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A Importância da Fotografia para a Preservação da

Memória
Leonardo Cury Maroun Ciannella *

A fotografia é basicamente uma extensão de nossos olhos, uma técnica que apresenta a realidade que,
pela sua capacidade de definição, se expressa com características próprias. A fotografia é um índice do real,
capaz de marcar uma determinada ocasião. Graças à fotografia, torna-se possível assimilarem-se cenários,
eventos, fatos com muito mais precisão e abrangência do que através da memória escrita.
A invenção da fotografia nota-se que preenche uma grande lacuna, surgindo como parte de um
grande processo de transformação econômica, cultural e social da Europa, assim como do resto do mundo : a
Revolução Industrial. Tal procedimento viria influenciar completamente os rumos da história. Ocorre uma
nova possibilidade de inovação, conhecimento e registro. Um instrumento de apoio à humanidade. Diante de
tal possibilidade de expressão, seu uso se alargou, passando de uma coqueluche nos meios científicos e
aristocráticos para um boom mundial, mais particularmente nos centros europeus e nos EUA,
transformando-se até em um meio de equiparação social, onde pessoas de classes mais abastadas podiam
registrar seus desejos de ascensão social contando com o apoio de um estúdio fotográfico com cenário
montado, onde o fotógrafo era encarregado de fixar aquele instante para sempre.
A fotografia propiciou, assim como outros meios de comunicação, um grande processo de
globalização. Monumentos, pessoas, costumes, mitos, cerimônias religiosas, fatos sociais e políticos foram
documentados pelas máquinas fotográficas de todo o mundo. Os retratos se tornaram a maior febre do século
XIX, dividindo-se em vários formatos e processos. O homem então pôde trocar figurinhas, isto é, conhecer
outras realidades que não lhe eram comuns, até então transmitidas por quadros, livros e imprensa escrita.
Logo uma gama infindável de detalhes passaram a ser conhecidos através da apresentação fotográfica.
A fotografia tem o poder de “congelar” um determinado fato, transformando-o em memória, pela
modalidade de seu registro. A vida continua, mas aquele instante retratado pela ação do fotógrafo , não
importando a sua intenção ,está “congelado”, imortalizado. Um micro universo de espaço-tempo passa a
ganhar outra dimensão.
Verifica-se então que toda a imagem fotográfica obtida desde a sua invenção tem auxiliado no papel
da preservação da memória, atuando no campo das percepções visuais e das representações mentais. Cedo
estas imagens transformam-se em documentos, capazes de despertar e denunciar de maneira crua e
verdadeira uma determinada realidade, construindo memória. Seu conteúdo é capaz de provocar ódio, raiva,
nostalgia, amor, sentimentos os mais variados, ou simples informações para pessoas que olham com olhos
de observação científica, de desprovidos sentimentos em relação à fotografia em questão.
É de surpreender o descaso com que o documento fotográfico é tratado, onde a ínfima parte de suas
potencialidades foram exploradas. Segundo Kossoy:
“As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descobertas que promete frutos na
medida em que se tentar sistematizar suas informações, estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e
análise para a decifração de seus conteúdos e, por conseqüência, da realidade que os originou”.(1989:20).
A partir do conteúdo que possuem, as fotografias tornam-se importantes para estudos históricos
respectivos às mais diferentes áreas do conhecimento, como por exemplo : antropologia, etnologia,
arqueologia, história, urbanismo, geografia urbana, ecologia e outros ramos do saber, representando um
meio de apreensão da cena passada ou do que corre risco de desaparecer.
Os museus brasileiros, assim como os demais congêneres do mundo não vêem a fotografia como
documento de real importância para a preservação do passado. O historiador Boris Kossoy afirma que a
fotografia ainda não ganhou o status de peça de acervo (no mesmo nível dos demais objetos encontrados nos
museus), assim como o status de documento (dignificando no estado tradicional o documento escrito e suas
derivações). Afirma ainda que sua relevância não foi percebida e que as inúmeras informações contidas em
seu conteúdo não têm sido empregadas no trabalho de pesquisa histórica.
Para Kossoy, existe um preconceito quanto a sua utilização como registro e fonte histórica, o que
atribui a duas razões :
.Aprisionamento inerente à tradição escrita como forma de transmissão do saber.
.Resistência em se aceitar a informação quando não é transmitida segundo um sistema codificado de
signos, segundo os cânones tradicionais da comunicação escrita.
Assim como nos museus e instituições de memória ou congêneres, cada pessoa possui registros
fotográficos próprios e pessoais, que não necessariamente precisam ser de um passado longínquo. Cabe a
estas pessoas um processo de conscientização sobre seus respectivos acervos , fazendo com que seus registros
permaneçam e possam por ventura ser úteis a terceiros, no presente ou em tempos futuros.
A fotografia como qualquer outra fonte de registro, por si só não constitue uma fonte de informação
