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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM LETRAS

ARIANE DA MOTA CAVALCANTI

O CASO MEURSAULT: Kamel Daoud e a tradução de O estrangeiro na ficção argelina


contemporânea

RECIFE
2022
ARIANE DA MOTA CAVALCANTI

O CASO MEURSAULT : Kamel Daoud e a tradução de O estrangeiro na ficção argelina


contemporânea

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras do Centro de Artes e
Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de
Doutora em Letras.

Área de Concentração: Teoria da Literatura

Orientadora: Profª. Drª. Brenda Carlos de


Andrade

RECIFE
2022
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira – CRB-4/2223

C376c Cavalcanti, Ariane da Mota


O caso Meursault: Kamel Daoud e a tradução de O estrangeiro na ficção
argelina contemporânea / Ariane da Mota Cavalcanti. – Recife, 2022.
315f.

Sob orientação de Brenda Carlos de Andrade.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de
Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2022.

Inclui referências.

1. Kamel Daoud. 2. O caso Meursault. 3. O Estrangeiro. 4. Estudos pós-


coloniais. 5. Feminismo decolonial. I. Andrade, Brenda Carlos de
(Orientação). II. Título.

809 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2022-80)


ARIANE DA MOTA CAVALCANTI

O CASO MEURSAULT : Kamel Daoud e a tradução de O estrangeiro na ficção argelina


contemporânea

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras do Centro de Artes e
Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de
Doutora em Letras.

Aprovada em: 29/04/2022

BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Brenda Carlos De Andrade (Orientadora)
Universidade Federal Rural De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Oussama Naouar (Examinador Interno)
Universidade Federal De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Roland Gerhard Mike Walter (Examinador Interno)
Universidade Federal De Pernambuco
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Thays Keylla De Albuquerque (Examinadora Externa)
Universidade Estadual Da Paraíba
_________________________________________________________
Prof. º Dr. Kleyton Ricardo Wanderley Pereira (Examinador Externo)
Universidade Federal Rural De Pernambuco
Pra Camusa, minha gata vencedora do meu imaginário “Nobel da gatura” em razão d’
A Peste. Para a memória de Anaxágoras de Morais, meu amigo roubado por algumas pestes.
Para Aloízio, meu amor nos tempos de peste. Para os e as cientistas que produziram a vacina e
para todos os que lutam contra o negacionismo. Para as mulheres, principalmente, as
magrebinas Mariem e Nadjwa. Para a mulher que eu fui em 2016, transitando pela França sem
sonhar com a peste em 2020, mas vivendo alguns pesadelos que se transformaram nesta
investigação.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a minha orientadora de pesquisa, Brenda Carlos de


Andrade, por, com sua generosidade característica, apostar no meu projeto de pesquisa desde
o início, conferindo atenção, tempo e traçados possíveis para sua realização. Sem a
colaboração dela, nada seria realizado. Brenda foi, desde a graduação, uma professora
exemplar e estimulante, sugerindo leituras sempre muito valiosas para a minha formação, que
em muito me trazem retornos significativos como estudante, professora e pesquisadora. Como
se não bastasse, Brenda não me alimentou só de “letras”, mas, como cozinha muito bem e
gosta de alimentar polissemicamente sua sala de aula, já me ofertou (antes das quarentenas)
tantos quitutes, que vão de moqueca a vários tipos de bolos doces e salgados, os quais
trouxeram alegrias, calorias e deixam saudades. Agradeço a Brenda pelos encontros nos cafés
e padarias da cidade (pré-pandemia), pelas mensagens respondidas ao telefone, pelas vídeo-
chamadas. Ela merece toda a gratidão possível. Faltam templos budistas para emanar energias
“gratiluz” para ela.
Agradeço a Capes pela bolsa de pesquisa, ao Programa de Pós-graduação em Letras,
professores e colaboradores administrativos, os quais conferiram suporte para o
desenvolvimento do trabalho. Em especial, agradeço às aulas do professor Roland Walter
desde o Mestrado (pesquisador cujos livros são de referência significativa na minha reflexão
aqui desenvolvida sobre memória e geografia nas produções francófonas de literaturas
periferizadas, mas que, sobretudo, me indicou leituras em 2007 sobre Estudos culturais e
globalização, as quais me fizeram ter insights para criar este projeto enquanto andava de
metrô, em 2016, pela França e via imigrantes e restaurantes árabes e indianos espalhados
pelas cidades e seus guetos). Agradeço pelas considerações do professor Oussama Naouar
sobre o trabalho ainda na fase da primeira qualificação, as quais contribuíram decisivamente
na minha reavaliação de como conduzir a pesquisa naquele momento. Foram imensamente
úteis para a minha formação como pesquisadora em geral. Agradeço também à boa vontade
sempre colaborativa do professor Anco Márcio, às intervenções da professora e, então,
coodenadora Evandra Grigoletto e do secretário do programa Josaias Ferreira dos Santos, no
que se refere a questões burocráticas inseridas no processo e solucionadas sempre a contento.
Merece meus agradecimentos, de modo muito especial, Sônia Ramalho, pelos
ensinamentos como professora de Graduação, de Pós-graduação e como orientadora de
Mestrado. Devo praticamente toda a minha base de estudo e pesquisa a ela, com quem iniciei
minhas investigações sobre tradução literária em 2007, na época focalizando a Literatura
brasileira e o romance machadiano Dom Casmurro. Hoje, esse primeiro trabalho está no prelo
para publicação em livro e em muito me foi útil, como experiência e como material de
consulta teórica e crítica, para desenvolver as análises que, agora, anos depois, desenvolvo na
tese em caráter expandido para a Literatura da francofonia periférica. Sônia é uma imensa
referência e tem muito peso sobre minha vida acadêmica.
Agradeço calorosamente aos docentes da UFPE: professor Aldo de Lima, pela
introdução basilar e necessária à obra de Antonio Candido em 2001, referência relevante na
pesquisa e nos meus estudos como um todo; professoras Lucila Nogueira (em memória) e
Piedade Sá (em memória) pelas tantas leituras indicadas também na Graduação e no
Mestrado, muitas delas consultadas para a tese naqueles arquivos de papéis antigos e
empoeirados que ficam num quarto “da bagunça” na casa dos pais; professora Daniela Kunze,
que, gentilmente, permitiu que eu assistisse às suas aulas de “Literatura francesa no século
XX” em 2018, me concedendo acesso, inclusive, a seus materiais sobre livros didáticos
franceses que abordavam a colonização na Argélia.
Preciso agradecer a meus colegas estudantes do programa, entre os quais destaco
Carolina Morais, João Ricardo Pessoa, Fabiana Campos, pelas leituras partilhadas e
discutidas, livros emprestados, pela companhia nos congressos da ABRALIC e demais
eventos acadêmicos, pela amizade. Também a Mariana Azevedo e Roberto Efrem,
pesquisadores da Sociologia, pela partilha de textos fundamentais, encontrados em periódicos
na internet, para que a pesquisa seguisse sem as visitas presenciais à biblioteca, que tanto me
fizeram falta durante a pandemia. Sem dúvida, a ajuda do acervo de todos os colegas
minimizou, um pouco, os impactos do contexto pandêmico no trabalho. Escrever nesse
período foi muito difícil, um verdadeiro trabalho árduo, como o de Sísifo.
Agradeço a Juliana Lima por me apresentar Fanon em Pele negra, máscaras brancas,
a Everardo Norões por disponilibizar Os condenados da terra, do autor martinicano, e a
Rogério Mendes por emprestar a obra de Abdelmalek Sayad, A imigração e os paradoxos da
alteridade e por outros “livros-presentes”, deixados na portaria do prédio, na linha dos
Estudos Pós-coloniais e africanidades. Obrigada e imensamente obrigada a Débora Marquesin
por sugerir e enviar o texto de Roberto Efrem sobre maternidade; foi decisivo.
Agradeço a Mariana Demmery pelos livros de Daoud nas edições francesas,
comprados e enviados de Paris. “Dei trabalho” e ela foi sempre super simpática. Ter a edição
de Mes idépendances foi muito importante e bom.
Agradeço à pesquisadora Melissa Scanhola pelas trocas no Encontro da ABRALIC em
2019, oportunidade em que conheci sua dissertação de Mestrado pela USP, a qual muito
contribuiu para uma primeira aproximação com o Sitema literário argelino e, portanto, com
este trabalho.
Agradeço a meus amigos (Marlus Nicodemos, Janina Ricardo, Graça Dias, Iris Lucas,
Rebeca Santos, Carolina Rêgo Barros, Juliana Lombardi e Juliana Macedo, Juliana Barros,
Patrícia Brayner, Daniela Bruto e Daniele Camelo, Rafaela Rodrigues, Jaqueline Sabino,
Suzy, Ednaldo Ribeiro, Josete Targino, Odomiro Barreiro, Nayme Morais, João Gusmão,
Regina Célia e Christiano Aguiar, Luciano Carlos, Henrique Pinheiro, Cláudia Freire,
Eduarda Lúcio, Manoel Heleno, Janine Freitas) por, cada um a seu modo, me darem energias
para a vida nesses cinco anos. Agradeço a Suzana Castro e Silva e a Raphaella Lomarco pelo
apoio emocional.
Agradeço a João de Athayde pela temporada na França em 2016, sem a qual não teria
reconhecido de modo tão visceral a minha subalternidade no Ocidente, um dos motores
afetivos dessa pesquisa. Agradeço a Mariem, Nouri, Nadjwa, pela amizade de verão e a
Yancine pela sua versão da Revolução argelina, que tive “o susto” de ouvir logo no meu
segundo dia em Aix en Provence e a Intissar, Marjorie e a Shafik pelos insigts que me
surgiram quando estive com eles. Devo agradecer a Madame Magda, minha professora de
francês em Marseille, e a Cecile Tricot, minha professora de francês francesa em Recife.
Devo agradecer ao Exército francês pelas invasões ao meu celular em Avignon, à polícia
francesa pela multa por andar sem foto no cartão de metrô de Paris. Isso e tantos outros
olhares que recebi também se transformaram em energia para a pesquisa.
Agradeço a meus pais Mariluza Da Mota e Ernani Guedes por tudo, à minha família; à
minha madrinha Carmem pelo carinho de sempre.
Agradeço ao SUS pelas vacinas.
Agradeço a Camusa, minha gatinha adotada, que manteve o mínimo de afeto em pele e
sanidade em mim quando chegou, em junho de 2020, e me fez companhia enquanto lia a obra
completa de Camus e me alucinava com A peste. Ela foi meu sopro de antiniilismo durante
aquele ano em que fiquei sozinha e trancada, com medo da morte, como personagens
camusianos em Orã pesteada. “A cidade era uma sala de espera”, disse Dr. Rieux, e Camusa
esperava comigo. Eu a amo profundamente.
Agradeço do modo mais especial possível nesta seção de agradecimentos a Aloizio
Lima, meu “boy” sociólogo. Ele fez tudo o que estava ao seu alcance para que eu levasse a
pesquisa adiante no meio do luto, do medo de morrer de Covid, das pressões variadas entre
2021 e 2022; destaco que lavou muita louça e roupa, cozinhou, imprimiu meus textos, foi meu
grande “secretário particular” e me salvou a vida, lutando junto comigo por um atestado
médico para exercer trabalho remoto, já que pertenço ao grupo de risco, coisa que me levou a
uma demissão, mas me manteve viva. Agradeço a ele por ser um grande companheiro, por ter
me dado de presente muitos livros e textos importantes para meu pensamento, sobretudo,
agradeço pela obra A criação do patriarcado, da Gerda Lerner, e pelo texto de Wellzer-Lang
sobre masculinidades hegemônicas, este oferecido quando fui paquerá-lo no Instagram depois
de anos após cursarmos uma disciplina em Ciência Política, na qual me conquistou ao
comentar sobre “A primavera árabe”. Agradeço a ele pelo amor e por saber amar. Agradeço,
sobretudo, por não ter medo ou inveja da minha figura feminina e intelectual, pronta para
variados debates em diversificada mesas sobre Literatura e sociedade. Eu o amo
profundamente.
Como posso contar uma história que já conhecemos tão bem e até demais? O
nome dela era África. O nome dele era França. Ele a colonizou, a explorou, a
silenciou, e mesmo décadas depois que isso já deveria ter terminado, continuou
forçando e usando a sua superioridade para resolver os negócios dela, em lugares
como a Costa do Marfim – nome dado ao país em função dos seus produtos de
exportação, não da sua própria identidade.
O nome dela era Ásia. O nome dele, Europa. O nome dela era silêncio. O
dele, poder. O nome dela era pobreza. O dele, riqueza. O nome dela era dela, mas o
que pertencia a ela? O nome dele era dele, e ele presumia que tudo fosse dele,
inclusive ela, e julgou que poderia tomá-la sem pedir nem perguntar, e sem
consequência alguma. É uma história muito antiga, embora seu desfecho tenha
mudado um pouco nas últimas décadas. E dessa vez, as consequências estão
abalando muito os alicerces – todos os quais, sem dúvida, bem precisavam de uma
boa sacudida (SOLNIT, 2017, p. 57-58).
RESUMO

A tese se detém ao estudo comparado das obras O caso Meursault (2013), do escritor e
jornalista argelino Kamel Daoud e O estrangeiro (1942), de Albert Camus. Daoud realiza o
que denomino de “tradução paródica pós-colonial” do clássico camusiano, de modo que o
objetivo deste estudo é problematizar as possíveis ressignificações operadas pela ficção
daoudiana frente ao texto francês quanto a dois aspectos centrais. O primeiro consiste na sua
sugestão de uma revisão e suplementação da crítica tradicional em torno de O estrangeiro,
pautada, principalmente, na leitura (praticamente unilateral) de que o romance seria um braço
do pensamento filosófico de Camus, cujo conceito emblemático é o de “absurdo”, presente
em O mito de Sísifo (1941), de modo que o romance argelino oferece também outro prisma de
leitura da obra francesa pela “fresta” da questão de gênero, atrelada à de colonialidade do
poder. O segundo aspecto, por sua vez, consiste nas ressignificações introduzidas por Daoud a
respeito de pontos (que se fazem, aqui, balizas analíticas) como: as representações das
alteridades árabes na narrativa, atravessadas pela conjuntura pós-colonial; as configurações
redimensionadas do sagrado e da religiosidade islâmica; a tessitura das imagens geográficas
da diegese como elementos de memória local; as representações de gênero na conjuntura
ficcional argelina contemporânea. A pesquisa segue teoricamente o campo dos Estudos pós-
coloniais, com destaque para o pensamento de Edward Said (1995), Stuart Hall (2003),
Walter Mignolo (2008), Anibal Quijano (2005), Edgardo Lander (2005), Inocência Mata
(2016), Maria Lugones (2008), bem como está alinhada com a noção de “paródia” na
perspectiva da “poética do pós-modernismo”, da canadense Linha Hutcheon (1999) e com a
categoria teórica de “tradução”, tal qual a entendem Eneida Souza (1993), João Alexandre
Barbosa (2005) e Else Vieira (1992). O estudo está organizado em quatro capítulos. No
primeiro, discuto as contribuições dos Estudos Pós-coloniais para a construção da análise
desenvolvida; no segundo, apresento uma leitura sobre como a obra de Daoud ilumina pontos
de revisão da tradição crítica em torno de O estrangeiro, setorizada particularmente em três
nomes centrais: Sartre, Barthes e Edward Said; no terceiro, suplemento o campo crítico
tradicional com uma releitura atualizada do romance camusiano, trazendo a problemática de
gênero, a partir justamente dos contornos da ficção doudiana e seu crivo crítico face ao
dialogismo que estabelece com clássico de Camus. Sigo, nessa pespectiva, a linha dos
Estudos pós-coloniais (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008) e da crítica feminista, tal como a
concebe Zinani (2015). No quarto e último capítulo, finalizo a abordagem da relação
intertextual entre Daoud e Camus, focalizando a tradução paródica pós-colonial de O
estrangeiro operada pelo escritor argelino, investigando as balizas analíticas acima listadas.
Por fim, apresento as considerações finais, apontando a visão de mundo presente em O caso
Meursault no campo literário periférico contemporâneo, não raro, atravessado por tensões
insistentes entre Argélia e França, no que tange, sobretudo, à questão da imigração árabe e das
representações do Islã.

Palavras-chave: Kamel Daoud; O caso Meursault; O Estrangeiro; Estudos pós-coloniais;


Feminismo decolonial.
RESUMÉ

La thèse porte sur l'étude comparative des œuvres L'Affaire Meursault (2013), de l'écrivain et
journaliste algérien Kamel Daoud et L'Étranger (1942), d'Albert Camus. Daoud effectue ce
que j'appelle une "traduction postcoloniale parodique" du classique camusien, de sorte que
l'objectif de cette étude est de problématiser les possibles resignifications opérées par la
fiction de Daoud par rapport au texte français concernant deux aspects centraux. La première
est sa proposition de révision et de complément de la critique traditionnelle autour de
L'Étranger, basée principalement sur la lecture (presque unilatérale) que le roman serait un
bras armé de la pensée philosophique de Camus, dont le concept emblématique est
l'"absurde", présent dans Le Mythe de Sisyphe (1941), de sorte que le roman algérien offre
aussi un autre prisme de lecture de l'œuvre française à travers la "béance" de la question du
genre, liée à la colonialité du pouvoir. Le second aspect, quant à lui, consiste dans les re-
significations introduites par Daoud concernant des points (qui deviennent, ici, des repères
analytiques) tels que : les représentations des altérités arabes dans le récit, traversées par la
conjoncture post-coloniale ; les configurations redimensionnées du sacré et de la religiosité
islamique ; le tissage des images géographiques de la diégèse comme éléments de la mémoire
locale ; les représentations du genre dans la conjoncture fictionnelle algérienne
contemporaine. La recherche suit théoriquement le champ des études postcoloniales, en
mettant l'accent sur la pensée d'Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Walter Mignolo
(2008), Anibal Quijano (2005), Edgardo Lander (2005), Inocência Mata (2016), Maria
Lugones (2008), ainsi qu'elle s'aligne sur la notion de "parodie" dans la perspective de la
"poétique du postmodernisme" de la Canadienne Linha Hutcheon (1999) et sur la catégorie
théorique de la "traduction", telle qu'elle est comprise par Eneida Souza (1993), João
Alexandre Barbosa (2005) et Else Vieira (1992). L'étude est organisée en quatre chapitres.
Dans la première, je discute les contributions des études postcoloniales à la construction de
l'analyse développée ; dans la deuxième, je présente une lecture de la manière dont l'œuvre de
Daoud éclaire les points de révision de la tradition critique autour de L'Étranger, sectée
notamment en trois noms centraux : Sartre, Barthes et Edward Said ; dans la troisième, je
complète le champ critique traditionnel par une relecture actualisée du roman camusien,
amenant la problématique du genre, précisément à partir des contours de la fiction de Daoud
et de son tamisage critique à travers le dialogisme qu'elle établit avec le classique de Camus.
Je suis, dans cette perspective, la ligne des études postcoloniales (QUIJANO, 2005 ;
LUGONES, 2008) et de la critique féministe, telle que conçue par Zinani (2015). Dans le
quatrième et dernier chapitre, je finalise l'approche de la relation intertextuelle entre Daoud et
Camus, en me concentrant sur la traduction parodique postcoloniale de L'Étranger opérée par
l'écrivain algérien, en investiguant les marqueurs analytiques énumérés ci-dessus. Enfin, je
présente les dernières considérations, en soulignant la vision du monde présente dans L'affaire
Meursault dans le champ littéraire périphérique contemporain, souvent traversé par des
tensions insistantes entre l'Algérie et la France, en ce qui concerne, avant tout, la question de
l'immigration arabe et des représentations de l'islam.

Mots-clés: Kamel Daoud; Meursault contre-enquête; L'étranger; Études postcoloniales;


Féminisme décolonial.
ABSTRACT

The thesis focuses on the comparative study of the works The Meursault Case (2013), by
Algerian writer and journalist Kamel Daoud and The Stranger (1942), by Albert Camus.
Daoud performs what I call a "post-colonial parodic translation" of the Camusian classic, so
the aim of this study is to problematize the possible resignifications operated by Daoud's
fiction in relation to the French text regarding two central aspects. The first is his suggestion
of a revision and supplementation of the traditional criticism around The Stranger, based
mainly on the (almost unilateral) reading that the novel would be an arm of Camus'
philosophical thought, whose emblematic concept is the "absurd", present in The Myth of
Sisyphus (1941), so that the Algerian novel also offers another prism of reading the French
work through the "gap" of the gender issue, linked to the coloniality of power. The second
aspect, in turn, consists in the re-significations introduced by Daoud regarding points (which
become, here, analytical marks) such as: the representations of Arab alterities in the narrative,
crossed by the post-colonial conjuncture; the redimensioned configurations of the sacred and
Islamic religiosity; the weaving of geographical images of the diegesis as elements of local
memory; the representations of gender in the contemporary Algerian fictional conjuncture.
The research follows theoretically the field of Postcolonial Studies, with emphasis on the
thought of Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Walter Mignolo (2008), Anibal Quijano
(2005), Edgardo Lander (2005), Inocencia Mata (2016), Maria Lugones (2008), as well as is
aligned with the notion of "parody" from the perspective of the "poetics of postmodernism"
by Canadian Linha Hutcheon (1999) and with the theoretical category of "translation" as
understood by Eneida Souza (1993), João Alexandre Barbosa (2005), and Else Vieira (1992).
The study is organized in four chapters. In the first, I discuss the contributions of Postcolonial
Studies to the construction of the analysis developed; in the second, I present a reading of how
Daoud's work illuminates points of review of the critical tradition around The Stranger,
sectored particularly in three central names: Sartre, Barthes and Edward Said; in the third, I
supplement the traditional critical field with an updated re-reading of the Camusian novel,
bringing the problem of gender, based precisely on the contours of Daoud's fiction and its
critical sifting through the dialogism it establishes with Camus's classic. In this perspective, I
follow the line of Postcolonial Studies (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008) and feminist
criticism, as conceived by Zinani (2015). In the fourth and last chapter, I finalize the approach
to the intertextual relationship between Daoud and Camus, focusing on the postcolonial
parodic translation of The Foreigner operated by the Algerian writer, investigating the
analytical markers listed above. Finally, I present the final considerations, pointing out the
worldview present in The Meursault case in the contemporary peripheral literary field, often
crossed by insistent tensions between Algeria and France, with regard, above all, to the issue
of Arab immigration and representations of Islam.

