que opera
consiste num uso particular da litiguagem vulgar, os analistas uma verdadeira nmtralização das coisas em jogo por meio da
têm muita dificuldade em descobrir o verdadeiro princípio «des-realização» e da distanciação implicadas na transformação
desta «mistura de dependência e de independência» 1". da defrontação directa dos interessados em diálogo entre media-
Ê possível, com efeiro, contentar-se com invocar o efeito de dores. Os agentes especializados, enquanto terceiros - indife-
contexto ou de «n::<le», no sentido de Wittgensrcin, que rentes ao que estâ directamente em jogo (o que não quer dizer
subtrai as palavras e as locuções vulgares ao seu sentido desinteressados) e preparados para apreenderem as realidades
corrente. A trnnsmutação que afecta o conjunto das caracterís- escaldantes do presente atendo-se a textos antigos e a preceden-
ticas linguísticas estâ ligada à adopção de uma postura glo-
bal que não passa da forma inrnrporada do sisrema <le prin-
tes confirmados - introduzem, mesmo sem querer nem saber,
uma distância neutralizante a qual, no caso dos magistrados
l.
cípios de visão e de divisão, constitutivo de um campo ele pelo menos, é uma espécie de imperativo da função que está
próprio caracterizado pela independência na dependência e inscrita no âmago dos habitus: as atitudes ao mesmo tempo
por ela. Austin admirava-se de quf'. nunca se tenha seria-
mente perguntado por que razão nós «nomeamos coisas dife-
ascéticas e aristocráticas que são a realização incorporada do
dever de reserva são constantemente lembradas e reforçadas
!
rentes com o mesmo nome»; e por que razão, poderiamas pelo grupo dos pares, sempre pronto a condenar e a censurar os
nós acrescentar, não hâ grande inconveniente em faz_ê-lo. Se que se comprometeriam de modo demasiado aberto com ques-
a linguagem jurídica pode consentir a si mesma o emprego tões de dinheiro ou de política. Em resumo, a trnnsformação
de uma palavra para nomear coisas completamente diferentes
zu Ê o caso, por exemplo, da palavra causa que não tem, de forma
1''Ph. Vissen Hoofr, ~La philosophie du h1ngagt: ordinair, er k alµ-uma, no uso comum, o sentido que lhe dâ o direito (cf. Ph_ Vissen
drnit-,, Archim m' Phi!or1Jphie d11 Drwt, XVIJ. 1972, pp. 2(,1-28•1. Hoofr, art. cit.).
228 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vil/ 229
1

dos conflitos inconciliáveis de interesses em permutas reguladas prático à oposição entre o verdadeiro e o falso, conferindo um
de argumentos racionais entre sujeitos iguais está inscrita na poder arbitral de facto à concorrência entre os pares 24 .
própria existência de um pessoal especializado, independente O campo judicial é o espaço social organizado no qual e
dos grupos sociais em conflito e encarregado de organizar, pelo qual se opera a transmutação de um conflito directo entre
segundo formas codificadas, a manife1tação p,íblica dos conflitos partes directamente interessadas no debate juridicamente regu-
sociais e de lhes dar soluçôes socialmente reconhecidas como lado entre profissionais que actuam por procuração e que têm
imparciais, pois que s<'lo definidas segundo as regras formais e de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico,
logicamente coerentes <le uma doutrina percebida como inde- quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo - mesmo
pendente dos antagonismos imediatos 11 . Neste sentido, a quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer
representação nativa• que descreve o tribunal como um espaço a letra da lei (em Kafka, o advogado é tão inquiet~nte como
separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo o juiz). Na definição que frequentemente tem sido dada, de
de peritos e o processo, rnmo um progresso ordenado com vista Aristóteles a Kojêve, do jurista como «terceiro mediador», o
11
à verdade , é uma boa evocação de uma das dimensões do essencial está na ideia de mediação (e não de arbitragem) e no
efeito simbólico do ano jurídico como aplicação prâtica, livre que ela implica, quer dizer, a perda da relação de apropriação
e racional de uma norma universal e cientificamente fundamen- directa e imediata da sua própria causa; perante o pleiteante 1
tada n.- O veredicto judicial, compromisso político entre exi~ ergue-se um poder transcendente, irredutível à defrontação das ,11
gências inconciliâveis que se apresenta como uma síntese lógica
entre teses antagonistas, condensa toda a ambiguidade do
campo jurídico. Ele deve a sua eficácia especifica ao facto de
visões do mundo privadas, que não é outra coisa senão a
estrutura e o funcionamento do espaço socialmente instituído
desta defrontação.
i 1

participar ao mesmo tempo da lógica do campo político, que se A entrada no universo jurídico, por implicar a aceitação
j

organiza em tomo <la oposição entre os amigos ou os aliados e tácita da lei fundamental do campo jurídico, tautologia consti-
os inimigos e que tende a excluir a intervenção arbitral de um tutiva que quer que os conflitos só possam nele ser resolvidos
terceiro, e da lógica do campo científico que, logo que chega a juridicamente -- quer dizer, segundo as regras e as convenções
um alto grau de autonomia, tende a conferir um primado do campo jurídico -, é acompanhada de uma redefinição
completa da experiência corrente e da própria situação que está
21
O recurso !e,gal implica, em muitos casos, o reconheciment◊ de uma em jogo no litígio. A constituição do campo jurídico é um
definição das formas de reivindicação ou de Jura que prixilegia lutas princípio de constituição da realidade (i!itO é, verdadeiro em
individuais (e legais) em detrimento de outras formas de luta. relação a todo o campo). Entrar no jogo, conformar-!ie com o
u «Assim, o direito nasce do processo, diâlogo regulado cujo mêtodo
direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção
ê a dialécrica» (M. Viiley, Philrmphie du Droit, II, Paris, Da!loz, 1979,
p. 53). de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia 1
H Tudo nas representações da prâtica jurídica (concebida como decisão
racional ou como aplicação dedutiva de uma regra de direito) e na própria
doutrina juridica que tende ·a conceber o mundo social como simples
agregado de acções realizadas por 1ujeit(JS de direito racionais, iguais e livres,
predispunha os juristas, em outros tempos fascinados por Kant ou Gada-,
à violência física e às formas elementares da violência simbóli-
ca, como a injúria. É também, e sobretudo, reconhecer as
exigências especificas da construção jurídica do objecto: dado

i-i A tradição filosôfica -- e sobretudo Aristôteles nos T ripim - evoca


!
mer, a procurarem na Rational Action Theory os instrumentos de um de maneira quase explícita a constituição do campo social que é o princípio
aggiornamento das justificações tradicionais do direito (eterna renovação das da constituição da permuta verbal como dimmão heurbttica explicitameme
técnicas de eternização ... ) orientada, em oposição ao debate eristico, para a procura de proposições
• «indigênes», no texto origina! (N. T.). vâlidas para um auditôrio universal.
1
230 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 231 li
que os factos jurídicos são produto da consrrução jurídica (e não especificidade do raciocínio e do juízo jurídicos. A referência a
'.i
1

o inverso), uma verdadeira re-:radução de todos os aspectos do um mrpm de precedenres reconhecidos, que funcionam como um
«caso» é necessária para ponere t"tmsam, como diziam os Roma- espaço de possíveis em cujo inrerior a solução pode ser procura-
nos, para constiruir o objecro de controvérsia enquanto cama, da, ê o que fundamenta racionalmenre uma decisão que pode
quer dizer, enquanro problema jurídico próprio pam ser objecto inspirar-se, na realidade, em princípios diversos, mas que ela faz
de debates juridicamente regulados e para reter tudo o que, do aparecer como produto de uma aplicação neutra e objecriva de
ponto de visra de um princípio de pertinência jurídica, mereça uma comperêocia especificamente jurídica. Todavia, porque.
ser formulado, e apenas isso, como tudo o que pode valer como entre outras coisas, os precedentes são, pelo menos, utilizados
facto, como argumento favnrá·:el ou desfavorável, etc. ora como instrumentos de racionalização ora como razões determi-
Enrre as exigências que estão implicitamente inscritas no names e porque o mesmo precedenre, construído de maneiras
conrraro que define a entrada no campo jurídico, podem-se, diferentes, pode ser invocado para Justificar reses oposras e ainda
seguindo Austin, mencionar três: a primeira, ê o facto de se porque a tradição jurídica oferece uma grande diversidade de
dever chegar a uma decisão, e a uma decisão «relativamente precedentes e de inrerpretações em que se pode escolher os que
branca ou prera, culpado ou não culpado, para o queixoso ou melhor se adaptam ao caso em questão 2\ 6 preciso evidentemente
para o acusado»""; a segunda, é o facro de a acusação e a defesa ter cuidado em não fazer do stan: decim uma espécie de postulado
deverem ordenar-se numa das caregorias reconhecidas do proce~ racional próprio para garanrir a constância e a previsibilidade, e
dimento que se impuseram no decurso da história e que, não ainda a objectividade das decisões judiciais (enquanto limitação
obsrante o seu número, permanecem muito limitadas e muito posta ao arbirrário das decisões subjectivas). A previsibilidade e a
esrereoripadas em relação às acusações e às defesas da vida cakulabilidade que Weber empresta ao «direito racional» assen-
quotidiana - o que faz com que conflitos e argumentos de ram. sem dtivida, antes de mais. na consrârn.:ia e na homogeneida-
toda a espécie permaneçam aquém da lei como demasiado de dos h,ihit11s jurídicos: as arirudes comuns, afeiçoadas, na base de
triviais, ou fora da lei como exdusivamenre morais - ; a tercei- experiências familiares semelhantes, por meio de esrudos de
ra, é o facro de se dever recorrer a precedentes e de se confor- direito e da prática das profissões jurídicas, funcionam como
mar com eles, o que pode levar a disrorções das crenças e das categorias de percepção e de apreciação que estruturam a percep-
expressões correnres zs. ção e a apreciação dos conflitos correntes e que orientam o
A regra que impede ir-se para além das decisões jurídicas trabalho destinado a transformá-los em confrontações jurídicas 17 .
anteriores, stare deâsis, para se decidir juridicamente ê para
o pensamento jurídico o que o preceiro durkheimiano de Podemos apúiar-nos na tradição dita da «dispure theory» (sem lhe
aceitar todos os pressupost◊s) para fazermos uma descrição do trabalho
«explicar o social pelo social» é para o pensamenro socioló- colectivo de «categorização~ que rende a transformar um agtavo petcebido,
gico: apenas um modo diferente de afirmar a autonomia e a e atê mesmo despercebido, em agravo explicitamente imputado, e a
transformar uma simples disputa em processo. Nada ê menos natural do que
,1 «necessidade jutidica» ou, o 9uc significa o mesmo, o semimento de
• «defenseur» no rexw original. (N. T.).
is Deste conjunto de exigências constitutivas da visão do mundo injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de um pmfissional. ê s.ibido,
jurídico deriva, segundo Austin, o fano de os juristas não datem âs
expressões correntes o seu sentido corrente e de, além de invenrarem termos ··· Cf. D. Kaytis, ~Legal Reasoning» in D. Kayris (ed.), Ti~- Pd1t10 of
rêcnicos ou sentidos têcnicos para tetmos conentes, manterem uma relação L11c, Nova Ior9ue, Pamheon Books, 1982, pp. 11-17.
especial com a linguagem que os leva a ptocederem a extensôes e rnstriçôc~ · Alguns ÍeKal rrabsts, recusando â regra toda a efit:âcia específica,
de sentido insôlitas (cf. J.-L Austin, Philmophical P,,pm, Oxford. Cfarcn- , !wg;1rcim a reduzir o direito â simples regularidade estatística, gatante da
don Press, 1961, p. 136). prcvi~ibilid,Kle do funcionamento das instâncias jurídicas.
LAPITULO Vlll 233
232 A FORÇA DO DIREITO
A mudança de espaço menral que está logica e pmticamenre associada à
com efeiro, que a sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma mudança de espaço social garante o domínio da situação aos detenrores da
experiência como injusta não esrã uniformemente espalhada e que depende competência jurídica, os únicos capazes de adoprar a posrura que permite
e$rreiramente da posição ocupada no espaço social. Quer isro dizer que a constituir esta siruação em conformidade com a !ei fundarnenral do campo.
passagem do agravo despercebido ao agmvo percebido e nomeado, e sobre- O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceirarem enrrar nele, renunciam
tudo impurado, supõe um trabalho de consrrução da realidade social que raciramenre a gerir eles próprios o seu confliro (pelo rct::urso à furça ou a um
incumbe, em grande parte, aos profissionais: a descoberra da injustiça como árbirro niio oficial ou pela procura direcra de uma solução amigável), ao
ral assenta no senrimenro de rer direiros (entitlement) e o poder especifico dos esrado de clienres dos profissionais: ele consrirui os inreresses pré-jurídicos
profissionais consiste na capacidade de ret-elar os direiros e, simu!raneameme, dos agenres cm causas judiciais e rransforma em capira! a comperência que
as in jusriças ou, pelo conrrârio, de condenar o senrimento de injusri~~ firma- garanre o dominio dos meios e recursos jurídicos exigidos pela lôgica do
do apenas no sentido da equidade e, desre modo, de dissuadir da defesa judi- campo.
cial dos direitos subjenivos, em resumo, de manipular as aspirações juridicas, A consriruição do campo juridico é inseparável da instauração do
de as criar em certos casos, de as aumenrar ou de as deduzir em outros casos. monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desra
(Um dos poderes mais significativos dos lauyers ê consriruido pelo rrabalho de caregoria parricular de produtos que são os serviços jurídicos. A comperên-
expamd~, de amplificação das d1Jp11tas: este trabalho propriamenre polirico cia jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao
consisre em transformar as definições admitidas transformando as palavras ou campo jurídico, dererminando os conflitos que merecem enrrar nele e a
os rótulos arribuidos às pessoas ou às coisas, quer dizer, frequenremenre, forma especifica de que se devem revestir para se consriruirem em debares
recorrendo às categorias da linguagem legal. para fazer eorrar a pessoa, a propriamenre juridicos: só ela pode fornecer os recurso.~ necessários para
acção. a relação de que serrara numa classe mais larga)!'. São rambém os pro- fazer o rrabalho de construção que, medianre uma selecção das propriedades
fissionais quem produz a necessidade dos seus próprios serviços ao consrirui- perrinenres, permite reduzir a realidade à sua definição juridica, essa ficção
rem em problemas jurídicos, traduzindo-os na linguagem do direito, proble- eficaz. O corpo dos profissionais define-se pelo monopólio dos- instrumenros
mas que se exprimem na linguagem vulgar e ao proporem uma avaliação necessários à consrrução jurídica que é, por si, apropriação; a imponância
anrecipada das probabilidades de êxiro e das consequências das diferentes dos ganhos que o monopô!io do mercado dos serviços jurídicos assegura a
esrrarêgias; e não há dU.vida de que eles são guiados no seu rrabalho de cons- cada um dos seus membros depende do grau em que ele pode conrrolar a
rrução das tlúp11tar pelos seus inreresses financeiros, e rambêm pelas suas produção dos produtores, quer dizer, a formação e, sobretudo, a consagração
arirudes êricas ou po!irii:as, principio de afinidades socialmenre fundamenra- pela insriruição escolar dos agenres juridicamenre aurorizados a vender
das com os seus dienres (sabe-se, por exemplo, que inúmeros lau,yers desacon- serviços juridicos e, deste modo, a oferta dos serviços jurídicos.
selham as reivindicações legitimas dos clienres contra as grandes empresas, A melhor verificação desras proposições ê consriruída pelos efeitos
principalmente em marêria de mnsumo) e, enfim e sobrerudo, pelos seus inre- dererminados, ramo na Europa como nos Esrados Unidos, pela crise do
resses mais especificos, aqueles que se definem nas suas relações objectivas com modo de acesso tradicional às profissões judiciais - assim como aos corpos
os ourros especia!isras e que se actualizarn, por exemplo, no prôprio recinro do de médicos, de arquirectos e de ourros detemores de diferenres espécies de
tribunal (dando lugar a negoóações explkiras ou implíciras). O efeiro de her- capital colrural. Tais efeiros são, por exemplo, os esforços pam !imitar a
mcrismo" que o prôprio funóonamenro do campo rende a exercer manifesra-se oferra e os efeiros da intensificação da concorrência (a baixa nos rendimen-
no fano de as instiruiçôes judiciais tenderem a produzir verdadeiras tradições tos, por exemplo) por medidas que têm em vista reforçar as barreiras postas
especificas e, em particular, categorias de percepção e de apreciação perfeita- à entrada na profissão (numrnu dallSHJ); ou ainda os esforços para
menre irreduríveis às dos não-especialisras, gerando os seus problemas e as suas aumentar a procura, pelas vias mais diversas, que vão da publicidade ~
soluções segundo uma Jôgica toralmenrc hennêrica e inacessivel aos profanos l<'. mais fréquenre nos EUA - arê às acções mi!itanres que rêm o efeiro (o que
não quer dizer o fim) de abrir aos serviços juridicos novos mercados,
promovendo os direitos das minorias desfavorecidas ou incitando as minorias
a fazerem valer os- r,eus direiros e, de modo mais lato, procurando levar os
t, Sobre esre trabalho de exjlar1Jt:lli ver L Mather e B. Yngvesson, poderes pU.blicos a conrribuirem de maneira direcra ou indirecra para
~Language. Audience and rhe Transformarion of Dispures~, Lair anrl Soâety
Rctúu·, · 15, 3-4, 1980-81, pp. 776-82 L
.., Cf. sobre todos estes pontos, W. L. Fdsriner, R. L Ahd, A. Sarat.
D. Coares, S. Penrod, «Social Psychology and rhe F.mergence ofDispures»,
~ The Emergenn: and Transformarion o( Dispurcs: N,mics. J\Lmiing. Cl.ii- 11/.. pp 654-680; L. Marher, B. Yngvesson, artigo citado.
ming», Lau aru/ s,,aety f?el'ior vol. l'S. 3-/4, [()80 8!. !'!'- <,,J-6'i·1:
"'-!•dfot Je forrncturt··, no rt·xn, oriisimi! (N. ·1·.)

liiJ
A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO VIII 235

sustentar a procura jurídica"'_ É assim que a evolução recente do campo a rnorrer im, conselhos de profissionais, que acabarão pouco a pouco por
Jurídico permite que se observe directameme o processo de constituição !()mar o lugar dos litigantes e dos demandados, convertidos deste modo em
apropriativa - acompanhado do desapossamemo correlativo dos simples '>lmple~ "/II\Iioâ1wr» '-'.
profanos - que tende a criar uma procura ao fazer entrar na ordem jurídica Dentro da mesma lógica, já se pôde mostrar que a vulgarização
um domínio da prática até então deixado a formas pré-jurídicas de solução militante do direiro do trabalho, que assegura a um número imponante de
<los coníliros: a justiça «prud,homaJe,."' que oferecia até então tl..'n asilo a nào-•profi~sionais um bom conhecimento das regras e dos procedimentos
uma espécie de arbitragem firmada no sentido da equidade e exercida por 1urídiu1s, não produz o efeiro de garantir uma reapropriação do direito pelos
homens de experiência, segundo procedimentos simples, foi obj{x:to de tal utilizadores em detrimento do monopólio dos profissionais, nem rão pouco
processo de anexação·''. Como efeito de uma cump!iódade objeaiva entre ,, efeito de determinar uma deslocação da fronteira entre o.s profanos e os
representames sindicais culrnrnlmeme mais providos e cen:os juristas que, pmfíssionai~ os quais, impelidos pela lógica da concorrência no seio do
graças a uma soliótude generosa pelos interesses dos mais desfavoreódos, 1 ampo, têm de aumentar em riemificidade para c()nservatem () monopólio

alargam o mercado que se abre ao serviço deles, esta ilhota de autoconsumo da interpretação legitima e escaparem à desvalorização associada a uma
jurídico achou-se pouco a pouco integrada no mercado controlado pelos d1\l1pllna que ocupa uma posição inferior no campo jurídico.·'-'* Observam-
profissionais: os conselheiros são cada vez mais obri,llados a apelar ao direito ·\l" muitas outras manifestações desta tensão entre a procura do alargamenro

para produzirem e para justificarem as suas decisões, sobretudo porque os do mercado pela conquista de um sector entregue ao autoconsumo jurídico
litigantes e os demandados tendém cada vez mais a ,o!o,ar-se no terreno /procura que pode ser calvez tanto mais eficaz, como no caso dos «prud'~
juridico e a recorrer aos serviços de advogados, e também porque a homrnes», quanto mais incons<:iente ou inoceme é) e o reforço da autono-
multiplicação das apelações obriga os «prud'hommes» a recorrerem às mia, quer dizer, a separação enne os profissionais e os profanos: no quadro,
decisões do Tribuna! de Alta Justiça -- efeito de que tiram proveim as por exemplo, do funcionamento das jurisdiçôes disciplinares no seio das
revistas de jurisprudência e os profissionais que são rnda vez mais consulta- empresas privadas, a pre(xupação de manter, em relação aos profanos, a
dos pelos patrões ou pelos sindicatos ' 1 . Em resumo, à medida que um distância que define a pertença ao campo e que impede uma defesa
tampo (neste çaw, um 5tÜxampo) se constitui, um processo de rrjiwçr1 demasiado direna dos interesses dos mandantes leva os mediadores semi~
orodm· põe~se em movimento: cada «progresso» no sentido da «jurisdiciza- -profissionais a aumentar a tecnicidade das suas intervenções para melhor
ção» de uma dimensão da pNtica gera novas «ne<:essidades jurídicas», marcarem a separação dat1ueles cujos interesses eles defendem e darem assim
portamo, novos interesses jurídicos entre aqueles que, estando de posse da mais autoridade e neutralidade à sua defesa, embora com o perigo de
competência especifirnmente exigida (na ocorrência, o direito do trabalho), desmemirem com isso aquilo que constitui a própria lógica da simaçüo de
encontram aí um novo mercado; estes, pela sua intervenção, determinam negonação amigável. ",u
um aumento do formalismo jurídico dos procedimentos e contribuem assim
para reforçar a necessidade dos seus próprios serviços e dos seus próprios
produros e para determinar a ex!usão de fano dos simples profanos, forçados

• cf, J11p,,1 nota O da p. l04.


'" Sobre os efeitos do aumento da população dos lauJtn nos EUA, ver Temos aí um exemplo rípico de um desses processos que, quando
R. L. Abel, «Toward a Political Economy of Lawyers», Wimmsin Lau· não são descritos na linguagem ingénua da «recuper,i.ção», são feiros para
Rn'ieU', vol. 5, 1981, pp. lll7-ll87. predispor ao funcionalismo de má qualidade, incitando a pensar que toda a
'
1
Cf. P. Cam, «Juges rouges et droit du travai!», Acw de la rechm:he forma de oposição aos interesses preenche uma função útil para a perpetua-
NI menm .wâales, 19, Janeiro 1978, pp. 2-27 e Les Prn,/"hr,mme1, jugri et ção da ordem constitutiva do campo, e que a heresia tende a reforçar a
arhitm, Paris, FNSP, 1981, e sobretudo, J.-P. Bonafé-Schmitt, «Pour une própria ordem que, ao combatê-la, a awlhe e a absorve, saindo refor,;-ada
sociologie du juge prud'homa!», A11na/e1 de Vaitcrmrm, n." 23, 2.º semestre desta confromação.
de 1985, pp. 27-50. ''* Cf. R. Dhoquois, «La vulgarisation du droit Ju travai!, Réappropria-
,: Cf. Y. Dezalay, ,,De la médiation au droit pur: pratiques er tion par les iméressés ou développement <.-l'un nouveau marché pour les
représentations savantes dans le champ du droir», A1111aln de Va!lcn:1.wn, professionels?» A1111ales de Vamw.m111, n." 23, 2." s;;mestre, 1985, pp. 15-26.
n. 0 21, Outubro de 1984, pp. 118-148. ';"" Cf. Y. Dezaley, «Des affaires disciplina.ires au Jroit disdplinaire:
la juridictionalisatioo des affaires disciplinaires comme enjeu social et
proftssionnel», A1111<iln de Va11rrew,11, ib., id., pp. 51-71.
236 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO VI// 237

