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Gérard Lebrun

A filosofia e sua história

, Organização de
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Maria Lúcia M. O. Cacciola
Marta Kawano

Apresentação de Carlos Alberto Ribeiro de Moura

SBD-FFLCH-USP

1111111rn
324860
11111

COSACNAIFY
7 Apresentação, por Carlos Alberto Ribeiro de Moura
17 Sobre esta edição

19 Por que filósofo?


27 Pascal: a doutrina das figuras
37 As palavras ou os preconceitos da infância
53 O cego e o filósofo ou o nascimento da antropologia
67 A especulação travestida
89 .A dialética pacificadora
129 A idéia de epistemologia
145 A boutade de Charing-Cross
169 Além-do-homem e homem total
199 Uma escatologia para a moral
225 Contrato social ou negócio de otário?
237 Hobbes aquém do liberalismo
253 David Hume no álbum de família de Husserl
2 73 Hegel, leitor de Aristóteles
297 Hobbes e a instituição da verdade
327 A mutação da obra de arte
341' Transgredir a finitude
355 Quem era Dioniso?
379 O conceito de paixão
397 Sombra e luz em Platão
413 Berkeley ou le sceptique malgré !ui
433 A noção de "semelhança" de Descartes a Leibniz
451 A neutralização do prazer
481 Sobre a tecnofobia
509 Hegel e a "ingenuidade" cartesiana
543 O transcendental e sua imagem
567 A antinomia e seu conteúdo

599 Sobre o autor


601 Índice onomástico
© COSAC NAIFY, 2006

Edição
MARTA KAWANO

Preparação
EUGÊNIO VINCI DE MORAES

Revisão
CARLA MELLO MOREIRA

Projeto gráfico da coleção


RAUL LOUREIRO

Capa
LUCIANA FACCHINI

Composição
JUSSARA FINO

Ilustração da capa
CARLOS ZILIO

Foto do autor
1986, FOTO JOÃO PIRES/ AE

A editora agradece a Danielle Lebrun

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)

Lebrun, Gérard (1930-1999)


A filosofia e sua história : Gérard Lebrun
Organização : Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lúcia
M . O. Cacciola, Marta Kawano
Apresentação: Carlos Alberto Ribeiro de Moura
São Paulo: Cosac Naify, 2006
608 pp.

Bibliografia.
ISBN 85-7503-504-5
. . , . Moura, Carlos Alberto Ribeiro
1. Filosofia 2. Filoso:1a - ,H1_stona 1. Ili Kawano, Marta. IV Título.
de li Cac ciola Mana Luc1a M . O. ·
· · ' CDD-109
06-3102

lndices para cata, 1og o sistemático :


,

1. Filosofia : História 109

COSAC NAIFY . 2º andar


770 ,
Ru a General Jardim.
• 1 SP
01223-01 O São Pau o Apoio :
Tel [55 11] 3218 1444
Fax [55 11] 32~7 s::4 br
www.cosacna1fy.c . [55 11] 3823 6595
rofessor
. ento ao P
Aten d irn
pav1·d Bume no álbum de família de Huss er1

No início de suas Meditações cartesian~, conferências proferidas na


Sorbonne, Husserl, preocupado em prestar homenagem à filosofia
francesa, assegura a seus ouvintes que "a fenomenologia quase poderia
ser chamada de um neocartesianismo". Quase. Não fosse O detalhe de
que a fenomenologia "se viu obrigada a rejeitar quase todo O conteúdo
doutrinal conhecido do cartesianismo, pela razão mesma de que deu um
desenvolvimento radical a certos temas cartesianos". Não se trata cer-
tamente, de uma homenagem pérfida, pois Husserl jamais perde' oca-
sião de proclamar sua admiração pelo pai fundador do "subjetivismo
transcendental" e pelo "novo tipo de filosofia" inaugurado pelas Medi-
tações. Quando, porém, busca-se determinar em que consiste o mérito
de Descartes aos olhos de H usserl, percebe-se com algum espanto que
esse mérito, tecnicamente, é bem exíguo - e que ele se reduz a uma ins-
piração genial que o filósofo logo pôs a perder. Se Descartes descobre
o ego cogito e se ele se interroga acerca da natureza desse ego, é para
responder: "mens sive animus sive intellectus", quer dizer, para inter-
pretá-lo como um "residuum do mundo", um "fragmento do mundo".
E tratar-se-á então de transferir sucessivamente a Deus e, depois, ao
mundo a certeza que acaba de ser obtida localmente: as Meditações são
uma reconquista do "fora" empreendida a partir do "dentro" ... Como
se, questiona Husserl, "em relação a essa esfera egológica de ser um
forª em geral (ein Drau}Jen überhaupt) pudesse ter um senti·dO [• • •]" • 1

* Extraído d u . d - a a presente edição:


Má . e inanu.scruo, v. 5, n~ 2, abr. 1982, PP· 37-53. Tra uçao par
reio Suzuki.
1
• Edmund H
nol .
1 . .. . . h ,r. d d' ns7endentale Phé'nome-
usser, Dze Krzszs der europazschen Wzssensc a;t un ze tra l .
ogze (Kris · ) [A . . dental] in Husserlzana.
1-!a· . zs crise da ciência européia e a fenomenolog1a transcen '
'ª· M. Nijhoff, 1962, v. 6, p. 82; trad. francesa G. Granel. Paris: Gallima ' 1962 ' P· 93 ·
rd

253
~ pressentiu verdadeiramente, a originalidad d
É que Descartes nao '
ria• ele tinha pressa d emats e adi.
. em por o mundo obJ· . A "

d ab
rnensão. que se . lºd d d et1vo"
u· isrno e ern fundar ava t a e a sua mathesis. Leib . .
ao abrigo o ce c . , "d d . ,, . , n1z ti•
,., . "O senhor Descartes 1a rapt o emats . Do cartesianismo r
nha razao. d . . , esta
. ,., de que é preciso "voltar aos fun amentos ongmarios de tod
a convicçao
. to na subJ. etividade transcendental ,, . Conv1cçao
. _ essencial m o
co ecunen , as,
nh estágio, tão-somente pro~ram~tica. Tudo resta por ~"':er.
naquele
E os grandes nornes do rac10nahsmo moderno, em ultima análise,
não são tratados de maneira rnais generosa. Husserl, por certo, não lhes
poupa elogios: esse racionalismo preservou a idéia de Wissenschaft, her-
dada do platonismo; garantiu a transparência do ens verum ao conheci-
mento racional. Esses méritos, porém, são de muito pouca monta em
comparação com aquilo que lhe falta: uma teoria do conhecimento digna
desse nome. Como falar, com efeito, ern teoria do conhecimento, quando
os produtos do saber, qualquer que seja o estágio em que se situem (juíws
empíricos, ciências, proposições a priori etc.), são considerados simples-
mente como dados - de tal modo que o sentido deles não requer nenhuma
elucidação sistemática? O que nela prevalecia era a prévia certeza de que
todas essas formações já estão disponíveis - e não se tomava o cuidado
de examiná-las somente enquanto se dão à consciência: não se levava em
conta que "esses fenômenos devem antes de tudo ser estudados corno fe-
"
nomenos ,,z• Nada de surpreendente 'nisso, já que o 'racionalismo, seguindo
.•
Descartes , transformava subiºtamente numa psych,. e 1ustaposta as
, outras re-
g1oes'fido ente aquilo
, . que. ,é, n ª rea11·d ade, o campo da unica
, tópica capaz de
c1ar1"P1car, em .ultima mstancia
. , t0 d os os conteudos
, do conhecimento.
or maiorK que seJa
sistemáticas" ~ o ardor com que se entrega as , mvesttgaçoes
. . ,.,
' ant nao a tera em nad
transcendental: tamb, 1 ª esse estad o de insuspeição pre-,
em e1e permanece
metodológicos do ego . cego aos prodigiosos recursos
cogito. 3 Também el ,
est elecer as ciências po 't' e esta ocupado demais com
ah s1 1vas em seu d"ireito,
. para só se interrogar a

