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CCMQ
Um coelho branco é tirado de dentro Alguns deles não chegam a concluí-la,
de uma cartola. E porque se trata de mas outros se agarram com força aos
um coelho muito grande, este truque pêlos do coelho e berram para as pesso-
leva bilhões de anos para acontecer. as que estão lá embaixo, no conforto da
Todas as crianças nascem bem na pelagem, enchendo a barriga de comida
ponta dos finos pelos do coelho. Por e bebida:
isso elas conseguem se encantar com
a
cima. Só os filósofos têm ousadia para E continuam a conversar: será que você
se lançar nesta jornada rumo aos limites poderia me passar a manteiga?
da linguagem e da existência.
JOSTEIN GAARDER,
O mundo de Sofia (1998)
2
Sumário Proposições/Atividades
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A escrita de si
Apresentação Explorando a autoficção
12 A Casa
50 Monstruário
Sou meu próprio Frankenstein
14 O poeta
60 Novas definições
para um glossário criativo
68
Meu quarto,
Seção especial minha vida
Arquelogia pessoal
90 82
Revoada
Literatura surda A transformação
do papel em passarinho
Material para educadores
A leitura do mundo
pelo Espelho Mágico
de Mario Quintana
Queride Educadore,
Em comemoração ao nascimento de
Mario Quintana, o Núcleo Educativo
da Casa de Cultura Mario Quintana
apresenta este Material Educativo com o
objetivo de possibilitar uma abordagem
lúdica, livre e criativa sobre a poesia, a
vida e o legado de Quintana.
6 7
Reunindo imagens e informações Sobre esse aprofundamento,
sobre o escritor, traz possibilidades ele continua: É um
de abordagens pedagógicas aprofundamento da visão
fundamentadas em relações que a gente tem da vida. E um Os poemas são pássaros que chegam
entre diferentes linguagens. aprofundamento em si mesmo.
Intencionamos que o material seja A poesia, para mim, é um
não se sabe de onde e pousam
um ponto de partida para o debate instrumento de reconhecimento no livro que lês.
da obra do poeta e do universo de do meu mundo, do mundo dos
questões suscitadas por ela. outros, e, talvez, dos outros
Quando fechas o livro, eles alçam voo
mundos.¹ como de um alçapão.
É nosso objetivo contribuir para a
instrumentalização dos educadores Justamente, este Material
Eles não têm pouso
para que possam trazer seus Educativo procura incitar esse nem porto
alunos para a Casa de Cultura, movimento de reconhecimento:
adaptando e modificando as ideias de si, do outro e dos eternos
alimentam-se um instante em cada
e provocações que este Material mundos possíveis que a par de mãos
suscitar. imaginação pode abrigar. Afinal,
é essa a descoberta que instiga
e partem.
A partir das palavras do poeta, para a poética de Quintana. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
quem a poesia não seria uma fuga
da realidade, como muitos pensam Refletindo sobre a natureza dos
no maravilhado espanto de saberes
e sim um aprofundamento da visão poemas, o autor escreve: que o alimento deles já estava em ti... ²
da realidade, esperamos incentivar
o prazer pela leitura e pela
criação poética, entendidas como
instâncias de desenvolvimento
da sensibilidade humana e da
percepção crítica do mundo. ¹ Entrevista concedida a Araken Távora, ² Mario Quintana, Esconderijos do tempo,
veiculada no Programa Encontro Marcado 1980.
(TVE) nos anos 1990 Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=ujJHrfxuwyc>.
8 9
Nesse poema, Quintana declara Análogos à poesia, os
seu posicionamento sobre a processos de aprendizagem
relação entre o leitor e a poesia. configuram-se como
Partindo da metáfora dos pássaros, conversas imprevisíveis,
o autor condensa as ideias de livres das amarras de um
liberdade, voo, imprecisão e roteiro e abertas a surpresas.
transitoriedade. Em seu desfecho, Desafiando, invariavelmente,
o texto revela que a leitura do os estudantes a remexerem em
poético parte de um diálogo seus próprios baús de espantos.
