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Arquiteturas do submundo:
o mundo dos mortos do mangá Cavaleiros do Zodíaco à sombra do Inferno dantesco
Inclui referências.
O presente trabalho em nível de Mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.
____________________________
Prof. Carlos Eduardo Schmidt Capela, Dr.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
____________________________
Profa. Silvana de Gaspari, Dra.
Orientadora
À Profa. Silvana de Gaspari, pela confiança e por me orientar pelas veredas acadêmicas.
Aos professores Gilles Abes e Sergio Romanelli, pela partilha e pela contribuição generosa no
exame de qualificação e na defesa.
Às minhas irmãs, Ana Paula e Margarida, pelo amor, incentivo e apoio, e por serem presença,
mesmo com a distância.
Aos sobrinhos, Magali, David e Margiori, por manterem viva a minha criança interior.
À minha tia e madrinha Ana, pela inspiração primeira que, desde a infância, despertou em
mim a vontade de ser professor.
Ao Barnabé, Joaquim e Sushi, pela companhia, pelo amor e por me tornarem mais humano.
Às amigas Lara e Maria Helena, pelas conversas regadas a muito café, pelo carinho e pelas
trocas de conhecimentos e experiências.
Aos meus estudantes, de agora e de outrora, por me apresentarem novos mangás, por me
atualizarem no universo da cultura pop e pelas discussões calorosas sobre Cavaleiros do
Zodíaco.
A Dante Alighieri, por nos legar uma das maiores obras literárias de todos os tempos.
A Masami Kurumada, por alimentar sonhos e despertar cosmos. Por Seiya, Shiryu, Shun,
Hyoga e Ikki.
Aos escritores, artesãos da Palavra, pelas viagens; aos demais artistas, pela Magia.
RESUMO
This dissertation aims to be a comparative and intertextual analysis of the Hell depicted in the
Hades Saga in the manga series Saint Seiya: Knights of the Zodiac, by Masami Kurumada,
taking into consideration the Hell described by Dante Alighieri in the Divine Comedy.
The social and academic relevance of this study is justified by the fact that when it comes to
its iconography, descriptions, narratives, and symbology, the depiction of Hell is rich and
complex. Whether in religion, culture, or different spheres of artistic activity─as in Literature
and comic books─Hell’s landscape and its inhabitants represent a theme that fascinates and
sparks the interest of human beings. Furthermore, the emergence of academic research
focusing on comics books, and manga especially, is relatively recent even in Linguistic and
Literary Studies. The same applies to the recognition of these media as forms of art with an
autonomous language (CIRNE, 1974, 1975; ACEVEDO, 1990; ECO, 1993; EISNER, 2001;
RAMOS, 2010).
Guided by the theoretical framework of Comparative Literature (BRUNEL et al., 1990;
ALDRIDGE, 1994; POSNETT, 1994; REMAK, 1994; MACHADO; PAGEAUX, 2001;
CARVALHAL, 2007) and comic books (VERGUEIRO, 1985; 2006; RAMOS, 2010),
specifically manga (MOLINÉ, 2004; GRAVETT, 2006; LUYTEN, 2011), the analysis sought
to ascertain how and to what extent the poem by the Italian author influenced the architecture
of Hell depicted in the manga.
Following the analysis of both works, I was able to determine that the architecture of Hell in
Saint Seiya: Knights of the Zodiac was entirely built from the Hell designed by Dante for the
Divine Comedy, dismissing the possibility that Kurumada's choices could be simple
coincidences. In that respect, I propose that Kurumada was a reader or at least knew Dante's
masterpiece, and he embodied elements of the Hell created by the poet in order to project his
own when scripting and sketching the Hades Saga. Finally, this analysis also sought to throw
light on why or what led Kurumada to choose Dantes’ Hell as the foundation for the
architecture of his own when he could have picked other references, such as Greek
mythology, or even chosen to design an original landscape.
Figura 1 – Arte rupestre da caverna Chauvet ............................ Erro! Indicador não definido.
Figura 2 – Vitrais da Catedral de Chartres ............................................................................... 33
Figura 3 – Adaptação da Divina Comédia para uma HQ ......................................................... 36
Figura 4 – Trecho da graphic novel Vidas Secas ..................................................................... 37
Figura 5 – Golden Hall ............................................................................................................. 40
Figura 6 – Complexo de templos budistas Horyuji .................................................................. 40
Figura 7 – Chojugiga ................................................................................................................ 41
Figura 8 – Gravura zenga ......................................................................................................... 43
Figura 9 – Gravura ôtsu-e ......................................................................................................... 44
Figura 10 – Arte nanban ........................................................................................................... 45
Figura 11 – Gravura ukiyo-e ..................................................................................................... 45
Figura 12 – Fragmento de Shin Takarajima ............................................................................. 51
Figura 13 – Betty Boop............................................................................................................. 52
Figura 14 – Safiri ...................................................................................................................... 52
Figura 15 – Hinotori ................................................................................................................. 53
Figura 16 – Página de Kozure Ōkami ....................................................................................... 55
Figura 17 – Exemplo de ligações de momento a momento ...................................................... 59
Figura 18 – Esquema explicativo de como ler um mangá ........................................................ 61
Figura 19 – Os cinco cavaleiros de bronze ............................................................................... 72
Figura 20 – Retrato de Dante ................................................................................................... 78
Figura 21 – Primeiro encontro de Dante e Beatriz .................................................................. 80
Figura 22 – Retrato presumido de Beatriz Portinari ................................................................ 81
Figura 23 – Panorama do Inferno de Hades ........................................................................... 117
Figura 24 – Distribuição dos três reinos dantescos a partir do globo terrestre ....................... 118
Figura 25 – O Castelo de Hades ............................................................................................. 119
Figura 26 – O Castelo de Neuschwanstein ............................................................................. 120
Figura 27 – Cúpula do Castelo de Hades................................................................................ 121
Figura 28 – Les Limbes ........................................................................................................... 121
Figura 29 – O porão do Castelo de Hades .............................................................................. 122
Figura 30 – Inferno de Dante, Canto I ................................................................................... 124
Figura 31 – Portal do Inferno de Hades .................................................................................. 126
Figura 32 – Inscrição do Portal do Inferno de Hades ............................................................. 126
Figura 33 – Rio Aqueronte ..................................................................................................... 127
Figura 34 – Almas à margem do Aqueronte .............................. Erro! Indicador não definido.
Figura 35 – Caronte ................................................................................................................ 129
Figura 36 – Almas que tentaram cruzar o Rio Aqueronte a nado........................................... 130
Figura 37 – Os cavaleiros chegando à outra margem do Rio Aqueronte ............................... 131
Figura 38 – Escadaria que leva de uma prisão a outra............................................................ 132
Figura 39 – Casa do Julgamento ............................................................................................. 134
Figura 40 – Interior da primeira prisão ................................................................................... 135
Figura 41 – A mesa do juiz ..................................................................................................... 136
Figura 42 – Vale Negro .......................................................................................................... 137
Figura 43 – A chuva no trajeto para a segunda prisão ............................................................ 138
Figura 44 – Entrada da segunda prisão................................................................................. .. 139
Figura 45 – Paredes da segunda prisão com hieróglifos egípcios .......................................... 139
Figura 46 – Detalhe de uma parede da segunda prisão........................................................... 140
Figura 47 – Faraó.................................................................................................................... 140
Figura 48 – Cérbero ................................................................................................................ 141
Figura 49 – Jardim da segunda prisão ................................................................................. 143
Figura 50 – Eurídice ............................................................................................................... 144
Figura 51 – Trajeto que conecta a segunda à terceira prisão .................................................. 145
Figura 52 – Chuva de pedras gigantes na entrada da terceira prisão ...................................... 146
Figura 53 – Almas dos pecadores empurrando pedras gigantescas na terceira prisão ........... 147
Figura 54 – A quarta prisão .................................................................................................... 148
Figura 55 – Flégias ................................................................................................................. 148
Figura 56 – A quinta prisão .................................................................................................... 149
Figura 57 – Almas queimando nos túmulos de fogos da quinta prisão .................................. 150
Figura 58 – O labirinto que antecede a sexta prisão ............................................................... 152
Figura 59 – Os três vales que constituem a sexta prisão ........................................................ 154
Figura 60 – A Cachoeira de Sangue ....................................................................................... 155
Figura 61 – O templo de Hades .............................................................................................. 160
Figura 62 – Interior da Giudecca ............................................................................................ 161
Figura 63 – Almas pecadoras no Cocito ................................................................................. 162
Figura 64 – O Muro das Lamentações .................................................................................... 163
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 17
1 MANGÁS.............................................................................................................. 31
1.1 HQS ....................................................................................................................... 31
4 O INFERNO CRISTÃO...................................................................................... 93
4.1 ORIGENS, LOCALIZAÇÃO E GEOGRAFIA DO INFERNO ........................... 95
INTRODUÇÃO
1
In: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 16. São Paulo: Conrad, 2000.
18
brincadeiras ao ar livre que a vida no campo proporciona a uma criança, ou quando não tinha
alguma tarefa doméstica. Ou, ainda, quando não precisava disputar o aparelho com minhas
irmãs mais velhas, que preferiam outros programas. Não tínhamos antena parabólica e, por
estarmos no interior, o sinal não era dos melhores. E, para piorar, a televisão era em preto e
branco. Esses foram alguns dos motivos que me impediam de acompanhar a série na íntegra.
Consequentemente, não conseguia assistir aos episódios diariamente, perdendo grande parte
da história.
A vida na roça não era fácil. Ainda assim, as boas lembranças se sobressaem. E
Cavaleiros faz parte delas. Embora não conseguisse acompanhar a série com fidelidade e
perdesse o fio condutor da história, lembro-me que a assistia com deslumbramento, mesmo
quando ficava perdido em algumas situações da narrativa por não ter assistido a algum
episódio.
Parte desse deslumbramento se devia aos trajes dos personagens: cavaleiros e
amazonas que vestiam armaduras belíssimas, de ouro, prata ou bronze, cada qual
simbolizando uma constelação que, por sua vez, tinha em suas estrelas a representação de um
mito grego. Assim, Cavaleiros do Zodíaco foi a porta de entrada para o meu interesse nos
temas essenciais de sua história: mitologia grega, astrologia e astronomia, misticismo e
religiosidade.
O desenho fazia sucesso e lançava no mercado os mais diferentes produtos: bonés,
balas com figurinhas adesivas, pôsteres, roupas, canecas, sucos em pó, bonecos colecionáveis,
materiais escolares etc. Naquele tempo conseguia adquirir somente as balas e os sucos em pó,
os produtos mais baratos que o meu escasso e esporádico dinheiro podia pagar.
A alegria durou pouco: o desenho foi tirado do ar depois de alguns meses. Voltaria
só uns cinco anos depois, na TV por assinatura. Porém, uma editora brasileira – Conrad –
resolveu publicar o mangá a partir do ano 2000, fato que eu soube cerca de um ano depois,
uma vez que não morava na cidade. Não era, portanto, um frequentador assíduo de bancas e
livrarias, e a internet ainda era, para mim, uma utopia.
Em 2002 eu me mudei para a cidade, a fim de continuar meus estudos no ensino
médio. Logo, com muito sacrifício, consegui comprar e ler todos os mangás dos Cavaleiros
do Zodíaco, satisfazendo um desejo que vinha desde a infância. Não demorou muito para o
desenho ser reexibido na TV aberta, e aí a alegria foi completa. Eu era mais criança que
adolescente. A publicação do mangá e a nova exibição do desenho na TV aberta provocaram
20
No dia 29 de março de 2018, uma declaração polêmica do Papa Francisco não foi bem
vista pelo Vaticano e teve repercussão no mundo inteiro, dividindo opiniões entre os membros
da comunidade católica, especialmente entre os fiéis mais fervorosos e conservadores. Em um
encontro privado com Eugenio Scalfari, ateu declarado e cofundador do jornal italiano La
Repubblica, o sumo pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana negou a existência do
Inferno. O encontro era informal e Scalfari não estava realizando uma entrevista com o Papa
quando obteve tal declaração que, segundo afirmou, reproduziu de sua memória, pois não a
havia registrado em aparelho gravador ou papel. “O Inferno não existe, o desaparecimento das
almas dos pecadores existe”, escreveu o jornalista e filósofo em artigo disponibilizado
somente para os assinantes do referido jornal, conforme verbalizado oralmente pelo Papa.
21
Rapidamente, o Vaticano publicou uma nota negando que o Papa tivesse proferido tal
declaração. E confirmou que sim, o Inferno existe, conforme rezam os preceitos da doutrina
católica.2
2
“'Inferno não existe', diz o papa Francisco, segundo jornal italiano.” Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/03/inferno-nao-existe-diz-o-papa-francisco-segundo-jornal-
italiano.shtml>. Acesso em: 03 jan 2019.
22
Mesmo com o fato de o mangá ser o objeto de estudo desta dissertação, e as duas
obras serem diferentes em inúmeros aspectos, ambas são tratadas com equidade, respeitando-
se a natureza artística e literária de cada uma. Não é objetivo do estudo emitir juízos de valor
acerca do mangá e do poema, o que corresponderia a um disparate, uma vez que estamos
lidando com duas obras pertencentes a domínios artísticos distintos e independentes: as
3
No contexto desta pesquisa, tomamos a definição do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira para o
adjetivo “dantesco”: pertencente ou relativo a, ou próprio de Dante Alighieri, poeta italiano (1265-1321).
(HOLANDA, p. 421, 1988).
4
Conforme a página do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina:
“A linha de pesquisa Textualidades híbridas pretende associar quatro perspectivas — Literatura, Artes, Filosofia,
Tecnologia —, sem que se estabeleça nenhuma hierarquia a priori entre elas, à exceção da Literatura, que é o
ponto sobre o qual se assentam as relações entre todas. Dessa forma, há, pelo menos, três diálogos que marcam
as possibilidades de pesquisa desta linha: o primeiro é o que se dá entre literatura e filosofia; o segundo, entre
literatura e artes; o terceiro, finalmente, entre literatura e tecnologia. Esclareça-se que todos esses diálogos estão
marcados, segundo a concepção que os anima, por uma reflexão voltada para o texto literário, preocupação já
assinalada no nome dado à linha. A perspectiva primeira dos projetos vinculados a esta linha estará centrada,
assim, nos estudos de teoria do texto, no que se refere a essas três relações acima descritas, em seus mais
variados suportes e vertentes.” (PPGLit-UFSC, 2019).
5
O título original é Saint Seiya, na escrita japonesa 聖闘士星矢 (pronuncia-se Seinto Seiya). Traduzindo para a
língua portuguesa, Santo Seiya. O título faz alusão ao protagonista do mangá, Seiya, cavaleiro que veste a
armadura de bronze da constelação de Pégaso. O nome da série foi adaptado na França para Les Chevaliers du
Zodiaque, o qual foi mantido, embora com tradução literal, em todos os países do Ocidente, incluindo o Brasil
(CAVZODIACO, 2010?). Inferimos que tal mudança tenha se dado por questões religiosas. Isso porque o
adjetivo “santo” caracterizava Seiya e os demais cavaleiros, envolvidos em lutas constantes que eram motivadas
por divindades da mitologia grega. Esses aspectos poderiam suscitar alguma polêmica na comunidade cristã
ocidental, especialmente na Igreja Católica, onde o referido vocábulo só é atribuído às pessoas que
desempenharam feitos admiráveis, ou cuja vida serve de testemunho aos demais católicos, após o complexo e
rigoroso processo de canonização.
6
Em italiano, Divina Commedia. No entanto, o título original é Comedia. O responsável pela inclusão do
adjetivo “divina”, mais tarde, foi o poeta e crítico literário italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor do
Decamerão, que se especializou na obra dantesca e escreveu a biografia do poeta florentino, intitulada
Trattatello in laude di Dante (1357).
23
Histórias em Quadrinhos e a Literatura. Dito de outro modo, uma não é melhor que a outra:
são apenas linguagens diferentes.
Já a Divina Comédia é um poema de viés épico, uma obra na qual seu autor
preocupou-se com o rigor e a estética da forma, com a métrica e com o ritmo, com a escolha
lexical e também com a elaboração das rimas. Não obstante, o conteúdo não foi deixado de
lado: há toda uma dimensão religiosa, histórica, política e social valorizada ao longo de seus
cem cantos. A palavra foi a substância, a essência com a qual Dante pôde criar a sua obra de
arte. É, portanto, Literatura, a arte da palavra, caracterizada pela linguagem verbal escrita.
Diferentemente do mangá, estamos falando de um poema concebido por um católico, o qual
representa a cultura ocidental, é símbolo da erudição e considerado por muitos estudiosos
como a obra-síntese do homem medieval.
Além desses apontamentos referentes à natureza de cada uma das obras, podemos
afirmar que elas estão distantes no tempo e no espaço. Isso porque o mangá foi publicado no
século XX, mais precisamente entre os anos de 1985 a 1990, no Japão. Já o lançamento de
cada uma das três partes que constituem o poema de Dante, que aconteceu na Itália, está
inserido no século XIV, no período provável de 1304 a 1321. Ou seja, a distância temporal
entre as duas obras corresponde a seis séculos de diferença e, a título de curiosidade, segundo
o Google Maps, 9758 km separam Tóquio de Florença, cidades natais dos dois autores.
7
Segundo Benjamin, a arte pós-moderna é caracterizada pela perda da aura do objeto artístico em razão da sua
reprodução técnica, em múltiplas formas: cinema, fotografia, pintura, entre outras, sendo que as HQs também
podem estar inclusas nesse rol. A partir disso, o autor faz uma reflexão sobre como a reprodutibilidade técnica
causou uma deterioração da “aura”, que estaria ligada ao aqui e agora da obra de arte. Com o advento de tal
reprodutibilidade técnica, o objeto artístico acaba por perder sua unicidade, singularidade e autenticidade, e seu
valor de culto é drasticamente alterado graças à tecnologia industrial vigente. Neste cenário abrem-se as portas
para o valor de exposição, onde o fundamental é distribuir cópias e faturar em cima da distribuição da arte
(BENJAMIN, 2018 [1936]).
