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Edward Lopes
DISCURSO, TEXTO E SIGNIFICAÇÃO
uma teoria do interpretante
Edward Lopes
EDITORA CULTRIX
SECRETARIA DA CULTURA,
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
FUNDAMENTOS DA LII\JGOlSTICA
CONTEMPORANEA -
POESIA E REALIDADE** -
Moisés
SEMANTICA ESTRUTURAL
Greimas
ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA
Roland Barthes
PRINCíPIOS DE SEMANTICA
LINGüfSTICA (DIZER E l'óJI!J·,JJilZJ:;l!
Oswald Ducrot
INICIJ~ÇA,O
METóDICA
GERATIVA - Cbristian
LINGüíSTICA E COMUNH:AÇ:AO *
Roman Takobs(m
na
DISCURSO, TEXTO E SIGNIFICAÇÃO
Edward.
L851d texto e : uma teoria do intert)re-
tante / Edward Lopes. - Paulo : Cultrix : Secretaria
da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo,
1978.
78-0266 CDD-410
·412
DISCURSO,
TEXTO E
SIGNIFICAÇÃO
uma teoria do interpretante
EDITORA CULTRI
SÃO PAULO
SECRETARIA DA CULTURA,
TECNOLOGIA DO ESTADO DE SÃO PAULO
MCMLXXVIII
Direitos Reservados
EDITORA CULTRIX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 São ;Paulo, SP
Impresso no Brasil
Prínted in Brazil
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
PRIMEIRA PARTE
O Quadrado Semiótico como Espaço Tópico da Leitura 13
A Organização do "Corpus" 16
A Localização de Isotopias na Dimensão Actancial
Não-Humana 19
A Isotopia Temporal Prática e o Arcabouço Narrativo 19
Homologação Intradiscursiva da Leitura 20
Homologação Extradiscursiva da Leitura Efetuada 21
A Isotopia Espacial 24
A Isomorfia Exterioridade : Interioridade :: Espaço : 25
O Espaço e o Tempo Cosmológicos. O Espaço
e o Tempo Noológicos 30
Utilização dos Interpretantes 33
Interpretação de "Baixar" pelo Interpretante do Código.
A Função como Expressão Mínima do Arcabouço
Narrativo 38
lnterr>ret:aç~io
de "Baixar" pelo Interpretante do Contexto 40
Interpretação de 'Baixar' pelo Interpretante ld•eológJ.co.
A Constituição Visual de um Signo 41
A Configuração como Reinterpretação de uma Interpretação 45
O Fazer Narrativo do Ator "Luz Crepuscular" 49
Defmição Formal dos Mediadores e do Percurso Narrativo 52
O Mecanismo da Intertextualidaqe 53
As Isotopias Funcionais em Fraga e Sombra 59
1
que, outras vezes, acabaram por sugerir, indutivamen te, uma
correção à própria teoria.
Mas, seria um grave equívoco supor que se pretenda for-
necer, aqui, um modelo de leitura para o discurso poético;
nada mais afastado das nossas preocupações. De fato, a es-
colha do poema obedeceu a uma série de injunções, algumas
obscuras - por que preferimos, em certos momentos, a poesia,
e a poesia de tal ou qual autor e não de outro, à prosa? -,
outras mais ou menos claras - o caráter "compacto" do .dis-
curso, uma maior familiaridade com esse soneto em particular
-, mas entre elas não se conta, certamente, nenhum desejo
de examinar as características especificamente poéticas do dis-
curso, coisa que acabaria por imprimir outros rumos ao nosso
trabalho. ·''Estamos convencidos de que o discurso poético so-
brepõe, à estruturação da relação extradiscursiva que une o
significante ao significado para organizar os "signos da prosa",
uma típica estruturação dos "signos da poesia", mercê do
engendrame nto de uma relação intrandiscursiva entre o plano
de expressão "anterior" e o plano de expressão "posterior",
para o efeito de criar, no eixo sintagmático do poema, uma
isomorfia interna, responsável pelo surgimento dos elementos
poéticos (rima, aliteração, metro, etc.); a recodificação seg-
mental de elementos como a pausa, o acento, a entonação,
etc., que o código lingüístico já codificou extra-segmental-
mente e que subjaz à métrica, por exemplo, constitui um con-
junto de traços distintivos que estabelecem as estruturas dife-
renciais da "prosa" e da "poesia". Acreditamos que, se, me-
diante o recurso à abstração, neutralizarmos a pertinência de
tais conjuntos diferenciais, então as subclasses do discurso
em prosa e do discurso poético possam ser reduzidas à con-
dição mais elementar de uma única classe que as domina, a
dos discursos, simplesmente, sem adjetivos; e é assim, despo-
jado de suas marcas tipicamente poéticas, mantendo, por isso
mesmo, intocadas as características matriciais comuns a qual-
quer discurso, que o soneto Fraga e Sombra vai nos inte-
ressar aqui.
2
no entanto, é costume justificar nas "Introduções", através da
invocação do seu caráter de postulados epistemológicos. Via
de regra, as teorias semânticas se assentam implicitamente em
um pequeno elenco de postulqdos não provados, entre os quais
os miiis comumente utilizezdos afirmam (a) a sensatez da men-
sagem, (b) o caráter oculto do sentido, e, não obstante isso,
(c) a inteligibilidade dele.
O primeiro postulado, o da
afirma que o discurso tem um sentido.
asserção não é para ser entendida ao pé
o discurso contivesse, realmente, algum sentido iman1mte,
haveria necessidade de nenhuma interpretação.
3
um envergonhado desejo de dominação. Como diz Humpty
Dumpty a Alice, "a questão não é tanto saber o que é que as
palavras querem dizer, mas, sim, saber quem é que manda".
Supomos que uma teoria semântica que se dedicasse a
observar, atentamente, o que é que as pessoas fazem com as
palavras quando se comunicam com outras pessoas, desembo-
caria, fatalmente, em uma teoria da ideologia, em cujo âmbito
se esclareceria o que é que as pessoas fazem com outras pes-
soas quando se utilizam de palavras. Analisados, um a um,
todos os modos de ·dominação que o homem inventou ao longo
dos séculos para relacionar-se com o seu próximo, nenhum é
mais eficiente do que o da manipulação dos sentidos. Aquele
que manipula os sentidos do discurso transforma-se no árbitro
todo-poderoso da comunidade para a qual define o que venha
a ser valor e antivalor; é ele quem assinala os objetivos a
serem perseguidos pelo grupo, dita as regras de comporta-
mento que hão de dirigir a ação singular dos indivíduos na
tentativa de realização de seus valores, pune e recompensa.
Pois como os mitos de sempre demonstraram, só o que sabe
quer, só o que sabe pode, só o que sabe faz.
Os antigos resolveram expeditamente o problema de saber
a quem atribuir o privilégio da interpretação. Considerando
que o discurso é o1ljfto d:f!~qY:_l!_?~~-ue o produz, atrib'L!ir_qm::no
invariavelmen!!'L!!Q <!~~ti~l!<!9t:,c:lg_m~!!êll~ill· Eles enunciavam,
assim, o axioma do terceiro postulado a que fizemos refe-
rência, o da inteligibilidade do sentido, jegundo o qual se
reconheceria no "autor" do discurso a única "autoridade" (o
autor é o titular da autoridade) para dizer o que é que seu:
discurso significa. A locação da autoria do discurso fazia-se
acompanhar, então, de uma espécie de sublocação de "autoria
do texto", pois que só ao produtor da men8agem era reconhe-
cida a competência necessária para definir, de um lado, o
que seu discurso queria dizer, ou o que ele podia dizer, e,
por outro lado, o que ele, efetivamente, dizia. Diante de
interpretações indesejáveis, feitas por um destinatário, o desti-
nador da mensagem poderia sempre atribuir o subentendido à
malevolente inépcia do ouvinte, qperando, desse modo, a des.-
qualifícação do subentendido para requalificá-lo de mal-enten-
dido. O dado da multissígnificação do discurso estava, então
- e ainda está, para aqueles que níSS()acreditam -:, a ser-·
4
viço de um privilégio da significação que é a camuflagem
· do privilégio do mando de uma auctoritas única e indiscutível.
Um dos maiores serviços prestados pela Lingüística à ciên-
cia moderna foi, certamente, o de ter contribuído tão podero-
samente para modificar essa situação, ao insistir no fato de
que a semântica deve se preocupar com o sentido do discurso
tal como ele se deixa decodificar no interior do código que
serviu para a sua codificação. O desenvolvimento do conceitó .
de função metalingüística permitiu compreender o sentido
como uma propriedade do código, não de uma pessoa, e po&-
sibilitou, em conseqüência, na medida em que os· códigos são
bens coletivos, possuídos, igualmente, pelo destinador e pelo
destinatário da mensagem, dlinunciar o monopólio do sentido
que era exercido pelo sujeito da enunciação. Sabe-se, hoje,
que se um diséurso admite n sentidos, eles podem ser redu-
zidos, todos, em um nível superior, a um meta-sentido que os
reabsorva conjuntamente, estando eles, portanto, hierarqui-
zados por relações de dominação intradiscursiva.
A atual recolocação do velho tema da plurissignificação
representa, sem dúvida, um ganho; o "sentido ideológico", en-
quanto instância definitiva do processo de significação, é enca-
rado, agora, como um nível heterodiscursivo, cujo estatuto é
semiológico e cuja declaração deixou de ser uma variável de-
pendente do intérprete para ser, enquanto propriedade dos
códigos sociais, uma variáver dependente do interpretante;
Pois afirmar que o discurso tem uma pluralidade de textos
equivale a invocar uma teoria no interior da qual esteja pos-
tulada a possibilidade inversa, segundo a qual o discurso con-
tenha, como conjunto-universo X, uma pluralidade de dis:r-
cursos (os subconjuntos de X: X 1, X 2 •• • Xn), cada um dos quais
dará origem a um texto. Isto importa em dizer que a unidade
semântica tem um plano de expressão que assume, a nível da
leitura, dimensões muito variáveis, que vão do zero (nenhum
significante, caso do morfema zero da gramática) à totalidade .
dos elementos de expressão encerrados na mensagem - caso
em que o discurso todo é normalizado para o efeito de pro-
duzir uma única ísotopia -. Daí que ao mesmo plano de
expressão correspondam não só vários significados, mas, tam-
bém, vários significantes, cada um dos quais se extrai a partir
de uma diferente partição da cadeia contínua do plano de.