íntimo e cúmplice entre aquele
que lê e o lido. E reconhece, Assim, as propostas de
no leitor, uma potência criativa, atividades aqui reunidas
afirmando-o como um descobridor funcionam como sugestões
do não-pensado existente em si de abordagem da obra de
mesmo, e não um mero decifrador Quintana, não esgotadas em si
de códigos. mesmas, e permeáveis a serem
transformadas e adaptadas
Com esse pensamento, damos às mais plurais realidades
abertura ao Material Educativo as quais elas cheguem.
sobre o poeta, defendendo nossa
aposta na educação como
instrumento ativo de criação e Boa leitura!
transformação da sociedade, um
processo no qual todos envolvidos,
educadores e educandos, ensinam Núcleo Educativo
e aprendem uns com os outros, Casa de Cultura
em diálogo constante. Mario Quintana
10 11
Casa de Cultura
Mario Quintana
(Inaugurada em 25 de setembro de 1990)
Novamente reprovado em
segunda época na disciplina de
desenho, desliga-se do Colégio,
a pedido do pai. Mergulha na
leitura dos novelistas russos,
poetas simbolistas franceses
e revistas de arte europeias,
sendo assíduo frequentador da
Biblioteca Pública do Estado. Em
janeiro, desiste do Colégio Militar,
sem completar os estudos —
o que jamais fará.
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VIDA PROFISSIONAL
No caminho da
consagração
Em 1948, saem duas novas
publicações, uma de poemas e
prosa poética, chamado Sapato
Florido, e outra dedicada ao
público infantil, O Batalhão
das Letras. Cinéfilo, participa
também da fundação do Clube
de Cinema de Porto Alegre.
Prêmios e
reconhecimentos
Em 1967, recebe o título de Publica Caderno H, em
Cidadão Honorário de Porto 1973. Ao completar setenta
Alegre, outorgado pela Câmara anos, recebe inúmeras
de Vereadores. É nessa ocasião homenagens. Entre elas,
em que profere as seguintes a medalha Negrinho do
palavras: Antes, ser poeta era um Pastoreio, do Governo do
agravante; depois, passou a ser Rio Grande do Sul. Publica,
uma atenuante, mas diante disso, nesse mesmo ano, o livro
vejo que ser poeta é agora uma Apontamentos de História
credencial. Sobrenatural, pelo qual
recebe o Prêmio Pen Clube
No ano seguinte, é homenageado de Poesia Brasileira.
com uma placa em bronze na
praça principal de Alegrete, Em 1978, perde a irmã. Em
onde estão inscritas as suas 1980, edita Esconderijos do
palavras: Um engano em bronze Tempo. Recebe o Prêmio
é um engano eterno. Morre seu Machado de Assis, da
irmão, Milton. Quintana passa a Academia Brasileira de
residir no Hotel Majestic, onde Letras. Estreia o espetáculo
fica até 1980, quando o prédio A estrela e a Sucata, baseado
é vendido ao Banrisul. Depois em seus poemas, e montado
disso, vai morar em outros por sua sobrinha, Elena
hotéis da cidade. Quintana, que seria sua
principal companhia nos
próximos anos.
Mario Quintana, por Dulce Helfer.
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VIDA PROFISSIONAL
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PARA IR ALÉM POESIA HOJE
Poetas Diversos foi uma mostra de escritores mais experientes. O coletivo Poetas Vivxs é uma agentes culturais e professores, que
vídeos de poesias autorais inéditas iniciativa cultural afrocentrada que abordou pautas emergentes em
criadas especialmente produzidas Anunciada na semana do aniversário busca formar, divulgar e fortalecer âmbitos escolares como racismo,
para o projeto. Veiculada no de Mario Quintana, poeta patrono artistas negres. Com foco na saúde mental, afeto e autoestima.
Instagram da CCMQ, a programação da Casa, a programação destacou Literatura Marginal, na educação Também realiza oficinas, slams,
foi publicada no mês de agosto de a potência da palavra escrita em antirracista e nas músicas de e lança músicas e produções
2020 e teve sua segunda edição diálogo transversal com outras empoderamento, o coletivo tem audiovisuais nas plataformas digitais.
em 2021. Contemplando poetas linguagens, como a performance, uma atuação ampla, em diversas | Acompanhe: <instagram.com/
reunidos pela ideia da diversidade — artes gráficas, artes cênicas e a frentes. Promove atividades como poetasvivxs/> | Veja o documentário
não apenas estética, mas de etnia, realização audiovisual. | o curso Formando Multiplicadores Tem preto no sul (2021): < https://
expressão de gênero e social, a Veja as duas edições em: de Cidadania, projeto de formação www.youtube.com/watch?v=VB_
mostra integrou jovens escritores e <instagram.com/ccmarioquintana> continuada para educadores sociais, Z0qS8Elw>
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Proposições / Atividades
A escrita de si
Explorando a autoficção¹
Escrever sobre nós mesmos No retrato que me faço
traz alguns desafios. Será - traço a traço -
que a nossa percepção da às vezes me pinto nuvem,
realidade, e de nós mesmos, às vezes me pinto árvore...