24
Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de
procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da
literatura, inclusive a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos,
historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário.
Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que
usa mecanismos próprios para representar elementos narrativos. Há muitos pontos
comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o
teatro e tantas outras linguagens (RAMOS, 2010, p. 17).
8
Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, subliteratura significa “literatura sem valor, de baixa
qualidade e com conteúdo questionável”.
25
interconectadas. O autor explica que a linguagem seria como um grande ecossistema, repleto
de pequenos nichos distintos uns dos outros, os quais chamou de ambientes. Cada ambiente
teria características próprias, o que garantiria autonomia em relação aos demais. No entanto,
isso não significa que esses ambientes não possam compartilhar características comuns. Dito
de outro modo, o Cinema, o Teatro, a Literatura, os Quadrinhos e tantas outras formas de
linguagem comporiam ambientes próprios e autônomos. Mas todos compartilhariam
elementos de outras linguagens, cada qual à sua maneira.
A aceitação das HQs pela sociedade, como um instrumento de leitura, foi lenta e
processual. Pode-se dizer que uma espécie de movimento antiquadrinhos9 se instaurou e
permaneceu durante algumas décadas no Brasil. Tal movimento era corroborado pela opinião
de pedagogos, literatos, psicólogos e outros intelectuais, entre os quais muitos defendiam que
as Histórias em Quadrinhos não constituíam um campo artístico, rebaixadas à condição de
subliteratura. Logo, essas noções errôneas e de fundamentação duvidosa refletiram na esfera
escolar.
9
Os movimentos antiquadrinhos foram impulsionados pelo psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos
Fredric Wertham, quando da publicação de seu livro Seduction of the Innocent, em 1954. Na obra, Wertham
defendia a tese de que todas as histórias em quadrinhos eram degeneradoras da infância, resultando em
malefícios, como a preguiça intelectual e o estímulo à delinquência juvenil. Esses movimentos não foram
exclusividade dos Estados Unidos, mas também de outros países, como Grã-Bretanha, Canadá, Alemanha,
Austrália, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan (LENT, 2009) e França (MILLER, 2007). Em seu artigo Essas
horríveis histórias em quadrinhos, o pesquisador Alexandre Linck Vargas expõe sobre tais movimentos no
cenário brasileiro. Nas palavras do autor, “[...] fosse por políticos como o deputado federal Armando Leite, fosse
por jornalistas como Carlos Lacerda, os quadrinhos eram frequentemente alvos de campanhas de moralização e
restrição de sua veiculação” (2015, p. 5). Vargas também esclarece que foi durante o governo do presidente
Jânio Quadros, mais precisamente em 1961, que surgia o código de ética dos quadrinhos publicados no Brasil. A
exemplo dos EUA, o código brasileiro também se voltava “[...] contra o horror em nome da moral e dos bons
costumes” (VARGAS, 2015, p. 5). Essas discussões ganharam espaço, inevitavelmente, nos âmbitos familiar e
escolar, onde pais e professores também passaram a olhar os quadrinhos com desconfiança. Em 1972, a dupla de
sociólogos Ariel Dorfman e Armand Mattelart publicavam, no Chile, a obra acadêmica Para Leer al Pato
Donald: Comunicación de masa y colonialismo. Essa obra reforçava mais um elemento pejorativo aos olhos
latino-americanos, pois considerava as histórias em quadrinhos como fruto de um claro imperialismo cultural. O
livro apresenta a análise dos personagens da Disney, sugerindo que as publicações da empresa estavam
intimamente relacionadas com os valores e costumes típicos da sociedade de consumo. A dimensão pedagógica
da obra acabou sendo ultrapassada pelo viés político, uma vez que Dorfman e Mattelart sustentavam o
argumento de que esses quadrinhos também eram responsáveis pelos estereótipos que os Estados Unidos
produziam sobre os países menos desenvolvidos. Além disso, os autores afirmavam que as HQs da Disney eram
veículos de propagandas anticomunistas, já que os tempos eram de Guerra Fria (BAHIA, 2012, 343-344). Pelo
seu teor persuasivo, a obra dos dois sociólogos teve uma recepção expressiva por intelectuais de todo o
continente, notadamente avessos à política externa estadunidense.
26
período compreendido entre 1950 até o final da década de 1970 – onde uma HQ entrava
apenas de modo clandestino e, se descoberta, certamente haveria uma punição àquele que
cometeu tamanha ousadia. Livros didáticos não veiculavam quadrinhos em seu conteúdo, e a
sua presença nas bibliotecas escolares era algo inconcebível. De maneira semelhante, muitas
famílias também partilhavam destes pareceres equivocados, não oportunizando que seus
filhos tivessem acesso à leitura de HQs. Motivados pelas vozes de “especialistas” no assunto,
muitos pais acreditavam que elas não conduziriam à formação daquilo que era considerado
um bom leitor, e que nada agregavam ao intelecto, à erudição e à cultura de seus filhos. Para a
sociedade, escola e família daqueles tempos, a emancipação do bom leitor se dava
essencialmente pela leitura dos clássicos, tanto da Literatura universal quanto da brasileira.
As visões pré-concebidas a respeito desse gênero textual10 eram as mais diversas: que
era uma subliteratura, que sua leitura “emburrecia” e causava preguiça mental, que não
agregava conhecimento algum ao intelecto do leitor, que possuía linguagem totalmente
infantilizada, que não emancipava e impossibilitava a formação da criança como um leitor
potencial, que leitores de HQs seriam incapazes de ler, no futuro, outros textos considerados
com uma linguagem mais complexa ou sofisticada, etc. E, em se tratando de quadrinhos
japoneses, a resistência e as críticas eram (e ainda são) muito mais austeras: só possuem
violência e pornografia, todos tematizam lutas sangrentas, banalizam a morte, estimulam má
conduta e mau comportamento, seus conteúdos são imorais, etc.
10
O conceito de gênero textual empregado nesta dissertação é semelhante ao proposto por Bakhtin: são tipos
relativamente estáveis de enunciados usados em uma situação comunicativa para intermediar o processo de
interação. (BAKHTIN, 2000).
27
estudantes a leitura de gibis os mais diversos, comics, coletâneas de tiras, graphic novels,
mangás, adaptações de clássicos da Literatura universal e brasileira em HQs, entre outros
(MENDONÇA, 2002; CALAZANS, 2004; CARVALHO, 2006; VERGUEIRO, 2006, 2008,
2009; RAMA, 2008; RAMOS, 2009).
11
A numeração das artes foi proposta, inicialmente, por Hegel (1770-1831), limitando-se a seis atividades:
Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Dança e Poesia. (HEGEL, 2015). Em 1912, o crítico de cinema e
teórico italiano Ricciotto Canudo (1877-1923) propõe, através de seu Manifesto das Sete Artes e Estética da
Sétima Arte (que viria a ser publicado somente em 1923), a inclusão de um sétimo domínio artístico: o Cinema.
(CANUDO, 1995). Os números foram ampliados, com outras esferas artísticas incorporadas no rol, e atualmente
temos a seguinte numeração: 1ª Arte – Música, 2ª Arte - Dança/Coreografia; 3ª Arte – Pintura; 4ª Arte –
Escultura; 5ª Arte – Teatro; 6ª Arte – Literatura; 7ª Arte – Cinema; 8ª Arte – Fotografia; 9ª Arte – Quadrinhos;
10ª Arte – Videogame; 11ª Arte – Arte digital.
28
Quadrinhos como objeto de estudo e, quando isto acontecia, o trabalho desenvolvido nem
sempre era bem recepcionado. Atualmente, se consultarmos a plataforma Lattes, selecionando
a opção “assunto”, inserindo a palavra-chave “HQs”, e também selecionando as opções
“doutores” e “demais pesquisadores”, teremos o resultado de 1450 pesquisas relacionadas ao
tema. Refinando a pesquisa, e optando apenas por “doutores”, a plataforma nos revelará os
nomes de 516 pesquisadores que possuem alguma afinidade com o assunto.
A opção por uma análise comparatista intertextual é justificada pelo fato de que a
intertextualidade é um fenômeno cada vez mais recorrente e multifacetado na
contemporaneidade. Um fenômeno que hibridiza textualidades e gêneros, como discutimos
anteriormente, ao fundamentar a escolha pela linha de pesquisa que norteia o estudo e ao
apresentar brevemente a natureza peculiar e as conexões entre as duas obras. Tal ocorrência é
motivada, em grande parte, pelo processo de globalização que insurgiu nas últimas décadas e,
como uma de suas consequências, o advento de novas tecnologias da informação e da
comunicação – especialmente a internet, suas redes sociais e as diferentes mídias que estão ao
12
Conforme Bakhtin, o dialogismo pode ser definido como as relações entre índices sociais de valores que
constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social. (FARACO, 2009). Nesse ato
dinâmico, o sujeito social, ao se deparar com outros enunciados, interage com os discursos num ato responsivo,
concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação. Portanto, a língua tem a
propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra
com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. (BAKHTIN, 2010).
29
alcance dos indivíduos. Os novos modos através dos quais uma textualidade é acessada, lida,
produzida, compartilhada e difundida também possibilitam o surgimento dos intertextos.
Além disso, podemos presumir que as novas maneiras com as quais os seres humanos se
conectam e interagem também motivam a emergência de intertextualidades 13.
13
O conceito de intertextualidade empregado neste trabalho advém da obra de Kristeva (2005). Valendo-se das
ideias apresentadas pela autora de maneira sucinta, a intertextualidade pode ser entendida como a relação que se
estabelece entre dois textos, quando um texto já criado exerce influência na criação de um novo texto. No
presente trabalho, o objetivo precípuo é analisar como e em que medida o Inferno da Divina Comédia
influenciou na criação do Inferno no mangá Cavaleiros do Zodíaco.
30
1 MANGÁS
Este capítulo tem como objetivo apresentar um breve quadro teórico acerca dos
mangás. Faz-se importante, antes da apresentação mais detalhada sobre o objeto desta
pesquisa, que é um mangá, e de sua análise junto ao Inferno da Divina Comédia, tecer
algumas considerações sobre as Histórias em Quadrinhos, para que, logo em seguida,
possamos refiná-las, tendo os mangás como especificidade. Tomando-os como um gênero
particular das HQs, dissertaremos sobre suas origens, sua evolução no decorrer do tempo,
características, gêneros, bem como sua indústria e sua relação com o mercado de animação
para a televisão e para o cinema. Feito isto, adentraremos no universo de Cavaleiros do
Zodíaco, contemplando aspectos de sua produção e recepção (no Japão e em outras partes
do mundo), a apresentação de sua narrativa, seu êxito comercial e sua popularidade no
Brasil.
1.1 HQS
14
Disponível em: <http://hataraki.blogspot.com/>. Acesso em: 20 ago. 2019.
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quadrinhos da história?” Porém, resolver essa questão nos parece ser menos importante,
uma vez que acabamos chegando à conclusão de “[...] que nenhuma cultura ou país pode
reivindicar a propriedade dos quadrinhos”. (MAZUR, DANNER, 2014, p. 07). No entanto,
os teóricos ocidentais e pesquisadores da área frequentemente buscam as origens das
histórias em quadrinhos na Pré-História, quando os homens das cavernas deixaram marcas
de seus feitos, há 50 mil anos ou mais. (LUYTEN, 2011).
Goidanich (2011, p. 9) comenta que a narrativa figurada é uma arte muito mais antiga
do que podemos imaginar, e ilustra sua ideia com o exemplo de imagens sacras dispostas
sequencialmente em muitas igrejas. Conforme o autor, quando entramos em uma igreja e
vemos os quadros de uma Via-Sacra, de certa maneira estamos em frente a uma das mais
primitivas formas das Histórias em Quadrinhos.
Mazur e Danner (2014) oferecem outros exemplos de arte figurada, muitos
historicamente anteriores à sua ocorrência em igrejas. Nas palavras dos dois pesquisadores,
diversas civilizações e que, mesmo com a destruição, o número de obras deixadas pela
antiguidade é considerável. E complementa seu raciocínio explicando que
Do século XVI ao século XVII, a imprensa proliferou, porém, os livros não eram para
as massas. (PERRY; ALDRIDGE, 1971, p. 29). O mundo letrado ainda tinha que trilhar um
longo caminho para alimentar a mente dos homens. A xilogravura, litogravura e,
paulatinamente, a imprensa a vapor asseguraram às obras gráficas uma difusão até então
desconhecida.
[...] artistas como o suíço Rodolphe Töpffer, o alemão Wilhelm Busch (criador de
Max und Moritz/Juca e Chico) e os franceses Caran D’Ache e Christophe
(pseudônimo de Georges Colomb) popularizaram a narrativa em imagens,
prenunciando uma nova forma de comunicação visual. Embora muitas vezes estas
imagens fossem cercadas, formando “quadrinhos”, o texto ficava sempre fora da
ação desenhada. O pontapé inicial fora dado. Mas estávamos ainda na pré-história
dos quadrinhos. (GOIDA, 2011, p. 9).
Entretanto, como observa Veronezi (2010, p. 9), “na primeira metade do século XX,
em que a modernidade ainda era o paradigma dominante de influência, a imagem era vista
com desconfiança.” De acordo com a autora, tal status da imagem poderia ser atribuído ao
advento das novas tecnologias, as quais mostravam “que cada vez mais a realidade poderia ser
simulada à perfeição no cinema e na televisão.” Nessa situação de desconfiança, Veronezi
exemplifica com o episódio da chegada do homem à Lua em 1969, fato desacreditado por
muita gente à época e, segundo a autora, tal ideia possui um fundamento de coerência, “caso
se considere que um ano antes Stanley Kubrick apresentava ao mundo 2001 – Uma Odisseia
no Espaço, película de efeitos especiais assustadoramente críveis.” (VERONEZI, 2010, p. 9).
elementos próprios de sua linguagem. A distinção – ou até mesmo a ideia contrária – entre
essas duas artes ainda é polêmica e divide a opinião de teóricos e pesquisadores, mantendo o
debate e fomentando novos estudos. A relação entre HQs e Literatura passou a ficar mais
complexa com a tendência das adaptações de clássicos literários para o formato quadrinizado.
Obras como a Odisseia, de Homero, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Os Lusíadas, de
Camões, Hamlet, de Shakespeare, incluindo a própria Divina Comédia, são exemplos de
clássicos universais que foram adaptados para os quadrinhos.
Figura 3: A Divina Comédia de Dante também recebeu adaptações para o formato de HQ. Abaixo, um
fragmento de uma de suas adaptações em quadrinhos. A autoria é de Piero (aquarelas e roteiro) e Giuseppe
Bagnariol (roteiro).
Figura 4: Trecho da graphic novel Vidas Secas (2015), adaptada para os quadrinhos pelo quadrinista Eloar
Guazzelli e pelo roteirista Arnaldo Branco a partir da obra de Graciliano Ramos.
Ramos (2010) esclarece que, mesmo com a adaptação desses clássicos em HQs, elas
continuam sendo um domínio artístico que possui linguagem autônoma:
É muito comum alguém ver nas histórias em quadrinhos uma forma de literatura.
Adaptações em quadrinhos de clássicos literários – como ocorreu com A Relíquia,
de Eça de Queirós, e O alienista, de Machado de Assis, para ficar em dois exemplos
– ajudam a reforçar esse olhar. Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada
mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou
academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil) como
argumento para justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa,
inclusive no meio universitário. (RAMOS, 2010, p. 17, grifos do autor).
Ainda conforme o autor, quadrinhos são quadrinhos e, como tal, utilizam mecanismos
próprios para representar os elementos narrativos. O pesquisador também observa que os
quadrinhos possuem muitos pontos comuns com a literatura, da mesma forma que eles
possuem certa relação com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens. (RAMOS, 2010, p.
17).
hipergênero, que agregaria diferentes outros gêneros, cada um com suas peculiaridades.
(RAMOS, 2010, p. 20).
Na história das Histórias em Quadrinhos, o mangá requer um olhar particular, uma vez
que a formação da linguagem quadrinizada no Oriente, especialmente no Japão, é uma
história pouco conhecida em outras partes do mundo. Todavia, concordamos com Luyten
(2011, p. 76), quando a autora afirma que “se seguirmos o fio da meada dessa história,
traremos à tona um universo novo para a compreensão do fenômeno atual dos mangás.” Esse
universo será apresentado nos próximos subcapítulos. A intenção é expor um panorama
histórico dos mangás, desde suas manifestações mais primitivas até os dias de hoje, com uma
parada no final da década de 1980, onde o foco incidirá sobre o nosso objeto de análise – o
mangá Cavaleiros do Zodíaco.
Em 1935, enquanto estavam sendo feitos reparos nos tetos e nas paredes desses
templos, foram descobertos desenhos feitos a tinta e pincel, talvez por
construtores e escribas do final do século VII. O mais curioso é que eram
desenhos profanos, caricaturas de animais e pessoas com traços exagerados e
narizes de grandes proporções – que naquela época tinham uma implicação
erótica na arte japonesa. Alguém com espírito de humor e irreverência deixou um
grande marco, e são esses os exemplos mais antigos da caricatura japonesa.
(LUYTEN, 2011, p. 77).
Figura 5: O Golden Hall, também conhecido como Kondō, uma das muitas construções do complexo de templos
budistas de Toshodaiji, localizado na cidade de Nara, província de Nara, Japão.
Figura 6: Complexo de templos budistas Horyuji, localizado na cidade de Ikaruga, província de Nara, Japão.
Essas ilustrações, produzidas a partir de técnicas herdadas dos chineses, eram feitas
em rolos e pintadas a nanquim e ficaram conhecidas como Ê-Makimono. Conforme Ono e
Tezuka (1980, p. 214), os Ê-Makimono são considerados a origem das histórias em
quadrinhos no Japão. Muito abundantes nos séculos XI e XII, os Ê-Makimono eram
desenhos pintados sobre um grande rolo e contavam uma história, cujos temas iam
aparecendo gradativamente à medida que ia se desenrolando. Era construída, assim, com
estilo original, uma história composta de numerosos desenhos.
