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RECIFE
2022
ARIANE DA MOTA CAVALCANTI
RECIFE
2022
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira – CRB-4/2223
Inclui referências.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Brenda Carlos De Andrade (Orientadora)
Universidade Federal Rural De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Oussama Naouar (Examinador Interno)
Universidade Federal De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Roland Gerhard Mike Walter (Examinador Interno)
Universidade Federal De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Thays Keylla De Albuquerque (Examinadora Externa)
Universidade Estadual Da Paraíba
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Kleyton Ricardo Wanderley Pereira (Examinador Externo)
Universidade Federal Rural De Pernambuco
Pra Camusa, minha gata vencedora do meu imaginário “Nobel da gatura” em razão d’
A Peste. Para a memória de Anaxágoras de Morais, meu amigo roubado por algumas pestes.
Para Aloízio, meu amor nos tempos de peste. Para os e as cientistas que produziram a vacina e
para todos os que lutam contra o negacionismo. Para as mulheres, principalmente, as
magrebinas Mariem e Nadjwa. Para a mulher que eu fui em 2016, transitando pela França sem
sonhar com a peste em 2020, mas vivendo alguns pesadelos que se transformaram nesta
investigação.
AGRADECIMENTOS
A tese se detém ao estudo comparado das obras O caso Meursault (2013), do escritor e
jornalista argelino Kamel Daoud e O estrangeiro (1942), de Albert Camus. Daoud realiza o
que denomino de “tradução paródica pós-colonial” do clássico camusiano, de modo que o
objetivo deste estudo é problematizar as possíveis ressignificações operadas pela ficção
daoudiana frente ao texto francês quanto a dois aspectos centrais. O primeiro consiste na sua
sugestão de uma revisão e suplementação da crítica tradicional em torno de O estrangeiro,
pautada, principalmente, na leitura (praticamente unilateral) de que o romance seria um braço
do pensamento filosófico de Camus, cujo conceito emblemático é o de “absurdo”, presente
em O mito de Sísifo (1941), de modo que o romance argelino oferece também outro prisma de
leitura da obra francesa pela “fresta” da questão de gênero, atrelada à de colonialidade do
poder. O segundo aspecto, por sua vez, consiste nas ressignificações introduzidas por Daoud a
respeito de pontos (que se fazem, aqui, balizas analíticas) como: as representações das
alteridades árabes na narrativa, atravessadas pela conjuntura pós-colonial; as configurações
redimensionadas do sagrado e da religiosidade islâmica; a tessitura das imagens geográficas
da diegese como elementos de memória local; as representações de gênero na conjuntura
ficcional argelina contemporânea. A pesquisa segue teoricamente o campo dos Estudos pós-
coloniais, com destaque para o pensamento de Edward Said (1995), Stuart Hall (2003),
Walter Mignolo (2008), Anibal Quijano (2005), Edgardo Lander (2005), Inocência Mata
(2016), Maria Lugones (2008), bem como está alinhada com a noção de “paródia” na
perspectiva da “poética do pós-modernismo”, da canadense Linha Hutcheon (1999) e com a
categoria teórica de “tradução”, tal qual a entendem Eneida Souza (1993), João Alexandre
Barbosa (2005) e Else Vieira (1992). O estudo está organizado em quatro capítulos. No
primeiro, discuto as contribuições dos Estudos Pós-coloniais para a construção da análise
desenvolvida; no segundo, apresento uma leitura sobre como a obra de Daoud ilumina pontos
de revisão da tradição crítica em torno de O estrangeiro, setorizada particularmente em três
nomes centrais: Sartre, Barthes e Edward Said; no terceiro, suplemento o campo crítico
tradicional com uma releitura atualizada do romance camusiano, trazendo a problemática de
gênero, a partir justamente dos contornos da ficção doudiana e seu crivo crítico face ao
dialogismo que estabelece com clássico de Camus. Sigo, nessa pespectiva, a linha dos
Estudos pós-coloniais (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008) e da crítica feminista, tal como a
concebe Zinani (2015). No quarto e último capítulo, finalizo a abordagem da relação
intertextual entre Daoud e Camus, focalizando a tradução paródica pós-colonial de O
estrangeiro operada pelo escritor argelino, investigando as balizas analíticas acima listadas.
Por fim, apresento as considerações finais, apontando a visão de mundo presente em O caso
Meursault no campo literário periférico contemporâneo, não raro, atravessado por tensões
insistentes entre Argélia e França, no que tange, sobretudo, à questão da imigração árabe e das
representações do Islã.
La thèse porte sur l'étude comparative des œuvres L'Affaire Meursault (2013), de l'écrivain et
journaliste algérien Kamel Daoud et L'Étranger (1942), d'Albert Camus. Daoud effectue ce
que j'appelle une "traduction postcoloniale parodique" du classique camusien, de sorte que
l'objectif de cette étude est de problématiser les possibles resignifications opérées par la
fiction de Daoud par rapport au texte français concernant deux aspects centraux. La première
est sa proposition de révision et de complément de la critique traditionnelle autour de
L'Étranger, basée principalement sur la lecture (presque unilatérale) que le roman serait un
bras armé de la pensée philosophique de Camus, dont le concept emblématique est
l'"absurde", présent dans Le Mythe de Sisyphe (1941), de sorte que le roman algérien offre
aussi un autre prisme de lecture de l'œuvre française à travers la "béance" de la question du
genre, liée à la colonialité du pouvoir. Le second aspect, quant à lui, consiste dans les re-
significations introduites par Daoud concernant des points (qui deviennent, ici, des repères
analytiques) tels que : les représentations des altérités arabes dans le récit, traversées par la
conjoncture post-coloniale ; les configurations redimensionnées du sacré et de la religiosité
islamique ; le tissage des images géographiques de la diégèse comme éléments de la mémoire
locale ; les représentations du genre dans la conjoncture fictionnelle algérienne
contemporaine. La recherche suit théoriquement le champ des études postcoloniales, en
mettant l'accent sur la pensée d'Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Walter Mignolo
(2008), Anibal Quijano (2005), Edgardo Lander (2005), Inocência Mata (2016), Maria
Lugones (2008), ainsi qu'elle s'aligne sur la notion de "parodie" dans la perspective de la
"poétique du postmodernisme" de la Canadienne Linha Hutcheon (1999) et sur la catégorie
théorique de la "traduction", telle qu'elle est comprise par Eneida Souza (1993), João
Alexandre Barbosa (2005) et Else Vieira (1992). L'étude est organisée en quatre chapitres.
Dans la première, je discute les contributions des études postcoloniales à la construction de
l'analyse développée ; dans la deuxième, je présente une lecture de la manière dont l'œuvre de
Daoud éclaire les points de révision de la tradition critique autour de L'Étranger, sectée
notamment en trois noms centraux : Sartre, Barthes et Edward Said ; dans la troisième, je
complète le champ critique traditionnel par une relecture actualisée du roman camusien,
amenant la problématique du genre, précisément à partir des contours de la fiction de Daoud
et de son tamisage critique à travers le dialogisme qu'elle établit avec le classique de Camus.
Je suis, dans cette perspective, la ligne des études postcoloniales (QUIJANO, 2005 ;
LUGONES, 2008) et de la critique féministe, telle que conçue par Zinani (2015). Dans le
quatrième et dernier chapitre, je finalise l'approche de la relation intertextuelle entre Daoud et
Camus, en me concentrant sur la traduction parodique postcoloniale de L'Étranger opérée par
l'écrivain algérien, en investiguant les marqueurs analytiques énumérés ci-dessus. Enfin, je
présente les dernières considérations, en soulignant la vision du monde présente dans L'affaire
Meursault dans le champ littéraire périphérique contemporain, souvent traversé par des
tensions insistantes entre l'Algérie et la France, en ce qui concerne, avant tout, la question de
l'immigration arabe et des représentations de l'islam.
The thesis focuses on the comparative study of the works The Meursault Case (2013), by
Algerian writer and journalist Kamel Daoud and The Stranger (1942), by Albert Camus.
Daoud performs what I call a "post-colonial parodic translation" of the Camusian classic, so
the aim of this study is to problematize the possible resignifications operated by Daoud's
fiction in relation to the French text regarding two central aspects. The first is his suggestion
of a revision and supplementation of the traditional criticism around The Stranger, based
mainly on the (almost unilateral) reading that the novel would be an arm of Camus'
philosophical thought, whose emblematic concept is the "absurd", present in The Myth of
Sisyphus (1941), so that the Algerian novel also offers another prism of reading the French
work through the "gap" of the gender issue, linked to the coloniality of power. The second
aspect, in turn, consists in the re-significations introduced by Daoud regarding points (which
become, here, analytical marks) such as: the representations of Arab alterities in the narrative,
crossed by the post-colonial conjuncture; the redimensioned configurations of the sacred and
Islamic religiosity; the weaving of geographical images of the diegesis as elements of local
memory; the representations of gender in the contemporary Algerian fictional conjuncture.
The research follows theoretically the field of Postcolonial Studies, with emphasis on the
thought of Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Walter Mignolo (2008), Anibal Quijano
(2005), Edgardo Lander (2005), Inocencia Mata (2016), Maria Lugones (2008), as well as is
aligned with the notion of "parody" from the perspective of the "poetics of postmodernism"
by Canadian Linha Hutcheon (1999) and with the theoretical category of "translation" as
understood by Eneida Souza (1993), João Alexandre Barbosa (2005), and Else Vieira (1992).
The study is organized in four chapters. In the first, I discuss the contributions of Postcolonial
Studies to the construction of the analysis developed; in the second, I present a reading of how
Daoud's work illuminates points of review of the critical tradition around The Stranger,
sectored particularly in three central names: Sartre, Barthes and Edward Said; in the third, I
supplement the traditional critical field with an updated re-reading of the Camusian novel,
bringing the problem of gender, based precisely on the contours of Daoud's fiction and its
critical sifting through the dialogism it establishes with Camus's classic. In this perspective, I
follow the line of Postcolonial Studies (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008) and feminist
criticism, as conceived by Zinani (2015). In the fourth and last chapter, I finalize the approach
to the intertextual relationship between Daoud and Camus, focusing on the postcolonial
parodic translation of The Foreigner operated by the Algerian writer, investigating the
analytical markers listed above. Finally, I present the final considerations, pointing out the
worldview present in The Meursault case in the contemporary peripheral literary field, often
crossed by insistent tensions between Algeria and France, with regard, above all, to the issue
of Arab immigration and representations of Islam.
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................18
2 LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL...............................................27
2.1 EDWARD SAID: O QUE PODE A LITERATURA............................................28
2.2 STUART HALL: O PÓS-COLONIAL COMO PLATAFORMA HISTÓRICA,
TEÓRICA, ESTÉTICA..........................................................................................40
2.3 INOCÊNCIA MATA: O UNIVERSAL, A QUALIDADE E O CÂNONE I
MPLODIDOS........................................................................................................54
3 O CASO MEURSAULT E A CRÍTICA LITERÁRIA DE O
ESTRANGEIRO..................................................................................................62
3.1 A CRÍTICA FRANCESA: A TRADIÇÃO DO “ABSURDO”.............................65
3.1.1 Jean Paul Sartre: “A explicação de O estrangeiro”...........................................65
3.1.2 Roland Barthes: “O estrangeiro, romance solar”..............................................72
3.2 EDWARD SAID: “CAMUS E A EXPERIÊNCIA COLONIAL FRANCESA”. .76
4 O CASO MEURSAULT E A QUESTÃO DE GÊNERO EM O
ESTRANGEIRO..................................................................................................93
4.1 O ESTRANGEIRO: COLONIZAÇÃO E GÊNERO............................................93
4.1.1 A crítica feminista................................................................................................99
4.1.2 A crítica decolonial latino-americana e o feminismo decolonial....................110
4.2 AS MASCULINIDADES INVISÍVEIS EM O ESTRANGEIRO:
FRAGILIDADE, VIOLÊNCIA, MISOGINIA....................................................123
4.2.1 Uma revisão da trama: “a tal mulher invisível”, o assassinato
“do árabe” e as masculinidades........................................................................140
4.3 A MATERNIDADE EM O ESTRANGEIRO: PERIFERIZADA E
POLISSÊMICA....................................................................................................170
4.3.1 “Hoje mamãe morreu”......................................................................................180
5 O CASO MEURSAULT E A TRADUÇÃO PARÓDICA
PÓS-COLONIAL DE O ESTRANGEIRO......................................................199
5.1 PARÓDIA: A POÉTICA PÓS-MODERNA EM O CASO MEURSAULT.........199
5.2 TRADUÇÃO: A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE O CASO
MEURSAULT E O ESTRANGEIRO...................................................................205
5.2.1 Tradução – além da transposição interlingual: intertextualidade................205
5.2.2 Tradução: traducere e translatio......................................................................207
5.2.3 A tradução paródica pós-colonial argelina......................................................211
5.3 A NARRATIVA EM DIÁLOGO COM O OUTRO...........................................218
5.4 A RESSIGNIFICAÇÃO DO SAGRADO “ABSURDO” DE CAMUS..............232
5.4.1 O sagrado pós-colonial em Daoud e as imagens do Islã.................................235
5.5 A GEOGRAFIA PÓS-COLONIAL E RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA
ARGELINA.........................................................................................................249
5.5.1 As cidades e o mar em Daoud...........................................................................252
5.5.2 As cidades e o mar: marcas da colonização na terra......................................259
5.6 AS RESSIGNIFICAÇÕES NAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO............267
5.6.1 A dominação masculina (França) sobre a identidade feminina (Argélia)....267
5.6.2 “Hoje, mamãe ainda está viva”.........................................................................276
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................294
REFERÊNCIAS.................................................................................................309
18
1 INTRODUÇÃO
O que se conhece hoje no Brasil e no mundo sobre a Argélia e sua ficção? Como são
as narrativas que constroem a imagem desse país no qual tantas pessoas do mundo nunca
estiveram, no qual nunca estive? A literatura, o cinema, a música, as artes plásticas, a
História, a mídia são campos discursivos que constroem imagens dos países e povos. O que
esses campos oferecem sobre a Argélia e seu povo diverso, seus homens e mulheres? Aqui,
importa para efeitos de reflexão, para além de “o quê”, sobretudo, as questões “onde se,”
“quando se” e “quem” produz(iu) essa literatura, esse cinema, esse jornalismo e essa História
sobre a Argélia? São formas de investigar que interessam porque lugares, épocas e sujeitos
diferentes produzem imagens plurais do país magrebino. Questiono, assim, que imagens
diversas desta nação e seu povo vigoram ontem e hoje e quem elas representam, a quem
interessam.
Ainda que não seja regra absoluta, é muito possível ler um jornal francês, ou ouvir um
programa de rádio na France culture e perceber que neles se criam imagens da Argélia, dos
argelinos, de árabes e muçulmanos e, muitas vezes, ao modo eurocentrado de projeção do
Magreb, o qual tende a problematizar enfaticamente as tensões políticas ligadas à imigração
árabe na França frequentemente por um único ponto de vista. Nesse sentido, a versão de uma
Argélia fundamentalista, atrelada ao Estado Islâmico e imigrante aparece com constância na
mídia europeia, tendo se propagado abertamente pelo mundo. Onde estão publicadas e
veiculadas as “outras” versões para esse povo, sua memória e sua História? O que um
argelino escritor escolheria dizer contemporaneamente sobre sua terra, sua História, sobre as
imagens do país e seu povo representados na Literatura Ocidental? É uma questão que me
toma na condição de leitora e pesquisadora da literatura argelina, uma produção da qual nunca
havia tido notícias ou curiosidade de conhecer, senão a partir de contactar Kamel Daoud e sua
releitura de O estrangeiro, de Camus.
Como cheguei a Daoud? A escolha do presente objeto de estudo se faz importante ser
explicitada, porque brota de um desejo particular e subjetivo de entender um pouco a Argélia,
sua História e cultura, por outro meio que não uma narrativa eurocentrada, muitas vezes
insistente em circunscrever o país à imagem de uma ex-colônia de imigrantes mulçumanos
que, em alguns casos de radicalismos, impõem o “terror” à França. Enfatizo que não foi pela
ementa da Graduação em Letras na UFPE que entrei em contato com a ficção de Daoud,
também não foi pela Pós-graduação em Teoria da Literatura no PPG-Letras da mesma
19
universidade, tampouco foi pelo intermédio de uma crítica literária brasileira voltada à
literatura de ex-colônias francesas do Magreb. Cheguei, na verdade, a Daoud pela plataforma
de busca “Google” e por uma razão bem específica: havia acabado de voltar de uma estadia
na França em 2016, onde fui tomada pelo encontro com argelinos, tendo a oportunidade de
observar a presença argelina em Marseille, fosse no “cartier arabe”, fosse na Universidade de
Aix-Marseille. O primeiro argelino que conheci se chamava Yassine e fazia Mestrado em
Arqueologia no campus de Aix en Provence. Ele dizia que tentava permanecer na França com
seus estudos, submetendo à Universidade um projeto de doutorado. Estávamos almoçando no
restaurante universitário e ele contou suas memórias da Guerra da Independência argelina, a
partir das narrativas de seus familiares (pois era um jovem de 28 anos, não tendo vivido o
conflito em si). Falou com detalhes da violência sangrenta que representou aquela Revolução.
Era a primeira vez que eu ouvia um argelino falar sobre as memórias de violência em seu
país, sobre as relações coloniais com a França. Fato é que, durante minha estadia lá, me deixei
afetar emocionalmente pela presença argelina. Eu sentia, de algum modo, que o lugar daquele
povo era muito próximo ao meu, como vinda da América Latina, naquele país europeu: um
lugar periférico. Conheci Intissar, uma doutoranda tunisiana da Universidade de Aix-
Marseille. Ela trabalhava como recepcionista num hotel durante a madrugada e frequentava o
campus de dia para escrever na biblioteca. Intissar confessou ter muita vergonha e raiva dos
terroristas islâmicos franco-tunisianos (na época, 2016, houve o atentado em Nice de autoria
franco-tunisiana); ela não usava véu, diferente de sua mãe, e irradiava ódio contra o
radicalismo islâmico, o qual fazia dela, a meu ver, uma tunisiana envergonhada com seu país
na França. Conheci também Nadjwa, uma adolescente argelina com quem dividi uma turma
de estudo do francês no Vieux port de Marseille. Ela usava véu, era apaixonada pelo Islã e
falava com orgulho em seguir a religião (hoje, 2022, posta selfies sem véu nas redes sociais).
Vi muitos árabes na França, a maioria não ocupava cargos de status, nem todos eram
mulçumanos, mas estavam, em sua grande parte, nos restaurantes servindo, nos mercados
comercializando frutas e baguetes, nos metrôs vendendo bilhete. Toda essa atmosfera criou
em mim uma curiosidade antes não vivenciada: Como seria essa África dita “francesa” e por
que árabes (homens e mulheres) vivem como vivem na França? Que relação pós-colonial é
essa mantida entre Argélia e o Ocidente? Voltei ao Brasil querendo pensar sobre respostas
através do meu trabalho: pensar o real, o mundo através da literatura/ pensar a literatura a
partir do real e do mundo. Foi então que escrevi “escritores argelinos” na plataforma de
pesquisa do Google e, prontamente, surgiu o nome Kamel Daoud e sua reescritura premiada
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de Camus, O caso Meursault. Vi, assim, uma oportunidade de pensar sobre as alteridades
argelinas através da arte literária, realizando um desejo pessoal, justo por ser um autor cuja
obra referencia e critica um clássico francês. Era a oportunidade de seguir a vontade de
pensar, de descobrir e de partilhar descobertas com a crítica literária no Brasil sobre uma
literatura ainda pouco visitada pela academia: a literatura de um argelino em pleno século
XXI. Então, pensei: se a internet, a tecnologia, dentro dos paradoxos nas relações capitalistas
globais em que é um veículo de dominação e resistência (SANTOS, 2013), é capaz de
provocar um espaço para a presença literária argelina, é possível fazer com que tal presença
“migre” para o campo dos estudos institucionalizados na ordem do saber: a Academia. Eis o
trabalho desta pesquisa: refletir (com o desafio de certo pioneirismo) na crítica acadêmica
brasileira sobre Kamel Daoud e sua relação com Albert Camus.
Enquanto pesquisava ao longo do doutorado, costumava ir ao cinema para
“descansar” a mente (eram tempos anteriores à pandemia atual), mas quase sempre acabava
escolhendo um filme que se relacionasse com os objetos da pesquisa: a Literatura, a Argélia e
a França, Camus, Daoud, Estudos Pós-coloniais. O cinema, já disse Walter Benjamim (1994),
tem o poder de projetar, através das câmeras, aquilo que, a olho nu, o ser humano não
conseguiria ver sozinho, de modo que as imagens estão sob uma tecnologia de projeção cujo
alcance possui uma amplitude jamais observada no campo das artes anteriormente, podendo
as obras atingirem simultaneamente milhares de pessoas, em milhares de salas em cidades
espalhadas pelo globo. Vi, pois, um filme com a atriz Catherine Deneuve e dirigido por André
Techinè, que trazia “marginalizadamente” a geografia da Argélia, intitulado “Adeus à noite”
(2019). O filme obedeceu à tendência de se localizar a narrativa na França, mas apresentar o
Magreb marcado por fundamentalistas islâmicos que conduzem ao terrorismo jovens franco-
argelinos em situações específicas, isto é, passando por questões emocionais e familiares
problemáticas. É certo que ataques terroristas levados a cabo por franco-argelinos ocorreram,
haja vista o ataque de 2015 ao jornal Charlie Hebdo; mas essa seria a única imagem possível
ao povo argelino e à história da Argélia, ex-colônia francesa: produzir imigrantes
muçulmanos e membros da luta armada islâmica? Considero que esta não seja a única
imagem possível da Argélia e sua diversidade a ser representada discursivamente, mas é,
visivelmente, uma imagem que o cinema de André Techiné, protagonizado pela “queridinha”
e clássica, já um dia “A bela da tarde”, Catherine Deneuve, faz se projetar simultaneamente
para milhares de salas da América Latina e do mundo, o que facilita que esta memória
unilateral da Argélia, dirigida e atuada por franceses de renome na indústria cultural
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cinematográfica, se multiplique e chegue a milhares de pessoas que nunca visitaram o país,
como eu, por exemplo; contudo, de lá passam a guardar com ênfase tais referências. Notei no
filme de Techiné que a cidade de Orã, capital argelina, é citada superficialmente uma única
vez nos diálogos durante um jantar familiar entre a personagem Muriel (Catherine Deneuve) e
seu neto Alex, jovem convertido ao Islã e filiado ao Estado islâmico, a caminho de cometer
um atentando terrorista ao lado de sua namorada muçulmana Lilla, imigrante árabe adotada
por um idoso francês, enfermeira de um asilo e empregada doméstica de Muriel, matriarca
franco-argelina que sofre com as escolhas religiosas do neto e tenta impedi-lo no seu plano
terrorista. Não se tem espaço, entretanto, na obra, para se pontuar os impactos violentos da
colonização da França na Argélia, nem se atrelar o fundamentalismo também a um possível
resultado das segregações sociais resultantes da diáspora e do imperialismo na ordem do
fenômeno da Globalização e das identidades culturais na pós-modernidade, como já
observava Stuart Hall (2006). Entretanto, o que mais poderia representar a Argélia do que a
imagem de um país de fundamentalistas e terroristas islâmicos? Por que a história contada da
Argélia, na maioria dos campos discursivos, está marcada pelo fundamentalismo e pela
violência como revolta a valores ocidentais franceses? São questões não respondidas, sequer
cogitadas pelo cinema de Techiné, as quais podem vir à tona para que se investigue com mais
abertura as imagens da Argélia nas variadas produções culturais.
O fato é que a Argélia é também um país que permeia marginalmente narrativas não só
do cinema atual, mas da Literatura. No pós-guerra, difícil é desconsiderar a Argélia “bastante
francesa” do Nobel franco-argelino de Albert Camus. A Argélia de A peste (1957) ou o
“árabe” sem nome e assassinado em O estrangeiro reforçam o caráter periférico da
representação do país e seu povo na Literatura da época (SAID, 1995). O caso é que a Argélia
também escreve atualmente uma Literatura em língua francesa, tendo em Kamel Daoud um
de seus ficcionistas e jornalistas contemporâneos mais representativos, premiado, inclusive,
com o Goncourt de 2015 pelo romance de estreia O caso Meursault. Que memória da Argélia
a sua ficção oferece ao mundo contemporâneo? Haveria em Daoud espaço para outro Magreb
diferente do camusiana e daquele sugerido pelo cinema de Techinè? Haveria em Daoud uma
reprodução do olhar francês mais esteriotipado do povo argelino? Esta tese investiga, entre
outros pontos, que imagens da memória argelina a ficção contemporânea de Kamel Doud
recria a partir de seu romance O caso Meursault.
Em síntese, na procura por significados ficcionais plurais da memória discursiva da
Argélia, proponho uma reflexão possível sobre a Literatura argelina no século XXI tal como
22
ela se desenvolve na figura de Kamel Daoud em seu romance O caso Meursault (2013),
reescritura explícita do clássico de Albert Camus, O estrangeiro (1942). Desenvolvo o estudo
comparativo entre as duas obras, sob a perspectiva dos Estudos Pós-coloniais, uma vez que
entendo que a obra de Daoud demanda uma abordagem crítica neste formato, por fazer o texto
camusiano ressurgir no campo literário contemporâneo sob uma ótica de desconstrução de
uma tradição eurocentrada que glorifica o romance francês pela sua correlação com a filosofia
do absurdo, marginalizando as questões do assassinato do “árabe”, da ausência de sua
identidade, das tensões decorrentes das relações coloniais entre a Argélia e a França. O
protagonismo de Meursault no clássico camusiano e da sua voz narrativa termina por silenciar
a memória árabe, a memória do povo argelino, observação já feita por Edward Said em
Cultura e imperialismo (1995). A narrativa se refaz em Daoud, em contrapartida, a partir de
uma voz até então inédita: a voz árabe e argelina. Quem narra o romance daoudiano é
Haroum, irmão do árabe assassinado, este que, se em Camus não recebeu nome, agora ganha
identidade, chamando-se Moussa e recebendo a sua própria história e memória familiar. Esse
exercício ficcional de Daoud é, assim, uma metaficção de cunho crítico, embora também
reverencial (HUTCHEON, 1991), a O estrangeiro, reinterpretando o “caso Meursault”, na
tentativa de, entre tantos outros fins, fazer leitoras e leitores questionarem a responsabilidade
do personagem, em primeiro plano, por aquilo que ficou marginalizado pelo texto camusiano,
bem como pela própria tradição crítica que o vem interpretando e o sacralizando como um
clássico da filosofia do absurdo: matar um homem, sem identificá-lo na narrativa, sem
supostamente apresentar uma razão concreta para fazê-lo que não seja a motivação única do
efeito solar, culpando, com ênfase, a falta de sentido da vida, “o absurdo”.
A obra de Daoud recobra, dessa maneira, outra história para a família de Moussa e Haroum,
e , assim, oferta uma nova visão para a leitura crítica de O estrangeiro capaz de ressignificar
a memória do povo argelino na ficção do século XXI. A empresa do ficcionista e jornalista
encerra aquilo que muitas ex-colônias, através de sua Literatura, ousaram fazer: reescrever a
história de seus lugares e da própria Literatura partindo se si próprias, de seus olhares
particulares e diversos do olhar literário da Metrópole. A obra de Daoud encena visivelmente
uma iniciativa de correlacionar Literatura e memória, no que tange à relação histórica entre
Argélia e França, marcada pelo imperialismo e, especialmente no que tange a revisar e
problematizar a história de Meursault acerca da morte do cidadão árabe sem nome. É,
portanto, uma obra que escolho entender como, na nomenclatura de Pascale Casanova (2002),
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um romance Pós-colonial (vide capítulo 4), o qual solicita ferramentas de leitura pertencentes
a esse campo de estudos literários.
A pesquisa está organizada em quatro capítulos. No primeiro, discuto as contribuições
dos Estudos Pós-coloniais para a construção da análise desenvolvida; no segundo, demonstro
como a obra de Daoud ilumina pontos de revisão da tradição crítica em torno de O
estrangeiro, representadas particularmente por três nomes principais: Sartre, Barthes e
Edward Said; no terceiro, suplemento o campo crítico tradicional, seguindo a perspectiva dos
Estudos pós-coloniais, com uma releitura do romance camusiano a partir justamente dos
contornos da ficção doudiana, cujo crivo crítico abre campo para uma discussão da questão de
gênero; no quarto e último, finalizo a abordagem da relação intertextual entre Daoud e
Camus, focalizando a tradução paródica pós-colonial de O estrangeiro operada pelo escritor
argelino. Discuto, assim, na reta final da pesquisa, alguns dos elementos que, na obra, de
modo recorrente, aludem a questões como: a das alteridades árabes, a do sagrado e da
religiosidade islâmica, a que enfatiza a geografia local e a que remonta às representações de
gênero (com destaque para as masculinidades e maternidade). Por fim, apresento as
considerações finais, considerando a importância de O caso Meursault no campo literário
periférico contemporâneo, não raro, atravessado por tensões insistentes entre Argélia e
França, no que tange, sobretudo, à questão da imigração árabe e do islamismo.
Com tais contornos, a pesquisa dialoga com a necessidade clamada pela escritora
nigeriana Chimamanda Adiche em sua reflexão O perigo de uma história única (2019):
pensar sobre outras versões históricas possíveis para a vida das pessoas e povos, bem como
para a Literatura, contrariando a opressão de uma única História que se coloca como fonte
exclusiva e incontestável do olhar sobre o Outro. É significativo como a autora deixa claro na
sua fala tanto: a) como ela, na condição de estudante nigeriana nos EUA, se reconhece um
alvo dos olhares estereotipados americanos e europeus quando estes opinam sobre sua escrita
e alegam estranhar haver em seus personagens uma “ausência de africanidade”, porque
consideram que sua ficção “deveria” espelhar a vida local da África, já que ela vem da
Nigéria; quanto b) admite que sua própria mente se deteve a opressivamente reproduzir
histórias únicas de sujeitos pertencentes a culturas distintas da sua. Cito um trecho de sua fala
numa autocrítica quanto ao momento em que esteve viajando por Guadalajara e presenciou os
mexicanos, que, nos EUA, são representados estereotipadamente como imigrantes ilegais,
vivendo o dia-dia em seu país como cidadãos “indo para o trabalho, fazendo tortilhas no
mercado, fumando, rindo” (2019, p. 22). Confessa Chimamanda:
24
Primeiro senti uma leve surpresa, e então fui tomada pela vergonha. Percebi que
tinha estado tão mergulhada na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles
haviam se tornado uma só coisa na minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha
acreditado na história única dos mexicanos e fiquei morrendo de vergonha daquilo.
É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa
só sem parar, e é isso que esse povo se torna (2019, p. 22).
O trecho pode muito bem ser estendido dos mexicanos ao modo como homens e
mulheres árabes foram e são representados por um único viés cristalizado dentro de uma
história predominantemente orientalista, como atesta Edward Said (2007). Nesse sentido, esta
pesquisa, ao se centrar sobre o estudo de como um escritor argelino em 2013 reconstrói a
memória da Argélia e seu povo na Literatura contemporânea, abre espaço para que um único
e opressivo olhar sobre a cultura argelina, firmado por variados discursos ao longo do tempo,
seja desconstruído e suplementado 1 (SANTIAGO, 1976) com novas percepções pertencente à
própria voz desses sujeitos periferizados pela cultura ocidental e, frequentemente, reduzidos a
imigrantes islâmicos que ocupam a França, por vezes, ameaçando a “ocidentalidade” com
seus costumes e seus ditos radicalismos religiosos geradores de atos terroristas. Contudo,
ainda que manifeste um caráter de resistência ao olhar eurocêntrico sobre a Argélia, é preciso
deixar claro que a ficção de Daoud não é aqui encarada como um “panfleto político”
justiceiro, uma “tese” decolonial perante anos de violência colonial francesa. Trata-se de um
texto literário, o que o iguala a um palco para todos os variados tipos de projeções de emoções
e contradições. Kamel Daoud, pois, vem contar, pela via ficcional (não histórica, filosófica,
jornalística), outra história da Argélia e do “árabe” assassinado e sua família e reconstruí-la
perante O estrangeiro, mas essa memória que se reinaugura em sua ficção traz
particularidades locais argelinas a partir de seu lugar de fala diferido do lugar camusiano,
particularidades as quais dividem contraditoriamente também espaço com a reafirmação de
valores eurocentrados, num movimento paradoxal entre resistir e se submeter à tradição
literária e aos demais discursos ocidentais. Esta tese enfrenta analiticamente a ambivalência
do romance pós-colonial (CASANOVA, 2002) de Daoud, uma ambivalência que se
experimenta como marca maior do texto literário e sua característica sem igual de apresentar,
1 Chamo atenção para o fato de que os termos “suplemento” e “suplementação” serão aqui utilizados com
recorrência para se referirem ao romance de Daoud em face ao de Camus, de modo que são entendidos na
perspectiva de Derrida (“lógica do suplemento”), tal qual a apresenta Silviano Santiago em seu glossário dos
conceitos do filósofo francês. Cito Santiago: "A lógica do suplemento é a lógica da não-identidade e da não-
propriedade e se insere dentro de todo trabalho desconstrutor empreendido por Derrida frente ao discurso da
metafísica ocidental. O suplemento põe fim às oposições simples do positivo e do negativo, do dentro e do fora,
do mesmo e do outro, da essência e da aparência, da presença e da ausência. Sua lógica consiste mesmo em
escapar sempre a esse dualismo marcado, à identidade, na medida em que pode ser o dentro e o fora, o mesmo e
o outro: sua especificidade reside, pois, nesse “deslizamento” entre os extremos, na ausência total de uma
essência" (1976, p. 90-91).
25
de revelar as contradições das relações entre os sujeitos na História pela sua natureza estética
e prática mimética. Esta pesquisa busca refletir sobre as revelações e transformações
possíveis a partir da ficção argelina do século XXI no modo de se contar a vida, o povo, a
literatura argelina .
Igualmente, a tese contesta uma história única para a interpretação crítica diante do
clássico O estrangeiro, tecendo outras cadeias demonstrativas de leitura para o romance que
suplementam leituras petrificadas pelo foco único de buscar no texto a filosofia do absurdo
seu suposto teor trágico de um “romance solar”, em que os atos de Meursault estariam para o
sol, como estão os heróis trágicos para o destino (BARTHES, 2004). Apresento, assim, neste
estudo a possibilidade de se plurificar a história da interpretação crítica de O estrangeiro,
problematizando a obra a partir dos Estudos Pós-coloniais e da ficção daoudiana, que se
interpõe como revisão crítica da obra camusiana. Nessa perspectiva, a referência de Edward
Said em Cultura e imperialismo, funciona como um dos faróis interpretativos, contudo não
me atenho apenas a repeti-lo, mas, reconhecendo a sua importância crítica, proponho uma
problematização e suplementação de suas ideias presentes em Camus e a experiência colonial
francesa. Convido para compor a minha releitura de Camus pensadores Latino-americanos e
africanos que navegam nos mares da epistemologia decolonial: Walter Mignolo, Anibal
Quijano, Inocência Matta, María Lugones, entre outros nomes cujo trabalho entre os estudos
literários conferem suporte para se investigar a relação entre literatura e colonialidade.
Proponho com esta pesquisa, enfim, fornecer ferramentas de reflexão à crítica literária
e ao ensino em torno da obra camusiana, bem como criar fissuras no cânone ocidental para
que se entreveja a produção da periferia francófona magrebina, trazendo para os holofotes a
literatura argelina que se volta sobre sua própria memória tal como esta se apresentou na
ficção de Camus. Procuro pelos espaços de ambivalências nos textos, procuro evidenciá-los,
interpretá-los e, por fim, situá-los no pensar sobre a vida contemporânea das relações políticas
e literárias entre Argélia e França.
Este trabalho, acrescento, por fim, pelos traços que apresenta de centrar-se na
investigação de uma “tradução literária”, isto é, na ressignificação de um romance anterior por
outro posterior, desenvolve e amplia, ainda que de uma maneira particular e diversa, um
percurso de pesquisa similar àquele que desenvolvi durante o Mestrado. Nesta primeira
pesquisa2, investiguei também as relações intertextuais entre romances, mas de autores do
2 CAVALCANTI, Ariane da Mota. Dom Casmurro e movimento: suas traduções reescrituras em São
Bernardo e Amor de Capitu. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias – Recife, 2009. 225 F. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Faço a advertência sobre a aparição, em pontos específicos
26
Brasil: Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, e suas ressignificações em São
Bernardo e Amor de Capitu, outras duas produções nacionais que, na minha visão, o
“traduziram” do Século XIX para o Século XX, cada uma a seu estilo e em diálogo com o
contexto de produção em que surgiram. São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, traduz
Machado em jogo com o Regionalismo de 30, e Amor de Capitu (1998), de Fernando Sabino,
o faz entre os rítimos pós-modernos da paródia na década de 90 (HUTCHEON, 1991). Se
nessa primeira investigação me debrucei sobre o estudo das traduções operadas entre obras
brasileiras, tentando mapear que novos significados um clássico como Dom Casmurro
adquiriu a partir de suas reescrituras por outros dois ícones da Literatura nacional (em termos
das representações do feminino, da sociedade local e da metaficção), nesta pesquisa de
Doutorado, expando, como perceptível, meu campo de observação do fenômeno da tradução,
saindo do território familiar Brasil e me lançando às teias transnacionais das Literaturas
francesa e argelina, com o foco voltado para a francofonia periférica magrebina e sua
reescritura de um clássico do Ocidente, lido e publicado no mundo inteiro, na busca de
sentidos para sua ressignificação contemporânea, atravessada pelas tensões culturais pós-
coloniais entre França e Argélia. Assim, este trabalho se constitui como um desafio de âmbito
mais vasto e mais complexo do que aquele vivenciado na pesquisa anterior, buscando luzes
em torno das diferenças que Kamel Daoud pode oferecer a O estrangeiro, romance perante o
qual se apresenta, na condição de paródia (HUTCHEON, 1991), de modo polissêmico e
contraditório: dependente, reverente, crítico e transgressor. É esta polissemia contraditória que
passo, a partir de então, a elucidar.
da pesquisa, de referências ligadas ao trabalho de Mestrado em torno da tradução de Dom Camurro, uma vez que
algumas semelhanças entre as obras podem ser estabelecidas, elucidando determinados aspectos em discussão.
Sublinho que a pesquisa encontra-se no prelo para publicação em livro no segundo semestre de 2022.
27
2 LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL
Na obra O caso Meursault, Kamel Daoud cria o narrador Haroun, irmão de Moussa,
“o árabe” assassinado em O estrangeiro, de Camus, que ressurge para recontar a história de
seu irmão morto e de sua família, silenciada no romance francês. Tudo se conta, agora, século
XXI, pós-independência argelina da França3, a partir de um lugar de fala, até então,
desconhecido pela história da recepção camusiana: o lugar argelino, uma Argélia pós-
colonial. A narrativa de Haroun se mostra, na verdade, como o atender de um pedido feito por
um intelectual francês (não nomeado no texto, ironicamente, assim como o árabe morto em
Camus), o qual desejava reinvestigar a narrativa de Meursault4. Em sua primeira linha, o
romance daoudiano, uma narrativa tecida por um árabe5 argelino, dirigida, em caráter
dialógico, a um narratário acadêmico francês, escreve: “Hoje mamãe ainda está viva” (2013,
p.10). Tem-se a contraface da primeira fala de Meursault em O estrangeiro, de Camus: “Hoje
mamãe morreu” (2016, p.13). Sua escrita é, dessa forma, um retorno ao clássico que recebe
reverência e, ao mesmo tempo, um contraponto crítico. Essa revisita é, desse modo, um meio
de convidar ao destaque e simultaneamente descontruir os sentidos de O estrangeiro. Na
segunda página do romance daoudiano, encontra-se o narrador Haroum a escolher as
seguintes palavras:
O assassino ficou famoso e sua historia é demasiadamente bem escrita para que eu
pense em imitá-la. Era a língua dele. É por isso que farei o que se fez nesse país
depois de sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos
colonos e erguer com elas uma casa minha, uma língua minha. As palavras do
assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está, aliás,
inundado de palavras que já não pertencem a ninguém e que observamos nas
fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda,
transformados pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2013, p.9).
O narrador claramente associa sua narrativa à reapropriação da terra pós-
independência colonial. Suas palavras são a ocupação de um falante argelino da
3 A colonização francesa na Argélia foi de 1830 a 1962. A presente pesquisa não tem como objetivo central
descrever a História da colonização francesa ou da Revolução argelina, contudo, para entender a temática, A
revolução argelina, de Yasbek (2010) detém uma explanação geral.
4 O recurso narrativo será focalizado mais diretamente no Capítulo 4.
5 Em um sentido mais histórico, os árabes podem ser definidos como os povos de origem semita que habitavam
a península arábica. Efetivamente, dados os desdobramentos políticos, econômicos e sociais mais amplos, esses
povos se espalharam pelas regiões do assim chamado Oriente Médio e, mais precisamente, para os territórios que
são, ou foram, de povoamento dos impérios árabes (MALKKI, 1992). Tomando uma definição mais
antropológica, é possível dizer que, entre outros aspectos, os árabes são todos os povos que compartilham a
língua árabe, e suas variações, uma cultura que tem como fundamento alguma relação com o Islã, seja ela
religiosa ou institucional e, por fim, o imaginário mais geral da ligação com a península arábica (ROGAN, 2021,
p. 16-17). Contudo, é importante destacar, a relação dos povos árabes com a religiosidade é complexa e não pode
ser tomada como determinante, na medida em que adquire maior ou menor intensidade de acordo com a
conjuntura em cada sociedade que se reconhece como árabe (DEEP & WINEGAR, 2012).
28
6
palavra/idioma do assassino. Assim como as casas francesas na Argélia são retomadas pelos
nativos após a revolução, Haroum retoma a “história-casa” 7 de Meursault para construir a sua
“história-casa” e reapresentar a sua versão dos fatos. Palavras e pedras, narrativa e imóvel,
literatura e memória local aparecem no trecho atravessados, como dito, pelo “estranho dialeto
que a descolonização forja”. Está-se, pois, logo nas primeiras linhas do romance, delineado o
seu caráter pós-colonial. Está-se diante de um texto gerado por um escritor da Argélia (ex-
colônia francesa) cuja voz narrativa central aponta, nomeia e observa uma “estranha” prática
de “descolonização”, sendo, assim, cabível uma abordagem crítica e teórica que busque apoio
nos significados do Pós-colonial, dos estudos Pós-coloniais. Este capítulo inicial cumpre a
função de definir em que termos se compreendem os Estudos Pós-coloniais e suas
contribuições para o campo da análise literária. Traço, a seguir, uma discussão das ideias dos
principais pensadores dos Estudos Pós-coloniais que fundamentam, inicialmente, o
pensamento crítico aqui utilizado para executar a investigação das relações entre as obras de
Camus e Daoud. São eles: Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Inocência Mata (2016).8
De acordo com Edward Said (1995), existe uma relação intrínseca entre Cultura e
Império, entre a literatura ocidental e a legitimação do colonialismo e seus alicerces. A cultura
não “vagaria solta pelo ar” para apenas exprimir beleza estética e sentimentos de mentes
iluminadas pelo Gênio criativo, tal como muitos entendiam o processo criativo no
Romantismo do século XIX (SILVA, 1988). Na perspectiva de Edward Said, a cultura
europeia está em compasso com as necessidades de expansão colonial da própria Europa. A
maneira como o crítico delineia essa relação entre cultura e imperialismo pode ser associada a
uma imagem muito comum no cotidiano da nossa espécie mamífera: a de uma mãe que
alimenta a cria. Esta imagem-engrenagem se faz significativamente “familiar”, a tal ponto
que se “naturaliza”, se “invisibiliza” na rotina da espécie. Cultura e imperialismo alimentam-
se dupla e inversamente na imagem nutricional de uma mãe que amamenta sua prole, sendo
esta própria uma fonte de energia hormonal para a produção de mais e mais leite. Nessa
6 A questão do idioma francês na cultura argelina e no seu sistema literário é comentada no capítulo 4.
7 A metáfora da palavra e da literatura como material de reconstrução da “casa-terra” é recorrente em escritores
e escritoras de ex-colônias africanas. Vide, por exemplo, a obra poética “Utero da Casa”, da autora Conceição
Lima, de São Tomé e Príncipe (LIMA, Conceição. Útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004).
8 O trabalho dialoga, igualmente, com intelectuais dos Estudos pós-coloniais da América Latina, como: Lander
(2005), Quijano (2005), Mignolo (2008), Lugones (2008), mais citados nos Capítulos 3 e 4.
29
relação metafórica instalada para se ilustrar a interação cultura x imperialismo, não há papeis
cristalizados, no sentido de que o imperialismo seria fixamente a mãe que alimenta a
literatura, ou, contrariamente, que a literatura seria necessariamente a mãe que alimentaria o
imperialismo. Na verdade, ambos os pólos desempenham papéis duplos e simultâneos. Papéis
que poderiam mesmo funcionar como uma imagem para os laços entre produção cultural e
dominação imperial em que ambos os componentes se nutrem e se reforçam. Segundo Said
(1995), os textos europeus sobre a África, Índia, partes do Extremo Oriente, Austrália, Caribe
seriam parte constituinte da empresa europeia de dominar povos e culturas distantes. O
discurso é, assim, visto pelo crítico como uma das estratégias imperialistas de domínio das
colônias. Ocupar o território ultramarino e dominá-lo eram atividades que se reforçavam e
mesmo se constituíam em conjunto com certa retórica escrita nos textos literários (além de
demais discursos), a qual tinha como base traçar estereótipos dos povos ultramarinos, entre os
quais estavam: a) era necessário levar a civilização a esses grupos primitivos; b) era preciso
utilizar da violência frente à teimosia que demonstravam, sendo essa linguagem violenta a
única que eles sabiam atender e entender; c) “eles” eram diferente de “nós”, devendo, pois,
serem dominados.
Esta percepção de que a Literatura e o imperialismo se retroalimentam, através de uma
representação estereotipada do mundo além-mar e seu povo e que serve à justificativa de
rituais de violência física e cultural ao corpo e à cultura dos colonizados é uma noção basilar
desenvolvida e fundamentada pela Crítica Pós-colonial. Mediante a obra de Said, a crítica
literária passa a munir e a fortalecer uma noção de literatura nem sempre posta em holofotes
pelos estudos estéticos mais tradicionais: a de que o texto é também um ato, um exercício,
uma extensão do imperialismo colonial. Assim, a crítica pode passar a investigar questões
como: “De que modo, por quais mecanismos estéticos, os textos servem à propagação da
manutenção do poder eurocêntrico sobre o território e sobre a própria cultura dos povos
dominados nas conquistas imperialistas?” Tal forma de encarar o objeto literário proposta por
Said redireciona historicamente as formas de se fazer crítica literária nas últimas décadas do
século XX, oferecendo uma lupa diferente daquelas lentes críticas voltadas para a percepção
da narrativa e dos personagens como meros objetos ficcionais desarticulados do projeto de
“modernidade eurocêntrica” (MIGNOLO, 2008) típicas das correntes textualistas e
estruturalistas do início do século. Assim, texto e colonialismo são correlacionados e, nesse
movimento, encontra-se o cerne das investigações dos Estudos Pós-coloniais de que Said é,
incontestavelmente, uma espécie de co-criador e irradiador ao lado, claro, de tantos
30
pensadores detidos ao mesmo interesse de reconfigurar o que pode a literatura, o que podem
os seus atos na corrente da Geopolítica e da História da interação dos continentes.
A concepção de literatura, como é visível, se amplia em Said para que seja vista
também como um “gesto imperial”. A literatura em Said é concebida, então, como um ato que
pode agir pela dominação imperial. Contudo, é também, em si, um campo para o
contradiscurso, para o questionamento da dominação colonialista. O pensamento de Said,
destaco, apresenta uma dupla movimentação. Ao mesmo tempo em que amplia as formas de
se fazer crítica literária, abrindo portas para que se pense sobre as relações entre literatura e
colonialismo, fato que recebe dimensão considerável a partir do seu pensamento no campo da
exegese literária, pode ser, igualmente, interpretado como uma maneira de se circunscrever a
arte literária a apenas um projeto de propagação de poder europeu. Diante de tal manifestação
ambivalente da produção do crítico, contudo, é preciso que se encare a sua perspectiva não
como um método de análise capaz de encerrar o único e o mais “correto” modo de se
interpretar a literatura: aquele voltado fixamente a priorizar, na leitura da produção estética,
aspectos que representam as garras imperiais diante do imaginário literário.
A obra de Said pode, de modo mais proveitoso, ser lida como uma proposta de abrir os
múltiplos significados próprios do fenômeno literário a partir de outras chaves de leitura
diversas dentre aquilo que, para a época de sua publicação, era já bastante tradicional: o
esteticismo, a leitura imanente, a comparação na base do binômio fonte e influência. Uma vez
dito por Ezra Pound que a Literatura é “linguagem carregada de significado” (2006, p.32), o
método crítico Pós-colonial de Said menos que fechar os significados das obras apenas à
abordagem do texto como espelho do imperialismo, pode ser encarado como um convite a
leitores e leitoras a se voltarem para aquilo que não era tão evidenciado nas narrativas
ficcionais até o momento: como as seleções estéticas dos clássicos ocidentais guardam
relações estreitas com o fenômeno do imperialismo europeu. Esta foi uma chave de leitura
que não recebeu a devida atenção durante boa parte da primeira metade do século XX,
período em que se instituiu a Teoria Literária enquanto disciplina e aporte para Crítica
moderna. Assim, personagens e seus tipos, enredo, espaço, tempo, ponto de vista narrativo,
isto é, elementos estéticos constitutivos da narrativa, passaram, então, também a serem lidos
numa abordagem que foi capaz de traçar um paralelo entre a cultura e o imperialismo dentro
daquela imagem-engrenagem retroalimentar mamífera falada acima. Esta se constituiu como a
oferta da leitura Pós-colonial: traçar outra possibilidade de crítica voltada para a tarefa de
percorrer a literatura nesta sua acepção de campo discursivo em que estão vivas as relações de
31
exploração entre a Europa e as terras e povos colonizados. A crítica pós-colonial, remarco,
trouxe um modo particular de definição do papel da Literatura face ao contexto imperialista,
concebendo-a como um discurso cujos traços estéticos nutriam o sistema colonial, bem como
serviram e servem ao seu próprio questionamento. É nesta perspectiva que a presente pesquisa
pretende olhar as obras em estudo de Camus e Kamel Daoud: enquanto literatura,
aparelhagem estética, linguagem carregada de significados, mas pontualmente atravessada
pelas relações imperialistas entre França e Argélia.
Terry Eagleton, em Teoria da literatura: uma introdução (2003), faz um
levantamento, na seção introdutória da obra, dos diferentes modos de como a Literatura
recebeu definições teóricas ao longo dos tempos. Segundo o autor, entender unicamente que o
diferencial da literatura perante as outras formas de discurso seria o fato de que ela se trataria
de uma escrita imaginativa, de modo que através dela seria possível imaginar uma realidade
diversa do real, não seria uma definição totalmente capaz de garantir a sua especificidade
conceitual, tendo em vista que algumas obras podem ou não ser lidas como ficção a depender
da visão e do objetivo do leitor no ato da leitura. Também a definição dos Formalistas russos
do início do século XX pautada na noção de literariedade e de estranhamento, recebeu, como
ratifica o inglês, a contestação de sua eficácia por justamente não “dar conta” do ideal de
especificidade do campo literário, já que outros discursos, como o publicitário, por exemplo,
ainda que possam eventualmente se mostrar dotados de literariedade, e mesmo serem capazes
de provocar certo estranhamento no leitor, não podem ser confundidos com a literatura.
Dialogando com os pressupostos da Estética da Recepção, Egleaton finaliza seu ensaio
introdutório propondo que se encare a literatura como uma prática de escrita privilegiada, mas
que se trata menos de uma atividade de natureza conceitual fixa a intervir sobre as pessoas do
que propriamente de um fenômeno cuja definição depende, em si, de como as pessoas
pretendem enxergá-la a partir da sociedade e do tempo histórico em que vivem, bem como de
acordo com as suas necessidades e referenciais culturais.