2. Id., Erste Philosophie (EPh) [Filo . . 1 · ,


v·,VII , p· 95,. tra d . rrrancesa A. L. K sofia
p- I Pnmeira]
. ' , m Husserliana H · . M N"h ff 56
3· 'Kant 1 - .d 1 e l\.e. Pans: PUF . ata. . 1) o '19 '
. nao po eu trapassar a esfera d .• ' 1970, p. 279.
aquilo que constitui a font d a consc1encia pura
último o de uma sub· . "de e toda filosofia moderna , 'porque descurou de obter, para
' Jet1v1 ade absol t ' o ego couito . "d
tomadas de consciênc· ') . u a, concreta e intu· . º cartesiano, o seu senti o
ia u tunas tam ttlva Em . d
análise da consciência ' . pouco chegou a elah · O virtu e dessa ausência de
- como exph · - orar
A

essência" (EPh I P· 237· tr d . ' cnaçao · · de implicações . ~eneroee oe correlações-de-


método de urna
, ' ' a . cn. P 297) mtenc1on ais
. d

254 David Hume rw álhum defiamíl"za ae


J Husserl
u respeito simplesmente enquanto são conf ~
se d . tguraçoes de conhecimento
''Os problemas transcen enta1s dele em sua b h" . ·
~ ' orma tstoncamente condi
cionada, nao se assentam, como a claridade últ • d . -
. b · ·· . tma o problema aqui 0
exige sobre a ase pnm1ttva de toda mvestig ~
' · · ·d d r açao transcendental· sobre
a base da sub1ettv1 a e 1enomenológica. "4 Daí d"1st " . ·
ª anc1a de Husserl em
relação a Kant, e mesmo sua estranha frieza para d . .
~ com e1e, a qual Jamais
se arreda. Kant nao tomou a estrada real. "[Ele] n~ r d .
. . ao iaz parte a 1mha de
desenvolvimento que, partindo de Descartes e passando L k ~
· r . ,, 5 por oc e, nao
cessa de pro duztr seus e1ettos. O que com ele se 1·n· · , " b' .
teta e um su Jet1-
vismo transcendental de uma nova espécie" , com respe·t 1 o ao qua1Husser1
não oculta que nada t~m a ver com a inspiração fenomenológica.
E:11 sum~,. persistente cegueira para a "esfera egológica" vai junto
com a 1mpossib1ltdade de empreender um trabalho de fundação sistemática
do saber. De Descartes Kant inclusive, o racionalismo ignora que O "solo
arquimediano" se encontra nas proximidades dele- e que, a despeito de
sua exigência de rigor, ele continua assim bem aquém da tarefa que Platão
atribuíra à dialética: "não a~mitir nenhum saber do qual não seja possível
prestar contas (Rechenschafi geben) em virtude de princípios originários pri-
meiros e perfeitamente evidentes". 6 Seria, aliás, inexato dizer que o raciona-
lismo moderno não conseguiu executar esse programa: a verdade é que não
se interessou seriamente por ele (à exceção, talvez, de Leibniz). Não nos
deixemos enganar pela equívoca palavra fundação. Se fundar uma ciência
significa justificar integralmente suas pretensões, o racionalismo só foi fun-
dador em aparência. É assim que Descartes acreditou ter feito ~uit~ "sim-
plesmente proporcionando à ciência um fundamento ~eguro (ezne si:tzenf
Grundlage ), sem no entanto modificá-la do ~onto de vista do seu metodo ..
· ' va1ena
E ta1Jutzo · 1·gualmente para Kant·· amda que este possa fundar .
o di-
.
· ·" ·
retto que as c1encias rac i·onai·s têm de determinar seus objetos,
. .. ele Jamais
e partida no qual estaria JUsttficada a preten-
nos 1eva de vo1ta ao pont d
~ , .
° ,, . . ub
"ciências objetivas ; ele Jamais s mete o
sao a verdade que anima essas • 'd d d
. . ~ • ele não faz das suas 1deah a es e os
conteúdo delas a uma exp1icitaçao, ·

, L "k (FTL) [Lógica formal e lógica transcen-


, d n,s7endentaie ogi .
4. E. Husserl, Formaie un tra 1. • d francesa Suzanne Bachelard. Pans: PUF,
29 P 234, tra .
dental]. Halle: Max Niemeyer, 1 9 , ·
1957, p. 353 ·
5. Id., Krisis, p. 93; trad. cit., P· 105 ·
6. Id. FTL p. 3· trad. cit., P· 7·
' ' ' . 207.
7. Id., EPh, 1, p. 114; trad. cit., P·

2 55
tos O tema de uma indagação descn"tiva que nos en . .
seus enca d eamen , . sinana
·ra exatamente esses conteudos se oferecem e se impõem a ,
de. que ,manei
rei·to do seuundo bloqueio que
.
atinge o
.
racionalismo modern
nos
·
E isso e o e1 1 o . . . . o.
Em primeiro lugar, como ~01 visto, esse r~cio~ahsmo desconhece 0
ego cogito como única fonte poss~vel de t~d~ ~ahdaçao. Em segundo lugar,
ele não sente necessidade de validar a ob;etzndade como tal e por todos os
seus tipos. Ser-objeto, ens qua objectum, é algo ~e passa por tão "bem co-
nhecido" que ninguém se dá o trabalho de questionar os modos de doação
a ele correspondentes. Por falta de domínio do campo egológico, a idéia
que se teria dele é a de que se chegaria somente a uma insignificante psico-
logia das operações do conhecimento ( estudo daquilo que se passa em mim
quando julgo, quando deduzo etc.). Mas não se tem sequer a idéia dessa
investigação. Essa insuspeição que torna impossível toda problematização
do ser-objeto em geral e impede, por conseguinte, toda fundação no sen-
tido da clarificação última e integral, Husserl a chama de objetivismo - e, a
partir dela, ele traça a linha divisória da filosofia moderna.

No seu sentido original, toda a filosofia moderna, como ciência universal de


fundação última, é, ao menos depois de Kant e Hume, um único combate
entre duas idéias da ciência: a idéia de uma filosofia objetivista no solo do
mundo dado de antemão (vorgegebene Welt) e a de uma filosofia no solo de
uma subjetividade absoluta, transcendental [ ... ]. 8

Donde provém essa ausência de curiosidade da parte de um pensa-


mento que pretende ser exaustivo e sistemático? Todo o mal, julga
~us~erl, v~m da tradicional inatenção à objetividade dos elementos
1dea1s. Assim ocorre com Kant: a exposição "curta é seca" que faz da
lógica formal mostra sufic1·e·nte men t e quao
~ pouco· e1e se mteressava
· por
esta. E, assim procedendo, ele escapou de um problema fundamental:

compreender como
• •
as objetividades ideais, 7a ue t"em seu nascimento
· puramente
nas
. nossas
. atividades subjetivas de ;uizo
· ' e ae J
conhecimento,

e que estão on-

gmahter . presentes em nosso camno , de consczencza


.,, · como formações obtêm
o .sentido-de-ser
J •
de
,,
objetos

( den Seinssinn von "Oh'Je k ten " gew1nnen
'. ),
d zante aa contzngencza dos atos e dos su;euos.
· · 9