A maioria desses rolos foi pintada entre os séculos XI e XII, e o conjunto mais
famoso deles chama-se Chojugiga, produzido pelo bonzo Kakuyu Toba, que viveu de 1053
a 1140 (LUYTEN, 2011; MOLINÉ, 2004). Trata-se de imagens humorísticas de animais e,
nas palavras de Luyten (2011),
Figura 7: Clássico da arte cômica japonesa do século XII, o Chojugiga é constituído por imagens satíticas de
animais antropomorfizados que representam as condições sociais da época.
• os nanban, biombos ilustrados com desenhos estilizados que relatavam a chegada dos
portugueses e holandeses, primeiros europeus a estabelecer contato com o país asiático
e representados com grandes narizes;
15
O adjetivo “escatológico” resulta do substantivo “escatologia”, o qual possui mais de um significado. No
contexto dos Chojugiga, a palavra empregada se refere à escatologia como “tratado acerca dos excrementos,
coprologia” ou, em acepção ampliada, “utilização ou gosto por expressões ou assuntos relacionados a fezes ou
obscenidades”. O outro significado do adjetivo diz respeito às implicações teológicas do fim do mundo, isto é, o
Apocalipse, o Juízo Final, o qual não cabe nas referidas ilustrações. (HOLANDA, p. 519, 1988).
16
Período da história do Japão que foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, no período de março de
1603 a maio de 1868, estabelecido por Tokugawa Ieyasu (o primeiro xogum desta era) na então cidade de Edo
(atual Tóquio), três anos após a batalha de Sekigahara. Trata-se de um período de forte isolamento político-
econômico do país e rígido controle interno, regulando os feudos através do código de leis. Em 1868, o período
terminou com a Restauração Meiji, quando o governo imperial recuperou sua autoridade, marcando o fim das
ditaduras feudais, iniciando a modernização do Japão.
43
Figura 8: Exemplo de uma gravura zenga do período Edo. Segundo a fonte consultada, a obra artística intitula-se
O Buda histórico com arhats. A autoria e o ano preciso de sua produção são desconhecidos.
Figura 9: Demônio convertido ao budismo (obra artística produzida entre os anos 1860 e 1865), de Kawanabe
Kyōsai. Um exemplo de gravura ôtsu-e.
Fonte: <https://www.mfa.org/collections/object/%C3%B4tsu-e-figure-demon-converted-to-buddhism-oni-no-
nenbutsu-461721>. Acesso em: 06 out. 2018.
45
Figura 10: Bárbaros do sul (produzido entre 1593 e 1600), cuja autoria é atribuída ao artista Kanō Domi, é um
exemplo de arte nanban. A gravura abaixo é apenas um detalhe de um dos muitos biombos produzidos pelos
artistas japoneses a partir da chegada dos portugueses no Japão, em 1543, e de outras nações europeias no início
do período Edo. Como todas as produções artísticas do estilo nanban, a imagem retrata comerciantes e
missionários da Europa, especificamente de Portugal.
Figura 11: A grande onda de Kanigawa (produzida entre 1826 e 1833), de Katsushika Hokusai, mais conhecida
simplesmente como A onda, é considerada a obra-prima do gênero ukiyo-e e também uma das mais populares e
aclamadas peças da arte japonesa.
A palavra inventada por Hokusai, a acepção que ela representava outrora, restrita a
imagens involuntárias em sucessão, e o significado mais complexo que o vocábulo assume na
47
contemporaneidade, bem como a evolução dos quadrinhos japoneses, são problematizados por
Gravett (2006):
Então o que a palavra mangá pôde ter significado para o artista Katushika Hokusai
em 1814, quando ele inventou o termo? Significava rascunhos mais livres,
inconscientes, nos quais ele podia brincar com o exagero, a essência da caricatura.
Hokusai nunca incluiu a narrativa em seus rascunhos mas, se estivesse vivo hoje,
poderia reconhecer no mangá moderno um pouco do gosto pelas expressões
grotescas, pela comédia física e pelo desenho sem inibições. (GRAVETT, 2006, p.
25).
Entretanto, Moliné (2004, p. 18) afirma que foi somente na segunda década do século
XX que o termo mangá se consolidou, e complementa explicando que o termo cunhado por
Hokusai foi determinante para o curso das Histórias em Quadrinhos japonesas, o qual abriu o
caminho para uma das mais prósperas e gigantescas indústrias do país.
Ainda no século XIX, mais precisamente a partir de 1853, ano em que o almirante
americano Matthew Calbraith Perry (1794-1858) visitou o Japão com o objetivo de
estabelecer laços amistosos entre o país do Sol Nascente e os Estados Unidos, teve início uma
progressiva abertura até o Ocidente, a qual consolidou-se no período Meiji17 (1868-
1912).(MOLINÉ, 2004, p. 18).
Em 1862, com o surgimento da revista mensal satírica The Japan Punch, de
responsabilidade do inglês estabelecido no Japão, Charles Wirgman, semelhante ao semanário
Tôbaé, de 1887, criado pelo francês Georges Bigot, embora se tratasse de uma publicação
destinada em princípio aos estrangeiros residentes no país, influenciou de maneira decisiva os
artistas nipônicos contemporâneos. (MOLINÉ, 2004, p. 19; GRAVETT, 2006, p. 25). Para
Luyten (2011, p. 87), Wirgman e Bigot desempenharam papéis importantes na evolução dos
mangás, uma vez que estão inseridos no momento histórico em que ocorreu a fusão de uma
longa tradição com a inovação, resultando no nascimento das Histórias em Quadrinhos como
veículo de comunicação.
No final do século XIX, Luyten (2011, p. 88) explica que a atenção dos desenhos
japoneses começou a ser desviada da Europa para os Estados Unidos. E complementa
afirmando que, mesmo com a longa história dos antecedentes dos quadrinhos japoneses,
jamais alguém no Japão teve a ideia de dispor a narrativa decomposta em imagens sucessivas.
17
Esse período, também conhecido como Era Meiji, constitui-se no reinado de quarenta e cinco anos do
Imperador Meiji do Japão, que se estendeu de 3 de fevereiro de 1867 a 30 de julho de 1912. Nessa fase, o Japão
experimentou uma acelerada modernização, graças a Restauração Meiji, uma revolução política, social e
industrial que o alçou ao posto de uma das grandes potências mundiais.
48
Quanto à leitura dos quadrinhos ocidentais pelos japoneses, Schodt (1983) explica
que, naquele momento histórico,
De acordo com Luyten (2011, p. 96), o povo passava por muitas dificuldades no Japão
dos anos 1920. Enquanto isso, os ultranacionalistas e os militaristas se moviam para controlar
o governo. Por sua vez, os autores de mangá procuravam criar personagens com
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[...] uma história que trouxe muitos sonhos e alimentou muitos desejos nas crianças.
O herói era um cãozinho homônimo, o Norakuro, que havia sido abandonado e não
tinha para onde ir. Resolveu ingressar no exército imperial, mas não conseguia ser
bem-sucedido em suas atividades. Apesar de suas boas intenções, acabava sempre
fazendo coisas erradas, sendo alvo de crítica de seus superiores. (LUYTEN, 2011, p.
96).
A busca de evasão (na fantasia e na realidade) foi outra característica desse período no
país. A situação continuava insatisfatória, e muitas pessoas procuravam partir para outros
lugares, ao mesmo tempo em que o próprio Japão buscava recursos fora. (LUYTEN, 2011, p.
96).
Em 1939, estoura a Segunda Guerra Mundial e o mundo se divide. O estado da
economia mundial, tanto do lado japonês quanto do outro, relaciona-se muito com a decisão
do Japão de entrar na guerra. Com o início da guerra, houve uma considerável redução da
produção de mangás, causada pela restrição de papel, mas especialmente pela censura. Os
trágicos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki culminariam em uma etapa obscura e
iniciariam outra nova e esperançosa era na história do Japão, o período Heisen (1945-2019), e
um novo ciclo na história dos mangás. (MOLINÉ, 2004, p. 20).
De acordo com Luyten (2011),
Figura 12: Fragmento de Shin Takarajima (Nova Ilha do Tesouro), de Osamu Tezuka. Trata-se de uma das
primeiras obras de Tezuka, a qual inovou a arte de produzir mangá. Os diferentes tipos de enquadramentos e
ângulos de câmera utilizados conferem uma linguagem cinematográfica à narrativa, resultando em um ritmo e
dinamismo nunca antes vistos nos quadrinhos japoneses.
Para Luyten (2011, p. 109), a produção dos quadrinhos japoneses que circula nos
mangás tem uma relação direta com a contribuição de Tezuka, o qual dedicou 40 anos de sua
vida a essa atividade. Segundo a autora, suas obras modificaram não só a estrutura da
linguagem, desdobrando as cenas numa sequência mais fluida, como também o conteúdo, pela
variedade de temas e personagens.
O cinema e o comic norte-americano haviam influenciado o jovem Tezuka o suficiente
para que importasse essas inovações. Sua admiração pelos desenhos animados de Disney e de
Fleischer pode ser comprovada pelo modo com que quase todos os seus personagens
aparecem desenhados: com olhos grandes e amplas e brilhantes pupilas, em homenagem aos
desenhos animados americanos. (MOLINÉ, 2004, p. 19).
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Figura 14: Safiri, protagonista de Ribbon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro), de Osamu Tezuka
Fonte:<https://hanablogjournal.wordpress.com/2015/10/17/manga-the-twin-knights-di-osamu-tezuka/>.
Acesso em: 30 out. 2019.
53
Figura 15: Hinotori (Fênix), de Osamu Tezuka, publicado a partir de 1954, passou a simbolizar o renascimento
do Japão após a Segunda Guerra Mundial.
japoneses. Especialistas dos mangás, como Moliné (2004), Gravett (2006) e Luyten (2011),
concordam que sua marca influenciou a produção de outros artistas e permanece até os dias de
hoje, sendo que é possível encontrá-la presente em diversas publicações da atualidade.
Em 1947 aparece a primeira publicação mensal totalmente composta de manga, Manga
Shonen, que abriria caminho a toda uma geração de mangakás que logo alcançariam a
celebridade (entre eles o próprio Osamu Tezuka). Já o ano de 1955 ficou marcado porque foi
quando apareceram as primeiras revistas totalmente compostas de shojo manga, ou mangá
para meninas, entre elas Nakayoshi e Ribon. (MOLINÉ, 2004, p. 21).
O ano de 1956 também merece destaque na história dos mangás. Trata-se de um
momento importante no progresso do mangá como meio de entretenimento adulto: o
nascimento do termo gekigá (“imagens dramáticas”), criado pelo artista Yoshihiro Tatsumi.
Esse gênero é caracterizado por mangás com linguagem e temáticas mais realistas, incluindo
histórias repletas de violência, as quais retratam ambientes frequentemente tensos e obscuros.
São quadrinhos destinados, em suma, a um público mais maduro e habitualmente de baixa
classe social. Já no final da década de 1950, se inicia o boom das publicações de mangás
semanais. (MOLINÉ, 2004, p. 21).
Na mesma época que a Europa e as Américas conheciam a decadência das HQs,
motivada especialmente pela expansão da televisão, no Japão a indústria dos mangás
experimentava um aumento espetacular, tanto nas tiragens quanto no número de títulos. O
auge da televisão proporcionou uma fantástica expansão da indústria da animação japonesa ao
propiciar as adaptações dos mangás mais populares para séries de anime. (MOLINÉ, 2004).
Sobre esse fenômeno, Gravett (2006) disserta que
Figura 16: Página de Kozure Ōkami (Lobo Solitário), série de mangá do gênero gekigá, escrita por Kazuo Koike
e ilustrada por Goseki Kojima.
Se a televisão não conseguiu afetar a indústria dos gibis do Japão a partir dos anos
60, como aconteceu na Europa e na América, os videogames, a expansão de
computadores e da internet parecem ter afetado esse segmento nas últimas duas
décadas (MOLINÉ, 2004, p. 25).
de discussão nas redes sociais e em outros ambientes virtuais... Enfim, são centenas de
produtos advindos dessa indústria que poderiam ser citados para ilustrar o seu poder e
influência ao redor do mundo, real e ou virtual.
Em suma, o mercado editorial nipônico soube explorar e disseminar esse ramo de sua
cultura pop para além das fronteiras da terra do sol nascente e para muito além das páginas em
preto e branco. O licenciamento de marcas e a venda de direitos autorais de mangás
constituem uma tendência cada vez mais visível nesse universo de consumo e entretenimento.
Trata-se, em outras palavras, de uma indústria proeminente que favoreceu a economia
japonesa e difundiu sua cultura pop por todos os continentes, seja pela vasta gama de seus
gêneros direcionados a públicos, segmentos e faixas etárias específicos, seja pela parceria de
sucesso estabelecida com outros mercados, serviços e bens de consumo.
Década após década, esse mercado se renova, adquire maior visibilidade e amplia o rol
de produtos advindos das páginas dos quadrinhos japoneses, sempre sintonizado com os
avanços tecnológicos – muitos deles desenvolvidos no próprio Japão –, injeta milhões de
ienes na economia japonesa e milhões de dólares mundo afora, movimentando a economia em
uma escala global, e, sobretudo, conquistando novos espaços, territórios e leitores.
1.3 CARACTERÍSTICAS
O mangá possui muitos detalhes ideológicos – com relação ao ritmo dos personagens e
da ação, o layout, etc. – que permitiram que a narrativa gráfica japonesa adquirisse
personalidade própria. Carvalho (2006) considera tais elementos ou detalhes como
particularidades de deferência:
A deferência com os quadrinhos japoneses ocorre porque eles têm uma série de
elementos que os caracterizam como algo diferente dos quadrinhos ocidentais – ainda
que atualmente muitas HQs do Ocidente já tenham incorporado algumas das técnicas
japonesas. (CARVALHO, 2006, p. 55).
Moliné (2004) lista os principais elementos que caracterizam os mangás como algo
diferente dos quadrinhos ocidentais:
58
interfira no quadrinho seguinte, formando uma sequência. Para ilustrar seu pensamento, Koike
utiliza como exemplo o personagem do Super-Homem voando no céu. Se ele é desenhado em
somente um quadrinho, resulta em uma imagem estática. Nas HQs japonesas tal cena será
desenhada de maneira diferente: um personagem voará ao longo de três quadrinhos enquanto
são enfocados sua cabeça, seu corpo e seus pés.
Figura 17: Abaixo, um fragmento extraído de Cavaleiros do Zodíaco, o qual exemplifica as ligações de
momento a momento, recurso muito utilizado nas narrativas dos mangás. No trecho em questão, os quadrinhos
são verticais e escuros, representando o plano do Universo em duas páginas. Não há balões, mas há presença de
texto verbal. Um dragão atravessa os quadrinhos, extrapolando os limites das vinhetas, e também das duas
páginas, e vai diminuindo de tamanho à medida que assoma. É possível constatar trajetórias opostas entre o texto
verbal e as imagens do dragão: enquanto o primeiro declina, o segundo ascende.
Fonte: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 19. São Paulo: Conrad, 2002.
Segundo Moliné (2004, p. 31), a utilização desse recurso narrativo demonstra que os
autores de mangá sabem “saborear uma ação e desenvolver ao máximo suas possibilidades
iconográficas”. Ainda conforme o especialista, esse artifício visual pode nos fazer vir à mente a
conhecida doutrina filosófica oriental zen, que é baseada na contemplação e na meditação.
60
(vi) Violência
Nos mangás, inevitavelmente, encontra-se um pouco mais de violência do que em
outros quadrinhos. Esse aspecto advém de todo um contexto histórico-cultural do Japão. De
acordo com Carvalho (2006, p. 55), “especula-se que tal característica seja cultural, em
decorrência dos códigos de honra e disciplina mais rígidos daquele povo”.
61
Gravett (2006) também entende este elemento como oriundo de fatores culturais:
Sendo um idioma escrito verticalmente, cujas colunas são lidas de baixo para cima,
começando na direita, a ordem de leitura de um livro ou revista no idioma japonês é inversa à
nossa: da direita para a esquerda, cuja capa está no lugar de nossa contracapa e vice-versa. Por
sua vez, os quadrinhos de uma página são lidos também da direita para a esquerda.
Ao ser publicado por um editor ocidental, em alguns casos optou-se por “inverter” cada
página do mangá, reproduzindo-a como se estivesse refletida em um espelho.
Segundo Moliné (2004, p. 26), nem todos os mangakás permitem que suas criações
sofram tal manipulação ao serem editadas fora de seu país. Estas exigências motivaram as
primeiras aparições dos mangás editados nos países ocidentais respeitando a ordem de leitura
original.
Com o tempo, o conhecimento do universo dos mangás pelo público ocidental fez com
que este se acostumasse com a leitura oriental. Atualmente há editoras ocidentais de mangá que
apresentam seus títulos com a ordem de leitura japonesa não necessariamente porque seus
autores exigiram isso, mas porque boa parte dos seus leitores assimilaram completamente a
maneira de ler e compreender um mangá de acordo com a mentalidade japonesa. (MOLINÉ,
2004, p. 26).
Quando discute acerca da “ocidentalização” dos mangás na perspectiva de adulteração
ou necessidade, Moliné (2004, p. 27) afirma que “aqui pode-se falar em uma superação do
choque cultural, o qual representa um mérito alcançado pelo leitor ocidental de mangás”.
É nesse contexto que Cavaleiros do Zodíaco se insere, desde o lançamento de sua
primeira publicação no Brasil, no final do ano 2000, até suas republicações posteriores. Com
exceção do idioma, as editoras procuraram manter o máximo de fidelidade do mangá traduzido
com seu formato original, especialmente na questão do fluxo de leitura, o que não foi visto
como empecilho pelos leitores. O choque cultural foi superado por um profícuo intercâmbio
entre Japão e Ocidente.
O universo dos quadrinhos japoneses exige uma classificação por gênero. Moliné (2004,
p. 36) nos explica que é incorreto classificar uma série particular em um único gênero. Isto
porque, um mangá esportivo, por exemplo, pode conter elementos de romance. Ou ainda, um
policial pode ter doses de humor. Cavaleiros do zodíaco, nosso objeto de análise, tem a sua
narrativa perpassada por elementos de aventura e mitologia, em uma linguagem caracterizada
pelo viés épico. Dito em outras palavras, uma moderna epopeia nipônica em quadrinhos.