Tal maneira de entender o literário que relativiza sua conceituação teórica se torna
emblemática no exemplo dado por Egleaton quanto a Shakespeare. Afirma o crítico inglês
que, até o atual momento, Shakespeare pode ser lido como literatura, contudo não seria
impossível talvez que os parâmetros para se entender o literário ao longo do tempo se
transformem a tal ponto, que uma sociedade futura possa não reconhecer mais Shakespeare
como literatura. O delinear do pensamento de Eagleton mostra que as diferentes correntes
críticas têm a sua maneira de entender o que é literatura e de traçar conceitos metodológicos
32
para sua leitura. É observável que cada corrente apoia sua defesa do que é o literário numa
necessidade daquilo que seu tempo, bem como os sujeitos, grupos e suas preocupações diante
da teoria desejam projetar na arte literária na condição de prática de escrita que alimenta a
cultura de forma particular. Se os Formalistas russos viam nela uma forma de “desautomatizar
o real” pelo estranhamento via literariedade e se os teóricos da Recepção a definiram como
uma “partitura” a ser atualizada em jogo com cada época distinta e seus valores, a crítica pós-
colonial suplementa tais percepções do que vem a ser o literário, ou mesmo atualiza a forma
de se entender essa “partitura”, na medida em que propõe que se conceba a literatura como
uma via estética para a propagação das forças imperiais, bem como sua desconstrução. É
possível notar que, independente do modelo crítico, a obra literária é definida como um elo
entre os sujeitos e o real. A escolha, o prisma de se olhar o real também irá incidir no modo de
se entender o papel da literatura no mundo e, por esta razão, é que fica clara a escolha
conceitual de Said frente aos romances e textos que estuda: revelar os bastidores da Europa
como produtora de colônias e cultura; revelar como a exploração colonial construiu a própria
Europa enquanto potência econômica e cultural. É importante que se destaque que, ao mesmo
tempo em que Said abre os olhares da crítica para a dominação imperial, seu pensamento
insiste também em reconhecer a existência perene e contínua de atos reativos à dominação,
muitos dos quais culminaram no grande movimento de descolonização em todo o Terceiro
Mundo. O autor cita, nesse sentido, a própria resistência armada em lugares diversos como
Indonésia e Argélia, além da resistência cultural marcada pela criação de partidos e
movimentos em prol da afirmação das identidades nacionais (SAID, 1995).
Dentro da arquitetura crítica de Said, é, sobretudo, relevante entender o que ele chama
de cultura, para concebê-la como interligada ao imperialismo e, dentro dela, o destaque que
sua escolha analítica confere à narrativa e ao romance. O autor utiliza a noção de cultura de
duas formas distintas. A primeira acepção diz respeito ao conjunto variado de práticas ligadas
à arte, à comunicação e à representação “que têm relativa autonomia perante os campos
econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de
seus principais mecanismos” (1995, p. 12). É dentro dessa concepção de cultura que o
romance recebe destaque nas investigações de Said, sendo entendido como importante na
construção dos atos, parâmetros e vivências imperiais. O crítico se posiciona em relação
àquilo que ele considera falta ou descuido da crítica tradicional de sua época: “A crítica
recente tem se concentrado bastante na narrativa de ficção, mas pouco se presta atenção a esse
lugar na história e no mundo do império” (1995, p. 12). Torna-se visível o julgamento de Said
33
quanto à ausência de se perguntar à ficção sobre como ela se relaciona com as conquistas
imperiais e seus desdobramentos. Nesse sentido, em Cultura e imperialismo, o autor redefine
o modo de se ver e se estudar as narrativas e o romance em meio à crítica dos fins do século
XX. Cita-se sua obra, quanto a sua maneira de redefinição da narrativa como objeto de
investigação do imperialismo:
A narrativa é crucial para minha argumentação, sendo minha tese básica a de que as
histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca
das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos
povos colonizados para afirmar sua identidade. O principal objeto de disputa no
imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a
terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava,
quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro – essas questões foram
pensadas, discutidas e até por um tempo decididas na narrativa (1995, p. 13).
A narrativa é também observada como uma motivação para que se conteste a
dominação e também se reconte as histórias. Afirma o autor:
Longe de ser um plácido reino de refinamento apolíneo, a cultura pode até ser um
campo de batalha onde as causas se expõem à luz do dia e lutam entre si, deixando
claro, por exemplo, que, dos estudantes americanos, franceses ou indianos ensinados
a ler seus clássicos nacionais antes de lerem outros, espera-se que amem e
pertençam de maneira leal, e muitas vezes acrítica, às suas nações e tradições,
enquanto denigrem e combatem as demais (1995, p. 14).
Essa acepção iguala a cultura a uma prática também de violência, na medida em que os
sujeitos da cultura passam a “adorar” e a “sacralizar” seus ritos culturais sem autocrítica, sem
questionamento e com o ideal permanente de se afastarem, se colocarem contra a cultura
alheia. Note-se que o romance se sobressai no trecho como uma espécie de “espelho da
nação”, que funciona como um místico amuleto de poderes criativos de um pertencimento
isolado, excludente e nada solidário. A cobrança perante os leitores e leitoras de literatura,
nesta perspectiva, é de ilhamento aos hectares de seu território; tal cobrança unilateraliza a
9 A região do Magrebe concerne ao Noroeste da África. Inclui Marrocos, Argélia e Tunísia (em sentido mais
estrito). O dito “Grande Magrebe” inclui ainda a Mauritânia, a Líbia e Saara Ocidental. Retoma-se a definição
em nota mais específica no Capítulo 4.
35
leitura e a limita à busca ciclópica de encontrar nos textos uma “história única” (ADICHE,
2019) do que se deseja saber e escrever sobre si e sua ilha. Said nota e denuncia que tanto
escritores, quanto críticos reproduzem em seus textos, ferramentas da cultura, esse modo
binário “batalha” e “ilhamento” de criação de sentidos. Esse seu “grito” faz parte do que eu
chamo de “grito pelo ocultamento visível” – sua voz explica criticamente o que seus olhos
veem: a ausência dessa própria noção de que a cultura se faz como um campo de batalha entre
lutadores ciclópicos que parecem ver apenas o que é espelhamento e negação ao outro. Cito o
modo particular de como Said, através dos seus sentidos de fala e visão, denuncia sujeitos
culturais “ilhados” que perpetuam, por sua vez, o ocultamento de outras culturas, através da
falta de questionamento da própria cultura:
mais do que condenar ou ignorar sua participação no que era uma realidade
inconteste em suas sociedades, sugiro que o que aprendemos sobre esse aspecto, até
agora ignorado, na verdade aprofunda nossa leitura e nossa compreensão dessas
obras (1995, p. 15).
Observa-se que as palavras de Said funcionam como uma espécie de justificativa dos
fundamentos da própria escolha crítica, das acepções com que os conceitos são entendidos,
numa tentativa aparente de “proteção” da identidade e legitimidade do seu método crítico. O
autor insiste em frisar o caráter inédito da abordagem literária pelo prisma do imperialismo,
remarcando o descaso da crítica de então pela reflexão literária neste viés, o qual se faria
latente nas narrativas europeias. É compreensível que, justo na introdução do livro Cultura e
imperialismo (1995), obra basilar na construção dos alicerces da crítica pós-colonial, o autor
assim deseje demarcar seu pensamento, defender sua tese. Faço, entretanto, um
questionamento acerca do termo “aprofundamento” trazido pelo autor no trecho acima.
37
Quando ele sugere que o seu objetivo não é exatamente julgar, mas “aprofundar” os modos de
ler os romances europeus, parece-me que fica aí subentendido que as demais leituras críticas
do século XX (que não tenham tido esse mesmo foco de conectar cultura e imperialismo) não
tenham realizado uma leitura “aprofundada” das obras, e, sim, superficial. Passadas quase
duas décadas da publicação de Cultura e imperialismo, é hora de repensar o termo
“aprofundar” utilizado pelo autor. Considero que a distância de natureza de leitura da crítica
proposta por Said em oposição ou suplementação às demais vertentes de abordagem
despreocupadas com a relação Europa x (ex)colônias seria mais proveitosamente definida não
com base no ato de “aprofundar” a leitura dos significados das obras, mas sim com base no
ato de “escolher” uma chave de leitura específica para elas. Não considero que a Crítica pós-
colonial seja precisamente um “aprofundamento” crítico diante das obras, isto é, uma resposta
que seria “mais completa” às supostas “deficiências” de abordagens mais na linhagem
psicanalíticas ou estéticas, por exemplo. Entendo que a crítica Pós-colonial exerce, na
verdade, seu modo particular de buscar significados nos textos, obedecendo a um projeto
político de compromisso em problematizar “outro lado” da História e da memória dos lugares,
das nações e suas literaturas. A ideia de “aprofundamento” de Said abre margem para sugerir,
se não estou enganada, a noção de que as outras correntes críticas não foram capazes de ir
além do superficial, explorando a contento “todas as camadas possíveis e exauríveis dos
textos” quando, na realidade, a questão parece se tratar mais do fato de que essas correntes
estavam buscando significados diferentes, aparatados nos projetos e posições políticas de seus
representantes. O modo como Said fala em “aprofundar”, ainda não tenha sido seu propósito,
não sei, dá cabimento para se pensar algo do tipo: “agora, sim, é possível retirar dos romances
aquilo que os críticos estetas não souberam ler”, “agora, sim todas as chaves de significados
esquecidas e ignoradas serão encontradas”, o que poderia sugerir que a sua abordagem fosse
mais “completa”, “profunda” que as demais. Contudo, em se tratando de crítica literária, ainda
que se validem as leituras de Said e seus pressupostos, não haveria uma verdade referencial
para julgar leituras em melhores ou piores, mais superficiais ou mais aprofundadas partindo-
se da ideia de que um método seja mais completo que outro. Haveria, sim, a crítica que se
monta em cadeia demonstrativa (LIMA,1981) a partir dos referenciais particulares dos
diversos críticos, seus modos de ver o mundo e a própria literatura, há o modo de ver ou não
ver sentido significativo em cada crítica a partir dos próprios leitores da crítica e seus
referenciais. Roland Barthes, em O rumor da língua (2004b), ao versar sobre o fato de que “o
leitor escreve o texto” e nele constrói os seus próprios sentidos, faz-se aqui uma referência ora
38
útil por demonstrar que a obra se torna aquilo que o leitor cria a partir dela, isto é, a partir de
suas pistas textuais10. A questão é que o projeto intelectual ativista de Said busca as pistas
específicas que relacionam a cultura ao imperialismo, ao passo que outras correntes críticas
buscam pistas diferentes. Nesse sentido, trago a palavra de Lourival Holanda: “O
empreendimento teórico é um projeto de ultrapassagem, porque de crítica, não de crença”
(2015,p. 92). As palavras de Holanda ajudam a repensar a noção de “aprofundamento” por
oposição a de “superficialidade” de um gesto crítico. Defender que uma leitura é mais
aprofundada (por se ater a esta ou àquela perspectiva teórica) que outra é estar mais pautado
pela teoria como “crença”, não como ultrapassagem crítica11.
Acredito, contudo, que seja, sim, necessário, como reforça Said, problematizar por que
as leituras que pouco se importam com a política imperialista presente nas obras assim o
fazem. Tal questão, ao ser refletida, revela quais projetos políticos estão e não estão presentes
na variedade da Crítica e a que interesses de grupos atendem. A opinião de Said importa e em
muito contribui aos estudos da Literatura na medida em que atesta o “ignorar” do
imperialismo na cultura por muitos nomes e plataformas hegemônicas do saber, mas merece
reavaliação, também, tendo em vista que parece supor que a Crítica pós-colonial poderia dar
conta de uma “profundidade” que, por exemplo, exauriria as “reais camadas semânticas” as
obras, não fora anteriormente acessada, seja por quais razões se acredite, se “cegueira”,
“inabilidade” ou “má vontade”. Não se trataria, a meu ver, de um “déficit de leitura” quando
não se olha o colonialismo nos romances europeus, não se trataria de uma crítica menor, por
supostamente ser inábil e superficial, se trataria, sim, acredito, de uma crítica dedicada a um
“outro projeto” que não o decolonial, projeto este atravessados por posições ideológicas que,
sim, poderiam ser elemento de debates. O fato é que a tradição crítica eurocentrada se pautou
por buscas que viraram, muitas vezes, as costas ao imperialismo, de modo que a contribuição
de Said é justamente relevante por propor outro olhar, o qual aqui é entendido não exatamente
como “mais profundo” (no sentido de mais completo e habilidoso para se exaurir a obra), mas
sim, comprometido com uma “opção decolonial” (MIGNOLO, 2008). Seu trabalho oferece
novos significados aos textos literários e ao próprio modo de se fazer crítica, mas não cabe,
assim entendo, ser encarado como o mais “profundo” frente a uma obra em análise e ao modo
A colonização não foi um subenredo local ou marginal de uma história maior (por
exemplo, da transição do feudalismo para o capitalismo na Europa Ocidental, esse
último se desenvolvendo “organicamente” nas entranhas do primeiro). Na narrativa
reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar e a importância de um
amplo evento de ruptura histórico-mundial (2003, p. 112).
Essa releitura dos significados da colonização para um fenômeno de efeitos mais
amplos desloca o seu sentido de apenas um sistema de dominação europeu de outras
localidades do mundo, para uma atmosfera em que se reconhece a sua ocorrência como “o
processo inteiro de expansão, exploração, conquista, colonização e hegemonia imperial que
13 Sobre a atuação das elites locais nas ex-colônias africanas, ver Membe (2019).
49
constituiu a face mais evidente, o exterior constitutivo, da modernidade capitalista europeia e,
depois ocidental, após 1942” (2003, p. 112-113). Nesse movimento de “interrupção crítica da
historiografia”, o que se releva é o descentramento da Europa, a destruição da sua imagem
como “potência-ilha”, para se notar, ineditamente, que é somente na relação com as suas
“periferias” que seu projeto hegemônico de modernidade capitalista se faz. Assim, a História
da modernidade ocidental é também a História das periferias, de mesmo modo que a História
das periferias na colonização e no pós-colonial é também uma História atravessada por esse
projeto capitalista europeu.
A observação de Hall contribui para este estudo na medida em que, a partir dessa
reformulação histórica, é possível investigar criticamente em O estrangeiro, de Camus, uma
representação da Argélia enquanto espaço narrativo, não apenas como uma periferia
colonizada da França, ilhada, distante, meramente um território gerido e dominado além-mar,
mas, com Hall, é possível analisar o texto de Camus como uma obra representativa
ficcionalmente de uma periferia magrebina, a qual propiciou que a França se tornasse a
França que foi pelos idos de 1942 (data de publicação do romance). Em outros termos, o
romance de Camus se passa na Argélia e, como tal, pode ser um corpo imagético da própria
França também, bem como das relações conflitantes e intercambiantes entre os dois países. É
dialogando com tal perspectiva, que Edward Said, em Cultura e imperialismo (1995) já
apresentava sua análise da obra de Camus no ensaio “Camus e a experiência colonial
francesa”, do qual bebo algumas ideias centrais e teço, igualmente, algumas observações
suplementares no capítulo 2 adiante. Assim, o “aqui” argelino, projetado pelo discurso do
narrador Meursault, pode ser lido como o “lá” francês, sendo, do mesmo modo, o “lá” francês
passível de ser lido como o “aqui” argelino, não havendo mais posições fixas dos espaços
narrativos quando interpelados pela ideia de que o global e o local se entrefazem nas suas
diferenças e atravessamentos conflitantes nas relações de poder que moldam o projeto de
modernidade europeu.
Na mesma linha de pensamento, as conjecturas de Hall possibilitam reconhecer os
espaços na obra de Daoud nesse mesmo paradigma em que o “aqui” e o “lá” têm sua
polarização implodida. Quando é lida a Argélia de 2013 em Daoud, é lida também a Argélia
colonial, é lida, também, a França de 2013 e mesmo a França colonial, uma dentro da outra.
Os significados das nações cujos papéis são de (ex)colônia e (ex)metrópole se refazem, se
permutam, se encontram na mesma posição, e em posições diferidas simultaneamente. O
modo de perceber, assim, os países na interrupção crítica historiográfica do pós-colonial,
50
faculta à crítica literária pós-colonial a uma reorientação nos olhares sobre os espaços
narrativos, qual seja: há a presença da periferia na metrópole e da metrópole na periferia.
Nessa visão, em Camus, a Argélia é a Franca e a França é a Argélia, entretanto este gesto
equiparado não está pautado numa igualdade de posições de poder, mas se inscreve num
espaço de disputa de poderes, no qual, ainda, a hegemonia europeia submete as periferias a
um estado permanente de tensão e desequilíbrio entre subjugação e resistência. Este estado é
vivido nas relações culturais entre os povos e na forma como a literatura escreve as imagens
do passado e do presente.
A reflexão acima ganha corpo para se ampliar na seguinte fala do pensador jamaicano:
Sempre que reconstituo essa história na minha cabeça fico com raiva – pelo
menos toda vez que tenho força pra isso. O francês age como se o morto
fosse ele, e conta como perdeu a mãe, fala como perdeu o corpo de uma
amante, em seguida como foi à igreja e constatou que o seu Deus havia
abandonado o corpo do homem, e depois como velou o corpo da mãe e o seu
próprio etc. Meu deus! Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até
a sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi o meu irmão, não
ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? Há uma coisa que me deixa pasmo.
Ninguém, mesmo depois da independência, procurou saber o nome da
vítima, seu endereço, seus antepassados, seus eventuais filhos. Ninguém.
Todos ficaram de queixo caído diante daquela linguagem perfeita, que molda
o ar como um diamante e, diante da solidão do assassino, declararam
solidariedade, apresentando as mais eruditas condolências. ... quem sabe
dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia, uma insolação? ... o meu
irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos. E
então, a partir daí todos se dedicam a tentar provar que não se tratou de um
ato homicida, mas apenas uma insolação (DAOUD, 2013, p. 12-13).
O trecho do primeiro capítulo de O caso Meursault aponta dois aspectos importantes
para se entender os significados questionadores do romance argelino frente à recepção de O
estrangeiro: 1) o narrador sente “raiva” ao reconstituir a história contada por Meursault, isto
é, sua voz se confessa guiada pela emoção e pelo sentimento colérico diante da versão
publicada em livro15, lida e celebrada com sucesso pelos leitores em geral; 2) o narrador fica
“pasmo” com o fato de que durante décadas, aqueles que leem a história de Meursault
continuam apenas se encantando com o estilo do texto e persistem em “esquecer/matar” o
árabe assassinado no enredo camusiano, na medida em que sequer indagam sobre ele, sobre
sua identidade silenciada, voltando-se praticamente todos os esforços de interpretação para o
protagonista assassino, que é, inclusive, visto menos como um criminoso, do que como um
“morto” diante de uma existência pensada sob as lentes de “uma filosofia”, a filosofia de que
o mundo seria “sem sentido” e “absurdo” (CAMUS, 2018a). O romance de Daoud não
explicita o nome de Camus como autor em nenhum trecho, contudo, é possível reconstruir, na
leitura, pelas “pistas” do texto (que se revela permeado pela constante presença do nome do
herói camusiano Meursault) que a filosofia da qual se fala é a camusiana em O mito de Sísifo,
ancorada no conceito de “absurdo”. A obra filosófica de Camus, publicada em 1942 16 e,
portanto, contemporânea ao O estrangeiro, de 1942, foi lida como um análogo filosófico do
15 O romance é metaficcional, trazendo no seu interior o “livro de Meursault”. O personagem camusiano teria
publicado a sua narrativa em uma edição famosa e aclamada pelo público.
16 Sobre a obra, quando viso a remarcá-la por seu ano de publicação, indico a referência de 1942. Contudo,
quando me refiro a seus conceitos e ideias, procuro referenciá-la pelo ano de 2018b, uma vez que a li nesta
edição particular.
63
romance, o que levou ao entendimento, predominante quase sempre, de que Meursault seria o
modelo ficcional do “homem absurdo” e, assim, sua indiferença às repetições e moralidades
da vida (como, por exemplo, viver o luto, amar/casar, não matar, crer em Deus, etc.) seriam
compreensíveis. Nessa perspectiva, “todos”, segundo o narrador daoudiano, tentam provar
com “as condolências mais eruditas” (que aqui podem ser lidas como vindas da crítica
literária e jornalística, demais trabalhos acadêmicos, traduções para o cinema, etc) a tese de
que Meursault é mais uma “vítima” da ausência de sentido do mundo (base filosófica de O
mito de Sísifo) e, assim, da “indiferença” que o toma diante do cotidiano. Seria o personagem,
pois, mais uma vítima “do sol”, do que propriamente um assassino colono francês que deveria
ser julgado pelo ato de matar um homem, no caso, um nativo da Argélia.
Tais leituras da tradição ocidental, para Haroum, ao longo do romance de Daoud,
perdem, no seu ponto de vista de irmão do árabe morto, o senso de “justiça”, tratando
Meursault com indevidas compreensão e solidariedade. Ao chamar a atenção para esses
pontos, Haroum faz um gesto de repúdio a toda uma tradição de leitura que mal se questionou
sobre a ausência de identidade do árabe assassinado, que mal “sentiu” pela morte de um
“árabe”, desconsiderando o fato enquanto aquilo que ele é: um crime merecedor de atenção,
de investigação, de questionamento. Para a crítica erudita de O estrangeiro, resta esta
acusação do narrador daoudiano de que aquele corpo “árabe”, argelino, de seu irmão, dotado,
agora (pós-colonialmente), de nome, Moussa e de uma história familiar, não interessa em
primeiro plano aos leitores do livro que “ficou famoso”, como remarca com certo rancor. Na
sua visão narrativa de quem relembra e reconta a história desse “livro” (aplaudido pelo
requinte estético e filosófico) e que o faz com “raiva”, os leitores não sentiram exatamente
pela morte de Moussa, de modo que o corpo argelino morto não recebe atenção significativa.
Sendo, assim, o corpo passível de luto, de solidariedade, se torna o corpo francês de
Meursault, que mesmo assassino, é reverenciado como um corpo de alguém com relevância,
porque é o protótipo de uma escrita com estilo, uma filosofia questionadora, por sua vez, do
corpo divino e do próprio sentido da vida. Problematizar a “filosofia do absurdo” parece a
Haroum o foco das leituras tradicionais. É nítida a crítica diante da crítica do narrador a
leitores ocidentais (e mesmo àqueles periferizados que encampariam a visão francesa
hegemônica) que se voltam diante de um romance clássico para focalizar aquilo que mais lhes
interessa: a problematização da própria filosofia, o gesto epistemológico ocidental de
entendimento do mundo, o próprio umbigo europeu, dispensando aquilo que no texto diria
respeito à pessoa nascida na geografia da colônia: “o árabe”. Assim, na versão de Haroum,
64
Meursault, um homem francês, emblema de uma filosofia relevante para os valores ocidentais
do Pós-guerra, foi o único “morto” protagonizado pela crítica ou pelos leitores comuns,
estando o sujeito argelino, “apodrecendo” no silêncio, na omissão dessas leituras, que
insistem em tratá-lo como um personagem esquecido nos bastidores de um livro de sucesso. O
romance de Kamel Daoud traz essa “ferida” do seu narrador e indica uma necessidade: é
preciso reler esses meios eruditos e analisar as bases de suas críticas (recebidas como
denúncia de Haroum) que “enaltecem” e ao mesmo tempo “prendem” Meursault a uma
tradição de interpretação: a de vítima e de modelo de “homem absurdo”. A pesquisa, neste
capítulo, segue, pois, a demanda do narrador daoudiano e se presta a fazer uma releitura da
crítica tradicional sob a perspectiva apontada pelo personagem, com o objetivo de, entre
outras questões, refletir sobre como a “colonialidade do saber” (LANDER, 2005) perpassaria
ideologicamente essas leituras e sua tradição nos estudos sobre Camus.
Neste capítulo 2, então, inicialmente o trabalho verifica as principais críticas e vozes
que são um tanto omissas ao assassinato árabe, na medida em que protagonizam Meursault
como único sujeito passível de discussão no texto, assinalando a tese filosófica de Camus
baseada no conceito de “absurdo” e, portanto, lendo-o como um herói inocente, por ser
consciente da falta de sentido da vida, num mundo sem transcendência. Apontam-se e
comentam-se algumas das críticas mais lidas e amplamente recomendadas quando o assunto é
O estrangeiro, que cumprem, na verdade, a tarefa de consolidar tal imagem de Meursault no
campo literário, acorrentando o romance a uma leitura em paralelo com a obra filosófica de
Camus O mito de Sísifo. Não se pretende perder de vista também o questionamento de até que
ponto os leitores eruditos subjugaram, de fato, totalmente a figura “árabe”.
O capítulo, em subitem seguinte, também discute a crítica de Edward Said (1995)
sobre o romance, que quebra com essa ordem da “omissão” da identidade árabe, adentrando
em outros sentidos presentes no texto que se conectam com a relação entre cultura e
imperialismo. A discussão apresenta uma leitura em diálogo com a crítica pós-colonial do
romance de Camus, apontando alguns dos sentidos, de certa forma, não tão evidenciados por
uma tradição exegética que se esforçou, como atesta o narrador Haroum, para ler apenas a
filosofia do Pós-guerra na produção camusiana, limitada, muitas vezes, a ver unicamente o
que representa a França e os valores humanistas ocidentais no texto.
Torna-se relevante destacar que este segundo capítulo se complementa com a
abordagem desenvolvida no terceiro, no qual, a partir da perspectiva das epistemologias do
Sul, particularmente, sobretudo, do pensamento de Anibal Quijano (2005) e María Lugones
65
(2008), investigo o desenho de uma “matriz colonial do poder” em O estrangeiro, focalizando
como a questão de gênero e do patriarcado estriam também presentes nos aspectos coloniais
da obra, igualmente relacionados à exploração da terra e dos corpos nativos. O pensamento
de Medrado e Lira, Welzer-Lang e Badinter também moldam e enriquecem a discussão.
17 Será visto adiante que tal raiva é fissurada pelo ratificar do conceito de absurdo em outros trechos da fala de
Haroum, o que denuncia a subjetividade ambivalente e contraditória do personagem.
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plano real da crítica tradicional para o plano ficcional do personagem que encena uma
narrativa metaficcional, porque O caso Meursault se coloca como reescritura explícita do
clássico de Camus) é o entendimento de que uma obra em que seu irmão é assassinado, ao
contrário do que ele esperava, tem as atenções dos leitores voltadas apenas para o assassino,
que é reverenciado, e a filosofia de seu criador-autor ambos franceses.
Sartre propõe, na primeira página, a questão da qual se ocupa seu ensaio:
Como se deveria entender esse personagem que no dia seguinte à morte da mãe
“tomava banho de mar, iniciava uma relação amorosa irregular e ia rir diante de um
filme cômico, que matava um árabe “por causa do sol” e que na véspera de sua
execução, afirmando que “tinha sido feliz e que ainda o era”, desejava muitos
espectadores para acolhê-lo com gritos de ódio”? Alguns diziam: É um néscio, um
pobre coitado”; outros mais inspirados, “É um inocente”. Restaria no entanto
compreender o sentido dessa inocência (2005, p. 117)
Destaco os seguintes detalhes no excerto:
a) o protagonismo de Meursault como um personagem que demanda reflexão, que inquieta,
que recolhe os esforços do crítico é reiterado, o que, se lido em cotejo com a “reclamação” de
Haroum, “quem sabe dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia, uma insolação?”
(DAOUD, 2013, p.12), revela sua dor diante da observação frente aos leitores da história: “o
meu irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos” (DAOUD,
2013, P. 12);
b) a morte do “árabe” aparece no discurso “arrolada” como uma, entre as demais atitudes de
indiferença aos valores morais vigente da sociedade praticadas por Meursault, o que se nota
pela sua menção ser feita justaposta entre vírgulas a ações como “banhar-se”, “amar”, “ver
um filme”, “ser feliz”. Nesta organização sintática enumerativa, o crime de matar Moussa,
irmão de Haroum, figura como “um item, entre os outros” que constroem o homem absurdo
que é Meursault, sugerindo implicitamente que a morte do árabe estaria no mesmo patamar
das outras ações do personagem que não envolvem a gravidade de uma vida que é retirada de
um homem. A maneira como a sintaxe de Sartre se escreve faz ressoar que a vida do árabe
assassinado é mais um elemento que pode gerar mais significados sobre Meursault e a teoria
filosófica do “absurdo” do que propriamente sobre um ser humano com nome e família, cuja
vida é “tomada”. Fazer essa leitura da crítica é algo próprio do narrador Haroum que
demonstra seu incômodo: “Meu deus! Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até a
sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi o meu irmão, não ele! Foi Moussa e
não Meursault, não é?” (DAOUD, 2013, p. 12). O personagem daoudiano retoma em seu
discurso a presença de palavras e sentidos que pouco estiveram na boca da crítica tradicional:
“bala”, “corpo”, “meu irmão”, isto é, sua fala aponta que ele sente que o quadro do
67
assassinado é, de certa forma, deixado de lado, e que a vítima principal, o “inocente”, de fato,
não poderia ser apenas Meursault, como é a interpretação que se repete ao longo de décadas
de sucesso de Camus;
c) a explicação do próprio Meursault de que ele mata “por causa do sol”, ainda que esteja
entre aspas, reaparece também de modo reiterado em Sartre, como se fosse acolhida a razão
dada pelo personagem para matar: “uma insolação”. Assim, o sol se fortalece no texto
sartreano como “culpado”, quando, na verdade, as balas vieram também do revolver de
Meursault. O quadro pintado em “A explicação de O estrangeiro” no trecho citado pode ser
lido como algo que se aproxima daquilo que acusa Haroum: “todos se dedicam a tentar provar
que não se tratou de um ato homicida, mas apenas uma insolação” (2013, p. 13);
d) As opiniões de que Meursault seria um inocente é também algo reafirmado, na medida em
que Sartre convida seus leitores a pensarem com ele sobre “o sentido desta inocência”. O
romance de Daoud insurge contra a imagem blindada de “inocência” de Meursault,
nomeando-o frequentemente no discurso como “o assassino”, como fica elucidado no trecho
abaixo:
Depois de perder a mãe, esse homem, o assassino, deixa de ter um país e cai
no ócio e no absurdo. É um Robinson que acredita poder mudar o mundo
matando o seu Sexta-feira, mas ao se ver preso numa ilha, se põe a discursar,
com talento, feito um papagaio complacente consigo mesmo. Poor
Meursault, where are you? Repita algumas vezes esse grito e ele lhe
parecerá menos ridículo” (Daoud, 2013, p. 13).
Percebe-se sua ironia diante da repetição das leituras de que Meursault é um “pobre
coitado”, de modo que além do termo “assassino” e da expressão “matando o seu Sexta-
feira”, Haroum ainda o acusa em seu caráter de dominar uma ordem do discurso para posar
como “vítima da existência”. Ele refaz a imagem de Meursault como um
“assassino/papagaio”, dono de uma retórica complacente consigo mesmo, a qual se perdoa
pelas contravenções que comete numa “ilha” onde se põe como “estrangeiro”. Vê-se que, no
trecho, Daoud igualmente critica a noção de verdade construída pela leitura hegemônica da
crítica, na medida em que ironiza o fato de que quando uma descrição se repete tantas vezes,
ela passa a ser encarada como verdade. A “verdade” de que Meursault seria um “pobre
coitado” é ridicularizada no trecho. O romance de Daoud, assim, propõe uma reflexão crítica
não só sobre o romance camusiano em si, mas sobre toda uma tradição de leitura consolidada
em torno dele, apresentando, nesse movimento, outro lado do herói francês pouco
evidenciado, o seu lado “criminoso”. Igualmente, o romance traz o “inédito”, aquilo que não
foi discutido ao longo de anos da publicação de O estrangeiro: a vida do “morto” silenciado
68
há anos, sua identidade, sua origem, a raiva, o trauma da sua família órfã de seu corpo e de
sua memória na leitura do romance camusiano; um morto que passa a ter imagem, forma em
Daoud, descrito como: “Um árabe breve, tecnicamente fugaz, que viveu duas horas e morreu
ao longo de setenta anos ininterruptos, mesmo depois de seu enterro” (2013, p. 11). Ou seja, a
duração da vida do personagem assassinado no tempo da leitura do romance é ínfima, “duas
horas”; mas o tempo que a leitura da tradição da crítica literária ocidental toma para fazer
perdurar a sua “morte”, lida na figuração de seu apagamento, seria de setenta longos anos,
quando surge, finalmente, o relato de Haroum, através da escrita de Daoud, para quebrar essa
“subalternização” e ressuscitar a sua vida, sua identidade e sua memória (A publicação de O
estrangeiro é de 1942 e a de O caso Meursault é de 2013, isto é, são setenta e um anos de
intervalo entre um texto e outro, durante os quais Haroum sente o negligenciar de seu irmão,
de sua família, em face da narrativa hegemônica de Meursault e da crítica que propagam o
olhar francês e ocidental sobre os fatos, os quais, no caso, apagam “o árabe”).
Sartre defende a tese da inocência de Meursault ligada à “filosofia do absurdo”. Como
ele mesmo afirma: “O mito de Sísifo vai mostrar de que maneira devemos acolher o livro do
nosso autor. Com efeito, ali encontramos a teoria do romance absurdo” (2005, p. 121). E esta
associação, que cria uma relação umbilical entre as duas produções de Camus se torna a chave
mais comum de leitura da obra, reproduzindo-se em demais textos críticos como,
praticamente, uma “verdade” única diante da qual pouco se buscou ir além. Cito Sartre a
respeito da “inocência” do herói absurdo:
Trecho 1:
Vou lhe resumir a história antes de contá-la em detalhes: um homem que sabe
escrever mata um árabe que nesse dia não tem mesmo um nome – como se ele o
tivesse pendurado em um prego ao entrar no cenário – e se põe a explicar que foi
culpa de um Deus que não existe e por causa daquilo que ele acabara de
compreender sob o sol e porque o sal do mar o obrigou a fechar os olhos. De
repente, o assassinato se torna um gesto absolutamente impune e deixa de ser um
crime, pois não existem leis em vigor entre o meio dia e as duas horas da tarde, entre
ele e Zoudj, entre ele e Moussa. E em seguida, todo mundo se uniu para fazer o
corpo da vítima desaparecer rapidamente e para transformar o local do assassinato
em um museu imaterial (DAOUD, p. 20013, p. 14).
A visão de Haroum é clara: seu irmão, mal digno de um nome no livro, foi assassinado
e “todos” responsabilizam o sol, não o assassino. Na verdade, o sol não permitiria que o ato
fosse visto como um crime. E, na medida em que todos os olhares se voltam para pensar sobre
Meursault e sua “inocência” num “romance solar”, se oculta ainda mais o árabe morto. Não se
ter pensado sobre esse morto sem nome parece ser o mesmo, na visão de Haroum, que “outro
74
crime” o e “ocultação de cadáver”. A crítica de Barthes, assim como a de Sartre, não escreve
diretamente sobre o árabe assassinado. Ela se atém a Meursault e seus significados de homem
absurdo, de estrangeiro:
Meu irmão não teve direito a uma única palavra nessa história. E aqui, você, como
todos os outros que o antecederam, segue o caminho errado. Quem carrega o
absurdo nas costas ou no ventre das nossas terras somos nós, eu e meu irmão, e não
o outro. Entenda bem, não expresso tristeza nem raiva. Tampouco estou de luto.
Mas... Mas o quê? Não sei. Acho que eu gostaria que a justiça fosse feita (2013, p.
14).
O personagem fala em “todos os outros” que seguem o caminho errado de entender a
história pelo modo através do qual não há justiça, qual seja o modo interpretado pela crítica
em que se destaca que Meursault é punido pelo absurdo, que o torna “estrangeiro”, e não pelo
crime de assassinato. Não houve justiça ou direito a uma palavra para o irmão de Haroum. A
crítica de Barthes confirma o fato e a todo o momento do ensaio, ele encontra uma maneira de
reverenciar Camus pelo romance que é “pequeno como uma joia”, “mantém seu frescor e vai
além das modas” (2004, p. 96). A obstinação de Barthes em explicar o romance pelo seu
aspecto solar, assim, tece o comentário:
20 Barthes (2004b), no artigo “O efeito do real”, recordo, aqui, já desconstrói a realidade como algo dado e
apreensível de modo concreto, apontando que há sempre uma perspectiva particular a ver e construir o que se
entende por real.
80
de Camus a essa “ciência” colonial “de governar criaturas inferiores cujas terras e recursos e
destino estavam a cargo da França” (1995, p. 222). Sobre a representação dos nativos nos
discursos coloniais, argumenta Said que eles, bem como “seus territórios não deveriam ser
tratados como entidades que pudessem se tornar francesas, e, sim, como possessões cujas
características imutáveis requereriam separação e subserviência, muito embora isso não
excluísse a “mission civilisatrice” (1995, p. 22). Nesse sentido, as representações de argelinos
e franceses em textos camusianos, para o autor, seguiriam o binarismo “sujeito imperialista
dominador/sujeito argelino dominado”, o que aqui se convida ao repensar ao longo das
próximas linhas.
Descrevendo detalhadamente a tese de Said, haveria uma projeção direta na obra de
Camus da gestão colonial francesa na Argélia, como se nos romances e contos do autor, a
França “tomasse” o país de modo idêntico, espelhado. Said vai trançando sua cadeia
demonstrativa, oferecendo um panorama da gestão colonial francesa e seus impactos na vida
argelina. Cito:
Na Argélia, por mais incoerente que fosse a política dos governos franceses desde
1830, continuou o processo de afrancesá-la. Primeiro, as terras foram tomadas pelos
nativos e seus edifícios ocupados; a seguir, os colonos franceses tomaram conta das
matas de sobreiros e jazidas minerais. Depois, como observa David Prochaska em
relação a Annaba (antes chamada Bône), “eles removeram os argelinos e povoaram
lugares como Bône com europeus”. Durante várias décadas, desde 1830, a economia
foi movida por um “capital de pilhagem”, houve um decréscimo da população
nativa, e aumentaram os grupos de colonos. ... Assim, enquanto a França se
reproduzia na Argélia, os argelinos eram relegados à marginalidade e à pobreza
(1995, p. 223).
Diante do quadro contextual argelino acima, Said o interliga à ideia de que a obra
camusiana protagonizaria o domínio francês com a seguinte “seleção” estética: ocultar a
descrição da Argélia, particularmente quanto a seu contexto de geografia explorada e
dominada pelo imperialismo, de modo que o cerne de seus textos seriam dilemas filosóficos
franceses, as angústias dos cidadão franceses voltados para um Pós-guerra europeu, ainda que
estivessem sobre o solo argelino. É nesse sentido que Said assinala ser a literatura camusiana
dirigida a um público francês (seja na França, seja na Argélia), isto é, uma produção que
dialoga com o que representa valores e leitores franceses. Tal conotação literária, para o autor,
é o símbolo de que, na Argélia, viver-se-ia na França e na Europa, porque o país era seu
território, sua extensão além-mar, de maneira que as particularidades locais e geográficas nos
romances de Camus estariam marginalizadas, inferiorizadas, como assim foi o povo argelino
na “teoria imperial francesa” tal qual é descrita pelo crítico. É o que está afirmado nos
seguintes trechos:
81
Camus é o único autor da Argélia francesa que pode ser considerado
justificadamente como escritor de estatura mundial. Tal como Jane Austen
um século antes, Camus é um romancista que não descreve os fatos da
realidade imperial, evidentes demais para serem mencionados; como em
Austen, permanece um ethos que se destaca sugerindo universalidade e
humanismo, em profundo desacordo com as descrições do palco geográfico
dos acontecimentos, feitas de maneira chã na ficção. Fanny abrange
Mansfield Park e a fazenda de Antiguar; a França abarca a Argélia e, no
mesmo gesto narrativo, o assombroso isolamento existencial de Meursault.
Camus é uma figura imperial bastante tardia que não só sobreviveu ao auge
do império, mas permanece ainda hoje como um escritor “universalista” com
raízes num colonialismo agora esquecido. As narrativas de Camus sobre a
resistência e o confronto existencial, que antes pareciam falar da luta contra
a mortalidade e o nazismo, agora podem ser lidas como parte do debate
sobre a cultura e o imperialismo (1995, p. 224).
Da mesma forma, Conrad e Camus não são meros representantes de
algo tão relativamente imponderável quanto uma “Consciência ocidental”, e
sim, da dominação ocidental no mundo não europeu (1995, p. 225).
Said, em contrapartida, faz a ressalva de que não há nenhuma razão para Camus ser
responsabilizado, por mais desgraçada que esta seja, pela “natureza coletiva do colon francês
na Argélia” (1995, p. 226), uma vez que sua criação francesa no país “não o impediu de
escrever um famoso relatório pré-guerra sobre as misérias do lugar”, decorrentes do
colonialismo. Contudo, paradoxalmente, desabona o escritor quando afirma haver uma
contradição na sua postura de intelectual político, a partir do pressuposto de que nele ter-se-ia
o “homem moral numa situação imoral”, pois, segundo Said, a sua escolha de enfocar o
individual num contexto social, o afastaria da crítica ao colonialismo, sendo, pois, essa
tendência acrítica o que se observaria em O estrangeiro, A peste e A queda, obras nas quais
Camus não valorizaria o relato do colonialismo, mas sim “o auto-reconhecimento, a
maturidade desiludida, a firmeza moral diante de condições ruins” (1995, p.226)
representados pelos personagens dessas histórias. Volto, mais a diante, a comentar sobre essa
tendência de Said de ora desassociar, ora associar as posturas dos escritos de Camus no plano
da ficção e da crítica política.
A tese de Said sobre a “escolha” da marginalização da geografia argelina nos textos de
Camus é a seguinte: não seria feita de modo inocente, mas pensada, para que a Argélia figure
a França e “de modo geral, a França sob a ocupação nazista” (1995, p. 227) e argumenta: “boa
parte do que aparece nas narrativas (por exemplo, o julgamento de Meursault) é uma
justificação sub-reptícia ou inconsciente do domínio francês ou uma tentativa ideológica de
embelezá-lo” (1995, p. 227). Said se mostra convicto, assim, de que a forma e o significado
ideológico das obras camusianas se referem e consolidam o imperialismo francês na Argélia.
82
Sob tal perspectiva, passa a assinalar uma “falta histórica” no escritor, a qual estaria ligada ao
seu lugar de sujeito “franco-argelino”, de colono, de modo que, segundo ele, um argelino não
ousaria produzir tal falta histórica em sua possível ficção ao localizá-las na Argélia: “Salvo
algumas exceções, de modo geral ele ignora ou passa por cima da História, coisa que um
argelino, para o qual a aplicação diária de poder, não faria” (1995, p. 227). Para um argelino,
assim, na visão do crítico, 1962 seria visto como um ano de libertação, de inauguração de
novos tempos, após uma longa e infeliz história iniciada em 1830, com a invasão francesa.
Sob tal desenho, sua leitura parte, então, de uma correlação direta entre projeto ficcional
camusiano e projeto imperialista francês. Sobre os romances, diz ser uma forma correlata de
interpretá-los passar a “vê-los como intervenções na história das iniciativas francesas na
Argélia, de fazê-la e mantê-la francesa, e não como romances que nos falam do estado de
espírito do autor” (1995, p. 227).
A visão de Said, remarco, endossa a existência de um binarismo estreito entre as
posições de argelinos e franceses numa possível representação da Argélia, como se houvesse
um mecanismo fixo e transparente de representação: argelinos recusariam necessariamente a
dominação francesa/ franceses imporiam necessariamente a dominação. A própria abordagem
de Stuart Hall, aqui comentada, assim como a de Hommi Bhabha em O local da cultura
(2003), alertam para o fato de que no campo das relações coloniais e pós-coloniais, os
binarismos caem por terra, sendo os sujeitos atravessados por visões de mundo ambivalentes,
conflitantes, contraditórias e, portanto, falhas às representações centralizadoras, cristalizadas
das relações entre colonizador e colonizado, como se nelas não houvesse espaço para que
questionamentos se instalem e quebrem barreiras. A questão é que, diferente do que Said
argumenta neste seu ensaio, não há como garantir que todo argelino se nutra de apenas uma
visão “x” sobre a França, isto é, de pura resistência, bem como, não há como determinar que
todos os sujeitos franceses tenham apenas uma visão celebrativa da colonização. Há uma
diversidade de sujeitos atravessados pelas conflituosas marcas da colonização e isso as
palavras de Said parecem desconsiderar, o que se faz um verdadeiro paradoxo em seu
pensamento versado em Cultura e imperialismo (1995), uma vez que ele próprio demonstra
na seção introdutória da obra, aqui comentada no capítulo um, a consciência das implosões
dos antigos binarismos no campo pós-colonial.
No caso da ficção de Kamel Daoud em O caso Meursault, é possível identificar que o
escritor argelino elabora, na tessitura da sua narrativa, o que Said entende como uma “falta
histórica” na ficção de Camus: a descrição mais detalhada da geografia argelina e do contexto
83
de dominação francesa e subjugação do povo árabe, sua marginalidade, sua história relegada
ao analfabetismo e ao trabalho subalternizado, às posses tomadas, sejam elas referentes às
propriedades, como casas e fazendas, aos acidentes geográficos, como o mar, os jardins,
sejam elas concernentes às próprias mulheres argelinas, encaradas pelo narrador (impregnado
pela ideologia patriarcal), singularmente, também como “propriedades” do país tomadas pelos
colonos. Nesse sentido, a obra de Daoud parece se colocar como uma resposta à de Camus
atravessada pelos argumentos colocados por Said, isto é, Daoud suplementa com a geografia e
a História da Argélia a obra do escritor francês naquilo que este teria “ocultado”, por exercer
através da cultura literária o projeto imperialista francês.
Contudo, é preciso remarcar que o narrador Daoudiano não o faz sem apresentar uma
subjetividade ambivalente. Ao mesmo tempo em que ele repele, condena e critica a
dominação colonial francesa, aceita e recebe para dialogar o francês (o intelectual francês que
é o narratário no texto) sobre o passado histórico do país tal como este está “transposto” ou
mesmo ocultado em O estrangeiro. Do mesmo modo, este mesmo intelectual francês não
impõe sua fala ao narrador Haroum, pelo contrário, ele está localizado na obra por Daoud
como alguém que em vez de exercer uma “teoria colonial” pela força e imposição de sua voz,
realiza um gesto de escuta para o que Haroum tem a dizer sobre “o caso Meursault”. O
narratário francês, então, reconhece não saber com todos os detalhes da história, mas o que
sabe apenas é de acordo com a versão exclusiva de Meursault e do escritor francês. Na obra, o
intelectual francês escuta, e o argelino vindo de uma família de pouca instrução fala. Eles
dialogam, mas a voz que se lê é apenas argelina, a qual ecoa, em certro sentido, a francesa, ao
respondê-la ou retomá-la para constituir-se em alguns momentos. Nesse formato estético da
narrativa em diálogo21, quando um argelino reconstrói a história da Argélia numa narrativa
sobre um “livro” francês que teria ocultado a geografia local e suas tensões históricas
coloniais, isso não é feito de modo simplista, binário, sem intersecções e sem ambivalências
como supôs categoricamente Said. As suposições de Said, assim, falam mais sobre o seu
próprio projeto crítico e método de encarar os sujeitos dentro do binômio “periferia x
metrópole” do que da propriedade das obras enquanto fenômenos estéticos que se prestam a
múltiplos olhares e possibilidades de leitura.
Na continuidade da sua abordagem ao longo do texto, o próximo passo de Said é
estender a declarada oposição de Camus em depoimentos políticos à independência Argelina
em analogia ao seu modus operandi ficcional, como se seus romances e contos defendessem
Assim, quase cinquenta anos após sua primeira edição, os romances de Camus são
lidos como parábola da condição humana. É verdade que Meursault mata um árabe,
mas esse árabe não tem nome e não parece ter história, muito menos pai e mãe; é
verdade que a peste também mata árabes em Oran, mas tampouco eles têm nome, ao
passo que Rieux e Tarrou são impelidos à ação. Naturalmente, podemos dizer que os
textos devem ser lidos pela riqueza que contêm, e não pelo que eventualmente tenha
sido excluído. Mas o que quero frisar é que encontramos em seus romances aquilo
que, antigamente, julgava-se ter sido eliminado – detalhes daquela conquista
imperial muito claramente francesa que começou em 1830, prosseguindo durante a
vida de Camus e projetando-se na composição de textos (1995, p. 228).
É por apresentar tal configuração que o crítico confere a Camus o título de escritor que
põe em prática um “gesto imperial” (1995, p. 229), minimizador da presença “árabe” em suas
composições. Não nomear o “árabe”, não conferir a ele uma identidade é, no seu
entendimento, uma seleção ficcional explicada pelo empreendimento de Camus de fazer a
França dominar o espaço narrativo argelino pela inferiorização da figura nativa e, nesse
campo, se inseriria
Nesta seção, apresento uma leitura particular de O estrangeiro. Depois do contato com a
reescritura criada por Kamel Daoud do “primeiro romance clássico do Pós-guerra”
(BARTHES, 2004), não há como ignorar que “o caso” do narrador Meursault convida a
crítica contemporânea a um reexame da obra camusiana a partir de novas perspectivas
teórico-críticas. É esta, pois, minha tarefa: reinterpretar O estrangeiro, uma vez que sua
paródia em romance (HUTCHEON, 1991), O caso Meursault (2013), assim sugere neste
século XXI.
Neste exercício, sustento que o romance paródico de Daoud indica ser de significativa
importância focalizar a “questão de gênero” na obra de Camus. Assim, ocupar-me-ei das
mulheres e dos homens criados como personas na obra, enfatizando a relação existente entre
“colonialidade e gênero” (LUGONES, 2008). É este aspecto, afirmo sem tanta surpresa, um
ponto um tanto negligenciado pela crítica tradicional do século XX. A questão de gênero em
O estrangeiro foi tão subalternizada quanto foi “o árabe” (assassinado a tiros) pela narrativa
de Meursault e pela história da recepção do romance de Camus.
Tal olhar sobre a problemática de gênero, contudo, é necessário remarcar, não se faz de
modo gratuito, simplesmente porque este seria um recorte de análise que o meu desejo
exclusivo de pesquisadora necessita levar adiante de modo individual, impondo-se ao texto.
Não é essa, de fato, a minha percepção. Na realidade, tal “recorte de gênero” (aqui o encaro
dessa forma: um “recorte possível”) se trata mais da iniciativa de ouvir um “pedido” de leitura
interpretativa feito pelas “pistas textuais” do romance O caso Meursault (2013). Como coloca
Inocência Mata (2016), cuja visão aqui já fora discutida no primeiro capítulo, este recorte se
interpõe como, em perspectiva pós-colonial, “outro lugar de adentramento” para a leitura
crítica do clássico camusiano, um lugar diverso daquele ocupado pela crítica do século XX
aqui discutida.
Como vem sendo exposto ao longo desta tese, na obra de Kamel Daoud, o narrador
Haroum escolhe personagens e fatos em O estrangeiro para desses falar sob sua ótica de
“homem” argelino que retoma a história de seu irmão (o qual, agora, em sua narrativa, recebe
um nome, antes inexistente: Moussa), assassinado por outro “homem”, um colono francês,
94
nomeado Meursault e revestido, no clássico camusiano, do poder de narrar como assassinou
“um árabe” e como foi julgado por “seu crime” pela justiça francesa. As palavras do narrador
argelino o fazem, defendo e explico neste trabalho, acionando pontos interligados a questões
que envolvem gênero e colonização. Haroum retoma a narrativa meursaultiana, da primeira
metade do século XX, para recontá-la, criticá-la, dizendo o que sente ao revisitá-la por meio
de sua memória. Nesse seu movimento de rememorizar o “lido” numa obra francesa (haveria,
metaficcionalmente, “o livro” escrito pelo autor Meursault na obra) e o “vivido” em família
argelina, destaco a presença daquilo que o texto de Daoud, com certa evidência, “seleciona” e
“combina” para montar o seu “como se” literário (ISER, 2002): representações de
masculinidades, certa misoginia e outras representações cristalizadas e patriarcais das
mulheres (francesas e argelinas), sacralização e culpabilização da figura materna.
A questão de gênero, pois, na obra de Kamel Daoud, se faz presente, a meu ver, na
maneira como o narrador reapresenta as figuras da “mãe árabe”, das mulheres de Orã e da
França, dos homens nativos e colonos, esses em jogo com o delinear das “masculinidades
hegemônicas” (MEDRADO & LYRA, 2008) na conjuntura particular das relações entre a
cultura argelina e a francesa sob as marcas da colonização. Recortar este aspecto de gênero e
colonialidade em O estrangeiro é, dessa maneira, investigar em Camus aquilo que Daoud põe
em crise e sob a luz de refletores: existiriam “bastidores” da narrativa de Meursault ignorados
por uma tradição de leitores que construíram uma imagem interpretativa de O estrangeiro de
modo eurocentrado. “Bastidores” que seriam passíveis, então, de uma revisão crítica, a qual
pode se colocar mais atenta às relações de gênero interseccionadas pela colonização francesa
na Argélia e seus atravessamentos pelas categorias de raça, classe, religiosidade.
Nessa conjuntura, faço minhas as palavras de Barthes em seu ensaio O estrangeiro:
romance solar (2004), já aqui comentado, o qual, junto ao artigo de Sartre, A explicação de O
estrangeiro (2005), funciona como uma das interpretações críticas mais repetidas em décadas
por professores, jornalistas, booktubers (blogueiros de crítica literária)24 ao se referirem, em
pleno século XXI, ao O estrangeiro, classificando-o como um romance “solar”, emblemático
da “filosofia do absurdo”: “a obra envelhece bem, amadurece, segue o tempo e põe à mostra,
pouco a pouco, poderes ocultos” (2004a, p. 96). Assim, tal como o autor de O rumor da
língua assinala, Camus teceu uma obra de “poderes ocultos”, de sentidos múltiplos, de modo
que, mesmo mediante várias e várias leituras, ela teria a faculdade de manter significados
camuflados.
24 Como um exemplo, cito o vídeo intitulado O estrangeiro (Albert Camus) do canal no Youtube de Tatiana
Feltrin, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9rmUWgX-6zg
95
Esta pesquisa procura, desse modo, nesta seção, demonstrar outros sentidos ainda pouco
visitados em O estrangeiro, sentidos, portanto, diversos dos produzidos por uma engrenagem
crítica já consolidada e posta em repetição até o presente momento com evidência e prestígio,
como se o texto de Camus estivesse limitado ao circuito da filosofia do Pós-guerra, à
plataforma de conhecimento eurocentrada e seus conflitos centrais articulados à falta de
sentido vivenciada pelo “homem absurdo” de meados do século XX. Estes sentidos novos
seriam sugeridos, por sua vez, por um olhar contemporâneo da ficção argelina atual, bastante
diferenciado do lugar da crítica tradicional; um olhar, em realidade, lançado pelo romance de
Kamel Daoud, que demanda nova investigação ao romance de Camus.