8. Id. , FTL , p. 212; trad. cit., p. 23i.


9. Id., ibid. , p. 233; trad. cit., p. 2i1,

256 D avid Hume no álhum de família de Husserl


:gssa qUestão parece circunscrita . à esfera da lógica · É el a, no entanto e
sornente ela' que, generalizando-se,
. tornará problemáti·ca a ob'Jet1v1
· "d ad' e
ern ge ral · Se o obJeto em geral aparece como o produto de uma cons-
·ruição de sentido, por que não ocorrerá a mesma coisa com tod
t1 . b. " d . . . os os
outros upos de o '}etos. ,To : º?Jet1v1da~e, com o sentido completo
pelo qual_ ela vale para nos, nao e ~ma obJetividade que chega ou che-
ou à validade (zur Geltung) em nos mesmos, e com O sentido que nós
g . ~"lÜ E' .
mesmos obtivemos. nesse momento que se impõe universalmente
a necessidade de tematizar o objeto simplesmente como cogitatum para
decifrar o sentido-de-ser que lhe é próprio - mas para chegar lá é pre-
ciso ainda, decerto, ter reconhecido que há objetos ideais: eis a prelimi-
nar indispensável, e eis porque não é "de maneira contingente" que a
fenomenologia, historicamente, alçou vôo nas Logische Untersuchungen
[Investigações lógicas]. Ora, os modernos, em sua maioria, estavam
pouco inclinados a esse reconhecimento, o único que pode dar início à
11
indagação - e isso em razão da força da corrente "antiplatônica".
O preço que a filosofia pagou por esse preconceito antiplatônico
foi a sua radicalidade: porque o Seinssinn "Objekt" não suscitava ne-
nhum espa11:to, a presença de algo como um "mundo objetivo" não era
sequer percebida como um enigma. Tal foi o efeito desse "objetivismo"
que a descoberta - ou melhor: a antecipação - cartesiana não abalou
nem um pouco. Curiosamente, quem pôs o "objetivismo" em questão
não foi aquele que se gabava, em alto e bom s?m, de te~ expulsado
todos os pressupostos; esse questionam_en~o_ foi me~o~ amda fom~n-
tado (como se poderia esperar ein boa histona tele?logica) por_um m-
, . "A d mi·naça~o do obJ. etivismo havia durado milhares
teresse 1ogico... o .
de anos"12 até receber os primeiros golpes d~ Ber_keley e Hume~fora~
.. ,. verdadeiros pioneiros da fundaçao radi-
e1es ' o empirista
, e o ceuco, os Husserl com uma honestidade . exemp1ar,
ca1. Este, e o momento em d' que
'd ara com' seus parentes mcomo
. " dos - e
devera reconhecer sua ivi a P
mesmo um pouco indignos.

10. Id., FTL. .


II. Cf. FTL, PP· 228-29; trad. c1t., ~- 34\o
. . . trad. c1t., P· 5·
Knsts, P· 93 '
12. E. Husserl, _
2 57
ue a idéia de fenomenologia só tenha surgido historicamente e0 rn o
Q
empirismo inglês é uma afirmação que pode parecer excessiva. Obser-
var-se-á que Husserl jamais coloca a fenomenologia sob o patronato
de Hume , mas sob O de Platão e de Descartes. Certo, não há Med'zta-
ções humianas. Husserl, porém, jamais diz de Descartes o que diz do
Tratado: que este é o "primeiro esboço de uma fenomenologia pura
embora sob a forma de uma fenomenologia puramente sensualista e'
empírica". 13 Descartes é, sem dúvida, o inspirador insubstituível, mas
é somente quando sua inspiração é reativada pelo empirismo oriundo
de Locke que a filosofia começa a se tornar tecnicamente fenomeno-
logiá; é somente então que ela tenta "interpretar concretamente, numa
universalidade sistemática, aquilo que tinha vindo à luz, embora fu-
gidiamente, nas Meditações" . 14 Em resumo, é com o empirismo inglês
que se vê desenhar "a tendência em direção a um método imanente",
que não se manifesta no grande racionalismo "nem mesmo de uma
15
maneira imperfeita".
Todos nós sabemos que "a história avança pelos seus lados ruins".
Desta vez, ela avançou pelo seu lado... medíocre. É com Locke, aí de
nós!, "autor entediante e prolixo" , 16 embora de extrema importância,
que o ego cogito cessa de ser um ainda abstrato chamamento à apodi-
cidade para se tornar um solo de investigação. Pela primeira vez, ten-
tou-se decidir o alcance e os limites de validade dos diferentes tipos de
conhecimento recorrendo-se às "idéias", isto é, às percepções internas.

[Locke] é oprimeiro a procurar, partindo do cogito cartesiano, o caminho que


leva a uma ciência do cogito [...] ele é oprimeiro a compreender que épreciso
recondu1ir todo conhecimento às fontes intuitivas originárias na consciência,
17
na experiência interna, e que é preciso elucidá-lo a partir destas.

A egologia de. Locke se apresenta , é verdade , como uma "h'istona


, · " da
alma (entendida como região mundana) . E a empreita · d a se vicia,
· · so -
bretudo, pelo fato de que Locke admite a t ranscen d"encia
· d e um mundo

13. Id., EPh, I, p. 157; trad. cit., p. 225 .


14. Id., Krisis, p. 437; trad. cit., p. 484.
15. Id. , EPh , 1, p. 187; trad. cit., p. 268.
16. Id. , ibid., p. 142; trad. cit., p. 20 5.

17. Id., ibid. , p. 144; trad. cit., p. 2o8.

258 D avid Hum e rw álhum de família de Husserl


. que equivale a pôr de antemão a validade obJ' etiva va-
c1a -
u}Jstª11 1 le deveria deixar se constltmr unicamente na esfera do ego
0 . • • . '
5
lidª.dens-"
que Esse
e parti-pns. ~etaf'1s1co
. rapt'da~ente aparece como incom-
cogita método delineado pelo Ensaio - e cabe a Berkeley limitar
paúvel com nte a invesugaçao
. acerca das transcend"enc1as . ao campo dos
O

~ressarne
e"r . ediatos: aosfenomenos. Graças a isso, ele traz a luz aquilo que
A • ,

dados irn
, ''legitimidade permanente do empirismo.. " (das blezhende
. Recht des
da a . . ,nus):19 es1orço
r de a1uste
. a, evi'd"encia,
. a vonta de de descrever
0
Ernptris l d, . , f .
acoisa percebi?• co,mo ,' a se a, isto e, se~ azer a suposição ~e que a
~ncia sensivel e a imagem enfraquecida de algo que estaria locali-
apar e
zado... fora. Quando Hylas, desabusado, reconhece ao final do diálogo
que ele vê as coisas "in their native forms" e declara que não mais se
colocará em embaraço "a respeito da natureza desconhecida, nem da
existência absoluta delas", ele ousa - enfim - abjurar abertamente o
"objetivismo". E esse momento é de tal importância, que deve nos fazer
perdoar, ao menos por um instante, a incurável miopia do empirismo.
Vindo de Husserl, essa defesa do empirismo surpr~ende, com ra-
zão. Husserl, todavia, não se contradiz. O empirismo criticado sem tré-
gua por ele desde as Logische Untersuchungen é o empirismo que trai o
sentido específico dos conteúdos de conhecimento e teima em remetê-
los a uma evidência que não lhes é apropriada-, o empirismo que quer
fundar os princípios geométricos sobre a indução ou, ainda, que pre-
tende reduzir dogmaticamente todos os juízos à "experiência", como
se todas as coisas se dessem originariamente ao modo de coisas-da-natu-
reza ...20 Mas o empirismo, então, é vítima de "construções especulativas
apriori''. Não é seu método que o desencaminha, mas sua infidelidade
a ele - e é por isso que a verdadeira crítica do empirismo consistirá em
"defendê-lo, por assim dizer, dele mesmo" (den Empirismus gleichsam
gegen ihn selhst verteidigen). 21 Estranha situação, pois, a do empirismo.
Nossa tendência seria ver nele uma sofistica que tem aparência de filo-
sofia. Mas isso seria falso: o empirismo é, antes de tudo, a aparência ...

