Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
, Organização de
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Maria Lúcia M. O. Cacciola
Marta Kawano
SBD-FFLCH-USP
1111111rn
324860
11111
COSACNAIFY
7 Apresentação, por Carlos Alberto Ribeiro de Moura
17 Sobre esta edição
Edição
MARTA KAWANO
Preparação
EUGÊNIO VINCI DE MORAES
Revisão
CARLA MELLO MOREIRA
Capa
LUCIANA FACCHINI
Composição
JUSSARA FINO
Ilustração da capa
CARLOS ZILIO
Foto do autor
1986, FOTO JOÃO PIRES/ AE
Bibliografia.
ISBN 85-7503-504-5
. . , . Moura, Carlos Alberto Ribeiro
1. Filosofia 2. Filoso:1a - ,H1_stona 1. Ili Kawano, Marta. IV Título.
de li Cac ciola Mana Luc1a M . O. ·
· · ' CDD-109
06-3102
253
~ pressentiu verdadeiramente, a originalidad d
É que Descartes nao '
ria• ele tinha pressa d emats e adi.
. em por o mundo obJ· . A "
d ab
rnensão. que se . lºd d d et1vo"
u· isrno e ern fundar ava t a e a sua mathesis. Leib . .
ao abrigo o ce c . , "d d . ,, . , n1z ti•
,., . "O senhor Descartes 1a rapt o emats . Do cartesianismo r
nha razao. d . . , esta
. ,., de que é preciso "voltar aos fun amentos ongmarios de tod
a convicçao
. to na subJ. etividade transcendental ,, . Conv1cçao
. _ essencial m o
co ecunen , as,
nh estágio, tão-somente pro~ram~tica. Tudo resta por ~"':er.
naquele
E os grandes nornes do rac10nahsmo moderno, em ultima análise,
não são tratados de maneira rnais generosa. Husserl, por certo, não lhes
poupa elogios: esse racionalismo preservou a idéia de Wissenschaft, her-
dada do platonismo; garantiu a transparência do ens verum ao conheci-
mento racional. Esses méritos, porém, são de muito pouca monta em
comparação com aquilo que lhe falta: uma teoria do conhecimento digna
desse nome. Como falar, com efeito, ern teoria do conhecimento, quando
os produtos do saber, qualquer que seja o estágio em que se situem (juíws
empíricos, ciências, proposições a priori etc.), são considerados simples-
mente como dados - de tal modo que o sentido deles não requer nenhuma
elucidação sistemática? O que nela prevalecia era a prévia certeza de que
todas essas formações já estão disponíveis - e não se tomava o cuidado
de examiná-las somente enquanto se dão à consciência: não se levava em
conta que "esses fenômenos devem antes de tudo ser estudados corno fe-
"
nomenos ,,z• Nada de surpreendente 'nisso, já que o 'racionalismo, seguindo
.•
Descartes , transformava subiºtamente numa psych,. e 1ustaposta as
, outras re-
g1oes'fido ente aquilo
, . que. ,é, n ª rea11·d ade, o campo da unica
, tópica capaz de
c1ar1"P1car, em .ultima mstancia
. , t0 d os os conteudos
, do conhecimento.
or maiorK que seJa
sistemáticas" ~ o ardor com que se entrega as , mvesttgaçoes
. . ,.,
' ant nao a tera em nad
transcendental: tamb, 1 ª esse estad o de insuspeição pre-,
em e1e permanece
metodológicos do ego . cego aos prodigiosos recursos
cogito. 3 Também el ,
est elecer as ciências po 't' e esta ocupado demais com
ah s1 1vas em seu d"ireito,
. para só se interrogar a
2 55
tos O tema de uma indagação descn"tiva que nos en . .
seus enca d eamen , . sinana
·ra exatamente esses conteudos se oferecem e se impõem a ,
de. que ,manei
rei·to do seuundo bloqueio que
.
atinge o
.
racionalismo modern
nos
·
E isso e o e1 1 o . . . . o.