De certa forma, entretanto, desconfio que a obra camusiana teria apenas poderes
“ocultos”, mas, também, uma potência de significados “ocultada” pela ação de uma crítica e
seu lugar político inerente, como assim entende a natureza permanentemente política da
crítica literária do inglês Terry Eagleton (2003). A crítica em torno de O estrangeiro, sustento,
da maneira como se escreveu até aqui, jogou bem mais seus holofotes para o recorte particular
da figura masculina que narra o romance de Camus, interpretando-a de maneira limitada à sua
relação como o que era de interesse ocidental: a filosofia atida ao dito “homem absurdo’ do
Pós-guerra, conceituado por Camus em O mito de Sísifo (2018). Tal ponto de vista ignorou o
que O estrangeiro não exatamente ocultaria sobre as relações de gênero na Argélia colonial
do século XX, mas o que ele poderia revelar sobre estas relações. O que há na obra, mais do
que camuflagem, seriam revelações (um verdadeiro pôr a nu) de questões de gênero ligadas às
masculinidades e à maternidade (ambos representados em contexto colonial), que, agora,
neste trabalho, oito décadas após a publicação do romance, têm oportunidade de serem
interpretadas.
Nessa dinâmica de observação, é preciso atestar que se Sartre e Barthes, os críticos ainda
hoje mais replicados pelos estudos camusianos do século XXI, ignoraram a questão de gênero
latente no texto, para focalizar a “filosofia do absurdo”, convém também apontar que Edward
Said, ainda que “pai dos Estudos pós-coloniais”, igualmente, o fez, ao enfatizar, na sua leitura
de O estrangeiro, a relação imperialista que a França mantinha com o território argelino
durante a colonização sem mencionar a ligação estabelecida entre colonização, raça, divisão
do trabalho e patriarcado (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008). Na tentativa de provar que o
romance de Camus seria um artefato histórico do projeto de dominação da Argélia pelos
franceses, o qual seria partilhado intencionalmente pelo ficcionista, Said acabou
desconsiderando nas suas análises sobre as tensões políticas visíveis no texto, do mesmo
96
modo que os críticos franceses, as imagens construídas de homens e mulheres dentro da
lógica da colonização.
Nesse panorama crítico “bipolarizado” do século XX entre 1) a “filosofia ocidental do
Pós-guerra” e 2) em termos de Estudos Pós-colonias, a “cultura e o imperialismo”, os papéis
de gênero, que aqui pretendo demonstrar serem de significativa importância na trama
narrativa de Camus, podem ser vistos como “ocultados” pelo olhar de pensadores (todos
homens) que realizaram a interpretação crítica da obra como se esta fosse desprendida da
criação de personagens que, na ficção, representam corpos políticos (MIGNOLO, 2008), os
quais agregam sua parcela simbólica nas tensões sociais. Estes corpos ficcionais dialogam
com representações de gênero e sexualidade trançadas no real, em cotejo com os territórios
geográficos, e, dessa forma, precisam ser relidos e reinterpretados.
O gênero, como se pode observar a partir da discussão dos textos críticos de Sartre,
Barthes e Said apresentada no capítulo anterior, não se constituiu como um recorte de análise
significativo para esses pensadores, tidos como os nomes mais responsáveis pela construção
da imagem literária de O estrangeiro até a presente data. Contudo, nesta pesquisa, a questão
de gênero é defendida como uma lupa de análise fundamental para: a) se entender o texto
literário, através de uma “outra forma de adentramento”, como diz Inocência Matta (2016), e
b) para reconfigurar a obra de Camus na história de sua recepção, ampliando-se seus
significados.
A esta altura, o leitor que acompanha o desenvolvimento desta pesquisa já é capaz de
observar que opto, utilizando uma estratégia particular de iniciar as reflexões de cada seção,
por encabeçar a escrita pelo que convida à interpretação o texto (citado em trechos) do
escritor argelino Kamel Daoud. Assim procedo, porque este trabalho objetiva discutir,
principalmente, sobre como seu romance pertencente à francofonia literária periferizada, O
caso Meursault (2013), ressignifica O estrangeiro (1942), bem como suplementaria a história
de recepção de Camus redigida pela crítica literária do século XX. É evidente que a discussão
não deixa e nem poderia deixar de focalizar O estrangeiro, mas é importante que seja frisado
que esta tese não está apenas centrada no texto de Camus na condição de clássico e na
cristalização de seus sentidos operada pelas leituras canônicas. Na verdade, insisto em frisar,
procuro investigar, entre outros aspectos, como o romance de Camus, estabelecido como
clássico ocidental, pode ser relido, sobretudo, a partir do que sugerem os sentidos de uma obra
argelina contemporânea que se coloca como sua reescritura paródica (HUTCHEON, 1991),
tendo os seus principais significados interpostos na tradição da crítica mais tradicional presa à
97
questão filosófica do “absurdo”, marca do pensamento camusiano no Pós-guerra, revisitados e
ampliados. O intuito é que se teçam novos quadros semânticos, tanto a respeito do que se
pensa sobre o Ocidente quanto sobre a Argélia, a respeito dos sujeitos colonizadores e
colonizados, acerca, pois, desses sujeitos na sua condição de seres dotados de um corpo
político, sujeitos trançados, sendo assim, a partir de papéis de gênero, os quais se atravessam
também pela ideia de raça e território (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008).
Assim sendo, seguem-se dois trechos de O caso Meursault, para que fiquem visíveis as
razões que me conduzem a jogar a lupa desta análise para a questão de gênero na revisão
crítica que aqui estabeleço sobre O estrangeiro. Dois aspectos, assim, reforço, podem
exemplificar aquilo que me autoriza, no texto, a entender que focalizar gênero é uma
abordagem necessária na relação paródica entre os dois romances: a) a projeção da figura
materna como um elemento significativo da estruturação dos afetos que impulsionam as
narrativas e b) a sugestão da masculinidade e seus ritos patriarcais de honra e suas maneiras
particulares de interagir com as figura femininas como códigos ligados ao assassinato de
Moussa (“o árabe” assassinado por Meursault, assim chamado em Daoud). Esses dois
aspectos são ilustrados em dois excertos capitais para aqui se entender a importância da
abordagem de gênero no cotejo entre os dois romances em análise comparativa. Procedo,
apontando e comentando brevemente cada um dos segmentos da obra de Kamel Daoud.
Trecho primeiro: “Hoje, mamãe ainda está viva. Ela não fala mais, mas poderia contar
muitas coisas. Ao contrário de mim, que, de tanto remoer essa história, já quase nem me
lembro dela” (2013, p.9).
Aqui, se vê Haroum, narrador daoudiano, no primeiro período que inaugura seu discurso,
trazendo o exato oposto ao que Meursault escreve sobre a condição de sua mãe ao também
iniciar O estrangeiro: “Hoje mamãe morreu” (CAMUS, 2016, p.13). A mãe argelina no
romance paródico (HUTCHEON, 2001) de Daoud é retratada viva. Contudo, ainda que
opostamente a Meursault, Haroum repete a tendência do narrador camusiano de começar sua
fala pela figura da “mamãe”. Em Camus, tem-se uma mãe que abre a obra “já” morta, ao
passo que, em Daoud, a mãe vive “ainda” e tem memória. Destaco, assim, a evidência escrita
de que ambas as produções romanescas apoiam-se na maternidade para encabeçar o texto,
uma maternidade, por sua vez, assinalo, desnomeada nos dois casos, como o próprio “árabe”
morto em Camus. Nesse sentido, fica aparente que as mães nos dois autores circulam pelo
texto ficcional sem nomes próprios, como se as personagens maternas pertencessem a uma
categoria genérica, despersonalizada, sem subjetividade: “mamãe”.
98
Assinalo, dessa forma, que este signo da mãe, por apresentar tal recorrência e tais traços
genéricos, pede uma leitura mais atenta, já que foi tão pouco explorado pela crítica canônica.
A maternidade na obra camusiana se mostra subalternizada pela crítica, a qual se manteve
bipolarizada: 1) voltada em sua maior parte para a análise do protagonista Meursault e seus
conflitos emblemáticos de “homem absurdo”, como atestam os escritos de Sartre (2005) e
Barthes (2004a) ou 2) preocupada com o imperialismo da França na Argélia sem se ater em
especial às relações familiares da trama literária, como se exemplifica a abordagem de
Edward Said.
Há oito décadas, portanto, O estrangeiro foi publicado, tendo o narrador, um protagonista
homem, como marco zero de sua memória narrativa, a figura materna morta, trazendo-a na
frase de abertura deste romance que se tornou um clássico e referenciando-a insistentemente
ao longo da obra, mas pouco se problematizou e pouco ainda se problematiza esta figura
feminina da mãe e seus desdobramentos nos sentidos do texto. A crítica do século XX, como
se pôde verificar, se mostra falocentrada, por marginalizar de seus olhares a figura feminina
genitora do narrador, protagonizado, por sua vez, absolutamente, pelos leitores do século XX.
É, pois, tempo de revisitar o clássico, sob a perspectiva diversa e contemporânea do romance
de Kamel Daoud, que grita para que se revisite a maternidade na literatura de Camus, esta
escrita premiada e canonizada pela França e pelo campo literário de prestígio em geral. Tal
retorno precisa ser feito em cotejo com a imagem da mãe argelina do árabe sem nome
assassinado pelo colono-narrador da França, criado pelo “seu escritor” (francês, colono).
Proponho, neste sítio argumentativo, executar esta revisita crítica e com ela suplementar as
interpretações em torno de O estrangeiro, para que estas possam ir além das afirmações de
Barthes, Sartre e Said, alcançando novas perspectivas trançadas a uma interpretação
conectada aos Estudos pós-coloniais (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008), por sua vez,
numa perspectiva de abordagem feminista (ZINANI, 2015).
O trecho segundo traz a tentativa do narrador Haroum, pela memória, recontar como
vivenciou o dia do assassinato do seu irmão Moussa, “o árabe” atingido por cinco tiros vindos
das mãos de Meursault. Cito:
Então, nada de especial naquele dia. Nem mesmo mamãe, que adorava presságios e
era sensível aos espíritos, não detectara nada de anormal. ... Ninguém poderia
ouvir de tão longe um tiro, disparado mais lá para baixo da cidade, na beira do mar.
Mesmo na hora do diabo, duas da tarde no verão — a hora da sesta. Portanto, nada
de especial, senhor investigador. Claro que, mais tarde, pensei muito nisso, e, aos
poucos, entre as mil e uma versões de mamãe, os fragmentos da memória e as
intuições ainda frescas, acabei achando que devia haver uma versão mais verdadeira
que as outras. Não tenho certeza, mas em nossa casa, naquela época, pairava no ar
99
uma espécie de cheiro de rivalidade entre mulheres: mamãe e alguma outra. Alguém
que eu nunca vi, mas de quem Moussa trazia alguns traços na voz, nos olhos e na
maneira violenta com que rejeitava as insinuações de mamãe. Uma tensão de harém,
vamos dizer. Como um combate surdo entre um perfume estrangeiro e um cheiro de
cozinha muito familiar. No bairro, as mulheres eram todas “irmãs”. Um código de
honra impedia os amores interessantes, limitando o jogo da sedução às festas de
casamento ou a meros olhares enquanto as mulheres estendiam as roupas de cama
nas varandas. Para os jovens da idade de Moussa, eu suponho que as irmãs do bairro
ofereciam uma perspectiva de casamento quase incestuoso e sem grandes paixões.
Ora, entre o nosso mundo e o dos roumis, mais lá embaixo, nos bairros franceses,
circulavam às vezes algumas argelinas usando saia e com seios rígidos, Marias ou
Fátimas inquietas que nós, garotos, chamávamos entre nós de putas e apedrejávamos
com os olhos. Eram presas fascinantes, que podiam prometer o prazer do amor sem
a fatalidade do casamento. Essas mulheres costumavam provocar amores violentos e
rivalidades odiosas. O seu escritor conta um pouco disso. Mas a versão dele é
injusta, pois a tal mulher invisível não era a irmã de Moussa. Talvez fosse, no fim
das contas, uma de suas paixões. Eu sempre considerei que todo o malentendido
provém daí: um crime filosófico atribuído a algo que, de fato, nunca passou de um
acerto de contas que acabou degenerando, no qual Moussa, querendo salvar a honra
da moça, aplicou uma surra no seu herói, e este, para se defender, abateu-o na praia
friamente. Nos bairros populares de Argel, havia, com efeito, esse sentido aguçado e
grotesco da honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de perder a terra, os
poços e o gado, só lhes sobraram as suas mulheres (2013, p.29).
Aqui, se observam dois pontos: a) a representação das mulheres na Argélia colonial
nas figuras da mãe e das mulheres da cidade, vistas como uma mistura entre irmãs, namoradas
e prostitutas; b) a necessidade de se repensar a versão do assassinato de Moussa contada por
Meursault. Daoud a associa a uma disputa pela honra no interior das performances de
masculinidade(s) e poder face às tensões entre o homem colonizado e o colonizador. Nesse
sentido, o texto de Daoud convida à revisão de O estrangeiro, sugerindo uma procura de
pistas sobre a relação entre o crime e as masculinidades hegemonizadas no texto camusiano, o
que, por seu turno, sugere que, além do conceito filosófico de “absurdo” (Sartre, 2005;
Barthes, 2004) e do “sol” (Barthes, 2004) como mobilizadores de um Meursault “vítima” das
condições de mundo (sociais ou simbólico-climáticas), pode haver novas portas para entradas
de sentidos ligadas à questão de gênero. Aceito o convite da obra de Daoud, publicada em
2013, e volto ao romance francês, de 1942, para demonstrar como o lado assassino de
Meursault ganha nova perspectiva ao ser reinterpretado sob novas bases de uma crítica
feminista (ZINANI; 2015) e decolonial (LUGONES, 2008).
Proponho a justificada revisão de O estrangeiro como uma reflexão que dialoga com o
que vem se constituindo desde o fim do século XIX como uma perspectiva de crítica literária
atrelada ao movimento feminista, a qual se volta, sobretudo, para questionar o papel das
100
mulheres enquanto personas subalternizadas nas suas relações com teias do campo literário.
Nesse sentido, é importante demarcar que compartilho da visão interposta por Cecil Zinani
(2015):
Isto significa dizer que uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente
mais “verdadeira” ou produz melhores concepções da realidade, mas certamente
apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e
questionamentos alternativos. Em outras palavras, a vantagem do conhecimento
gerado por grupos marginalizados não se refere ao status de verdade das respostas
obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou
significativas (LAWSON, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar
visível aquilo que é invisível ou de subverter questões tradicionais. (HAMLIN,
2008, p. 78)
Tendo as ressalvas acima em mente, o que seria passível de observação no que tange à
interpretação de O estrangeiro, neste trabalho, contudo, é que, em especial, os estudiosos
camusianos renomados, reconhecidos como homens (não como mulheres), como Sartre,
Barthes e Said, tidos como verdadeiros ícones do campo literário, ligados a correntes críticas
e a períodos diversos do século XX, de qualquer forma, não tornaram a questão de gênero um
objeto de discussão em evidência. Dessa mesma maneira, dentro do universo hegemônico da
crítica tradicional, perpetuaram um protagonismo da figura masculina que narra O
estrangeiro. Sobretudo, estes autores reproduziram a imagem de uma masculinidade
“naturalizada” e “invisível” por ser esta considerada, na cultura patriarcal que molda a
plataforma de conhecimento ocidental, como “norma”.
Por tais traços, até mesmo passíveis de serem verificados em autoras do porte de
Susan Sontag (2020), considero importante perceber a crítica camusiana do século XX como
uma crítica de aspectos “patriarcais e falocentrados”, tendo em vista os objetos que
privilegiaram em suas análises, ligados estes a uma argumentação que marginaliza o jogo
relacional entre homens e mulheres, o qual, como será demonstrado adiante, assume aspectos
simbólicos relevantes na tessitura da obra.
Utilizando as terminologias de María Lugones (2008), o pensamento teórico dos
autores obedeceu à ordem “engrendrada” de produção de saber dentro da lógica da
modernidade colonial, a qual impõe o masculino como centro normativo da produção e
circulação do conhecimento. Discutirei o pensamento da autora mais adiante, que se mostra
significativo para o desenrolar da revisão analítica de O estrangeiro no século XXI, sob a
108
perspectiva de um feminismo contra-hegemônico, ou seja, crítico às questões centradas
apenas a mulheres brancas e ocidentais e colaborativo com o protagonismo das ditas
“mulheres de cor”, figuras subalternizadas pelo entrecruzar das ficções de raça e gênero na
conjuntura de diversos territórios geográficos periféricos.
Barthes, Sartre, Said e também uma leva de críticos contemporâneos que os
reproduzem em seus estudos, sejam homens ou mesmo mulheres (desconectadas da
abordagem feminista, trabalhando ainda sob uma perspectiva de produção e circulação de
saber sob o signo da colonialidade), não estudaram ou deixam de estudar a questão de gênero
no texto camusiano, a qual recebe, a partir de então, nesta pesquisa, um recorte evidenciado,
destacado como um “nó” essencial para se compreender seus significados e a própria figura
masculina do narrador Meursault, que constrói, a partir de seu olhar vindo de um corpo
político específico (MIGNOLO, 2008), identificado com o gênero masculino, atravessado por
questões de classe e geografia, a representação das outras figuras masculinas e femininas, a
representação do lugar, da justiça, da sociedade em seu tempo histórico dentro da ficção
francesa.
É necessário sublinhar, em contrapartida e novamente, que assim entendo a relevância
da questão de gênero e da colonialidade em O estrangeiro, não porque estaria eu, unicamente
e simplesmente, como pesquisadora, no grupo de mulheres subalternizadas da periferia Brasil,
me identificando com as personas subalternizadas na ficção estudada por uma crítica
falocentrada. Na realidade, sustento que executo tal leitura, com tal desenho, por me
reconhecer, sim, situada no grupo das pesquisadoras mulheres latino-americanas, mas
adicionalmente e principalmente, porque, de modo particular, ao entrar em contato com o
romance O caso Meursault, de Kamel Daoud, escritor francófono também periferizado no
campo da Literatura Ocidental, noto, enquanto crítica literária e estudiosa da área, que o que
esta obra sinaliza em suas linhas, em suas pistas textuais ficcionais, aqui citadas acima em
trecho robusto é a necessidade de se encontrar novas versões para se entender o clássico de
Camus, bem como para se refletir sobre as relações França-Argélia antes e após a
independência argelina, considerando a pauta de gênero. Vejo que a obra de Daoud, assim,
demanda uma abordagem de leitura para si própria, a partir das chaves das masculinidades
hegemônicas, da maternidade e das representações das diversas figuras femininas aparentes
na obra, das chaves que focalizam as mulheres e os demais desdobramentos dos estudos de
gênero, de modo que tal percepção de minha parte brota, sobretudo, insisto, das possibilidades
109
oferecidas pelo modelo analítico da crítica feminista e do feminismo decolonial tal como aqui
venho os concebendo nestas linhas.
Reafirmo, contudo, uma observação: não se exclui a possibilidade de que, hoje, uma
crítica escrita sobre O estrangeiro por uma mulher possa reproduzir de algum modo
falocentrismo (como se escritoras mulheres fossem atualmente completamente imunes ao
pensamento patriarcal imposto pela colonialidade do saber eurocêntrico), tendo em vista sua
hegemonia na tradição crítica do século XX em torno da obra. Uma crítica de autoria
feminina sob as rédeas de uma tradição intelectual patriarcal nos estudos literários, na
verdade, pode ser vista como algo ainda comum, não sendo exclusiva de um nome como
Susan Sontag (2020) em um ensaio datado de 1965, produzido a partir da conjuntura daquele
período. Não é esta, entretanto, a questão aqui posta em relevo. O que proponho neste espaço
como algo significativo e necessário é justamente o pensamento de que uma crítica escrita por
mulheres ou mesmo por homens, se norteada politicamente pelos Estudos culturais numa
perspectiva de gênero e descolonização do imaginário, e se consciente de que a própria crítica
é também política, por partir de sujeitos políticos (EAGLETON, 2003), pode vir a inserir
certa quebra no ciclo patriarcal eurocentrado que se institui ainda atualmente em torno da obra
camusiana. Este é o meu projeto de leitura teórica neste trabalho: a partir do texto e de suas
pistas (ISER, 1979), estabelecer um contraponto a uma tradição de leitura que se construiu em
uma silhueta falocentrada, de modo que entendo que o faço pela aliança dessas duas razões
que aqui venho apontando, mas que podem, a meu ver, ser entendidas, e ganham se
entendidas de modo conjunto:
a) reconheço-me como uma pesquisadora identificada com a subalternidade delegada
às personagens mulheres na obra de Camus por uma tradição crítica masculina que teceu
análises falocentradas e isso deixa marcas no meu modo subjetivo de visualizar as questões
interpretativas;
b) entendo, como pensadora e produtora de crítica literária, que as ferramentas da
Crítica feminista e do pensamento de intelectuais decoloniais, voltadas para a
problematização dos papéis de gênero e colonialidade, em muito atendem ao que é solicitado
pelas obras em estudo, como atestado no trecho citado acima do romance de Kamel Daoud
(2013) e como será elucidado adiante neste capítulo na revisão crítica da obra de Camus
(2016).
110
4.1.2 A crítica decolonial latino-americana e o feminismo decolonial
Inicialmente, reforço o que foi discutido no primeiro capítulo, afirmando que esta é uma
pesquisa inserida dentro da corrente de Estudos Culturais e Pós-coloniais, a qual procura reler
O estrangeiro a partir desse ponto de vista particular num vasto campo de possibilidades de
investigação crítica de textos literários existente. Nesse sentido, atenta ao romance camusiano,
tomo como caminho de análise evidenciar que sua diegese ocorre no espaço narrativo
argelino, sendo o tempo histórico do texto o período de uma Argélia colonial. Seguindo
minha linha de raciocínio, procurando ler a obra diversamente do modo executado por Sartre
(2005) e Barthes (2004a), que buscaram o universal ocidental centrado no “homem absurdo”
(Meursault) que narra o discurso da história. Coloco-me de modo mais próximo ao recorte
analítico da geografia colonial e suas implicações na trama, como fez Said, contudo, opto por
me diferenciar do autor palestino em pontos estratégicos, os quais estariam conectados ao
seguinte aspecto: julgo ser necessário também focalizar O estrangeiro, pensando a
colonização no espaço argelino, mas indo além – investigando os personagens nas suas
condições de representação de gênero, raça e sexualidade naquele tempo e naquela geografia.
Dessa forma, a pesquisa “abre a obra” por uma “nova porta”, encarando um denso e
significativo campo de sentidos que não tem sido estudado com o devido cuidado em oito
décadas de publicação do “clássico do Pós-guerra” (BARTHES, 2004).
Interponho este caminho analítico por, além do que discuti acima sobre a Crítica
feminista, considero de relevância teórica dialogar com o pensamento decolonial de
intelectuais latino-americanos que enxergaram na relação Ocidente-América padrões de
dinâmicas políticas que colocam a Europa em posição de dominação econômica e cultural no
mundo: Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2008), María Lugones (2008).
O pensamento de tais intelectuais, embora focalize a relação
Europa x América Latina, pode também funcionar como um apoio teórico para se pensar as
relações coloniais na geografia argelina, ainda que esta disponha, logicamente, de suas
peculiaridades locais no Norte da África colonizado pela França em período historicamente
específico.
Anibal Quijano, em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina” (2005),
fala em uma nova ordem de capitalismo mundial introjetada a partir das relações europeias
estabelecidas no contexto de expansão colonial com a América. Esta ordem se apoiou na
noção de “modernidade técnica”, no controle da construção e circulação de conhecimento e
111
no disciplinar dos corpos pela divisão do trabalho alicerçada no racismo e no regime
patriarcal. Cito o intelectual peruano em sua reflexão sobre como a invasão da América funda
outra ordem mundial, entendida como um “sistema-mundo” relacionado a esses quatro pontos
específicos:
Los quatro lados del cuadrado o domineos de control y gestion de sociedades non-
europeas y a partir de la primera metade del siglo XX, no-estado-unidenses, están
112
estrechamente relacionados de manera tal que cada uno implica a todo los otros. De
nuevo, em distintas maneras e intensidades, según la época histórica y la región
geográfica de expansion e interferencia.
Ahora bien, en las cuatro esferas de la matriz colonial, el lado oscuro de la retórica
de la modernidad, es lo enunciado, lo que se dice y se hace en cada una de esas
áreas en nombre del progreso, que legitima la guerra (simbólica y material) a los
obstáculo que dificulten o se opongan a la salvación y al progreso. En el centro del
cuadrado aparecen los dos polos o los dos pilares que sostienen la enunciación. En
efecto, ¿cuáles son las agencias (instituciones y personas) que legitiman, mediante
el conocimiento, tanto la retórica de la modernidad como la lógica de colonialidad
que se ejerce mediante la matriz de poder? El control del conocimiento en el
Renacimiento europeo y en la España renacentista, estaba en manos de hombres,
cristianos blancos (católicos en el sur, protestantes en el norte), conservadores en
materia de género y sexualidad. De tal manera que tanto la retórica de modernidad y
progreso como la lógica de colonialidad y control, están sostenidas en un aparato
cognoscitivo que es patriarcal (norma las relaciones de género y las relaciones
sexuales), es racista (defiende la cristiandad frente a otras religiones, la pureza de
sangre tanto en materia religiosa como biológica) (2008, p. 11).
No trecho, é visível que Mignolo aponta o patriarcado e o racismo (atravessado pela
moral cristã) como as duas bases que são fortalecidas no exercício do poder europeu sobre as
colônias espanholas na América. Esses dois pilares semelhantemente são preponderantes na
atmosfera colonial que a) tanto externamente circunda o romance camusiano na sua relação
com a Crítica literária ocidental quanto b) é interiormente encontrada no discurso narrado por
Meursault e sua história. No primeiro caso, já assinalei que as críticas europeias de Barthes
(2004a) e Sartre (2005) se atêm eurocentricamente ao narrador colonizador e suas angústias
existenciais diante da França no Pós-guerra, circunscrevendo, como também notificou
Edward Said em Cultura e imperialismo (1993), os limites dos sentidos do romance a dores e
embates filosofais ocidentais, desconsiderando a questão de gênero latente no texto, sobretudo
na relação entre o narrador e as mulheres plurais da obra. No segundo caso, racismo,
patriarcado e moral cristã estão na base de ações como o assassinato do “árabe”, a construção
das personagens da mãe e da namorada, a autoridade da justiça francesa sentenciando crime e
culpa de modo eurocentrado e sugestionado pelo cristianismo e pelos valores da família
burguesa.
Desse modo, o conhecimento tecido em torno da obra nas críticas aqui visitadas está
sob o jugo da “Matriz colonial do poder” (QUIJANO, 2005), inclusive, na própria crítica
decolonial de Edward Said (1995), pelo fato específico de que seu ensaio sobre O estrangeiro
se mantém de acordo com o padrão patriarcal. Explico: o autor não considera a questão de
gênero no interior da “Matriz colonial do poder” e seus pilares presentes na conjuntura da
obra, centrando-se nas figuras masculinas sem relacioná-las ao jugo patriarcal sobre as
mulheres. É como se o autor invisibilizasse também o gênero feminino em sua crítica,
113
reforçando as bases de uma crítica patriarcal, modelo de conhecimento de mundo
eurocêntrico, como aponta Quijano (2008). Da mesma forma, o discurso de Meursault
também reflete a dominação masculina, branca, colonial da retórica da modernidade
ocidental.
Como um romance centralizado numa história que se passa numa colônia francesa e é
narrada por um homem na posição de dominação em relação ao contexto colonial (francês), a
“Matriz colonial do poder” passeia pela vida dos personagens e pelo discurso do narrador.
Tem-se uma obra com um narrador que, sim, dentre tantos adjetivos que pode assumir na
ficção, é um sujeito colono a contar que sua mãe morre e que, em sequência, protagoniza
ações entendidas na ordem cristã e burguesa como moralmente incoerentes e reprováveis:
namorar uma moça francesa no dia seguinte ao enterro da sua genitora. O personagem, ainda,
se mostra inserido nos ritos patriarcais ao ser solidário a um “amigo” também europeu em
violentar uma moça argelina apresentada nebulosamente entre a condição de prostituta e
namorada desse seu amigo, chegando finalmente a matar um homem nativo, “um árabe”, sem
sequer nomeá-lo ou apresentar uma razão explicitamente inteligível para o crime, além da
interferência do sol sobre sua conduta. Por fim, este assassinato não se apresenta como o
motivo real de sua condenação à morte pela autoridade da justiça francesa na Argélia, de
modo que a sentença de culpa se dá muito mais pelo personagem não se mostrar cristão e bom
filho, conforme os valores da família burguesa ocidental. Tal conjuntura aponta no texto os
pilares indicados por Quijano e Mignolo no sistema colonial mundial europeu: patriarcado,
racismo, controle moral, os quais, faz-se mais do que em tempo, merecem ser destacados na
engrenagem do romance camusiano como uma maneira de apontar novos significados para as
relações entre literatura e sociedade no que tange à obra.
Adiante, ao selecionar trechos específicos do romance para análise, pretendo elucidar
de modo mais detalhado as afirmações acima, mas, antes, é preciso, ainda, apontar as
decisivas observações críticas que María Lugones faz sobre o pensamento de Quijano quanto
à sua generalidade ao desenhar o pilar de gênero e patriarcado em seu conceito de “Matriz
colonial do poder”. Atenho-me especificamente ao artigo da pensadora intitulado
“Colonialidad y Gênero” (2008), no qual declara ter como objetivo investigar a intersecção
entre raça, classe e sexualidade, a fim de problematizar a indiferença que homens, mesmo que
sejam estes figuras subalternizadas, não ocidentais, vítimas de dominação colonial
eurocêntrica, racista e violadora de direitos trabalhistas na ordem capitalista global,
demonstram quanto à persistência da violência contra “mujeres de color” (2008, p. 75). Estas
114
mulheres seriam identificadas como figuras femininas periféricas, subalternizadas e vítimas
de múltiplas dominações no contexto colonial, como mulheres chicanas, indígenas, negras,
pobres e todas aquelas que se ligam a formas de exploração, violência e estigmas nesse
contexto; mulheres que são vistas pela autora, ainda, como protagonistas de um feminismo
decolonial por oposição a um feminismo hegemônico atido a pautas da branquitude ocidental.
A autora afirma que Quijano, em sua teoria, a partir do lugar de homem
colonizado/subalternizado que ocupa, (mesmo enquanto criador do que ela julga ser um
marco analítico para se repensar a própria dinâmica da colonização), termina,
contraditoriamente, por reproduzir em seu pensamento o padrão eurocentrado e patriarcal de
um tipo específico de sexualidade: a heterossexual, atendo-se também à questão de gênero
focalizada na branquitude, perdendo, pois, a oportunidade de pensar a “Matriz colonial do
poder” segundo uma perspectiva realmente diversa da produção e circulação do saber
disciplinador do sistema colonial europeu, a qual constrói normativamente a categoria de sexo
numa perspectiva biologizante e binarista. Quijano, assim, se afasta de uma abordagem
decolonial solidária às tantas diversidades possíveis envolvidas nas das relações coloniais de
poder e disputas. Diz Lugones:
Por lo tanto, para Quijano, las luchas por el control del «acceso sexual, sus recursos
y productos» definen el ámbito del sexo/género y, están organizadas por los ejes de
la colonialidad y de la modernidad. Este análisis de la construcción
moderna/colonial del género y su alcance es limitado. La mirada de Quijano
presupone una compresión patriarcal y heterosexual de las disputas por el control del
sexo y sus recursos y productos. Quijano acepta el entendimiento capitalista,
eurocentrado y global de género. El marco de análisis, en tanto capitalista,
eurocentrado y global, vela las maneras en que las mujeres colonizadas, no-blancas,
fueron subordinadas y desprovistas de poder. El carácter heterosexual y patriarcal de
las relaciones sociales puede ser percibido como opresivo al desenmascarar las
presuposiciones de este marco analítico.
Tanto el dimorfismo biológico, el heterosexualismo, como el patriarcado son
característicos de lo que llamo el lado claro/visible de la organización
colonial/moderna del género. El dimorfismo biológico, la dicotomía hombre/mujer,
el heterosexualismo, y el patriarcado están inscriptos con mayúsculas, y
hegemónicamente en el significado mismo del género. Quijano no ha tomado
conciencia de su propia aceptación del significado hegemónico del género. Al
incluir estos elementos en el análisis de la colonialidad del poder trato de expandir y
complicar el enfoque de Quijano que considero central a lo que llamo el sistema de
género moderno/colonial (2008, p. 78).
Havendo, portanto, detectado a tendência de se seguir o padrão hegemônico que molda
mesmo o pensamento de Quijano, intelectual reconhecido pela autora como divisor de águas
no entendimento da interseccionalidade que define as relações de dominação eurocentradas,
Lugones propõe a sua reflexão particular, como intelectual e mulher subalternizada na
América latina, para evitar categorizações hegemônicas no tratamento da luta contra a “Matriz
115
colonial do poder”. Ela entende que a própria ideia de intersecção, dentro do pensamento de
intelectuais decoloniais como Quijano, para se pensar a subalternização, tem se mostrado
baseada no cruzar de categorias fixas, pré-moldadas numa origem europeia normativa:
mulheres (entendidas hegemonicamente como mulheres brancas) e negros (entendidos
majoritariamente como homens heterossexuais), o que a seu ver merece uma revisão. Nesse
sentido, observa a intelectual argentina:
25 A noção de “transculturação” é colhida no pensamento de Walter (2015), contudo gostaria de remarcar que a
ideia de pensar Meursault como um sujeito transculturado brotou da leitura feita do artigo “Budapeste: as
fraturas identitárias da ficção”, de Sônia Ramalho, no qual a autora analisa o protagonista José Costa como
personagem atravessado pelas diferentes culturas com as quais conviveu, sendo, pois, um caso de identidade
transcultural no romance de Chico Buarque. Vide: RAMALHO, Sônia. Budapeste: as fraturas identitárias da
ficção. In: As fraturas identitárias da ficção. Recife: Editora UFPE, 2014, p. 15-38.
117
latino-americano, homem, que ainda sucumbe ao modelo eurocêntrico de produção de saberes
ao denunciá-lo enquanto violência colonial:
Quijano parece dar por sentado que la disputa por el control del sexo es una disputa
entre hombres, sostenida alrededor del control, por parte de los hombres, sobre
recursos que son pensados como femeninos. Los hombres tampoco no parecen ser
entendidos como «recursos» en los encuentros sexuales. Y no parece, tampoco, que
las mujeres disputen ningún control sobre el acceso sexual. Las diferencias se
piensan en los mismos términos con los que la sociedad lee la biología reproductiva
(2008, p. 84).
O conhecimento, como se verifica na percepção da crítica decolonial e feminista de
Lugones, é construído por homens, centralizado em homens em posição de domínio,
repassado por suas vozes dominantes. Nesse movimento de hegemonia patriarcal, são
periferizadas da crítica as diversidades presentes nas interseccionalidades dentro da categoria
socialmente construída de sexo, dada como biológica. É importante, nesse sentido, trazer aqui
a revisão crítica que Lugones interpõe sobre a divisão biológica binária dos seres humanos em
sexos. É desta revisão da autora argentina que se extrai, nesta tese em Teoria da Literatura,
situada em um programa de pós-graduação brasileiro, aquilo que se entende como “gênero”,
enquanto se discute a questão numa obra literária clássica francesa em contexto de produção
colonial, escrita por um escritor ocidental premiado pelo Nobel de Literatura, partindo-se, é
importante destacar, do que demanda sua reescritura paródica da francofonia periférica
(HUTCHEON, 1991) redigida por um autor argelino, o qual dialoga, por sua vez, também
com o patriarcado magrebino. Todos os sujeitos envolvidos na autoria literária são entendidos
como homens dentro da demarcação social do binarismo relacional homem x mulher e
constroem narradores masculinos. Nesse sentido, o que é o gênero na conjuntura do “sistema
de gênero colonial/moderno” para Lugones é o ponto significativo da base teórica desta
investigação.
Lugones inicia sua reflexão trazendo a figura marginalizada das pessoas ditas
“intersexuais”. Ela atenta para o fato de que a lei na ordem colonial não compreende esses
sujeitos como de Direitos e aponta a existência de uma normatização para que tais indivíduos
se definam na ordem binária como homens ou como mulheres. Dessa observação, a argentina
conclui que a ordem binária, instituída por instrumentos de autoridade e pela plataforma
científica ocidental, se faz útil à divisão do trabalho que sustenta o regime colonial capitalista
e alicerçado na ideia de raça. Nesse sentido, diferente da visão limitada e “engenerizada”
(LUGONES, 2008, p. 83) de Quijano, e tendo como referência os trabalhos de Paula Gunn
Allen, ela afirma que o conceito de gênero, em si, é uma criação (não um dado natural) que
alicerça o sistema global de colonização europeia cujo padrão heterossexual e branco, para
118
que, assim, se explorem as forças de trabalho dos corpos na ordem econômica. Tal noção de
gênero é responsável pelas formas de se reconhecer, categorizar, disciplinar pessoas e suas
relações, de produzir conhecimento sobre os sujeitos. Diz: “tanto la producción del
conocimiento como todos los niveles de la concepción de la realidad se hallan
‘engenerizados’” (2008, p. 92). Sobre as contrubuições de Allen, ela remarca:
A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos
elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar
um todo indissolúvel, do qual se pode dizer, como Fausto do Macrocosmos, que
tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra (2006, p. 15).
Mais adiante, na obra, que, unanimemente, é de visita praticamente incontornável para
todo estudioso atento da Literatura, Candido explica a dialética entre “forma e conteúdo”, a
qual marca a sua escolha metodológica de se pensar, bem como se fazer crítica literária, e que
também é, aqui, entendida como uma das mais significativas contribuições do mestre ao modo
de se interpretar a ficção literária, tomada, agora, portanto, como referência analítica para a
leitura de O estrangeiro. Cito:
é o mais pop(ular) dos livros de Albert Camus. Tão pop, que rendeu até música do
grupo The cure (“Killing an Arab”). Tão popular porque à parte ser a seca narrativa
das desventuras de Meursault, condenado à morte por matar um árabe a troco de
nada, é também a narrativa das desventuras de um homem do século XX. Uma
espécie de autobiografia de todo mundo (DAPIEVE, 2016).
É verificável que o autor entende que Meursault mataria um argelino (ao qual não
confere um nome) pela seguinte razão: “a troco de nada”. A sua interpretação age como se
não houvesse ao menos uma única ação do personagem encadeada à outra na trama que fosse
capaz de conduzir aos tiros de um homem francês em outro homem (particularmente, não
outro ocidental, mas um árabe, numa praia da Argélia colonial). Desse modo, a impressão que
o jornalista passa é a de que Meursault pega o revolver de Raymond e atira por “nada”,
porque nada faria sentido num universo existencial de um europeu em crise filosófica no Pós-
guerra, centralizando a interpretação da motivação criminosa nessa ótica que se atém ao
diálogo com o escopo filosófico do Pós-guerra.
Essa leitura disposta no corpo material, repito, de uma das edições mais vendidas do
romance no Brasil, criada, como visível, em “looping” repetitivo, a partir das visões de Sartre
(2005) e Barthes (2004a), e que se passa praticamente como uma daquelas faixas musicais
pop, “marteladas” insistentemente pelas rádios, se constitui mais como uma maneira de
“reproduzir” a ideia de que a teoria filosófica que Camus desenvolve em O mito de Sísifo de
“homem absurdo” está entrelaçada à sua produção romanesca, do que provém de uma análise
que também considere com atenção a narrativa literária, a partir de seu nó estrutural formal: o
texto. Depieve, focado ao componente filosófico, não se atém tanto à trama em jogo com a
incidência do componente social, que, como explicou Candido em citação acima (2006),
“externamente” lhe confere elementos “internos” de composição. O brasileiro termina,
portanto, por, novamente, apontar a primazia da filosofia de Camus sobre a própria literatura
126
de Camus e, nessa escolha procedimental, a narrativa literária, em seu sentido mais clássico e
teórico (ARISTÓTELES, 2005), concebida como concatenada ao encadeamento de ações a
compor a trama e o destino dos personagens, fica em segundo plano na orelha do produto
livro a ser distribuído e vendido. Insistir na tradição filosófica da cultura eurocentrada, assim,
como chave de interpretação principal para as motivações dos atos dos personagens
romanescos é o que faz essa vertente de crítica jornalística brasileira sobre O estrangeiro,
reproduzir, pois, sua subalternidade à colonialidade do saber de que falam Quijano e Lander
(2005). A crítica, dessa maneira, assume desenhos bastante subservientes e pouco
suplementar a um “já dito” ocidental sobre Camus, sendo, então, necessário e interessante,
pela perspectiva de alargamento de suas possibilidades interpretativas, analisar a obra
francesa em diálogo com novos ângulos, partindo para outros “adentramentos” de sentidos
que questionem a “biblioteca colonial”, para utilizar termos de Inocência Mata (2016),
referência teórico-crítica já posta no capítulo primeiro deste trabalho.
Uma forma de pensar O estrangeiro para além de uma repetição crítica de uma
filosofia ocidental passaria por, com o alicerce das teorias da narrativa, desde Aristóteles às
terminologias do século XX cunhadas pelos Formalistas russos (LIMA, ANO), revisar os
sentidos do romance e retirá-los do lugar de petrificação em que se instalaram, ao se lançar
mão, também, da crítica feminista e do feminismo decolonial. Tal iniciativa metodológica
revela o paradoxo inevitável do trajeto científico contra-hegemônico contemporâneo em que
este trabalho se insere: partir da plataforma científica ocidental, isto é, utilizar alguns de seus
instrumentos teóricos basilares, para questioná-la como centro absoluto de produção de saber,
única fonte de possibilidades investigativas no campo da ciência da teoria literária.
No que concerne ao prefácio na edição da Record, do jornalista Manuel da Costa
Pinto, também autor do livro Albert Camus: Um elogio do ensaio e organizador e tradutor da
antologia de ensaios camusianos A inteligência e o Cadafalso, pode-se sublinhar que, já se
levando em consideração seu título “O estrangeiro, tragédia solar”, faz-se visível mais um
“elogio” à crítica francesa do século XX em torno do romance, igualando-se, como fez
Roland Barthes em “O estrangeiro: romance solar” (2004), a trajetória do personagem
Meursault a um resultado da incidência do Sol e de sua simbologia mítica. Contudo, um
trecho em especial do prefácio de Costa Pinto merece destaque pela possibilidade que oferece
de se refletir, além do que sua própria análise argumenta em geral, sobre a obra literária na
condição de objeto estético. O excerto é, decerto, uma “fenda” em sua conjuntura crítica, a
qual, reitero, não se distancia muito de uma repetição da abordagem francesa, por se encontrar
127
limitada a destacar em Camus um estilo narrativo que se particularizaria por ser dialógico
com o mito. É o que fica evidente em suas palavras: “A oscilação entre o natural e o
inverossímil define, portanto, a literatura de Camus e nos auxilia a ver no herói trágico uma
entidade mítica nas vestes do homem comum” (2016, p. 9). Transcrevo, enfim, o tal trecho
excepcional, que insere uma quebra na linha geral da crítica do jornalista brasileiro,
“assombrada” pelo Sol e que se mostra ilustrativa de certa “colonialidade do saber”
(QUIJANO, 2008) a repousar sobre a plataforma crítica nacional:
Um enredo exige uma transformação. Deve haver uma situação inicial, uma
mudança envolvendo algum tipo de virada e uma resolução que marque a mudança
como sendo significativa. ...Uma mera sequência de acontecimentos não faz uma
história. Deve haver um final que se relacione com o começo – de acordo com
alguns teóricos, um final que indique o que aconteceu com o desejo que levou aos
acontecimentos que a história narra (1999, p. 86).
Nesse ângulo, o final da obra de Camus revela um Meursault condedado à execução, evento
que, em si, é a sequência que resulta de um início do contar em que o personagem revela que
recebe a notícia de morte de sua mãe e, em seguida, que retoma sua rotina, cometendo um
assassinato de “um árabe”, seguindo, então, para julgamento. O evento julgamento, como é
notável, é o resultado do evento transformador crime, fechando o ciclo narrativo ao conduzir
o protagonista ao desfecho da condenação. Fica nítido que sem o crime, não seria gerado o
final da história, o qual, para Culler, é a seta que move o desejo da leitura. Para o americano,
uma produção é entendida como competente narrativamente também quando não provoca no
133
leitor o questionamento “E daí?”: “Os contadores de história estão sempre evitando a questão
potencial, ‘E daí?’(CULLER, 1999, p. 92).
Em suma, no universo de O estrangeiro, o crime é, dessa maneira, o ponto que move o
personagem para seu final e que transforma a história em narrável, dotando-a de interesse por
parte dos espectadores. O crime, pelo peso que assume na obra, no papel de elemento
propulsor da trama, merece uma leitura atenta, vigilante de suas possibilidades de
significados. Há um curso de eventos que precisam, pois, se suceder para que a narrativa seja
encarada como tal e não malogre a empresa do romancista com um “E daí?”, por parte dos
leitores. Se Meursault fosse ao enterro da mãe e apenas em seguida arranjasse uma amante,
continuando como de costume a trabalhar no escritório sem que nada além de transformador
fosse vivenciado, O estrangeiro não seria um “clássico do Pós-Guerra” (BARTHES, 2004a),
simplesmente porque restaria a pergunta “e daí?” Surgiria a inquietação de que deveria haver
algo mais a ser relatado para que o relato viesse a fazer na condição de uma história para ser
ouvida e refletida com interesse.
Logo, matar, ato de violência extrema contra a vida, é um ponto do romance de Camus
que o engendra e que necessita, dentro da obra, de uma reflexão atrelada à relação entre os
elementos da própria estrutura narrativa; sobretudo, dentro desta, é fundamental investigar os
personagens e suas relações, o nexo causal entre suas ações e os eventos que dela resultam. O
discurso de Meursault aponta o sol como “copartícipe” de seu destino, sendo esse aspecto já
exaustivamente explorado na obra. Basta ir à plataforma Google e digitar “O estrangeiro/
Camus”, que, facilmente, “raiará” o sol sobre a barra de rolagem nas frases temáticas de
artigos acerca da obra francesa nos mais variados idiomas em que fora traduzida nessas oito
décadas. A questão que precisa ser proposta é diversa: “Quanto à intriga do romance e às
relações entre os personagens, o que elas podem revelar se iluminadas? O próprio Sol a
“assombrar” o discurso narrativo poderia sugerir algo mais que somente a tragédia grega;
poderia até chegar a indicar outro aspecto, por exemplo, que Meursault, como colono francês,
representar-se-ia atingido pela geografia árida da Argélia, porque narraria sua história no
Norte da África, possivelmente, como se seu referencial geográfico, climático, fosse a
Metrópole europeia, como se seu ponto de partida fosse a temperatura que envolve Paris no
inverno. Diante de outras possibilidades interpretativas, adentrar no texto por novas “portas”
se faz oportuno e necessário.
Nesse universo de O estrangeiro, pois, a crítica de traço epistemológico
ocidentalizado, aprisionada ao “sol” como elemento trágico a marcar o destino criminoso do
134
herói, pode ser identificada, como já dito, como a crítica reprodutora de certa naturalização da
“dominação masculina”, já que, assim, oculta, por omissão, o papel de gênero na trama e no
seu desenrolar até o crime. Ao entender que Meursault mataria “por causa do sol”, a
tradicional crítica camusiana francesa desconsidera a simbologia da honra masculina inserida
no crime (como supõe o narrador daoudiano no trecho citado acima). A escolha de
responsabilizar o sol pelo crime cometido por Meursault afasta a incidência de questões
ligadas à masculinidade como relacionadas, também, ao assassinato, o qual, como evento da
intriga realizado pelas personas da história, faz da obra de Camus uma narrativa, de fato, e
não uma sucessão de eventos desconexos (CULLER, 1999).
Sendo assim, a análise feminista de envergadura decolonial aqui pretendida, seguindo
um caminho metodológico particular, toma a narrativa, a intriga, as personagens e seus laços
como referenciais significativos de reinterpretação do romance francês. Neste trabalho, então,
pretendo não protagonizar a perspectiva solar, mas sim, analisar as figuras femininas da trama
e suas relações com o crime de assassinato de “Moussa” (DAOUD, 2013) levado a cabo por
Meursault. Tais relações se estabelecem porque essas personagens mulheres se apresentam
ligadas aos homens na condição de papéis sociais entrecortados pelas figuras da amante, da
namorada, da esposa, da prostituta, de modo que são personas numa ficção criadas na história
(diegese) pelo discurso do narrador (CULLER, p. 87), moldado este último por palavras que,
uma vez “selecionadas e combinadas” pelo ficcionista (ISER, 2002), materializam-lhes com
determinadas configurações e significados no texto literário.
Para que os aspectos da intriga e das personagens, assim, tenham suas acepções de uso
definidas nesta análise, constitui-se importante recobrar as clássicas visões teóricas entre os
estudos literários de Todorov (1970) e de Antonio Candido (1976) expostas em sequência.
Em “Análise estrutural da narrativa” (1970), Todorov chama atenção para o fato de
que, neste ensaio em particular, está interessado em definir a intriga como uma categoria
teórica que está presente nas variadas narrativas em caráter abstrato, sendo esta composta por
elementos recorrentes: “ação, personagens, reconhecimento” (1970, p. 84). Ao discutir várias
produções de Decameron, apontando a recorrência de certos esquemas narrativos, o autor
explica o pretendido em sua discussão: contribuir com possibilidades de análise, descrição e
reflexão da literatura, não de uma obra pontual em si. Diz o teórico:
Nosso objetivo não é o conhecimento de Decameron (embora tal análise possa servir
também a esse objetivo), mas o conhecimento da literatura ou, no caso preciso, da
intriga. As categorias da intriga aqui introduzidas podem permitir uma descrição
mais avançada e mais precisa de outras intrigas. O objeto estudado deve ser os
135
modos narrativos, ou os pontos de vista, ou as sequências, e não tal ou tal conto, em
si mesmo e por ele mesmo (1970, p. 87).
Como perceptível, o texto do autor, ícone do Formalismo Russo, assinalou as bases
teóricas para que a crítica pudesse passar a refletir sobre a literatura em geral a partir de
estruturas narrativas, dando destaque ao papel da intriga. Ainda afirma o autor: “Isso não quer
dizer que para mim a literatura se reduza unicamente à intriga. Penso antes que a intriga é
uma noção que os críticos não apreciam e, por essa mesma razão ignoram” (1970, p. 84).
Chamo atenção, desse modo, para o fato de que, sim, em torno de O estrangeiro, a crítica
particular dos críticos comentados neste capítulo poderia ter sido mais atenta ao sucesso dos
eventos e ações que levaram Meursault a matar, mas, tal qual demonstrado neste capítulo, não
foi essa exatamente a sua tendência destinada, digo assim, “a responder a outras perguntas
encontradas no texto”.
O sucesso dos eventos na trama que conduziram ao assassinato não se constituiu
como uma chave de análise central pra os intérpretes de Camus. Esta observação, que fique
claro, não é colocada aqui para descredibilizar ou invalidar essas análises que assumem
relevância na história da interpretação da obra; do contrário, a presente pesquisa cometeria a
falha epistemológica de se pretender autoritária sobre os sentidos possíveis de serem
localizados em um romance, objeto teórico que, por excelência, se pauta pela polissemia
(POUND, 2006). É nesse sentido que se compartilha das observações de Jonathan Culler a
respeito do que vem a ser um debate produtivo no campo da Teoria literária e de suas variadas
ramificações em tempos contemporâneos:
Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade que o material bruto da
observação ou do testemunho, é porque a personagem é, basicamente, uma
composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade.
137
Portanto, está sujeita, antes de mais nada, às leis de composição das palavras, à sua
expansão em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos coerentes, que
permitem estabelecer uma estrutura novelística. O entrosamento nesta é condição
fundamental na configuração da personagem, porque a verdade da sua fisionomia e
do seu modo de ser é fruto, menos da descrição, e mesmo da análise do seu ser
isolado, que da concatenação da sua existência no contexto. Em Fogo Morto, por
exemplo, a sola, a faca, o martelo de Mestre José ganham sentido, referidos não
apenas ao seu temperamento agressivo, mas ao cavalo magro, ao punhal, ao chicote
do Capitão Vitorino; ao cabriolé, à gravata, ao piano do Coronel Lula, — os quais,
por sua vez, valem como símbolos das respectivas personalidades. E as três
personagens existem com vigor, não só porque se exteriorizam em traços materiais
tão bem combinados, mas porque ecoam umas às outras, articulando-se num nexo
expressivo.
...
Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança,
o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário
pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade
dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais
coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos. (CANDIDO,
1976, p. 78).
O entendimento de Candido é, dessa forma, a maneira que considero indispensável
para se pensar as personagens em O estrangeiro, já que é a interação entre elas que molda o
caráter e o destino de cada uma frente aos leitores que as conhecem via discurso narrativo.
