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)C Eâ--- €qettght o 2007 Boris Kossoy


ita ".*---_-
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.6j.0 de 19.2.1,99g. É proibida
a reprodução total ou parcial sem autonzação, por escrito, da editora.

1Â edição, 2007
24 edição,2007

Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIp)


(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Kossoy, Boris.
Os tempos da fotografia: o efêmero e o
perpétuo / Boris Kossoy. - Cotia, Sp: Ateliê
Editorial, 2007.

Bìbliografia.
ISBN 978-85-7480-33 6_4

1. Comunicação de massa 2. FotograÍia -


História 3. Fotografia - Metodologia 4. História
cultural 5. Imprensa - História I. Título.

07-1 1 8B cDD-770.9

Índices para catálogo sistemático:


1. Fotografia: História 770.9

Direitos reservados à

ATELIÊ EDÌTORIAL
Estrada da Aldeia de Carapicuíba, B97
06709-300 - Granja Mana * Cotia - Sp
Telefax: (11) 4612-9666
www.atelie.com. br
atelieeditorial@terra.com.br

Printed in Brazil 2007


Foi feito o depósito legal
Sumário

Da Poética à Transcendência do Tempo -


Medìna
Cremilda 1,3

lntrodução 1,7

1. Tsorue. n MEtooolocrA: CoNCErros, Pnolosrçors,


AeoRlecpNs 23

Construção e Desmontagem da Imagem


Fotográfica: Relembrando Influências,
RevisitandoConceitos ..25
Por uma História Fotográfica dos Anônimos . . . 63

2. InpnpNse E Hrsronre 79
A Fotorreportagem no Brasil: O Pioneirismo
deHildegardRosenthal .... 81

Mídia: Imagens, Ideologia e Memória 103

3. IuacrNÁnrosMEvonrA ... 1,29

OsTempos daFotografia.... 1.31.


BORIS KOSSOY

O Relógio de Hiroshima: Reflexões sobre


os Diálogos e Silêncios das Imagens . . . . . . . . . 1,45

Castelos de Cartas, Castelos de Areia 159

Bibliografia 165
Sobre o Autor 173

12
Da Poética à tanscendência do Tempo

Nos anos 1970, Boris I(ossoy se revela um poeta da


iotografia. As metáforas que cria nas imagens espalhadas
em ensaios fotográficos e cartões postais expressam o que
se passa nas mentes aprisionadas pelo autoritarismo da
iitadura. Pouco depois, sai da subjetividade poética e
nergulha na pesquisa da história coletiva, vai ao encon-
:ro dos pioneiros. Como historiador, moveu céus e terra
:ãra mostrar ao mundo que, sim, o processo fotográfico
-':,i ìnr,entado em terras de Santa Cruz. Hércules Florence,
. ,iJ3: A Descoberta Isolada da Fotografìa no Brasìl,li-
;:,:) que naffa a saga de Florence, é também um marco de
::Eor científico do autor que se entrega a uma longa e
:';rsistente viagem na fotografia latino-americana.
O gesto solidário do poeta e pesquisador resulta em
lnúmeros artigos em revistas especializadas, livros e con-
ferências em congressos nacionais e internacionais. Des-
sa opção se destaca um presente especial paÍa a historio-
grafia brasileira * o mapeamento dos fotógrafos anônimos
do século XIX ao início do século XX. Mais uma obra

13
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

basilar: Dicionário de Fotógrafos e do Ofício Fotográfi-


co no Brasil (1840-1910l. Mas, inquieto nos limites dis-
ciplinares, transita da história coletiva para a interpreta-
ção sociológica. Doutor pela Escola de Sociologia e
Política em 1979, Kossoy acresce à oficina acadêmica a
metodologia de leitura sócio-cultural da fotografia. Nes-
te campo de conhecimento, passa a dar uma contribui-
ção única que vem desaguar na atividade de ensino na
Universidade de São Paulo. Professor titular, pesquisador
e orientador de mestres e doutores, pârtilhâ concepções
consistentes com seus alunos na teoria das "realidades e
ficções na trama fotogrâfíca". A noção de que a cãmara
recupera fielmente a primeira realidade se desconstrói e a
paftft daí a fotografia constrói uma segunda realidade
ou a realidade da produção simbólica.
Ao navegar pelas águas turvâs da política brasileira
(Era Vargas e ditadura militar de 1964), muito úteis lhe
foram as ferramentas da historiografia e da sociologia
para decifrar as imagens sob censura, dos autores sob
repressão. Dos inúmeros trabalhos publicados no País e
no Exterior, vêm a público as reflexões que compõem
uma trilogia agora completada: Fotografia dy História;
Realidades e Fìcções na Trama Fotográfica; Os Tempos
da Fotografia, o Efêmero e o Perpétuo. Boris Kossoy re-
gistra, neste ciclo, suas digitais. À metodologia científica,
à inovação teórica e à ampliação pedagógica dos dois
primeiros livros da trilogia se soma a transcendência poé-
tica do efêmero e do perpétuo.
O livro mais recente de Kossov reconstitui a cami-

L4
DA PoÉTICA À TRANSCENDÊNCIA Do TEMPo

nhada do cientista e vem desembocar na liberdade subje-


tiva que o acompanha desde os primeiros momentos de
criador de imagens poéticas. Ao escolher a história e a
sociologia parâ compreender as tramâs da fotografia,
deixando em plano secundário, a evolução técnica ou o
esteticismo, procurou se deter na acontecência sócio-cul-
tural do signo. E na sutileza da leitura, não escap aúa à
especulação dos tempos. A experiência humana provoca
no pensador interrogâções transcendentais e a principal
delas - como se dá a apropriação cotidi ana da fotografia.
Daí o acento do terceiro livro da trilogia. O efêmero e o
perpétuo não são meras categorias filosóficas. "Não fos-
se o advento da fotografia, o século XIX certamente não
seria o mesmo; o mundo não seria o mesmo. O que seriam
dos cenários, personagens e fatos sem um espelho com
memória para registrá-los?" A essa pergunta do pesqui-
sador, vem à tona o artistâ que, indisciplinado, se permi-
te a metáfor a dos castelos de areias. A frase final convida
à viagem âyenturosa:

A imagem da foto, promessa de perenidade, é


agora a imagem do espelho, que se dissipa. Espelhos
que guardam memórias.

Cremilda Medìna

15
Introdução

Este livro dá seqüência às nossas indagações e refle-


rões acerca da expressão fotográfica; expande proposi-
ções teóricas e abordagens metodológicas sobre o tema,
tratadas em dois livros anteriores, Fotografia e História e
Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Além disso,
inclui textos sobre história, imprensa e memória, a partir
da fotografia como fonte de pesquisas e /ou objeto de
estudos. À exceção do último texto, "Castelos de Cartas'
Castelos de Areias", os ârtigos que o compõem, revistos
e ampliados, foram apresentados originalmente em con-
gressos, simpósios e outras reuniões acadêmicas.
O texto que abre a primeira parte, "Construção e
Desmontagem da Imagem Fotográfica: Relembrando In-
t1uências, Revisitando Conceitos", constitui o plano de
clivagem de minhas reflexões acerca da expressão foto-
gráfica, um contínuo exercício de pensar a imagem cen-
rrado nos componentes culturais, estéticos e ideológicos
constituintes de sua elaboração e recepção e, também,
motivado pela própria experiência autoral e profissional

t7
BORIS KOSSOY

enquanto produtor de imagens. Disso resultaram idéias e


formulações que temos compartilhado ao longo da nossa
trajetória intelectual. Julguei interessante relembrar, nes_
sa oportunidade, os primeiros momentos dessa trajetó_
ria, meus anos formativos, os autores, as correntes teóri_
cas, as influências decisivas, porque, penso, devemos isso
aos nossos leitores e alunos.
Nesse texto retomo questões abordadas principalmen-
te nos livros antes mencionados, mas também em outÍos
trabalhos, buscando reafirmar a abrangência e as múlti-
plas interconexões teóricas neste câmpo do conhecimen-
to. Uma tentativa, enfim, de melhor ressaltar, sob dife-
rentes ângulos, os detalhes de uma proposição articulada,
que pretende indicar os instrumentos para a decifração
dos processos de construção de realidades que dão corpo
e emanam da imagem fotogrâfica. Essa é a contribuição
deste texto.
No texto que se segue, "Por uma História Fotográfi-
ca dos Anônimos", abordamos a necessidade de promo-
ver-se um amplo râstreâmento regional e nacional dos
fotógrafos anônimos do passado, enquanto tarefa ina-
diável para se estabelecer marcos referenciais, tendo em
vista a compreensão dos processos históricos específicos
às origens e desenvolvimento da fotografia em suas dife-
rentes manifestações. PerseguiÍ os rastros dos fotógrafos
pioneiros - que tão raros vestígios deixaram de suas passâ-
gens e cuja obra é, também, praticamente desconhecida,
ainda ausente da história - parece-nos ser compromisso
básico, por propiciar um real conhecimento da expansão

18
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

da fotografia pelo interior do Brasil (tarefa que nos pâre-


ce igualmente importante a ser encetada nos demais paí-
ses latino-americanos). Reafirmamos a proposição dessa
abordagem, que promete frutos, seja pelo ângulo de uma
história cultural da fotografia, seja como contribuição à
iconografia, através da identificação de inúmeros docu-
mentos fotográficos que aguardam por informações con-
sistentes, decisivas para o preenchimento de lacunas an-
tigas, tão freqüentes nas seções de iconografia dos museus
e arquivos esparsos nas diferentes regiões do país.
Os textos da segunda parte tratam de aspectos espe-
cíficos à fotografia no contexto da imprensa) censura e
política durante o governo Vargas, mais exatamente sob
o Estado Novo. No primeiro deles, "A Fotorreportâgem
no Brasil: O Pioneirismo de Hildegard Rosenthal", des-
racamos o papel da fotógtafa Hildegard Rosenthal, que'
como outros estrangeiros refugiados da ameaça nazista,
buscou no Brasil uma oportunidade de recomeçar sua
rida; o âÍtigo ressalta a importância da obra de Hildegard
enquânto uma das profissionais pioneiras do fotojorna-
[smo entre nós. No segundo ãttigo, "Mídia: Imagens,
Ideologia e Memória", analisamos a postura da grande
imprensa desde anos anteriores à instalação da ditadura
\ arguista; o conflito entre uma política editorial antico-
munista e o reflexo dessa linha que se atrela à ideologia
da direita, às ações fascistas durante a Guerra Civil Espa-
nhola, à omissão em relação à política ânti-semita na Ale-
manha; de outra pãrte, abordamos o papel exercido pe-
los mecanismos da censura, fortalecida com a instauração

L9
BORÌS KOSSOY

do Estado Novo. Também são tratados no texto, ainda


que brevemente, a ação da censura e as técnicas de resis_
tência que marcâm o jornalismo impresso nos anos pós_
1964. Neste momento chamamos a atenção parâ a men_
talidade dos censores, seus métodos de decifração das
informações e, em especial, às possibilidades da expres-
são fotográfica enquanto instrumento metafórico de de-
núncia política.
Imaginário e memória permeiam as idéias da terceira
parte deste livro. Não obstante se fundamenrem em nos-
sas proposições teóricas e metodológicas, esses textos se
desenrolam num espaço mais livre em termos de narrati-
va e linguagem.
São três textos que se fundem em reflexões acerca de
temas como: os tempos da fotografia (e seus outÍos tem-
pos), o fato e a representação, o mundo do aparente e os
silêncios das imagens. Imagens técnicas interagem com
nossas imagens mentais, num fascinante processo de cria-
ção / construção de realidades * e de ficções. Através da
fotografía dialogamos com o passado, somos os interlo-
cutores das memórias silenciosas que elas mantêm em sus-
pensão. O fato se dilui. Sobre o que se passou, têm-se
apenas recordações embaçadas, fatos efêmeros de uma
realidade em marcha, que se desvanecem, diluem-se nas
suas próprias ocorrências. Em relação à fotografia é o
instante da gênese: tempo da criação, primeira realìdade.
O registro fixa o fato, atravessa os tempos, perpetua a
lembrança, preserva a memória, transportâ ilusoriamente
o passado, ou uma idéia dele: tempo da representação,

)n
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

segund(l realìdade. O efêmero e o perpétuo. Todavia, o


documento fotográfico também tem seu tempo de vida'
sua duração, não importando a tecnologia de registro que
o cafacteríza.
Nesse ritmo se desenvolve este livro. A imagem en-
quanto representação do mundo, e enquanto objeto do
mundo da representação, constitui um amplo campo de
pesquisas teóricas que procuramos explorar, desde as in-
cursões embrionárias que levaram à primeira edição de
Fotografia 6 Histórìa, em 1'989 (e, em suas demais edi-
ções), e que tiveram seqüência em Realidades e Ficções
na Trama Fotográfìca, através de suas várias edições. Este
livro, que ora se edita, complementa, de certa forma, a
iriiogia iniciada com âs obras mencionadas. Não se pre-
tendeu, nesse conjunto, esgotar qualquer questão; ao con-
trário, buscou-se propoÍ e estabelecer fundamentos teó-
ricos assim como metodologias de análise e interpretação
das imagens, visando a estimular o debate acerca deste
fascinante campo de estudos que se articula com diferen-
tes áreas do conhecimento, na esperançâ de contribuir
para o pensamento fotográfico.
Agradeço à Editora Perspectiva e ao Instituto Moreira
Salles pela cessão das fotos utilizadas neste livro. Sou grato
a Maria Luiza, minha companheira, por suas atentas e
sensíveis observações nos momentos em que pensava na
estrutura deste livro.

21
Tsonre n MEroDoLocIA:
CoxcsrTos, PnopostçÕEs,
AsonoecENS
Construção e Desmontagem da
Imagem Fotográfica: Relembrando
Influências, Revisitando Conceitosl

Pretendo, neste texto, revisitar conceitos e aborda-


qens metodológicas que nortearam minha produção teó-
:ica e histórica em torno da imagem fotográfica, bem
como situar reflexões mais recentes, aqui agregadas a es-
ses estudos, uma experiência inter e multidisciplinar que
:oi ganhando forma e substância ao longo do tempo.
Destaco algumas das questões centrais que pautâram essa
:rajetória, com o objetivo de contribuir para um aprofun-
j.amento do debate nessa área de investigações, princi-
:almente por constatar o interesse cada vez maíor que os
:esquisadores de diferentes áreas das ciências humanas
;èm manifestando em reÌação às possibilidades da foto-

-. Texto expandido da conferência apresentada pelo Autor por ocasião


do ciclo "La Imagen como Fuenre de Investigación", promovido pelo
Instituto Mora, Cidade do Mérico, ourubro de 2002. Foi publicado
originalmente sob o título "Construção e Desmontagem da Informa-
çào Fotográfica: Teoria e História", Reuista USP (62):224-232, jun.-
ago. 2004 (São Paulo, Universidade de São Paulo); e houve, ainda,
uma revisão posterior que deu origem ao presente texto.

25
BORIS KOSSOY

gfafia enquânto instrumento de conhecimento, análise e


reflexão. Julguei ser uma boa ocasião para relembrar
autores e destacar as influências que recebi em meus anos
formativos, assim como os caminhos descobertos poste-
riormente, quando jâ me achava definitivamente envol-
vido na pesquisa sobre a fotografia.

ANOS FORMATIVOS

Uma palavra é necessáÀa para situar o estágio em


que se achavam os estudos sobre a fotografía nos primei-
ros anos da década de 1970, momento em que iniciei
minhas pesquisas. Desde logo, duas questões me intriga-
vam. A primeira dizia respeito à quase total inexistência
de textos históricos acerce- da fotografia no Brasil, exceto
alguns artigos esparsos de autoria de Sylvio da Cunha (Á
Manhã) e de um ensaio pioneiro de Gilberto Ferrez, es-
crito ainda nos ânos 1940 e publicado no princípio da
dêcada seguinte2; a segunda questão era ampla e envolvia
aspectos de ordem teórica acerca da natureza da fotogra-
fia, seu papel enquanto documento histórico e, também,
como forma de expressão artísticâ.
Quanto mais me esforçava em compreender a natu-
reza da imagem fotogrâfíca, suas características próprias,
seu estatuto, maior necessidade sentia de buscar conheci-

2. Gilberto Ferrez, "A Fotografia no Brasil e um de Seus Mais Dedica-


dos Servidores: Marc Ferrez (1843-1,923)", Separata da Reuista do
Patrimônio Histórìco e ArtísticoNacional, (10), 1953 (Rio deJaneiro).

26
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

mentos em diferentes disciplinas. Percebi que, se não fos-


se objeto de abordagens multidisciplinares, a fotografia
iamais poderia ser compreendida em suas múltiplas
facetas. As proposições teóricas sobre a imagem, subme-
:idas aos conceitos pensados em torno - e em função -
lo tradicional signo escrito, não me convenciam e, ainda
roje, penso que muitos navegam por um mar sem norte.
O caráter episódico dos modelos clássicos das histó-
iias da fotografia chamava a atenção: histórias marcadas
:ela tradição positivista e desprovidas de qualquer preo-
;upação conceitual. Se hoje podemos questionar a sua
. ahdade no tocante à métodos e abordagens, essas obras

.ram, no entanto, as referências de que dispunham os


-:reressados na área. Os primeiros ensaios historiográficos
-:rernacionais ainda punham o acento na história da té.c-
-t.a; ou tentavam uma abordagem estética, porém
:-svinculada da trama sociocultural, o que resultava em
:-lacões de autores e imagens desconectados do processo
:-srórico3. Nos anos de 1970 ainda eram raros)
na átea,

: irìstem, obviamente, exceções à essa tradição. Nesse sentido lembra-


:ros os conhecidos textos de \íalter Benjamin, que se constituiriam
.::r reÍerência ao longo do tempo: "Pequena História da Fotografia" e
--{ Obra de Arte na Época de sua Reproclutibilidade Técnica,'; e, por
:remplo, a abordagen-r de Gisèle Freund, desde seu pioneiro ensaio de
,936. "La photographie em France au dix-neuvième siècle", que vai
:lma linha completamente contrária à de Beaumont Newhall e Helmut
Gernsheim, que estão entre os autores mais divulgados. Sobre esse
:.sunto, ver, do autor, "Reflexiones sobre la Historia de la Fotografía,',
=::: Joan Fontcuberra (ed.), Fotografía. Crisis de Historia, Barcelona,
--::Í. 1003, pp. 95-'l05.

27
BORIS KOSSOY

os trabalhos elaborados dentro de uma perspectiva cien-


tífica. O fenômeno brasileiro é semelhante ao que ocor-
reu na América Latinaa.
Tal era, muito brevemente, o quadro acercâ dos estu-
dos da fotografia naquele momento, que se manteria até.
pelo menos os meados dos anos de 1980. Era necessário
buscar outras inspirações e reflexões para uma compreen-
são aprofundada do papel da imagem fotográfica seja em
relação ao seu objeto, seja como meio de conhecimento.
E, nesse sentido) avaliar seu alcance e potencialidades
enquanto instrumento de pesquisa, análise e interpreta-
ção da vida histórica, sua importância enquanto docu-
mento histórico e social, e elemento de fixação da memó-
ria, como objeto de arte, enfim, entre outros de seus
múltiplos usos e aplicações.
Faço, aqui, uma digressão em relação aos autores que,
através de suas abordagens, sinalizavam caminhos pro-
missores de investigação; autores que influenciaram deci-
sivamente as formulações que desenvolvi ao longo de meu
percurso. Foram fundamentais as leituras dos textos de
Francastel, assim como os estudos sobre a crítica de fon-
tes, tal como foi discutida pelas diferentes correntes da
teoria da história, porém definitivamenre embasada na

4. Tratamos deste tema em "Contribución a los Estudios Históricos de


la Fotografía en América Latina: Referencias Históricas, Teóricas y
Metodológicas", V Coloquio Latìnoamericano de Fotografía 179961,
México, D.F. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes/Centro de
la Imagen, 2000, pp.77-81,.

28
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

,rnha da escola dos Annales, nos ensinamentos de Marc


Bioch, Lucien Febvre, entÍe outros mestres da nouuelle
ì:istoire. As abordagens da história nova em relação à
rercepção do fato e à extensão do conceito de documento
:mpiiaram o horizonte para a nossa proposição de uma
;rítica que se mostrasse eficaz para sua aplicação às fon-
:es fotográficas. Encontrei inspirações seminais na linha
;a história das mentalidades, através de Jacques Le Goff,
\hchel Vovelle, entre outrosl e, posteriormente, nos estu-
;os do imaginário, com vistas a um maior aprofundamento
:a problemática da representação, nas questões da mani-
:ulação dos fatos históricos, tema estudado por Marc
I:rro, que encontra plena aplicabilidade no uso dirigido
;ue se tem feito das imagens ao longo da história.
À semiótica de Pierce foi provocadora. Contudo, des-
:rbri na fenomenologia de Edmund Husserl e na icono-
,,,eia de Erwin Panofsky sólidos alicerces para as minhas
:,,rmulações teóricas. É claro que seguimos aprenden-
:.ndo e nos deparamos, neste percurso, com Roger Char-
:;r. Carlo Ginzburg, entre outros, a iluminarem cami-
:ros. A essas descobertas, devo ainda acrescentaÍ as
::otícuas discussões que mantive com a socióloga Gisèle
::eund (com quem tive o privilégio de estabelecer cordiais
,:cos de amizade e, com ela, participar de colóquios de
:--,tografia no México e na Europa). Suas abordagens trou-
r-râm contribuição definitiva aos esrudos históricos da
: :'rografia, marcados pela tradição positivista.

Se, enquanto historiador e estudioso das imagens re-

-;bi desses âutores influências teóricas que foram decisi-

29
BORTS KOSSOY

vas, não poderia deixar de mencionar inspirações anterio-


res e posteriores advindâs de outÍas formas de expressão
que também permearam meu repertório: a arquitetura,
certamente, minha formação primeira, a literatura, as artes
plásticas e, naturalmente, o cinema. Magritte, Dali, De
Chirico, Escher, Poe, Dostoievsky, Doyle, Huxley, Borges,
Calvino, Antonioni, Bergmann, Bufruel, Kubrik, entre
tantos outros mestres, despertaram-me para as ficções da
realidade. Foram influências importantes que recebi. A1i-
mentavam meu espírito enquanto fotógrafo profissional,
atuando em diferentes áreas, mas que buscava também,
um lugar ao sol, numâ tentâtiva de carreira autoral e,
também, como pesquisador ao longo de todo o meu per-
curso. Minha aproximação ao estudo das imagens se fez
por essas vias. Assim foi no início, assim tem sido sempre.

FOTOGRAFIA E CULIURA

Hâ cerca de sessenta anos, Pierre Francastel chamava


a atenção para a importância das imagens enquanto meio
de conhecimento; observava, também, que as "[...] Artes
servem, pelo menos tânto quanto as Literaturas, como
instrumento aos senhores das sociedades para divulgar e
impor crençâs"5. Sua obra, que procurava estabelecer as
bases de uma sociologia da arte, continua sendo referên-
cia, e o sentido que ele propunha para essa disciplina se

5. Pierre Francastel, A Realidade Figuratìua: Elementos Esnuturais de


Sociologia da Arte, São Paulo, Perspectiva, 1,982, p. 3.

30
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

iundamentava na afirmação da existência de um pensa-


nento estético, plástico. Esclarecia que "[...] existe um
_:ensamento plástico como existe um pensamento mate-
rático ou um pensamento político; e é essa forma de pen-
lamento que até hoje foi mal estudadã"u.8, após Fran-
;astel, não parece ter havido significativas mudanças nesse
;uadro.
A imagem, em especial a fotográfica, sempre se viu
::adicionalmente relegada à condição de 'ilusrração' dos
:;\tos e 'apêndice' da história. No entanto, a documen-
::ção iconogrâfica é uma das fontes mais preciosas para
,' conhecimento do passado; trâta-se, porém, de um co-
:recimento de aparência: as imagens guardam em si ape-
-as indícios, a face externa de histórias que nào se mos-
:am, e que pretendemos desvendar.
É necessário que se compreenda o papel cultural da
:rrografia: o seu poderio de informação e desinformação,
';a capacidade de emocionar e transformar, de denunciar
=
manipular. Instrumento ambíguo de conhecimento, ela
:rerce contínuo fascínio sobre os homens. Ao mesmo tem-
:.,1 em que tem preservado as referências e lembranças do
-:drvíduo, documentado os feitos cotidianos do homem
. das sociedades em suas múltiplas ações, fixando, enfim,
: nemória histórica, ela também se prestou - e se presta
- aos mais interesseiros e dirigidos usos ideológicos. O
:ape1 cultural das imagens é decisivo, assim como decisi-
;.s são as palavras. As imagens estão diretamente relacio-

:. Idem, ibidem.

31
BORIS KOSSOY

nadas ao universo das mentalidades e sua importância


cultural e histórica reside nas intenções, usos e finalida-
des que permeiam sua produção e trajetória.
Toda fotografia resulta de um processo de criação; ao
longo desse processo, a imagem é elaborada, consffuída
técnica, cultural, estética e ideologicamente. Trata-se de
um sistema que deve ser desmontado para compreender-
mos como se dá essa elaboração, como, enfim, seus ele-
mentos constituintes se ârticulam. Para tal proposta, de-
vemos perceber a complexidade epistemológica da imagem
fotogrâÍìca enquanto representação e documento visual.
Antes, porém, de avançarmos nessâ trilha, devemos nos
referir à abrangência da expressão fotográfica e às am-
plas possibilidades de investigação que, acerca- desse meio,
podem ser encetadas, a partir do estudo de suas aplica-
ções como registro das inumeráveis atividades humanas.

VERTENTES INTERDISCPLINARES DE INVESTIGAÇÃO

Pretendemos, a seguir, referir-nos às linhas de pesquisa


que temos desenvolvido. Nosso enfoque torna-se menos
abstrato seguindo o diagrama A Expressão Fotográfica,
onde buscamos explicitar a abrangência de investigações
que podem ser abordadas pelos esrudos da fotografia,
assim como as interconexões que decorrem deste mode-
lo. Situamos aqui a fotografia enquanto:

1. orlrro de estudos históricos e teóricos específicos;


2. poNrr de informações referentes às mais diferentes áreas do
conhecimento.

32
OS TEN,IPOS DA FOTOGRAFIA

A Exprcssão Fotográfica:
Vertentes Interdisciplinares dc Investigação

r fotografía corno OBJL,TO a fotografia como FONTE


Je investigações específicas dr inlormrçòe. reÍ!rcilte\;\ mJi\
históricas e teóricas d i feren res a re11lo :1\\;nro

- -- .Ìoria da ForograÍir

evoÌução da fotografia ]
meio de ionh.. irnerrro e
.:.rrrro meio dc comuniclçro
eìemento dc firrçio dr m.rnória
:rrma de expressão ao longo
hisrorieo-irrltural
de sua história

dâ TF.cNoLocrA fotográfica desde o advento do meio até os dias atuais

:ória das origens e da expansão do ofício e da atividade dos rorricnr.los


diferentes espâços e pcríodos
'
' .:ória do retrato fotográfico, da documentação social e dos incontávcis usos
- :rlicações da imagem nas: ciências cxatas, biológicas e humanas; artes,
r::uitetura e demais áreas do conhecimento; comércio, indústria, turismo e
:: olltras atividades econômìcasl publicidade, propaganda e na imprensa,
-: :special no fotolornalisrno;da fotografia como forma de expressão artística,
:-:ural e ideológica; e da cresccnte difusão mundial da imagern através clos
eletrônicos; trâtâ-se dos -cssuNros fotográfìcos: amplo espectro temático
-.:os
: :umental e criativo, de múltiplas naturezas, registrado nos últimos 160
r1 ls

Ér*da
@rt6
*l

33
BORIS KOSSOY

Na realidade, uma fotografia não deixa de ser, ao


mesmo tempo, oBJETo e FONTE, posto que se refere sempre
a um mesmo início, â uma gênese única: sua criação e
mateúalização se deram em determinado local e num pre-
ciso momento. Trata-se de um documento que propicia
estudos segundo diferentes abordagens e distintas verren-
tes de investigação. No entanto, essas investigações não
podem se dissociar, na medida em que têm como núcleo
central os próprios documentos fotográficos7.
A história da fotografia é centrada no esrudo sisre-
mático da fotografiâ em seu passado histórico: às causas
que levaram ao seu advento em diferentes espaços numa
mesma época, seu aperfeiçoamento técnico, sua adoção
enquanto meio de informação e expressão, sua popula-
rização e penetração nos diferentes setores da sociedade,
sua expansão comercial e industrial, seu consumo e prá-
tica pelas diferentes classes sociais, sua evolução estética,
tecnológica, sua abrangência temática, seus autores con-
sagrados e anônimos. Além destes e outros temas, é de
decisiva importância a reflexão acerca dos usos e aplica-
ções das imagens ao longo de sua história. Este é o objeto
da história da fotografia.
A iconografia fotogrâfica diz respeito a paÍtes ou ao
conjunto da documentação pública ou privada que abran-
ge um largo espectro temático, produzida em lugares e
períodos determinados. As fontes que as compõem são

7. Boris Kossoy, Fotografia dr História,2. ed. rev., São Paulo, Ateliê,


2001, pp. 53-54.