O poder de nomeação se sabe, significa acusar publicamente)"", são actos mágicos que
são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhe-
Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo cer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa
tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.
solenemente enunciado de uma «autoridade» socialmente O direito consagra a ordem estabelecida ao consagrar uma
mandatada, o pleito representa uma encenação paradigmática visão desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo
da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta Estado. Ele atribui aos agentes uma identidade garantida, um
em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo estado civil, e sobretudo poderes (ou capacidades) socialmente
antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem reconhecidos, portanto, produtivos, mediante a distribuição
impor-se ao reconhecimento e, deste modo, realizar-se, está em dos direitos de utilizar esses poderes, títulos (escolares, profis-
jogo o monopólio do poder de impor o princípio universal- sionais, etc.), certificados (de aptidão, de doença, de invalidez,
mente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos etc.), e sanciona todos os processos ligados à aquisição, ao
como princípio universal de visão e de divisão (nemo significa aumento, à transferência ou à retira.da desses poderes. Os
separar, dividir, distribuir), portanto, de distribuição legíti- veredictos por meio dos quais ele distribui diferentes volumes
ma 34 • Nesta luta, o poder judicial, por meio dos veredictos de diferentes espécies de capital aos diferentes agentes (ou
acompanhados de sanções que podem consistir em actos de instituições) põem um termo ou, pelo menos, um limite à
coerção física, tais como retirar a vida, a liberdade ou a luta, ao regateio ou à negociação acerca das qualidades das
propriedade, manifesta esse ponto de vista transcendente às pessoas ou dos grupos, acerca da pertença das pessoas aos
perspectivas particulares que é a visão soberana do Estado, grupos, portanto, acerca da justa atribuição dos nomes, pró-
detentor do monopólio da violência simbólica legítima. prios ou comuns, como os títulos, acerca da união ou da
O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negocia~ separação, em resumo, sobre todo o trabalho prático de
ções a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publica- worldmaking, casamentos, divórcios, cooptações, associações,
mente o que elas são na verdade, em última instância, pertence dissoluções, etc., que está na origem da constituição dos
à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim grupos. O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do
do insulto lançado por um simples particular que, enquanto poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em
discurso privado - idios logos - , que só compromete o seu particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das
autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele re_presenta a suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas,
forma por excelência da palavra autorizada, palavra pública, que uma instituição hiStórica é capaz de conferir a instituições
oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes históricas.
enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição O direito é a forma por excelência do discurso actuante,
formulados publicamente por agentes que actuam como man- capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais
datários autorizados de uma colectividade e constituídos assim dizer que ele/azo mundo social, mas com a condição de se não
em modelos de todos os actos de categorização (kategorein como esquecer que ele é feito por este. Convém, com efeito, que nos
interroguemos acerca das condições sociais - e dos limites -
34 O rex arcaico detém o poder de marcar os limites (regere fine;), de
desta eficácia quase mágica, sob pena de cairmos no nominalis-
«fixar as regras, de determinar, no sentido próprio, o que f; direito». (E. mo radical (que certas análises de Michel Foucault sugerem) e
Benveniste, Le VfJCah11/,:úre deJ imtit11thm, ind1J--.mropéenne,, li, P,tri.~, Minuit,
1969, p. 15. "' cf. .u,pra p. 142. Ii
238 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTUW Vlll 239

de estabelecermos que produzimos as categorias segundo as que anunciam, novas práttcas, novos costumes e, sobretudo,
quais construímos o mundo social e que estas categorias novos grupos, porque elas anunciam aquilo que está em vias de
produzem este mundo. De facto, os esquemas de percepção e advir, o que se anuncia; elas são mais oficiais do registo civil do
de apreciação que estão na origem da nossa construção do que parteiras da histôria. Ao concederem às realidades e às
mundo social são produzidos por um trabalho histórico colecti- virtualidades históricas o pleno reconhecimento que a procla-
vo, mas a partir das próprias estruturas deste mundo: estrutu- mação profêtica encerra, oferecem-lhes, pelo efeito de licitação,
ras estruturadas, historicamente construídas, as nossas catego- e atê mesmo de consagração, associado à publicação e à
rias de pensamento contrib11em para produzir o mundo, mas oficialização, a possibilidade real de aceder à existência plena,
dentro dos limites da sua correspondência com estruturas quer dizer, conhecida e reconhecida, oficial - por oposição â
preexistentes. É na medida e só na medida em que os actos existência ignominiosa, bastarda, oficiosa. Assim, só um nomi-
simbólicos de nomeação propõem princípios de visão e de nalismo realista (ou firmado na realidade) permite explicar o
divisão objectivamente ajustados às divisões preexistentes efeito mâgico da nomeação, acto de força simbólico que só ê
de que são produto, que tais actos têm toda a sua eficácia de bem sucedido porque está bem fundado na realidade. A eficácia
enunciação criadora que, ao consagrar aquilo que enuncia, o de todos os actos da magia social cuja forma canônica está
coloca num grau de existência superior, plenamente realizado, representada pela sanção jurídica só pode operar na medida em
que é -o da instituição instituída. Por outras palavras, o efeito que a força propriamente simbôlica de legitimação ou, melhor,
próprio, quer dizer, propriamente simbô!ico, das representa- de naturalização (o natural ê o que não põe a questão da sua
ções geradas segundo esquemas adequados às estruturas do legitimidade) recobre e aumenta a força histôrica imanente que
mundo de que são produto, é o de consagrar a ordem estabele- a sua autoridade e a sua autorização reforçam ou libertam.
cida: a representação justa* sanciona e santifica a visão dóxica Estas análises, que podem parecer muito afastadas da
das divisões, manifestando-a na objectividade de uma ortodoxia realidade da prática jurídica, são indispensâveis para se com-
por um verdadeiro acto de criação que, proclamando-a à vista preender de maneira exacta o princípio deste poder simbólico.
de todos e em nome de todos, lhe confere a universalidade Se estâ na própria vocação da sociologia lembrar que, segundo
prática do oficial. o dito de Montesquieu, não se transforma a sociedade por
O imperativo do ajustamento realista às estruturas objecti- decreto, tambêm ê verdade que a consciência das condições
vas não se impõe menos ao poder simbólico na sua forma sociais da eficácia dos actos jurídicos não deve levar a ignorar
profética, herética, anti-institucional, subversiva. Se o poder ou negar aquilo que faz a eficácia própria da regra, do
criador da representação nunca se manifesta tão cla~ente, em regulamento e da lei: a justa reacção contra o juridismo, que
ciência, em arte ou em política, como nos períodos de crise leva a restituir ao seu lugar, na explicação das práticas, as
revolucionária, e não é menos verdade que a vontade de trans- disposições constitutivas do hahitus, não implica de forma
formar o mundo transformando as palavras para o nomear, ao alguma pôr entre parênteses o efeito próprio da regra explicita-
produzir novas categorias de percepção e de apreciação e ao mente enunciada, sobretudo quando, como é o caso da regra
impor uma nova visão das divisões e das distribuições, só tem jurídica, ela está associada a sanções. E inversamente, se não há
probabilidades de êxito se as profecias, evocações criadoras, áüvida de que o direito exerce uma eficácia específica, imputá-
forem tambêm, pelo menos em parte, previsões bem funda- vel sobretudo ao trabalho de codificação, de pôr em forma e em
mentadas, descrições antecipadas: elas só fazem advir aquilo formula, de neutralização e de sistematização, que os profissio-
nais do trabalho simbólico realizam segundo as leis prôprias do
• «droite» no texto original (N. ·1 .)_ seu universo, tamhém não há dúvida de que esta eficácia,
240 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 2ó 1 1
definida pela oposição à inaplicação pura e simples ou à se o poder vem de cima ou de baixo, se a elaboração do direito e a
aplicação firmada no constrangimento puro, se exerce na medi~ sua transformação são produto de um «movímento» dos costu-
da e só na medida em que o direito é socialmente reconhecido e mes em direcção à regra, das práticas colectivas em direcção às
depara com um acordo, mesmo tácito e parcial, porque respon- codificações jurídicas ~u, inversamente, das formas e da'> fórmu-
de, pelo menos na aparência, a necessidades e interesses reais ·15 las jurídicas em direcção às práticas que elas informam, é preciso
ter em linha de conta o conjunto daJ relaçoeJ objectivaJ entre o
campo jurídico, lugar de relações complexas que obedece a uma
A força da forma lógica relativamente autónoma, e o campo do poder e, por meio
dele, o campo social no seu conjunto. É no interior deste
Como a prática religiosa, a prática jurídica define-se na universo de relações que se definem os meios, os fins e os efeitos
relação entre o campo jurídico, princípio da oferta jurídica que específicos que são atribuídos à acção jurídica.
se gera na concorrência entre os profissionais, e a procura dos Para explicar o que é o direito, na sua estrutura e no seu
profanos que são sempre em parte determinados pelo efeito da efeito social, será preciso retomar, além do estado da procura
oferta. Há confrontação c~nstante entre as normas jurídicas social, actual ou potencial, e das condições sociais de possíbili-
oferecidas as quais, pelo menos na sua forma, têm a aparência dade - essencialmente negativas - que ela oferece à «criação
da universalidade e a procura social, necessariamente diversa, e jurídica», a lógica própria do trabalho jurídico no que ele tem
até mesmo conflitual e contraditória, que está objecrivamente de mais específico, quer dizer, a actividade de formalização, e :ir
inscrita nas próprias práticas, em estado actual ou em estado os interesses sociais dos agentes formalizadores, tal como se 1
1
potencial (em forma de transgressão ou de inovação da vanguar~ definem na concorrência no seio do campo jurídico e na relação il
da ética ou política) .. A legitimidade, que se acha praticamente entre esre campo e o campo do poder no seu conjunto 37 . 11
conferida ao direito e aos agentes jurídicos pela rotina dos usos É certo que a prática dos agentes encarregados de produzir
que dela se fazem, não pode ser compreendida nem como efeito
do reconhecimento universalmente concedido pelos « jusriciá~
o direito ou de o aplicar deve muito às afinidades que unem os i
veis» a uma jurisdição que, como quer a ideologia profissional
do corpo dos juristas, seria o enunciado de valores universais e inverterem pura e simplesmenre, em nome da sociologia, o velho modelo
eternos, portanto, transcendentes aos interesses particulares, idealista da criação jurídica pura (que pôde ser, simultânea ou sucessiva-
nem, pelo contrário, como efeito da adesão inevitavelmente mente situada, no decurso das lutas no interior do campo, na acção dos 1
legisladores ou dos jurisras ou, com os publicistas e os civilisras, nas 'I
obtida por aquilo que não passaria de um registo do estado dos
costumes, das relações de força ou, mais precisamente, dos
decisões da jurisprudência): «O centro de gravidade do desenvolvimento do
direito, na nossa época( ... ), como em todo o tempo, não deve ser procurado
'll
,!

interesses dos dominantes:16_ Deixando de se perguntar nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas sim na
sociedade ela própria» (Eugen Ehrlich), citado por J. Carbonnier, Flexible
droit, J'extts pour une sociolo?,ie du droit sam rigueur, S.ª edição, Paris, LGDJ,
H A relação dos hahitm com a regra ou a doutrina é a mesma no caso
1983, p. 21.
da religião em 9ue é tão falso imputar as práticas ao efeito da liturgia ou do 17
· Max Weber que via nas propriedades de lôgica formal do direito
dogma (por meio de sobreava!iação do juridismo) como ignorar este efeito
racional o verdadeiro fundamento da sua eficácia (por meio sobretudo da sua
imputando-as completamente ao efeito das atitudes e ignorando ao mesmo
capacidade de generalização, princípio da sua aplicabilidade universal)
tempo a eficâcia própria da acção do corpo de dêrigos.
30 ligava ao desenvolvimento das burocracias e das relações impessoais que-elas
A propensão para apreender sistemas de relaçiks wmplcxas Je
favorecem o desenvolvimento de corpos de especialistas do direito e de uma
maneira unilateral (â maneira dos linguistas que pron1ram nes1e <>tl mu1ut!e
pesquisa jurídica própria para fazer do direiro um discurso abstracto e
sector do espaço social o prindpio da mudança !in},luisti,;i) «>!Hlw ,d~llll.\ a
logicamente coerente.
242 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 243

dúvida, melhor a amplitude e os efeitos desta unanimidade na cumplicidade


detentores por excelência da forma do poder simbólico aos tácita, do que quando, auavés de uma crise económica e social do corpo,
detentores do poder temporal, político ou económico, e isto não ligada à redefini\"ão Jo modo de reprodução das posições dominantes, ela
obstante os conflitos de competência que os podem opor. A pro- chega a romper-se. As lutas travadas. por alguns dos recém-chegados, cuja
ximídade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos hahitm, posiçào e cujas atitudes não lhes permitem aceitar os pressupostos da
ligada a forma~·ões familiares e escolares semelhantes, favorecem Jcfinição midiciona! do posto, fazem vir à !uz do dia uma parte do
fundamento rernkaJo do corpo, quer dizer, o pano de não-agressão 9ue unia
o parentesco das visões do mundo. Segue~se daqui que as o corpo aos dominantes. A difercncia~·ão interna 9ue conduz um corpo, até
escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre então integrado numa hieruquização e por uma hierarquização de rodos
interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas acein· e num (onsenso wra! sobre a missão, a funcionar como campo de lutas,
têm poucas probabilidades de <lesfavoreçer os dominantes, de ral leva a!g:uns a enunLiarem este parto, atacando mais ou menos abertamente
modo o etos dos agentes jurídic9s que está na sua origem e a aqueles que continuam a tê-lo por norma absoluta Ja sua prática·'".
lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto
Mas a eficácia do direito tem a particularidade de se exercer
para os justificar como para os inspirar estáo adequados aos
para além do círculo daqueles que estão antecipadamenre
interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.
convertidos, em consequência da afinidade prática que os liga
A pertença Jos mi,gisrraJos à classe dominante está atesrnda em toda a aos interesses e aos valores inscritos nos textos jurídicos e nas
parte. Assim, Mario Sbriccoli mostra que nas pequenas rnmunid,ides da atitudes éticas e políticas dos que esrão encarregados de os
ftúlüi da Idade Média, a posse desta espé<:ie particularmente rnra de capicd aplicar. E não há dúvida de que a pretensão da doutrina
cultuni! que é o capital jurídico baswva pilfa garantir posiçücs de poder. Do jurídica e do procedimento judicial à universalidade, que se
mesmo m(xlo, em França, dumme o Amigo Re.t;imc, ,i nobreza de toga,
emborn menos prestigios:I do 9ue a nobreZà de espada, pertencia, frt"f.Jueme- realiza no trabalho de formalização, contribuí para fundamentar
meme por nascimento, à aristocracia. Do mesmo modo ainda, o inquériw a sua «universalidade» prática. É próprio da eficácia simbólica,
de Sauvageot sobre a origem social dos magistrados que entraram para o como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade
corpo antes de 1959 estabelece que os magistrados, i:m fone proporção, - tanto mais certa quanto mais inconsciente, e até mesmo
saíram das profissôes judiciais e, de modo mais !ato, d,1 borguesi.1. Como mais subtilmente extorquída - daqueles que a suportam.
mostra bem Jean-Pierre Mounier ,,,. , o fano de, pelo menos até um p,..·dodo
recente, a fortuna garnncida pt)r uma origem rim ser a l"ondiçáo da Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode
independência económica e mesmo do ff11.r ascétiço que são constituídos, de exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o
cerro modo, pelos atribuws estatutários de uma pmfissáo çonsagrnda ao reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece
serviço do Estado, contribui para explicar, com os efeiws prüprios da desconhecida* a parte maior ou menor de arbirrário que está na
formação profissional, que a neuualHfade prodamad;i e a avnsóio alrnmeme origem do seu funcionamento. A crença que é tacitamente
professada a respeito da política não excluam, pdo rnmrádo, a adesão à
ordem estabelecida. (Pode-se ver um bom índice dos valores do rnrpo de concedida à ordem jurídica deve ser reproduzida sem int..:rrup-
magistrados no facto de terem sido eles, ainda que pouw inclinados a ,,, O resultado das deições profissionais (realizadas por correspondência
intervir nos negócios políticos, entre wdas as profissües jurídkas ·-- e de 12 a 21 de Maio d,· 1986) mostra uma polarização política muiw
sobretudo os advogados - os mais numerosos, relativamente, a assinarem marcada do corpo dos magistrados que, até o aparecimento do Sindicato da
as petições contra a lei de liberalização do aborto). Mas nunca se mede, se-m Mag!srratuta, em 1968, estavam t0dos reunidos (pelo menos, quando
sindicalizados) numa úniça assorii1çiio ~ a Union Fédérale des Magistrats,
antepassado da USM: Union Syndica!e des Magistrars, moderada, que
'' Estas afinidades foram sem dúvida reforçadas, no caso da Frnnça, wm a dedina de maneira acemuada, enquanto que o Syndicat de la Magistrature,
criação da ENA, que assegura um mínimo de formação jurídica aos altos fun- mais propriamente à esguerda, progride e a Association Professionnelk des
cionários e a uma boa parte dos dirigemes das empresas púhlirns ou privad,t~. Ma,i:isttatS, mais à direita e recentemente constltnída, afirma a sua exis-
-''• Jean-Pierre Mounier, La ,lifimtirm ;11diâ,liY1· ,k l,1 f'11lill,flll'. (<"Se. tência (mais de 10'½ dos votos).
Paris I, 1975. ,. «méconnue» (ignorada, não reconhecida) (N. T.).
244 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 245

ção e uma das funções do trabalho propriamente jurídico de O trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos: pela própria
codificação das representações e das práticas éticas é a de força da codificação, que subtrai as normas à contingência de
contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios uma ocasião particular, ao fixar uma decisão exemplar (um
fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a decreto, por exemplo) numa forma destinada, ela própria, a
saber, a crença na neutralidade e na auronomia do direito e dos servir de modelo a decisões ulteriores, e que autoriza e favorece
juristas ·m. «A emergência do direito, escreve Jacques Ellul. ao mesmo tempo a lógica do precedente, fundamento do modo
situa-se no ponto em que o imperativo formulado por um dos de pensamento e de acção propriamente jurídico, ele liga
grupos que compõem a sociedade global tende a tomar um valor continuamente o presente ao passado e dá a garantia de que,
universal pela sua formalização jurídica» -1 i. É preciso com efeito salvo revolução capaz de pôr em causa os próprios fundamentos
ligar a universalização e a prática de pôr em forma e em fórmula. da ordem jurídica, o porvir será à imagem do passado" e de que
as transformações e as adaptações inevitáveis serão pensadas e
Se a regra de direito supõe a coitjunÇão· da adesão a valores comuns ditas na linguagem da conformidade com o passado. O traba-
(marcada, ao nível do cosrnme, pela presença de sanções espontâneas
colecrivas como a reprovação moral) e da existência de regras e de sanções
lho jurídico, assim inscrito na lógica da conservação, constitui
explícitas e de procedimentos regularizados, ê certo que este Ultimo facror, um dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbó~
insepatáve! da escrita, desempenha um papel decisivo: com o escrito aparece lica também por outra característica do seu funcionamento 4 \
a possibilidade do comentário universalizante que põe em evidênóa as pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as
regras e sobretudo os princípios «universais», da nansmissão objecdva (por decisões jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou

r
meio de uma aprendizagem meródica) e generalizada, para alêm das
as justificar, ele confere o selo da tmiversalidade, factor por
fronteiras espaciais (enrre os tetrirórios) e (empor,1.is (entre as gerações)'~.
Enquanto a tradição oral impede a elaboração científica, na medida em que eXcelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o
se prende à experiência singular de um lugar e de um meio. o direito escrito mundo social que, como se viu, em nada de decisivo se opõe ao
favorece a autonomização do texto, que se comenra e que se intetpõe enrre pomo de vista dos dominantes. E, deste modo, ele pode conduzir
os comentadores e a realidade; desde logo, roma-se possível aquilo que a à unÚ'er.ra!izrtção prática, quer dizer, à generalizat,"ão nas práticas,
ideologia nativa" descreve como «ciência jurídica», quer di-1:et, uma forma
particular de conhecimenro científico, dotada das suas normas e da sua
de um modo de acção e de expressão até então próprio de uma
lógica próprias, e que pode produzir todos os sinais exteriores da coerência região do espaço geográfico ou do espaço social. É certo c0m efeito
racional, essa racionalidade «formal» que Weber tem o cuidado de distin- que, como indica Jacques Ellul, «as leis, inicialmente alheias e
guir sempre da racionalidade «substancial», e que diz respeito aos próprios aplicadas do exterior, podem, pouco a pouco, ser reconhecidas
fins da prâtica deste modo formalmente racionalizada. como úteis pelo uso e, a longo prazo, acabam por fazer parte do
património da colectividade: esta foi progressivamente informada
sn Alain Bancaud e Yves Dezaly mostram bem que mesmo os mais herê- pelo direito e aquelas só se tornaram verdadeiramente em
ticos dos juristas críricos, que invocam a caução da sociologia e do marxismo para «direito» quando a sociedade consentiu em deixar-se informar
fazerem avançar os direiros dos detentores de formas dominadas da competência (. .. ). Mesmo um conjunto de regras aplicadas por coerção um
jurídica, como o direito social, continuam a reivindicar o monopôlio da «ciência
jurídica» (cf. A. Bancaud e Y. Dezalay, L"économie du dmit. lmpbialisme des
certo tempo nunca deixa o corpo social intacto, pois que criou um
ér:onamims et rburgence d"un jttridisme, Comunicação ao «CoUoque sur le Modele cerro número de hábitos jurídicos ou morais» 44 .
Économique dans Jes Scienn:s», Dezembto de 1980, p. 19 em especial).
"' ]. Ellul, «Le problCme de l"émergence du droir», Anna/es dr " Compreende-se assim que o liame entre a petten,;;a às faculdades de
Bordeaux, I, 1, 1976, pp. 6-15. DireitO e a orientação polírica para a diteita, verificado empiricamente, nada
"~ Cf.]. EHul, «Deux Prob!Cmes Préalab!es», Am1tt!e.1 de B,mle,wx, 1, tem de acidental. Cf. P. Bourdieu. H11mo academicm, Patis, Minuir, 1984,
2, 1978, pp. 61- 70. PP- 9.J-96.
'" «indigCne» no texto original (N T.). ., J. E!lul, «Le PtoblCme de rÉmergence du Droit», art. ât.
A FORÇA DO DIREITO CAPiTULO Vlll 247
246

Compreende-se que, numa sociedade diferenciada, o efeito !idade de facto em normalidade de direito, a simples fides
de universalização é um dos mecanismos, e sem dúvida dos familiar, que assenta em todo um tra!,alho de manutenção do
mais poderosos, por meio dos quais se exerce a dominação reconhecimento e do sentimento, em direito da família, provi-
simbólica ou, se se prefere, a imposição da legitimidade de do de um arsenal de instituições e de constrangimentos,
uma ordem !iOCiaL A norma jurídica, quando consagra em segurança social, abonos de familia, etc., a instituição jurídica
forma de um conjunto formalmente coerente re~ras oficiais e, contribui, sem dúvida, ,ma'er.,tt/mente para impor uma represen-
por definição, sociais, «universais», os princípios prâticos do tação da normalidade em relação â qual todas as prâticas
estilo de vida simbolicamente dominante, tende a infonrlflr diferentes tendem a aparecer como deJl.'1antes, anómicas, e an:•
realmente as práticas do conjunto dos agentes, para além das mesmo anormais, patológicas (especialmente quando a «medi-
diferenças de condição e de estilo de vida: o efeito de universa- calização,, vem justificar a « jt1risdicização» ). É assim que o
lização, a que se poderia também chamar efeit11 de normalização, direito de família ao ratificar e ao canonizar cm forma de
vem aumentar o efeito da autoridade social que a cultura normas «universais» as práticas familiares que pouco a pouco se
legítima e os seus detentores jâ exercem para dar toda a sua foram inventando, sob o impulso da vanguarda ética da classe
eficácia prática à coerção jurídica 45 . Pela promoção ontológica dominante, no seio de um conjunto de instituições socialmente
que ela opera ao transformar a regularidade (aquilo que se faz mandatad:i.s para gerirem as relações sociais no interior da
regularmente) em regra (aquilo que ê de regra fazer), a norma- unidade doméstica, e em particular as relações entre as gera-
ções - contribuiu sem dúvida muito, como mostrou Remi
~s Entre os efeitos propriamente simbülicos do dirciw, hâ que dat um Lenoir, para fazer avançar a generalização de um modelo da
lugar especial ao efeito de oficialização como re<:onhe<'.ÍII'lt't'ltü piibtico de unidade familiar e da sua reprodução que, em certas regiões do
normalidade que torna dizível, pensâvel, confessâvel, uma conduta atê rntão espaç<1 social - e geográfico - e, em particular, entre os
considerada tabu (ê o caso, por exemplo, das medidas que dizem respeito â camponeses e os artífices, esbarrava em obstáculos económicos e
homossexualidade). E tambêm ao efeito de imposição simbôlica que a regra
explicitamente publicada e as possibilidades que ela designa, pode exercer, sociais ligados sobretudo à lôgica específica da pequena empre-
ao abrir o espaço dos possiveis (ou, mais simplesmente, ao «d:ir ideias,,). sa e da sua reprodução 41 '.
É assim que os camponeses mais agarrados ao morgadio, na longa tesistênóa Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo
que opuseram ao Código Civil, adquiriram o conhe<imento dos procedi- de vida, vivido e largamente reconhecido rnmo exemplar, o
mentos, violentamente recusados, que a imaginação juridica lhes oferecia. E
qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes
se muitas desrns medidas (frequentemente registadas nas escrituras dos tabe-
liães em que os hiswriadores do Direito se apoiam para teconsdruirem o fundamemador da crc11ç.a na universalidade do direito, está
acostume») são totalmente desprovidas de realidade, como a réstituição do tambêm na origem da ideologia que tende a fazer do direito
dote em caso de <livôtdo - quando, de facto, o divôrcio estâ excluído - um instrumento de transformação das relações sociais e de que
não ê menos verdade que a ()ferta jurídica não deixa de exen;er efeitos reais as anâlises precedentes permitem compreender que ela encontre
sobre as representações e, neste univt:rso como em outros (em matêria de
a aparência de um fundamento na realidade: não é em qualquer
direito do trabalho, por exemplo), as representações constitutivas daquilo a
que se poderia chamar o «direit() vivido» devem muito ao efeito, mais ou região do espaço social que emergem os princípios práticos ou
menos deformado, do direito codificado: o universo dos possíveis que este as reivindicações éticas submetidas pelos juristas à formalização
faz existir, no prôptio trabalho tiue é necess.itio paro os neutralizar, tende. ê à generalização. Do mesmo modo que o verdadeiro responsá-
verosimilmeme, a preparar os espiriros para as mudanças aparentemente vel pela aplicação do direito não é este ou aquele magistrado
brutais que surgirão quando forem dadas as condições de realização desses
possíveis teôricos (pode-se supor que hâ ai um efeit(l muito geral da
imaginação juridica, o qual, por exemplo, <l(l prever, pot um" c~pêcie de ·'" R. Lenoit, La Sewnti: .'i,;oak d tErolution drs Fon11rJ de Codifkatirm
pessimismo metódico, todos os casos de ttaosgrcssfü.i ;·1 tqst;,. umttihtii p:1r:1 ,1,.. Stm,tm,:; fami/i,1fn, tese, Paris. 1985.
os fazer existir, numa fracçii(l m,iior ou menor do t"\JM<," "~ ui)_