Nesse sentido, Meursault só assume o caráter de “homem absurdo”, tão discutido pelas
críticas tradicionais de Sartre (2005) e Barthes (2004a), porque conta a sua jornada em relação
à sua mãe, à sua namorada Marie, ao seu vizinho/ “amigo” Raymond, ao “árabe”, ao “juiz”, a
“Cristo”, e, nesse jogo, personagem face a personagem, observo na obra a pintura da relação
que o narrador estabelece com a “cultura da execução” pela justiça francesa na colônia e,
acrescento, também, com a questão de gênero. Focalizar intriga e personagens é, portanto, um
recorte analítico subjetivo que oportuniza pensar os actantes do texto no entrecruzar de suas
próprias subjetividades e seus aspectos intercambiantes: a nacionalidade, a etnia, o gênero, a
sexualidade, a posição de classe, etc.
Interpondo a ponte com a leitura pretendida na pesquisa em torno das masculinidades
inseridas no universo do assassinato do “árabe”, é interessante assinalar que tal perspectiva
teórica relacional entre as personagens na intriga de O estrangeiro, tomada a partir de
Candido (1976), se coaduna com a concepção de como deveriam ser encaradas as relações de
gênero na sociedade, se olhadas na perspectiva também relacional adotada por Benedito e
Medrado (2008). Os autores, semelhantemente, chamam atenção para o fato de que, como
pessoas no mundo, os sujeitos não podem ser pensados isolados em si mesmos quando está
em pauta a noção de gênero, pois gênero não é uma entidade ilhada, mas uma construção de
elementos interdependentes. Eles explicam que tal modo relacional de considerar a questão
138
dialoga com a necessidade de se compreender que o objeto de estudo de gênero é muito mais
amplo do que apenas se pensar a condição feminina ou mesmo a masculinidade em caráter
estanque, sendo o mais indicado, do ponto de vista epistemológico, problematizar as
interrelações mulher-homem, homem-homem, mulher-mulher, etc para que se atinjam
resultados analíticos mais abrangentes a respeito do problema. Dentro desse jogo dialético,
Benedito e Medrado alertam para o seguinte quesito:
A dominação dos homens sobre as mulheres e sobre o feminino não possui autoria
única, mas uma constelação de autores, que inclui, além dos homens, a mídia, a
educação, a religião, as mulheres e as próprias políticas públicas. Em outras
palavras, partimos da perspectiva de que o poder coletivo dos homens não é
construído apenas nas formas como os homens interiorizam, individualizam e o
reforçam, mas também nas instituições sociais (2008, p. 826).
Assim, como elementos da intriga literária, os personagens necessitam ser enxergados
diante da conjuntura interna textual, dentro da interrelação com os demais, mas, tal interação
ficcional será interpretada como uma recriação mimética das relações de poder que estruturam
140
a sociedade a partir do gênero, entendido, reforço, como uma construção também relacional, e
não como produto fixo e dicotômico da natureza.
Com tal definição de escolha teórica de análise, passo ao estudo demonstrativo de
como as masculinidades se apresentam como um elemento significativo do texto que está na
intriga no papel de um mobilizador de poder, de hierarquias e do sucesso das personagens.
Ler O estrangeiro, dessa forma é, a partir da mímesis literária, propor uma investigação de
como os personagens no interior da obra de Camus reproduzem forças institucionais que
hierarquizam o poder dentro da ordem de gênero, a qual não será vista como indisssociada da
etnia e demais singularidades em meio a condições de colonização vivenciadas na Argélia.
Além disso, é também a partir da mímesis literária, que objetivo seguir um caminho crítico
indicador acerca de que maneira a própria crítica tradicional em torno do romance reproduziu
hierarquias de gênero e etnia nos métodos adotados e rechaçados nas suas análises.
A literatura de Camus, nessa perspectiva, é material que pode propor: a) um
questionamento das “forças institucionais” propulsoras de uma masculinidade hegemônica
que se delineava no interior de sua diegese, passada na Argélia em tempos de colônia, bem
como b) uma revisão da própria crítica do século XX sobre O estrangeiro e seu papel
institucionalizador das hierarquias de gênero. Esta crítica traduziu a obra para o mundo, ora a
partir de sua plataforma epistemológica eurocentrada, como um romance filosófico do Pós-
guerra (SARTRE, 2005) e como uma “tragédia solar” (BARTHES, 2004), ora, a partir dos
Estudos pós-coloniais, como um “documento cultural” emblema do projeto imperialista
francês (SAID, 1993), de modo que, nesse movimento de tradução, acabou por atestar o fato
de que as assimetrias de gênero, dentro das hierarquias de poder, são institucionalizadas no
campo literário pelo próprio ato crítico e suas escolhas teóricas de análise.
4.2.1 Uma revisão da trama: “a tal mulher invisível”, o assassinato “do árabe” e
as masculinidades
— Não sei se entende, Sr. Meursault — disse-me. — Não que eu seja mau, o que
sou é nervoso. O sujeito me desafiou: “Desça do bonde se for homem.” Respondi-
lhe: “Vamos, sossegue.” Ele me disse que eu não era homem. Então desci e disse-
lhe: “Chega, é melhor parar ou vou lhe dar uma lição.” “Que lição?” Então, dei-lhe
uma. Caiu. Eu ia ajudá-lo a se levantar. Mas, do chão, ele me dava pontapés. Então,
dei-lhe uma joelhada e duas cutiladas. Seu rosto sangrava. Perguntei-lhe se bastava.
Disse que sim. Enquanto isso, Sintès ia enrolando a atadura. Eu estava sentado na
cama. — Como vê, não fui eu que provoquei — continuou. — Ele é que quis.
Reconheci que era verdade. Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um
conselho a propósito deste assunto, que eu, sim, era um homem que conhecia a vida,
que podia ajudá-lo e que em seguida ficaria meu amigo. Não disse nada e ele me
perguntou de novo se eu queria ser amigo dele. Respondi que tanto fazia; ele ficou
com um ar satisfeito. Pegou a linguiça, fritou-a na frigideira e arrumou copos,
pratos, talheres e duas garrafas de vinho. Tudo isto em silêncio. Depois, nos
instalamos. Enquanto comia, começou a contar-me a sua história. A princípio,
hesitava um pouco (CAMUS, 2016, p. 36-37).
O trecho deixa claro o motivo da briga em que Raymond se envolveu: defender a
própria masculinidade. Esta condição que formaria “um homem como um homem” é, como a
situação da diegese de O estrangeiro atesta, algo tão frágil, que precisa ser defendido “no
146
braço”, que carece ser reforçado, comprovado constantemente, mesmo que para tanto seja
necessário o uso da violência física contra um “ato de fala”: “Ele me disse que não era
homem”.
A pesquisadora francesa Elisabeth Badinter, em seu livro XY. Sobre a identidade
masculina (1993), chama atenção para o fato de que os homens seriam assombrados pela
junção de duas variáveis que os pressionariam: a) pelo feminino que biologicamente neles
habita na composição dos cromossomos XY (tese da autora), e b) pela cobrança social dos
pais para assumirem determinadas performances normativas. São, então, estes dois fatores em
parceria que levariam os homens à necessidade de, a todo tempo, provar que são homens, e
não mulheres. Badinter afirma: “Não basta ser XY e ter um pênis funcional para sentir-se
homem”, destacando a autora a frequente “luta que o menino vai ter de travar durante muito
tempo para tornar-se um homem” (1993, p. 43). A palavra “luta” utilizada pela filósofa
francesa se faz compatível com as ações de Raymond perante o sujeito “árabe”: a briga, a
violência são os meios de manutenção da masculinidade. Vale ressaltar ainda que, perante
esse jogo de autoarfimação masculina, ofender um homem é desdizê-lo homem; em
contrapartida, afirmá-lo na condição de homem é uma prática de elogio, cordialidade e
solidariedade entre o gênero masculino (o que, na história, será dito por um “amigo” de
Meursault, Celeste, para aboná-lo, como testemunha de defesa, em seu julgamento por
assassinato, fato retomado adiante). Faz-se visível, nessa conjuntura, que Raymond demonstra
seu respeito a Meursault ao qualificá-lo como “um homem que conhecia a vida”,
demonstrando-se como, nesse contexto, a palavra “homem” se faz mais adjetivo que
substantivo, sendo proferida no diálogo das personagens para que se demarquem suas
posições de poder e de respeito mútuo na ordem hierárquica de gênero.
Dando sequência ao debate, seleciono outro trecho do romance de Camus para que
outra marca da masculinidade, também indicada nos trabalhos de Badinter (1993) e Welzer-
Lang (2001), seja evidenciada na relação que os personagens homens estabelecem com as
mulheres: a misoginia e a violência física contra o feminino. Porém, antes de mais nada, nesse
caso particular das cenas que serão citadas a seguir, é preciso destacar: a mulher violentada
será revelada no texto como uma mulher argelina. Segue excerto em que Raymond passa a
estreitar vínculo afetivo e amistoso com Meursault à medida que vai lhe confidenciando sua
história relacionada à figura feminina de sua “amante árabe” para, em seguida, pedir-lhe um
conselho e, um favor:
147
Conheci uma mulher... era minha... amante, por assim dizer... O homem com quem
brigara era irmão dessa mulher. Disse-me que a sustentara. Nada comentei, mas ele
acrescentou imediatamente que sabia muito bem o que se dizia pelo bairro, mas que
tinha a consciência tranquila, e que era comerciante. — Voltando à minha história
— disse ele —, a certa altura percebi que havia uma jogada. — Ele lhe dava
dinheiro contado para viver. Pagava ele mesmo o aluguel do quarto e dava-lhe vinte
francos por dia para a comida. — Trezentos francos de quarto, seiscentos francos de
comida, um par de meias de vez em quando, dava bem uns mil francos. E a madame
não trabalhava. Mas dizia-me que era apertado, que o que eu lhe dava não era
suficiente. E, no entanto, eu lhe dizia: “Por que não arranja um trabalho de meio
expediente? Já me aliviaria bastante. Este mês comprei para você um conjunto, dou
vinte francos por dia, pago o aluguel... e você passa as tardes tomando café com as
amigas. E ainda fornece o café e o açúcar. E eu... sou eu que dou o dinheiro. Agi
bem com você e você não me paga na mesma moeda.” Mas ela não trabalhava, dizia
sempre que não conseguia, e foi assim que percebi que havia uma jogada. Contou-
me, então, que encontrara dentro de sua bolsa um bilhete de loteria e que ela não lhe
soubera explicar como se arranjara para comprá-lo. Mais tarde, encontrara em sua
casa um recibo de penhor, provando que empenhara duas pulseiras. Até então,
desconhecia a existência dessas pulseiras. — Vi logo que se tratava de alguma
trapalhada. Então a deixei. Mas, primeiro, dei-lhe uma surra. E, depois, disse-lhe
umas verdades. Disse-lhe que ela só queria se divertir. Disse a ela, compreende, Sr.
Meursault: “Não vê que todos têm inveja da felicidade que lhe dou! Um dia, ainda
vai reconhecer a felicidade que tinha.” Espancara-a até sangrar. Antes disso, não
batia nela. — Ou, por outra, batia, mas ternamente, por assim dizer. Ela gritava um
pouco. Eu fechava as janelas e tudo terminava como sempre (CAMUS, 2016, p. 37-
38).
Aqui, se deixa claro que o sujeito com quem Raymond havia brigado, por lhe haver
“insultado” de “não ser homem”, seria justo o irmão de sua amante (o que é contestado, como
se viu, na narrativa de Haroum, em Daoud, que afirma ser a moça, não irmã, mas “uma das
paixões” do argelino)26. Este outro homem, argelino e sem nome, duvidara de sua
masculinidade, como confessado acima, em razão de Raymond ter batido em “sua irmã”, uma
mulher, portanto, um ser visto como inferior, cujo corpo, na organização hierárquica familiar
local, deve ser controlado (em situações de defesa ou mesmo de agressão doméstica) pela
autoridade do irmão ou do pai, homens em seu patamar de superioridade social, de
“proprietário” do corpo feminino, o qual se transmuta em espelho de sua honra. A
masculinidade, por outro lado, nesse mesmo contexto, também se reafirma quando a violência
é, por sua vez, dirigida a um sujeito de semelhante patamar físico: outro homem. Bater em
mulheres seria se inferiorizar, ao se agredir um sujeito desprovido de virilidade e força física
(“virtudes” entendidas como masculinas), o que não geraria glória na “casa dos homens”,
mas, sim, vergonha, porque não se demanda coragem e habilidade bélica, elementos que
adornam a masculinidade paradoxalmente frágil justamente por demandar esses tipos de
subterfúgios e autoafirmações para que se legitime.
Ontem foi sábado e, como havíamos combinado, encontrei-me com Marie. Desejei-a
intensamente porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e
sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava
um aspecto de flor. Pegamos um ônibus e fomos para uma praia, a alguns
quilômetros de Argel. ...
Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a
minha. A língua dela refrescava-me os lábios, e rolamos por instantes nas ondas.
Quando nos vestimos na praia, Marie olhava-me com olhos brilhantes. Beijei-a. A
partir desse momento, não falamos mais. Apertei-a contra mim e tivemos pressa de
encontrar um ônibus, de voltar, de ir para a minha casa e de nos atirarmos na minha
cama. ...
Quando riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois perguntou-me se eu a
amava. Respondi-lhe que isto não queria dizer nada, mas que me parecia que não.
Ficou com o ar triste. Mas ao preparar o almoço e a propósito de nada voltou a rir,
de tal forma que eu a beijei. Foi nesse momento que repercutiram os ruídos de uma
discussão na casa de Raymond (CAMUS, 2016, p. 42).
Como está claro, o léxico selecionado pelo discurso do narrador não deixa de colocar a
figura feminina no reduto de um corpo sexualizado (“seios”, “boca”, “língua”, “olhos”) e num
lugar limitado de sujeito que, ainda que se destine mais ao contato físico que ao diálogo (“não
nos falamos mais. Aperteia-a contra mim”), se preocupa em perguntar se é amado por um
homem numa relação amorosa. Marie é retratada como um sujeito que sorri, que faz sexo, que
transita entre espaços como uma praia em hábito lúdico e sensual, a cama e cozinha, obstinada
em agradar e, justo por assim se colocar, é que agrada. Um perfil de mulher que não se cogita
ser espancada ou marcada na face como um animal, tal como feito com a moura, mas que não
deixa de corresponder a um fetiche patriarcal da francesa bela, “na moda” (“vestido de listras
e sandálias de couro”), sexy, passiva e submissa ao roteiro “destinado” a uma mulher europeia
na época, segundo tal perspectiva: entristecer-se quando não escuta que tem o amor
masculino, mas contentar-se apenas com a companhia do homem que a sexualiza sem lhe
entregar o afeto que deseja.
A narrativa abandona a ternura sensual do fetiche masculino que envolve o contato
com a mulher francesa e prossegue, trazendo de volta a violência intrínseca ao casal vizinho
Sintès e sua “árabe sem nome”. Lembrando que, como explica Caio Caramico Soares (2010),
defender o desfrute dos prazeres sensoriais e individual no tempo presente, ligados à comida,
152
à bebida, ao sexo, como uma forma de contestação da crença futura de um paraíso após a
morte, fazia parte da filosofia da “revolta” 27 presente já no conceito de “absurdo” camusiano
em O mito de Sísifo (2018). Contudo, é relevante perceber que, para além de tal sentido
filosófico, quando o corpo de Marie é representado no romance, a sua sexualidade feminina e
seu desejo são construídos esteticamente sob o prisma do fetiche do ponto de vista do
narrador, o qual segue, como se vê na citação acima, o paradigma patriarcal da época. Este
construir da personagem da namorada, dessa forma, faz brotar, em jogo relacional, ainda, a
identidade do narrador como heterossexual, dotado, pois, de virilidade, configuração que
alimenta a sua imagem segundo as masculinidades hegemônicas.
Continuando, vem à tona o evento que resulta da “armadilha” planejada pelos
“amigos”, Meursault e Raymond no universo afetivo da “casa dos homens” (WELZER-
LANG, 2001) e com ele os papéis da masculinidade, agora conectada também à esfera
institucional da polícia imperial francesa, se revelam. Cito Camus:
Ouviu-se, primeiro, uma voz estridente de mulher e, depois, Raymond que dizia
“Você me enganou, você me enganou. Vou ensiná-la a me enganar”. Uns ruídos
surdos e a mulher berrou, mas de maneira tão horrível que o corredor se encheu logo
de gente. Marie e eu também saímos. A mulher continuava a gritar e Raymond não
parava de bater. Marie disse-me que era terrível, e eu nada respondi. Pediu-me que
fosse chamar um guarda, mas respondi-lhe que não gostava de guardas (CAMUS,
2016, p. 42-43).
É perceptível que as palavras mudam quando o referente do discurso é o casal vizinho
entre um comerciante de mulheres e a mulher moura. Marie retratada no trecho anterior com
termos ligados a um universo semântico afetivo, ainda que sexualizado, pratica ações como
brincar, sorrir, receber beijos, estando longe da violência física. Ela, tal qual se viu, é
silenciada através de uma descrição que a transforma em uma “imagem estética”, uma
imagem sorridente em um corpo de seios firmes, sem falas na maior parte do tempo e quando
abre a boca, não para beijar, mas para perguntar, sua pergunta envolve um tema que “não
importa”, para o narrador (no sentido de não ser uma questão estruturante de sua
personalidade): o amor; ela deseja ser amada. Em contrapartida, Marie não é animalizada ou
tem a integridade física abalada pela figura masculina com quem se relaciona. A “mulher
árabe”, sim, tem seu trajeto contado com expressões que a identificam como “enganadora”,
como um bicho que “berra” de maneira horrível, a ponto de se tornar espetáculo, como num
zoológico. É significativo o uso do verbo “berrar”, que animaliza a personagem e ainda pode
ser atrelado aos latidos do cachorro do velho Salamano, que, xingado, sarnento, sofre maus-
27 Vide: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2018b.
153
tratos, assim como a garota, tornando-se cena para os espectadores do prédio. A forma
selecionada por Meursault em tecer sua narrativa, mais uma vez, demonstra faces do racismo
frente à “mulher de cor” (LUGONES, 2008).
É interessante destacar a relação de vínculo que então se estabelece entre duas
personagens cujos contrastes de posição de poder aparecem pela forma sequencial narrativa
do discurso, Marie e a “mulher árabe”. Ao escutar os “berros” de uma mulher desconhecida, a
francesa, em solidariedade, cobra a “seu homem” que tome uma atitude, fato que demonstra já
a sua passividade em agir por conta própria no auxílio à vítima e fato que também explicita a
visão hegemônica que carrega de que seria o homem o provedor da proteção, pela virilidade
que lhe caberia (isto, quando ele não está na posição naturalizada de agressor das próprias
mulheres). Meursault, contudo, em face da cobrança de convocar a força masculina policial (a
qual detém o monopólio da violência na ordem jurídica estabelecida), se recusa a cumpri-la,
recua e, nesse movimento, se “diminui” frente a essa figura de poder institucional na
hierarquia das masculinidades no contexto, atitude que revela também sua natureza omissa e
misógina/racista em prestar socorro a uma figura feminina “árabe”. O narrador-protagonista
se faz, portanto, duplamente omisso: 1) em ouvir o pedido da sua “namorada francesa”; 2) em
socorrer a “amante moura” do “amigo” dos maus-tratos sofridos. Nesse caso, ambas as
mulheres, cada uma à sua maneira, isto é, em situações sociais de vulnerabilidade diferentes,
sofrem o peso do patriarcado que as diminui como sujeitos de voz e de direito à dignidade.
Meursault, por agir de tal forma e pelo desenho espelhado que seu discurso, ao contar suas
ações, lhe constrói desde o início da obra, não aparenta ser tão “estrangeiro”, como se tem
largamente repetido e entendido o termo a tradição crítica ocidental (SARTRE, 2005;
BARTHES, 2004a) às normas patriarcais de sua “cidadania europeia”28 na Argélia colonial.
A reação de Raymond, por sua vez, reforça a ideia de que há uma diferença entre a
masculinidade civil comum e a encarnada pelo policial francês, a qual, pela força repressiva
viril institucionalizada que lhe confere, estaria acima de qualquer outra, transformando
“machões” violentos que batem em mulheres em cidadãos obedientes ao Estado. Cito o trecho
em que chegam um guarda e um bombeiro para abordar Raymond no momento:
Ele bateu à porta e não se ouviu mais nada. Bateu com mais força e, alguns instantes
depois, a mulher chorou, e Raymond abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar sonso.
A moça precipitou-se para a porta e declarou ao guarda que Raymond a espancara.
— Seu nome — perguntou o policial. Raymond respondeu. — Tire o cigarro da
boca quando falar comigo — ordenou o guarda. Raymond hesitou, olhou para mim e
deu uma tragada no cigarro. Neste momento, o guarda deu-lhe uma bofetada com
toda a força, em plena cara, com um estalo surdo e pesado. O cigarro caiu alguns
Contou-me que tinha feito o que queria, mas que ela lhe dera uma bofetada e que
ele, então, começara a espancá-la. Quanto ao resto, eu mesmo o presenciara. Disse-
lhe parecer-me que agora ela fora castigada e que ele devia estar contente. Era
também a opinião dele, e observou que, por mais que o guarda fizesse, não mudaria
as pancadas que ela recebera. Acrescentou que conhecia bem os guardas e sabia
perfeitamente como se deve lidar com eles. Perguntou-me, então, se eu esperava que
ele reagisse à bofetada do guarda. Respondi-lhe que não esperava absolutamente
nada e que, aliás, não gostava de guardas. Raymond pareceu ficar muito contente.
Perguntou-me se queria sair com ele. Levantei-me e comecei a me pentear. Disse
que era preciso que eu servisse de testemunha. A mim tanto fazia, mas não sabia o
que devia dizer. Segundo Raymond, bastava declarar que a mulher o enganara.
Aceitei servir de testemunha. Saímos e Raymond ofereceu-me um trago. Depois,
quis jogar uma partida de bilhar, e perdi por pouco. A seguir, queria ir ao bordel,
mas eu disse que não, porque não gosto disso. Então voltamos lentamente, e ele me
dizia quanto se sentia contente por ter conseguido castigar a amante. Achei-o muito
simpático comigo e pensei que aquele era um momento agradável (CAMUS, 2016,
p. 44).
Sublinho, pois, acima, dois aspectos: 1) o fato de Raymond ser vigilante e inseguro
sobre a própria virilidade, ao perguntar a Meursault sobre o que pensava de ele não ter reagido
com violência à bofetada do guarda. A postura antipática de Meursault aos oficiais também
denunciam o seu desconforto perante a imagem masculina que tem o monopólio repressivo do
Estado nacional; 2) a misoginia explícita de ambos os personagens em relação à “moura”;
Raymond alegre com a agressão praticada contra a mulher, de retrocesso inacessível ao poder
do Estado, e Meusault satisfeito em ser “camarada” como o vizinho, aceitando ser sua
testemunha na delegacia, para declarar a argelina como “enganadora”. As notas da “casa dos
homens” descritas por Welzer-Lang (2001) estão expressas, pois, no texto: inferiorização
feminina, violência contra a mulher, lugares de socialização que reforçam os laços afetivos
entre os homens: jogo de bilhar, convite ao bordel. São aparentes os signos de uma
masculinidade que precisa ser “forjada” pelos personagens dentro de O estrangeiro. Nesse
157
viés, não importa muito que nas “palavras” que escolha para narrar os fatos Meursault deseje
se mostrar indiferente ou “estrangeiro” à socialização masculina vivenciada do seu lugar de
personagem pied-noir, uma vez que também suas próprias palavras e ações indicam o seu
pertencimento à socialização que o gerou enquanto sujeito no espaço colonial em que habita.
Passo a registrar, para que se verifique a relação hierárquica entre os diversos sujeitos
do texto, a cena em que, passando no apartamento de Raymond para irem juntos, como
combinaram, aproveitar um dia de praia com conhecidos franceses, Meursault conta que foi à
delegacia depor a favor do “amigo”:
Íamos partir quando Raymond, de súbito, me fez sinal para olhar em frente. Vi um
grupo de árabes encostados na vitrina de uma tabacaria. Olhavam-nos em silêncio,
mas à maneira deles, como se fôssemos pedras ou árvores mortas. Raymond disse-
me que o sujeito era o segundo a contar da esquerda, e ficou com uma expressão
preocupada. Acrescentou, no entanto, que agora era um caso encerrado. Marie não
compreendia muito bem e nos perguntou o que se passava. Expliquei-lhe que eram
uns árabes que tinham raiva de Raymond. Marie quis que fôssemos embora logo.
Raymond endireitou-se e riu, concordando em que era preciso nos apressarmos.
(2016, p. 54).
A subalternidade masculina árabe aparece, em alguns aspectos, como: eles estão em
silêncio, o espaço que ocupam (a tabacaria simboliza um espaço urbano usual da
masculinidade, de modo que eles estão ainda à margem do local: fora e “encostados na
vitrine”); a maneira pela qual são descritos: não há nomes, apenas indicações genéricas com
numerais, artigos indefinidos e palavras circunstanciais de espaço (“o segundo a contar da
esquerda”/“uns árabes”) e, principalmente, o modo como o narrador-personagem quer
dominar o que se passa até na mente desses sujeitos, ao criar comparações que qualifiquem os
significados mais profundos de seus olhares: “Olhavam-nos em silêncio, mas à maneira deles,
como se fôssemos pedras ou árvores mortas.”. Tal detalhe da figura comparativa denotaria
mais a visão de Meursault, este narrador ensimesmado” (DALFARRA, 1978), sobre si e sobre
os europeus (“pedra”/ “árvore morta”, ou seja obstáculos imóveis, infrutíferos) na Argélia
colonial do que poderia traduzir o olhar daqueles sujeitos masculinos, aos quais não se tem
acesso no romance, uma vez que eles não falam, não dialogam, estão silenciados, apenas se
deslocam, olham e lutam com fracasso e morte no espaço narrativo.31
Desse ponto da narração em diante, Marie, Raymond e Meursault sobem no ônibus e
chegam à praia suburbana de Argel, onde ocorrerá o assassinato do argelino. Eles não notam
mais a presença dos árabes, que surgirão, sim, seguindo os passos dos europeus até o mar para
31 Esta questão também é retomada no capítulo 4.
159
protagonizarem juntos duas brigas, a segunda com o resultado morte. Antes de citar as cenas,
gostaria de apontar para a simbologia do espaço litorâneo da Argélia colonial e sua relação
com a violência que o homem francês impõe ao colonizado. Como descrevem Yazbec (2010)
e Fanon (1965), a tomada francesa da Argélia ocupou, sobretudo, o litoral, empurrando os
sujeitos locais para as regiões do deserto, descaracterizando suas atividades econômicas
tradicionais, ao transformar a ocupação das cidades e as atividades agrícolas da região. A
original plantação de cereais argelina anterior foi trocada por vinícolas, para geração de lucros
à Metrópole, o que gerou grande impacto à população nativa. A tomada do litoral é, assim,
sem dúvida, a marca da dominação da terra pelo imperialismo francês, da violência cultural
imperialista, de modo que se faz muito simbólico, no romance, o fato de o assassinato do
“árabe” ocorrer justo na praia e de franceses e argelinos se relacionarem de modos
hierarquicamente distintos neste cenário marítimo.32
Enquanto os europeus se divertem com namoradas (o lazer e a libido de Meursault
com Marie são descritos recorrentemente em banhos de mar, como na ocasião, tão condenada,
logo após a morte de sua mãe, em que eles flertam na praia, vão ao cinema ver uma comédia
francesa e seguem para o sexo em seu apartamento, o que demostra a associação entre
masculinidade heterossexual e domínio do território litorâneo. Horas antes do crime, também
é acionada a ligação entre mar e sexualidade: “Corremos e nos atiramos às primeiras ondas.
Demos algumas braçadas e ela colou-se a mim. Senti suas pernas em volta das minhas e
desejei-a” (CAMUS, 2016, p. 57)). Os mesmos europeus, modificam o território, construindo
suas casas de veraneio para desfrutar suas riquezas entre amigos franceses e suas esposas de
“sotaque parisiense” (CAMUS, 2016, p. 55). Os argelinos, diferentemente, tal como delineia
o romance, vão até lá em situações de tensão e de subalternidade: disputar a honra masculina,
perder as lutas corporais munidos de facas, arma de precariedade técnica, enquanto são
abatidos a tiros pelos colonos. Estes, por sua vez, como ressalta Said (1995), figuram como
sujeitos sísificos, dotados de angústias filosóficas, e, como friso, sujeitos representados como
“homens heterossexuais”, carentes de sentidos na vida por terem uma França tomada pelo
nazismo alemão, num contexto em que Deus não mais oferece certezas e que, apesar disso, na
Argélia, em posição imperialista, além da terra, exploram e animalizam argelinas para
sentirem-se homens, continuando a inferiorizar também suas mulheres europeias ao tratá-las
como “bibelôs sorridentes” que cozinham, andam na moda e querem sempre os mesmo
33 Tenho, ao longo do Doutorado, também aproximado O mito de Sísifo e a mecânica do absurdo, de Camus a
uma leitura inserida na Crítica feminista (ZINANI, 2015) das personagens femininas em obras escritas por
autoras. Nesses estudos, observo, por exemplo, que as mulheres criadas por Clarice Lispector, em narrativas
como os contos “Amor” e “Laços de família”, estão seguindo um trajeto semelhante ao personagem mítico no
percurso dominado pelo patriarcado em que se situam em meados do Século XX. A esse respeito, vide:
CAVALCANTI, Ariane da Mota. Clarice Lispector e Albert Camus: Representações de gênero e mecânica
Sísifica. IN: ASSIS, Emanoel C P. de; OLIVEIRA, Lígia V. P.; MORAIS, Solange S. G. (Orgs). E-book do XIX
Simpósio de Letras, Caxias, EDUEMA, 2021.
161
Depois da confraternização praieira entre franceses: banho de mar e almoço com
fritada de peixe recém-pescado pelo anfitrião e amigo de Raymond, Masson, há um evento
que reforça a condução dos homens a saírem da casa para um passeio na areia, passeio que os
colocará de frente a uma briga com “os árabes” sem nome que os olhavam desde a vitrine da
tabacaria: a hora de lavar a louça, da qual homens deveriam ser expulsos pelas mulheres.
Nota-se que Masson, proprietário da casa, como confessa, costuma passear após o almoço,
enquanto sua esposa tem o hábito diverso de fazer uma sesta, mas, nesse dia em particular, o
evento de cuidado doméstico, “lavatório da louça”, estimula que os três amigos homens saiam
em passeio, enquanto as mulheres limpam: “Marie declarou que ficaria para ajudar a Sra.
Masson a lavar a louça. A pequena parisiense disse que para isso era preciso pôr os homens
para fora. Descemos os três” (CAMUS, 2016, p. 58).
Durante “o passeio”, enquanto as mulheres cuidavam do lar, surgem “os árabes” no
espaço praia, gerando tensão e suspense. Eles teriam seguido os franceses e Meursault
reconheceu a figura que negava desde o início da narrativa o título de “homem” a Raymond
em virtude de sua ligação com a “mulher moura”:
Mas percebi, ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois árabes de
macacões azuis, que vinham na nossa direção. Olhei para Raymond e ele me disse:
— É ele. ...
Os árabes avançavam lentamente e já estavam muito mais perto. Não mudamos
nosso passo, mas Raymond disse: — Se houver briga, você, Masson, fica com o
segundo. Eu me encarrego do meu sujeito. Você, Meursault, se vier outro, é seu. —
Está bem — respondi, e Masson botou as mãos nos bolsos. A areia superaquecida
me parecia agora vermelha. Avançávamos no mesmo ritmo em direção aos árabes.
A distância entre nós foi diminuindo regularmente. Quando estávamos apenas a
alguns passos uns dos outros, os árabes se detiveram. Masson e eu começamos a
andar mais devagar. Raymond foi direto ao seu sujeito. Não ouvi muito bem o que
lhe disse, mas o outro fez menção de lhe dar uma cabeçada. Raymond deu, então, o
primeiro soco, e logo a seguir chamou Masson. Este dirigiu-se ao que lhe fora
destinado e aplicou-lhe dois socos com toda a força. O árabe estatelou-se no mar, o
rosto dentro d’água, e ficou assim alguns segundos; à volta da cabeça, na superfície,
rebentavam bolhas de ar. Enquanto isso, Raymond continuou a bater, e o outro
estava com o rosto coberto de sangue. Raymond voltou-se para mim e disse: — Vai
ver como ele vai apanhar! — Cuidado — gritei-lhe —, ele está com uma faca. —
Mas Raymond já estava com o braço ferido e um talho na boca. Masson deu um
salto para a frente. Mas o outro árabe tinha se levantado e se colocara atrás do que
estava armado. Não ousamos nos mexer. Eles recuaram lentamente, sem deixar de
nos olhar e de nos ameaçar com a faca. Quando viram que a distância era suficiente,
fugiram muito rapidamente enquanto nós ficávamos ali pregados, ao sol, e Raymond
comprimia o braço do qual escorria sangue (CAMUS, 2016, p. 58-59).
O trecho evidencia que: 1) dois árabes surgem na praia e disputam o espaço e a honra
com os franceses em maior número no litoral; 2) Raymond inicia a briga, de modo que cada
um dos três europeus já tem seu papel determinado no combate corporal, fazendo ele questão
de mostrar que será violento: “veja como ele irá apanhar”; 3) os dois árabes
162
despersonalizados, referenciados através de numerais e pronomes indefinidos, apanham
recuam e fogem, apesar de ferirem Raymond. A briga, desse modo, reflete a disputa pela
masculinidade no território praia e a dominação francesa.
Masson e Raymond saem à procura do médico francês que tem uma casa no local e
veraneia aos domingos, enquanto Meursault tem a tarefa de explicar a situação às mulheres,
que ficaram lavando a louça. O narrador confessa o quanto lhe é desagradável dialogar com as
personas femininas, o que, mais uma vez, reforça o seu lugar de reprodução misógina “na
casa dos homens” (WELZER-LANG, 2001):
Saiu com Masson e eu fiquei para explicar às mulheres o que havia acontecido. A
Sra. Masson chorava e Marie estava muito pálida. Para mim, era desagradável ter de
lhes explicar. Por fim, calei-me e fiquei fumando, olhando para o mar (CAMUS,
2016, p. 60).
Por seu turno, Raymond, também do seu lugar da “casa dos homens” (WELZER-
LANG, 2001), após receber o socorro médico, com apoio do amigo Masson, e constatar a
superficialidade de seus ferimentos, sente-se ferido de uma forma mais profunda: na sua
masculinidade, afinal, foi violentado pelo “homem árabe”, em quem suas palavras
asseguraram aos “amigos europeus” aplicar uma surra, saindo novamente à praia, em busca de
vingança contra aqueles sujeitos que, até então, no romance, perdem as suas disputas e são
violentados. Encontrando “os árabes”, mais uma cena de tensão, suspense e violência se
segue, agora com códigos oficiais da masculinidade europeia em situação de duelo: agredir ou
matar em caso de defesa da vida e da honra. Cito:
Mas sem tirar os olhos do adversário Raymond me perguntou: — Acabo com ele?
Pensei que se respondesse não ficaria excitado por si próprio e dispararia, com
certeza. Disse unicamente: — Ele ainda nada disse. Disparar assim seria um golpe
baixo. Ouvíamos ainda o leve ruído de água e de flauta no coração do silêncio e do
calor. — Então vou xingá-lo, e quando ele responder eu o mato — replicou
Raymond. — Isso mesmo. Mas se ele não puxar a faca, você não pode atirar —
ponderei. Raymond começou a enervar-se um pouco. O outro continuava a tocar e
os dois observavam cada gesto de Raymond. — Não — disse eu a Raymond. —
Pegue-o, de homem para homem, e dê-me o revólver. Se o outro se meter ou se
puxar a faca, eu o mato. Quando Raymond me deu o revólver, o sol refletiu nele. No
entanto, ficamos imóveis, como se tudo se houvesse fechado à nossa volta.
Olhávamo-nos sem baixar os olhos e tudo aqui se detinha entre o mar, a areia, o sol,
o duplo silêncio da flauta e da água. Pensei neste instante que se podia atirar ou não
atirar. Mas, bruscamente, os árabes começaram a recuar e deslizaram por trás do
rochedo. Raymond e eu voltamos, então. Ele parecia estar melhor e falou sobre o
ônibus de volta. (CAMUS, 2016, p. 61).
Na cena, é visível que Meursault atua como um conselheiro da “luta honrada” entre
homens, definindo qual seria o momento legítimo ou não de atacar o sujeito “árabe”: “Mas se
ele não puxar a faca, você não pode atirar — ponderei” e qual seria a maneira legitima de
fazê-lo: “Pegue-o, de homem para homem, e dê-me o revólver. Se o outro se meter ou se
163
puxar a faca, eu o mato.” Diante da cautela “honrada” dos franceses, os árabes recuam
novamente. A disputa pelo território praia não é vencida novamente pelos argelinos e os
franceses também pensam em retornar, em posição de domínio, ao centro da cidade. Todavia,
mais um lampejo de masculinidade hegemônica salta da persona de Meursault, que,
novamente, como um Sísifo que repete os mesmos rituais, demonstra misoginia frente às
mulheres, sendo este aspecto um dos elementos definidores de seu retorno em direção à praia
e aos árabes que lá estariam:
Logo que me viu, ergueu-se um pouco e meteu a mão no bolso. Eu, naturalmente,
agarrei o revólver de Raymond dentro do paletó. Então, o árabe deixou-se cair outra
vez para trás, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava bastante longe dele, a uns dez
metros de distância....
Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a
frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas
dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a
164
faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina
fulgurante me atingisse na testa. ...
Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da
faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e
penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. ...
Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei
o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e
ensurdecedor, que tudo começou. ...
Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem
que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.
(CAMUS, 2016, p. 63-64).
Destaco no texto que, ao encontrar “o árabe”, Meursault, assim como Raymond, nas
duas brigas anteriores com os “nativos”, toma a iniciativa de dar o “passo à frente” na disputa,
o que demonstra (caso se interponha uma leitura na linha de Said (1995)) a segurança dos
franceses em disputar o território. Como resposta à iniciativa de conquista francesa, “o árabe”,
novamente puxa sua faca, da mesma forma que havia sucedido na primeira briga em que fere
e sangra Raymond. O ato de “puxar a faca” seria a atitude que autorizaria os homens
franceses, como visto acima nas palavras do narrador, a atacar outro homem, caso fosse
levada em conta a espécie de “código de honra” vindo à tona na outra ocasião em que
Raymond, por vingança de sua “frágil masculinidade” atingida com os ferimentos superficiais
na boca e braço, cogitava matar “o árabe”. Retomo a fala conselheira de Meursault ao
“amigo”: “Se o outro se meter ou se puxar a faca, eu o mato” (CAMUS, 2016, p. 61). Nesse
sentido, não é unicamente à toa, ou apenas em razão de uma simples ofuscação solar, que
Meursault puxa o gatilho. O sol bate na lâmina, deixando-a visível, a tal ponto que seus olhos
são feridos de luz. Um primeiro golpe de faca atinge Meursault e seu domínio ocular do
espaço, o que o leva a responder com tiros. As balas denotariam, ainda, se for adotada a
perspectiva de Castro-Gomes (2005), a supremacia da técnica dentro da lógica do projeto de
modernidade eurocêntrica, isto é, aludiriam à tecnologia moderna para matar do homem
francês, difundida, pois, como se estivesse acima de uma suposta “brutalidade de alcance
reduzido” da arma branca, manufatura encarada como “antiga”, “ultrapassada”, do homem
“árabe”, inferiorizado, silenciado, enfraquecido, fracassado na disputa e assassinado por um
homem francês que chegou até o local do crime por estreitar laços com outro europeu,
explorador e agressor da “mulher moura”.
Foram, grifo, um primeiro e depois mais quatro tiros disparados “num corpo inerte”,
não apenas um ou dois. A quantidade de tiros e o objeto revólver pode imprimir na morte do
“árabe” certo tom de autoritarismo e violência, elementos típicos de socializações masculinas
(WELZER-LANG, 2001). É possível considerar, ainda, a diferença entre os instrumentos de
165
violência do homem francês e do “árabe”. Os colonos trazem o “requinte tecnológico”
(CASTRO-GOMEZ, 2005) de matar com arma de fogo, enquanto o colonizado, representado
como carente de “modernidade técnico-bélica”, “puxa uma faca” sob a luz do sol argelino.
Nota-se que são os elementos fundidos “faca e natureza” (reflexo da luz solar na lâmina) que
“ferem” Meursault e atingem sua visão e a sensação de domínio ocular da praia “em que
havia sido feliz” (CAMUS, 2016, p. 64), território conquistado pelo império francês. Se é
passada a ser considerada, como fez Said (1993) a geografia colonial argelina como espaço do
romance, “o árabe” ali, mesmo em silêncio ou apenas tocando uma flauta (único som audível
que dele parte, sujeito com falas ausentes), mesmo vestido de macacão azul, o que simboliza
naquele contexto histórico seu lugar de classe: mão-de-obra barata para serviços rústicos,
mesmo sem tecnologia bélica à altura, ou seja, mesmo numa posição dominada e
subalternizada, parece agredir fisicamente a visão do narrador francês, que também
demonstra, pela forma que descreve seu corpo (olhos, testa, temperatura), sentir-se
“estrangeiro” àquela geografia climática solar que é Argel, localizada no Magreb. Como
ressalta Melissa Scanhola, “a palavra Magreb, em árabe, significa terra do sol poente e se
refere à porção ocidental da Península arábica” (2013, p. 17). Se for levada em conta a própria
nomenclatura da região em que se passa a história romanesca, “terra do sol”, o significado de
ser “estrangeiro” atribuído durante décadas a Meursault é passível de ampliação: o
personagem pode ser lido como um francês na “terra do sol”, enfrentando as intempéries
estranhas desse lugar, disputando o seu lugar de homem francês com os nativos, matando para
se impor naquele espaço, utilizando de sua tecnologia bélica, para tanto. Friso: não é apenas
esse traço que qualificaria a personagem Meursault, mas é também isso considerável na
interpretação do texto literário, que é polissêmico (POUND, 2006), a partir de suas pistas: as
letras e os lugares de poder que os personagens ocupam na ficção e seu entrançamento com as
condições históricas da época.
Portanto, em consonância com as análises dos trechos do romance aqui citados, torna-
se aparente que a trança da trama de O estrangeiro, na sequência em que o discurso narrativo
lhe deu formas por meio dos atos de seleção e combinação de elementos (ISER, 2002), gera
pistas de que a questões de gênero também animam o destino das personagens e os
significados da obra. A leitura que interponho é, assim, uma tentativa de alargar as
possibilidades de visões sobre O estrangeiro junto à fortuna crítica que engloba a obra de
Camus.
166
Nesse ponto do trabalho, em especial, volto a citar Sartre para propor uma reflexão em
torno de suas conjecturas frente ao caráter “estrangeiro” do narrador Meursault. Retomo as
palavras do crítico francês:
O estrangeiro que ele Camus quer descrever é justamente um desses que fazem o
escândalo de uma sociedade porque não aceitam as regras do seu jogo. Vive também
entre estrangeiros, mas também é um estrangeiro para eles (SARTRE, 2005, p. 120).
Percebo que Sartre entende o sujeito “estrangeiro”, e por extensão o personagem
Meursault, como dotado de uma identidade “puramente estranha”, “puramente sui gêneris”
em relação à comunidade em que vive, a qual ele toma exclusivamente como a comunidade
francesa, como se tal comunidade: a) não penetrasse de nenhuma forma na identidade do
personagem; b) como se, em si, tivesse seus valores culturais puros, intocados pelas tensões
identitárias que são consequências do imperialismo francês e dos mutáveis processos de
globalização moderna (HALL, 2006; BHABHA, 2003). Entretanto, como procurei apontar,
Meursault congrega uma tensão entre tentar se mostrar indiferente e crítico aos rituais
moralistas e canônicos da sociedade francesa (cristianismo, justiça, casamento, amizade,
maternidade, capitalismo, etc) e reproduzir aspectos hegemônicos desta comunidade (como a
própria masculinidade, a misoginia, o racismo, o privilégio branco ocidental, a
heterossexualidade, paradoxalmente o próprio apego, em parte, a uma noção cristalizada de
maternidade a conviver com sua destruição). Em realidade, a própria natureza identitária
francesa pode ser vista como fissurada e entrecortada pelos choques culturais com as
identidades, por sua vez, também variadas de suas diversas colônias.
Nesta ótica, não se identifica, aqui, Meursault como “estrangeiro” entendendo o termo
de modo binário, sendo capaz de designar aquele sujeito que estaria totalmente “fora” de um
“dentro”, leia-se um inteiriço e indivisível solo cultural e político. Essa tendência verificada
acima em Sartre de identificar o estrangeiro como um sujeito dotado de uma natureza cultural
“completamente fora” do estabelecido por outra “nação pura, intocável e intercambiável” é
muito similar a um tipo de mentalidade excludente e ainda binária bastante comum no Brasil
até a segunda metade do século XX, como explica Roberto Schwarz (2002): o raciocínio
“nacional por subtração”. Tal mentalidade ilusória, segundo o crítico brasileiro, considerava a
cultura nacional como possível e necessitada de ser blindada de outras culturas pela
“subtração” de tudo aquilo que fosse “estrangeiro”. Afirma Schwarz:
Perguntaram-lhe se eu era seu cliente e ele respondeu: — Sim, mas era também um
amigo. Sobre o que pensava de mim, ele respondeu que eu era um homem; o que
queria dizer com isso, e ele declarou que todo mundo sabia o que isso queria dizer;
se reparara que eu era fechado, e ele reconheceu apenas que eu não falava por falar.
O promotor perguntou-lhe se eu pagava regularmente as minhas despesas. Céleste
riu, e declarou: — Isso é assunto nosso. Perguntaram-lhe, ainda, o que pensava do
meu crime. Pôs então as duas mãos na barra e via-se que preparara alguma coisa.
Disse: — Para mim, é uma desgraça. Uma desgraça todo mundo sabe o que é. Isto
deixa qualquer um sem defesa. ...
Parecia-me que tinha os olhos brilhantes e os lábios trêmulos.
Quanto a mim, nada disse, não esbocei gesto algum, mas foi a primeira vez na
minha vida que tive vontade de beijar um homem. (CAMUS, 2016, p. 96-97)
169
Na cena, o narrador é caracterizado por Celeste como “um homem”, o que parece ser
aos olhos da testemunha de defesa e do júri um qualificativo virtuoso a ser ressaltado em
favor do réu. Nesse qusito, a obra põe em evidência a dominação masculina naturalizada e
instrumentalizada diante da justiça. “Homem” está, pois, no trecho figurando como adjetivo
que qualifica Meursault como um cidadão de bem, pouco estranho às regras francesas, tanto o
é que a expressão surge no intuito de defendê-lo com o qualificativo. Assinalo que, no
excerto, sim, Meursault performa como “homem” dentro das hegemonias da masculinidade ao
demonstrar afeto e respeito por Celeste: “mas foi a primeira vez na minha vida que tive
vontade de beijar um homem”, contudo tal expressar afetivo sugestiona a quebra da
heteronormatividade. A descrição dos olhos brilhantes e da boca trêmula de Celeste
prenunciam, no discurso, o desejo confesso de, pela primeira vez na vida heterossexual, beijar
um homem. Tal tensão entre a heterossexualidade e a homoafetividade é, como explicado por
Daniel Welzer-Lang (2001) um dos paradoxos da masculinidade hegemônica, paradoxo no
qual Meursault se insere. Isto é, o próprio território da identidade de gênero e da sexualidade
não se desenha sem conflitos e tensões. Por este ângulo, Meursault não é aqui apontado como
um personagem “transculturado” porque apenas validaria e ao mesmo tempo paradoxalmente
contestaria sua masculinidade hegemônica em seus atos na narrativa, mas também e,
sobretudo, porque a própria noção de masculinidade com a qual dialoga é conflitante e
paradoxal, gerada e geradora de pontos de tensão que convivem harmônica e
desarmonicamente. É nesse aspecto que o narrador pode ser lido como um “estrangeiro-
sujeito transculturado”.
É curioso como, ao cindir a heteronormatividade, desejando homoafetivamente beijar
Celeste, o personagem já imediatamente se reposiciona com identidade heterossexual na
forma um tanto permeada por libido como descreve Marie no tribunal, que irá depor em
sequência ao “amigo”:
Marie entrou. Pusera um chapéu e estava ainda muito bonita. Mas eu gostava mais
dela de cabelos soltos. Do lugar onde estava, eu adivinhava o peso leve dos seios e
reconhecia o lábio inferior, sempre um pouco inchado. Parecia muito nervosa
(CAMUS, 2016, p. 97)
A mulher branca, novamente, é referenciada na sua condição de imagem ornamental (usa
chapéu, está bonita) e sexualizada: cabelos, lábios, o peso dos seios, o que sugere, numa
mesma cena em seu julgamento por assassinato, a alternância de desejo em Meursault: entre o
masculino (com afeto e respeito) e o feminino (objetificado em imagem corporal). Desse
modo, Meursault é estrangeiro: sujeito de um diálogo “entre forças e práticas hegemônicas e
170
contra-hegemônicas” (WALTER, 2015, p. 621). Entre ser réu na própria história e
proprietário da própria história narrada, entre ser francês e corromper o que é francês, entre
ser assassino de um árabe e filho “desnaturado”, entre diversos afetos e desejos, entre um
destino solar e uma masculinidade hegemônica de uma cultura ocidental e patriarcal, na
fronteira e em múltiplos lugares conflitantes, entre ser colono e violentar o colonizado e criar
um discurso narrativo que denuncia a própria violência colonial está “o estrangeiro”
Meursault. Assim, O estrangeiro coloca sob a ponte da ficção entre os seus variados leitores o
sujeito que narra nos “locais da cultura”, na expressão de Bhabha: “no momento de trânsito
em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão ... aqui e lá, de todos os lados,
para lá e para cá” (BHABHA, 2002, 19). Assim, mais do que nos apontar um sujeito “fora” da
sociedade francesa, como interpretou a crítica sartreana e a longa tradição de intérpretes que o
replicou, convido a se refletir, sob a luz da ficção argelina de Daoud, que nos aponta
caminhos críticos diversos, sobre o fato de que a obra de Camus pode conduzir a reflexões
sobre “o ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 2002, p.20).
Comentei acima sobre o uso do termo genérico “mamãe” por Meursault e sua relação
com a configuração ideológica da arquitetura econômica francesa em vias de imperialismo na
virada do século XVIII para o XIX. Sartre (2005) também o menciona, mas sua cadeia
analítica voltada para O mito de Sísifo (CAMUS, 2018a) não o explora em consonância com
problemas de gênero e colonização, nele envoltos em sua polissemia. Diz Sartre: “Ademais,
ele sempre denomina sua mãe terna e infantilmente como “mamãe” e não perde uma ocasião
de compreendê-la e de identificar-se com ela” (2005, p. 123). Gostaria de destacar aí dois
pontos comentados adiante.
Primeiramente, além do “infantil” e “ternamente” há campo para se perceber, depois
da referida pesquisa de Elisabeth Badinter (1985) que o uso generalizado que Meursault faz
de “mamãe” remonta à concepção cultural patriarcal de materninade que alimentou, desde o
fim do Século XVII, o capitalismo francês colonial, sendo a mãe um ser sem subjetividade,
181
autonomia, individualidade, por ser encarregada do “outro”, este fraturado em diversas
figuras: a criança, o marido, o Estado. Neste primeiro aspecto, fica visível que Meursault, nas
palavras escolhidas para designar sujeitos que, dominados, periferizados e sublaternizados,
estruturam as bases econômicas da França imperialista: a “mãe”, “o árabe”, “a moura”,
demonstra partilhar da visão de mundo da moralidade francesa hegemônica. Tal aspecto não
o torna completamente estranho ou “fora” dos jogos sociais patriarcais de seu tempo e
comunidade, como a leitura da sua condição de “homem absurdo” o faz crer ao longo da
tradição crítica de base ocidental.
Contraditoriamente, entretanto, Meursault é um personagem que, sim, em muitas
passagens da obra revela “indiferença” à morte da figura basilar da economia francesa: a mãe.
Cito Camus: “Pensei que em todo caso fora um domingo puxado, que mamãe agora estava
enterrada, que ia retomar o meu trabalho e que afinal de contas nada havia mudado” (2016, p.
32). São suas palavras ao final do capítulo dois do romance, mesmo capítulo em que conta aos
leitores que no dia seguinte ao enterro da mãe, vai divertir-se na praia, encontra uma
namorada (Marie), vai ao cinema ver uma comédia e faz sexo. Esses são atos que não são bem
vistos ou compreendidos em período de luto numa cultura francesa, que, como visto em
Badinter, aprendeu a “sacralizar” a figura materna, a colocá-la numa posição de importância
tal como eixo social da nação, ainda que a subjetividade da pessoa dentro da “couraça”
materna tenha sido negligenciada e irrelevante. As atitudes rebeldes a um luto moralmente
conhecido na sociedade por parte de Meursault, sim o equiparam a um indivíduo que não vê
na morte os mesmo sentidos que sua comunidade. Para Meursault, morrer e viver não têm (em
sua totalidade) os mesmos significados guardados pela sua comunidade. É nesse aspecto que
ele é identificado como “estrangeiro”, como estranho, como “protótipo do absurdo” e tal
parcela de sujeito absurdo em Meursault “dessacraliza” a maternidade, pela vivência de um
luto pela morte da mãe que congrega simultaneamente o que a moral interdita: o desfrute da
vida e seus prazeres carnais (a comida, o sexo, a sensibilidade ao mar, ao cinema, ao café com
leite, ao cigarro). A morte não muda, para Meursault, o sentido da vida, uma vez que a vida
não estaria presa a sentidos fixos daquela sociedade: Deus, paraíso, casamento, família, morte.