34
OS TEÀ,1 POS DA FOTOGRAI-'IA

reios cle conhecimento: registros visuais que gravam


:ricroaspectos dos cenários, personagens e fatos; daí sua
-:,rça documental e expressiva, elementos de firação da
:,;mória histórica individual e coletiva. Em função de
::rj características, constituem documentos decisivos para
. :ronstituiçào hrstórica.
Cs documentos fotográficos constituem, enfim, as
: rie s primordiais para as diferentes veÍtentes de investi-
:.:ão. disso resultando uma retroalimentação contínua
-. liormações, na medida em que consideramos a inter-
: ..;,:Ìinaridade das abordagens.
,--r ,lbservarmos o diagrama, há, arnda, outÍa natll-
-:-j l; investigações que poderia enquadrar-se na primei-
-, -::-nte assinalada (a fotografia como objeto de estu-
: ì: -:ata-se da proposição de um coïpus conceitual para
::.:io das imagens, sobre o qual se assenta também
---- ::odelo metodológico de análise e interpretação. Um
.::,:ouço teórico, enfim, que visa à desmontagem (deci-
-:.::,r técnica, cultural, estéticâ e ideológica das rma-
:: . :oiogÍáficas, sejam elas do passado, sejam contem-
- - ::a -as.
-.:es fundamentos e a metodologia se constituem no
:: ', :r,nceitual para o desenvolvimento das linhas de in,
:r--::.Òes históricas assinaladas antes, sua espinha
- -.:,, Tal eixo conceitual seria, praticamente, uma ter-
-; -: -;iteflte, um campo de estudos em si mesmo isto -
:: --: :rsciplina autônoma do conhecimento -, que pos-
: ". .mpla articulação com outras áreas das ciências
r
- : :!. De forma esquemática, podemos dizer que es-
35
BORÌS KOSSOY

sâs três vertentes de investigações, articuladas entre si,


englobam nossos estudos sobre a imagem fotogrâfica.

A NATUREZA INDICIÁRIA DA FOTOGRAFIA

Giovanni Morelli, Conan Doyle (através de seu ilus-


tre personâgem Sherlock Holmes) e Sigmund Freud fo-
ram mestres no emprego de métodos de investigação a
partir de indícios, sintomas e sinais, um "paradigma
indiciário", como definiu Ginzburgs. A partir do exame
de detalhes aparentemente sem importância de um re-
trato, como, por exemplo, os lóbulos das orelhas ou o
formato das unhas, Morelli notabilizou-se pela desco-
berta de exemplares não autênticos de obras de arte pic-
tóricas.
Ginzburg retoma Castelnuovo, autoÍ que estabele-
ceu a comparação entre o método indiciário de Morelli e
o que era empregado, na mesmâ época, pelo fabuloso
Sherlock Holmes, como podemos ler nos contos policiais
de Conan Doyle, seu criador: "O conhecedor de arte ê
comparável ao detetive que descobre o autor do crime
(do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a
maioria"e.

8. Carlo Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais,São Paulo, Companhia das


Letras,2001. Ver, em especial, o capítulo "Sinais, Raízes de um
Paradigma Indiciário", p. 145.
9. Apud Carlo Ginzburg, op. cit., p. 145.
OS TËMPOS DA FOTOGRAFÌA

Em sua obra, Ginzburg também destaca o mérito do


:i::dioso de arte E.'tWind10 no tocante à reavaliação que
..:= último faz acerca da importância do método de
l"I:lel1i - num dado momento muito criticado e, mais
-.:de. julgado mecânico, positivista etc. I7ind demonstra
: j-. ao contrário, a atitude de Morelli em relação à obra
-: ìne era avançada e que a "psicologia moderna" esta-
:-: ;ertamente ao seu lado: "[...] os nossos pequenos ges-
: -. inconscientes revelam o nosso carâter mais do que

-::-quer atitude formal, cuidadosamente preparada por


:,!-::. Sob este âspecto, é de se sublinhar que Freud ad-
:-:.r ser o método de Morelli "estreitamente aparentado
; :.;nica da psicanálise médica", na medida em que esta
Ç' .,nente penetrava "em coisas concretas e ocultas atra-
.. ie elementos pouco notados ou despercebidos"l2.
O autor estabelece a analogia existente entre os méto-
:, i .ie Morelli, Doyle e Freud (todos os três, curiosamen-
:r". Jtm a mesma formação em medicina), esclarecendo
;:: -ilos três casos, pistas talvez infinitesimais permitem
:-i::ar uma realidade mais profunda, de outra forma ina-
--;rel. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de
::-;dl, rndícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pic-
::::;os (no caso de MorelÌi)". Nos três casos, prossegue o
-r::,,1. "entÍevê-se o modelo da semiótica médica [...] ";

.::qt, ìbìdem. O autor se refere, em particular, à obra de -Wrnd, Arte


: :,,:srchìa, Milão, [s.e.l, 1972.
. .-,::tJ C. Ginzburg, op. cit., pp. 145-146.
' :.-,t. p. 147.

.1 /
BOR]S KOSSOY

em relação às ciências humanas, estas também começa-


rão a se afirmar segundo "um paradigma indiciário basea-
do justamente na semiótica", completa Ginzburgl3.
Este paradigma indiciário, na realidade, derivaria de
um antigo saber caracterízado pela "capacidade de, a
partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar
a uma realidade complexa não experimentável diretamen-
te"t4. E o grande exemplo dessa capacidade remonta aos
primitivos caçadores, que durante milênios aprenderam
a farcjar, rastrear, decifrar enfim, pistas deixadas pela
presa, pistas que permitiam reconstituir "uma série coe-
rente de eventos"ls.
Ginzburg reconhece a diferença fundamental entre
analisar os vestígios (pegadas na areia, fezes, cinzas de
cigarros) e as escritas, pinturas ou discursos. Morelli ou-
sou detectar nos quadros (portanto no "interior de um
sistema de signos culturalmente condicionados',) aqueles
que ele acreditava serem invoÌuntários, isto é da ordem
dos "sintomas (e da maioria dos indícios)". Era justa-
mente nesses signos traçados aparentemente sem inten-
ção, isto é, "sem se aperceber", gue Morelli intuía os as-
pectos mais reveladores da individualidade do arrista, ral
como certas palavras e frases que os homens incorpo-
ram, sem se darem conta, em suas falas e escritosl6.

13. Idem, pp. 150-151.


11. Idem, p. 1.52.
L5. Idem, ìbìdem.
16. Idem, p. 177.
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

Os documentos escritos e iconográficos, assim como


,; restos mâteriais que nos vieram do passado (os monu-
-:iltos arquitetônicos da Antigüidade, os sarcófagos do
- ::ente, os utensílios de povos pré-coÌombianos etc.) nos
::zem vestígios, indícios para estudos especializados vi-
',;::Jo
à determinação de datas, técnicas e materiais utili-
-.jos em sua produção, assim como para tomarmos co-
-;;imento de determinados fatos e situações que teriam
,"-'rrido em épocas precisas. Também na imagem foto-

=::ica encontÍamos indícios, sejam eles voluntários ou


:-. rÌuntários, materializados mediante um sistema de
:::resentação visual que se tornou factível nas primeiras
*-;adas do século xx. A partir da abordagem de Ginzburg
:, jemos traçar um paralelo com a nossa proposição, pois
::.,f,nstituir o processo que determinou o documento fo-
: - ::áfico foi a meta que estabelecemos desde o início,
: - r o fito de compreender a cena registrada, instante da
.,:-,rrência do fato e da gênese do próprio documento;
.,:-, significa realizar a operação inversa, buscando de-
::-Ìar os elementos estruturais do documento - o objeto-
-lqem, enquanto um resíduo que nos veio do passado,
::r fragmento visual da realidade tomado em determina-
:- iugareépoca]7.
\a fotografia, os indícios são constituintes formais
:, Jocumento quando este se tratar de um artefato foto-
- Boris Kossoy, A Fotografia como Fonte Histórica; lntrodução à Pes-
.;:isa e Interpretação das Imagens do Passado, São Paulo, Muser.r da
Ìrdústria, Cornércio e Tecnologia de São Paulo, 1980, p.31 (Museu
s Técnicas,4).

i9
BORIS I(OSSOY

grâÍico (suportes, técnicas e materiais empregados para a


sua confecção); eles estão presentes também, obviamen-
te, nos conteúdos das imagens, enquanto reproduções
icônicas do objeto registrado. Uma dupla arqueologia,
como já colocamos em outros trabalhos, faz,se necessá-
ria para determinarmos precisamente a gênese e história
do documento em si (reconstituição do processo que ge-
rou o artefato), e o conteúdo da representação (recupera-
ção em detalhe dos elementos icônicos que compõem o
registro visual, de forma a situarmos precisamente a cena
gravada no espaço e no tempo)r8.
As representações fotográficas contêm em si informa-
ções iconográficas sobre o dado real e, em função disso,
são de grande valor para a pesquisa e interpretação nas
ciências humanas, exatas e biológicas. As análises que
técnicos da Nase vêm fazendo, através das fotografias de
rochas e do solo enviadas pelo jipe-robõ Opportwnity
-
relativas à possibilidade da existência de oceanos e mesmo
de formas de vida em épocas remotas no planeta Marte
-,
constituem contribuição única para o progÍesso da ciên-
cia. Da mesma forma, as fotografias que registram os anéis
de Saturno, a erosão das rochas, a forma das montanhas
e da paisagem em geral, as ossadas pré-históricas, as es-
pécies animais e a vegetação do planeta, os Íesros arqueo-
lógicos, os resíduos orgânicos e mârcas do passado, o

1 8. Em F oto gr af ìa ú' H is tória, op. cìt., explicitamos em detalhe a


metodo,
logia de investigação iconográfica proposta para o estudo das fontes
fotográficas. Ver especialmente cap. 4.
OS TEMPOS DA FOTOGRAFÌA

:i:Ì\'imento de uma rua na segunda década do sécuÌo xx:


. :rquitetura dos edifícios, as fachadas de estabelecimen-
, r comerciais e de serviços, o vestuário dos transeuntes,
, :.lplantação de postes para a instalação elétrica ou te-
.:,ìnica, entre inúmeros outros temas e cenários, consti-
:--l vaÌiosa contribuição para a Íecuperação das infor-
-;ões, pela sua força documental.
-
-\ imagem fotográfica é, portanto, indiciária, na me-
- :: em que propicia a descoberta de "pistas de eventos

-- , diretamente experimentáveis pelo observador". Tra-


:--e dos indícios existentes na imagem (iconográficos), e
- -.. acrescidos de informações de natuÍeza histórica, geo-
:::lca, geológica, antropológica, técnica, a carregam de
".-::do. Um conjunto de informações escritas e visuais
::.. associadas umas às outras, nos permitem datar, lo-
-: :rar geograficamente, identificar, recuperar enfim,
::'r-histórias de diferentes narurezas implícitas no do-
-111().

)etalhes aparentemente insignificantes não podem ser


::- -,nsiderados. No caso de uma cena de rua, aÌgum ele-
ï::_:,r fora da ârea de interesse, à primeira vista sem im-
: .:::ncia, pode ser decisivo para a datação da fotogra-
:: ;.iramos apenas dois exemplos: os edifícios registrados
-r-*--::rre â sua construção permitem uma datação relati-
r
"L--:lre simples pelo estágio em que se encontrava a res-
:r,::-" a obra em dado momento. O registro de cartazes
rr-r-: jos nos muros e paredes ao fundo da foto (elemen-
-.., :rrtanto, periféricos ao tema principal), referentes a
:'r:-'iìts que tiveram lugar à época como shows, apresen-

n" 41
BORIS KOSSOY

tações teatrais, inaugurações etc., possibilitam a recupe-


ração das datas mediante a pesquisa de periódicos. Indi
cios inuoluntários não são raros numa fotografia.No caso
de um retrato, por exemplo, os mencionados indícios são
fundamentais para a interpretação na medida em que
podem ser reveladores do caráter do retratado, particu-
larmente quando este é fotografado sem que o saiba. No
entanto, os retratos são ambíguos, pois o retratado pode
representar determinado papel diante da cãmara.Isto se
apresenta ao intérprete como evidência definitiva ou in-
dício de uma âtitude a ser investi gada?

APARÊNCIA E EVIDÊNCIA

O vínculo com o real sustenta o stcttus indicial da fo-


tografia. No entanto, a imagem fotográfica resulta do
pÍocesso de criação do fotógrafo: é sempre construída; e
também plena de códigos. Não podemos perder de vista
que os indícios que a imagem fotográfica apresenta reÌa-
tivamente ao tema, foram gravados por um sistema de
representação visual. Se, por um instante, durante a gra-
vação da imagem, houve uma conexão com o fato real,
no instante seguinte, e para sempre, o que se tem é o as-
sunto representado; o fato se dilui no instante em que é
registrado: o fato é efêmero, sua memória, contudo, per-
manece - pela fotografia. São os documentos fotográfi-
cos que agora preyalecem; neles vemos algo que fisica-
mente não é tangível; é a dimensão da representação: uma

42
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

ambígua que envolve os receptores, pois, de-


do obleto retratado, desliza entre a informa-

IìIocso âcesso ao dado real, quando através da ima-


fuogrâfica, será sempre um acesso à segunda reali-
aquela do documento, a da repÍesentação elabora-
T-rata-se do acesso ao mundo da aparência, um mundo

lrÍEserva as formas de um objeto ou cenário ou as


ffies de um indivíduo recortadas no espaço, paralisa-
tro tempo, um mundo imaterial, logo intangível, não
do se a imagem é analógica ou digital. A, apa-
ia é a base da chamada evidência fotogrâfica. O ob-
pode achar-se registrado tal como se apresentava em
mncretude; personagens podem apaÍecer sorriden-
introspectivos, cenários podem ser distorcidos, deta-
omitidos, tratârem-se de pura encenação. A evidên-
ir nao pode deixar de ser questionada.

A CARACTERÍSTTCE INDICIAL E SEUS LIMITES

Achamada característica indicial vem, em geral, acom-


mhada de outro conceito: o de "fotografia documen-
rrü"- Dificilmente se discute o conceito de índice fotográ-
fim em relação às imagens "não documentais", por
remplo, aos fatos que nunca existiram, isto é, às reali-
dades inventadas, ficcionais, enfim, aos trabalhos de ex-
pessão pessoal que podem, também, ser obtidos foto-
graficamente. Já no que se refere às realidades ditas
frcnrais - cujos respectivos registros nos fornecem ima-

43
BORÌS KOSSOY

gens "documentais" -, buscou-se sempre associar valo-


res morais como a uerdade, por exemplo.
Essa pretensa ceïteza ganhou força por conta de ser a
fotografia considerada, desde seu advento, como um re-
gistro "objetivo", "neutro", produto de um mecanismo
óptico-químico "que não pode mentir", um duplo da rea-
lidade, uma reprodução mimética do objeto que se acha-
va frente à objetìva. Nada mais adequado que essa "ob-
jetividade" fotogrâfica para a comprovação dos preceitos
do positivismo. Além disso, deve observar-se que o indí-
cio se refere sempre ao fragmento registrado, contudo, é
um recurso comum tomar-se o fragmento pelo todo, com
o objetivo de generalizar-se toda uma realidade, todo um
contexto. A ideologia influencia no enquadramento da
foto e nos cortes posteriores do editor de imagens. Esse
recurso alimenta uma das práticas recorrentes da imprensa
visando à manipulação das informações.
A fotografia aplicada à atividade científica, policial,
jornalística, entre outras, teve - e têm - a finalidade de
comprovar, testemunhar; certamente o índice fotográfico
é um indício, pista, porém não pode ser tomado dogmati-
camente como uma uerdade histórica. Poucos questiona-
ram que a característica indicial na fotografia - que estâ-
belece a evidência e, por extensão, a "verdade" -é produto
de uma elaboração técnica, cultural e estética (portanto
ideológica) por parte do auror da representação, e de
outros co-autores que, de alguma forma, interferiram na
imagem. Tem-se, assim, um documento especular da apa-
rência, produto de um processo de criação/construção,

44
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

--:iguo por excelência. Presta-se como evidência docu-


:-::al de algo que ocorreu na realidade concreta; tal,
:,.:.ÍÌ. não significa tratar-se de um registro fidedigno
-,: :;ahdade ou uma verdade absoluta. Trata-se apenas
:: iÌrÌa uerdade iconográfica, aspecto fundamental que
::- - llaremos adiante.

CONSTRUÇÃO E DESMONTAGEM
DA IMAGEM FOTOGRÁFICA

: ^..':.i ttt nto s Teóricct s


-i e

Fm linhas gerais, buscamos estabeÌecer um conjunto


:. :rincípios que pudessem contribuir para um melhor
, :ecimento sobre a rratLrïeza da fotografia. Investiga-
: :. e reflexões nesse sentido foram sendo desenvolvidas
: ::1re um largo período: era necessário compreender
-.-ior sua gênese e trajetória, sua condição de objeto e
-:::-m, sua natureza fragmentária, suas características
:"::;íiicas, sua autonomia e realidade própria, sua esté-
: :,. enfim. Esse conjunto de princípios se articula em
,, :::l dos seguintes eixos teóricos:
,,1 sistema de representação visual e o fenômeno foto-
'
.ráfrco
. -r. erperiência fotográfica a produção e a recepção
:as imagens
| -i, trama fotográfica: realidades e ficções

,\ partir de tais eixos foi proposto um modelo meto-


- . -'gico de análise (nível técnico e iconográfico) e inter-

45
BORIS KOSSOY

pretâção (dimensão cultural e ideológica) das fontes fo-


tográficas.

A DESMONTAGEM DAS IMAGENS

Análise e Interpretação das Fontes Fotográficas

A fotografia não pode ser pensada como um docu-


mento que vale por si próprio, neutro, isento de manipu,
lação. Não existe documento inocente. A fotografia, as-
sim como as demais fontes deve ser submetida ao devido
exame crítìco que a metodologia da história impõe aos
documentos.
A desmontagem implica na idéia de decifração: o nos-
so estudo está centrado num contínuo exercício de deci-
fração. A decifração da imagem fotográfica, de suas rea-
lidades e, portanto, de seus códigos, se desenvolve através
da análise iconográfica e da interpretação iconológica,
estágios esses da investigação aos quais dedicamos espe-
cial atenção1e.
Através da análise iconográfica buscamos detectar
seus ELEMENTos coNsrrrurrvos (fotógrafo, assunto,
tecnologia) e suas cooRDENADAS DE srruAÇÀo (espaço, tem-
po). Tentávamos, assim, estabelecer um paradigma visan-
do a reconstituiÇão do processo que originou a repÍesen-

19. Ver especialmente as obras, já referidas, Fotografìa e História e Rea-


lìdades e Ficções na Trama Fotográfica.

46
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

:.:;ão, âpartiÍ de indicadores constantes nas imagens foto-


a pesquisa extensiva aceïca de qwem, que, como,
=álicas:
,:trndo e onde,de forma a individualizar cada documento
: - iográfico, estabelecer sua identidade e unicidade. Com-
:,-nenta a análise o inventário analítico e a determina-
::r precisa dos elementos icônicos que compõem o con-
:=:,io da imagem: o assunto registrado.
De outra parte, discutimos questões acerca de uma
-:;-nenêutica particular que as imagens demandam para
:- compreensão interior. Nessa linha, foi proposta uma
-:-rpretação iconológica - empregando a denominação
:= Fanofsky - pa,ra a decifração daquilo que o fragmento
--.uaÌ não tem de explícito em seu conteúdo2O.

CODIGOS DA IMAGEM FOTOGRÁFICA

Em seu conteúdo, uma única imagem reúne uma sé-


r= ie eiementos icônicos que fornecem informações para

- l:r.r a análise e interpretação das fotografias nos apoiamos, em pirr-


::. - apesar de o autor ter proposto
:ros conceitos de Erwin PanoÍsky
:=* método para a representação pictórica -, especialmente no que se
:: .le à interpretação iconológica que corresponde ao nível interpre-
::::r'o mais profundo, o "significado intrínseco". Na realidade, Pa-
: ,.ki propôs três etapas de interpretação: a descrição pré-iconográfica
' .';l prìmário ou natural), a análise iconográfica propriamente dita
..-.indário ou convencional) e o terceiro nível, mais profundo, que
-':;:ìa dos anteriores, centrado na busca do significado intrínseco (ou
: ::ieúdo), que comportâ valores simbólicos, no sentido em que o
::::o é empregado pelo neokantiano Ernst Cassirer (1874-7945).Yer
=-. rn Panofsky, Estudios sobre lconología, Madrid, Alianza Univer-
- -:.i l gR) nn )4-) S

47
BORIS KOSSOY

diferentes áreas do conhecimento. Esses elementos acham-


se formal e cuburalmente codificados na imagem, sendo
tais codificações inerentes à representação fotogrâfíca, à
sua estética particular. Tal codificação diz respeito, pois, a
fatores que corporificam o documento, materializam a re-
presentação, e aos elementos icônicos propriamente ditos,
que conformam a imagem. Essa imagem, por sua vez, liga-
se pelos laços da história ao fato que representa; laços que,
umavez desvendados, caÍregam de sentido o iconográfico.
Na prática, codificações se vêem individualizadas pela
essas
mediação (técnica, culmral, estética) do fotógrafo ao lon-
go do processo de criação da representação.

1. A codificação formal diz respeito:

1.1 à captação da imagem no interior da câmara, por


meio de um sistema de representação visual assentado:
. em princípios ópticos observados na Antigüidade21;
' na perspectivâ 1ínear22;

27. Como o observado pelo filósofo chinês Mo Ti (durante o século V


a.C.), quanto à formação da imagem de um objeto no interior de uma
área escura, através da passagem, por um furo de minúsculo diâme-
tro, da luz refletida desse objeto. Aristóteles (ca. 330 a.C.) observou o
eclipse do sol projetado sobre o solo através de pequenos orifícios nas
folhas de uma árvore.
22. Construção geométrica cujo objetivo é representar o objeto (tridimen-
sional) ilusoriamente sobre uma superfície plana (em duas dimensões):
o plano da imagem. Trata-se de descoberta devida a Brunelleschi (ca.
1413). Alguns anos depois, Leon Battista Alberti demonstrou as apli-
cações da perspectiva à pintura. Na perspectiva, o olho do observa-

48
OS TEÀ{POS DA FOTOGRAFIA

. :-a camerct obscura) instrumento óptico embrião da


;imara fotográÍtca23;
-\ imagem fotográfica obtida a partir desse sisrema
:::.supõe um inevitável recorte espacial e uma interrup-
-. remporal em relação ao objeto do registro (o fato,
: :tro. tema) em seu contìnuum no real, característica
::.: que considero fundante da fotografia e represento-a
: =-= relação: fragmentação/congelamento.

1.1 aos recursos técnicos, que são os equipamenros,

-.:-riais e processos específicos - ópticos, químicos, ele-


:. -:;os - utilizados, visando à materialização da ima-
.--: :otográfica.

- : sÌtuã-se no vértice da pirâmide visual para onde convergem os


:-:::s tÌinhas) que parrem do objeto. Desse ponto privilegiado, obser-
:-se o mundo visível, um mundo, segundo Berger ,,[...] ordenado em
--:-;ão do espectador, do mesmo modo que em outros tempos se pen-
: j que o universo estar.a ordenado em função de Deus',. Esse alÌtor
:.:-i.enta ainda: "a contradição inerente à perspectiva era qlre estru-
,:-:ii'a todas as ìmagens da realidade para dirigi-las a um só especta,
: : que, ao contrário de Deus, unicamente podra estar em um lugar
. : ;ada instante". Sobre o tema) ver John Berger, Modos de Ver,
::-;eÌona, Gustavo Gili, 1980, p. 23.
-:.ssório mencionado por l-eonardo da Vìnci ainda no final do sécu-
\\', Deve-se, no entanto, a Giovanni Battista della porta uma per-
:.::-: descrição da camera obscura (como dispositivo auxiliar para a
.:'-;ução de desenhos clos objetos e da natureza, cr-rja imagem se for-
r:.a no interior do aparelho e era delineada sobre um suporte de
:::-i pelo usuário). No entanto, até que ocorressem as primciras cx-
:::r.rÌcias que levariam à descoberta dos elos químicos necessários
-::: r captlrra definitiva das imagens exrernas dos objetos que aí se
: ::ra\'âm ainda se passariam vários séculos.

49
BORIS KOSSOY

1.3 aos recursos plásticos, que são os eÌementos de


expressão empregados, objetivando introduzir os mais
diferentes efeitos estéticos. A imagem enfatizada plasti-
camente - seja no seu todo, seja em algumas de suas par-
tes: a) no momento do registro, isto é, através da cãmara;
b) durante o processamento em laboratório (hoje prati-
camente abandonado em função da fotografia digital) ou,
em sessões de pós-produção mediante programâs de "tra-
tamento" de imagens pelo computador - provoca nos
receptores um determinado impacto ou impressão que
ultrapassa o conteúdo, dtamatiza a mensagem, cria uma
atmosfera, serena ou tensa (conforme a intenção do ope-
rador), reforçando ou criando estereótipos, alimentando
mitos no imaginário coletivo, contribuindo, assim, para
a construção de uma outra realidade.

2. A codificação cultural se refere direta e indireta-


mente ao tema representado. Seus elementos icônicos
acham-se registrados segundo coordenadas de sitwação
precisas, isto é, espaço e tempo no interior de um dado
momento histórico (em seus desdobramentos econômi-
cos, políticos, sociais, culturais). Qualquer que seja a ima-
gem, nela existe um inventário de informações acerca do
tema principal (que é o motivo da foto) e do seu entorno;
trata-se de informações explícitas e implícitas, a saber:

2.1 explícitas, específicas ao objeto da representação;


registros fotográficos que retratam ou documentam o
assunto: o uisíuel, o aparente da representação;
Nos conteúdos fotográficos encontram-se muitas ve-

50
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

rc elementos de identificação marcantes que se repetem


alongo do tempo e acabam constituindo marcos distin-
rino6' simbólicos, posto que relativos à geografia, à ar
qliteüÍa, aos monumentos históricos, à cultura de de-
rrminado lugar, região, país. Dependendo de quem os
d" esses marcos, âo mesmo tempo em que identificam,
trmbém podem ser interpretados ideologicamente, ob-
mrvados segundo filtros preconceituosos e, portanto, se-
n tomados como estereótipos denatureza êtnicartacíal,
digiosa etc.

2-2 implícitas, relativas à história e ao contexto que


ruvolvem o tema registrado; são da ordem dos fatos pas-
ndos e das mentalidades, heranças culturais e ideológi-
.'{, que afetam o indivíduo. Não se fazem ver, são inuisí-
lcis, o oculto da representação;
Não importando quais sejam as categorias analisa-
fu de informação, essas só adquirem sentido na medida
tm que se tenha um somatório de outras informações de
übrentes natrrïezas (orais, escritas, iconográficas ), que
lmsibilitem nos acercarmos com a necessária precisão
cn relação ao conteúdo do tema representado, assim
Gno resgatar seu significado intrínseco.

As imagens fotográficas se vêem codificadas desde o


mmento em que passâm a existir, seja de forma avulsa
u guardadas em uma gaveta, expostas nas paredes de
- instituição, dispostas
em álbuns, estampadas em al-
Gurna publicação, disponíveis em determinado site da
hernet.