i8. Id.' EPh 'PP· 95-97,. trad . c1t.,


· PP· 135-37.-
19· Id.,ihid., p. 146; trad. cit., p. 211.
20 ·Id., Ideen {U einer reinen Phanomenologie und phanomenologischen Philosophie I (Ideen)
(ldéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica], in Husserliana. Haia:
M. Nijhoff, 1950, v. m, § 19.
2.1. ld ·, EPh , I , p. 148· · p. 213.
, trad . c1t.,

2 59 .
Scheinemnirismus, pois "é somente em aparência q
d e1e mes mo. r ~ . ~ ue ele
respeita seu princípio de nao e~u~ciar nada ~ue nao _tenha tirado da
. . ~ ".22 e' somente em aparencia que ele diz o sentido daqui'lo
mtmçao , . . . ·~ que
ve," porque decidiu restringir o sentido a
. uma regiao
. do ente , e sua e
1e-
nomenologia é filtrada por uma ontologia mutiladora.
E no entanto trata-se mesmo de uma fenomenologia ... Quando
confunde a "coisa" visada como sendo "idêntica" aos perfis sensoriais
por meio dos quais ela se anuncia, Berkeley sem dúvida sucumbe ao pre-
conceito sensualista. Mas esse erro, por mais grave que seja aos olhos de
uma exigência de clarificação eidética, não nos deve fazer ignorar que
0
cogito está enfim aberto como campo de imanência, e que o terreno
está limpo para uma pura interrogação sobre o sentido-de-ser das dife-
rentes objetividades. Buscar-se-ia em vão em Kant o equivalente desse
retorno a "uma subjetividade absoluta, concreta e intuitiva" - sejamos,
pois, equânim_es com o ~mpirismo. Sem dúvida, não encontramos nele
nenhum pressentimento da •intencionalidade. Mas, e daí? "A época do
método intencional ainda não havia chegado [... ]." E se for preci.so esco-
lher, mais vale o "naturalismo imanente", mesmo que muito rapidamente
falseie o questionamento fenomenológico, que o "objetivismo", que im-
pede a filosofia transcendental de tomar a forma de fenomenologia.
Desse ponto de vista, a superioridade de Hume sobre Kant é gri-
tante. É uma infelicidade, diz freqüentemente Husserl, que Kant não
tenha podido ler o Tratado: ele teria entrevisto talvez quanto a sua
problemática era estreita, se comparada à deste. Pois o "problema de
Hume", tal como Kant o forjou, mostra sobretudo que ele aceitava,
como teórico "objetivista", as pressuposições que haviam sido abaladas
por Hume. 23 Com Hume, efetivamente, o empirismo não concede mais
nada à metafísica e às suas "transcendências transubjetivas por princí-
pio" · Hume dissolve o" ~u 1'd"en_t~co
· " que Berkeley ainda conservava: no
lugar de um ego mundanizado, Jª não ha' desde en t~ao senao~ " percepço~es

22. Id. , EPh, p. 136; trad. cit., p. 194.


2 3. "O que é, em seu sentido e sua validade isto·
. , · um ,mundo oh . . ' bº · te
verdadeiro e a verdade obi'etiva da •· . d '}etzvo, um ser o ieuvamen
' c1encia, se esde Hume ( .
já desde Berkeley) se viu universalment d e no que se refere a natureza
e, e uma vez por t0 d , 1
surgido na subjetividade?" (Krisis p. . t d . as, que o mundo e um va or
' 99 ' ra . cu., p. III e t 0 d 0 0 §
se a seguinte frase: "Citamos aqui Husserl em f , ' 25) [No original segue-
rances na ad . , 1 , d
Granel" (N.T.)]. ' mirave tradução de Gerar

260 David Hum e no álbum de família de Husserl


e ealor e frio, luz e sombra,
. d amor e ódio [... ]" _ e a Segun d a M edº1taçao
~
d , fi' nalmente des11ga a de seu substrato metar,1, ·
u~ro

Hume]foi
. . oprimeiro
. a levar a sério a atitude de Descartes, ae
J se voltar para
[
a interioridade, pura desemharaçando
. . radicalmente ª ª lma, aesae
J J
o tntcw,
. , •
de
tudo o que da a ela uma significação
~ . real mundan a e pressuponao-a J pura-
mente ~omo campo de percepçoes, impressões e idéias [...].24

Ele foi o primeiro... O balanço dos direitos de autor de Hume e, impres-


·
sionante:

Ele foi o primeiro a com?reen~er problema concreto universal da filosofia


transcendental [...]; foz o przmezro a ver a necessidade de estudar precisa-
mente essas formações objetivas como formações de sua gênese, a fim de tor-
nar compreen,sível, pelas suas origens últimas, o exato sentido-de-ser de tudo
aquilo que existe para nós[ ... ].

Foi o primeiro, ainda, a se perguntar como são constituídas "essas


objetividades transcendentes [... ] que são de antemão evidentes para
nós: espaço, tempo, contínuo, coisa, pessoa". Não é nada surpreendente,
portanto, se Hume, até o nascimento da fenomenologia, permaneceu ne-
gligenciado. A ciência fundamental anunciada pelo prefácio do Tratado
foi compreendida como uma investigação empírica, e ninguém entreviu
a novidade de um saber que tem como único texto "os eventos ocor-
rendo na esfera das percepções". Se a intenção de Gründlichkeit perma-
necia assim oculta, o Tratado se reduzia a uma investigação antropoló-
gica - o que de pronto mascarava a verdadeira dimensão do "ceticismo"
de Hume: não se percebia que esse ceticismo era o atestado de falência
de um empreendimento constitutivo. Pois a constituição, esse projeto
que dará "um sentido radicalmente novo" ao idealismo transcendental,
tal como entende Husserl, 25 opera sem cessar em Hume. A única di-
O
ferença é que ela toma ares de uma desmistificação: gênese ao longo da
qual as "evidências" que se impunham mcontestavelmente ~a atitude
natural (a identidade, a substância, o eu, o mundo ob;etzvo ... ) ~ao recons-
tituídas como ficções, em vez de ser descobertas em sua validade. Por

. te EPh p 1,8· trad. cit., p. 22, e FTL, p. 227; trad. cit., p. 342.
I

2 E H . usser l , respecuvamen , , · ,[m
,,, ,d. · cartésiennes .' Husserlzana.
. . M. N11hoff,
Haia: .. 1973, v. 1], § 41.
2 5· Cf. E. Husser, l 1v1e itatzons
inacreditável paradoxo, a constituição sistemática dos sen .d
um . . , l ti os d
er uando ela aparece pela primeira vez as c aras, é apresentad - e-
s ,q . . . , . . a coni. 0
uma desc onstrução dos preconceitos
. imagmanos. Assim
. , só se reteve de
Hume a imagem do suhverszvo, sem que se pressentisse que essa sub
são era a renúncia a uma justificação integral até então insuspeitad a. ver-
É verdade que Hume. se esmerou
~ em embaralhar
, as cartas e que 1evou
a malícia a ponto de fingir ... nao ser fenomenologo. Ele se e:,prime co
freqüência "como se todavia existisse um mundo transcendente desconh:
cido e inacessível; com desenvoltura, faz seu leitor voltar ao mundo natural
( que ele, no entanto, secretamente "reduziu"), tira seus exemplos da histó-
ria e da retórica; invoca os relatos de viajantes, a experiência dos médicos
ou dos camponeses... 26 E, no entanto, se ele não tivesse sido guiado pelo
projeto transcendental, como compreender a crise de desespero do fim do
Primeiro Livro - e a confissão que faz ali de ceticismo radical, a despeito
de todo o cuidado que toma em se distinguir do "cético extravagante"? O
que ele confessa ali é seu fracasso como fenomenólogo. Fracasso que, de resto,
nada tira de sua grandeza. Numa nota _d e 193 7, H usserl chega a sugerir que
era historicamente necessário que o projeto que se retomou de Descartes
fosse pervertido em solipsismo - era necessário que Hume fosse condu-
27
zido a essa "conseqüência monstruosa (ungeheuerli;he Konsequen{)". Que
significado pode ter essa necessidade? E _por que foi útil que Hume não
tenha podido ser um fenomenólogo bem-sucedido?