Essa é a filosofia camusiana em O mito de Sísifo (2018a) e é esta filosofia que é vivenciada,
em muitos trechos do romance pelo protagonista Meursault, mas não em todos. O absurdo é a
contestação do sentido moral vigente. Meursault não se mostra no texto em diálogo com o
“absurdo” o tempo inteiro. Sua identidade é fraturada, aparecendo lampejos dos valores
habituais da comunidade francesa, o que lhe confere uma atmosfera da “transculturação”
182
(WALTER, 2015), como destaquei em seção anterior deste capítulo. Nessas fraturas
identitárias, quando Meusault recusa o luto comum e mostra indiferença e a estaticidade de
sua existência frente à morte da mãe, a sua personagem oferece, como ente ficcional, uma
quebra com a sacralidade da figura materna, isto é, com sua concepção patriarcal e capitalista
indicada por Badinter na cultura francesa. O discurso de O mito de Sísifo (2018a) presente na
obra, na mentalidade do narrador Meursault, ataca, em certa medida, então, o patriarcado
capitalista alicerçado na mãe. Existe aí uma agressão a tal memória ideológica da
maternidade. Seria uma violência dupla: ao capitalismo francês e à figura materna que o
alicerça.
Em contrapartida, Meursault, mesmo que recuse viver um luto comum, “homem
revoltado” (CAMUS, 2018a; 2018b) que é, não deixa, como remarca Sartre (2005), de trazer
sua mãe ao texto com frequência, conferindo-lhe relevância como ente que permeia a sua
memória e seu desejo de narrar. Desse modo, paradoxalmente à sua violência à memória
materna, apontada acima, vigora também a reverência à mãe pela sua memória narrativa, que,
como dito, encabeça a história pela notícia da sua morte: “Hoje mamãe morreu”. O primeiro
capítulo em si é todo sobre o enterro de sua mãe. Em cada capítulo ele a referencia e sua força
no texto é recorrente e ponte para sua identidade fraturada, em tensão entre ser “homem
absurdo” e ser “cidadão de valores franceses hegemômicos”.
Apresento dois trechos na obra que evidenciam a dubiedade do narrador-personagem;
um em que a narrativa quer mostrar a identidade de Meursault como filho que desdenha a mãe
(trecho 1, o qual comento e apresento algumas digressões importantes a serem relacionadas),
outro em que seu afeto se faz entrever pelas palavras que seleciona (trecho 2).
Entrecorto, pois, o trecho 1, no qual Meursault novamente reinicia sua fala trazendo a
mãe protagonizando em sua memória, o que reforça a sua reverência a ela:
Hoje, trabalhei muito no escritório. O patrão foi amável. Perguntou se eu não estava
muito cansado e quis também saber a idade de mamãe. Para não incorrer em erro,
respondi “Uns 60 anos” e, não sei por que, ficou com um ar de alívio, parecendo
achar que se tratava de um assunto encerrado (CAMUS, 2016, p. 33).
É observável que, ao mesmo tempo, pelo sentido de “para não incorrer em erro,
respondi ‘Uns 60 anos’”, é uma passagem que denuncia como ele desconhece a idade exata da
mãe, o que o caracterizaria, possivelmente, numa leitura mais conservadora, como um filho
desafetuoso na sua cultura que enaltecia a maternidade masoquista, já que o personagem
mostra ignorar traços importantes da identidade da “mulher que o gerou e cuidou”, como seria
o traço da idade numa comunidade que valoriza, por exemplo, datas como aniversário e o
183
respeito pela memória dos ancestrais. Contraditório também é o retrato do “patrão”, sujeito
também sem nome (personagem tipo), que se por um lado apresenta preocupação em ser
“polido”, perguntando sobre a mãe morta do empregado, revela certo desdém por esta já estar
na casa dos 60 anos. Pode ser interpretado, pois, que para um sujeito “patrão”, a morta,
mesmo sendo uma “mãe”, não renderia tanto pesar, por ser uma mão-de-obra inválida, a qual
teria pouco a explorar e despesas a dar ao Estado, caso que revelaria as hipocrisias sociais
frente ao sujeito materno sacralizado.
É interessante destacar que Meursault, com frequência, seleciona narrar como os
demais personagens reagem à morte de sua mãe, descrevendo cenas em que estes desejam
apresentar seu respeito e seus “pêsames” pela sua perda. Raymond assim se comporta:
“Explicou-me, então, que soubera da morte de minha mãe, mas que era uma coisa que mais
dia menos dia tinha de acontecer. Essa era também minha opinião” (CAMUS, 2016, p.40); o
velho Salamano assim também o faz:
Disse-me que mamãe gostava muito do cão. Ao falar dela, chamava-a de ‘sua pobre
mãe’. Emitiu a opinião de que eu deveria sentir-me muito infeliz desde que minha
mãe morrera, e eu nada respondi. Acrescentou, então, muito depressa e com um ar
sem jeito, que no bairro me tinham criticado por tê-la mandado para o asilo, mas ele
me conhecia e sabia que eu gostava muito de mamãe. Respondi, não sei ainda por
que, que ignorava até o momento que me julgassem um mau filho por causa disso,
mas que o asilo me parecia uma coisa natural, pois não tinha recursos para mantê-la
comigo.
— Além disso — acrescentei —, havia muito tempo que ela não tinha assunto
algum para conversar comigo, e se entediava sozinha. — Sim — concordou ele —, e
no asilo pelo menos arranjam-se amigos. (CAMUS, 2016, p. 52).
O comportamento de compaixão pela morte da mãe do “outro” visível nas falas desses
personagens vai desenhando a importância da mãe, enquanto ser que gera, pare e cuida, que
abdica da própria individualidade pela felicidade de fazer o papel materno, supostamente
compensador, para aquela cultura francesa filtrada pela mente masculina do patrão, dos
vizinhos de Meursault. A mãe vai se delineando no texto como um bem importante para a
comunidade colona. O comportamento de Meursault diante de tal “bem” é que é peculiar, ora
o personagem rompe com a visível sacralidade da mãe, ora ele a reafirma como sujeito de
memória a narrar sua história e sempre trazer a figura materna como elemento inaulgural do
texto e recorrente em sua fala ao longo de toda a narrativa. A sombra da mãe está em O
estrangeiro, assim como está também em recorrência a presença solar. O que acontece é que
esta última foi mais comentada por uma crítica tradicional que esteve mais atenta a figuras
masculinas na trama que a femininas.
184
Ainda sobre a fala de Salamano, ela deixa a sugestão no leitor de que Meursault não
teria pela mãe o mesmo apreço que a comunidade francesa a ela atribui pelo fato de a ter
deixado num asilo. A resposta de Meursault ao velho mostra que essa sua atitude significa:
individualismo, liberdade e gestação de despesas ao Estado, entidade obrigada a se
responsabilizar pelas custas de seus idosos. Ao não cuidar da mãe, e, assim, ser um “mau
filho”, Meursault oneraria o Estado. Nessa conjuntura, parece evidente que, para o Estado
francês em solo colonial argelino, a mãe precisaria gerar filhos lucrativos na juventude e na
sua velhice ser assistida pela própria família, não pela instituição. Fica sugerido no texto que a
exploração da figura materna deseja ser total e sem custo ou sem qualquer ônus, de forma que
os valores morais da sociedade são significativos disciplinadores das relações afetivas que,
por sua vez, interferem nas riquezas da França.
A fala de Meursault em resposta à observação de Salamo sobre sua conduta duvidosa
pela comunidade como filho ainda releva como tais relações afetivas familiares não
apresentam harmonia: “havia muito tempo que ela não tinha assunto algum para conversar
comigo, e se entediava sozinha”. Nesse ponto, o narrador camusiano joga na face do leitor as
fraturas da família, instituição de unidade “harmoniosa”, muitas vezes forjada pela política
governamental, para que esta possa manejar seus interesses políticos, os quais, como muito se
vem ressaltando aqui, envolve também problemas de gênero.
É curioso notar no romance sua incessante ambiguidade quanto a várias questões que
envolvem o julgamento da comunidade em face da relação que Meursault estabelece com a
mãe. Ora há a sugestão de que ele seria mau filho por deixar a mãe no asilo, ora os
personagens compreendem sua atitude, mostram-se complacentes e também a naturalizam.
Destaco a fala acima de Salamano: “— Sim — concordou ele —, e no asilo pelo menos
arranjam-se amigos” e cito o diálogo entre o protagonista e o Diretor do asilo no momento do
enterro da Sra Meursault:
Consultou uma pasta e disse-me: — A Sra. Meursault entrou aqui há três anos. O
senhor era seu único apoio. — Achei que me estava censurando por alguma coisa e
comecei a explicar-lhe. Mas ele me interrompeu: — Não tem de justificar-se, meu
filho. Estive lendo o dossiê da sua mãe. O senhor não podia prover o seu sustento.
Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, afinal, ela era mais
feliz aqui. — Sim, Sr. Diretor — concordei. — O senhor sabe — acrescentou ele —,
aqui ela tinha amigos, gente da mesma idade. Podia partilhar com eles interesses de
outros tempos. O senhor é jovem e ela certamente se entediava na sua companhia.
Era verdade. Quando estava lá em casa, mamãe passava todo o tempo a me seguir
em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo chorava muitas vezes. Mas era
por causa do hábito. Ao fim de alguns meses teria chorado se a tirassem de lá, tudo
por causa do hábito. Foi um pouco por isto que no último ano quase não fui visitá-la.
E também porque a visita me tirava o domingo, sem contar o esforço para ir até o
ônibus, pegar as passagens e fazer duas horas de viagem (CAMUS, 2016, p. 14-15).
185
A citação revela o rondar de um “mal-estar” social em se deixar uma mãe enfrentar a
experiência do asilo, mas imediatamente alude à fragilidade das relações afetivas familiares e
ao distanciamento entre mãe e filhos. O diálogo também demonstra que Meursault insiste em
descrever em seu discurso narrativo certa indiferença afetiva em relação à mãe, apontando-a,
inclusive, como um estorvo, caso precisasse perder o domingo de folga para visitá-la.
Confessa aos leitores a sua individualidade e seu desejo genuíno de cuidar apenas de si, não
da mãe envelhecida, confessa sua escolha de não visita-la mesmo diante de seu choro
constante. A filosofia do absurdo presente na mentalidade de Meursault, baseada na ideia de
que a humanidade repete os mesmo atos diariamente sem sentido, assim como Sísifo empurra
a sua pedra em O mito de Sísifo (CAMUS, 2018a), permite ao personagem que este se libere
pra não visitar a mãe. Os sentimentos não teriam um sentido dentro da lógica sísifica, seriam
resultados mecanizados de nossos rituais cotidianos. Dentro dessa lógica filosófica, “mamãe”
encontraria novos hábitos e, como filho, Meursault estaria liberto das convenções sociais de
retribuir o cuidado materno, sobretudo para desfrutar do que ao “homem absurdo” parecia ser
útil, como explica Caio Caramico Soares (2010): a sensorialidade do corpo: banho de mar,
sexo, cigarro, comida, o prazer da matéria e do presente.
Feitas as anunciadas digressões sobre o trecho 1, discorro sobre o trecho 2 acima
mencionado como ponto relevante para se reconhecer as ambiguidades do personagem
Meursault decorrentes de suas relações com a mãe. Trata-se de uma conversa no capítulo 1 da
Segunta parte da narrativa travada com seu advogado de defesa, que precisava entender seu
caso e preparar sua arguição frente à justiça. Segue trecho 2:
Quem fala para quem? O autor cria um texto que é lido pelos leitores. Os leitores
inferem a partir do texto um narrador, uma voz que fala. O narrador se dirige a
ouvintes que às vezes são subentendidos ou construídos, às vezes explicitamente
identificados. ... A narrativa implicitamente constrói um público através daquilo
que sua narração aceita sem discussão e através daquilo que explica. Uma obra de
um outro tempo e lugar geralmente subentende um público que reconhece certas
referências e partilha certos pressupostos que um leitor moderno pode não partilhar.
A crítica feminista está especialmente interessada na maneira como as narrativas
europeias e norte-americanas frequestemente postulam um leitor masculino: elas se
dirigem implicitamente ao leitor como alguém que partilha uma visão masculina
(CULLER, 1999, p. 88).
O pensamento de Culler ajuda a entender que a narrativa de Meursault dialoga com
leitores que, pressupostamente, teriam um conjunto de valores morais partilhados, no caso:
cristãos (como aponta Sartre), capitalistas e patriarcais (como venho indicando aqui). A
questão é que tal relato meursaultiano rasura tais pressupostos dos leitores implícitos do
romance pela revolta que lhe habita como personagem, cuja mentalidade esboça uma
“filosofia do absurdo”, denunciando a falta de sentido nos hábitos humanos modernos em face
de um contexto de Pós-guerra, hábitos ligados ao trabalho, ao sagrado, aos afetos, à vida e à
morte (CAMUS, 1942). Rasurar não seria negá-los completamente, mas cindi-los como se
cinde um espelho rachado em várias fissuras: sem deixar de ser espelho, o mesmo objeto, uma
vez partido, devolve reflexos que desfiguram o todo refletido, alterando sua imagem
duplicada. Todavia a questão particular que me interessa destacar em Culler é sobre o modo
como a crítica feminista vem problematizando essa categoria de leitor implícito, elucidando
formas de escrita que estão dialogando com os sujeitos hegemônicos do patriarcado: os
homens. Na situação específica de O estrangeiro, o que intenciono, na posição de
pesquisadora que assume o viés da crítica feminista, é elucidar outro aspecto, contudo: que na
construção ficcional da figura materna, na forma como a nomeia e a ela se refere,
conflitantemente entre o afeto e o descaso, entre a reprodução da imagem materna cristã e sua
rasura, o narrador personagem de Camus revela que seu leitor implícito possivelmente se
chocará com suas descrições narrativas por encampar, provavelmente, valores de uma moral
francesa. Ele dialoga com os franceses, e não exatamente com o leitor argelino neste romance.
É, pois, uma obra que se articula pra chocar uma comunidade determinada: a ocidental e,
fatalmente, seus alicerces cristãos, seu patriarcalismo, seu capitalismo que tornam a pessoa
feminina materna a imagem sem subjetividade e generalizada: “mamãe”.
191
Devo dizer que a empresa de Meursault, continua a ser bem-sucedida, tendo em vista
que, passadas oito décadas da publicação da obra, eu ainda escuto entre colegas da crítica
literária, e entre esses, algumas colegas de Graduação em Letras que são mães, o confessar de
que consideram Meursault “um sujeito frio por narrar na primeira frase do texto que sua mãe
morreu e não sabe se a morte foi exatamente hoje ou ontem”, que “assusta tamanha frieza”. O
exemplo informal, mas realmente colhido entre conversas de leitores e leitoras especializados,
atesta que boa parte da comunidade leitora ainda guarda referentes cristãos e patriarcais sobre
a maternidade e, por isso, Meursault ainda a choca tanto em 2022. Claro que, nesse quesito,
não se descarta também que impressões leitoras como tais em estado de choque, costumam-se
reproduzir devido à tendência, já comentada, de se repetir a ideia de “choque” tão difundida
por Sartre em seu ensaio clássico “A explicação de O estrangeiro”, já que é comum na
dinâmica da “colonialidade do saber” (QUIJANO, 2008) repetir a epistemologia ocidental.
De qualquer forma, está entre a intenção da presente pesquisa a seguinte: atribuir
sentidos às interpretações de O estrangeiro e apontar nelas as faces patriarcais e imperialistas
que envolvem narrador, personagens e leitores implícitos do romance, para que estas faces
possam ser, uma vez pecebidas, debatidas, alargando a polissemia do texto e as possibilidades
de se entendê-lo nesta perspectiva crítica particular, se se toma como referência uma tradição
de intérpretes canonizada sobre Camus.
O debate sobre a mãe não se esgota nas ideias aqui escritas. Seria possível descortirnar
o texto muito além. Eu poderia mencionar, num viés que entrecorta Literatura e Psicanálise,
que Meursault, por exemplo, como seria próprio da figura da psiquê do menino fazer, segundo
Badinter em XY: Sobre a identidade masculina (1993), “mata a mãe” simbolicamente logo no
iniciar da narrativa, pondo em exercício o seu medo da expressão do incesto frente a essa
figura, a qual é a origem do contato da criança com a sensorialidade do corpo, pelo colo, seio,
portanto, com o desejo. A frieza de Meusault seria lida, nessa ótica, tal qual uma resposta de
violência que a persona do menino tipicamente apresentaria como forma de expurgar seu ódio
a mulheres, sentimento que haveria na sua composição genética, via o cromosso X (do gênero
feminino) presente na sua natureza cromossômica XY. Assim, medo do incesto e misoginia
seriam “sintomas” de Meursault que explicariam sua revolta, seu descaso frente à mãe e até
seu crime de assassinato, ápice de sua agressividade material. Tal interpretação notadamente
correlacionada a uma visão psicanílitca de masculinidade entende que o caráter agressivo
masculino seria moldado por essas particularidades que revolvem seu lado feminino,
elemento que precisaria ser extirpado de sua identidade e seu corpo (BADINTER, 1993).
192
Nessa conjuntura ligada ao inconsciente, ainda poderia ser remarcado que Meursault sentiria
ódio da mãe por ela estar mais feliz e ter outras afetividades no asilo, possuindo
individualidade para além do “cercado patriarcal” do cuidado com o filho. É significativo,
nesse sentido, que ele descreve que a Senhora Meursault, segundo o Diretor do asilo, dá
indícios de ter até um “afeto masculino” na instituição, Thomaz Perez, fato que indicaria que,
no romance, somente livre da casa e da prole, desatrelada, pois, do serviço da maternidade,
contudo sem a jovialidade para o trabalho produtivo e na faixa dos sessenta anos, é que a
mulher poderia, no espaço marginal e disciplinar do asilo na cidade (ROLNIK, 1995), viver
outras experiências mais intimistas e outros afetos:
Disse-me que devia abordar agora questões aparentemente estranhas ao meu caso,
mas que talvez o tocassem de muito perto. Compreendi que ele ia falar novamente
em mamãe e senti ao mesmo tempo até que ponto isso me entediava. Perguntou-me
por que a mandara para o asilo. Respondi que era porque não tinha dinheiro para
mantê-la comigo e cuidar dela. Perguntou-me se, pessoalmente, sofrera com o fato, e
respondi que nem mamãe nem eu esperávamos mais nada um do outro, nem, aliás,
de ninguém, e que nós dois nos havíamos habituado às nossas novas vidas. O
presidente disse, então, que não queria insistir neste ponto, e perguntou ao promotor
194
se tinha alguma outra pergunta a fazer. Este estava quase de costas para mim e, sem
me olhar, declarou que, com a autorização do presidente, gostaria de saber se eu
voltara sozinho à nascente com a intenção de matar o árabe. — Não — respondi. —
Então, por que estava ele armado e por que voltar justamente àquele lugar? —
Disse-lhe que fora por acaso. E o promotor concluiu, com uma entonação maldosa:
— Por ora, é só. (CAMUS, 2016, p. 92).
Novamente, as respostas de Meursault sobre a mãe revelam suas certezas sobre a
natureza da relação que mantém com ela, escancarando, sem qualquer pudor, as questões
problemáticas familiares, as quais revelam o falir de um “cuidado mútuo idealizado” em
termos morais vigentes, mas frisam a desconexão entre mãe e filho, configuração que gera
repulsa numa sociedade que enaltece a maternidade nos termos cristãos do “mito de Maria”
(DELUMEAU, 2009), sempre serviçal a Jesus, ambos sustentando, no discurso bíblico, uma
relação de harmonia e respeito. O júri na diegese está marcado por essa cultura da
maternidade e o julgamento concorre para que se condene Meursault, em princípio acusado de
ter matado “um árabe”, precipuamente por ter periferizado a mãe em um asilo e por
manifestar o que julgam como “frieza” e desdém para com ela.
Várias passagens descritivas do julgamento refletem a prioridade que se dá para julgar
o “pecado” de periferizar a mãe, primeiramente, que julgar o réu pelo “crime” de matar um
argelino numa praia do subúrbio de Argel. Continuo a transcrever essas passagens. Segue a
investigação do depoimento do Diretor do asilo:
34 Na versão original, está escrito: “Il me restáit à souhaiter qu’il y ait beaucoup de spectateurs le jour de mon
exécution et qu’ils m’accueillent avec des cris de haine. (CAMUS, 2017, p. 184). Vide: CAMUS, Albert.
L’étranger. Paris: Gallimard, 2017.
196
trecho demostra mais uma cena de como a conduta jurídica estatal, na interface das
testemunhas, corrobora com a culpabilização do réu, sobretudo, pela sua relação condenável
com o símbolo da maternidade:
O promotor perguntou-lhe se, ao menos, me vira chorar. Pérez respondeu que não. O
promotor disse, então, por sua vez: — Os senhores jurados saberão formar a sua
opinião. Mas o meu advogado irritou-se. Perguntou a Pérez, num tom que me
pareceu exagerado, se tinha visto que eu não chorei. — Não — respondeu Pérez. O
público riu. E o meu advogado, arregaçando uma das mangas, disse, num tom
peremptório: — Eis a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade.
(CAMUS, 2016, p. 95).
A sequência polifônica a revelar uníssonamente que Meursault é um filho culpado é
que interessa àquela justiça francesa. Uma justiça narcísica por proteger o bem jurídico que
considera de valor “a cultura cristã da maternidade”, relegando a segundo plano a vida
roubada do árabe por Meursault, réu francês, julgado por um descaso com a mãe que não
acredita ter cometido. Nada do que se dizia sobre seu desdém com sua mãe era para ele
desdém, mas apenas o curso habitual da vida. A cena emblemática da sua defesa, que contesta
tal configuração de justiça seria no trecho apresentada:
Mas o meu advogado, já sem paciência, gritou levantando os braços de tal forma que
as mangas, ao caírem para trás, descobriram as pregas de uma camisa engomada: —
Afinal, ele é acusado de ter enterrado a mãe ou de matar um homem? O público riu.
Mas o promotor endireitou-se outra vez, ajustou a beca e declarou que era preciso
ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de
fatos havia uma relação profunda, patética, essencial. — Sim — exclamou com
veemência —, acuso este homem de ter enterrado a mãe com um coração de
criminoso. Esta declaração parece ter tido um efeito considerável sobre o público.
Meu advogado deu de ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa. Mas ele
próprio parecia abalado e compreendi nesta altura que as coisas não iam muito bem
para mim. (CAMUS, 2016, p. 100).
A resposta do público e da promotoria, contudo, reafirmam a natureza da justiça
francesa na colônia: priorizar a proteção da maternidade, acima da vida argelina (que aparece
em último plano nesse julgamento). Nesse domínio, é preciso chamar atenção para a seguinte
particularidade incomum para o período e para a geografia colonial do romance: ainda que
posta em segundo plano, a vida “árabe”, mesmo que pela interferência do autoritarismo e do
narcisismo francês em decidir que fazer justiça num processo que julga o assassinato de um
homem é tutelar não o direito à vida deste, mas sim, sua cultura materna e tudo que a
representa: sagrado cristão, patriarcado, prosperidade econômica e imperialista, recebe na
diegese uma reparação jurídica, afinal, o assino é condenado à execução.
A prisão de um francês naquele contexto não era algo esperável. Em Os condenados
da terra, Fanon ressalta que, dificilmente, franceses eram presos; em contrapartida, as cadeias
estavam lotadas de nativos (o próprio romance de Camus ilustra o fato com Raymond saindo
197
impune ao espancar uma cidadã “moura” e com a descrição que Meursault faz da prisão:
repleta de árabes). O cinema da década de 60 também oferece evidências do caráter dubtável
da justiça colonial na Argélia. O próprio Luchino Visconti traduz O estrangeiro para filme em
1967 e compõe imagens de poder significativo para a representação da justiça francesa
(atrelada ao racismo) a encarcerar, majoritariamente, argelinos. Pentecorvo, diretor que ficou
conhecido, na voz da crítica americana Pauline Kael, “por ser o mais perigoso tipo de
marxista, um poeta marxista” (apud TRAVERSO, 2018), em seu filme “A batalha de Argel”
(1966), premiado com o Leão de ouro no Festival de Veneza de 1966, também apresenta
potentes retratos do encarceramento de argelinos por autoritarismo e racismo.
Cito Fanon para que se evidencie o alcance dos significados contra-hegemômicos da
prisão de Meursault no romance. Trata-se de um dos relatos do autor: “Caso número 1.
Assassinato por dois argelinos de 13 e 14 anos de seu companheiro de jogos europeu”. Está
inserido no capítulo cinco, “Guerra colonial e perturbações mentais”. Os adolescentes
argelinos, sujeitos do relato, contam e dialogam com o autor:
a) O de 13 anos:
... “Um dia decidimos matá-lo, porque os europeus querem matar todos os
árabes. Nós não podemos assassinar os grandes. Mas como ele tem a nossa
idade, já podemos. ...
b) O de 14 anos:
... Também não nega ter morto o seu colega. Por que o matou? Não
responde, mas perguntava-me se vi algum europeu na prisão. Nunca um
europeu foi preso por assassinar um argelino. Respondo-lhe que
efetivamente, nunca vi europeus encarcerados.
- E sem dúvida são mortos argelinos todos os dias, não é verdade?
- Sim.
- Então, por que existem apenas argelinos nos cárceres? (FANON, 1961, p.
286-288)
Portanto, a execução de Meursault se faz, contraditoriamente, um evento contra-
hegemônico naquela geografia colonial de O estrangeiro. Destaco aqui, a partir das análises
dos trechos selecionados, que esta nuance contra-hegemônica está relacionada,
contraditoriamente, aos contornos da cultura materna cristã e imperial, que, no texto,
protagonizou a “mãe” diante da justiça institucional do império.
Tal quadro é ilustrativo de como no seio de uma cultura disciplinar imperialista existe
mecanismos de sua própria fratura. Sujeitos subalternizados podem encontrar no dominador
venenos que ele mesmo aplica sobre as estruturas que os sustentam. É o que é notado por
Bhabha (2003) e Mignolo (2008). A geografia literária colonial é, pois, um território
198
“empestado” de escorpiões encalacrados. Nessa posição, utilizada como metáfora por
Arrigucci Jr (2003) para pensar uma “poética da destruição em Julio Cortázar”, os artrópodes
aplicam sobre suas cabeças o veneno do próprio ferrão como estratégia de defesa e, ao mesmo
tempo de controle da própria morte (ARIGUCCI JR, 2003). A imagem se faz compatível com
as tensões contraditórias que O estrangeiro é capaz de potencializar, “linguagem carregada de
significados” (POUND, 2006) que é, como Literatura.
Concluindo este capítulo, sublinho a polissemia de “mamãe” em O estrangeiro e friso
que, paradoxalmente, esta mãe protagonizada pela justiça francesa na história, é uma figura
duplamente periferizada: 1) sua subjetividade como indivíduo é negada e sacrificada, para que
possa ser enaltecida como emblema do amor e do cuidado, na medida em que é explorada
pela sociedade patriarcal em ritmo de produção e gestação de lucro; 2) sua polissemia é
marginalizada por muitos estudos literários canonizados que, centrados em Meursault, e,
muitas vezes, desconsiderando as próprias tensões identitárias do personagem interpretado
como “estrangeiro”, a esquecem no asilo da diegese do romance, não a enxergando como
peça estrutural da memória narrativa meursaultiana e da própria geografia colonial em que se
se passa o romance.
No próximo e quarto capítulo, será analisado o romance paródico O caso Meursault
(2013). Nessa nova etapa da pesquisa, retomarei as perspectivas da maternidade e da
masculinidade, da geografia local, versarei sobre as alteridades árabes na construção
narrativa, sobre o sagrado e as relações entre os modelos religiosos cristão e islâmico, sobre a
memória familiar argelina na interface com a pós-colonialidade com qual dialoga o escritor.
Sendo assim, o foco das análises se descentra da narrativa de Meursault (interpelada por
Daoud) para se ramificar até a narrativa de Haroum, irmão do “árabe” assassinado (a traduzir
O estrangeiro) na ficção contemporânea da Argélia, cotejando as duas obras em estudo.
199
5 O CASO MEURSAULT E A TRADUÇÃO PARÓDICA PÓS-COLONIAL DE O
ESTRANGEIRO
Neste último capítulo da pesquisa35, O caso Meursault (2013) pretende ser lido como
um romance que, seguindo os ritmos das produções “pós-modernas”, realiza uma “tradução”
de O estrangeiro (1942), utilizando o recurso estético da “paródia”, tal como esta é
compreendida pela canadense Linda Hutcheon em Poética do pós-modernismo (1991). Ao
tecer seu romance nesta conjuntura, Daoud, através de sua escrita, ressignifica variados
aspectos da obra “clássica camusiana do Pós-guerra”, dentre eles, serão selecionados aqui
aqueles mais pontuais: 1) o recurso narrativo, que se refaz em tom dialógico, abrindo espaço
para a reflexão sobre alteridade e ficção; 2) a representação do sagrado e das religiosidades
cristã e islâmica em tensão; 3) as imagens da geografia local, que suplementam a memória das
cidades argelinas pela perspectiva do olhar argelino do novo narrador; 4) as relações de
gênero, que reformulam as noções de masculinidade e maternidade.
Para que a exposição das reflexões sobre os pontos acima seja erguida, recorro ao
seguinte trajeto dissertativo: primeiramente, serão definidas as noções teóricas de paródia e
tradução com as quais a pesquisa dialoga para pensar o romance pós-colonial de Daoud; em
seguida, os quatro aspectos listados acima serão comentados e analisados em trechos do
romance argelino.
35 Muito do que apresento neste capítulo resulta da ampliação e da reavaliação de variados artigos publicados
em anais de Congresso, sobretudo, nos anais da ABRALIC, ao longo desses anos de pesquisa no Doutorado vide
bibliografia (CAVALCANTI, 2018; 2019a; 2019b, 2019c). Também aqui escrevo retomando e suplementando
as noções teóricas de paródia e tradução que discuto na minha já citada pesquisa de Mestrado (CAVALCANTI,
2009), como mencionado na introdução, minha primeira experiência de pesquisa com o campo da tradução
literária.
200
ficcionistas argelinos dos tempos correntes que aderiram à prática paródica na sua maneira de
traduzir e ressignificar O estrangeiro em face de toda uma tradição crítica acerca de Camus.
Linda Hutcheon (1991) é uma das responsáveis por localizar e sublinhar a recorrência
do exercício paródico no plano da criação artística pós-modernista, tecida nos final do século
XX. Ela conceitua pós-modernismo como um campo que não obedeceria a uma lógica
fechada e fixa de definição, assinalando, por outro lado, que o termo se aproximaria de uma
espécie de concepção menos inflexível e mais “moldável” e “aberta”, tal qual uma forma
“poética”. “A poética do pós-modernismo” estaria, assim, atravessada por, entre outras
nuances, operar uma revisão crítica, a partir das produções estéticas, do que foi estabelecido
como passado. Neste universo revisionista e crítico, prima-se pela implosão de antigas
fronteiras e limites entre os variados gêneros, de modo que, não raro, misturam-se os campos
da ficção, da teoria, da história. Na esteira desse novo formato criativo, são notáveis
produções cada vez menos aprisionadas a rótulos engessados e que partem com intensa
frequência para um maior contato interativo com diversos meios semióticos, provocando
misturas e amálgamas que passaram a refazer velhos métodos de escrever e produzir arte.
Sendo assim, de acordo com Hutcheon, a paródia se estabeleceria como um dos
principais símbolos da “Poética do pós-modernismo”, uma vez que seria por meio dela que as
interações entre obras do presente e do passado poderiam passar por uma reavaliação
problematizadora, questionando-se o velho tabu da total originalidade de uma produção,
tentando-se, nesse sentido, transgredir uma tradição alicerçada em ditames que já não
comportariam mais as reflexões necessárias à arte no que concerne a, a partir do presente,
reexaminar o que se viveu e o que se construiu em termos de discurso, imagem, estética, etc.
Tal silhueta singular, conforme a canadense, faria da poética pós-modernista uma
tendência autocrítica e autoreflexiva, se comparada à iniciativa modernista, visto que esta se
fez marcada pela obsessão vanguardista, voltada para abandonar o passado em função de uma
postura criativa que se colocaria, em primeira ordem, como dotada de novidade e
originalidade. O pós-modernismo, dessa forma, carregaria, segundo Hutcheon certa
“maturidade” frente ao mundo, já que não se propõe a recusar por completo o passado, mas a
revisitá-lo de modo reflexivo. Uma revisita ao “ontem” realizada com a consciência de que
seria um mito a demandar desconstrução a possibilidade de uma novidade original absoluta.
Dentro desse ângulo, a autora propõe que se reconceitue a paródia em consonância
com o projeto pós-modernista. Ela insurge contra a acepção restrita e negativa que a prática
201
adquiriu tanto em face de teóricos de referência significativa, quanto em face de atores do
senso comum: o de que parodiar seria ridicularizar um texto primeiro. Cito Hutcheon:
Rumando o movimento indagador para si mesma, ela já não é uma narrativa apenas
de herói problemático, mas uma narrativa problemática. Não é somente o herói que
não consegue alcançar os valores autênticos ao fim da busca; ela própria, enquanto
linguagem da busca, titubeia quanto ao modo de indagar esses valores
adequadamente, ou, pelo menos, apresenta como crítica essa investigação.
Incorpora, por isso, a hesitação ambígua à sua técnica de construção: defrontando-se
consigo mesma, encaracola-se, volta-se contra si própria. A linguagem criadora é
minada pela metalinguagem. O projeto para construir transformase, paradoxalmente,
no projeto para destruir. A poética da busca se faz uma poética da destruição
(ARRIGUCCI JR, 2003, p. 24-25).
Desse modo, estabelecendo uma relação entre O caso Meursault e a fala do crítico
citado, é possível apontar que a própria narrativa de Haroum já se apresenta como
metalinguagem, pois sua prática principal, como narrador protagonista em diálogo com um
francês que o procura para pedir-lhe uma nova versão dos fatos narrados anteriormente em
1942, é propor uma releitura/reescritura/renarração de uma história matriz, contada, por sua
vez, em um livro que veio a se tornar famoso, escrito por um francês que disse ter matado seu
irmão meramente por causa do sol – Meursault. Em outras palavras: Haroum não está ali para
contar/ criar uma história nova, mas para revisar e reapresentar sentidos para uma narrativa
anterior publicada em livro e de autoria francesa, especificamente, pelo assassino de seu
irmão que, sequer, recebeu um nome na obra, tamanho fora a indiferença para com o sujeito
“árabe”. É com tal caráter metalinguístico que a obra do escritor argelino reúne características
marcantes da literatura contemporânea, isto é, a “destruição” da narração “pura” de fatos a
compor uma diegese em favor de um problematizar crítico da própria forma de narrar.
A paródia também é correlacionada por Arrigucci aos recursos recorrentes da
literatura do século XX, sobretudo, em seus anos finais. Ela percebida como uma forma de
produzir literatura atravessada pela mencionada “destruição”, técnica que tanto compõe a
criação das últimas décadas. Cito novamente o autor:
36 Apesar de não ser o foco da pesquisa, considero oportuno assinalar a possibilidade de leitores que não
conheçam Camus leiam O caso Meursault e do romance possam também extrair sentidos, os quais seriam
diversos, logicamente, daqueles que têm no repertório O estrangeiro. A autora brasileira Andréa Müller
considera essa possibilidade de leitura e a comenta brevemente em seu ensaio sobre o romance do autor argelino.
Vide: MÜLLER, Adréa Correa Paraiso. Uma voz deste século em busca de um lugar na literatura. Revista
Soletras. Nº. 36, vol.2, 2018.
206
histórico “nova roupagem para velhos termos e a renovação resulta sempre em ganho teórico”
(1993, p.35). Nesse sentido, a autora se volta, particularmente, para a noção teórica de
tradução. Cito Souza:
A presente tese defende que o romance de Daoud pode ser visto como uma “tradução
paródica pós-colonial” de O estrangeiro, de forma que o adjetivo pós-colonial indica traços
centrais na produção do escritor argelino e a singulariza no contexto da ficção contemporânea
da Argélia. O termo pós-colonial vem aí indicar que tal diálogo intertextual de ressignificação
suplementar da obra primeira se faz ciente de que esta pertence a uma tradição literária
instituída como canônica e ocidental, possuindo hegemonia no quesito de fixação de uma
memória histórica e dominação em valores estéticos aceitos como legítimos dentro dos
quadros literários metropolitanos. Continuando, o termo “pós-colonial” vem aí indicar que a
tradução paródica realizada por Daoud se faz pela autoria de um escritor que é nativo de uma
ex-colônia francesa e que tal condição, como demonstra Hall (2006), dialoga com um
contexto histórico social permeado por conflitos culturais, por tensões entre presente
“independente” e passado “colonial”, por tensões entre os idiomas locais (variações do árabe
e dialetos cabiles) e o francês, por uma literatura magrebina que, como destaca Melissa
Scanhola (2013), desde o período colonial, em momentos próximos ao estourar dos conflitos
que culminariam com a Revolução de independência argelina, se fez atravessar pelo projeto
de recontar a História da nação. Nesse exercício, surgiu a necessidade de criar traços estéticos
autônomos tal como era o desejo de libertação por parte da literatura local criativamente, a
qual, em termos de Literatura, também passava, entre as décadas de 40 e 50, a retornar ao
passado das tradições locais e ancestrais, no afã de construir uma imagem do país que
remetesse às origens autóctones.
Antes da geração contemporânea de Daoud, a Literatura argelina foi interpelada por
uma conjuntura que até o presente se faz uma questão de peso na ficção magrebina: o
paradoxo entre questionar o colonizador e fazê-lo a partir de sua língua “dominadora”. A esse
respeito, cito o trabalho da pesquisadora Melissa Scanhola (2013) a respeito da ficção argelina
do século XX no limiar da Guerra da Independência. A autora, em seu recorte particular,
discorre sobre o escritor argelino Kateb Yacine e sobre a tessitura da nação argelina por ele
realizada no romance Nedjma. Diz ela em trecho no qual contextualiza a produção literária da
região diante das tensões idiomáticas vigentes, o que aqui se faz objeto de interesse para
refletir sobre a tradição estética local que se estabelecia no período circundante às lutas pela
libertação, com a qual dialoga Kamel Daoud de seu lugar contemporâneo:
37 CHAMOISEAU, Patrick. Anabiose sur la Pierre-Monde. In: Écrire em pays dominé. Paris: Gallimard, 1997.
Na obra, o autor da Martinica partilha suas observações sobre a literatura caribenha utilizar o francês como
idioma contradiscursivo à própria dominação.
213
meados do século XX, mas antes de apresentar as palavras da pesquisadora, nesse sentido,
julgo também importante fazer uma ressalva sobre os sentidos da ideia de literatura produzida
no Magrebe, conforme as considerações de Müller (2018), autora que, como eu, visita a
produção de Daoud no Brasil em reflexões em ensaio aqui já mencionado em nota. Coloca
Müller:
39 Fredric Jameson (1985), é importante destacar, no texto “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, mostra
entender a paródia de modo distinto ao de Hutcheon, atrelando-a precipuamente ao signo do humor. Sendo
assim, o autor cunha o conceito de “pastiche”, o qual, para ele, “é a paródia lacunar, paródia que perdeu seu
senso de humor” (1985, p. 18-19). Opto, contudo, por dialogar com Hutcheon e utilizar a noção de paródia tal
como ela entende. Distanciando-se do termo pastiche, que, para ela, seria “uma paródia neutra ou inexpressiva”
(1991, p. 47), a canadense compreende ser a paródia o construto estético da pós-modernidade e lembra: “não há
exatamente nada de aleatório ou sem princípio na recordação ou no reexame paródicos do passado .... A
inclusão da ironia e do jogo jamais implica necessariamente a exclusão da seriedade e do objetivo na arte pós-
modernista” (1991, p. 47-48).
217
onde parte a ficção Daoudiana, a qual, sobretudo, dialoga com a contemporaneidade das
relações entre França e Argélia, sobressaindo-se aí a questão da imigração e também dos
atentados de autoria do Estado islâmico, que as análises que se seguem serão desenvolvidas.
Estudar o romance pós-colonial de Daoud ainda, na linha dos Estudos culturais e pós-
coloniais, como realizo, é observar que sua ficção entrelaça elementos interligados àquilo que
Quijano (2005), pensando o projeto de “modernidade eurocêntrica” em face da América
Latina, define como “Matriz colonial do poder” (conceituada no capítulo anterior ao se
focalizar O estrangeiro): exploração da terra, do trabalho, dos corpos no seu controle da
sexualidade e da reprodução para o fortalecimento das bases econômicas capitalistas. Nesse
sentido, se faz relevante mapear em Daoud como, na reescritura do romance camusiano, a
partir de uma base estética agora pós-moderna, sua ficção articula a representação de tais
elementos.
No romance argelino, a narrativa representa, de modo articulado, terra e gênero sob o
olhar de nuance patriarcal do narrador; articula terra e sagrado/religiosidade, sob o olhar
conflituoso entre fundamentalismo islâmico e a crítica de tal fundamentalismo por parte do
narrador; ela interliga as fabulações das imagens de argelinos e franceses em jogo com a
posição de poder quanto ao trabalho, a exploração dos corpos, a ocupação do território pelos
diferentes corpos argelinos e franceses e suas relações com questões de gênero. Tal quadro de
embricamento possui tamanha complexidade, que se torna difícil separar, na obra, onde a fala
do narrador discute precisamente a cidade argelina e onde discute as noções de
sagrado/religião e de sexualidade em especial. A narrativa emaranha esses aspectos, porque
assim seria a natureza de suas relações numa conjuntura em que se protagoniza um país
lidando com o pós-colonial (QUIJANO, 2005; HALL, 2003). Dessa forma, sublinho a
extrema dificuldade de setorizar a análise da obra em itens distintos sobre a fabulação da
alteridade, da geografia local, de gênero. Contudo opto, a título de organização cognitiva da
cadeia demonstrativa crítica (LIMA, 1981), por dividi-los, sim, em seções diversas, mas
fazendo a seguinte ressalva: ao se falar das subjetividades árabes, se fala da terra, do sagrado
e da condição de gênero aí implicada; ao se falar do sagrado, se discute a alteridade árabe, a
representação das cidades argelinas no texto e a questão do fundamentalismo local de base
patriarcal; ao se problematizar gênero e, nesse domínio, as masculinidades e a maternidade, é
forçoso pensar a memória da geografia e a afetividade dos personagens diante da família e da
memória argelina sobre as lutas pela independência.
218
O desenho estético de O caso Meursault, portanto, propõe um desafio àqueles que
decidem estudá-lo: organizar uma análise linear de seus aspectos em uma cadeia textual
inteligível. Reconhecendo o impasse presente no texto literário e na sua peculiaridade estética,
julgo propício me entregar a esse emaranhado de sentidos e assumo que os tópicos analíticos
que se seguem são divisões meramente ilustrativas de focalizações de certos trechos em que
um aspecto em estudo se sobressai mais evidentemente que o outro. Entretanto, o faço
advertindo que todos esses pontos (subjetividades árabes, sagrado e religiosidade, islamismo,
geografia, gênero) se encontram e se interpenetram. Destarte, convido os meus leitores, a
assim como eu, permanecerem vigilantes desses encontros interseccionais na obra e nas
análises, compreendendo as visíveis repetições presentes na ficção de Daoud. Estas repetições
ganham mais em serem percebidas não como um retorno ocioso ou como uma “falta” de
habilidade elíptica e sequencial da autoria, mas como a capacidade da obra de enfatizar com
crítica, entre tantos outros aspectos, a interconexão entre as bases da matriz colonial do poder
em sua arquitetura estética.
40 Os próximos itens do trabalho retomam pontos já exaustivamente indicados na pesquisa, mas tal retomada
objetiva inserir as devidas suplementações analíticas que trazem novas nuances ao que já disse sobre o romance
de Daoud.
219
O romance argelino vem, assim, elucidar um passado tanto histórico quanto ficcional
das representações dos sujeitos árabes e da Argélia, que, com frequência, são sujeitos
subalternizados e marginalizados pela crítica tradicional, sobretudo, quando se tem como
corpus investigativo preponderantemente narrativas hegemônicas e canônicas da História da
Literatura ocidental, tal qual O estrangeiro. Trata-se, pois, de uma forma de construir a ficção
que aparenta, quebrando as barreiras entre arte e espistemologia crítica bastante em jogo com
as tendências pós-modernistas, estar em consonância com o que vem desenvolvendo os
Estudos Pós-coloniais nas últimas décadas. Estes, por sua vez, aqui já foram definidos, a
partir de Inocência Matta (2016), como um amplo domínio de estudos que entrecruza variados
campos e disciplinas para examinar as relações entre as produções culturais e panoramas
políticos atravessados pelo histórico colonial e pela violência inerente à empresa imperialista.
Dessa forma, a partir do momento em que a tradução paródica de Daoud frente ao
clássico camusiano arquiteta um olhar para focalizar as alteridades argelinas (iniciativa que
dialoga com a Crítica pós-colonial), passa a pôr em evidência a dimensão ética que é capaz de
estar presente na Literatura, como bem observa Roland Walter (2015) em ensaio intitulado
“Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica”. Cito o autor:
Que é um juiz penitente? Ah, deixei-o intrigado com esta história! Não coloquei
nisso malícia alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certa
forma, isso faz mesmo parte das minhas funções. Mas, em primeiro lugar, é
necessário expor-lhe um determinado número de fatos que o ajudarão a
compreender melhor a minha narrativa (2017, p. 15).
Remarco a tendência do discurso do narrador se erguer como resposta a perguntas do
narratário, muitas vezes, retomadas em eco pela sua fala, como tipicamente ocorre numa
conversação oral. Esta particularidade de A queda é elemento que se funde à paródia de
Daoud. Nela, os dois romances de Camus revivem em novas articulações e simbologias.
Adréa Müller também observa o dialogismo entre o romance de Daoud e A queda.
Nesses termos, se coloca a autora:
Outras obras de Camus também são solicitadas pelo romance de Daoud. La Chute
(1956), por exemplo, parece ressoar na composição da narrativa de Haroun: este
último, já idoso, conta sua história a um estudante em um bar da cidade argelina de
Orã; caberá a esse estudante escrever o relato transmitido oralmente. A situação
lembra a de Jean-Batiste Clamence, protagonista de La Chute, que constrói sua
narrativa em forma de monólogo dirigido a um homem em um bar de Amsterdam.
Há estudos que consideram O caso Meursault como pastiche de La Chute
(LOUAIL, 2016). No entanto, é com O estrangeiro que se estabelece um diálogo
222
mais direto, cujas marcas se deixam identificar de maneira mais contundente desde o
título (2018, p.220).
Em seguida, faz-se significativo o fato de Müller fazer questão de ressaltar a própria
atração que a figura de Camus exerce sobre os escritores contemporâneos locais. Afirma ela:
Kamel Daoud não é o único nem o primeiro escritor argelino francófono a revisitar
Albert Camus. Seu romance faz parte do que Christiane Achour chama de “conjunto
impressionante de referências argelinas a Camus” (ACHOUR, 2015). Destaca-se
entre as diversas obras que alargaram esse conjunto em 2013, quando do centenário
de nascimento do autor de O estrangeiro (LOUAIL, 2016) (MÜLLER, 2018, 220).42
Mas, a semelhança de O caso Meursault com A queda está além da sua narração
dialógica em face de um narratário; ela se caracteriza também no que diz respeito ao tom
crítico de ambos os narradores (camusiano e daoudiano) para com a sociedade que têm como
referência e, sobretudo, ao espaço onde ocorre a narrativa: um bar. Se Camus cria um diálogo
em um bar de Amsterdã em que um operador do Direito problematiza as hipocrisias da
própria área de atuação profissional, Daoud leva ao ápice a crítica da sociedade a partir da
qual escreve ao construir a sua paródia como um texto dialógico entre um argelino e um
francês que pede para ouvi-lo exatamente em um bar de Orã acerca de uma revisão do “caso
Meursault” no “livro que ficou famoso”. A locação, em Daoud, diversamente do que ocorre
em uma metrópole ocidental como Amsterdã, deixa à mostra que o consumo de álcool e o bar
não são elementos iguais em todas as culturas. Numa cultura islâmica autoritária e
nacionalista, numa cultura argelina em que, historicamente, a colonização francesa, como
ressalta Yasbec (2010), explorou a terra e a mão-de-obra para a produção de vinho, o bar é um
espaço narrativo de tensão por aludir a uma memória de um duplo autoritarismo: a) o da
política argelina, que gere interesses de grupos fundamentalistas, os quais não veem com bons
olhos práticas alcoólicas e inibem a liberdade de uma Argélia que poderia ser acolhida como
um país plural e não unicamente de vertente islâmica (DAOUD, 2018); b) o da política
colonial francesa, que, violentamente, no auge de seu imperialismo, retirou a cultura de
cereais, a qual era a base agrícola da população do Mediterrâneo magrebino, para impor a
cultura de vinícolas, explorando a terra e o trabalho dos argelinos miseráveis e analfabetos,
dos quais muitos foram desterrados do litoral para se agruparem no deserto (YASBEC, 2010).
Com tal delinear, as escolhas estéticas de Daoud na tessitura da narrativa e do espaço
diegético revelam a tendência de sua ficção paródica de procurar jogar no “colo” dos leitores
as tensões histórico-políticas da memória argelina. Cito Daoud em passagens nas quais o bar
se apresenta como um lugar de tensão na Argélia:
42 Schatz (2015) adverte que Camus é referência para outros escritores argelinos e cita a obra de Hamid Grine
Camus dans le Narguilé, “sobre um homem que ouve o boato de que Camus seria seu pai biológico”.
223
Quem é Moussa? É meu irmão. E é aí que eu quero chegar. Quero lhe contar
o que Moussa nunca poderá contar. Ao abrir a porta desse bar, você adentrou
um túmulo, meu jovem amigo. Está com o livro aí na sua pasta? Muito bem,
dê uma de bom aluno e leia para mim os primeiros trechos... ...
Rá-rá! Você quer beber? Aqui, as melhores bebidas são oferecidas para
depois da morte, não antes. É a religião, meu irmão. Seja rápido, pois em
alguns anos o único bar ainda aberto será no paraíso, bem depois do fim do
mundo.
...
Beba um pouco e olhe pela janela; pode-se dizer que o país é um aquário.
Bem, bem, é culpa sua também, meu amigo; a sua curiosidade me instiga.
Faz anos que espero por você, e, se eu não puder escrever o meu livro, posso
ao menos contá-lo para você, certo? Um homem que bebe sonha sempre com
um homem que o escute. Esse é o ditado do dia, para você registrar nos seus
cadernos... (2013, p. 12-15)
As palavras de Haroum expressam sua ironia diante: a) um livro que se torna
referência canônica a ser reinvestigado, isto é, o livro do colonizador francês; b) uma Argélia
fundamentalista que, em dado momento, reprime a bebida, mas, paradoxalmente, liberaria
para fiéis islâmicos no plano do “paraíso”; c) a de uma França que, por meio de um narratário,
se permite escutar e descentra-se de sua hegemonia em termos de lugar de fala.
A obra, em todo caso, oferece pistas textuais para, a partir da interposição do diálogo
“narrador-narratário”, cravar uma crítica à Meursault e questionar: seria o seu tom narrativo
autocentrado, monológico, um hábito de um narrador autoritário, em semelhança ao
autoritarismo do colonizador? Meursault, em O estrangeiro, se apresenta como um homem
que controla o discurso, julgando, pela sua voz unívoca, os demais personagens, julgando
Deus (no cristianismo) e os árabes. Sua posição é de quem fala de modo assertivo, numa
sintaxe que afirma e não titubeia, pouco questiona. Ele é uma espécie de “juiz” de uma
sociedade que presencia o absurdo, do qual a sua existência toma consciência e o
problematiza, diversamente dos demais actantes, que parecem não se dar conta de que a vida
não teria sentido e de que Deus não haveria preparado um paraíso após a morte para os
sujeitos cristãos, portanto, presos a ilusões. Seu discurso é de si, sobre si, para si e para uma
tradição moral que continuaria a repetir a tarefa de Sísifo, de empurrar ininterruptamente o
peso da pedra, sem dela tomar ciência.