5
expressão. É a partir dessa multiarticulação de vários signi-
ficantes sobrepostos no mesmo plano de expressão com vários
significados que se pode explicar o caso, particularmente exem-
plar, do anagramatismo; assim, o verso "no mar maravilhoso,
amargo" (Cruz e Souza) contém um único plano de expressão
jno'marmaravi' À,oza'marguj que se deixa segmentar em vários
significantes /mar/ "mar" (repetido três vezes, em mar, mara-
vilhoso, amargo) e jamarj"amar" (sobreposto a amargo) que,
como morfemas descontínuos incrustados no continuum linear
do verso, dão origem a um discurso figurativo em que os signos
mar e amar dão ensejo à leitura simultânea de duas isotopias
e autorizam, portanto, a convivência, em um discurso X, de
dois "subdiscursos", X1 e X2, cada um dos quais se corresponde
com um texto (X 1 = o texto refere-se à isotopia do "mar"; X 2
- o texto refere-se à isotopia do "amar"),
É isso que nos autoriza a definir o _discurso como o~o
gas semios§L virtuais. Numa . pri~ira colomçiio (a ser,· em
seguida, matizada), o discurso aparece como O~!f!§'!tl!!!E.Q.c!o
fazer do destinador. Em conseqüência, por ~ entendere-
mos o espaço da semiose realizada. À nrimeiraiiill.aLJ.ambém,
o te.~!PJ!:?:eCf!!.. ~comq_.!Lresulfado.f1Qjg,_w...JJJL~~tin&Jário.,... ao
ref{lzerL."!:f!:_]ei~ura, __C:LLa.Z:E.r..tJ-o ~.rJestinador. Por cl;u:a, enfim,
enten<Ieremos o espaço -ºl!.~mçi~:qªL.Yll~~!!!f.i~ªçªQ~.Ql.l_seia,
a~l2I>.ia da tra~sformação_<:lit1> ~('lmioses~y!!!!!ªJª··º'º cH~çmso
nas semioses realizadas d~..JJ.m_textoie, depois, em outro texto,
e assim sucessivamente, num processo de ressemiologizaçãO
sempre renovado). A Óbra é, destartg, um nroduto _§_oci_qJ...JL
da colabora ão elli!f!.gfuer di§_cursivq_ifO:.i!?§Linqdor
e tinatário ..QQ'!!lQC!Jldó, ambPS,.Q.a.utor
da .Qh!:!!_ como eS§!!_ "sujf!.ito p_lur.fl:J':....93:1:!!_~_"!a expr~~são_!J!!..J::.:.
Goldmann, o autor de quaJt:J!!:..€.!.!1-.X.âo_~SE.C:i{l.f:-
A obra encerra uma escritura que a manifesta como algo
sensível no modo significante e uma leitura que a manifesta
como algo inteligível (mas não sensível), no modo significado.
Ela se organiza pela escolha de elementos combináveis que,
no interior de um código de significantes, têm a função de .
denominar sentidos que se localizam em outro código (o có-
digo dos significados); mas uma obra s6 está a:ca]Jada lill.ª.T!do
~·lida, quer dizer, quando é reoj_ganizqdfLmJJJiiante.JL..e~.alha
6
~ elementos que,. no. interior de '!l!!'!.~~2._c!!K~~.<!~-~!~!f.i..c~c!()s,
têQLAÍ:\!!1-Q~~~Ui~fJ!ÜL~.Q~ . !).Ql!I,~S.. ~9.1:!~ . . . ~E:l......E:lJ:lC.Q!l.~!al!li]<? .....C.Ó·
digQ de significante!?.· Um elemento ideológico, a relação, que
é o produto das convenções de uma comunidade, tem a fun-
ção de correlacionar esses dois códigos de modo a estabelecer
uma dupla implicação entre um elemento significante e um
elemento significado. 1t a relação, portanto (um elemento ideo-
lógico), que engendra a semiose intrassígnica, possibilitando.
ao significante denominar um sentido, e ao significado definir
uma denominação.
Um mesmo ator figurativo é o operador da semiose, em
um nível paradigmátíco. Esse· ator aparece, no domínio noo-
]ógico interoceptivo - na mente dos falantes de uma língua
~ sob o aspecto da competência, assumindo, no domínio cos-
mológica exteroceptivo, o aspecto de um dicionário da língua
(mais uma gramática). A competência dos falantes pode ser
vista, então, como uma espécie de dicionário (gramática) me-
morizado.
No ato da escritura, a competência funciona como um
dicionário de palavras cruzadas, traduzindo conjuntos de signi-
ficados em conjuntos de significantes; no ato da leitura, porém,
a competência executa a operação inversa, convertendo signifi-
cantes em significados. Uma obra manifesta-se, assim, sob o
seu aspecto significante, como um discurso que, ao se explici-
tar, implicita, ao mesmo tempo, o signific;ado para os virtuais
textos que dela se possam extrair.
Entre um discurso e o texto que lhe corresponde (co-res-
ponde), instala-se um jogo dialógico· de perguntas e respostas.
Sendo da ordem da competência, o discurso propõe perguntas
acerca dos sentidos dos nomes que fornece: ele é, mais, um
querer dizer, um poder dizer, um saber dizer, em busca de
um dizer, a solução que só lhe pode ser atribuída por um texto.
Este é da ordem da performance, um dizer: o texto d'
que l:l discurso guer dizer e._ª§sim_ fa~~!!do~s~qmJ215ltaa
7
de um discurso, propiciando a passagem de um não-saber a
um saber; de outro lado, esse: discurso (co-)responde à inter::
pretação do texto, reabsorvendo-a como um saber ou rejei-
tando-a como um não-saber, um parecer saber, etc.; assim,
entre as qualificações que compõem a competência conatural
ao discurso está a de poder dizer (outro sentido).
Qs mecanismos pelos quais a, discurso controla a vere-
dicção do ,sentido que lhe foi atribuído por um texto, acei-
tando-a ou não, demonstra duas coisas:
(a) que o teste da verdade de um sentido deve ser praticado
através de um retorno da interpretação ao discurso que
ela pretenda interpretar, ou seja, a veredicção é da ordem
intradiscursiva, não extradiscursiva;
(b) que se o texto se pensa prospectivamente, a partir de um
macrodiscurso X, os microdiscursos X1, X2 ... Xm con-
tidos em X, se pensam retrospectivamente, a partir dos
textos Xl, x2 . .. Xn, que os .discursos xl, x2 ... Xm estão en~
carregados de referendar.
8
Essa propriedade da reinserção de um discurso já-inter-
pretado no interior de outro discurso a interpretar está inti-
mamente relacionada com o problema da leitura interdíscur-
siva (ou intertextual), proporcionada pelo interpretante ideo-
lógico. Pois se a leitura principia com um primeiro discurso
que parece ser um texto, e culmina na produção de um texto
que, ao se declarar, parece ser um segundo discurso, isso se
deve ao fato de que o texto que parece ser outro discurso é, .
na realidade, o discurso do "outro", da sociedade que instaurou
o dicionário em que se codifica todo o saber de uma língua,
quer como um repertório dos "sentidos lingüísticos" dos nomes
utilizados pelo grupo, quer como um repertório ideológico que
fixa o "sentido pragmático" dos sentidos lingüísticos de uma
língua: desde o momento em que falo e não invento as pa-
lavras que falo, repito as palavras do outro.
Nem é por outra razão que o texto produzido por atores
individuais aparece como a projeção do fazer da coletividade,
em cujo seio cada discurso individual se deixa decodificar
tanto nos seus· valores lingüfsticos quanto nos seus valores
pragmáticos. Assim, se do ponto de vista lingüístico, o dis-
curso é um objeto semiótico utilizado para dizer alguma coisa,
do ponto de vista pragmático ele é um objeto prático utili-
zado para fazer alguma coisa. Criar um antagonismo ou uma
solidariedade entre os comunicantes (função fática), criar uma
suposta situação de comunicação (história) no interior de uma
verdadeira (discurso), ou vice-versa, mais do que modos de
falar são modos de agir, de uma pessoa agir sobre outra pes-
soa, ou, mais profundamente, de o grupo agir sobre os indi-
víduos que o compõem.
O fato de que duas pessoas só se comuniquem - só se
tornem "semelhantes" - no interior da mesma língua, põe à
mostra o jogo de espelhos em que se arma a situação comu-
nicativa, dentro da qual uma ideologia coisifica os comuni-
cantes, instrumentalizando-os para poder exprimir-se através
deles, mediante a língua. comum que mais os usa do que é
usada. Pois fora das regras de uma língua, que são a tra-
dução, a nível semiótico, das regras do comportamento prag-
mático do indivíduo no grupo, só se pode comunicar a radical
incomunicabilidade do ser humano; fora da ideologia que me
prende nas malhas da rede de sentidos que é o universo ima-
9
ginário do meÚ grupo, o meu "eu" toma-se o espaço vazio de
um não-sentido que, por ser absoluto, é nadificante.
Por isso, o interpretante, qualquer que ele possa ser, des-
cobre-se como o operador de uma ideologia que jamais se
põe a nu porque se tento isolá-la, mediante uma interpre~
tação, do discurso conotado em que ela se mascara, e a denoto
como um texto, para declará-la, esse texto terá de converter-se
em um outro discurso - e o discurso é, enquanto entidade
conotada, o abrigo por excelência da ideologia -.
Essa observação obriga-nos a questionar a propriedade da
nomenclatura que aqui utilizamos para denominar os três tipos
de ínterpretantes. Se todos são ideológicos, por que utilizar a
denominação de interpretante ideológico para designar um
único tipo de ínterpretantes? Ocorre que todos os discursos,
desde o momento em que se plasmam como um objeto cul-
tural do presente, devem pagar inevitavelmente um tributo
aos objetos culturais do passado, já que eles o modelizaram
e fizeram dele aquilo que ele é (ou parece ser) e não outra
coisa. Mesmo no caso dos discursos científicos que, alçados
na aparente neutralidade de um metanível descritivo, possam
pretender estar dotados da propriedade de "zerar" a ideologia,
essa impregnação ideológica é inarredável. No presente livro,
esse tributo transparece na adoção de uma nomenclatura e de
premissas doutrinárias que o inserem no contexto dos discursos
passados da ciência semântica, confessando a adesão implícita
ou explícita do autor (só a discordância é argumentativa) a
um conjunto de discursos prestigiosos que conformam, por
ll$SÍm dizer, o macrotexto em cujo âmbito se há de definir
o "sentido histórico" do discurso presente.
último referente de qualquer interpretação, a explicita-
ção de uma ideologia importa na construção de outra ideo-
logia. No fundo, a sua explicitação é tabu porque ela implica
a denúncia da função modelizante dos discursos da tribo que,
sob aquilo mesmo que os manifesta (o significante), ocultam
o que significa isso que os manifesta (o sentido). 1!: sintomá-
tico que, na plássica representação diagramática do signo sob
a forma arquetípica de um (mítico) espaço fechado, o signi-
ficado se encontre separado do significante por uma barra.
À semelhança de Lacan, poderíamos nos perguntar o que é
que esconde essa fronteira infranqueável que aliena o sentido
10
daquilo mesmo que deveria exprimi-lo, mas que o reprime.
Pois, para ser comunicado, um plano de conteúdo deve sub·
meter-se às distorções que lhe impõe a instância de censura
dessa barra que, como os conteúdos que o inconsciente pro-
jeta no sonho, o obriga a disfarçar-se nos símbolos que dis-
simulam aquilo que ele realmente é: para poder ser comuni-
cado, um texto deve outrar-se em um discurso; para poder ser
comunicado, um plano de conteúdo deve transformar-se na-
quilo que ele não é, um plano de expressão. Assim, ·é lite-
ralmente "inconfessável" o verdadeiro sentido que repousa na
inefabilidade de algo que não se pode dizer (afinal, qualquer
que possa ser a interpretação através da qual possamos denotar
um significado para um significante, essa interpretação pode
ser, outra vez, interpretada).
Sabemos que só uma pragmática poderia organizar uma
"semântica do que não se diz", mas ainda estamos longe de
poder enunciar as premissas a cujo cargo ficará a construção
das bases teóricas dessa disciplina. No entanto, os poucos
elementos de que dispomos, atualmente, indicam que, no nível
pragmático dos subentendidos, o não-dizer possui, às vezes,
mais sentido do que o dizer. Os que avaliarem atentamente
este estudo, pelo que ele diz como projeto semiótico, estão
convidados, por isso, a tentai compreender o que ele não
lançando-se na aventura temerária de ultrapassar os limites
formais para além dos quais a semântica deixa de ser
ciência do sentido para ser, mais amplamente, uma ciênciâ
antropológica - literalmente, uma ciência do. homem.