d
248 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO VI// 249
singular, mas todo o conjunto dos agentes, frequentemente telações entre o normal e o patológico dê tão escasso lugar ao efeito
postos em concorrência que procedem à detecção e à marcação próprio do direito: instrumento de normalização por excelência,
do delinquente e do deliro, assim rambêm o verdadeiro legisla- o direito, enquanto discurso intrinsecamente poderoso e provido
dor não é o redactor da lei mas sim o conjunto dos agentes que, dos meios físicos com que se faz respeitar, acha-se em condições
determinados pelos interesses e os constrangimentos específicos de passar, com o tempo, do estado de ortodoxia, crença correcta*
associados às suas posições em campos diferentes (campo jurídi- explicitamente enunciada como deve-ser, ao estado de doxa,
co, e também campo religioso, campo político, etc.), elaboram adesão imediata ao que ê evidente, ao normal, como realização
aspirações ou reivindicações privadas e oficiosas, as fazem da norma que se anula enquanto tal na sua realização.
aceder ao estado de «problemas sociais», organizam as expres- Mas não se explicaria completamente este efeito de naturali-
sões (artigos de imprensa, obras, plataformas de associações ou zação se se não levasse a análise por diante até ao efeito mais
de partidos, etc.) e as pressões (manifestações, petições, dili- específico do acto de pôr em forma jurídica, essa vis frmnae, força
gências etc.) destinadas a «fazê-las avançar». É todo este da forma, de que falavam os antigos. Com efeito, se é verdade que
trabalho de construção e de formulação das representações que a informação das práticas pelo acto de pôr em forma jurídica só
o trabalho jurídico consagra, juntando-lhe o efeito de generali~ pode ser bem sucedida na medida em que a organização jurídica
zação e de universalização conrido na técnica jurídica e nos dê uma forma explícita a uma tendência imanente das práticas e
meios de coerção cuja mobilização esta permite. que as regras bem sucedidas sejam aquelas que, como se diz,
Há pois um efeito próprio da oferta jurídica, quer dizer, da reg1darizam situações de facto conformes com a regra, a passagem
«criação jurídica», relativamente autónomo que torna possível da regularidade estatística à regra jurídica representa uma verda-
a existência de um campo de produção especializado e que deira mudança de natureza social: ao fazer desaparecet as excep-
consagra o esforço dos grupos dominantes ou em ascensão para ções e o carácter vago dos conjuntos nebulosos, ao impor
imporem, sobretudo graças a situações críticas ou revolucioná- descontinuidades nítidas e fronteiras estreitas no cnntinuum dos
rias, uma representação oficial do mundo social que esteja em limites estatísticos, a codificação introduz nas relações sociais uma
conformidade com a sua visão do mundo e seja favorável aos nitidez, uma previsibilidade e, pot este modo, uma racionalidade
seus interesses 47 . E é de surpreender que a reflexão acerca das que nunca ê completamente garantida pelos princípios práticos do
47
A anâlise dos «livros de costumes» e dos registos de deliberação habitm ou pelas sanções do costume que são produto da aplicação
comumús de um certo nUmero de «comunidades» be-.i.rnesas (Arudy, Bescar, directa ao caso particular desses princípios não formulados.
Denguin, I.acommande, Lasseube) permitiu-me ver como normas «univer- Há que conceder uma realidade social à eficácia simbólica
sais» respeitantes aos pro,:edimenros de tomadas de decisão colecrivas, como
o voto em maioria, se puderam impor, durante a Revolução, em detrimento
do cosrume antigo que exigia a unanimidade dos «chefes de família», em
formulação, ainda mais econômica e rigorosa, dos pr'ncipios que regulavam
virtude da autoridade que lhes conferia o próprio facto da sua objenivação,
na prârica as condutas - e isto, quando era, sem di.:vida, a negação desras:
prôprio para dissipar, como a luz dissipa as (tevas, as obscuridades do «isso
com efeito, um princípio como o da unanimidade das decisões rendia a
é evidente» (ê sabido, com efeiro, que uma das propriedades essenciais dos
excluir o reconhecimento institucional da possibilidade da divisão (sobretu-
«costumes», na Cabila como no Béam, e em muitas outras partes, estâ cm
do duradoira) em campos antagonistas e rambêm, mais profundamente, a
que os principios mais fundamentais nunca são enunciados e que a análise
delegação da decisão num corpo de eleitos. (Ê, de resto, de norar que a
deve destacar estas «leis não escritas» da enumeração das sanções associadas
instituição de um «conselho municipal» ê acompanhado do desaparcrimento
aos casos de rransgressão prârica desses ptiodpios). Tudo permite. cfecriva-
de toda a participação do conjunto dos agentes interessados na elaboração
menre, supor que a regra explícita, escrita, codificada, dor,11h de cvidênó,1
das decisões e que o papel dos prôprios eleitos se !imita, durante rodo {)
social que a sua aplicação rranslocal lhe confr:re, vencni pomo ,1 pouco ,is
stculo XIX, a ratificar propostas das autoridades prefeitorais).
resistências, porque ela apareceu, por um cfdro (k alodoxi,1. , n!!l!• •l j11sr,1
• -,droite» no texto original (N. T. ).

.,.J.
250 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO Vlll 251
-.JUe o direito «formalmente racional», para falar como Weber, dado o caso, pôr o mais completo rigor formal, summum jus, ao
deve ao efeito próprio da formalização - sem por isso cairmos serviço dos fins menos irrepreensíveis, summa injuria.
na concessão à ideia verdadeira da «força intrínseca» que lhe
conferia o filósofo. A codificação - ao instituir na objectivida~
de de uma regra ou de um regulamenro escriro, expressamente Os efeitos da homologia
apresentado, os esquemas que governavam as condutas no
estado prático e aquêm do discurso - permite que se exerça Mas não se poderia explicar completamente a eficâcia
aquilo a que se pode chamar um efeito de homologttçiio (homnlo- simbólica do direito sem tomar em linha de conta os efeitos do
gein significa dizer a mesma rnisa ou falar a mesma linguagem): ajustamento da oferta jurídica à procura jurídica que deve ser
à maneira da objecrivação em forma de um nídigo expliâto Jo imputada menos a transacões conscientes do que a mecanismos
código prâtico que permite aos diferentes locutores associar o estruturais tais como a homologia entre as diferentes categorias
mesmo sentido ao mesmo som percebido e o mesmo som ao de produtores ou de vendedores de serviços jurídicos e as
mesmo sentido concebido, a explicitação dos princípios toma diferentes categorias de clientes: os ocupantes das posições
possível a verificação explícita do consenso acerca dos princípios dominadas no campo (como o direito social) rendem a ser mais
do consenso (ou do «dissenso»). Embora o trabalho de codifica- propriamente destinados às clientelas de dominados que contri-
ção não possa ser assimilado a uma axiomarização por o direiro buem para aumentar a inferioridade dessas posições (o que
encerrar zonas de obscuridade que dão a sua razão de ser ao explica terem os seus mane jos subversivos menos probabilida-
comentârio jurídico, a homologação rorna possível uma forma des de inverter as relações de força no seio do campo do que de
de racionalização, entendida, segundo Max Weber, como pre- contribuir para a adaptação do corpus jurídico e, deste modo,
visibilidade e cakulabilidade: de modo diferente do de dois para a perpetuação da estrutura do campo).
jogadores que, por não terem discutido a regra. do jogo, estão O campo jurídico, em consequência do papel determinante
co~denados a acusarem-se reciprocamente de batota sempre que que desempenha na reprodução social, dispõe de uma aurono-
uma discordância surgir na ideia que dela fazem, os agentes mia menor do que certos campos que, como o campo artístico
envolvidos num trabalho codificado sabem que podem rn!lfar ou literário ou mesmo o campo científico, conrribuem também
mm uma norma coerente e sem escapatória, logo que podem para a manutenção da ordem simbólica e, deste modo, para a
calcular e prever tanto as consequências da obediência à regra manutenção da ordem social. Quer isto dizer que as mudanças
como os efeitos da transgressão. Mas os poderes da l:Jomologa- externas n,ele se retraduzem mais directameme e que os confli-
çiio sô são exercidos plenamente por aqueles que estão ao tos internos nele são mâis direcramente resolvidos pelas forças
mesmo nível no universo regulado do formalismo jurídico: as externas. Assim, a hierarquia na divisão do trabalho jurídico
luras altamente racionalizadas que ela consente estão reserva- tal como se apresenta mediante a hierarquia dos especialistas
das, de fano, aos detentores de uma forre competência jurídi- varia no decurso do tempo, ainda que em medida muito
ca, à qual estâ associada ---- sobretudo entre os advogados - limitada (como é disso testemunho o estatuto de excelência que
uma competência específica de profissionais da luta jurídica, ê sempre dado ao direito civil), em função sobretudo das
exercitados na utilização das formas e das formulas como variações das relações de força no seio do campo social, como se
armas. Quanto aos outros, estão condern1Jos a suportar a força a posição dos diferentes especialistas nas relações de força
da forma, quer dizer, a violência simbólica que conseguem internas do campo dependesse do lugar ocupado no campo
exercer aqueles que - graças à sua arte de pôr cm forma e de político pelos grupos cujos interesses estão mais direcramente
pôr formas - sabem, como se diz, pôr o diróro do seu !ado e ligados às formas de direito correspondentes.
252 A FORÇA DO DIREITO CAPÍTULO VIII 253

É claro, por exemÍ,lo, que, à medida que aumenta a força se encontra em todos os debates teológicos, filosóficos ou
dos dominados no campo social e a dos seus representantes literários a respeito da interpretação dos textos sagrados, os
(partidos ou sindicatos) no campo jurídico, a diferenciação do partidários da mudança situam-se do lado da ciência, da
campo jurídico tende a aumentar, como sucedeu, por exemplo, histoticização da leitura (segundo o modelo desenvolvido-algu-
na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento do res por Schleietmachet) e da atenção à jurisprudência, quer
direito comercial, e também com o do direito do trabalho e, dizer, aos novos problemas e às novas formas do direito que
mais geralmente, com o do direito social. As lutas internas, estes problemas exigem (direito comercial, direito do trabalho,
entre os privatistas e os publicistas sobretudo, devem a sua direito penal). Quanto à sociologia, indissoluvelmente ligada,
ambiguidade ao facto de ser como guardiães do direito de na percepção dos guardiães da ordem jurídica, ao socialismo,
propriedade e do respeito pela liberdade das convenções que os ela encarna a reconciliação maléfica da ciência e da realidade
primeiros se tornam os defensores da autonomia do direito e social contra a qual a exegese da teoria pura representava a
dos juristas contra todas as intrusões do político e dos grupos melhor ptotecção.
de pressão económicos e sociais e, em particular, contra o Paradoxalmente, neste caso, a autonomização passa, não
desenvolvimento do direito administrativo, contra as reformas pot um reforço do fechar-se em si de um corpo exclusivamente
penais e contra todas as inovações em matétia social, cometcial ! devotado à leitura interna dos textos sagrados, mas sim por
ou na legislação do trabalho. Estas lutas, nas quais estão 1 uma intensificação da confrontação dos textos e dos procedi-
frequentemente em jogo coisas bem definidas nos ptóptios mentos com as realidades sociais de que tais procedimentos são

'
limites do campo jurídico - e universitário - , como a tidos por expressão e regulação. É o regresso às realidades que
definição dos ptogramas, a abertuta de tÍtulos nas tevistas favorecem o aumento da diferenciação do campo e a intensifica-
especializadas ou a ctiação de cadeiras e, deste modo, o podet ção da concorrência interna ao mesmo tempo que o reforço dos
sobte o corpo de especialistas e sobte a sua teptodução, dominados no seio do campo jurídico, em ligação com o
tespeitantes a todos os aspectos da ptática juddica, são ao reforço dos seus homólogos no seio do campo social (ou dos
mesmo tempo sobtedetetminadas e ambíguas na medida em seus representantes). Não é pot acaso que as tomadas de posição
que os defensores da autonomia e da lei como entidade abstrac- acerca da exegese e da jurisprudência, acerca da fidelidade à
ta e transcendente são, de facto, os defensores de uma ortod!Jxia: doutrina e acerca da adaptação necessária às realidades, parecem
o culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, quer corresponder de maneira bastante estrita às posições ocupadas
dizet, ao mesmo tempo da teotia e do passado, camioham a par no campo, tendo, de um lado, actualmente, o direito privado
da recusa em teconhecet à jurisprudência o menot valor ctia- e, especialmente, o direito civil, que a tradição neoliberal,
dor, pottanto, a pat de uma denegação ptática da tealidade ~poiada na economia, vem reactivat e, do outro lado, discipli-
económica e social e de uma recusa de toda a apteensão nas como o direito público ou o direito do trabalho, que se
científica desta realidade. constituíram contra o direito civil, pot meio do desenvolvi-
Compteende-se que, segundo uma lógica observada em mento das burocracias e do reforço dos movimentos de emanci-
t0dos os campos, os dominados só possam encontrar no exte- pação política, ou ainda o direito social, definido pelos seus
riot, nos campos científico e político, os ptindpios de uma defensores como a «ciência» que, ao apoiar-se na sociologia,
atgumentação ctÍtÍCa que tem em vista fazet do direito uma permite adaptar o direito à evolução social.
«ciência» dotada da sua metodologia próptia e fitmada na. O facto de a produção jurídica, como as outras formas de
realidade histórica, pot intermédio, entre outras coisas, da produção cultural, se realizar num campo está na origem de
análise da jurisprudência. Assim, segundo uma divisáo que

.
254 A FORÇA DO DIREITO

um efeito ideológico de desconhecimento• que os analistas em


geral, ao relacionarem directamente as «ideologias,► com .fun~
ções colecrivas, e até mesmo com intenções individuais, deixam
inevitavelmente escapar. Os efeitos que se geram no seio dos CAPÍTULO IX
campos não são nem a soma puramente aditiva de acções
anárquicas, nem o produto integrado de um plano concrero. A A institucionalização da anomia
concorrência de que eles são produto exerce-se no seio de um
espaço que pode imprimir-lhe tendências gerais, ligadas aos
pressupostos inscriros na própria estrutura do jogo de que eles Só se pode compreender a pintura moderna que nasce em
constiruem a lei fundamentaJ, como, neste caso particular, a França à volra dos anos 1870-1880, se se analisar a situação na
relação entre o campo jurídico e o campo do poder. A função qual e contra a quaJ ela se realizou, quer dizer, a instituição
de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela académica e a pintura convencional• que é a expressão dela -
contribuição do campo jurídico é -~ como a função de reprodu- e isro, evitando decididamente a alternativa da depreciação ou
ção do próprio campo jurídico, das suas divisões e das suas da reabilitação que comanda a maior parte das discussões
hierarquias, e do princípio de visão e de divisão que está no seu actua1s.
fundamento - produto de inúmeras acções que não têm como
fim a realização desta função e que podem mesmo inspirar-se
O texto que aqui se propõe representa o primeiro momento 1
ª'
de Uma análise da revolução simbólica operada por Manet e, '
em intenções oposras, como os trabalhos subversivos das depois dele, pelos Impressionisras: o desabamento das estrutu-
vanguardas, os quais contribuem, definitivamente, para deter- ras sociais do aparelho académico («areliers», Salões, erc.) e das
minar a adaptação do direito e do campo jurídico ao novo estruturas mentais que lhe estavam associadas encontrou condi-
estado das relações sociais e para garantir assim a legirimação ções favoráveis nas contradições introduzidas pelo aumento
da forma estabelecida dessas relações. É a estmlt1ra do jogo e numérico da população dos pintores oficiais. Esta explosão
não um simples efeito de agregaçdo mecânica, que está na origem morfológica favoreceu a emergência de um meio artístico e
da transcendência, revelada pelos casos de inversão das institui- Iirerário fortemente diferenciado e preparado para estimular o
ções, do efeito objectivo e colectivo das acções acumuladas. trabalho de subversão ética e estética que Manet teve de operar.
Para compreender a conversão colectiva dos modos de
pensamento que levou à invenção do escriror e do artista por
meio da constituição de universos relativamente autónomos,
em que as necessidades económicas se acham (parcialmente)
suspensas, é preciso sair dos limires que a divisão das especiali-
dades e das competências impõe: o essencial permanece ininte-
ligível enquanto se ficar circunscrito aos limites de uma única
tradição, literária ou artística. Dado que os avanços em direc-
ção à autonomia se fizeram em momentos diferentes nos dois
universos, em ligação com mudanças económicas ou morfológi-
cas diferentes e em referência a poderes diferentes - como a
Í!
• «méconnaissance» (N. T.). "' «Peimure pompier» no texro origina! (N_T.). r
256 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO TX 257

Academia ou o mercado - os escritores puderam tirar partido O r;/har acadé1111co


das conquistas dos artistas, e reciprocamente, para aumentarem
a sua independência. Pode-se, para se explicar a arte académica adoptar como se
O obstáculo maior à compreensão está em que se trata de faz geralmente, uma perspectiva histórica e ligar as suas
compreender uma revolução simbólica, revolução análoga na características maiores às condições da sua génese. A arte
sua ordem às grandes revoluções religiosas, e também uma académica, nascida durante a Revolução, com David - que a
revolução simbólica bem sucedida: desta revolução da visão do aprendera na Academia de Roma 1 - e adequada ao gosto das
mundo saíram as nossas próprias categorias de percepção e de novas camadas de notáveis saídas da Revolução e do Império,
apreciação, aquelas precisamente que empregamos geralmente definiu-se pela recusa à arte aristocrática do século XVIII,
para produzirmos e compreendermos as representações. A ilu- suspeita por razões a maior parte das vezes «morais», pela
são que faz apareçer a representação do mundo saída desta reacção contra o Romantismo, quer dizer, contra a<; primeiras
revolução simbólica como evidente - tão evidente que, por afirmações da autonomia da arte e sobretudo do enaltecimento
uma inversão surpreendente, é o escândalo suscitado pelas obras da pessoa do artista e da absolutização do seu ponto de vista.
de Manet que se tornou em objecto de surpresa - impede que A pintura do século XVIII, cujo gosto se tinha espalhado
se veja e se compreenda o trabalho de conversão colectiva que foi durante a Revolução por razões tanto hisróricas como estéticas,
necessário para criar o mundo novo de que o nosso próprio só é procurada, em começos do século, após a restauração das
olhar é produto. A construção social de um campo de produção normas clássicas durante a Revolução e o Império, por alguns
autónomo, quer dizer, de um universo social capaz de definir e coleccionadores excêntricos (entre os quais se conta o Primo
de impor os princípios específicos de percepção e de apreciação Pons cujo presenre, um leque pintado por Watteau, é aceite
1, do mundo natural e social e das representações literárias ou com indiferença por burgueses que até nem sabem o nome do
artísticas desse mundo, caminha a par da construção de um pintor). Como mostra Francis HaskeH, a cota de Watteau sobe
modo de percepção propriamente estético que situa o princípio durante a Monarquia de Julho, aparecendo este suposto ante-
da «criação» artística na representação e não na coisa represen- passado de Delacroix e dos Românticos aos olhos dos guardiães
tada e que nunca se afirma tão plenamente como na sua da ordem académica como uma ameaça aos princípios de David
capacidade de constituir esteticamente os objectos baixos ou e à ordem religiosa e política. O renascimento paradoxal do
vulgares do mundo moderno. A história social da génese deste gosto pela Escola Francesa do século XVIII durante a Segunda
mundo social, tão particular, no qual se prodyzem e se República só pode ser. compreendido na sua relação com o
reproduzem estas duas «realidades» que se sustêm uma à outra
na existência - a obra de arte como objecto de crença e o 1
Sobre a génese do estilo de David, poderá ler-se R. RJsenblum, «La
discurso crítico sobre a obra de arte -- permite que se dê aos peimure sous le Consulat et !"Empire», in De D,wid ,-J Delacraix. la Peinttm
conceitos comummente usados para discernir ou designar géne- franç,tise de 1774 a 1830, Paris, Musées Nai:ionaux, 1974, p. 165. Pode-se
também citar Frederick Cummings que evoca deste modo o magistério de
ros, escolas, estilos, e que certa estética teórica tenta desespera-
David; «Ele recomendava aos seus discipulos que utilizassem de preferência
damente constituir em essências an-históricas ou trans- uma larga composição em que as figuras em tamanho natural fossem
-históricas, o único fundamento possível: a historicidade histo- modeladas em relevo e agrupadas em 1m1 111e.r1110 plmm; estas composições ,'
ricamente necessitada sem ser historicamente necessária de uma ,·,mp/ifir,u/,/J só deveriam conservar 1/.f demellf11J e.l'.ímáais; cada objeno devia 1
estrutura histórica. ser definido por um drm1í11ir, mlarida q11e lhe Ji1.iSe apropriad1J (. . .) devendo os
seus rontornr,s ser respeitados na sua imegralidade. A busca da exactidtto
himirica era também tida pot necessidade primordial» (De Dal'id à Dfla- li
' ,·,,n·. "/!· l'if., p. 4 ! sublinhado por mim).
i
1
r 258 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 259

nacionalismo dos republicanos, preoc1 ·pados em restaurar o é o concurso anual do Grande Prémio, que garante ao laureado
prestígio da tradição francesa. Parece, contudo, que estes uma estada na Villa Médicis. !"fada há de surpreendente, pois,
gostos heterodoxos eram mais frequentes entre os aristocratas quando se encontram no sistema todas as características das
do que entre os novos-ricos, como os irmãos Pereire que instituições sujeitas a esta lógica, como as classes preparatórias
tinham sido aconselhados para a composição da sua colecção para as escolas superiores 4 : a docilidade extraordinária que ele
por Théodore Thoré, um dos primeiros historiadores-comer- supõe e reforça entre os alunos, mantidos por longo tempo
ciantes (o que permire notar, de passagem, que o poder dos numa dependência infantilizante pela lôgica da competição e as
banqueiros e dos homens de negócio como o das altas persona- expectativas insensatas que ela suscita (a abertura do Salão dava i
gens do Estado se exercia sobre o Salão, onde os seus gostos azo a cenas patéticas); a normalização operada pela formação 1,
eram conhecidos - os quadros pot eles adquiridos etam nele colectiva em «atelier», por meio dos se_us ritos de iniciação, das 1,'Íe
expostos com os seus prôprios nomes - e antecipadamente suas hietarquias ligadas ramo à antiguidade como à competên-
reconhecidos pela própria orientação dos expositores e pelas oa, os seus cursos por etapas e por programas estritamente li
escolhas do júri). Mas, de modo geral, os cânones clâssicos definidos. li
eram tão poderosos que mesmo a arte holandesa que gozava de Foi para mim motivo de tegozijo ter voltado a ver a li
analogia entre os «ateliers» e as classes prepatatôrias em escrito
grande prestígio continuava a ser vista através das normas
de percepção académica que impediam que se apreendesse a de um especialista tão avisado como Jacques Thuillier: «E essas li
continuidade entre Ruysdael e Thêodore Rousseau ou Coror 1 . espécies de «cagnes» * artísticas que foram os «ateliers» de
E como não ver que nada se opõe mais tadicalmente ao olhar Lêon Cogniet, de Ingres ou de Gleyre, simples classes prepara-
interior de que fala Michael Fried a tespeito da pinrura do tórias sem liame administrativo com a Escola, tiveram talvez
século XVIII., do que a exterioridade enfática dos quadros mais importância no destino da arte francesa do que o ensino
históricos do século XIX? Alêm disso, é bastante claro que a da ptôpria Escola, e os laureados do Grande Prémio» s. Não
valorização da arte académica se inscreve na obra de restauração posso, no entanto, aceitar que Jacques Thuillier, por não ter
cultural pela qual, após as crises da Revolução e do Impêrio, submetido à análise a sua representação das classes preparató-
regimes políticos em busca de legitimidade têm em mira rias, lhe faça desempenhar certa função no proceJJo de reabilitação
refazer o consenso em rorno de uma cultura edéctica de "justa pelo qual ele tem em vista anular a inversão da tábua de valores
medida». Mas também se pode explicar esta arte, ligando-a às operada por Manet e pelo Impressionismo. O ponto de vista
condições institucionais da sua produção, sem que esta explica- «compreensivo», que convém quando se trata de defender uma
ção estrutural em nada exclua a precedente: a sua ~stética está instituição, mesmo que· tenha o mérito de conceder uma razão
inscrita na lôgica do funcionamento de urna instituição acadé-
mica paralisada -- e de tal modo nela inscrita que se pode • Classes que preparam nos liceus ftanceses para a entrada na Escola
Norma! Superior; o termo ê usado por anrífrase, pnis que etimo!oi;:icamente
praticamente deduzir dela.
se liga a «preguiça», quando em tais classes o trabalho é intenso.
Todo o funcionamento do sistema está dominado pela • Cf. P. Bourdieu, «Epreuve sco!aire er consêcration socia!e, les dasses
existência de uma sequência ininterrupta de mnmrsos coroados prêparatoires aux grandes êcoles,,, in Actes de la n:cherche en Jâenw socia!e.s,
por recompensas honoríficas, entre os quais o mais importante n. 0 39, Setembro de 1981, pp. 3-70.
s Cf. J- ThuiHier, «L"artiste er rinstitution: l"Ecole des Beaux-Arrs et
e
e Cf. F. Haskdl, Rediscmtries in Art. S1m1e AspMr ,j' Tam Fashitm a/li/ !e Ptix de Rome», in Philippe Grundrcc, Le Grand Prix de Peinture. /ej
Collectwm in Eny,Í(md and Fr,mce, Londres, Phaidon Prcss, 1976, pp. 61-8.\. Concmlr"S du Prix de Rome de 1797 à 1863, Paris, Eco!e Nationale Supêrieure
·' Cf. M. Fried, Absr,rpritm mui The<ttrl<;;IÍiry. l',m1tm_::; ,mJ /1,-/Hi/,kr 111 !lii· Jes Beaux-Arts, 1983, pp. 55-85; «Peut-on parler J·une peinrure pom- 1
:\ger ,,f Didm,r, Berkeley, {/nivcrsity of C;t!iforni;1 Prn.\. 1')80 pier?», Paris, PUF, EHais et confirern-n du College de France, 1984.
r 260 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 261