É válido atentar ainda para o fato de que quando Kamel Daoud opta por uma narrativa
em diálogo entre narrador e narratário, faz seu texto se aproximar do campo da ética da
alteridade proposto por Emmanuel Lévinas (2010). A ideia de alteridade em Lévinas está
conectada à de ética. Subverter o aporte filosófico ocidental calcado na ontologia, na
centralidade de um sujeito ensimesmado, é a perspectiva do pensador lituano para a tessitura
224
de uma identidade que, de acordo com seu olhar, não está fixamente acabada, em
contrapartida, se constitui em jogo com o outro, face a face, em diálogo. Cita-se o filósofo:
Você registrou isso? Meu irmão se chamava Moussa. Ele tinha um nome. Mas
continuará sendo o árabe, para sempre. O último da lista, excluído do inventário do
seu Robinson. Estranho, não é? Há séculos, o colono espalha a sua fortuna dando
nomes às coisas de que se apropria e retirando os nomes daqueles que os
incomodam. Se ele chama o meu irmão de o árabe, é pra matá-lo como se mata o
tempo, passeando sem rumo. Para seu governo, saiba que, depois da independência,
mamãe lutou durante anos para manter uma pensão materna de mártir. Você deve
imaginar que ela nunca conseguiu. Pois me diga, por favor, por quê? Impossível
provar que o árabe era um filho – e um irmão. Impossível provar que ele havia
existido, sendo que ele foi morto publicamente. Impossível encontrar e confirmar
alguma ligação entre Moussa e ele próprio! Como dizer isso para a humanidade se
você não sabe escrever livros? Mamãe passou um bom tempo, durante os primeiros
meses da Independência, tentando colher assinaturas ou testemunhos, em vão.
Moussa não tinha nem mesmo cadáver!
Moussa, Moussa, Moussa... Gosto às vezes, de repetir esse nome, para que ele não
desapareça dos alfabetos. Insisto nesse ponto e quero que você escreva em alto e
bom som. Um homem acaba de receber seu nome meio século depois de sua morte e
de seu nascimento. Insisto nisso.
Eu pago a conta nesta primeira noite. E o seu nome, qual é? (DAOUD, 2013, p. 22-
23).
227
Note-se que marcar o nome do irmão morto é declaradamente uma insistência e uma
reparação frente ao relato de Meursault. E mais: note-se que ainda que o nome do intelectual
francês seja interpelado por Haroum, seu discurso narrativo não permite que ele se revele. Tal
configuração explicita que Daoud, ao fazer ressurgir criticamente o relato meursaultiano em O
estrangeiro em sua obra, lança mão de um construto estético no qual não há lugar para a
identidade do interlocutor francês, que figura sem subjetividade ou memória familiar, tal
como se passou como figurara o árabe em Camus. É como se sua ficção resgatasse, em parte,
o código de Hamurabi: “olho por olho, dente por dente”, para “reparar” a omissão da
identidade árabe em O estrangeiro. Em contrapartida, sublinho as contradições do
personagem: diversamente de Meursault, Haroum nomeia o “francês” que assassina no texto,
demarcando a sua distinção ética nesse quesito frente ao narrador camusiano: “Haveria
também Joseph, o homem que eu matei” (2016, p. 106).43
A segunda alteridade a aqui ser destacada é a alteridade do árabe assassinado pelo
colono: Moussa. Os trechos comentados a seguir apresentam descrições do personagem que
lhe conferem uma subjetividade anteriormente negada. É a primeira vez na História da
literatura ocidental, revisada pela literatura contemporânea argelina, que se oferece uma
silhueta, voz, corpo, face, uma memória do “árabe” assassinado e marginalizado no clássico
camusiano. Seguem-se algumas nuances da obra nesse sentido.
Para ser claro: éramos apenas dois irmãos, sem nenhuma irmã de hábitos levianos,
como sugere no livro o seu herói. Moussa era mais velho, e sua cabeça tocava nas
nuvens. Era muito alto, sim, tinha um corpo magro e enrijecido por causa da fome e
da força que a raiva gera em uma pessoa. Tinha um rosto anguloso, mãos enormes
que me defendiam e olhos duros por causa da terra perdida pelos seus antepassados.
Mas, quando penso nisso, acredito que ele já nos amava como fazem os mortos, quer
dizer, com um olhar vindo do além e sem palavras inúteis. Guardo poucas imagens
dele, mas faço questão de descrevê-las para você detalhadamente. Como naquele dia
em que voltou cedo da feira do nosso bairro, ou do porto; ele trabalhava ali como
carregador e faz-tudo, levando coisas, empurrando, erguendo, suando. Nesse dia,
cruzou comigo enquanto eu brincava com um pneu velho, colocou-me sobre os
ombros e me pediu para segurar as suas orelhas como se a cabeça dele fosse um
volante. Lembro-me da alegria que eu sentia por tocar o céu, enquanto ele fazia o
pneu rolar e imitava o barulho de um motor. Sinto o cheiro dele. Um cheiro forte de
verdura podre e suor, músculos e respiração misturados. Outra imagem é de um dia
de celebração do Aïd. Na véspera, ele tinha me dado uma surra por causa de uma
bobagem qualquer, e estávamos chateados um com o outro. Era o dia do perdão, ele
deveria me abraçar, mas eu não queria que ele perdesse o orgulho ou se rebaixasse
para me pedir desculpas, mesmo em nome de Deus. Lembro-me também de como
ele ficava parado na entrada de casa, de frente para o muro dos vizinhos, com um
cigarro e uma xícara de café servida pela minha mãe (2013, p. 16-17).
A passagem coloca os leitores de O estrangeiro de frente com aquilo que a justiça
francesa no julgamento de Meursault não chegou a trazer à tona numa possível, mas
Moussa era, portanto, um deus sóbrio e pouco falante, transformado em gigante por
uma barba grossa e braços capazes de quebrar o pescoço de um soldado de qualquer
faraó de antigamente. Por isso lhe digo que, no dia em que soubemos da morte dele
e das circunstâncias em que ela se deu, eu não senti nem dor nem raiva, mas, antes
de qualquer coisa, uma decepção e uma ofensa, como se me tivessem insultado. Meu
irmão Moussa era capaz de abrir o mar ao meio, mas morreu na insignificância,
como um figurante qualquer, em uma praia que hoje nem existe mais, perto das
ondas que deveriam tê-lo tornado célebre para sempre! (2013, p. 18)
Nas palavras do narrador, revela-se, na frustração pela forma da morte, a sua mágoa
por uma masculinidade árabe (reproduzida novamente pelo fenótipo de força física, pela
229
agressividade e virilidade) devassada por um ato de assassinato lido como “sem sentido” de
um francês, afetado por suas perdas existenciais sob a linha filosófica que cunhava suas ideias
como personagem ficcional (o qual, remarco, é frequentemente encarado como um duplo de
Sísifo, em O mito de Sísifo, de Camus). O protagonismo patriarcal argelino ferido pela
hegemonia filosófica francesa é lamentado pela voz narrativa de Haroum, que, dessa forma,
se apresenta apoiada nas bases de um etos patriarcal característico de sua cultura.
A seguir, destaco outro excerto que reconstrói a identidade de Moussa silenciada em O
estrangeiro. Nele, grifo a confluência de expressões na língua árabe, como forma de
resistência cultural argelina, em meio ao monopólio do francês na narrativa. Também assinalo
a tendência à bebida, vinda justo de um fiel islâmico (não autorizado pela religião a consumir
álcool) que tatua sua devoção na pele. Trata-se de um paradoxo da identidade do personagem
cuja complexidade e ambivalência são frequentemente destacadas no romance. Cito:
Como todos os demais você deve ter lido essa história tal como a contou o homem
que a escreveu. Ele escreve tão bem que as suas palavras parecem pedras talhadas
pela própria exatidão. (...) Você viu a maneira dele de escrever? Ele parece usar toda
a arte da poesia apenas para falar de um tiro! Seu mundo é limpo, burilado pela
claridade da manhã, preciso, nítido, composto com pinceladas de aromas e
231
horizontes. A única sombra é a dos “árabes”, objetos fluidos e disparatados, vindos
de “antigamente”, como fantasmas, tendo apenas o som de uma flauta como
linguagem. Digo a mim mesmo que ele devia ficar cansado de ficar dando voltas em
vão em um país que não queria saber dele, nem morto, nem vivo. O assassinato que
cometeu parece o de um amante decepcionado com uma terra que ele não conseguiu
possuir. Como deve ter sofrido o pobre! Ser filho de um lugar que não o deu à luz
(2013, p. 11).
E mais adiante, o modo de Meursault representar despersonalizada e
subalternizadamente o povo argelino é, novamente, destacado:
Nós éramos fantasmas nesse país enquanto os colonos abusavam dele e passeavam
nele fazendo o que bem entendessem. E hoje? Pois bem, hoje é o contrário! Eles
voltam aqui, à vezes, segurando as mãos de seus descendentes em viagens
organizadas para os pied-noirs ou para os filhos dos nostálgicos, procurando
reencontrar uma rua, uma casa ou uma árvore com as suas iniciais gravadas no
tronco. Vi recentemente um grupo de franceses na frente de uma loja de tabaco do
aeroporto. Como espectros discretos e calados, eles nos olhavam, a nós, os árabes,
em silêncio, exatamente como se fossemos pedras ou árvores mortas. E, no entanto,
essa história já acabou. É o que o silêncio deles dizia (2013, p. 20).
Os trechos mostram o sentimento de revolta, de raiva de Haroum em relação ao modo
como os árabes foram construídos em Camus. O romance daoudiano insurge, portanto, contra
a massificação identitária dos argelinos, denuncia a estereotipização como a prática chave de
um narrador imperialista e colonizador que foi Meursault. A “revanche” crítica de Haroum
contra Meursault, contudo, está posta na necessidade acima observada de o narrador
daoudiano atestar a forma como a coletividade árabe foi tecida no clássico como passiva e
silenciosa, “pedras ou árvores mortas”.
Nesse movimento, o romance de Daoud grita a toda uma tradição literária, ao
Ocidente, à própria Argélia e mesmo a todas as periferias colonizadas que podem ouvi-lo em
variadas traduções recebidas pelo romance, premiado pelo Goncourt de 2015, quem foi
Meursault: um narrador imperialista, que assassinou, que fantasmagorizou os argelinos. E este
narrador teria sido aplaudido por toda uma geração de leitores e escritores, porque, entre
outros privilégios, tinha como sua a potência da alfabetização francesa e foi tecido, como
personagem ficcional, sob um estilo impecável de ficção ilustrada no interior do cânone
ocidental. Fica saliente do tom narrativo de Haroum a sua revolta contra o prestígio canônico
do “livro” em que Meursault é o herói na República mundial das Letras (CASANOVA,
2002).
Igualmente, no seu reescrever da imagem de Moussa, cria-se um campo para pensar a
pobreza, a fome, o analfabetismo, a exploração e a violência contra a população colonizada.
Esses traços ajudam a compreender, na contraface ficção x realidade, interposta pela produção
de Daoud, porque: a) tal população magrebina traçou as estratégias históricas de sua
232
independência política como traçou (YASBEC, 2010), isto é, em consonância com o
nacionalismo intrincado à religião islâmica, prefigurando uma cultura de base fundamentalista
e regulada por lideranças políticas que se estabeleceram com autoritarismo (FANON, 1965;
HALL, 2006; SAID, 1995); b) a emigração como uma maneira de tentar reconstruir uma
história de exploração e opressão por meio de uma nova empreitada na metrópole, utopia que
esbarrará com muitas situações de xenofobia impostas a argelinos por parte de cidadãos
franceses que recusam a memória da própria exploração imperialista como justificativa para o
deslocamento de ex-colonos para a França, vistos muitas vezes, como ameaça à cultura
ocidental (SAYAD, 1998). Paradoxalmente, os mesmo imigrantes rejeitados são a mão-de-
obra precípua para trabalhos subalternizados no país, trabalhos braçais, sexuais, que
organizam a França como ela é atualmente: uma potência da União Europeia a enfrentar a
diversidade cultural em seu território (HALL, 2006), em decorrência de seu percurso
imperialista no Magreb e em outras regiões da África, da América.
Sendo assim, a ficção paródica de Daoud, em muito contribui para o alargamento
crítico das percepções sobre as variadas relações entre França e Argélia sobre as alteridades
magrebinas. Contudo, é relevante apontar que as alteridades árabes se refiguram em muitos
outros pontos na obra daoudiana. Os aspectos elencados nesta seção foram apenas alguns
daqueles passíveis de serem destacáveis no conjunto do texto. Por ora, ao longo das próximas
análises, será viável, por exemplo, observar mais detalhes sobre a personalidade de Haroum,
de Moussa, dos homens da sociedade argelina e das mulheres (tão subalternizadas, como já
dito aqui, pela recepção tradicional do romance original de Camus), na abordagem da questão
do sagrado, da geografia local e das questões de gêneros mais pontuais que mobilizam as
masculinidades, as sexualidades e a maternidade.
45 O ano de publicação da obra é 1951. A edição que utilizo para estudo e referência é de 2018.
235
se discutiu (Capítulo 2), vai chamar atenção para o fato de que O estrangeiro, ao centralizar-
se nesses aspectos de preocupação filosófica claramente ocidental, ligados a um contexto
europeu do Pós-guerra, ao nazismo, dentro de um espaço ficcional como a Argélia, acaba por
reafirma a dominação de um imaginário cultural francês no país. Este imaginário, remarco, se
atualiza pela narrativa tecida por Meursault na sua condição de narrador colono, isto é, na
posição de dominação frente ao território local. Cito Said, nesse sentido, novamente:
O romance, por apresentar tais traços, dialoga, que fique remarcado mais uma vez,
com as ideias defendidas por Edward Said (1995), como se apresentasse uma resposta ao
domínio colonial francês visível entre as linhas de O estrangeiro, já apontado pelo autor de
Cultura e imperialismo, trazendo à tona, então, a memória ocultada da colonização da Argélia
para ser matéria a compor o relato do narrador Haroum e matéria oferecida como ponto de
reflexão para o narratário (investigador francês/ intelectual europeu) e para os leitores
variados. É nessa conjuntura que o romance irá projetar também as questões religiosas no país
na contemporaneidade. Na realidade, tendo em vista que a questão do sagrado e do
cristianismo é uma seara central recortada pela tradição crítico-literária na abordagem de O
estrangeiro, repensá-la, revisitá-la parodicamente, se transforma, igualmente, em um ponto
relevante no romance do escritor argelino.
Detecto e elenco nesta pesquisa, sendo assim, alguns aspectos precípuos na tessitura
do sagrado e do religioso em Daoud, conforme sua releitura paródica para comentá-los
adiante. São eles:
1) diversamente do tratamento dado ao divino por Meursault, que lhe confere
indiferença e descrença, a figura de Deus ressurge para o novo narrador Haroum como uma
entidade que não deixa de ser referenciada com constância e, assim, valorizada. Entretanto,
que fique sublinhado: a religiosidade se apresenta para o protagonista de modo contraditório,
uma vez que Deus é invocado e reverenciado, porém entre queixas e insatisfações em relação
à religiosidade na Argélia;
237
2) existe a menção explícita ao sagrado islâmico, ao próprio Corão, (o que não
ocorrera em Camus e que, em Daoud, muitas vezes é representado no texto na alusão a
mesquitas que compõem as cidades argelinas, aos ritos mulçumanos). O islamismo, por vezes,
rivaliza na obra com o código cristão e, por vezes, a ele se integra, nuance paradoxal que
atesta a própria ambivalência com a qual a questão se reprojeta na ficção do autor, a por a nu
as tensões culturais da colonização;
3) existe uma tendência em O caso Meursault de criticar o fundamentalismo islâmico
e, ao mesmo tempo, se observam, contraditoriamente, posturas fundamentalistas nas falas e
atitudes do narrador argelino;
4) fica notável no texto a tentativa de atacar o conceito de “absurdo”, tal qual este se
apresenta nas atitudes indiferentes que moldam o caráter do personagem francês Meursault,
sobretudo, quanto ao fato de “o absurdo” (isto é, a falta de sentido no mundo moderno) ter
sido encarado como a razão do assassinato de Moussa. Este “ataque” pode ser compreendido
como uma maneira de se operar certa “desmistificação” do absurdo construído em Camus em
jogo com O mito de Sísifo (2018a), sendo operacionado esteticamente por meio da
reconstituição do crime, traçada agora por Haroum com suplementações que concernem aos
entornos da morte de seu irmão sentidos inéditos, detalhes anteriormente não aparentes no
relato meursaultiano (inclusive, detalhes que se conectam à questão de gênero na colônia
Argélia, como discuti no capítulo anterior);
5) constrói-se outra espécie de dessacralização: a de O estrangeiro diante da tradição
crítica ocidental (tal qual inicialmente avaliei no capítulo dois);
6) o discurso de Haroum propõe uma abertura para que se compare a crença religiosa
ao pacto ficcional estabelecido entre a literatura, na sua condição de mimesis (isto é, de
recriação da realidade a partir do olhar humano), e o leitor. Aqui, a obra, com ousadia em face
de uma tradição islâmica de histórico autoritário no país, relativiza os dogmas religiosos.
Tais aspectos passam a ser refletidos da forma como aparecem no texto de Daoud, a
partir de alguns excertos selecionados para análise. A ideia é que, através das citações, fiquem
perceptíveis as tendências estético-ideológicas do autor magrebino para tecer a ressignificação
crítica do sagrado camusiano, da religiosidade aparente na trama narrada por Meursault.
O primeiro trecho que recorto para comentário é o que abre o romance, já citado
anteriormente neste trabalho. Nele, fica evidente que a figura de Deus tem poder sobre o
imaginário do narrador, fazendo parte de suas crenças, o que é bastante diferente daquilo que
ocorre com Meursault. Como vastamente já se discutiu ao longo de décadas sobre O
238
estrangeiro, Meursault ataca o cristianismo e se mostra um personagem explicita e
unilateralmente indiferente ao divino cristão, fato emblematicamente evidenciado na cena do
romance em que ele faz questão de se apresentar descrente em Cristo ao depor ao Juiz sobre
seu crime, um juiz francês atuante numa Argélia sob o domínio imperialista (caricaturado
como imparcial por mobilizar Deus em sua conduta jurídica processual). Segue o relato
meursaultiano da cena:
Mas ele me interrompeu e exortou-me uma última vez, do alto de sua posição,
perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado.
Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os
que lhe viravam o rosto. Essa era a sua convicção, e se algum dia viesse a duvidar
dela, a sua vida deixaria de ter sentido (CAMUS, 2016, P. 73).
O trecho, assim, caracteriza o protogonista do romance camusiano: assassino e
descrente em Deus. O caso Meursault trará, diversamente, um narrador argelino que não
manifesta nitidamente ou polarizadamente descrença ou total fé em Deus. Seu caráter é
complexo, conflitante, porque ele ora dialoga com Deus em seu discurso, demonstrando
alguma fé, ora condena a religiosidade mulçumana naquilo que ela traria de hipócrita na
prática de seus fiéis. Cito, contudo, para abrir a análise do texto quanto ao tema, o primeiro
parágrafo de Daoud:
De novo! Sempre que reconstituo essa história na minha cabeça, fico com raiva pelo
menos toda vez que tenho forças para isso. O francês age como se o morto fosse ele,
e conta como perdeu a mãe, fala como perdeu o corpo de uma amante, em seguida
como foi à igreja e constatou que o seu Deus havia abandonado o corpo do homem,
e depois como velou o corpo da mãe e o seu próprio etc. Meu Deus! Como é
possível matar alguém e apoderar-se dele até a própria morte? Quem levou uma bala
no corpo foi o meu irmão, não ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? (2016,
p.12).
Torna-se, mais uma vez, aí aparente a diferença cultural entre os dois narradores das
obras em estudo, que se relacionam com a religiosidade de modos diversos. A questão do
sagrado na obra de Camus se atravessa pela relação de indiferença de Meursault com Deus
(mas dentro dos contornos eurocentrados do contexto de produção do romance sob a égide da
formação filosófica do escritor). Nesse caso, a obra de Camus, ao ser frequentemente
estudada pela chave de leitura do “absurdo”, seria assinalada por certa relativização das
razões/culpa do crime de assassinato “do árabe”, justamente porque tal crime estaria sob a
responsabilidade não absolutamente da conduta criminosa/dolosa de Meursault, mas seria
atribuído à intervenção solar e à indiferença do herói em relação ao binômio humano vida x
morte. Tal leitura do crime é a que tem vigorado, como já discutido aqui (vide capítulo dois),
seja na tradição crítica que interpretou o clássico, seja nas palavras defendidas por Meursault
em seu julgamento (“por causa do sol”), de forma que na obra daoudiana vem esta versão a
ser questionada como única possível para o fato.
Por esse viés assinalado pela paródia de Daoud de questionar as razões do crime
unicamente vinculadas ao “absurdo”, o texto camusiano poderia ser reinterpretado
criticamente tal como fez Edward Said (1995): como uma obra que problematizaria o sagrado
240
univocamente sob o olhar francês, sua intersecção com o absurdo, tal como explicado por
Soares (2010), mesmo numa história que se passa no espaço narrativo da Argélia colonial, e
como uma obra que, dessa forma, ocultaria a violência sintomática do imperialismo praticada
pelo colono Meursault contra “o árabe”.
Contudo, sugiro novamente que tal visão do Sagrado, via Said (1995), seja pouco
atenta às ambivalências encontradas no romance francês. É preciso lembrar que, sim, há em O
estrangeiro a construção do absurdo como um tipo de “sagrado” (SOARES, 2010) e como
motor a guiar os atos, por vezes, passíveis de serem vistos como indiferentes de Meursault; é
preciso estar-se atento, sim, à potência mítica solar na conjuntura do crime, mas, sobretudo, é
mister compreender, do ponto de vista da teoria literária, que todos esses elementos da
história são trazidos pelo ponto de vista mais visível da voz do narrador Meursault. Na
polifonia do romance, descrita por Bakhtin (2002), distinguem-se as vozes da autoria (em
profundidade) e do narrador (em superfície) a guiarem a arquitetura da obra. De acordo com
tal raciocínio polifônico, se Meursault acusa o sol ou se dá a entender que seus atos seriam
indiferentes pelo seu caráter de homem absurdo, a obra construída por Camus enseja também
arestas de possibilidades de sentidos ambivalentes. Apontei no capítulo anterior que o crime
de assassinato em muito se interliga com a relação que Meursault estabelece na trama com os
personagens Raymond e com a “mulher árabe” sem nome, a qual seria “amante” deste último,
interseccionando-se aí as questões de gênero e de raça na conjuntura colonial argelina (vide
capítulo três). Dessa forma, pensar a reescritura do sagrado camusiano em Daoud é ir muito
além de identificar Camus como dono de um projeto unicamente imperialista em seu romance
(como fez Said). Na verdade, problematizar o sagrado no autor argelino implica levar em
consideração as tantas apontadas ambivalências e complexidades do clássico francês, fugindo-
se a reducionismos interpretativos.
No terceiro trecho em recorte, Daoud introduz explicitamente a cultura muçulmana e
faz Haroum comparar ironicamente a narrativa de Meursault (veladamente uma referência ao
livro O estrangeiro) ao Corão. O personagem critica o sagrado em Camus, que seria a própria
crença no conceito filosófico do absurdo a guiar os atos de Meursault, denunciando como o
narrador pied-noir silenciaria o teor de barbárie da violência colonial, realizada por meio de
assassinatos de argelinos (no caso, seu irmão), ao atrelá-la a uma condição meramente
existencial de sua consciência como francês erudito. Cito a obra:
Conheço esse livro de cor, posso recitá-lo inteirinho, como o Corão. Quem escreveu
essa história foi um cadáver, não um escritor. A gente percebe isso pela sua maneira
de sofrer com o sol e com o brilho ofuscante das cores e por não ter opinião sobre
241
nada que não seja o sol, o mar, as pedras de antigamente. ... O que me dói, toda
vez que penso nisso, é que ele o matou ao cruzar com ele, e não atirando
diretamente. Você sabe: o crime foi cometido com uma indiferença majestosa. Ela
impossibilitou, na sequência, qualquer iniciativa de apresentar o meu irmão como
um charid. O mártir só apareceu muito tempo depois do assassinato. Nesse ínterim,
meu irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos (2016,
p.13).
O trecho visivelmente ainda desnuda o conflito colonial entre Cristianismo e Islã,
porque Haroum se dirige ao irmão Moussa, de modo lamentoso e indignado, como um
argelino que poderia ter sido visto como um mártir, o que remeteria também ao papel de
Cristo na cultura ocidental. Mas note-se que a palavra que Haroum utiliza para designar mártir
também aparece em árabe, Charid. Nesse detalhe idiomático, na contraface da referência
ambígua ao cristianismo europeu, o discurso narrativo violenta a hegemonia do idioma
francês no romance, interpondo o árabe em suas terminologias que envolvem a religiosidade
local. É fundamental aqui mencionar, já que estão em debate os conflitos e a convivência
ambígua das religiões diversas com as quais dialogam os dois narradores dos textos em
estudo, que em muitos trechos do romance de Daoud, narrado por um argelino que conhece e
segue parcialmente algumas tradições mulçumanas, há referências a mitologias cristãs; ao
diabo, a Caim e a Abel, a Maria, ou seja, há uma confluência conflitante das religiosidades
cristã e islâmica no imaginário do narrador que habita um território pós-colonial, o qual revela
cidadãos atravessados pela transculturação (WALTER, 2015).
Apresento, agora, aquela “outra” face mais crítica de Haroum quanto ao quesito
religiosidade (apenas mencionada acima) de um modo mais ilustrativo no trecho que se segue.
Nesta “outra” face, Deus não é mais objeto de invocação comum na fala do personagem para
mostrar-se estupefato com a barbárie do ato assassino do francês contra seu irmão, não seria
mais uma referência, mas sim, corporificada na ideia de “pai” a ser buscado, se torna objeto
de depreciação e questionamento. Cito:
Meu vizinho é um sujeito invisível que todo fim de semana resolve recitar o Corão
aos berros a noite inteira. Ninguém se atreve a pedir para ele parar, porque é Deus
que está gritando pela boca dele. Eu também não me atrevo, pois já sou marginal o
suficiente nessa cidade. Ele tem uma voz anasalada, lamurienta, servil. ... Para
mim, a religião é um transporte coletivo que eu não pego. Gosto de ir em direção a
esse Deus, mas a pé, se for preciso, não em uma viagem organizada. Detesto as
sextas-feiras desde a Independência, eu acho. Sou crente? Resolvi essa questão do
céu com uma evidência: dentre todos aqueles que falam sobre a minha condição —
essa corja de anjos, deuses, diabos ou livros —, eu soube, desde bem pequeno, que
eu era o único que conhecia a dor e a obrigatoriedade da morte, do trabalho e da
doença. Sou o único que paga a conta de luz e que serei comido pelos vermes ao
final. Portanto, caiam fora! Além do mais, detesto as religiões e a submissão. Que
ideia é essa de correr atrás de um pai que nunca colocou os pés no chão e que nunca
teve de conhecer a fome nem de se esforçar para ganhar a vida? (DAOUD, 2016, p.
81-82).
242
Dessa forma, o narrador personagem se assemelha parcialmente a Meursault pela
relação opositiva e crítica diante de Deus vista em passagens como essa. Ele declara seu ódio
e sua amargura em relação ao domínio religioso e suas manipulações em face de uma camada
de leitores. Sua postura é crítica ao duvidar dos sentidos de Deus na cultura, o que estreita
também as figuras de Daoud e Camus, cada um a problematizar a religião de seu tempo e sua
cultura.
Prosseguindo com a análise, apresenta-se, no próximo excerto abordado, uma
ilustração significativa de como a ficção de Daoud trabalha para “rasurar” o absurdo
construído na narrativa de Meursault, isto é, para violar o sagrado (SOARES, 2010) na obra
camusiana. Neste recorte, o narrador Haroum recontando a história a partir de seu crivo
argelino, confere uma motivação para a morte do irmão, a qual contesta a versão
meursaultiana baseada na sua indiferença e na ação solar. O motivo, já debatido aqui no
capítulo anterior, mas que vale ser retomado pela articulação que estabelece com a questão do
sagrado, se relaciona ao machismo de mulçumanos árabes/argelinos e de cristãos franceses,
incluindo-se ao machismo do descrente Meursault. Apontar o machismo conectado à
violência homicida, reconhecê-lo como uma força motriz também a movimentar os
personagens para a cena dos tiros contra “o árabe” na praia, seria uma maneira de
“desmistificar o absurdo”, calcado na suposta falta de sentido que guiaria Meursault, na
medida em que um novo cenário é reconstituído pela memória narrativa que aciona uma
história inédita para o mesmo fato. Cito novamente, pois, o trecho do romance, para que o
sistema patriarcal que rege as relações de gênero na plataforma colonial possa ser agora
encarado como uma suplementação interposta por Daoud para ressignificar o ideal mítico de
sagrado (“o absurdo”), aparente no clássico francês:
Ora, entre nosso mundo e o dos roumis, mais lá embaixo, no bairro dos franceses,
circulavam à vezes, algumas argelinas usando saia e com seios rígidos, Marias ou
fátimas, inquietas entre nós, garotos, chamávamos entre nós de putas e
apedrejávamos com os olhos. Essas mulheres costumavam provocar amores
violentos e rivalidades monstruosas. O seu escritor conta um pouco disso. Mas a
versão dele é injusta, pois a tal mulher invisível não era a irmã de Moussa. Talvez
fosse no fim das contas uma de suas paixões. Eu sempre considero que todo o mal
entendido provém daí: um crime filosófico, atribuído a algo que, de fato, nunca
passou de um acerto de contas que acabou degenerando, no qual Moussa, querendo
salvar a honra da moça, aplicou uma surra no seu herói e este, para se defender,
abateu-o na praia friamente. Nos bairros populares de Argel, havia, com efeito esse
sentido aguçado e grotesco da honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de
perder a terra, os poços, o gado, só lhes sobravam as suas mulheres (2016, p.29).
A citação sugere que a masculinidade atingida de Moussa seria o item pelo qual a
vítima teria desafiado os franceses na praia. Fica nítido acima, pois, que Moussa, como sujeito
243
colonizado, o qual perdera a terra para os metropolitanos, necessitaria recuperar parte da
honra perdida que se fora com a “propriedade” feminina também tomada pelo europeu. Sob
essa ótica, Haroum ressignifica a passividade árabe que se sobressai em O estrangeiro e joga
pontos de luz para que se veja um argelino que, movido pela estrutura patriarcal de sua
cultura, reage contra o imperialismo francês que invade propriedades materiais (mulheres) e
corporais/sexuais da massa masculina da Argélia. A passagem denuncia o olhar machista do
narrador para com as mulheres locais e enaltece a masculinidade hegemônica na sua cultura:
atrelada à agressividade, ao uso da faca, à disputa pela posse que seriam as mulheres. Desse
modo, se o sagrado ligado ao absurdo em Camus seria a visão filosófica francesa a encobrir,
como ressalta Said (1995), a violência colonial na Argélia, a rasura crítica desse sagrado
europeu interposta por Daoud, traz à tona a violência patricarcal de homens argelinos para
com mulheres argelinas, tratadas como objetos de domínio. Faz-se relevante, aqui, perceber a
lâmina de dois gumes daoudiana para atacar tanto o reducionismo/etnocentrismo francês,
quando o machismo da cultura argelina.
É significativo pontuar que a crítica ao fundamentalismo islâmico também é um ponto
central do romance do escritor. O projeto ficcional de Daoud além de revisitar Camus
criticamente quanto ao absurdo/sagrado europeu, que é uma marca da hegemonia ocidental na
obra, ataca as forças políticas da Argélia, as quais se ancoram historicamente no
fundamentalismo islâmico, visto como foco irradiador de uma série de censuras e interdições
que tomam o país (SCHATZ, 2015). No trecho citado a seguir, seu narrador argelino ataca
novamente o islamismo e as religiões como um todo. É visível que a obra traz o protagonista
numa posição que parece recriminar, por exemplo, a presença do véu, como na situação
abaixo, julgando-a como uma espécie de opressão característica das tradições mulçumanas.
Cito o romance:
Sexta-feira não é um dia em que Deus descansou, mas um dia em que ele decidiu
fugir e nunca mais voltar. Vejo isso pelo som vazio que se prolonga após as orações
dos homens, pelos seus rostos colados contra o vidro da súplica. E pela sua
expressão de quem reage ao medo do absurdo com a cautela. De minha parte, não
gosto daquilo que se eleva para o céu, mas somente daquilo que conhece a
gravidade. Atrevo-me a lhe dizer que tenho horror a religiões. Todas elas! Porque
elas distorcem o peso do mundo. Sinto às vezes vontade de derrubar o muro que me
separa do meu vizinho, agarrá-lo pelo pescoço e gritar para ele parar com a sua
recitação de choramingas, assumir o mundo, abrir os olhos para a sua própria força e
sua dignidade e parar de correr atrás de um pai que fugiu para os céus e que jamais
irá voltar. Veja aquele grupo que está passando ali, aquela menina com o véu
cobrindo a cabeça sendo que ela nem sabe ainda o que é um corpo, o que é o desejo.
O que você faria com essas pessoas? Hein? (2016, p.86).
244
É de chamar atenção no trecho como Haroum interpela o narratário francês em relação
ao véu, destacado por ele como uma imposição às mulçumanas ainda em estágio infantil, fato
que tanto: a) assinala a sua crítica ao que, de seu lugar masculino, magrebino e antiislâmico,
lê como opressões ao feminino atreladas ao modo como determinados fiéis seguem o
Islamismo quanto b) remete à visão ocidental frente ao véu, muitas vezes pregada por
feministas ditas “neoorientalistas” (LAMRABET, 2014), que também entendem o véu
unicamente como símbolo da dominação patriarcal islâmica. Ao fazê-lo, Daoud pode deixar
pistas para que leitores contemporâneos se questionem sobre o que eles próprios pensam a
respeito da conduta islâmica frente a mulheres, suscitando as variadas e, por vezes,
contraditórias opiniões a respeito. Mais que ser vista como uma produção romanesca que
conduz a questão do véu a uma percepção unívoca, a obra, no trecho acima, pode ser lida
também como um instrumento estético que pode abrir a problemática ao diversos leitores sem
restringi-la a uma resposta tangível no próprio texto. Quando a questão “O que você faria com
essas pessoas, hein?” é trazida por Haroum ocorre a abertura instalada pela obra. Tendo em
vista que narratário não desenvolve a sua fala em resposta à pergunta, não ratificando a
perspectiva crítica de Haroum, resta o “vazio” textual a ser preenchido de variadas formas
pelos diversos leitores.
Nesse movimento de demarcar a posição crítica e masculina ao véu de Haroum, na
condição de sujeito argelino antiislâmico e de lançar um questionamento ao narratário para o
qual não há resposta fechada na obra, o romance também deixa transparecer que a posição
feminina e muçulmana quanto ao véu não é apresentada verbalizadamente na ficção de
Daoud. Contudo, tal “lacuna” se mostra interessante por facultar a geração da perpecção e do
questionamento sobre a própria imposição de Haroum a um dever ser femino na Argélia, um
dever ser “desvelado”. Assim, por não travar uma escuta de mulheres sobre o véu e suas
variadas representações para as próprias mulheres, enquanto debate de homem magrebino
para homem francês, numa mesa de bar, sobre as vestes no corpo da mulher muçulmana, o
personagem comete também reducionismos de seu lugar “secularizado”. Ele termina por
desconsiderar a voz daquelas figuras subalternizadas na comunidade patriarcal que, muitas
vezes, usam o véu duplamente como prática religiosa e como forma de resistência a uma
ocidentalização forçada ao mundo árabe no plano das relações de globalização e pós-
coloniais.
De qualquer forma, a obra deixa a polêmica, que é bastante complexa, instalada e
suscita reflexões que estão na ordem contemporânea do debate feminista decolonial travado
245
por autoras como Asma Lamrabet. Em seu artigo El velo (El Hiyab) de las mujeres
musulmanas: entre la ideologia colonialista y el discurso islâmico, uma visión decolonial
(2014), ela demonstra como as interpretações sobre o véu são plurais e revelam disputas
ideológicas entre posições polarizadas. Lamrabet aponta essas duas ramificações que
binarizam o problema a) o debate das feministas ocidentais, designadas por elas como
“neoorientalistas” que entendem o uso do véu, a partir de suas posições externas à
comunidade islâmica, como uma “mácula” no desenvolvimento da modernidade de uma
comunidade e, portanto, como uma marca opressiva e patriarcal do islamismo sobre as
mulheres; e b) certo discurso islâmico tradicionalista majoritário, o qual defende o véu como
“el símbolo último de la identidade islâmica” (2014, p.31). Diante do quadro binário,
Lamrabet, questiona se a posição das feministas ocidentais não revelaria uma espécie de
“miedo a la islamización insidiosa de las sociedades contemporâneas” (2014, p.34) e atenta
para o fato de que apenas as mulheres islâmicas têm suas práticas tradicionais e religiosas
questionadas publicamente, como se seus corpos (com ou sem o véu) estivessem objetificados
e instrumentalizados dentro de uma questão que expõe serem extrapolados os limites entre
privado e o público. Nesse sentido, a autora aponta a necessidade de novos caminhos para se
percorrer a temática, sendo estes traçados também por vozes femininas do Islã,
frequentemente subalternizadas, e dentro da arquitetura da desconstrução. Afirma ela:
Minha história é útil pra você? É tudo que eu posso lhe dar. É a minha palavra, para
pegar ou largar. Sou o irmão de Moussa ou o irmão de ninguém. Apenas um
mitômano que você encontrou para preencher os seus cadernos... A escolha é sua,
meu amigo. É como a biografia de Deus. Rá-rá! Ninguém jamais esteve com ele,
nem mesmo Moussa, e ninguém sabe se sua história é verdadeira ou não. O árabe é
o árabe, Deus é Deus. Sem nome, sem iniciais. Macacão azul e céu azul. Dois
desconhecidos com duas histórias em uma praia sem fim. Qual delas é mais
verdadeira? É uma questão de foro íntimo. Você decide. El-Merssoun! Rá-rá.
Eu também quero que os meus espectadores sejam muitos, e que o seu ódio seja
selvagem (2016, p.165).
O pacto entre o leitor e Deus se coloca, como visto acima, como análogo ao pacto
entre o leitor e o romance (COSTA LIMA, 2006), de maneira que o texto sugere que só se
acredita naquilo que se decide acreditar: “A escolha é sua, meu amigo”. Aí, neste ponto,
248
reside mais um distanciamento entre Daoud e Camus. No romance deste, o protagonista
rompe nitidamente com o Deus cristão e descrê ou é indiferente a sua existência; no romance
daquele Deus é transformado numa escolha livre por parte de quem executa a leitura. Tal
traço da obra do argelino que relativiza a fé, o coloca como um discurso crítico em face de
uma cultura cuja própria independência política só ocorreu pela intervenção de uma
unificação islâmica no país (YASBEC, 2010). Destaco também no trecho, que tal transgressão
daoudiana vem acrescida de certo deboche irônico com o mundo que descreve, visível na
recorrência da expressão “Rá-rá”. Ela traz um sentido de riso, mas não de um riso por alegria,
e, sim, por certo sarcasmo, revolta (CAMUS, 2018B), crítica e consciência de ousadia frente a
uma parcela populacional elideranças políticas locais que sustentam a bandeira muçulmana de
modo autoritário. E. Existem mais cores nos sentimentos deste narrador se o compararmos às
vibrações emotivas de Meursault, sujeito cujo traço indiferente se destaca em seu caráter,
sujeito que deseja o ódio dos outros, mas que se coloca acima de todos com certa pretensão.
Haroum, diversamente, mesmo naquilo que se aproxima de Meursault, deixa transbordar na
sua voz paixões mais variadas e que, combinadas, geram um efeito de impacto que julgo
dotado de uma violência peculiar: ele sente ódio, rancor, culpa, inveja; ele é generoso ao
dialogar com o francês, ao pagar-lhe a conta, ao chamá-lo de “amigo”, mas nenhum desses
sentimentos são transparentes e puros; eles carregam o brilho da ironia e do sarcasmo. Uma
mente narrativa que carrega tais tons em sua memória despejada no público que lhe escuta.
Daoud, assim, ao ressignificar o sagrado camusiano e a religiosidade com tais
contornos, afronta o histórico político argelino, afronta a memória da crítica francesa em torno
de um clássico ocidental. Sua reescritura paródica também não só redimensiona o passado de
seu país, mas problematiza a Argélia contemporânea, as questões conflitantes de seu cenário
hoje: fortes marcas do fundamentalismo islâmico e de um nacionalismo que, por vezes,
escamoteia as diversidades locais (SCHATZ, 2015); marcas as quais são resultantes também
da relação colonial com a França (HALL, 2006). A dinâmica que a Argélia mantém com o
sagrado islâmico interfere na liberdade de expressão de muitos habitantes do país, bem como
da própria Literatura argelina. Abordar o sagrado/religioso, nesse desenho ficcional acionado
pelo autor, que atua escrevendo na língua francesa, é um ato político de coragem. Daoud já foi
alvo de ameaças por parte das forças político-religiosas que dominam a gestão da Argélia
(SCHATZ, 2015)46. Sua resistência é notável, uma vez que sua produção enfrenta o “ódio
selvagem de muitos de seus espectadores”.
47 Termo que toma emprestado de Toni Morrison, quando a autora afirma que a resistência discursiva precisa
“desenhar um mapa de uma geografia crítica”. A referência de seu ensaio assim se apresenta: MORRISON,
Toni. Playng in the dark: Whitness and Literary Imagination. Cambridge: Havard UP, 1992.
252
toca nos traumas da família árabe, reconfigurando, de modo semelhante à literatura caribenha,
as representações da paisagem (seja no descrever de elementos naturais, como o mar, que
ganha imagens suplementares e de destaque em relação ao que é figurado em O estrangeiro,
seja no descrever das cidades de Argel e Orã, espaços igualmente significativos na narrativa)
e a representação das identidades dos sujeitos subalternizados.
Delimitados, portanto, os referenciais dos quais parto para entender a importância do
lugar na narrativa tal qual esta se erige em jogo com a memória do narrador, passo a focalizar
as representações das cidades e do mar no romance paródico do escritor argelino.
Aproveito as palavras da autora para considerar a partir dela que a Literatura é uma
“arquiteta” de cidades ficcionais, escrevendo-as no tempo, no espaço, no campo cultural.
Dentro do estudo comparado aqui estabelecido, cabe a tentativa de buscar respostas possíveis
paras as questões: que cidades arquitetaram as obras de Camus e Kamel Daoud? Que escrita/
imagem de memória os autores sugerem para as cidades na Argélia? Para tal investigação, é
importante ter como âncora o seguinte aspecto: os dois autores em estudo as arquitetam a
partir de lugares diferenciados e com meios estéticos diversos. Os referenciais de Camus são
eurocêntricos (SAID, 1995), os de Daoud dialogam com as necessidades de se reconstruir,
como escritor nascido numa Argélia “independente” da França, uma cidade pós-colonial.
Cada um, dessa forma, imprime em sua obra a sua subjetividade como escritores em diálogo
com projetos ficcionais diferentes.
253
Em As cidades invisíveis (2017), de Ítalo Calvino, Marco Polo, personagem
navegador, tem a incumbência de descrever ao imperador Kublai Khan as diversas cidades do
seu próprio império (por ele desconhecido territorialmente). Após muito relatar sobre o que
viu nas diversas arquiteturas e costumes de “Isidora”, “Armila”, “Zobeide”, “Maurília” e
tantas outras cidades, o viajante recebe a seguinte interpelação do monarca sobre o seu lugar
de origem (cito a obra):
– Resta uma cidade que você jamais menciona – Veneza. – Disse o Khan. Marco
Sorriu. – E de que outra cidade imagina que eu estava falando? – No entanto, você
nunca citou seu nome. E Polo: - Todas as vezes que descrevo uma cidade, digo algo
a respeito de Veneza (2002, p.83).
Calvino, assim, põe seus leitores diante dessa ancoragem da visão de mundo do sujeito
a sua própria cidade, levada no olhar, ao se tentar descrever outras cidades. Seu texto enfatiza
a ideia de pertencimento do indivíduo ao seu lugar de origem, o qual se imprime na sua forma
particular de escrever/construir cidades ao delas falar ou sobre elas escrever. No caso de
Camus e Daoud, seus referenciais subjetivos de pertencimento são distintos, logo seus
respectivos narradores Meursault e Haroum demonstrarão particularidades no dizer a cidade
argelina. Aquele fala como pied noir, isto é, como francês que nasce na Argélia colonial em
posição privilegiada de dominação; este fala como representante de uma família árabe
marcada por um assassinato contra um ente querido nos tempos coloniais argelinos, isto é,
como sujeito que carrega a memória das cidades argelinas colonizadas. É a partir dessas
ancoragens diferentes que suas narrações vão arquitetar as cidades argelinas com construtos
imagéticos diferentes.
Calvino, ao se referir à relação entre as cidades e a memória, escreve:
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de
Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas
antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada seguimento riscado por
arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras (CALVINO, 1990, p.14-15).
Meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, a
rua parecia oleosa, as pessoas espalhadas aqui e ali, e, mais, tinham pressa. Primeiro,
eram as famílias que passeavam, dois meninos de roupa de marinheiro, calças
abaixo do joelho, um tanto sem jeito nos seus trajes engomados, uma menina com
um grande laço cor-de-rosa e sapatos de verniz preto. Atrás deles, uma mãe enorme,
com um vestido de seda marrom, e o pai, um homenzinho bastante franzino, que
conheço de vista. Usava um chapéu de palha, uma gravata-borboleta e uma bengala
na mão. Ao vê-lo com a mulher, entendi por que se dizia no bairro que ele era uma
pessoa distinta. Um pouco mais tarde, passaram os rapazes do bairro, de cabelos
esticados, gravata vermelha, o paletó muito cintado com um bolsinho bordado e
sapatos de bico quadrado. Pensei que iam aos cinemas no centro. Por isso é que
partiam tão cedo, rindo tanto e correndo para o bonde (2016, p. 29-30).
Comento a minha primeira observação: Meursault se comporta como um flâneur a
olhar Paris. Como explica Walter Benjamim, na sua apreciação da produção de Baudelaire, “o
simples flanador está sempre em plena posse de sua individualidade” (1994, p. 202), de modo
que a “fantasmagoria” do flâneur, ao olhar a multidão na cidade parisiense, seria “a partir dos
rostos, fazer a leitura da profissão, da origem e do caráter” dos passantes nas ruas. No excerto
acima, Meursault descreve a rua ocupada por pessoas de características francesas, o que se
deduz pelas vestimentas e pelo comportamento devidamente lido e interpretado ao modo
flanador explicado por Benjamim. Destaco a sua necessidade em selecionar os trejeitos de
255
circulação das famílias e suas vestimentas burguesas e obedientes ao status hegemônico de
gênero pela rua (crianças meninos, de marinheiro, já as meninas de laço cor-de-rosa) 48. Trata-
se de uma clássica família dentro dos padrões hegemônicos: pai, mãe, filhos, roupas distintas.
A mãe, ainda que bem vestida de seda, tem seu corpo remarcado como “enorme”, atentando-
se o policiamento sobre o corpo da mulher que pariu e quebra seu “contrato” com o padrão da
magreza, como também o pai é identificado como “homenzinho” distinto, o que fica sugerido
pela sua condição de chefe de família e ratificado pela gravata e pela bengala. Quando o
narrador afirma “Ao vê-lo com a mulher, entendi por que se dizia no bairro que ele era uma
pessoa distinta”, percebe-se certa ironia sua (como flâneur que tudo julga e supõe) frente às
convenções sociais daquela sociedade colonial francesa que valoriza a instituição familiar
burguesa e que ocupa as ruas da cidade.
Os letreiros em língua francesa dos cafés, os bondes, a tabacaria, os gatos, isto é,
elementos comuns na poesia de Baudelaire, criadora do flâneur, são destacados também na
narração:
Depois deles, pouco a pouco, a rua ficou deserta. Acho que os espetáculos tinham
começado em todos os lugares. Só se viam na rua os comerciantes e os gatos. O céu
estava puro mas sem brilho por cima dos fícus ao longo da rua. Na calçada em
frente, o dono da tabacaria pegou uma cadeira, instalou-a diante da porta e sentou-se
a cavalo, apoiando-se com os dois braços no encosto. Os bondes, há pouco cheios,
estavam quase vazios. No pequeno Café Chez Pierrot, ao lado da tabacaria, o
empregado varria a serragem na sala deserta. Era realmente domingo. Virei minha
cadeira e coloquei-a como a do dono da tabacaria porque achei que assim era mais
cômodo. Fumei dois cigarros, entrei para buscar um pedaço de chocolate e voltei
para comê-lo à janela. Pouco depois, o céu escureceu e achei que íamos ter uma
tempestade de verão (CAMUS, 2016, p. 30).
O trecho demonstra o tipo de cidadão que Meursault seleciona para ser evidenciado ao
narrar, a partir do que vê na cidade: o cidadão que passeia, que sobe no transporte público
para um destino de lazer dominical: os espetáculos. Também os jogos de futebol são citados
mais adiante no texto como um destino daquela população, que no seu dia de descanso
semanal, tem o privilégio do lazer e um lazer com “distinção” e estilo próprio: vestir-se
requintadamente e caminhar em família, ostentando a vida burguesa, apreciar a arte,
frequentar cafés “franceses” (“Café Chez Pierrot”), animar-se com um jogo esportivo. Tudo
isso é descrito de uma posição também privilegiada: da varanda, enquanto se fuma e se come
chocolate num domingo.
A citação a seguir ainda acrescenta mais detalhes ao clima de “tranquilidade” de um
dia de domingo num bairro burguês que vem sendo apresentado ao leitor:
48 Bourdieu estuda as vestimentas e os costumes franceses como formadores de sua “distinção” na colônia
argelina. Entre suas publicações, vide: BOURDIEU, Pierre. The Algeriens. Boston:Beacon Press, 1961.
256
Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram na rua uma onda de
espectadores. Entre eles, os rapazes tinham gestos mais decididos do que de
costume, e calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam
dos cinemas do centro chegaram um pouco mais tarde. Pareciam mais sérios. Ainda
riam, mas de vez em quando pareciam cansados e pensativos. Ficaram pela rua,
andando de um lado para o outro na calçada em frente. As mocinhas do bairro, de
cabelos soltos, andavam de braços dados. Os rapazes deram um jeito de passar por
elas e dirigiam-lhes piadas, das quais elas riam, desviando o olhar. Várias delas, que
eu conhecia, acenaram para mim (CAMUS, 2016, p. 31).
O trecho evidencia o hábito do cinema entre aqueles transeuntes de um bairro francês
próximo ao porto, evidencia, sobretudo, a ousada característica “flanadora” de Meursault de
julgar os homens mais “decididos” ou mais “sérios” por suas próprias impressões a partir dos
rostos estudados por ele; como disse Benjamim, o flâneur estuda “a aparência fisionômica das
pessoas para ler-lhes a nacionalidade e a posição, o caráter e o destino, pelo seu modo de
andar, pela sua constituição corporal, pela sua mímica facial” (1994, p.203), e é exatamente
esse o método utilizado pelo narrador camusiano na sua forma de ler a muldidão na cidade.
Sobre as mulheres, chamo atenção para o detalhe de que não são descritas com véu, tendo os
cabelos à mostra e sendo flagradas em explícito ritual de paquera na rua, o que é contado com
leveza, trançando-se também, com certo distanciamento, o retrato da vida burguesa da
comunidade pied noir naquele momento presente. O quadro também traz nitidamente hábitos
culturais ocidentais em evidência, ratificando a própria observação de Said (1995) sobre o
fato de que O estrangeiro seria o testemunho literário de que, na época, a França dominava a
Argélia e silenciava as particularidades da cultura local.
Nesse quadro pintado por Meursault, não há muito espaço para que sejam enfatizadas
características da cidade de Argel que eram igualmente reais na época (YAZBEC, 2010;
FANON, 1965): fome, bairros pobres, mesquitas, mulheres mulçumanas de véu, analfabetos
nativos que, salvo raríssimas exceções, dificilmente iriam ao cinema após um café ao
domingo. Estes traços das outras condições da Argélia em dominação colonial serão, em
contrapartida, trazidos pela ficção paródica de kamel Daoud, a qual também introduz detalhes
das cidades argelinas após a independência, revendo criticamente, portanto, este discurso de
prisma eurocêntrico de Meursault, que forjou uma imagem praticamente “parisiense”, ao
melhor estilo flâneur baudelairiano, para Argélia e sua vida urbana no passado colonial.
É preciso, contudo, não deixar de pontuar que a narrativa de Camus confere, sim,
arestas, sobretudo em determinadas cenas mais que em outras, para que se perceba a
dominação colonial através das descrições explícitas dos espaços. Pode-se depreender do
discurso de Meursault no seu próprio aspecto predominante de tender a focalizar na rotina
francesa da cidade quais são os espaços ocupados pelos nativos: os espaços periféricos. A
257
“moura” sem nome frequenta a cama do francês Raymond, extamente para lá ser violentada;
os árabes sem nome vestem macacão azul de conotação operária, o que é diverso do traje
francês burguês à base de gravata e bengala descrito por Meursault na rua argelina de mímica
parisiense. Estes árabes carentes de subjetividade como personagens da obra estão do lado de
fora de uma tabacaria – “vi um grupo de árabes encostados na vitrina de uma tabacaria”
(CAMUS, 2016, p. 54), isto é, ocupando as bordas dos espaços burgueses, nunca inseridos
neles de modo digno. Eles não aparecem em frente à tabacaria descritos fumando ou
passeando, confraternizando, como foram retratados os cidadãos num domingo por Meursault
do alto de sua varanda; na verdade, eles ocupam a margem do estabelecimento com o seguinte
semblante percebido pelo olhar flâneur do narrador: “Olhavam-nos em silêncio, mas à
maneira deles, como se fôssemos pedras ou árvores mortas” (CAMUS, 2016, p. 54). Estes
mesmo árabes – “uns árabes que tinham raiva de Raymond” (CAMUS, 2016, p. 54) – quando
em trânsito pela praia, carregavam facas e flautas, estando sujeitos a homicídios e a conflitos
corpo a corpo com os homens franceses (o que é uma condição de ocupação do espaço
completamente diversa de ser um proprietário de casa na praia para desfrute de lazer, como
são os colonos na obra).