11
PRIMEIRA PARTE
Fraga e Sombra
13
implícitos e rejeitará os elementos pertencen tes quer à ins-
tância subjetiva da enunciaçã o - os atualizado res das marcas
pessoais do destinador e do destinatári o -, quer aos níveis
de descrição considerados ad hoc como não pertinente s pelo
descritor.
Isso feito, projetarem os contra o plano de expressão dis-
cursivo a estrutura elementar s 1 vs s2 • Ela funcionará , aí, ini-
cialmente, como o demarcad or das unidades sintagmáti cas
comparáve is, possibilitando a partição da cadeia em segmentos
que são discretos, do ponto de vista linear, e que são, ao
mesmo tempo, hierarquic amente ordenados , do ponto de vista
paradigmá tico. Trataremo s de reproduzir , nesse particular, o
procedime nto taxionômico já utilizado por Lévi-Strauss na sua
famosa leitura do mito de Édipo.
É evidente, a esta altura, que contrariam ente ao que pos-
tulava Zellig Harris, o estabeleci mento de unidades discretas
do discurso não pode ser regido unicament e pelo princípio
dos contrastes distribucionais no plano da expressão. Qual-
quer distinção baseada no mecanismo elementar s1 vs s inclui,
2
inevitavelm ente, quando projetamo s essa relação sobre um dis-
curso já feito, um dos investimentos semântico s que esse dis-
curso efetuou sobre a pura forma lógica dessa relação, satu-
rando-a inteligivelmente. Em outras palavras, a estrutura ele-
mentar s1 vs S2 utiliza-se como forma articulado ra da subs-
tância semântica de um microuniverso de significação, já
que é precisame nte por serem isótopos um de outro, que os
termos da estrutura elementar encerram, como demarcado res,
todo um universo de sentido: quer se diga macho (s 1), quer
se diga fêmea (s 2 ), reitera-se, sempre, o mesmo universo se-
mântico situado na isotopia da sexualidade (S), visto que s
1
e s2 , assim como seus homólogos subalterno s s1 , não-mach o,
e 52 , não-fêmea, só adquirem um significado quando os pro-
jetamos no interior do eixo semântico S, sexualidade. Desse
modo, o quadrado semiótico de Greimas e Rastier equivale a
um espaço tópico em que:
(a) OS eiXOS horizontais (s 1 VS S2 ; S1 VS S2 ) articulam-se em dois
lugares isotópicos, um positivo, outro negativo, funcionan -
do cada um deles, horizontal mente, como o pólo com-
plementar do outro; acima encontram -se os compleme ntos
positivos, abaixo os compleme ntos negativos;
(h) os eixos oblíquos (s 1 vs s1 ; s2 vs s2) articulam-se como
dois lugares neg-isotópicos (são pólos contraditórios); a
isotopia afirmada pelos pólos positivos é "zerada" pelo
pólo contraditório;
(c) os eixos verticais ou dêixis (s2 - sl; sl - s2) articulam-se
como dois lugares heterotópicos (são pólos implicados, de
modo que os termos negativos podem ser lidos como a ·
tradução eufemística dos positivos implicados).
15
A ORGANIZAÇÃO DO "CoRPUS"
16
( 1) a sombra da tarde confrange nos
(2) a luz do crepúsculo baixa.
(3) um sino toca
(3) nós não saber
(3) quem4
(3) tange é como se
(4) este som do ar nascesse
I n HI IV v
L........v---l L--..r---J '----v-----i
Atores Não-Humanos Funções Atores Qualific. Relator de
Humanos Ats. Hums. Comparabilid.
17
do espaço interoceptivo, que se inscrevem em um universo
mítico.
Actante
Não-Humano Atores cosmológicos
18
cador e, também, parcialmente, às injunções determinadas pelo
mecanismo das interações semântico-contextuais, localizam o
microuniverso de sentido da obra.
19
O eixo formado por
crepúsculo ->
3
noite
Correlacionam-se, aqui, através do movimento (/dinamis-
mo/), de um lado, uma anterioridade discursiva com uma
anterioridade histórica e, de outro lado, uma posterioridade
discursiva com uma posterioridade histórica, o que nos per-
mite construir o seguinte arcabouço narrativo:
Arcabouço Narrativo
Manifestação
antes depois
Pl. Discurso verso 1 verso 5
Pl. Hist6rfa tarde noite
20
sombra I luz, onde o primeiro termo é uma sinédoque parti-
cularizante de noite e o segundo é uma sinédoque particulari-
zante de dia. Ou, tal como se comprova no confronto entre
os vv. 1 e 2:
1.• oposição
2.• oposição
21
O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa
define do seguinte modo o termo que nos interessa:
Crepúsculo = S.m. A luz frouxa que precede o nascer do sol e per-
siste algum tempo depois de ele se pôr. (Fig.) Deca-
dência, ocaso.
22
sema /temporalidade/. Se fixarmos a razão proporcional no
mesmo p6lo depois, podemos ler:
depois do nascer do sol = dia;
depois do pôr do sol :::: noite.
dia noite
A IsowPrA EsPACIAL
al a2
I r
Al A2
I
s o
I 25
A percepção da relação transitiva responde pela intuição
do espaço exterior, tridimensional, situado fora do. sujeito.
Mas,
- o outro objetual pode situar-se no espaço interoceptif(O,
equivalendo a um actante noológico. A interação .
s n O noológico
r
Al
il
A2
I
s
I
o
Cremos que é no cruzamento dessas duas estruturas
se pode explicitar toda a problemática concernente à fase
autorevelação da personalidade que os psicólogos conhecem
com o nome de fase do espelho.
Um indivíduo descobre a sua identidade quando reco-
nhece que uma relação reflexiva explica-se como a interiori-
zação nele, sujeito, do mesmo mecanismo responsável pela
relação transitiva: o Objeto exterior, em um caso, transforma-
-se em Objeto interior, no outro caso. Assim, o que se passa
no interior do indivíduo - entre o eu e o mim, ou o eu e
o outro dentro de mim, o consciente e o inconsciente. . . -,
reproduz o que se passa no seq exterior, entre o eu e o outro
fora do eu.
Algo semelhante se dá na fase do espelho. Ao mirar um
espelho (objeto) eu (sujeito) não vejo o espelho (objeto cos·
26
mológico), a mim mesmo (sujeito) sob
a forma de uma (parecer) outrada
Ao a do
realiza~o objetivamente como
própria identidade" significa,
mover essa capa aparencial que mE~dt~ia
a qual, ao mesmo tempo em
seu domínio em relação ao outro, toma-os es-
tranhos entre si. O espelho e o autoconhecimento por
isso, fascinantes: porque as entre
o sujeito ~ o objeto do
27
A consciência e o espelho são igualmente temíveis porque
são, um no domínio do espaço exteroceptivo, outro no domínio
do espaço interoceptivo, dois modos de acesso ao autoconhe~
cimento, dois atores, ou se se preferir, duas modalidades Hgu~
rativas do saber. Assim, só perceberei o alcance do preceito
bíblico "amar o próximo (o outro) como a si mesmo" (um
outro-eu), quando eu for capaz de socrá~
tico "conhece-te a ti mesmo", conhecendo, eu
28
"No meio do caminho tinha uma pedra"
~ ~ ~
/espada-/ / espaciali-/ I espaciali-/
!idade/ dade/ dade/
Relação R R
I I
Plano de Conte_údo: /espadalidade/ /temporalidade/
29
Espacialidade
/ exteroceptiva/ vs /ínteroceptíva/
( = espaço) (= tempo)
claro que a solução inversa seria, igualmente, possível:
É
nos impede de considerar como cover-word a/tempora-
lidade/, subespecificando-a, a nível mais baixo, na oposição
homocategorial jexteroceptiva/ espaço), /interoceptiva/
(= tempo).
De não vem ao caso dí~;cutir,
calteg:ori.a primordial ou a forma on:gma!
çao humana. É possível, mesmo, que tal indagação não
absolutamente nenhum sentido se o espaço e o
como pensamos, diferentes modalidades de
uma relação invariante, formalizável, tecnicamente,
aspecto da estrutura elementar do conhecimento:
Sujeito
30
há um tempo cosmológico, também "tridimensional":
- preteridade : dia (indiciado por tarde);
- futuridade : noite; ·
- presentidade: crepúsculo complexo de [jdia/ +
[noite/]).
Nesse espaço-tempo cosmológico situa-se a dimensão. cos-
mológica do actante humano, numa relação transitiva:
s n O cosmológico
Espaço Tempo
I exteroceptivo / I exteroceptivoI
! !
(d. v. 9, entre o céu e (cf. vv. 1-5, entre o día
e a terra) e a noite)
Mas o actante humano existe, na realidade, em dois
tempos:
(a) o tempo cosmológico, cujos se dentro
das 24 horas de um dia através dos pólos opostos do
dia e da noite;
(b) o tempo noológico, cujos limites se demarcam
tempo de uma existência, através dos extremos vida e
morte.
31
A 2.~ isomorfia supõe que a vida ( cf. v. 13 "instinto de
existir") situa-se no pólo superior de um eixo vertical imagi-
nário (noológico), situando-se a morte (cf. v. 14 "vontade de
anular a criatura"), no pólo inferior desse mesmo eixo. Assim,
a primeira estrofe descreve, na isotopia do espaço exterocep-
tivo, o movimento, executado sobre o eixo da da
passagem de um espaço superior a um espaço do
céu à terra: é este o primeiro sentido da função "baixar"'
(v. 2).
Já a última estrofe descreve, na isotopia do espaço inte-
roceptivo, o movimento homólogo a esse, executado sobre o
eixo de uma verticalidade imaginária, um "espaço interior", da
passagem de um ponto superior a um ponto inferior, ·da vida
à morte: é este o primeiro sentido de "calcar" (v. 12), função
homóloga, na espacialidade interior humana, à função "baixar",
na espacialidade exterior não-humana:
(12) "E calcamo$ em nós, sob o profundo
(13) Instinto de existir, outra mais pura
(14) Vontade de anular a criatura."
32
sl s2
/céu/ /terra/
' /
I
não
I
não
morte vida
I
I ''
/nu~ens/ '
/mar/
52 sl
Pc1dE:rhtmos, do mesmo modo, comutar os pares
se tomam, no poema, como
tanto no nível da manifestação - onde a
vida : morte ser ilustrada por outras oposições
máticas, /terra/, /luz/ : /sombra/, /dia/
/instinto viver/ : /vontade de
nível subjacente, o dos marcadores
englobado. Desse modo, aqueles pares lexemáticos antit~§tic~os
poderiam assumir, investidos quer no interior
de um universo figurativo individual, quer no interior
universo figurativo social, o valor de plano
quatro elementos primordiais, o fogo, a terra, o ar,
sl s2
/céu/-------/ terra/
' ' I
v
''fogo terr/
I
,ar
,I
agua,
I '
/nuv~ns/ !'mar/
33
(input), é também o código que serve, inicialmente, para a
sua decodificação, no output. Isolávamos, assim, um interpre-
tante que definimos do seguinte modo:
' (a) um interpretante do código, tem a função de traduzir a
mensagem à luz das informações fornecidas pelo código
de partida que a organizou. Assim, por exemplo, o pri-
meiro elemento segmentável da frase
"I vitelli dei romani sono belli"
84
de equivalência (Jakobson, para o efeito
seqüencialidade frásica. A mensagem terá
pois, num segundo momento, posterior ao momento da deco-
dificação propiciada pelo interpretante do c6digo,
com
(h) um do contexto,
na contigüidade sirJ1ta!~mática,
que ao
de uma certa reclulltdâncila irlfo:rm;;wi,:>mtl.