51
BORIS KOSSOY

Estamos diante de um constante exercício de decifra-


ção. Em síntese, os pressupostos metodológicos de análi-
interpretação foram equacionados de forma a situar-
se e
mos exatamente â representação no espaço e no tempo,
determinarmos seus elementos constitutivos e identificar-
mos seu conteúdo, o aparente da representação, sva rea-
lìdade exterior (análise iconográfica). Recuperamos as-
sim informações preciosas para a reconstituição histórica.
Toda fotografiatematrás de si uma história; é este o enig-
ma que procuramos desvendar.
Necessitamos, entretanto, ir além quando falamos em
desmontagem da representação, em busca do circunscrito,
do subcutâneo à face externa da imagem. É desnecessário
acrescentar que o significado das imagens reside exatamente
nesse seu passado, isto é, em sua história própria, nas fina-
lidades que motivaram sua existência, em suâs condições
de produção, nos fatos que marcâm sua trajetória ao lon-
go do tempo, assim como na história do autor, seja ele um
fotógrafo consagrado ou um anônimo itinerante, suas vi-
sões de mundo, suas convicções, suas motivações.
O fragmento fotográfico adquire significado quando
se percebem as múltiplas teias que o enlaçam âo contexto

histórico e à vida social em que se insere e, ao mesmo


tempo, documenta. Trata-se de desvendar) seus alicerces
mais profundos, sua trama histórica e social, sua dimen-
são cultural e ideológica, seu signi{icado intrínseco, o
oculto da representação, seus muitos porquês sua reali-
dade interior (interpretação iconológica). Veremos) a se-
guir, os desdobramentos dessa proposição.

52
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

ri _ :E55OS DE CRrAÇÃO / CONSTRUÇÃO DE REALTDADES

Fretendia, com Fotografia Ò Hìstória, tÍazer uma


:, -::rbruição teórica à Iconografia, entendida como dis-
:::,r:a autônoma, meio de conhecimento visual e instru-
-::-ro para o estudo e reflexão acerca dos cenários e fa-
-: ' ia história. Se naquele e em outros trabalhos anteriores
--::.:uávamos mais a idéia da imagem fotogrâfrca enquan-
: i:,cttmento, em Realidades e Ficções na Trama Foto-
;-;-l;,r procuramos explicitar melhor o carâter de repre-
.."::-ição que lhe é inerente. As imagens fotográficas,
.*:;ndidas como documento/representação, contêm em
;- :ralidades e ficções. É nessa relação ambígua que se
:--.J o cerne de nossa reflexão.
-\ criação e a interpretação das imagens (a partir do
:=:l ou das fantasias individuais e coletivas que povoam
-,sso imaginário) inserem-se em processos de criação de
:--ildades. Melhor dizendo, de construção de realidades.
-- :otografia resulta sempre desta construção, seja ela rea-

::da enquanto expressão do autor (sem finalidades uti-


--::rras), seja como registro fotojornalístico ou meio
-- criação publicitária, não importando se obtidas segun-
: recnologias tradicionais ou digitais. Vemos diariamente
- mo a publicidade e a mídia constroem "realidades" e
--.'erdades " .

A partir da desmontagem da imagem fotográfica,


:,rde-se perceber em que medida ela incorpora - tanto
-:l sua produção como em sua recepção -, um complexo
riocesso de construção de realidades, e, portanto, de fic-

53
BORIS KOSSOY

ções. É necessário que se reflita sobre certas ambigüida-


des fundamentais de a fotografia ser um registro (isto é,
um documento), mâterialízado visualmente no estágio
final do processo de criação do fotógrafo (que compreende
o processo de construção da representação). Esse concei-
to se vêsimplificado pelas relações indissociáveis e per-
manentes: registro/criação (ou testemunholcriação) e,
documento/representação, sempre se referindo a um mes-
mo objeto fotográfico.
De tais relações decorre a possibilidade ficcional da
fotografia. Pensamos, aqui, numa natureza ficcional in-
trínseca à trama fotogrâfica, que constitui o alicerce cul-
tural, estético e ideológico das manipulações que ocor-
ïem dntes (finalidade, intenção, concepção), durante
(elaboração técnica e criativa) e após (usos e aplicações)
a produção de uma fotografia. Pensamos nas manipula-
ções que desde sempre se fizeram dos fatos, seja nos pal-
cos fotográficos do século XIX, por onde desfilava uma
burguesia ansiosa de sua própria representação, seja na
página impressa dos periódicos, ao longo do século XX e
até o presente.
O dado ficcional é, pois, inerente à imagem, na medi-
da em que a fotografia é um testemunho que se materia-
liza a partir de um processo de criação, isto é, constru-
ção. Nessa construção reside a estética de representação.
O ficcional se nutre sempre da credibilidade que se tem
da fotografia enquanto uma pretensa transcrição neutra,
isenta, automática, do real, portanto, enquanto uma evi-
dência documental (herança positivista). A idéia que sem-

54
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

::. se propâgou da fotografia é a de sua supostâ caÍacte-


:-::.a de objetividade, do que decorre a certeza de uma
"-::nsparência" entre o fato e o registro. A representa-
:.-, ultrapassa o fato e a evidência é exacerbada nessa
:-:sirução; assim se materialíza o índice fotográfico; as-
: --r se materializa a prova, o testemunho, a partir do pro-
::;',: de criação. Assim se criam realidades.
Da mesma forma, no que se refere à recepção, não
;,-,jcmos perder de vista a "elasticidade" das interpreta-
- -,r,s que as imagens propiciam ao longo de sua trajetória.
l.;emos conviver com esta eterna ambigüidade da foto-
um documento etnográfico ou arquitetônico pode
=irai
r.': compreendido como um meio de conhecimento, uma
:,-:; históricâ, mâs também pode, ao mesmo tempo, seÍ
::---:ado como ferramenta de propaganda, geradora ou
; -::rmadora de preconceitos, sempre dependendo dos
:: r:ls tlegendas, títulos, contextos) que acompanham tais
:igens, de sua diagramação, dos veículos em que são
:-=:rdas e dos receptores que as apreciam.
-{ medida que buscamos compreender a construçào
;-ç::i dessas representações codificadas, simultaneamen-
:: ïfrrÌos percebendo os mecanismos para a suâ desmon-
-l-in. A proposição destes processos de criação/cons-
:-:;ão de realidades (tanto na produção como na recepção
:;: :magens) enquanto projeções do imaginário social tem
r *;ntado conceitualmente nossas reflexões centradas
='i'Ierpretação iconológica.
-i.- a análise iconográfica situa-se no nível da imagem,
i :-:eÍpretação iconológica tem aí seu ponto de partida e

.5.t
BORIS KOSSOY

estende-se além do documento visível, além da chamada


evidência documental. Trata-se da recuperação de dife-
rentes camadas de significação. A interpretação iconológica
se desenvolvena esfera das idéias, das mentalidades.
Foi com tais preocupações que nâsceu Realidades e
Ficções na Trama Fotográfica, não apenas para comple-
mentar a incursão teórica desenvolvida em Fotografia (t
História como, também, dar um passo além, creio, neste
peÍcurso de compreensão das fontes fotográficas e de
decifração dos enigmas e manipulações que se escondem
sob suas superfícies iconográficas.
Uma vez compreendida a proposição dos processos
de criação/construção de realidades, podemos perceber
mais claramente os limites do "índice fotográfico". O
índice fotográfico ê controlado e certamente não
independe do processo de construção da representação:
pelo contrário, é produto dele. O traço só existe, pois, em
função desse processo. O índice fotográfico confunde-se
com a própria materialízação documental ou visual da
Íotografía. O que significa ser ele não o princípio, mas
sim o ponto final do processo de construção da represen-
tação. Penso que agora temos mais elementos para Íeto-
marmos a questão da verdade documental, ou melhor,
da verdade iconográfica.

A VERDADE ICONOGRÁFICA

A verdade iconográfica é fruto de uma construção


técnica, estética, cultural e ideológica. Basta observarmos

56
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

-: da imagem fotográfica em temas etnográficos. Em


,:: 's trabalhos procuramos demonstrar em que medi-
-: : :-presentação fotogrâfrca teria contribuído para re-
' :::i a postura etnocentrista do homem branco euro-
:-- quando diante de realidades americanas. Essa
-::-::.hdade sobre temas etnográficos segundo o ,.olhar
:*r Jfu"ll e as formas como eles foram representados/
- : -lentados reforçaram um certo conceito sobre a
-- :rica Latina2't. Essa mesma mentalidade foi transplan-
': -: lara a história da fotografia tanto nos títulos mais
-:
- -.ì\ eomo nos atuais.
- iundamental perceber que, em determinadas ima-
::,,! etnográficas, trata-se de produtos ideológicos etno,
-: -1Stâs e racistas - tal como foram produzidos e veicu-
:: i no passado, quando as teorias pseudo-científicas
:: tt ".ãITÌ em voga, e tal como foram e seguem sendo re-
. : :uzidos nas obras históricas didáticas e como refe-
r:r,---ìS ilustrativas armazenadas em bancos de imagens.
lara a antropologia emergente das últimas décadas
- .;culo XIX, impregnada pela mentalidade positivista,
, , :rrgrafia era um meio de swbstituição literal do fato

i::r;r Luiza Tucci Carneiro e Boris l(ossoy, O Olhar Europeu: O


'\.'!io tld Iconografìa Brasileira do Sécub X1X, São paulo, Edusp,
-:t+.
: ,:rs. Kossoy, "Photography ir-r Latin America: The European
::rperience and The Erotic Experience", em \(/cr.rdy Watriss & Lois p.
-:rlrora lorgs"1, Image and Memory, photography from Latin America
,ib6-1991, Housron, University of Têxas press/FotoFest, 199g, pp.
. i_
i.+.

57
BORIS KOSSOY

antropológico e não umâ simples representação desse


mesmo fato. A metodologia de "classificação" das ciên-
cias nafurais serve de paradigma para outras ciências.
Nesta perspectiva é que se inserem as fotografias dos "ti-
pos", como as dos negros e dos índios. A antropometria
era empregada para comprovar "cientificamente" as ca-
racterísticas físicas do outro. Essa, porém) eÍa a fachada
do projeto antropológico, a suâ face visível; na sua essên-
cia, este projeto pseudo-científico era umbilicalmente li-
gado ao programa colonialista: evidenciar através do cha-
mado "testemunho" fotográfico as diferenças físicas que
caracterízavâm uma pretensa "inferioridade" deste oz-
tro petante o homem branco tomado como modelo, como
padrão de perfeição física. Em outras palavras, as dife-
rençâs entre negros, índios, mestiços em estado primiti-
vo, selvagens habitantes das terras exóticas, e o branco
europeu civilizador.
Para isso serviu o registro fotográfico antropológico:
como instrumento de afftmação de uma ideologia colo-
nialista de dominação e controle, e de reafirmação da
superioridade racial, comprovada a parttr da mais "isen-
ta" metodologia: a da imagem técnica, "neutra" por ex-
celência, posto que obtida "sem a interferência do ho-
mem" (interferência essa que poderia ocorrer com a
imagem pictórica), apenas pelo mecanismo óptico da cà-
mara. A imagem fotogrâfica se prestou notavelmente para
o projeto antropológico, pois comprovava materialmen-
te as imagens mentais de cientistas como Louis Agassiz
(1807-1873), que teve como laboratório a Amazônia nos

58
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

ï::::ts da década de 186026, entre outros estudiosos das


-:::,i distantes.
'l,s fotógrafos proprietários de estabelecimentos co_
ï:r:-i.ls e "artísticos", de sua parte, davam corpo â essa
::.:"::ència popularizando,a, de certa forma, na medida
::_ i.le transportavam negros e índios, pigmeus e outros
:i::: rara seus estúdios e os fotografavam diante de ce_
I
i
r.:: -,s neutros ou pintados... com paisagens européias. A
' ::-:toridade" era aqui tornada espetáculo para consu_
: :JLìnográfico, segundo o modelo de representação e a
:: -,:qia do exotismo2T.
--r íotografia se desenvolveu paralelamenre às
discipli-
::. ;rentíficas em formação durante o século XIX. Desde

,- ---:assiz ganhou ampla notoriedade internacional pela sua profícua


::r:eira científica e acadêmica. Chefiou uma expedição ao Brasil (a
:rpedrção Thayer), cujo relato se acha na obra Viagem ao Brasil:
,:65-1866. Um dos jovens auxiÌiares do grupo, ìTalter Hunnewell,
:::endeu a técnica da fotografia no Rio de Janeiro, quando a comiti_
-.
-a ainda se preparava para a expedição; já em Manaus, meses depois,
::: eie o responsável pelas fotos de índios, negros e mestiços registradas
r-sr:ndo o modelo da antropometria. Na obra, Agassiz revela todo o
.=u racismo. Manifesta-se totalmente avesso à miscigenação: ,.O re_
.rlrado de ininterruptas alianças entre mestiços é uma cÌasse de pes_
:oàs em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas qualida-
jes físicas e morais das raças primitivas,
deixando em seu lugar
:astardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que câusam
:lorror âos animais de sua própria espécre, entre os quais não se des,
:obre um único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a
aietividade naturaÌ que fazem do cão de pura raça o companheiro e o
:nimal predileto do homem civilizado,'. Luiz Agassiz e Elizabeth Cary,
\-ìagem ao Brasìl: 1865-1866, São paulo/Belo Horizonte,
E<.lusp/
Iiatìaia, 1975, p.784.
-. O tema se acha expandido nas obras do autor antes mencionadas.

59 ïíì 1-i-ì.1
BORIS KOSSOY

logo a técnica fotogrâfica foi incorporada como instru-


mento de registro dos objetos de estudo e pesquisa dessas
ciências, evidentemente segundo os preceitos positivistas.
Daí a crença na sua objetividade e fidedignidade. Daí o
seu estatuto de reprodução "verdadeira" dos fatos. As
imagens técnicas tornavam, assim. reais as imagens men-
tais. Documentos expressivos de realidades montadas,
construídas segundo â estética de representação dire-
cionada pelos mais variados interesses e pela ideologia.

O PASSADO IMAGINADO E O DOCUMENTO PRESENTE

Através dos fundamentos teóricos e do modelo


metodológico - aqui revisitados e acrescidos de novas
reflexões - buscamos explicitar os instrumentos para
observarmos a construção e propormos caminhos para a
desmontagem das fontes fotográficas.
É fundamental que se perceba o papel da imagem fo-
tográfica enquanto elemento de fixação da memória, ins-
trumento de propaganda e suporte de processos de cria-
ção/construção de realidades e ficções, seja em sua
produção seja em sua recepção.
A imagem fotogrâfica vai além do que mostra em sua
superfície. Naquilo que não tem de explícito, o tema re-
gistrado tem sua explicação, seu porquê, sua história. Seu
mistério se acha circunscrito, no espaço e no tempo, à
própria imagem. Isto é próprio da natureza da fotogra-
fia: ela nos mostra alguma coisa, porém seu significado a
ultrapassa. Existe um conhecimento impÌícito nas fontes
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

- i - -i-erbais como a fotografia; descobrir os enigmas que


:-:-dam em seu silêncio é desvendar fatos que Ìhe são
--:-ntes e que não se mostram, fatos de um passado de-
',;::recido, nebuloso que tentamos imaginar, re-criar, a
::i:rr de nossas imagens mentais, em eterna tensão com
i _::jegem presente que concretamente vemos, limitada à
i::crfície do documento: realidades superpostas. Toda
:-:'.qrafia é o frontispício de um livro sem páginas, um
:, que nos anuncia algo e que, ao mesmo tempo, nos
:-itista. Resta-nos mergulharmos nesses fragmentos
:É!rzantes de ambigüidade e evidência, para tentarmos
:=.r'endar os mistérios que se escondem sob olhares inte-
:::rantes e paisagens perdidas.
E-riste, sim, um pensamento plástico, como afirmava
::-r:rcastel. Seguir decifrando essa forma de conhecimen-
:, i o desafio que nos move.

6t
Por uma História Fotográfica dos Anônimosl

 cRrAÇÃo re RsFpRÊNCrAs EM oposrÇÂo A


UM CERTO "OLHAR CIVLIZADO"

Mesmo com os indiscutíveis âvanços nos estudos his-


-'" cos na América Latina, ainda há muito por se fazer
drtiv2rnslte a uma cultura teórica da fotografia. Esta
?mrdapor maiores desenvolvimentos no tocante à com-
msão do fenômeno fotográfico em suas múltiplas co-
sões com a história e a memória. Além desse aspecto,
s fiormulações teóricas e conceituais têm vindo tradicio-
llhnente de fora: conceitos estabelecidos em função de
Í[Íntextos socioculturais e motivações diferentes, que
hcarn suas aplicações em todas as paÍtes. Tratam-se dos
paradigmas "pensados" para os grandes centros;
-Sos
L fêno adaptado de Aula Magna proferida por ocasião do II Congreso
& Fotografía Latìnoamericana, Santiago, 2000. Esse texto original-
mte foi publicado em Aisthesis Reuista Cbilena de Inuestigaciones
Esáticas, (35):73-79, 2002 (Santiago, Instituro de Estética, Pontificia
Iloiçersidad Católica de Chile).

bJ
BORIS I(OSSOY

modelos clássicos nos quais a América Latina, Ásia e Áfri-


ca são vistas como meras curiosidades exóticas, como la-
boratórios de experimentação de "olhares civilizados".
O etnocentrismo se faz, pois, presente, também na histo-
riografia, determinando o que deve permanecer na histó-
ria ou, simplesmente, ser dela omitido2. E isto não é tudo.
De uma forma geral, nos modelos dominantes, as imagens
são tratadas como ilustrações "inocentes", desvinculadas
dos fatos históricos, esvaziadas em seus conteúdos, des-
contextualizadas da trama sociocultural, pretensamente
desideologizadas. É necessário, pois, que o fenômeno das
origens e desenvolvimento da fotografia na América La-
tina ganhe novos estudos e interpretações nascidas na
própria região. É fundamental a criação de referências
que constituam marcos sólidos, neutralizadores de abor-
dagens exteÍnas que se fazem à luz de paradigmas alque-
brados e "olhares civilizados".
Em outro ensaio, buscava contribuir para â reflexão
sobre a história da fotografia na América Latina obser-
vando a necessidade de uma abordagem renovada sobre
tema, em oposição aos modelos clássicos, seja sob o as-
pecto conceitual, aprofundando o questionamento e a

2. Temos abordado o tema em diferentes oportunidades. Ver, do autor,


"Contribución a los Estudios Históricos de la Fotografía en América
Latina: Referencias Históricas, Teóricas y Metodológica s" , em Anales
del v Cr:loquio Latinoamerìcano de Fotografía, México, DF, Consejo
Nacional para la Cultr-rra y las Artes/Centro de la Imagen, L996, pp.
77-81; "Reflexiones sobre la Historia de la Fotografía", em Ìoan
Fontcuberta led.1, Fotografía. Crìsis de Historia, Barcelona, Actar,
2003, pp. 95-105.

64
OS TT,MPOS DA FOTOGRAFÌA

-r:rica às fontes históricas, seja buscando situar o objeto


:: investigação no interior da trama histórico-cultural.
::a necessário enfatizar o papel que a fotografia teve en-
* *anto testemunho ideologicamente construído com o

:ìetivo de criar e difundir, a pârtir do século xrx, a ima-


:.,it/conceito de uma América Latina ambígua que, sob
- nanto do exótico, era plena de preconceitos. Era ne-
::rsário expor as raízes racistas dos conceitos que se cris-
:|:tzaram sobre a América Latina3.
-\s análises de dentro para fora continuam sendo ne-
:.ssárias para que as futuras gerações reaiam ao espírito
:; colonização cultural sempre presente e não intern ahzem
:: preconceituosas idéias-clichê do típico, do atrasado,
r--, subdesenvolvido enquanto roteiros programáticos de
.:álises históricas. A história da fotografia da América
:rina - assim como a iconografia de temas latino-ame-
:l;anos - não pode ser entendida superficialmente como
-templificação do exótico, nem, muito menos' desvin-
;:lada de nossas histórias culturais. É imperativo que se
-:itiplique a produção científica descontaminada de es-
:=::ótipos, ao mesmo tempo que se criem metodologias
:. rnvestigação e modelos de interpretâção sob uma óti-
:. pensada a pârtir de nossas realidades.

Essa proposição foi desenvolvida no ensaio "Photography in Latin


-\merica: The European Experience and the Exotic Ëxperience", em
tr endy rü/atriss & Lois P. Zamora, bnage and Memory, Photography
:,om Latin Amerìcd 1866-1991, Houston, University of Teras Press/
iorofest, 1998, pp. 18-5,1.

65
BORÌS KOSSOY

O RESGME DOS FOTÓGRAFOS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA:


UMA METODOLOGIA DE ABORDAGEM

Uma linha de pesquisa que sempre consideramos fun-


damental para os estudos históricos da fotografia ensejou-
nos um campo promissor de investigações: uma história
fotográfica dos anônimos. Mas por que uma história fo-
togrâfica dos anônimos, ou melhor, dos fotógrafos anô-
nimos ou praticamente desconhecidos? Basicamente por-
que estes repÍesentam a massa dos artesãos da imagem,
jamais mencionados por qualquer história. A investiga-
ção desses fotógrafos provoca avanços significativos tan-
to na ârea da Íotografia em sua história própria como no
que tocâ à memória histórica e fotográfica do país, pro-
porcionando, em suma, novos dados para o conhecimen-
to do passado. Eric Hobsbawm, em uma de suas obras,
dedica vários ensaios a essas pessoas "comuÌls", a quem
chamou de "pessoas extraordinárias":

uma espécie de pessoas cujos nomes são usualmente desconhecidos


detodos, exceto de sua família, seus vizinhos [...]. Em alguns casos,
seus nomes são inteiramente desconhecidos e impossíveis de co-
nheceE como os dos homens e mulheres que mudaram o mundo
com o cultivo de safras no recém-descoberto Novo Mundo, im-
portadas da Europa e África. Alguns desempenharam um papel
em pequenas, ou regionais, cenas públicas: â rua, a aldeia, a cape-
la, a seção do sindicato, o conselho municipal. Na era dos moder-
nos media, a música e o esporte conferiram notoriedade pessoal a
uns poucos deles que, em épocas anteriores, teriam permanecido
anônimos.
Essas pessoas constituem a maioria da raça humana. [...] Os

66
OS TENTPOS DA FOTOGRAFIA

::-:itos sobre tâis indivíduos ausentes na história deìxaram traços


- - :;o significativos na narrativa macro-histórica.
[...] Suas vidas têm tanto interesse quanto a suâ ou a minha,
escrito sobre elas. [...] Minha questão
-,:iir"ro que ninguém tenha
-,r respeito, antes, â que, coletivamente' se não como indivíduos'
....s homens e mulheres são os principais atores da histórìa. O que
:-:.:zam e pensam faz a diferença. Pode mudar, e mudou, a cultura
. : perfil da história, e mais do que nunca no século XXa.
À consagração de um nome de um profissional, de
*:r artista, é sempre resultante de um processo seletivo
rje é, por sua vez, ideológico. A consagração historio-
;áfica cumulativo da repetição. Desta
se faz pelo efeito
r ima, os nomes se cristalizam' tornam-se referências de-
-rrtivas. Existem vários critérios que levam os historia-
:-ìres a selecionar certos nomes a título de exemplificação
-,rs "melhores" ou mais afamados em cada âreatemâtica;
:,:,deríamos citar alguns deles: os que atenderam' por
:n-mplo, às clientelas mais sofisticadas, ou os que se acha-
',':m mais próximos dos mandatários políticos e econô-
:.iicos, ou aqueles que receberam comissionamentos ofi-
:,ars para documentarem obras públicas, ou, ainda, os
:,ie tiveram seus arquivos mais bem preservados que os
:a grande maioria de seus concorrentes. Acrescente-se a
::so o conservadorismo dos historiadores: assim funcio-
: a o establishment das referências cristalizadas' assim se
:rantém o stdtus quo da história.

:. Entre os ensaios é de se destacar, por exemplo, "Sapateiros Politizados",


em Eric Hobsbawm, Pessoas Extractrdinárias: Resistência, Rebeliãrt e
./;ize, São Paulo, Paz e Terra, 7999; ver também o Prefácio, nessa
rnesma obra, pp. 7-8.

67
BORIS KOSSOY

Sejam quais forem os fatores ou conjunto de fatores


que contribuíram parâ seus desempenhos, os fotógrafos
freqüentemente mencionados podem, ou não, estar entÍe
os melhores; ceÍtamente, porém, não serão os únicos. Os
modelos clássicos da história da fotografia repetem à
exaustão os mesmos nomes (e as mesmas imagens) como
exemplos das diferentes categorias : portrait,documentário
social, fotografiaartística etc. Essa concepção é falha, pois
adia a descoberta de inúmeros outros fotógrafos até en-
tão jamais mencionados nas páginas da historiografiatra-
dicional.

As Elites e a História, Elìtização da História

A tendência de, em obras panorâmicas, ceÍtos auto-


res valorizarem apenas os nomes famosos ou consagÍa-
dos não só reforça a visão estreita que se tem da ativida-
de fotográfica de uma região ou de um país, como também
contribui para uma certa elitização - e também estetização,
caso se associe o nome do fotógrafo ou de certos fotôgra-
fos a temáticas já estabelecidas pela historiografia tradi-
cional como 'consagradas' - da história deste meio de
comunicação e expressão.
Na realidade foi sempre essa a abordagem da história
da fotografia, segundo a linha dos modelos clássicos: a
apresentação de uma história dos fotógrafos consagra-
dos retratando personagens de destaque da vida social,
pertencentes à nobreza oficial, à oligarquia agrâria, à aka
ciasse de uma burguesia recém-enriquecida, às elites inte-

68
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

.'-:.iais, artísticas, políticas. Trata-se aqui de (re)apresen-


-i: ìls retratados que pretenderam se perpetuar através
:: suâs imagens: são os casos da memória voluntária.
--':re
outïa vertente dessa mesma história nos coloca dian-
:; jos retÍatos de outros seres, não mais os peÍsonagens
-. rda social, mas as criaturas da vida natural, como os
-,

-::ros e índios estetizados nos palcos do ateliê, tendo


: ::o cenário de fundo, paisagens européias, ou então
- ::lre de fundos neutros, representando diante da câma-
:= :' papel de si mesmos - isto é, do outro - segundo a
- -:ião do fotógrafo. Refiro-me aos retratados que não
::=:enderam se perpetuar através de suas imagens, po-
-:- o foram, como objetos, objetos-imagem de consu-
: -. peças valiosas tanto para a antropologia emergente
- século XIX e para os colecionadores de estampas da-
-:"1a época, como para os colecionadores de hoje: são os
:":!,:,s da memória involuntária. A história da fotografia
:-:is1ca segue utilizando essas imagens, reforçando assim
i :eologia do exotismo.
Essas duas grandes categorias de seres, os nobres da

'-:-i social e os pobres da vida natural - estes últimos,


:o=iirplos de 'tipos bárbaros e inferiores por natureza' -
:,::ÍÌ de uma forma ou de outra bem representados nas
*
':órias da fotografia. No entanro, o grande público
.:=.lrovido do glamour das altas classes, os personagens
-: ;lasses médias: os de vida comum, os pequenos co-
:=:;iantes, funcionários públicos, professores, profissio-
--s dos diferentes ofícios, estes têm sido considerados,
:: :eral, 'modelos' de pouco interesse para a história da

69
BORIS KOSSOY

fotografia. Recuperamos as expressões dessa gente, vez


ou outra, em álbuns de família do passado; nesses reposi-
tórios da memória, aquelas personagens desconhecidas
ainda têm seu lugar. Contudo, de forma geral, essa massa
anônima não deixou história, seus rostos se confundem.
A grande maioria dos fotógrafos que â retrataram tam-
bém segue, por sua vez, à margem da história.