corresponde com o que de
fato existe? Podemos confiar às vezes me pinto coisas
no escritor que parte do ponto de que nem há mais
de existência do “eu”? lembrança...
ou coisas que não existem
No poema O auto-retrato [sic], mas que um dia existirão...
de Mario Quintana, publicado
em 1976, a confluência entre a e, desta lida, em que busco
poesia e a própria existência se - pouco a pouco -
misturam. Nele, juntam-se o ato minha eterna semelhança,
de criação da obra poética e o
ato de se construir enquanto no final, que restará?
pessoa²: Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
42 43
A leitura deste fragmento pode nos levar a dois caminhos. O
primeiro é considerar que tudo que o autor escreveu é verdade;
o segundo, um pouco mais cético, é o que se questiona sobre
o quanto desse relato seria ficcional. Afinal, escrever um texto
autobiográfico sobre momentos da infância exige acreditar na
experiência e na memória dos outros. Quais são as histórias que
nos contam sobre nós mesmos? Como elas nos constituem?
Realidade?
Ficção?
Convide seus estudantes a escreverem sobre a principal coisa
que já lhes aconteceu. Se, como Quintana, escolherem o dia em
que nasceram, proponha que conversem com os pais, avós ou
parentes sobre esse momento. Podem escolher escrever sobre o
melhor dia de suas vidas, também. Quais foram os detalhes que
fizeram aquele dia possível? Como ele transformou os alunos?
Proponha aos estudantes escreverem uma narrativa, atendo-
se ao ambiente, aos personagens e ao conflito central da
história, incluindo nela pelo menos três fatos inventados, além
de verdades. Quando compartilharem seus textos com a turma,
será que vai ser fácil saber o que é verdade e o que é ficção?
44 45
PARA IR ALÉM A ESCRITA DE SI
Farrell Severijns, 28 anos, Islam Shah, 14 anos, Dagmar Vroomen, 64 anos, Notah Backer, 25 anos,
Holanda , professora . Líbano, estudante. Inglaterra , aposentada . Estados Unidos, advogado.
Mohamed Gomez, 12 anos, Rupa Perko, 31 anos, Sarah Michelle, 40 anos, Lucas Bordini, 4 anos,
Argentina , estudante. Paquistão, enfermeira . Austrália , bióloga . Brasil, estudante.
46 47
PARA IR ALÉM A ESCRITA DE SI
Nenhuma das pessoas que imagens, podendo também Estima-se que o StyleGAN nos atentar aos detalhes. É
aparecem nas imagens das controlá-los. Cria-se, a crie, constantemente, um comum que dentes apareçam
duas páginas anteriores são partir disso, imagens em alta rosto novo a cada dois tortos de modos inusitados, ou
reais. Todas as oito fotos resolução que são frutos da segundos. Nesse ritmo, a que brincos apareçam em uma
foram criadas a partir de junção de diversas outras tecnologia artificial pode só orelha. Entretanto, às vezes
uma classe de algoritmos imagens (às vezes quase afetar não só a imagem de nem isso é suficiente para
de inteligência artificial milhares), agora condensadas pessoas mais conhecidas, discernir o que é fotografia
conhecida pela sua sigla em uma só. Elas, contudo, como presidentes e verídica e o que não é. É
em inglês, GAN (Generative mantém, ao olho humano, um celebridades, mas também preciso estar atento, e sempre
Adversarial Network). aspecto de autenticidade - que, ter impactos concretos (e duvidar.
na verdade, não possuem. muitas vezes negativos) na
As Redes Generativas vida de pessoas comuns. A partir deste exemplo,
Antagônicas, como são O site Esta Pessoa Não Existe podemos discutir questões
chamadas em português, disponibiliza, gratuitamente, Esse nível de manipulação referentes ao desenvolvimento
existem desde pelo menos um arquivo infinito de retratos da imagem, inédito até os tecnólogico, pensando sobre
2014 e funcionam através de pessoas cujas imagens dias atuais, gera medos e os limites, as vantagens
de um tipo de sistema foram criadas artificalmente desconfortos. Inclusive, e as desvantagens dessa
de redes chamadas de pelo software StyleGAN. É aqueles que têm menos “evolução”. De que modo a
“neuronais”, que aprendem esse o mesmo reponsável pela acesso à informações sobre manipulação das imagens,
novas informações criação de deepfakes, que essa tecnologia são os que e portanto novas escritas
automaticamente e de modo são videos e audios altamente estão mais vulneráveis aos sobre a realidade, interferem
não supervisionado. persuasivos e realistas, seus maus usos. e modificam a nossa própria
porém completamente falsos. relação com o mundo?