Ainda conforme Moliné (2004, p. 36), cada revista traz uma variedade de gêneros por
exemplar, a fim de satisfazer o gosto de todos os tipos de leitores, sempre em função da idade e
63
sexo do público a que é destinada. São muitos os gêneros de mangá, e o autor nos apresenta os
principais:
karioroshi Mangá publicado diretamente em livro, sem ter aparecido previamente em capítulos de
uma revista.
kodomo manga Mangá destinado a menores de seis anos.
konjô Literalmente, caráter ou espírito. São as histórias que descrevem a luta por parte do(s)
protagonista(s) em sobressair, à força de orgulho e coragem, na atividade que
desempenha(m), seja uma profissão, um esporte ou qualquer outra coisa. Quando abordam
temas esportivos, são chamados spokon manga (contração de sport e konjô).
lady’s comic Mangá destinado a mulheres adultas.
lolikon É utilizado para designar os mangás de conteúdo erótico, destinados a um público juvenil
masculino, que são protagonizados por “lolitas” ou garotas de aspecto inocente e atraente.
A origem deste termo está na contração de Lolita complex, “complexo de Lolita”, em
alusão ao romance Lolita, de Vladimir Nabokov.
majokko Mangá de jovenzinhas com poderes mágicos destinado às meninas.
sarariman Mangá protagonizado por funcionários de escritório (do inglês salary man).
manga
yaoi Contração de yama nashi, ochi nashi, imi nashi (“sem clímax, sem desenlace, sem
sentido”): mangá de temática homossexual; embora apresente relações amorosas entre
rapazes, é consumido principalmente, embora não exclusivamente, pelo público feminino.
seinen manga Mangá destinado a jovens adultos.
(1)
seinen manga Mangá de conteúdo pornográfico. Não deve ser confundido com o termo anterior; embora
(2) ambos tenham a mesma pronúncia, são escritos com caracteres japoneses (kanjis)
distintos.
64
Muito mais poderia ser apresentado acerca das HQs e dos mangás, com mais fatos
históricos e uma exposição pormenorizada das tendências atuais. Trata-se de um tema amplo,
que diz respeito a vários países ou culturas e está em constante evolução. Para a nossa
pesquisa, e tendo em vista a análise que se pretende efetuar, as informações apresentadas
figuram como suficientes.
65
Masami Kurumada
A indústria do mangá, uma das mais proeminentes para a difusão cultural e para a
economia do Japão, possui dois princípios fundamentais quando um mangá conquista êxito no
mercado editorial e popularidade entre seus leitores: lançar uma compilação completa da
série, denominada tankobon, exclusivamente com a história em questão; e lançá-la em anime,
18
In: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 13. São Paulo: Conrad, 2000.
68
ou seja, em desenho animado. E foi isso que aconteceu com Saint Seiya, sendo que a série
rendeu 28 volumes tankobon, cada um com aproximadamente 200 páginas. Com o passar do
tempo, novas recompilações foram sendo lançadas, incluindo até uma edição de luxo para
colecionadores – chamada de kanzenban, a qual contém algumas páginas coloridas, seus
volumes possuem capa dura e a história é impressa em um papel de qualidade superior,
comparado ao papel utilizado na impressão de edições que não possuem essa natureza
especial. Além disso, os kanzenbans possuem um tratamento cuidadoso em todos os seus
componentes gráficos e estéticos e, no caso de um kanzenban publicado fora do Japão, em
outro idioma, a tradução do texto em língua japonesa para a língua portuguesa é revisada
minuciosamente, a fim de ser o mais próximo possível dos escritos originais e retificar
traduções equivocadas em edições anteriores.
Ainda em 2002, os fãs da série são brindados com um novo mangá: o Episódio G.
Trata-se de um mangá com roteiro do próprio autor, Masami Kurumada, mas o traço agora é
de Megumu Okada, o que despertou desinteresse de boa parte dos antigos fãs, uma vez que
estavam habituados com o traço e a estética clássicos e marcantes de Kurumada. Com o
passar do tempo, o mangá foi evoluindo e ganhando respeito por parte da maioria dos fãs,
principalmente porque a história foi elaborada pelo próprio Kurumada. Infelizmente ele foi
interrompido em 2008, sem uma explicação oficial aos fãs que estavam acompanhando a
história.
No ano de 2008, finalmente, a Saga de Hades foi concluída com 6 OVAs referentes à
Fase Elíseos. Já no ano de 2009, o Lost Canvas ganhou a sua versão em anime. A primeira
temporada teve treze OVAs e durou até o primeiro semestre de 2010. A segunda temporada
foi lançada em 2011 e teve mais treze OVAs também. Infelizmente não existe uma terceira
temporada em anime e nem previsão para isso, já que a série continua com a situação de
cancelada no Japão.
No começo do ano de 2012 foi lançada a série Ômega, voltada para um público mais
infantil, em uma tentativa de renovar o público da série, agregando, deste modo, uma nova
geração de fãs. Foram duas temporadas, totalizando 97 episódios.
O último anime produzido foi o Alma de Ouro (Soul of Gold), em 2015. Este é focado
exclusivamente nos Cavaleiros de Ouro e a Toei Animation utilizou uma brecha da história do
Muro das Lamentações para encaixar o novo anime, o qual se tornou unanimidade entre os fãs
e rendeu boas críticas entre o público especializado no universo dos Cavaleiros.
2.2 A NARRATIVA
Há tempos, na época dos deuses, o planeta assistia à terrível disputa dos deuses pelo
seu domínio. Os “deuses” a quem nos referimos aqui são pessoas que representam uma
“vontade maior” ou a “vontade divina”. Elas guiavam as outras enquanto ampliavam seu
próprio poder.
No decorrer do tempo, os Céus e a Terra passaram a ser comandados por Zeus; o mar,
por Poseidon; e o mundo dos mortos, por Hades. Depois de entregar a responsabilidade pela
Terra à sua filha Atena, Zeus some nos céus.
Com Atena governando a Terra, Poseidon e Hades, cada qual à sua maneira, começam
a tramar planos para conquistarem os domínios terrestres. O ataque mais insistente veio de
Poseidon e suas investidas provocaram as mortes de muitos guerreiros valentes. Não tardou a
aparecerem jovens garotos lutando nos campos de batalha. Eles treinavam seus corpos além
do limite humano, até que os punhos fossem capazes de cortar o ar e partir a terra, e se
protegiam com armaduras sagradas. As pessoas começaram a chamar de Cavaleiros esses
garotos equipados com armaduras sagradas e admiravam os seus feitos.
A batalha dos deuses continuou durante séculos, mas foi mascarada pelo tempo e até a
existência dos cavaleiros passou a ser contada apenas como uma lenda. Entretanto, a narrativa
72
evidencia que, na verdade, os cavaleiros continuam a existir até hoje. O seu Cosmo elevado
produz um destrutivo soco que rompe a barreira do som, chegando a esmigalhar blocos de
concreto. São seres milagrosos que conhecem as mais diversas técnicas de luta, as quais
fogem à imaginação humana. Todos os seus atos são supervisionados pelo Santuário da
Grécia, que não se submete a nenhuma nação, povo ou organização. O objetivo e a missão
desses cavaleiros é um só desde a época dos deuses: proteger a deusa Atena e garantir a paz
na Terra.
Figura 19: Os cinco cavaleiros de bronze, protagonistas da história. Na frente, da esquerda para a direita: Hyoga,
cavaleiro da constelação de Cisne; Seiya, cavaleiro da constelação de Pégaso; Shun, cavaleiro da constelação de
Andrômeda. Atrás: Shiryu, cavaleiro da constelação de Dragão, à esquerda; e Ikki, cavaleiro da constelação de
Fênix, à direita.
Então, no final do século XX, surgiu um ser humano que se propôs a criar
artificialmente um grande exército desses cavaleiros. Era Mitsumasa Kido, dono da Fundação
Graad, uma organização com poderes suficientes para influir no mundo todo. Mitsumasa Kido
sempre teve interesse em lutas marciais e era conhecido por patrocinar inúmeros torneios
mundiais. Por obra do destino, o velho Kido ficou sabendo da existência dos cavaleiros e das
armaduras e planejou torná-los conhecidos através de um torneio de luta. Para concretizar o
seu intento, enviou cem pequenos garotos órfãos para vários lugares do mundo a fim de serem
arduamente treinados como cavaleiros. Dos cem garotos, dez conseguiram o feito de se tornar
cavaleiros e voltaram para o Japão. Lá, foram obrigados a participar da Guerra Galáctica,
promovida por Saori Kido, neta de Mitsumasa, que herdou a vontade do avô após sua morte.
Esse foi o estopim para uma nova era de batalhas sagradas. Como já foi citado anteriormente,
tornar-se um cavaleiro significa assumir um destino importante para si. O fato de surgirem
dez cavaleiros pela Fundação Graad teve, evidentemente, um grande propósito, oculto até
então. A missão só poderia ser proteger a deusa Atena.
Manchete, a qual foi pioneira e se consagrou com a exibição de desenhos animados japoneses
nas décadas de 1980 e 1990. (CAVZODÍACO, 2018?).
O sucesso do anime, que não teve muita divulgação e começou sendo exibido
discretamente, veio de modo imediato e natural. (OMELETE, 2014). O desenho começou a
ser exibido em dois horários: às 10h30min, dentro do programa infantil Dudalegria; e às
18h30min, dentro de outro programa infantil, o Clube da Criança. Depois, a série ganhou um
programa próprio, que até incluiu a presença de uma apresentadora – sinônimo de que o
desenho estava tendo bons números de audiência e boa aceitação pelo público infanto-juvenil.
(CAVZODÍACO, 2018?).
A Rede Manchete ficou marcada pelas constantes reprises dos episódios. Segundo o
site de fãs CavZodíaco, sempre que o desenho chegava no episódio 52, a série começava a ser
reprisada desde o início. Segundo o referido site, isso acontecia porque a emissora estava
limitada a esses 52 episódios, não possuindo outros inéditos. O anime ficou no ar até 1997,
batendo recordes de audiência. Muitos produtos foram lançados ao longo dos anos de sua
exibição, dentre os quais podemos destacar: álbuns de figurinhas adesivas, CD e LP musical
(chegou a ganhar até disco de ouro), bonés, mochilas, estojos, revistas, pôsteres, etc.
(OMELETE, 2014; CAVZODÍACO, 2018?).
Assim que a série parou de ser exibida, outras emissoras de TV viram que poderia ser
uma boa investir em desenhos animados japoneses. Começaram a aparecer muitos outros
animes, mas nenhum conseguiu cativar tanto público quanto Os Cavaleiros do Zodíaco.
(OMELETE, 2014; CAVZODÍACO, 2018?).
Um fato importante é que, desta vez, os fãs tiveram a chance de participar e ajudar em
vários momentos. No Natal de 2003, 40.000 bonecos foram vendidos em menos de 2 semanas
e, em 2004, a Rede Bandeirantes começou a exibir o anime, que ficou no ar até 2007. A Rede
21 e a PlayTV também exibiram os episódios. A Saga de Hades começou a ser lançada em
DVD, pela PlayArte, no meio de 2006. Aliás, a PlayArte fez o lançamento da série completa
em DVD (com toda a série clássica, Hades e todos os filmes, incluindo o Prólogo do Céu, que
também teve exibição nos cinemas brasileiros, mas de forma bem discreta). A Band exibiu a
Saga de Hades apenas no final de 2010. (O CAPACITOR, 2010; CAVZODÍACO, 2018?).
Em 2016, em comemoração aos 30 anos do anime no Japão, a Rede Brasil fechou uma
parceria com a Toei Animation e passou a exibir, de forma oficial e legalizada, os 114
episódios da série clássica. A estreia aconteceu em outubro de 2016, e a série foi exibida até
dezembro de 2018, contando com a reprise de seus episódios. (ANMTV, 2016; 2018).
76
Este capítulo apresenta alguns dos principais aspectos da vida de Dante e de sua
Divina Comédia, tendo em vista que o Inferno de Cavaleiros do Zodíaco foi analisado a partir
do poema dantesco. Mesmo que algumas informações constantes no decorrer deste capítulo
não sejam novidades, a sua exposição é relevante para o contexto do nosso trabalho,
considerando a influência que Dante e a arquitetura de seu Inferno exerceram na composição
do Inferno desenhado por Masami Kurumada em seu mangá.
3.1 O POETA
Da vida de Dante sabemos pouco, e, tudo o que sabemos pode ser extraído de suas
obras, especialmente da Vita Nuova e da Divina Comédia. Isso porque, conforme Franco Jr.
(2000, p. 11), “as referências da época são fragmentárias e esparsas, e informações mais
amplas e ricas são posteriores à sua morte e talvez por isso já algo idealizadas”. Entretanto,
sabe-se que Dante nasceu no final de maio de 1265, em Florença. Não se sabe o dia exato de
seu nascimento. Especula-se que seja entre 15 de maio e 15 de junho de 1265, uma vez que o
poeta apresenta a constelação de Gêmeos como sua constelação natal (REYNOLDS, 2011, p.
21).
Outra informação que consta nas biografias de Dante é que a sua família era
descendente de Cacciaguida, morto em 1148 numa cruzada na Terra Santa, no séquito de
19
“A ideia de um texto capaz de múltiplas leituras é característica da Idade Média, a Idade Média tão caluniada e
complexa que nos deu a arquitetura gótica, as sagas da Islândia e a filosofia escolástica em que tudo isso é
discutido. Que nos deu, acima de tudo, a Comédia, que continuamos lendo e que ainda nos surpreende, que vai
durar além de nossas vidas, muito mais além de nossas vigílias e que serão enriquecidas por cada geração de
leitores.” (BORGES, 1993, p. 10, tradução nossa).
78
Conrado III. Cacciaguida se casou com uma Alighieri de Ferrara, de quem teve origem o
sobrenome de Dante (DISTANTE, 2017, p. 10). Seu nome é uma forma abreviada de
Durante, que significa “resistente”. Já o sobrenome Alighieri deriva da palavra latina aliger, a
qual significa “alado” (REYNOLDS, 2011, p. 21).
Figura 20: Retrato de Dante, obra de Sandro Botticelli, pintado por volta de 1495
Quando Dante nasceu, seu pai, Alighiero di Bellincione, tinha cerca de 45 anos. Era
um homem de posses, tanto dentro de Florença como na zona rural circunvizinha, e
aumentava sua renda emprestando dinheiro, atividade que Dante depois condenou como
usura. Sua mãe, Bella degli Abati, morreu quando Dante era criança, em algum ano entre
1270 e 1275, e seu pai se casou outra vez. Sua segunda esposa era Lapa di Chiarissimo
Cialuffi e ela lhe deu dois filhos, Francesco e Gaetana. A outra filha, possivelmente fruto do
79
casamento com sua primeira esposa, cujo nome é desconhecido, casou-se com Leoni Poggi e,
segundo Giovanni Boccaccio, o primeiro filho do casal se parecia muito com o poeta.
Seu pai morreu em algum momento entre 1281 e 1283, deixando Dante, então no final
da adolescência, aos cuidados de um tutor até que ele tivesse 25 anos, como rezava a lei. A
respeito das muitas imagens de parentesco que são mencionadas na Divina Comédia,
Reynolds (2011) acredita que a perda precoce da mãe e posteriormente a do pai deixou em
Dante uma carência emocional. Conforme a biógrafa,
Várias vezes ele descreveu a si mesmo como uma criança: contido nos braços
protetores de Virgílio, sendo carregado adormecido por Santa Luzia no Monte
Purgatório, voltando-se para Beatrice como um menino pequeno que se volta para a
mãe em busca de segurança num momento de pânico; uma vez ele se comparou a
uma criancinha faminta que abocanha o seio da mãe. (REYNOLDS, 2011, p. 26).
As informações sobre a educação de Dante advêm, sobretudo, daquilo que a sua obra
nos revela: que ele era um homem extremamente culto, dotado de uma erudição profunda e
familiarizado com o conhecimento e com as fontes a ponto de os tratar com leveza e
habilidade invejáveis (BLACK, 2013, p. 22). Contudo, é sabido que o poeta provavelmente
recebeu ensinamentos ou dos frades franciscanos de Santa Croce ou dos dominicanos de
Santa Maria Novella. Era uma criança séria, solitária, muitas vezes assaltada por sonhos
vívidos, tanto acordado como dormindo. Impressionado com os contos de cavaleiros e com a
bravura dos heroicos cruzados, desejava ser muito um deles quando crescesse.
Aos 9 anos, o pai de Dante o levou a uma festa do Dia Primeiro de Maio. Muitas
crianças estavam presentes no evento, inclusive a filha do anfitrião. A menina tinha quase 8
anos e seu apelido era Bice: era Beatriz Portinari. Após o almoço, as crianças saíram para
brincar e foi então que Dante se apaixonou por Beatriz. Uma paixão tão profunda que, desse
dia em diante, nunca mais deixou de pensar nela. No entanto, Dante teria que esperar quase
nove anos para reencontrar Beatriz. Ele tinha 17 anos quando tornou a encontrá-la (BLACK,
2013, p. 22-23). Beatriz foi a fonte de inspiração para Dante compor a Vida Nova, obra na
qual canta e exalta a beleza e a virtude de sua amada, cuja composição se deu entre 1283 e
1292.
Muitos estudiosos acreditam que o encontro de Dante com Beatriz possa ser o marco
da primeira louca paixão registrada na literatura. Nas palavras de Black (2013), “o relato
desse encontro talvez tenha sido a primeira descrição extensa sobre o enamoramento na
literatura do Ocidente”. Em vista disso, o autor complementa que “não seria exagero supor
80
que Dante e Beatriz inspiraram Romeu e Julieta, Heatchcliff e Cathy, Anna Karenina e
Vronsky”, acrescentando, de modo bem-humorado, que a história do casal permite com que
sonhemos com romances célebres da atualidade, como o de Brad Pitt e Angelina Jolie
(separados desde 2016) e o do casal real, Príncipe William e Kate Middleton (BLACK, 2013,
p. 25).