Eixos de Inuestigação e Interpretação

Resgatar os fotógrafos do anonimato é tarcfa decisi-


va, seja sob o ângulo da história social e cultural da foto-
gtafia, seja sob a perspectiva da memória histórica. pen-
so que todos aqueles envolvidos com a história da
fotografia devem valonzar as histórias locais e regionais,
e apoiar levantamentos sistemáticos não só dos fotógra-
fos que atuaram nos lugares mais remotos, mas também
de suas trajetórias, suas produções. Esse me parece ser
um caminho fértil para uma revisão historiográficâ ne-
cessária.
O rastreamento sistemático dos fotógrafos que atua-
ram numa região e em determinado período - assim como
a localização do que sobreviveu de sua produção foto-
grâfica - é fundamental para obter-se um mapeamento
da atividade fotográfica. AIém disso, propicia um campo
elucidativo de descoberras, no que tange à diversidade
temática, aos estilos e às tecnologias empregadas nos di-
ferentes períodos, oferecendo, também ao pesquisador,
um quadro abrangente da documentação fotográ{ica exis-
OS TEMPOS DÀ FOTOGRAFIA

:ente nos acervos públicos e privados5. Como conseqüên-


;ia de um amplo Ìevantamento assim conduzido, têm-se
naiores elementos para a reflexão acercâ do fenômeno
da expansão da fotografia e de suas múltiplas aplicações
ros diferentes países.
Considerávamos essa tarefa fundamental e a ela nos
Jedicamos ao longo de muitos anos. A massa documen-
ral, arrolada ao longo das pesquisas, e seu devido proces-
samento crítico resultaram n]um corpus consistente de
rnformações, que foram organizadas em forma de um
drcronário6.
A determinação dos locais e das datas aproximadas
-m que os fotógrafos exerceram suas atividades fornece
elementos consistentes para a datação das fontes foto-

Mais do que nuncâ, é fundamental o apoio aos arquivos públicos e


privados, em especial os pequenos arquivos do interior, com vistas à
proteção do patrimônio foto-documental, dentro das condições físi-
cas e ambientais recomendadas para a salvaguarda da documenta-
ção. É tarefa primordial, que não pode mais ser postergada, dotar
esses núcleos documentais de equipamentos necessários pârâ a
informatização escrita e iconográfica, treinar equipes de trabalho para
seu respectivo manuseio, orientar essas equipes para a correta análise
iconográfica, tornar, enfim, essâs pequenas instituições, longínquas
dos grandes centfos, tecnicamente capazes de processar seus docu-
mentos e de se manter em contato com os demais arquivos nacionais
e internacionais.
Trata-se do Dicìonárìo Histórìco-Fotográfico Brasìleiro: Fotógrafos e
Ofícìo da Fotografìa no Brasil (1833-1910), São Paulo, Instituto Mo-
reira Salles, 2002. O mencionado trabalho foi apresentado em 2000,
como tese de livre-docôncia junto ao f)epartamento de Jornalismo e
Editoração da Escola de Comunicações e Arres da Universidade de
São Paulo.

71
BORÌS KOSSOY

gráficas do passado, bem como pistas para sua respectiva


identificação. Nossa proposição era de o dicionário não
apenas alimentar os esrudos históricos da fotografia no
Brasil, mas, também, constituir-se em chave de decifração
para a determinação científica dos documentos fotográ-
ficos; contribuir, portanto, parâ a iconografia regional e
nacional. Isso significa que o dicionário encontra aplica-
bilidade em diferentes áreas das ciências e das artes. Tam-
bém tem sido um instrumento de referência no proces-
samento de informações em arquivos e bibliotecas de
instituições que têm sob sua guarda acervos fotográficos.

Itìnerância e Memórìa: Fotógrafos Ambulantes


Desconhecidos

Uma das características da expansão da fotografia na


América Latina ao longo da segunda metade do século
XIX, pelas diferentes regiões, é a presença marcante de
fotógrafos itinerantes estrangeiros, em busca de uma clien,
tela para sua atividade. Durante o período do daguerreó-
tipo, entre 1840 e 1860, aproximadamente, é notória a
mobilidade do ambulante, embora tal característica ain-
da fosse perdurar nas décadas seguintes.
A maior parte desses itinerantes permanecia pouco
tempo em cada localidade; apenas alguns se estabelece-
ram por períodos mais longos. Viajavam de cidade em
cidade, anunciando-se nos periódicos locais assim que
chegavam. Com freqüência se verifica a passagem de al-
guns daguerreotipisras por diferentes países da América

72
OS TEÀ,IPOS DA FOTOGRATIA

-
.:rrna. Misto de empresários e .,mercadoÍes', esses incan_
i..,'ers viajantes exemplificam, através de suas atuaçòes,
:apel do itinerante levando a daguerreotipia aos mais
,l::ínquos lugaresT.
-\ história dos fotógrafos itinerantes implica, enfim,
::n leque de novas descobertas: de retratados) acervos,
::;iricas utilizadas, dados sobre a arte do ofício, trans_
ssão do conhecimento, entre outras. Isto não me pare_
:- :louco importante, pois se trata de aspectos específicos
-: desenvolvimento da fotografia nas diferentes regiões
:- Llm país, de informações básicas pâra romper com a
::dição elitista, cenrrada nos modelos clássicos enquan_
, jnicos modelos, que remete a grande maioria dos pe-
-- i-nos produtores ao rodapé da história ou colabora para

jÈu eterno esquecimento.

: :,. : tilp los de ltinerâncìa

-\qui poderiam ser lembrados alguns fotógrafos, mas


:::.:rcionaremos apenas dois. Um deles, Charles DeForest
:::dricks (1823-1894), por exemplo, representa um dos
:-:.is interessantes exemplos da atividade desempenhada
:.11r um itinerante na América do Sul. Espírito
empreende_
: -,r tenacidade ímpar e tino comercial, aÌém de bom pro_
:.sional do ofício,
o norre-americano Fredricks (quando

- Para um estudo específico dessa característica da expansão


da foto_
qrafia na An-rérica Latir.ra, dentre outros temas,
ver, clo autor, ,,photo-
graphy in Latin America: The Ë,uropean Erperience
and the Exotic
Erpericncc". up. ril.

73
BORIS KOSSOY

tinha apenas 20 anos de idade) lançou-se a uma longa aven-


tura, que, âos poucos, foi se tornando também rendosa.
Carl Bischoff (? -1,939) é o outro desses fotógrafos
itinerantes. Existem registros de sua atividade operando
em diferentes províncias. As informações sobre sua
itinerância por Joinvile, por volta de 1882, são vagas; no
entanto é comprovada a atividade do seu estabelecimento
Photographia Artistica, em Vitória, a partir de novembro
de 1884, quando um periódico local noticiou que "che-
gou a esta capital no paquete Manáos o conhecido pho-
tographo C. Bischoff.. ." (O Espirito-Santense, 9.11.1.884,
p. 4). Através de vários anúncios, sabe-se que se trata do
fotógrafo que fazia parte "da antiga casa Bischoff &
Spencer", cujos "specimens forão premiados na exposi-
ção internacional de Santiago do Chile em 1875" (O
Espìrito-\antense,18.12.1884, p.4). No mês de fevereiro
do ano seguinte, jâ participava ao público que trabalha-
ria apenas mais 8 dias (O Espirito-\antense,1,2.2.1885,
p. 4). Não foi possível determinar sua itinerância após
esta data. No entanto, no mês de setembro [desse mesmo
ano], muito longe dali, registra-se a atividade de um fo-
tógrafo de nome G. Biscroff lsìc], na Parahyba (João Pes-
soa), anunciando ao público local que só trabalharia "mais
uns dois dias, somente dois dias..." (Diario da Parahyba,
29.7.1,885, p.3).
Provavelmente deve se tratar do pró-
prio Bischoff, com seu nome grafado erroneamente pelo
periódico. Reencontramos sua pista apenas no segundo
semestre de 1888, através de anúncio num periódico de
Teresina. NeÌe o fotógrafo informava que voltara de sua

74
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

viagem aos Estados Unidos e Antilhas, .,onde estudou os


mais recentes melhoramentos e fez acquisição das melho-
res machinas empregadas na arte photographica,,. No
mesmo anúncio fornece um endereço no ,,Maranhão',
fprovavelmente esrivesse se referindo à capital São Luís]
- Rua das Barrocas, 16 -, mas não foi possível confirmá-
1o. O fotógrafo ainda acrescentava que ,,o tempo encober-
to é preferido" para o rerraro (O Telephone,29.9.18BB,
p. 4). Em novembro, comunicava ao público ,,que os seus
trabalhos só conrinuariam até o dia I2...,, (A Imprensa,
3.11.1888, p. 4).
A trajetória que Bischoff teria seguido no Brasil ain,
da promete outras descobertas. Deve-se aqui mencionar,
entretanto, a atividade de C. fCarl] Bischoff no Chile.
Segundo o pesquisador H. Villegas, o fotógrafo nasceu
na Alemanha, em 1852, e chegou ao Chile ainda criança,
com os pais. Iniciou-se na fotografia em 1868 e permane-
ceu em atividade em Santiago e Valparaiso até \875, as-
sociado, durante um período, a Spencer. FaÌeceu em
\/aldivia, em 19398.

Exemplos da Diuersifìcação de Atiuidades

A diversificação de atividades
é um dado interessante
para avaliarmos os recursos de que certos fotógrafos lan-
çavam mão para garantirem sua sobrevivência. Alguns

3. H. R. Villegas, Hìstoria de la Fotografía en Chile, pp.20g_209, apud


Boris KossoS Dicionárìo Histórico-Fotctgráfico Brasìleìro, op. cit.,
pp. 83-84.

75
BORiS KOSSOY

se apresentavâm como dentistas, outros como ourives,


relojoeiros, comerciantes e até cabeleireiros. Digna de nota
foi a atividade comercial de José Severino Soares, sempre
mantendo o ofício básico de fotógrafo, porém atuando
também como dentista em Cuiabá, em L869, vendendo
sal na Cidade de Goiás, em 1.879, ou então comprando
"partida de cristaes" em Uberaba, Minas Gerais, em 1883.
Entre os fotógrafos que também se anunciavam como
relojoeiros ou ourives, poderíamos mencionar João
Goston, em Salvador, nos meados da década de 1850, e
Guilherme Potter, em Belém, também na mesma dêcada.
No Ceará, no início da década de 1860, era curiosa a
atividade de Michel Norat, que, além dos serviços foto-
gráficos, comercializava "obras de ouro, brilhantes, es-
meraldas, rubis, turquezas, topazios, opalas, granadas [...]
e lavas do Vezuvio". Em seu estabelecimento, quem com-
prasse jóias de determinado valor, recebia como brinde
seis retratos em cartões de visita. Ainda no Ceará, na
mesma época, atuava Fortunato Ory, que se anunciava
como "cabelleireiro Írancez" (faziabarbas e bigodes pos-
tiços, tingimentos etc.), além de seu trabalho de estúdio,
como retratista, desempenhado às quartas, sextas e do-
mingos.

Esses desconhecidos viajantes captaram a imagem do


indivíduo simples e do grupo familiar; gente do povo,
anônimos da história: suas fisionomias, seus ritos de pas-
sagem, seus eventos mais representativos. Dentre eles,
muitos se anunciavam pelos periódicos das cidades por

76
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

onde passavame. Embora não consagrados, apenas pes-


soas "comuns", deve-se a esses fotógrafos uma contri-
buição única à iconografia dos países onde atuaram.

A par das pesquisas em arquivos, constituem fontes importantes -


pâra a recuperâção dos trajetos percorridos ao longo de sua atividade
por diferentes localidades - os anúncios dos fotógrafos e casas foto,
gráficas nos periódicos. A pesquisa dos jornais de época fornece ram-
bém elementos para â recuperação de informações sobre o ofício fo-
tográfico, tanto no que se refere aos materiais, técnicas e processos
em uso, preços praticados etc., cÒrÌìo no plano estético. Historiadores
e profissionais dos arqr,rivos passam a agregar novos elementos às
velhas imagens ainda sem identificação de autor:ia e de conteúdo, preen-
chendo assim antigâs lacunas nos incompletos mosaicos da história.
Através dcrs verbetes dr: Dicìctnárict..., ficou clemonstrada a importân-
cia dos periódicos e dos "reclames" pâra o resgate do ofício fotográ-
fico e da difusão da imagem. Através dessa eremplificação, têm-se, de
outrâ parte, subsídios consistentes de informação para os estudos his-
tóricos da imprensa e da propaganda no Brasil.

77
Il,.pneNSA E Hrsronre
A Fotorreportagem no Brasil:
O Pioneirismo de Hildegard Rosenthall

DOCUMENTAÇAO E MEMORIA

O nome da fotógrafa Hildegard Rosenthal era prati-


camente desconhecido até 1.974, quando foi 'redescoberta'
pelo Professor \X/alter Zantni e, no Museu de Arte Con-
temporânea da Universidade de São Paulo, foi montada

1. Texto publicado originalmente sob o título "Hildegard Rosenthal:


Apcrntamentos paÍa uma Biografia", em Hildegard Rosenthal: Cenas
IJrbanas, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1999 (catálogo de er-
posição).
Ficam aqui registrados meus agradecimentos a Hans Günter Flieg,
Maria Luiza Tucci Carneiro, Jacob Guinsburg e Beatriz Kushnir pelas
oportunâs informações e sugestòes que me proporcionaram quando
levantava dados para a realização desta pesquisa. Sobre Hildegard
Rosenthal, vêm sendo realizados vários estudos nos últimos anos,
como, por exemplo: Celina Maria de Almeida Neves, Hildegard
Rosenthal - Retratos de uma Mulher (1913-1990), São Paulo, MAC-
USP, 1994 (Monografia, TCC, Estudos em Museus de Arte); Priscilla
Eduardo e Fernanda Santos Nlonteiro de Souza, Hildegard Rosenthal,
São Paulo, Universidade Anbembi-Morumbi, 2004 (Monografia e
vídeo, TCC). Atualmente (2005), Paula Christina Scarpin Gonçalves
vem desenvolvendo pesquisa sobre a vida e obra de Hildegard Rosen-

81
BORIS KOSSOY

uma exposição retrospectiva de sua obra2. Foi a partir de


então que se começou a perceber sua importância no con-
texto da história da fotografia no Brasil.
Anos depois, Hildegard concedeu ao Museu da Ima-
gem e do Som de São Paulo um depoimento sobre sua
atividade no campo da fotografia, registro esse que cons-
titui, hoje, uma das raras fontes primárias para a pesqui-
sa de sua obra. As informações nele gravadas possibilita-
ram a recuperação de aspectos diversificados de sua
trajetóría pessoal
e profissional. É esse o documento cen-
tral em que nos fundamentamos pâra elaborar as linhas
que se seguem3.
Com a aquisição, pelo Instituto Moreira Salles, do re-
manescente de seu acervo * e em função de seu tratamen-
to adequado do ponto de vista da conservação técnica e

thal, sob o título de Vale das Rosas: Hildegard Rosenthal como Pio-
neìra do Fotojornalismo Brasìleiro, junto ao Departamento de Jorna-
lismo e Editoração da ECA,/USP, na qualidade de projeto de Iniciação
Científica, e mediante bolsa da Fapesp.
Nessa exposição foram apresentadas 82 fotografias, conforme rela-
ção constante do catálogo da mostra. Também consra da publicação
uma síntese biográfica da fotógrafa.Ver Hildegard Rosenthal, Folo-
grafias, São Paulo, MAC-USP, 1,974 (catálogo da exposição).
O Museu da Imagem e do Som realizou, no início dos anos 1980,
dentro de seu programâ de história oral, programas de depoimentos
em diferentes áreas da cultura e das artes no Brasil. No que concerne
à fotografia, foram entrevistados, entre outros, Benedito Junqueira
Duarte, Hans Gunter Flieg e Hildegard Rosenrhal. Sobre esses depoi-
mentos ver Cadernos do urs: Catálogo de Depoìmentos, 1970-1982,
(3), 1983. O depoimento de Hildegard foi gravado em 25 de maio de
1981 e dele participaram, como entÍevistadores, Hans Günter Flieg,
Moracy de Oliveira, Eduardo Castanho e Boris Kossoy.

82
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

organízação documental -, fica preservado este importante


elo da memória fotográfica de São Paulo dos anos 30/40,
decisivo tanto para a iconografia paulista daquela época,
como para a própria história da fotografia no Brasil.

EUROPA, ANOS 30. O APRËNDIZADO DA FOTOGRAFIA

Ao longo da década de 1930, e particularmente após


1933, durante os ânos sombrios da ascensão do nazismo
e da política oficial anti-semita assumida pelo Reich, os
judeus que tiveram possibilidades deixaram a Alemanha
e se refugiaram em diferentes países. Um certo número
deles se dirigiu ao Brasil. Esses imigrantes buscavam, aquì,
"um refúgio nos trópicos"4, um porto seguro para refa-
zer suas vidas, livres de perseguições, com liberdade e sem
medos.
Dentre esses, além dos comerciantes, profissionais li-
berais, professores, intelectuais, artistas e outros que aqui
se exilaram, contam-se também alguns fotógrafos, ou
mesmo detentores de outra formação que, de alguma for-
ma, iam dedicar-se à fotografia. É o .uro, por exemplo,
de Curt Schulze (1917-1985), Hans Günter Flieg (1923)5,

4. Sobre o tema, ver Maria Luiza Tucci Carneiro, Brasil, um Refúgio


nos Trópicos, São Paulo, Estação Liberdacle, 1.996, em especial a Par-
te IV, "O Refúgio da Cultura", que contém esboços biográficos de
artistas de teatro, artistas plásticos, escritores e fotógrafos (inclusive
de Hildegard Rosenthal).
5. Sobre a vida e obra deste fotógrafo, ver Daniela Palma, Fotografia:
Arte e Sobreuìuêncìa. A Trajetórìa de Hans Gunter Flieg, São Paulo,

83
BORÌS KOSSOY

Gert Kornblum, ìTerner Haberkorn (1907-1997)6,


Heinrich Joseph (Hejo) (1912-1981), Peter Sheier (190S-
1979), Alice Brill (1920)?, enrre outros.
Embora não fosse de origem judaica, Hildegard
Rosenthal (Baum de solteira) poderia ser incluída no gru-
po; assim como os demais, também se viu ameaçada pelo
nazismo, já que seu futuro marido, rüalter Rosenthal, era
de fato judeu. Na realidade Hildegards, apesar de ser fi-
lha de alemães, não nasceu na Alemanha e sim na Suíça,
em Zürich, quando seus pais estavâm de passagem por
aquela cidade. A menina foi registrada em Frankfurt.
Era ainda uma jovem estudante de Pedagogia quan-
do viu seu interesse despertado pela fotografia: "um dia
eu vi um menino muìto compenetrado [...] sonhador, mui-
to inteligente e sensível, com olhos pretos enormes [...] e..r

Departamento e Jornalìsmo e Editoração ECA-USP, 2003 (Dissertação


de Mestrado).
Estudo preliminar sobre a vida e obra deste fotógrafo foi desenvolvido
por Ana Carla Luiz, São Paulo: Da Vila ao Caos. O Olhar do Fotó-
grafo Werner Haberkorn sobre a Maior Meïrópole do país, São pau-
lo, Departamento de Jornalismo e Editoração ECA-USP, 2004 (Traba-
lho de avaliação final, da dìsciplina História e Estética da Fotografia).
Há alguns anos o Instituto Moreira Salles adquiriu a documentação
fotográfica que compreende a obra de Alice Brill. Esse acervo rem
sido sistematicamente estudado pelos pesquisadores da instituição e
deu origem a uma exposição bastante abrangente em 2005. Atual-
mente, sÕb o título de Dìário Íntimo: São paulo nas fotografìas de
Alice Brìll, Daniela Fernandes Alarcon vem pesquisando a vida e a
obra dessa ÍotógraÍa, na qualidade de projeto de Iniciação Científica
junto ao DepaÍtamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USp, e
através de bolsa da Fapesp.
8. Hildegard, filha de Ernst e Anni Baum, nasceu a 2.5 de março de 1913.

84
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

tinha um aparelho fotográfico 6x9 [...] tive a felicidade


de tirar o retrato numa pose muito extraordinária
[...]".
Os pais do menino enviaram o retrato para um concurso
de um jornal vienense e a foto foi premiada em primeiro
lugar.
Hildegard residiu cerca de um ano em paris, provavel-
mente entre 1934 e 1935,hospedada em casa da escritora
Eugenia Markova e do pintor Marc Swarce. Manteve con-
tato com o pintor Jankel Adler e com Jacques Maritain,
que a recomendariam a Lasar Segall. Foi em paris que
conheceu \)Talter Rosenthal, de quem se enamorou.
Seu aprendizado sistemático da fotografia se deu atra-
vés do curso que realizouem Frankfurt, com paul y/olff10,

9. Conforn-re síntese biográfrca constante do catálogo da exposição no


MACruSP, antes referido.
10. Paul \íolff (1887-19.51) foi um fervoroso aclepto da câmara Leica
(criada por Oskar Barnack em 1920) e um dos primeiros fotógrafos a
utilizá-la con'ì sllcesso. Foi um dos mestres dâ fotografia em 35mm;
ilustrou livros, promoveu cursos, reaLzou exposições divulgando a
técnica e possibilidades da câmara miniaturâ. Em 7934, publicou o
livro Meine Erfahrungen mit der Leìca lMinhas Exlteriências com a
Leìcal. Em 1948, publicou novo livro sobre suas erperiências com a
Leica diante dos mais diferentes temas, desta vez, porém, utilizando
fotografia à cores (publicado no Brasil sob o título Fotocoktr,Frio de
Janeiro, Artes Gráficas Arnau, s/d). rffolff faleceu em 1951, em Frank_
furt. Sobre Paul \íolff, ver:: Michel Auer e Michèle A.aer, Encyclopédie
ìnternationale des phcttctgraphes de 1839 à nos jours, Genève, Camera
Obscura, 1985. Há uma referência sobre uma public ação, Leica Sports,
editada em Nerv York em1937 e ilustracla por paul \7olff (150 foto-
grafias dos jogos olírpicos). Trata-se das Olimpíadas de 1936, na
Alemanha, conforme Albert Boni, photogralthic Literature. An lnter_
ndtiondl Bìbliographic Guide to Generar and specialìzed Literature,
vol. I, New York, Morgan c\c Morgan, 1962, p.251.

8.t
BORIS KOSSOY

além de ter freqüentado o Instituto Gaedel, onde apren-


deu as operações químicas fotográficas básicas para o
processamento de filmes e papéis. Acerca de Paul'S7olff,
ela comenta: "foi ele que levou ao mundo a filosofia da
câmera 35mm [...] aquele grande fotígrafo especialista
em Leica [...] o seu curso ficou na moda".
Nesse curso, recebeu um sólido embasamento con-
ceitual e técnico, que seria fundamental para o futuro de
sua carreira como fotógrafa:

Nós não tínhamos contato com o laboratório, somente tiráva-


mos âs fotos e discutíamos os resultados. Era muito diferente da
foto comum, tinha movimento, vida [...] Esse curso âconteceu em
Frankfurt, foi muito sofisticado [...] Pegávamos a Mercedes Benz e
saíamos mundo afora. Aí ele [...] sugeria o interior [...] o campo, os
camponeses, saíamos procurando âssuntos. Cada vez ele fazia um
discurso, dizia que devíamos ser gentis, não entrar de sopetão nas
casas dos outros. O cavalo de batalha dele era a luz. Por exemplo,
eu sempre fiz todo o possível parâ que as sombras tivessem dese-
nhos. Ele dizia o instÍumento mais importante de vocês, além da
Leica, é a luz. O modelo vocês tem que escolher. Fotos tiradas na
chuva, muito a contra-luz, contrâ-neve, meia-luz, Ìuz suave [...]
Era um homem muito importante, eu sempre me espantei com o
fato de aqui ninguém o conhecer.

A câmara Leica acompanhaúa Hildegard em seu tra-


balho durante um certo período de sua atividade profis-
sionai. Além dessa, ela também utllizaría formaros maio-
res, 9x12cm e 6x6cm (Rolleiflex).

86
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

"SÃO PAULO, O MAIOR CENTRO INDUSTRIAL DA AMÉRICA


LATINA',: O AMBIENTE CULTURAL DA CIDADE.
A FOTOGRAFTA E OS MEIOS DE COMUNICAçÃO

Hildegard Baum, tendo embarcado em Marselha, no


vapor Mendoza, chegou ao Brasil em 29 de abril de
L93711. Sua chegada se dá, pois, em pleno Estado Novo.
Assim como Hildegard, nesse ano também aportâram ao
país perto de 4700 alemães, o maior número de imigran-
tes dessa nacionalidade que aqui chegaram em toda a
década de !930. A população do país era de pouco mais
de 43 milhões e a do estado de São Paulo beirava os sete
milhões.
A capital paulista expandia-se significativamente em
todos os sentidos; sua população, em 1933, era de um
milhão de habitantes e continuaria crescendo ininterrup-
tâmente, atingindo os dois milhões em 1950. Em 1930
havia cerca de quatro mil novas edificações, número esse
que triplicaria dez anos depois12. Entre 1'935 e 1945 (pe-
ríodo das administrações de Fábio Prado e Francisco Pres-
res Maia), a paisagem urbana da cidade transformava-se
rapidamente, com a construção de obras públicas de vul-

_1 Cf. Arquivo Nacional, Certidão 959149, expedida pela Inspetoria da


Polícia Marítima do Porto de Santos, datada de 22 de agosto de 1949,
em Autos de Ação n." 9.658, para Íins de naturalização de Walter e
Hildegarcl Rosenthal, Comarca do Estado de São Paulo, 11." Vara
Cível,1,949, 'V7alter Rosenthal, com quem viria a câsar-se, aportou
aqui em janeiro do ano anterior.
Richard Morse, Formação Histórica de São Paukt, São Paulo, Difu-
são Ëuropéia do Livro, 1970, p. 365.
BORÌS KOSSOY

to, como a Estação Sorocabana, o Mercado Central, o


Estádio do Pacaembu, a Biblioteca Municipal, a avenida
Nove de Julho e o túnel sob o parque do Trianon, e, enrre
outros viadutos, o novo viaduto do Chá13. Paralelamente
ao progÍesso urbano, também o setor industrial se ex-
pandia, vocação essa já sinalizada desde os princípios do
século: no início da década de 1940, a cidade concentra-
va invejável parque industrial. A administração paulista
não deixava por menos e divulgava com orgulho essa
prestigiosa posição no cenário internacional através de
propaganda nos bonds: "São Paulo é o maior centro in-
dustrial da América Latina", tal como se vê registrado
numa das fotos de Hildegard, tomada no cenrro da cidade.
A década de 1930 em São Paulo não se caracrerizou
apenas por esse tipo de crescimento material; no âmbito
acadêmico e cultural também ocorreram avanços dignos
de nota. Em 1933, era fundada a Escola Livre de Sociolo-
gia (Escola de Sociologia e PoÌítica de São Paulo), pionei-
ra nos estudos sociais na América do Sul (de linha norte-
americana) e, no ano seguinte, a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (estruturada segundo o modelo euro-
peu), núcleo da própria Universidade de São Paulo, que
incorporaria unidades antigas, como a tradicional Facul-
dade de Direito, a Escola Politécnica, a Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz, entre várias outrasla.
Fervilhavam os debates acadêmicos, com a presença de

13. Nosso Século 1930-1945, p. 93.


14. R. Morse, op. cit., p. 330.

88
OS TEN4POS DA FOTOGRAFIA

mestres estrangeiros como Roger Bastide, Claude Lévi_


Strauss, Pierre Monbeig, Fernand Braudel, Ungaretti, para
citar alguns. No plano artístico, o clima não era menos
efervescente, com as exposições dos Salões de Maio, as
atividades do Grupo Santa Helena e as da Família Artís-
tica Paulista.
Quando da chegada de Hildegard, enconrravam-se
em atividade na cidade vários esrúdios fotográficos que
se dedicavam basicamente ao retrato - Cerri, Carlos
Rosen, entre muitos outÍos -, além dos chamados .,fotó-
grafos de jornal"ts. Naquela época exerceram a ativida,
de alguns profissionais cu;'as obras são da maior impor-
tância e que ainda aguardam por estudos específicos,
como Leon Liberman, voltado à documentação de arqui-
tetura, ou Theodor Preising, registrando uma ampla
temática urbana e rural, a paftir de uma estética que coin-
cide com a imagem que o regime vigente construía do
país16.
As revistas ilustradas ainda utilizavam a fotografia
dentro dos padrões tradicionais de décadas anteriores,

Para uma breve aprorimação a este período ver de Boris Kossoy, ,,Fo_
tografia", em rWalter Zanini (org.), História Geral da Arte no Brasil,
vol.2, São Paulo, instituto \íalther Moreira Salles, 19g3, p. gg9.
r6. Sobre Theodor Preisíng, Hildegard comenra em seu depoimento: ..Co_
nheci rnuito ben'r o Preising, que rrabalhava para o DIp
[Departamen_
to de Lnprensa e PropagandaJ ". Ainda sobre preising, ver Boris KossoS
"Luzes e Sombras da Metrópole. Um Século de Fotografia em Sãcr
Paulo, 18.50-1950", ern Paula porta (org.), História da CìdatJe de
São Pauk:, vol.2: A Cidade no Império, São paulo, paz e Terra,
2004, p. 43.

ffì Flgì Â d"".""".,,,.