Mas a essa
C0IItetld0 é UVJL>u•:u
ele não passa
contextuais.
como se o um sm.taj~m.a S, não
é igual à soma linear dos semas do A mais os semas
do elemento B que o constituem, isso se deve ao fato
contextualizados, tais contraírem
os coerentiza univocamente. Essa
níveis semânticos diferentes, efetua a comJJat:ibilb~aç:ão
lências diferenciais de A e B de tal
tivos possam ser apreendidos sob a forma
-sentido endocentricamente unificado. A participação de um
elemento em um contexto implica no estabelecimento de rela-
ção desse elemento para com os termos da sua vizinhança
na mensagem; em outras palavras, as relações contextuais são
da ordem da anáfora e da catáfora.
No mecanismo relaciona! que instaura esse conjugado bi-
nário que é o sintagma devem ser buscadas as interpretações
dos fenômenos combinatórios que regulam o agenciamento
anacatafórico, tornando possível o aparecimento, ao lado dos
· signos extradiscursivos da língua, de signos intradiscursivos,
específicos para cada contexto discursivo em particular.
Um pequeno exercício, praticado sobre os primeiros ver-
sos do poema Comendadores Jantando, de João Cabral de
Melo Neto, esclarecerá melhor esse ponto:
"Assentados, mais fundo que sentados,
eles sentam sobre as supercadeíras
36
tura que a utiliza para expressar-se: a performance lingüís-
tica, afinal de contas, é uma prática social, um fazer cultural
entre tantos outros igualmente definíveis como "linguagens"
(sistemas semióticos), tendo todos eles em comum o fato
de serem a linguagem de uma ideologia.
Para dar conta desse último universo do discurso - o
das ideologias, contra-ideologias, etc. - podemos pensar em
um interpretante que, à falta de melhor denominação, cha- ·
maremos de ideológico. Teríamos, assim,
(c) um interpretante ideológico, cuj!J. função é a de
dificar a mensagem enquanto prática social, a partir dos
códigos e discursos alheios que formam o complexo dos
sistemas modelizantes através dos quais uma sociedade se
interioriza em cada um dos indivíduos que a integra. Pois
uma visão do mundo assume, para ser declarada, a forma
de um discurso. Assim, um discurso que outro
discurso ou que com outro discurso se autorize, toma esse
segundo discurso como seu interpretante ideológico.
comendadores vs não-comendadores
I
assentados
r
vs sentados
I
super cadeiras
I
vs cadeiras
(sl) vs ( s2)
37
Sociedade
I
I
dominadores vs dominados
( comendadores) ( não-comendadores)
I I
(possuem supercad.
eiras. sen- (possuem cadeiras, sentam-
tam-se mais fundo. . . etc.) -se menos fundo. . . etc.)
38
"enquanto a banda vai baixando, baixando de tom"
(C.D.A. -Poema Patético)
..
r
B (depois)
89
INTERPRETAÇÃO DE "BAIXAR" PELO lNTERPRETANTE 00 CONTEXTO
•
'f
terra (depois)
40
.. dia (antes)
"
I
noite (depois)
41
s
Discursos da
"Cultura Brasileira"
s
sl 52
Discurso Intitulado O Discurso Y, representativo
Fraga e Sombra de todos os demais discursos ·
da cultura brasileira, S.
Os discursos que se inscrevem em s2 constituem, por assim
dizer, a situação de que s1 participa. Definindo essa situação
a "realidade cultural" em que se inseré s 1 (a realidade é um
discurso sobre a realidade, insistimos), ela vem a equivaler ao
espaço privilegiado da ideologia.
Todos os outros discursos produzidos pela cultura brasi-
leira ao longo da sua história funcionam, pois, como o lugar
extradiscursivo complementar, s2 , em relação a Fraga e Som-
bra, s1 , e servem para definir o sentido ideológico desse soneto
de C. Drummond de Andrade nos quadros da cultura brasi-
leira. O interpretante ideológico encarrega-se de declarar esse
sentido, já indiciado, de resto, nas qualificações do tipo "so-
neto", "pertencente à fase tal do Modernismo", etc., efetuan-
do-o por meio de uma reinterpretação operada sobre as inter-
pretações (Ila) e (Ilb), anteriormente fixadas pelo interpre-
tante do contexto.
Nas páginas anteriores vimos que o interpretante do con-
texto localizava para a lexia baixar os seguintes sentidos, pe-
culiares a Fraga e Sombra:
(lia) um sentido. espacial, "movimento de passagem do céu
para a terra";
(Ilb) um sentido temporal, "movimento de passagem do dia
para a noite".
Ambos dizem respeito a um espaço e a um tempo cosmo-
lógicos, sendo, como são, efeitos de sentido isolados sobre uma
isotopia exteroceptiva. Mas, postulada a propriedade da con~
versão entre elas, o que se lê sobre uma isotopia ex<ter·oceptitla
pode ser lido, igualmente, sobre uma isotopia interoceptiva,
sempre qtJ.e se possa invocar a hipótese de uma isomorfia.
l
42
De fato, nos sistemas semióticos cuja substância de ex-
pressão é de natureza visual, o espaço exterior se
freqüentemente do papel de tornar sensível inteli.gítlel:
uma idéia, algo inteligível e, por isso, domínio int:er<DC4epitivo,
só se pode declarar se receber uma configuração
espaço exteroceptivo.
Assim é que, no que tange à espacialidade, a
da verticalidade encarrega-se de dar uma COJtltigura~;ão
sível à idéia do mundo imanente, habitat do home:m, op<oncjo-
-se, desse modo, à topia superior do mesmo eixo
traduz exteriormente a idéia do mundo transcendental, haJtntc2t
da divindade.
É claro que o investimento semântico que satura a opo-
sição formal espacial
oposição formal: /topia inferior vertical/ vs /topia superior vertical/
R ~ ~
investimento "mundo dos humanos" vs "mundo das divindades"
No caso se expressa
mediante seres humanos e
que há seres habit:am o mundo
homens um mundo transcen-
dental espaço
Tudo isso pode ser de~;crJito, R. Barthes e
PPfínPií:! Cafiizal,
no interior da
ou cosmológico se na pos1çao
sema invariante /espacialidade/, e se
Suporte da forma articulada sema
(no caso, a jverticalidade/); o Suporte /verticalidade/ mr1et1e-
-se, por sua vez, nas duas articulações /topia inferior/ vs
43
jtopia superior/ que ele domina, aparecendo, pois, tais arti-
culações a nível menor, como as Variantes da matriz; tudo
isto, enfim, constitui apenas o plano de expressão (E) extero-
ceptívo de um signo ideológico, quando se relaciona (R) com
um plano de conteúdo (C) ínteroceptívo que é declarado não
por um sistema semiótico visual - como aquele a que per-
tence o plano de expressão -, mas, sim, por um sistema semió-
tico verbal (uma língua natural). É precisamente essa tra-
dução de qualquer sistema semiótico não-verbal operada por
um sistema sígnico verbal que faz das línguas naturais os
sistemas metalingüísticos universais (capazes de decodificar
com adequação qualquer outro sistema sígnico) e lhes atribui
o caráter de sistema modelizante primário:
44
É assim que podemos falar em um tempo cm;m(Jl61gic1o,
cujos limites se demarcam dentro das vinte e
um dia, entre os pólos extremos da noite e dia, como o
plano de expressão de um tempo noológico ("tempo interior"),
cujos extremos se demarcam no interior de uma existência,
através dos pólos opostos da vida e da morte.
Feitas as devidas adaptações à figura anterior, a matriz
significante dessa outra isomorfia ficaria assim:
45
Baixar
~---------1----------~
Sentido Sentido
Espacial Temporal
~ ~
s1 - passagem s1 -passagem
s2 - de um ponto ân- s2 -de um ponto ân-
tero-superior tero-superior
s3 - para um ponto s;l - para um ponto
póstero-inferior póstero-inferior
s4 - no espaço s4 - no tempo
!
Outras Lexicalizações : Outras Lexicalízações:
"descer", "descenso", "Atenuação", "abran-
etc. damento", etc.
46
s>- de um ponto ântero-superior vs s. - para um ponto póstero-inferior
Sentido Sentido
Espacial Temporal
i J,
s1 - passagem s1 - passagem
s2 - docéu s2 - do dia
s3 - para a terra s8 - para a noite
~ i
Outras Lexicalizações: Outras Lexicalizações:
"queda"; "tombo", etc. "Crepúsculo", "anoite-
cer", "boca da noite",
etc.
47
"baixando, baixando de tom" -, o interpretante do contexto
faz duas operações:
- funcionalmente, ele pratica uma segunda operação metaw
lingüística, em que o elemento a ser interpretado (o plano
de expressão) vem a ser o interpretante do código (Ia)
e (Ih) e o elemento decodificado r (o código, no caso),
vem a ser constituído pelas bases fornecidas pelo contexto
céu : terra, dia : noite; desse ponto de vista, o interpre·
tante do contexto executa uma função poética (o discurso
se volta para o próprio discurso);
- formalmente, o do contexto transforma um
texto extradiscursivo, anteriormente pela apli·
cação do interpretante do código à mensagem, em novo
discurso-objeto, de uma nova leitura, atribuindo-lhe
a condição de plano de expressão de uma mensagem intra-
discursiva. O texto intradiscursivo obtém-se, assim, _(!entra-
lizando-se a leitura na fórmula ERC (RC).
Finàlmente, o interpretante ideológico investe as interpre-
tações produzidas pelo interpretante do contexto da condição
de plano de expressão para a declaração de uma ideologia.
Desse modo, "queda do céu para a terra", sentido contextual
de baixar, em Fraga e Sombra, vem a explicitar-se como "que-
da do mundo das divindades para o mundo dos homens"
- ou seja, reinterpretadamente , como uma catástrofe: a nar-
rativa de uma degradação original, em tudo e por tudo seme-
lhante àquela que se expressa em uma série bastante extensa
de mitologias (mitos de f caro, Sísifo, Adão, etc.) .
De modo análogo, a "passagem dia para a noite" - ou
crepúsculo -, vem a explicitar-se como uma passagem da
vida para a morte, uma "agonia"; portanto, no .interior da
mesma ideologia (observe-se que "queda do mundo das divin-
dades para o mundo dos homens" e "passagem da vida para
a morte" traduzem-se mutuamente: isto quer dizer que a
circularidade típica das ideologias toma ora uma conformação
espacial - "queda do mundo das divindades para o mundo
dos homens" -, ora uma conformação temporal - "passagem
da vida para a morte" -, o que vem corroborar, mais uma
vez, o acerto de nossas postulações anteriores a respeito da
mútua conversão entre o espaço e o tempo):
48
Baixar
Espacial Temporal
t t
s1 - passagem s1 - passagem
s2 - do mundo das di- s2 - da vida
vindades
s3 - para o mundo. dos s3 - para a morte
homens
!
Outras Lexicalizações:
!
Outras Lexicalizações:
"catástrofe", "degrada- "agonia", etc.
ção", etc.
49
localizável como um fazer exterior, podendo ser traduzida pela
leitura do semema de baixar sobre a isotopia exteroceptiva. O
ator "luz" possui, aí, um duplo encargo:
(a) efetuar, com a transformação do espaço cosmológico, uma
conjunção do céu à terra
F luz crepuscular = céu n terra
(prática)
51
DEFINIÇÃo FoRMAL DOS MEDIADORES E DO PERCURSO NARRATivo
53
Por tudo o que já vimos, sabemos que o plano de expres-
são um signo do contexto - e o de um signo ideológico
- pode ocorrer sem nenhuma variação n vezes, no interior
do mesmo contexto, mas não o seu plano de conteúdo; assim,
do ponto de vistâ das transações anáforo-catafóricas do con-
texto, um mesmo plano de expressão pode ser o significante de
dois signos diferentes, pois que o sentido de uma unidade é
uma variável dependente do contexto. (Normalmente, con-
tudo, só na poesia o plano de expressão de uma mensagem é
uma variável dependente do contexto.)