Figura 11: Primeiro encontro de Dante e Beatriz (pintada provavelmente no fim do Século XIX), de Raffaelle
Giannetti
Por volta de 1283, uns dez anos depois de conhecer e se apaixonar por Beatriz, Dante
se sujeitou ao casamento arranjado para ele na infância, com Gemma Donati. Tiveram três
filhos, Jacopo, Pietro e Antonia, e talvez um quarto, chamado Giovanni (DISTANTE, 2017,
p. 10). No entanto, sua união com Gemma não foi um casamento feliz.
81
Figura 22: Retrato presumido de Beatriz Portinari (pintado entre o final do Século XIX e início do Século XX),
por Élisabeth Sonrel
Disponível em:
<https://www.sjobergbildbyra.se/fotoweb/cache/5003/Imagearchive/Imagearchive331/hip0022910.t550ed049.m
2400.wsjobergwatermarkbottom.tif.x94XgJID1.jpg>. Acesso em: 19 dez. 2019.
Além da atividade poética, Dante ficou reconhecido por sua atuação em outras áreas,
como, por exemplo, sua participação na batalha de Campaldino, em 1289, e também na
82
conquista do castelo pisano de Caprona. Dante também se destacou por sua intensa atuação na
vida política, carreira que iniciou em 1295, alcançando o cargo de prior, isto é, governador de
Florença entre 15 de junho e 15 de agosto do ano de 1300 (DISTANTE, 2017, p. 10).
Como político, Dante se mostrou enérgico e justo, não se rendendo a ninguém, amigo,
adversário, quem fosse, para, deste modo, assegurar a paz aos cidadãos de Florença. Sua
determinação e suas convicções no âmbito da política lhe renderiam um dos episódios mais
dramáticos de sua vida, que iniciou quando Dante
Resistiu à ingerência do papa Bonifácio VIII nos negócios internos da cidade, por
isso militou junto aos guelfos brancos, que se opunham tanto à política da Igreja
quanto à do Império, as duas grandes forças rivais da Idade Média. Foi enviado a
Roma, junto com outras duas pessoas, para persuadir Bonifácio VIII a não deixar
que Carlos de Valois, enviado pelo papa sob as falsas vestes de pacificador em
Florença, ajudasse os guelfos negros, favoráveis à política papal, para se apossarem
do governo da cidade. Mas isso não ocorreu. Dante voltou de Roma não só de mãos
vazias, como já no caminho foi informado de que os seus adversários políticos, isto
é, os guelfos negros, tinham-no condenado sob a acusação de corrupção, a pagar
uma multa de 5 mil florins e a dois anos de prisão, além de interdição perpétua aos
ofícios públicos (DISTANTE, 2017, p. 10).
20
Indicado indiferentemente até o século XV por várias designações, tais como: toscano, florentino, italiano,
língua comum, vulgar.
83
3.2 O POEMA
21
Em sua tese intitulada Convergências Literárias: as visões do Paraíso nos textos apócrifos de Enoque e Isaías
e na Divina Comédia (2010), Silvana de Gaspari observa que “o apóstolo Paulo é o primeiro herói cristão, sobre
84
O verso é cru e a narrativa não tem organização. [...] Mas este é o material que
Dante usou para seu Inferno quando o escreveu. Como um magistral showman, ele
pegou um cenário primitivo e o desenvolveu em uma produção bem-organizada. E a
isso ele combina algo mais (REYNOLDS, 2011, p. 159, grifos da autora).
Por sua vez, Curtius (1979) apresenta dois títulos como possíveis influências para a
Divina Comédia. O primeiro é Sonho de Cipião, de Cícero, texto em que o jovem Cícero é
transportado em sonho à Via Láctea, local onde recebe ensinamentos e previsão acerca de seu
destino. Tal episódio ocorre de modo semelhante com Dante, em sua passagem pelo Paraíso.
Ainda conforme Curtius, uma segunda influência vem de Marciano Capela e da épica
filosófica do século XII, de Bernardo Silvestre e Alano, o qual, nas palavras do teórico,
o qual temos conhecimento, a cumprir uma viagem pelo além e retornar para testemunhar. O relato de Paulo,
apresentado no texto apócrifo Visio Sancti Pauli e em 2 Cor 12, dos versículos de 01 a 10, teve uma grande
difusão durante a Idade Média e representou o protótipo das viagens ao mundo dos mortos desse período”
(GASPARI, 2010, p. 64). Conforme a tradução da autora, realizada a partir do texto de Giuseppe Bonghi e
contido em um dos apêndices da tese, Deus queria que Paulo visse as penas. O apóstolo viu, diante das portas do
inferno, árvores inflamadas e pecadores atormentados suspensos sobre elas. Alguns estavam pendurados pelos
pés, outros pelas mãos, outros pelos cabelos, ou pelas orelhas, ou pela língua, ou pelos braços.
85
“aventou a idéia (sic) de um novo gênero poético, que trataria de elevar a razão aos domínios
da realidade transcendente (1979, p. 377).
Isso é demonstrado pelo fato de não ter havido século ou período histórico em que
os homens não tenham se dedicado à leitura da Comédia. Talvez só a Bíblia e os
evangelhos tenham sido mais lidos e estudados na história do mundo do que a
Comédia, pelo menos na história do mundo ocidental. E isso porque são livros
sagrados, mas não há dúvida de que a Comédia ocupa um lugar de grande relevo
poético além, de cultural (DISTANTE, 2017, p. 14).
Quanto à estrutura, a Divina Comédia é o relato da viagem que Dante empreende para
visitar os três reinos do outro mundo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Toda a viagem é
contada em cem cantos, dos quais o primeiro funciona como introdução. De modo que a
viagem propriamente é narrada em 99 cantos, 33 em cânticos, cada qual com
aproximadamente 40 a 50 tercetos, que terminam com um verso isolado no final.
86
Em números mais precisos, o poema possui 14233 versos distribuídos ao longo dos
seus cem cantos, os quais oscilam entre um mínimo de 115 e um máximo de 160 versos. A
tabela abaixo explicita a distribuição dos cantos e dos versos nos três reinos visitados por
Dante:
Purgatório 33 4755
Paraíso 33 4758
Fonte: o autor.
Essa estrutura métrica foi originalmente criada por Dante, e ficou conhecida como
terza rima, terzina dantesca ou rima encadeada. A utilização desse sistema nos permite dizer
que a organização dos versos é regida por um padrão. Sobre o emprego dessas rimas, Campos
tece um comentário pertinente:
A respeito disso, Distante (2017, p. 12) explica que o número 3 simboliza a aceitação
total e absoluta do mistério dos mistérios da religião cristã: a crença sem silogismos
defectivos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, sentidos e entendidos como uma só pessoa.
Em outras palavras, trata-se da concepção de Deus como unidade e como trindade, concepção
da qual o Dante cristão compartilhava na profissão de sua fé.
[...] toda a linguagem poética do poema é uma linguagem simbólica, e nem poderia
ser diferente a partir do momento em que Dante quer descrever e representar, [...]
em figuras poéticas, um mundo e uma realidade que ultrapassam a experiência
humana (DISTANTE, 2017, p. 12).
88
[...] consiste na ordem do universo d’après Ptolomeu, e tal como adaptada aos
dogmas da Igreja pelo aristotelismo cristão. No conjunto, e em muitos de seus
particulares, essa ordem já estava formulada nos escritos dos maiores filósofos
escolásticos e nas obras didáticas inspiradas por eles, de modo que Dante pôde tirar
seus traços principais das próprias fontes: Aristóteles, Alfraganus, santo Alberto
Magno, santo Tomás de Aquino, Brunetto Latini. O globo da terra ocupa o centro do
cosmos; em torno dele giram nove esferas celestes concêntricas, enquanto que uma
décima, o Empíreo, morada de Deus, é concebida como o completo repouso. Metade
da Terra, o hemisfério Norte, é habitada. Os limites orientais do ecúmeno, i.e. do
mundo habitado, são o rio Ganga (Ganges) e as Colunas de Hércules (Gibraltar). Seu
centro é Jerusalém. No interior do globo terrestre, ou melhor, do hemisfério norte,
semelhando um funil que se estreita em direção ao centro, está o Inferno. Na sua
parte mais profunda, no centro exato da Terra, mora Lúcifer, o qual, ao cair do céu,
logo depois da Criação, se enfiou no fundo da terra, empurrando para cima, isto é,
para a superfície, uma enorme porção do ‘miolo’. Essa massa é a grande montanha
que, sozinha se ergue acima do oceano que cobre todo o hemisfério meridional. É a
montanha do Purgatório, morada das almas que rumam para o Paraíso mas ainda
precisam purificar-se. No cume dessa montanha, no ponto em que a terra está mais
próxima da esfera mais baixa do céu, fica o Paraíso Terrestre, onde viveram o
primeiro homem e a primeira mulher antes da Queda. As esferas celestes, que são o
Paraíso verdadeiro, organizam-se segundo os corpos celestes nelas situados.
Primeiro, vêm as esferas dos sete planetas da astronomia antiga, em sua ordem: Lua,
Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Segue-se a esfera das estrelas fixas.
A nona é o céu cristalino e invisível, e a última é o Empíreo. O movimento das
esferas celestes é concêntrico e circular. Um ardente desejo de união com Deus
comunica um movimento da mais alta velocidade à nona esfera, a que fica mais
próxima do Empíreo imóvel, onde Ele habita. A nona esfera, por sua vez, e através
da hierarquia das Inteligências, ou Anjos, comunica seu movimento às esferas
inferiores (AUERBACH, 1997, pp. 127-128).
89
Quanto à língua escolhida para a composição de sua grande obra, Dante elegeu o
vulgare illustre, contrapondo-se ao latim clássico que caracterizava as grandes obras
produzidas em seu tempo. Distante afirma que é esta língua que sustenta o poema, e que
Dante
[...] soube aperfeiçoar, se não mesmo inventar. Sim, pois já que o instrumento
linguístico adotado usualmente pelos cidadãos da sua belíssima cidade [...] não lhe
bastava para dizer tudo o que queria dizer, inventava-o, cunhando palavras novas ou
forçando aquelas velhas a significados novos, ou então, recorrendo ao
plurilinguismo e ao sinestesismo, corajosamente se lançava a expressões que davam
voz até ao inefável. Enfim, Dante não só trabalhou com a língua italiana para dar
vida artística e poética à Comédia, mas foi também um grande construtor de sua
língua, tanto que por mérito seu ela chegou a ser talvez a mais bela e a mais nobre
do mundo (DISTANTE, 2017, p. 17).
A Divina Comédia talvez seja a obra pela qual os italianos passaram a conhecer sua
própria língua, reformulada e sublimada pelo poeta florentino (MIGLIORINI, 1983, p. 168).
Com o seu poema, Dante partiu para uma liberação linguística, sendo o primeiro a optar pela
língua vulgar para atingir um público maior para algumas de suas obras. Ao lado de palavras e
formas do florentino contemporâneo, Dante acolheu vozes e formas que já estavam em
desuso, algumas formas do toscano ocidental e meridional, e também algumas vozes de outros
dialetos italianos, muitas latinas, várias francesas (MIGLIORINI, 1983, p. 177).
Efetuadas as exposições sobre o poeta e seu poema, passamos para o capítulo que
tematiza o Inferno cristão, cujas paisagem e arquitetura ganharam outra dimensão, tanto na
religião quanto na cultura, após a difusão da Divina Comédia mundo afora.
92
93
4 O INFERNO CRISTÃO
Cruz e Sousa
22
Fragmento do poema em prosa No Inferno, integrante da obra Evocações (1898).
94
tempo, ela adquiriu novas acepções, segundo diferentes motivações, sejam elas de ordem
religiosa, cultural ou social.
inferno
substantivo masculino
1.
MITOLOGIA
local subterrâneo habitado pelos mortos (tb. us. no pl.).
2.
RELIGIÃO
para os cristãos, lugar em que as almas pecadoras se encontram após a morte,
submetidas a penas eternas.
3.
FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE
extremo sofrimento infligido por certas circunstâncias, sentimentos ou pessoa(s);
martírio, tormento.
"sua casa tornou-se um i."
4.
FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE
grande confusão; completa desordem; balbúrdia, inferneira.
5.
BIBLIOLOGIA•BIBLIÔNIMO
local de acesso restrito em biblioteca, onde estão encerradas obras de caráter
licencioso.
6.
local onde caem resíduos líquidos de fabricação ou água que moveu alguma
instalação; vazadouro.23
Em linhas gerais, a palavra tem sua origem na língua latina: infernum, que significa
“as profundezas”, o “mundo inferior”, o “submundo”. Por sua vez, infernum resulta da
palavra latina pré-cristã inferus (ou infernus), a qual significa "lugares baixos" (LEWIS &
SHORT, 1879). A origem etimológica do termo nos oferece ideias para entender que o
Inferno foi concebido e construído como um local real e físico e, portanto, como lugar
geográfico e espiritual.
Embora com diferentes termos, o Inferno está presente em diferentes línguas, culturas
e religiões, cujos conceitos e descrições variam, podendo apresentar diferenças. Mesmo que
na perspectiva das artes, dissertar sobre o imaginário do Inferno perpassa necessariamente o
campo da religião, como poderemos ver adiante.
23
INFERNO. In: Dicionário Google. Disponível em:
<https://www.google.com/search?q=dicion%C3%A1rio+google&oq=dicio&aqs=chrome.2.69i59l3j69i57j69i60j
69i61j69i60l2.4679j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8#dobs=inferno>. Acesso em: 13/01/2020.
95
É por meio do legado literário do poeta Homero, no entanto, que as descrições gregas
do mundo dos mortos ganham notoriedade, após terem sido difundidas e conhecidas em
outras terras e culturas. Essa notoriedade do Hades se deu em virtude do que Homero
apresenta em seus poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia. Neste último, mais precisamente em
seu Canto XI, Homero descreve o Hades, explicando que o reino dos mortos só pode ser
24
Em Cavaleiros do Zodíaco, os guardiões do Inferno de Hades são chamados de espectros.
96
acessado mediante o consentimento dos deuses que o guardam. O poeta também o situa na
topologia mitológica que elaborou para a sua epopeia. Ainda de acordo com o Canto XI,
Homero o inseriu além do país dos cimérios, numa região de longinquidade extrema, onde o
sol não brilha. Além desse canto, outras referências ao Hades, das quais algumas o
descrevem, podem ser encontradas nos cantos V, XII, XIII e XIV.
25
Na Divina Comédia, Dante também manteve o status social dos personagens que foram condenados ao
Inferno.
97
No segundo Paraíso, os anjos caídos (os amorosos, que copularam com as filhas dos
homens) estavam aprisionados e eram diariamente açoitados. Os temíveis Vigilantes
habitavam o quinto Paraíso, os eternamente silenciosos Grigori que, junto ao seu
príncipe Salamiel, rejeitaram Deus (RIZO, 2013, p. 4).
A arquitetura do Inferno egípcio impressiona pela sua sofisticação (LE GOFF, 1981),
contando com imponentes pórticos e muralhas, pântanos lamacentos e lagos de fogo com a
finalidade de castigar as almas. As punições do Inferno egípcio eram diversificadas e muito
rigorosas, as quais
[...] atingiam tanto o corpo como a alma. Eram tanto físicas como morais, marcadas
pelo distanciamento dos deuses. Uma sensação essencial era a de encerramento e de
prisão. Lá as penas eram sangrentas e os castigos pelo fogo numerosos e terríveis.
(LE GOFF, 1981, p.37)
(2013), basilar na doutrina cristã e misterioso em sua essência. Ele criou a figura do Diabo e a
necessidade de expulsá-lo do reino de Deus. Consequentemente, criou também uma morada
onde o Diabo pudesse habitar – o Inferno, tornando esse espaço intimamente relacionado à
figura do seu principal habitante.
A partir disso, o dualismo entre Bem e Mal e Deus e Diabo foi ampliado, reforçando a
noção de pecado e possibilitando o surgimento de novas antíteses, como Céu/Paraíso e
Inferno, Luz e Trevas/Escuridão, etc. Também foram ampliadas as representações sobre o
espaço do Inferno e a figura do Diabo, sendo este período histórico o auge da elaboração
iconográfica de ambos (RIZO, 2013, p. 1).
Com base nisso, o cristianismo instituiu o preceito de que o homem deve praticar o
bem acima de tudo em sua vida terrestre (Efésios 2:10). Do contrário, quando a alma deixar o
corpo no momento da morte, se perderá e afundará no nada. E este nada é o Inferno. O
surgimento desse local é impulsionado por um emaranhado de ações, que lhe atribuem
significados opostos do que o Paraíso e Deus são. Logo, o Inferno é o nada, o vazio, os
medos, os vícios, os sentimentos e atos humanos que nos causam apreensão e nos levam a
agir com maldade. Essas noções prevalecem na atualidade e eram difundidas com muito mais
veemência no período medieval, mantendo a ameaça do Inferno vívida diante dos olhos da
população, “com o objetivo de manter os indivíduos afastados dos prazeres da carne e se
dedicarem mais à vida espiritual fazendo boas ações para com Deus e seguindo os preceitos
doutrinários cristãos” (ZIERER; OLIVEIRA, 2010, p. 48).
Jeffrey Russell entende que o Inferno não é uma criação da divindade. Para o autor, o Inferno
é justamente a ausência de Deus, o nada, onde reinam os piores medos do homem, suas
angústias e seus mistérios. O Inferno é, pois, em seu todo, o desconhecido (RUSSEL, 2003).
De acordo com os preceitos cristãos, o Inferno é resultado da queda do mais alto dos
anjos, em virtude da desobediência para com seu Deus (RUSSEL, 2003, p. 216). As razões
dessa desobediência são incertas, porém, conforme o pensamento medieval e com base nas
diversas interpretações desse mito, Lúcifer, o mais alto dos anjos, rebelou-se por orgulho, por
ter alimentado o desejo de ser como o próprio Deus e, por conseguinte, depondo-o e
apropriando-se do seu trono celestial.