BORIS KOSSOY

de forma estática, mera ilustração dos textos. Sua força


documental ou expressiva era atenuada em função do
carâter ilustrativo em que eram diagramadas e das
vinhetas e ornatos que as 'emolduravam'. Ainda estava
por acontecer no Brasil a mudança radical do conceito
quanto ao seu uso nas páginas das revistas ilustradas.
Desde L936, nos Estados Unidos, a revista Life jâ fazia
grande sucesso) desenhada que fora com o objetivo de
explorar o potencial da fotografiâ em sua possibilidade
naffatla) isto é, através de uma sucessão de imagens que
"narrassem" histórias.
Porém, se a fotografia ainda não havia encontrado
seu importante papel através dos meios de comunicação
de massa impressa, um outro caminho expressivo lhe havia
sido reservado pelas experiências vanguardistas que câ-
racterízaram a arte no período entre-guerras. Um desses
caminhos foi a fotomontagem, e não foram poucos os
artistas plásticos e fotógrafos que trilharam por essa via:
Alexander Rodchenko, Tina Moddotti, John Heartfield
(com suas célebres fotomontagens políticas sobre Hitler),
apenas para citar alguns.
Poderíamos lembrar, entre nós, a revista S. Pawlo,
editada por Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Leven
Vampré, em 1936, que continha fotomontagens produzi-
das pelo já mencionado Theodor Preising e por Vamp
(pseudônimo de Benedito Junqueira Duarte). Tratava-se
de uma revista de grande formato que privilegiava as
imagens: elas ocupavam quase a totalidade da mancha
impressa, acompanhadas de minúsculos textos que as
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

contextualizavam. A revista tinha um tom acentuadamen-


te ufanista e era compostâ, em geral, por imagens monta-
das que destacavam o "progresso econômico e social do
estado", o "preparo físico e intelectual da gente paulista"
7.
etc. 1

São raros os exemplos de fotomontagens na obra de


Hildegard, apesar de ela aÍirmar: "eu fíz [...] fotomon-
tagens, que naquela época [...] não se conhecia,'. De qual-
quer modo, pelo exemplar conhecido (o de um menino-
gigante jornaleiro, distribuindo o !ornal da Manhã pelas
ruas, muito acima dos edifícios), é de se crer que as foto-
montagens de Hildegard se voltassem mais em direção
do experimentalismo característico daqueles anos do que
num sentido propriamente político.

O PRIMEIRO EMPREGO. A PRESS ÌNFORMAIION.


o coNTRoLE DA TNFORMAÇÃO

Adquiridos na Alemanha, os conhecimentos técnicos


de Hildegard lhe deram o suporte necessário para sair em
busca de algum emprego no campo da fotografia. De
antemão sabia que não era tarefa fác1l, dada a sua condi-
ção de mulher e imigrante recém-chegada. Teve sua pri-

i -. Cassiano Ricardo pertencia ao DIp. Dirigiu o jornal A Manhã, no Rto;


e Menotti del Picchia, o jornal A Noìte, en-r São paulo, ambos gover_
nistas, surgidos respectivamente em 1,941 e 1942. Nelson \íerneck
Sodré, Hìstórìa da Imprensd no Brasil, Rio de
Janeiro, Graal, 1977,
i:p. 442-443.

o1
)t
BORIS KOSSOY

meira oportunidade na Kosmos Foto, empresa de comér-


cio e serviços fotográficos, então instalada à Rua de São
Bento. Lâ trabalhou como orientadora do laboratório,
tarcfa complicada, posto que tinhâ de conviver no mes-
mo ambiente com outros 23 colegas homens: "eu apren-
di português 1á [...] vocês não fazem idéia, eu fingi que
não entendia". Apesar de todo o bom humor, o emprego
não durou mais de dois meses e, logo a seguir, conheceu a
Kurt Schendel, que pretendia fundar uma agência de no-
tícias: a Press Information.
A Press Information foi iniciada, aparentemente, por
Kurt Schendel (1896-1947), sendo raras, infelizmente, as
informações sobre sua trajetóïia de vida18. Hildegard in-
forma que, além dela própria, também Geraldo Vicente
Martins (do Rio de Janeiro) fazia parte da diretoria. Se-
gundo ela, Martins

erâ um homem de sete instrumentos, advogado, arquiteto, enge-


nheiro, construiu o trem que vai paru Corumbá [...] ele era o pro-
prietário de quase toda a ilha de Cananéia, ajudou na colonização
japonesa [...] r.rm homem fabuloso. Ele tinha um jornal, A Gazeta
do Sul. Ele comprava fotografias para o jornal. [Numa certa opor-
tunidade] ele disse: vamos fundar uma firma; alugou um aparta-
mento ao lado d'Á Gazeta, na Casper Líbero [Rua Conceição]; lá
instalamos um escritório e uma câmara escura. Ele vinha de vez em
quando do Rio, só para ver as coisas [...] Ele participava do Gover-

18. Kurt Schendel, judeu alemão, era filho de Max Schendel. Teria chega-
do ao Brasil por volta de 1.937. Faleceu a 9 de maio de 1947, aos 51
anos de idade. Teria se suicidado, por encontrâr-se em precária situa-
ção financeira, informação essa não confirmada.

92
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

no, mâs eu não sei qual era a função. Eu tive que


tirâr fotos do
Getúlio, quando ele vinha aqui, fotos de banquete
1...1 ele usava as
fotos para seu jornal [...] ele financiava o que precisava,
aluguel; os
primeiros meses, até a entrada de dinheiro, ele pagou
os ordenados.

Segundo se depreende do mencionado depoimento


de
HiÌdegard, a Press Information seïia uma pequena
agên_
cia de notícias "culturais,', cujo objetivo era fornecer
matérias sobre determinados temas da realidade
brasilei-
ta, paÍa veiculação em publicações no Brasil e também
no exterior. A fotógrafa informa que eram enviadas
ma_
térias para "1-2 ou 15 países". Dentro do país,
matérias
foram publicadas, por exemplo, em jornais, como
o su_
plemento de rotogravura de O Estado de S. paulo
eA
Cazeta, em São Paulo, e em revistas, como Rìo Magazìne
e Sombra, no Rio de Janeiro.
Naqueles anos do Estado Novo, vivia_se sob rígida
censura nos meios de comunicação, cabendo ao lr (De_
partamento de Imprensa e propaganda) o controle
da
informação. No caso de São paulo, a censura era
feita
pelo Serviço de Controle à Imprensa _ SCI, subordinado
à
Divisão de Imprensa, propaganda e Radiodifusão
do Deip
('Departamento Estadual de Imprensa propaganda). Este
e
controlava a imprensa periódica, por meio de
censura
posterior, e as agências noticiosas (como seria
o caso da
Press Information) pela censura prévia,
visando a preser_
var a imagem do regimele.

19. Silvana Goulart, Sob aVerdade Oficìal: Ideologia, propaganda


e Cen_
sura no Estado Nouo, São paulo, Marco Lero,1990,
pp. 122e ss.

93
BORIS KOSSOY

AS TEMÁTICAS REGISTRADAS

Hildegard Rosenthal foi uma fotógrafa que desde logo


se integrou na vida da cidade.Isto se revela nos temâs
que sistematicamente abordou, em especial as vistas ur-
banas, adentrando pelas principais artérias e praças da
metrópole, documentando sua dinâmica, seus edifícios,
seu transporte, e a face do povo. Seu trabalho não se de-
tém aí também rettata os peÍsonâgens da cultura e das
aÍtes, compondo, no seu todo, um recorte sensível e
abrangente dos cenários e personagens da cidade de São
Paulo. Uma obra desenvolvida num período aproximado
de dez anos, entre fins da década de 1930 até o final da
de 1,940.

OS RETRMADOS DE HILDEGARD

A carta de recomendação que Hildegard trazia de Paris


para Lasar Segall parece ter sido decisiva no sentido de
the abrir caminhos para o seu progresso profissional.
Sobre Segall, ela afirma: "ele era formidável [...] prontifi-
cou-se a me dar endereços de amigos, não comercialmen-
te, mâs para efeito de reportagem".
Aos poucos, a fotôgrafa se introduziu no ambiente
artístico da cidade: "o meu grande trabalho aqui no Bra-
sil foi sobre o Salão de Maio; lá conheci Tarsila, o Flávio
de Carvalho, eu tinha uma comunicação boa com eles,
falando em francês, tirei fotos deles, do Brecheret". En-
trou em contato com a elite dos intelectuais, artistas e
OS TEMPOS DA FOTOGRAFTA

críticos da época, como Mario de Andrade (que conhe-


ceu na casa de Segall), Herbert Moses (da ABI, a quem
Hildegard chama de "mosquito elétrico", pois "mexia-se
para todos os lados", o que dificultou o seu trabalho em
retratá-lo), Jorge Amado, o caricaturista Belmonte, cria-
dor do célebre personagem Juca Paro, Luci Citti Ferreira,
Guilherme de Almeida, Roger Bastide, Alfredo Volpi, o
Barão de ltar ar ê Aparício Torelly),Yolanda Mohal yi, par a
(

citar alguns.
Em sua obra enquanto retratista, deve-se ressaltar o
espírito de reportagem, sempre presente; suas imagens
registram o artista no ato da criação. Isso se confirma nas
fotos que tirou de Segall, Belmonte, Grupo Santa Helena,
Jorge Amado, sempre em pÌena atividade criativa: "Segall
nunca deixou tirar fotos no atelier dele, mas eu tenho
uma série onde tem um modelo posando para ele"20. Acer-
ca do célebre Nauio dos Imigrantes, recorda Hildegard:
"acompanhei o desenvolvimento fda obra] desde os pri-
meiros desenhos".
Em seu depoimento, tece comentários sobre a amiza-
de que a Iígava a vários deles, como Anatol Rosenfeld
amigo dafamílía e que também foi redator da Press Infor-
pintor Paulo Rossi Osir, membro do grupo
mation)21 e o
Santa Helena. Hildegard o conheceu através de Jorge

A fotógrafa refere-se a Luci Citti Ferreira, posando para Moça com


Sanfona e Moça com Liuros.
Acerca da vida e a importância da obra desse autor, ver de J. Guinsburg
e Plinio Martins Filho (orgs.), Sobre Anatol Rosenfeld, São Paulo,
Com-Arte, 1995.
BORÌS KOSSO\

Amado. Recorda-se, num depoimento emocionado, que


o pintor vivia "na Barão de Limeira, numa cobertura, ele
tinha muitas plantas [...] ele teve um problema no pul-
mão e estava acamado [...] estava muito triste porque não
podia sair no jardim [...] e,, tinha na mão a firma do meu
marido finstrumentos médicos e hospitalares], aí eu em-
prestei a ele uma cadeira de rodas [...] desta forma ele
pode sair [...] nunca vi tanta grandeza, tanta nitidez de
pensâmento, tanta beleza [...], ele irradiava felicidade. Lá
havia sempre os seus amigos, o Sergio Milliet, cujos ne-
gativos eu perdi".

A SAO PAULO DE HILDEGARD ROSENTHAL

As fotografias de Hildegard mostrando uma São Paulo


com ares de grande metrópole não se chocavam ideologi-
camente com a imagem de cidade moderna idealizadapela
ditadura de Vargas. A leitura que ela faz dos espaços da
cidade e do cotidiano paulistano é refinada do ponto de
vista estético e documental. Sua formação cultural e ex-
periência de vida aguçaram sua sensibilidade para capÍar
as múltiplas representações da São Paulo da época. As-
sim, seu olhar se volta para os elementos-símbolo da me-
trópole: os arranha-céus, o ritmo apressado do paulis-
tano, a garoa típica, as chaminés da indústria. Numa
perspectiva fotojornalística, não the escaparam os meios
de transporte que serviam à população e ao comércio e
que ela documenta em detalhe: automóveis, bondes, ôni-
bus, carroças puxadas por animais. As vistas de São Pau-
OS TEMPOS DA FOTOGRAFÌA

1o obedecem ao tradicional percurso interno da colina


histórica e da "cidade nova", suas ligações, suas praças,
os espaços circunscritos.
O forte de sua produção é o movimento das ruas,
com ênfase especial no elemento humano. "Para mim, a
fotografia quando não tem uma pessoa não me interessa.
Tenho retratos de trabalhadores, operários, gente do cam-
po". Isto se comprova pelos pedestres de diferentes clas,
ses socioeconômicas documentados por sua Leica; desde
os mais bem vestidos à gente simples diante do Mercado
Central e das feiras livres. As fotos de Hildegard são po-
voadas por meninas japonesas, o menino engraxâte e o
menino jornaleiro (mais eslavo que brasileiro), o homem
do realejo cantando a sorte, o carroceiro e o vendedor de
frutas, o florista e a ;'ovem sorridente adquirindo uma
braçada de margaridas.
Nas fotos de Hildegard, é de se norar o cuidado na
representação da presença feminina, sempre valorizada e
independente; uma mulher que, assim como ela própria,
deveria trabalhar, mas também guardar um certo misté-
rio, como o que transparece em seu auto-retrato.
Flagrantes de pessoas em primeiro plano, mas tam-
bém ao longe, compõem com os espaços e as edificações,
que, por sua vez, servem de apoio ao império da propa-
ganda. Anúncios espalhados por toda partelâpromoviam
uma multiplicidade de produtos. Anúncios - que há ses-
senta anos já poluíam visualmente a cidade * conforma-
\-am o gosto e estimulavam o consumo, não raro de su-
pérfluos, junto a uma sociedade que se metropolízava
BORIS KOSSOY

rapidamente. As fotos de Hildegard nos permitem uma


râpida viagem pela propaganda, onde poderíamos desta-
car uma significativa série de produtos, marcas, empre,
sas e casas comeriais que eram obleto dos anúncios ou
apareciam nas fotos, e que poderiam ser assim clas-
sificados:

Loterias: A Preferida. Produtos de beleza e higiene:


Rugol (creme anti-rugas ) ; Palmarosa (b aton, r ou ge) ; Real-
ce (sabonete); Gessy (sabonete e creme dental). Produtos
farmacêuticos: Cafiaspirina. Veículos: Chevrolet. Cigar-
ros: Elmo. Bebidas: Único (vinho); Brahma (refrigerantes
e cervejas). Produtos de limpeza (para casa): Cito;
Parquetina (cera). Produtos de limpeza (para roupa): Anil
Colman. Produtos alimentícios: Lacta (chocolates); Bra-
sil (gordura de coco); Sasso (azeite); Vigor (leite). Produ-
tos contra insetos: Pó Azul. Comércio de móveis: Casa 2
Irmãos. Artigos de couro: Casas Casoy. Ópticas: Lutz
Ferrando. Lojas de departamentos: Mappin Stores. Far-
mácias: Drogasil.

Do ponto de vista da análise iconográfica, os cartazes


das ruas e anúncios de eventos em geral são de importân-
cia inestimável para recuperârmos as datas de produção
das fotografias (ou nos aproximarmos delas); é o caso,
por exemplo, de duas fotos, uma da Praça da Sé, em que
se lê numa faixa o seguinte aviso: sÃo pAULo INAUGURA
sEU ESTÁDIO MUNICTPAL - 27 DE ABRIL DE 1940 (data essa
em que realmente foi inaugurado o Estádio do Pacaembu),
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

informação importante, pois nos indica com precisão a


época da tomada da foto. A ourra fotografia é a do floris-
ta do Largo do Arouche, antes mencionada. Nela se vê,
ao fundo, o anúncio do filme Pérfida,estrelado por Bette
Davis, que estava sendo eribido naquele momento, no
cine Art Palácio22. Esta foto não poderia ser anterior a
1941. Através da programação cinematográfica do jor-
nal O Estado de S. Paulo foi possível dererminar a data
em que a película estÍeou no cine Art palácio: 12 de ja-
neiro de 1942, uma segunda feira, permanecendo em car-
taz até o dra 25 daquele mês.

As fotografias que Hildegard tirou de São paulo não


são meros registros descompromissados da realidade; ao
contrário, são imagens pensadas, cadenciadas pela cons-
tante presença do relógio a marcar o tempo no espaço da
foto. Algumas poucas fotografias - como a do estádio do
Pacaembu em dia de espetáculo cívico, ou a do monu-
mento à Ramos de Azevedo, por exemplo - estabelecem
um intrigante contraponto em relação às vistas da cida-
de. Tratam-se de imagens de forte carga simbólica, recor-
tes que Íemetem a uma sombria monumentalidade.

ll.. Trata-se do filme The Little Foles, produzido em 1941 por Samuel
Goldwyn e filmado nos estúdios da rl<o nadio ricturesl a clireção cou_
be a Síilliam rVyler e o roteiro foi elaborado por Lillian Hellman.
Gene Ringgold, The Fìlms of Bette Dazzs, New york, The Citadel,
1970,pp.110 e ss.
Hildegard Roserrthal. Largo do Antuchc ent jnncirtt dt 1')12. Accrvo Irrslituto N4or, irrr Srrll, s
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

EXPLORANDO O PAÍS

Entretanto a fotógrafa não se ateve apenas a esses


remas e começou "a explorar o país", pesquisando por
outros assuntos que pudessem ser de interesse no exterior:
"Ninguém sabia o que era o Brasil, um desconhecimento
total e um interesse muito grande do estrangeiro pelo
Brasil". Desenvolveu trabalhos em São Miguel, Cananéia,
documentou romaria em Pirapora, o trabalho de professo-
res em sítios e fazendas de chá em Registro, buscou te-
mas em Blumenau (Santa Catarina) e no Rio Grande do
5u1: "Eu fazia os meus próprios textos, apesar de meu
português não ser grande coisa, a icléia podia ser tradu-
ztda" . Seria desnecessário argumentar, aqui, que poucos
-Íam os fotógrafos no país que teriam condições de foto-
qrafar e escrever sobre determinado tema23.
Sobre essas constantes viagens Hildegard relembra:
''fiz viagens para o interior em condições muito precárias,
a fotografia não era o que é hoje, os fotógrafos viviam na
miséria". Essa afirmação é reiterada por outros fotógra-
ios daqueles anos2a. A carreira de Hildegard se confunde

:J. Sobre tal assunto expressou-se Flávio Damm: "O tempo nos estimulou
a que nós escrevêssemos. Quando viajávarnos sozinhos, fazíamos ano-
tações para as legendas das fotografias. As anotações tinham, às vezes,
umâ tal preciosidade de informaçòes, que viravam textos. Eu mesmo
me transformei num redator depois de um certo ternpo. Fui correspon-
dente nos Estados Unidos sozinho". Depoimento concedido a Karen
Ìüíorcman e a Nadja Peregrino; ver Nadja
Peregrino, O Cruzeiro: A
Reuolução da Fotorrepctrtagem, Rio de Janeiro, Dazibao, 1991,, p.23.
14 Sobre a condição do fotógrafo nos anos 1940, comenta Flávio Damm:

101
BORIS KOSSOY

com a própria existência da Press Information, a peque-


na e obscura agência de notícias onde trabalhou dos últi-
mos anos da década de 1930 atê cerca de 1948. Nos anos
1950 ela se dedicará apenas a fotografar as filhas...
O conjunto das fotos que Hildegard tomou de São
Paulo representa um sensível registro da memória arqui-
tetônica da cidade. Ademais, essâs fotos estabelecem uma
importante seqüência, e complemento, com as tomâdas
por outros fotógrafos estrangeiros que documentaram o
centro paulistano entre as décadas de 1910 e 1950, como
Guilherme Gaensly, Vncenzo Pastore, Theodor Preising,
Claude Lévi-Strauss, Curt Schulze, IüTerner Haberkorn,
Hans Gunter Flieg, Alice Brill, entre outros, e que enri-
quecem a iconografia paulistana da primeira metade do
século XX.
É indiscutível que Hildegard Rosenthal inaugura um
estilo de fotorreportagem no país. Seu pioneirismo, en-
quanto mulher fotojornalista, deve ser conhecido por uma
audiência maior.

" Graças ao [Jean] Manzon, o fotógrafo brasileiro conquistou um novo


lugar. Antes ele era tido como um marginal que ia para festa de casa-
mento e roubava os presentes. Fotógrafo não usava nem paletó, nem
gravatâ, Era um desdentado, o equiparnento de péssima qualidade e o
salário miserável. O Manzon chegou ao Brasil e moralizou a proÍis-
são". Depoimento de Flávio Damm em José Medeiros, ,J0 Anos de
Fotografia, Rio de Janeiro, Funarte, 1986, p. 11 (Catálogo). Sobre
Manzon, ver Helouise Costa, Um OIho que Pensa: Estética Moderna
e Fotojontalìsmo, São Paulo, FAU-USP, 1998 (Tese de Doutorado em
Artes).

102
Mídia: Imagens, Ideologia e Memórial

Dentre as diferentes modalidades de informação trans-


mitidas pela mídia, as imagens, em geral, constituem um
dos sustentáculos da memórial e podem, também, ao
mesmo tempo, constituírem instrumento de manipulação
política e ideológica. Tal como as palavras, as imagens
são controladas e censuradas; prestam-se como "provas"
de subversão, são também instrumentos de poder para
aqueles que detêm, num dado momento, o controle da
informação. As fontes iconográficas - produzidas atra-
vés de diferentes formas de expressão grâfica, como os
desenhos, pinturas, gravuras, litografias e fotografias -

1. Conferência apresentada pelo autor no XXVII Congresso Brasileiro de


Ciências da Comunicação, no contexto do XXWÌ Ciclo de Estudos da
Intercom [Porto Alegre, agosto de 2004], que teve por tema central
"Mídia: Memória, Esquecimento e Censura". O texto foi publicado
originalmente em Aníbal Bragança e Sônia Virgínia Moreira (orgs.),
Comunicação, Acontecimento e Memória, São Paulo, Intercom - So-
ciedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação, 2005,
pp. 50-59 (Intercom de Comunicação, 9).

103
BORÌS KOSSOY

carÍegam em si informações sobre certos fatos e sobre a


mentalidade de uma época. Assim, não só complementam
as informações transmitidas pelas fontes escritas, como,
também, enriquecem o conhecimento com dados revela-
dores. Dados que, por vezes, jamais foram mencionados
pela histori ografía tradicional.
Todavia, esses conteúdos devem ser decifrados. A
imagem - pensada enquanto testemunho "documental",
jornalístico - é inevitavelmente fruto de um processo de
criação. As imagens são concebidas e materializadas con-
forme as intenções de seus autores, segundo um filtro
cultural e uma determinada visão de mundo. Tal se per-
cebe claramente ao longo da história da fotografia e da
própria história da imprensa. O documento fotográfico,
fragmentârio por natureza, é o resultado final de elabo-
radas construções técnicas, estéticas e culturais desenvol-
vidas ao longo da produção da represent ação: daí se pres-
tar a olhares e usos ideológicos determinados2. Contudo,
ao estudarmos as informações produzidas pela mídia, não
apenas as imagens importam, como também a sua arti-
culação com âs demais formas de expressão.
E tareÍa fundamental recuperar o sentido dos fatos
passados assim como resgatâr os silêncios propositais da
história, a seÍ empreendida por meio de renovadas inter-

2. Para um aprofundamento teórico desse tema, ver, do autor, em espe_


cial, Fotografia e Hìstória,2u ed. revista, São paulo, Ateliê Editorial,
2001; e, também, Realidades e Ficções na Trama Fotogrtifica, São
Paulo, Àteliê Editorial, 1999.

r04
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

pretações das fontes, sejam elas escritas,


orais ou visuais.
Neste sentido, as notícias, reportagens, editoriais,
charges,
fotografias, anúncios institucionais e informações
de uma
forma geral, divulgados pela mídia, consriruem
rico filão
paÍa a pesquisa histórica particuÌarmente se
- relativas a
períodos de repressão e autoritarismo _ e, por
conseguin_
re, paÍa a necessária recuperação da memória
política. É
csse o cerne da análise que se segue.

IMAGENS ELABORADAS, DOCUMENTOS AMBÍGUOS

A imagem tem papel preponderante na documentação


dos acontecimentos. Ninguém cìuvida disso. No
entanto,
fatos corriqueiros, situações que poderiam passar
desper_
cebidas pela sua monotonia, podem se transformar em
imagens de impacto, acontecimentos da maior ,importân_
cia', dependendo de como são elaborados antes, durante
e
após a produção do registro fotográfico. O contrário
tam-
trém é verdadeiro; fatos que denunciam toda uma
situa_
.-ão dramática de sofrimento, miséria, dor e
crueldade
podem ser captados de forma harmoniosa,
de acordo com
o ângulo da tomada, descontextualizados
de seu entorno,
'amenizados' em seus detalhes e, finalmente,
esvaziados
nas manchetes, legendas e textos que os acompanham.
Se as palavras silenciam sobre o que não
interessa
lnformar, as imagens são igualmente ,cegas,em
relação a
.eÍtos fatos ou podem mostrá-los apenas sob
ângulos em
que nada se percebe além de composições
esteticamente
rrogramadas. Essas manipulações aparentemente inocen_

105
BORIS KOSSOY

tes - que podem ser entendidas como 'interpretações'-


são inerentes à produção da representação fotográfica e,
portanto, compõem a ÍÍama do documento: essa ambi-
güidade permeia a história da fotografia e o fotojorna-
lismo. As imagens têm uma função insubstituível como
registro dos fatos, cenários e personagens do passado.
Entretanto, podem ser objeto dos mais diferentes e inte-
resseiros usos; nesse sentido é a ideologia que determina
o seu destino e finalidades. Assim são construídas 'reali-
dades', assim é moldada a memória, à medida que:

a) as imagens do mundo são produzidas e distribuídas


cada,tezmais por alguns poucos e poderosos impérios
da informação;
b) fotografias destinadas a ilustrarem notícias são sele-
cionadas em bancos de imagens;
c) inúmeras imagens que não foram utilizadas na ilustra-

ção das notícias (seja porque não agradavam estetica-


mente ou não se prestavam ideologicamente ou por
alguma outra razão) são 'deletadas' nas próprias câ-
marâs dos fotógrafos ou fora delas, interferindo nãcr
apenas nâ notícia ou matéria jornalística de hoje, mas
também na construção da memória coletiva, que, por
suâ vez) estará sendo igualmente manipulada, moldada.

Para que se possa auferir alltenticidade e fidedignida-


de às informações, os textos, imagens e publicações em
que elas foram divulgadas não podem escapar ao devido
exame crítico. Os documentos nos guiam, na medida em

t06
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

que são desmontados em seus elementos constituintes, ana_


lisados e interpretados à luz do momento histórico e ava-
[ados segundo as condições em que foram produzidos.
-\ssim, para reconstituirmos fragmentos sìgnificatrvos da
memória individual e coletiva, devemos estar atentos à
ação dos órgãos produtores e controladores da in-
formação. Se forem consultados os arquivos da polícia
Poiítica e demais órgãos censores e coercitivos do governo
\-argas - como o DIp e os Deips por exemplo - constatare-
mos que os protestos e outras manifestações de resistên-
cia foram amordaçados pelas versões oficrais. Reafirmando
\Iichael Pollak, é essa memória "proibida", e portanto
''clandestina", gue deve nos interessar, pois, apesar de ini-
bida pelos órgãos censores) faz parte do cenário cultural,
do setor editonal, dos meios de comunicação e das artes
em geral. Se identificada através de documentos proibi-
dos e/ou confiscados pelos órgãos de censura e repressão
institucionais, essa memória pode nos comprovar, ,,caso
seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade
civil e a ideologia oficial de um parrido e de um Estado
que pretende a dominação hegemônica"3.