Em primeiro lugar, como ~01 visto, esse r~cio~ahsmo desconhece 0
ego cogito como única fonte poss~vel de t~d~ ~ahdaçao. Em segundo lugar,
ele não sente necessidade de validar a ob;etzndade como tal e por todos os
seus tipos. Ser-objeto, ens qua objectum, é algo ~e passa por tão "bem co-
nhecido" que ninguém se dá o trabalho de questionar os modos de doação
a ele correspondentes. Por falta de domínio do campo egológico, a idéia
que se teria dele é a de que se chegaria somente a uma insignificante psico-
logia das operações do conhecimento ( estudo daquilo que se passa em mim
quando julgo, quando deduzo etc.). Mas não se tem sequer a idéia dessa
investigação. Essa insuspeição que torna impossível toda problematização
do ser-objeto em geral e impede, por conseguinte, toda fundação no sen-
tido da clarificação última e integral, Husserl a chama de objetivismo - e, a
partir dela, ele traça a linha divisória da filosofia moderna.
compreender como
• •
as objetividades ideais, 7a ue t"em seu nascimento
· puramente
nas
. nossas
. atividades subjetivas de ;uizo
· ' e ae J
conhecimento,
•
e que estão on-
•
~ressarne
e"r . ediatos: aosfenomenos. Graças a isso, ele traz a luz aquilo que
A • ,
dados irn
, ''legitimidade permanente do empirismo.. " (das blezhende
. Recht des
da a . . ,nus):19 es1orço
r de a1uste
. a, evi'd"encia,
. a vonta de de descrever
0
Ernptris l d, . , f .
acoisa percebi?• co,mo ,' a se a, isto e, se~ azer a suposição ~e que a
~ncia sensivel e a imagem enfraquecida de algo que estaria locali-
apar e
zado... fora. Quando Hylas, desabusado, reconhece ao final do diálogo
que ele vê as coisas "in their native forms" e declara que não mais se
colocará em embaraço "a respeito da natureza desconhecida, nem da
existência absoluta delas", ele ousa - enfim - abjurar abertamente o
"objetivismo". E esse momento é de tal importância, que deve nos fazer
perdoar, ao menos por um instante, a incurável miopia do empirismo.
Vindo de Husserl, essa defesa do empirismo surpr~ende, com ra-
zão. Husserl, todavia, não se contradiz. O empirismo criticado sem tré-
gua por ele desde as Logische Untersuchungen é o empirismo que trai o
sentido específico dos conteúdos de conhecimento e teima em remetê-
los a uma evidência que não lhes é apropriada-, o empirismo que quer
fundar os princípios geométricos sobre a indução ou, ainda, que pre-
tende reduzir dogmaticamente todos os juízos à "experiência", como
se todas as coisas se dessem originariamente ao modo de coisas-da-natu-
reza ...20 Mas o empirismo, então, é vítima de "construções especulativas
apriori''. Não é seu método que o desencaminha, mas sua infidelidade
a ele - e é por isso que a verdadeira crítica do empirismo consistirá em
"defendê-lo, por assim dizer, dele mesmo" (den Empirismus gleichsam
gegen ihn selhst verteidigen). 21 Estranha situação, pois, a do empirismo.
Nossa tendência seria ver nele uma sofistica que tem aparência de filo-
sofia. Mas isso seria falso: o empirismo é, antes de tudo, a aparência ...
2 59 .
Scheinemnirismus, pois "é somente em aparência q
d e1e mes mo. r ~ . ~ ue ele
respeita seu princípio de nao e~u~ciar nada ~ue nao _tenha tirado da
. . ~ ".22 e' somente em aparencia que ele diz o sentido daqui'lo
mtmçao , . . . ·~ que
ve," porque decidiu restringir o sentido a
. uma regiao
. do ente , e sua e
1e-
nomenologia é filtrada por uma ontologia mutiladora.