precisa e completa; isoladamente é como um ínfimo fragmento da história, precisando interagir com outros
complementos ou fontes, quer sejam escritas, quer sejam visuais ou de outras naturezas para uma verdadeira
apreciação de seus registros. É sabido que “uma imagem vale por mil palavras”, mas esta frase só faz sentido
se de fato o intérprete conseguir extrair a maior quantidade de palavras ( no sentido de significado )
ocultadas na fotografia, não apenas as ligadas ao primeiro contato visual. A fotografia gravou com fidelidade
uma parcela da realidade que se situava no campo da objetiva.
Quando observamos uma fotografia, devemos ter a consciência de que a interpretação do real será
forçosamente influenciada por uma ou várias interpretações anteriores. Apesar da ampla potência de
informações contidas em uma imagem (ela não substitui a realidade como um todo, tal como se deu no
passado), ela apenas traz informações visuais de um fragmento do real selecionado e “organizado”, segundo
Kossoy :
“ A fotografia ou um conjunto de fotografias não constituem fatos passados. A fotografia apenas
congela, nos limites do plano e imagem, fragmentos desconectados de um instante de viradas pessoais,
coisas, naturezas, paisagens urbana e rural. Cabe ao intérprete compreender a imagem fotográfica
enquanto informação descontínua da vida passada, na qual se pretende mergulhar” (1989 : 78).
Com a comunhão entre as informações contidas na imagem fotográfica, com o conhecimento dos
contextos político-econômicos, sociais e costumes, conseguir-se-á então recuperar pequenas histórias
implícitas nos conteúdos destas imagens, possibilitando reviver o assunto registrado em um plano
imaginário ou, quem sabe, virtual.
Existe a necessidade de uma tomada de consciência sobre a questão preservacionista dos acervos
fotográficos - cabe ao museólogo, ou respectivo especialista, destinar os devidos acervos as seus devidos
lugares, de acordo com o nível de importância. Porém surge uma questão, para onde estes acervos devem se
dirigir ? Museus? Arquivos ? Bibliotecas ?.
Os acervos fotográficos se destinam a vários locais (de preferência instituições que possuam
compatibilidade com o acervo). Porém por razões de conservação (micro clima estabilizado, manuseio
indevido, transporte inadequado) não devem ser remanejados dos locais onde já se encontram, importando
somente a real salvaguarda destes acervos, através de condições favoráveis de conservação. Mesmo os
museus devem ter em suas instalações arquivos-reserva onde os documentos possam ficar devidamente
acondicionados. É recomendada uma maior comunicação entre as instituições referente ao momento em que
as doações são encaminhadas, para que os acervos se compatibilizem com os seus locais de destino.
Certos de que soluções ideais estão desajustadas da nossa realidade, deveríamos pensar em uma
política de aquisição eficiente, onde a relação custo x benefício (verba necessária para fornecer suporte de
preservação necessário ao acervo x contribuição ao público ao qual o acervo está destinado), juntamente com
o remanejamento de algumas peças que por ventura possam ser melhor tratadas e utilizadas em outras
instituições, impedindo a degradação destes. Mesmo com a atual conjuntura política, concluímos que o custo
da ação preservacionista influi na política de aquisição, mais acentuadamente nas coleções fotográficas, dada
a vinculação do homem ao sistema codificado de signos (escrita) .
A fotografia sofreu uma espécie de esvaziamento de seus significados e de sua importância, devido ao
fotoamadorismo, pela qual a própria vulgarização da imagem (embora cada imagem possua um significado
oculto, passível de ser extraído) acarretou a contribuição para uma maior discriminação.
Ligado a isto, os museus hesitam em expor acervos fotográficos com freqüência. Mesmo que a
fotografia possua um número infindável de códigos subentendidos em suas imagens, suas informações
preliminares acabam por definir muito facilmente uma orientação de leitura direcionando os olhares do
público para a exposição. O que, para alguns, não seria desejável.
Mesmo que a nível amadorístico, a fotografia tem o poder do registro, isto é, de fixar um determinado
momento do espaço-tempo em uma imagem, guardando características específicas, como qualquer outra
espécie de documento. Por conseguinte, o registro é feito sempre de forma consciente, pois o homem, através
do instinto , possui o sentimento de preservação. Logo, ele deseja preservar em um suporte uma certa cena
que lhe causou alguma impressão. Este registro é então feito de forma consciente, tornando-se necessária
toda uma atenção para com as fotografias, principalmente as familiares, partindo do pressuposto que estas
imagens podem contribuir para a preservação da identidade cultural do país, e que poderão por ventura ser
anexadas às coleções institucionais, chegando a ser entendida como uma espécie de conservação preventiva.

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* Leonardo Ciannella é Bacharéu em Museologia, Conservador, Restaurador e membro da ABRACOR


Texto oriundo da Monografia Apresentada na Conclusão de Bacharelado em Museologia na UNI-RIO. A integra desta se
encontra à disposição dos associados na sede da ABRACOR,.

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