Esse sistema é capaz Foi desse site que tiramos Para identificar se uma
de apreender dados de as fotografias das páginas imagem foi criada por um Para saber mais:
gigantescos grupos de anteriores. software ou não, devemos Site: this person does not exist
<https://thispersondoesnotexist.com/>
48 49
Monstruário
Sou meu próprio Frankenstein
Deve haver tanta coisa desabada
Lá dentro… Mas não sei… É bom ficar
Aqui, bebendo um chope no meu bar…
E tu, deixa-me em paz, Alma Penada!
XXVI (Deve haver tanta coisa desabada), Mario Ilustração da edição de 1831 de Frankenstein ou o
Quintana. Em: A rua dos cataventos (1940) Prometeu Moderno, por Theodor von Holst.
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MONSTRUÁRIO
54 55
MONSTRUÁRIO
56 57
PARA IR ALÉM MONSTRUÁRIO
58 59
Novas definições
para um glossário criativo
62 63
INCOR AMIZA
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E GLOSSÁRIO CRIATIVO
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PARA IR ALÉM GLOSSÁRIO CRIATIVO
Em 2019, a obra Voz Ativa: Biblioteca movidos pelos visitantes. Além habitante desse bairro, Lanari como nos conta o site da instituição.
Social, da artista brasileira disso, a instalação contava com constrói uma comunidade "Projetar a vizinhança nos livros é
Mariana Lanari, reuniu mais de recursos em audio, que ficavam a partir desse acervo que uma forma de lembrar a origem desta
8 mil livros que integravam a até ecoando trechos dos livros lidos estava antes às traças. Nesse biblioteca, formada por diversas coleções
então abandonada biblioteca do pelo público. Também continha processo de ativação, as particulares de imigrantes que vieram
Centro Cultural Casa do Povo, em cadeiras e microfones, para que vozes dos visitantes, que para o Brasil fugidos da Segunda Guerra
São Paulo. Organizados no chão os visitantes pudessem contribuir dão vida a esses textos, Mundial nos anos 40 e habitaram o Bom
de acordo com as ruas do bairro com as suas próprias leituras são fundamentais. Afinal, Retiro", complementam.
onde a instituição fica localizada, em voz alta. Ao situar cada livro "uma biblioteca sem leitores
Fotos por Carolina Quintanilha. Mais informações em:
o Bom Retiro, os livros podiam ser como uma casa, ou até como um é apenas um depósito", <https://casadopovo.org.br/voz-ativa-biblioteca-social/>
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ARQUEOLOGIA PESSOAL
Meu quarto,
minha vida
O que os nossos objetos
contam sobre nós?
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MEU QUARTO, MINHA VIDA ARQUEOLOGIA PESSOAL
A primeira atividade é a
proposição de uma viagem
ao próprio quarto, pensando
nos objetos que ele guarda. Um dos quartos mais famosos da História da
Arte, o quarto de Vincent van Gogh em Arles,
Inspirados pelo texto Viagem na França, segue sendo um dos exemplos mais
ilustre sobre representações do espaço íntimo.
ao redor do meu quarto, escrito Óleo sobre tela, foi feito em 1889.
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MEU QUARTO, MINHA VIDA ARQUEOLOGIA PESSOAL
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PARA LER JUNTO
Se
você fechar os olhos, você consegue imaginar O mundo é um truque de magia. De dentro da
o seu quarto? Bem, provavelmente sim. Talvez cartola, o mágico tira um coelho gigantesco. As
você já tenha até decorado algumas marcas, crianças, todas, nascem na ponta dos pelos do
na pintura da parede, no armário, na porta — marcas que coelho, admirando a beleza que é esse truque
normalmente não daríamos a menor importância, mas que de magia. Também podem admirar o mundo pelo
para o habitante n.1, são o que distinguem esse lugar de qual o coelho percorre, descobrindo coisas novas.
todos os outros. Só quem mora de verdade em um espaço Entretanto, conforme envelhecem, cada vez mais
sabe os segredos que ele guarda, as histórias que essas se arrastam para o interior da pelagem do coelho.
marcas contam. Mesmo que a gente seja novato, quando Lá embaixo é confortável, não balança como na
por exemplo, acabamos de nos mudar para uma casa nova, ponta dos pêlos, nem há muitas surpresas que
já começamos a deixar marcas nos espaços que habitamos. valham o esforço de subir novamente até lá em cima.