de ser em lugar de condenar sem exame, não vale mais, quando um soldado a apontar uma espingarda: «Adivinhai o que ele
se trata de aJmpreender, do que o olhar hostil ou polémico: a tem na mira: a medalha do Salão» E ver-se-á melhor tudo o
relação não analisada com o objecto de análise (estou a falar da que está implicado na participação contínua na corrida escolar
homologià de posição entre o analisante e o analisado, o mestre se se souber que mesmo um pintor tão consagrado como Ihgres
académico) está na origem de uma compreensão essencialmente foi severamente julgado quando se recusou a expôr obras no
anacrónica deste ob jecto que tem todas as probabilidades de Salão, depois de 1834, porque um dos seus quadros tinha sido
reter apenas as características da instituição mais direcramente recusado.
opostas à representação recusada - por exemplo, o recruta- Os pintores académicos, frequentemente originários (muito
mento relativamente democrático da Escola de Belas-Artes ou o mais, em todo o caso, do que os Impressionistas) de famílias
interesse dos pintores convencionais pelos problemas sociais • ~ ligadas a profissões artísticas, têm assim de suportar e de
e de, pelo contrário, deixar escapar todas as características que vencer toda a longa sequência de provas preparadas pela Escola,
permitiriam compreender as obras na verdade da sua génese «ateliers» de preparação para concursos 1 , concursos, Escola das
social. Belas-Artes, Escola de Roma. Os mais consagrados passaram
Puros produtos da Escola, os pintores saídos desta formação toda a sua vida a concorrer aos louros da Escola para cuja
não são nem artífices, como em outros tempos, nem artistas, atribuição, aliás, eles próprios contribuíram com a sua activida-
como os que tentam impor-se contra aqueles: são, em sentido de de professores e a sua participação em júris: Delaroche
lato, mestreJ. A diferença maior em relação ao artista no sentido manteve durante toda a sua vida um dos «ateliers» mais
moderno do termo está em que eles não têm uma «vida» digna importantes da época; Gérôme teve <<atelier», desde 1865 na
de ser contada e celebrada, mas sim uma carreira, uma sucessão Escola de Belas-Artes, durante mais de trinta e nova anos e
bem definida de honras, da Escola de Belas-Artes ao Instituto, nele ensinou, sem se desmentir, a tradição académica 8. Forma-
passando pela hierarquia de recompensas atribuídas na época dos na imiração dos seus mestres e ocupados em formar mestres
das exposições no Salão. Como todo o concurso que forma os à sua própria imagem 9 , eles jamais escaparam completamente à
candidatos pelo revés, de preferência repetido, tanto como pelo dominação da Escola, cuja necessidade interiorizaram profunda-
sucesso, o Prémio de Roma era por si mesmo uma conquista mente por meio de disciplinas na aparência puramente técnicas
progressiva: alcançava-se o 2. 0 prémio, depois, um ano mais
1
tarde (como Alexandre-Charles Guillemot em 1808, Os «ateliers» como instituições tOtais que impõem disciplinas,
Alexandre-Denis-Joseph Abel em 1811, etc.) e até mesmo dois provas e mesmo «partidas» vulgares e brutais segundo todos os testemu-
(como François-Edouard Picotem 1813) ou mesmo 't-rês (como nhos, exigem dos recém-chegados atitudes particulares e, em especial, uma
forma particular de docilidade. Isw contribui sem dúvida para explicar que,
L. V.L. Palliêre em 1812), o 1. 0 prémio. E o mesmo se passava -t como já foi por várias vezes assinalado, os filhos de família evitam a carreira
com as recompensas atribuídas na época do Salão: assim Meis-
sonier obteve uma medalha de terceira classe em 1840, no ano ! académica, como Géticaulr, Delacroix, Degas, Gustave Moreau ou Manet.
8
É digno de nota que Courbet, pelo contrário, tenha tentado durante
dois meses manter um ~atelier», ainda que recusando-se a dar cursos, e que
seguinte uma medalha de segunda classe, dois anos mais tarde
uma medalha de primeira classe, em 1855 a grande medalha, o tenha depois abandonado, como também é de assinalar que nenhum dos

t
Impressionistas tenha sido professor (cf. J. Harding, Les peintres jxmlpiers. La
em 1867, a medalha de honra 6 • Compreende-se assim o dito peinture acadbnique en France de 1830 à 1880, Paris, Fla.mmarion, 1980,
de Degas diante de um quadro de Meissonier que representa p. 22).
9
! «Cada envio ao Salão de 1842 ( .. ) deve ser acompanhado de um
6
J.
Lethêve, La vie quotidimne de, artistes /rançais au XIX e ,#de, Paris, boletim com o nome, apelido, morada, lugar e data de nascimento do
Hachette, 1968, p. 132. artista, indicando também quem é ou foi o seu mestre» (J. Lethêve, op. ât.,
p. 54). i
')'
1
262 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA

ou estéticas, mas tendo todas por princípio a submissão à


CAPÍTULO IX

indissolúveis, do Verdadeiro, do Belo, do Bem. Uma composi-


263
J
instituição esn>lar. ção que retraçasse, ilustrasse, divinizasse a grandeza huma- li
A Esrola, qu<·r dizer, o Estado, garante o valor desses na» 11 • O artista é um alto funcionário da Arte que troca muito "
pintores, garantmdo --- como em rdação a uma moeda fiduciá- naturalmente a sua acção de consagração símbólica por um
ria o valor dos seus rfrulos e dos títulos que eles concedem. reconhecimento temporal sem equivalente (pois que, pela pri-
I•: ela garant(' tamhi·rn o valor dos seus produtos, assegurando- meira vez, a arte do tempo está em paridade com as obras mais
l!w:, <> 11uasc•m1ir111pú!ii1 {1<1 iíninJ menado existente, o Salão consagradas do passado: 5 7% das pinturas francesas vendidas
(' dr tal modo que a revoluçiio s1rnbólJCa, que quebra esta entre 1838 e 1857 estavam assinadas por artistas vivos, contra
rda<,ao priv1kgiada com o rm ffado, terá efeitos muito reai~, 11% entre 1737 e 1756 12 • Como nota Sloane, «a ideia da
,kt<·rmmamlo a derrocada dos cursos. É neste sentido que !>C grandeza moral que está associada ao governo monárquico
pod(' du::er, com EugCne d'Ors, que a arte dássica ou, pelo
menos, a ane acadl·mica, é uma arte estara/ 10 . Há inteira
desde o século XVU esrende-se à arte que o celebra. O naciona- i
lismo e o respeito à autoridade, o desejo de enraizar a arre na
(oinndt'nna entre o sucesso oficial e a consagraçiio espedfi<a, grandeza de um passado glorioso não são estranhos à vitalidade
('fltre as hierarquias temporais e as hierarquias artísticas e, por do sistema académico» 13 •
esta razão, a sanção das instâncias oficiais, em que as mais altas Das características da instituição académíca, detentora do
auroridades artísticas vão lado a lado com os representantes do monopólio da produção dos pintores e da avaliação dos st:us
poder político, é a medida exclusiva do valor. O pintor é produtos, podem deduzir-se as propriedades da pintura acadé-
formado para a sentir como tal por meio de toda a sua mica: a arte convencional é uma arte de escola, que represcnrn
aprendizagem e ele apreende a admissão ao salão, os prémios, a sem dúvida a quinta-essência histótica das produções típicas do
entrada na Academia, as encomendas oficiais não como simples homo academicus 14 • Esta arte de professores que, enquanto tais,
meios de «se dar a conhecer», mas como atestações do seu
valor, verdadeiros certificados de qualidade artística. É assim ti P. Angrand, Momieur Ingre, et Jon ipoque, Paris, La Bib!iorht'que de,

que logres, acabado de ser eleito para a Academia, «quer tor- Am, 1967 p. 69.
nar~se digno da sua alta e nova carreira de artista, indo para u H. C. and C. A. White, Camwes ,mtl Careerr. lmtitutumal Cl,,my,·,,,
além das suas antigas obras, superando-se a si mesmo. Ele the Fre-m:h PaintinK World, New York - Sydney, John Wí!cy imd Som,,
1965, p. 43.
procura o tema que personalizasse os princípios, a seus olhos 13 J. C. Sloane, Fremh Painti111!, heru,:m 1ht P,l!t and 1he Pmem. Artnr,.

Critics and Traditions, frnm 1848 to 1870, Princeton, Prim:eton UnivnsÍI)'


io A verdade desta arte de escola, que é também uma arte de Estado, Press, 1951, p. 43. Ainda que a instituição ,tc;1démica esteja dotada de uma
exprime-se plenamente no domínio da arquitettura: a arquitectura pública é autonomia relativa perante o governo, ela é vista corno parw Ja ;tutorida,k
considerada como a mais nobre e a mais universal, e os programas do das instâncias oficiais. Assim, todos (à ex:cepçâo de l.ouis Peisse, da /fow d,·,
Grande Prémio dizem sempre respeito a edifícios para a administração deux mendes) estão de acordo em censurar lngress ,iuandn, em 18/41, d•:-~<"
pública - como se os edifícíos privados não tivessem envergadura suficiente recusou a expor no Salão: «Recusar-se a expor t•nrre os s1'.US nmrcmporàncos,
para pôr à prova as aptidões dos candidatos. Os Académicos são assalariados é separar-se da arre nacional» (A. Tabar,inr, L, rn' ,,rtirtiqw ,111 templ d,
do esrado que assumem a responsabilidade da concepção dos edifícios Bamklaire, Paris, Mercure de Frnnce, 196.~, p. 'Vi).
14
públicos. «Os membros da Academia, sobretudo através da sua influência A procura das invariantes estilísticas assoóadas ao modo de produ--
na Escola das Belas~Anes e a sua intervenção no concurso do Grande ção académico, que poderia ser aplicado também aos escritores, historiado-
Prémio, procuram garantir o monopólio sobre toda a arquitenura nacional e res ou filósofos mais marcados pela Escola (penso, por exemplo, ao «escrever
pública em França, para além da sua prática privada» (D. D. Et(hcrt, The • bem» um pouco ostentatório dos Giraudoux, A!ain ou Luóen Febvn: de
Beaux-Arts Traditüm in French Architecture, ilbmrated hy lhe (,"r,m,/ PriY: dr ontem e de hoíe) não reria dificuldade em enrnnrrar pt'rfeitos equiva!enres
Rame, Princeton, Princeton University Prc-ss, 1980, p. 1•10) . !os Gt'fôme e dos Bouµ:uereau nesses músinis insignificantes de carreira sem
264 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPITULO IX 265

são os detentores de uma autoridade estatutária garantida pela Coudet, encarregado de representar a Festa da Federação, foi
instituição (à maneira do sacerdócio numa outra ordem), é ames obrigado a refazer completamente o seu quadro pata ter em
de mais, uma arte de execução que - na medida em que põe em conta os reparos de Luis Filipe, testemunha do acontecimento e
prática um modelo de realização estabelecido antecipadamente a preocupado com a verdade histórica» 17 • E Jacques Lethêve
partir de uma análise das obras-primas do passado - só pode e reproduz o programa extraordinariamente preciso de uma está-
deve manifestar a sua virtuosidade no terreno da técnica e da tua que devia ser erigida em Toulon para celebrar o Génio da
cultura histórica mobilizada. Os pintores académicos - formados Navegação: «Ela tem a mão direita na cana do leme que dirige a
na escola da cópia, instruídos no respeito pelos mestres do concha marítima sobre a qual a estátua está colocada. O braço
presente e do passado, convencidos de que a arte nasce da esquerdo dobrado pata diante segura um sextante, etc.». Do
obediência a cânones, às regras que definem os objectos legítimos mesmo modo, Landelle, um dos pintores mais fàmosos e mais
e a maneira legítima de os tratar - fazem incidir o seu trabalho venerados do século XIX, encarregado em 1859 de representar a
sobre o conteúdo literário, quando a escolha lhes é permitida, visita da Imperatriz à Manufactura de Saint-Gobain, não conse-
mais do que sobre o terreno da invenção propriamente pictórica. guiu que a maior parte das pessoas aceitasse ser modelo e, por
É significativo que eles próprios produzam cópias ou va- fim, teve de se sujeitar às alterações que a Imperatriz lhe
riantes pouco diferentes das suas obras mais bem sucedidas impôs :~
(trinta e duas no caso da Femme fel/ah de Landelle, que tivera O culto da técnica tratada como fim em si está inscrito no
grande sucesso no Salão de 1866) 15 , e as boas cópias são quase exercício escolar como resolução de um problema de escola ou
tão apreciadas como o original 11\ como testemunha o lugar de um tema imposto que, criado inteiramente a partir de uma
importante que elas ocupam nas colecções particulares, nos cultuta de escola, apenas existe para ser resolvido, frequente-
museus e nas igrejas·de província. O papel de executantes que mente mediante um enorme trabalho (Bougu.ereau era apelida-
lhes cabe vê-se pelo carácter de precisão das encomendas que lhes do de Sísifo). Ele é responsável por aquilo a que Gombrich
são feitas. «Horace Veroet, ainda que cumulado de favores chama «o erro do demasiado bem feito»: a perfeição glacial e a
régios, teve de aceitar a cada passo, exigências minuciosas. irrealidade indiferente de obras demasiado hábeis, ao mesmo
tempo brilhantes e insignificantes à força de serem impes-
soais 1", caracterizam essas pinturas acabadas de concurso, as
história, Hérold ou Ambroise Thomas: sobre este, «aluno de Lesueur, quais procuram menos dizer alguma coisa do que mostrar o
sucessor de A. Adam no Instituto, poder-se-ia dizet que foi um ,ábio, bem dizer, conduzindo assim a uma espécie de <<expressionismo
aplicando-lhe tudo o que a palavra comporta de grande /frudê11cia, de da execução», como diz Joseph Levenson a respeito da pintura
aNtoridade, de saber útil e de moderação. Ainda vivo, era jâ homem do
passado, enquanto que em volta dele, a arte se renovava com belos arrojos
chinesa .:o. O cunho da instituição está inscrito em todas as
(. .. ). Acerca dos seus envios de Roma, o Instituto formulou um juízo ao '' Ibid, id., p. 145.
qual nada haveria a mudar se fosse aplicado ao conjunto da sua obra: uma '' Jbid, id., p. 146-149.
melodia nova Jtm extravagância, e expmsiva sem exagero; uma harmonia sempre 1
~ Estas características encontram-se no campo da decoração ou do
correcta, uma instrumentação escrita com elegância e purezb (J. Combarieu e mobiliário, por exemplo, com todos os objectos apresentados ao Crystal
R. Dumesnil, Histoire de la MuJique, tomo UI, Paris, A- Colin, 1955, Palace em 1851, um tapete, sobretudo, que combinava o ilusionismo do
pp. 467-468). Não se pode conceber mais bela definição da academir:a modelado, feito para criar a profundidade, e a esrilização, em ve.: de res-
medi!)(ritas. E deve-se ler, na mesma obra (pp. 244-245) a descrição das peitar o plano liso da superfície (N. Pevsner, Pionem of Modem Design, from
cantatas coroadas nos concursos de composição musical que são brilhantes William Marrú to Walter Gropius, Harmondsworth, Midd!esex, Penguin
sobretudo pela sua extraordinária discrição. Books, 1960 (P ed. Londres, Faber and Faber, 1936).
15
Cf. J Harding, op. r:it., p. 9. ·,, Cf. J- R. Levenson, Modem China and itJ Confucean Past, Nova
~ J Lethêve, op. r:it., p. 184.
1
r 266 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 267

obras, mesmo naquelas que podem aparecer como as mais bem espectador» 23 • Consequência estilística do primado conferido
sucedidas (como o Thésêe reconnu par son pên, de Flandrin ou a deste modo ao «tema», privilegiamMse, tanto na execução como
ReconnaiJsance dD!ysses par Erydée, de Boulanger) em forma de na leitura, as regiões mais «falantes» do quadro, onde se
concessões ou de proezas conseguidas pela preocupação de concentra o interesse dramático, deixando de lado «essas regiões
agradar a um júri conhecido pela sua hostilidade a toda a sombrias» onde, como dizia Fénéon, «o tédio (do pintor) teria
originalidade e desejoso de achar provas visíveis da mestria das feito melhor não se demorar» ~ mas que Manet reabilitará.
técnicas ensinadas pela Escola. Mas a técnica, mesmo que seja Em resumo, esta pintura de lectfJT' é feita para ser lida mais
valorizada como proeza, permanece sempre subordinada à inten- propriamente do que para ser vista 24 . Ela exige uma decifração
ção expressiva e àquilo a qtie se chama o efeit0. A própria erudita, armada de uma cultura literária, precisamente aquela
dignidade do mestre, termo de um longo esforço da Academia que, antes da Revolução, se ensinava nos colégios dos jesuítas,
para promover o estatuto social dos pintores fazendo deles homens e depois, nos liceus, e que era dominada pelas línguas e pelas
instruídos, humanistas, é identificada com o momento intelec.:tua! literaturas antigas 25 , Deste modo se acha minimizada a distân-
do trabalho: «Ver a natureza.é uma formula que o mais pequeno cia que a pintura pura cavará, entre o artista e o «burguês que,
exame reduz quase às proporções de uma ninharia. Se se trata em relação ao conteúdo, pode apoiar-se nas humanidades, e em
apenas de abrir os olhos, qualquer recém-chegado p<x!e fazê-lo: relação à técnica, na familiaridade adquirida nos Salões sucessi~
também os cães vêem. Os olhos são sem dúvida o alambique vos desde 1816. Esta leitura letrada, atenta às alusões históricas
cujo recipiente é o cérebro, mas ê preciso sabermos servlt-nos e literárias e nisso muito chegada às interpretações escolares de
deles (, .. ). É preciso aprender a ver» ci. Este primado dado ao textos clássicos, procura a história na obra mas sem procurar
contei.ido e à exibição de uma cultura letrada, adequa-se perfeita- re-situar a própria obra na história, â maneira da percepção que
mente à estética do conteúdo, logo, da li.ri!Jllitldrk, que confere ao a pintura moderna exige. Ela arma-se de uma cultura histórica
quadro uma função transitiva, puramente referencia!, a de «um para ler a obra como uma história historicamente situada, mas
enunciado histórico que exige uma exposição clara» 2 !, como diz desconhece a percepção que se arma de um conhecimento
Boime. A obra deve comunicar qualquer coisa, um senrido trans~ específico da história dos estilos e dos processos para situar cada
cendente ao jogo puro das formas e das rntcs que têm em si píntura, pelo jogo das comparações e das distinções propria-
mesmas o seu significado, e deve dizê-lo claramente: a invenção mente pictóricas, na história específica da pintura. A eternida-
expressiva orienta-se para a procura dos gestos mais significativos, de em que se move o humanismo académico, consagrado ao
apropriados à valorização dos sentimentos <l,L<; personagens e para
a produção dos efeitos que melhor podem prender o olhar. Para os 23
J.C. Sloane, op. cit., P- 4.
pintores como para os críticos conservadores, «os valores literários 24 A metáfora da leitura, que voltou a estar em moda no mundo
são um elemento essencial da grande arte e a função principal universitário com a semiologia, corresponde perfeitamente à visão académica
do estilo é a de tornar estes valores claros e actuames para o do professor como /ector. Ela representa a antítese absoluta do ponto de vista
dos Impressionistas e, em especial, de Monet, para quem a percepção
artística ê sensação e emoção.
i 5 Os «aceliers» recomendavam a prática do livro dâssico de Pierre
Iorque, Doubleday and C.e 1964, (l.ª ed. Berkeley, University ofCalifornia Chomprê, Dktionnaire abrégê de la fable pour /'imelligence des poiM ti la
Press, 1958). connaissance des tableaux et des JtaJues dont les sujets som tirefs de la fable,
!i Decamps. citado por G. Cougny, «Le dessin à l"êcole maternelle»,
reeditado 28 vezes entre 1727 e 1855; o pintor não podia trabalhar sem
n. 0 l, pp. 30-3 L reunir previamente uma verdadeira documentação, rivalizando em precisão e
!! A. Boime, The Academy a'1d Frm(h pamfmK 111 tf,,: Nmd~·mh Cmt11ry,
em escrúpulo, como Paul Baudty ou Meissonier, com os hismriadores (1.
Londres, Phaidon, 197 l. Lerheve, op. cit. p. 20).
268 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 269
culto de objectos e de géneros intemporais, faz com gue a ideia com os seus rrajos cão intemporais como os seus costurnes 29 •
de raridade ligada à antiguidade esteja ausente do universo Vê-se, de passagem, que a afinidade ou a cumplicidade entre
académico, podendo um quadro de Horace Vernet atingir um esra pintura de ordem, hierática, calma, serena, de cores
valor superior ao de um Ticiano. modestas e doces, de nobres contornos e de figuras hirtas e
A história é um dos meios mais eficazes para pôr a idealizadas, e a ordem moral e social que se trata de manter ou
realidade à distância e para produzir um efeito de idealização e de restaurar, está longe de ser produto de uma dependência e
de espiritualização e, deste modo, paradoxalmente, de ererniza- de uma submissão direcras, nascendo, antes, da lógica específi-
ção 26. A historicização que sacraliza e des-realiza contribui, ca da ordem académica e da relação de dependência na indepen-
com o formalismo técnico que impõe as gradações entre as dência - e por meio desta - que a liga à ordem política 30 •
cores e o modelo contínuo das formas, para produzir a impres- A preocupação da lisibilidade e a busca da virtuosidade
são de exterioridade fria que as pinturas académicas dão: ela está, récnica conjugam-se para favorecerem a esrérica do «acabado»
com efeito, associada, por um lado, àquilo a que Schlegel que, como aresração de probidade e de discrição, preenche
chamava a «pantomima», ·quer dizer, o cani.cter teatral das ainda rodas as exigências e rodas as expectativas éticas inseriras
personagens ligado à preocupação de representar o irrepresenrá- na posição académica. Este gosto do acabado nunca se exprime
vel, «a alma», os senrimenros nobres e rudo o que entra na tão claramente como em presença de obras que, por não
«moral» e, por ourro lado, àquilo a que o mesmo Schlegel respeitatem o imperativo maior do rigor académico, como La
chamava «a capelista», quer dizer, a reconstrução desajeitada e Liberté de Delacroix, Les Baigneuses de Courber ou a 0/ympia de
demasiado visível do trajo e dos acessórios da época 27 . Os Maner, rêm de comum parecerem imundas fisicamente ou
cenários irreais das civilizações antigas podem desre modo moralmente, quer dizer, ao mesmo rempo, sujas e impúdicas,
consentir, pelos poderes combinados do exotismo e da consa- mas também fáceis, portanto, pouco honestas na sua intenção
gração cultural, numa forma de erotismo tipicamenre académi- - pois que probidade e limpeza são uma e a mesma coisa-,
ca (uma cena de bordel de Gérôme torna-se, pela força da por uma espécie de contaminação, no seu tema. Assim, Delé-
neutralização estilística e do título, num Interior grego) 28 • duze, lamentando que o nível da arte renha descido, escreve:
O Oriente, que desconhece as formas mais agressivas da «A substituição do desenho 'pelo colorido rornou :t carreira mais
civilização urbana, permite que se descubra o passado no fácil de percorrer» 31 • Propriedades propriamente estilísticas (o
presenre - e além disso, fornece um meio de evitar o tabu do acabado, o limpo, o primado do desenho e da linha) carregam-
vestuário moderno, como aliás o mundo camponês tradicional -se de implicações éricas por intermédio sobretudo do esquema
da facilidade que leva a apreender certos estilos pictóricos como
26
A respeito de um quadro de Robert Fleury, «Varsovie, 18 avril inspirados pela busca do sucesso rápido e com o menor custo,
1861», episódio dos massacres dos Polacos pelos Russos, Théophile Gautier propendendo assim a que se projecce na própria coisa pintada as
objecra: «Trata-se de um tema dificil de rrarar pela sua anualidade.
É preciso que os acontecimentos tenham o recuo da hisrótia para entrarem 19
O orientalismo aparece assim não só como uma solução estética de
facilmente na esfera da arte" (A. Tabarant, op. ât., p. 380). um problema estético mas também como produto de um inreresse especifico
27
M. Baxandall, jacques-LouiJ David et its Romantiqrm allemand.I,
pelos países orientais (interesse que em todo o caso muito deve à rradição
comunicação inédita, Paris, 1985. lireriria da viagem pelo Oriente).
28
Acerca da perversão erudita do erru académico, ver a análise de Luc 30
Os ingristas serão os grandes benefidãrios do manã que cai a partir
Boltanski, «Pouvoir er impuissance: projecr inreHecruel er st•xualiré dans !e de 1841 sobre a pintura «santa~, votada à glorificação da casa reinante e das
joumal d'Amiel», Actes tk la recberche en sâenm wdales, n." 'í-6, Novemhm
virrudes crisrãs (P. Angrand, qp. cit., p. 201).
de 1975, pp. 80-108 (sobretudo p. 97 e segs.). 1
-' Citado por A. Tabaranr, {)p. cit., pp. 145-302.
270 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 271

conotações sexuais de todas as condenações estéticas do «fâdl».