Keywords: Kamel Daoud; The Meursault Investigation: A Novel; The Foreigner;


Postcolonial studies; Decolonial feminism.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................18
2 LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL...............................................27
2.1 EDWARD SAID: O QUE PODE A LITERATURA............................................28
2.2 STUART HALL: O PÓS-COLONIAL COMO PLATAFORMA HISTÓRICA,
TEÓRICA, ESTÉTICA..........................................................................................40
2.3 INOCÊNCIA MATA: O UNIVERSAL, A QUALIDADE E O CÂNONE I
MPLODIDOS........................................................................................................54
3 O CASO MEURSAULT E A CRÍTICA LITERÁRIA DE O
ESTRANGEIRO..................................................................................................62
3.1 A CRÍTICA FRANCESA: A TRADIÇÃO DO “ABSURDO”.............................65
3.1.1 Jean Paul Sartre: “A explicação de O estrangeiro”...........................................65
3.1.2 Roland Barthes: “O estrangeiro, romance solar”..............................................72
3.2 EDWARD SAID: “CAMUS E A EXPERIÊNCIA COLONIAL FRANCESA”. .76
4 O CASO MEURSAULT E A QUESTÃO DE GÊNERO EM O
ESTRANGEIRO..................................................................................................93
4.1 O ESTRANGEIRO: COLONIZAÇÃO E GÊNERO............................................93
4.1.1 A crítica feminista................................................................................................99
4.1.2 A crítica decolonial latino-americana e o feminismo decolonial....................110
4.2 AS MASCULINIDADES INVISÍVEIS EM O ESTRANGEIRO:
FRAGILIDADE, VIOLÊNCIA, MISOGINIA....................................................123
4.2.1 Uma revisão da trama: “a tal mulher invisível”, o assassinato
“do árabe” e as masculinidades........................................................................140
4.3 A MATERNIDADE EM O ESTRANGEIRO: PERIFERIZADA E
POLISSÊMICA....................................................................................................170
4.3.1 “Hoje mamãe morreu”......................................................................................180
5 O CASO MEURSAULT E A TRADUÇÃO PARÓDICA
PÓS-COLONIAL DE O ESTRANGEIRO......................................................199
5.1 PARÓDIA: A POÉTICA PÓS-MODERNA EM O CASO MEURSAULT.........199
5.2 TRADUÇÃO: A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE O CASO
MEURSAULT E O ESTRANGEIRO...................................................................205
5.2.1 Tradução – além da transposição interlingual: intertextualidade................205
5.2.2 Tradução: traducere e translatio......................................................................207
5.2.3 A tradução paródica pós-colonial argelina......................................................211
5.3 A NARRATIVA EM DIÁLOGO COM O OUTRO...........................................218
5.4 A RESSIGNIFICAÇÃO DO SAGRADO “ABSURDO” DE CAMUS..............232
5.4.1 O sagrado pós-colonial em Daoud e as imagens do Islã.................................235
5.5 A GEOGRAFIA PÓS-COLONIAL E RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA
ARGELINA.........................................................................................................249
5.5.1 As cidades e o mar em Daoud...........................................................................252
5.5.2 As cidades e o mar: marcas da colonização na terra......................................259
5.6 AS RESSIGNIFICAÇÕES NAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO............267
5.6.1 A dominação masculina (França) sobre a identidade feminina (Argélia)....267
5.6.2 “Hoje, mamãe ainda está viva”.........................................................................276
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................294
REFERÊNCIAS.................................................................................................309
18
1 INTRODUÇÃO

O que se conhece hoje no Brasil e no mundo sobre a Argélia e sua ficção? Como são
as narrativas que constroem a imagem desse país no qual tantas pessoas do mundo nunca
estiveram, no qual nunca estive? A literatura, o cinema, a música, as artes plásticas, a
História, a mídia são campos discursivos que constroem imagens dos países e povos. O que
esses campos oferecem sobre a Argélia e seu povo diverso, seus homens e mulheres? Aqui,
importa para efeitos de reflexão, para além de “o quê”, sobretudo, as questões “onde se,”
“quando se” e “quem” produz(iu) essa literatura, esse cinema, esse jornalismo e essa História
sobre a Argélia? São formas de investigar que interessam porque lugares, épocas e sujeitos
diferentes produzem imagens plurais do país magrebino. Questiono, assim, que imagens
diversas desta nação e seu povo vigoram ontem e hoje e quem elas representam, a quem
interessam.
Ainda que não seja regra absoluta, é muito possível ler um jornal francês, ou ouvir um
programa de rádio na France culture e perceber que neles se criam imagens da Argélia, dos
argelinos, de árabes e muçulmanos e, muitas vezes, ao modo eurocentrado de projeção do
Magreb, o qual tende a problematizar enfaticamente as tensões políticas ligadas à imigração
árabe na França frequentemente por um único ponto de vista. Nesse sentido, a versão de uma
Argélia fundamentalista, atrelada ao Estado Islâmico e imigrante aparece com constância na
mídia europeia, tendo se propagado abertamente pelo mundo. Onde estão publicadas e
veiculadas as “outras” versões para esse povo, sua memória e sua História? O que um
argelino escritor escolheria dizer contemporaneamente sobre sua terra, sua História, sobre as
imagens do país e seu povo representados na Literatura Ocidental? É uma questão que me
toma na condição de leitora e pesquisadora da literatura argelina, uma produção da qual nunca
havia tido notícias ou curiosidade de conhecer, senão a partir de contactar Kamel Daoud e sua
releitura de O estrangeiro, de Camus.
Como cheguei a Daoud? A escolha do presente objeto de estudo se faz importante ser
explicitada, porque brota de um desejo particular e subjetivo de entender um pouco a Argélia,
sua História e cultura, por outro meio que não uma narrativa eurocentrada, muitas vezes
insistente em circunscrever o país à imagem de uma ex-colônia de imigrantes mulçumanos
que, em alguns casos de radicalismos, impõem o “terror” à França. Enfatizo que não foi pela
ementa da Graduação em Letras na UFPE que entrei em contato com a ficção de Daoud,
também não foi pela Pós-graduação em Teoria da Literatura no PPG-Letras da mesma
19
universidade, tampouco foi pelo intermédio de uma crítica literária brasileira voltada à
literatura de ex-colônias francesas do Magreb. Cheguei, na verdade, a Daoud pela plataforma
de busca “Google” e por uma razão bem específica: havia acabado de voltar de uma estadia
na França em 2016, onde fui tomada pelo encontro com argelinos, tendo a oportunidade de
observar a presença argelina em Marseille, fosse no “cartier arabe”, fosse na Universidade de
Aix-Marseille. O primeiro argelino que conheci se chamava Yassine e fazia Mestrado em
Arqueologia no campus de Aix en Provence. Ele dizia que tentava permanecer na França com
seus estudos, submetendo à Universidade um projeto de doutorado. Estávamos almoçando no
restaurante universitário e ele contou suas memórias da Guerra da Independência argelina, a
partir das narrativas de seus familiares (pois era um jovem de 28 anos, não tendo vivido o
conflito em si). Falou com detalhes da violência sangrenta que representou aquela Revolução.
Era a primeira vez que eu ouvia um argelino falar sobre as memórias de violência em seu
país, sobre as relações coloniais com a França. Fato é que, durante minha estadia lá, me deixei
afetar emocionalmente pela presença argelina. Eu sentia, de algum modo, que o lugar daquele
povo era muito próximo ao meu, como vinda da América Latina, naquele país europeu: um
lugar periférico. Conheci Intissar, uma doutoranda tunisiana da Universidade de Aix-
Marseille. Ela trabalhava como recepcionista num hotel durante a madrugada e frequentava o
campus de dia para escrever na biblioteca. Intissar confessou ter muita vergonha e raiva dos
terroristas islâmicos franco-tunisianos (na época, 2016, houve o atentado em Nice de autoria
franco-tunisiana); ela não usava véu, diferente de sua mãe, e irradiava ódio contra o
radicalismo islâmico, o qual fazia dela, a meu ver, uma tunisiana envergonhada com seu país
na França. Conheci também Nadjwa, uma adolescente argelina com quem dividi uma turma
de estudo do francês no Vieux port de Marseille. Ela usava véu, era apaixonada pelo Islã e
falava com orgulho em seguir a religião (hoje, 2022, posta selfies sem véu nas redes sociais).
Vi muitos árabes na França, a maioria não ocupava cargos de status, nem todos eram
mulçumanos, mas estavam, em sua grande parte, nos restaurantes servindo, nos mercados
comercializando frutas e baguetes, nos metrôs vendendo bilhete. Toda essa atmosfera criou
em mim uma curiosidade antes não vivenciada: Como seria essa África dita “francesa” e por
que árabes (homens e mulheres) vivem como vivem na França? Que relação pós-colonial é
essa mantida entre Argélia e o Ocidente? Voltei ao Brasil querendo pensar sobre respostas
através do meu trabalho: pensar o real, o mundo através da literatura/ pensar a literatura a
partir do real e do mundo. Foi então que escrevi “escritores argelinos” na plataforma de
pesquisa do Google e, prontamente, surgiu o nome Kamel Daoud e sua reescritura premiada
20
de Camus, O caso Meursault. Vi, assim, uma oportunidade de pensar sobre as alteridades
argelinas através da arte literária, realizando um desejo pessoal, justo por ser um autor cuja
obra referencia e critica um clássico francês. Era a oportunidade de seguir a vontade de
pensar, de descobrir e de partilhar descobertas com a crítica literária no Brasil sobre uma
literatura ainda pouco visitada pela academia: a literatura de um argelino em pleno século
XXI. Então, pensei: se a internet, a tecnologia, dentro dos paradoxos nas relações capitalistas
globais em que é um veículo de dominação e resistência (SANTOS, 2013), é capaz de
provocar um espaço para a presença literária argelina, é possível fazer com que tal presença
“migre” para o campo dos estudos institucionalizados na ordem do saber: a Academia. Eis o
trabalho desta pesquisa: refletir (com o desafio de certo pioneirismo) na crítica acadêmica
brasileira sobre Kamel Daoud e sua relação com Albert Camus.
Enquanto pesquisava ao longo do doutorado, costumava ir ao cinema para
“descansar” a mente (eram tempos anteriores à pandemia atual), mas quase sempre acabava
escolhendo um filme que se relacionasse com os objetos da pesquisa: a Literatura, a Argélia e
a França, Camus, Daoud, Estudos Pós-coloniais. O cinema, já disse Walter Benjamim (1994),
tem o poder de projetar, através das câmeras, aquilo que, a olho nu, o ser humano não
conseguiria ver sozinho, de modo que as imagens estão sob uma tecnologia de projeção cujo
alcance possui uma amplitude jamais observada no campo das artes anteriormente, podendo
as obras atingirem simultaneamente milhares de pessoas, em milhares de salas em cidades
espalhadas pelo globo. Vi, pois, um filme com a atriz Catherine Deneuve e dirigido por André
Techinè, que trazia “marginalizadamente” a geografia da Argélia, intitulado “Adeus à noite”
(2019). O filme obedeceu à tendência de se localizar a narrativa na França, mas apresentar o
Magreb marcado por fundamentalistas islâmicos que conduzem ao terrorismo jovens franco-
argelinos em situações específicas, isto é, passando por questões emocionais e familiares
problemáticas. É certo que ataques terroristas levados a cabo por franco-argelinos ocorreram,
haja vista o ataque de 2015 ao jornal Charlie Hebdo; mas essa seria a única imagem possível
ao povo argelino e à história da Argélia, ex-colônia francesa: produzir imigrantes
muçulmanos e membros da luta armada islâmica? Considero que esta não seja a única
imagem possível da Argélia e sua diversidade a ser representada discursivamente, mas é,
visivelmente, uma imagem que o cinema de André Techiné, protagonizado pela “queridinha”
e clássica, já um dia “A bela da tarde”, Catherine Deneuve, faz se projetar simultaneamente
para milhares de salas da América Latina e do mundo, o que facilita que esta memória
unilateral da Argélia, dirigida e atuada por franceses de renome na indústria cultural
21
cinematográfica, se multiplique e chegue a milhares de pessoas que nunca visitaram o país,
como eu, por exemplo; contudo, de lá passam a guardar com ênfase tais referências. Notei no
filme de Techiné que a cidade de Orã, capital argelina, é citada superficialmente uma única
vez nos diálogos durante um jantar familiar entre a personagem Muriel (Catherine Deneuve) e
seu neto Alex, jovem convertido ao Islã e filiado ao Estado islâmico, a caminho de cometer
um atentando terrorista ao lado de sua namorada muçulmana Lilla, imigrante árabe adotada
por um idoso francês, enfermeira de um asilo e empregada doméstica de Muriel, matriarca
franco-argelina que sofre com as escolhas religiosas do neto e tenta impedi-lo no seu plano
terrorista. Não se tem espaço, entretanto, na obra, para se pontuar os impactos violentos da
colonização da França na Argélia, nem se atrelar o fundamentalismo também a um possível
resultado das segregações sociais resultantes da diáspora e do imperialismo na ordem do
fenômeno da Globalização e das identidades culturais na pós-modernidade, como já
observava Stuart Hall (2006). Entretanto, o que mais poderia representar a Argélia do que a
imagem de um país de fundamentalistas e terroristas islâmicos? Por que a história contada da
Argélia, na maioria dos campos discursivos, está marcada pelo fundamentalismo e pela
violência como revolta a valores ocidentais franceses? São questões não respondidas, sequer
cogitadas pelo cinema de Techiné, as quais podem vir à tona para que se investigue com mais
abertura as imagens da Argélia nas variadas produções culturais.
O fato é que a Argélia é também um país que permeia marginalmente narrativas não só
do cinema atual, mas da Literatura. No pós-guerra, difícil é desconsiderar a Argélia “bastante
francesa” do Nobel franco-argelino de Albert Camus. A Argélia de A peste (1957) ou o
“árabe” sem nome e assassinado em O estrangeiro reforçam o caráter periférico da
representação do país e seu povo na Literatura da época (SAID, 1995). O caso é que a Argélia
também escreve atualmente uma Literatura em língua francesa, tendo em Kamel Daoud um
de seus ficcionistas e jornalistas contemporâneos mais representativos, premiado, inclusive,
com o Goncourt de 2015 pelo romance de estreia O caso Meursault. Que memória da Argélia
a sua ficção oferece ao mundo contemporâneo? Haveria em Daoud espaço para outro Magreb
diferente do camusiana e daquele sugerido pelo cinema de Techinè? Haveria em Daoud uma
reprodução do olhar francês mais esteriotipado do povo argelino? Esta tese investiga, entre
outros pontos, que imagens da memória argelina a ficção contemporânea de Kamel Doud
recria a partir de seu romance O caso Meursault.
Em síntese, na procura por significados ficcionais plurais da memória discursiva da
Argélia, proponho uma reflexão possível sobre a Literatura argelina no século XXI tal como
22
ela se desenvolve na figura de Kamel Daoud em seu romance O caso Meursault (2013),
reescritura explícita do clássico de Albert Camus, O estrangeiro (1942). Desenvolvo o estudo
comparativo entre as duas obras, sob a perspectiva dos Estudos Pós-coloniais, uma vez que
entendo que a obra de Daoud demanda uma abordagem crítica neste formato, por fazer o texto
camusiano ressurgir no campo literário contemporâneo sob uma ótica de desconstrução de
uma tradição eurocentrada que glorifica o romance francês pela sua correlação com a filosofia
do absurdo, marginalizando as questões do assassinato do “árabe”, da ausência de sua
identidade, das tensões decorrentes das relações coloniais entre a Argélia e a França. O
protagonismo de Meursault no clássico camusiano e da sua voz narrativa termina por silenciar
a memória árabe, a memória do povo argelino, observação já feita por Edward Said em
Cultura e imperialismo (1995). A narrativa se refaz em Daoud, em contrapartida, a partir de
uma voz até então inédita: a voz árabe e argelina. Quem narra o romance daoudiano é
Haroum, irmão do árabe assassinado, este que, se em Camus não recebeu nome, agora ganha
identidade, chamando-se Moussa e recebendo a sua própria história e memória familiar. Esse
exercício ficcional de Daoud é, assim, uma metaficção de cunho crítico, embora também
reverencial (HUTCHEON, 1991), a O estrangeiro, reinterpretando o “caso Meursault”, na
tentativa de, entre tantos outros fins, fazer leitoras e leitores questionarem a responsabilidade
do personagem, em primeiro plano, por aquilo que ficou marginalizado pelo texto camusiano,
bem como pela própria tradição crítica que o vem interpretando e o sacralizando como um
clássico da filosofia do absurdo: matar um homem, sem identificá-lo na narrativa, sem
supostamente apresentar uma razão concreta para fazê-lo que não seja a motivação única do
efeito solar, culpando, com ênfase, a falta de sentido da vida, “o absurdo”.
A obra de Daoud recobra, dessa maneira, outra história para a família de Moussa e Haroum,
e , assim, oferta uma nova visão para a leitura crítica de O estrangeiro capaz de ressignificar
a memória do povo argelino na ficção do século XXI. A empresa do ficcionista e jornalista
encerra aquilo que muitas ex-colônias, através de sua Literatura, ousaram fazer: reescrever a
história de seus lugares e da própria Literatura partindo se si próprias, de seus olhares
particulares e diversos do olhar literário da Metrópole. A obra de Daoud encena visivelmente
uma iniciativa de correlacionar Literatura e memória, no que tange à relação histórica entre
Argélia e França, marcada pelo imperialismo e, especialmente no que tange a revisar e
problematizar a história de Meursault acerca da morte do cidadão árabe sem nome. É,
portanto, uma obra que escolho entender como, na nomenclatura de Pascale Casanova (2002),
23
um romance Pós-colonial (vide capítulo 4), o qual solicita ferramentas de leitura pertencentes
a esse campo de estudos literários.
A pesquisa está organizada em quatro capítulos. No primeiro, discuto as contribuições
dos Estudos Pós-coloniais para a construção da análise desenvolvida; no segundo, demonstro
como a obra de Daoud ilumina pontos de revisão da tradição crítica em torno de O
estrangeiro, representadas particularmente por três nomes principais: Sartre, Barthes e
Edward Said; no terceiro, suplemento o campo crítico tradicional, seguindo a perspectiva dos
Estudos pós-coloniais, com uma releitura do romance camusiano a partir justamente dos
contornos da ficção doudiana, cujo crivo crítico abre campo para uma discussão da questão de
gênero; no quarto e último, finalizo a abordagem da relação intertextual entre Daoud e
Camus, focalizando a tradução paródica pós-colonial de O estrangeiro operada pelo escritor
argelino. Discuto, assim, na reta final da pesquisa, alguns dos elementos que, na obra, de
modo recorrente, aludem a questões como: a das alteridades árabes, a do sagrado e da
religiosidade islâmica, a que enfatiza a geografia local e a que remonta às representações de
gênero (com destaque para as masculinidades e maternidade). Por fim, apresento as
considerações finais, considerando a importância de O caso Meursault no campo literário
periférico contemporâneo, não raro, atravessado por tensões insistentes entre Argélia e
França, no que tange, sobretudo, à questão da imigração árabe e do islamismo.
Com tais contornos, a pesquisa dialoga com a necessidade clamada pela escritora
nigeriana Chimamanda Adiche em sua reflexão O perigo de uma história única (2019):
pensar sobre outras versões históricas possíveis para a vida das pessoas e povos, bem como
para a Literatura, contrariando a opressão de uma única História que se coloca como fonte
exclusiva e incontestável do olhar sobre o Outro. É significativo como a autora deixa claro na
sua fala tanto: a) como ela, na condição de estudante nigeriana nos EUA, se reconhece um
alvo dos olhares estereotipados americanos e europeus quando estes opinam sobre sua escrita
e alegam estranhar haver em seus personagens uma “ausência de africanidade”, porque
consideram que sua ficção “deveria” espelhar a vida local da África, já que ela vem da
Nigéria; quanto b) admite que sua própria mente se deteve a opressivamente reproduzir
histórias únicas de sujeitos pertencentes a culturas distintas da sua. Cito um trecho de sua fala
numa autocrítica quanto ao momento em que esteve viajando por Guadalajara e presenciou os
mexicanos, que, nos EUA, são representados estereotipadamente como imigrantes ilegais,
vivendo o dia-dia em seu país como cidadãos “indo para o trabalho, fazendo tortilhas no
mercado, fumando, rindo” (2019, p. 22). Confessa Chimamanda:
24
Primeiro senti uma leve surpresa, e então fui tomada pela vergonha. Percebi que
tinha estado tão mergulhada na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles
haviam se tornado uma só coisa na minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha
acreditado na história única dos mexicanos e fiquei morrendo de vergonha daquilo.
É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa
só sem parar, e é isso que esse povo se torna (2019, p. 22).
O trecho pode muito bem ser estendido dos mexicanos ao modo como homens e
mulheres árabes foram e são representados por um único viés cristalizado dentro de uma
história predominantemente orientalista, como atesta Edward Said (2007). Nesse sentido, esta
pesquisa, ao se centrar sobre o estudo de como um escritor argelino em 2013 reconstrói a
memória da Argélia e seu povo na Literatura contemporânea, abre espaço para que um único
e opressivo olhar sobre a cultura argelina, firmado por variados discursos ao longo do tempo,
seja desconstruído e suplementado 1 (SANTIAGO, 1976) com novas percepções pertencente à
própria voz desses sujeitos periferizados pela cultura ocidental e, frequentemente, reduzidos a
imigrantes islâmicos que ocupam a França, por vezes, ameaçando a “ocidentalidade” com
seus costumes e seus ditos radicalismos religiosos geradores de atos terroristas. Contudo,
ainda que manifeste um caráter de resistência ao olhar eurocêntrico sobre a Argélia, é preciso
deixar claro que a ficção de Daoud não é aqui encarada como um “panfleto político”
justiceiro, uma “tese” decolonial perante anos de violência colonial francesa. Trata-se de um
texto literário, o que o iguala a um palco para todos os variados tipos de projeções de emoções
e contradições. Kamel Daoud, pois, vem contar, pela via ficcional (não histórica, filosófica,
jornalística), outra história da Argélia e do “árabe” assassinado e sua família e reconstruí-la
perante O estrangeiro, mas essa memória que se reinaugura em sua ficção traz
particularidades locais argelinas a partir de seu lugar de fala diferido do lugar camusiano,
particularidades as quais dividem contraditoriamente também espaço com a reafirmação de
valores eurocentrados, num movimento paradoxal entre resistir e se submeter à tradição
literária e aos demais discursos ocidentais. Esta tese enfrenta analiticamente a ambivalência
do romance pós-colonial (CASANOVA, 2002) de Daoud, uma ambivalência que se
experimenta como marca maior do texto literário e sua característica sem igual de apresentar,