Em meio à pandemia, a normalidade não é uma coisa que Só os inquietos e aventureiros (ou filósofos, como
tem sido fácil de encontrar por aí. Uma volta pela quadra, ele diz) que ousam tentar subir no pelo, procurando
por exemplo, não vem mais sozinha. Vem com o álcool em manter-se admirados pelo mundo em que vivem.
gel na mão, a máscara no rosto e... às vezes com a solidão Os conformados ficam lá embaixo, reclamando:
como companheira, ao invés de uma pessoa amiga (ou uma — Mas que gente barulhenta!
paquera, quem sabe?). Nessa rotina, a gente pode esquecer E seguem com sua habitual conversa:
que gosta de coisas que sempre adoramos. Sabe, tem um — Será que você poderia me passar a manteiga? Qual
escritor norueguês que conta uma história que acho muito a cotação das ações hoje? Qual o preço do tomate?
linda sobre a rotina. Ele escreveu algo mais ou menos assim:
E, é claro, que essas coisas pouco importam
aos que se aventuram na ponta dos pelos.
76 77
No fim, acho que essa história não é muito sobre procurar
onde se pendurar ou virar alpinista de coelhos gigantescos.
Penso que seja sobre olhar para aquela marca de pintura
velha na nossa parede e enxergar um rosto, uma praia, um
raio de tempestade; qualquer coisa, menos uma marca
de pintura velha. Eu estou viajando muito? Quero dizer,
o que o texto me provocou a pensar é: as coisas, por
mais banais que possam parecer, são todas incríveis. Um
outro escritor, que talvez você já conheça, teria dito algo
parecido a uma amiga que achou o quarto dele pequeno:
78 79
PARA IR ALÉM ARQUEOLOGIA PESSOAL
Contar a história de uma vida a a partir de sua dimensão em de família e contas, recibos camiseta? O que estava pensando
partir dos objetos acumulados aparência mais contingente: a de e boletos. Para além da enquanto lia aquele livro? Que tipo de
ao longo dos anos é o mote da seus resíduos materiais. Mais ainda, esfera do consumo, esses criança foi ao jogar com aqueles carrinhos
exposição As Coisas, do artista é a partir dos objetos que estão objetos também servem de brinquedo? Ao fazer a memória (e
carioca Daniel Jablonski. Instalação fora de uso que essa cronologia como poderosos suportes o esquecimento) passar pelo filtro do
multimedia realizada em 2018 na se constrói. Os mais de 3000 narrativos. Trata-se de tentar mundo exterior, a exposição propõe-se
Galeria Janaína Torres, a obra itens vão desde roupas velhas a compreender o que esses menos como o museu pessoal do artista
pretende reconstituir — de forma fotocópias de textos de faculdade, resíduos materiais obrigam e mais como um arquivo comum de uma
quase detetivesca — a cronologia passando por objetos de cozinha, a contar: onde estava ele geração compartilhada. | Adaptado de
dos 33 anos de vida do artista, livros, catálogos, até fotografias quando comprou aquela <https://www.janainatorres.com.br>
80 81
Revoada
A transformação
do papel ao passarinho
Poeminha do contra
Uma das mais conhecidas literária obtida neste poema, Para você, quais ideias são
poesias de Mario Quintana, isto é, sua abrangência sugeridas pela a expressão
Poeminha do Contra concentra que transcende marcos de “atravancar o caminho?” Que
características proeminentes da espaço e tempo. Para tanto, situações e experiências esse
sua poética: a espirituosidade, o os poetas, genuínos artistas verso o leva a recordar?
poder de síntese e a capacidade das palavras, acessam a Quais os significados que o
de surpreender o leitor através potência comunicativa dos elemento pássaro nos leva a
de um trabalho de linguagem que vocábulos, valendo-se, pensar? Que sensações são
agencia e convoca as palavras muitas vezes, dos aspectos acionadas por esse personagem?
a significarem para além dos simbólicos envolvidos que
habituais lugares comuns. permitem adensar e ampliar ORIGAMI
o alcance do texto. Como desdobramento plástico
Neste poema, uma das principais da leitura do poema, convidamos
surpresas é o jogo estabelecido Assim, a proposta que os educadores a reproduzir
Gravura do artista japonês Masayoshi Kitao,
entre a forma verbal “passarão” sugerimos tem como objetivo com os estudantes um pássaro, de 1804. Acervo do Museu Victoria e Albert.