Uma indicação encontrada em Die Jdee der Phiinomenologie (1907) nos


colocará talvez a caminho da resposta. É uma passagem da Segunda
. ~ 28 na qua1 Husser1 quer provar que, quando se descobre a trans-
L1çao,
cendência do mundo como um enigma que "detém a marcha do conhe-
ci~ento natu~al"? o novo saber que se encarregará de dissipar esse
enigma devera evitar, em primeiro lugar, toda forma de "objetivismo":

. "Hume ' sem dúvida ' muitas veze s se expnme


26. · como um agnóstico, como se todavia
· exis-
·
usse . realmente
. um
. ,mundo
. transcendente des cO n h eci'd o e mcognoscivel
• , que seria· preci·so
admiur .como _ pnncipio de ser inclusive para O urso a vi a e nossa consciencia. Mas iss
c d 'd d ' • A • · o
contra
_ d, 1z tao fortemente
_ . suas teorias ' que aí nao
- se po d ena . ver outra coisa que uma con-
cessao as concepçoes remantes defendidas pela I r · " ( . cf.
Krisis, p. 432; rrad . cit., p. _ g eia EPh, 1, P· 180; trad. c1t., p. 258).
447
27. E. Husserl, Krisis, p. 433; trad. cit., p. 47 8.
" [A idéia d a 1renomenolo · J ·
28... Id., Die Idee der Phii.nomenolou-ie = l' H ·a· M-
N11hoff, 1973 , v. 2, PP· 36- 38·, rrad • fira ncesa AI exande L" . hgia , in rzussa iana. at ·
r ow1t . Paris: PUF, 1970, PP· 61-63.

262 David Hume no álbum de família de Husserl


não deverá, sobretudo, fazer uso do transcendente como "já dado". Sem
dúvida, eu sei desde sempre que possuo um saber do transcendente _ e
"nenhum homem sensato duvidará da existência do mundo". Mas esse
factum (DajI) d_eve per~a~ecer,_ no caso presente, inteiramente fora de
·ogo pois ele nao poderia mstrmr-me acerca da possibilidade acerca do
l ' . d h . 29 '
como ( Wze) esse con ec1mento. . Sempre soube que O conhecimento
transcendent~ é ~ossí_v~l - mas é precisamente essa possibilidade que é
e sempre sera emgmatlca, a menos que se torne patente, na clareza da
evidência, que faz parte do conhecimento "alcançar um ser transcen-
dente". Ora, para obter essa evidência, o saber de sobrevôo, segundo 0
qual há um conhecimento do transcendente (há ciências naturais etc.),
não me é de nenhuma utilidade. A única atitude rigorosa é a de esque-
cer o Daj3 para não me fixar senão no Wie.
Tal é a resolução tomada por David Hume, com perfeita cons-
ciência do seu alcance e do risco que envolvia. Se não consigo compreen-
der, dizia aproximadamente Kant a Marcus Herz, como os conceitos a
priori podem se ajustar ao conteúdo dado na intuição, quicl3º da possi-
bilidade das ciências da natureza? Hume, por sua vez, fazia subir as
apostas: se não consigo retomar o modo como o valor "ser-transcen-
dente" se inscreve nos conteúdos de conhecimento como tais, quid de
um saber qualquer? Se a relação-ao-ohjeto jamais me pode ser dada na
evidência, a catástrofe teórica é integral. E é justamente o que acontece
ao "mau intuicionista" (pois Hume, como todo empirista, é um "mau
intuicionista") que se aventura a jogar o jogo fenomenológico. Depois
de ter constatado sua falência, que lhe resta fazer? Voltar à ingenuidade
pré-filosófica, como se nada tivesse acontecido? Jantar, jogar gamão...
Isso não é possível por muito tempo.

Se alguém [diz Hume] se acostumou a fazer ~onsiderações c,é~icas_ sohre a


·
incerteza e os es t rez'tos li'mi'tes da ra7ão
1- '
ele nao as esquecera inteiramente
• , •
,flexa~o
quan d ovo l tar sua re1 , para outros assuntos: em todos os seus princtptos
· , · fil
e seus racwcmws l os 0,t:cos
'J" (não ouso di7er
1-
em sua conduta corrente) ele se
31
mostrará diferente [.. .].

29. Cf. EPh, 1, p. 168; trad. cit., P· 242·


30. Em latim no original. [N.T.] . . .. . ~
. , b
31. D. Hume, Dialogas so re ª re l l'gião natural. Pnme1ra
~
Parte [Utiliza-se

aqut a traduçao para o
• de Jose, Oscar de Al meida Marques. Sao Paulo: Martms Fontes, 1992, pp. 15-16 (N.T.)].
portugues
Tradução de Husserl: aquele que deixou o DajJ de lado para h
. .
nenhum proveito o Wze

deyeria se é conseqüente, renunciar também ao seu ponto depanid . l


' . - . a. e e deve.
ria reconhecer aue nessa sztuaçao, o conhecimento do transcendente , .
i ' . , . e zmpossí-
ye f nue seu pretenso saber a esse respeito e um preconcezto. Oprohlem _
'1
J.á não será·. como o conhecimento transcendente épossÍYel? - mas como se poa.e
J

explicar O preconceito que atribui ao conhecimento uma operação transcendente


(transzendente Leistung): este é precisamente o caminho de Hume.n

Sobre essa base, como definiremos o cético? Ele é aquele que: 1) põe em
execução a palavra de ordem fenomenológica de colocar as transcen-
dências fora de circuito, mas que: 2) por incapacidade de fundar o saber
das transcendências converte o colocar fora de circuito em niilismo - 0
que pensar desse cético? Render-se-á, bem entendido, homenagem ao
seu rigor. Mas a seguir, e sobretudo, importará ao fenomenólogo man-
ter à devida distância esse ancestral desgarrado.

Nada nos é mais estranho que a idéia de querer encetar um jogo de paradoxos cé-
ticos contra a atiYidade racional e natural da Yida [... ] e, por conseguinte, contra
a ciência natural- nem querer desYalonº1á-los seja de que maneira for. 33

Que o empirismo inglês desemboque no ceticismo é o sinal de que o


fenomenólogo só pode encontrar no empirista um precursor técnico - e
de que deverá, no fim das contas, invocar uma linhagem espiritual w:.
talmente outra: ele vem de uma ascendência mais nobre. - Tentemos
agora compreender exatamente por quê.
Antes de mais nada, como se explica que um pensamento (Berkeley,
Hume) que rompeu pela primeira vez com o "objetivismo" não pôde
manter-se à altura do projeto transcendental? É curioso que a fraqueza
do empirismo se deva, originariamente, à mesma espécie de insuspeição
que tornou possível o objetivismo - da qual, no entanto, o empirismo
acabou sendo o antídoto. O "obi"etivismo" como vimos sanciona a
) )

indiferença perante o problema seguinte: de que maneira algo que é o


produto de uma constituição de sentido pode no entanto valer como

32. E. Husserl, Die Jdee der Phanomenologie, p. 38; trad. cit., p. 6 .


3
33. Id., EPh, ,, p. 246; trad. cit., p. 310.