A origem do mal é questionada por Santo Agostinho, e sua conclusão é a de que Deus
não criou o mal:
Na terceira parte de A Cidade de Deus, sua principal obra, santo Agostinho explica a
origem das duas cidades, a cidade de Deus e a cidade do Diabo. Originalmente, diz
ele, todos os anjos eram seres da luz, criados “para viver na sabedoria e felicidade.
Alguns anjos, porém, afastaram-se dessa iluminação”. Se o Diabo é um anjo caído,
ele tem de ter caído. [...] João de fato escreveu que “o Diabo vive pecando desde o
princípio”, admite santo Agostinho, mas isso “deve ser entendido no sentido de que
ele pecou não desde o princípio de sua criação, mas desde o princípio do pecado,
pois o pecado principiou no orgulho”. (LINK, 1998, p.30)
Le Goff (2005) explica que, do ano mil ao século XIV, os atos maldosos eram
atribuídos às ações do Diabo, cujo habitat passou a tomar forma e significar caos, medo,
destruição, sofrimento e punição. O Inferno passou a ser reconhecido como um
ambiente no qual as leis mortais eram esquecidas e onde vingavam as leis do
Cosmos26. Nesse reino, o mal podia tudo.
26
A palavra cosmos, ou cosmo, tem sua origem na língua grega antiga (κόσμος), e significa ordem, organização,
beleza e harmonia, sendo um conceito contrário de caos. Trata-se de um termo que designa o universo em seu
conjunto, toda a estrutura universal em sua totalidade, desde o microcosmo ao macrocosmo. O cosmos é a
totalidade de todas as coisas deste Universo ordenado, desde as estrelas, até as partículas subatômicas. O filósofo
grego Pitágoras foi o primeiro a utilizar essa palavra para referenciar o Universo, talvez querendo se referir ao
firmamento celeste. Na teologia, o termo pode ser usado para denotar o universo criado, não incluindo o criador.
101
O imaginário dos ambientes do além-túmulo como destino das almas, conforme sua
conduta durante a vida terrena, foi um tema recorrente nas visões e narrativas medievais das
viagens ou das peregrinações. Muito antes da Idade Média, essa temática também povoou “o
imaginário tanto dos profetas que tiveram seus livros escolhidos para integrar o cânone
judaico/cristão como dos que não tiveram seus textos classificados como autênticos (textos
apócrifos)” (GASPARI, 2010, p. 68-69), como ocorre nos textos de Elias, Eliseu, Isaías,
Ezequiel, Amós, Daniel, Enoque. Profetas que não vislumbraram somente a paisagem do
Inferno, mas também o Purgatório e o Paraíso.
Ao mesmo tempo que suscitava certo temor, a viagem do pós-morte rumo a esses
ambientes desconhecidos fascinava o homem medieval, que buscava compreender tanto o
funcionamento dos seus mundos físicos quanto o dos espirituais e, consequentemente, suas
geografias. Essas visões serão apresentadas de modo pormenorizado no subcapítulo a seguir.
Entretanto, a teologia cristã também o emprega como sinônimo de "vida mundana" ou "este mundo", em
oposição à vida após a morte ou mundo vindouro (COSMO. In: Merriam-Webster.com Dictionary. Disponível
em: <https://www.merriam-webster.com/dictionary/cosmology>. Acesso em: 13 jan. 2020).
102
Assim sendo, o imaginário medieval do além-túmulo constitui uma fonte profícua para
o estudo e a compreensão das geografias do Paraíso e do Inferno, especialmente se levarmos
em consideração as visões do cristianismo acerca desses dois planos. As visões cristãs do
Paraíso e do Inferno durante a Idade Média eram, segundo Rizo (2013),
Para tanto, o cristianismo adotou um vocabulário diversificado que, vindo das culturas
que participaram na sua formação, buscou descrever a aparência e a geografia dos mundos
que integram o além-túmulo. Tais descrições se fundamentaram numa vasta fonte de
referências, dentre as quais estão incluídas as descrições budistas do Inferno, a ponte persa do
julgamento, as catábases de Virgílio e Homero (RIZO, 2013, p. 2) e os textos apócrifos de
Enoque e Isaías (GASPARI, 2010).
Além disso, essas visões cristãs também foram influenciadas de maneira significativa
pelos livros de penitência, sobretudo os que pertenciam à tradição antiga irlandesa. Esses
livros eram produzidos em formato menor e tinham como público-alvo os religiosos que eram
responsáveis pela orientação do processo confessional das suas comunidades. O
103
uso desses livretos se deu do século V até o século XI, quando finalmente foram incorporados
pela lei canônica sancionada pela Igreja (RIZO, 2013, p. 2).
Os livros que descreviam as visões dos ambientes do pós-morte eram muito populares.
Eram escritos, inicialmente, como registros da própria visão, os quais podiam, posteriormente,
ter o seu conteúdo modificado, ou até mesmo expandido. As visões descritas nesses livros não
tinham a reputação de narrativas ficcionais, pelo contrário, eram tidas como relatos de eventos
reais. Esses relatos foram incorporados com frequência às crônicas da época, como, por
exemplo, nas obras dos cronistas Gregório de Tours27 e Vicente de Beauvais28. Em virtude de
seu caráter popular, e também por serem narrativa simples, com linguagem acessível, os
relatos dessas visões foram adotados pela Igreja como instrumentos didáticos, sendo
traduzidos para diferentes idiomas e profusamente difundidas pela Europa (RIZO, 2013, p.2).
[...] um visionário, que varia de santo a pecador, do sexo masculino, tem uma visão,
com ou sem a separação do corpo e da alma (na maior parte com), geralmente
acompanhado de um guia (seu anjo da guarda ou um santo padrinho) que o orienta e
protege na jornada, normalmente principiada na direção do Inferno, prosseguindo até
o fundo deste, depois ascendendo ao Paraíso, quase encontrando Deus, e finalmente
retornando ao corpo (RIZO, 2013, p. 3).
27
São Gregório de Tours ou Gregório Turonense (30 de novembro de 538 - 17 de novembro de 594) foi um
historiador medieval galo-romano e bispo de Tours, França. Seu mais notável trabalho foi seu Decem Libri
Historiarum (Dez Livros de História), mais conhecido como Historia Francorum (História dos Francos), título
dado por cronistas posteriores.
28
Vincentius Bellovacensis ou Vincentius Burgundus (1190? – 1264?), frade dominicano que escreveu o
Speculum Maius (O Grande Espelho), a principal enciclopédia usada durante a Idade Média. Além de sua
atuação religiosa, exerceu os ofícios de pedagogo, filósofo, escritor, zoólogo, naturalista e enciclopedista.
104
do dogma cristão, o clero se apropriou das narrativas dessas visões a fim de realizar os seus
intentos, dos quais a manutenção da Igreja era uma de suas prioridades.
A experiência visual é privilegiada nos relatos dessas visões, mas também cede espaço
aos outros sentidos do visionário, como o olfato, a audição e até mesmo o paladar, uma vez
que o Inferno “era o lugar da punição de todos os sentidos, que eram a entrada dos pecados”
(RIZO, 2013, p. 3).
[...] sentiram os mais repulsivos fedores, ouviram os mais terríveis gritos de dor e
experimentaram os mais amargos sabores. E em alguns casos, como o de Tundal,
chegam mesmo a sofrer os suplícios. Isto significa dizer que o imaginário das visões
concentrou-se nas penas do Inferno. O corpo, passível de punição, é o elemento
essencial da figuração dos infernos nas visões (RIZO, 2013, p. 3-4).
29
O Apocalipse de São Pedro, elaborado na metade do século II, é um dos livros apócrifos do cristianismo, o
qual se tornou importante na tradição porque foi a primeira visão cristã do Paraíso e do Inferno depois do bíblico
Livro da Revelação de João (FIENSY, 1983).
105
castigos aplicados, que vão desde o fogo abrasante até o ataque de feras temíveis, segundo as
faltas cometidas pelos danados (RIZO, 2013, p. 4).
Uma versão diferenciada do Inferno fica por conta da visão de São Brandão. O
visionário “avista uma sinistra ilha rochosa, com fornalhas no interior de cavernas, e que é
habitada por selvagens peludos, negros de fogo e fuligem. Eram os demônios ferreiros,
ajudantes de Vulcano na sua enorme forja infernal” (RIZO, 2013, p. 5).
Tudo indica que os rios de fogos descritos nas visões são a lava expelida pelas
erupções vulcânicas, que vêm do interior da terra e se espalham, consumindo em chamas tudo
106
que se encontrar no caminho. Esses rios são componentes habituais das paisagens do Inferno
descritas nas visões:
Na de Pedro, o anjo de Deus chamado Ezraël faz o julgamento decisivo: “um rio de
fogo escorrerá, e todos que foram julgados serão mergulhados no meio do rio”. Na
visão de Paulo, o rio de fogo comporta os danados mergulhados em diferentes
alturas, dependendo da pena imposta.
Na visão do monge Wetti, o anjo lhe apresenta um cenário impressivo de
montanhas altíssimas, incrivelmente belas, que pareciam feitas de mármore e que
estavam cercadas por um grande rio de fogo (RIZO, 2013, p. 6).
Além dos rios, esse elemento aparece nos círculos de fogo, nos lagos ferventes, na
chuva de chispas de fogo, nos anéis de chamas, entre outros. Le Goff (1981) explica que o
fogo simboliza a ideia de revitalização e rejuvenescimento, diferindo do fogo da pira.
Todavia, a presença do fogo no Inferno está conectada à ideia de sofrimento, castigo, medo,
da impossibilidade de salvação e da danação eterna.
O Hades da mitologia grega comporta cinco rios, cada qual designado segundo os
suplícios que aguardam os danados: Aqueronte, o rio das dores; Cocito, o rio dos gemidos e
das lamentações; Estige, o rio gélido dos horrores e dos juramentos inexoráveis; Flegetonte, o
rio das chamas sempiternas; e Lete, o rio do esquecimento.
107
Feita a dissertação sobre mangás, sobre nosso objeto de estudo, sobre Dante e sua
obra-prima, e também sobre o Inferno cristão nas páginas anteriores, estamos prontos para o
capítulo de análise. Assim, nas próximas páginas, buscaremos contrastar o Inferno de
Cavaleiros do Zodíaco tendo como sombra, isto é, como referência, o Inferno que Dante
projetou para a sua Divina Comédia.
108
109
30
“Um dos mais seguros testes é a maneira pela qual um poeta pede emprestado. Poetas imaturos imitam; poetas
maduros roubam; os maus poetas desfiguram o que recebem, e os bons poetas transformam isso em algo melhor,
ou pelo menos em algo diferente. O bom poeta solda seu roubo em um sentimento único, totalmente diferente
daquele em que foi rasgado; o mau poeta o joga em algo que não tem coesão. Um bom poeta geralmente pede
emprestado a autores remotos no tempo, alienígenas na linguagem ou diversificados no interesse.” (ELIOT,
2015, p. 114, tradução nossa).
31
Inferno. In: ANASTÁCIO, Vanda. Obras de Francisco Joaquim Bingre VI — Sonetos. Porto: Lello Editores,
2005.
110
32
O título original do artigo é The Comparative Method and Literature, inicialmente publicado na obra
Comparative Literature (New York: Appleton, 1886, p. 73-86).
112
A crítica literária, por exemplo, quando analisa uma obra, muitas vezes é levada a
estabelecer confrontos com outras obras de outros autores, para elucidar e para
fundamentar juízos de valor. Compara, então, não apenas com o objetivo de concluir
sobre a natureza dos elementos confrontados mas, principalmente, para saber se são
iguais ou diferentes. É bem verdade que, na crítica literária, usa-se a comparação de
forma ocasional, pois nela comparar não é substantivo. No entanto, quando a
comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo-
se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método — e
começamos a pensar que tal investigação é um "estudo comparado".
(CARVALHAL, 2006, p. 7-8)
[...] diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por exemplo, a
pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciências sociais
(por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as ciências, a religião, etc.
(REMAK, apud COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 175).
33
Nesta dissertação, estamos utilizando a edição de Cavaleiros do Zodíaco publicada a partir do ano 2000 pela
editora Conrad. Portanto, muitos fragmentos verbais não estão em conformidade com o novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa, obrigatório desde 2016. Além disso, alguns fragmentos podem apresentar
desvios da norma-padrão da Língua Portuguesa ou inconsistências na tradução, visíveis, principalmente, em
nomes de locais e de personagens.
116
II Luxuriosos V
III Gulosos VI
VI Heréticos IX-X
Vala 4 Magos-Adivinhos XX
O quadro acima foi a base para Kurumada desenvolver o Inferno de Hades, conforme
a ilustração que segue e que será desmembrada ao longo do capítulo, a fim de efetivarmos
nossa análise:
117
O ponto geográfico pelo qual é possível descer ao Inferno, a partir do mundo terrestre,
é diferente nas duas obras. Na Divina Comédia, Dante elegeu Jerusalém, a Terra Santa, como
o ponto de acesso para o mundo dos mortos. A cosmogonia 34 dantesca reza que há, sob a
crosta terrestre, uma abertura no hemisfério boreal. Esta abertura está localizada precisamente
debaixo de Jerusalém e se caracteriza como uma profunda depressão em forma de cone que
chega até o centro da Terra. Esse acidente geográfico foi provocado pela queda de Lúcifer, o
anjo rebelde, o qual se encontra, efetivamente, cravado no fundo do abismo. As terras, que
saltaram durante a queda do anjo, confluíram no hemisfério austral, formando uma ilha
constituída por uma montanha cônica no cimo da qual está colocado o Paraíso Terrestre,
exatamente nos antípodas de Jerusalém, e na fronteira extrema entre o mundo da matéria e o
da imaterialidade. Todavia, Dante não esclarece tais coordenadas ao longo dos versos do
Inferno.
A figura abaixo ilustra a localização do Inferno e a distribuição dos três reinos
dantescos a partir do globo terrestre:
34
Pela cosmogonia dos tempos de Dante, herdada de Aristóteles e Ptolomeu, e adaptada pela escolástica às
Escrituras, a Terra era representada como um globo solto e fixo, imóvel no espaço, contendo terras e mares e
envolvida por uma atmosfera própria, isolada do espaço restante. Acreditava-se que esse globo era constituído
por um hemisfério superior (setentrional ou boreal) de superfície predominantemente sólida, o único habitado, e
que o inferior (meridional ou austral) seria quase todo marinho, tendo unicamente em seu centro a montanha do
Purgatório. Estendia-se o hemisfério superior desde a foz do Rio Ganges, na Índia (ao Oriente), até a nascente do
Rio Ebro, na Espanha (ao Ocidente), trajetória correspondente ao arco descrito pelo Sol, nos equinócios, da
aurora ao ocaso, em cujo centro, ao meio-dia, localizava-se a cidade de Jerusalém, à qual correspondia, no polo
oposto, a montanha do Purgatório. À volta dessa Terra imóvel circulavam, cada qual em sua órbita, a distâncias
crescentes, a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno, designados como planetas ou estrelas
móveis. Acima deles, o céu das estrelas fixas.
119
Uma das primeiras diferenças significativas entre as duas obras diz respeito a esse
aspecto de localização. Em Cavaleiros do Zodíaco, o acesso ao Inferno a partir do mundo dos
vivos se dá pelo Castelo de Hades. Trata-se do castelo de Heinstein, o local onde Pandora e a
sua família viveram na Alemanha, e que posteriormente foi amaldiçoado por Thanatos e
Hypnos, quando a personagem abriu a caixa de Pandora, tornando-se o Castelo de Hades.
Segundo informações do Portal CavZodiaco, a referência que Kurumada teve para a criação
do castelo de Heinsten partiu de um local real: o castelo de Neuschwanstein35
(CAVZODIACO, 2010?).
35
O Schloss Neuschwanstein é um palácio alemão construído na segunda metade do século XIX, perto das
cidades de Hohenschwangau e Füssen, no sudoeste da Baviera. Foi construído por Luís II da Baviera no século
XIX. A arquitetura do castelo possui um estilo fantástico, o qual serviu de inspiração ao "castelo da Cinderela",
símbolo dos estúdios Disney. O nome Neuschwanstein significa "novo cisne de pedra", uma referência ao
"cavaleiro do Cisne", Lohengrin, da ópera com o mesmo nome.
120
Do mesmo modo que sua arquitetura exterior, o interior do castelo chama a atenção do
leitor pelo requinte e pelos detalhes. Além da referência a Neuschwanstein, Kurumada
também buscou inspiração em uma obra artística real para a composição da cúpula do castelo
de Hades. Conforme consta no Portal CavZodiaco, ela foi inspirada em Les Limbes36 (O
Limbo), de Eugène Delacroix37, pintado entre 1841 e 1846, e que hoje é encontrado na
biblioteca Palácio de Luxemburgo, atual sede do Senado francês (CAVZODIACO, 2010?).
36
Segundo informações do site oficial do Senado francês, a pintura é inspirada no Canto IV do Inferno de Dante.
Na concepção de Delacroix, ela representa uma espécie de Campos Elísios, onde grandes homens estão reunidos
e que, por não terem recebido a graça do batismo, não podem entrar no Paraíso. A obra é dividida em quatro
estágios, dos quais o principal é organizado em torno de Homero, acompanhado por Ovídio, Estácio e Horácio.
Este grupo recebe Dante, conduzido por Virgílio. Dois outros grupos são compostos por ilustres gregos e
romanos. Um último grupo, do lado da janela, reúne outros poetas, incluindo Orfeu e Safo. Disponível em: <
https://www.senat.fr/patrimoine/bibliotheque.html>. Acesso em: 28 dez. 2019.
37
Ferdinand Victor Eugène Delacroix (Saint-Maurice, 26 de abril de 1798 — Paris, 13 de agosto de 1863), foi
um importante pintor francês do Romantismo.
121
Adentrar ao castelo de Hades não significa estar no Inferno. Para um mortal acessá-lo
efetivamente terá de descer a escadaria do seu porão ou se lançar em seu fosso, o verdadeiro
portal que interliga os dois mundos. De acordo com o mangá, isto somente é possível com a
ordem ou a autorização de Pandora ou do próprio Hades (KURUMADA, 2000).
