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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROF. DR. RONY PETTERSON GOMES DO VALE
RONYVALE@ UFV.BR

LET 102 – LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL I

AULA 02 – DESCREVENDO O PROCESSO DE


LEITURA: A RELAÇÃO ENTRE A FALA E A ESCRITA
OBJETIVOS DA AULA:

 Apresentar um pouco da história da leitura;


 Refletir sobre as principais concepções de leitura;
 Refletir sobre a relação da leitura com os níveis de compreensão;
 Discutir uma tipologia para as diferentes formas de leitura.
PRELIMINARES
Por uma noção (provisória) de texto1

sujeitos
produto sociedade

processo cultura

texto
contexto história

sentido(s) cognição

coesão e
linguagem
coerência
práxis discurso

1
Cf. KOCH (2011).
Por uma noção (provisória) de leitura
De acordo com o Dicionário de didática das línguas2, “leitura” é:

1. Acção de identificar as letras e de as juntar para compreender


a ligação entre o que é escrito e o que é dito. Ex.: a minha filha
aprende a ler.
2. Emissão em voz alta de um texto escrito. A passagem do
código escrito ao código oral pressupõe o conhecimento das leis
que regem esta transposição e que constituem uma disciplina
chamada ortoépia.
3. Acção de percorrer com os olhos o que está escrito para
tomar conhecimento do conteúdo. Ex. “Avez-vous lu Vitor
Hugo?”

2
Cf. GALLISSON & COSTE (1983, p. 427)
3
UMA BREVE HISTÓRIA DA LEITURA

3
A maior parte do conteúdo dessa seção é baseada em Brodbeck (2012, p. 13-23).
Linguagem (falante/ouvinte) vs. Escrita (escritor/leitor)

[...] A evolução do ser humano é biológica, daí a sua


capacidade natural como falante e ouvinte, mas não como
escritor e leitor. (HARVELOC, 1995)4

Mas... haveria influência da questão social?

4
Apud BRODBECK (2012, p. 16)
[...] deixando de lado os incontáveis milênios em que as
sociedades humanas foram exclusivamente orais, pode-se concluir
que, dos egípcios e sumérios aos fenícios e hebreus (...), a escrita
nas sociedades onde era praticada restringiu-se às elites clericais
ou comerciais, que se davam ao trabalho de aprendê-la. As
atividades ligadas à justiça, governo e vida cotidiana ainda eram
comandadas pela comunicação oral... (HARVELOC, 1995)5

Exemplos: Roma/latim/romance/vulgares Portugal/latim/português


Brasil/língua geral/português

5
Apud BRODBECK (2012, p. 16)
Antiguidade

A leitura antiga é leitura de uma forma de livro que não tem


nada de semelhante com o livro tal como a conhecemos, tal
como conhecia Gutemberg e tal como conheciam os homens
da Idade Média. (CHARTIER, 1998)6

 livro ≠ veículo/suporte => tábuas de barro, pedra, metais => papiro,


pergaminho

6
Cf. CHARTIER (1989 apud BRODBECK, 2012, p. 15).
 inconvenientes: i) praticidade (usar as duas mãos); ii)
armazenamento e custos; e iii) durabilidade

 preferência pela transmissão oral de ideia (fala pública e a polis)


(sofistas X Sócrates/Platão X Aristóteles)

 recitação > Homero > Ilíada/Odisseia  tradição oral de contar


histórias antes do registro escrito
A leitura dos Antigos

Cena = pequeno grupo de ouvintes para os quais havia um leitor

Ao leitor cabia: i) atribuir vida aos textos: prosódia, pausas,


acentuação; ii) encenação (performance) ≈ teatro > ator

Aos ouvintes: memorização (capazes, por exemplo, de memorizar


grandes partes da Ilíada ou da Eneida)
Idade Média (europeia e cristã)

Restrições e privilégios (passagem Antiguidade > Idade Média)

A leitura se tornou privilégio dos monges, que exerciam a


função de copistas de novos livros e também guardiões da
cultura greco-romana. O conhecimento, de certa forma,
ficava restrito às bibliotecas e às salas de leitura dos
monastérios e círculos adstritos a certos extratos da
sociedade medieval. (BRODBECK, 2012, p. 18)
Assim, nesse contexto:

 excluíam-se as classes mais baixas da sociedade medieval (que


também não tinham interesse nessa prática); leituras públicas, contos de
gesta, textos complexos, ausência de educação formal de amplo alcance;

 projeto da Igreja: além da proteção da exegese bíblica, havia a


tentativa de conciliar o conhecimento principalmente de Platão (Santo
Agostinho) e de Aristóteles (São Tomás de Aquino) à filosofia Cristã.

 monges, copistas e pensadores (diferentes papeis nos mosteiros).


Renascença
Invenção da imprensa por tipos de Gutemberg (1440);
 expansão do público leitor (outras classes) [pressão do mercado]
 expansão da escolarização mais ampla;
 livros grandes (rituais) > livros pequenos (leitura particular)

=> leitor laico (sem as amarras da Igreja) e contemplativo (sem as


amarras de tempo e lugar)
=> impressão de outros livros (para além da Bíblia)
Do Iluminismo ao século XIX

 Maior Alfabetização (pressão do mercado);


 Leitura como passatempo (entretenimento);
 Diversificação das fontes de leitura
 Pessoal: cartas, diários etc.
 Teórica: manuais, especulação científica, enciclopédias;
 Temáticas: textos narrativos (conto, romance etc.)
Leitura no século XX: o século da velocidade

Leitor movente, fragmentado, de memória curta e sem tempo

Que foi se ajustando a novos ritmos de atenção, ritmos que


passam com igual velocidade de um estado fixo para um estado
móvel. É o leitor treinado nas distrações fugazes e sensações
evanescentes cuja percepção se tornou uma atividade instável,
de intensidades desiguais. É, enfim, o leitor apressado de
linguagens efêmeras, híbridas, misturadas. (SANTAELLA,
2004)7

7
Apud BRODBECK (2012, p. 21).
Século XX1 e o Leitor da era digital

Leitor imersivo, virtual

cuja subjetividade se mescla na hipersubjetividade de


infinitos textos num grande caleidoscópio tridimensional
onde cada nó e nexo pode conter uma outra grande rede
numa outra dimensão. (SANTAELLA, 2004)8

Assombrado pelo “o que ler?”