264 David Hume no álhum de família de Husserl


-e sse problema não pode ser motivado senão pel h .
. ''? o e . . !· r . f 1 ~ o recon ec1-
,, 0wro b. tividade idea . IOl por a ta de atençao a esta d fl ~
da o 3/e f'l' r , e e re exao
,,,entº tuto que os i osoros permaneceram insensi' • .
w seu esta , . veis ao enigma
5obre ndência em geral.
é a transce . . , . d f
que O empirismo teve o mento e azer surgir es .
ora, se , . . se enigma
. rtamente o thaumaz.em suscitado pela lógica formal r '
foi ce f'l fº . que o rez
naornar essa vi·a · Nenhuma - i oso ta .nega. mais ferozmente a obJ. e t"1vi'd ad e
to Hume levando esse nommahsmo ao extremo teve n L .
•deal - e ' , , as ogzs-
1 rr. tersuchungen, uma entrada pouco gloriosa na cena husserliana.
che vn h . ." .
ando admitir que ªJª uma expenencia na qual nos seria dado 0
Recus ""d'º b " H .
, do de uma i eia a strata , ume, mais radical que Berkele
conteu , " . Y,
faz desaparecer ate mesmo a aparencia de uma consciência-do-geral.34
Jamal·s temos na mente algo _ que . corresponda à generalidade conceituai ,
mas somente representaçoes singulares que utilizamos como se fossem
gerais. Estranha teimosia_, de que Segu~~a In~e~tig:ção fazia a aná-
lise: por temor de ressuscitar as entidades metafisicas , o empirista se
recusa a ver que a "generalidade como tal" se dá numa intenção tão
perfeitamente diferenciada quanto o "percebido como tal" ou o "fictí-
cio como tal". Melhor ainda: para dissimular essa má fé, o empirista ana-
lisará os fenômenos que ele se dá como campo de estudos sem recorrer
ao operador "representação de" - esvaziando assim, pura e simplesmente,
osujeito... da sua subjetividade. 35 A recusa sectária dos universais, é bem
esse, portanto, o prôton pseúdos de Hume:

como é um mau intuicionismo, [o empirismo] não conhece outra doação da


coisa ela mesma além da experiência dos dados individuais ou temporais, e
desconhece este fato, de que o geral, as generalidades conceituais e as gene-
ralidades .de estados-de-coisas, podem ser objeto de uma intuição evidente
imediata [.. .]. 36

34.
., "Não
. se trata d e transformar em ficções as idéias abstratas como d ad os de uma expe-
nencia que t' l d xperiências-
apa , . em, certamente, uma experiência[ ...] mas têm somente O va or e e
renc1a com0 H , ., • a e aos seus dados; o
pro 0, . ' ume tentou mostrar em relação a expenenc1a extern
çõesPahs1to do capitu
, l0 , ao contrário é provar que não temos verd a d eiram
· ente 'representa-
d
'expe ·,stratas' 'd,. ' ab l
. ' que as 1 eias abstratas não se apresentam so utamen te como dados he uma
nenc1a' q l ,, f L · che Untersuc ungen
[lnvestig ua quer (FTL, pp. 229-30; trad. cit., p. 346). C · ogis
3\. E. li açoes Lógicas], II (1). Tübingen: Max Niemeyer, 1968, PP· 18 7-9º·
UsserJ EPh 1
36. Jd., ibid ' , , p. 163; trad. cit., p. 2 34.
·, p. 171; trad. cit., p. 246.
decorre com efeito, dessa cegueira aos objetos ideais·
T udo , .. " • urna
vez feita essa opção, 0 empirista ~scorrega ~e~a ~ascata dos absurdos".
Em vez de admitir que, a cada tipo de obJet1v1dade, corresponde u
modo apropriado de clarificação, ele precisa sustentar que a exigê:
eia de evidência só é satisfeita pelo recurso a um dado sensível. Ele vai
reclamar, portanto, o indubitável, o Letzt-unfragliche, que ele procura
(como todo intuicionista), de um evento, ou melhor, de um encontro. 0
"ens cerium" será a impressão - e toda verificação de uma idéia consistirá
em reduzir esta à impressão de que ela deriva (por decisão dogmática).
Husserl não se cansa de questionar Hume sobre esse ponto: como tal
"impressão" é vivida? Que nos ensina ela sobre si mesma? Por que tra-
ços ela se distingue da idéia? Como se faz para que seja nela que encon-
tramos o dado-em-pessoa? O empirista não responde a essas questões.
Ou antes, ele responde a elas de maneira absurda: a impressão é mais
viva, ela atinge com mais força ... Daí não tiramos nada mais que essa
informação balística, e jamais saberemos o que fa 1, da impressão, uma
,, . ~ ,, . , . - -
impressao , isto e, por que essa 1mpressao, e nao outra, tem por caracte-
rística anunciar a coisa como presente. O empirista é incapaz de dizê-lo,
porque rejeitou, de saída, a tópica que lhe teria permitido formular a
questão. De que lhe serve, então, considerar os fenômenos, se não con-
segue sequer se interrogar sobre o sentido que especifica cada represen-
tação? Se já transformou esses fenômenos em coisas "que são, mas nada
significam, nada visam, nada trazem em si de sentido (tragen nichts in
sich von Sinn)" .37 Assim, a investigação fenomenológica que não chega
a acontecer é substituída por uma descrição fenomenista.
Vemos que Husserl faz Hume pagar caro pelos elogios que lhe havia
feito. Hume havia sido glorificado por ter desenhado o lugar da fenome-
nologia transcendental. Mas o fato de que tenha se negado o meio de levar
adiante a empreitada torna seu fracasso tanto mais patente e deve inclusive
nos levar a julgar tanto mais severamente a sua filosofia. " Widersinnig",
" Widersinn": essas palavras voltam sem cessar, quando Husserl começa a
analisar a deformação imposta por Hume ao projeto fenomenológico que,
indubitavelmente, era o seu. Poder-se-ia perdoar ao objetivista a naturali-
zação da vida da consciência, mas não àquele que, depois de ter rematizado
os fenômenos, julgou acertado tratá-los como eventos. o que se deve ad-
mirar mais, a perspicácia do homem ou sua perversidade?