As prisões de Argel são representadas como espaços da cidade cuja arquitetura
contém, em sua esmagadora maioria, árabes, o que se percebe quando Meursault descreve o
cenário ao seu redor ao ser preso pelo assassinato cometido. O personagem, inclusive, remete
ao fato por três vezes: 1) “No dia da minha prisão fecharam-me, primeiro, num quarto onde já
havia muitos detidos, árabes em sua maioria” (CAMUS, 2016, p. 77); 2) “Do meu lado, havia
dezenas de presos, quase todos árabes (CAMUS, 2016, p.78); 3) “A maioria dos prisioneiros
árabes, assim como suas famílias, estavam de cócoras, frente a frente. Eles não gritavam.
Apesar do tumulto conseguiam entender-se falando em voz baixa” (CAMUS, 2016, p. 78).
Este detalhe deixa claro que, na escrita de O estrangeiro, é perceptível a recuperação de uma
memória da história do imperialismo francês. Nela, cadeias comportam argelinos em maioria,
sendo estas lugares onde mães nativas transitam para visitar seus filhos detidos. A esse
respeito, destaco o trecho em que Marie visita o namorado na prisão de Argel, ocasião em que
também outra mulher, uma mãe árabe, visita seu filho. As vozes das duas se cruzam em meio
à visitação coletiva, na qual não há qualquer privacidade ao detentos e todos podem ser
escutados no recinto:
Daoud, por sua vez, traz em O caso Meursault a arquitetura das cidades de Argel e
Orã, não apenas de Argel, como assim agiu Meursault, e o faz de um modo suplementar,
explicitando os traços da cultura nativa, da memória familiar da vítima. Quando as fachadas
com letreiros franceses são destacadas no relato de Haroum, por exemplo, é para serem vistas
como emblemas da hegemonia francesa e do idioma francês justo numa região em que
predominava antes da colonização a língua árabe e outras variações dialetais. O escritor
introduz no quadro dos espaços aparentes no texto a presença das mesquitas e da atmosfera
260
cultural islâmica que paira na cidade no presente; deixa explícita a divisão dos bairros na
Argélia colonial entre os bairros franceses e os argelinos, como bem atesta esta tensa divisão
Fanon em Os condenados da terra (1965); ressignifica as relações da cidade com o mar, traz
os problemas urbanos, como a sujeira das ruas, estas são lidas como dotadas de uma espécie
de cicatriz da desocupação francesa. Dessa forma, diversamente do que ocorre em O
estrangeiro, ele escreve na cidade as marcas arquitetônicas da violência colonial, mas
criticando explicitamente o passado imperialista. Além disso, o autor não se mostra cego a
uma autocrítica nacional e também escreve sobre os “hematomas” deixados pelo
fundamentalismo islâmico que domina o país e policia moralmente a liberdade das pessoas na
frequência a bares no presente (SCHATZ, 2015). Cito Daoud:
É por isso que farei o que se fez neste país depois da sua independência: pegar uma
a uma as pedras das velhas casas dos colonos e erguer com elas uma casa minha. As
palavras do assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está,
aliás, inundado de palavras que já não pertencem a ninguém e que observamos nas
fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda,
transformadas pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2016, p. 9-10).
O trecho esboça um tom de crítica dirigida às marcas da colonização ainda aparentes
atualmente nas ruas das cidades, visíveis nos imóveis e suas fachadas com letreiros em
francês. A marca da colonização é arquitetônica e o narrador faz essa denúncia da existência
de uma cidade nada tranquila ou unívoca, mas atravessada por uma memória de um trânsito
de dominação imperialista: inicialmente invadida, em seguida desocupada, esvaziada pelos
colonos expulsos na revolução pela independência. Tal como é descrita acima, a ideia que fica
na narrativa que emana tensão, rancor e revolta de Haroum é que a cidade argelina continua a
violentar os olhos de quem lê pelas suas ruas um passado de disputa territorial, de hegemonia
francesa e apagamento da identidade cultural e linguística do povo árabe. Aqui fica notável
que semelhante à já mencionada ideia de Rolnik (1995), de que a cidade e a escrita estão
correlacionadas, está o desabafo do narrador; sem dúvida uma palavra possível para
identificar seu relato é “desabafo”. Diferente de Meursault, que narra como flâneur uma Argel
parisiense, Haroum “desabafa” que a arquitetura francesa do período colonial de algum modo
permanece na Argélia contemporânea revolvendo as cicatrizes da violência. É por tal
característica que, ao narrar o que narra sobre a cidade, o personagem expõe a sua memória e
seu trauma, tenta purgá-lo no gesto narrativo (WALTER, 2014).
Cito outro excerto de Kamel Daoud em que o narrador descreve a cidade argelina de
Argel para que fique evidenciado, de modo ainda mais nítido, seu tom crítico ao passado
colonial e sua marcada dicção traumática em relação ao lugar em que cresceu desde a
261
infância. O trecho conta as memórias do trajeto de mudança/fuga de Haroum e sua mãe da
cidade natal Argel para Orã. Sua mãe atormentada pelo crime contra Moussa ocorrido na
praia, decide buscar nova morada com o filho mais novo, único sobrevivente de ataques à
mão armada de franceses e à própria fome que assolava a região naquele tempo. O trauma foi
o motor daquela família “retirante”: “mamãe tinha decidito fugir de Argel, do mar” (DAOUD,
2013, p. 31). Haroum conta:
Lembro-me do caminho para Hadjout, ladeado por campos cujas colheitas não eram
destinadas a nós, o sol a pino, os viajantes no ônibus empoeirado. O cheiro do
combustível do motor me causava náuseas, mas eu gostava do seu ronco viril e
quase reconfortante, como uma espécie de pai que nos tirava, minha mãe e eu, de
um imenso labirinto feito de prédios, pessoas esmagadas, favelas, moleques sujos,
policiais mal-humorados e praias mortais para os árabes. Para nós dois a cidade seria
sempre o local do crime ou da perda de alguma coisa pura e antiga. Sim, Argel, em
minha memória, é uma criatura suja, corrompida, ladra de homens, traidora e
sombria (DAOUD, 2016, p.31-32)
A passagem, como é notável, está carregada da memória magoada do narrador pela
colonização francesa. “A colheita que não era para nós”, numa terra de argelinos que
passavam fome, traz o pesar de uma pátria saqueada, roubada. Historicamente, como ressalta
Quijano (2008), os recursos da terra colonial (matéria prima e mão-de-obra explorada)
formaram as riquezas das metrópoles e as instituíram como centro da dominação. Tal
memória de um trajeto da infância, junto à mãe para fugir de Argel, como a vista acima, a
ressaltar o destino da colheita negado aos nativos da terra onde se planta, uma vez dita a um
narratário francês, um investigador/intelectual universitário, na narrativa dialógica de
Haroum, abre campo também para que leitores contemporâneos pensem, inclusive, nos
trajetos migratórios de argelinos para a França atualmente. O romance confere ao público de
hoje (seja ocidental ou periférico), pela fala do personagem argelino (sujeito historicamente
silenciado e periferizado), a possibilidade de enxergar a memória da exploração francesa que
negou a nativos árabes os frutos da própria terra. Tal empreitada é revisitar criticamente uma
história hegemônica do passado imperialista francês e oferecer materiais para que se reflitam
sobre os motivos das migrações contemporâneas, arraigados a este passado. No trecho lido
acima, assim, a cidade ganha a imagem da violência que sofreu e que, no entanto, não recebeu
a devida ênfase em Camus, visto que seu romance traz apenas a visão exclusiva do francês,
silenciando a voz argelina. Tratam-se, pois, de cidades marcadas pela sujeira, pelas cicatrizes
coloniais as que se mostram em Daoud.
262
O olhar dos cidadãos argelinos para a cidade é uma novidade que não foi, de fato,
tateada pelo narrador camusiano e seu caráter de flâneur, mas que aparece em O caso
Meursault, merecendo ser aqui enfatizada. Cito o texto:
Por que razão eu estou de novo afundado em uma cidade, aqui, em Orã? Boa
pergunta. Talvez seja para me punir. Observe um pouco à sua volta, aqui, em Orã ou
em qualquer outra parte, parece que as pessoas têm raiva da cidade, e só vem aqui
para saquear uma espécie de país estrangeiro. A cidade é um butim, as pessoas a
veem como uma velha prostituta, insultam-na, maltratam-na, atiram-lhe lixo na cara
e a comparam sem parar com a aldeia saudável e pura que ela era antigamente, mas
já não conseguem abandoná-la, pois é a única saída para o mar e o lugar mais
distante do deserto. Anote essa frase, que ela é bonita, rá-rá-rá! (2016, p. 31-32)
Assinalo nesta passagem que Haroum sugere a semelhança entre a relação de
tratamento que as pessoas estabelecem com a cidade e a relação que travam com uma
“prostituta velha”, o que se revela como uma figuração peculiar por reconstruir a memória
geográfica da nação em interseção com a questão de gênero. Em “Feminismo e trabalho
sexual” (2021), afirma Barbara V 49 que a persona da prostituta assume sentidos, por vezes,
não consensuais na cultura. Para a autora, haveria como: a) em um sentido mais tradicional,
vê-la unilateralmente como ser objetificado sexualmente e explorado pelo patriarcado,
estando por essa razão sujeita a condições de vida e trabalho degradantes; b) Em um prisma
mais aberto, o qual evita associar venda de práticas sexuais a uma necessária degradação
material e moral, vê-la como uma profissional que vende sua força de trabalho no sentido
marxista (e precisa ser livre para vendê-la no interior de uma cultura machista que controla a
sexualidade feminina), estando, assim, sujeita a mais valia como estão outros trabalhadores
que vendem outros serviços. Aberto esse breve parênteses50 sobre as representações variadas
49 A autora assina seu texto como Bárbara V., demarcando que reflete sobre o tema a partir da sua experiência
como profissional do sexo. Não há, portanto, sobrenome explícito da colaboradora nesta publicação de caráter
coletivo. Segue referência: V., Bárbara. Feminismo e trabalho sexual. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO,
Lina (Orgs.). Feminismos dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jadaíra, 2021, p. 157-171).
50 Interessa-me, aqui, apenas pontuar a relação entre cidade e prostituição estabelecida na obra de Daoud,
considerando que a prostituta é uma imagem feminina que assume interpretações diversas, por vezes
contraditórias, a depender, inclusive, do referencial cultural e da lente analítica. Contudo, assumindo que tal
problemática da prostituição reverbera desdobramentos muito mais complexos, que, por ora, não se fazem objeto
central de investigação, considero oportuno fazer um breve apanhado a respeito do pensamento da autora citada
Bárbara V. sobre os olhares em torno da figura da prostituta. A prostituta poderia ser vista, atesta V., a partir de
um prisma que ela considera “menos moralista”, como uma profissional do sexo, e, assim, sua força de trabalho
seria vender prazeres, tal como outras profissões vendem sua força de trabalho prestando serviços diferentes.
Assim, como outros profissionais na ordem hegemônica, a prostituta poderia ser tratada, portanto, também como
um sujeito de direitos trabalhistas igualmente digno, defende, mas não é o que é corrente na maioria das culturas.
Nesta conotação específica trazida por V, ela reconhece, sua atividade, encarada como profissão, se mostra
nitidamente uma transgressão à moral patriarcal hegemônica, a qual tem sob vigilância os corpos das mulheres,
impedindo-as de usá-los a seu bel prazer, sobretudo quando na interface da gestão da própria sexualidade. Por
outro lado, coloca a autora, a imagem da prostituta aciona sentidos mais tradicionais divergentes; ela também
estaria interseccionada pelos caminhos que a entendem como ser explorado e subalternizado, encontrado em
condição degradante. Seria esta a interpretação, por exemplo, da corrente feminista que a estudiosa identifica
263
da prostituição, leio nas entrelinhas da comparação estabelecida por Haroum entre a cidade e
a prostituta que a moral patriarcal é uma sombra na sua visão de mundo. A comparação que
estabelece para qualificar Orã (“uma velha prostituta, insultam-na, maltratam-na, atiram-lhe
lixo na cara”) indicaria que, na sua perspectiva, o processo de colonização pelo qual a Argélia
passou (e que deixa suas consequências na cidade) é comparável à degradação moral da
mulher que trabalha vendendo sexo e que, no momento, se encontra velha. Fica subentendido
que o adjetivo que aciona a velhice indica que a mulher perdeu o seu vigor e seu potencial de
exploração sexual, pensamento decorrente da existência de um padrão patriarcal que
hierarquiza mulheres jovens e “velhas” num pódio do desejo condicionado à estética e ao
etarismo.
Sustentar a “leitura da cidade” argelina pós-colonial, como faz Haroum, como uma
trabalhadora sexual que se permitiu ser explorada (pela metrópole) em troca de “migalhas”,
recebendo por isso a raiva das pessoas, revela o caráter misógino desta sociedade que assim a
maltrata. Em outras palavras, essa lógica (colonização/prostituição) inferida no texto
possibilitaria o seguinte entendimento: Haroum assim pensaria: Já que a cidade não se deu
“ao respeito”, isto é, como não foi “casta”, mas “oferecida” ao colonizador, e hoje se encontra
“velha”, as pessoas se sentem no direito de lhes insultarem, de lhes maltratarem com lixo,
sujeira. Tal visão apreensível do personagem põe a nu o machismo de uma sociedade que se
percebe como autorizada a violentar mulheres que são profissionais do sexo e que não
atendem ao padrão hegemônico estipulado pelo patriarcado local: casta e jovem. O quadro
comparativo demonstra que a violência é um trajeto inevitável destinado à cidade argelina,
assim como é, na visão de Haroum, à prostituta (aqui, neste aspecto particular, sobressai-se a
visão tradicional da prostituta como “subalternizada” e impura). É nessa dinâmica de
violência contra a mulher que memória geográfica e gênero se interseccionam no texto.
A ambivalência é também uma tônica presente no desenho que o narrador daoudiano
projeta da cidade, pois ora esta recebe degradação das pessoas por se assemelhar a uma
Há uma velha canção daqui que diz que “a cerveja é árabe e o uísque é ocidental”. É
mentira, claro. Quando bebo, eu sempre a corrijo: esta canção é oranense, a cerveja é
árabe, o uísque europeu, os barmen são cabilas51, as ruas, francesas, os velhos
pórticos, espanhóis... isso não acaba nunca. Vivo aqui há algumas dezenas de anos e
me sinto bem. O mar fica na parte de baixo, lá longe, esmagado ao pé das grandes
construções do porto. Ele não roubará ninguém de mim e jamais conseguirá me
atingir (2016, p. 31-32).
Na narrativa, fica aparente que as ruas, novamente ressoam mimeticamente as ruas
francesas, também evidenciam a convivência entre sujeitos europeus e locais, mencionando-
se os cabilas. Contudo, o que salta aos olhos é que a representação do lugar na ficção
daoudiana necessita evidenciar o mar. O mar recebe em Daoud o peso da morte, do
assassinato do povo argelino, da dor e da memória traumatizada daquela família que perdeu
Moussa (segundo Haroum, o perdeu para a pretensão de uma filosofia eurocêntrica do
absurdo, que estava entranhada na mente de um narrador eurocentrado, o qual foi um
assassino de um cidadão argelino, não de um cidadão francês). Estes desenhos, antes
silenciados em Camus, ganham primeiro plano na ficção de Daoud. Tem-se aí, a
representação pós-colonial da Argélia.
No trecho seguinte, destaco as imagens do mar em Daoud como bem diversas das
apresentadas por Meursault, para quem a praia é lugar de lazer, de experiências sensuais com
a namorada Marie, e de assassinar árabes sem nomes. Na passagem, Haroum relembra sua
infância, quando sua mãe o carregava pelas ruas de Argel procurando investigar sobre a morte
de Moussa, buscando notícias do próprio corpo do irmão, nunca encontrado, segundo sua
versão do crime. Na verdade, o que este movimento de investigação materno, percorrendo as
ruas, os bairros da cidade e a praia, sugere é que a família árabe cumpre a tarefa dolorosa de
51 Sobre o povo cabila, explica Poerner: Precedendo os árabes na região, os cabila sempre tiveram idioma (não
falam árabe, mas cabila) e métodos de ação próprios, que tornariam suas cidades e vilarejos montanhosos da
região da Cabília os alvos prioritários das bombas da aviação militar francesa durante a Guerra da
Independência” (1966, p. 22)
265
investigar o assassinato de Moussa, uma tarefa nunca descrita como cumprida pela polícia ou
nunca mencionada pela justiça francesa no julgamento de Meursault em O estrangeiro. Cito:
Lembro-me do dia em que finalmente fomos até o mar, a última testemunha a ser
interrogada. O céu estava nublado, e eu tinha diante de mim, a poucos metros, o
imenso, o enorme rival da nossa família, o ladrão de árabes e assassino de malandros
vestidos com macacão. Era, de fato, a última testemunha na lista de mamãe. Ao
chegar ali, ela disse o nome de Sidi Abderrahmane e, muitas vezes, o nome de Deus;
mandou-me ficar longe das ondas e se sentou para massagear um pouco os seus
tornozelos doloridos. Fiquei atrás, uma criança diante da imensidão do crime e do
horizonte. Anote essa frase, eu faço questão. E o que foi que eu senti? Nada, a não
ser o vento na pele — era outono, a estação seguinte à morte. Senti o sal, vi o cinza
intenso das ondas. E isso foi tudo. O mar era como um muro de contornos fluidos,
móveis. Ao longe, no céu, havia pesadas nuvens brancas. Comecei a catar algumas
coisas que havia na areia: conchas, cacos de vidro e rolhas de garrafas, algas
escuras. O mar não nos disse nada, e mamãe ficou ali prostrada na areia, como que
debruçada sobre um túmulo. Por fim, ela se ergueu, olhou atentamente para o lado
direito, depois para o esquerdo, e gritou, com uma voz rouca: “Maldito seja!”.
Agarrou-me pela mão e me puxou para fora da areia, como havia feito antes várias
vezes. E eu fui atrás dela (DAOUD, 2013, p. 55-56).
Portanto, o mar em O caso Meursault recebe novos tons: os de sangue, de mote, de
túmulo, de lugar de memória traumática de uma família argelina que enfrenta luto e violência
colonial. Ao compartilhar tal memória com o narratário dentro da diegese, Haroum permite
que, ao menos na ficção, algum francês escute a sua dor, a sua memória traumática marcada
por um irmão morto e por uma mãe transtornada com a ausência de direitos em relação a uma
investigação policial digna para com seu filho, um analfabeto argelino, trabalhador do porto,
sem nome nos registros da literatura francesa, sem corpo enterrado na diegese do clássico
francês.
Tal particularidade em ressignificar a imagem do mar na literatura francófona
periférica que dialoga criticamente com o imperialismo francês também é visível na produção
caribenha, como demonstra Patrick Chamoiseau em Écrire en pays dominé (1997), o que
aproxima o projeto ficcional de Kamel Daoud ao de escritores antilhanos. A reconstrução da
representação do mar nas vozes literárias afro-americanas igualmente, refaz o lugar marítimo
pela consciência crítica da violência colonial. Há aí, novamente, a desconstrução do
imaginário paradisíaco e um enfrentamento da violência na memória. É o que fica aparente,
quando, na passagem abaixo, Chamoiseau traz a voz crítica de Glissant, pensador e escritor da
Martinica com quem nutre profundo diálogo, e sua reinterpretação do mar:
Chez Glissant, um scène perfure: celle du Nègre marron qui, au bout de sa fuit, bute
sur l’nfranchissable inconnu de la mer. Pour les esclaves traqués par des dogues et
les milices armées, la mer devait représenter ce que signifiait la forêt aux yeux des
bagnards de Guyane: une masse d’enceinte vivante que avalait ses proies. Unev
erticale sans perspective et sans promesse de libertés. Mais il y a aussi chez Glissant
l’idée du gouffre. Le Nègre continental d’Áfrique, jeté dans une cale de bateau
266
négrier, inaugure son rapport à la mer dans l’angoisse de la terre africaine que
s’éloigne de lui. À travers la coque, il éprouve le clapotis de l’onde, la rumeur
sépulcrale des abysses. Quand les négriers (traqués par les navires anglais après
l’interdit de la Traite) ne pouvaient plus s’enfuir, ils balaçaient leur cargaison par-
dessus bord. Et cette image d’une tapis sous-marin de cadavres que relierait les iles
antillaises est une hantise de toute son ouvre (1997, p. 264)52.
Assim, a natureza em Écrire en pays dominé, entendo, ao resgatar as vozes poéticas
afro-americanas que ressignificam o mar, desmascarando que, ao fundo das ondas
paradisíacas, existe um escuro “não dito”, mascarado: um tapete de cadáveres negros, que é a
prova viva da brutalidade ocidental, torna-se emblema da descolonização do imaginário
colonial. Assim, tal desconstrução do imaginário em torno do mar vivifica uma “ecoestética”
que não encerra apenas uma “conciliação” entre senhores e escravos, mas apresenta, de modo
mais forte, uma potencialidade crítica às violências do colonizador, da escravidão. O trecho é
um potente ataque ao unívoco mar paradisíaco e se dá, justamente, operado pelo elogio ao
pensamento de Glissant, uma voz local, que, ao invocar o mar, reativa a dominação
geográfica europeia, acionando também em seus textos uma “geografia crítica”.
Quando a ressignificação do mar interposta pela literatura argelina contemporânea é
colocada lado a lado à observada na literatura caribenha, como visto acima, é perceptível a
existência de um diálogo que Daoud interpõe com a ideia de mar como “muro” e como
“túmulo”, como receptáculo de cadáveres de sujeitos colonizados e explorados. São esses
mesmos termos aludidos pela narrativa de Haroum recortada em trecho mais acima. Por esse
prisma, a subalternidade negra das “Antilhas” na América francófona é aproximada à
subalternidade argelina no Magrebe, e nesse encontro, rompe-se a imagem ocidental de mar
como fonte paradisíaca de prazeres turísticos e uma outra história, a da opressão, é entregue
52 Segue tradução livre: Na obra de Glissant uma cena perdura: aquela do Negro marrom que, ao final de sua
fuga, se choca com o instransponível desconhecido do mar. Para os escravos caçados pelos cachorros e milícias
armadas, o mar devia representar aquilo que significaria a floresta aos olhos dos prisioneiros da Guiana: uma
massa de muro vivo que engolia suas presas. Um vertical sem perspectiva e sem promessa de liberdade. Mas há
também na obra de Glissant a ideia de abismo. O Negro continental da África, jogado num cargueiro de navio
negreiro, inaugura sua relação com o mar na angústia da terra africana que dele se afasta. Através do casco ele
sente o barulho da onda, o rumor sepulcral dos abismos. Quando os negreiros (fiscalizados pelos navios ingleses
após a interdição do tráfico) não podiam mais fugir, eles jogavam suas cargas ao mar. E essa imagem de um
tapete submarino de cadáveres que religaria as ilhas antilhanas é uma obsessão de toda a sua obra.
Chez Glissant, um scène perfure: celle du Nègre marron qui, au bout de sa fuit, bute sur l’nfranchissable inconnu
de la mer. Pour les esclaves traqués par des dogues et les milices armées, la mer devait représenter ce que
signifiait la forêt aux yeux des bagnards de Guyane: une masse d’enceinte vivante que avalait ses proies. Unev
erticale sans perspective et sans promesse de libertés. Mais il y a aussi chez Glissant l’idée du gouffre. Le Nègre
continental d’Áfrique, jeté dans une cale de bateau négrier, inaugure son rapport à la mer dans l’angoisse de la
terre africaine que s’éloigne de lui. À travers la coque, il éprouve le clapotis de l’onde, la rumeur sépulcrale des
abysses. Quand les négriers (traqués par les navires anglais après l’interdit de la Traite) ne pouvaient plus
s’enfuir, ils balaçaient leur cargaison par-dessus bord. Et cette image d’une tapis sous-marin de cadavres que
relierait les iles antillaises est une hantise de toute son ouvre.
267
ao vasto público de leitores via literatura de países que viveram o silenciamento da
colonização, de países que escrevem em face da sua memória como “pays domine”. A ficção
de Daoud, assim, ao escrever a sua “geografia crítica” forma uma rede de resistência junto a
uma tradição de escritas pós-coloniais que se forma no Caribe do século XX e que ressignifica
as memórias da natureza e do mundo.
Como posso contar uma história que já conhecemos tão bem e até demais? O nome
dela era África. O nome dele era França. Ele a colonizou, a explorou, a silenciou, e
mesmo décadas depois que isso já deveria ter terminado, continuou forçando e
usando a sua superioridade para resolver os negócios dela, em lugares como a Costa
do Marfim – nome dado ao país em função dos seus produtos de exportação, não da
sua própria identidade.
O nome dela era Ásia. O nome dele, Europa. O nome dela era silêncio. O dele,
poder. O nome dela era pobreza. O dele, riqueza. O nome dela era dela, mas o que
pertencia a ela? O nome dele era dele, e ele presumia que tudo fosse dele, inclusive
ela, e julgou que poderia tomá-la sem pedir nem perguntar, e sem consequência
alguma. É uma história muito antiga, embora seu desfecho tenha mudado um pouco
nas últimas décadas (2017, p. 57-58).
É uma cidade que tem as pernas abertas em direção ao mar. Quando você descer
para ver os bairros de Sidi-el-Hourai, para os lados da Calère des Epangnols, dê uma
olhada no porto: Cheira a uma velha puta a quem a nostalgia leva a ficar falando
sem parar. Eu mesmo desço para o jardim denso do Passeio de Létang para beber
alguma coisa sozinho e dar uma espiada nos delinquentes. Sim ali onde cresce a
vegetação estranha e intensa, fícus, coníferas, aloés, sem esquecer as palmeiras,
assim como as outras árvores profundamente enraizadas, proliferando tanto pelo ar
quanto por baixo do solo. Para baixo, há um labirinto amplo de galerias espanholas e
turcas que eu já visitei. Normalmente estão fechadas, mas eu observei um espetáculo
impressionante: as raízes das árvores centenárias vistas por dentro, digamos assim
gigantescas e tortuosas, flores gigantes nuas como que suspensas. Vá a esse jardim.
Gosto do lugar, mas às vezes capto os eflúvios de um sexo feminino, gigante,
exausto. Isso confirma um pouco a minha visão lúbrica, essa cidade tem as pernas
abertas para o mar, as coxas abertas, desde a baía até as partes altas, onde fica esse
jardim exuberante e de forte aroma. Foi um general – o general Létang – que o
concebeu em 1847. Eu diria que o fecundou, rá-rá! (2013, p. 21 e 22).
É observável a associação do jardim descrito à imagem de uma vagina; um sexo
“exausto” e “fecundado” por um general francês cujo nome (Létang) é dado ao próprio lugar
“Passeio de Létang”; a via argelina, de corpo associado ao feminino, é nomeada com o nome
“dele”, o homem colonizador militar. O general, o homem/colonizador fecunda, possui e
nomeia esta terra de “pernas abertas”. A terra é “ela” em Daoud, de maneira que o quadro
pinta uma realidade semelhante ao pensamento de Solnit (2017). A cidade se passa, mais uma
vez, como uma prostituta: vista como uma mulher rendida, explorada. Está aí a consciência
em seu texto daquilo que Quijano (2008) sinaliza: o patriarcado forma um dos pilares da
matriz colonial do poder.
É simbólico o trecho assinalar que justamente um general “fecunde” a cidade/mulher,
uma vez que a nacionalidade e a masculinidade hegemônica estiveram associadas ao processo
imperialista, sobretudo, no que diz respeito à instituição do exército nacional, constituído por
homens desbravando e dominando terras. A esse respeito, interponho, mais uma vez, o olhar
de Mário César Lugarinho (2017), quando o crítico discute como a nacionalidade nos séculos
XVIII e XIX está atravessada por valores da masculinidade. Em suas palavras: “a centralidade
da identidade masculina é levada ao paroxismo a fim de dar sentido às identidades nacionais,
com a criação, ao longo do século XVIII, na Europa, dos exércitos nacionais” (2017, p. 191).
Desse modo, nada mais simbólico da menção ao imperialismo francês do que citar um
general, ícone da masculinidade, atrelada ao ideal de nacionalidade francesa, de modo
associado a um agente que “fecunda” a terra tomada. Ao fazê-lo, o narrador-personagem
argelino (Haroum) se mostra magoado com a “possessão” de sua terra, sua cidade por “outro’
270
homem, o ocidental. Essa posse e esse domínio estão simbolizados não apenas pela metáfora
sexual, mas pelo fato de o jardim ornamentado em folhas da vegetação local (de aspectos
genitais de uma mulher) receber o nome de um militar, líder das tropas francesas na região.
Essa posse que o francês impõe a terra, se faz aparente no tom da narrativa de Haroum, causa
mágoa e atinge o senso de masculinidade do homem colonizado que sente sua “honra” ser
afetada por outros homens.
Neste aspecto sinalizado acima, Daoud denuncia a força do patriarcado na “matriz
colonial do poder” (QUIJANO, 2008) que abarca a Argélia. Tratar a terra como mulher
fecundada pelo militar europeu é revolver a história argelina e reescrevê-la com os sinais de
uma violência patriarcal, associada à exploração do país, ao ritmo imperialista da dominação
francesa. Esta é uma memória da Argélia que a tradição literária ocidental pode, agora, visitar,
para que a própria memória da França seja plural, uma vez que tem a oportunidade de
descentrar-se das imagens cristalizadas de metrópole “civilizadora”, promotora da “liberdade,
igualdade e fraternidade”. Daoud oferece na sua ficção imagens que a Franca, muitas vezes,
evita estampar em seu espelho: uma nação também violenta, imperialista,
“estupradora/fecundadora de terras”, de uma história argelina. Assim como retira das sombras
um pesar na mentalidade masculina hegemônica dos argelinos: a fragilidade de sua condição
de virilidade para afastar outros homens de “suas posses”: as mulheres.
Um detalhe que precisa ser destacado é que ler a terra como mulher, dentro dessa ótica
que se apresenta na obra, é lê-la como sujeito “inferior”, já que, como destaca Welzer-Lang
(2001), ser mulher na cunjuntura patriarcal é ser inferiorizada constantemente por uma
masculinidade que, para se afirmar do alto de sua fragilidade, precisa violentar mulheres e
homossexuais homens. Haroum narra com certo derrotismo que seu país tenha sido
“feminilizado” e dominado. Tal sentimento revela traços misóginos que nele também
habitam, resultantes da cultua patriarcal local. É necessário, pois, discutir a misoginia presente
na cultura argelina, que se perfaz no estabelecimento da masculinidade de seus nativos.
Para exemplificar o fenômeno misógino argelino em alguns eventos históricos
específicos, trago duas visões de autores que discutem a Revolução argelina e as
consequências psicológicas das relações França x Argélia; são eles respectivamente: Arthur
Poerner e Franz Fanon. Transcrevo a seguinte observação de Poerner acerca da entrada de
mulheres no exército revolucionário argelino durante as lutas pela independência:
Quando as perdas de vidas humanas se tornavam maiores, por uma série eventual de
sucessos franceses, o Exército de Libertação, como medida preventiva, adotava a
intensificação do recrutamento. Três ou quatro mulheres eram admitidas em cada
271
unidade combatente, tendo por única e exclusiva missão a de doutrinar mulheres nas
aldeias no sentido de concitarem seus filhos, maridos, noivos ou irmãos a se
engajarem nos maquis. O efeito psicológico desse recurso era extraordinário, porque
as tradições ancestrais faziam com que os aldeões se sentissem profundamente
desafiados em seus brios pelo simples fato de existirem mulheres nas unidades
revolucionárias de combate (1966, p. 61).
O registro deixa claro que a cultura das aldeias sustentava a necessidade de uma
vigilância da manutenção da masculinidade hegemônica. A ancestralidade obrigava os locais
a se estabelecerem como viris, de maneira que a virilidade seria resultante da adesão ao
combate, escolha capaz de minimizar qualquer sentimento de inferiorização diante de
mulheres ocupando posições militares. O gênero feminino era, nitidamente, visto como
“inferior”, e caso perfomasse com atitudes “viris”, dentro daqueles códigos históricos
específicos, como pertencer ao exército, ameaçava a reputação daquele homem que não
fizesse o mesmo trajeto militar. Fica visível, então, que a masculinidade hegemônica de
origens marcadamente ancestrais se fez como um motor cultural para garantir a própria
independência argelina na década de 60, recrutando soldados à base de misoginia, sendo,
portanto, compreensível em Haroum, personagem que dialoga com a cultura e a história da
Argélia, traços misóginos e demais cacoetes do patriarcado.
Mais indícios da exigência de uma conduta masculina nativa que acionasse virilidade e
controle sobre as mulheres argelinas em meio aos tensos processos de disputa territorial com
os franceses estão aparentes nas análises de Os condenados da terra (1965) sobre as
perturbações mentais naquele contexto desenvolvidas. O caso registrado por Fanon que se
mostra relevante para entender por que razões os homens argelinos se sentem tão violentados
na masculinidade por terem suas mulheres violadas por soldados franceses se chama “A
impotência num argelino como consequência da violação de sua mulher”. Conta o
martiniquenho que “B” é um militante de 26 anos da Frente de Libertação Nacional (FLN)
com manifestações de insônia, ansiedade, anorexia e impotência, sendo invalidado para suas
atividades profissionais habituais, ou seja, o serviço bélico. Ao ouvi-lo, descobre que quando
ele estava ausente de casa em uma missão do exército, sua esposa havia sido interrogada
sobre seu paradeiro por soldados franceses. Recusando-se a falar, a mulher foi estuprada pelos
dois militares que lhes disseram: “Se algum dia voltares a ver o teu asqueroso marido, não te
esqueças de lhe dizer o que fizemos” (1965, p. 277). A fala dos estupradores é consciente de
que o ato, não só foi uma violência à insubordinação feminina que se recusou a delatar o
marido à França, como um ataque direto ao bem valorizado na cultura local: a honra do
marido que teve seu “domínio”, isto é, o corpo de sua esposa, sexualmente invadido. Fanon
272
assinala o quanto era comum que as mulheres dos guerrilheiros fossem estupradas para gerar
esse efeito de “castigo” aos homens, o qual se tornava um verdadeiro pesadelo psicológico
capaz de invalidá-los com combatentes. Vista por esse ângulo, a questão de gênero também
foi um trunfo de ataque utilizado pelos franceses para desestabilizar o movimento da
revolução. O caso é que “B” se viu afetado em sua masculinidade tanto por ter perdido a
honra como único “proprietário” do corpo da esposa, como por ter perdido a ereção, fator de
garantia da virilidade numa cultura machista que associa sexo unicamente à prática da
penetração. Sua derrota diante dos soldados franceses se exprime nas palavras seguintes em
que confessa seus sentimentos e, entre eles, o ódio pela própria filha e a desconfiança para
com a esposa:
Decidi voltar pra ela, mas, todavia, não sei como reagiria ao vê-la. E muitas vezes,
ao ver a fotografia da minha filha, penso que ela foi também violada. Como se tudo
o que viesse de minha mulher estivesse apodrecido. Se a tivessem torturado, se lhe
tivessem partido os dentes, se lhe tivessem partido um braço, não me importava.
Mas como é possível esquecer isso? E por que teria ela de me contar tudo?
(FANON, p. 1965, p. 279).
A fala demonstra um sujeito que convive com a misoginia contra mulheres que são
vítimas de violência sexual, contém ego masculino ferido por estar condicionado ao controle
perdido do corpo feminino em face do “outro”: o francês. A fala não contém solidariedade por
familiares, por uma companheira agredida. Na verdade, tudo se passa como se a lesão fosse
aplicada à sua masculinidade devassada, não à mulher estuprada. Esta é menos vista como
vítima, do que como alguém que desajusta a masculinidade do próprio marido por verbalizar
ter sido estuprada. Dela é, violentamente, cobrado, inclusive, o silêncio frente ao próprio
trauma. A mentalidade patriarcal, ainda, não está apenas no marido que culpa a esposa por ter
sido penetrada contra a própria vontade – “ela já provou os franceses” (FANON, p. 278), mas
na própria esposa que não se reconhece mais digna do marido após o estupro, como se fosse
realmente culpa sua a ferida na honra de “B”. Relata o psiquiatra martiniquenho sobre a
conduta da vítima: “Ao contar o sucedido a sua mãe, esta convence-a de que deve dizer tudo
ao seu marido. Por isso, ao entrar em contato com “B”, confessa-lhe a sua desonra” (FANON,
p. 277). Pelo diálogo entre mãe e filha, fica confirmado o que alerta Medrado e Lyra (2018)
sobre a masculinidade hegemônica: ela não é um construto que rege apenas muito da conduta
masculina numa sociedade, mas que se impõe sobre as mulheres e variados indivíduos
sujeitos às pressões quanto a papéis fixos de gênero que ressoam as hierarquias patriarcais.
Articulando os trabalhos de Poerner e Fanon, então, aos trechos do romance de Daoud
citados acima, é possível reconhecer em O caso Meursault as marcas ficcionalizadas desse
273
histórico argelino de uma cultura atravessada pela masculinidade hegemônica a emoldurar as
mentes de seus nativos. Isto se mostra ficcionalizado na conduta narrativa do narrador-
personagem e nas suas associações figurativas que entrelaçam colonização e sexo quase como
uma obsessão misógina que se repete ao longo da obra. Haroum, no último excerto acima,
como exposto, relaciona a cidade argelina a uma mulher cuja imagem é fundida a um jardim
“fecundado” pela força militar francesa, cujo ícone da masculinidade tem o nome de um
general, Létang. A terra é sexualizada, assim, pelo narrador e parece também ser culpabilizada
por um ato de desonra, uma vez que este a identifica, numa tonalidade sutil de denúncia,
como uma mulher que se “oferece”, que “abre as pernas para o mar”, entrada geográfica por
onde chega e se estabelece o colonizador. A associação da colônia a uma “puta velha” que
“fala sem parar” revela o seu incômodo, sua reprovação para com ela.
A atitude de Haroum não é muito distante da do paciente “B”, de Fanon, que está
ciente de ter sido a mulher estuprada, mas que consegue enxergar em primeiro plano apenas a
própria masculinidade devassada, tratando a vítima como “culpada” por esta ser uma mulher
cujo corpo não foi controlado e que não silenciou a própria violência que sofreu como deveria
para não afetá-lo. Mais que ter ódio dos franceses estupradores, “B” parece se concentrar em
ter ódio da própria esposa, sobretudo porque esta fala o que ele não suporta ouvir: que uma
vez estuprada, feriria seu brio. A atitude da mulher chega a invalidar a sanidade mental do
marido para que este continue a ser um soldado em combate e capaz de uma ereção. Assim
como incomoda “B”, a fala da dita “puta velha” no romance magrebino parece incomodar
Haroum e a memória de sua masculinidade; como homem argelino implicado nas
normatividades da masculinidade hegemônica, ele, não podendo controlar o corpo sexual de
sua “cidade feminina”, parece reclamar da “verborragia” que ela se “atreve” a destilar. Fica
subentendido, nesse contexto, que a cidade “fala” do que não deveria: da “desonra” do país
em face da “cópula” com homens franceses, dominadores e “feminizadores” da memória
histórica do lugar.
Os tons da questão de gênero em Daoud, assim, dialogam com Os condenados da
terra, de Fanon. A memória traumática de Haroum guarda a misogonia que o psiquiatra
martiniquenho já detectava nos casos em que analisou em seus trabalhos durante o período
das lutas pela independência. Esta particularidade mostra que o escritor argelino em sua
paródia da ficção camusiana, não faz uma interface apenas com a literatura, mas também
como a produção teórico-crítica de autores cujos trabalhos circundam a sociologia da Argélia
e de demais ex-colônias. No hall dos diálogos travado por O caso Meursault com demais
274
obras, estão os nomes de Sartre, Said, Fanon, Bourdieu, Spivak (2010) e, certamente, outros
autores que a minha lente não consegue alcançar.
Rebecca Solnit em outra produção, História do caminhar (2016), faz uma menção à
peculiaridade de a Literatura francesa ter a tradição de retratar as cidades em representações
femininas. Coloca a autora: “Paris, c’est une blonde” diz a canção francesa, e os poetas
parisienses geralmente fazem de sua cidade uma mulher” (2016, p.312). Não seria, a partir
dessa observação de Solnit, impossível pensar que Daoud dialogaria criticamente também
com essa tradição literária francesa, fazendo incidir sobre ela, contudo, aspectos da cultura
patriarcal argelina, a qual modula parte do imaginário do narrador de O caso Meursault.
Portanto, o romance paródico pós-colonial de Daoud, para além de revisitar o passado
colonial, cria possibilidades para que os leitores reflitam sobre como tradições estéticas
ocidentais perdurariam “repaginadamente”, isto é, traduzidas (BARBOSA, 2005), na memória
da Literatura argelina contemporânea e suas seleções estéticas. Levada pela observação de
Barthes (2004b) de que “levantar a cabeça” ao ler é também um exercício de escrever sentidos
no texto lido em meio ao brotar de um “afluxo de ideias, excitações e associações” (2004b, p.
26), o quadro me suscita, quando “levanto a cabeça” diante da leitura do texto daoudiano,
questionamentos sobre o papel das mulheres locais.
Foi visto que Haroum destila, difusa em suas palavras sobre a cidade, a misoginia que
lhe habita, a conexão que estabelece entre sexualidade e dominação; e o faz num diálogo
dirigido a um jovem francês, seu narratário, na locação específica de um bar; são, pois, dois
homens em diálogo, em protagonismo, ocupando um espaço de socialização típico da “casa
dos homens” (WELZER-LANG, 2001). Sendo assim, me indago: onde estão as vozes
femininas da Argélia? Identifico, e demonstro adiante, que as mulheres são mais objetos que
sujeitos falantes e devidamente ouvidos na obra. Nesta, detecto, predomina o que Spivak
(2010) já havia pontuado quanto ao sujeito subalterno, isto é, o sujeito não ocidental, no que
tange à condição feminina: “a mulher subalterna continuará tão muda como sempre esteve”
(2010, p.86). Passo, assim, na seguinte e última seção deste capítulo final, a pensar sobre as
subalternidades femininas, dando destaque à figura materna. Procuro investigar quais seriam
seus espaços resistentes de fala e que simbologias assumiriam, que ambivalências essas
mulheres ficcionais arrastam consigo pela memória narrada de um personagem cujo perfil é
também ambivalente, atravessado pelo fundamentalismo e ao mesmo tempo crítico a práticas
representativas do islamismo e seus tons autoritários na configuração política local, um
275
narrador que frequenta “a casa dos homens” no território minado pela hegemonia patriarcal
que é a Argélia contemporânea.
Ressalva. Até o momento, é passível de se acompanhar a já alertada – desde o início
desta abordagem de O caso Meursault como romance paródico pós-colonial de O estrangeiro
(item 4.2.3) – intersecção incessante no texto das esferas: narrativa e alteridade, sagrado e
cultura religiosa, memória e geografia, gênero. O (A) leitor(a) do presente trabalho é capaz de
sentir que, a cada item diferente de sequenciação analítica deste capítulo lido, sobrevém uma
impressão de repetição e entrançamento dos temas. Tal sensação pode ser melhor aproveitada
para a compreensão da análise aqui proposta, insisto, se for realmente tomada como uma
necessidade técnica e exegética para explicar o romance na sua própria natureza circular,
labiríntica e repetitivo-obsessiva, que, assim se erige, porque é assim a condição da própria
mente do narrador, da sua trajetória pessoal e da própria História argelina como as projeta.
Para aproveitar a última seção desta pesquisa, então, sugiro que se perceba, de maneira ainda
mais enfática, que o narrador argelino está a “remoer” a história de sua vida pela modalidade
da fala (cuja natureza se sabe tendente à repetição, a lacunas), numa conversa com um
interlocutor francês. Nas primeiras linhas da obra, ele confessa: “de tanto remoer essa história,
já quase nem me lembro dela” (2013, p.9). Entre narrador e narratário, paira toda a tensa
história da colonização e suas violências, suas segregações sociais e é este “entre” um aspecto
de total relevância para compreender o romance.
Faz-se oportuno não perder de vista que há uma força retórica nesse ambiente “entre”:
Haroum conta a sua visão dos fatos e irá defendê-la com a estratégia de revolver e contar as
sombras de sua memória, confessadamente falha e magoada. O narrador fala porque deseja a
escuta e deseja ser creditado e legitimado pela sua versão sustentada. No trecho seguinte, se
observa esse seu esforço em contar sua versão de uma maneira que convença, e, para isso, ele
até chega a usar a estratégia da analogia à bíblia, dialogando com seu espectador de cultura
ocidental:
Você captará melhor a minha versão dos fatos se aceitar a ideia de que essa história
se parece com um relato das origens: Caim veio aqui para construir cidades e
estradas, domesticar pessoas, terras e raízes. Zoudj53 era o parente pobre, deitado ao
sol com uma pose indolente que se imagina, não tinha nada, nem mesmo um
rebanho de carneiros que pudesse suscitar a cobiça ou motivar um assassinato. De
certa forma, o seu Caim matou o meu irmão por... nada! Não foi nem mesmo para
lhe roubar os animais. Deveríamos ficar por aqui, você já tem material para escrever
um bom livro, não? A história do irmão do árabe. Mais uma história de árabe. Você
caiu em uma armadilha... (2013, p. 69-70).
Lembro-me de alguns dias, raros, em que eu acompanhava minha mãe pelas ruas de
Argel em busca de informações sobre o meu irmão desaparecido. Ela andava
depressa e eu a seguia, os olhos presos no haïk dela para não me perder. Uma
intimidade divertida se criava, assim, dando origem a uma breve ternura. Com o seu
linguajar de viúva e seus lamentos bem estudados, ela coletava sinais e misturava
informações verdadeiras com as labaredas de seus sonhos da véspera. Ainda vejo
mamãe se agarrando com força no braço de um dos amigos de Moussa, atravessando
cheia de medo o bairro dos franceses, pois ali éramos intrusos, pronunciando nomes
de testemunhas do crime, citando-os um a um, todos com sobrenomes esquisitos,
“Sbagnioli”, “El-Bandi” etc. Ela pronunciava “Sale mano” em vez de “Salamano”,
para se referir ao homem com cachorro, de quem o herói do seu livro diz ter sido
vizinho. Ela exigia a cabeça de “Rimon”, ou Raymond, que nunca mais apareceu e
que me pergunto se realmente existiu, ele, que supostamente estaria na origem da
morte de meu irmão e de todo esse imbróglio de costumes, putas e honra. Da mesma
forma como cheguei a duvidar da hora do crime, da presença de sal nos olhos do
assassino e, às vezes, da própria existência do meu irmão Moussa (2013, p. 54-55).
Torna-se perceptível que o trajeto materno é revolver a cidade em busca de pistas, o
que é feito com dor, revolta. A mãe está emocionalmente exposta no excerto; todo o impacto
280
sobre sua sanidade, sobre seu presente atormentado e sobre o seu futuro a ser encarar a mudez
pelo trauma é narrado por Haroum. É nesse movimento que fica aparente ser a sua narrativa
apoiada na publicização da intimidade da mãe como uma espécie de estratégia retórica para
sensibilizar e convencer o narratário francês e todo o público de que Moussa é uma vítima
legítima. Por extensão ao personagem morto, é possível entrever que a própria família árabe e
a própria Argélia, pela condição de colônia, podem ser legitimadas como vítima das
violências imperiais, uma vez que a obra de Daoud reconstrói a memória das feridas do
imperialismo nos personagens e suas relações familiares, na cidade, no país, deixando-as
expostas no campo literário pela própria voz narrativa subalternizada do “árabe”, agora
autorizado na ficção a falar, e não mais silenciada. Nesse sentido, nos termos de Efrem Filho,
que toma como base Butler, em Vida precária: os poderes do luto e da violência, a condição
de vida precária concedida ao “árabe morto”, Moussa”, está em disputa no texto, de modo que
a “arma retórica” utilizada é a imagem da mãe na cultura patriarcal, esta que possui
representatividade significativa tanto na cultura ocidental, quanto na periferia argelina e
colabora na sensibilização do público em geral. Trago, nesta perspectiva, as palavras Efrem
Filho:
Em seu léxico, Butler se refere a “vidas precárias”. Essa precariedade das vidas,
entretanto, contra o que se possa imaginar, não se limita à ideia de uma potência
universal para a morte, à certeza de que toda a vida é frágil e, ao fim, morrível.
Trata-se de bem mais que isso. Corte profundo. A vida somente se faz apreensível
diante das circunstâncias em que sua perda adquire relevância. O valor da vida se dá
à importância da perda. A vida é precária porque perdível, mas apenas é perdível se
digna de luto. Em outras palavras, a perda precisa ser sentida (2017, p. 11).
Seguindo o raciocínio do autor, é factível de enxergar na narrativa de Haroum a
tentativa de fazer seus interlocutores se emocionarem, se sensibilizarem com a dor e o trauma
de uma mãe, para validar a condição de vítima de Moussa. Tal iniciativa ratifica o valor da
mãe na cultura árabe e ocidental (com o qual dialogam Daoud e Haroum), de modo que esta
figura feminina, viva e circulante pela cidade, a cruzar os bairros franceses, proibidos para
nativos (FANON, 1965; BOUDIEU, 1961), em busca de justiça com as próprias forças,
assume a simbologia complexa e contraditória de ser um ícone ora de uma resistência política,
ora de uma rede de opressões quanto aos papéis de gênero impostos a mulheres.
No primeiro caso, a mãe indicaria uma representante da resistência para que a vida
argelina seja concebida cobrada como precária, como digna de choro – “A apreensão da
capacidade de ser chorada precede e torna possível a apreensão da vida precária” (BUTLER,
2019, p.33) – em face do Ocidente e sua prática racista e orientalista (SAID, 2007;
BOURDIEU, 1961) e da literatura ocidental, representada, no caso, pelo romance O
281
estrangeiro. No segundo caso, a mãe com os contornos que assume, servil e devota à família
no texto, funcionaria como um emblema das forças vivas do tipo de patriarcado que é base
importante na cultura fundamentalista local, a qual, em muitas situações, controla corpos
femininos e suas possibilidades de cidadania e de manutenção de uma subjetividade que vá
além da possibilidade de ser explorada em trabalhos domésticos – desvalorizados e
dificilmente reconhecidos como uma atividade de trabalho, diversa de prover afeto/cuidado,
sujeita à remuneração justa na cultura (FERNANDES, 2021).
Cabe, nesta altura da reflexão, repassar os possíveis motivos que levam um narrador
argelino, um filho, a ter que apelar para a exposição de seu trauma familiar para ser escutado.
Ora, se torna mais fácil que leitores supostamente socializados numa cultura patriarcal
escutem com mais empatia a revisão da história de Meursault contada ineditamente por um
subalterno argelino, inferiorizado como colono (BOURDIEU, 1961) na hierarquia
imperialista apoiada no racismo e no machismo (QUIJANO, 2008), quando o apelo à mãe é
acionado como estratégia retórica. De acordo com Vianna e Farias, também citadas por Efrem
filho, por exemplo, a recorrência ao que elas chamam de “protagonismo simbólico das mães”
é uma tática de legitimação da vítima bastante usada nos tribunais de culturas patriarcais,
como a brasileira, sobretudo, na luta por justiça em caso de assassinatos de subalternizados.
As autoras discutem a questão em “A guerra das mães: dor e política em situações de
violência institucional” (2011), ao refletirem sobre os julgamentos de policiais do Rio de
Janeiro, acusados de matarem jovens negros habitantes de favelas. A defesa dos policiais,
conforme o que elas verificam, costuma deslegitimar a vítima como vítima, imputando-lhe
acusações de crimes, comprometendo, pois, a sua imagem moral, ao passo que a promotoria
trabalha no sentido de sensibilizar o júri a partir das dores das figuras maternas junto,
naturalmente, a demais indícios que colaborem para “provar que os mortos eram honestos e
não bandidos ou traficantes54” (2011, p.95).
Ao ser proposta a indagação de por que motivo para Moussa, um colonizado, ser
legitimado como vítima, frente a um narratário francês, e frente ao Ocidente leitor, seria
necessário o apelo à mãe e à carga tradicional que ela carrega, penso que a seguinte resposta
pode ser conjecturada: o fato se atrelaria, sobretudo, ao projeto ficcional de Daoud
problematizar o racismo na tradução que enseja de Camus. O racismo dirigido aos colonos
argelinos estruturou as relações coloniais na época (como visto do romance camusiano),
multiplicadora de inúmeras desigualdades e ainda estrutura as relações pós-coloniais
54 Vale ressaltar que a polícia não poderia matar deliberadamente indivíduos porque aparentam ser ou são
bandidos e traficantes.