i1 des) 3J e, sobretudo, eles lamentam incansavelmente que nela
E é, sem dúvida, esta atitude ética que faz com que se falte o acabado. Manet julga fazer pinturas, quando o que ele
ultrapasse ou se ignore a antinomia desta estética. Com efeito, a faz é pincelar esboços, diz Albert Wolff em 1869 34 ; Manet,
virtuosidade técnica que é, com a exibição de cultura, a única diz um outro crítico em 1875, zomba do júri enviando esboços
manifestação admitida da mestria, só pode realizar-se negando- mal delineados 35 ; segundo um outro, em 1876, por simples
-se: o acabado é o que faz desaparecer todo o vestígio do incompetência, Maner não acaba o que começou 36; um outro
trabalho, da mani/attura (como a pincelada que, segundo lo- ainda, no mesmo ano, exproba-o por nada acabar 37 - e
gres, não deve ser visível, ou o roque, «qualquer que seja a Mallarmé, em 1874, defende-o desta acusação indefinidamente
maneira como é dirigido ou empregado, é sempre um sinal de repetida 3 8 . Se não se pode estar de acordo com Albert Boime
inferioridade em pintura», como escreve Delécluze em Le.s quando, ao retomar o argumento dos críticos do Salão, formula
Débats), ou mesmo da matéria pictôria (é conhecido o privilégio a hipótese (já sugerida por Sloane 39) que tem em visra negar a
conferido à linha em relação à cor que se torna suspeita pela revolução impressionista mostrando que ela teria essencial-
sua sedução quase carnal), em suma, de todas as manifestações mente consistido em constituir como obras acabadas os esboços
da especificidade do ofício; é ele que faz com que, no termo dos pintores acadêmicos 40 , pode-se no entanto tomar por base
desta espécie de realização autodestrutiva, a pintura seja uma as suas análises para descrever a significação de que, aos olhos
obra letrada como as outras (ut pictura poeJis), passível da mesma dos críticos do tempo, a mudança operada se pôde revestir.
decifração que a de uma poesia, Para a tradição académica, o esboço distinguia-se do quadro
Podemos, para aprofundar esta análise dos princípios como a impressãfJ que convém à fase primeira, privada, do
fundamentais da arte académica, valermo-nos das primeiras trabalho artístico, se distingue da invenção, trabalho de reflexão
críticas suscitadas peJa obra de Manet que, na sua novidade e de inteligência feito na obediência às regras e apoiado na
revolucionária, funciona como um analisador, obrigando os busca erudita, sobretudo histórica. Conhecendo-se todos os
críticos a explicitar as exigências e os pressupostos, quase valores morais que se prendiam ao ensino do desenho, e
sempre tácitos, da visão académica. Há, em primeiro lugar, sobretudo o apreço em que era tido o trabalho paciente e
tudo o que diz respeito à técnica: os críticos, convencidos de minucioso que conduzia a «uma exposição pictórica de aplica-
que Manet ignora tudo da arte de pintar, comprazem-se em ção laboriosa e diligente» 41 - - «Ensinavam-nos a acabar, diz
realçar as falhas, falando por exemplo de «ignorância infan- Charles Blanc, antes de nos ensinarem a construir» 42 -
til das bases do desenho» .n; eles percebem como sem vida
uma pintura que elimina os valores intermédios (o que valeu J.i J. Letheve, lmprmioniJtes et SymbolisttJ devant la pmu, Paris,

ao autor do Balcon o ser comparado com um pintor de pare- A. Colin, 1959, P- 53.
34
G. H. Hamilton, op. cit .. p. 139.
35
Ibid, id., p. 191- Cf. tambêm J. Letheve, lmprmionisttJ .. p. 73.
2 1
' G. H. Hamilton, Manet and his Cr-itio, New Haven, Yale Universi- - ~ G. H. Hami!ron, r,p. cit., P- 196.
ty Press, 1954, p. 72. Não se têm aqui em linha de conra as diferenças J' Ibid., id., p. 198.
38
enrre as reacções dos cridcos, que haveria 9ue relacionar com as diferenças S. Ma!larmê, «Le jury de peinture pour 1874 et M. Manet, 01111'"1
nas posições ocupadas no seio do campo da critica (como se mostram por Complites, Patis, Gallimard, (La Plêiade), 1974, p. 698.
· J. C. Sloane, op. ât .. p. 103.
19
meio das características dos lugares de publicação - jornais ou hebdomadâ-
40
rios - e dos próprios críricos). Tudo leva a pensar e, em particular, a A. Boime, op. rit., pp. 166 segs. («The Aesthetics ofrhe Sketch»).
41
composição dos grupos 9ue reunem artistas e crfricos mm as mesmas Ibid., id., p. 24.
42
convicções, que a homologia ê quase perfeita entre o espaço do5 rríticos e o C. Blanc, «Les artistes de mon temps», p. 108, citado por
espaço dos artistas (cf. J. C. Sloant, op. ât.). J. Lechêve, la Vie.. p. 20.
272 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 273

compreende-se que os membros da Academia não possam ter Manet, ao impor à sua obra uma construção cuja inrenção
visro no esrilo mais directo e mais imediato dos artisras não é a de ajudar à «leirura» de um sentido, condena a uma
independenres mais do que o sinal de uma educação inacabada, segunda decepção, sem dúvida mais fundamental, wn olhar
um subrerfúgio para se darem ares de originalidade poupando- académico acostumado a perceber a pinrura como uma narrariva,
-se à longa aprendizagem dada e sancionada pela Academia 43 . uma representação dramática de wna «hisrória» -•s. Assim, para o
De facro, a liberdade de exprimir na obra final, pública, a crítico da Gazeta eles Beaux-Arts de Julho de 1869, Paul Manrz,
impressão direcra, aré então reservada ao esboço, momento Maner tem indiscutivelmenre qualquer coisa para dizer, mas,
privado, e aré mesmo íntimo, aparece como uma rransgressão como se quisesse deixar o espectador na expecrariva, ele recusa-se
érica, uma forma de facilidade e de deixar-passar, uma falra à ainda a dizê-la. ·"'' A censura que foi feira tanta vez a Manet (como
discrição e à aricude de reserva que se impõem ao mestre a Courbet), de apresenrar temas «baixos» e, sobretudo, de os
1
académico. O acabado é com efeito aquilo que, ao idealizar, tratar de maneira objecriva, fria, sem fazer com que signifiquem
rorna impessoal e universal, quer dizer, universalmente apre- _alguma coisa, revela que se espera que o pinror exprima senão !li

l
senrável -- assim, a orgia dos Romains de la Décadence, pinrura uma mensagem, pelo menos wn senrimenro, elevado de preferên-
ausrera e muito censurada, condenada a suscitar o deleire ascé- cia, e que a decência esrética parricipe nwna espécie de decência
rico da decifração erudira e cuja forma, por força da frieza moral, pois que a hierarquia dos temas, como bem mostrou
récnica, anula de certo modo a substância. A ruptura com o Joseph Sloane, assenta numa avaliação da sua importância moral e
esrilo académico implica a ruprura com o mi/o de vida que ele espiritual «para a humanidade em geral» («um herói era superior 1
supõe e exprime. Compreende-se o diro de Courure a Manet, a a um banqueiro ou a um varredor, e ral facto supunha-se que o 1
1
respeiro do Buvettr d'Absinthe que este úlrimo queria apresenrar artista devia tê-lo pesenre no seu espíriro duranre o rrabalho»). !,
no Salão de 1851, onde foi recusado: «Um bebedor de absinro! Ora, encontra-se aqui a terceira censura, que faz ver o
Pode-se acaso fazer ral horror? Mas, meu pobre amigo, o bebe- liame entre a abolição das hierarquias e a arenção dispensada à
dor de absinto é você. Foi você quem perdeu o senso moral!» 44 . forma: a origem de todos os erros de Manet, diz Thoré em
1868, está numa espécie de panreísmo que não esrabelece
4
J Couture, que pela sua relativa liberdade em relação à Academia era diferença entre uma cabeça e uma chinela e que dá por vezes
!evado frequenremente a pesquisas próximas das dos artistas independentes, mais importância a um ramo de flores do que a um rosto de
sobretudo no que diz respeito à atenção conferida à impressão - especial- mulher (como Degas, em La Femme et /e Bouquet). Todas as
mente em matétia de paisagem ou de retrato - nunca fui capaz de «se
«falhas» realçadas pelos críticos têm por princípio a diferença
entregar inreirameme à improvisação nas suas obras definitivas, tendo sido
sempre retido por uma necessidade de moralizar» (A. Boime, Thoma1
Cout11re and the Edtctic Vision, New Have - Londres, Yale University Press,
1980, p. 76). Prisioneiro da estética do acabado que se lhe impunha quando também olhava para o mesmo quadro, abtiu o catálogo, viu o nome de
chegava à fase final do seu trabalho «ele identificava a liberdade com o Manet, ·encolheu os ombros e foi-se embora, murmurando: «Que grande
primeiro esboço, mas ficava desorientado quando era preciso projectá-lo em pouca-vergonha!» (G. H. Hami!ron, ()fi. cit., p. 148).
5
grande escala para fuzer dele a obra pública, oficial» (A. Boime, op. cit., ' Esta função de comunicação ou de narração pode ser posta ao serviço
p. 277); e a atenção prestada aos pormenores realistas que se vê nos retratos das significações políticas ou morais mais variadas. Compreende-se assim
pitorescos dos esboços, muito próximos de Courbet, apaga-se nos quadros que os vencedores do concurso aberto em 1848 para fazer a estátua da
diante da preocupação de elevação e de idealização pela alegoria que convêm República tenham sido artistas acadêmicos, preparados para produzirem
aos «grandes temas». obras portadoras de um sentido, qualquer que ele fosse (cf. T. J. Clark, Thf
44
J. LethCVe, La vie quQtidienne ... , p. 66. Duranty começava o seu Ab.wl11te B011rgeoi.r, ArfÚIJ and Politia in Frarice, 1848-1851, Londres,
artigo de 5 de Maio de 1870 no Paris:fournal contando que, enquamo Thames and Hudson, 1973, p. 67).
estava parado diante do quadro La /..e,;rm de muúque, um ourro visit111m· <jlK '~ G. H. Hamilton, ()p. dt., p. 135.
274 A INSTITVCIONALIZAÇÂO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 275

entre o olhar académico, atenro às significações, e a pintura assim os críticos e os escritores mais abertos à nova pínrura
pura, atenta às formas. Assim, Thoré observava que, no retrato teimarem em julgá-la como literaros acentos ao tema.
de Zola, a cabeça atraía pouco a atenção, perdida como estava
nas modulações coloridas'n_ Da mesma forma, Odilon Redoo
censura Manet, em 1869, por renunciar ao homem e às ideias O modelo: do nomos à instit11áonalização da anomia
em proveiro da técnica pura: uma vez que ele só se interessa
pelo jogo das cores, as suas personagens são desprovidas de Assim, a arte académica, essa arre de professores acostuma-
«vitalidade moral» e o rerraro de Zola é mais uma natureza dos a associar a sua dignidade e a sua actividade ranro à
morra do que a expressão de um ser humano. A perturbação afirmação da sua culrura histórica e literária como à manifesta-
chega ao auge perante quadros que, como L'ExémtJon de Maxi- ção da sua virtuosidade récnica, está inteiramenre organizada
milien, suprimem roda a forma de drama e fazem desaparecer tendo em vista a comunicação de um sentido, e de um sentido
1
roda a espécie de relação narrativa, psicológica ou histórica, moralmente, isto é, socialmenre edificante, portanto, hierár-
entre os objectos e, sobrer.udo, as personagens, ligados assim quico; ela esrá sujeira a regras explíciras, a princípios codifica-
apenas por relações de cores e de valores. A insuportável dos que foram retirados ex post, pelo ensino e para o ensino, de
insignificância conduz quer à condenação indignada, quando é um corpm academicamente definido de obras do passado (as que
percebida como produro de uma intenção, quer à projecção o famoso quadro de Delaroche desrinado ao Hemiciclo da
arbirrária de um sentido diferenre ~H. Assim, Castagnary, não Escola de Belas-Artes de Paris arrola e enaltece). Preocupada
obstanre ser conhecido pela sua acção em prol das obras novas e acima de tudo com a legibilidade, ela institui como língua
dos jovens artisras, quis ver em La Dame Blanche de Whist!er oficial o código ao mesmo rempo jurídico e comunicativo que
«o amanhecer da noiva», «o momenro perrurbante em que a se impõe tanto à concepção como à recepçã~. Gestos codifica-
jovem se inrerroga e se admira por já não reconhecer em si dos: braços levanrados, mão aberta com os dedos crispados para
mesma a virgindade da noite precedente», acabando por exprimir o desespero, o dedo indicador ameaçando para signifi-
comparar esta obra a La Cmche Ca.rsée de Greuze e inter- car a condenação, a palma da mão aberra para dizer a surpresa
pretando-a como uma alegoria - e rudo isto por não querer ou a admiração, erc. Símbolos convencionais: o céu é azul, as
acredirar no pinror, que lhe dissera ter querido fazer «uma esrradas cinzenras, os campos verdes, a pele cor de «carne»,
proeza com a sua arre de pintor, pincelando brancos sobre erc. Composição de uma rígida perspectiva, Definição estereo-
brancos» ~9 • Do mesmo modo, a respeiro do Balcon de Maner, o ripada da beleza, através do ideal da regularidade das feições,
mesmo crírico pergunra se as duas mulheres representadas são por exemplo.
duas irmãs, ou se se trara da mãe e da filha, achando que é uma Através da Academia e dos seus mestres, o Estado inipõe o
contradição que uma esteja sentada a olhar para a rua enquanto princípio de visão e de divisão legírimo em matéria de repre-
a ourra enfia as luvas como se estivesse para sair 50 . E vemos senração figurada do mundo, o nomos artísrico que rege a
produção das imagens legítimas (por meio da produção de
~, Ibid., id. p. 124. produrores legitimados para produzirem esras figurações). Este
-1s Estas duas reacções podem ser observadas quando se apresentam a princípio é, ele próprio, uma dimensão do princípio fundamen-
pessoas pouco cultas fotografias que reunem personagens sem ligação social tal de visão e de divisão legítimo que o Estado, detentor do
declarada ou que figuram objectos insignificantes. monopólio da violência simbólica legírima, rem o poder de
9
• Castagnary, Salcns 1857-1870, Paris, Bibliothêque Charpenticr,
1892, p. 179. impor universalmenre nos limires da sua alçada, O monopólio
ó<> Ibid., id., p. 365. da nomedção - acro de designação criadora que faz existir
1

276 A INSTITUCIONAUZAÇÃO DA ANOMIA CAPÍTULO IX 277

aquilo que ela designa em conformidade com a sua designação quer dizer, a reconhecer, no duplo sentido de marcar e de
- toma, ao aplicar-se ao universo da arte, a forma do consagrar, os membros legítimos do corpo.
monopólio estatal da produção dos produtores e das obras Para tais corpos, cujo capital simbólico e, em consequên
legítimas ou, se se quiser, do poder de dizer quem é pintor e eia, cujo capital económico não podem acomodar-se a uma
quem o não é, o que é pintura e o que a não é. Concretamente, grande afluência e a uma grande dispersão, a ameaça vem do
a produção dos produtores de que o Estado, por meio das número - quer o numerus clauws de direito ou de fucto venha a
instituições encarregadas de controlar o acesso ao corpo, detém desaparecer, substituindo a concorrência limitada a wn peque-
o monopólio, roma a forma de um processo de certificação ou, no número de eleitos (por exemplo, as encomendas do Estado
se se prefere, de consagração pelo qual os produtores são vão para uma escassa minoria de pintores) por wna concorrência
instruídos, aos seus próprios olhos e aos olhos de rodos os sem limites; quer os produtores em excesso - quer dizer, todos
consumidores legítimos, como produtores legítimos, conheci- aqueles que as instâncias que controlam a entrada no corpo (pot
dos e reconhecidos por todos. Deste modo, o Estado, à maneira meio do concurso) excluem do estatuto de produtor e, por este
de um banco central, cria os criadores garantindo o crédito ou a meio, da produção - consigam ptoduzit o seu próprio mercado
moeda fiduciária que representa o título do pintor autorizado. e, pouco a pouco, as suas próprias instâncias de consagração.
No trabalho simbólico, que a Academia deve realizar de De facto, o monop6lio académico assenta em toda wna rede
modo contínuo para impor o reconhecimento do seu próprio de crenças que se reforçam mutuamente: crença dos pintores na
valor e do valor simbólico e económico dos produtos que ela legitimidade do júti e dos seus veredictos, crença do Estado na
garante e para instaurar a crença de que a grande pintura é a do eficácia do júri, crença do público no valor da marca académica
presente, ela dispõe de uma vantagem considerável em relação (análoga, na sua ordem, ao efeito da chancela do costureiro)
a instituições como o Art Jo11rnal em Inglaterra. Com efeito, a para cujos efeitos ela contribui (sobretudo em matéria de !I,
Academia pode - quando se trata de conjurar a ameaça que preços). São crenças cruzadas que se desmoronam pouco a '1
faria pesar sobre o seu monopólio (e, por este meio, sobre os pouco, arrastando para a ruína o capital simbólico que elas
1
preços extraordinárim; atingidos pelos pintores académicos) fundamentam. Não é fácil determinar quais foram os mecanis-
toda a espécie de arte ou de cânone artístico diferentes e mos decisivos que levaram a esta espécie de bancarrota do
sobretudo a pintura romântica a qual, como nota Francis banco central do capital simbólico em matéria de arte. Pode-se
HaskeH, retoma um certo estilo do século XVIII, Watteau suspeitar que as exposições isoladas ou colectivas, as críticas
sobretudo, e professa a mesma indiferença pela Antiguidade - incansáveis dos artistas e dos críticos contra o júri ou as
controlar a produção dos produtores legítimos e excluir os modificações da sua composição tenham dado, como diz Jac-
modelos heréticos, por meio da Escola de Belas~Artes, onde os ques Letheve, «golpes sem remédio na confiança da opinião».
seus membros ensinam, e dos concursos como o Prémio de Tratando-se de uma instituição que, em última instância,
Roma, por ela organizados; ela pode em qualquer caso impedir- retira a sua autoridade da garantia do Estado, o «golpe» fatal é,
-lhes o acesso ao mercado, por meio do júri por ela designado, em todo o caso, aquele que lhe é dado pelo Estado: a criação,
visto que tem o poder de decidir sobre a admissão ao Salão que em 1863, do ?alão dos recusados que surgiu como uma desa-
torna o pintor acreditado e lhe assegura uma clientela. Esta provação do júri de admissão e da Academia de Belas-Artes,
lógica da defesa do corpo é a de todos os corpos (juristas, «ferida na sua dignidade de guardiã dos verdadeiros, dos únicos
médicos, professores de ensino superior, etc.) cuja permanência princípios do belo» 51 , e, em Junho do mesmo ano, a concen-
no privilégio depende da sua capacidade de mantt•r o rnntrok
sobre os mecanismos apropriados a assltmir a sua rqinidw.;:io, ' J. Lerheve, l111p-re.ui011J1te1 ... , p~ 29.
278 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANOMIA

tração nas mãos da administração (quer dizer, do Ministério da


r CAPITULO IX

pelo menos na ordem da arte que se vai fazendo, elimina


qualquer referência a uma autoridade suprema, capaz de resol-
279

Casa do Imperador e das Belas-Artes) de todos os poderes sobre


a organização da vida artística, e, enfim, em Novembro de ver .em Ultima instância: o monoteísmo do nomoteta central
1884, o decreto que retirou à Academia o poder de dirigir o cede·()_ lugar à pluralidade dos cultos concorrentes dos múlti-
ensino na Escola de Belas-Artes e na vila Médicis. plos ·""deuses incertos 5 ·'.
Sabendo-se que toda a lógica da instituição acadêmica Para aproximar da intuição este modelo muito geral e para
supunha a organização da concorrência, compreende-se que o fazer:. sentir quanta dificuldade podia apresentar a conversão
afluxo dos pretendentes cada vez mais numerosos - que o seu co!ectiva que esta revolução simbólica supunha, bastará lem-
próprio sucesso tinha contribuído para atrair a ela entre os brar o discurso pronunciado pelo Conde Walewski, ministro de
produtos de um ensino secundârio em rápida expansão - , Estado, na cerimónia da distribuição dos prémios do Salão de
tenha criado as condições prôprias para favorecer o sucesso de 186 L
uma contestação• revolucionária 52 : a proliferação dos produto- «Ouvi invocar as liberdades da arte, os direitos da invenção
res em excesso favorece o desenvolvimento, fora da insriruição, e do gênio desconhecidos. A exposição, tal como é, não é
depois contra ela, de um meio arristico negativamente livre ~ hastante importante? Escrevamos, pot um momento, por cima
1
a boémia ~, que será ao mesmo tempo o laboratório social do da porta deste Palácio da Indústria: Todo o pintor, todo o
t:scultor, todo o gravador, tem o direito de ser admitido ..

l
modo de pensamento e do estilo de vida caracteristicos do
artista moderno e o mercado em que as audácias inovadoras em Mas, ondt: começa o pintor, o gravador, o estatuário? Se cada
matéria de arre e arte de viver encontrarão o mínimo indispen- um for livre de o decidir à sua vontade, todas as falsas vocações
sável de gratificações simbólicas. Este processo, cuio pomo de a si mesmas passarão, de imediato, diploma, rodos os erros do
partida está sem dúvida no efeito numérico, conduz à instaura- novato e do homem experiente virão a público. É um dever
ção de um estado crítico da instituição favorável à ruptura daqueles que têm por missão velar pelo movimento das letras e
crítica com a instituição e, sobretudo, com a institucionaliza- das artes lutar contra os falsos deuses, mesmo quando estão
ção bem sucedida desta ruptura. O universo de produtores de apoiados numa popularidade efêmera e são adulados por um
obras de arte, deixando de funcionar como ,;parelho hierarquiza- ptiblico enganado ... » s;
do controlado por um corpo, institui-se pouco a pouco como
campo de concorrência pelo monopólio da legitimidade artística:
ninguém pode, para o futuro, arvorar-se em detentor absoluto
do nomos, mesmo que todos tenham pretensões a tal título.
A constituição de um campo é, no verdadeiro sentido, uma
instit11cionalização da anomia. Revolução de grande alcance que,
• ~.Mise en quesdon» no texto original (N. T. ).
" E preciso ter cuidado em não esquecer, como fn:quentemi:nte
acontece, que a eficácia real dos facrores morfolôgicos sô se define em " A abolição de todo o lugar central de certificação toma, em cen:o
relação com os constrangimentos especificos de um universo social determi- sentido, mais difícil o trabalho revolucionâtio e a tomada do Hotel Massa,
nado, e que, por consequência, sob pena de se constituírem t-sres fac tores em Maio de 1968, por um grupo de escriwres, foi vista, de imediato, como
(como em outros casos os factores têcnicos ou econômicos) nn rausas quast: ridícula ou patética, como manifestação deslocada de uma intenção «revo!u-
naturais, na sua génese e na sua operação estranhas à hisnirii1, !: pn:riso nn
óonâria» capaz. de trilhar as vias especificas da sua realização.
cada caso proceder, como se faz aqui, â anâlise prfvi.1 do t·sp,1~0 snd:il no
"A. Tabaram, op. át. p. 285.
qual eles intervêm.
\

CAPÍTULO X

Génese histórica de uma estética pura

Comecemos com um paradoxo: acontece que alguns filóso-


fos se interrogam sobre aquilo que permite distinguir as obras
de arte das simples coisas (penso em Arthur Damo) e não
hesitam em sugerir, com uma audácia sociologista que nunca
permitiriam a um sociólogo, que o princípio dessa diferença
ontológica deve ser procurado na instituição ou, por outras
palavras, que o objecto de arte é um artefacto cujo fundamento
só pode ser achado num artworld, quer dizer, num universo
social que lhe confere o estatuto de candidato a apreciação
estética 1 • Mas nunca aconteceu (embora um ou outro dos
nossos pós-modernos não tardará a fazê-lo) que um filósofo
verdadeiramente «digno desse nome» se interrogue sobre aqui-
lo que permite distinguir um discurso filosófico de um discurso
vulgar. Esta questão surge com particular acuidade quando,
como neste caso, o filósofo, ou seja, aquele que certo philos11phi-
cal world designa e reconhece como tal, concede a si ptóprio um
discurso que ele recusaria, pondo-lhe o rótulo de sociologismo,
a todo aquele que, tal como o sociólogo, não faz parte da
instituição filosófica 1 . A dissimetria radical que a filosofia
institui assim na sua relação com as ciências do homem
fornece-lhe, entre outras coisas, um meio infalível de disfarçar
aquilo que ela lhes vai pedir. Com efeito, penso que a filosofia
dica pós-moderna (por um efeito de rotulagem até agora
reservado ao artwtJr!d), não faz mais que retomar em forma de 1:,.
negação (refiro-me à maneira da Verneimmg freudiana) não só
1
A. Damo, ~The Artworld», jrJf/rnal ,;f Phi!w1phy, vol. 61, 1964,
pp. 571-584; G. Dickie, Art and the Amhetic, lthaca, 1974.
"Cf. P. Bourdieu, The Phi/01ophical Bstab!ishement, in: Philwiphy i11
Pr,111ce Today, A- Momcfiore, cd., Cambridge, Cambridge University Press,
198'), pp. I-8.
/
282 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA CAPiTULO X 283