37. Id., ibid., p. 163; trad. cit., p. 235 .

266 David Hume no álbum de família de Husserl


tanto, é lícito pensar que Hume não merece "nem um tal
No en I . dº ºd d ,, , . , excesso
r a nem uma ta m 1gm a e . Ate aqm nos seguimo . _
de hon , s a expos1çao
sserl tentando recuperar-lhe o espírito. É hora de no
de Hu . " . ,. , s perguntar
a pertmenc1a dessa critica - e tamhem sobre a perti
º n" · d
sobre . , . enc1a o e1o-
. que a precedia. E sempre perigoso querer surpreender algu,
gio . . em como
Hu me em flagrante delito de mconseqüência Ora ha' um
· , momento ao
n os em que, na interpretação de Husserl Hume é acusado d •
me ' e mconse-
qüência: levad~ por seu_ardor_ n?minalista, Hume, para se fechar melhor
em seu sensualismo, tena dec1d1do passar em silêncio a problemática do
sentido e descrever os f~nômenos sem se interessar por aquilo que eles
apresentam e pel~ ~~ne1ra com~ a ~presentam. Isso, para Husserl, é a
tal ponto contrad1tono com a propna noção de phaínestai, que se tem
0
direito de imputar a Hume uma vontade de ocultação. Seria, pois, por
inconseqüência (e mesmo por má-fé) que Hume teria passado ao largo
da tópica que teria feito dele um autêntico fenomenólogo: à fidelidade
descritiva, ele teria preferido seu preconceito nominalista. Uma outra
solução, contudo, é possível, se queremos fugir do sistema de evidência
husserliano. Essa tópica que, em teoria do conhecimento, toma a forma
da explicitação intencional, teria podido ser considerada, com toda a
franqueza, como uma opção errônea e poderia ser rejeitada por Hume,
não por inconseqüência em relação aos pretensos "dados imediatos",
mas por fidelidade ao seu empirismo. Há ali uma decisão prévia que te-
ria parecido por demais aberrante a Husserl para merecer ser levada em
consideração, mas que poderia determinar a essência do empirismo.
Por que, com efeito, o empirista cogitaria de descrever aquilo que
se dá ou se anuncia numa representação? Para ele, Q operador "represen-
tação de" é desprovido de valor. O que há são somente conexões entre
conteúdos indiferentes - e essa palavra conexão exclui tudo o que pode-
ria se assemelhar a uma afinidade de natureza. Dito de outro modo, o
empirista não aceita a distinção inaugural das_Logische Unte~suchu~gen
entre os dois modos do ser-signo: o índice (An{ezge) e a expressao ou signo
significante (Ausdruck, bedeutsame Zeichen), ~ela qu~l "exp~nho a~go
d e maneira · expre ssi·va" a um receptor que .nao . precisa senao
, , ouvir, e
nao~ interpretar
· (deu ten) .38 N O universo empmsta, nada. ha alem de m-
.
d ices ( mesmo o re t r ato que veJ· o é índice de meu amigo ausente, . da
mesma maneira · que "o estigma é o signo do escravo; a bandetra, o

38. Id., ibid., § 4.


. d a~o") e não se faz outra coisa senão interpretar J .
signo a naç , ". , ~ . · amais
. omento em que o dado Jª nao vale por si mesmo" mas
existe o m . , nao
faz outra coisa que "tornar representável (yorstellzg machen) um objeto
diferente" _39 E a melhor prova de que a absorção do signo no índice
pertence à essência do empirismo é dada por H usserl no terceiro pará-
grafo da Primeira Investigação. Escutemo-lo:

Onde ditemos que um estado-de-coisas A é uma indicação de um estado-de-coi-


sas B, que o ser de um indica que o outro também existe, nós podemos, em nossa
expectativa de encontrar realmente também esse último, ter uma certe{a inteira.
Mas, falando dessa maneira, não queremos di{er que haja uma relação de cone-
xão evidente ( einsichtig), objetivamente necessária, entre A e B; aquz~-os conteú-
dos de juí{o não se encontram para nós numa relação de premissas a conclusões.

Essas linhas determinam admiravelmente a relação de "causação" em


Hume, isto é, determinam o único sentido que o empirismo pode admi-
tir para a idéia de "conexão necessária".
No interior de uma ontologia que concede validade unicamente áo
"An{eichen", o empirista não pode reconhecer a existência de significações
que tenham sido atribuídas de maneira não arbitrária, e por toda a eterni-
dade, a seus significantes. Ele não pode reconhecer que um significado
pertença por essência a um signo: só há signos instituídos; só um legislador
pode conferir a um signo um sentido determinado. Do mesmo modo, nada
é mais estranho ao empirismo que o conceito merleau-pontiano de uma
"palavra originária" à qual a significação seria aderente - de um sentido
que já estaria in_cl~_ído na textura do signo. Numa palavra, nada lhe é mais
estranho '!11e a 1de1a ~e um Logos representativo. Noção que, aliás, Berke-
ley destrma nessa anti-Fenomenologia da percepção que é a Teoria da visão:

a, maneira
. ,. . pela
, . ,.qual
. a linguage m visua
· l nos representa os ob;etos
· ~
que estao
a distancia e zdentzca
_ àquela que serve as
, l'znguas e aos signos
. ae
J • ~
znstttuzçao
• .

humana; estes nao sugerem as eoisas


· szgnzpcadas
· ;1: em virtude de uma seme-
lhança ou de uma identidade de natu -
hab • I .,. . reza, mas somente por uma conexao
1tua que a expenencza nos fa{ ohservar entre eles.4º

39. Id., Logisclze Untersuclzungen ' Primeira .Invesu·


. - § .
gaçao, 5
40. George Berkeley, A New Tlzeory of Viszon , in T.''ne W,orles o• G d 1
Nelson-Kraus Reprint, 1979, v. 1, § 147, p. 231 (Grifos d 'J eorge Berkeley. Nen e n:
e G. Lebrun (N.T.)].

268 David Hume no álbum de família de Husserl


. tanto quanto quiserem, a impressão ou a idéia presente: jamais
" ahsern,
JJ-n , encontrarão, para estabe1ecer sua conexão com outro conteúdo,
voces ue por natureza se anteciparia . . ou proJetana
. . ne1a. Nada, por natu-
algo qse anuncia numa percepçao. ~ N ada nos d'a o d'1re1to
· de considerá-la
reza, imago " : "A mrerenc1a
. r " . que fazemos de um ob.Jeto presente à sua
''tanqua m
ausa ou efeito ausentes nunca esta, fundada em quaisquer qualidades
41
eue observamos no objeto considerado em si.mesmo". Nessas condi-
\es, Hume reconheceria facilmente que a "subjetividade", no sentido
tusserliano, faz falta ao "sujeito" do qual ele fala: esta é propriamente
a condição de seu empirismo. Com efeito, é a ontologia da desconti-
nuidade integral que, ao mesmo tempo, proíbe o uso da forma "repre-
sentação-de" e nos faz declarar que "é impossível determinar, de outro
modo que por experiência, o que resultará de um fenômeno, ou o que o
prece deu,, .42 A expenencia
.,..
e, portanto, bem exatamente o meio que subs-
• ,

titui a subjetividade constituinte - o horizonte sob o qual os signos são


por princípio liberados de toda função representativa. Em compensação,
a ilusão representativa pretende nos dispensar da experiência, criando
ligações-de-essência das quais a subjetividade constituinte pretende dar
uma leitura sistemática. O enraizamento de toda conexão na experiência
marca a recusa de entrar nesse Logos representativo.
Racionalista, Husserl nada podia compreender de Hume. Tal é a
conclusão trivial que seríamos tentados a tirar do estudo da relação entre
eles. E é verdade que, se só retém do retrato husserliano de Hume a crítica
à "Widersinnigkeit" dele, o leitor corre o risco de compreender essa inter-
pretação como um prolongamento, uma simples amplificação da crítica de
Hume por Kant. Husserl, sem dúvida, também chega ele mesmo a denun-
ciar a falta de sentido que consiste em salvar verbalmente a "ciência" das
"matters of fact" despojando-a de toda pretensão à universalidade.

Pode-se duvidar de que a ciência da natureza é ciência autêntica, portanto


aclarada pela racionalidade de que suas deduções têm um caráter de necessi-

41. "The conclusion, which we draw from a present object to its absent cause or ejfect, is never
founded on any qualities, which we observe in that object, considered in itself' (D. Hume, Tre-
atise of Human Nature, ed. Selby-Bigge e P. H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1978,
1, m, 9, p. [ed. bras.: Tratado da nature'{_a humana, trad. Déborah Danowski. São Paulo:
111
Ed. Unesp, 2001 ].
42 . "[ ... ] it's impossible to determine, otherwise than by experience, what will result from any
phaenomenon, or what has preceded it" (D. Hum e, Treatise, 1, m, 9, p. 111 ).
dade, de que as leis que estabe~ece sã~ leis m~temáticas exatas, leis dotadas
de uma validade e de uma unzversalzdade rigorosas? Como seriam sim le
. . h b. . ?43 s-
mente expressões gerais de nossas expectativas a ztuazs.