O que acabamos de escrever requer elucidação.
Seja, por exemplo, o enunciado grifado que abre "O Duelo",
de Guimarães Rosa:
"Altos são os montes da Transmantiqueira, belos os seus rios, calmos os
seus vales e boa é a sua gente. Mas os homens são os homens . .. "
54
diferente de "homem 1". E isso quer dizer, afinal,
na realidade, uma palavra nunca se repete com invariabi-
absoluta no interior do mesmo enunciado: colocada em
uma distribuição contextual diferente a cada momento, ela é
o ponto de incidência de diferentes dependências.
Assim, se uma palavra aparece duas vezes no mesmo enun-
ciado, a sua segunda ocorrência a transforma numa
diferente da primeira, porque a coloca' numa relação
mente aberta:
(a) primeiramente, se relaciona, na
tica, com o código extratextual, que lhe serve
tante; por exemplo:
"Ela fa)ou, /alou, e: falou . .. "
1 2 3
Suponhamos que o semema à lexia "falar 1" se
analise assim, a partir do interpret ante do código:
como
"Ela falou durante muito tempo"
como
"Ela falou interminavelmente."
56
Desse modo, o enunciado
"Um homem é um homem ·•
57
E lka'miíiul
R-------
C
---------------
s1 - espacialidade
s2 - horizontal
s3 - contínua
s4 - em que se des-
locam seres .. .
55- . . . . . . . . . . . . .
e
"Tinha uma pedra" (E)
(R)
"Houve um acontecimento traumático" (C)
58
Uma exemplificação calcada nas leituras propostas pelos
diferentes interpretant es para a lexia baixar, em Fraga e Som-
bra, revelará concretamen te esse processo.
As decodificações de "baixar", isoladas a partir, apenas,
da dimensão temporal, produziriam as seguintes leituras:
F E R C
(int. ideol. )
n
l l
r[(/bajsar/ "atenuar") n ("passagem d~n "passagem da vida p/ a morte"
l
Ldia para a noite" l]
O Processo Configurador do Texto
As IsoTOPIAS FuNCIONAIS EM "FRAGA E SoMBRA"
59
Os atores exteroceptivos "nós" se desdobram, contudo,
numa forma figurativa interiorizada - cf. "em nós", v. 12
( = "nos") -, estando ambos numa relação de inclusão: dis-
tinguiremos, pois, no actante humano, os atores exteroceptivos
englobantes ("nós") dos atores interoceptivos englobados ("em·
nós" - "nos"):
terra
60
Observamos o caráter ambíguo do actante humano "nós",
no âmbito de uma topologia: se o encaramos na relação para
com o actante não-humano representado pela verticalidade
demarc ada entre o céu e a terra, ele nos aparece como um
lugar tópico englobado (sendo o actante não-humano o lugar
heterotópico engloba nte); postulando o engendramento de uma
função entre esses dois funtivos espaciais - "aqui" vs "lá".
construímos uma relação transiUva:
Relação
Transitiva
I englobado/
I
/engloba nte/
Se encararmos, contudo, o actante humano na relação
intratópica que opõe os atores exteroceptivos "nós" e intero-
ceptivos "nos", ele nos aparece como o lugar paratópico englo-
bante, dando origem a uma relação reflexiva:
Relação
61
actante englobant~ é um destinado r ( D 1 ), ao passo que o
actante englobado é o destinatário ( D2) da ação de confran-
ger, a qual inclui o marcador semântico /contração/. Visto
isso, analisaremos do seguinte modo o primeiro verso, devida-
mente normalizado:
"A sombra azul da tarde confrange nos"
I i -,
a1----/contração/ - - - - - - a2
I I
ator não-humano ator humano
I I .
/englobante/ /englobado/
I I
A1 Ary
I ,~
Dl D2
1 Relação Transitiva 1
Já o verso 12 mostra, normalizado sobre a relação refle-
xiva, um movimento análogo a esse, só que, desta vez, pró-
cessado na intimidade do mesmo actante humano:
"E (nós) calcamo nos
T I T
a ---/contração/ - - - - - a
1 1
I I ~
ator humano ator humano
/englobante/ /englobado/
I I
Al A2
I I
D 1 - - Relação Reflexiva D2
62
v. 4 - "E como. se este som nascesse do ar"
/:CoT
D 1 não-humano
Os predicados funcionais da primei ra estrofe de Fraga e
Sombra deixam-se descrever, assim, na forma de uma oposição.
elemen tar reduzid a a duas subclasses de funções antonímicas,
que designam ou uma /contra ção/ ou uma /expan são/:
Funções
da 1.• Estrofe
dassema classema
/contraç ão/ /expans ão/
I I
"confranger" "tocar" (o sino)
"baixar" "tanger" (o sino)
"nascer"
É constante, no poema, a formação da relação transitiva
a partir ·do mecanismo [expansão do actante não-humano
D 1 + contração do actante human o
expansão de A1 contração de A2
destinador destinatário
Ora, esse, precisamente, é o mecanismo de uma com1.mi:caça,o.
Ao expandirem-se no seu fazer prático, os atores não-humanos
sombra, som, lexemas que manifestam o actante A , transfor-
1
mam-se em destinadores de uma /contra ção/ no actante hu-
mano A2 ; assim, confranger, no verso 1, significa "contração
de A2 provocada pela expansão de " ·
A relação transitiva serve para hipostasiar uma comuni-
cação entre o cosmos e o homem, median te a inlterim:izl:tç~io,
neste, do crepúsculo. Este passa à condição de um fenômeno
da ordem mítico-simb6lica. A transformação,
fenômeno físico-cosmológico => fenômeno mítico-simbólico
que converte um crepúsculo em uma agonia, já está completa
na altura dos versos 10 e 11, em que já não nos deparamos
com um mundo físico (A 1 ), mas sim com uma lembrança do
63
mundo físico; essa transformação é obtida mediante a desquá-
lificação da substancialidade concreta de mar e serra, por meio
dos modificadores ausente e abstrata:
(v .10) ''E sentimos o espetáculo do mundo
I
Actante
I
Actante
Humano Não-Humano
I I
[/exterocept./ + /interocept./] /exterocept./
Paratopia Utopia
"aqui exterior" "aqui interior"
I I
Atores Humanos.
Atores Humanos
/ exteroceptivos/ /interoceptivos/
("nós") ("nos")
Fraga e Sombra como o discurso que narra uma
dupla .comunicação: do mundo para o homem.
O mecanismo das desqualificações e das requalificações pro-
cessa-se em três etapas:
(a) o ator mar e o ator serra possuem, a nível do, interpretante
do código, as qualificações:
mar = [/ + horizontalidadel + I+ exteroceptividade/);
serra = [/+verticalidadel + l+exteroceptividade/];
(b) o modificador ausente, aplicado a mar, e o modificador
abstrata, aplicado a serra, propõem, em um primeiro mo-
mento, a nível do interpretante do contexto, a desquali-
ficação do sem a I+ exteroceptividade I: /
mar = [l+horizontalidadel + 1-exteroceptividade/);
serra = [I +verticalidadel + 1-exteroceptividade/);
(c) tendo em vista que só se pode conceber a dimensão es-
pacial, a nível de um interpretante ideológico, quer como
/+exteroceptiva/, quer como !+interoceptiva/, a desqua-
lificação do primeiro marcador (operada em (b) ) , importa
numa automática requalificação dos atores em causa como
I+ interoceptivos/:
mar = [/ + horizontalidadel + I+ interoceptiva/];
serra = [/ +verticalidadel + I+ interoceptiva/).
Qualificador do
este som
a1
-,- I -r
nascesse
F/ expansão
do ar."
a2
enunciado: I I
enunciado ao Ator Não- Ator Não-
modo do parecer· Humano Humano
I
Dl
Em resumo, a primeira estrofe narra a comunicação entre
o actante não-humano e o actante humano, conformemente
ao mecanismo
Comunicação A1 :A2 ~ F/expansão/A 1 + F;contração/A2
- do ponto de vista dos actantes envolvidos no processo,
temos uma comunicação transitiva;
-·do ponto de vista da modalidade do sistema de trocas
envolvido, temos uma doação (uma troca unilateral, em
66
que o actante não-humano doa algo ao actante humano,
nada recebendo deste) ;
do ponto de vista do objeto doado nessa comunicação,
temos o momento conflituoso do crepúsculo que anun.ch1,
na exterioridade do mundo, o fim do dia e o começo
noite; e que anuncia, na interioridade do homem, o fim
da vida e o começo da morte:
crepúsculo agonia
Actante Objeto
-r
Actante Objeto
Cosmológico Noológico
I I
I+ ínteroceptivol
I +exteroceptivol
67
SEGUNDA PARTE
HOMOLOGAÇOES
o PROCESSO SEMIÓTICO
69
actanciais complementares, os quais se montam sobre uma
estrutura em quiasmo:
70
Um problema de palavras cruzadas está corretamente re-
solvido quando a semiose ERC produzida a nível do discurso
pela atividade conjunta do autor (que fornece o C do signo
a ser configurado) e do leitor (que relaciona - R - esse
conteúdo - C - com uma expressão - E -) for .idêntica
à semiose produzida, antes, a nível do código.
Suponhamos, para melhor entendimento, que o autor de
um discurso cruciverbista forneça a definição conteudística
C = "sabre de folha curta e larga"
(E)
I
/alfanje/ Conteúdo (C) (R) Expressão (E)
(R) fornecido pelo fornecida pelo
(C) "sabre de fo- destinador do destinatário do
lha curta e discurso discurso
larga" I I
"sabre de folha /alfanje/
curta e larga"
71
Isso significa
- que o signo de um ·discurso X é sempre, antes, o signo de
um código X;
- que, em conseqüência, o plano de expressão de um signo
do discurso X equivale ao plano de expressão de um signo
do código X;
- que, do mesmo modo, o plano de conteúdo de um signo
do discurso X equivale ao plano de conteúdo de um signo
do código X.
72
O CÓDIGo ExTRADISCUR SIVO
73
à mesma expressão no discurso-objeto (a) deve corresponder
idêntico conteúdo discursivo; o que podemos ilustrar assim:
Código X: E(códígo) n C(código)
I
(b)
I
(c)
Discurso X: E (discurso) n C( discurso)
I
(a)
I
(x)
Pelo que dissemos, o interpretante do código deve produzir
o sentido (x) através da operação
Se (a) = (b), e se (b) n (c), então (a) n (c), sendo (c) = (x)
~ (c)
-r (a) (x)
pois estão cumpridas as condições (a) =
(b) e (b) n (c).
A operação estabelece uma semiose entre o discurso-
-objeto X e o código X (a língua).
De um ponto de vista retórico poderíamos afirmar que
o discurso X é apenas o plano de expressão do código X
(ele denomina o código X); de um ponto de vista ideológico,
poderíamos dizer que o código X é o plano de conteúdo do
discurso X (ele define o discurso X). Desse modo, o discurso
X se ilustra como segue:
Discurso X
Plano de Plano de
Expressão vs Conteúdo
!