282
contemporâneas. A respeito do preconceito e do racismo europeu, das intensas desigualdades
sociais e espaciais entre colonos e colonizados na Argélia, já bastante, aqui, aludidas,
inclusive, no Capítulo 3, como projetadas ao mundo pelo cinema de Pentecorvo
(TRAVERSO, 2018), faz-se importante compreendê-las, também, pela perspectiva de castas
colocada por Bourdieu. O sociólogo retrata de maneira enfática as relações de hierarquia e a
segregação nas cidades argelinas na citação a seguir:
O dia estava bonito, e eu estava colado nela, ofegante, pois ela tinha andado com
bastante rapidez. Em todo o caminho, eu a escutara murmurar insultos e ameaças,
orando para Deus e seus antepassados, ou para os antepassados do próprio Deus,
quem sabe. Eu sentia em mim mesmo um pouco da agitação dela, sem saber muito
bem por quê. Era um sobrado, e as janelas estavam fechadas — nada além disso a
destacar. Na rua, os roumis nos olhavam desconfiados. Ficamos parados ali em
silêncio por um bom tempo. Uma hora, talvez duas. Depois, sem se preocupar
comigo, mamãe atravessou a rua e bateu na porta com determinação. Uma velha
francesa veio abrir. A contraluz a impedia de enxergar com clareza a sua
interlocutora, mas, fazendo uma espécie de viseira com a mão, acabou por vê-la e
fitou-a com atenção, e eu pude perceber o mal-estar, a perplexidade e, por fim, o
55 Camus assim define a revolta em O homem revoltado: “Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram
demais”, até aí, sim; a partir daí, não; assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’.
Em suma Em suma, este não a firma a existência de uma fronteira. Encontra-se a mesma ideia de limite no
sentimento do revoltado de que o outro “exagera”, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da
qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Dessa forma, o movimento de revolta apoia-se na recusa categórica
de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na
impressão do revoltado de que ‘ele tem direito de’... . A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma
forma e em algum lugar, se tem razão” (CAMUS, 2018b, p. 27).
284
terror que tomava conta do seu rosto. Ela ficou vermelha, seus olhos se mostravam
apavorados, parecia prestes a dar um grito. Compreendi, então, que mamãe estava
lhe recitando a série mais longa de maldições que ela já havia pronunciado. A
senhora começava a se agitar na soleira da casa, tentava afastar mamãe. Senti medo
pela minha mãe, por nós dois. De repente, a francesa se sentou na escada e
desmaiou. As pessoas tinham parado, eu percebia as sombras delas atrás de mim,
pequenos grupos tinham se formado aqui e ali, e alguém chamou: “Polícia!”. Uma
voz feminina gritou em árabe para mamãe correr, fugir, rápido. Foi então que
mamãe, virando-se para trás, e como que se dirigindo a todos os roumis do mundo,
berrou: “O mar vai engolir todos vocês!” (DAOUD, 2013, p. 56).
A passagem demarca o medo e a desconfiança que os franceses sentem diante dos
colonizados, o que é decorrente de seu racismo e da consciência da dominação que exercem
sobre eles e que gera a inveja e cobiça dos locais (FANON, 1965) espalhados em grande
quantidade pelo país. Por isso a polícia, na cena, sempre atenta. Chamo atenção, por outro
lado, para a solidariedade entre as mulheres argelinas e para o uso do árabe na fuga da
opressão policial. A resistência ali se fez feminina e local, usando a fala, o idioma nativo para
se vencer a disputa territorial contra a polícia, emblema do controle colonial apoiado na
masculinidade hegemônica. A mulher francesa fora, contudo, agredida pela voz subalterna da
mulher/mãe argelina, nesse ponto não ainda muda pelos traumas, o que denuncia as tensões
entre as diferentes representações femininas em posições hierárquicas distintas na colônia.
Outra particularidade de O caso Meursault apresentar na sua tradução da maternidade
camusiana a ser aqui abordada é a culpabilização da mãe por parte de Haroum. O personagem
que dá claras demonstrações de que sente que o desequilíbrio emocional da mãe lhe deixou
marcas na mente e no próprio corpo. Já no trecho anterior, o fato de ele dizer “sem se
preocupar comigo, mamãe atravessou a rua”, já se anuncia que ele está a desenhar um
“descuidado” na conduta materna, uma falha, uma queixa. O excerto abaixo, todavia, deixa
sua mágoa para com o fato de mãe se deixar impactar completamente pela perda de Moussa, a
ponto de suas reações traumáticas afetá-lo intensamente. Cito:
Eu gostava de roubar o pão que mamãe escondia em cima do armário dela e depois
vê-la a procurá-lo por toda a casa murmurando maldições. Uma noite, alguns meses
depois da morte de Moussa, quando ainda morávamos em Argel, esperei que ela
adormecesse, peguei a chave da dispensa e comi quase todo o açúcar que estava
guardado ali. Na manhã seguinte, ela ficou fora de si, começou a praguejar e a
arranhar o próprio rosto chorando e lamentando o seu destino: um marido
desaparecido, um filho assassinado e um outro que a observava naquele estado com
uma alegria no limite da crueldade. Ah, sim! Eu me lembro disso. Eu tinha sentido
um estranho júbilo ao vê-la sofrer de verdade, pelo menos uma vez. Para mostrar a
ela que eu existia, eu precisava decepcioná-la. Era quase uma fatalidade. Esse laço
nos uniu mais profundamente do que a morte (DAOUD, 2013, p. 73).
A passagem estampa uma cena rotineira de um lar pobre, comandado por uma mãe
solteira: o controle da comida. A tensão entre mãe e filho é confessada como gerada por este
para fazê-la premeditadamente sofrer, sentir estresse, roubar suas energias. Como ele é bem
sucedido em sua crueldade, a mãe reage e também expressa seu sentimento de raiva,
praguejando maldições, isto é, acionando os ritos da religião para desabafar ódio pela conduta
287
do filho. Portanto, além do trauma pela morte de Moussa, a desarmonia une ambos, únicos
sobreviventes de uma família despedaçada.
A parcela de ódio que Haroum sente pela mãe, por vezes devolvido por ela com
maldições, acaba irradiada para o gênero feminino, a ponto de o personagem não ser capaz de
manter um relacionamento afetuoso genuíno e verdadeiro com uma mulher. Ele confessa
sentir desconfiança para com mulheres, as quais, na sua visão, estariam sempre em disputa
com as mães de seus parceiros, como se houvesse rivalidade entre elas e como se todas juntas
ameaçassem o gênero masculino. Solidão e celibato foram o destino de tal mente misógina de
Haroum, até encontrar Mariem, personagem que ele acredita tê-lo amado e ter tido a coragem
de enfrentar sua mãe (como se a rede de disputas femininas pelo afeto do homem/filho que
povoa a sua mentalidade estivesse dado como certo naquele contexto em que vivia). Contudo,
a relação com Mariem não se solidificou, não houve casamento. É o que ele conta na
passagem recortada abaixo:
Eu deixei a minha própria família antes mesmo de ter uma, pois nunca me casei.
Claro que conheci o amor de muitas mulheres, mas sem que isso desfizesse o pesado
e sufocante segredo que me algemava à minha mãe. Depois de todos esses anos de
celibato, cheguei à seguinte conclusão: eu sempre nutri uma poderosa desconfiança
em relação às mulheres. No fundo, eu nunca acreditei nelas.
A mãe, a morte, o amor — todo mundo se divide, de maneira desigual, entre esses
três polos de atração. A verdade é que as mulheres nunca conseguiram me libertar
de minha própria mãe e da raiva contida que eu sentia dela nem me proteger do seu
olhar, que, por muito tempo, me seguiu por toda a parte. Em silêncio. Como se
estivesse sempre a me perguntar por que eu não tinha encontrado o corpo de Moussa
ou por que eu tinha sobrevivido no lugar dele ou por que eu tinha vindo ao mundo.
...Em minha vida, a única história que lembra um pouco uma história de amor foi a
que eu vivi com Meriem. Ela é a única mulher que teve a paciência de me amar e de
me trazer de volta para a vida. ... A partir desse caso com Meriem, eu entendi que
as mulheres se afastam do meu caminho, fazem uma espécie de desvio, como se
sentissem, instintivamente, que, mais do que um potencial companheiro, eu sou o
filho de uma outra mulher (DAOUD, 2013, p. 83-84)
É contraditório e curioso notar que todo esse culpabilizar da mãe pelos seus insucessos
e crises como indivíduo, podem funcionar como uma forma de retratá-la com desabono,
denunciando a “mãe má” que ela teria sido. Este detalhe frente a leitores mais conservadores,
acorrentados às cobranças do patriarcado dirigidas a mulheres para que estas se passem como
perfeitas serviçais domésticas e cuidadoras, de fato, soaria como um desabono, o que entra em
conflito com a sua retórica de legitimação de Moussa como vítima pelo sofrimento de uma
mãe sacralizada pela dor da perda de um filho por homicídio. Muito além disso, arrisco a
interpretar que tal culpabilização materna, dotada, pois, de tons patriarcais, legitimaria
também como vítima precípua da história, tanto quanto Moussa, o próprio Haroum por não ter
recebido os devidos cuidados. O narrador daoudiano, portanto, se representaria em seu relato
288
ao “investigador universitário francês”, vindo do Ocidente para ouvir sua versão dos fatos em
torno de um livro escrito por Meursault sobre a morte de seu irmão, como uma igual vítima
daquele assassinato. Sua condição de vítima disputada em seu discurso se fundamentaria no
espólio descrito como recebido de tudo aquilo que viveu ao acompanhar o luto materno e
sofrer seus impactos: a solidão amorosa, as marcas físicas no corpo cuja desenvoltura
muscular não se desenvolveu a contento de uma masculinidade hegemônica (ele aponta seu
físico franzino), a convivência com a necessidade da crueldade contra a própria mãe, cuja
história é reconstruída em sua fala para também, contraditoriamente, defendê-la na posição de
vítima traumatizada, silenciada por uma memória agora muda e inenarrável ao mundo.
Sobrevivente da colonização, das lutas sangrentas pela independência, a mente de Haroum
carregaria variados tipos de abusos e traumas provenientes do binômio: França e relação com
a mãe. Nessa perspectiva, a sua narrativa traz uma retórica para defendê-lo e para “purgar”
seu próprio passado, entranhado na sua musculatura. Ao narrar seu passado com a sua própria
voz – que lhe restou, diversamente do que ocorrera com sua mãe (sujeito duplamente
subalterno: argelina e mulher em maternagem) – o personagem aproveita para desabafar seu
ódio no presente contra o fanatismo religioso em vigor no seu país, escancarar seu ódio contra
mulheres e contra o também “fanatismo crítico-literário” pela “história única” (ADICHIE,
2019) contada por Meursault.
Se por um lado Haroum tece caminhos retóricos, em muitas passagens da obra, para
pintar-se como vítima traumatizada pela violência contra seu irmão, por outro ele se retrata
também como agente da violência. Este seu lado “algoz” e propenso a condutas de crueldade
se revela tanto na relação tensa que estabelece com a mãe, como visto, quanto em demais
ações em pontos chave de seu relato memorial. Tentando se desenhar, e mesmo se
reconhecendo, como um “sósia” de Meursault, o personagem confessa que matou um francês.
O crime, ocorrido também num dia ensolaradamente incômodo (como em Camus), não havia
sido por ocasião da luta armada pela independência, o que, se fosse o caso, pelo prisma do
“colonizado”, teria “justificado” o ato de violência no cenário histórico da Revolução
argelina.
Müller (2018), em breve e contundente artigo no qual estuda o romance de Daoud, já
havia pontuado que “o árabe” matou um francês para, na verdade, se libertar da pressão
materna de vingar o irmão (a mãe, vingança, incentiva o crime e dele é cúmplice). A autora
destaca que é possível notar em Haroum o desejo de imitar Meursault e igualar-se a ele após
atirar: “Pela primeira vez minha mente passava a ideia de que eu finalmente poderia ir ao
289
cinema e nadar com uma mulher” (DAOUD, 2016, p. 102). Uma série de outras “alusões” à
conduta de Meursault que se repetiria em Haroum é indicada por ela, na tentativa de
demonstrar que o romance de Daoud apresenta dois tipos específicos de intertextualidade em
face ao de Camus: a alusão e a referência. Aquela funciona como uma espécie de
intertextualidade “implícita”, não referenciada diretamente com aspas ou menções diretas no
texto, dependendo, então, do conhecimento prévio e minucioso do leitor a associar as
passagens de O caso Meursault ao O estrangeiro; esta, diversamente, realiza a referência
direta e expressa ao romance, como ao citar o personagem Meursault, que, nitidamente, se
estabelece como elemento textual do clássico francês. Feita a distinção, Müller segue sua
abordagem procurando a pontar as semelhanças entre os trajetos dos dois narradores.
Remarca, pois, que além de também assassinar, Haroum é preso, como Meursault, e completa
ela:
As novas autoridades punem Haroum não pelo crime em si, mas pelo momento em
que foi cometido. Como ocorreu depois do dia 5 de julho de 1962, o dia da
independência, o assassinato não foi um ato de libertação, e sim um estorvo para o
regime (SCHATZ, 2015).
Este detalhe na trajetória da narrativa do personagem argelino que vai tentando
“copiar” o “livro” de Meursault não é mero detalhe, mas uma amostra relevante de que há
diferenças escancaradas no modo de França e Argélia acionarem a justiça, ainda que ambas
levadas bem mais pelos interesses de seus grupos de poder. É visível que enquanto a França
protegia no julgamento de Meursault os pilares de sua matriz colonial do poder: os valores
cristãos e o patriarcado sustentado pela figura materna, a Argélia protege claramente os
interesses de sua independência do colonialismo: a autorização do ataque e do assassinato
pelo bem maior da “libertação”. Sendo assim, a tentativa mimética, como já a descreve
Bhabha (2003) só acirra a impossibilidade de se ser o outro, só expõe o desejo inviável de
espelhá-lo.
No que se refere às representações da mulher na condição de amante e namorada,
torna-se importante sublinhar as diferenças trazidas por Daoud. Marie, namorada de
Meursault, recebe a tradução na figura de Mariem (nome local), que se coloca como o oposto
da figura feminina em O estrangeiro: não sonha em casar e deseja ser livre, frequenta a
universidade. Haroum diz tê-la pedido em casamento, diferente de Meursault, que é pedido, e
56 Sujeitos duplos não se igualam por completo nem mesmo na ficção fantástica de José Saramago. O fantástico
está habituado ao usufruto do duplo (RODRIGUES, 1988). Ilustro a observação da mímica ressaltar o diverso
com o exemplo suplementar da produção insólita do escritor português. Em seu romance O homem duplicado,
Saramago apresenta a intrigante façanha de um homem que descobre haver um duplo de si próprio, com
características corporais idênticas, na mesma cidade (Borges já criara algo semelhante em “O outro”, conto
contido em O livro de areia). Eles não se tratavam de irmãos gêmeos, o que seria explicado pela ciência, mas,
fantasticamente, seriam idênticos na aparência. Contudo, as suas trajetórias de vida e suas personalidades, ainda
que revelasse algumas semelhanças, estavam marcadas pela diferença, o que impossibilita a interpretação de que
poderia haver um sujeito idêntico a outro em completa totalidade, ainda que em uma ficção insólita como a do
tipo. Um era divorciado, o outro, casado; um professor de História, o outro, ator; um andava de moto, o outro de
carro e as diferenças se acirram com a leitura da obra. É curioso notar no texto que quando o ator tenta fingir ser
o professor para ter sexo com a namorada deste, ela percebe a diferença entre eles, ainda que haja a mímica; bem
como a esposa do ator, percebe que quem está em sua cama seria outro homem e não o seu marido ator. As
mulheres notam a alteridade e não deixam se enganar. O exemplo da obra portuguesa trona ainda mais
improvável a possibilidade de a mímica copiar sem fissuras o referente copiado, como acontece entre Haroum e
Meursault.
292
o que recebe é uma recusa, não uma insistência, como no caso de Marie, ansiosa para casar
mesmo que com um assassino. Cito a passagem em que se sobressaem as diferenças entre as
mulheres francesa de meados do século XX e a argelina contemporânea:
Chegamos à estação daquele jeito, enlaçados. Naquela época, isso era permitido.
Não é como hoje. Enquanto nos olhávamos com uma curiosidade nova, trazida pelo
desejo dos nossos corpos, ela me disse: “Eu sou mais morena que você”. Perguntei
se um dia ela poderia vir mais tarde, à noite. Ela riu de novo e balançou a cabeça
para dizer que não. Eu ousei ainda mais: “Quer casar comigo?”. Ela fez um
movimento súbito de surpresa — e isso foi como um punhal no meu coração. Ela
não esperava por isso. Eu acredito que ela teria preferido viver aquela relação como
um divertimento natural e não como o prelúdio de um compromisso mais sério. “Ela
quis saber, então, se eu a amava.” Respondi que não sabia o que isso queria dizer
quando eu usava palavras, mas que, quando eu me calava, isso aparecia como uma
coisa evidente em minha cabeça. Você está sorrindo? Hmm, quer dizer que você já
entendeu... Isso mesmo, é uma balela. Do começo ao fim. É uma cena perfeita
demais; eu inventei tudo. É óbvio que eu nunca me atrevi a dizer nada a Meriem. A
extravagância da sua beleza, a sua natureza e a promessa de uma vida melhor do que
a minha que ela significava sempre me deixavam mudo. Ela pertencia a um tipo de
mulher que não existe mais neste país: livre, conquistadora, insubmissa e vivendo o
seu corpo como um dom, não como um pecado ou uma vergonha. A única vez em
que a vi se cobrir com uma sombra gélida foi quando me contou de seu pai,
dominador, polígamo e cujo olhar, cheio de cobiça, despertava nela a dúvida e o
pânico. Os livros a libertaram de sua família e lhe forneceram o pretexto para sair de
Constantine; assim que foi possível, entrou na universidade de Argel (DAOUD,
2013, p.155-156).
O trecho atesta que Mariem seria uma mulher do Século XXI: com possibilidades de
cogitar propósitos que conseguiriam ir além de formar uma família e servir a um marido, o
que não era cogitável em certos contextos históricos anteriores. Ela fugiria do destino de estar
suscetível a homens como seu pai: polígamos e autoritários. Sua rota de fuga foi a leitura, o
conhecimento, a universidade, capazes de lhe conferir uma liberdade que não encontraria nos
rituais culturais de sua comunidade familiar e local. Contudo, o personagem alerta que
mulheres como Marie “não existem mais no país”, uma solo que interdita a liberdade,
sobretudo a feminina, uma vez que as mulheres são levadas a entender o próprio corpo como
objeto de vergonha a ser encoberta. A personalidade livre e próspera de Mariem, que resiste à
ancestralidade patriarcal argelina, confessa Haroum, afeta a sua masculinidade, porque o
transforma em um sujeito inferior a uma mulher, revolve as sombras da sua insegurança
enquanto homem. Mais uma vez, a misoginia, o medo da mulher livre e próspera, no controle
de seu corpo e seu destino abala a história do narrador.
A partir do exposto, torna-se evidente que a tessitura da maternidade em O caso
Meursault se compõe de diversas e cumulativas particularidades em relação ao romance
parodiado de Camus. São elas 1) Expõe a dor e o trauma materno, dialogando com a cultura
patriarcal argelina, bem como problematizando o racismo para com árabes na geografia
293
colonial; 2) cria formas tanto para a imagem da mãe, como sujeito feminino subalternizado,
de resistência e “revolta” quanto para a sua imagem culpabilizada; 3) aponta indícios da
misoginia presente na mentalidade do narrador argelino; 4) assinala as aproximações e as
diferenças entre os heróis camusiano e daoudiano.
Quanto ao desenho das mulheres argelinas na obra, destaco que diferentemente da
predominância da “prostituta” moura e sem nome, violentada e animalizada em Camus, ou da
mocinha casamenteira e dependente do afeto masculino, Daoud oferece uma nova
personalidade que pode transitar no espaço pós-colonial: a mulher livre, que rompe com as
amarras da maternidade, da família, do trabalho doméstico e que se lança ao trabalho
intelectual. Contudo, seu narrador atesta estar esta mulher em extinção na Argélia: “Ela
pertencia a um tipo de mulher que não existe mais neste país”. É como se a ficção do autor
oferecesse um desejo utópico de representação feminina que mal teria surgido em uma ficção
e já morre antes mesmo de se tornar real e consolidada no país.
E com tal delinear os pilares selecionados para o debate da tradução de O estrangeiro
em O caso Meursault aqui se apresentaram, na tentativa de tatear algumas das múltiplas
linhas pertencentes a um diálogo crítico e reverencial (HUTCHEON, 1991) que Kamel Daoud
estabelece com a produção de Albert Camus no interior da literatura argelina contemporânea.
Restam muitas outras linhas a serem percorridas desse diálogo de vasto alcance, diante das
quais faço votos de que mais tecelãs pelo mundo se debrucem para trançar novas e diversas
interpretações.
294
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
57 A respeito, cito Adam Schatz: “Nos textos de Daoud, seja nos jornalísticos, seja nos literários, salta aos olhos
o destemor com que ele defende as liberdades individuais – um destemor que me pareceu chegar às raias da
irresponsabilidade num país em que são intensas as paixões coletivas despertadas pelo nacionalismo e pela
religião. Fiquei me perguntando se sua experiência podia fornecer alguma pista da situação em que se encontra a
liberdade intelectual na Argélia, um híbrido de democracia eleitoral e Estado policial. No fim do ano passado,
tive uma resposta. Daoud já não era apenas um escritor: era um nome em relação ao qual se devia tomar uma
posição, tanto na Argélia como na França” (2015, p. 2).
295
reconhecimento das diversidades locais entre o tradicional controle da unidade nacional pela
exigência, julgada pelo autor como autoritária, da manutenção dos costumes árabes e
islâmicos. No passado das lutas pela Independência (1954-1962), como tais valores da
unificação popular foram decisivos para a vitória sobre os invasores franceses (YAZBEC,
2010), eles estão, há décadas, em vigilância pelas lideranças políticas mais ortodoxas, para
que resistam como norma numa cultura que cada vez mais, nas voltas do fenômeno da
globalização, dialoga com o ritmo de assimilação cultural e de práticas de consumo na ordem
de uma unificação que se estreita a padrões “ocidentalizantes” (HALL, 2006).
Nesse âmbito de embates e disputas entre o presente de uma população que em parte se
abre para uma juventude que deseja consumir liberdade e o passado da Guerra da
Independência, que se arrasta pela força representativa dos líderes septuagenários e
octogenários da Frente de Libertação Nacional, se inscreve a produção de Daoud, e não o faz
com neutralidade. O autor assume uma posição e, aqui, há uma procura por evidenciá-la, no
sentido de demonstrar o que a sua voz, como escritor da ficção contemporânea argelina
propaga em termos de imagens das relações culturais que atravessam o seu contexto de
produção. A obra do autor além de revisitar com crítica e ironia o imperialismo francês, toma
sua posição pelo que acredita ser a liberdade individual no país, criticando a política local de
seu tempo e até incomodando argelinos desde os mais conservadores até os da esquerda
(SCHATZ, 2015). Dizem variadas personalidades da cena cultural e política contemporânea
do eixo França-Argélia e, sobretudo, os jornais argelinos mais nacionalistas que Daoud
escreve para agradar os franceses e alimentar a repulsa que a ex-metrópole não se preocupa
em esconder contra a cultura islâmica.
O caso é que seja em O caso Meursault, seja em suas crônicas nos jornais, leitores atentos
perceberão que Daoud não se mostra uma mente simplista, isto é, que defende sem ressalvas
os ideais dos grupos racistas e antiislamistas franceses por pura subserviência às editoras
ocidentais, ou que ataque cegamente o imperialismo francês, por conceber a Argélia como
afogada em problemas sociais unicamente pela exploração europeia. Nada é tão dicotômico e
absolutamente homogêneo ou transparente nas representações que Daoud cria em suas
composições. O que O caso Meursault põe a nu, como procurei expor, é justamente a
complexidade das posições dos sujeitos nas relações do passado e do presente pós-colonial
entre França e Argélia, posições atravessadas por contradições, tensões e ambivalências.
No seu romance, os exegetas franceses de O estrangeiro e o próprio Edward Said são
levados a uma reinterpretação com crítica; as marcas traumáticas da colonização e da ação
296
francesa são, sim, evidenciadas nas seleções estéticas do autor, tal qual comentei no Capítulo
4. Contudo, também a maioria da população argelina, as lideranças nacionais mais radicais
são criticadas pela subserviência a um tipo de prática fanática, ortodoxa do islamismo que
traria, em sua ótica, também consequências impactantes no desenvolvimento local e na
relação que a população poderia vir a travar com a liberdade. A presença de uma hipocrisia
visível nessa população, vista por Daoud, é desenhada e denunciada na obra, sobretudo por
vigorar em homens (como o próprio Moussa, “árabe” assassinado por Meursault) que se
dizem mulçumanos para policiar a liberdade alheia, supostamente defender a honra feminina,
mas ultrajariam o próprio Alcorão, consumindo álcool e agredindo mulheres, como a própria
mãe (dita valorizada na cultura local), e destilando variadas modalidades de misoginia.
Haroum, que ora se faz crítico de uma apontada parcela misógina islâmica, não consegue
esconder a própria misoginia; um crítico da dita ortodoxia islâmica que violenta,
paradoxalmente, as liberdades, não consegue deixar de invocar Deus, em seus hábitos
cotidianos e automatizados de fala, para mostrar-se chocado com a violência francesa de
Meursault e, ao mesmo tempo, evitar cometer certas crueldades, como assassinar um homem,
tal qual fez Meursault. Pelo que apresentam os próprios textos daoudianos, é difícil colocar
sua produção em “caixinhas” definidas pró ou contra “isso” e “aquilo” de modo estanque, fixo
e definido, sem que haja ressalva ou indicação de problemáticas abertas aparentes. Seu texto é
um emaranhado de posições, emoções, fechamentos e aberturas de questões inquietantes
sobre passado e presente, sobre o “pós-colonial”, sobre o que se pensar como sujeito argelino
décadas após a Revolução socialista da Independência, caracteriza como uma das mais
sangrentas da História (YAZBEC, 2010). Todos esses traços se interpenetram para arrebatar
os leitores e sacodir suas falsas certezas e ilusões de pureza.
Nessa conjuntura de complexidades, considero que estudar Daoud se faz relevante por
ensejar a tarefa crítico-política de contactar novas leituras menos cristalizadas e reducionistas
da memória argelina via ficção e, assim, criar espaços para que a literatura francófona das
periferias colonizadas possa circular e, portanto, oferecer alargamento às possibilidades de se
refletir sobre a História, a Geopolítica do imperialismo, sobre as escolhas estéticas
contemporâneas de se reconfigurar o mundo de um lugar diverso do canônico. Procurei, neste
estudo, responder a alguns questionamentos gerais e específicos cujas respostas aqui traçadas
só posso reconhecê-las como provisórias, porque apoiadas na minha subjetividade como
analista que percorreu trajetos investigativos particulares, em condições histórico-culturais
específicas, passíveis de suplementações e questionamentos.
297
Relembro as questões principais lançadas na introdução do trabalho que foram
verdadeiros motores de formulação da tese então sustentada, a fim de pontuar, no presente
desfecho da investigação, a que premissas cheguei. Indaguei de modo geral: 1) Que imagens
da Argélia a ficção de Daoud oferece ao mundo contemporâneo? 2) Haveria em Daoud
espaço para uma outra Argélia diferente da camusiana e da exposta no filme de André
Techinè, “Adeus à noite” (2019) no qual estrelava Catherine Deneuve? Passo a fazer o
apanhado das investigações.
A memória que Daoud oferece ao mundo contemporâneo acerca da Argélia é a de um país
cujo campo literário ficou decididamente marcado pela produção de Camus, um país que
nesta mesma produção teve seus sujeitos silenciados e assassinados, uma vez que eram árabes
na conjuntura da violência colonial francesa. Se Camus elabora esteticamente tal
silenciamento que, como disse, oportuniza que a partir dele se realize uma leitura
contrapontística, tal como a entende Said (1995), revelando uma dinâmica da violência
colonial da qual precisa se ter uma memória, Daoud, por sua vez, suplementou a memória do
seu país, a partir de sua perspectiva diversa. Na ficção argelina contemporânea, ele mostrou
que, pela paródia de um clássico ocidental, é possível reescrever a história dos argelinos que
figura nesse mesmo clássico e o fez utilizando a própria língua do colonizador para tanto. Não
só a própria língua, mas a própria estrutura romanesca prestigiada de um agraciado com o
Nobel da Literatura, utilizando-o, paradoxalmente, como fundamento/impulso para seu “voo-
mergulho” “subversivo-dependente”, que se coloca tanto como homenagem a Camus quanto
como sua reavaliação crítica. Esta dinâmica contraditória e polivalente da prática paródica
(HUTCHEON, 1991) é o que é posto em cena em O caso Meursault, um romance inserido no
campo pós-moderno.
A respeito da contradição que é típica da poética pós-modernista, Hutcheon assinala: “A
descentralização de nossas categorias de pensamento sempre depende dos centros que
contesta, por sua própria definição (e, muitas vezes, por sua forma verbal)” (1991, p. 87). Ela
insiste que se veja no interior dessa dependência e dessa referência e reverência das obras pós-
modernas a parcela de ressignificação, de subversão e de suplementação que oferecem.
Principalmente, a canadense sugere que não se perca de mira o fato de que “a força dessas
novas expressões sempre provém paradoxalmente daquilo que contestam” (HUTCHEON,
1991, p. 87). Nesse sentido, que, aqui, fique remarcada a peculiaridade do fato de que a força
da voz descentralizada de Daoud encontra energias justo na força da centralidade de Camus.
Não há como, nem por um desejo que se considerasse contra-hegemônico, protagonizar o
298
estudo de O caso Meursault sem que seja atestada a sua dependência ao O estrangeiro.
Acontece que tal dependência é a mola da própria transgressão e suplementação crítica do
romance “clássico do pós-guerra.” Nesse cotejo entre os dois romances, seria ingênuo supor
que Camus, por ser um escritor ocidental, “roubaria a cena” neste trabalho e figuraria, pois,
como único destaque das reflexões traçadas, já que teria sido infinitamente aqui citado. Na
verdade, “Camus é a cena” para que Daoud o subverta num exercício crítico, reverencial e
suplementar, de modo que sempre que o francês apareceu aqui analisado, foi como um gesto
de mapear as ressignificações que Daoud interpôs ao O estrangeiro, fraturando-o ao mesmo
tempo em que o recompondo em novos moldes. Tal é a engrenagem da “tradução paródica
pós-colonial” do escritor argelino contemporâneo que aqui me dediquei a pesquisar.
Na suplementação de Kamel Daoud, pois, destaco, é formulada esteticamente uma nação
magrebina que carrega traumas irreparáveis do imperialismo, marcados nas veias
arquitetônicas das cidades e nas imagens que se guardam do mar (igualado a um espaço de
segregação, como um “muro” e a um “túmulo”, onde corpos se escondem do inimigo através
da morte, tal qual é simbologia marítima na produção francófona caribenha, de Glissant e
Chamoiseau). Sua ressignificação evidencia as cicatrizes emocionais nas famílias argelinas,
nas mães, nos irmãos que perderam seus entes de sangue durante os embates com a França.
Sua reescritura revela que existiriam mais que islâmicos ortodoxos e radicais na Argélia
contemporânea (ou em diáspora pelo mundo), mostrando que esses mesmos sujeitos
encarados como radicais carregam contradições e hipocrisias frente às palavras do Alcorão,
sugerindo que existem argelinos que, como Haroum, preferem encontrar Deus de outras
maneiras, que optam por entender que crer ou não em Deus é uma livre decisão de um sujeito,
como livre é a relação de crença que um leitor estabelece com as páginas de uma ficção. Sua
literatura arquiteta uma imagem de seu país, na qual um argelino que vive hoje em Orã
poderia falar em francês por vontade própria de resistir a algum tipo de opressão que ainda
restaria na região, pode dialogar civilizadamente com franceses, pode ser crítico ao passado
colonial e à França e, ao mesmo tempo, pode ser questionador do fundamentalismo islâmico,
que, ironicamente, foi a base para a libertação da colonização que aprendeu a criticar.
Em outras palavras, Sim, Daoud quebra certos estereótipos em torno de seu país, não
deixa de reafirmar outros, e, sim, apresenta, pela literatura, o que o cinema de André Téchine
não fez: uma diversidade de subjetividades na Argélia, uma ficção que grita por liberdade pela
via humanizada da arte. Por assim se portar, Daoud convive com “o ódio de alguns de seus
espectadores” mais religiosos, tendo recebido fatwa via facebook após uma entrevista para um
299
programa da TV francesa, On N’est pas couché (Não estamos dormindo), em que debatia o
romance premiado e reafirmava que a ortodoxia “havia se tornado um obstáculo ao progresso
do mundo muçulmano” (SCHATZ, 2015, p.2).58
A obra do escritor dialoga com a tendência de se afastar do que significa o Estado
Islâmico e sua prática de atentados terroristas verificada em muitas comunidades diaspóricas
muçulmanas. O movimento Not in my name/Pas en mon nom é um dos símbolos recentes
dessa tendência, tendo se iniciado nas redes sociais. Segue a descrição da campanha e sua
análise, a partir de Laurent Greilsamer, cofundador do Le Monde 1:
É uma imagem muito forte: uma jovem, com rosto enquadrado por um grande lenço
em cores pastel, vem nos dizer em inglês: “O Estado Islâmico não representa nem o
Islã nem muçulmano algum”. Só o tempo de uma frase e já um jovem, de cabelo
raspado e moletom, continua: “O que eles fazem é totalmente antiislâmico”. E assim
por diante, muçulmanos se sucedendo, uma jovem de blusa vermelha, um senhor
bigodudo. Esse clipe, concebido na Grã-Bretanha, tem uma energia rara. É muito
bom. De modo algum resignado ou submisso a uma injunção britânica. De modo
algum hipócrita. Sincero, pelo contrário, espontâneo. Soa como uma afirmação. Mas
quem são esses terroristas que pretendem falar por nós? Eles dizem cada um a sua
maneira. Essas pessoas são as porta-vozes da imensa maioria muçulmana silenciosa
que não encontra as palavras para dizer isso. Os muçulmanos são eles, explicam.
Muçulmanos livres, modernos. Que a organização Estado Islâmico se cale, pare de
reivindicar a tutela do Profeta. Not in my name! A expressão atravessou o Canal da
Mancha. As redes sociais se apropriam da fórmula na França, gerando rajadas de
tweets “Pas en mon nom” em resposta aos comunicados sangrentos do grupo Estado
Islâmico. Isso quer dizer, sim, nós somos desse país, solidários de cada um. E ressoa
como um ato fundador de emancipação (2016, p. 55-56).
Dessa forma, por seu conteúdo crítico ao fundamentalismo e ao radicalismo islâmico,
a produção de Daoud também se ajusta a esse desejo de demarcar uma identidade emancipada
que as comunidades muçulmanas, sobretudo os grupos de imigrantes no Ocidente e, em
especial, na França, apresentam frente à violência armada do Estado Islâmico. Nessa
conjuntura, Daoud, em O caso Meursault, apresenta um romance que oferece outra
58 Sobre as ameaças de morte contra Daoud, Schatz coloca: “Na tevê, ele não disse nada que já não tivesse
escrito em suas colunas ou no romance. Mas o fato de ter dito aquilo na França, país que governou a Argélia de
1830 a 1962, chamou a atenção de argelinos que tendem a ignorar a imprensa em língua francesa. Um deles foi o
obscuro imã Abdelfattah Hamadache, do qual se dizia ter sido informante dos serviços de segurança. Três dias
depois do programa, Hamadache escreveu em sua página no Facebook que Daoud – um “apóstata” e “criminoso
sionizado” – deveria ser julgado e executado em público pelo insulto ao Islã. Não estava exatamente
conclamando seu assassinato, uma vez que apelava ao Estado, e não a jihadistas freelancers. Mas a Argélia é um
país onde setenta jornalistas foram mortos por rebeldes islamistas durante a guerra civil dos anos 90, a chamada
Década Negra. Muitos desses assassinatos foram precedidos de ameaças anônimas por cartas, panfletos ou
pichações nas paredes de mesquitas. A “fatwa via Facebook” de Hamadache, como ficou conhecida, era
novidade de uma ousadia única, porque assinada. Provocou um clamor, e não apenas entre liberais. Ali Belhadj,
líder da proibida Frente Islâmica de Salvação (FIS), criticou duramente o imã, afirmando que ele não tinha
autoridade para declarar Daoud um apóstata e que somente Deus tinha o direito de decidir quem era ou não
muçulmano – um indício, disseram alguns, que a FIS enxergava em Hamadache um instrumento do Estado. De
fato, embora o ministro dos Assuntos Religiosos, Mohamed Aïssa, homem de modos amenos e inclinações
sufistas, tivesse saído em defesa do escritor, o restante do governo manteve uma neutralidade inexplicável,
recusando-se a reagir quando Daoud deu queixa de Hamadache por incitamento à violência” (2015, p.2-3).
300
representatividade muçulmana que agradaria às diversas comunidades de leitores críticos do
radicalismo islâmico, seja a comunidade ocidental, seja a própria comunidade muçulmana em
diáspora, a qual sofre, por sua vez, com o preconceito e o racismo dos grupos xenófobos, os
quais associam diretamente ir à mesquita a ir explodir-se e matar europeus nos grandes
centros. Tais sujeitos ensejam outro tipo de radicalismo: o que vem do ódio de uma grande
parcela de europeus, eleitores da extrema direita (ZIZEK, 2014) e que assim o fazem por
insistirem em esquecer a memória do imperialismo que os colocou na posição de Centro e na
rota do desejo periférico, por se recusarem a entender a responsabilidade do Ocidente nos
motivos de saída dos imigrantes de sua terra natal (HALL, 2003), guardando medo de perder
a identidade ocidental (SAYAD, 1998) e o poder sobre o próprio território.
Contudo, ainda que defensor da liberdade em um contexto que denuncia como autoritário,
o tom da produção daoudiana não se desenvolve de modo utópico e esperançoso; na verdade,
soa como um “lamento”, um “desabafo” de frustação, um versar sobre a consciência da
barbárie em que habitaria e que precisa ser dita, ser jogada ao público para que este a veja e a
enfrente, como um último gesto insurgente da arte, de um escritor que explica em suas
entrevistas não ser “islamofóbico, mas livre”, não ser “árabe”, mas argelino, escolher não
escrever em árabe pela carga devota à religião e, portanto, fetichizada, segundo ele, que
haveria na língua (MEDDI, 2016), escrevendo em francês para dialogar com leitores para
além dos muros que ilham a nação.
É significativo assinalar como Daoud em sua ficção questiona a ideia de ser “árabe”,
como se a denominação da identidade árabe fosse uma construção cultural de um olhar
ocidental, branco que deseja e precisa categorizar o “outro”, “o selvagem”, para dominá-lo e
circunscrevê-lo sempre ao seu alcance na demarcação da sua diferença. Em O caso Meusault,
o escritor reflete sobre a questão, através da fala de seu narrador Haroum, estabelecendo uma
analogia entre a formulação da identidade “árabe” à identidade “negra”, a qual, na sua visão,
seguiria o mesmo mecanismo categorizador e racista: “Árabe. Eu nunca me senti árabe, sabia?
É como a negritude, que só existe a partir do olhar do branco. ... Foi necessário, então, o
olhar do seu herói para que o meu irmão virasse um “árabe” e morresse por isso” (DAOUD,
2013, p. 74-75). O documentário Eu não sou seu negro, dirigido pelo haitiano Raoul Peck,
cujo roteiro é retirado do livro nunca finalizado e inédito do americano James Baldwin (1924
– 1987), intitulado Remember This House (1979), de fato, invoca a mesma prerrogativa de
Daoud e provoca a branquitude a reconhecer a sua responsabilidade histórica pelo racismo
atual que violenta a sociedade decorrente da escravidão que tanto enriqueceu o colonizador.
301
Questionar uma identidade criada para segregar é o que interliga, nesse sentido, as duas obras
(na literatura e no cinema) e o que carimba a importância que assumem em tempos
contemporâneos nos quais, passado o colonialismo do século XIX, batalhadas as
independências às custas de sangue e exílio, persistem suas marcas pós-coloniais que
necessitam ser pensadas por vias artísticas, dado que a arte é o campo aberto para multiplicar
sentidos, alargar as possibilidades do real e redimensionar eticamente nossas escolhas em
comunidade (WALTER, 2015). Contudo, a recusa em ser árabe que atravessa o personagem e
está no autor (ele assim declara nas suas entrevistas) para além de ser uma recusa do olhar
ocidental para o sujeito argelino, é também a recusa de um sujeito argelino a se ver como
essencializado pela vigília cultural que, na sua percepção, domina em seu próprio país, para
que as únicas formas de expressão sejam uma língua e uma única espiritualidade que estão
entrelaçadas, as quais ele não mais reconhece fora de amarras que apanham a sua liberdade
como jornalista e ficcionista. Recusar a identidade árabe, por esse prisma, seria escolher ser
livre, na visão do autor, e duplamente: da imposição racista europeia e do controle político
local atravessado pelo radicalismo islâmico. Romper seria acionar formas particulares de suas
próprias independências.
A ponte entre a ficção e as crônicas de Daoud se faz arquitetar a cada vez em que o autor
escreve, publica, posta ou aparece nos canais televisivos magrebinos ou franceses. De modo
semelhante à atuação de Camus nos jornais do seu tempo, em que o escritor francês se
mostrava um intelectual de destaque e se envolvia em polêmicas por suas posições por vezes
dissonantes dos quadros da esquerda (YASBEC, 2010; SOARES; 2010), as quais estavam
versadas em A peste, O estrangeiro, A queda, Daoud também faz da sua literatura um
contínum (diferido) de sua prática jornalística. Em Mês indépendances (2018), há duas
crônicas que muito se estreitam com os sentimentos de revolta e crítica que pairam na
narrativa de Haroum em O caso Meursault e que, portanto, merecem menção nestas
considerações finais em torno do escritor argelino. São elas: “L’inévitable france algérienne”
(Samedi 21 de décembre 2013) e “Est- Il possible d’étre heureux em Algérie?” (Jeudi 5 mar
2014). Na primeira, destaco a vibração da crítica pela ironia delegada às formas de
autoritarismo que se estreitam entre Argélia e França; na segunda, ressalto a iniciativa crítica
pela frustração revelada na descrença da felicidade em seu país.
Em “L’inévitable France algérienne”, uma relação afetiva é estabelecida entre a França e
a Argélia como se os países fossem um “casal” de relacionamento complexo e ambivalente. O
302
quadro se assemelha bastante à relação que é estabelecida entre colônia e metrópole em O
caso Meursault. Recorto um trecho:
Vu d’ailleurs, ce vieux ménage qui n’est pas une histoire d’amour, ni une histoire de
célibataires, lasse un peu. Voici ce vieux couple–qui a deux religions, une histoire,
une guerre, des milliers d’enfants qui ne sont pas heureux–qui agace le monde par
ses histoires de ménage et de divorce perpétuelles. En gros, et pour résumer, la
France est encore nécessaire aux élections algériennes qui tournent autour comme
une interrogation liée à un assentiment. De Gaulle est français mais, curieusement,
l’Algérie politique est très gaulliste. Pas française, mais elle aime trop la tradition de
l’homme qui sauve, du militaire messianique, du général qui unit le pays 59
(DAOUD, 2018, p. 303).
É perceptível o tom sarcástico de Daoud a ironizar que a Argélia, tão nacionalista,
orgulhosa pela Revolução (1954-1962) se utilize do mesmo recurso do autoritarismo
messiânico representado pela figura masculina de um militar no qual se baseou a França
colonial. A mímica do gaullismo francês operado pela Argélia décadas após a independência
seria a hipocrisia nacional que o escritor denuncia. Por outro lado, a mesma França que
sacraliza a República em um lugar privilegiado da sua memória (NORA, 1989), globalmente
célebre pelo lema da “liberdade, igualdade e fraternidade”, pratica o extremismo da
segregação contra imigrantes, reproduzindo condutas intolerantes semelhantes ao salafismo
contra o qual se opõe. Cito Daoud:
À la fin? La France devient amusante quand elle cède au salafisme du Front national
pour croire se débarrasser de l’Algérie. Salaf c’est l’ancêtre, selon la traduction.
Qu’il soit Gaulois pur rêvé ou Arabe noble fantasmé. Les salafistes de la France sont
l’extrême droite, ceux de l’Algérie sont, eux, des islamistes. Les deux rêvent de
revenir aux temps purs où les sangs n’étaient pas mêlés à la carte de séjour. Mais?
Mais cela n’est pas l’histoire, et l’histoire coule vers le lendemain, toujours. Il est
amusant de voir comment chacun des deux pays fait mine de se débarrasser de
l’autre puis, lentement, tente de se faire passer pour le visiteur étranger, le vis-à-vis
qui marque sa distance, le parfait poli neutre et sans couleur. Il existe cependant,
malgré ses détracteurs fiévreux, une “France algérienne” qui n’est pas la
conséquence de la colonisation positive, ni l’œuvre du pied-noir, de la
59 Segue tradução livre: Vista de outro lugar, esta velha casa que não é uma história de amor, nem uma história
de solteiros, cansa um pouco. Aqui está esse velho casal — que tem duas religiões, uma história, uma guerra,
milhares de crianças que não estão felizes — que irritam o mundo com suas histórias de família perpétua e
divórcio. Basicamente, e resumindo, a França ainda é necessária nas eleições argelinas que giram em torno de
uma questão relacionada a um consentimento. De Gaulle é francês, mas, curiosamente, a Argélia política é muito
gaullista. Não é francês, mas ela ama demais a tradição do homem que salva, o soldado messiânico, o general
que une o país.
303
décolonisation ou de l’amour ou de l’entente ou du partage 60 (DAOUD, 2018, p.
304).
Assim, o escritor apresenta a sua marca no cenário do jornalismo internacional:
ironizar as hipocrisias de um país que reproduz as misérias do outro. Ambos o fazem no afã
de demarcarem fronteiras que, ao fim das contas, derretem-se e revelam as fraturas e
imbricações entre as duas culturas que arrastam uma relação histórica cuja natureza nem é de
amor, nem de afastamento completo. Sua crônica revolve as contradições insolúveis entre ex-
colônia e ex-metrópole na esfera pós-colonial, tal qual é a vibração da narrativa de Haroum.
Em “Est- Il possible d’étre heureux em Algérie?” a negação total como resposta à
questão proposta, que vem como carga enfática e repetitiva ao longo de todo o
desenvolvimento do texto, enseja os mesmos sentimentos de frustração, trauma, lamento,
revolta diante da precariedade da liberdade que ele defende haver na Argélia. Não há um fio
de esperança nessas palavras de Daoud:
On n’est pas heureux car ce pays est construit, par nous, commeune prison, une salle
d’attente ou un camp. Beaucoup d’Algériens disent qu’on ne peut pas être heureux
en Algérie, donc. C’est un pays qui ne rit pas, où l’amour est un crime, le corps un
clandestin, et où le but des polices et de l’ordre est de nous enfermer, nous
immobiliser, nous séparer et nous pourchasser. Où la religion est une inquisition ou
une bigoterie, où l’identité est un arôme artificiel, où la liberté est une menace pour
les politiques et où être jeune, c’est avoir mal vieilli. On n’est pas heureux en
Algérie parce que le bonheur n’est pas le but de l’Algérie. C’est très simple 61
(DAOUD, 2018, p.315).
Sobre ser feliz, é consabido que Camus, em diálogo com suas referências europeias
sob os impactos bélicos e nazistas de meados do século XX, escreve O mito de Sísifo (2018a)
para afirmar que, não havendo paraíso, o trajeto presente é o único terreno concreto que tem o
ser humano, um trajeto que qualificado como desprovido de sentido, mecânico (tal qual a
modernidade capitalista, moldada pela exploração diária do trabalho operário), cansativo,
pesado, no qual os indivíduos estariam, de modo análogo ao personagem mítico grego, Sísifo,
60 Segue tradução livre: No final? A França torna-se engraçada quando cede ao salafismo da Frente Nacional
para acreditar que se está se livrando da Argélia. Salaf é o antepassado, de acordo com a tradição. Quer ele seja o
puro gaulês sonhado ou o nobre árabe fantasiado. Os Salafistas da França são de extrema-direita, os da Argélia
são islamistas. Ambos sonham em regressar aos tempos puros em que o sangue não era misturado com a
autorização de residência. Mas? Mas essa não é a história, e a história flui para o dia seguinte, sempre. É
divertido ver como cada um dos dois países finge livrar-se do outro e depois tenta lentamente fazer-se passar
pelo visitante estrangeiro, o vis-à-vis que marca a sua distância, o perfeito neutro e incolor educado. No entanto,
apesar dos seus detratores febris, existe uma "França argelina" que não é a consequência da colonização positiva,
nem do trabalho do pied-noir, da descolonização ou do amor ou da compreensão ou da partilha.
61 Segue tradução livre: Não estamos felizes porque este país é construído, por nós, como uma prisão, uma sala
de espera ou um campo. Muitos argelinos dizem que não se pode ser feliz na Argélia. É um país que não ri, onde
o amor é um crime, o corpo um clandestino, e onde o objetivo da polícia e da ordem é nos prender, nos
imobilizar, nos separar e nos caçar. Onde a religião é uma inquisição ou um fanatismo, onde a identidade é um
aroma artificial, onde a liberdade é uma ameaça para os políticos e onde ser jovem é ter envelhecido mal. Não
somos felizes na Argélia porque a felicidade não é o objetivo da Argélia. É muito simples.
304
a empurrar uma enorme pedra para o cume de uma montanha e, em sequência, a rolá-la até
sua base, ininterruptamente, aprisionados a tal destino irracional. Um trajeto, pois, “absurdo”.
Enfrentar que não há esperanças (sobretudo de que exista um paraíso divino, no qual após a
morte, haveria “salvação”) é um modo de o sujeito camusiano se emancipar das ilusões nesse
contexto62 e manter-se consciente da “certeza de um mundo esmagador” (CAMUS, 2018,
p.68), na medida em que se dispõe ao “confronto com sua própria escuridão” (CAMUS, 2018,
p. 68). Mas, é preciso destacar, aqui, com bastante ênfase: para Camus, anular as esperanças
não seria necessariamente deixar de desejar viver 63, pelo contrário: “viver é fazer com que o
absurdo viva. Fazê-lo viver é, antes de mais nada, contemplá-lo” (2018, p.68). Assim, aceitar
racionalmente o absurdo e abandonar as esperanças fabricadas pela moral social é uma forma
de libertação64: “O retorno à consciência, a evasão para fora do sono cotidiano representam os
primeiros passos da liberdade absurda” (CAMUS, 2018, p.72). Nesse panorama, o filósofo
argumenta que é necessário imaginar, sim, Sísifo feliz65 (CAMUS, 1942).
Como “duplo” ficcional moderno de Sísifo, Meursault, em O estrangeiro, está ciente
do absurdo que enfrenta, se faz indiferente aos preceitos cristãos, à morte e busca desfrutar do
seu presente. Soares (2010) destaca que o enfrentamento do absurdo em Camus se faz pelo
desfrute sensorial do presente. “Hoje mamãe morreu”, inicia Meursault sua narrativa, mas, tal
qual Sísifo diante da sua tarefa, “também ele sabe que está tudo bem” (CAMUS, 2018, p.
141) e, então, se preocupa em seguir a vida e alimentar seu corpo de desfrute no agora. Seja
em um agradável banho de mar no verão com a namorada sensual e sorridente, seja num
“flanar” pela multidão do conforto de sua varanda enquanto fuma e come chocolate, num sexo
após a praia, numa seção de cinema, num restaurante que se frequenta, até mesmo em uma
cadeia de onde aguarda o cadafalso. É possível, portanto, recuperando pontos da diegese do
romance, “imaginar Meursault feliz”; ele é livre diante de seu corpo para desfrutar do presente
em toda a sua sensorialidade, justo porque as esperanças não mais o iludem, pelo contrário, o
62 Cito Camus em O mito de Sísifo sobre o homem absurdo: “Ele reconhece a luta, não despreza em absoluto a
razão e admite o irracional. Recobre assim com o olhar todos os dados da experiência e está pouco disposto a
saltar antes de saber. Ele só sabe que, nessa consciência atenta, já não há lugar para a esperança” (2018, p.51).
63 Cito Camus sobre a recusa do homem absurdo ao suicídio: “Mas eu sei que para manter-se, o absurdo não
pode ser resolvido. Recusa o suicídio na medida em que é ao mesmo tempo consciência e recusa da morte”
(2018, p.68).
64 Para entender a filosofia de Camus como uma forma de “sagrado moderno” e de “evangelho da revolta”, vide
tese de doutorado de Caio Caramico Soares (USP), já referenciada neste trabalho anteriormente no capítulo 4.
65 Cito Camus no último parágrafo de sua obra filosófica: “Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas
sempre reencontram o seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas.
Também ele acha que está tudo bem. Esse universo doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada
grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria
luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz” (2018, p.
141).
305
absurdo o liberta para viver e para matar; ele é livre na Argélia colonial para narrar o que
narrou, sobretudo, por ser francês.
Quanto à felicidade em Daoud, seu referencial reflexivo é o século XXI, no qual
dialoga com as questões argelinas de seu lugar argelino, como visto na crônica, mas também
com questões que envolvem os árabes em seus países de origem e em diáspora pelo Ocidente.
Nesse âmbito, o escritor produz sua obra jornalística e ficcional em face do quadro observado
por Eugene Rogan em Os árabes, uma história:
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