E no entanto trata-se mesmo de uma fenomenologia ... Quando
confunde a "coisa" visada como sendo "idêntica" aos perfis sensoriais
por meio dos quais ela se anuncia, Berkeley sem dúvida sucumbe ao pre-
conceito sensualista. Mas esse erro, por mais grave que seja aos olhos de
uma exigência de clarificação eidética, não nos deve fazer ignorar que
0
cogito está enfim aberto como campo de imanência, e que o terreno
está limpo para uma pura interrogação sobre o sentido-de-ser das dife-
rentes objetividades. Buscar-se-ia em vão em Kant o equivalente desse
retorno a "uma subjetividade absoluta, concreta e intuitiva" - sejamos,
pois, equânim_es com o ~mpirismo. Sem dúvida, não encontramos nele
nenhum pressentimento da •intencionalidade. Mas, e daí? "A época do
método intencional ainda não havia chegado [... ]." E se for preci.so esco-
lher, mais vale o "naturalismo imanente", mesmo que muito rapidamente
falseie o questionamento fenomenológico, que o "objetivismo", que im-
pede a filosofia transcendental de tomar a forma de fenomenologia.
Desse ponto de vista, a superioridade de Hume sobre Kant é gri-
tante. É uma infelicidade, diz freqüentemente Husserl, que Kant não
tenha podido ler o Tratado: ele teria entrevisto talvez quanto a sua
problemática era estreita, se comparada à deste. Pois o "problema de
Hume", tal como Kant o forjou, mostra sobretudo que ele aceitava,
como teórico "objetivista", as pressuposições que haviam sido abaladas
por Hume. 23 Com Hume, efetivamente, o empirismo não concede mais
nada à metafísica e às suas "transcendências transubjetivas por princí-
pio" · Hume dissolve o" ~u 1'd"en_t~co
· " que Berkeley ainda conservava: no
lugar de um ego mundanizado, Jª não ha' desde en t~ao senao~ " percepço~es
Hume]foi
. . oprimeiro
. a levar a sério a atitude de Descartes, ae
J se voltar para
[
a interioridade, pura desemharaçando
. . radicalmente ª ª lma, aesae
J J
o tntcw,
. , •
de
tudo o que da a ela uma significação
~ . real mundan a e pressuponao-a J pura-
mente ~omo campo de percepçoes, impressões e idéias [...].24
. te EPh p 1,8· trad. cit., p. 22, e FTL, p. 227; trad. cit., p. 342.
I
4·
2 E H . usser l , respecuvamen , , · ,[m
,,, ,d. · cartésiennes .' Husserlzana.
. . M. N11hoff,
Haia: .. 1973, v. 1], § 41.
2 5· Cf. E. Husser, l 1v1e itatzons
inacreditável paradoxo, a constituição sistemática dos sen .d
um . . , l ti os d
er uando ela aparece pela primeira vez as c aras, é apresentad - e-
s ,q . . . , . . a coni. 0
uma desc onstrução dos preconceitos
. imagmanos. Assim
. , só se reteve de
Hume a imagem do suhverszvo, sem que se pressentisse que essa sub
são era a renúncia a uma justificação integral até então insuspeitad a. ver-
É verdade que Hume. se esmerou
~ em embaralhar
, as cartas e que 1evou
a malícia a ponto de fingir ... nao ser fenomenologo. Ele se e:,prime co
freqüência "como se todavia existisse um mundo transcendente desconh:
cido e inacessível; com desenvoltura, faz seu leitor voltar ao mundo natural
( que ele, no entanto, secretamente "reduziu"), tira seus exemplos da histó-
ria e da retórica; invoca os relatos de viajantes, a experiência dos médicos
ou dos camponeses... 26 E, no entanto, se ele não tivesse sido guiado pelo
projeto transcendental, como compreender a crise de desespero do fim do
Primeiro Livro - e a confissão que faz ali de ceticismo radical, a despeito
de todo o cuidado que toma em se distinguir do "cético extravagante"? O
que ele confessa ali é seu fracasso como fenomenólogo. Fracasso que, de resto,
nada tira de sua grandeza. Numa nota _d e 193 7, H usserl chega a sugerir que
era historicamente necessário que o projeto que se retomou de Descartes
fosse pervertido em solipsismo - era necessário que Hume fosse condu-
27
zido a essa "conseqüência monstruosa (ungeheuerli;he Konsequen{)". Que
significado pode ter essa necessidade? E _por que foi útil que Hume não
tenha podido ser um fenomenólogo bem-sucedido?