1 Chamo atenção para o fato de que os termos “suplemento” e “suplementação” serão aqui utilizados com
recorrência para se referirem ao romance de Daoud em face ao de Camus, de modo que são entendidos na
perspectiva de Derrida (“lógica do suplemento”), tal qual a apresenta Silviano Santiago em seu glossário dos
conceitos do filósofo francês. Cito Santiago: "A lógica do suplemento é a lógica da não-identidade e da não-
propriedade e se insere dentro de todo trabalho desconstrutor empreendido por Derrida frente ao discurso da
metafísica ocidental. O suplemento põe fim às oposições simples do positivo e do negativo, do dentro e do fora,
do mesmo e do outro, da essência e da aparência, da presença e da ausência. Sua lógica consiste mesmo em
escapar sempre a esse dualismo marcado, à identidade, na medida em que pode ser o dentro e o fora, o mesmo e
o outro: sua especificidade reside, pois, nesse “deslizamento” entre os extremos, na ausência total de uma
essência" (1976, p. 90-91).
25
de revelar as contradições das relações entre os sujeitos na História pela sua natureza estética
e prática mimética. Esta pesquisa busca refletir sobre as revelações e transformações
possíveis a partir da ficção argelina do século XXI no modo de se contar a vida, o povo, a
literatura argelina .
Igualmente, a tese contesta uma história única para a interpretação crítica diante do
clássico O estrangeiro, tecendo outras cadeias demonstrativas de leitura para o romance que
suplementam leituras petrificadas pelo foco único de buscar no texto a filosofia do absurdo
seu suposto teor trágico de um “romance solar”, em que os atos de Meursault estariam para o
sol, como estão os heróis trágicos para o destino (BARTHES, 2004). Apresento, assim, neste
estudo a possibilidade de se plurificar a história da interpretação crítica de O estrangeiro,
problematizando a obra a partir dos Estudos Pós-coloniais e da ficção daoudiana, que se
interpõe como revisão crítica da obra camusiana. Nessa perspectiva, a referência de Edward
Said em Cultura e imperialismo, funciona como um dos faróis interpretativos, contudo não
me atenho apenas a repeti-lo, mas, reconhecendo a sua importância crítica, proponho uma
problematização e suplementação de suas ideias presentes em Camus e a experiência colonial
francesa. Convido para compor a minha releitura de Camus pensadores Latino-americanos e
africanos que navegam nos mares da epistemologia decolonial: Walter Mignolo, Anibal
Quijano, Inocência Matta, María Lugones, entre outros nomes cujo trabalho entre os estudos
literários conferem suporte para se investigar a relação entre literatura e colonialidade.
Proponho com esta pesquisa, enfim, fornecer ferramentas de reflexão à crítica literária
e ao ensino em torno da obra camusiana, bem como criar fissuras no cânone ocidental para
que se entreveja a produção da periferia francófona magrebina, trazendo para os holofotes a
literatura argelina que se volta sobre sua própria memória tal como esta se apresentou na
ficção de Camus. Procuro pelos espaços de ambivalências nos textos, procuro evidenciá-los,
interpretá-los e, por fim, situá-los no pensar sobre a vida contemporânea das relações políticas
e literárias entre Argélia e França.
Este trabalho, acrescento, por fim, pelos traços que apresenta de centrar-se na
investigação de uma “tradução literária”, isto é, na ressignificação de um romance anterior por
outro posterior, desenvolve e amplia, ainda que de uma maneira particular e diversa, um
percurso de pesquisa similar àquele que desenvolvi durante o Mestrado. Nesta primeira
pesquisa2, investiguei também as relações intertextuais entre romances, mas de autores do

2 CAVALCANTI, Ariane da Mota. Dom Casmurro e movimento: suas traduções reescrituras em São
Bernardo e Amor de Capitu. Orientadora: Sônia Lúcia Ramalho de Farias – Recife, 2009. 225 F. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Faço a advertência sobre a aparição, em pontos específicos
26
Brasil: Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, e suas ressignificações em São
Bernardo e Amor de Capitu, outras duas produções nacionais que, na minha visão, o
“traduziram” do Século XIX para o Século XX, cada uma a seu estilo e em diálogo com o
contexto de produção em que surgiram. São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, traduz
Machado em jogo com o Regionalismo de 30, e Amor de Capitu (1998), de Fernando Sabino,
o faz entre os rítimos pós-modernos da paródia na década de 90 (HUTCHEON, 1991). Se
nessa primeira investigação me debrucei sobre o estudo das traduções operadas entre obras
brasileiras, tentando mapear que novos significados um clássico como Dom Casmurro
adquiriu a partir de suas reescrituras por outros dois ícones da Literatura nacional (em termos
das representações do feminino, da sociedade local e da metaficção), nesta pesquisa de
Doutorado, expando, como perceptível, meu campo de observação do fenômeno da tradução,
saindo do território familiar Brasil e me lançando às teias transnacionais das Literaturas
francesa e argelina, com o foco voltado para a francofonia periférica magrebina e sua
reescritura de um clássico do Ocidente, lido e publicado no mundo inteiro, na busca de
sentidos para sua ressignificação contemporânea, atravessada pelas tensões culturais pós-
coloniais entre França e Argélia. Assim, este trabalho se constitui como um desafio de âmbito
mais vasto e mais complexo do que aquele vivenciado na pesquisa anterior, buscando luzes
em torno das diferenças que Kamel Daoud pode oferecer a O estrangeiro, romance perante o
qual se apresenta, na condição de paródia (HUTCHEON, 1991), de modo polissêmico e
contraditório: dependente, reverente, crítico e transgressor. É esta polissemia contraditória que
passo, a partir de então, a elucidar.

da pesquisa, de referências ligadas ao trabalho de Mestrado em torno da tradução de Dom Camurro, uma vez que
algumas semelhanças entre as obras podem ser estabelecidas, elucidando determinados aspectos em discussão.
Sublinho que a pesquisa encontra-se no prelo para publicação em livro no segundo semestre de 2022.
27
2 LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL

Na obra O caso Meursault, Kamel Daoud cria o narrador Haroun, irmão de Moussa,
“o árabe” assassinado em O estrangeiro, de Camus, que ressurge para recontar a história de
seu irmão morto e de sua família, silenciada no romance francês. Tudo se conta, agora, século
XXI, pós-independência argelina da França3, a partir de um lugar de fala, até então,
desconhecido pela história da recepção camusiana: o lugar argelino, uma Argélia pós-
colonial. A narrativa de Haroun se mostra, na verdade, como o atender de um pedido feito por
um intelectual francês (não nomeado no texto, ironicamente, assim como o árabe morto em
Camus), o qual desejava reinvestigar a narrativa de Meursault4. Em sua primeira linha, o
romance daoudiano, uma narrativa tecida por um árabe5 argelino, dirigida, em caráter
dialógico, a um narratário acadêmico francês, escreve: “Hoje mamãe ainda está viva” (2013,
p.10). Tem-se a contraface da primeira fala de Meursault em O estrangeiro, de Camus: “Hoje
mamãe morreu” (2016, p.13). Sua escrita é, dessa forma, um retorno ao clássico que recebe
reverência e, ao mesmo tempo, um contraponto crítico. Essa revisita é, desse modo, um meio
de convidar ao destaque e simultaneamente descontruir os sentidos de O estrangeiro. Na
segunda página do romance daoudiano, encontra-se o narrador Haroum a escolher as
seguintes palavras:

O assassino ficou famoso e sua historia é demasiadamente bem escrita para que eu
pense em imitá-la. Era a língua dele. É por isso que farei o que se fez nesse país
depois de sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos
colonos e erguer com elas uma casa minha, uma língua minha. As palavras do
assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está, aliás,
inundado de palavras que já não pertencem a ninguém e que observamos nas
fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda,
transformados pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2013, p.9).
O narrador claramente associa sua narrativa à reapropriação da terra pós-
independência colonial. Suas palavras são a ocupação de um falante argelino da

3 A colonização francesa na Argélia foi de 1830 a 1962. A presente pesquisa não tem como objetivo central
descrever a História da colonização francesa ou da Revolução argelina, contudo, para entender a temática, A
revolução argelina, de Yasbek (2010) detém uma explanação geral.
4 O recurso narrativo será focalizado mais diretamente no Capítulo 4.
5 Em um sentido mais histórico, os árabes podem ser definidos como os povos de origem semita que habitavam
a península arábica. Efetivamente, dados os desdobramentos políticos, econômicos e sociais mais amplos, esses
povos se espalharam pelas regiões do assim chamado Oriente Médio e, mais precisamente, para os territórios que
são, ou foram, de povoamento dos impérios árabes (MALKKI, 1992). Tomando uma definição mais
antropológica, é possível dizer que, entre outros aspectos, os árabes são todos os povos que compartilham a
língua árabe, e suas variações, uma cultura que tem como fundamento alguma relação com o Islã, seja ela
religiosa ou institucional e, por fim, o imaginário mais geral da ligação com a península arábica (ROGAN, 2021,
p. 16-17). Contudo, é importante destacar, a relação dos povos árabes com a religiosidade é complexa e não pode
ser tomada como determinante, na medida em que adquire maior ou menor intensidade de acordo com a
conjuntura em cada sociedade que se reconhece como árabe (DEEP & WINEGAR, 2012).
28
6
palavra/idioma do assassino. Assim como as casas francesas na Argélia são retomadas pelos
nativos após a revolução, Haroum retoma a “história-casa” 7 de Meursault para construir a sua
“história-casa” e reapresentar a sua versão dos fatos. Palavras e pedras, narrativa e imóvel,
literatura e memória local aparecem no trecho atravessados, como dito, pelo “estranho dialeto
que a descolonização forja”. Está-se, pois, logo nas primeiras linhas do romance, delineado o
seu caráter pós-colonial. Está-se diante de um texto gerado por um escritor da Argélia (ex-
colônia francesa) cuja voz narrativa central aponta, nomeia e observa uma “estranha” prática
de “descolonização”, sendo, assim, cabível uma abordagem crítica e teórica que busque apoio
nos significados do Pós-colonial, dos estudos Pós-coloniais. Este capítulo inicial cumpre a
função de definir em que termos se compreendem os Estudos Pós-coloniais e suas
contribuições para o campo da análise literária. Traço, a seguir, uma discussão das ideias dos
principais pensadores dos Estudos Pós-coloniais que fundamentam, inicialmente, o
pensamento crítico aqui utilizado para executar a investigação das relações entre as obras de
Camus e Daoud. São eles: Edward Said (1995), Stuart Hall (2003), Inocência Mata (2016).8

2.1 EDWARD SAID: O QUE PODE A LITERATURA

De acordo com Edward Said (1995), existe uma relação intrínseca entre Cultura e
Império, entre a literatura ocidental e a legitimação do colonialismo e seus alicerces. A cultura
não “vagaria solta pelo ar” para apenas exprimir beleza estética e sentimentos de mentes
iluminadas pelo Gênio criativo, tal como muitos entendiam o processo criativo no
Romantismo do século XIX (SILVA, 1988). Na perspectiva de Edward Said, a cultura
europeia está em compasso com as necessidades de expansão colonial da própria Europa. A
maneira como o crítico delineia essa relação entre cultura e imperialismo pode ser associada a
uma imagem muito comum no cotidiano da nossa espécie mamífera: a de uma mãe que
alimenta a cria. Esta imagem-engrenagem se faz significativamente “familiar”, a tal ponto
que se “naturaliza”, se “invisibiliza” na rotina da espécie. Cultura e imperialismo alimentam-
se dupla e inversamente na imagem nutricional de uma mãe que amamenta sua prole, sendo
esta própria uma fonte de energia hormonal para a produção de mais e mais leite. Nessa

6 A questão do idioma francês na cultura argelina e no seu sistema literário é comentada no capítulo 4.
7 A metáfora da palavra e da literatura como material de reconstrução da “casa-terra” é recorrente em escritores
e escritoras de ex-colônias africanas. Vide, por exemplo, a obra poética “Utero da Casa”, da autora Conceição
Lima, de São Tomé e Príncipe (LIMA, Conceição. Útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004).
8 O trabalho dialoga, igualmente, com intelectuais dos Estudos pós-coloniais da América Latina, como: Lander
(2005), Quijano (2005), Mignolo (2008), Lugones (2008), mais citados nos Capítulos 3 e 4.
29
relação metafórica instalada para se ilustrar a interação cultura x imperialismo, não há papeis
cristalizados, no sentido de que o imperialismo seria fixamente a mãe que alimenta a
literatura, ou, contrariamente, que a literatura seria necessariamente a mãe que alimentaria o
imperialismo. Na verdade, ambos os pólos desempenham papéis duplos e simultâneos. Papéis
que poderiam mesmo funcionar como uma imagem para os laços entre produção cultural e
dominação imperial em que ambos os componentes se nutrem e se reforçam. Segundo Said
(1995), os textos europeus sobre a África, Índia, partes do Extremo Oriente, Austrália, Caribe
seriam parte constituinte da empresa europeia de dominar povos e culturas distantes. O
discurso é, assim, visto pelo crítico como uma das estratégias imperialistas de domínio das
colônias. Ocupar o território ultramarino e dominá-lo eram atividades que se reforçavam e
mesmo se constituíam em conjunto com certa retórica escrita nos textos literários (além de
demais discursos), a qual tinha como base traçar estereótipos dos povos ultramarinos, entre os
quais estavam: a) era necessário levar a civilização a esses grupos primitivos; b) era preciso
utilizar da violência frente à teimosia que demonstravam, sendo essa linguagem violenta a
única que eles sabiam atender e entender; c) “eles” eram diferente de “nós”, devendo, pois,
serem dominados.
Esta percepção de que a Literatura e o imperialismo se retroalimentam, através de uma
representação estereotipada do mundo além-mar e seu povo e que serve à justificativa de
rituais de violência física e cultural ao corpo e à cultura dos colonizados é uma noção basilar
desenvolvida e fundamentada pela Crítica Pós-colonial. Mediante a obra de Said, a crítica
literária passa a munir e a fortalecer uma noção de literatura nem sempre posta em holofotes
pelos estudos estéticos mais tradicionais: a de que o texto é também um ato, um exercício,
uma extensão do imperialismo colonial. Assim, a crítica pode passar a investigar questões
como: “De que modo, por quais mecanismos estéticos, os textos servem à propagação da
manutenção do poder eurocêntrico sobre o território e sobre a própria cultura dos povos
dominados nas conquistas imperialistas?” Tal forma de encarar o objeto literário proposta por
Said redireciona historicamente as formas de se fazer crítica literária nas últimas décadas do
século XX, oferecendo uma lupa diferente daquelas lentes críticas voltadas para a percepção
da narrativa e dos personagens como meros objetos ficcionais desarticulados do projeto de
“modernidade eurocêntrica” (MIGNOLO, 2008) típicas das correntes textualistas e
estruturalistas do início do século. Assim, texto e colonialismo são correlacionados e, nesse
movimento, encontra-se o cerne das investigações dos Estudos Pós-coloniais de que Said é,
incontestavelmente, uma espécie de co-criador e irradiador ao lado, claro, de tantos
30
pensadores detidos ao mesmo interesse de reconfigurar o que pode a literatura, o que podem
os seus atos na corrente da Geopolítica e da História da interação dos continentes.
A concepção de literatura, como é visível, se amplia em Said para que seja vista
também como um “gesto imperial”. A literatura em Said é concebida, então, como um ato que
pode agir pela dominação imperial. Contudo, é também, em si, um campo para o
contradiscurso, para o questionamento da dominação colonialista. O pensamento de Said,
destaco, apresenta uma dupla movimentação. Ao mesmo tempo em que amplia as formas de
se fazer crítica literária, abrindo portas para que se pense sobre as relações entre literatura e
colonialismo, fato que recebe dimensão considerável a partir do seu pensamento no campo da
exegese literária, pode ser, igualmente, interpretado como uma maneira de se circunscrever a
arte literária a apenas um projeto de propagação de poder europeu. Diante de tal manifestação
ambivalente da produção do crítico, contudo, é preciso que se encare a sua perspectiva não
como um método de análise capaz de encerrar o único e o mais “correto” modo de se
interpretar a literatura: aquele voltado fixamente a priorizar, na leitura da produção estética,
aspectos que representam as garras imperiais diante do imaginário literário.
A obra de Said pode, de modo mais proveitoso, ser lida como uma proposta de abrir os
múltiplos significados próprios do fenômeno literário a partir de outras chaves de leitura
diversas dentre aquilo que, para a época de sua publicação, era já bastante tradicional: o
esteticismo, a leitura imanente, a comparação na base do binômio fonte e influência. Uma vez
dito por Ezra Pound que a Literatura é “linguagem carregada de significado” (2006, p.32), o
método crítico Pós-colonial de Said menos que fechar os significados das obras apenas à
abordagem do texto como espelho do imperialismo, pode ser encarado como um convite a
leitores e leitoras a se voltarem para aquilo que não era tão evidenciado nas narrativas
ficcionais até o momento: como as seleções estéticas dos clássicos ocidentais guardam
relações estreitas com o fenômeno do imperialismo europeu. Esta foi uma chave de leitura
que não recebeu a devida atenção durante boa parte da primeira metade do século XX,
período em que se instituiu a Teoria Literária enquanto disciplina e aporte para Crítica
moderna. Assim, personagens e seus tipos, enredo, espaço, tempo, ponto de vista narrativo,
isto é, elementos estéticos constitutivos da narrativa, passaram, então, também a serem lidos
numa abordagem que foi capaz de traçar um paralelo entre a cultura e o imperialismo dentro
daquela imagem-engrenagem retroalimentar mamífera falada acima. Esta se constituiu como a
oferta da leitura Pós-colonial: traçar outra possibilidade de crítica voltada para a tarefa de
percorrer a literatura nesta sua acepção de campo discursivo em que estão vivas as relações de
31
exploração entre a Europa e as terras e povos colonizados. A crítica pós-colonial, remarco,
trouxe um modo particular de definição do papel da Literatura face ao contexto imperialista,
concebendo-a como um discurso cujos traços estéticos nutriam o sistema colonial, bem como
serviram e servem ao seu próprio questionamento. É nesta perspectiva que a presente pesquisa
pretende olhar as obras em estudo de Camus e Kamel Daoud: enquanto literatura,
aparelhagem estética, linguagem carregada de significados, mas pontualmente atravessada
pelas relações imperialistas entre França e Argélia.
Terry Eagleton, em Teoria da literatura: uma introdução (2003), faz um
levantamento, na seção introdutória da obra, dos diferentes modos de como a Literatura
recebeu definições teóricas ao longo dos tempos. Segundo o autor, entender unicamente que o
diferencial da literatura perante as outras formas de discurso seria o fato de que ela se trataria
de uma escrita imaginativa, de modo que através dela seria possível imaginar uma realidade
diversa do real, não seria uma definição totalmente capaz de garantir a sua especificidade
conceitual, tendo em vista que algumas obras podem ou não ser lidas como ficção a depender
da visão e do objetivo do leitor no ato da leitura. Também a definição dos Formalistas russos
do início do século XX pautada na noção de literariedade e de estranhamento, recebeu, como
ratifica o inglês, a contestação de sua eficácia por justamente não “dar conta” do ideal de
especificidade do campo literário, já que outros discursos, como o publicitário, por exemplo,
ainda que possam eventualmente se mostrar dotados de literariedade, e mesmo serem capazes
de provocar certo estranhamento no leitor, não podem ser confundidos com a literatura.
Dialogando com os pressupostos da Estética da Recepção, Egleaton finaliza seu ensaio
introdutório propondo que se encare a literatura como uma prática de escrita privilegiada, mas
que se trata menos de uma atividade de natureza conceitual fixa a intervir sobre as pessoas do
que propriamente de um fenômeno cuja definição depende, em si, de como as pessoas
pretendem enxergá-la a partir da sociedade e do tempo histórico em que vivem, bem como de
acordo com as suas necessidades e referenciais culturais.
Tal maneira de entender o literário que relativiza sua conceituação teórica se torna
emblemática no exemplo dado por Egleaton quanto a Shakespeare. Afirma o crítico inglês
que, até o atual momento, Shakespeare pode ser lido como literatura, contudo não seria
impossível talvez que os parâmetros para se entender o literário ao longo do tempo se
transformem a tal ponto, que uma sociedade futura possa não reconhecer mais Shakespeare
como literatura. O delinear do pensamento de Eagleton mostra que as diferentes correntes
críticas têm a sua maneira de entender o que é literatura e de traçar conceitos metodológicos
32
para sua leitura. É observável que cada corrente apoia sua defesa do que é o literário numa
necessidade daquilo que seu tempo, bem como os sujeitos, grupos e suas preocupações diante
da teoria desejam projetar na arte literária na condição de prática de escrita que alimenta a
cultura de forma particular. Se os Formalistas russos viam nela uma forma de “desautomatizar
o real” pelo estranhamento via literariedade e se os teóricos da Recepção a definiram como
uma “partitura” a ser atualizada em jogo com cada época distinta e seus valores, a crítica pós-
colonial suplementa tais percepções do que vem a ser o literário, ou mesmo atualiza a forma
de se entender essa “partitura”, na medida em que propõe que se conceba a literatura como
uma via estética para a propagação das forças imperiais, bem como sua desconstrução. É
possível notar que, independente do modelo crítico, a obra literária é definida como um elo
entre os sujeitos e o real. A escolha, o prisma de se olhar o real também irá incidir no modo de
se entender o papel da literatura no mundo e, por esta razão, é que fica clara a escolha
conceitual de Said frente aos romances e textos que estuda: revelar os bastidores da Europa
como produtora de colônias e cultura; revelar como a exploração colonial construiu a própria
Europa enquanto potência econômica e cultural. É importante que se destaque que, ao mesmo
tempo em que Said abre os olhares da crítica para a dominação imperial, seu pensamento
insiste também em reconhecer a existência perene e contínua de atos reativos à dominação,
muitos dos quais culminaram no grande movimento de descolonização em todo o Terceiro
Mundo. O autor cita, nesse sentido, a própria resistência armada em lugares diversos como
Indonésia e Argélia, além da resistência cultural marcada pela criação de partidos e
movimentos em prol da afirmação das identidades nacionais (SAID, 1995).
Dentro da arquitetura crítica de Said, é, sobretudo, relevante entender o que ele chama
de cultura, para concebê-la como interligada ao imperialismo e, dentro dela, o destaque que
sua escolha analítica confere à narrativa e ao romance. O autor utiliza a noção de cultura de
duas formas distintas. A primeira acepção diz respeito ao conjunto variado de práticas ligadas
à arte, à comunicação e à representação “que têm relativa autonomia perante os campos
econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de
seus principais mecanismos” (1995, p. 12). É dentro dessa concepção de cultura que o
romance recebe destaque nas investigações de Said, sendo entendido como importante na
construção dos atos, parâmetros e vivências imperiais. O crítico se posiciona em relação
àquilo que ele considera falta ou descuido da crítica tradicional de sua época: “A crítica
recente tem se concentrado bastante na narrativa de ficção, mas pouco se presta atenção a esse
lugar na história e no mundo do império” (1995, p. 12). Torna-se visível o julgamento de Said
33
quanto à ausência de se perguntar à ficção sobre como ela se relaciona com as conquistas
imperiais e seus desdobramentos. Nesse sentido, em Cultura e imperialismo, o autor redefine
o modo de se ver e se estudar as narrativas e o romance em meio à crítica dos fins do século
XX. Cita-se sua obra, quanto a sua maneira de redefinição da narrativa como objeto de
investigação do imperialismo:

A narrativa é crucial para minha argumentação, sendo minha tese básica a de que as
histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca
das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos
povos colonizados para afirmar sua identidade. O principal objeto de disputa no
imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a
terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava,
quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro – essas questões foram
pensadas, discutidas e até por um tempo decididas na narrativa (1995, p. 13).
A narrativa é também observada como uma motivação para que se conteste a
dominação e também se reconte as histórias. Afirma o autor:

O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito


importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões
entre ambos. Mais importante, as grandiosas narrativas de emancipação e
esclarecimento mobilizaram povos do mundo colonial para que erguessem e
acabassem com a sujeição imperial; nesse processo, muitos europeus e americanos
também foram instigados por essas histórias e seus respectivos protagonistas, e
também eles lutaram por novas narrativas de igualdade e solidariedade humana
(1995, p. 13).
Neste panorama conceitual da narrativa no interior da crítica pós-colonial de Edward
Said, é notório que ela funciona nos seguintes moldes: a) como o principal objeto de estudo ao
se investigar a relação retroalimentar entre cultura e imperialismo; b) campo estético e
discursivo utilizado para se definir a dominação da terra colonial, isto é, quem a domina e
quem tem o poder de sobre ela discutir e narrar; c) referencial para se contestar a dominação e
campo estético para se fomentarem novas narrativas que repensem as relações dentro de um
paradigma de resistência e solidariedade com as lutas dos colonizados. Esses três aspectos
depreendidos do pensamento de Said são úteis para aqui se refletir sobre os dois romances em
análise: O estrangeiro e O caso Meursault. São narrativas de autores, lugares e papéis
diversos e nelas tem-se um campo para se discutir o que é dominação e o que é resistência
frente aos significados do imperialismo impressos na ficção.
Quanto à segunda acepção de Cultura, esta se designa pelo conjunto de traços que
compõem a fonte da identidade de um povo quanto ao seu saber, seu “refinamento” e
distinção. É nesse sentido que se leria, por exemplo, Shakespeare para conhecer a cultura de
um povo e, assim, observa Said: “Com o tempo, a cultura vem a ser associada, muitas vezes
de forma agressiva, à nação e ao Estado; isso ‘nos’ diferencia ‘deles’, quase sempre com
34
algum grau de xenofobia” (1995, p. 13). A cultura como fonte de identidade é, não raro,
utilizada de modo reativo, no exercício central de retorno à tradição, que, historicamente, no
interior do colonialismo, gerou vários fundamentalismos nacionalistas e também religiosos.
Esta observação também é feita por Stuart Hall (2006) e muito vem a calhar na pesquisa,
sobretudo, no capítulo 4, no qual discuto as representações do sagrado e do fundamentalismo
islâmico em Daoud. É interessante, nesse aspecto, notar e problematizar como a cultura do
Magreb9 aparece ligada ao Islã na literatura de autores contemporâneos, sejam vindos do
próprio Magreb ou mesmo franceses. Desse modo, quando Said apresenta esta segunda
conceituação de cultura, tem-se aí uma relevante referência para se pensar a identidade
cultural magrebina nas narrativas, considerando quem a representa, como a representa e
revelando interesses ainda ligados às relações decorrentes do colonialismo.
Nesse sentido, depreende-se do pensamento de Said definições não só do que pode ser
a literatura, e aí se destacam sua forma particular de encarar a narrativa e o romance, caso
repensados a partir do imperialismo, mas também do que pode ser a cultura em duas frentes
conceituais: a) um conjunto de manifestações estéticas e discursivas que travam suas relações
com o imperialismo e assim podem ser problematizadas; b) uma fonte de identidade, de saber
e de distinção de um povo e uma nação, o que, no fluxo dos contextos coloniais, se
transformou, em certos casos, numa prática de fundamentalismo e, em algumas situações,
xenofobia. Nesta segunda acepção, a cultura se identifica como um “teatro” ou um “campo de
batalha”:

Longe de ser um plácido reino de refinamento apolíneo, a cultura pode até ser um
campo de batalha onde as causas se expõem à luz do dia e lutam entre si, deixando
claro, por exemplo, que, dos estudantes americanos, franceses ou indianos ensinados
a ler seus clássicos nacionais antes de lerem outros, espera-se que amem e
pertençam de maneira leal, e muitas vezes acrítica, às suas nações e tradições,
enquanto denigrem e combatem as demais (1995, p. 14).
Essa acepção iguala a cultura a uma prática também de violência, na medida em que os
sujeitos da cultura passam a “adorar” e a “sacralizar” seus ritos culturais sem autocrítica, sem
questionamento e com o ideal permanente de se afastarem, se colocarem contra a cultura
alheia. Note-se que o romance se sobressai no trecho como uma espécie de “espelho da
nação”, que funciona como um místico amuleto de poderes criativos de um pertencimento
isolado, excludente e nada solidário. A cobrança perante os leitores e leitoras de literatura,
nesta perspectiva, é de ilhamento aos hectares de seu território; tal cobrança unilateraliza a

9 A região do Magrebe concerne ao Noroeste da África. Inclui Marrocos, Argélia e Tunísia (em sentido mais
estrito). O dito “Grande Magrebe” inclui ainda a Mauritânia, a Líbia e Saara Ocidental. Retoma-se a definição
em nota mais específica no Capítulo 4.
35
leitura e a limita à busca ciclópica de encontrar nos textos uma “história única” (ADICHE,
2019) do que se deseja saber e escrever sobre si e sua ilha. Said nota e denuncia que tanto
escritores, quanto críticos reproduzem em seus textos, ferramentas da cultura, esse modo
binário “batalha” e “ilhamento” de criação de sentidos. Esse seu “grito” faz parte do que eu
chamo de “grito pelo ocultamento visível” – sua voz explica criticamente o que seus olhos
veem: a ausência dessa própria noção de que a cultura se faz como um campo de batalha entre
lutadores ciclópicos que parecem ver apenas o que é espelhamento e negação ao outro. Cito o
modo particular de como Said, através dos seus sentidos de fala e visão, denuncia sujeitos
culturais “ilhados” que perpetuam, por sua vez, o ocultamento de outras culturas, através da
falta de questionamento da própria cultura:

Muitos humanistas de profissão são, em virtude disso, incapazes de estabelecer


conexão entre, de um lado, a longa e sórdida crueldade de práticas como a
escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, de outro, a poesia,
a ficção e a filosofia da sociedade que adota tais práticas. Uma das difíceis verdades
que descobri trabalhando neste livro é que pouquíssimos, dentre os artistas ingleses
ou franceses que admiro, questionaram a noção de raça “submissa” ou “inferior”, tão
dominante entre funcionários que colocavam essas ideias em prática, como coisa
evidente, ao governarem a Índia ou a Argélia. Eram noções amplamente aceitas e
ajudaram a propelir a aquisição imperial de territórios da África ao longo de todo o
século XIX (1995, p. 14).
Nesse movimento crítico de repensar o conceito de cultura a partir da crítica dos
escritores europeus que lia e admirava, apontando como uma “ferida” esta aparente lacuna de
uma postura crítica europeia contra atos de barbárie, os quais povoam as narrativas sobre o
além-mar europeu e para dominá-lo, Said reconhece o seu desafio como pensador que cresceu
no mundo colonial anterior à Segunda Guerra: olhar o oculto no aparente e fugir da visão
restrita de cultura alheia ao político das forças imperialistas. Afirma, pois, que seu desafio é
justamente ensinar e estudar literatura e cultura na recusa dessa visão que as desloca do real e
as concebe “antisepticamente isoladas de suas filiações mundanas” (1995,p.14), escolhendo
vê-las como “um campo de realização extraordinariamente diversificado” (1995, p.14). Ele
reconhece que os textos literários são, sim, meios de propagação de prazer, qualificando-os,
em primeiro lugar, como obras de arte e “de conhecimento respeitáveis e admiráveis” (1995,
p. 14), mas acrescenta a sua marca crítica que reside no desejo, na sua necessidade, na
condição de pensador, de recusar conceitos e métodos de estudos literários e culturais que
permaneçam cegos e mesmo escamoteadores dos movimentos de violência que estão
presentes em escrituras e leituras presas ao conceito de cultura como “ilha”. A marca crítica
de Said é o compromisso com o desafio de pensar os romances e “relacioná-los não só com
36
esse prazer e esse proveito, mas também com o processo imperial de que fazem parte de
maneira explícita e inequívoca” (1995, p. 14-15).
Está aí o desenho das bases da Crítica Pós-colonial com Edward Said: as referências
teóricas de conceitos-chave para se pensar as obras, como os conceitos de literatura e cultura,
recebem sua especificidade, sua marca própria, sua função política de não mais se
desatrelarem da Europa imperialista e das colônias cujas terras foram tomadas. A crítica pós-
colonial em Said se desenha, aqui, contudo, não como um ritual obrigatório para se ler
narrativas e o romance europeu ou das nações que foram colônias, mas é percebida como
uma, dentre tantas outras possíveis, formas de se escolher conceber a cultura e a literatura,
sendo nesta pesquisa uma escolha assumida e considerada compatível com muitos dos
significados pulsantes nas obras em estudo, O estrangeiro e O caso Meursault. A pesquisa
encontra e reverencia as contribuições de Said para as definições chave no que concerne ao
método crítico pós-colonial, sobretudo, nessa passagem de sua autoanálise como intelectual
que pensa o objeto estético literário, na qual o autor adverte que sua tarefa interpretativa
primeira não se esforça para produzir um julgamento das obras que estuda frente ao
imperialismo no sentido específico de culpá-las pela dominação eurocêntrica. Nas suas
palavras em relação ao objeto literário que estuda, segundo seu método de intercambiar
cultura e imperialismo, o que se experiencia é um “adentrar” por sentidos ainda não
vasculhados no texto; não seria exatamente limitá-lo, mas suplementar o movimento da
crítica tradicional com um gesto de busca de novos significados mais plurais. Destaco,
contudo, a seguinte afirmação de Said sobre sua posição diante do texto literário:

mais do que condenar ou ignorar sua participação no que era uma realidade
inconteste em suas sociedades, sugiro que o que aprendemos sobre esse aspecto, até
agora ignorado, na verdade aprofunda nossa leitura e nossa compreensão dessas
obras (1995, p. 15).
Observa-se que as palavras de Said funcionam como uma espécie de justificativa dos
fundamentos da própria escolha crítica, das acepções com que os conceitos são entendidos,
numa tentativa aparente de “proteção” da identidade e legitimidade do seu método crítico. O
autor insiste em frisar o caráter inédito da abordagem literária pelo prisma do imperialismo,
remarcando o descaso da crítica de então pela reflexão literária neste viés, o qual se faria
latente nas narrativas europeias. É compreensível que, justo na introdução do livro Cultura e
imperialismo (1995), obra basilar na construção dos alicerces da crítica pós-colonial, o autor
assim deseje demarcar seu pensamento, defender sua tese. Faço, entretanto, um
questionamento acerca do termo “aprofundamento” trazido pelo autor no trecho acima.
37
Quando ele sugere que o seu objetivo não é exatamente julgar, mas “aprofundar” os modos de
ler os romances europeus, parece-me que fica aí subentendido que as demais leituras críticas
do século XX (que não tenham tido esse mesmo foco de conectar cultura e imperialismo) não
tenham realizado uma leitura “aprofundada” das obras, e, sim, superficial. Passadas quase
duas décadas da publicação de Cultura e imperialismo, é hora de repensar o termo
“aprofundar” utilizado pelo autor. Considero que a distância de natureza de leitura da crítica
proposta por Said em oposição ou suplementação às demais vertentes de abordagem
despreocupadas com a relação Europa x (ex)colônias seria mais proveitosamente definida não
com base no ato de “aprofundar” a leitura dos significados das obras, mas sim com base no
ato de “escolher” uma chave de leitura específica para elas. Não considero que a Crítica pós-
colonial seja precisamente um “aprofundamento” crítico diante das obras, isto é, uma resposta
que seria “mais completa” às supostas “deficiências” de abordagens mais na linhagem
psicanalíticas ou estéticas, por exemplo. Entendo que a crítica Pós-colonial exerce, na
verdade, seu modo particular de buscar significados nos textos, obedecendo a um projeto
político de compromisso em problematizar “outro lado” da História e da memória dos lugares,
das nações e suas literaturas. A ideia de “aprofundamento” de Said abre margem para sugerir,
se não estou enganada, a noção de que as outras correntes críticas não foram capazes de ir
além do superficial, explorando a contento “todas as camadas possíveis e exauríveis dos
textos” quando, na realidade, a questão parece se tratar mais do fato de que essas correntes
estavam buscando significados diferentes, aparatados nos projetos e posições políticas de seus
representantes. O modo como Said fala em “aprofundar”, ainda não tenha sido seu propósito,
não sei, dá cabimento para se pensar algo do tipo: “agora, sim, é possível retirar dos romances
aquilo que os críticos estetas não souberam ler”, “agora, sim todas as chaves de significados
esquecidas e ignoradas serão encontradas”, o que poderia sugerir que a sua abordagem fosse
mais “completa”, “profunda” que as demais. Contudo, em se tratando de crítica literária, ainda
que se validem as leituras de Said e seus pressupostos, não haveria uma verdade referencial
para julgar leituras em melhores ou piores, mais superficiais ou mais aprofundadas partindo-
se da ideia de que um método seja mais completo que outro. Haveria, sim, a crítica que se
monta em cadeia demonstrativa (LIMA,1981) a partir dos referenciais particulares dos
diversos críticos, seus modos de ver o mundo e a própria literatura, há o modo de ver ou não
ver sentido significativo em cada crítica a partir dos próprios leitores da crítica e seus
referenciais. Roland Barthes, em O rumor da língua (2004b), ao versar sobre o fato de que “o
leitor escreve o texto” e nele constrói os seus próprios sentidos, faz-se aqui uma referência ora
38
útil por demonstrar que a obra se torna aquilo que o leitor cria a partir dela, isto é, a partir de
suas pistas textuais10. A questão é que o projeto intelectual ativista de Said busca as pistas
específicas que relacionam a cultura ao imperialismo, ao passo que outras correntes críticas
buscam pistas diferentes. Nesse sentido, trago a palavra de Lourival Holanda: “O
empreendimento teórico é um projeto de ultrapassagem, porque de crítica, não de crença”
(2015,p. 92). As palavras de Holanda ajudam a repensar a noção de “aprofundamento” por
oposição a de “superficialidade” de um gesto crítico. Defender que uma leitura é mais
aprofundada (por se ater a esta ou àquela perspectiva teórica) que outra é estar mais pautado
pela teoria como “crença”, não como ultrapassagem crítica11.
Acredito, contudo, que seja, sim, necessário, como reforça Said, problematizar por que
as leituras que pouco se importam com a política imperialista presente nas obras assim o
fazem. Tal questão, ao ser refletida, revela quais projetos políticos estão e não estão presentes
na variedade da Crítica e a que interesses de grupos atendem. A opinião de Said importa e em
muito contribui aos estudos da Literatura na medida em que atesta o “ignorar” do
imperialismo na cultura por muitos nomes e plataformas hegemônicas do saber, mas merece
reavaliação, também, tendo em vista que parece supor que a Crítica pós-colonial poderia dar
conta de uma “profundidade” que, por exemplo, exauriria as “reais camadas semânticas” as
obras, não fora anteriormente acessada, seja por quais razões se acredite, se “cegueira”,
“inabilidade” ou “má vontade”. Não se trataria, a meu ver, de um “déficit de leitura” quando
não se olha o colonialismo nos romances europeus, não se trataria de uma crítica menor, por
supostamente ser inábil e superficial, se trataria, sim, acredito, de uma crítica dedicada a um
“outro projeto” que não o decolonial, projeto este atravessados por posições ideológicas que,
sim, poderiam ser elemento de debates. O fato é que a tradição crítica eurocentrada se pautou
por buscas que viraram, muitas vezes, as costas ao imperialismo, de modo que a contribuição
de Said é justamente relevante por propor outro olhar, o qual aqui é entendido não exatamente
como “mais profundo” (no sentido de mais completo e habilidoso para se exaurir a obra), mas
sim, comprometido com uma “opção decolonial” (MIGNOLO, 2008). Seu trabalho oferece
novos significados aos textos literários e ao próprio modo de se fazer crítica, mas não cabe,
assim entendo, ser encarado como o mais “profundo” frente a uma obra em análise e ao modo

10 Esta percepção de Barthes é constantemente referida neste trabalho.


11 Holanda (2015), em seu artigo, concebe a ideia de crença atrelada ao ato de entender uma perspectiva como
“dogma”, sendo assim, inquestionável, ausente, pois, de autocrítica, e, nesse sentido, eu complementaria, uma
prática de entendimento relacionada mais ao autoritarismo do mito, do sacralizado, do que à reflexão que se
estabeleceria com um ponto de vista demonstrável e, então, questionável, passíveis a debate. Ele nomeia tal
postura como “totalitarismo teórico” (2015, p. 92) e adverte que a atuação crítica do empreendimento teórico em
seu estágio crescente “desperta ao mesmo tempo “admiração e receio, respeito e desconfiança” (2015, p. 92).
39
de desenvolver o conhecimento sobre ela. É possível encontrar várias camadas mais abissais
nos textos partindo-se de variados métodos. Por exemplo, é possível revelar novas camadas de
sentido dentro de uma abordagem psicanalítica ou sociológica ou mesmo transdisciplinar.
Assim, a questão não é contribuir por “aprofundar completamente” um tema em um texto,
mas contribuir por fornecer outras perspectivas mais plurais de adentramento nas obras,
navegar por elas por rotas variadas.
Assinalo ainda como importante a preocupação de Said em não identificar por
completo a Crítica pós-colonial com um sentimento de revanchismo. Cito a fala de Said a
respeito das relações entre cultura e imperialismo como foco da crítica:

O fato de agora serem de tal interesse, a ponto de levar à elaboração deste e de


outros livros, é consequência menos de uma espécie de espírito vingativo
retrospectivo do que uma maior necessidade de elo e conexões. Uma das realizações
do imperialismo foi aproximar o mundo, e embora nesse processo a separação entre
europeus e nativos tenha sido insidiosa e fundamentalmente injusta, a maioria de nós
deveria agora considerar a experiência histórica do imperialismo como algo
partilhado em comum. A tarefa, portanto, é descrevê-la enquanto relacionada com os
indianos e os britânicos, os argelinos e os franceses, os ocidentais e os africanos,
asiáticos, latino-americanos e australianos, apesar dos horrores, do derramamento de
sangue, da amargura vingativa (1995, p. 23).
Assim, Said dá a entender que a Crítica pós-colonial não é tão somente um sintoma,
uma paixão, mas um exercício de reflexão e racionalização da experiência imperial que
precisa vir à tona, uma vez que não versar sobre isso é perder a oportunidade de encarar as
relações globais como fruto de uma História conectada entre os povos e lugares; é, pois,
perder de se encarar esses significados da cultura no processo histórico que a molda.
Outro ponto importante das “justificativas” de seu método crítico é que Said reconhece
que os escritores não reproduzem imperialismo mecanicamente determinados pela ideologia,
mas sua visão considera que os atos de escrita estão atravessados profundamente pela História
das sociedades em que vivem, pelas suas experiências no mundo político. Sua tarefa como
intelectual político, confessa, faz parte da sua esperança de transformar o modo como se vê as
sociedades e a História. Ele assume ter a utopia de que sua crítica sirva a um fim ilustrativo ou
até dissuasório. Segue trecho em que Said elucida suas esperanças quanto ao seu método:

Se o imperialismo avançou implacavelmente nos século XIX e XX, o


mesmo se deu com a resistência a ele. Assim, metodologicamente, tento
mostrar as duas forças em conjunto. Isso de forma alguma isenta de críticas
os povos colonizados e lesados; como revela qualquer levantamento dos
estados pós-coloniais, as ditas e desditas do nacionalismo, daquilo que se
pode chamar de separatismo e nativismo, nem sempre compõe uma história
edificante (1995, p.25).
40
O trecho é revelador de que sua aposta crítica não se faz dentro de um esquema
maniqueísta acrítico às barbáries culturais operadas também pelos povos colonizados. Desse
modo, sua crítica se mostra não como uma vingança à “vilania” europeia, mas, notadamente,
como um exercício de reflexão das relações imperiais na cultura, avaliando as complexidades,
contradições e tensões dos agentes que compõem o sistema imperialista. É neste sentido
também que os sujeitos argelinos e franceses serão pensados dentro das obras em estudo. Não
se toma, aqui, Camus como um mero escritor imperialista e Daoud como um escritor argelino
decolonial, como se tais adjetivos fossem condições “puras” e isentas de contradições. Como
Said mesmo afirma:

Acabaram-se as oposições binárias caras às atividades nacionalistas e


imperialistas. Em vez disso, começamos a sentir que a velha autoridade não
pode ser simplesmente substituída por uma nova autoridade, mas que estão
surgindo novos alinhamentos independentemente de fronteiras, tipos, nações
e essências, e que são esses novos alinhamentos que agora provocam e
contestam a noção fundamentalmente estática de identidade que constitui o
núcleo do pensamento cultural na era do imperialismo (1995, p. 26-27).
Quando se traça semelhante visão crítica a de Said, por sua vez, um posicionamento
político se instala na leitura, quando não se traça essa escolha, também. O político se insere no
amplo ato de leitura, de modo que, aqui, nesta pesquisa, não se defende que a interpretação
pós-colonial é uma leitura política no estrito sentido de que as demais não o sejam também. A
afirmação seria tautológica, uma vez que se acredita que toda crítica é política e ideológica
(EAGLETON, 2003). Mas, aqui, se procura afirmar que o político na Crítica pós-colonial se
instala e se compromete para se problematizar e mesmo para se transformar visões
cristalizadas do que é a Europa e do que são suas ex-colônias ou, invertendo a topicalização,
do que são as nações africanas e suas antigas metrópoles e seus conflitos. Essa vertente de
leitura, acredito, oferece um significativo arsenal conceitual para se transformar a imagem da
crítica e as imagens das memórias das nações e continentes aparentes nos textos e na cultura;
e é este movimento interpretativo que vejo demandar a obra de Daoud frente ao que ela
reescreve diante da obra de Camus.