certos saberes adquiridos das ciências sociais, mas também a de procurar o fundamento da atitude esrética e da obra de arte
filosofia hisroricisra inscrita na prárica dessas ciências. onde ele realmente se encontra, quer dizer, na história da
A apropriação disfarçada pela negação do que se rerira âs instituição artística.
ciências sociais é uma das mais poderosas estratégias que a
filosofia jamais utilizou contra aquelas ciências e contra a
ameaça de relativização que impendia sobre ela. O modelo A análise da essênaa e a ilusão do absoluto
dessa apropriação é indiscutivelmente a onrologização do histo-
ricismo que Heidegger efectuou 3 . É esta mesma estratégia de O que é digno de nora na diversidade das respostas que os
jogo duplo quê permire a Derrida ir buscar à ciência social, filósofos têm dado à quesrão da especificidade da obra de arte, é
contra a qual ele se inimrge, alguns dos seus instrumenros mais mais a ambição que lhes é comum (à excepção • talvez de
típicos de des-consrrução. Assim, ao mesmo tempo que opõe W ittgenstein) de apreender uma essência erans-histórica ou
ao esrruturalismo, e à noção «estática» de esrrurura, uma an-histórica, do que estarem de acordo quase sempre em
variante « pós-modernizada» da crítica bergsoniana dos efeitos insistirem na ausência de função, no desapego, na gratuidade,
redutores da inteligência científica, Derrida pode dar-se ares de etc''. O pensador puro de uma experiência pura da obra de arte
radicalismo ao virar conrra a crítica literária rradicional uma --- ao tomar como objecro de reflexão a sua própria experiên~
crítica das oposições binárias que, através de Levi-Strauss, eia, que é a de um homem culto de uma determinada socieda-
remonta à mais clássica análise das «formas de classificação» de, sem tomar como objecto a hisroricidade da sua reflexão e a
caras a Durkheim e Mauss 4 • Mas não se pode verdadeiramente do objecto a que ela se aplica - consrirui, sem saber, uma
ganhar em rodas as fremes e a sociologia da insrituição arrísri- experiência parricular em norma rrans-histórica de qualquer
ca, que o «des-consrrutor» pode realizar unicamenre em forma percepção arrística. Ora, esta experiência, no que ela tem
de negação, nunca vai até ao termo da sua lógica: a critica da aparentemente de mais singular (e esse senrimento de unicida-
instituição que essa sociologia implica é uma meia-crítica, de contribui, sem dúvida, em muito para lhe dar valor), é uma
própria para provocar as deliciosas comoções de uma revolução instituição que é produro da invenção histórica e cuja necessi-
em branco 5 • Além disso, ao fazer crer numa ruptura radical dade e razão de ser só podem ser realmente apreendidas
com a ambição de apreender essências a-históricas e ontologica- mediante uma análise propriamente histórica, a única capaz de
mente fundamentadas, essa crítica pode levar a que se desanime explicar ao mesmo tempo a sua natureza e a aparência de
' Cf_ P. Bourdieu. ~L-ontologie po!itiyue de Martin Heideg1ser», Actes ~ Sem evocar rodas as definições que são apenas variantes da análise
t!e la rtchm-he ett sâettm wâa/eJ, 5-6, Novembro 1975. pp. 183-190 e Die kantiana (como a que SrraWson propõe - a obra de arte rem como função o
p,J/itárhe 011to/,,gie Af.irti11 lleidey_!(.m. Frnncforre, Syndikat. 1976. não ter função. ·- cf. «Aesthetlc Appraisal and Works of Art» in Freedom
~ Seria necessário mostrar. pda mesma lií.f!ica, como Nietzsche forne- and Rmntment, Londres. 1974, pp. 178-188), podemos comentar-nos com
ceu a Foucau!t os conceiros-chave (estou a pensar por exemplo na noção de relembrar um exemplo de idmltipus da constituição em çssênóa, por meio
genealogia funcionando como substituto eufemístico da histôria social) que de uma enumeração das suas características, de uma experiência da obra de
permitiram que de accirnsse e fizesse aceitar em forma de negação modos de arre situada de forma muiw evidente no espaço social e no tempo histórico:
pensamento dpiros Je uma sociologia genêtirn. e, portamo. sacrificasse sem segundo Harold üsborne, a atitude estêtica caracter/ia-se pda concentração
infringir as pr:iticas das ciênciru. sociais. da atençãc. (ela separa - frames apatt - o objecto percebido do seu meio
:, Já mostrei anteriormente, a propósito da análise que Derrida consa- envolvente), pelo pôt .;m suspenso as actividades discursivas e analíticas (ela
gra à critica da faculdade de julgar, como e porquê a «dcs-construçiio» fim a ignora o comexto sociolôgico e histôrico), pelo desinteresse e desapego (ela
meio caminho (d. P. Boun:lieu, «Elements pour une niriqut: ·vulgain:,· p<ie de parte as preocupações passadas e futuras), pela indiferença para com a
des critiques 'putes·,,, in La tliJtiwtirm. Paris. Mim,ir, l'J'l'J. \"'/'\"< existência do objnw (d. H_ Osborne. The art of Appreciation, Londres.
pp. 578-58.~). Oxford llnivnsiry Pt("S~. !')70).
284 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA CAPÍTULO X 285
universalidade que ela dá àqueles que a vivem ingenuamente, a as proptiedades bem específicas de uma experiênoa que e
começar pelos filósofos que a submetem â sua reflexão, igno- produto do privilêgio, quer dizer, de condições de aquisição
rando as suas condições soâaiJ de possibilidade. excepoona1s.
A compreensão desta forma especial de relação com a obra Aquilo que a anâlise ao-histórica da obra de arte e da
de arte que é a compreensão imediata da familiaridade implica experiência estética apteende na realidade ê uma instituição
uma compreensão do analista por ele prôprio: este não pode que, como tal, existe por assim dizer duas vezes, nas coisas e
consagrar-se nem à simples análise fenomenológica da experiên- nos sérebros. Nas coisas, em forma de um campo artistico,
cia vivida da obra - na medida em que esta experiência universo social relativamente autónomo que é pt0duto de um
assenta no esquecimento activo da história que a produz - , lento processo de constituição; nos cérebros, em forma de
nem à análise da linguagem correntemente utilizada para a atitudes que se foram inventando no ptóprio movirriento pelo
exprimir - na medida em que éssa linguagem tambêm ê pro- qual se inventou o campo a que elas imediatamente se ajusta-
duto da des-historicização. Onde Durkheim dizia «o incons- ram. Quando as coisas e os cêrebros {ou as consciências) são
ciente é a história», poder-se-ia escrever «o a priori é a concordantes, quer dizer, quando o olhar é produto do campo a
história». Só mobilizando todos os recursos das ciências sociais que ele se refere, este, com rodos os produtos que propõe,
se pode levar a bom termo esta espécie de realização historicista aparece-lhe de ime<liaro dotado de sentido e de valor. De tal
do projecto transcendental que consiste na reapcopriação, por modo que, para que venha a ser posta a questão absolutamente
meio da anamnese histórica, do produto de todo o trabalho extraordinária do fundamento do valor da obra de arte, geral-
histórico cuja consciência ele produz a cada passo, quer dizer, mente admitida como evidente (taken for granted), é necessária
neste caso especial, as atitudes e os esquemas classificatôrios uma experiência a qual, para um homem culto, é absoluta-
que são a condição da experiência estética tal como ê descrita mente excepcional, embora seja, pelo contrário, absolutamente
ingenuamente pela análise de essência. vulgar, como prova a investigação empírica 7, para todos aque-
Com efeito, o que a análise reflexiva esquece é que o olhat les que não tiveram o ensejo nem a oportunidade de adquirir as
do amador de arte do sêculo XX é um produto da história, atitudes objectivamenre exigidas pela obra de arte. Está neste
embora surja a si próprio sobre a aparência de dom da naturei.a. caso Damo, ao descobrir, após a visita à exposição das caixas
Assim, pelo lado da filogénese, o ólhar puro, capaz de apreen- Brillo de Varhol na Stable Gallery, o carácter arbitrário, ex
der a obra de arte como ela exige que seja apreendida, em si instituto, como diria Leibniz, da imposição do valor feita pelo
mesma e por si mesma, enquanto forma e não enquanto campo por meio da exposição num local consagrado e consa-
função, é inseparável do apatecimento de produtores" animados grante.
de uma intenção artística pura, ela prôpria indissociável da A experiência da obra de arre como imediatamente dotada
emergência de um campo artístico autónomo, capaz de pôr e de de sentido e de va1ot é um efeito da concotdância entre as duas
impor os seus próprios fins contra as exigências externas. Mas,
pelo lado da ontogénese, esse olhar está associado às condições
'Acerça do desconcerto, do embaraço atê, que a falta do mínimo
de aquisição extremamente particulares, como a frequentação domínio dos instrumentos de percepção e de apret:iação, e em particular dos
desde cedo dos museus e a exposição aberta ao ensino escolar e rôtulos e das referências como nomes de gêneros, de escolas, de êpocas, de
à skolé que ela implica - o que significa, diga-se de passagem, artistas, etc., provoca nos visitantes de museus culturalmente mais despro-
que a análise de essência quando omite essas condições, univer- vidos, poderâ consultar-se P. Bourdieu e A. Darbel. L"Am011r de tart. Le!
musêes tfart europêens et /mr pub/;c. Paris, Minuit. 1966; P. Bourdieu.
salizando dessa forma o caso particular, institui taótamente em
«Elemems d·une thêorie socio!ogique de la perception ardstique». Re1·11e
norma universal de quakpier prâtica l]UC pn:tnuk sn rst{:t il a lnternatiMale des Jáences sm:iales, XX, 4, 1968, pp. 640-664.
286 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA CAPÍTUW X 287

faces da mesma instituição histórica, o habitm culto e o campo Em suma, a questão do sentido e do valor da obra de arte, tal
artístico, que se fundem mutuamente: dado que a obra de arte como a questão da especificidade do juízo estético e rodos os
só existe enquanto tal, quer dizer, enquanto objecro simbólico grandes problemas da estética filosófica só podem achar a sua
dotado de sentido e de valor, se for apreendida por espectadores solução numa história social do campo associada a uma sociolo-
dotados da atitude e da competência estéticas tacitamente gia das condições da constituição da atitude estética especial
exigidas, pode dizer-se que é o olhar do esteta que constitui a que o campo exige em cada um dos seus estados.
obra de arte como tal, mas com a condição de ter de imediato
presente no espírito que só pode fazê-lo na medida em que é ele
próprio o produto de uma longa convivência com a obra de A génese do campo artístico e a invenção do olhar puro
arte 8 • Este círculo, que é o círculo da crença e do sagrado, é
também o de qualquer instituição que só pode funcionar se for O que é que faz com que a obra de arte seja uma obra de
instituída ao mesmo tempo na objectividade de um jogo social arte e não uma coisa do mundo ou um simples utensílio? O
e nas atitudes que levam a entrar no jogo, a interessar-se por que é que faz de um artista um artista, em oposição a um
ele. Os museus poderiam escrever no seu frontão - mas não há artífice ou a um pintor de domingo? O que é que faz com que
que o fazer de tal forma isso é evidente: «Que ninguém entre um bacio ou uma garrafeira expostos num museu sejam obras
aqui se não for amador de arte». O jogo cria a illusio, o de arte? Será o facto de estarem assinados por Duchamp, artista
investimento no jogo do jogador avisado, dotado do sentido do reconhecido (e antes de mais como artista), e não por um
jogo, que habituado ao jogo, pois que é feito pelo jogo, joga comerciante de vinhos ou um latoeiro? Ora não será simples-
o jogo e, por esse meio, o faz existir. O campo artístico, pelo mente passar da obra de arte como feitiço para o «feitiço do
seu próprio funcionamento, cria a atitude estética sem a qual o nome do mestre», como dizia Benjamin? Por outras palavras,
campo não poderia funcionar. Em especial, por meio sobretudo quem criou o «criador» como produtor reconhecido de feitiços?
da concorrência que opõe todos os agentes investidos no jogo, E o que é que confere a sua eficácia mágica ou, se se preferir,
ele reproduz incessantemente o interesse pelo jogo, a crença no ontológica, ao seu nome, cuja celebridade está na medida da
valor daquilo que está em jogo. Para dar uma ideia desse sua pretensão em existir como artista, e à imposição desse
trabalho colectivo e dos inúmeros actos de delegação de poder nome o qual, como a marca do grande costureiro, multiplica o
simbólico, de reconhecimento voluntário ou forçado através dos valor do objecto em que está posto (que é tudo o que está em
quais se gera esse reservatório de crédito onde, Bebem os jogo nas querelas de atribuição e faz o poder dos peritos)? Onde
criadores de feitiços, bastará evocar a relação entre os diferentes reside o princípio último do efeito de rótulo, ou de nomeação,
críticos de vanguarda que se consagram como tais consagrando ou de teoria - palavra esta particularmente adequada visto que
obras cujo valor sagrado é dificilmente apreendido pelos ama- se trata de ver, theorein, e de fazer crer - que, ao introduzir a
dores cultos ou até pelos seus concorrentes mais avançados. diferença, a divisão, a separação, produz o sagrado?
Estas questões são absolutamente análogas, na sua ordem,
8
A anâlise sociolôgica perffiite escapar à alternativa do subjenivismo e às que Mauss punha quando, no seu Essai sur la magie, ao
do objenivismo, rejeitar o subjectivismo das teorias de consciência estética interrogar-se acerca do princípio da eficácia mágica, se viu
(aesthetisches Bewusstsein} que reduzem a qualidade estêtica de uma coisa obrigado a passar dos instrumentos utilizados pelo feiticeiro
natural ou de uma obra humana a um simples correlato de uma atirnde
deliberada da consciência, que se coloca diante da coisa numa atitude que
para o próprio feiticeiro, e deste para a crença dos seus clientes
não ê reôrica nem prática, mas purnmeme contemplativa s1:m r,1ir, n1mn o e, gradualmente, para todo o universo social no interior do
Gadamer de Wahrheit llfNI Merhmle, numa onwlo_1<ia ,l,i ohr,1 ,k arte qual se elabora e se exerce a magia. Deste modo, nessa
288 H!STÜRIA DE UMA ESTÊTlCA PURA CAPÍTULO X 28,

regressão para a causa primeira e para o fundamento último do mágicos reconhecidos ao artista moderno nos esrados mal'
valor da obra de arre, é necessário parar. E, para explicar esta avançados do campo.
espécie de milagre da rransubsranciação que está na origem da Não se trata apenas de exorcizar aquilo a que Benjamir,
existência da obra de arre e que, comummente esque~ido, é chamava o «feitiço do nome do mesrre» por meio de um;'
bruralmenre trazido ,l menre pelas manifestações de força à simples inversão sacrílega e um tanro pueril -- quer se queirn
maneira de Duchamp, ê necessârio subsriruir a questão onroló- quer não, o nome do ITl.esrre é bem um feitiço. Trara-se,
gica pela questão histórica da gênese do universo em cujo seio sobrerudo, de descrever a emergência progressiva do conjunto
se produz e se reproduz incessantemenre, numa verdadeira das condições sociais que possibilitam a personagem do artista
criação continua, o valor da obra de arre, quer dizer, o campo como produror desse feitiço que é a obra de arre, isto é,
artístico. descrever a consrituição do campo artístico (no qual esrão
A análise de essência do filósofo apenas regista o produto da incluídos os analistas, a começar pelos hisroriadores da arre,
análise de essência real que a própria história realiza na mesmo os mais críticos) como o lugar em que se produz e se
objecrividade, arravês do processo de autonomização no qual - reproduz incessanremenre a crença n<) valor da arte e no poder
e, também, pelo qual -- se institui progressivamente o campo de criação do valor que ê próprio do artista. O que leva a
arrísnco e se criam os agentes (arristas, críricos, historiógrafos, arrolar não só os índices de autonomia do arrisra (aqueles que a
conservadores, etc.), os técnicos, as caregorias e <>s conceiros análise dos comraros revela, como o apar<x:imento da assinatu-
(géneros, maneiras, êpocas, esrilos, etc.) característicos desse ra, da competência especifica do artista ou do re,:;urso, em caso
universo. Noções que se tornaram tão evidentes e tão banais de conflito, à arbitragem dos pares, etc.), mas também os
como as de aq_jjra e de «cri~gor», assim como as próprias índices de autonomia do campo tais como a emergência do
palavras que as designam e as constituem são produro de um conjunto das insriruições específicas que condicionam o funcio-
longo e lenro rrabalho histórico. É isro que, muiras vezes, os namento da economia dos bens culturais: locais de exposição
próprios historiadores da arre esquecem quando se inrerrogam (galerias, museus, erc.), instâncias de consagração (academias,
acerca da emergência do artista no sentido moderno do termo salões, erc ), insrândas dt: reprodução dos produtores e dos
sem por isso escaparem â armadilha do «pensamento essencial,'. consumidores (escolas de Bdas-Arres, etc.), agentes especializa••
inserira no uso, consranremenre ameaçado pelo anacronismo, dos (comerciantes, críticos, historiadores da arte, coleccionado-
de palavras historicamente inventadas, por conseguinte data- res, etc.), dorados das atitudes objecrivamenre exigidas pelo
das. Por não se pôr em causa tudo aquilo que se encontra campo e de caregorias de percepção e da apreciação específicas,
tacitamente envolvido na noção moderna de artista, particular- irredutíveis às que rêm curso normal na exisrência corrente e
mente a ideologia profissional <lo «criador» incriado que se foi que são capazes de impor uma medida específica do valor do
elaborando ao longo do sêculo XIX, e por não se romper com o arrisra e dos seus produtos. Enquanro a pintura for medida em
objecto aparente, quer dizer, o arrisra (ou, por outro lado, o unidades de superfície ou em campos de rrabalho, ou pela
escriror, o filósofo, o letrado), par,1 considerar o campo de quanridade e pelo preço dos materiais urilizados, ouro ou
produção de que é produto o artista, socialmente insriruído silicato, o artista pintor não difere radicalmenre de um pinror
como «criador,,, os historiadores da arte não podem substituir de paredes. Por isso, entre todas as invenções que acompanham
a interrogação ritual acerca do local e do momento do apareci- a emergência do campo de produção, uma das mais importan-
menro da personagem do arrista (em oposição ao arrífice) pela tes é, sem dúvida, a elaboração de uma linguagem arrísrica:
questão das condições económicas e sociais da rnnsrinm:.;ão de antes de mais, uma maneira de nomear o pintor, de falar dele,
um campo artístico baseado na <·rc.'nÇa nos podnn {111ase da natureza do seu rrabalho e do modo de remuneração desse
290 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA CAPÍTULO X 291

rrabalho, arravés da qual se elabora uma definição aurónoma do diferenres), que se opõem em luras nas quais esrá em jogo a
valor propriamente arrístico, irredurível, enquanto tal, ao valor imposição de uma visão do mundo, e também do. mundo da
estriramenre económico; e rambém, pela mesma lógica, uma arte, e que colaboram por meio dessas lutas na produção do
maneira de falar da própria pintura, da técnica picrórica, com valor da arte e do arrisca.
palavras apropriadas, muiras vezes pares de adjectivos, que Se é esra a lógica do campo, então compreende-se que os
permirem que se exprima a arte picrórica, a manifattura, e aré conceiros urilizados para pensar as obras de arte e, em parti-
mesmo o cunho próprio de um pinror, para cuja existência cular, para as classificar, se carracterizem, como observava
social ela conrribui ao nomeá-la. Nesta lógica, o discurso de Witrgensrein, por uma extrema indererminação, quer se rrare
celebração, nomeadamente a biografia, desempenha um papel de géneros (tragédia, comédia, drama ou romance), de formas
dererminame, menos, sem dúvida, pelo que ela diz acerca do (balada, rondó, soneto ou sonata), de períodos ou de estilos
pinror e da sua obra, do que pelo facto de o constiruir em (gótico, barroco ou clássico) ou de movimentos (impressionista,
personagem memorável, digna do relaro histórico, à maneira dos simbolisra, realisra, naruralisra). Compreende-se igualmenre
homens de Esrado e dos .poeras (é sabido que a analogia que não seja menor a confusão entre os conceitos urilizados para
nobiliranre - ut pictura poesis -- conrribui, pelo menos algum caracrerizar a própria obra de arre, para a perceber e a apreciar,
rempo, e até se rornar um obstáculo, para a afirmação da como os pares de adjectivos, por exemplo: belo ou feio,
irreduribilidade, da arte picrórica). Uma sociologia genética requinrado ou grosseiro, leve ou pesado, etc., que estrururam a
deveria rambém inrroduzir no seu modelo a acção dos próprios expressão e a experiência da obra de arte. Se esras caregorias do
produrores, a sua reivindicação do direito de serem os únicos juízo do gosto, por esrarem inscritas na língua comum e serem
juízes da produção picrórica, de produzirem eles próprios os urilizadas, na sua maior parte, para além da esfera propria-
crirérios de percepção e de apreciação dos seus produros; ela menre estética, são comuns a todos os locurores de uma mesma
deveria igualmenre levar em linha de conra o efeito que pode língua e permirem, pois, uma forma aparente de comunicação,
produzir neles e na imagem que rêm de si próprios e da sua elas permanecem sempre marcadas, mesmo no uso que delas
produção e, desre modo, sobre a sua própria produção, a fazem os profissionais, por uma incerreza e uma flexibilidade
imagem que têm deles e da sua produção os ourros agentes exrremas que, como observa ainda Wittgenstein, as roma
envolvidos no campo, os ourros artistas e rambém os críricos, os rotalmenre refracrárias à definição essencial~- Isto acontece,
dienres, os coleccionadores, erc. (Podemos, pois, supor que o sem dúvida, porque a urilização que se faz dessas caregorias e o
inreresse manifesrado, desde o Quattrocento, por certos coleccio- senrido que se lhes dá dependem dos pontos de vista indivi-
nadores em relação aos esboços e aos desenhos, tenha conrribuído duais, situados social e historicamenre e, muitas vezes, perfei-
para elevar o senrimento que o artista podia ter da sua dignidade). tamente irreconciliáveis, dos seus utilizadores 10 • Em suma,
-1!' Deste modo, à medida que o campo se vai constiruindo 9
Cf. R. Shusterman, «Wittgenstein and Criticai Reasoning», Philo~
como tal, o «sujeiro» da produção da obra de arre, do seu valor sophy Phenomenological Research, 47, 1986, pp. 91.110.
e rambém do seu senrido, não é o produror do objecro na sua 10
Uma consciência aguda da situação em que esd. colocado o analista
marerialidade, mas sim o conjunto dos agentes, produrores de pode conduzi-lo a aporias quase insuportáveis. Isto nomeadamente porque a
obras classificadas como arrísricas, grandes ou pequenos, céle- linguagem mais neutra está destinada a aparecer, assim que a leitura
ingénua o leva a emrar no jogo social, como uma tomada de posição no
bres, quer dizer, celebrados, ou desconhecidos, críricos de próprio debate que ele tenta apenas objenivar. Assim por exemplo, mesmo
rodas as bandas, eles próprios organizados em campo, coleccio- quando se substitui um conceito mais neutro, o de periferia, por uma
nadores, inrermediários, conservadores, etc., que têin interes- palavra nativa como «província», demasiado carregada de conotações pejora~
ses na arre, que vivem para a arte e rambém da aru: ü•m J.(raus tivas, a verdade e que a oposição do centro e da periferia que utilizamos para
292 HISTÓRIA. DE UMi\ ESTÉTICA PVRll

embora se possa sempre discutir a propósito dos gostos - e,


1 CAPÍTULO X 293

objecto de usos também eles marcados socialmente pela posição


social dos utilizadores que envolvem, nas opções estéticas por
como se sabe, a confrontação das preferências ocupa efectiva- elas permitidas, as atitudes constitutivas do seu habitllJ.
mente um lugar importante nas conversas quotidianas - , o A maior parte das noções que os artistas e os críticos
certo é que a comunicação nestas matérias só se realiza com um empregam para se definirem ou para definirem os seus adversá-
elevado grau de equ{!oco, porque os lugares comuns que a rios são armas e objectivos de lutas e muitas das categorias que
tornam possível são também aquilo que praticamente a torna os historiadores da arte utilizam para pensar o seu objecto são
ineficaz, quando os utilizadores desses tópicos dão aos termos apenas categorias nativas* mais ou menos sabiamente disfarça-
que eles opõem sentidos diferentes, por vezes estritamente das ou transfiguradas. Estes conceitos de combate, inicialmente
inversos. Assim, indivíduos que ocupam posições opostas no concebidos, a maior parte das vezes, como insultos ou condena-
espaço social podem dar sentidos a valores totalmente opostos ções (as nossas categorias vêm do grego katigorein, acusar
aos adjecrivos vulgarmente utilizados para caracterizar as obras publicamente), tornam-se pouco a pouco em categorias récnicas
de arte ou os objecros da existência quotidiana (esrou a pensar, a que, graças à amnésia da génese, as dissecações da crítica e as
por exemplo, no adjectivo «cuidado», frequentemente excluído dissertações ou as teses académicas conferem um ar de eternida-
do gosto «burguês» sem dúvida por encarnar o gosto pequeno- de. Entre todas as maneiras de entrar em luras que devem ser
-burguês) 11 • E não ficaria por aqui o arrolamento, numa apreendidas como lutas, do exterior, para serem objectivadas, a
dimensão histórica, das noções que, a começar pela ideia de mais tentadora e irreprensível é, sem dúvida, a que consiste em
bele1.a, tomaram, em épocas diferentes, sentidos diferentes, até se arvorar em árbitro ou juiz, em resolver conflitos que não
radicalmente opostos, na sequência de revoluções artísticas, estão resolvidos na realidade, em ter, por exemplo, a satisfação
como, por exemplo, a noção de «acabado» que, após ter de anunciar veredictos, de dizer o que é verdadeiramente o
condensado ao mesmo rempo o ideal ético e estético do pintor realismo, ou ainda, muito simplesmente, de decretar - e por
académico, viu-se excluída da arte por Manet e os impressio- anos aparentemenre tão inocentes como o de incluir ou não
nistas. este ou aquele produtor na amostra ou no corpm - quem é
Desta forma, as categorias utilizadas para perceber e apre- artista e quem o não é ... (decisão ainda mais grave, sob a
ciar a obra de arte estão duplamente ligadas ao contexto histó- aparência da inocência positivista, pois o que mais está em jogo
rico: associadas a um universo social situado e datado, elas são nas lutas artísticas é sempre e em toda a parte a quesrão dos
limites do mundo da arte, e porque a validade das inferências,
analisar efeitos de dominação simbólica está em jogo na l~a dentro do nomeadamente estatísticas, que se podem tirar a respeito de
campo analisado; por exemplo, com a vontade dos «centrais» <JUCr dizer dos um universo, depende da validade da classe acerca da qual elas
dominantes, de descrever as tomadas dt' posição dos ocupantes de posições foram estabelecidas).
periféricas como um efeito do atraso e do outro !ado a resistência dos Se há uma verdade é que a verdade está em jogo nas lutas;
«perifêticos» contra a desclassificação implicada nesta classificação, e o seu
esforço para converter uma posição perifêrica em posição centra! ou, pelo embora as classificações ou os juízos divergentes ou antagonis-
menos, em afastamento elecrivo: o exemplo de Avignon ilustra o facto de o tas dos agentes envolvidos no campo artístico sejam indiscuti-
artista só poder-se produúi como tal - neste caso como alternativa velmente determinados ou orientados pelas atirudes e pelos
adequada a uma concorrência eficaz à posição dominante-, na relação com interesses específicos associados a uma posição no campo, a um
os clientes (cf. E. Castelnuovo e C. Ginsburg, «Domination symbolique et ponto de visra, o certo é que eles são formulados em nome de
géographie artisrique dans J'histoire de l'an: italien», Arte.r à ia nrhen:he en
râenm sxi4/es, 40, Novembro, 1981, pp. S l-73). IEswJo que scd puhlici;
do na colecção Memória e Sociedade]. " "indi~i·nes·· no texto ori}al'.inal (N.T.).
11
Cf. P. Bourdieu, Lt ,liJtimtitm, !!f'. át., p. J.l(,.
294 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA CAPÍTULO X 295