Discurso X vs Código X
!
e a interpretação vem a ser, no caso, a operação que esta-
belece o relacionamento ( vs) entre uma retórica e uma ideo-
logia; daí provém o modelo do signo metalingüístico que des-
creve qualquer interpretante (no caso, o ínterpretante do có-
digo):
E(disc.X) /alfanje/ (E)
(R)
C(cód.X) "sabre de (C)
folha cur-
ta e larga"
75
o CÓDIGO lNTRADISCURSIVO
76
naúirío através de uma reescrita, a operação que reescreve o
discurso de uma língua sob a forma de 'uma língua do dis-
c'!lrso. Ao passo que a leitura isola o interpretante do código
vendo no discurso X o conjunto repetível dos signos de uma
língua, a reescrita (que é uma releitu~) isola o interpretante
do contexto, vendo no discurso X o conjunto irrepetível dos
signos de um contexto, signos estes que não existem nem na
língua nem em qualquer outro discurso que não seja X; e
isso é natural quando nos lembramos de que o contexto do
discurso X encontra-se exclusivamente no discurso X.
O co-engendramento do discurso e do contexto responde
pela irreproduzibilidade dos signos contextuais, através dos
quais o interpretante do contexto aparece como o sentido irre-
petível que, isolado na releitura, se sobrepõe ao sentido infi-
nitamente repetível, isolado na leitura, pelo interpretante do
código.
A irredutível ambigüidade dos discursos provém do fato
de que cada um dos signos que neles comparece comÕ unidade
configurada pode ser submetido à ruptura da relação semió-
tica já-feita a nivel de código para se tornar o ponto de partida
de uma nova configuração, a nível do contexto. A ruptura de
uma semiose configurada anteriormente por todo o grupo
social, que se compraz na repetição infinita do mesmo dis-
curso- que é, no fundo, o discurso do Mesmo, uma ideologia
-, exterioriza um gesto de rebeldia contra a História, contra
o conservadorismo de uma História já passada (a do mesmo
ideológico); esse gesto funda a possibilidade de uma nova
História, aquela precisamente que o discurso X vem fundar
e para a narração da qual esse discurso tem de engendrar
novos signos. Na dialética da ruptura com a semiose antiga
mais a sutura da nova semiose, o discurso aparece como o
lugar do fazer semíótico que põe em confronto, em cada signo,
de um lado, um signo da língua, palavra de todos os discursos,
e, de outro lado, um signo contextual, palavra de um único
discurso.
Ao estudar o que denominamos de código extradiscursivo,
vimos que, enquanto signo da língua, cada palavra de um
discurso não é mais. do· que um plano de expressão para um
77
contéúdo que não está no discurso, está na língua; vemos,
agora, que, enquanto signo contextual, cad~ palavra de um
discurso X, pelo fato de não figurar em um dicionário, terá
de se decodificar em outra parte do mesmo discurso X. Este
se cinde, assim, em dois discursos complementares: tJm dis-
curso-objeto, que é plano de expressão, mais seu complemento
contextual, funcionando, este último, como o discurso metalin-
güístico que contém o plano de conteúdo para aquele discurso
objeto:
Discurso X
Plano de vs Plano de
Expressão Conteúdo
DisclrsoX vs
. !
D1scursoX
E
I I I
R C
79
figura anterior, ao passo que o sentido sintagmático, isolado
pelo interpretante do contexto, para o signo do contexto
/alfanje/, aparece em (II), na mesma figura.
Insistamos em dois fatos:
- primeiramente, o signo interpretante do código é idêntico
a um signo da língua;
- e, em segundo lugar, o plano de conteúdo do signo inter-
pretante do código vem a equivaler ao plano de expressão
do signo do contexto.
É isso que nos leva a supor, a partir da postulação de
uma hierarquização transformatória entre os diferentes níve~
sígnicos, que o mesmo mecanismo da transformação do plano
de conteúdo .de nível inferior em plano de expressão do sign(}
de nível imediatamente superior, ocorra tanto no caso da re-
lação que une o signo da língua ao signo do contexto, quanto
no caso da relação que une o signo do contexto ao signo ideo-
lógico. Foi pensando nesta última relação que propusemos o
nome de código heterodiscursivo.
Ü CóDiGO HETERODISCURSIVO
"sabre de folha
curta e larga" } [R]
[C]
(E)
(R) E
"o desenho de um
alfanje, no céu, (C)
à noite"
R
"lua" c
Representação Conjunta de
{I ) signo extradiscursivo,
( II ) signo intradiscursivo,
(IH) signo beterodiscursivo.
A figura demonstra:
(a) que o signo extradiscursivo (I) tem seu plano de expres-
.são em um discurso X e seu plano de conteúdo em um
código extradiscursivo X (no caso, a língua portuguesa);
o plano de conteúdo de um signo extradiscursivo constitui
o interpretante do código:
/alfanje/ (E)
81
(b) que o signo intradis cursivo (H) tem seu plano de expres·
são em .um discurso X e seu plano de conteúd o em um
código intradiscursivo X, que vem a ser o contexto do
próprio discurso X; o plano de conteúdo de. um signo
intradiscursivo constitui o interpretante do contexto:
(c) que o signo heterod iscursiv o (UI) tem seu plano de ex·
pressão em um discurso X e seu plano de conteúd o em
um código heterodiscursivo, Y (no caso, o código pictó-
rico); o plano de conteúdo de um signo heterodiscursivo
constitui o in,terpretant(f ideológico:
/o desenho de um/
/alfanje, no céu/ (E)
/à noite/
ou
/alfanje/
(R)
( Interpretante Ideológico) "lua" (C)
82
pintura: "trata-se de alguma coisa desenhada com o for-
mato de um alfanje, no céu, à noite".
Ora, um código heterodiscursivo aparece, para discursos
verbais concretamente realizados, o discurso X, digamos, sob
a forma de outro discurso, Y; concretamente realizado, em
ção metalingüística.
O código hete~Õdiscursivo Y do discurso X, Fraga e Som-
bra, é dado por todos os demais discursos que formam o
complemento virtual de X no interior da totalidade dis-
cursos que constituem o conjunto-universo da "cultura brasi-
leira" (complementos virtuais de X: todos os discursos que
nossa cultura nos deu e que recordamos frente a X).
Se aceitarmos que o que estamos chamando de "cultura
brasileira" se define como "o conjunto de n discursos" produ-
zidos pela sociedade brasileira ao longo da sua História, pode-
remos dizer que todos os outros discursos brasileiros que não
Fraga e Sombra são os responsáveis pela definição do sentido
cultural (ideológico) de Fraga e Sombra. Isto explica que
o presente poema só "faz sentido" a confronto que
estabelecermos entre ele e qualquer outro discurso, nos ter-
mos do contraste observável entre X e Y (outro discurso), con-
traste esse que é, tecnicamente, uma combinatória (le con-
junções e disjunções: X é parcialmente idêntico a Y (aspecto
conjuntivo) e é, ao mesmo tempo, diferente de Y (aspecto dis-
juntivo). Pois se trata de um soneto, (e a qualificação
soneto lhe é dada pelos discursos anteriores que
o identificam como soneto porque já foram identificados como
tal), idêntico ou semelhante, pela métrica, pelo esquema
rimas, pelo tema, pelo vocabulário, pelo ritmo, etc., a miJlhares
de outros sonetos: esse conjunto de igualdades é o que nos
autoriza a denominá-lo de soneto, exprimindo, um
seus sentidos ideológicos; mas sendo o discurso
cular, ele é também diferente, por um conjunto
tintivos (pela métrica, esquema rimas,
quer outro soneto já produzido em nossa
junto total de diferenças contrastado com o
juntivo de igualdade basta, por si só, para inciivildu.alizar
e Sombra como um discurso sui:-l.!Eme~ris
Em suma, Fraga e Sombra é o produto
sividade (ou de uma "intertextualidade", para usar o termo
de Kristeva).
Damo-nos conta dessa interdiscursividade quando obser-
vamos que
- a,palav ra /alfanje /, significante de "sabre de folha curta
e larga", encontrada no discurso X, desde o momento em
que não foi criada pelo discurso X, é ·signo de um código
e;çtradiscursivo;
- a palavra /alfanje /, significante de "desenho de um alfanje,
no céu, à noite", encontrada no discurso X, desde o mo-
mento em que· foi criada pelo discurso X, é signo de um
código intradiscursivo;
- a palavra /alfanje /, significante de "lua", encontrada no
discurso X, desde o momento em que não foi criada pelo
discurso X nem por um código extradiscursivo, é signo
de um código heterodiscursivo (ou seja, é signo de outro
discurso, Y).
O que deseJamos fazer notar, aqui e agora, não é o fato,
de resto incontestável, de que essa palavra seja um signo
do código lingüístico extradiscursivo; é, antes, o fato de que
a palavra /alfanje / tem um plano de expressão no discurso X
mas tem um significante e um significado "'lua"' em outro
discurso que não X (em Y). Desse modo, uma terceira inter-
pretação pode st!r representada sob a forma de uma projeção
do discurso X (como plano de expressão) sobre o discurso Y
(como plano de conteúdo) :
Discurso .X
l
I
Plano de
l
Plano de
Expressão vs Conteúdo
4- 4-
Discurso X vs Discurso Y
A s~miose .heterodiscursiva
Discurso X n .Discurso Y
f I I
E R C
84
produz um interpretante ideológico, que decodifica o sentido
do discurso X tomando-o, na sua totalidade, como o plano
de expressão de outro discurso, Y.
PE
I
/alfanje/R
n
I
PC
~
-sabre
-
-
de folha curta e larga
J
para cortar algo material
PE n PC
~
-
I I
/alfanje/R desenho imprecis?J
- de um alfanje fino
-no céu
- à noite
Trata-se da definição de um atór figurativo, focalizado a
partir daquilo que ele é (não, como no caso anterior, daquilo
que ele é e faz), cujo valor se explícita no interior do universo
imaginário das figurações quP. compõem a estrutura semió-
tica da sociedade;
- finalmente, o semema ideológico, plano de conteúdo do
signo heterodiscursivo, caracteriza-se por conter, realmente,
um sema funcional mítico "que ceifa sono e sonho"
(verso 6):
PE n PC
I I
/alfanje/R r±--
li_- algo
que ceifa
86
manhã, o seu percurso, os seres que dormiam despertam do
seu sono e interrompem o seu sonho: a lua- figurativamente
representada sob a forma alusiva do alfanje de Kronos, o Tem-
po, instrumento de mutilação e de morte -, ceifa-os devagar,
enquanto caminha pelos céus).
Em resumidas contas, é esta fábula - que é outro dis-
curso Y, exterior à fábula que narra o "crepúsculo" no dis-
curso X - que o discurso X interioriza, ideologicamente.
87
pontos não suficientemente explanados da teoria que então
apresentava: assim, por exemplo,_ o destinatário de uma men-
.sagem pode ser um ator humano ou um ator não-humano.
À relação
Mensagem n Destinatário /humano/
(tipo: "Maria, fecha ll portal"), Jakobson atribui uma f'«nção ·
conativa, ao. passo que à relação
Mensagem n Destinatário /não-humano/
(tipo: "Oh, temps, suspend ton vol!"), ele atribui uma fun-
ção mágica ou encantatória.