Sobre essa base, como definiremos o cético? Ele é aquele que: 1) põe em
execução a palavra de ordem fenomenológica de colocar as transcen-
dências fora de circuito, mas que: 2) por incapacidade de fundar o saber
das transcendências converte o colocar fora de circuito em niilismo - 0
que pensar desse cético? Render-se-á, bem entendido, homenagem ao
seu rigor. Mas a seguir, e sobretudo, importará ao fenomenólogo man-
ter à devida distância esse ancestral desgarrado.
Nada nos é mais estranho que a idéia de querer encetar um jogo de paradoxos cé-
ticos contra a atiYidade racional e natural da Yida [... ] e, por conseguinte, contra
a ciência natural- nem querer desYalonº1á-los seja de que maneira for. 33
34.
., "Não
. se trata d e transformar em ficções as idéias abstratas como d ad os de uma expe-
nencia que t' l d xperiências-
apa , . em, certamente, uma experiência[ ...] mas têm somente O va or e e
renc1a com0 H , ., • a e aos seus dados; o
pro 0, . ' ume tentou mostrar em relação a expenenc1a extern
çõesPahs1to do capitu
, l0 , ao contrário é provar que não temos verd a d eiram
· ente 'representa-
d
'expe ·,stratas' 'd,. ' ab l
. ' que as 1 eias abstratas não se apresentam so utamen te como dados he uma
nenc1a' q l ,, f L · che Untersuc ungen
[lnvestig ua quer (FTL, pp. 229-30; trad. cit., p. 346). C · ogis
3\. E. li açoes Lógicas], II (1). Tübingen: Max Niemeyer, 1968, PP· 18 7-9º·
UsserJ EPh 1
36. Jd., ibid ' , , p. 163; trad. cit., p. 2 34.
·, p. 171; trad. cit., p. 246.
decorre com efeito, dessa cegueira aos objetos ideais·
T udo , .. " • urna
vez feita essa opção, 0 empirista ~scorrega ~e~a ~ascata dos absurdos".
Em vez de admitir que, a cada tipo de obJet1v1dade, corresponde u
modo apropriado de clarificação, ele precisa sustentar que a exigê:
eia de evidência só é satisfeita pelo recurso a um dado sensível. Ele vai
reclamar, portanto, o indubitável, o Letzt-unfragliche, que ele procura
(como todo intuicionista), de um evento, ou melhor, de um encontro. 0
"ens cerium" será a impressão - e toda verificação de uma idéia consistirá
em reduzir esta à impressão de que ela deriva (por decisão dogmática).
Husserl não se cansa de questionar Hume sobre esse ponto: como tal
"impressão" é vivida? Que nos ensina ela sobre si mesma? Por que tra-
ços ela se distingue da idéia? Como se faz para que seja nela que encon-
tramos o dado-em-pessoa? O empirista não responde a essas questões.
Ou antes, ele responde a elas de maneira absurda: a impressão é mais
viva, ela atinge com mais força ... Daí não tiramos nada mais que essa
informação balística, e jamais saberemos o que fa 1, da impressão, uma
,, . ~ ,, . , . - -
impressao , isto e, por que essa 1mpressao, e nao outra, tem por caracte-
rística anunciar a coisa como presente. O empirista é incapaz de dizê-lo,
porque rejeitou, de saída, a tópica que lhe teria permitido formular a
questão. De que lhe serve, então, considerar os fenômenos, se não con-
segue sequer se interrogar sobre o sentido que especifica cada represen-
tação? Se já transformou esses fenômenos em coisas "que são, mas nada
significam, nada visam, nada trazem em si de sentido (tragen nichts in
sich von Sinn)" .37 Assim, a investigação fenomenológica que não chega
a acontecer é substituída por uma descrição fenomenista.