Sobre esse ponto, o veredicto nada tem de original.


Mas principalmente não nos esqueçamos de que, a despeito de tudo
é de Hume que Husserl se sente próximo, e não de Kant, que jamais sen~
tiu O "abalo" humiano e não foi "filósofo transcendental" a não ser por
lampejos. Pois uma outra perversão da filosofia transcendental (contra
a qual o Tratado para sempre previne) é interrogar-se sobre as condi-
ções de possibilidade de um conhecimento já posto como objetivamente
válido - e é errôneo centrar a investigação transcendental num sujeito
cuja tarefa não pode ser outra que fornecer, no momento oportuno, as
formas requeridas para justificar a ohjetividade - em suma, num "homo
ex machina". Em contrapartida, a admiração por H ume é o indício de
que a noção de sujeito é muito pouco característica do idealismo feno-
menológico. Quando Husserl escreve: "eu diria que [essa filosofia] é o
ensaio de uma egologia pura, se Hume não tivesse posto também o eu
como uma pura ficção", ele censura simplesmente Hume de ter recons-
truído o ego como ficção, mas de modo algum de tê-lo feito desaparecer
como substância. Muito pelo contrário: ter reduzido o ego a um fluxo
de vivências, a transições de percepções, foi um dos lances de gênio de
Hume. Foi graças a isso que restituiu o verdadeiro sentido à "interiori-
dade" cart,esiana e tornou possível uma fundação radical.
Em suma, o que torna Hume insubstituível é essa baforada de nii-
lismo que a fenomenologia é capaz de saborear, porque não é absolu-
tamente a nova versão de uma filosofia do sujeito que os neokantianos,
bastante caridosos, nela tentaram encontrar. Que o ego não nomeie, em
tudo e por tudo, senão o lugar de uma leitura eidética, eis o que dife-
rencia a fen~,me_n?lo,~ia de toda antropologia mal disfarçada, que parte
do Faktum suJe1to . Doravante, o ego cogito já não será nada mais
que a possibilidade sistemática do Logos de se recolher em si mesmo
e de se oferecer à evidência em todas as suas reentrâncias e em todos
os seus estratos - esse momento bem vale um pacto efémero com o
diabo. Mas, a partir daí, tudo se passa como se Hume nao ~ pu desses er

43. E. Husserl, EPh, 1, p. 174; trad. cit., p. 251.

2 70 David Hume no álbum de família de Husserl


0 d1·abo _ como se ele devesse
.
ser um fenomenólogo aturdido A •
. . . ssim se
inta um Hume hesitante no limiar da fenomenologia· su ,
nos p . , a ma teo-
. da abstração pesa mais que sua curiosidade de explorar h , .
ria O p amestaz:
esse enfant terrihle não passava de uma criança teimosa. É nesse ponto
ue a interpretação se torna fantasiosa.
q Hume, diz-nos Husserl, ~avia pr~enchido a condição indispen-
sável para que fosse empreendida uma investigação, sem preconceitos
dos fenômenos~ Esta requer, porém, uma outra coisa: é preciso ainda'
saber que o ego cogito é o único espaço no qual se pode desenvolver uma
44
ciênda eidética pura. A convicção de que o ego não seja nem uma alma,
nem qualquer figura do sujeito insular, representa um progresso essen-
cial - mas com a condição de que se determine essa não-coisa como um
código de legalidades e de constrangimentos essenciais que governe to-
das as figuras da objetividade, como um código cujas prescrições Deus
mesmo teria de respeitar, se porventura ele se pusesse a pensar em algo
como um objeto. Depois da "desmundanização", o que poderia desig-
nar a expressão ego cogito senão pôr a descoberto o Logos de todas as
objetividades possíveis? "Está claro que toda essa idéia de uma fun-
dação absoluta do conhecimento seria uma pura quimera se faltassem
as possibilidades de fundar indubitavelmente os caracteres essenciais
gerais ( Wesenseigenheiten), as legalidades essenciais ( Wesensgesetzli-
chkeiten) como princípios de todas as elucidações ulteriores". 45 Obser-
vemos, de passagem, que são textos desse gênero que tornam Husserl
fascinante. Esse revolucionário que abala a "objetividade" em todos
os seus recantos que põe em suspensão as "transcendências", insiste
sempre em hone:tamente nos lembrar que essa obra de salubridade só
e' subversiva · em aparencia.
" · N~ao nos enganemos·· é ,,o Logos
~ . oriundo do_
século IV a. e. que assume O ofício da "vel}ia chata . N ao 1m~orta:_ nao
se atravessa a f enomeno1og1a · por nada · E graças .a esse racionalismo,
tao
~ ra d'ica1 a ponto d e se torn ar herético, que sentimos soprar o vento
do nu ··1·ismo - e d essa viagem
· se levará ao menos o .desprezo do pernos-
" .
· · • , .
ticismo ps1cologico e antropo . lógico. Esse Ego
. lummoso, mas anommo,.
·' e, " a morte do h ornem " · N O mais ' é preciso voltar
Ja • aos textos
f 1e mmto~
·
rapidamente nos lem rar e b d que esse phaínestaz de que nos a am nao

. P· 198
44- ld., EPh, pp. 13 9-40; tra d . cit., . ·
45- Id., ibid., p. 170 ; trad. cit., P· 44·
2

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é um efeito de superfície, que ele é expres~ivo de po~ta a ponta e desde
sempre _ que ele é, por definição, um conJunto de signos significantes_
0 "abecedário", como gosta de dizer Husserl, de tudo aquilo que jamais'
poderemos saber. Era a "velha chata", sem dúvida, mas escrevendo as
suas Regulae. o admirável é que Husserl professe isso sem nem mesmo
ter consciência de operar uma escolha. E menos ainda suspeitando que
Hume, seu herói epônimo, efetuou a escolha exatamente inversa. É ver-
dade que essa escolha, que desenraizaria todo Logos possível, é diabó-
lica demais para que possa ser imaginada por um essencialista.
No fim dos Diálogos de Hume, Demea tem um sobressalto quando
finalmente compreende quem era Fílon: "Você é secretamente um ini-
migo mais perigoso que o próprio Cleantes? ". Quando ele utiliza - im-
prudentemente - Hume contra Kant, Husserl não deixa de lembrar
Demea. Mais feliz, porém, que este, ele jamais sente, ao que parece, a
menor suspeita: ele não sabia com quem estava lidando. Hume perma-
neceu para ele um ancestral excêntrico, no qual jamais entreviu o ini-
migo mortal da "ratio" - alguém de outra raça, de um outro planeta.
Sem dúvida, como saber radicalmente novo, anti-objetivista, como re-
começo integral, a fenomenologia pode aceitar esse "aliado objetivo",
que lhe iguala em arrojo. Mas, como fenomeno-logia, em que extrava-
gante companhia ela se acha colocada.
É difícil ser um grande pensador e evitar a história-ficção quando
se consente em buscar seus precursores. No corpo a corpo com Hume,
Husserl acaba levando longe demais essa história-ficção: é possível
imaginar Kant lamentando que o marquês de Sade, esse precursor um
pouco fantasista, não tenha conseguido entrever a Lei moral? - É me-
lhor renunciar às árvores genealógicas quando se remonta à origem.

2 72 David Hume no álhum de família de Husserl

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