uma pretensão à universalidade, ao juízo absoluto, que é a do campo de lutas; é ~ambém restituir-lhes a sua necessidade,
própria negação da relatividade dos pontos de vista 12 • O
«pensamento essencial» opera em rodos os universos socíais e,
muito especialmente, nos campos de produção cultural, campo
t subtraindo-os à indeterminação resultanre de uma falsa eterni-
zação, para os pôr em relação com as condições socíais da sua
génese, verdadeira definição geradora 13 • Em vez de conduzir a
religioso, campo cienrífico, campo jurídico, etc., onde se um relarivismo historicista, a historicização das formas do
jogam jogos em que está em jogo o universal. Mas, nesse caso, pensamenro que nós aplicamos ao objecto histórico, as quais
é evidente que as «essências» são normas. Era o que relembrava
podem ser produro desse objecto, oferece a única oportunidade
Austin, quando analisava as implicações do adjectivo «verda- real de escapar um pouco à história.
deiro» em expressões como um «verdadeiro» homem, uma Da mesma forma que as oposições que estruturam a percep-
,werdadeira» coragem ou, como neste caso, um «verdadeiro» ção estérica não são dadas a priori mas sim historicamente
arrisra ou uma «verdadeira» obra-prima: em rodos os exem- produzidas e reproduzidas e são indissociáveis das condições
plos, a palavra «verdadeiro» opõe tacitamente o caso considera- históricas da sua aplicação, assim também a atitude estética
do a todos os casos da mesma classe a que os outros locutores - que constitui em obra de arte os objectos socialmente
atribuem também, indevidamente, quer dizer, de uma maneira designados para a sua aplicação, estabelecendo ao mesmo
que não está «verdadeiramente» justificada, esre predicado, tempo que é da sua alçada a competência estética, com as suas
simbolicamente muito poderoso, como qualquer reivindicação categorias, os seus conceitos, as suas taxinomias - é um
do universal. produto de toda a história do campo que deve ser reproduzido,
A ciência nada mais pode fazer senão tentar esrabelecer a em cada potencial consumidor da obra de arte, por uma
verdade dessas lutas pela verdade, apreender a lógica objectiva aprendizagem específica. Basta observar a sua distribuição quer
segundo a qual se determinam as coisas em jogo e os campos, ao longo da história (com esses críticos que, até aos finais do
as estratégias e as vitórias, produzir representações e instru- séc. XIX, defenderam uma arte subordinada aos valores morais
mentos de pensamento que, com desiguais probabilidades de e às funções didácticas) quer, hoje, no seio de uma mesma
êxito, aspiram à universalidade, às condições sociais da sua sociedade, para nos convencermos que não há nada menos
produção e da sua utilização, quer dizer, à estrutura histórica '
1 natural que a atitude a adoptar perante uma obra de arte e,
do campo em que se geram e funcionam. Em conformidade 1 mais ainda, perante um objecro, qualquer que seja a postura
com o postulado metodológico, constantemente validado pela _í
estética tal como ela é descrita pela análise de essência.
análise empírica da homologia entre o espaço das tomadas de A invenção do olhar puro produz-se no próprio movimento
posição (formas lirerárias ou artísticas, conceitos e instrumentos do campo para a autonomia, De facto, não podendo relembrar
de análise, erc.) e o espaço das posições ocupadas no campo, aqui a demonstração, podemos dizer que a afirmação da auto-
somos levados a historicizar esses produtos culturais que têm de
comum a aspiração à universalidade. Mas historicizá-los não é u Contrariamente à represenração dominante a qual pretende que a
somente, como se pensa, relarivizá-los tendo em conta que eles análise sociológica, relacionando cada forma de gosto com as suas condições
sociais de produção, reduza e re!ativi;r.e as práticas e as representações a que
apenas têm sentido quando referidos a um determinado estado
di;r. respeito, podemos considerar que ela as subrrai ao arbirrário e as
11 absolutiza, tornando-as ao mesmo tempo necessárias e incomparáveis,
Quer dizer, quando o filõsofo propõe uma definição de essência do
justificadas, pois, para exisrirem como existem. Com efeito, podemos
juizo de gosto ou concede a uma definição que, como a de Kant, se aplica às
suas atitudes éticas, a universalidade que ela reivindica, ele afasta-se menos admitir que duas pessoas cloradas de habitm diferentes que não esrão
do que pensa do modo de pensamento comum e da propensão parn a expostas à mesma situação nem aos mesmos estímulos, porque os constroem
absolurização do relativo que a caracreriia. de outra maneira, não ouvem as mesmas músicas nem vêem os mesmos
quadros e, por esse facro, não podem formar o mesmo juízo de valor.
296 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA

nomia dos princípios de produção e de avaliação da obra de arte é


inseparável da afirmação da autonomia do produtor, quer dizer,
r CAPiTULO X

«Escrever bem o medíocre»: esta fórmula de Flaubert, que


também.é válida para Manet, afirma a autonomia da forma em
297

do campo de produção. Tal como a pintura pura de que o olhar relação ao tema, conferindo ao mesmo tempo à percepção _c~lta
puro é o correlato obrigatório -- feita, como escreveu Zola a a sua norma fundamental. Como podemos verificar empmca-
pcopósito de Manet, para ser olhada em si mesma e por si meme, não existe homem culto (quero dizer, segundo ?s
mesma, enquanto pintura, enquanto jogo de formas, de valores cânones da escola, com títulos de ensino superior) que nao
e de cores e não como um discurso (1tt poesiJ), quer dizer, saiba hoje que uma realidade, qualquer que ela seja, _uma
independentemente de qualquer referência a significações trans- corda, uma pedra, um mendigo esfarrapado, ~e ser obJe:to
cendentes --, o olhar puro é o resultado de um processo de de uma obra de arte, como pretende a defimção do Jutzo
depuração, verdadeira análise de essência operada pela história, 1
estético geralmente mais aceite entre os filósofos ·'; e que não
ao longo das sucessivas revoluções que, tal como no campo saiba, pelo menos, que é bom dizer que assim é, como n~s
religioso, conduzem de cada vez a nova vanguarda a opor em dizia um pintor de vanguarda, especialista na arte de confundir
nome do regresso ao rigor da!> origens, à ortodoxia, uma definição a nova doxa estética. (Com efeito, para despertar este esteta de
mais pura do género. Vimos desta forma a poesia depurar-se de limitada boa vontade e ressuscitar nele a admiração artística, e
todas as propriedades acessórias - formas a destruir: o soneto, até filosófica, ê necessârio aplicar-lhe um tratamento de choque
o alexandrino; figuras de retórica a demolir: a comparação, à maneira de Duchamp ou de Varhol que, ao exporem tal qual
a metáfora; conteúdos e sentimentos a banir: o lirismo, a efusão, objectos do mundo, de certo modo fazem ver darai:nen:e ~o
a psicologia-, para se reduzir pouco a pouco, no termo de uma artista, tal como é definido desde Manet, a omn1potenoa
espécie de análise histórica, aos efeitos mais espeçifiçamente criadora que a atitude pura concede sem pensar.
poéticos, como a ruptura do paralelismo fono-semântico. A segunda razão desse retorno reflexivo e crítico da arte
De uma maneira mais geral, a evolução dos diferentes sobre si prôpria está em que, à medida que o campo se fecha
campos de produção cultural para uma maior autonomia é sobre si, o domínio prático dos conhecimentos específi_cos
acompanhada por uma espécie de retorno reflexivo e crítico dos inscriros nas obras passadas e registadas, codificadas, canomza-
produtores sobre a sua própria produção, que os leva a retirar das por um corpo de profissionais da conservação e da. celebra-
dela o princípio próprio e os pressupostos específicos. E isto, ção historiadores da arte e da literatura, exegetas, anabstas, faz
primeiro, porque o artista, doravante em condições de recusar par~e das condições do acesso ao campo de ~r_otecç~o. , Daí
qualquer constrangimento ou exigência externa, pode afirmar a resulta que, contrariamente àquilo que um relat1v1smo m~enuo
sua mestria sobre aquilo que o define e que lhe pertence em ensina O tempo da história da arte é realmente irrevers1vel e
particular, quer dizer, a forma, a técnica, a arte, em suma, que d~ apresenta uma forma de m1111ilatni?kule. Ninguêm ,está
instituída desta forma como fim exclusivo da arte. Flaubert, no mais ligado ao passado especifico do campo, mesmo ate na
domínio da escrita, Manet, no domínio da pintura, foram, sem intenção subversiva, ela própria tambêm ligada a um estado do
1
dúvida, os primeiros a tentar impor, à custa de extraordinárias campo, do que os anisras de vanguarda que, sob pena de
dificuldades subjectivas e objectivas, a afirmação consciente e surgirem como «naifs» (à maneira do guarda de a~fândega
radical da omnipotência do olhar criador, capaz de se aplicar Rousseau ou de Brisset), têm inevitavelmente de se situar cm
não só, por simples inversão, aos objecros baixos e vulgares, relação a todas as tentativas anteriores de ir mais alêm das,q~e
como pretendia o realismo de Champfleury e Courbet, mas se efectuaram na histôria do campo e no espaço dos poss1ve1s
também aos objectos insignificantes, perante os quais o «cria-
dor» pode afirmar o seu poder quase divino de tr;rnsmutaç,1o. 1 ' Cf_ P. Rovrdicu, l,,t diJtimthm. c,p, át .. pp. 45 e segs.
298 HISTÓRIA DE UMA ESTÉTICA PURA

que o mesmo campo impõe aos recém-e 1egados. O que aconte-


r
ce no campo está cada vez mais ligado à história específica do
campo, e só a ela, e é, pois, cada vez mais difícil de deduzir a
parrir do estado do mundo social no momento considerado
(como pretende fazer certa «sociologia» que ignora a lógica
específica do campo). A percepção adequada de obras que,
como as caixas Brillo de Varhol ou as pinturas monócromas de
Klein, devem as suas propriedades formais e o seu valor
unicamenre à esrrurura do campo, à sua história portanto, é Origem dos textm por Capiwlos:
uma percepção diferencial, diacrítica, quer dizer, atenra aos
desvios em relação a ourras obras contemporâneas e rambém do
Capirulo I - C,nferência na Unin:rs1&1de de Chi,,i_i.:o em Ahn! de 197'>.
passado. De cal modo que, como a produção, o consumo de "Sur !e pouvoir symbolique·•. Am1,i/,, r: ~ ( ',_ M,1:0-J,mho l')T1 •
obras provenienres de uma longa história de rupturas com a pp. 405-4 ! 1.
hisrória, com a tradição, tende a tornar-se de parre a parte
hisrórica, e, não obstante, cada vez mais rotalmenre des- Capitulo H ~ lnrrodução ao seminário du E<ok di.:s Hm.:t(;s Énales rn
Sciençes Sociales. Outubro d<: 1987: Í!lf••,.,h1,·1,,,11 ,, 1m,· 11,,,,f,,:·1e rdle.\·11e,
-hisroricizado; com efeito, a história que a decifração e a
PP· 67
apreciação praticamenre põem em jogo reduz-se cada vez mais à
hisrória pura das formas, ocultando compleramenre a história Capírulo III ~ Ver;ão original do artigo inmubdo ·· Tht Gen(·sis of the
social das luras a respeiro das formas, história essa que faz a C:onceprs of Habirns and Field·· S"o,~·,·ú1om1 (Pinsburgh. Monrpe!lierl.
vida e o movimento do campo arrísrico. TheorieJ and Pmpectn·e.r, II, n." 2, Dezembro 1985. pp. 1 l-2-t
Desta forma fica também resolvido o problema aparente- Capitulo IV ~ ,,Le mort saisit le vif. Les re!ations enue rhistoire réifiêe et
mente insolúvel que a esrérica formalisra, que só quer conhecer a !"histoire incorporée,,, Aae, de /1-1 ,whm/:,i: w '<"M!<"e1 ,,,o,i/u. 32-33. Abri!-
forma, ranro na recepção como na produção, opõe à análise ~Junho 1980, pp. 3-14.
sociológica como um verdadeiro desafio: com efeiro, as obras
provenienres de uma preocupação pura pela forma parecem feiras Capítulo V ~ «L idennte er la representanon Elêments pour une rêíltttion
cnnque sur ! idée de régwn», Aatr de l,1 mhnrJ,,, n1 ,um<"e• Pwia!ts, 35.
para consagrar a validade exclusiva da leitura interna, atenta
Novembro 1980, pp. 63-72.
unicamente às propriedades formais, e para frustrar ou desrespei-
tar rodos os esforços que têm em visra reduzi-las a ~m contexro Capítulo VI ~ Texto apresentado na Universidade de Frankfun. em
social conrra o qual elas se constituíram. E, no enranto, para Fevereiro de 1984, «Espace social er genêse des "classes·•, /\<"ff-' df la
inverrer a siruação, basra observar que a recusa que a ambição recherche m scienceJ Jr1ciales. 52-53, Junho 1984. pp. 3-15.
formalisra opõe a qualquer espécie de historicização assenra na 1 Capítulo VII - «La représenration po!itique. Elêmems pour une rhêorie
ignorância das suas próprias condições sociais de possibilidade, du champ politique», Aau de la recherche m .iOf/1<'<., \/Jâa!t,. 64. Setembro
exactamenre como a esrética filosófica que regisra e rarifica esra 1986, pp. 5-19.
ambição. Em ambos os casos, é esquecido o processo hisrórico
no decurso do qual se esrabeleceram as condições sociais de Capítulo IX - «L·institutionnalisation de J"anomie··. Le.1· (",1/>1,n d11 Mm>:f
Natúmaf d"Art Mf!derne, 19-20, Junho 1987, pp. 6-19.
liberdade em relação às dererminações externas, quer di:!er, o
campo de produção relativamenre autónomo e a estt'tirn ou ÍJ Capítulo X - «Genêse hisrorique d"une esthétique pure-· The J11lfrnt1! ,,{
pensamento puro que ele torna possível. Aathetics and Art CriticiJJJI.
r
NOTA BIBLIOGRÁFICA

Traduções portuguesas
de Pierre Bourdieu

1. Tit11/os puh!icados em Port11ga!

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Traduzido - esquecendo o esquema - a partir da tradução inglesa,
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Nafferton Books, 1977, pp. 112-119. Versão original: «Sur le pouvoir
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(Com J.C. Passeron), A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de
ensin(J, tradução C. Perdigão Gomes da Silva, supervisão Manuel Ramos
Ribeiro, nora «Ao leitor da versão portuguesa» de M.R. Ribeiro, Lisboa,
Vega (Colecção Universidade, dir. Luís Soczka, n. 0 l), ( 1978]. Tradução
integral de La reprub1ctirm. Elêments pour 1me théwie d11 ;ystéme áenseignemen1,
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«Os 'herdeiros,: o ensino superior e as desigualdades sociais», in Escola e
cla.rse.r suiais - introd1tção a uma prohlemritica da sor:i11!11gia da educação,
antologia, prefácio, introdução e notas de Maria Filomena Mónica, Lisboa,
Editorial PresençaíGabinete de Investigações Sociais, 1981, pp. 86-95.
Tradução de P. Bourdieu e J.C. Passeron, l-ti héritien, ât._
302 O PODER SIMBÓLICO

2. Livros publicados no Brasil


r
(referidos em Yvette Delsaut, Bibl,,graphie des trava11x de Pierre Bourdieu,
_Paris, Centre de sociologie européenne, 1986)

A economia das trocas úmbólicas, São Paulo, Editora Perspeniva, 1974. ÍNDICE DE AUTORES
Tradução de pp. 3-25, «Condition de classe et posirion de dasse», Archil'ts
européennes tk socio/t;gie, VII, 2, 1966, pp. 201-223; pp. 27-78, «Genêse et
strucrnre du champ religieux», Ruwe franfaÜe de socio!ogie, XII, 3, 1971,
pp. 295-334; pp. 79-98, «Une interprétarion de la théorie de la re!igion
selon Max Weber», Archives tlff(Jpétnnes de sociologie, XII, 1, 1971, pp. 3-21:
pp. 99-181, Le marcbé .k biens symboiiq,m, Paris, Centre de sociologie
européenne, 1970; pp. 183-202, «Champ du pouvoir, champ intellectuel
et habirus de classe», S/"oÍies, l, 1971, pp. 7-26; pp. 203-229, ~Sys,emes
d'enseignement et systemes de pensée», Ren,e inurnatirmale deJ 1áences
soáales, XIX, 3, 1967, pp. 367-388; pp. 231-267, «t·excellence scolaire et
ABEL (AA).-J.L 260 BüUDEV!LLE. ! !O
les valeurs du systême d"enseignement français», A11naln, XXV, 1, Janeiro- BOUGUEREAU. 26.l. 265
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-Fevereiro 1970, pp. 147-175 (com M. de Saint Martin); pp. 269-294, ALA!r--. 2.ó.'.\ BOUKHAR!l'\E. 20!
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1980; pp. 46-81, Esqnisse d"une thêorie de la pratiqNe, Genêve, Droz, 1972, BEBE!.. 200 CiCERO. 79
BENJAM!'.'J. 2117. 2lN C!COliREL.46
pp. 162-189; pp. 82-121, «Anatomie du goüt», Actes de la recherche
BESVENISTE. t!J-114.151. l(W. lllll. CLARK. 273
en Jciences J{JCialeJ, 5, Otubro 1976, pp. 18-43 (com M. de Saint Martin); COATES. 2D
236
pp. 122-15 5, «Le champ scientifique», Acw de la recherche em sdences socialu, BE'.'.iVEt,;CTO. 7ll COHE1'. (F.l. 22.,
n. 0 2-3, Junho 1976, pp. 88-104; pp. 156-183, «L'économie des échanges BERGER. 10 COHE~ (S.). 17"7. !96. 201
linguistiques», Lang11e française; 34, Maio 1977. hcr.~srmiwu>. 282: COMBAR!EC. 264
BLANC. 271 COROT. 258
BLUMROSEN. 2!.'l COGDER. 265
BOIME. 266. 271. 272 COUGNY. 266
BO!S.81.115 COCRBET. 261. 269. 272. 273. 296
BOLTA:-.SKI. 117. 26ll COUR'.\JOT. 77
BONAFÊ-SCHMlTT. 2.'14 coun:RE. 19. 212
HO/.;!':ECASE. 20<J CUM:vl!J\GS. 257
304 O PODER SEMBÓLJCO
r LE LANNOL 108- 109
ÍNDICE DE AUTORES

PENROD, 2:\3
DANTO, 2lll. 285 GILUSP!E. 154 LEIBNIZ, 17. 2J, 147. 2!15 PETRARCA. 79
DARBEL 285 G\NZBURG. I07. 292 Lfl\àQIR. 223. 247 PEliSNER. 2t..'í
DARNTO/\, 154 G!RAUOOLX 263 1-EROST. 216 PICOT, 260
DAVID (J. \..l. 257 GOl-'FMA"-. 95. 96. 1-11 LITIIÍóVE. 2hlL 261. 264,265.267. 27L PLATÃO. 79
DAVID (R.L 219 GOLOMAN:-1. 64 ?,72_277 PONG[i. 71
DECAMPS. 261! GOMBRIC\L 265 L,f:VE1\S()N_ 265 PONTO/\. [07. IJO
DEGAS, 2ó(L 26L 273 GRAMSCI. 167-16!\.177. 178. !X(L 190. LÉVY-.STRAUSS. 61. 2!12 POST, 157
DEI.ACROIX. 257. 26L 269 19.,_ 19'.i LEWIN (K.).M,65
DELAROCIJE_ 26L 275 GREUZE. 274 U:.WIN {M.L 103 QUtéRf:. 122
DELL~Cl.UZE. 269,270 Gt:1001\:1. 195-196 LOWRY. 123 QUII\E, (>7
DERRIDA. 282 GUILLEMOT. 260 LUHMANN. 211
Dl(SCARTF.S. 2,\ . .W UJKACS. 64 RADCLIFFE·BROWN_ 9- IO
DEZALA Y_2.{4. 2.15. 244 HALBW ACHS. 135 u;XEMBOURG. ló!L 186 REBOCL 115
DHOQUOIS. 2J.'i !IAMILTON. 270. 271. 27.L 274 REDO~L 274
DICKIE. 281 HARDLW;_ 261. 2M MAITRO~. 182 ROSENBLUM, 257
DUBOST. QIJ_ 99 l!ARTMA"'iN_ X.S MALLARMÉ, 53, 271 ROCSSEAU (IIL 297
DUCHAMP. 2!l7_ 28K 297 HASKELL 257. 25H, 276 MAr-ifT 19-2(L 255-256. 25Q. 261. ?.67, ROUSSEAt: (J. H 78
DULONG. 122 liA\:[YL 12.1. IHI 269. 270-27..\. 292. 296-297 ROllSSEAll !T.L 258
DUMES!'.IL. 2M IIEGEL 2K. 62 MANTZ. 27.i RUYSDAEL 258
Dl!MÉZIL 119 /i,·xdi<1110. 7 MAQUIAVEL 39 RYLE, 159
Dl1RANTY, 272 HEIDEGGER. 8. 62. !15, 282 MARK7-8,46,4H.61 84,87, 92- 97-98-
DURKHEl'.VL 8. 9- l(L 22- 24. 46. 121, 161L HEIMCH. 79 -99. ;J5_ 158,160.167, 181-182 S_ AGOSTINHO. 7!\ 79
1-IÉROLD. 2<>--1 MATllER. 232 SAPIR, 8
durJ.h,·i111i,m,,. 2JO IIOBSBAWM. 127,129 MAUSS. 62, !60_ 282,287 SARAT. 232
HOFF'\IIAN. 20J ME\SSONIER. 260. 267 SARTRE,40, 88, 89. 200
EGBF.RL 262 1-IOOl'T. 2?.6. 227 MERLEAU-PQ;-.;TY. 62. l\3 SAl'SSL:RE. 9_ 210
EHLIC!-L 241 HU!v!BOLDT. H MERTOK,24 .WIU.,.\'1/f'ÍUIIO. 68

ELIAS. 65. 8-H5. H6 1-HJSSERL. 10. 62. 140 \'1!CHELET. 7l{ SAUVAGEOT, 242
ELLllL 244. 2-i) MICHELS, 163, 192. !98, 200 SAYAD. 99
ENGELS, 10. 200 1"-GRES. 261. 262. 26.t 270 MONTAIG',E_ 78. 105 SBRICCOLL 224- 242
!\40i°'TESQUF-C. 2W SCHELLING. 9
fABIANL 107 JAKOBSON. 70 MOREAU. 2ól SCHLEGEL 268
FAU!.KNER. 67 JOYCE. 67 MOTCLSKY. 222- 224 SCHU.IERMACI-IER, 25.,
FEBVRL 26} JUILLARD. l lO MOlll\:lfR_ 242 SCHOLEM. !43
ffLSTl~ER- 2J2 MCLLER. 78 SCl!OLZ, 215-214
FÉNEON, 267 KADUSHlt\, !71 SCHOPENHAÜER. 160
FICHTE_61 KAFKA, l•H. 229 /\IETZSCHE. 41. 282 SCl!ORSKE, 88
rLA!',DRIN. 266 KALl~OWSKI. 215 NONET. 211 SCHliTZ. 10
FLAUBER"l'. 20. 296. 297 KAJ\.T_ (>2, llO. 215. W\. 294 SELZ/\ICK. 211
FLECRY, 268 ~anlis!>u>. !\. 283 OSBORNE. 2H3 SERVfR!N. 220
FOCCAULT. B7. 2l!2 KANTOROWICZ, !.SI. 157 OSTROGORSKL 167 Sl\USTERMA:\. 29!
PRASER. 214 KAUTSKY. 186 ORS. 2ó2 SLOANE. 263, 266·267, 270-27L 273
FRECD. 216 KAYRIS,231 SOURIAL:X. 216
frrndiano. 281 KELSEt-.. 2()9. 215 PALLIERE, 260 SPITLER (L). 146
FRIED, 258 KLEIN, 298 PANOFSKY, 8.9_ 60-6L 82 SPITZER (S.), 210
KOJEVE, 229 PARET0,24 STEINER. 65
GADAMfR. 224. 228 PARSONS, 24, 40 STRA WSON, 2!13
GAUT!ER. 26S LACOR1',;E. [\){J. l'll. IW PASCAL 225
GENDAR'.vlE. 1(19 LA<iARDE. l lO PASSEROI\:. 93 TABARANT, 263. 268-269, 279
GÉRICACLT. 261 1.AND!CLLI'.. 2M. :1,~ PATTERSO~,L 112 TAVARES, 93
GÉRÔME. 261. 263. 268 1 AZARSI-H.ll_ -'·l
306

rf-lOMAS. 264
THOMPSON. 2 !O
O PODER SIMBÓLICO

WEBER. 24. 46. 66. 68·69. !44. !63. !76.


19!. 193. 195. 198. 200-20!. 216.
r
THORÉ. 273. 274 225.231. 241.244.250
THU!LLIER. 259 WEILL.12:l
TICIANO. 268 WHISTLER. 274
TOCQUF.VILLE. 219 WHITE (C. A.). 263
TR!ER. 64 WHITE (H. C). 26.S
ÍNDICE TEMÁTICO
TROELTSCH. 167 WHORF.8
TYN!ANOV. 65 WITTGE.",/STEIN. 69. !65. 215. 2:!6. 2l!3.
291
VARHOL. 285. 297. 298 WOLFF. 27!
VEBLEN. 144 WOOLF.67
VERDES-LEROUX. 95
VERNH. 264. 268
V!LLEY. 228 YNGVESS01'-i. 232

WATTEAU. 257. 276 ZOLA. 296

AGENTES. 55. 77. 82. !44. 145. !46. J47. CAMPO. noção de-. 27. 64-73: noção de-e
!50. 248: atitudes dos•··. 94-95. !56. pensamen10 {aociologia) relacional.
19'1•200: condutas dos-. 223: acção 27•34: teoria gernl dos - s. 68-70:
dos--. 85-86. DO--U !'. posição dos- l!m!le~do 31.41-42: leis invarhm•
oo espaço social. !J4- !36: concor• tes dos - s. 66-68: autonomia dos ~.
dãnda entre a vocação subjc<:tiva e a 70-71: homo!ogias estruturais e fon-
missão objectiva dos•·. 87. 90: ade• cionais entre -- ~. 33. 67. 69 n. l.'i4.
quação do.s -- aos postos. 87-90. 155: imcrsecçãocntre- s. 5.'i-57: ~ da
ANTROPOLOGIA. 28. 65. produção simbólica. 1 l• l 5. 145: •- da
APROPRIAÇÃO. - da tradição cientifica. produção ideológica. !2-!4. !70•
62-65: - da história pelo sujeito e do l 7!: relações entre o -- da produção
sujeito pela história. 83-84: - (incor- idco!ógkae o- da, posições ,ociai~.
por.,ção) da história pelo agente. 88: l l: homologia entre o - da produção
•- (percepçção) da obra de arte. 267. ideo!ógicaeo-<la !utadedassc,. 12-
284. 285•286. 292-293: interpre- !5: - do poder. 2!1. 30-.S ! : - poli!ico.
tação (dos textos juridicos). 213· .'i.'i-56. 152-161. 163-206: - do
214. 223-224. marketing po!itico . .'i6: - da ciência
/ ARTE. 19. 63-64, 68. 70•73. 255-256: obra politka. 56: - social. 135. 149: - da
de-. 72-73. 283·287. 287-288. 298: produção cultural. 7.67. 70-7!. !52.