Hades, Dante não o faz no Canto I do Inferno. Ele já está na selva escura, e é a partir desta
posição que irá narrar a sua jornada. Portanto, não há ações a partir de Jerusalém, o lugar no
mundo dos vivos que, segundo a cosmogonia dantesca, se sobrepõe ao acesso ao Inferno.
No mangá, a primeira paisagem encontrada por aquele que desce a escadaria do porão
do castelo de Hades, ou se lançou em seu fosso, é caracterizada pelo personagem Seiya como
um lugar desolado, que parece não ter fim – a ponto de o cavaleiro não saber para qual
direção seguir –, e onde o céu é totalmente negro. Já na Divina Comédia, o que mais chama a
atenção de Dante quando ele entra efetivamente no Inferno é o cheiro, o barulho e a escuridão
total.
A primeira visão que o leitor do mangá terá, com os primeiros quadrinhos que
Kurumada apresenta o Inferno de Hades, é de uma paisagem com muitos rochedos, a qual
transmite a sensação de ser um local ermo e de relevo abrupto, o que dificultaria a locomoção
de quem estivesse por lá. Também faz lembrar da “selva escura”, mais pela dificuldade de
locomoção do que a paisagem propriamente dita, presente no segundo verso do Canto I, “mi
ritrovai per una selva oscura”38. Outra possível referência que também pode ser lembrada, diz
respeito às gravuras com as quais Gustave Doré ilustrou a Divina Comédia no século XIX,
provavelmente pelas questões estéticas que tornam o seu legado artístico inconfundível: a
predileção pelos tons acinzentados e pretos – característica sui generis dos quadrinhos
japoneses.
38
Na tradução de Italo Eugênio Mauro, contida na edição da Divina Comédia com a qual estamos trabalhando:
“fui me encontrar em uma selva escura”.
124
Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gustave_Dore_Inferno1.jpg#/media/File:Gustave_Dore_Inferno1.jpg
>. Acesso em 15 dez 2019.
O fato de o mangá ser em preto e branco, colorido com tinta nanquim, reforça o
imaginário de que o Inferno é um local inóspito e adverso, retrato que os diferentes campos
artísticos propagaram no decorrer dos séculos. Embora com variações, e como é possível
constatar pela leitura de Cavaleiros do Zodíaco, tal cenário será recorrente ao longo de seu
território, tanto nos trajetos que ligam uma prisão à outra quanto em seus respectivos
interiores e entornos, cujas paisagens não são cenários dos outros cantos da Divina Comédia.
125
Do mesmo modo que ocorre na Divina Comédia, é também nesta primeira paisagem
que o transeunte irá se deparar com o imponente Portal do Inferno. A exemplo do monumento
presente no Inferno dantesco, o Portal que anuncia o Inferno de Hades possui uma inscrição
na sua parte superior, inspirada e adaptada a partir dos versos iniciais do Canto III do Inferno.
No poema, estes versos constituem a inscrição do Portal, os quais Dante lê, deixando-o com
um misto de comoção e medo:
A frase diz respeito ao verso “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” (Inf III, 9), que
no mangá está traduzido “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”, tradução idêntica à de
Italo Eugenio Mauro para a quarta edição da Divina Comédia, versão utilizada neste trabalho.
39
No original utilizado por Italo Eugenio Mauro para a tradução da quarta edição da Divina Comédia, da Editora
34: “Per me si va ne la città dolente, / per me si va ne l'etterno dolore, / per me si va tra la perduta gente. /
Giustizia mosse il mio alto fattore; / fecemi la divina podestate, / la somma sapïenza e 'l primo amore. / Dinanzi
a me non fuor cose create / se non etterne, e io etterno duro. / Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate".
126
[...] passaram uma vida sem vontade própria. Elas não fizeram coisas boas... nem
más... Suas vidas passaram sem o menor sentido. É por isso que, mesmo mortas, elas
não conseguem entrar no Paraíso ou ir ao Inferno. E é por isso que choram
eternamente no Rio Aqueronte, entre o mundo dos vivos e o dos mortos
(KURUMADA, 2000, vol. 38, p. 99).
barqueiro, muitos deles às vezes voltam ao mundo dos vivos, como fantasmas. Nas lendas da
mitologia grega, Caronte só transportava almas que tivessem sido enterradas com uma moeda
debaixo da língua, com a qual poderiam pagar a travessia. Como vimos anteriormente, esse
comportamento é mantido no mangá, mas não chega a ser mencionado no poema.
Enquanto transporta Seiya e Shun, Caronte dá mais detalhes sobre o rio, explicando
aos dois cavaleiros que, se caírem em suas águas, nunca mais poderão voltar. Ainda de acordo
com o espectro, o rio engole tudo que nele entra, e é impossível nadar ou flutuar em suas
águas. Quem cai simplesmente afunda até o fundo. A profundidade atinge o nível máximo no
centro do rio, ponto onde sua água atinge a temperatura mais fria. Caronte também revela que
o rio está repleto de almas que tentaram cruzá-lo a nado, fadadas à decomposição eterna, visto
130
que, de acordo com sua explicação, “não se pode morrer duas vezes” (KURUMADA, 2000,
vol. 39, p. 9).
mangá apresenta oito prisões, enquanto o poema contabiliza nove círculos. No entanto, há
concordância no número de vales (três), valas40 (dez) e esferas (quatro) em ambas as obras.
Cada uma das oito prisões é guardada por um dos 108 espectros que compõem o
exército de Hades. O barqueiro Caronte é, inclusive, um desses espectros. O Inferno dantesco
também possui seus guardiões: cada círculo tem seu(s) diabo(s) ou monstro(s). Para chegar
até a morada de Hades (Giudecca), é necessário passar por todas as prisões que, além de seus
guardiões, comportam as almas dos danados. As prisões constituem o único caminho possível
de se chegar até o Imperador do Mundo dos Mortos. Quem deseja percorrê-lo só conseguirá
tamanha façanha recebendo a autorização do espectro protetor de sua respectiva prisão ou, em
outras circunstâncias, travando uma luta até derrotá-lo. E assim sucessivamente, de embate
em embate, de uma prisão para a outra, até chegar ao templo de Hades. Fato semelhante
ocorre com Dante em sua travessia pelo Inferno da Divina Comédia, onde, acompanhado por
Virgílio, precisa passar por todos os círculos para finalmente chegar ao último estágio
infernal, isto é, a morada de Lúcifer.
40
Em algumas páginas de Cavaleiros do Zodíaco, essas valas também são chamadas de fossos, o que não altera
o seu sentido ou o contexto em que a palavra está sendo empregada.
133
Deixando a margem do Rio Aqueronte para trás e subindo a escadaria que logo se
encontra, será possível chegar à primeira prisão. Do mesmo modo que o Portal do Inferno, a
construção está identificada com uma inscrição na língua grega:
ΔΙΚΑΣΤΗΡ ΙΟΝ ΟΥ ΤΟ
Em sua primeira ocorrência no mangá, a inscrição acima está traduzida como “Casa do
Julgamento”. No entanto, ao local também são atribuídas as denominações “Salão de
Julgamento” ou “Morada do Juízo”, semanticamente idênticas à primeira.
A primeira prisão é uma construção imponente e clássica, que obedece aos padrões
estéticos da arquitetura dos templos gregos. Trata-se de um local onde vigora a lei do silêncio:
barulhos ou ruídos de qualquer natureza são proibidos. Quem infringe tal lei é castigado por
um dos três juízes41 do Inferno, os quais julgam as almas dos mortos conforme os pecados
cometidos em vida. Após a sentença, cada alma é encaminhada a um determinado local do
Inferno, a fim de que receba a punição condizente com a gravidade de seus pecados.
41
Os três juízes do Inferno são também os três espectros mais poderosos do exército de Hades. Eles se chamam
Radamanthys, Aiacos e Minos, e Kurumada os concebeu a partir da mitologia grega. Segundo essa mitologia,
Radamanthys era um dos três juízes no Mundo dos Mortos, que julgava as almas vindas da Ásia. Aiacos, por sua
vez, era o juiz que julgava as almas vindas da Europa. Já Minos era o juiz supremo do Mundo dos Mortos, que
dava o voto final, ou seja, que decidia o destino das almas.
135
Uma escadaria separa dois níveis, fazendo jus aos padrões estéticos de um tribunal da
antiguidade: na parte superior, a mesa do juiz e alguns adereços (o livro com os nomes das
almas que serão julgadas e seus respectivos pecados, o malhete do juiz, caneta bico de pena,
escaninho com documentos, carimbos), com uma cadeira suntuosa; não há cadeiras ou móveis
na parte inferior. Sua amplidão é preenchida apenas pela presença da alma que será julgada, a
qual aguarda em pé o pronunciamento de sua sentença. Tão logo o juiz a profere, a alma é
encaminhada imediatamente para alguma região do Inferno, a fim de que pague pelos seus
pecados. A porta que fica atrás da mesa do juiz é a única passagem possível para seguir até a
segunda prisão.
136
círculos do Inferno, conforme o número de voltas que sua cauda dá ao se enrolar no corpo do
pecador.
O trajeto que conecta a primeira à segunda prisão se dá pelo Vale Negro. O mangá não
fornece muitas informações ou descrições acerca desse vale, apenas o que podemos inferir por
meio de uma conversa entre Seiya e Shun: que uma chuva contínua e fria começa a partir de
seu território, a qual prevalece até que se aporte à segunda prisão. De acordo com Shun, é tão
fria que dá para sentir o seu frio nos ossos. Seiya concorda, alertando que, se ela continuasse,
eles poderiam congelar até morrer.
A segunda prisão talvez seja a que mais difira do padrão arquitetônico das demais,
baseado na estética clássica dos templos gregos. Trata-se de uma prisão concebida aos moldes
dos antigos templos egípcios. Estátuas que remetem às figuras dos faraós ornamentam a
construção, além de suas paredes estarem repletas de hieróglifos egípcios. Da mesma forma
que os adornos desta prisão, o seu guardião também enaltece a cultura egípcia. Isso pode ser
139
comprovado pelo design de sua armadura, pelo corte de seu cabelo, bem como pelo seu nome
– Faraó.
Aquele que adentra à segunda prisão encontra, logo de início, Cérbero, o cão de três
cabeças, que devora as almas daqueles que foram sentenciados, na Casa do Julgamento, a aqui
pagarem pelos seus pecados. Este local é o destino das almas que, segundo Faraó, cometeram
pecados relacionados à ganância, e essas serão devoradas por Cérbero.
Em meio às cenas pavorosas das almas que estão sendo punidas e a uma arquitetura
hostil composta, em sua maior parte, por rochedos, rios, vales, longas escadarias, construções
monumentais e intempéries as mais diversas, elementos que reforçam o imaginário do Inferno
de Hades, surge como contraponto cenográfico o jardim da segunda prisão: o único local do
Inferno onde nascem flores.
É neste jardim que se encontra a personagem Eurídice, uma mulher que teve parte de
seu corpo transformada em pedra. Isso aconteceu após o seu amado Orfeu, cavaleiro de prata
da constelação de Lira, ser enganado pelo espectro Faraó a mando de Pandora, irmã de Hades.
A trama do casal de amantes foi inspirada em uma das histórias de amor mais famosas da
mitologia grega, o mito de Orfeu e Eurídice42, nomes que foram preservados no mangá.
O jardim da segunda prisão não deve ser confundido com os Campos Elísios, o paraíso
mitológico. Na arquitetura do Inferno de Hades descrita no mangá, o acesso aos Campos
42
Segundo a mitologia grega, Orfeu e Eurídice eram dois amantes que se apaixonaram perdidamente e
resolveram se casar. No entanto, pouco antes do casamento, Eurídice foi mordida por uma cobra, ao tentar fugir
de um admirador, Aristeu, o que acarretou sua morte. Desconsolado, Orfeu resolveu descer ao mundo dos
mortos e pedir a Hades e sua esposa, Perséfone, que lhe devolvessem. Comovidos com a história e extasiados
com a música de sua lira, ambos resolveram devolvê-la ao menestrel com uma condição: que não olhasse para
trás até que eles chegassem ao mundo superior. Ao sair do mundo dos mortos, e desconfiado do acordo com o
deus do mundo inferior, Orfeu resolveu olhar para trás e conferir se sua amada o seguia. Ao desobedecer Hades,
Eurídice é levada ao mundo dos mortos, e Orfeu a perde para sempre.
143
Entretanto, aquele que deseja avançar para a outra prisão não encontrará um jardim de
flores: diferentemente dos outros caminhos, que normalmente possuem longas escadarias, o
trajeto que conecta a segunda à terceira prisão é íngreme, pedregoso, sem degraus, e apertado
por rochedos dos dois lados.
145
Figura 32: Almas dos pecadores empurrando pedras gigantescas na terceira prisão
É o personagem Flégias que faz a travessia do Rio Estige com a sua barca. Kurumada
o manteve na quarta prisão do Inferno de Hades, com a diferença de conduzir uma jangada, e
não uma barca. É, portanto, um jangadeiro. Tanto a cachoeira de água e sangue quanto o Rio
Estige não são mencionados na narrativa do mangá, tampouco no esquema do Inferno que
Kurumada ilustrou. Todavia, o fato de a quarta prisão possuir um pântano, o qual é
atravessado por um personagem chamado Flégias – como ocorre na Divina Comédia –, nos
leva a crer que, embora não haja uma menção clara, ele corresponda ao Rio Estige do Inferno
dantesco.
A quinta prisão é composta por inúmeros túmulos de fogo. Trata-se de um local para
onde são enviadas as almas daqueles que não seguiram a doutrina divina, e também daqueles
que não acreditam na existência de Deus.
A sexta prisão do Inferno de Hades também não possui uma construção. Ela é, no
entanto, peculiar, visto que comporta três vales ao longo de seu território, cada qual com uma
arquitetura própria. Cada vale abriga almas que cometeram um pecado específico e, portanto,
43
Nesse contexto, o fogo eterno da obra dantesca pode ser entendido como um paralelo à sentença que a Igreja
dava aos hereges, isto é, a punição de serem queimados em fogueiras.
151
serão punidas de acordo com a gravidade da sua transgressão. Este local corresponde ao
sétimo círculo do Inferno dantesco, que também possui vales, os quais normalmente são
denominados de giros.
• Primeiro vale:
É um lago de sangue escaldante, onde as pessoas que foram violentas durante a vida
acabam ardendo eternamente no sangue fervente. Conforme o esquema do Inferno arquitetado
por Kurumada e apresentado no início do volume 38 da primeira edição brasileira, esse lago
de sangue é destinado aos criminosos que, em vida, usaram incessantemente da violência
contra o próximo. Seiya quase caiu neste local através do golpe 44 do espectro Lune, quando
do seu julgamento na primeira prisão. Acabou salvo pelas Correntes de Andrômeda de Shun.
Esta é a única alusão ao primeiro vale que podemos encontrar no mangá. Consequentemente,
sua descrição na narrativa é superficial.
No Inferno da Divina Comédia, este vale também abriga aqueles que praticam a
violência contra o próximo. Também possui sangue fervente que forma um lago, ou melhor, o
Rio Flegetonte. Na sua margem estão algumas ruínas e o Minotauro de Creta, à guarda de sua
entrada. Ainda na margem do rio, um pouco mais à frente, correm as filas de centauros, dentre
eles destacam-se Quirion – o líder do grupo – e Nesso. Os centauros estão armados com arcos
e flechas, e atiram setas em todas as almas que se erguem do sangue mais do que lhes
destinou sua culpa.
Em decorrência do primeiro vale praticamente não ser descrito e nem conter ações
narrativas em seu espaço, os personagens mitológicos da Divina Comédia, anteriormente
44
Assim que a sentença é proferida, Lune tem o poder de enviar o condenado instantaneamente para qualquer
uma das prisões, isentando-o de que percorra o Inferno até chegar à prisão que lhe fora designada.
152
citados, não foram mantidos no Inferno de Cavaleiros do Zodíaco. Parece que Kurumada
desperdiçou a oportunidade de aproveitá-los na composição do seu Inferno. Personagens
como o Minotauro, Quirion, Nesso – estes dois, talvez, como espectros de Hades –, e os
centauros em plantel, certamente renderiam bons momentos na narrativa.
• Segundo vale:
Não foi retratado durante a narrativa. As únicas informações sobre o local podem ser
coletadas do esquema do Inferno desenhado por Kurumada: que este vale é o “Inferno
Florestal”, para onde são encaminhados os criminosos que atentaram contra a própria vida.
Além disso, de acordo com o portal CavZodiaco (2010?), esses suicidas são transformados em
árvores sombrias, as quais acabam formando uma enorme floresta.
os violentos contra seus bens (perdulários). O vale é composto por um denso arvoredo
habitado por harpias monstruosas.
A alma do suicida cai nessa selva como semente, da qual surge um arbusto cujas
folhas servem de alimento para as harpias. No Canto XIII, Virgílio sugere a Dante que
arranque um galhinho de um espinheiro, que logo se cobre de sangue e reclama da violência
sofrida.
Kurumada descreve este vale brevemente no mapa do Inferno de Hades, sem tê-lo
incluído efetivamente na narrativa. Do mesmo modo que no vale apresentado anteriormente,
por razões desconhecidas, o mangaká optou por não usá-lo como cenário das ações dos
personagens. A existência de uma floresta sombria, onde os condenados são transformados
em suas árvores, habitada por harpias que se alimentam de suas folhas, oportunizariam a
elaboração de um espaço narrativo fértil para o desenvolvimento de algumas ações dos
personagens. Além disso, as harpias são criaturas recorrentes no universo da mitologia grega,
fato que poderia ser utilizado por Kurumada de alguma maneira, caso tivesse ilustrado a
travessia dos cavaleiros de Athena pelo território selvagem deste vale.
• Terceiro vale:
Do mesmo modo que o anterior, o terceiro vale não foi retratado ao longo do mangá.
Contudo, no esquema do Inferno desenhado pelo autor, a informação é de que este vale é um
deserto escaldante, onde aqueles que se entregaram aos prazeres demoníacos são condenados
a vagar por suas areias. Dito em outras palavras, e baseando-se no site CavZodiaco (2010?),
trata-se de um deserto para as almas que foram violentas contra os deuses.