FOCOS DA IMPRENSA, FOCOS DA HISTORIA

Quais os fatos relevantes a serem noticiados e como


o são? Dependem do foco da imprensa num dado mo-
mento histórico, num determinado lugar, analogamente

i. Michael Pollack, "Memória, Esquecirnento, Silôr-rcio,,, Estudos His_


tórìcos,2 (3):5, 19B9 (Rio de Janeiro).

107
BORIS KOSSOY

ao problema da história, como observou Marc Ferro: "O


problema dos focos da história, dos lugares onde é
secretada, de seus modos de produção, impõe-se, assim,
de maneira imperativa. Pois é obvio que cada um desses
focos difunde um discurso diferente por suas formas,
normas e funções"a.
Não são poucos os exemplos em que a mídia endossa
(ou é obrigada a endossar), os caminhos da política go-
vernamental, apoiando posturas etnocêntricas, xenófobas,
partidárias, preconceituosas e racistas, seja através de suas
matérias e editoriais, seja compactuando com silêncios
premeditados acerca de determinados temas. Esse tem sido
também o papel da história oficial que, em nome da "se-
gurança nacional" ou "da ordem pública", garante a con-
tinuidade, no poder, de uma certa elite que, por sua vez,
compartilha seus interesses com outros grupos ditos
"colaboracionistas ou cúmplices". Atentos em constÍuí-
rem sua auto-imagem, apelam païa a fotografia, pois, por
sua credibilidade, ela interfere no imaginário coletivo,
alterando ou gerando novos arquétipos.
Muitos desses silêncios propositais são recebidos com
uma certa cumplicidade da sociedade, que, "por vontade
própria ou induzida pela força da propaganda política e
pelas diretrizes educacionais, os interioriza"5. Exemplos
desta 'cegueira' histórica podem ser constatados na histo-

4. Marc Ferro, A História Vigìada, São Paulo, Martins Fontes, 1989,


p. 9.
5. Idem, p. 37.

108
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

rrografia alemã do pós-guerÍa acetcado Holocausto, cu;.a


omissão perdurou até o final da década de 1960,quebra_
do finalmente pelos romancistas e cineastas alemães6. O
mesmo se aplica ao Brasil: ainda, nos dias atuais, os go_
vernantes não permitiram a revelação do conteúdo de
arquivos secretos que, certamente, ,,causarão impacto na
configuração da memória política dos brasileiros e na
interiorização dos valores democráticos no que se refere
aos direitos humanos", como ressaltaram Luis Roniger e
Mario SznajderT.

A IMPRENSA BRASILEIRA DURANTE A ERA VARGAS

A grande imprensa brasileira é farta também em si_


lêncios e versões comprometidas com o discurso oficial.
Temas como o Holocausto, a Guerra Civil Espanhola, o
movimento operário e o cotidiano dos presos políticos,
por exemplo, foram tratados sem a pretensa ,.neutralida-
de, imparcialidade e objetividade,' jornalística.
Menciono aqui as marérias publicadas entre 1933 e
1938 pelo jornal O Estado de S. pawlo, que, em forma de
notas, transcrevia versões distribuídas pelas agências in_
ternacionais (UpI, Reuters). Os textos fornecidos pelas
agências alemãs reproduziam o ideário nacional_socialis_
ta que, por suas vertentes anti_semita e ânticomunista, se

6. Idem, ibidem.
7. Luis Roniger e Mario Sznajder, O Legado de Violações dos Dìreitos
Humanos no Cone Szzl, São paulo, perspect iva, 2004, p. XXXÌV.

109
BORIS KOSSOY

referiam aos judeus como "inimigos da nação alemã",


"promotores do comunismo internacional" e represen-
tantes de uma "raça inferior". lJma quantidade conside-
rável dessas notas foram publicadas pelo citado periódi-
co entre julho e dezembro de 1938. Merece aqui nossa
atenção o fato de, até 1941, nãosaírem publicadas'gran-
des matérias' que dessem ao leitor brasileiro a dimensão
das arbitrariedades a que estavam sendo submetidos os
judeus sob o regime nazistâ. As notas - por não compor-
taÍem críticas e por serem os fatos friamente relatados,
sem quaisquer comentários - transformavam os atos anti-
semitas em "meros acidentes banais".
Entre 1933 e 1.937, principalmente, esse periódico
apresentou o processo de "arianização" lmposto pelo
Terceiro Reich como parte da solução para a "questão
judaica"s. A ausência de imagens fotográficas esvaziava
ainda mais o conteúdo superficial das notas. No entanto'
através de outras fontes, sabemos que o recrudescimento
do anti-semitismo na Alemanha foi documentado foto-

8. Citamos algumas rnanchetes que exemplificam a prática anti-semita


enquanto instrumento de poder do estado nacional-socialista:
A "arianização" da indústria alemã,3.7'1938; Confiscados os bens e
os capitais dos judeus ern Dantzig, 24.7.1938; A arianização do co-
mércio e indírstria austríacas, 27.7.1938; A confiscação de todos os
bens dos israelitas alemães, L7.11.1,938; Confisco de objetos artísti-
cos,19.11.1938; A arianizacão dos bens imóveis dos iudeus na Ale-
manha, 19.11.1938; Os judeus estão sendo forçaclos a transferir os
seus bens ímóveis à Frente Alemã de Trabalho, 20.11'.1938 Apud
Antonio Guglielmo, O Holocausto enquanto Notícia, São Paulo, DLO-
FFLCH-USP, 2000 (Dissertação de Mestrado).

110
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

graficamente desde a ascensão de Hitler ao poder, em


1933, até sua morte, em 1945. Refiro-me a cenas como o
boicote aos estabelecimentos comerciais de propriedade
de judeus (abril, 1933), queima de livros, humilhação
pública de judeus vienenses, deportação para campos de
concentração, a Noite dos Cristais, entre outÍas cenas
cruciais de um projeto anti-semita endossado pelo parti-
do Nacional-Socialista.
Apenas por meio desses informes superficialmente
relatados é que os leitores tomavam conhecimento do que
se passava. Na realidade, imagens fotográficas dos prisio-
neiros dos campos de concentração e dos campos de ex-
termínio só começaram a ser veiculadas com a proximi-
dade do fim da guerrae. Susan Sontag rememora o dia em
que, pela primeira vez, viu as imagens do horror:

foram as fotografias de Bergen-Belsen e Dachau, que descobri por


acaso numa livraria em Sanra Mônica, em junho de j,945.Jamais
vi algo - seja em fotografia ou na vida real - que me atingisse de
modo tão incisivo, profundo e instantâneo. Com efeito, parece-me
plausível dividir minha vida em duas partes: antes de ver aquelas
fotografias (tinha 12 anos) e depois, apesar de que somente vários
anos maìs tarde pude entender plenamente seu significadol0.

9. Em 27 de laneiro de 1 945, as tropas soviéticas entraram em Auschwitz


e libertaram os sobreviventes. Em 15 de abril as tropas britânicas
entrâram em Bergen-Belsen, trazendo a público a monstruosidade dos
campos de extermínio. A partir dessa clata, imagens fotográficas da
Shoah foran divulgadas em todo o mundo.
10 Susan Sontag, Ensaios sobre a Fotografìa, Rio de
Janeiro, Arbor, 1 98 1,
p. 19.

111
BORIS I(OSSOY

Desprovido de qualquer comentário humanitário, o


conteúdo das notas induzia o leitor a "imaginar" que os
judeus eram, realmente, culpados pelo caos e degradação
da civilização ocidental11. Esta interpretaçâo se fez refor-
çada pelas matérias anticomunistas publicadas pelo O
Estado de S. Paulo acerca do Levante de 1935 que, se-
guindo o discurso oficial, recebeu o rótulo de "Intentona".
No caso, proliferaram imagens fotográficas sobre pri- as
sões de Luis Carlos Prestes, Olga Benário, Elise e Arthur
Ernst Ewert. Endossando o mito do complô, a grande
imprensa "retratoll" os rostos dos subversivos, dando
margem à confirmação de que o "perigo vermelho" era
real e se fazia aliado do "perigo semita"12.
Contrariandc. a iconografia oficial veiculada para
noticiar a alegada gravidade da "lntentona" comunista
(1935) e do "Putch" integralista (1938), as imagens que
registraram a instauração do Estado Novo, em 1937,
omitiam o conceito de "golpe".
As fotografias divulgadas pela Agência Nacional rea-
firmavam a figura de Getúlio Vargas enquanto "salvador
da Pátria" e "pai dos pobres", diluindo a sua figura de
ditador. Essas fotografias representavam) na sua maioria,
demonstrações de eraltação ao Estado Novo e a Vargas.

i l. Nlaria Luiza Tucci Carneiro, O Veneno da Serpente. Reflexões sobre


o Anti-senútìsmo no Rrasil, São Paulo, Perspectiva, 2003.
12. Maria Luiza Tucci Carneiro, ìdem. Sobre o tema do "complô", ver
Rcrdrigo Pattcr Sá Motta, Erz Guarda Contra o Perigo Vermelho, São
Paulo, Perspectiva, 2002. Ver, em especial, o capítulo Iconografia
Anticomunista, pp. 89-1 36.

112
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

Àtravés de um inventário sistemático das fotografias pro-


duzidas peÌo por exemplo, não será difícil reafir,
DEIP/SP,

mar o poder que a imagem tem para fortalecer a sacrali-


zação do poÌítico13.
Qualquer iconografia que exaltasse o comunismo -
contrariando o processo de diabolização promovido pe-
1as publicações oficiais do Estado Novo e pelos periódi-

cos católicos e integralistas - corria o risco de ser confis-


cada pela Polícia Política ou de ser interditada pelos órgãos
censores. Exemplo desta postura é a fotografia dos "re-
volucionários da Praia Vermelha", tirada na tarde de 27
de novembro de 1935, por ocasião da rendição dos re-
beldes do 3.' R.I. Esta imagem - reproduzida pela histo-
riografia que aborda o temâ da "Intentona Comunista"
- retrata um grupo de militares rebeldes sorrindo, ca-
minhando em direção aos veículos que os levariam à pri-
são. Esta manifestação de alegria, tal como se acha re-
gistrada na foto, causou indignação.

Rodrigo Patto Sá Mottara destaca os pÍotestos contra


esta imagem, publicados pelos jornais O Estado de S.
Pawlo, e lornal do Brasil; porém num opúsculo da Polí-
cia Militar fica bastante claro o repúdio à atitude dos

13. Projetos nesta direção estão sendo desenvolviclos por Kariny Grativol
e Giovana Saad, pesquisadoras do Proin - Projeto Integrado Arquiuo
do Estado/USP, sob a minha orientação, como estudos de Iniciação
Científica e TCIC.
74 Rodrigo Patto Sá Motta, op. cit., pp. 113-11,4.

113
*
,
i
@,

Fotógrafo rrão idcntificado. Reuoltrcìrmárfuts t'to Praìa Vcnnclha, 19.ì.5. irnagcm ccclida pcla Ficlitor::L Pcrspcctiv;r.
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

oficiais revoltosos, descritos como "cínicos", "feras", ..cri-


minosos ":

Ponha-se em relevo que vidas moçâs e felizes, votadas integral-


mente à defesa da nossa Pátria, foram sacrificadas brutalmente,
quando dormiam, à sanha dos comunistas, que, ainda depois de
vencidos, saíram cinicamente risonhos do quartei, tripudiando qual
feras, sobre as vítimas do seu nefando crime e sobre o sofrimento
dos que ficavam, das viúvas e dos órfãos do seu desvario'i.

Assim como o Holocausto e a "Intentona Comunis-


ta", a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) também foi
foco de interpretações comprometidas com o discurso
oficial do Estado varguista. Espanha e Brasil tiveram, ao
longo dos anos 1930, uma postura ideológica conver-
gente em relação ao perigo representado pelo comunismo,
o inimigo comum que deveria ser exterminado. Nesses e
em outros países, criavam-se condições para o surgimento
da figura do "salvador'16.no Brasil, é Vargas que emerge
como tal, na Espanha será Francoe na Argentina, Perón17.

A imagem de Vargas foi sendo construídâ pelos meios de


comunicação, afinados com o discurso anticomunista e
controlados pela censura governamental. Getúlio Vargas
tem sua imagem exaltada como figura mítica de "esta-

15. Idem, p. 113.


16. Conforme o conceito proposto por Girardet. Ver Raoul Girardet, Mllos
e Mitologias Políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
1.7. Cf. Maria Helena Capelato, Mubìdões em Cena. propaganda políti-
ca no Varguismo e no Peronismo, Campinas, Papirus, 1998.

115
BORIS KOSSOY

dista", "pai dos pobres", "homem de ação" etc. Nesse


processo, a grande imprensa tem um papel relevante,
ao "informar" às massas a versão dos fatos a ser pro-
pagada. Tal imagem foi sendo consolidada no imaginá-
rio coletivo brasileiro através da publicação de notícias
que, manipuladas por imagens e palavras, prestavâm-se
pâra construir ficções documentais apresentadas como
realidades, melhor dizendo, como "verdades oficiali-
zadas".
Durante o período do conflito espanhol, O Estado
de S. Pawlo publicou matérias de exaltação ao generaÌ
Francisco Franco (1892-197 5 ), chefe do Estado-Maior
do Exército e comandante das forças nacionalistas. Essas
representavam a direita; eram chamados de "negros",
"revolucionários" e reuniam diferentes grupos (monar-
quistas, carlistas, católicos radicais e simpatizantes do
nazifascismo). Eram por si referidos como os "defenso-
res" da ordem, o que, desde logo, pressupõe que os ini-
migos eram "desordeiros", isto é, os republicanos: â es-
querda espanhola (comunistas, socialistas, anarquistas),
também esfigmatizados como "incendiários", "selva-
gens", "baderneiros", enfim, as facções que haviam ar-
rastado a Espanha à desordem e ao caos18.

18. O tema foi abordado por João Henrique Botteri Negrão, Seluagens e
Incendìárìos. O Dìscurso Anticomunista e as Imagens da Guerra Ci-
uìl Espanhola, São Paulo, FFLCH-USP, 2001(Tese de Doutorado em
História Social).

1.16
OS TEÀ,IPOS DA FOTOGRAFIA

O periódico não deixa claro o fato de os republica-


nos pertencerem a um governo legalmente constituído,
que seus representantes haviam sido eleitos pelo voto
no pleito de 1936. Alinhado com a ideologia da direi-
ta, o periódico - em suas aproximadamente duas mil
notíciasleveiculadas ao longo do conflito - referiu-se
quase que unicamente às ações bélicas franquistas. Atra-
vés das notícias, reforçava-se a imagem de Franco en-
quanto o herói, o "salvador" que iria destruir o "perigo
maÍxista", que espalhava seus malignos tentáculos so-
bre a Nação.
De qualquer modo, a grande imprensa nacional es,
tava, desde 1931, sob controle dos órgãos censores do
governo Vargas; e, após 1938, o governo chegou a man-
ter censores nas redações dos principais periódicos. A
manipulação das notícias sobre a Guerra Civil Espa-
nhola se fazía duplamente: por meio do material forne-
cido pelas agências internacionais e pelas subseqüentes
distorções promovidas pelos mecanismos da censura
local.
Segundo Botteri Negrão, as fotos do conflito espa-
nhol reproduzidas em O Estado de S. Paulo caracteri-
zam-se por duas categorias temáticas ideologicamente
selecionadas. A primeira é suporte de uma imagem positi-
va que se pretendia construir dos nacionalistas (franquis-
tas). Representa assuntos onde não se vêem as marcas da

19. ldem, p. 69. Entre as principais fontes dessas notícias, mencionamos


as agências Havas e Reuters.

r17
BORIS KOSSOY

guerra: edifícios, praças, logradouros públicos, imagens


que aparentemente não mantêm relação direta com os
textos, mas que visam a despertar a indignação do leitor,
no sentido de esclarecer que se úata de locais que pode-
rão se tornar alvos a serem destruídos. A segunda, ao
contrário, enfatiza as ações violentas dos republicanos
(comunistas, anarquistas): ao documentar prédios e mo-
numentos destruídos, escolas e igrejas incendiadas, adul-
tos e crianças vítimas do conflito etc., representa a des-
truição e os horrores da guerra2o.
A manipulação das notíciâs encobria a realidade das
ações bélicas dos exércitos de Franco, favorecendo um
perfil positivo pârâ as investidas fascistas. Uma série de
fatos significativos pata a compreensão da Guerra Civil
Espanhola foi sistematicamente omitida, comprometen-
do a visão que o leitor poderia ter do conflito. Com o
objetivo de "diabolizar" a ação das esquerdas, o jornal
evitava certas explicações históricas que pudessem
desfavorecer Franco, como, por exemplo, demonstrar que
a Espanha estâva recebendo auxílio bélico por parte da
Alemanha e Itália2r.

20. João Henrique Botteri Negrão, op. cìt., pp. 155-156.


21,. O Comitê de Não-Intervenção liderado pela Inglaterra tinha por fun-

ção impedir a venda de armas e o envio de tropas para a Espanha por


parte da Alemanha, Itália e União Soviética. Nos bastidores do front,
interferiram diretamente na guerra, suprindo os nacio-
os nazifascistas
nalistas com material bélico, tropas e alimentos. InteÍessava a Hitler
ampliar sua área de influência na Espanha, face aos dois inimigos

118
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

Fotos de cidades bombardeadas por aviões alemães e

mortes de civis eram evitadas, como forma de omitir a


quebra do pacto europeu de não-intervenção no conflito.
A Legião Condor - esquadrilha responsável pelos bom-
bardeios de Madri e - foi posta
outras cidades republicanas
em ação como apoio estratégico dos nazistas à Franco. A
pequena cidade de Guernica foi arrasada pelo bombar-
deio alemão em abril de 1937. O massacre teve repercus-
são internacional e a contra-informação atribuía o ataque
aos "vermelhos", que, ao baterern em retirada da cidade
já conquistada pelos franquistas, a incendiaram e destruí-
ramzz. Com a omissão de tais fatos, consolidava-se assim
uma imagem estigmatizada dos comunistas23.
Procurando impedir a circulação no Brasil de ima-
gens (produzidas pelo Comissariado de Propaganda do
Governo da Catalunha) que denunciavam os bombar-
deios alemães e a conseqüente morte de civis, o Deops de
São Paulo confiscou de Edgard Leuenroth doze fotogra-
fias que documentavam aqueles fatos. Esses documen-
tos, anexados ao seu prontuário, prestaram-se como
"provas" de crime político, contribuindo para a sua con-

tradicionais, França e Inglaterra, e tambóm tirar proveito da oportu-


nidade para utilizar o território espanhol como campo de provas para
testar seu poder de fogo e estratégias de combate. Sobre o tema, ver
José Carlos Sebe Bom Meihy e Cláudio Berrolli Filho, A Guerra Ciuil
Espanhola, São Paulo, Ãtica,1996, pp.23-25.
22. O Estado de S. Paulo, 10 e 12.5.7937, p. B.
23. Aspectos enfatizados por João Henrique BotteÍi Negrão, op. cìt.

1.1.9
BORIS KOSSOY

denação2a. Fica evidente - tânto pelo teor das matérias,


como peÌos prontuários do Deops - que todos aqueles
que se posicionavam a favor da causa republicana eram
identificados como "subversivos" ou "criminosos políti-
cos" que ameaçavam â segurança nacional2s. Este enfoque
anticomunista era teforçado por outros jornais da gran-
de imprensa, empenhados em noticiar a vitoriosa ,.caça
ao perigo vermelho" por parre da Policia política. pagú
(Patrícia Galvão), Caio Prado Jr., Jorge Amado, Lasar
Segall, Monteiro Lobato, entre outros, foram alvos desta
repressão em diferentes momentos26.

24. Ismara Izepe de Souza, República Espanhola: Llm Modelo a Ser Euì-
tado, São Paulo, Imprensa Oficial / Arquivo do Estado, 2001 (Série
Inventários Deops). A relação completa dessas fotos está anexada a
AESP, Edgard Leuenroth, Prontuário 122, vol. I, Deops/Sp.
2.5. Temas como este vêm sendo investigados por pesquisadores do proìn
- Projeto lntegrddo Arquiuo do Estado/Uniuersìdade de São paulo,
sob a coordenação de Maria Luiza Tucci Carneiro, Borìs Kossoy e
Fausto Couto Sobrinho. Desde 1996, as pesquisas foram centradas na
realização de um inventário sistematizado dos prontuários do Deops/
SP (1924-1983), desenvolvido por bolsistas Fapesp de Iniciação Cien-
tífica, Mestrado e Doutorado. Enquanto projeto temárico da Fapesp
(1,999-2004), esses estudos foram publicados nas séries Ìnventários
Deops e Teses & Dìssertações, além de na revista Semìnários e na
Coleção Labirintos da Memória. Um total de 164 mil fichas remissi-
vas, bancos de impressos confiscados, estrangeiros expulsos e icono-
grafia estão sendo disponibilizados junto ao Arquivo do Estado. Uma
nova fase do projeto está sendo iniciada, focada no inventário <los
dossiês Deops (1940-1983) e no Fundo Deip/Sp.
26. Á1varo Gonçalves Andreucci e Valéria Garcia de Oliveira, Cubura
Amordaçada. Intelectuais e Músicos sob a Vìgilâncìa do Deops, São
Paulo, Imprensa Oficial / Arquivos do Estado, 2002 (Série Inventário
Deops); Maria Luiza Tucci Carneiro, Liuros proìbìdos, ldéias Maldt-
tds, 24 ed., São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.

120
OS TEMPOS DA FOTOGRAFÌA

Enquanto O Estado de S. paulo circulava suas maté,


rias anticomunistas, jornais da imprensa nanica paulista
eram confiscados por estarem engajados ideologicamen_
te com a câusâ republicana espanhola ou, ainda, por di_
vulgarem ações do movimento operário internacional, por
denunciarem as prisões e torturas de ativistas políticos e,
também, por criticarem a Igreja Católica. Dentre esses
jornais, citamos alguns periódicos ,,subversivos', que fa_
ziam analogia com seus ideais de luta política como, por
exemplo: O Lìga, Liberdade, O pacificador, Emancipa_
ção, O Liberal, Nossa Terra, Sufocados pela censura
institucional e pelos mecanismos de repressão, os edito_
res buscavam dar voz ao proletariado e aos grupos de
protesto. Lembramos aqui os periódicos: Voz Operária,
Voz da Egreja, A Voz dos Alfaiates, Voz portuárìa, A Voz
dos Trabalbadores, Voz da Unidade, Voz do padeiro, A
Voz do Sapateiro etc. Esses jornais foram silenciados pela
Polícia Política do Estado de São paulo, comprometendo
a memória política do Brasil. Situação similar deve ter
sido vivenciada por editores, jornalistas, fotógrafos e ti_
pógrafos de ourros esrados brasileiros cuja trajetória po_
lítica ainda está por ser pesquisada2T.
Ao mesmo tempo em que a polícia política cerceava
a circulação de idéias ditas ..exóticas',, o DIp _ Departa_
mento de Imprensa e Propaganda, criado em dezembro

27. Maria Luiza Tucci Carneiro, ,,Imprensa


Irreverente, Tipos Subversi_
vos", em Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro (orgs.), A Im_
prensa Confìscadapelo DEOpS 1924_1954,São paulo,
Ateliê Edirorial/
Imprensa Oficial/Arquivo do Estado, 2003, pp. 34-35.

121
BORIS KOSSOY

de 1939, subordinado diretamente à presidência da Re-


pública, alimentava os periódicos e cinejornais com
materiais de exaltação à figura de Vargas e as realíza-
ções do Estado Novo. Durante o período, o on aprovei-
ta-se também do rádio, ainda nos seus inícios, para veí'
cular informações oficiais e incessante propâganda do
governo. É criada a Hora do Brasil, e o programa entra-
va no ar entre 19 e 20 horas, horário "em que a maior
parte das pessoas [já se encontrava] nos seus lates", como
observa Edgard Carone28.
Carone inclusive assinala que, se grande parte da classe
dirigente aderiu ao golpe, havia também insatisfação, sen-
do algumas delas contornadas por meio de acordos, o
Estado Novo concedendo favores em papel, subsídios es-
peciais etc. Quando os acordos não eram possíveis' pre-
valeciam as arbitrariedades e a truculência' como a ocu-
pação do jornal O Estado de S. Pawlo, em março de
L9392e.
Durante o período, fotografias ufanistas do governo
Vargas foram veiculadas pela grande imprensa, controla-
da pelo apatato censor do Estado. O otp orientava, da
capital federal, o conteúdo das mensagens que poderiam
ser veiculadas pelos meios de comunicação. Nos estados'
constituem-se os Deips, subordinados ao órgão central.
E, como este, editam livros e estabelecem seus programâs

28. Edgard Carone, O Estado Nouo (1937-1945), Su ed., Rio de Janeiro,


Bertrand Brasil, 1988, p. 170.
29. Idem, ìbidem.

t22
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

como diretoresdo Deip em São


de propaganda' Atuaram
Menotti Del Picchia e
Paulo: Cândido Motta Filho'
Cassiano Ricardo (189 5-1974)30'
ADivisãodelmprensa'aquemcompetiatambémo
país um
com os jornais do
exercício da censura, mantinha
serem distribuídos à
;t;. de clichês e fotografias para casos de violação ou
Os
,rr-rnr.r-tr" nacional e esffangeira' pelo
pela imprensa eram iulgados
infração legal praticados
dt a31e' iunto a esta di-
CNI - Conselho Nacional
'-n'"'-t'
mais impottantes setores do orp:
visão, funcionava um dos
que' na suâ estrutur a otganizacional'
a Agência Nacional
de Arquivo Fotográfico'
contavâ com o Servifo
aos jornais um número
A Agência Nacional fornecia Ë não
pâra serem publicadas'
considerável de notícias
mas também comunicados
apenas notícias,
"po"ugt"" to-o o da visita de Getulio
bem ao ,o"o noottli'tl'
a população a darem
Vargas a São Paulo, conclamando
da Nação"32'
u, 'ibou, vindas ao Chefe
local distribuía gratulta-
Em São Paulo, uma agência
e telegramas cuio conteúdo
mente notícias, fotog'ufú'

Sob a Yerdade Ofi'


também Silvana Goulart
'
30. Idem, pp' I71-172;Ver wt Estado Nouo' São Paulo'
cial: ldeologìa' o'tìì'*ì)" '-c'n"'o
z9'
Marco ZerolCNPq' l9o0' P' 1939'
l'949' de 30 de dezembro de
31. Órgão t'i"ao ptrJ'ní'ltliti "' de São Paulo" (Comunicado)' o
'- n,àáo aì s'
32. Aesp' Deip C90661:'lìãot"u"
po'tï'''i'i''ii oi' ti:ãïï.
no, existindo documentos
^::::ï::'ï.J":::ï
administrattvos vl
solicita-
das publicações e as respectivas
faturas, das pes-
"o"tt"d.'ï-'Jção
to"fot-" pt'dtto' comprovar através
ções de pagamtr"o'
quisas em curso Peio Proin'

123
BORIS KOSSOY

era considerado de interesse nacional. Uma grande quan-


tidade de imagens foi produzida pelos fotógrafos da agên-
cia, que, diariamente, recebiam as pautas a serem execu-
tadas. Os assuntos fotografados eram variados: crianças
durante aula de trânsito, reuniões da diretoria do Deip,
homenagens a personalidades representativas da política
e setores produtivos, atividades dos acadêmicos de
Direito, exibições de padiolas no Hospital MiÌitar, apreen-
são de estação clandestina de espiões nazistas, visita do
Ministro Alexandre Marcondes Filho; "Em trânsito para
o Rio passoì.r ontem por São Paulo o General Góes Mon-
teiro"l etc.33.