Tal distinção acarreta certas dificuldades. Se se entende,
por exemplo, que a função conativa integra os enunciados de
natureza volitiva ou coercitiva (por isso Bühler denominou-a
de Appellfunktion, "função de apelo"), que visam a influenciar
o comportamento do destinatário da mensagem, e se tivermos
em conta que ela parece incluir, assim, um persuadere que é
da ordem dos discursos pragmáticos - só se pode alterar o
comportamento de pessoas vivas e presentes no ato da comu-
nicação - não seria necessário distinguir mensagens dirigidas
a um interlocutor /presente/ (do tipo: "Maria, fecha a portal",
que endereço à pessoa com quem falo atualmente) das men-
sagens dirigidas a um interlocutor /ausente/ (do tipo: "Co-
lombo! Fecha a porta de teus mares!"), visto que este não
pode, evidentemente, alterar o seu comportamento? Ou, para
colocar a questão em outro pé, até que ponto será legítimo
presumir que um destinatário ausente ou morto - como é o
caso da célebre invocação de Castro Alves a Colombo - se
comporte 1 lingüisticamente, como um ser /humano/ , quando
sabemos que em certas construções o morto adquire o traço;
contextual de /não-hum ano/? (Do corpo de um cadáver diz-
-se, por e~emplo, estando na água, que ele "bóia" ou que
"flutua" - como uma coisa, um pedaço de pau, digamos -,-
e não que ele "nada",)
Por outro lado, não sabemos por que motivo Jakobscm
preconiza a distinção entre destinatários /humanos / e desti-
natários /não-hum anos/ e deixa de lado a postulação da dis-
tinção homóloga entre os destinadores /humanos / e os desti-
nadores. /não-hum anos/ que é, evidentemente, ÜJ:liposta pela
do discurso Pois
n Destinador /humano/
89
a eles que o professor João disse aos seus alunos "Façam
silêncio!"; instanciada, no primeiro caso, como um discurso,
o meu discurso, essa frase está dotada da funçãO conativa;
mas, instanciada, no segundo caso, como um discurso que
é relatado pelo meu discurso (logo, como parte do meu
discurso), a mesma frase "Façam silêncio!" aparece dotada
da função que Jakobson chama de referencial;
- por outro lado, o sentido textual é uma decorrência das
distinções através das quais uma cultura determinada opera
a classificação dos seus discursos, definindo-os, por meio
de uma comparabilidade mútua entre as suas estruturas
matriciais, nos termos de prosa I poesia, discurso cientí-
fico I discurso de ficção, etc., classificações essas que ad-
mitem variadas subcategorizações.
Em conclusão, as covariações significativas a que Jakobson
dá o nome de funções são funções do discurso, não funções
das frases isoladas. Acreditamos que elas possam ser conside-
radas como o resultado da articulação diferencial de uma dupla
relação:
- a relação entre um discurso X, determinado, e todos os
demais discursos produzidos pela mesma cultura, de um
lado (isso mesmo que os Formalistas denominavam de fun-
ção autônoma);
- a relação entre o discurso X, como um todo constituído,
e uma frase (ou fragmento qualquer), Z, que o integre
como parte constituinte (o que os Formalistas chamavam
de função sínoma).
Vejamos de que modo a relação ideológica (a "função
autônoma" dos Formalistas) influi na percepção funcional qos
enunciados.
O diqionário (no sentido algo impróprio de "língua") e
a frase efetuam distinções do tipo /humano/ : /não-htm1ano/,
mas tais distinções. não são necessariamente válidas a nível do
discurso e rião devem, por isso, orientar decisões no tocante
ao estabelecimento das funções. Um exemplo claro é o forne-
cido pelos versos de Os Lusíadas: '
"De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam.".
90
Ao nível do dicionário e, também, freqüentemente, ao .
nível da frase isolada, os nomes sonho e pensamento possuem
o marcador semântico actorial /ator não-humano/; no entanto,
comparecendo como partes. constituintes do discurso conhe-
cido como o Episódio de Inês de Castro, subespécie do dis-
curso narrativo que integra o discurso poético de Os Lusíadas
(UI, 121), o primeiro nome transforma-se, intratextualmente,
de plano de expressão de um /ator não-humano/ em plano
de expressão de um /ator humano/ (ou "humanizado"), pois
ql.le a predicação contextual lhe atribui um /fazer humano/
(o "mentir"); de modo parecido, o segundo nome, pensamentos,
que se definia, extradiscursivamente, como /ator não-animal/
transforma-se, intratextualmente, em /ator animal/ (ou "ani-
malizado"), pois que a predicação contextual lhe atribui um
/fazer animal/ (o "voar").
Ora, a propriedade animalização e da personificação
de atores extradiscursivamente definidos como /não-animais/
ou /não-humanos/ é um dado inerente aos discursos que
incluem uma narratividade subjacente, pois que a narrativa
goza do privilégio de desqualificar ou de requalificar, contex-
tualmente, as qualificações produzidas pela língua. Assim, a
antropomorfização do primeiro nome e a animalização do se-
gundo é produto de uma relação ideológica que define o epi-
sódio de Inês de Castro como "uma narrativa em verso", e é, ao
mesmo tempo, produto da inserção tópica dos versos em causa
no interior dessa narrativa. De modo que é impossível deci-
dir, a priori, atentos unicamente para as definições classemáti-
cas produzidas a nível da língua e a nível da frase, se um deter-
minado elemento como, por exemplo, Adamastor, na frase
"Chamei-me Adamastor ... " (Os Lusíadas, V, 51)
91
manos/ -, se atribui uma competência ("esquecer-
-se de passar"), e à lua - ator /não-hum ano/ se
uma atividade humana, "ceifar", logo promovida condição
de atividade mítica (isto é, [/humana /
mesmo tempo), "ceifar sono e sonho".
+ /não-hum ana/] ao
92
de que em qualquer mensagem ocorre, normalmente, "um feixe
de funções", não sendo esse feixe "uma simples acumulação"
de modo que "é sempre muito importante saber qual é a
função primária e quais são as funções secundárias", todas
essas observações incidem, apenas, sobre a existência de uma
hierarquia funcional no interior de cada mensagem, ignorando
um problema de princípio, de cuja solução depende, inicial-
mente, o encaminhamento da solução desse mesmo problema
que Jakobson aponta; este problema é o de saber se não
existe urna hierarquia funcional "autônoma", fora da própria
mensagem e anterior à própria hierarquia "sínoma" (con-
textual), de modo que determinadas funções se subordinem
extradiscursivarnente a outras.
Será correto colocar no mesmo nível a função fática, por
·exemplo, que focaliza o canal de comunicação entre dois co-
rnunicantes, e a função poética, que focaliza o próprio comu-
nicado? Se não, que espécie de função (relação) mantêm elas
entre si?
O problema se toma particularmente agudo quando per-
cebemos que as mensagens em função fática apresentam um
repertório de características singulares: elas comportam-se
como "mensagens velhas", elementos de protocolos, já que, ao
contrário das frases que compõem a parole dos autênticos
discursos, elas não necessitam ser construídas pelo falante
(que já as memorizou de urna vez para sempre) em cada ato
concreto de comunicação. Ora, se a produção da parole e do
sentido, qualquer que venha a ser a definição que a essas
palavras· se dê, exige, necessariamente, urna liberdade de
escolha, por parte do falante I ouvinte, de elementos sujeitos
a, pelo menos, duas alternativas eqüiprováveis ("só há signi-
ficação onde há liberdade de opção", Assis Silva), e se essa
liberdade inexiste, corno ocorre no caso das frases fáticas pro-
tocolares, então as frases fáticas não possuem o estatuto da
"parole" nem possuem, rigorosamente falando, qualquer sen-
tido lingüístico.
Nos rituais de apresentação, é forçoso que as pessoas
apresentadas, apreciem-se ou não, digam "muito prazer", "en-
cantado", ou algo semelhante. Esse comportamento. de previ-
sibilidade total e, por isso, de informação nula, contrasta com
98
o comportam ento não previsto, altamente significativo, da
pessoa que, sendo apresentada a uma terceira, fique em si·
lêncio. O silêncio que é, nesses casos, não-previsto, sente-se
como algo afrontoso porque ele isola as pessoas em um com-
portamento autista que ameaça a manutenção dos vínculos
comunicativos que suportam a coesão de uma sociedade.
É curioso observar que, nesses casos, o está carre-
gado de é o não-falar, não o só pode dar
a entender que a mensagem fática é usada não tanto
significar alguma coisa, a nível lingüístico, como, mais vr,ontn-
damente, "fazer alguma coisa"', a nível pr4:lg1ná;tíccCJ:
gurar, a das condições para o diá~
, logo, a solidariedade entre os do mesmo grupo.
De fato, um sentido pragmático na opc:>sí1~ao
falar vs não-falar
no interior de
de injunções
tivas (proibições), art>itrad::ts
modalidades de reuniões
plo -, certos indivíduos
94
nome de função polêmica. Ambas aparecem como o res:uH:ado
de uma relação entre o comportamento or(tet~1aa:o
e o. comportamento adotado pelo domí1nio
uma situação protocolar regulamentada.
esclarece as condições de aparecimento uma e outra:
Comportamento RE- ~
Função
Ordenado pelo AA,.,,,.,jn pelo
Grupo ÇA:o Resultante
Indivíduo
Falar
n Falar Função Fática
Não-Falar
n Falar Função Polêmica
se expressar.
95
as funções são fáticas, o que, a rigor, a inscreve em um nível
metafuncional.
96
de expressão, a segunda pela existência dos planos de con-
teúdo); resta-nos convalidar essa teoria mediante a integração,
nela, das funções restantes, a referencial, a poética, a emotiva,
e a conativa.
97
língua com a coisa designada pela língua. Em outra obra
(Fundamentos da Lingüística Contemporânea), escrevíamos
que, assim como o signo não é o objeto ou coisa da qual ele
é nome, a linguagem não é o mundo; ela é, apenas, um saber
sobre o mundo, capaz de fazer-se intersubjetivo e de relacionar
consciências. Por isso só tem sentido falar-se de "objeto" como
o saber ou quadro de referência comum ao remetente e ao
destinatário da mensagem, que se entendem através· do código ·
que conhecem (não através do mundo); em definitivo, só se
pode falar do "objeto" do conhecimento como um ser da lin-
guagem, como um "designatum", portanto, não como um "de-
notatum". ·O designatum é, como queria Morris, não uma
coisa, mas uma classe de objetos, isto é, um modelo ou simu-
lacro de objetos, e,_assim, ao passo que os referentes ou "deno-
tata" são coisas que existem extralingüisticamente, os "desig-
nata" são conceitos que (como "Minotauro", "Perseu", "Dom
Quixote") existem intralingüisticamente, como lembranças dos
discursos de nossa cultura, que ouvimos ou lemos, e aos quais
não corresponde, necessariamente, uma. existência fora da
gua e da cultura;
98
que se implicita como uma pressuposição necessária · para a
interpretação de todos os discursos feitos nesse idioma, o dicio~
ndrio do contexto é sempre o código explícito de um único
discurso, aquele mesmo que o modelizou, co11stituindo-o como
um código intradiscursivo. O é que o dicionário m(WE?U-
zado por um discurso X confunde-se com o próprio discurso X.
O interpretante do contexto é constituído de
conteúdo dos signos desse contexto. Ele está áoitadlo
ção de extrair o sentido poético de um discurso
a função poética mostra um discurso X falando de
· discurso X. ·
signos
não se encontram nem no áH~lOnáno
língua nem do dicionário modelizado
sim, em outro discw'so.
o
uma
cobrem, na veJrdaáe,
tiva (na rel.açilio
conativa (na rel:açi!io
A coJmutni<~aç:ão lín.gü.ística é uma versão semiótica da re-
lação social entre urn o "eu" do
destinador e o "tu" do de:stiilatário, que trocam entre
si um Esse
que tem a de a ideologia de urna cmnu1nidad1e;
assim, uma de expressão de uma iá~~ol1Jgia
no seu significante do mundo modo
recer), quando,· no fundo, de si mesma (ideologia), ao
modo do ser. Por isso, é preciso reconhecer que o dis:curso
um de manifestação da língua que é um
manifestação de uma ideologia. É exatamente
o plano de de um discurso X pode racUcEtr
plano de conteúdo de uma língua quanto no
teúdo discurso X ou do discurso Y. Na pol.êirlica "o
99
mesmo modo de dizer outra coisa", típica da ideologia, e "o
outro modo de dizer a mesma coisa", típica do discurso, é que
se instala a língua: língua, discurso, ideologia, três modalidades
sernióticas: tudo está para ser dito (língua), tudo está sendo di~
to (discurso), tudo o que pode ser dito já foi dito (ideologia).