84 85
REVOADA DO PAPEL AO PASSARINHO
88 89
Seção especial
Literatura surda
92 93
SEÇÃO ESPECIAL
comunidade surda. Também Nas páginas a seguir, trazemos Obras da tradição adaptadas Coleção Clássicos da
conversa com a questão do algumas produções literárias Literatura em Libras
direito assegurado pela lei de para a comunidade surda e Alguns clássicos da literatura
termos alunos com deficiência seus respectivos autores, também são reeditados, Textos clássicos da literatura
em todas as esferas de ensino, (Temos uma vasta gama dessa como é o caso de Cinderela universal traduzidos para
criticando o fato de, ao longo Literatura amplificada para o Surda (Silveira, Rosa, Karnopp Libras pela editora Arara Azul.
da história, os separarem em gênero infantil, por mais que 2003), Adão e Eva (Rosa, Aguns dos títulos infantis
“escolas especiais”. também existam traduções de Karnopp 2005) e Patinho que compõem a referida
obras adultas para a Língua de Surdo (Rosa, Karnopp 2005). coleção são: Alice no país das
A Libras (Linguagem Brasileira Sinais) que através do poder Além desses, temos os maravilhas, As aventuras de
de Sinais), legalizada pela Lei da escrita têm experimentado exemplos Tibi e Joca – uma Pinóquio, A história de Aladim
Federal 10.436 de 2002 como quebrar as barreiras do história de dois mundos (Bisol e a lâmpada maravilhosa.
língua oficial da comunidade invisível, destrinchando os 2001), rico em ilustrações e A coleção também contém
surda e segunda língua percursos da comunicação que conta com um boneco- obras de literatura adulta,
nacional, vem alcançando o passíveis diante de um mundo tradutor que sinaliza as como Iracema, O velho
foco de diversos profissionais onde cada vez mais é preciso palavras-chave de cada da horta, O Alienista, O caso
de produção cultural, visto que identidades múltiplas página. A história A cigarra da vara, A missa do galo, A
que em diversas obras é sejam enaltecidas, respeitadas surda e as formigas, apresenta cartomante e O relógio de
percebido o engajamento de e valorizadas. como tema a importância ouro.
autores e editoras em produzir da amizade entre surdos e
uma literatura surda, ou seja, ouvintes. O livro O som do
literatura produzida por surdos silêncio (Cotes, 2004) conta
Para saber mais: Para ir além:
e para surdos. No entanto, para Cadernos de Literatura Brasileira: Mario a história de uma menina HESSEL, Carolina. Conversar é como contar
Quintana. Em: <https://issuu.com/ims_instituto_ histórias? Video. <https://www.youtube.com/
se objetivar como ciência, é moreira_salles/docs/clb_-_mario_quintana2> surda que não tem medo do watch?v=qghgplYNk-g>
necessário introduzir um método DOS SANTOS CADORSO JUNIOR, W; TEIXEIRA barulho. ROCHA, Ruth. O direito das crianças, em
DA CUNHA, V. Práticas de leitura literária do Libras Video. <https://www.youtube.com/
de análise que comprove o que Poeminha do Contra, de Mario Quintana, para watch?v=2pZptX5tFE0>
leitores surdos. 2019. Em: <https://bu.furb.br/
é tácito dos leitores surdos e ojs/index.php/linguagens/article/view/8762>
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CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA
DIREÇÃO ELABORAÇÃO
Diego Groisman Núcleo Educativo da Casa de
Cultura Mario Quintana
REALIZAÇÃO
Associação dos Amigos da Casa PESQUISA E TEXTOS
de Cultura Mario Quintana Alexandre Veiga
Andrei Moura
Casa de Cultura Mario Quintana Clara Marques
Lucas Schultz
Secretaria do Estado da Cultura Matheus Camini
do Rio Grande do Sul (SEDAC-RS) Suellen Gonçalves
ILUSTRAÇÕES
Lucas Schultz
AGRADECIMENTOS
AGOSTO 2021 Núcleo de Acervo e Memória da
Casa de Cultura Mario Quintana
98 99