FORMULAS DE RESISTÊNCIA

Não particulârmente
só durante o governo de Vargas e,
sob a vigência do Estado Novo (1937-1945), mas tam-
bém durante o regime militar que se instalou no Brasil
com o golpe de 1964, a imprensa foi alvo da censura po-
lítica. Muito já se escreveu sobre os versos de Camões que

.33. Guido Fonseca, "Contribuição à História do Departamento Estadual


de Investigações Criminais - Deic", Reuìsta Arquiuos da Polícìa Cï
uil,39:4L-1.1.0,2." sem. 1982 (São Paulo); Arquivo do Estado de São
Paulo (Aesp), Relatório do Seruiço de Recortes e Arquiuo Fotográfico
- 1943-1947, ordem de referências 806709 a E06787, Fundo Deip -
Departamento Estadual c1e Imprensa e Propaganda. Este tema foi tra-
tado mais detidamente em Boris Kossoy, "Luzes e Sombras da Metró-
pole. Um Século de Fotograíia em São Paulo 1850-1950', em Paula
Porta (org.), Histórìa da Cidade de São Paub, São Paulo, Paz e Terra,
2004, pp. 387-455.

124
Boris Kossoy. Brasília, 7972. Acervo do Ar-rtor
BORJS KOSSOY

substituíam os trechos censurados de matérias do jornaÌ


O Estado de S. Paulo; as receitas de doces e salgados, que
preenchiam os espaços vazios remanescentes dos cortes
impostos pelos censores do Jornal daTarde, ou os "diabi-
nhos" que exerciam a mesma função na revista Veia3a.
A Tribuna da Imprensa, Pasquim, Opinião, Mouimen-
to, entre outros órgãos de imprensa, além do teatro, da
música e das artes em geral, igualmente estiveram sob a
mira da censura. Jornalistas, chargistas, fotógrafos busca-
vam 'fórmulas' que pudessem driblar as arbitrariedades
da repressão. Enquanto sujeito daquele momento sombrio,
produzi, no princípio da década de 1.970, um conjunto de
imagens no contexto de duas séries maiores intituladas
"viagem pelo fantástico" e "cartões antipostais". Algu-
mas dessas fotografias são imagens metafóricas procuran-
do, por exemplo, tornâr ambígua a escultura representando
a Justiça de olhos vendados, sob o céu de Brasília, amea-

çador, ou o destino do cidadão desumanizado, fragmenta-


do, descartado, ou, ainda, a sensação desoladora de um
cemitério, palco de cenários fantásticos. A imprensa con-
cedeu, à época, um espaço generoso a esses trabalhos e a
repercussão foi ampla. Essas cenas, publicadas "sem cor-
tes", título de "ilustrações", escapavam da lógica da cen-
a
sura, preparada apenas para o óbvio3s.

34. Ver artigos publicados na coletânea organizada por Maria Luiza Tucci
Carneiro, Mìnorias Sìlenciadas. Hìstória da Imprensa no Brasil, São
Paulo, Edusp/Fapesp, 2002.
35. Sobre os trabalhos mencionados, ver, dentre outros artigos daquele

126
OS TEMPOS DA FOTOGRAFTA

Para Íínalízar, gostaria de ressaltar a atualidade de


certas questões aqui tratadas e salientar que as bases da
democracia se vêem abaladas quando a imprensa é
ameaçada. Devemos estar atentos às recidivas autoritárias
do poder, quando esse se propõe a disciplinar e controlar
a informação e cercear a liberdade de expressão; essas são
conquistas maiores das sociedades democráticas, que não
podem ser maculadas em função da paranóia de alguns.

momento, Marco Villaquirán, "Viaie por lo Fantástico, Imágenes


Convertidas en Obras de Arte", EI Diárìo, La Prensa, New York,
18.10.1971; Enio Squeff, "Um Fotógrafo Procura o Terror do Meio-
dia", O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26.12.1.971., Suplemento Lite,
rário, p. 1; Antonio Hohlfeldt, "Â Fantástica Viagem Mágica do Olho
Kossoy", Correio do Pouo, Porto Alegre, 16.9.1972,
e a Lente de Boris
Caderno de Sábado, pp. 1, 8-9.

127
dru
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lp

IuecrxÁnro E MenoRrA
Os Tempos da Fotografial

Fotografia é memória enquanto registro da aparên-


cia dos cenários, personagens, objetos, fatosl documen-
tando vivos ou mortos, é sempre memória daquele preci-
so tema, num dado instante de sua existência/ocorrência.
É o assunto ilusoriamente re-tirado de seu contexto espa-
cial e temporal, codificado em forma de imagem. Vestígios
de um passado, admiráveis realidades em suspensão, ca-
racterizadas por tempos muito bem demarcados: o de sua
gênese e o de sua duração. É sobre esses tempos tradicio-
nais da fotografia - e sobre seus outros tempos, adquiri-
dos com o desenvolvimento da tecnologia e o câmbio das
ideologias - que esboçaremos algumas reflexões prelimi-
nares; reflexões inevitavelmente entrelaçadas com â pro-

1. Aula magna proferida na abertura do II Encuentro Nacional de Foto-


tecas, evento promovido pelo Sistema Nacional de Fototecas e Insti-
tuto Nacional de Antropologia e História, Pachuca, México, novem-
bro 2001. Texto publicado originalmente em Alquìmia, S (I3l:41-45,
2001 (México, DF, Sistema Nacional de Forotecas / Instituto Nacio-
nal de Antropologia e História).

131
ii; ;PJ í-:ricrì,ìii
BORÌS KOSSOY

blemática da memória. "O triplo problema do tempo, do


espaço e do homem constitui aïnatéria memorável", como
observou Leroi-Ghouran2.

A Perpetwação da Memória

A fotografia tem se prestado, desde sua invenção, ao


registro amplo e convulsivo da experiência humana. A
memória do homem e de suas realizações tem se mantido
sob as mais diferentes formas e meios graças a um sem
número de aplicações da imagem fotográfica ao longo
dos últimos 160 anos.
Não importando qual seja o objeto da representação,
a questão recorrente é o aspecto (consciente ou inconscien-
te) da captura do tempo, ou da preservação da memória.
É a memória coletiva nacional, preservada através da
documentação Íotogrâ{ica de seus monumentos, arquite-
tura, de suas vistâs e paisagens urbanas, rurais e naturais,
confli-
de suas realizações materiais, de sua gente, de seus
tos e de suas misérias. É também a memória individual
pessoal, gravada pelo registro fotográfico: a aparência
do homem congelada, num dado momento de sua traje-
tória, o objeto-relicário mantendo a lembrança, através
dos retratos de família, de uma época desaparecida. Ima-

2. Leroi-Ghouran, Le geste et Ia parole, Paris, Michel, 1964-7965, apud


Le GofÍ, "Memória", em Enciclopédia Einaudi, v oI. r: Memórìa-Hìs-
tória,Lísbcta, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 18. O
termo "memorável" fDo latim memorabilel é aqui utilizado no senti-
do de "digno de permanecer na memória".

1.32
OS TEMPOS DA FOTOGRAFTA

gens silenciosas. "Sem que nos demos conta" - diz Bau-


drillard - "é uma das qualidades mais preciosas e mais
originais da imagem fotogrâfica, diferentemente do cine-
ma, da televisão [...] Silêncio não somenre da imagem que
renuncia a qualquer discurso, para ser vista e lida de al-
gum modo 'interiormente' - mas também o silêncio no
qual mergulha o objeto que ela apreende."3
A perpetuação da memória é, de uma forma geral, o
denominador comum das imagens fotográficas: o espaço
Íecortado, fragmentado, o tempo paralisado; uma fatia
de vida (re)tirada de seu constante fluir e cristalizada em
forma de imagem. Uma única fotografia e dois tempos: o
tempo da criação, o da primeira realidade, instante único
da tomada do registro no passado, num determinado lu-
gar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o
tempo da representação, o da segunda realidade, onde o
elo imagético, codificado formal e culturalmentea, persis-
te em sua trajetória na longa duração. O efêmero e o per-
pétuo, portanto. Perpétuo, porém, em termos. A trajetória
pode ser interrompida, basta refletirmos sobre o destino
final reservado às fotografias pessoais, do homem comum,
ou mesmo às imagens históricas, Íegistradas nos mais di,
ferentes suportes, destruídas ou desaparecidas dos arqui-
vos públicos. Trata-se, pois, de uma memória finitas.

Jean BaudrilÌard, A Arte da Desdpaúção, Rio de Janeiro, Edirora UFRJ,


1997, pp.39-40.
4. Trata-se de codificações inerentes à representação fotográfica, como
vimos anteriormente.
5. É bem sabido que as imagens fotográficas, produzidas pelas mais dife-

1 -).f
BORIS KOSSOY

Tempo da Criação e Tempo da Representação

São os tempos da fotografia. O primeiro fixa o acon-


tecimento e paralisa ilusória e intencionalmente a ação.
Se tratar-se de fatos vinculados à nossa história, vai se
prestar às rememorações, às lembranças; ocupa lugar
privilegiado em nossâ memória. Se tratar-se de histórias
de outras gentes, de outros fatos, de outrâs épocas, vai se
prestar à memória dos outros, à memória coletiva, à his-
tória. !â com o segundo e definitivo tempo, o da repre-
sentação, convivemos; sejam enquanto lembranças
mârcantes em nossas vidas (mantidas em meio aos nos-
sos papéis particulares, em nossos porta-retrâtos), sejam
enquanto documentos iconográficos, pois, afinal de
contas, trata-se de nossos instrumentos de trabalho e in-
vestigação.
Sabemos do tempo histórico da criação em função do
tempo da representação. O tempo da criação se refere ao
próprio fato, no momento em que este se produz, contex-
tualizado social e culturalmente. É, no entanto, um mo-
mento efêmero, que desaparece, volatiliza-se, está sempre
no passado, insistentemente. No tempo da representação,

rentes tecnologias, estão sujeitas à deterioração, em função da natureza


do meio onde se acha registrada a informação, e das condições de sua
conservação. A memória visual de microaspectos do passado se perpe-
tua quando os conteúdos fotográficos são reproduzidos de alguma for-
ma, com as limitações ínerentes aos procedimentos de reprodução.
Dìscuti este tema extensivamente com Carlos Fadon Vcente, a quem
agradeço pelas precisas observações.

r34
OS TEMPOS DA FOTOGRAFlA

os assuntos e fatos permanecem em suspensão, petrifi-


cados eternamente, perpétuos se conservados: peças
arqueológicas, cuja poeira do tempo removemos cuida-
dosamente, na tentativa de descortinarmos as sucessivas
camadas que constituem sua espessura histórico-cultural,
sua memória.
As representações são simbólicas na sua mensagem,
no seu artefato; percebemos nelas algo que custamos a
compreender. Olhares inertes (?) nos observam desde os
documentos; cruzam-se com os nossos olhares passagei-
ros: olhamos, mas não vemos. Uma uox mortua que ema-
na das imagens nos fala sobre a experiência do que foi:
fala, mas não ouvimos. Pura imaginação? Enquanto ar-
queólogos das imagens, cabe a nós penetrarmos nestes
meandros da memória iconográfica, na tentativa de res-
gatarmos as tramas e mistérios que envolveram sua gêne-
se, sua realidade interior.

Os Tempos " Clássicos" e os Meios Eletrônìcos

Se outrora as fotografias eram apreciadas durante


intervalos de tempo prolongados, uma ou mais vezes,
por um pequeno grupo, mais tarde se tornaram quâse
onipresentes (as mídias impressas e eletrônicas) para mi-
lhões de pessoâs; hoje podem ser transmitidas ou busca-
das on line, em escala planetáúa, pelos meios eletrôni-
cos. Nesse processo, as imagens passaram a ser apreciadas
mais rapidamente e, pelo volume e redundância, beiram
à saturação. Além disso, sua tangibilidade não é mais

135
BOR]S KOSSOY

uma condição de sua gênese, como o fora no passado,


seu artefato não é mais uma etapa (torna-se material
enquanto reprodução, seja na pâgina dos periódicos, seja
em uma impressora de computador ou por meio de ou-
tros dispositivos). Na percepção das imagens houve, pois,
uma alteração substantiva, fruto de mudanças culturais
lastreadas em desenvolvimentos industriais e tecnológi-
cos. De qualquer modo, poderíamos dizer que os 'tempos
clássicos' da fotografia - o de sua geração em dado mo-
mento histórico (recorte espacial/interrupção temporal)
e o de sua representação (perpetuação da memória na
longa duração) - permanecem 'ilesos' na sua concepção.

A Euìdência Documental e as Construções de Realidades

A chamada evidência documental é o mais ardiloso


estratagema sobre o qual se apóia o sistemâ de represen-
tação fotogrâÍica.É a evidência documental que estabele-
ce, de imediato, seu vínculo material com o real. Se admi-
tirmos que a evidência comprova os tempos da fotografia,
ela não pode, entretânto, atestâr a veracidade daquilo que
se vê na imagem. No entanto, quando as técnicas e méto-
dos científicos de identifícação foram incorporados pela
polícia, já nas primeiras décadas do século xX, a fotogra-
fia reforçou o conceito tradicional de ela ser um 'testemu-
nho fidedigno', funcionando como prova do crime nas
perícias policiais. Sempre teve papel decisivo - particular-
mente nos tempos de repressão e autoritarismo -, no sen-
tido de identificar e condenar cidadãos que, por suas idéias

t36
OS TEMPOS DA FOTOGRAFTA

políticas, foram estigmatizados como elemenros perigosos,


"subversivos", desestabilizadores da ordem social6. Na
guerra franco-prussiana, em 187 1, afotografia encontrou
seu empÍego pioneiro enquanto instrumento de identifi-
cação. Os defensores da Comuna de Paris, retratados du-
Íante o breve período em que durou a resistência, foram
posterioÍmente identificados pela polícia, julgados e exe-
cutados. Foi também neste episódio que montagens foto-
gráficas'documentando' cenas de atrocidades perpetradas
pelos protagonistas da Comuna foram criadas e publi-
cadas, cenas que se referiam a fatos que, mais tarde, reve-
laram-se falsos, inventados. Para tanto, teriam sido empre-
gadas, na elaboração das montagens, fotografias de
indivíduos, tiradas anteriormente ao evento. Essa guerra
inaugura, pois, diferentes usos do testemunho fotográfico
enquanto evidência documentalT.
A evidência fotogrâÍica, de uma forma geral, pode
ser forjada de acordo com determinados interesses: da
polícia, da mídia, do Estado; e, especialmente) na chama-
da "fotografia documental", que, na sua generalidade e
ambigüidade, se presra a múltiplos usos. O objeto da re-
presentação pode ser expressivamente alterado em sua

Sobre o assunto, ver Sandra S. Phillips, Mark Haworth-Booth e Carol


Squiers, Polìce Pictures, The Photogaph as Euidence, San Francisco,
San Francisco Museum of ArtiChronicle Books, 1997.
7. Sobre o tema ver, entre outros, Gisele Freund, La Fotografìa como
Documento Social, Barcelonâ. Gustâvo Gili, 1976; Marie-Loup
Sougez, Historia de la Fcttografìa,5u ed., Madrid, Catedra, 1994; e
Naomi Rosenbhrm, A World Hìstory of Photographl, New york,
Abbeville, 1984.

t37
BORÌS KOSSOY

âparência de modo que a foto resultante nada mais tenha


em comum com o modelo. Outras farsas são arquiteta-
das, respaldadas no realismo do "testemunho" fotográfi-
co - e no alto grau de credibilidade de que a fotografia ê
detentora - e nos textos que acompanham os menciona-
dos testemunhos8.
É em função da (pseudo)imparcialidade da cãmara
que a fotografia se prestaria para legitimar certas "tradi-
ções inventadas". Segundo Hobsbawm, "por 'tradição
inventada' entende-se um conjunto de práticas, normal-
mente reguladas por regras tácita ou abertamente acei-
tas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a
inculcar certos valores e normas de comportamento atra-
vés da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado". Trata-se, contudo,
de uma "continuidade artificial" em relação ao passado,
posto que estamos falando em "tradições inventadas"e.
A evidência é o fundamento positivista sobre o qual
se estribam os processos de criação/construção de reali-

8. Em outro trabalho enfatizamos o papel que teve a fotografiâ enquân-


to testemunho ideologicamente construído com o objetivo de, a partir
do século XIX, criar e difundir uma ambígua imagem/conceito de
América Latina, que, sob o manto do exótico, era plena de preconcei-
tos. Era necessário expor as raízes racistas dos conceitos que se crista-
lizaram sobre a América Latina. Essa proposição foi desenvolvida no
ensaio do autor, "Photography in Latin America: The European
Experience and the Exotic Experience", em'Síendy l7atriss e Lois P.
Zamora, Image and Memory, Photography from Latin America 1866-
1994, Houston, University of Texas Press/FotoFest, pp. 1B-54.
9. Eric Hobsbawm e Terence Ranger, A Inuenção das Tradições,2u ed.,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1.997, p. 9.

138
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

dades - portanto de ficções - que regem os mecanismos


e,
mentais e ideológicos da construção da representação (pro-
dução) e da construção da inteÍpretação (recepção). As-
sim ganham força documental os mitos políticos, os este-
reótipos e os preconceitos raciais, religiosos, de classel0.
São ainda os mesmos processos que esclarecem, tam-
bém, como ocorreriam simulações iconográficas de ce-
nários, personagens e situações imaginárias, isto é, a ima-
gem funcionando como testemunho de algo que [não] se
passou no espaço e no tempo; onde não houve fnenhum]
referente concreto e sim um referente sem vida 'gerado' a
pârtir da segunda realidade: a da representação. Pode-se,
assim, construir verdades a partir de ficções11.
Diante do exposto, poderíamos falar da imagem en-
quanto Íepresentação do mundo e enquanto objeto do
mundo da representação. De um lado, a iconografia'verda-
de'; de outro, também a iconografia, porém acrescida de
componentes ficcionais, ou de outras verdades. A primeira
se refere a uma memória engendrada pela vida; a segunda
a uma memória in uitro, sintética, uma máscarâ sem ros-
to, sem um tempo histórico, independente da Natureza.

A Conseruação da Memória

O uso jornalístico, comercial, publicitário e editorial


da fotografi a fez com que os seus tempos se diluíssem em

10 O assunto foi expandido em Realidades e Fìcções na Trama Fotográ-


fìca, op. cit.
11. Idem.

t39
BORIS KOSSOY

sua harmonia, em seu ritmo. A partir dos anos de 1940,


intensificou-se o uso indiscriminado de imagens enquan-
to ilustÍações dos mais variados temas: natureza, cida-
des, transportes, turismo, indústria, comércio, moda,
miséria e conflitos sociais. Para atender a essa demanda,
formaram-se - num primeiro momento e em número cres-
cente - agências fotográficas especializadas e, mais tarde,
bancos de imagens, organizações que mântinham arqui-
vos de fotos dos mais diferentes temas, que podiam ser
rapidamente acessados e fornecidos a uma ampla cliente-
la formada por um largo espectro de revistas, agências de
publicidade, empresas de turismo etc. Novos bancos de
imagens, contendo significativos acervos de imagens his-
tóricas, têm sido adquiridos por instituições e vêm con-
centrando uma considerável massa documental. Qual será
o uso dessas imagens e que tipo de controle exercerão
essas instituições sobre a memória?
Devemos salientar aqui o uso indiscriminado de ima-
gens armazenadas nas geladeiras da memória - as agên-
cias de notícias, os bancos comerciais de imagens, os ar-
quivos dos periódicos, das instituições oficiais, dos
inúmeros sites da internet -, imagens essas prontas pâra
"ressuscitar", ao serem empregadas nos mais diferentes
contextos. Imagens sujeitas a intervenções cirúrgicas:
manipulações e adaptações de toda ordem esvaziam os
seus conteúdos históricos e simbólicos, como, também,
descompensam seus tempos formativos. Alteram seus sig-
nificados.
Quando as imagens do passado se desconectam de

I40
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

seus tempos intrínsecos, passamos a ter diante de nós


'próteses'fotográficas, cuja função é a de ilustrarem os
mais diversificados temas; imagens ilustrarivas que po_
dem, ou não, ter algum vínculo espacial/temporal com o
tema tratado no texto ao qual é aplicada. Trata-se de fic_
ções documentais: conteúdos imagéticos transferidos de
contexto, situação típica do processo de criaçãolconstru_
ção de realidades. Pensamos em imagens descontextuali-
zadas culturalmente, portanto simbolicamente.
Os antigos cenários, hoje irresistivelmente manipula_
dos, ressurgem em sedutoras estetizações: é a morte do
tempo histórico da criação, é a morte de sua representa-
ção.Íi, contudo, a atxoïa do tempo reciclado, ponto de
partida para o mundo das representações sintéticas.
Os fatos importam menos que â suâ representação.
Criam-se fatos para sua intensa repercussão midiática.
Os fatos pelos fatos, esses não mais se sustentam, numa
sociedade ávida por represenração e pela notícia,espetá-
culo. As representações desenvolverâm-se a tal ponto, que
atualmente prevalece, em especial nos meios eletrônicos,
a representação dos fatos em forma de clippings publici_
tários. É a vitória da mâscara fantasmática sobre o ser
original.

O Tempo Reciclado

O mundo das imagens é um mundo em si mesmo,


transcorre paralelo ao mundo reall numa outra dimen-
são... O mundo das imagens, da segunda realidade, segue

141
BORIS KOSSOY

'vivendo', independentemente dos referentes que as gerâ-


ram. e que não mais existem.
A realidade está nas imagens, não no mundo concre-
to, pois este é efêmero e aquela, perpérua. A realidade
das imagens ê a realidade da sombra, sem carne, sem san-
gue... A realidade das imagens é a da aparência do duplo,
dos corpos possuídos ou tomados do real, substitutos de
seus modelos em escala real, tridimensional; simulacros
que, no espâço e no tempo, passâm a ocupâr o seu papel
de vida eterna, posto que infinitos na duração. Representa-

ções vazias, plenas de aparência e de significados perdidos.


Quantas dessas imagens não poderiam retornar, di-
gamos ao 'convívio social'? Isto é, servirem de documen-
to, de identificação a seres (criaturas) que necessitam de
um passado, de uma memória, tais como os replicantes
de Blade Runner?12
Repentinamente, essas velhas imagens podem voltar
a ter umâ 'função na vida': representar uma família, rea-
tar-se umbilicalmente a um referente, alguém que neces-
site de identificação e de memórias, um fantasma, um
andróide, um clone, não importa. Essas representações
podem agora ressurgir ou ressuscitar, digamos assim,
numa nova'encârnação'.
Essas representações, embora envelhecidas em seu
artefato (resultado dos maus tratos a que foram submeti,
das durante muitos anos), podem ser rejuvenescidas gra-

12. PeÌícula dirigida por Ridley Scott (Burbank, Ca., !íarner Brorhers,
1982\.

t42
OS TËMPOS DA FOTOGRAFIA

ças a "tratamentos digitais" eficientes (como hoje se fa-


zem nas redações dos periódicos e nos laboratórios afins).
A partir de tais possibilidades, as imagens não mais esta-
rão congeladas no tempo, como se costumava dizer, mas
sim hibernando, devidamente formatadas e armazenadas
em computadores especiais, climatizados segundo as nor-
mas do fabricante, apenas aguardando por sua nova con-
dição de documentos/representações, porém já em outro
estágio de suas trajetórias: recicladas.
Com a reciclagem das imagens (clones-imagens), con-
trola-se, eficazmente, a memória. E também a história.
Trata-se das novas memórias, que remetem a histórias com
um novo marco zeÍo) a passagens de glórias e sucessos, de
hierarquias e obediência, de informações e deformações,
de silêncios e paisagens áridas. Paisagens solitárias de co-
gumelos gigantes que apreciamos através de torres de cris-
tal. Como em estufas ou laboratórios assépticos em meio
a desertos infinitos. São as perspectivas dos tempos som-
brios, tornados muito claros, de intensa luz.
Tempos reciclados estabelecem novos ciclos para ima-
gens sem identidade, re-elaboradas e re-interpretadas se-
gundo os mesmos processos de criação/construção de rea-
lidades: destino das imagens, produro das mentalidades.
Não obstante toda a sofisticação tecnológica, um elo do
passado ainda impera no espaço da representação: o ge-
nial código perspéctico, multissecular sisrema de repre-
sentação visual, prisão perpétua das imagens condena-
das à geometria e à ideologia da divina visão da pirâmide
renascentistâ.

143
O Relógio de Hiroshima: Reflexões sobre os
Diálogos e Silêncios das Imagensl

Se buscássemos uma razão para compreender o desenvolvi-


mento que, em diferentes campos da fotografia, a América Latina
assistiu nas úÌtimas décadas, poderíamos afirmar que houve, sem
dúvida, um fato gerador que detonou todo esse processo. Este fato
foi a realização, nesta mesma cidade do México, do Primeiro Coló-
quio Latino-americano de Fotografia, no ano de 1,978. Queria re-
gistrar aqui meu apreço a Pedro Meyer, que impulsionou esse pro-
cesso, e a todos os companheiros participantes daquele evento que,
hoje, já se faz histórico.
Ao longo desse período, tive a oportunidade de, neste país,
ministrar cursos, pârticipar de encontros, conferências e outrâs ativi-
dades. Fiz amigos queridos, muitos dos quais estão hoje aqui pre-
sentes, o que é, para mim, uma honra.
As reflexões que se seguem dedico a Don Manuel Alvarez Bra-
vo e a Mariana Yampolsky, a quem tive o privilégio de conhecer
pessoalmente.

1. Aula Magna proferida por ocasião do Ì Congreso de Imagen e Inves-


tigación Social, evento promovido pelo Instituto Mora, Cidade do
México, outubro de 2002. O presente texto foi publicado original-
mente em Reuista Brasileira de História,25(49):35-42, jan.-jun. 2005
(São Paulo, ANPUH; História e Manifestações Visuais).

145
BORÌS KOSSOY

Com a invenção da fotografia, inventou-se também,


de certa forma, a máquina do tempo. Não aquela dos
filmes de ficção científica, uma câmara repleta de inúme-
ros aparelhos estranhos onde os personagens necessita-
vam entrar, serem conectados a um emaÍanhado de fios
e, de repente, desaparecerem em meio a um denso véu de
fumaça, paÍa, a seguir, Íeãpaïecerem em algum outro lu-
gar e época. Refiro-me à máquina do tempo enquanto
máquina fotogrâfica e, especialmente, ao produto desses
aparelhos: as imagens. Com elas, viajamos no tempo, em
direção aos cenários e situações que nelas vemos repre-
sentadosl através de nossas lembranças, de nossa imagi-
nação, viajamos ao passado e vivemos por instantes essa
ilusão documental.
A câmara fotogrâfica e o relógio são insrrumentos
íntimos, auto-referentes. A câmaru fotogrâftca incorpora
o tempo do relógio pârâ seu funcionamento e se insere,
através de suas imagens, no Tempo enquanto contingên-
cia. Com a fotografra, descobriu-se que, embora ausente,
o objeto poderia ser (re)apresentado, eternamente. É ert.
o tempo da representação, que perpetua a memória na
longa duração. Com os ponteiros petrificados, temos a
memória sempre disponível; uma possibilidade consistenre
de recuperarmos o fato.
No dia seis de agosto de 1.945,uma segunda-feira, por
volta das B:15h da manhã, o tempo parou em Hiroshima.
Quando falamos da atrocidade que âcomereu a popula-

146
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

ção daquela cidade naquele dia, pensamos logo no clarão


de "mil sóis"; revemos a cena do imenso cogumelo, ima-
gem que se tornou símbolo da destruição em massa. Os
ponteiros do relógio de Hiroshima estacionaram no ins-
tante que marcou a destruição, a interrupção da vida.
Derreteu-se o relógio, desestruturou-se a matéria, sobrevi-
veu a memória do horror através de imagens fotográficas.
Se sentimos horror nas imagens da insanidade, das
guerrâs, da fome, da doença, sentimos, também, uma
desagradável sensação de impotência ao observaÍmos as
fotografias dos que já se foram; tomamos consciência de
que temos diante dos olhos testemunhos do tempo: cons-
tatamos mais uma vez que, independentemente de situa-
ção econômica ou classe social, todos temos nossos tem,
pos individuais, intransferíveis. Que mais nos revelam as
imagens da máquina do tempo?
As imagens revelam seu significado quando ultrapas-
sâmos sua barreira iconográfica; quando recuperamos as
histórias que, em sua forma fragmentária)ttazem implí-
citas. Através da fotografia aprendemos, recordamos, e
sempÍe criamos novas realidades. Imagens técnicas e ima-
gens mentâis interagem entre si e fluem ininterruptamente
num fascinante processo de críaçãolconstrução de reali-
dades - e de ficções. São essas as viagens da mente: nos-
sos "filmes" individuais, nossos sonhos, nossos segredos.
TaI é a dinâmica fascinante da fotografia, que as pessoâs,
em geral, julgam estáticas. Através da fotografia dialoga-
mos com o passado, somos os interlocutores das memó-
rias silenciosas que elas mantêm em suspensão.