Vemos que Husserl faz Hume pagar caro pelos elogios que lhe havia
feito. Hume havia sido glorificado por ter desenhado o lugar da fenome-
nologia transcendental. Mas o fato de que tenha se negado o meio de levar
adiante a empreitada torna seu fracasso tanto mais patente e deve inclusive
nos levar a julgar tanto mais severamente a sua filosofia. " Widersinnig",
" Widersinn": essas palavras voltam sem cessar, quando Husserl começa a
analisar a deformação imposta por Hume ao projeto fenomenológico que,
indubitavelmente, era o seu. Poder-se-ia perdoar ao objetivista a naturali-
zação da vida da consciência, mas não àquele que, depois de ter rematizado
os fenômenos, julgou acertado tratá-los como eventos. o que se deve ad-
mirar mais, a perspicácia do homem ou sua perversidade?
a, maneira
. ,. . pela
, . ,.qual
. a linguage m visua
· l nos representa os ob;etos
· ~
que estao
a distancia e zdentzca
_ àquela que serve as
, l'znguas e aos signos
. ae
J • ~
znstttuzçao
• .
41. "The conclusion, which we draw from a present object to its absent cause or ejfect, is never
founded on any qualities, which we observe in that object, considered in itself' (D. Hume, Tre-
atise of Human Nature, ed. Selby-Bigge e P. H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1978,
1, m, 9, p. [ed. bras.: Tratado da nature'{_a humana, trad. Déborah Danowski. São Paulo:
111
Ed. Unesp, 2001 ].
42 . "[ ... ] it's impossible to determine, otherwise than by experience, what will result from any
phaenomenon, or what has preceded it" (D. Hum e, Treatise, 1, m, 9, p. 111 ).
dade, de que as leis que estabe~ece sã~ leis m~temáticas exatas, leis dotadas
de uma validade e de uma unzversalzdade rigorosas? Como seriam sim le
. . h b. . ?43 s-
mente expressões gerais de nossas expectativas a ztuazs.
. P· 198
44- ld., EPh, pp. 13 9-40; tra d . cit., . ·
45- Id., ibid., p. 170 ; trad. cit., P· 44·
2
271
é um efeito de superfície, que ele é expres~ivo de po~ta a ponta e desde
sempre _ que ele é, por definição, um conJunto de signos significantes_
0 "abecedário", como gosta de dizer Husserl, de tudo aquilo que jamais'
poderemos saber. Era a "velha chata", sem dúvida, mas escrevendo as
suas Regulae. o admirável é que Husserl professe isso sem nem mesmo
ter consciência de operar uma escolha. E menos ainda suspeitando que
Hume, seu herói epônimo, efetuou a escolha exatamente inversa. É ver-
dade que essa escolha, que desenraizaria todo Logos possível, é diabó-
lica demais para que possa ser imaginada por um essencialista.
No fim dos Diálogos de Hume, Demea tem um sobressalto quando
finalmente compreende quem era Fílon: "Você é secretamente um ini-
migo mais perigoso que o próprio Cleantes? ". Quando ele utiliza - im-
prudentemente - Hume contra Kant, Husserl não deixa de lembrar
Demea. Mais feliz, porém, que este, ele jamais sente, ao que parece, a
menor suspeita: ele não sabia com quem estava lidando. Hume perma-
neceu para ele um ancestral excêntrico, no qual jamais entreviu o ini-
migo mortal da "ratio" - alguém de outra raça, de um outro planeta.
Sem dúvida, como saber radicalmente novo, anti-objetivista, como re-
começo integral, a fenomenologia pode aceitar esse "aliado objetivo",
que lhe iguala em arrojo. Mas, como fenomeno-logia, em que extrava-
gante companhia ela se acha colocada.
É difícil ser um grande pensador e evitar a história-ficção quando
se consente em buscar seus precursores. No corpo a corpo com Hume,
Husserl acaba levando longe demais essa história-ficção: é possível
imaginar Kant lamentando que o marquês de Sade, esse precursor um
pouco fantasista, não tenha conseguido entrever a Lei moral? - É me-
lhor renunciar às árvores genealógicas quando se remonta à origem.