• - legitimada pelo Estado. 262. 275-


276: -académica. 257-279: romãn•
tica. 257: - revolucionária de Manet.
214. 2%: - artistko. 64. 70. 71-73 .
285~287. 288-298: - da alta C<->Sturn.
67, - jornalístico. 56: - da produção
270-274: rupwra(s) artístka(s) e literária. 70.-7!: -· intelectual. 40. 65•
estétka(s). 72. 255•256. 278: campo 66. 72 n: 92 n: - universitário. 14. !7-
artístico. 70. 7!-73. 285-287. 288- 58. 78: - das instituições escolares.
298: constituição de um campo artís- 30: - das ciências sociais. 36. !08·
tico. 278-279: atitude estética, 286. l l l: - da produção histórica. 78•80:
29.'i-296: linguagem artística, 289- relações entre o - cientifico e o -
290. 291-292 (vd. 11pmpriaçi/<1. his- social. 119-120: - profissional. 97,
tória). jutídico. 211~254: - do mngistratur.1.
í
308 O PODER SIMBÓLICO 1
iNDJCE TEMÁTICO 309
40: - buro,:r;í1irn ..<7-38. 94·95: - ção simbólica e ideolôgiça legítima.
religio,o, 66:- dcrkal. 76 n: sub-do !2-14: pelo monopü!io d1> direi10 fi<:a1úria~. 150: -- dhcur,iv,1,. 54-55. 6.'í. 70- 71.
poder cwnúrnicu. 29: rcla.,,'\c, enm: de dizen, direito. 212. 214. 217-225: 56-57: - çicntfficas. 62. 63. 109: - LITERATt:RA. 67-68. 255-256. 296: Jato•
ús v;irios se n -- da pmdu~•âü cconó- - poH1ica. 1.'í.'í, 176. 18.'í. (vd. rnmpfl. políiicas. ili.': ani,ti<:,i,. 72- 7 .l (vd. nomir:u;;"io do rnmpo literário. 70-
mic:,. 1:'>4: - de forç;i,. 1H: -- wmo ('/J/J//110, (',\'{><l('/J Sl!/'Íal, !111m. J>/()/1(!• ag,·111es). 7!. fonnali"m' russo. ú5. 70-71.
cspa1·0 de lutas, ll:'i: luta pela defini . p,í/i/!)_ ETNOLOGIA. 13 n. 45. ! 12; ,.,,wm,·1,,- !,UTA(SL ,imbólirn cn1n.· d,",,.,,.
11-12.
.,-ão do, princíp;o, de <livi,Uo do -. C'O'.'-IFUTO. _18-.W, 42. 73. 97. 229 (vd. /u- do!ogill, !O n. 25. 43 4'1. 152-15.1: [ll'l<> monnpól;o do pod<'I' .
(vd. <'-'/){.li'" .\!leia/, 1111<1>). 1<1.I'). HLOSOF!A, 68. 215. 229 n: hahir,rs d" r,ló• 2<J: de cb"i!'iça\'<l<',, 113. 11 r,.
CAPITAL IJ4: - ,imtxílirn. 15. l..\4: w- CULTURA. dou1a (,:ientífka), 4.'í-46, 48: sofo, 77: - e ,:iêneia, so<.:iai,. 77, ~81 124-127; pdo p1>1kr de ddini\·\h>
ti,11. 29. -- politirn. IM. 167. 187, polí1ica. !78-179: dominamc. 10- 282: -da hi,t\\ria. 75-77. 91 n: d;1 legítima da, divi,(,;,s do mundo ,o
190-19.'. 194-196; -- jurí(!in,. 219: l I: cirrn!;içiio (imigraçfto) das ideias. rnnsciêm:ia 62: - <la eatéti<:<t. 28.l- dai. 1 U-12J: cmrc d;,,..;plina,_
c<:onómkn e - rnlturnl, 12: nmvn- 7. ó~: trnmmis,ão çultun,I (pnítirn a 284. 288,298: - p,h-mo<krna. 281 i08-1 I L [X'la enlidmk (sodul.
,ão do -. 15: [J("SC de'" e c-ap,Kidadc pdtín1l. 22: campo da prnduçã() rnl- 282: - ncn-fenornenologia. 1(1 n: gn,p;,I. regional. c'tnii:al. 112-11.'l.
de au((>n~>m;,1 (c,ca,scl de - e' sllb- lun1!. 7. neo-~mni,mo, 8. 9. 61. !17. 120. 124-121!: regionahst:"-
mi"iio i, in,titui,;J\l). 9.P)ú. DIREITO. 2J6 .. 240. 24!-250: profissionais GE<X;RAF!A. !OH· !09: e ecom>n11,1. 10$- IJ().132: f>l.'l<l f)(11!er de nomca\'àn.
CIÊKCIA. 18. 22. 2.< . .<5. 42. 6/l: ra,ão<:1en- do-. 2J2.2J.l; 1m1,1goni,rno es1rutu• 109. 110. 146-147: polí1i<:a. 142-14.t 17.1-
:í!ku.4 ,. 2 JS: social, 20. J5.46. 49- rui entre teórirnse prátiws do--, 217- !-!ABITUS, t <)<), 24!: génese da nrn;ito de• 177. IH,\ ll\4. 194. 202; h(m1nl<>gi;1
50. 64: lógi<:,1 du e lúgica da pnüirn, 22.1:, i,'ná" im'idirn (visão interna- 60 64: e história incorporada. 81- entre a- politkac'll -dc<:lasS\'s.175-
1!!. u1ilit.i1ÇJ<> ,in11:l\ilic,1 du 110: lista do dirci:o). 209: sociologia 106: coin<:idênci;icntre o e o háhito. 177: jurídica,. 252-25.'l: - ar1i,ti
rcla\'iie, l'ntr,• e ;ndú,u-i.-. 1o 1 mani~ta do direiw (vi,ilo externalis• 87-90: e P'"i~·;io (do agc•nteJ. 85- ca,. 29.1: - c11!r\' ;i hi,16,fo ohjccti,·a .
102 n (,•,L, 11/rnrn. hi.11ári11, _,,,,-;,,/,,. ta do direito). 2!0: campo jurídirn. 99; -- c·,cmifico. 21,2~. n. 62. 64. 78: da e 11 hi,1ún;1 incorporada. !OJ: r,•-
,ÓII). 211-2.'6. 251-254: rcla1;õe, entre o - do polftirn. 169: ,. pn,fissionai. 88- mluçú,,. ,11h,·,.,-_,{lo_ 102. !25. 202.
CLASSE. noção de --, 2ll: ieori;, marxi\1;1 <la, ,:;un1w juridi<:o e o rnmpo do poder. l!9: .. jurídiço_ 219. 22.7. 2.ll: - hur- 2J8. (vd. ,muorrhrcia, n>11flilo).
,. 1.1!1-LW. 152-153. 16!. s no 242-243. 248, 251; reluçôcs <ln í_!Ués e or<lçm hurocrátirn. 9J. MERCADO. de hcn,; si111l>l\lko,. 129:
papel e~ s rcai,. JJ6•1.W. !.'\O: ... r·orpm jt1rídico tom n c.1iudo das lHSTÚR!A. 3~. 105: rn11,trw,ào do objcdo lingui,tirn. ~5. 6H-69- m\ivtr,it.ír,():
<:<>Um rcpre.,çmaçãr, e vontade. 159- rch1çôes de for~·:,s. 212-213: lingua- hi,túrito. 3.1-}4. n-80: c.impo da 42: pnlitii:o: 155. 164, 166: -- do~
16!: rc•prc,enw~·&,, de --. 75, 76 n: gem jurídica. 215-216. 226-2D. pm<luçiin hi,1áriea, 78-80: ,ocial sl'rv,,·n, jurídico,, 2.U-235. 240:
c-omt·iêntia de -. 2H. 47; mtcre,sc, D!SCLRSO. dmninume. 14: político. (do, in,:run11.'nlos de c·un,tru~·ão d,t u11ifie"açiiu do, , e luta, rcgion;di.,-
de - HI. U: -- dnminan1e. 28. 247: !55. J6.'í. 170. 177, 11'6: performa- rculid.idc ,ot1all. Jf, . .'\7: - 'º"ial da, 1a,. 1.10-1 "\ !
, dnminmfa,. !66-167: -- opcnirü1. tivo. 116.. 117. 145: - de <:ckbração. <.'iéncia, w,iais . .'16: -- da sociologia e MO.'WPÓLIO. da pmdu,·iio i,!eológicn
98-99. 160. 182. 198: frn,·çõc, de . 29(); - regiona!i,1a. 116; dentffico. (la , l\O n. 295: tclcnlúgi<;;, e n:1ro- legí1;mil. !2·14: da PhJc'<:!ÍYaçüo
(frm:\·;io de) dm c,pe,·ia!i,1;1s da 119-120: meta-, .'17. 59: nmcorrên- .spi:<:1iva. 71!-lll: do, cmnpu:<. 70 ohjcctivi,1a. :'\7 .. 58: da definição
pwdm;ilo rniturni e simbólica (ktnl- cia entre ~. 53-57. 7 ! ; - li1eníria. 64: da mte. M. 70. d,1, divi,(l<.,, do 1111,ndo ,(i,;ia!. 113: -
do,. anist;1,. in1clenuai,1. l l 12. 13. DOMINAÇÃO. 14-1.'í. 75. 86: - ~imbólica. 71 73. 256. 257-259. 288. 297; - da d,1 pmduçi\o políti<:·a !egí1im;1. 166.
152-15.l: mobí!iz;1\·Jo de Ll7: luta 10-11, 14,219,242. 245-246. 248: r.ér1csc do n1mp<> ,1ní,1ko, 288·290. ]68; - d;, nomcaçim kgítim:,. da
deda.Ht'.\. ~imhúlic;L ll-12.1.'í2- revolta, <.'Nitra a - simbólica. !24- 298: -- do dir~•t<>. 157. 20'). 212, 217. nomcaçito ,,,nh<ilita. 146: da pi<>
l.'í1: - en1rc ,:;1pí1ai ernnümito <.' !2H: - linguís1i<:a, 128: de classe. 21 H: -- da autohiogr,1fin. 78 n: ob- dt1çflo arlhti,·a kgílilllil. 276-277:
<:apitai <:wlrnrnl. 12: rnmpo da (vd. ! 1-12: rclaçôes de - entre as ciências je<.'tiva e -- inrnrporad:1, 7.'\-106, 156: da vinlênd,1 ,in1bóli<:,1. 12. 146. 211.
d,,mi,u,(·<li!. illlm). wciui,. l(){J .. J 10. lwi)ograjiu, 7.1. 2.\6: dos imtrumento, da con,uu
CLASSlF!CAÇÚES. 8. !J.l-115. !22 12."l. ECO.,m<l!A. 61. 129, !33. 219·220: pensa- !NSTITU!ÇÁO(ÓESl, 29, 75. 81. <J2.%. çâo juridie;1. 23.l: do poder. 29. {vtl.
H9-l51: ,i,tcma, de--. 14: cicnti- mc1110 cç(mômico e teoria dos cam- 157-159, l<J2. 193, 2J6-2JK. 286; ,onumú11w. lirl<I-" ).
fü·as e - sociais (pnitic,1,). 1 11 . J 12. po,. 68-69, ins!itucionalizaçfü). 9!-92. IOü, l ll!. PENSAMEt\TO. -- (CORREI\TES OE): tru-
115: plllíticJs. 156: lutadas ..,.! 1~. ESPAÇO SOCIAL, 29-J0, 54-57, 84, !JJ- 195-1%.278-279:- pulitka/S), 16.~- diçüo tcárka da ,o<:io!ogia. 24. 27.
116: - e t,1xinomi;is profissionais, W. l .'16. 137. IJ8: multidimen~ionalida- I 66. 170; - burocrática,, 9}-94: - 59: lr.tdi\'á\o 1nc1odol<>gi,1a d;1 S(ll"ÍO-
9\ .. 92: /a.1im!!Ília., of,ciai,. 14, 147• dc do -.153: -comoespaçodeestilos juridi<:a. 247; judiciais. 232: -e,n,- kigía. 24-2.\ 41. mar~i,mo. 1O. 1.\.
148: ,-,11cgnl'i::avio, 116. !42: rnte• de vida. 144; - do trabalho, 9l!: e larcs •.'10-3 l: - artísticas. 259. 276 64. 77. 1:n. 1.'l!. 152. 160. 210.
gori:1, dn juízo anfst;co. 291-29.l espaço mcnrnl. 225. 127: - e espaço 277: taxinomia, institudo,rnli1ada,. 244 n: c,truturnli,1110. 9. 61. 65. 9.'\:
{vd. /111<11). geográfico. l .'ll! íl. {vd. l't'gi,io). !4)(-149, neo-k,mti,mn. H. 6!. neo-frnoincno .
COr-.'C'ORR ÊNC!A ..10. 53- 5 7. 84•85: - entre ESTRATÉGlA(Sl. nrn;,1od,: . l!2. 124: ,irn• l.lN(illÍSTICA. 68-69, ! 13-114, 2 l(l n, 215- !ogia. 10 n: pc•mmm•nto rl'la<:innal.
çapilal ernnómico e ::apita) simbóli• l><.\fa·a,. l 12, 110, 14r,: U>~llllÍv;i, 216, 227: soe;olinicuí,tirn. 28: gmr- 65. (vd. l'l!!ulogia.fH,>.\Ofia. lu,1·1óri,1.
rn. 12; pelo monopólio da prndu- ,k prrnlu1·!lo d,• "'niE<ln. l,IO: d."'' 1·,11fr,, g/W!lt!W!", (,!_ ,·,1rnturnlisitl\\ .\'{)("Í1J/,1gi11).
linfmis1i1·0. </. h5: fo1rn;il,smo rn-so, PODER. 15. 2X. 2'-l. l57-1.'í9: ,imhülirn. 7 -
310 O PODER SIMBÓLICO !NDICE TEMÁTICO 3 ll

!5, 72 n. 151. 188; campo<lo -. 28. social e as posições dos agentes e dos •práliça. 20-21. 23. 24-25. 59: objee- po!ugia m<:ial. 1B: imcracdonismo,
JO: - de dassificação. 1!J- ! 14. 116- grupos nos vários campos. 152-155: tivaçào objcctivi\!a. 53: objeclivaç1lo l l. 25. 66. 94; teoria teórica. 24. 27.
! l 7. 145: --de 1mrncaçilo. !!6-1!7. percepção do mundo social. 13<;1. participante. 51 -58: anãli~c mten,iva 59: tradição mctodo!ugi,m da
146- 148. nfl-239. 275-276: - poH1i- !42: - oficiais. 247•248: da prática e análi,e extensiva do--. 3!-32: aná- (mctodo!ngismo), 24-25. 41; -- eopo .
co. 1R8: polúi<:o e - de dassifaação jurídica. 228: - literária,; e artísti<:a,: li,;eestrnlura! do -. 9; mé1odo<:ompa- ,ição 1curia/mcwdo!ogia. 24: escola,
(no1ncaçào). 114, !42. 1.50-!.51: - 256: representação polítka. 156. ra1ivP (raciocínio ana!ôgi<:o)..'l:1-3.l: metudulóg,cas cm-. 25: -- posi1ivis-
do, profis,im1ais do <lireho. 232- !57-16!. ,ondagcns. 38: linguagem sodológi- 1a. J 1, 41-42. 50; empirista. 32:
2B: - cn>nómico. 29. (vd. REPRODUÇÃO, !O. 11. 29. 30. 45-47, 85. rn. 39-42: de1erminante\ sociais do, hipcr•cmpirismu po,ilivista. 35:
n>11n>1rh11'i<1. lutas, mmwpâ/io, lim- 96.<)'), I00-103, !41-142. 145. 1%. princípio, dl' apreensão suciológi<:a, ncofuntionalism. 24: tcoriadossistc•
há/fro). 245,251. 51-52. ma,. 21 J n: - americana, 43: - subs-
POLÍT!CA(O). 203-206: jogo -, 142-143. S!MBÓUCO(A), teoria, sobre o-. 8-12; luta Soá,í/ogo. ofíçio do~, 18•23; hahiJu., cienti• lanóali,rn (pens.unc11!0 realista). 27;
157-16!. !69-\71. 172-177. 178. ~. ll. 54-55. 56, !20. 124.. !25. 146. fiw do .. 2!-22. 23.14. 44-45: reh1- - marx1>ta, IO. 13, 47. 48, M. 152.
IR 1. 18}. 18.5-188: campo 152- 217. 224; revolução-. 255•256; viu- çôe~ entre o - e a sociedade, }5-36. 160: mf'l'e1m·. J5,4J: cpi~tcmo!o .
161. 163<!06: auwnomirn~·ão do lên<:ia - l!.!2:poder .7-15.!!3- 4!-42, 43. 47. 50. J 18•! 19 n. gia da--. 24. -
<:ampo -. 170; ,;ultura --, !78-!79; 114. !16-117, 151, 245-247: luta Socia{ogi<1 da - . 2), 38. 50,51. 52, 58. 80 n, TRABALllO. divisão soçial do • 13. !4. 24.
!imites do - mente dizível ou P,.'1Ni- pc!opo<kr--.11•!2. 72n, 116. !45: !05- !06: - das insütuiçõcsesrnlarc,. 92. uo. J(,4. 165, 212-2!4, 217-222.
vct 165: ciê-ncia -. 163. 170-171: ,istema, ,, 9-14: campo da prndu- 30-3!; • das formas simbólié;a,. R:· - 244, 245:
n:presenmção (da~ da,w, domi"na- çào -. 11- l 2. 12-15. 14); c,lra1égias das obras de• arte. 71ª 73. 286 n; qua- indu,1riaL 99: - de prndu~·ão de sen-
daq e dcsapos-.nncnto - 166-168; - ,. 120; cfiçácia -. 14-15. 48. ! 16- dn, dm 1·r,wc1rrespenioe111t>-1· dt' um tido. 14}_
di,ciplinamcnw -. 199-202: capital J 17. 145. 22:'i. 243: c•cmmmiado --. nmjrm/o de ugrn/e;i m1 de i11.,1/111i• VIOLÊ:-.JC'!A. - ,imbt\lica. ! 1. 12. 14-15. 95.
--. 190-193. !94-196; par1idos s. 112. (vd. /t,/a.\, /!Oder). çúe.,. 29 . 30_ 21 !, 250: - iconoda,rn. 48; -- p()l/li•
!74-175. 178-180, 184-185. 19!- SOC!AL(AIS). 28. 30. 34<15.53. 54-55. 101. SI!< iologÍ<I. rcla<:i(l!lal. 27-34. 65; - wmo tu- t·a. 15. 199: -- insti1uc-ional. 95.
192. 196-20!; profissionais da 125-127, 145. 156-157, 237, BR.
IM. lúH-l"/0, 172-17J, tlB, IHH- 247; intq'.rnção -, 9- líl: idcntidaüe -
189. 197-!98', apoli1ümo. 169. (regional e élni,.-a). 1!2. 1 U, 120,
POS!ÇÀO(ÕESl. L'4-U6: - e profissôes. J48; diferenciação-. 28. 154: dife•
!47• 148: sentido da ocupada (-><'JI· rença, .• 143-144: distinção. 129.
.I'<' of 0/1(>., p/act>). !4L dia!éctka 144-!45: depreciação-, 128; inte-
entre ;1.s ;uiwdcs e a., do, agentes, ra,;ção --. 54-55, 66; normali:rução
! l. !14. 85. 9.í-96: homologias entre d;,s rclaç\>C, -. 249: capital -. 29;
a, - do~ intclecwais no campo do construção das repre,entaçõe~ -- do
poder e da da,,c dominada no cam- -. 9. 36. .io. 43-44, 47: prindpi()s de
po social. 152·154. (vd. <1gm1,,_,_ visãocdivi,iíodo-, ll}-115, !37-
e.1/>m;ow,ú1/). !38. !46.148. !74. 238: produção -
PRÁTJCA{Ol. 1:16-87. 1 l 2: razão -. 61: senso du~ prublcmas - legítimos. 35-38:
-. H.'l: ajustamento (entre atitudes e grupos profissionais. 39,42. 93: cor-
posiçôcsl, 9H: -· ~ inscrirn~ rn\s pu,i- po-. 276•277: .wôedades ,irrnfraJ.
ç&:, (ou nu, postos). 89-90. <;14: - 142-143: wwiedade de mrte, 84-85.
juridirn. 240. SOCIOLOGIA, -- como ruplura i·om o :senso
REGIÃO. 107•!32: génese da r10,;iiu de c·omum. 34·44. 50, 65: ~ como rup!U·
107-!2}: regionalismo (lutas regio- rn epi~temo!ógica. 34-51. 60. 67•68:
nais). 124-!}2: universali;,.aç1lo e rnmu discur,o em concorrência
regi()na!ismos, !29-1 }! . --</Om outr<½ ~ut'>'0\1';"54-58; - e
RELAÇÕES, 28. 6)-66: - da força l !. 15. ideologia. 48; - e fi!osona, 43-44: - e
1}5, l.t2, 224-225: -·· de força simbó- direito. 25J: e nuçiiode região, l 10·
!i<:a,, 56-57. 124-12): -· de poder. 28; 1 ! 1. 112, !21-122: -- como instru•
- entre agentes do campo intekclual. mcnto de luta no i11t,•rior do çampo
66. (vd. ramp,i. espaço .«>eia!). universitário . .~2.
REPRESENTAÇÕES. R9-90, 112. 118. 238: Ohjeclu ,\11,-;,,l,íg;,.o; \:on,ut1ç!l<>dn , 20. 24·
sociais. 36, 40. 43-44. 47. 48, 75- }4. _:14 .N. •!I, """uu,·;Jo <!n(,l
76. 256; relai,·ào c•ntre a, do mundo pmhlcrn;N,), 1\ \<), ,!'!11,Jo h'"'"'
7

ÍNDICE

Nota de apresentação l

Capítulo I Sobre o poder simbólico 7


,-,-•--- Os ~sisremas simbólicos» (ane, religião, !ingua) como
estruturas estruturanres, 8. «Os sistemas simbólicos»
comoestrumrasestrururadas, 9. Primeirasímese, 9. Se-
gunda simese, lO. As produções simbó!kas como
insm1memos de dominação, 10. Os sistemas ideoló-
gicos que os especi>l.!istilS p!'\l<lw;,:,m, 12. Instrumentos
rimbôlicos (esquema), 16.

Capítulo II Introdução a wna sociologia reflexiva 17


Ensinar um ofkio, 17. Pensar relaóonalmente, 23.
Uma dúvida radirnl, 34. [)(;llhfe hind e conversão, 44.
A objectivação panicip,mre, 51.

· Capítulo III A génese dos conceitos de habitus e de campo 59

Capítulo IV Le mort saúit !e vi/ As relações entre a história


reificada e a história incorporada 75

Capítulo V A identidade e a representação. Elementos para


wna reflexão crítica sobre a ideia de região 107
As luras pelo poder de di-visão, 108. Dominação
simhó!ka e lutas regionais, 124.

Capítulo VI Espaço social e génese das «classes» 133


O espaço social, 133. Classes no papel, 136. A per-
cepção do mundo social e a luta politica, 139. A ordem
simbólica e o poder de nomeação, 146. O campo
polfrko e o efeito das homologias, 15 l. A classe como
represençação e como vontade, 157.
Capítulo VII
O PODER SIMBÓLICO

A representação política. Elementos para wna


teoria do campo político 163
l
O monopólio dos profissionais, 164. Competência,
çoisasem jogo e imeressesespecífioos, 169. O jogo duplo,
173. Um sismna de desvios, 178. Palavras de ordem e
ideias---furça, 183. Crêdiro e çrença, 187. As espécies de
<:apir;-,1..! po!itiw, 190. A institucionalização do capital
politiro, 194. Campos e l!pffl;'.lhos, 1%. Apêndke, 203.

Capítulo VIII A força do direito. Elementos para wna sociolo-


gia do campo jurídico 209
A divisão do trabalho jurídko, 212. A instituição do A colecção MEMÔRIA E SOCIEDADE procura dar resposta a uma tripla
monopôlio, 225. O poder de nomeação, 236. A fur~-ada mutação que tem ocorrido nas Ultimas décadas na ârea das ciências sociais
fonna, 240. Os efeitos da homologia, 25 l. e humanas. Em primeiro lugar, a pesquisa procede cada vez mais através da
formulação de problemas, desenvolvendo os mêrodos necessários à sua
Capítulo IX A institucionalização da anomia elucidação. Paralelamente, põe em causa as condições da sua própria
255
O olhar acadêmico, 257. O modelo: do nmnoi à insti- produção e as possibilidades dos discursos com que lida. Este itinerário
tucionalização da anomia, 275. implica uma ruptura com as barreiras existentes entre disciplinas, emergin-
do formas interdisciplinares de pensar os problemas que contrariam os
simplismos das «escolas». Nesta perspectiva, tendem a ser superadas as
... Capítulo X Génese histórica de wna estêtica pura 281 fronteiras entre sociologia, história, geografia, anttopologia, psicologia
A anãlise da essência e a ilusão do absoluto, 283. A social ou ciências do texto, surgindo reflexões cruza.das sobre velhos obje<:ros
gênese do campo artístico e a invi:nçwdo ollw-puro, 287.
e transferências metodológicas na construção de novos objectos de estudo.
Em segundo lugar, o número de investigadores deste campo aumentou
Origem dos textos 299 extraordinariamente nos últimos vinte anos, verificando-se uma acrividade
Nota bibliográfica 301 de pesquisa mais intensa e inovadora, uma maior troca de experiências e
Índice de autores 303 uma comunicação activa com a pesquisa internacional. Enquanto se esboça a
Índice temático 307 organização informal de uma comunidade científica, complicam-se as rela-
Índice ções entre os investigadores e os diversos agentes culturais que trabalham no
·" 1·' sistema de en~ino, nos meios de comunicação social e noutras âreas. Por um
lado, a afirmação de um duplo estatuto por parte de numerosos agentes
permite ao secror da criação aproximar-se do secwr da difusão. Por ourro
lado, as necessidades da especialização e os condicionamenros da reprodução
implicam bloqueios no intercâmbio emre os dois sectores.
Por Ultimo, â reestruturação da oferta cultural, tanto ao nivel dos agen-
tes como dos suportes de difusão utilizados (livro, jornal, disco, filme, vidro,
diskette), tem caminhado a par de uma maior complexidade da procura
culmra!. Com efeito, o aumento do nível de instrução registado nos últimos
vime anos e a diversificação profissional ocorrida no sector de serviços
(particularmente na indUstria cultural e na indúsrria do lazer), tornaram
o pUb!ico mais exigente e mais especializado. Esre fenómeno comporta em si
uma procura de leituras diversificadas, incluindo nestas a leitura de quali-
dade - que permita compreender as rendências mais profundas da socieda-
de, ;1 posição de cada um e a posição dos ourros --, pois a especialização cria
a nctessidade de olhar em volta e de aceder a visões descentradas dos
J'Wl]l!Cnos universos em que nos movemos.

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