A ideologia me aparece corno aquilo que eu penso (função
emotiva); mas o que eu penso repete impensadamente aquilo
que o meu grupo pensa e obriga~e a pensar (função cona-
tiva). Na medida em que pertenço (no sentido forte) ao meu
grupo, um subentendido. (aquilo que eu penso que meu grupo
pensa) é o sentido radical do meu discurso. Por isso, o sen-
tido do meu discurso é outro discurso, que é o discurso do
outro, o meu grupo, de que me faço porta-voz, atribuindo-lhe
um plano de expressão que é tanto mais trapacean te quanto
eu o considero "meu".
Combinando urna simulação com uma dissimulação, o dis-
curso é uma trapaça: ele simula ser meu para dissimular que
é do outro. Inicialmente, ele simula ser meu naquilo que nele
não tem sentido nem valor autônomo, o plano da expressão,
nisso mesmo, portanto, que me foi imposto pelo grupo através
das operações modelizantes da aprendizagem. Por outro lado,
na condição alienante do seu sentido, desse sentido que é,
sempre, urna atribuição, um sentido do outro, o discurso dis-
simula a alienação do meu "eu". A alienação do meu dis-
curso é, enfim, a tradução lingüística da condição social alie-
nada do meu eu: assim como o meu discurso é a manifestação
trapacean te do discurso oculto do outro, o meu eu é a mani~
f estação do eu ·oculto do outro.
Por 'isso, o signo produzido por urna semiose heterodis-
cursiva
E /alfanje/
R
C3 "lua"
deixa-se decodificar, ambiguamente, de dois modos:
- ele é, do ponto de vista da expressão, um signo retórico,
ou seja, tendo em vista que o plano de expressão é o
único . dado lingüístico que se manifesta fisicamente, de
modo sensível, o. signo retórico parece ser um signo da
língua (do código extradiscursivo, ERC 1 );
100
- mas ele é, também, visto sob o prisma do conteúdo, um
signo ideológico, isto é, um signo de outro discurso, Y,
que ingressa no interior do discurso X (os signos do dis-
curso X referem-se a "um sabre de folha curta e larga"
ao. passo que os signos do discurso Y referem-se a enti-
dades outras como a "lua"; do cruzamento do discurso X
com o discurso Y nasce essa complexificação a que chama-
mos de discurso mítico, no interior do· qual "a lua é um
sabre de folha ct:~rta e larga"),
Enquanto retórico, esse signo é a figura através da qual
o plano de expressão do discurso X expressa-se ao modo do
parecer para exprimir um sentido extratextual, ERC 1
E /alfanje/
R
cl "sabre de folha
curta e larga"
quando, na realidade, ao modo do ser, ele exprime um sentido
heterotextual, ERC 3 :
E /alfanje/
R
C3 "lua"
t><D
não-parecer não-ser
PE do signo
retórico
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retórico é um signo de outro discurso (ERC 3 ) mas não parece
sê-lo (porque, ao assumir o mesmo plano de expressão 'de um
signo extradiscursivo ERC1, ele parece ser um signo ERC1).
Desse modo, podemos situar o plano de conteúdo do signo
retórico na dêixis positiva do quadrado semiótico, o eixo que
define o mistério como o complexo [/ser/ +
/não parecer/]
(ao passo que a mentira fora definida, linhas aclma, como o
complexo [/não-ser/ + /parecer/]):
ser parecer
/alfanje/
PC do signo <1~1
retórico -~-
"lua"
não pii!recer não ser
Eis porque diz Joseph Bya que "a retórica aparece como
a face significante da ideologia". ·
Com esses dados podemos compreender as
razões pelas quais denominamos enunciados do tipo que esta-
mos estudando (ou do tipo já visto, páginas atrás, "Um homem
é um homem") de enunciados retóricos. É que signos como
alfanje (ou homem 2 ) são conotadores, quer dizer, possuem ao
mesmo dois planos de conteúdo:
possuem um plano de conteúdo ao modo do
parecer; tal plano de conteúdo constitui o seu sentido li-
teral (no caso de /alfanje/, o sentido literal está no signo
da língua "sabre de folha curta e larga");
- mas possuem, também, um plano conteúdo ERC 8 ,
ao modo do ser; tal plano de conteúdo constitui o seu
sentido (ou alegórico); no caso de /alfanje/, o
sentido é "lua".
O do código nos o "sentido
passo que o interpretante ideológico nos dá o "sentido
rado"; já o interpretante do contexto (ERC 2 ) opera a con-
versão do sentido literal em plano de expressão para o sentido
figurado: ·
E /sabre de folha/
I curta e larga/
ou, simplesmente,
/alfanje/
R
"desenho de um
Ca alfanje, no céu,
à noite"
CoNFIGURAÇÃo PARADIGMÁTICA E S!NTAGMÁTICA DA METÁFOM
103
entre pessoas, um dado ideológico, e pode, por isso, ser alte-
rada (não seria sígnica se não pudesse). A reconvenção semió-
tica pode ser entendida como uma ruptura da semiose extra-
textual, da competência, mais uma sutura da semiose hetero-
textual, na performance do discurso. Eis porque consideramos
o texto como "o espaço da semiose realizada", na Introdução
deste ensaio.
Desse modo, as operações figurativas podem ser conce-
bidas como uma modalidad e a mais de realização do meca-
nismo da leitura que combina a disjunção negadora da se-
miose extradiscursiva, responsável pela ruptura
104
De fato, o jogo da substituição paradigmática de C 1 por
C 3 executa-se, sempre, no interior de um discurso bem deter-
minado e é, a esse título, um fen&meno devido às interações
sintagmático-contextuais do discurso. Ocorre que tais inte-
rações é que respondem pela produção de signos intradiscur-
sivos, do tipo ERC 2 (/alfanje/ n "desenho de um alfanje,
no céu, à noite").
É nesse signo intradiscursivo que vemos o mediador entre
o signo extradiscursivo ERC 1 e o signo heterodiscursivo ERC 3 ;
a sua função seria, precisamente, a de converter ERC 1 em
ERC 3 , coisa que faz através de duas operações:
(a) inicialmente, ERC 2 desqualifica ERC 1 , enquanto signo,
para requalificá-lo, unicamente, como o seu plano de
expressão; ERC 1 converte-se, assim, em significante de
ERC 2 , signo cujo significado encontra-se definido no in-
terior do próprio discurso X;
(b) em seguida, ERC 2 desqualifica-se a si pr6prio como signo
para requalificar-se unicamente como plano de expressão
de outro signo, ERC 3 ; ERC 2 converte-se, pois, em signi-
ficante de ERC 3 , signo de outro discurso, Y, cujo signifi-
cado encontra-se no interior desse outro discurso, Y, não
no interior do discurso X.
105
noite", em que se situa, numa isotopia complexa que re.sulta
da somatória [/isoto pia cultura l/ +
/isotop ia natura l/], um
objeto figurativo; assim, um dicionário ou código figurativo
da nossa sociedade organi za a postulação semiológica. da iso-
morfia ·
objeto cultural ::::::: objeto natural
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(a)
(b) que
para o limiar mínimo
elemento de um nível como a sua
dissociar em dois constituintes menores
a forma de uma está na sua
possibil:ida.de de ser em dois elementos mes-
mo contexto; e a forma de um contexto está na sua
de ser analisado em dois elementos do mesmo
Em termos a forma se
uma rel:açato de que
mento em
seus que
Em um exemplo simp,les,
rativo como o da t"''"""' pro]Jpilan.a Jller'es1;ão reiJOtlsa
de analisar-se
de dois
que a
um contexto; de
mento contextual agressor
sarmos como sendo o
nador/ + de uma ação, no interior do
nível mínimo de um código (o código dos papéis actanciais
.de uma narrativa, no caso) :
nível ideológico (função) Agressão
l
·nível do contexto (papéis 4
agressor vs agr'béd'd
1 o
ac.tanciais investidq s)
I
nível do código t.
destmado r +
~
não-destinatáriÇ>
(papéis actandais
não-investidos)
De modo análogo,
(a) o interpre tante do código interpre ta o designativo
( cf. pág. 97) ou literal (cf. pág. 102) de um discurso-
-objeto falando de uma língua e ele é, por sua vez, inter-
pretáve l por um interpre tante do contexto, para o qqal
serve plano de expressão;
(b) o interpre tante do contexto interpre ta o interpre tante do
código demons trar o sentido poético do discurso X
falando mesmo (discurso X); o interpre tante do con-
texto é, por sua vez, interpre tável por um interpre tante
ideológico para o serve de plano de expressão;
(c) o interpre tante ideológico, finalmente, interpre ta o inter-
pretante do contexto para demons trar o sentido retórico
do discurso X falando de outro discurso, Y. Mas, o inter-
pretante ideológico já não serve de plano de expressão
para nenhum outro interpre tante, visto que duas ideo-
logias contraditórias excluem-se mutuam ente, e, por isso,
a réalização de .uma delas acaba forçand o a virtualização
da outra.
110
espécie de sonho dogmático em que o .·"sentido" se idEmt:itic:a
com a "verdade". Pois, como se acabou de ver, na
instância da significação confundem-se "a verdaâé" e "o sen-
tido", razão à observação de Ramsey e de Strawson
a propósito da redundância da verdade. Por isso, vez
que reinterpretamos uma interpretação (que é um exe-
cutamos uma operação ideológica, pois que a co-notamos; e a
conotação é, nas palavras de Barthes, "um fragmento ideo.
logia". Cada vez que reinterpretamos um texto já
tado, transformamos esse texto em ( pretexlto)
um segundo o que só se pode fazer nel~antdo
a sua ·condição texto, para
de discurso, plano de
de outro texto, incessantemente perseguido.
Assim, é enquanto plano de expressão, não en,qw~mt:o
de conteúdo, que uma obra tem muitos textos; o
natário pressupõe da existência de um discurso
o destinador disse, um texto, um é o
dizer, a intenção de comunicar que resta
pn~tada para que o discurso, finalmente, faça
subentendido, capaz de se definir como "aquilo que o
naltárilo do discurso pensa que o destinador do discurso
ao emitir seus enunciados" (o autor quis dizer que . . .)
o processo da interpretação através de uma re!;semiolc>gi:za!~ão
sempre renovada, à medida que se sobe interpreta-
tivo: um nível inferior será sempre o expressão
um sentido que não está nesse nível, está no nível imediata-
mente superior.
Subjacente a esse diálogo entre uma retórica que em
cada significado de um texto, o significante de outro discurso,
e uma ideologia que vê, em cada significante de um discurso,
o significado de um texto, subjacente ao próprio fazer discur-
sivo, portanto, abriga-se a estrutura narrativa de uma luta
entre dois actantes (os actantes do discurso) cujo fazer se
contrapõe na polêmica sempre renovada entre a atividade de
definir e a atividade de denominar.
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*
Este livro foi composto e
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CURSO DE LINGOfSTICA GERAL*
Ferdinand de Saussure
E
LINGüíSTICA* - Eric Bu}•sse1u
com a EDUSP
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e Tecnologia.