8
Apud BRODBECK (2012, p. 22).
Leitura e níveis de compreensão

Engelmann & Trevisan (2015) propõe que a leitura está ligada a três
níveis de compreensão de textos:

1º - nível da palavra
2º - nível textual
3º - nível interpretativo-crítico
1º nível: o das palavras

 Para alcançá-lo, é preciso compreender as palavras do texto e a história


narrada. Quando uma pessoa tem dificuldades nesse nível, fica presa às
palavras e, não raramente, necessita recorrer ao dicionário para saber o
significado de muitas delas9.  semianalfabeto (?)

ex.01 – το πλοιον εστιν εν Βυζαντιω


ex.02 – TERRA ROTUNDA EST

9
cf. Engelmann & Trevisan (2015, p. 18-19).
2º nível: o textual
 Alcançado por aquelas pessoas que conseguem até desenvolver uma
leitura fluente e entender a história narrada e os fatos ditos, mas não
compreender a “moral” da história, o que está nas entrelinhas.
 Analfabeto funcional (?)

ex.03 – Emergindo de um já avolumado invólucro retentor dos mais


paradoxos ditos legais, expõe‐se ululante à questão da tolerância
admissível tangente ao deslocamento veloz preestabelecido dos
automotores à ânsia crescente dos velocímetros em alvejar a potência
registrada no rótulo do indômito translador.
3º nível – o interpretativo-crítico

 Nesse nível, é dever do leitor interpretar o texto e ser capaz de elaborar uma
crítica sobre ele. Somente após saber as intenções do autor o leitor pode produzir
um pensamento crítico a respeito do texto, ou seja, distinguir as ideias nele
contidas reafirmando o que, em sua opinião, deve ser mantido e evidenciando o
que deve ser alterado.

Mas... (?) o que é interpretar? (?) O que é criticar? Como fazer isso?
(?) o que é “intenção do autor”?
Ex.04 – Dêmades, o orador

Um dia, Dêmades falava ao povo de Atenas. Como ninguém o


escutava, ele pediu permissão para contar uma fábula de Esopo.
Permissão dada, ele começou:
─ Deméter, uma andorinha e uma enguia caminhavam juntas.
Chegaram à beira de um riacho. A andorinha então voou e a
enguia mergulhou na água. Depois calou-se.
─ E Deméter – quis saber o povo –, o que ela fez?
─ Ela ficou irada com vocês, que deixam de lado os negócios
do Estado para ficar ouvindo fábulas de Esopo.
Concepções de leitura: analisando uma proposta de tipologia

Hartmann & Santarosa (2012, p. 73), com base em Geraldi (1996)


propõe alguns tipos de leitura:

BUSCA DE INFORMAÇÃO  pergunta(s) orientadoras => querer saber mais

ESTUDO DO TEXTO  escutar o texto (deixá-lo falar) => absorver


leitura “tudo” o que captar

PRETEXTO  usar o texto para produzir outros textos

FRUIÇÃO  ler sem perguntas, sem pretextos => busca


pelo prazer
LEITURAS x PASSIVIDADE

[...] o leitor não pode negar-se diante do texto (abandonar os seus


saberes) nem negar o texto (manter-se fechado às ideias do autor,
que, analisadas, podem, então, ser contrapostas às ideias do leitor).
Diante do texto, o leitor tem de se colocar como um ser que
pergunta, reflete, argumenta, contesta, aprende e reaprende.
(GERALDI, 1996)10

10
Apud (HARTMANN; SANTAROSA, 2012, p. 74)
Diante disso, ficam as questões:

É possível ensinar a ler quem já sabe ler?


É possível ensinar a “interpretação de texto”?
Referências bibliográficas
BRODECK, J. T. A história da leitura. In: BRODECK, J. T.; COSTA,
A. L. H.; CORREA, V. L. Estratégias de leitura em língua portuguesa.
Curitiba: InterSaberes, 2012, p. 13-23.
CHAVES, R. Leitura: um campo dos sentidos. In: CANO, M. R. O.
(coord. e org.) Língua portuguesa: sujeito, leitura e produção. São
Paulo: Blucher, 2018, p. 35-46.
ENGELMANN, A. A.; TREVISAN, F. C. Leitura e produção de textos
filosóficos. Curitiba: InterSaberes, 2015.
ESOPO. Fábulas. Porto Alegre: L&PM, 2018.
GALLISSON, R.; COSTE, D. Dicionário de didática das línguas.
Coimbra: Almedina, 1983.
HARTMANN, S. H. G.; SANTAROSA, S. D. Práticas de leitura para
letramento no ensino superior. Curitiba: InterSaberes, 2012.
KOCH. I. V. A construção textual do sentido. In: KOCH. I. V. O texto e
a construção do sentido. São Paulo: Contexto, 2011, p. 25-30.
Obrigado!

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