147
BORIS KOSSOY

Podemos imaginar um diálogo entre as imagens e com


as imagens? Creio que podemos imaginar como o fenô-
meno ocorre. Não se trâta, obviamente, de um diálogo
convencional. Trata-se de um diálogo mudo, subliminar,
sensível e inteligente, que, diante de uma foto ou de um
conrunto de fotos, é gestado entre o nosso olhar e a nossâ
mente. Imagens técnicas, visuais (produtos da indústria e
da artesanía cultural) interagindo com nossâs imagens
mentais (originadas da nossa experiência do real e confi-
guradas em função de nosso repertório pessoal). Uma
comunicação que se estabelece diante da estaticidade das
imagens, editadas de maneiras singulares, convivendo nas
paredes de uma galeria, nas páginas de um livro, revista,
jornal, catálogo, de algum supoÍte ou veículo, enfim.
Se observarmos atentamente as páginas das publica-

ções, veremos como o recurso de se buscar umâ articula-


ção plástica entre duas ou mais imagens vizinhas - isto é,
um 'diálogo' estético entre elas - é antigo e, em geral,
pouco convincente, prejudicando os conteúdos temáticos
individuais. Trata-se de uma forma de fazer uma cerra
sugestão, um pretexto para situar fatos e coisas diferen-
tes, desconexas, â partir de imagens em sua superfície
parecidas; um'trocadilho' visual, nascido do aproveita-
mento de certas semelhanças iconográficas resultando,
com freqüência, num conjunto pobre, desnecessário. Não
há, praticamente, diálogo entre essas imagens assim or-
ganizadas.
Contudo nem sempre as soluções são assim vazias,
sem emoção. Refiro-me às montagens em que o diálogo

148
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

entÍe as imagens ocorre independente de suas mensagens.


Como fora uma comunicação particular entre elas, que
se

se estabelece por fatores formais, culturais, emocionais,


estéticos, ideológicos ou de outra ordem; uma ligação que
tem vida própria, auto-suficiente, cuio circuito se fecha
na medida em que alguns de nós as olhamos e intuímos
uma dada alteração da ordem natural das coisasl uma
percepção que, em geral, escapa à maioria das pessoas.
Temos então um choque: percebemos uma certâ conexão
ocorrendo entre as imagens, tal como são elaboradas em
sua edição, ou em nossas mentes? Ou ambas as coisas? O
certo é que essas conexões nos remetem a uma sensação
que ultrapassa os conteúdos temáticos e, portanto, as
mensagens individuais, levando-nos a refletir sobre algo
cuja presença pressentimos, mas que não está ali, fisica-
mente.
Nada em comum com o punctum de Barthes. Um
rosto em um retrato, voltado pâra outro Íosto, em outÍo
retrâto. Retratos de pessoas que jamais se conheceram
pessoalmente, retÍatos de pessoas que viveram em países
distantes e épocas diferentes reunidos, por alguma razão,
ou pelo acaso, ou pela intuição do editor/curador, numa
mesma parede ou página de um álbum ou revista. Porém
algo de comum existe entre as duas personagens, seja na
sua luz ou na composição, seja no seu conteúdo de cica-
trizes semelhantes, olhares apreensivos de uma para a
outra, planejados esteticamente no desenho da página real
ou virtual, convivendo em espaços-moradas contíguas,
lado a lado, ou afastadas, em diagonal, separadas por

t49
BORIS KOSSOY

textos, títulos e legendas, redefinidas - pela palavra - em


suas origens e histórias, porém arranjadas de forma que
os seres ou objetos que mantêm aprisionados nos seus
retângulos tumulares se acomodem e sigam se entreolhan-
do ao longo da eternidade. Candidamente, compreensi-
vamente, amorosamente, odiando-se por sua condição
sepulcral, interrompidas em seu fluir, prêmio infinito por
sua condição de segunda realidade.
Quando esse mundo se nos torna familiar, quando o
aceitamos enquanto meio de informação e emoção, de-
tectamos em certas imagens aquela sensação de déja-uu;
uma sensação que se repete e que nos é projetada interior-
mente pela nossa memória. Constatamos então uma re-
lação entre as imagens, algo de comum entre elas, certos
elementos que âs conectam. Algo ali, no interior da foto,
onde um detalhe remete ao objeto de outra foto do con-
junto; coisas diferentes, representações de representações
que, de repente, articulam-se e nos transportâm para fora
dali, para uma certa situação, em algum lugar, em outro
tempo, a um campo florido sem fim, a um sorriso suspenso
no ar, ou a uma imensa dor.
Trata-se de alguma coisa que existe apenas na nossa
imaginação e não na realidade? Apenas na nossa imagi-
nação? Não exatamente, posto que algo se passa na di-
mensão das imagens, no seu mundo próprio que é o da
representação: um mundo que também ê real, ou melhor,
torna-se real a partir do momento em que observamos o
conjunto ou edição através de nossos filtros individuais e
de nossas fantasias. É quando se estabelece o diálogo.

150
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

São mundos efêmeros, na medida em que criados pelas


mentes de certos receptores-espectadores; mundos ima-
teriais, emocionais, de curta duração.
Outros mundos criados/construídos, estes também
ficcionais, porém materiâis, servem de modelo pâra o
chamado mundo concreto. São as imagens-mundo que
certamente afetarão avida real, o nosso comportamento.
É o qne ocorre cotidianamente com as fotografias de pai-
sagens de paraísos tropicais, com as imagens do império
da moda, com os corpos-objetos de inúmeros donos, com
a fotografia publicitária, com outros objetos de desejo,
enfim. Imagens que, subliminar ou explicitamente, pe-
dem para ser imitadas, condição para ser consumidas,
além do universo da fantasia, na realidade material. Diá-
logo dirigido. Diariamente são criadas inúmeras outÍas
imagens-mundo, a partir dos fatos, e publicadas pela im-
prensâ escrita ou transmitidas por meios eletrônicos. Com
elas convivemos e dialogamos sempre, segundo as técni-
cas de diálogo estabelecidas pelos detentores da informa-
ção; são as imagens vinculadas ao mundo concreto, mas
que não raro nos pârecem ficcionais, pelo que represen-
tam. Incorporam-se nesse grupo, ainda, as imagens cria-
das em certo momento do passado, que revivem de quan-
do em quando. Trata-se das imagens contendo fragmentos
da história dos tempos, preservadas em bancos informa-
tizados, os frigoríficos da memória; imagens em eterna
hibernação, mas que são, por vezes, retomadas em rápi-
das golfadas de vida, recontextualizadas, dependendo da
necessidade editorial: imagens de arquivo. E depois, o

1.t 1
BORIS KOSSOY

silêncio definitivo. Com elas também dialogamos confor-


me os mesmos preceitos das anteriores.

O diálogo entre as imagens técnicas - que nos envol-


vem, nâs suas diferentes formas - e as imagens mentais é
ininterrupto e acompanha a cada um de nós ao longo de
nossas vidas, mesmo que não tenhamos consciência dis-
so. Formamos, assim, um baralho de iconografia infini-
ta, onde o real se confunde com a ficção; são essas as
cartâs do jogo que nutÍem nosso imaginário e reavivam
nossas memórias. Imagens externas da nossa experiência
individual, dos fatos contemporâneos, dos documentos
científicos, artísticos e históricos, e da ampla iconografia
da indústria cultural, alimentando nosso universo men-
tal e sendo por ele processadas continuamente, infatiga-
velmente: representações que produzem em nós novos
arquétipos, novos diálogos. Imagens, enfim - elaboradas
técnica, cultural, estética e ideologicamente -, gue mode-
lam nossa visão de mundo. Assim, os produtores de ima-
gens criam testemunhos que ainda não o foram, docu-
mentos que virão a ser, isto é, imagens preconcebidas.
Todos esses diálogos alimentam os processos de cria-
çãolconstrução de realidades que regem os mecanismos
de construção da representação, assim como os da cons-
tÍução da interpretação. E nós, enquanto intérpretes cien-
tíficos - apesar de buscarmos a necessária imparcialida-
de e objetividade nas nossas análises e inrerpÍerações -,
somos também sujeitos a imagens preconcebidas? Essa

152
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

pergunta fica no ar e cada um, de tempos em tempos,


deveria fazê-la para si mesmo.
A manipulação é inerente à consrrução da imagem fo_
tográfica. Isto é verdadeiro para a fotografia dos dias de
hoje, de base digital, como, também, para as imagens do
passado, elaboradas pela técnica do colódio úmido.
Nos
conteúdos dos documentos fotográficos se agregam e se
mesclam informações e interpretações: culturais, técnicas,
estéticas, ideológicas e de outras naturezas, que se acham
codificadas nas imagens. Essas interpretações e/ou inten_
ções são gestadas (antes, duÍante e após a produção da
representação) em função das finalidades a que se destinam
as fotografias, e refletem a mentalidade de seus criadores.
As fotografias seguem sendo interpretadas muito de_
pois de rcalízadas. Ao longo de suas trajetórias, a sua
significação muda, oscilando de significado de acordo com
a ideologia de cada momento e a mentalidade de seus
usuários. Muitas vezes são ocultadas ou omitidas por lon_
gos períodos. Desaparecem dos diálogos, permanecem
no
silêncio; ou então são adoradas nas sombras, nos sub-
mundos, cÍescem de importância com as mudanças polí
ticas, saem às ruas com os fanatismos, são louvadas pelas
massâs, outra vez.
Destino perverso esse, o da fotografia que, num dado
momento, registra a aparência dos fatos, das coisas,
das
histórias privadas e públicas, preservando, porranto,
a
memória desses fatos, e que, no momento seguinte, e
ao
longo de sua trajetória documental, corre o risco de sig_
nificar o que não foi.

153
BORIS KOSSOY

Quando diante de imagens de um passado recente ou


afastado no tempo, deposita-se na fotografia o crédito
secular (e não rârâs vezes positivista) de testemunho "fiel",
documento preciso daquele momento. Isto é mera pre-
tensão, devemos ir mais além enquanto intérpretes das
imagens.
Terreno pantanoso, ambiente pleno de ambigüidades.
A fotografia é sempre ambígua, seja ela analógica ou di-
gital, seja ela produto da realidade material ou virtual. A
iconografia é um excelente instrumento parâ inventariar,
mostrar, evidenciar, denunciar; mas, dependendo de seu
uso político-ideológico, funciona também como ferramen-
ta de propaganda. O documento fotográfico se presta à
denúncia social como também à publicidade; foi usado
pela antropologia física do século XIX (no contexto dos
preceitos positivistas, do darwinismo social e do colonia-
lismo), para documentar os seres primitivos das terras
'exóticas', como também no ateliê dos artistas-fotógrafos,
pata o registro desses mesmos seres posândo, enquanto
'modelos', diante de cenários europeus para coleções ico-
nográficas. Uma imagem-'testemunho' que, dependendo
das palavras que â rodeiam, transforma-se em imagem
'comprobatória' de pseudo-inferioridades raciais, sociais,
religiosas. Ao logo da história, temos visto como se cons-
troem esses estigmas. Assim construímos realidades - e,
portanto, ficções documentais.
Apesar das ambigüidades, reconstituir é preciso e
para tanto se faz necessário um sistemático e sensível
exercício: devemos aprender a nos comunicar com as

r54
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

imagens, dialogar com elas, decifrar seus códigos e res_


gatar suas realidades interiores, seus silêncios, isto é, seus
significados, o senfido - da vida e das idéias escondido
-
sob a aparência de suas realidades exteriores, iconográ_
ficas, a realidade das aparências, aquela que encantou
Narciso.
A imagem Íotogrâfica pressupõe uma certa organiza_
ção da aparência, ato que se insere no processo de cons_
trução da representação. Essa aparência organizada é a
base ideológica que rege a consrrução estética da repre_
sentação fotográhca.
A característica ontológica da fotografia é a de regis_
trar o aparcnte, elaborar a aparência, cumprindo assim o
seu papel de representação: assim se constroem realida_
des - a partir da aparência. A relação verdade/mentira na
imagem fotogrâfica é sempre ambígua e complexa. A fo_
tografia é uma forma de registro, não um aparelho
detector de verdades oÌr mentiras. A matéria-prima da
imagem fotográfica é a aparência - selecionada, ilumina_
da, maquilada, produzida, inventada, reinventada ob_
-
jeto da representação. A fotografia se refere, portanto,
à
realidade externa dos fatos, das fantasias e das coisas do
mundo e nos mostra uma determinada versão iconográfica
do objeto representado, uma outra realid ad,e: arealidade
fotogrâfica, isto é, uma segunda realidade.
Quando o objeto da representação é relacionado ao
comportâmento, percebemos o enorme abismo entre âpa_
rência e substância. A aparência corresponde à face visí-
vel das coisas e dos fenômenos. A substância, oculta por

15.t I iì ïèÍì i\ ,'!


BORIS KOSSOY

narrÍez4, não se captâ pela pretensâ objetividade da cã-


mara.Diz respeito à alma, é de ordem histórica, psicoló-
gica, ideológica, moral. A fotografia não é uma tomografia
da mente e do espírito, apenas um registro expressivo da
aparência.
Na fotografia, o fato primeiro, gerador, sempre e sem-
pre ficou paratrâs no tempo; torna-se passado no instan-
te em que o objeto foi interrompido, como os ponteiros
do relógio de Hiroshima, congelado pelo imenso calor,
paralisado, na sua duração, pela insanidade e eternizado
pelo registro fotográfico: é a morte que segue seu rumo
na vida documental. É o qu. sobrevive eternamente da-
quele instante interrompido: morte do objeto, vida da
representação.E apartir desses fragmentos de morte que
seorganizam os álbuns de retratos e as naturezas mortas,
para sempre. Assim se nutre o documento fotográfico, da
presença imaginária do modelo, revivido nos diálogos
saudosos do homem com suas memórias.
Diálogos e silêncios permeiam nossa relação com âs
imagens. O que elas dizem em suas iconografias nos é
relativamente inteligível. É por trâs da aparência,porém,
no ato de sua concepção e ao longo de sua trajetória,
naquilo que ela tem de oculto, em seus silêncios, que resi-
dem as histórias secretas dos objetos e dos seres, das pai-
sagens e dos caminhos. São os mistérios que encobrem o
significado dos conteúdos gravados nesses pequenos pe-
daços de papel. O próprio âpaÍente se carÍega de sentido
na medida em que recuperâmos o ausente da imagem.
Toda imagem fotográfica tem atrás de si uma histó-

156
OS TEMPOS DA FOTOGRAF]A

ria. Se, enquanto documento, ela é um instrumento de


fixação da memória e, neste sentido, mostra-nos como
eram os objetos, os rostos, as ruas, o mundo, ao mesmo
tempo, enquanto representação, ela nos faz imaginar os
segredos implícitos, os enigmas que esconde, o não mani-
festo, a emoção e a ideologia do fotógrafo.
Para Chartier, que busca a origem filológica do ter-
mo, âs representações significam a apresentação de algo
em substituição daquilo que se encontra ausente. penso
que a fotograÍia, em especial, não é mera substituição do
objeto ou do ser ausente. É necessário compreender que
a representação fotográfica pressupõe uma elaboração
na qual uma novâ realidade é criada em substitu íção ,, da-
quilo que se encontra ausente"l tal se dá ao longo de um
complexo processo de criação do fotógrafo. Assim nasce
a representação fotogrâfica que, em sua materialização
documental, registra a realidade exterior do objeto: sua
aparência. Nesse processo é obvio que a história do as-
sunto e da própria representação é ocultada: o ob;'eto, o
assunto é, assim, codificado formal e culturalmente se-
gundo uma construção técnica, estética, ideológica como
já foi dito antes. Esra é a realidade que romamos como
documento. O documento fotográfico não pode, portan-
to, ser compreendido independentemente do processo de
construção da representação em que foi gerado.
É este mundo do documento fotográfico (segunda
realidade, perene, eterna) que se confunde em nossas
mentes com o fato passado (primeira realidade, isto é, o
fato irreversível, volátil, efêmero) numa tensão perpétua,

r57
BORIS KOSSOY

seja pela nossa lembrançâ e envolvimento com o objeto


da representação, seja, ao contrário, pelo nosso desco-
nhecimento do mesmo, seja principalmente, pelo nosso
desejo, enquanto investigadores de, mediante o devido
exame crítico, situarmos corretamente o documento, de-
cifrarmos seu significado intrínseco, desvelarmos, enfim,
atrama e o contexto no qual se acha enredado, de forma
a produzirmos sentido e iluminarmos mais um microas-
pecto do universo de lacunas que pontilham no firma-
mento da história.
Se os ponteiros do relógio parâm simbolicamente com

â morte, esses mesmos ponteiros seguem girando com a


outra existência: a da imagem, testemunho da memória,
produto da máquina do tempo. O fato histórico foi; o
documento é, agora e sempre. Isto é válido para o docu-
mento escrito como também para o visual. Estes esforços
continuados, investigativos e reflexivos em desvendar o
que foi, e compreender o que é a imagem fotográfíca na-
quilo que ela tem de aparente e oculto, no que ela revela
e silencia, segue sendo um dos intrigantes desafios do
nosso ofício.

158
Castelos de Cartas, Castelos de Areia

Com a descoberta da fotografia, o homem conseguia,


finalmente, "captLttaÍ" a imagem fugidia dos objetos que
se formava na camera obscura. Nada mais perfeito: a
natureza "representando-se a si mesma',, sem a interven_
ção da mão do artista. E, justamente por isso, o resultado
exato, divino (ou diabólico?), uma absoluta fidelidade
na representaçãoi precisão matemática entre a imagem e
o objeto. Esta descoberta provocou verdadeira revolu_
ção nas artes do desenho, no conceito de representaçâo
visual e na percepção humana.
Não fosse o advento da fotografia, o século XIX cer_
tâmente não seria o mesmo; o mundo não seria o mesmo.
O que seriam dos cenários, personagens e fatos sem um
"espelho com memória,, para registrá-los? Diante da fo_
tografia o homem acreditava estâ! sempre, diante da ver_
dade. Com o surgimento da fotografia, uma sensação
desconhecida tomou conta das pessoas: a ilusão da posse
do ser ou da coisa fotografada.
Passados os ânos do retraro individual _ registrado

159
BORÌS KOSSOY

nos ateliês fotográficos com paisagens pintadas ao fundo,


ou então fotografias tomadas em ocasiões especiais, que,
por suâ força simbólica, se transformavam em imagens-
relicário -, passados os anos da documentação sacrificada
das paisagens, conflitos armados e dos fatos da história
realizada através das placas de colódio úmido, passadas
essas primeiras décadas da aventura da fotografía, a
tecnologia toÍnou possível a reprodução massiva da ima-
gem-matriz, a comunicação para a massa era, enfim, uma
realidade palpável. O retrato era agora coletivo e os ce-
nários eram de todos.

O VÍCIO DA IMAGEM: ILUSÀO DOCUMENTAL,


VERTIGEM DA MEMORIA

Nas pioneiras revistas do princípio do século xx, a


veiculação de matérias e anúncios publicitários ilustra-
dos fotograficamente representou uma verdadeira revo-
lução na história da comunicação. A fotografia nas pági-
nas das revistas ilustradas - e mais tarde nos jornais -
propiciou aos leitores a possibilidade coletiva, até então
inédita, de conhecer e manter-se continuamente informa-
do sobre cenários, personâgens e fatos das terras vizi-
nhas e distantes. Além disso, o estatuto de testemunho,
portanto de verdade, da fotografia, viu-se reforçado quan-
do multiplicado aos milhares, e aos milhões. É obvio que
esse fenômeno de massa deu margem â uma nova percep-

ção de mundo e da realidade. Um mundo portátil e ilus-


trado passou a constituir a referência mental do indiví

160
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

duo acerca do mundo real. A imagem técnica interagindo


com a-imagem mental instaura-se em ópio da imagina-
ção, fundamento de um processo de criação/construção
de realidades, território onde se cristalizam saborosas e
lúgubres ficções.
Com seu surgimento no inicio do século XX, as revis-
tas ilustradas inauguram uma mentalidade visual, um
pensamento visual (fotográfico), que condicionou o ho,
mem a compreender a realidade através de imagens; por
outro lado, viciaram o leitor no consumo de imagens fo-
tográficas de qualquer natureza e ele, sem sair de casa,
confortavelmente sentado em sua poltrona, viu-se infor-
mado sobre o mundo através de imagens muito bem im-
pressas; assim, pois, foi nas páginas das revistas que o
mundo pâssou a ser visto: um mundo ilustrado, verda-
deiro, comprovadamente verdadeiro - na aparência -,
posto que registrado pela fotografia.
É a Íotogtafia esta janela imagtnâria que se abre para
o passado e também para a cena contemporânea. Imagens
que abrigam múltiplos teatros, onde se desenrolam peças
de roteiros fragmentados diante de cenários descontínuos.
São as fotografias (meramente ilustrativas, avulsas ou
aplicadas na documentação de temas) esses intrigantes
registros visuais que Íecortam/paralisam a vida e as coi-
sas. Imagens estáticas que têm seqüência e que passam a
ter movimento na nossa imaginação, conformando nos-
so imaginário. Tal mundo-ilustração do reallimaginário
propiciou aconcretização de um antigo sonho de poder e
dominação: o sonho de multiplicar a informação e as

161
BORTS KOSSOY

idéias para milhões. É este o mundo ilustrado, invenção


genial de 1900, que ainda se manrém e que, apesar do
surpreendente progresso da mídia eletrônica, segue sen-
do saciado pela imagem fíxa da fotografia, ilusão docu-
mental, vertigem da memória.

O MUNDO DA REPRESENTAÇÃO

Cada vez mais o aprendizado natural e a experiência


que adquirimos no mundo real têm sido substituídos pela
representação. Imerso num mundo de imagens de dife-
rentes naturezâs, produzidas pela indústria cultural (in-
formação, notícia, lazer, enrretenimento, publicidade), o
espectador-receptor foi diminuindo gradualmente o seu
tempo de contato com â realidade concreta e substituin-
do-o, dramaticâmente, pela realidade do mundo das ima-
gens. Uma vez hipnotizado pelos diferentes meios de di-
vulgação eformas de transmissão da informação, e pelas
sofisticadas técnicas de persuasão, passam a prevalecer,
no imaginário coletivo, os conceitos (e preconceitos), as
posturas éticas, os valores morais, as convicções religio-
sas e políticas disseminadas pelos gigantescos impérios
da comunicação. Nesse processo se invertem os papéis. A
experiência sintética
sedutora, infiltrada nas mentes atra-
e
vés do mundo da representação, torna monótona, previ-
sível e tediosa a experiênci a da vida real. Diante da ilusão
da posse, o Íaz-de-conta faz sentido, qualquer que seja a
imagem, qualquer que seja o objeto do desejo: uma ilu-
são documental.

162
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA

O FIM DA EXPERIÊNCIA: A REGRA DO JOGO

As imagens formam um baralho de iconografia infi-


nita, são as cartas de nossas lembranças, nossas memórias,
álbum simbólico das trajetórias e existências individuais;
são cartâs que se repetem no jogo da vida, em naipes di-
ferentes. São muitas as cartas; sua extensão temporal,
contudo, é finita. São cartas marcadas, que nascem e de-
saparecem com cada um de nós: esta é a regta - do jogo
e da duração da história individual. Terminam as imagens,

findam as caÍtas e nos tornâmos memória para os ou-


tros. Resta a ausência que deixamos, os objetos, os livros,
os papéis intermináveis e, por vezes, fotografias. Imagens
que escondem significados perdidos, rememorações se-
cretas, representações que um dia despertaram emoções,
agora devassadas por olhos estranhos: iconografias efê-
meras, realidades sem vida, pÍestes â seÍem destruídas,
castelos de cartas, castelos de areia, que se mesclam à
poeira dos séculos. A imagem da foto, promessa de pere-
nidade, é agon a imagem do espelho, que se dissipa. Es-
pelhos que guardam memórias.

163
Sobre o Autor

Natural de São Paulo, dedicou-se desde jovem à forografia.


Em 1968 fundou o Estúdio Ampliart, atuando nas áreas de jorna-
lismo, publicidade e retrato, paralelamente a umâ carreira autoral.
Graduou-se Arquiteto peia Faculdade de Arquitetura da Universi-
dade Mackenzie (t965); Mesrre e Doutor em Ciências pela Escola
de Sociologia e Política de São Paulo (1977-1979). Em 2000 pres-
tou concuÍso para Livre-Docência na Escola de Comunicações e
Artes e, em 2002, parâ o cargo de Professor Titular. É professor do
Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, membro do
conselho consultivo da Coleção Pirelli-MASP de Fotografia, entre
outras instituições culturais. Foi diretor do Museu da Imagem e do
Som de São Paulo e do IDART - Divisão de Pesquisas do Centro
Cultural São PauÌo.
Trabalhos de sua criação, como fotógrafo, encontram-se re-
presentados nas coleções permânentes do Museum of Modern Art
(New York), George Eastman House (Rochester, Ny), Smithsonian
Institution (Washington, DC), Bibliothèque Nationale de paris, Mu-
seu de Arte de São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da USp,
entre outras instituições no Brasil e no exterior. Enquanto historia-
dor e pesquisador, tem sua obra mais conhecida voltada à investi-
gação da história da ÍotograÍia no Brasil e América Larina, aos

173
BORIS KOSSOY

estudos teóricos da expressão fotográfica e, à apÌicação da icono-


grafia como fonte de pesquisas nas Ciências Humanas. Suas pes-
quisas comprobatórias da descoberta independente da fotografia
por Hércules Florence, mereceram ampla repercussão internacional.
Além da obra fotográfica, histórica e teórica, é extensa sua
atividade enquanto curador e conferencista tendo participado com
freqüência em congressos especializados nâ América Latina, Esta-
dos Unidos e Europa, desde os meados dos anos 70.Ê ampla tam-
bém a bibliografia sobre a obra de Kossoy, publicada tanto no
Brasil como internacionalmente. Em 1984, recebeu do Ministério
da Cultura e da Comunicação da França, a distinção Cheualier de
I'Ordre des Arts et des Lettres pelo conjunto de sua obra.
Kossoy é autor de Vìagem pelo Fantástìco (Kosmos, 1971);
Hércwles Florence: A Descoberta Isolada da Potografìa no Brasil
(1. ed. Facuidade de Comunicação Social Anhembi, 1977;2. ed.
Editora Duas Cidades, 1980; 3. ed. Edusp, 2006); Origens e Ex'
pdnsão da Fotografia no Brasil (Funarte, 1980); Album de Photo-
graphias do Estado de São Paulo 1892: Estudo Crítìco (Kosmos /
CBPO, 1"984); O Olhar Europew: O Negro na lconografia Brasi-
leira do Século XIX (em co-autoria com Maria Luiza Tucci Carnei-
ro), (Edusp, 1994;2002);Sã.o Paulo, í900 (Kosmos / CBPO, 1988);
Fotografìa e História (1. ed. Ática, 1989;2. ed. Ateliê Editorial,
200L); Realidades e Ficções na Trama Fotográfica (Ateliê Editorial,
1999 ; 2000: 2002) ; D icionório Histórico-F otográfico Brasileiro.
Fotógrafos e Ofício da Fotografia no Brasil (1833-1910) (Instituto
Moreira Sailes, 2002); A Imprensa Confiscada pelo Deops 1924-
1954 (org. em co-autoria com Maria Luiza Tucci Carneiro), (Ate-
liê Editorial / Arquivo do Estado de S. Paulo / Imprensa Oficial,
2003); Os Tempos da Fotografìa: O Efêmero e o Perpétuo (Ateliê
Editorial, 2007).

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