Para compor o terceiro vale da sexta prisão do Inferno de Hades, Kurumada manteve a
essência do terceiro giro do sétimo círculo do Inferno dantesco. Na Divina Comédia, o
referido giro também é um deserto ardente – ou areão. Igualmente ao que ocorre no Inferno de
Cavaleiros do Zodíaco, é o território onde são castigadas as almas dos que foram violentos
contra os deuses. Entretanto, Dante o descreve com mais detalhes e com uma arquitetura de
pecado/punição mais apurada, separando os condenados em três grupos e os distribuindo ao
longo do areão, onde uma chuva de chispas de fogo os castiga. Um dos grupos é constituído
por blasfemos, que estão deitados; o segundo grupo é o dos os usurários, que estão sentados
na areia escaldante; o último grupo é o dos sodomitas, obrigados a um contínuo caminhar –
154
único castigo informado por Kurumada na ilustração de seu Inferno quanto a esse terceiro
vale.
O areão é atravessado por um riacho de águas vermelhas e ferventes que corre entre
margens de pedra, e sobre o qual a chuva de fogo é suprimida. É neste vale que Virgílio
explica a Dante sobre a origem dos rios infernais, que é a mítica e alegórica figura do Velho
de Creta, símbolo da Humanidade; suas lágrimas vão formar o Aqueronte, o Estige, o
Flegetonte e, por fim, o Cocito, os quatro rios infernais também presentes no Inferno da
mitologia grega.
Assim como os outros dois vales que constituem a sexta prisão, este poderia ter sido
incorporado por Kurumada no fluxo de sua narrativa, proporcionando novas aventuras aos
cavaleiros de Athena em mais um cenário criativo, bem como a inclusão de novos
personagens no contexto desse lugar.
O Inferno de Hades também conta com uma Cachoeira de Sangue e com o Rio
Flegetonte. Nenhum dos dois aparece ao longo da história. Novamente, o que podemos saber
é a partir do esquema desenhado pelo autor e suas informações. Como o próprio nome já
revela, a Cachoeira de Sangue é formada pelo sangue, e também pelas lágrimas, acumulados
no Inferno até então, de todos que foram condenados a permanecer eternamente no reino de
Hades. Ambos estão localizados entre a sexta e a sétima prisão. Infere-se que, do mesmo
modo que na Divina Comédia, a Cachoeira de Sangue originará o Rio Flegetonte do Inferno
de Hades.
Semelhantemente à sexta prisão e seus três vales, Kurumada não incluiu os referidos
cenários na narrativa, apenas no esquema do seu Inferno de Hades. A passagem dos
cavaleiros pela Cachoeira de Sangue, bem como pelo Rio Flegetonte, renderia cenas
memoráveis ao mangá. Ademais, as ilustrações de Kurumada forneceriam mais detalhes sobre
esses dois lugares, onde o mangaká poderia introduzir novos personagens e novas ações.
Outro aspecto que propiciaria um diferencial junto à presença desses dois lugares no
Inferno de Hades seria a figura de Gerião. Assim como Cérbero, guardião da segunda prisão,
Gerião impressiona pela monstruosidade. Também é um personagem da mitologia grega e,
como Cavaleiros do Zodíaco foi concebido a partir desses mitos, Kurumada poderia tê-lo
aproveitado no seu Inferno – a exemplo de personagens como Caronte, Flégias e o próprio
Cérbero.
Esta prisão corresponde ao oitavo círculo do Inferno dantesco, o qual o poeta chama
de Malebolge – em tradução literal, maus bornais. Como em Cavaleiros do Zodíaco, este
círculo é constituído por dez valas concêntricas separadas por diques, sobre os quais se apoia
uma ponte de pedra que os interliga desde a primeira vala periférica até a cava central.
Kurumada também se baseou nas categorias de fraude em que os condenados são punidos ao
longo dessas dez valas, com algumas diferenças, as quais dizem respeito especialmente aos
detalhes minuciosamente pensados por Dante.
157
O quadro abaixo compara as descrições desse lugar feitas em cada uma das duas
obras:
1º Destinado aos 1ª Destinada aos rufiões e sedutores, separados em duas filas que
fosso criminosos acusados de vala circulam pelo local em sentido contrário, os quais são açoitados
venda de mulheres, os por demônios. Na vida terrena, eles exploraram as paixões dos
quais são chicoteados. outros, controlando-os para servir a seus próprios interesses. Nesta
vala são eles que são levados, com chicotadas, a cumprir o desejo
dos demônios.
3º Aqui, os acusados de 3ª Trata-se do lugar onde os simoníacos45 pagam por seus pecados.
fosso usar a profecia divina vala Eles estão metidos de cabeça para baixo em estreitos buracos
para o mal são redondos, só com as pernas para fora e com fogo ardendo sobre as
queimados na vela. plantas dos pés, que eles sacodem continuamente. Os buracos se
assemelham a fontes de batismo. Esses pecadores, que
perverteram a Igreja com suas transgressões, são batizados ao
contrário: em vez de óleo, o fogo, aplicado aos pés.
4º Onde os criminosos que 4ª Vala onde os adivinhos são castigados, os quais têm a cabeça
fosso fizeram previsões vala torcida em relação ao corpo, de modo que não conseguem olhar
enganosas têm seus para a frente e o que os obriga a caminhar para trás. Esta é a
pescoços torcidos e punição por alegarem saber o futuro que somente Deus sabe.
ficam completamente
desorientados.
5º Neste local, as pessoas 5ª Local que abriga os traficantes, transbordante de pez fervente,
fosso acusadas de corrupção e vala guardado por uma legião de demônios. Os danados que tentam
suborno são lançadas em ficar com a cabeça acima do piche são torturados e dilacerados
um lago de piche por demônios. Isso se deve ao fato de que, em vida, esses
fervente e são traficantes tiraram proveito da confiança que a sociedade
destroçadas pelos depositava neles. Por isso, no Inferno dantesco, eles estão
demônios. submersos no piche fervente, escondidos, uma vez que suas
negociações eram feitas às escondidas.
6º Destinado àqueles que 6ª Nesta vala, os hipócritas desfilam lentamente, vestidos de pesadas
fosso cometeram crimes de vala capas de chumbo, douradas externamente. Na visão do poeta, este
hipocrisia. Os é o peso que não sentiram na consciência ao fazerem maldades.
condenados a este fosso No Inferno, porém, sentem o peso de seu falso brilho.
são obrigados a vestir um
manto de chumbo e
andar eternamente.
45
Traficantes de artefatos sagrados.
158
7º Fosso repleto de cobras, 7ª Esta vala é a dos ladrões, e está repleta de serpentes de toda
fosso onde são jogados os vala espécie que atacam os danados e os submetem a profundas
criminosos condenados transformações. Quando as serpentes os atacam, roubam os seus
por roubo. traços humanos. É a punição por terem se apoderado do que não
era seu no mundo terrestre, sendo que, agora, as serpentes se
apoderam de suas próprias identidades.
8º Trata-se de um fosso 8ª Local para onde são enviados os maus conselheiros, que estão
fosso flamejante que frita os vala presos em chamas que se movem continuamente e os envolvem
que foram condenados por inteiro. No mundo dos vivos, eles induziram outros a praticar
por criar intrigas. a fraude.
10º No último fosso, os 10ª Na última vala são punidos os falsificadores – alquimistas,
fosso condenados por vala simuladores, falsos e mentirosos – que têm o corpo todo recoberto
falsificação de dinheiro e de sarna e são quase incapazes de se movimentar. Aqui são seus
fraude têm seus corpos corpos que se tornam falsos, ao apodrecerem, cobertos por
apodrecidos, dilacerados enfermidades, que, segundo Dante, exalam um fedor insuportável.
e cheios de bolor.
Pela descrição apurada que Dante faz a respeito de cada vala, Kurumada agregaria
mais ações, novos personagens e cenários se as tivesse inserido na narrativa. Não o fez, por
questões que desconhecemos, mas que apenas podemos tratar como hipóteses, aplicáveis a
outras situações apresentadas anteriormente – os três vales da sexta prisão, a Cachoeira de
Sangue e o Rio Estige. As hipóteses quanto às escolhas de Kurumada em manter ou excluir
cenários e personagens estão reservadas para as considerações finais.
46
Judeca, no italiano de Dante.
160
A última esfera é Judeca, local onde estão aqueles que, em vida, traíram seus
benfeitores. Eles sofrem intensamente por estarem submersos totalmente no gelo do Cocito,
conscientes, para toda a eternidade. De acordo com Dante, alguns estão deitados, outros
encolhidos e outros de cabeça para baixo. Em Cavaleiros do Zodíaco, Giudecca é a esfera
onde está localizado o palácio de Hades no Submundo, e a única dentre as quatro que possui
ações no decorrer da narrativa, onde ocorrem muitos dos eventos mais importantes da Saga de
Hades. Seu território abriga os mortos que em vida traíram os deuses. Eles sofrem
eternamente conscientes, mesmo estando totalmente submersos no gelo do Cocito.
sentido por toda a esfera. Ele tem três cabeças e, com cada uma delas, morde um dos três
maiores traidores da história: Judas, Brutus e Cassius47. O nome vem de Judas, o traidor de
Jesus Cristo.
Figura 41: Interior da Giudecca
Como foi possível observar, a traição também é o pecado que corresponde ao Cocito
do Inferno de Hades. No panorama geral desenhado por Kurumada, a legenda que acompanha
a ilustração desse lugar revela que os criminosos enviados para esse lugar são os mais sérios,
uma vez que planejaram se rebelar contra os deuses.
O Cocito é a oitava e última prisão do Submundo, e também a maior de todas. As
almas dos que se voltaram contra os deuses são enviadas para esse rio congelado, as quais
ficam só de cabeça para fora. A força de quem aporta nesse lugar é drasticamente reduzida,
seja pelo frio intenso, seja pela energia emanada de Hades.
47
Brutus (Marcus Junius Brutus) era um dos súditos favoritos de Júlio César e, em 44 a.C., recebeu o nobre
título de pretor. A vocação republicana de Brutus, porém, falou mais alto que sua gratidão. No mesmo ano ele se
juntou a Cassius (Gaius Cassius Longinus) numa conspiração para assassinar o imperador Júlio César.
162
lançados vivos no Cocito, morrendo logo em seguida e se tornando esqueletos. Outros foram
encaminhados já mortos, após a sentença proferida na primeira prisão, visto que podem ter se
rebelado contra os deuses quando vivos.
Atrás dessa esfera está localizado o Muro das Lamentações, que marca o fim do
Inferno. Logo depois, a Hiperdimensão, que somente liga e pode levar a vários mundos, mas
não faz parte de nenhum. E, por último, os Campos Elísios, ambiente paradisíaco habitado
pelos deuses.
O Muro das Lamentações é gigante – largo, alto e profundo, e é assim chamado por
ser o muro dos que lamentam não poderem ir aos Campos Elísios. Assim, permanecem no
Inferno, de onde não podem sair, pois o muro não pode ser destruído por mortais, apenas por
164
deuses. Para os humanos passarem, o muro precisa ser destruído, e a única coisa que é capaz
de destruí-lo é a luz do sol, inexistente no Inferno. Por isso, esse muro é motivo de
lamentação. Somente a luz do Sol, que dá esperança aos vivos depois de uma noite, é também
a esperança dos mortos que estão na Giudecca, diante desse muro. A luz do Sol é a única
força capaz de cessar as suas lamentações, destruindo o muro e possibilitando que encontrem
a Hiperdimensão, o que não chega a ser uma garantia de que serão conduzidos efetivamente
aos Campos Elísios.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O herói Perseu
cortou a cabeça de um monstro chamado Medusa.
Pégaso voou em
direção ao céu e
tornou-se uma constelação...
Masami Kurumada
geral do Inferno de Hades. Logo, presume-se que Kurumada tenha sido leitor ou conhecia a
obra-prima de Dante, apropriando-se de elementos do Inferno elaborado pelo poeta, a fim de
projetar o seu, procedendo à escrita do roteiro e ilustração da Saga de Hades.
Tudo isso vem ao encontro de outro objetivo da nossa pesquisa, de ordem secundária,
que consistia em averiguar, a partir da análise efetuada, como e em que medida o poema
influenciou a arquitetura do Inferno desenhado em Cavaleiros do Zodíaco. Como foi
demonstrado na ocasião do capítulo de análise, são muitas as evidências dantescas presentes
na obra japonesa, as quais não configuram meras coincidências, mas escolhas conscientes de
seu mangaká.
Outro objetivo secundário foi elucidar o porquê ou o que levou Kurumada a escolher o
Inferno do poema dantesco para embasar a arquitetura do seu, quando poderia ter utilizado
outras referências – como somente a mitologia grega –, ou optado pela criação de uma
paisagem original. Aqui, transformamos esse objetivo em uma pergunta que pretendemos
responder: Qual o motivo de Kurumada ter se inspirado no Inferno da Divina Comédia para
arquitetar o de Cavaleiros do Zodíaco?
Uma possível resposta pode residir no fato de Dante também ter se apropriado da
geografia do Hades grego para projetar o seu Inferno, mantendo inclusive os nomes originais
constantes na mitologia que descreve o Submundo, como, por exemplo, o nome dos rios
infernais – Aqueronte, Estige, Flegetonte e Cocito. Dante não manteve apenas o nome dos
rios em seu poema, como também o de alguns personagens que habitam o Hades: os
barqueiros Caronte e Flégias, Cérbero, o juiz Minos, Gerião, entre outros. O poeta também
condenou ao seu Inferno personagens que, segundo a mitologia grega, não habitavam o
Hades, como Jasão, Hércules, Ulisses, os centauros Quíron, Nesso e Fólo, Helena de Troia,
Páris, Tristão, o Minotauro de Creta, entre outros. Além das referências mitológicas, Dante
inseriu, no seu Inferno, personalidades contemporâneas ou anteriores ao seu tempo, como
Ciacco, os amantes Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, Cleópatra, Farinata degli Uberti,
Semiramis, Brunetto Latini, Papa Anastácio II, Jacopo Rusticucci, Michael Scott, Maomé,
etc.
O poeta concilia em toda a sua obra, não somente no Inferno, mas também no
Purgatório e no Paraíso, aquilo que poderia ser considerado, tendo por referência o
pensamento do período medieval, como sagrado (cristão) e como profano (mitológico). A
conjugação entre esses dois polos adquire uma inigualável força imaginativa no poema
dantesco, a qual confere aos infinitos aspectos da realidade
Nesse sentido, o tema do Inferno e a mitologia grega acabam sendo dois pontos de
contato entre as duas obras. É possível que Kurumada tenha sido um leitor de Dante, ou, no
mínimo, conhecedor da arquitetura do Inferno dantesco, cujos ambientes diversos tinham por
finalidade castigar os condenados com o rigor da lei do contrapasso. Ao se apropriar do
Inferno dantesco, Kurumada não se limitou apenas à sua dimensão mitológica. Do contrário,
poderia tê-lo feito consultando exclusivamente os mitos gregos originais, como geralmente
ocorre nos outros episódios do mangá. Assim, o mangaká acabou por desenhar o Inferno de
Hades inserindo os muitos ambientes do Inferno de Dante destinados aos suplícios das almas
pecadoras.
O grande mérito do gênio de Dante é que ele pensava por imagens. Portanto, pode-
se dizer, ou melhor, deve-se dizer, que a Comédia não é mais do que um longo relato
moral que sustenta um fantástico arcabouço de imagens simbólicas. Queremos dizer
que ela nasce indubitavelmente de um fortíssimo estímulo moral-religioso reformista
com fins escatológicos, mas é verdade também que tal estímulo depois desemboca
numa criação de imagens de uma riqueza plástica e simbólica praticamente sem
limites. As imagens adquirem vida e fisionomia sempre em relação com a situação
que a origina e determina. Se uma situação é trágica, também as imagens que a
representam e a descrevem são trágicas; se uma situação é cômica ou idílica,
também as imagens que a representam e a descrevem são cômicas ou idílicas. Por
isso, podemos dizer que a Comédia é constituída por uma série infinita de figuras
que remetem continuamente a uma situação precisa (DISTANTE, 2017, p. 15).
169
A partir de todos esses elementos, Kurumada desenhou o seu Inferno, inserindo outros
novos e também outros constantes apenas nas lendas da mitologia grega. O autor também
povoou o Submundo com personagens novos, concebeu guardiões específicos para as prisões,
ilustrando uma construção aos moldes arquitetônicos da antiguidade clássica para quase todas
elas, tendo como resultado um Inferno de Hades relativamente original.
Fato é que muitos leitores da Divina Comédia tiveram seu primeiro contato com
elementos desse poema por meio de outras produções artísticas. As ilustrações de Gustave
Doré ou Salvador Dalí; a Sinfonia Dante, de Liszt; uma adaptação da Divina Comédia para o
cinema, o teatro, HQs ou um texto em prosa; um jogo de videogame; uma referência à obra
dantesca em outro poema ou narrativa, entre outras muitas possibilidades que poderíamos
citar em uma lista, incluindo o mangá Cavaleiros do Zodíaco, podem ser a porta de entrada
para um futuro leitor e estudioso do poema dantesco.
No entanto, mais do que obras e produtos que funcionam como portas de entrada para
a busca e a leitura da obra original, e para além da mobilização dos conceitos de apropriação,
adaptação, empréstimo, referência e outras noções afins, são obras que tendem a colaborar
com a perpetuação da Divina Comédia e do nome de Dante, reafirmando o seu caráter
clássico e universal. É justamente isso que aconteceu quando Kurumada se apropriou de
elementos do Inferno dantesco para desenhar o seu em Cavaleiros do Zodíaco. A criação de
um universo novo à sombra de um já existente. Ambos sincréticos, originais e repletos de
imagens.
entendimento dessa forma de comunicação de massa, cuja origem, em seu aspecto mais
primário e sob diferentes interpretações, se perde no tempo e se encontra em muitos espaços,
não podendo ser requerida por nenhuma cultura ou país.
Encerramos esta dissertação, conscientes de que muito mais poderia ter sido dito, pois,
como escrito anteriormente, seu objeto, seu tema e sua sombra, em conjunto ou isoladamente,
são de possibilidades imensuráveis.
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