2.2 STUART HALL: O PÓS-COLONIAL COMO PLATAFORMA HISTÓRICA,


TEÓRICA, ESTÉTICA

Stuart Hall, no ensaio “Quando foi o pós-colonial?”, inscrito na obra Da diáspora:


Identidades e mediações culturais (2003) traz, assim como Edward Said, um pensamento
41
emparelhado com o que aqui procuro definir como fundamentos da Crítica pós-colonial com a
qual dialogo enquanto pesquisadora. Nele, o jamaicano executa o que considero uma “tomada
de oposição” diante do que a Crítica pós-colonial contemporânea às décadas de 90 e 2000
teceu como conceituação do “pós-colonial”. Seu exercício nesse ensaio é questionador e
propositor de uma revisão conceitual. Como ponta-pé inicial do texto, Hall questiona a
maneira com que pensadoras como Ella Shohat e McClintock discutem as acepções do termo,
apontando o que dele, de fato, escolhe entender, trazendo, nesse movimento, definições
sistemáticas que, neste estudo, se tomam como norteadoras. Suas definições passam tanto por
ver o pós-colonial como: a) um período histórico, quanto como b) uma posição
epistemológica e c) uma plataforma estética. A contribuição de Hall para a Crítica pós-
colonial é, repito, de suma importância e, então, útil para, neste estudo, se pensar sobre o
corpus, sendo, agora, aqui discutida no que tange aos pontos de encontro com o que pretendo
analisar na relação Camus x Daoud.
Refutar o que se construiu sobre o conceito do Pós-colonial é, como dito, uma das
principais tarefas do autor neste ensaio, a qual avalio como um rito teórico necessário para os
estudos da crítica literária no ramo, uma vez que ter realizado o exercício de questionar e
dissuadir certas noções que, de certa forma, cristalizavam definições do “Pós-colonial”,
acredito, trouxe, inequivocamente, saúde para a ampliação do debate em torno do problema.
A energia contra-argumentativa do pensamento de Hall reforça definições possíveis e nas
quais enxergo contundência no modo como os Estudos Pós-coloniais podem ser
compreendidos, seja pelos teóricos, seja pelos ficcionistas. Seu texto entrevê características e
posicionamentos no modo como Daoud reescreve Camus, merecendo, portanto, uma
apresentação e análise.
Para Hall, diferente de Shohat e McClintock, a expressão “pós-colonial” não daria a
entender que, no momento pós-independência das metrópoles, o colonialismo estaria
completamente encerrado no passado, isto é, que este simplesmente foi um momento histórico
que passou, inaugurando-se uma nova era para as ex-colônias, as quais tornar-se-iam novas
nações livres e independentes. Na realidade, contra-argumenta Hall, o prefixo “pós”, seguido
do hífen, que é uma partícula gráfica cujo peso semântico é o de ligação, e não de
desligamento, denotaria, pelo contrário, que as conjunturas pós-independência das colônias e
das próprias metrópoles continuam a ser regidas pelas dinâmicas iniciadas com a colonização,
a qual deixa suas marcas irreversíveis.
42
Do mesmo modo, o termo não deteria uma abrangência “universalizante” admitida
pelas duas autoras, como criticou Hall, uma vez que, no seu ponto de vista, entender o pós-
colonial num sentido mais amplo é também entender que não seria possível igualar
experiências coloniais de diferentes povos e nações. Para citar como exemplo de tal
impossibilidade, Hall questiona: “Os argelinos que vivem em seu país e os que vivem na
França, os franceses e os colonos pied-noir, seriam todos eles pós-coloniais?” (2003, p. 106).
Também aproveita o jamaicano para questionar se a América Latina seria pós-colonial, tendo
seus processos de independência ocorridos no século XIX. Hall responde às indagações com a
seguinte advertência, aqui vista como necessária para se compreender as diferenças no modo
de se utilizar a expressão “Pós-colonial” para as experiências de localidades distintas: “nem
todas as sociedades são pós-coloniais num mesmo sentido. Mas isso não significa que esses
países não sejam de alguma maneira pós-coloniais”(2003, p. 107). Dessa forma, Hall
reconhece ser preciso que se reflita sobre o estado pós-colonial diversificado de nações da
África e da América, bem como da própria Europa, desconstruindo esse “mal entendido” de
que o termo se prenderia univocamente a uma percepção “universalizante”, no sentido de que
estaria apenas apto a mascarar as especificidades históricas e geográficas de cada ex-colônia
na sua relação com as metrópoles. Com este exercício de refutação proposto por Hall, é
possível chegar ao entendimento de que não há um único modo de se pensar, conceituar ou
mesmo vivenciar o pós-colonial de localidades distintas, mas sim, há uma pluralidade de
possibilidades de fazê-lo. A crítica precisaria, pois, estar atenta a tais peculiaridades e aqui,
quando se olha para as obras de Camus e Daoud, não se perde de mira que a Literatura
francesa não é do mesmo modo colonial ou pós-colonial como o é a da Argélia, apresentando
as diferentes ficções experiências estéticas e políticas distintas e, é nesse sentido que as obras
em foco assim pretendem ser comparadas nesta pesquisa.
Hall desenvolve o ensaio persistindo nas suas “negativas conceituais” e aponta outra
peculiaridade do termo pós-colonial, aqui, igualmente, pinçada como uma referência teórica;
segundo o autor, o termo não pode ser visto como uma categoria “avaliativa”. Explico: Hall
remarcou que alguns pensadores, seus contemporâneos, defendiam que o termo não se
aplicaria às colônias brancas ou mesmo ao que se vivenciaria nas metrópoles, sendo uma
“qualidade” das localidades periferizadas pela colonização. Opondo-se a tais visões, o
jamaicano as julga inadequadas por justamente propagarem a ideia do pós-colonial como uma
prática que deveria ser celebrada e vista como uma posição de “honra ao mérito” e limitada às
localidades periferizadas. Critica Hall:
43
Isso é confundir uma categoria descritiva com uma categoria avaliativa. O que o
conceito pode nos ajudar a fazer é descrever ou caracterizar a mudança nas relações
globais, que marca a transição (necessariamente irregular) da era dos impérios para
o momento das pós-independências ou da pós-descolonização (2003, p. 107).
Assim, quando concebo que a crítica pós-colonial é uma chave de leitura vista como
uma demanda da obra de Kamel Daoud, bebo em Hall, para demarcar que não tomo, aqui, o
romance argelino como um texto que merece uma medalha de honra ao mérito por se tratar de
uma ficção imbricada com o movimento de descolonização. Muito menos, tomo aqui a crítica
pós-colonial como “a melhor” chave de leitura por se procurar voltar enfaticamente para a
exegese da literatura das colônias. Na realidade, quando estudo Daoud nesta pesquisa, num
trabalho realizado dentro do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE, na periferizada
América Latina, a respeito de uma relação travada entre o campo literário francês e o campo
argelino, mais que avaliar a ficção ou o método crítico como uma prática honrosa, os vejo
como campos discursivos que merecem atenção por justamente tratarem de intercâmbios
culturais complexos, que demandam uma análise mais próxima de um ato examinatório
voltado para propor novos e outros entendimentos sobre as tensões entre França e Argélia.
Definitivamente, como faz Hall, não entendo a análise literária de método pós-colonial como
um ato que mereça uma medalha por procurar pensar o periférico, como se este domínio fosse
uma “ilha”, a qual, uma vez iluminada por um “farol” crítico, este merecesse alguma
reverência, premiação. Na realidade, o pós-colonial inserido no ato crítico é visto como uma
alternativa teórico-crítica para serem explicados os objetos literários a partir de perspectivas
diversas daquelas postas pela crítica mais tradicional do século XX, mais circunscritas ao
estético, quais sejam: perspectivas abertas a descrever o movimento complexo das relações
coloniais e seus efeitos pós-independência, tal qual estas estão experienciadas na obra
literária.
Neste domínio de pensamento, a pesquisa entende, então, a obra de Daoud como uma
produção que merece atenção para que não se repita a mesma História de único olhar francês
e camusiano sobre a Argélia, para que também se abra espaço para se descrever e pensar
como a Literatura argelina pode reescrever a própria memória. Não haveria, seguindo Hall
(2003), vantagens ou condecorações para uma literatura periférica que deseja reescrever a
memória de sua nação, muito menos para a crítica que faz seu estudo. O que há é o ato
político de escrita ficcional, o qual está sujeito, por sua vez, a uma forma também política de
análise, a qual, em face de sua posição e compromisso de quebrar hegemonias de
representações estéticas e ideológicas de povos e lugares, se compromete em investigar e
44
descrever os romances para que se reconfigurem os repertórios, muitas vezes fixos, em torno
das imagens criadas sobre centros e periferias. Desse modo, esta pesquisa de envergadura
crítica pós-colonial visita a obra daoudiana para que se ampliem as visões sobre a Argélia e
sobre a França. Não pretendo julgar a ponto de propor uma conclusão de que uma ficção com
tendência pós-colonial seria mais honrosa que uma outra em nenhum sentido. Na realidade,
procuro atentar para o fato de que é necessário entender as formas estéticas e ideológicas de
cada obra, refletindo sobre o que elas revelam acerca das relações coloniais e pós-coloniais
entre o “Ocidente e o Resto” (HALL, 2006). Tais relações precisam estar sobre o foco, pelo
fato de que, como já disse o aqui comentado Edward Said (1995), nem sempre receberam a
devida atenção, sendo notável, inclusive, praticamente uma visível ocultação histórica da
problematização da colonização nos espaços de produção de conhecimento sobre a cultura e a
Literatura.
No movimento contra-argumentativo de Stuart Hall, ainda é factível encontrar uma
definição de “quando foi o pós-colonial”, isto é, a sua demarcação enquanto período histórico.
Para ele, o pós-colonial concerne ao período das pós-independências, sem, é claro, que isso
designe que os efeitos da colonização sejam próprios apenas ao passado; na verdade, a
descolonização é um processo vivenciado justo pela necessidade de se questionar e lutar
contra as marcas do imperialismo que se fizeram e se fazem presentes ainda com as nações
libertas do senhorio das metrópoles. Estaria também neste desenho, em contrapartida, uma
possibilidade de se enxergar uma faceta, sim, “universalizante” possível e adequada no termo
pós-colonial. Argumenta Hall:

O termo se refere ao processo geral de descolonização que, tal como a própria


colonização, marcou com igual intensidade as sociedades colonizadoras e as
colonizadas (de formas distintas, é claro). Daí a subversão do antigo binarismo
colonizador/colonizado na nova conjuntura. De fato, uma das principais
contribuições do termo “pós-colonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de
que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais.
Sempre esteve profundamente escrita nelas – da mesma forma como se tornou
indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados (2003, p. 108).
Tem-se aí outra definição do crítico jamaicano do que é o pós-colonial, a qual se torna, aqui,
oportuna por demarcar a importância do conceito ao nele estarem inclusos os impactos da
colonização também sobre as próprias metrópoles, o que leva a ser percebido e focalizado o
que nem sempre se mostra óbvio nas imagens ostentadas do Ocidente sobre si mesmo: que
seu poder se constrói como resultado da “extração” colonial, de modo que pensar sobre a
Europa é pensar, necessariamente, nas ex-colônias e vice-versa. Refletir sobre o período pós-
independência das colônias, assim, é refletir também sobre a conjuntura das relações globais
45
atravessadas pelo imperialismo. Nesse sentido, quando, nesta pesquisa, estudo a literatura
contemporânea da Argélia na figura de Kamel Daoud e sua reescritura de Camus, isto é,
quando estudo a produção da ex-colônia francesa, o exercício reflexivo se estende também à
própria História, memória e literatura da França por haver, aí, uma relação de interconexão
instituída. Da mesma sorte, quando é proposta uma reflexão sobre a França e sua literatura na
figura de Camus e do romance O estrangeiro, esta não se desatrela da sua relação com a
Argélia e do período colonial. O pensamento de Hall ajuda a descentrar a Europa como
protagonista única de sua própria História, ajuda a descentrar o olhar da crítica em torno da
Literatura francesa de Camus do que é exclusivo à nação francesa, indissociando-a de suas
colônias. A concepção do que é o pós-colonial em Hall abre, desse modo, a possibilidade para
que se passe a ver a Europa, sua memória e literatura como um resultado também de suas
ações dirigidas na expansão colonial.
Tal iniciativa revela, em contrapartida, o poder das nações coloniais no imaginário
literário das colônias. Os escritores das ex-colônias estarão necessariamente atravessados
pelas marcas irreparáveis da colonização e, nesse aspecto, suas obras dificilmente não
ostentarão na face, explícita ou implicitamente, uma relação com o que representou e ainda
representa o imperialismo. Tais marcas estariam entre os escritores periferizados, por
exemplo, no modo como desejam narrar através de formas literárias europeias (contos,
romances, poemas, etc), no modo como desejam recriar uma memória das nações em seus
textos, muitas vezes, questionadora das representações hegemônicas, ocidentais, no modo de
seguir na literatura, inclusive, a lógica de um “nacional por subtração” (SCHWARZ, 1987),
no modo como escolhem, como é o caso de Daoud em relação ao O estrangeiro, a reescritura
paródica de clássicos ocidentais.
No que concerne a tais reações culturais das ex-colônias ao processo de violência
cultural, Hall assinala a existência de um movimento de esforço para se retornar à identidade
nacional anterior à colonização, tratava-se do que ele chamou de um ato pela
“descontaminação” que, contudo, se fazia inócuo, uma vez que os efeitos da transculturação 12
entre os povos, segundo ele, são irreversíveis. Nessa perspectiva, Hall apresenta um dos
entendimentos que considero um dos mais centrais ao serem refletidas aqui as relações
culturais e literárias entre as nações em seus papéis de dominação e subalternização
característicos: “As diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem
profundas. Mas nunca operaram de forma absolutamente binárias, nem certamente o fazem
12 O conceito de “transculturação”, com base em Roland Walter (2015), é mais adiante desenvolvido e
explorado nas análises dispostas nos Capítulos 3 e 4.
46
mais” (2003, p. 108). O crítico remarca não existir, na ideia de pós-colonial, pólos binários
como um “antes” e um “agora”, um “dentro” e um “fora”, um “aqui” e um “lá”, um “em casa”
e um “no estrangeiro”. A presença do que é pós-colonial está atravessada pelo que é “tradução
cultural” e “transculturação”, isto é, processos que acirram as contradições, as ambivalências,
as cisões imbricatórias, as imbricações cindidas. O pós-colonial é, assim, um período e uma
experiência histórica de encarnação da perturbação de antigos binarismos. Afirma Hall:

O termo pós-colonial não se restringe a descrever uma determinada sociedade ou


época. Ela relê a “colonização” como parte de um processo global essencialmente
nacional e transcultural – e produz uma escrita descentrada, “diaspórica” ou global
das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação. Seu valor teórico,
portanto, recai precisamente sobre sua recusa de uma perspectiva do “aqui” e “lá
(2003, p. 109).
Nessa perspectiva de implosão de binarismos, o “global” não significa “universal”,
sequer também se identifica como algo específico de uma nação ou sociedade e, nesse
processo, as noções de “centro” e “periferia” se reconfiguram uma na interface da outra. Hall
destaca que é, justamente, na forma distinta de representações das sociedades colonizadas e
seus “outros” que há uma ruptura entre os conceitos de colonialismo e pós-colonial. No pós-
colonial, papéis demarcados no colonialismo como “colonizador e colonizado”/ “metrópole e
colônia” são implodidos e assimilados num conjunto cindido. Contudo, é essencial frisar: a
posição de Hall é crítica, não celebrativa, diante das implosões binárias, de maneira que ele
recobra o reconhecimento das desigualdades no campo político, que se verifique o “abismo”,
em termos de poder político, entre o “Ocidente e o Resto”. Afirma: “Devemos manter em
jogo as duas pontas da cadeia simultaneamente – sobredeterminação e diferença, condensação
e disseminação – para que não caiamos em um alegre desconstrucionismo e na fantasia de
uma impotente utopia” (2003, p. 112).
Ao demarcar que o pós-colonial significa implosão de antigos binarismos, o autor
define mais um traço característico do termo enquanto “período histórico”: representa um
momento que não seria, em suas palavras, um “estágio de época” em que tudo se ressignifica
por completo, pelo contrário: trata-se de um novo momento que se faz inédito exatamente por
ser pautado por uma transformação de natureza política (independências) que,
paradoxalmente, está ainda permeada por vestígios das antigas referências socioeconômicas,
porque não há um total rompimento com o passado colonialista. É, assim, outro período
histórico do presente, que se embate com um mesmo período histórico do passado, tratando-se
de um choque do agora com mesclas do ontem, de um fluir de uma “novidade” repleta de
itens que poderiam estar nos “museus”.
47
Tal caráter de “período histórico”, no qual os binarismos não podem mais existir,
atribuído por Hall ao pós-colonial é pinçado aqui como referencial para submeter os romances
de Camus e Daoud à análise comparativa em proposição. O estrangeiro foi escrito por um
escritor colono francês em 1942, portanto, no período ainda colonial argelino, já O caso
Meursault, foi projetado por um argelino em 2013, no período pós-colonial, e tal separação no
tempo do que é colonial e pós-colonial é um dado relevante para se perceber como as
narrativas revelam suas diferenças nos modos de representar os sujeitos e os espaços criados
na ficção. Na obra de Daoud (analisada especificamente no capítulo 4), revelam-se paradoxos
identitários, confluência de pensamentos dissonantes entre si que são marcas bastante
elucidativas das implosões das polarizações identitárias verificadas no passado do
colonialismo. O romance camusiano do período colonial traz, por exemplo, alguns binarismos
que Kamel Daoud implode em seu romance-tradução pós-colonial de O estrangeiro (conceito
explicitado no capítulo 4). O narrador daoudiano, por exemplo, é um argelino que se
comunica em francês, mas que povoa seu relato de expressões árabes (aqui se revelam as
tensões da dominação francesa na colônia, que inclusive imprime “vestígios” da língua
europeia nas ruas argelinas pós-independência entre letreiros comerciais, e a posição do árabe
como idioma oficial local); o próprio romance é, ao mesmo tempo, um ato contraditório de
reverência e crítica ao clássico de Camus, ou seja, o romance de Daoud é o que eu chamo de
“romance pós-colonial” justamente por, nos termos de Hall, implodir binarismos e revelar
contradições, ambivalências e conflitos, traços que são apontados e analisados nos próximos
capítulos desta pesquisa (especialmente no Capítulo 4), mas sublinho, desde já, que tais
contradições vistas em Daoud não simbolizam um simples encontro de culturas, como se estas
convivessem de modo celebrativo e harmônico. Fujo, aqui, a tal conotação fantasiosa de uma
“impotente utopia da diferença”. As contradições que vigoram na obra de Daoud são
encaradas como pontos de tensão entre Argélia e França, bem como são vistas como inerentes
à memória do narrador argelino por ele compartilhada da colonização e seus efeitos no
período pós-colonial. As obras de Camus e Daoud, então, se comparam no entendimento de
que “dançam” num gesto de encontro e também de disputa, de afeto e desdém, de
reconstrução e de destruição, de dependência e de transgressão. Daoud, entendo, disputaria
com Camus; Haroum, narrador Daoudiano, disputaria com Meursault modos de representar,
através da ficção, a Argélia, a França, as memórias da colonização, da Guerra da
independência, as projeções de sagrado e religiosidade (cristã e islâmica), de família, de
sujeitos (homens e mulheres), de geografia, de literatura. Há um “parentesco” entre os dois
48
romances, mas que está atropelado, também, pela intriga, pela batalha, pelo poder de
reformular, matar e fazer renascer sentidos das nações na ficção.
O pós-colonial para Hall, entendido como período histórico, além da conotação de
quebra de paradigmas binaristas vigentes durante o período colonial, apresenta também a sua
configuração político-econômica: não há mais um controle direto da metrópole, emergindo
novos estados-nação, de modo que se desenvolvam formas econômicas que ofertam o
crescimento do capital local, mas que ainda se atrelam às relações com a metrópole, numa
conjuntura capitalista de dependência neocolonial, a qual convive com a ascensão do poder
das elites locais que passam a centralizar e gerir os efeitos paradoxais da subalternização
econômica (MEMBE, 2019)13. É exatamente nessa “nova” configuração socioeconômica do
período pós-colonial que uma faceta brota como a contradição que caracteriza o período: “o
colonial não está morto, já que sobrevive através de seus efeitos secundários” (HALL, 2003,
p. 110).
Este cenário de contradições, de acordo com o jamaicano, vai revelar a transformação
central oferecida pelo pós-colonial: as identidades e os sujeitos deixam de funcionar numa
lógica essencialista, sendo reconfigurados, através de formatos descentrados, alcançando
outras posições nos discursos. É nesse panorama de reformulação discursiva que o que se
cristalizava como a própria imagem do Ocidente e do próprio processo de colonização se
desconstrói e se refaz em novas narrativas. O período pós-colonial, segundo Hall, propiciou
que se relesse o processo de colonização como um fenômeno em que o papel europeu não se
fez como único e dominante. Esta seria a versão contada a partir apenas do interior dos
parâmetros europeus, que se põem como universalizantes. A crítica pós-colonial, ao propor
uma descentralização dessas narrativas europeias, provoca o que Hall entende como uma
verdadeira “interrupção crítica na grande narrativa historiográfica”. O que se muda na rescrita
da história nesta perspectiva? Explica Hall:

A colonização não foi um subenredo local ou marginal de uma história maior (por
exemplo, da transição do feudalismo para o capitalismo na Europa Ocidental, esse
último se desenvolvendo “organicamente” nas entranhas do primeiro). Na narrativa
reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar e a importância de um
amplo evento de ruptura histórico-mundial (2003, p. 112).
Essa releitura dos significados da colonização para um fenômeno de efeitos mais
amplos desloca o seu sentido de apenas um sistema de dominação europeu de outras
localidades do mundo, para uma atmosfera em que se reconhece a sua ocorrência como “o
processo inteiro de expansão, exploração, conquista, colonização e hegemonia imperial que

13 Sobre a atuação das elites locais nas ex-colônias africanas, ver Membe (2019).
49
constituiu a face mais evidente, o exterior constitutivo, da modernidade capitalista europeia e,
depois ocidental, após 1942” (2003, p. 112-113). Nesse movimento de “interrupção crítica da
historiografia”, o que se releva é o descentramento da Europa, a destruição da sua imagem
como “potência-ilha”, para se notar, ineditamente, que é somente na relação com as suas
“periferias” que seu projeto hegemônico de modernidade capitalista se faz. Assim, a História
da modernidade ocidental é também a História das periferias, de mesmo modo que a História
das periferias na colonização e no pós-colonial é também uma História atravessada por esse
projeto capitalista europeu.
A observação de Hall contribui para este estudo na medida em que, a partir dessa
reformulação histórica, é possível investigar criticamente em O estrangeiro, de Camus, uma
representação da Argélia enquanto espaço narrativo, não apenas como uma periferia
colonizada da França, ilhada, distante, meramente um território gerido e dominado além-mar,
mas, com Hall, é possível analisar o texto de Camus como uma obra representativa
ficcionalmente de uma periferia magrebina, a qual propiciou que a França se tornasse a
França que foi pelos idos de 1942 (data de publicação do romance). Em outros termos, o
romance de Camus se passa na Argélia e, como tal, pode ser um corpo imagético da própria
França também, bem como das relações conflitantes e intercambiantes entre os dois países. É
dialogando com tal perspectiva, que Edward Said, em Cultura e imperialismo (1995) já
apresentava sua análise da obra de Camus no ensaio “Camus e a experiência colonial
francesa”, do qual bebo algumas ideias centrais e teço, igualmente, algumas observações
suplementares no capítulo 2 adiante. Assim, o “aqui” argelino, projetado pelo discurso do
narrador Meursault, pode ser lido como o “lá” francês, sendo, do mesmo modo, o “lá” francês
passível de ser lido como o “aqui” argelino, não havendo mais posições fixas dos espaços
narrativos quando interpelados pela ideia de que o global e o local se entrefazem nas suas
diferenças e atravessamentos conflitantes nas relações de poder que moldam o projeto de
modernidade europeu.
Na mesma linha de pensamento, as conjecturas de Hall possibilitam reconhecer os
espaços na obra de Daoud nesse mesmo paradigma em que o “aqui” e o “lá” têm sua
polarização implodida. Quando é lida a Argélia de 2013 em Daoud, é lida também a Argélia
colonial, é lida, também, a França de 2013 e mesmo a França colonial, uma dentro da outra.
Os significados das nações cujos papéis são de (ex)colônia e (ex)metrópole se refazem, se
permutam, se encontram na mesma posição, e em posições diferidas simultaneamente. O
modo de perceber, assim, os países na interrupção crítica historiográfica do pós-colonial,
50
faculta à crítica literária pós-colonial a uma reorientação nos olhares sobre os espaços
narrativos, qual seja: há a presença da periferia na metrópole e da metrópole na periferia.
Nessa visão, em Camus, a Argélia é a Franca e a França é a Argélia, entretanto este gesto
equiparado não está pautado numa igualdade de posições de poder, mas se inscreve num
espaço de disputa de poderes, no qual, ainda, a hegemonia europeia submete as periferias a
um estado permanente de tensão e desequilíbrio entre subjugação e resistência. Este estado é
vivido nas relações culturais entre os povos e na forma como a literatura escreve as imagens
do passado e do presente.
A reflexão acima ganha corpo para se ampliar na seguinte fala do pensador jamaicano:

A noção de que somente as cidades multiculturais do Primeiro Mundo são


diasporizadas é uma fantasia que só pode ser sustentada por aqueles que nunca
viveram nos espaços hibridizados de uma cidade “colonial” de terceiro mundo
(2003, p. 114).
O trecho aponta a importância de: a) serem percebidas as periferias do Terceiro
Mundo, isto é, a relevância de focalizá-las em vez de protagonizar-se apenas o centramento
europeu, e isso é uma novidade trazida pela tomada de posição presente na “interrupção
crítica” do pós-colonial; b) de se perceber na condição de “fantasias” certas narrativas que
representam as relações entre as nações no contexto da globalização; c) de se reconhecer que
a diáspora e a movimentação dos corpos, dos produtos, das ideias não se dirigem em um
único vetor (da periferia para o centro) e num único tempo pós-colonial, isto é, os espaços das
periferias estão impregnados dos símbolos da Europa e seus processos de exploração,
violência colonial, sendo, pois, espaços de tradução cultural e de transculturação. É essa
conjuntura que grita o romance de Kamel Daoud no trecho citado na abertura do presente
capítulo em que o narrador Haroun faz questão de assinalar a presença dos letreiros em
francês nas fachadas das construções desgastadas das ruas de Oran, Argélia 14. Caminhar pelos
espaços periféricos sob a luz da crítica colonial é reler o próprio conceito de diáspora, sendo,
então, capaz de notar as peculiaridades e pluralidades de formas de manifestação no
“Ocidente e no Resto”. É nesse sentido que nos capítulos seguintes de análise dos romances
que a prática diaspórica pretende ser analisada: sendo plural e revelando relações de poder
quanto aos espaços diversificados.
Hall bebe em Peter Hulme para reafirmar que o pós-colonial indica duplamente: a)
uma dimensão temporal (um momento passagem de colônia à nação independente/ de
metrópole a ex-metrópole); b) uma dimensão teórica em que se constrói um paradigma de

14 O tópico é desenvolvido no Capítulo 4.


51
crítica das narrativas coloniais e suas formas de produção de saber. Existe no pós-colonial
enquanto campo teórico a tendência de recusar as formas de representação e de perpetuação
do poder-saber coloniais. Entretanto, Hall assinala que tal veia questionadora não se pauta por
uma simples oposição no sentido de que com o pós-colonial se construiria num regime de
produção de conhecimentos sem conflitos e sem poder. Na realidade, essa “outra forma” de
criar saberes passa por um exercício de desconstrução-construção caracterizado, nos termos
buscados em Derrida, daquilo que seria a marca de todos os “pós”: como “dupla inscrição”.
O que é possível assinalar no pensamento de Hall é que, em meio à dimensão teórica
do pós-colonial, cabe observar a sua visível dimensão estética. Não é só no campo da crítica e
da teoria que se recusam as representações coloniais, mas na própria arte, e, aqui, chamo
atenção para a própria literatura que, como campo de produção de conhecimento e memória,
exercita, na sua natureza estética, o ensaio de reconstrução das narrativas romanescas
clássicas do período colonial. A obra de Daoud é, então, um romance que movimenta esse
esforço de reescrever o clássico camusiano, o fazendo como uma “dupla inscrição” de
produção de saberes. Dupla, porque ambivalente e contraditória por ao mesmo tempo em que
refuta a narrativa central de Meursault, parte dela própria como referência e como corpo de
desconstrução e reconstrução. É nesse sentido de “dupla inscrição” que é encarado o romance
de Daoud na forma de romance pós-colonial (CASANOVA, 2002), uma tradução paródica
pós-colonial (vide capítulo quatro).
Desse modo, quando Hall define: “O pós-colonial representa uma resposta a uma
necessidade genuína, uma necessidade de superar a crise de compreensão produzida pela
incapacidade das velhas categorias de explicar o mundo” (2003, p. 124), podem-se incluir
dentro dessas categorias as formas estéticas de produzir literatura e arte. O conto, o romance,
por exemplo, que se estabeleceram como categorias narrativas sólidas da literatura ocidental,
ensaiam diálogos com outras formas estéticas de realização no pós-colonial. Escritores das ex-
colônias tateiam sua produção romanesca com novos rituais. O ritual de Daoud, como
argelino, isto é, como autor inserido no período pós-colonial e porta-voz da literatura da ex-
colônia que deseja repensar a própria memória e a memória literária ocidental que se impôs
como referência cultural, é mais que escrever um romance, é escrever um romance
desconstruindo, ao mesmo tempo que reconstrói, uma obra clássica da Literatura francesa.
Nesse movimento, que aqui chamo de “tradução paródica pós-colonial” (vide capítulo
quatro), os saberes sobre o texto de Camus (retomado e reverenciado), sobre a memória da
52
França e da Argélia passam também pela recusa, pelo questionamento, pela crítica e pela
reformulação de novos saberes e narrativas.
Realizando um balanço das contribuições de Hall neste ensaio clássico dos
fundamentos dos Estudos Pós-coloniais, “Quando foi o pós-colonial?”, é possível afirmar que
a sua contribuição mais significativa é, a partir da sua veia questionadora, definir traços que
desenham uma concepção do pós-colonial como um fenômeno mais amplo do que aquilo que
conseguiram seus contemporâneos críticos. Sintetizando, o jamaicano avança em seu tempo
ao delimitar que: a) o pós-colonial não simboliza um fechamento absoluto do regime colonial,
sendo, na verdade um novo período que convive com os efeitos do passado colonial,
reverberando as suas cicatrizes irreversíveis; b) O pós-colonial é uma categoria descritiva, não
avaliativa; c) O pós-colonial é um período no tempo histórico que marca a independência
política das colônias, a qual ainda colide com a permanência de disputas iniciadas mesmo na
colonização, mas também é uma tomada de posição na produção do saber, sendo, igualmente,
visto como categoria teórico-crítica, alimentando um campo de conhecimento que se inaugura
e se chama “Estudos pós-coloniais”, voltado para “perturbar” uma ordem e uma hegemonia
das grandes narrativas do Ocidente. São perturbadas narrativas ocidentais sobre “o resto” do
mundo invadido e explorado no processo de expansão do projeto de modernidade europeu,
bem como é perturbada a própria imagem narrativa da Europa sobre si mesma, na medida que
se modificam as formas de se encarar a presença das periferias no processo de globalização,
sendo estas também passadas a serem vistas como parte significativa da História do
capitalismo e da modernidade europeia; d) O pós-colonial pode ser alimentado enquanto
categoria teórica, reconfigurando, assim, a maneira de se encarar os processos diaspóricos,
entendidos não só no sentido de um fluxo de ex-colonos que se dirigem à metrópole, mas
também no sentido de que as cidades de Terceiro Mundo estão impregnadas da presença
ocidental, seguindo uma lógica de trocas culturais marcadas pela desigualdade, conflitos,
transculturação e tradução cultural, muito longe do mito de uma “utopia da diferença”; e) O
pós-colonial implode antigos binarismo úteis às narrativas coloniais e revela espaços e
sujeitos cada vez mais atravessados pela ambivalência e por traços de ruínas e reconstruções
“palimpsesticas”. Sejam as cidades coloniais, sejam as metrópoles, são estes espaços de
cicatrizes da História imperialista, de modo que todos, ainda que diversamente, estão
“feridos”, atingidos pelo irreparável encontro bruto de culturas que disputaram e ainda
disputam poder (pela terra, pela língua, pela cultura como um todo, pela exploração material
dos corpos ali envolvidos nesse espetáculo de barbárie e encontros simbólicos).
53
Nesse apanhado sobre as contribuições de Hall, é importante suplementar suas
conclusões, apontando também que o pós-colonial pode ser lido ainda como um campo de
energias que fomenta além de tudo novas práticas estéticas na arte e na literatura. Escritores
em diálogo com o Pós-colonial têm modos peculiares de escrita, que dançam com as tensões
particulares desse “quando” com os quais travam contato. Tal visão revela que Hall
vislumbra no Pós-colonial a sua faceta poética. Quando Hall propõe o pós-colonial como um
campo de estudos, um sistema epistemológico que questiona a epistemologia eurocentrada e
iluminista vigente, está destacando a sua natureza de sistema de produção de conhecimento
sobre a História, daí o termo por ele escolhido para designar a prática epistemológica do pós-
colonial como “interrupção crítica na grande narrativa historiográfica”. O que seu pensamento
também acrescenta é que, especificamente, também se olhe para essa reconfiguração na
produção do conhecimento além do construto historiográfico e que se navegue por uma
exploração do pós-colonial como um construto estético, poético.
Nessa perspectiva, criar literatura em face do contexto pós-colonial é também uma
interrupção crítica na tradição literária e suas seleções e combinações típicas dos atos de fingir
ou o que é fictício no texto ficcional (ISER, 2002), isto é, é expandir, alterar, quebrar, costurar
formas de tecer o narrar na ficção. É nesse sentido que o romance de Daoud, O caso
Meursault, amplia, funde, ressignifica formas estéticas e identidades já consolidadas numa
tradição narrativa ocidental para produzir um “novo” corpo estético, o qual sem deixar de
dialogar também com o corpo estético hegemônico europeu, recria outros significados e
funções diante das categorias narrativas, ou seja, para sujeitos narradores, narratários, espaço,
tempo, enredo, etc, e que, portanto, por atuar neste movimento criador de uma “novidade”
aparatada no jogo com a tradição, rompendo no movimento paradoxal de retomá-la, é que se
torna mais preciso afirmar aqui que sua obra instala, na realidade, a produção de um “outro”
corpo estético, um corpo estético “outro”. Seria um “outro formato”, que, por sua vez, une o
já dito e que reinaugura outras formas de se escrever na literatura contemporânea argelina,
bem como de refundir a memória do país através da escrita. No capítulo 3, essa forma que
Daoud põe em prática em sua ficção será com especificidade definida e discutida, como já
mencionado acima, como “Tradução paródica pós-colonial”, uma seleção estética que
sobrevive atravessada pelas posições políticas e pelas relações de poder entre França e Argélia
nas suas tensões culturais do passado e do presente.
54
2.3 INOCÊNCIA MATA: O UNIVERSAL, A QUALIDADE E O CÂNONE
IMPLODIDOS

“Localizar o pós-colonial” é um dos ensaios de Inocência Mata (2016) que oferece


ideias suplementares aos fundamentos do campo dos Estudos pós-coloniais consolidados
inicialmente pelo pensamento de Edward Said e Stuart Hall discutidos acima. Nele, a autora,
que disserta de seu lugar de estudiosa africanista, voltada para as literaturas de língua
portuguesa, contesta certos posicionamentos críticos que cristalizaram as obras dentro de
conceitos fechados e eurocentrados, como: “literariedade”, “cânone”, “literatura universal”,
“qualidade literária”. Mata segue desvelando criticamente o que significam tais conceitos em
seus bastidores nos jogos de poder de uma, em suas palavras, hegemônica “biblioteca
colonial”. Seu exercício é ampliador e reconfigurador dessas categorias e, portanto, aqui
merece destaque e discussão.
O primeiro ponto significativo a destacar em Inocência Mata é a sua leitura dos
Estudos pós-coloniais como uma cadeia crítica “alternativa”, em plena década de 90 e fins do
século XX, aos estudos mais limitados ao estético imanente dos textos literários, que não
procuravam assinalar suas veias políticas, como se estas não fizessem parte da obra ou do
objeto do exercício teórico-crítico. Nas palavras da autora, os Estudos pós-coloniais
permitiram a alternativa, antes inédita, de buscar na literatura outras questões pertinentes, na
sua opinião, ao tempo/mundo contemporâneo. A teoria tradicional, segundo ela, dedicou toda
uma desatenção a tais questões, consolidando o gesto teórico-crítico como basicamente um
ato de versar sobre a “literariedade” nas obras, de enaltecê-las pelas suas configurações
estéticas, esquecendo-se de que a polissemia própria da literatura – “linguagem carregada de
significados ao máximo grau possível” (Pound, 2006) – pode demandar outras alternativas de
leitura. Há pistas nos textos que não se limitam a interpretações imanentistas. As alternativas
de investigação de sentidos fornecidas pelo novo campo crítico dos estudos pós-coloniais
estão presentes no depoimento da autora:

Permitiu-me enquadrar a instituição da Literatura e suas instâncias de


legitimação (por isso é grafado com um L maiúsculo), no mundo
contemporâneo, discutindo relações de poder entre as várias categorias
analisáveis nas interações sociais que se estabelecem decorrentes das
atividades políticas caracterizadas pela diferença – seja de etnia, raça ou
classe, seja de gênero ou orientação sexual -, em configurações textuais que
uma análise literária, exclusivamente focada na arquitetura dos códigos
técnico-compositivos, raramente contempla (2016, p. 32-33).
55
O que Inocência Matta demarca ao “localizar o pós-colonial” como um campo de
estudos literários que traz alternativas de leituras ainda raras para o quadro de abordagem
mais esteticista dos fins do século XX é também o seu caráter interdisciplinar. Ela reconhece
que o campo é, sim, tributário dos estudos linguísticos associados à criação da Teoria literária
ainda no início do século XX (Formalismo, Estruturalismo, Nova Crítica), mas assinala a sua
iniciativa de tanto ampliar o objeto de estudo, quanto alargar criticamente as fronteiras entre
as disciplinas, ativando o cruzamento de epistemologias várias. O resultado de tais ampliações
é a possibilidade de questionamento: a) do cânone “como corpus de obras que têm o seu
poder regulador pelo seu ‘percurso’ no círculo de leitores (daí poderem erigir-se a modelos de
estabilização do sistema literário)” (2016, p. 36); e b) dos próprios referenciais de crítica
literária hegemônicos responsáveis pela desqualificação das produções que não apresentam os
valores estipulados pela tradição. Segundo Mata, a contribuição de nomes clássicos dos
estudos pós-coloniais, como Said, Hall, Bhabha, Quijano, Mignolo, Spivak funcionam nessa
perspectiva de alargamento de fronteiras, sendo todos originários dos estudos de Literatura e
cultura.
Inocência Mata observa o movimento da crítica tradicional e eurocentrada de avaliar
os escritores africanos sob o signo da “falta”, taxando-os como artistas menores, de obras
menores, condenando-os pelo “pecado” de não criarem obras sob os valores apontados pelo
paradigma crítico e literário ocidental. A esse respeito, a autora coloca que tais pareceres que
se estabelecem como aportes críticos de literatura, na verdade, lhe parecem preconceitos
fundados numa visão hierarquizante de cultura, da qual decorrem classificações usuais no
campo dos estudos críticos, ativadoras de segregação e da manutenção da hegemonia crítica e
formal da tradição literária ocidental, quais sejam: “culturas superiores e inferiores”/ “povos
civilizados”/ “alta literatura”/ “literatura universal”. Esta observação remete à disputa de
poder entre os campos da crítica: uma tradição interpretativa que trabalha para a manutenção
de um cânone eurocentrado, às custas da desqualificação das demais produções africanas; um
campo de questionamento, que é a epistemologia colonial, desse mesmo cânone e dos
fundamentos que o balizam, sendo estes também produto do imperialismo e seus alicerces
ideológicos, como o racismo. Evidenciar essa disputa, como é feito pela autora, é importante
para que críticos e escritores entendam suas produções nesse campo de forças em luta.
A presente pesquisa se localiza, pois, no campo do questionamento do cânone, na
medida em que estuda a literatura contemporânea argelina, voltada não para a sua “falta”
diante do clássico camusiano, mas se ocupando das suas amplas possibilidades de
56
alargamento dos sentidos face a esse texto de referência ocidental, passando pela sua
capacidade de oferecer outros olhares sobre a Argélia, sobre a França, sobre as literaturas dos
dois países e sobre suas relações políticas travadas ao longo do tempo desde a colonização até
as últimas tensões atreladas à questão da imigração, das práticas islâmicas, dos atentados
produzidos pelo “Estado islâmico”, de como a problemática de gênero se instala nesse jogo. A
obra de Daoud, na realidade, é vista, aqui, como uma potência para que se realinhem os textos
no cânone, um realinhar dos valores dos sujeitos ficcionais das duas obras perante uma
tradição da leitura crítica. Do mesmo modo, a categoria de “literatura universal”, tão
facilmente atribuída à produção camusiana pode ser, aqui questionada sob a seguinte
formulação: O estrangeiro é reafirmado como um texto “universal”, mas que sentido tem, de
fato, assumido a palavra “universal”? O universal aí funcionaria como uma verdade global
experienciada por todas as comunidades ou como “imposição de uma referência de valores
ocidentais que se querem universais no campo da crítica?” A questão é abordada no capítulo
três, mas por ora se registra que tal questionamento perturbador de uma ordem canônica e
conceitual já estabelecida se torna possível a partir da “interrupção crítica” que simboliza o
pós-colonial (Hall, 2003) e seu alargamento teórico interdisciplinar.
Inocência Mata celebra a “virada” na prática de análise literária provocada pelo caráter
interdisciplinar dos Estudos Pós-coloniais, destacando o que ela considera como um dos mais
significativos resultados dessas articulações entre as disciplinas: a construção de sentidos no
texto dentro de uma crítica atenta aos “diferentes lugares de adentramento textual” (2016,
p.35). O que entendo como “lugares de adentramento” na sua fala, olhando para o romance O
caso Meursault, é: a preocupação em buscar sentidos que passem por variadas
problematizações dos significados textuais, ligadas a múltiplos campos de saber, na interface
dos sujeitos plurais que estão dentro do discurso, bem como dos que com ele dialoguem.
Particularmente sobre os sujeitos discursivos, há vários “lugares” de criações de sentidos,
como por exemplo, o ponto de vista argelino sobre a história de Camus, sobre a Argélia, sobre
a França, sobre os sujeitos e identidades francesa e argelina que se interpelam; o lugar não só
do argelino, mas do “argelino irmão” do árabe assassinado em Camus de recontar o que
contou Meursault a toda uma tradição durantes décadas. Outros lugares de “adentramento”
passariam pelas interpelações: como a obra projeta o sagrado, as religiosidades cristã e
islâmica, a imagem dos povos argelino e francês, a apropriação do espaço e das cidades no
período colonial e pós-colonial apresentada pela narrativa e suas seleções, a questão pós-
57
colonial na interface com os problemas de gênero. Tais “adentramentos” estarão dispostos no
capítulo 3.
Enfim, depois do alvorecer de uma perspectiva pós-colonial, cuja natureza analítica se
embasa numa série de articulações disciplinares, a crítica textualista imanentista, para Mata,
se torna limitante das potencialidades interpretativas por ignorar a composição da obra em
face de um contexto mais amplo que se constitui da sua interação com a sociedade e a
política. Uma limitação contra a qual se opõe a lógica dos Estudos pós-coloniais no seu
alinhamento com a reflexão dos textos como amplos atos de cultura atravessados pelas
relações de poder na interface colonial/ pós-colonial. Mata, no seu ato de caracterizar a
abordagem pós-colonial pela sua tônica interdisciplinar, alerta para a necessidade de um
reagir à visão superficial de que tal contorno epistemológico plural e inter-relacional seria
“uma abordagem culturalista que transforma o texto em pretexto” (2016, p. 35). O contexto
forma as obras numa relação dialógica, afirma a autora, a qual recorre à voz de Todorov para
justificá-lo. O crítico, um dos principais nomes dos estudos literários (formalistas russos do
século XX) já assinalara em A literatura em perigo (2010) a necessidade de aliar os estudos
linguísticos às abordagens mais contextuais para uma leitura mais rica das produções, de
modo que analisar as conjunturas culturais que interagem com os aspectos estéticos da obra
sob plataformas disciplinares diversas e interligadas, o que é o exercício da crítica pós-
colonial, não se trata de usar “o texto como pretexto”, mas sim, de analisar o que é e como se
forma o próprio texto. O contexto não estaria “fora” do texto, mas nele, na sua constituição
estética em diálogo com o campo histórico.
Quando os Estudos pós-coloniais problematizam pontos como sujeito produtor e sua
voz hegemônica ou periferizada, sujeitos representados e suas identidades complexas, seus
corpos, etnias e sexualidades, o tempo histórico e suas quebras de linearidade, a conjuntura
econômica da globalização, os espaços em fronteiras de culturas em fronteiras no campo de
um panorama pós-colonial, o texto não é, pois, tornado um pretexto. O texto, na verdade, é,
aí, lido como um tecido costurado no alinhavar desses pontos contextuais. Assim, na
abordagem pós-colonial, há implícita uma concepção de texto particular: o material
linguístico e estético é também o material contextual. Não existiria uma camada linguística
separada da camada contextual. Uma é e está na outra.
Nesse sentido, a leitura pós-colonial não é entendida como uma descaracterização do
texto enquanto objeto precípuo de estudo, como um ato que o pretere em nome de elementos
externos, mas, sim, é encarada como uma abordagem portadora de um olhar peculiar sobre
58
ele e sua finalidade nas produções de significados na cultura, um olhar peculiar que se coloca
como método crítico em divergência a muitos outros filiados a outras correntes críticas, o que
é perfeitamente compreendido como um gesto de “saúde” frente à produção de conhecimento
sobre o mundo e à literatura, a qual precisa ser adentrada, de fato, pelas múltiplas
possibilidades metodológicas de investigação. Esse é um dos pontos de oferta mais
significativos da produção e gestão do saber: a pluralidade de visões, de possibilidades, por
ser isto o que retira a humanidade do campo inócuo das repetições e unicidades limitantes
diante dos fenômenos em estudo e suas várias demandas de compreensão simbólica.
Pluralizar metodologias é, nesse âmbito, potencializar as produções analíticas.
O artigo da crítica africanista “localiza o pós-colonial” a partir das implosões que a
abordagem realiza em formatos cristalizados sustentados, anos a fio, por boa parte das
correntes críticas de então: a) a separação entre os campos de conhecimento; b) a aplicação de
conceitos como “literatura universal” e “qualidade” do texto literário. Ela argumenta que o
que se coloca como um “alto valor” numa literatura dita “universal” é, na verdade, resultado
de preconceitos fundamentados em instituições como a Academia e acrítica tradicional, que
insistem em fortalecer a crença de que apenas aqueles textos que reproduzem a tradição
ocidental e com ela dialogam seriam passíveis de serem considerados “universais’ e, portanto,
dotados de valor e merecedores do rótulo de “alta literatura”, “texto com qualidade literária”.
Cito o parecer crítico de Mata:

A ideia de que a “influencia” de um escritor de uma “alta literatura” é um passaporte


para a qualidade literária, como se o escritor não tivesse validade fora da
comparação com o escritor Norte ocidental, como certa crítica acadêmica sugere,
reifica o lugar subalterno de literaturas dos países africanos: é preciso não esquecer
que, e resgatando a epígrafe deste segmento do ensaio, a Europa funciona como uma
referência silenciosa no conhecimento histórico em si e isso é comumente óbvio
(2016, p. 38).
O que a autora revela é que tais classificações são, em real, formas de “fechar” o
campo literário aos ditames de valores hegemônicos de uma tradição eurocentrada, de modo
que os Estudos pós-coloniais surgem como uma quebra dessas classificações por, entre tantos
outros “atos perturbadores” da ordem colonial, tornarem objeto de estudo, sob uma
epistemologia interdisciplinar atenta às forças políticas que compõem a história do
imperialismo e o projeto de modernidade europeia, autores e textos que nem sempre
reproduzem acriticamente esse padrão europeu, mas com ele dialogam em exercício
contradiscursivo, trazendo, também, valores locais de suas terras subalternizadas, fundindo e
rompendo com padrões estéticos cristalizados. Esse tipo de ficção remarca a africanista, é
frequentemente julgada como uma “literatura menor”, muitas vezes não recebendo atenção
59
das editoras, verdadeiras agentes reguladoras da “qualidade” para uma publicação. Dentro
dessa lógica, os escritores africanos que recebem prêmios na Europa, geralmente, são aqueles
cujas obras se aproximam cada vez mais dos valores literários eurocentrados, sendo a
passagem pelo Centro, a verdadeira baliza da “qualidade” literária, ou seja, “qualidade”
literária não seria uma categoria ligada a uma qualidade textual intrínseca à obra, mas, sim,
diria respeito a como a obra está próxima e reverencia padrões europeus. Os sistemas que
regem as classificações de “universal” e de “textos de qualidade” são, assim, atravessados
pela relação de poder que as metrópoles exerceram sobre a cultura das colônias, pela relação
de poder, marcada por trocas desiguais, entre o Centro e a periferia no período pós-colonial.
Tais observações implodem as bases que fundamentam o cânone literário, gritando que
aquelas obras selecionadas como “referência de valor” assim o são não porque
“inquestionavelmente” têm valor em absoluto, mas porque têm valor por representarem o
Ocidente. A crítica que fundamenta tais balizas é uma crítica guiada por uma gestão
colonizadora dos valores. Entender isso é questionar tais “paradigmas coloniais” e propor um
outro tipo de leitura que pode se desprender dessas balizas centralizadoras: uma leitura pós-
colonial, propositora de, nas próprias palavras de Hall (2003), uma “interrupção crítica na
historiografia” do cânone literário. A abertura do cânone, a sua implosão junto à
desconstrução dos bastidores das premissas da crítica que procura o “universal” e o texto de
“qualidade” são, de fato, algumas das contribuições mais significativas e transformadoras dos
estudos da Literatura nas últimas décadas oferecidas pela abordagem pós-colonial, a qual vem
para transformar ritos de instituições centralizadoras como a Academia e o mercado editorial.
A transformação dos ritos hegemônicos, base dos Estudos pós-coloniais, é a
transformação epistemológica. Movimentados, sobretudo, por intelectuais africanos, latino-
americanos, intelectuais de todas as periferias, ainda que travem relações diretas com o
conhecimento produzido nos Centros e suas universidades, os estudos pós-coloniais provocam
um questionamento epistemológico e propõem alternativas para a produção do saber, a qual
ganha a possibilidade de não apenas reproduzir lógicas eurocentradas, mas repensá-las,
suplementá-las. Em “La opción descolonial” (2008), Walter Mignolo traz uma premissa chave
do questionamento pós-colonial: os europeus inventaram a filosofia, mas não inventaram o
pensamento. Nesse sentido, questionar a “biblioteca colonial” é um ato epistemológico e
político. Cito Mata:

“a colonialidade do poder” é, hoje, não apenas política e econômica, é uma


colonialidade global, epistemológica sobretudo. E para contrariar essa hegemonia,
urge proceder à contextualização na/da produção do conhecimento a fim de que se
60
busque traduzir outras formas de racionalidade para a compreensão de fenômenos
socioculturais contemporâneos, actualizada através da análise das relações de poder
entre realidades e objetos culturais, vistos como socialmente construídos e
historicamente percepcionados pelos estudos culturais (2016, p. 41).
Tais “outras formas de racionalidade” tornam inoperável a ideia de “história humana
universal, a qual está baseada, de acordo com a autora, na confusão que iguala
inadequadamente “difusão” e caráter universal. Torna-se universal, nessa dinâmica, aquilo
que tem potencial político de ser difundido como universal, isto é, o ocidental, movimento de
difusão que atropela as histórias locais, as diversidades e as diferenças culturais que podem
gerar outras narrativas historiográficas. A difusão, nesta acepção, é, então uma negação,
estando na base do que Lander (2005) nomeia “colonialidade do saber”.
Elucidada a tarefa epistemológica da desconstrução das histórias universais, Mata
contesta, contudo, a visão maniqueísta a respeito dos Estudos Pós-coloniais que o definem
limitadamente como “o privilegiamento do questionamento da modernidade hegemônica, ou
da substituição de conceitos científicos ditos universais por outros locais, decorrentes de um
conhecimento etnográfico” (2016, p. 43). Ela defende ser razoável enxergar o pós-colonial
como mais do que uma vertente de atenção à prática narrativa de comunidades
subalternizadas, podendo ser vista de maneira mais ampla como uma “epistemologia da
diferença e da alteridade” (2016.p.43). Assim, torna-se uma epistemologia, que em vez de
ratificar um movimento unificador e apagador das diferenças através das narrativas
universais, revela a diversidade, as diversas possibilidades de ser e estar no mundo,
reconhecendo a pluralidade das comunidades e suas múltiplas vozes como passíveis de narrar
e produzir uma literatura a ser estudada. Dessa maneira, “localizar o pós-colonial” é também
fortalecer o fato de que há lugares alternativos de onde se narram outras histórias, de modo
que as geografias da narrativa oferecem alteridades variadas, o que é capaz de desconstruir o
etnocentrismo, que, como diz Quijano (2005), é um dos resultados da política do “sistema-
mundo global”, a qual caracteriza o projeto de modernidade eurocêntrico e negligencia outros
povos e suas literaturas.
A partir das ideias de Inocência Mata, é possível chegar ao entendimento de que
pensar, através desta pesquisa, a obra de Kamel Daoud sob a plataforma da crítica pós-
colonial não se confunde apenas com analisar essa narrativa e firmá-la como um objeto que
deve ser estudado simplesmente por ser originário de uma ex-colônia francesa e, portanto, de
uma região subalternizada. Da mesma forma, a pesquisa não estuda Daoud para investigar
uma “localidade” argelina “purista”, supostamente representada na sua obra; também não para
61
unicamente atacar o valor de obra “universal” que recebeu O estrangeiro, isto é, para por em
xeque a importância do romance camusiano na tradição literária; bem como não procuro
pesquisar para reafirmar que a obra de Daoud seria dotada de uma qualidade acima das
demais, por, particularmente, tematizar as questões locais de seu país em perspectiva
decolonial. Estudo, então, a relação entre Daoud e Camus nos romances elencados, porque
escolho uma abordagem de leitura considerada capaz de pôr em prática o revelar de outras
formas de narrar uma “mesma história”, caso se olhe os diferentes lugares de seus autores e
narradores. O trabalho está em busca das diferenças, das alteridades, das pluralidades de
representações desse lugar Argélia, desse “povo” argelino em sua diversidade, os quais,
irreversivelmente, estão marcados pela relação com a França e os franceses, pela experiência
colonial e pelo modo como toda uma tradição discursiva ocidental construiu a sua imagem. O
presente exercício reflexivo se move para investigar como outras “Argélias” ou outros O
estrangeiro seriam representados a partir de outras posições.
O presente capítulo procurou, portanto, definir como aqui é concebida a crítica pós-
colonial e seus principais pontos norteadores. Entendo que O caso Meursault, de Kamel
Daoud, demanda um olhar crítico que contemple a experiência colonial vivenciada pela
Argélia, e, sendo assim, a crítica pós-colonial se torna uma opção de análise. É, pois, uma
escolha que parte das pistas do texto, mas que também reforça o desejo desta pesquisa de
investigar “o outro lado”, a contraface do romance camusiano mais falado e discutido: O
estrangeiro. Este é um comprometimento também político, uma vez que, de certa forma,
proporciona que a voz argelina seja objeto de estudo e, assim, passível de ser comparada e
experienciada ao lado da voz camusiana, premiada e louvada como uma voz “universal”,
dentro da própria lógica conceitual explicada em Mata (2016). A iniciativa abre possibilidades
de rastreamento de outros significados para o texto camusiano, discutido no Capítulo 3, bem
como de estudo daquilo que se produz na literatura da Argélia pós-colonial contemporânea
(Capítulo 4).
62
3 O CASO MEURSAULT E A CRÍTICA LITERÁRIA DE O ESTRANGEIRO

Sempre que reconstituo essa história na minha cabeça fico com raiva – pelo
menos toda vez que tenho força pra isso. O francês age como se o morto
fosse ele, e conta como perdeu a mãe, fala como perdeu o corpo de uma
amante, em seguida como foi à igreja e constatou que o seu Deus havia
abandonado o corpo do homem, e depois como velou o corpo da mãe e o seu
próprio etc. Meu deus! Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até
a sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi o meu irmão, não
ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? Há uma coisa que me deixa pasmo.
Ninguém, mesmo depois da independência, procurou saber o nome da
vítima, seu endereço, seus antepassados, seus eventuais filhos. Ninguém.
Todos ficaram de queixo caído diante daquela linguagem perfeita, que molda
o ar como um diamante e, diante da solidão do assassino, declararam
solidariedade, apresentando as mais eruditas condolências. ... quem sabe
dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia, uma insolação? ... o meu
irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos. E
então, a partir daí todos se dedicam a tentar provar que não se tratou de um
ato homicida, mas apenas uma insolação (DAOUD, 2013, p. 12-13).
O trecho do primeiro capítulo de O caso Meursault aponta dois aspectos importantes
para se entender os significados questionadores do romance argelino frente à recepção de O
estrangeiro: 1) o narrador sente “raiva” ao reconstituir a história contada por Meursault, isto
é, sua voz se confessa guiada pela emoção e pelo sentimento colérico diante da versão
publicada em livro15, lida e celebrada com sucesso pelos leitores em geral; 2) o narrador fica
“pasmo” com o fato de que durante décadas, aqueles que leem a história de Meursault
continuam apenas se encantando com o estilo do texto e persistem em “esquecer/matar” o
árabe assassinado no enredo camusiano, na medida em que sequer indagam sobre ele, sobre
sua identidade silenciada, voltando-se praticamente todos os esforços de interpretação para o
protagonista assassino, que é, inclusive, visto menos como um criminoso, do que como um
“morto” diante de uma existência pensada sob as lentes de “uma filosofia”, a filosofia de que
o mundo seria “sem sentido” e “absurdo” (CAMUS, 2018a). O romance de Daoud não
explicita o nome de Camus como autor em nenhum trecho, contudo, é possível reconstruir, na
leitura, pelas “pistas” do texto (que se revela permeado pela constante presença do nome do
herói camusiano Meursault) que a filosofia da qual se fala é a camusiana em O mito de Sísifo,
ancorada no conceito de “absurdo”. A obra filosófica de Camus, publicada em 1942 16 e,
portanto, contemporânea ao O estrangeiro, de 1942, foi lida como um análogo filosófico do

15 O romance é metaficcional, trazendo no seu interior o “livro de Meursault”. O personagem camusiano teria
publicado a sua narrativa em uma edição famosa e aclamada pelo público.
16 Sobre a obra, quando viso a remarcá-la por seu ano de publicação, indico a referência de 1942. Contudo,
quando me refiro a seus conceitos e ideias, procuro referenciá-la pelo ano de 2018b, uma vez que a li nesta
edição particular.
63
romance, o que levou ao entendimento, predominante quase sempre, de que Meursault seria o
modelo ficcional do “homem absurdo” e, assim, sua indiferença às repetições e moralidades
da vida (como, por exemplo, viver o luto, amar/casar, não matar, crer em Deus, etc.) seriam
compreensíveis. Nessa perspectiva, “todos”, segundo o narrador daoudiano, tentam provar
com “as condolências mais eruditas” (que aqui podem ser lidas como vindas da crítica
literária e jornalística, demais trabalhos acadêmicos, traduções para o cinema, etc) a tese de
que Meursault é mais uma “vítima” da ausência de sentido do mundo (base filosófica de O
mito de Sísifo) e, assim, da “indiferença” que o toma diante do cotidiano. Seria o personagem,
pois, mais uma vítima “do sol”, do que propriamente um assassino colono francês que deveria
ser julgado pelo ato de matar um homem, no caso, um nativo da Argélia.
Tais leituras da tradição ocidental, para Haroum, ao longo do romance de Daoud,
perdem, no seu ponto de vista de irmão do árabe morto, o senso de “justiça”, tratando
Meursault com indevidas compreensão e solidariedade. Ao chamar a atenção para esses
pontos, Haroum faz um gesto de repúdio a toda uma tradição de leitura que mal se questionou
sobre a ausência de identidade do árabe assassinado, que mal “sentiu” pela morte de um
“árabe”, desconsiderando o fato enquanto aquilo que ele é: um crime merecedor de atenção,
de investigação, de questionamento. Para a crítica erudita de O estrangeiro, resta esta
acusação do narrador daoudiano de que aquele corpo “árabe”, argelino, de seu irmão, dotado,
agora (pós-colonialmente), de nome, Moussa e de uma história familiar, não interessa em
primeiro plano aos leitores do livro que “ficou famoso”, como remarca com certo rancor. Na
sua visão narrativa de quem relembra e reconta a história desse “livro” (aplaudido pelo
requinte estético e filosófico) e que o faz com “raiva”, os leitores não sentiram exatamente
pela morte de Moussa, de modo que o corpo argelino morto não recebe atenção significativa.
Sendo, assim, o corpo passível de luto, de solidariedade, se torna o corpo francês de
Meursault, que mesmo assassino, é reverenciado como um corpo de alguém com relevância,
porque é o protótipo de uma escrita com estilo, uma filosofia questionadora, por sua vez, do
corpo divino e do próprio sentido da vida. Problematizar a “filosofia do absurdo” parece a
Haroum o foco das leituras tradicionais. É nítida a crítica diante da crítica do narrador a
leitores ocidentais (e mesmo àqueles periferizados que encampariam a visão francesa
hegemônica) que se voltam diante de um romance clássico para focalizar aquilo que mais lhes
interessa: a problematização da própria filosofia, o gesto epistemológico ocidental de
entendimento do mundo, o próprio umbigo europeu, dispensando aquilo que no texto diria
respeito à pessoa nascida na geografia da colônia: “o árabe”. Assim, na versão de Haroum,
64
Meursault, um homem francês, emblema de uma filosofia relevante para os valores ocidentais
do Pós-guerra, foi o único “morto” protagonizado pela crítica ou pelos leitores comuns,
estando o sujeito argelino, “apodrecendo” no silêncio, na omissão dessas leituras, que
insistem em tratá-lo como um personagem esquecido nos bastidores de um livro de sucesso. O
romance de Kamel Daoud traz essa “ferida” do seu narrador e indica uma necessidade: é
preciso reler esses meios eruditos e analisar as bases de suas críticas (recebidas como
denúncia de Haroum) que “enaltecem” e ao mesmo tempo “prendem” Meursault a uma
tradição de interpretação: a de vítima e de modelo de “homem absurdo”. A pesquisa, neste
capítulo, segue, pois, a demanda do narrador daoudiano e se presta a fazer uma releitura da
crítica tradicional sob a perspectiva apontada pelo personagem, com o objetivo de, entre
outras questões, refletir sobre como a “colonialidade do saber” (LANDER, 2005) perpassaria
ideologicamente essas leituras e sua tradição nos estudos sobre Camus.
Neste capítulo 2, então, inicialmente o trabalho verifica as principais críticas e vozes
que são um tanto omissas ao assassinato árabe, na medida em que protagonizam Meursault
como único sujeito passível de discussão no texto, assinalando a tese filosófica de Camus
baseada no conceito de “absurdo” e, portanto, lendo-o como um herói inocente, por ser
consciente da falta de sentido da vida, num mundo sem transcendência. Apontam-se e
comentam-se algumas das críticas mais lidas e amplamente recomendadas quando o assunto é
O estrangeiro, que cumprem, na verdade, a tarefa de consolidar tal imagem de Meursault no
campo literário, acorrentando o romance a uma leitura em paralelo com a obra filosófica de
Camus O mito de Sísifo. Não se pretende perder de vista também o questionamento de até que
ponto os leitores eruditos subjugaram, de fato, totalmente a figura “árabe”.
O capítulo, em subitem seguinte, também discute a crítica de Edward Said (1995)
sobre o romance, que quebra com essa ordem da “omissão” da identidade árabe, adentrando
em outros sentidos presentes no texto que se conectam com a relação entre cultura e
imperialismo. A discussão apresenta uma leitura em diálogo com a crítica pós-colonial do
romance de Camus, apontando alguns dos sentidos, de certa forma, não tão evidenciados por
uma tradição exegética que se esforçou, como atesta o narrador Haroum, para ler apenas a
filosofia do Pós-guerra na produção camusiana, limitada, muitas vezes, a ver unicamente o
que representa a França e os valores humanistas ocidentais no texto.
Torna-se relevante destacar que este segundo capítulo se complementa com a
abordagem desenvolvida no terceiro, no qual, a partir da perspectiva das epistemologias do
Sul, particularmente, sobretudo, do pensamento de Anibal Quijano (2005) e María Lugones
65
(2008), investigo o desenho de uma “matriz colonial do poder” em O estrangeiro, focalizando
como a questão de gênero e do patriarcado estriam também presentes nos aspectos coloniais
da obra, igualmente relacionados à exploração da terra e dos corpos nativos. O pensamento
de Medrado e Lira, Welzer-Lang e Badinter também moldam e enriquecem a discussão.

3.1 A CRÍTICA FRANCESA: A TRADIÇÃO DO “ABSURDO”

Os franceses construíram uma crítica da obra camusiana que se consolidou como


referência para se entender o romance nos mais variados circuitos de leitura ao longo das
vastas geografias para as quais Camus foi traduzido. Protagonizam eles com intensa ênfase e
recorrência a questão filosófica do absurdo e, por tal tendência, estariam seus textos no alvo
da “raiva”17 do narrador Haroum, de modo que os sentidos de suas leituras de viés ocidental
são trazidos à tona pela ficção de Kamel Daoud para serem objeto de reflexão. Ao longo desse
item, dois dos mais representativos ensaios franceses sobre O Estrangeiro produzidos no
século XX estão em análise, os de Sartre (2005) e Barthes (2004a).

3.1.1 Jean Paul Sartre: “A explicação de O estrangeiro”

Em “A explicação de O estrangeiro”, Sartre (2005) realiza um exercício de busca de


entendimento do que representava Meursault e o romance no quadro literário daquele
contexto europeu do Pós-guerra de meados do século XX. As primeiras linhas do artigo,
originalmente publicado em Cahiers du Sud, em 1943, isto é, um ano após a publicação do
romance, já reafirmam a celebridade da obra, a qual é, como visto no trecho acima, objeto de
inquietação do narrador argelino de O caso Meursault. Registra Sartre: “Mal saído da
tipografia, O Estrangeiro, de Camus, conheceu enorme êxito”. Repetia-se que era “o melhor
livro desde o armistício” (2005, p. 117). É notável que quando uma voz ícone da filosofia
francesa e, portanto, uma voz hegemônica dentro da “colonialidade do saber” (LANDER,
2005), como a de Sartre, referencia o “êxito” e a “qualidade” do romance, isso ganha eco nas
demais geografias que recepcionam o texto, atravessadas como são pela difusão e poder do
discurso filosófico ocidental, o que já fora assinalado na abordagem do pensamento de Mata
(2016). O respaldo da crítica francesa contribui para que O estrangeiro se torne um sucesso e
reforça o seu alcance dentro e fora do espaço literário ocidental. O que chega a Haroum (do

17 Será visto adiante que tal raiva é fissurada pelo ratificar do conceito de absurdo em outros trechos da fala de
Haroum, o que denuncia a subjetividade ambivalente e contraditória do personagem.
66
plano real da crítica tradicional para o plano ficcional do personagem que encena uma
narrativa metaficcional, porque O caso Meursault se coloca como reescritura explícita do
clássico de Camus) é o entendimento de que uma obra em que seu irmão é assassinado, ao
contrário do que ele esperava, tem as atenções dos leitores voltadas apenas para o assassino,
que é reverenciado, e a filosofia de seu criador-autor ambos franceses.
Sartre propõe, na primeira página, a questão da qual se ocupa seu ensaio:

Como se deveria entender esse personagem que no dia seguinte à morte da mãe
“tomava banho de mar, iniciava uma relação amorosa irregular e ia rir diante de um
filme cômico, que matava um árabe “por causa do sol” e que na véspera de sua
execução, afirmando que “tinha sido feliz e que ainda o era”, desejava muitos
espectadores para acolhê-lo com gritos de ódio”? Alguns diziam: É um néscio, um
pobre coitado”; outros mais inspirados, “É um inocente”. Restaria no entanto
compreender o sentido dessa inocência (2005, p. 117)
Destaco os seguintes detalhes no excerto:
a) o protagonismo de Meursault como um personagem que demanda reflexão, que inquieta,
que recolhe os esforços do crítico é reiterado, o que, se lido em cotejo com a “reclamação” de
Haroum, “quem sabe dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia, uma insolação?”
(DAOUD, 2013, p.12), revela sua dor diante da observação frente aos leitores da história: “o
meu irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos” (DAOUD,
2013, P. 12);
b) a morte do “árabe” aparece no discurso “arrolada” como uma, entre as demais atitudes de
indiferença aos valores morais vigente da sociedade praticadas por Meursault, o que se nota
pela sua menção ser feita justaposta entre vírgulas a ações como “banhar-se”, “amar”, “ver
um filme”, “ser feliz”. Nesta organização sintática enumerativa, o crime de matar Moussa,
irmão de Haroum, figura como “um item, entre os outros” que constroem o homem absurdo
que é Meursault, sugerindo implicitamente que a morte do árabe estaria no mesmo patamar
das outras ações do personagem que não envolvem a gravidade de uma vida que é retirada de
um homem. A maneira como a sintaxe de Sartre se escreve faz ressoar que a vida do árabe
assassinado é mais um elemento que pode gerar mais significados sobre Meursault e a teoria
filosófica do “absurdo” do que propriamente sobre um ser humano com nome e família, cuja
vida é “tomada”. Fazer essa leitura da crítica é algo próprio do narrador Haroum que
demonstra seu incômodo: “Meu deus! Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até a
sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi o meu irmão, não ele! Foi Moussa e
não Meursault, não é?” (DAOUD, 2013, p. 12). O personagem daoudiano retoma em seu
discurso a presença de palavras e sentidos que pouco estiveram na boca da crítica tradicional:
“bala”, “corpo”, “meu irmão”, isto é, sua fala aponta que ele sente que o quadro do
67
assassinado é, de certa forma, deixado de lado, e que a vítima principal, o “inocente”, de fato,
não poderia ser apenas Meursault, como é a interpretação que se repete ao longo de décadas
de sucesso de Camus;
c) a explicação do próprio Meursault de que ele mata “por causa do sol”, ainda que esteja
entre aspas, reaparece também de modo reiterado em Sartre, como se fosse acolhida a razão
dada pelo personagem para matar: “uma insolação”. Assim, o sol se fortalece no texto
sartreano como “culpado”, quando, na verdade, as balas vieram também do revolver de
Meursault. O quadro pintado em “A explicação de O estrangeiro” no trecho citado pode ser
lido como algo que se aproxima daquilo que acusa Haroum: “todos se dedicam a tentar provar
que não se tratou de um ato homicida, mas apenas uma insolação” (2013, p. 13);
d) As opiniões de que Meursault seria um inocente é também algo reafirmado, na medida em
que Sartre convida seus leitores a pensarem com ele sobre “o sentido desta inocência”. O
romance de Daoud insurge contra a imagem blindada de “inocência” de Meursault,
nomeando-o frequentemente no discurso como “o assassino”, como fica elucidado no trecho
abaixo:

Depois de perder a mãe, esse homem, o assassino, deixa de ter um país e cai
no ócio e no absurdo. É um Robinson que acredita poder mudar o mundo
matando o seu Sexta-feira, mas ao se ver preso numa ilha, se põe a discursar,
com talento, feito um papagaio complacente consigo mesmo. Poor
Meursault, where are you? Repita algumas vezes esse grito e ele lhe
parecerá menos ridículo” (Daoud, 2013, p. 13).
Percebe-se sua ironia diante da repetição das leituras de que Meursault é um “pobre
coitado”, de modo que além do termo “assassino” e da expressão “matando o seu Sexta-
feira”, Haroum ainda o acusa em seu caráter de dominar uma ordem do discurso para posar
como “vítima da existência”. Ele refaz a imagem de Meursault como um
“assassino/papagaio”, dono de uma retórica complacente consigo mesmo, a qual se perdoa
pelas contravenções que comete numa “ilha” onde se põe como “estrangeiro”. Vê-se que, no
trecho, Daoud igualmente critica a noção de verdade construída pela leitura hegemônica da
crítica, na medida em que ironiza o fato de que quando uma descrição se repete tantas vezes,
ela passa a ser encarada como verdade. A “verdade” de que Meursault seria um “pobre
coitado” é ridicularizada no trecho. O romance de Daoud, assim, propõe uma reflexão crítica
não só sobre o romance camusiano em si, mas sobre toda uma tradição de leitura consolidada
em torno dele, apresentando, nesse movimento, outro lado do herói francês pouco
evidenciado, o seu lado “criminoso”. Igualmente, o romance traz o “inédito”, aquilo que não
foi discutido ao longo de anos da publicação de O estrangeiro: a vida do “morto” silenciado
68
há anos, sua identidade, sua origem, a raiva, o trauma da sua família órfã de seu corpo e de
sua memória na leitura do romance camusiano; um morto que passa a ter imagem, forma em
Daoud, descrito como: “Um árabe breve, tecnicamente fugaz, que viveu duas horas e morreu
ao longo de setenta anos ininterruptos, mesmo depois de seu enterro” (2013, p. 11). Ou seja, a
duração da vida do personagem assassinado no tempo da leitura do romance é ínfima, “duas
horas”; mas o tempo que a leitura da tradição da crítica literária ocidental toma para fazer
perdurar a sua “morte”, lida na figuração de seu apagamento, seria de setenta longos anos,
quando surge, finalmente, o relato de Haroum, através da escrita de Daoud, para quebrar essa
“subalternização” e ressuscitar a sua vida, sua identidade e sua memória (A publicação de O
estrangeiro é de 1942 e a de O caso Meursault é de 2013, isto é, são setenta e um anos de
intervalo entre um texto e outro, durante os quais Haroum sente o negligenciar de seu irmão,
de sua família, em face da narrativa hegemônica de Meursault e da crítica que propagam o
olhar francês e ocidental sobre os fatos, os quais, no caso, apagam “o árabe”).
Sartre defende a tese da inocência de Meursault ligada à “filosofia do absurdo”. Como
ele mesmo afirma: “O mito de Sísifo vai mostrar de que maneira devemos acolher o livro do
nosso autor. Com efeito, ali encontramos a teoria do romance absurdo” (2005, p. 121). E esta
associação, que cria uma relação umbilical entre as duas produções de Camus se torna a chave
mais comum de leitura da obra, reproduzindo-se em demais textos críticos como,
praticamente, uma “verdade” única diante da qual pouco se buscou ir além. Cito Sartre a
respeito da “inocência” do herói absurdo:

Tudo é permitido já que Deus não existe e já que morreremos....


Todos os valores desmoronam perante essa “ética da quantidade”; o homem absurdo,
jogado neste mundo, revoltado, irresponsável, não tem “nada a justificar”. Ele é um
inocente. ...
Um inocente em todos os sentidos do termo, um “idiota” também, se quiserem. E
agora compreendemos plenamente o título do romance de Camus. O estrangeiro que
ele quer descrever é justamente um desses terríveis inocentes que fazem o escândalo
de uma sociedade porque não aceitam as regras de seu jogo. Vive entre estrangeiros,
mas também é uma estrangeiro para eles....
E nós mesmos, que ao abrir o livro ainda não estamos familiarizados com o
sentimento do absurdo, em vão tentaríamos julgá-lo segundo nossas normas habituais:
também para nós ele é um estrangeiro. (2005, p. 120).
Por outro lado, quando observado o trecho de Sartre após a leitura de O caso
Meursault e se entra em contato com a raiva e a dor confessa do narrador Haroum, que
reconta a história de O estrangeiro de um modo que seu irmão assassinado não poderia nunca
fazê-lo, primeiro porque está morto e segundo porque era um analfabeto (diferente do herói
camusiano e seus privilégios de francês letrado, que domina um estilo de narrar encantador), é
69
possível entender a sua posição familiar de quem se sente lesado e não enxerga, da mesma
maneira, a “inocência” explicada em Sartre. Haroum e Sartre estão em posições diferentes e
olham para Meursault cada um à sua maneira, de acordo com seus referenciais.
Sartre não é irmão argelino do árabe assassinado que relembra da história pós-
independência argelina. Haroum não é um francês que escreve sobre Camus no Pós-guerra e
ainda durante o período colonial argelino. Assim, a questão, aqui, não é simplesmente negar a
validade da leitura de Sartre ou “acusá-la” de ser centrada em um “nós” que é etnocentrado e
voltado às discussões filosóficas do Pós-guerra europeu. A questão vai além e empurra os
leitores e leitoras contemporâneos para pensar que a ficção de Daoud oferece outra visão dos
fatos frente a uma tradição crítica estabelecida e referenciada constantemente nos estudos
camusianos. Daoud faz com que se reflita como se sente a família de Moussa diante do que se
convencionou chamar de “crime solar” cometido contra um ente querido; faz pensar como se
sente um argelino cujo irmão foi assassinado, uma morte “causada por um francês que não
sabia o que fazer com o seu dia e com o restante do mundo que carregava sobre as costas”
(DAOUD, 2013, p.11-12). A obra de Daoud suplementa os sentidos do romance camusiano
não só resgatando quem era o árabe assassinado, mas também propondo uma revisão de quem
pode ser Meursault, a partir de outro prisma que não o da crítica francesa centrada na
“filosofia do absurdo”. Nessa dinâmica, a narrativa de Haroum não é apenas um ataque à
tradição literária e crítica ocidental, mas, simultaneamente, uma possibilidade de reescrita da
memória ocidental frente à própria literatura camusiana e da alteridade das personagens
argelinas silenciadas nessas obras.
Pinço outros dois trechos do clássico ensaio de Sartre e chamo atenção para como o
embate entre eles revela alguma ambiguidade sobre a questão da interpretação do “crime” de
Meursault. Como Sartre mesmo remarca, “Meursault enterra sua mãe, arranja uma amante,
comete um crime” (2005, p. 125); ele não nega, portanto, que o herói francês tenha cometido
um assassinato, contudo sua abordagem classifica Meursault como um “inocente”, porque
submete o julgamento de sua conduta ao crivo do conceito de “homem absurdo” para o qual,
diante da falta de sentido da vida, direcionada a uma morte certa e sem transcendência divina,
nada é proibido e a liberdade seria um horizonte tangível. O protagonista, nessa lógica, é
reconhecido como um “estrangeiro” perante os ritos culturais de sua sociedade. Até aí, tudo se
faz claro. No entanto, é possível enxergar a complexidade da visão sartreana. Sua opinião
sobre a “inocência” de Meursault não se faz com simplismos maniqueístas, não se faz sem
conflitos. Atente-se aos trechos que enumero como 1 e 2.
70

Trecho 1:

Havíamos visto que n’ O mito de Sísifo, por exemplo, exalta-se a perfeita


disponibilidade do condenado à morte diante do qual se abrem as portas da prisão
numa certa alvorada – e foi para nos fazer fruir essa alvorada e essa disponibilidade
que Camus condenou seu herói à pena capital (2005, p. 123).
Nesse trecho, Sartre interpreta que Camus condena Meursault para que os leitores do
romance possam fruir uma “certa alvorada” em vê-lo ter as portas da prisão abertas, uma vez
que se mostra disponível à morte. Sua disponibilidade para a morte o libertaria dos
significados da prisão fixos na sociedade em que era um “estrangeiro”, bem como os
significados da própria morte. O leitor estaria apto, nessa visão, a fruir o sentimento de
liberdade de Meursault diante da morte. Este parecer, cuja lógica se pauta pela filosofia em O
mito de Sísifo, representa a figura de Meursault como a de um “homem revoltado” por ser
consciente de não estar sujeito às prisões dos significados culturais de sua sociedade, já que
para ele o mundo é absurdo, ausente de sentido. O absurdo aí libertaria Meursault em plena
condenação por ter cometido um crime. Mas remarco: Sartre afirma que Camus condena
Meursault para que seus leitores sintam certo efeito, o qual não se liga com uma indignação
perante o assassinato de um “árabe”, de um ser humano. O foco está, pois, sobre a
transgressão social operada por Meursault e seu “estrangeirismo”. O discurso sartreano,
assim, nada depõe em relação ao “morto” argelino nesse trecho.
Trecho 2:

Para que sintamos o deslocamento entre as conclusões do promotor e as verdadeiras


circunstâncias do homicídio, para que ao fechar o livro mantenhamos a impressão de
uma justiça absurda que jamais poderá compreender ou apreender os fatos que se
propõe punir, é preciso que tenhamos sido postos em contato com a realidade ou
com uma de suas circunstâncias (2005, p. 125).
Para se refletir sobre esse segundo trecho, que, diferente do primeiro, “não liberta”
exatamente Meursault, é importante retomar o questionamento do seu advogado nas “cenas”
do julgamento, como faz o próprio Sartre no ensaio “É ele acusado de ter enterrado sua
própria mãe ou de ter matado um homem?” (CAMUS apud SARTRE, p. 123). Feito isso, é
observável que Sartre pondera também sobre o homicídio, não o oculta totalmente ou o
desqualifica enquanto conduta criminosa, afirmando a sua impressão de que Camus coloca os
leitores em face de uma “justiça absurda que jamais poderá compreender ou apreender os
fatos que se propõe punir”. Nesse caso, o ensaio de Sartre revela, joga um ponto de luz no fato
de que, no plano ficcional, a própria justiça francesa na Argélia desconsiderou o real motivo
de acusação contra Meursault: o homicídio, perdendo-se nas cobranças morais de afeto que o
71
cidadão francês deveria obedecer enquanto norma: amar a mãe e crer em Deus, demostrar luto
absoluto após a morte materna sem namorar ou ir ao cinema depois de enterrá-la, por
exemplo. Esses afetos, ao longo do julgamento de Meursault, estiveram acima da importância
do homicídio e da vida de Moussa, fato pelo qual reclama Haroum ao longo de sua narrativa.
Aqui, é possível entrever, via Sartre, uma crítica do próprio romance de Camus aos
procedimentos de justiça francês na Argélia e, assim, seu próprio descaso jurídico com a
vítima argelina. Nesta perspectiva, Camus pode ser visto como um escritor cuja obra denuncia
as arbitrariedades da justiça em nome da moral francesa e em detrimento do povo argelino.
Desse modo, nesse trecho de número dois, o ensaio de Sartre não reproduz um completo
“inocentar” do herói francês, do qual Haroum sente raiva. O texto de Sartre, então, ora está
dentro do que critica o narrador daoudiano, ora está fora, não podendo ser integralmente
classificado como um artigo que silencia por completo o lado “assassino” de Meursault.
Entretanto, ainda que o ensaio de Sartre problematize o crime, o seu olhar crítico
focaliza mais as arbitrariedades da justiça francesa, a partir das pistas do romance camusiano,
do que propriamente se sensibilizaria com a morte do “árabe”. Nessa ótica, o seu texto, em
certo sentido, faz prevalecer em seus argumentos ainda aquilo que o narrador Haroum entende
como um descaso frente à vida do seu irmão e à sua família argelina. O ensaio de Sartre ativa
interpretações que fazem Haroum sofrer (como confessado no excerto citado no início do
capítulo de O caso Meursault) e, ao mesmo tempo, ativa-lhe a raiva que é também
ambiguamente dor e motor para que ele construa sua narrativa como constrói: um rito de
ressentimento que é “colocado para fora” para purgar a sua dor, a sua revolta, para conferir
um pouco de espaço e dignidade à memória de sua família (A esse respeito em particular da
dor e purgação pela narrativa, a pesquisa se volta no Capítulo 4).
As considerações finais de Sartre sobre o romance em “A explicação de O
Estrangeiro” são de ordem estilísticas e comparativas frente a outros nomes da literatura
ocidental: Kafka, Hemingway, Voltaire. A última página do texto reafirma a sua tese
principal: “O Estrangeiro é uma obra clássica, uma obra de ordem, composta a propósito do
absurdo e contra o absurdo. Era exatamente isso que queria o autor? Não sei; é a opinião do
leitor que estou dando” (2005, p. 132). Nesse trecho, Sartre reconhece que não é possível
mapear intenções da autoria, mas, sim, se ater a pistas textuais. As pistas que ele recolhe são
aquelas que enxergam o romance como um esforço para reproduzir a ideia de “absurdo”.
Nesse movimento, Sartre prende os sentidos do romance à filosofia de Camus e ao contexto
72
do Pós-guerra. Outros sentidos fora desse modo de ler a “partitura” O estrangeiro não são
trazidos para explicá-lo.
Não objetivam tais observações apontar suposta ilegitimidade na leitura sartreana;
diversamente, o que é proposto seria analisar seus alicerces e mapear que significados a sua
força crítica, na condição de voz hegemônica ocidental, atirou ao livro. Tais significados
voltam e são julgados na ficção de Daoud. Avaliando esse julgamento não cabe, aqui, dizer
que Sartre foi intencionalmente insensível ao argelino, mas cabe dizer que a visão do narrador
Haroum sobre a leitura com argumentos como os de Sartre denunciam sua insensibilidade e
seu descaso. A literatura contemporânea de Daoud, assim, não fecha sentidos, porque é ficção
e a ficção não afirma verdades, mas provoca uma abertura para que se pense sobre as
“verdades” estabelecidas. O texto de Daoud põe em suspensão as certezas a respeito de todo
um “já dito” sobre a obra de Camus e propõe questões como “quem seriam esses personagens
argelinos, suas dores, suas críticas, o que disseram esses leitores, autores e personagens que
provocam, mesmo após 71 anos, a sua raiva?”

3.1.2 Roland Barthes: “O estrangeiro, romance solar”

Escrito pouco mais de 10 anos após a publicação do romance de Camus, “O


estrangeiro, Romance solar”, artigo de 1954, publicado em Bulletin du Club du Livre
Français, ainda retoma a visão sartreana em “A explicação de O estrangeiro”. Traz algumas
suplementações, ao traçar conjecturas mais específicas sobre os significados do sol na
narrativa, ligando-o a mitos antigos e à tragédia, vindo, desse modo para ratificar os
significados da obra interpretados pela tradição filosófica. Contudo, Barthes expande a leitura
filosófica, na medida em que argumenta que além de dialogar com o “conceito de absurdo”
em O mito de Sísifo, O estrangeiro também dialoga com uma tradição literária clássica diante
dos significados do “sol” no texto.
O primeiro período do artigo de Barthes evidencia a necessidade de se reiterar o
caráter clássico da obra e a sua “qualidade”, conceito aludido no Capítulo 1, a partir da
reflexão em torno do pensamento de Inocência Mata (2016). Retomando a visão da autora,
esse conceito contribui para que se perpetuem padrões literários que reforçam a hegemonia da
literatura ocidental, de modo que as obras que não acompanhem tais molduras atentas a esses
valores europeus acabam sendo classificadas como obras “menores”. Assim inicia seu texto o
autor francês, destacando a obra pela sua “qualidade”:
73
O estrangeiro é certamente o primeiro romance clássico do Pós-guerra (digo
primeiro não só em data como em qualidade!) ... esse pequeno romance logo
depois deu glória a Albert Camus; todos se apegavam a ele como uma dessas obras
perfeitas e significativas que surgem em certas fases de transição histórica, para
marcar uma ruptura e resumir a uma sensibilidade nova. Ninguém protestou, todos
foram conquistados, apaixonaram-se quase. A publicação de O estrangeiro foi um
fato social, e seu sucesso teve tanta consistência sociológica, quanto a invenção da
pilha ou das revistas de amor (2004, p. 92).
As palavras de Barthes reforçam a imagem do clássico que tanto incomoda o argelino
que narra O caso Meursault: uma imagem de sucesso, estilo, de gerar glória ao “autor” do
“livro”. É tal projeção, vista em críticas como a de Barthes, um elemento que gera,
paralelamente, o ressentimento que persegue o personagem daoudiano. Sua mente, ao longo
da obra, martela sobre o fato de que um livro em que seu irmão é morto, sem receber um
nome que seja, designado apenas como “o árabe”, cuja morte é posta em segundo plano pela
justiça, preocupada em condenar o assassino mais pelos seus desvios a uma moralidade
francesa (não ser capaz de viver o luto da mãe ou acreditar em Deus), mas que, ainda assim, é
um livro diante do qual “todos” se “encantam”. Nesse contexto, o artigo de Barthes estaria
entre as ditas “condolências mais eruditas” das quais reclama Haroum. O trecho acima é
depositário de todo o seu encantamento pela obra francesa, bem como é responsável por,
assim, perpetuá-la na tradição crítica: como um “clássico do Pós-guerra”, uma obra de
qualidade. Ocorre que é justo esta postura “reverencial” ao livro sustentada pela crítica o que
dá força ao desejo de Haroum narrar e revisar a história contada por Meursault.
Com relação ao conceito de absurdo e ao caráter solar do romance Camusiano, este
último aspecto que é o guia do ensaio de Barthes, recorto o seguinte trecho de O caso
Meursault:

Vou lhe resumir a história antes de contá-la em detalhes: um homem que sabe
escrever mata um árabe que nesse dia não tem mesmo um nome – como se ele o
tivesse pendurado em um prego ao entrar no cenário – e se põe a explicar que foi
culpa de um Deus que não existe e por causa daquilo que ele acabara de
compreender sob o sol e porque o sal do mar o obrigou a fechar os olhos. De
repente, o assassinato se torna um gesto absolutamente impune e deixa de ser um
crime, pois não existem leis em vigor entre o meio dia e as duas horas da tarde, entre
ele e Zoudj, entre ele e Moussa. E em seguida, todo mundo se uniu para fazer o
corpo da vítima desaparecer rapidamente e para transformar o local do assassinato
em um museu imaterial (DAOUD, p. 20013, p. 14).
A visão de Haroum é clara: seu irmão, mal digno de um nome no livro, foi assassinado
e “todos” responsabilizam o sol, não o assassino. Na verdade, o sol não permitiria que o ato
fosse visto como um crime. E, na medida em que todos os olhares se voltam para pensar sobre
Meursault e sua “inocência” num “romance solar”, se oculta ainda mais o árabe morto. Não se
ter pensado sobre esse morto sem nome parece ser o mesmo, na visão de Haroum, que “outro
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crime” o e “ocultação de cadáver”. A crítica de Barthes, assim como a de Sartre, não escreve
diretamente sobre o árabe assassinado. Ela se atém a Meursault e seus significados de homem
absurdo, de estrangeiro:

Meursault opaco é o mundo questionado, e a sociedade só pode rejeitá-lo


com o mais vivo horror, como um objeto contaminado por sua própria
alteridade, como a excrescência intolerável do mundo que só se suporta em
família e que se sente ameaçado de deteriora-se ao menor olhar de
estranheza que pouse sobre ele (BARTHES, 2004, p. 94).
Barthes observa, dentro de seu olhar unilateral dirigido ao protagonista, que Meursault
é punido porque é um “outro”, um “estrangeiro” frente a uma sociedade francesa que não
tolera a alteridade, acusando o mundo de apresentar o medo de deteriorar-se nos seus rituais
mais ideais de afeto e de família franceses. Dentro dessa lógica, o trecho evidencia que o
assassinato na trama narrativa ainda se mostra em segundo plano pelo intérprete, uma vez que
o ataque destacado por Bathes pelo homem absurdo é o ataque à família, não se pontuando
sobre o ataque a uma vida, uma vida argelina, uma vida “árabe”. O que parece importar nas
palavras escritas por Barthes é refletir sobre a França e seu apego a valores familiares e
religiosos, bem como sua incapacidade de lidar com o “outro”, sua rejeição e resistência
àquilo que lhe é “estrangeiro”. São ensaios como esses de Barthes e de Sartre que fazem o
narrador Haroum chegar à seguinte conclusão, que é, em si, uma acusação e um ressentimento
estampado na sua narrativa:

Meu irmão não teve direito a uma única palavra nessa história. E aqui, você, como
todos os outros que o antecederam, segue o caminho errado. Quem carrega o
absurdo nas costas ou no ventre das nossas terras somos nós, eu e meu irmão, e não
o outro. Entenda bem, não expresso tristeza nem raiva. Tampouco estou de luto.
Mas... Mas o quê? Não sei. Acho que eu gostaria que a justiça fosse feita (2013, p.
14).
O personagem fala em “todos os outros” que seguem o caminho errado de entender a
história pelo modo através do qual não há justiça, qual seja o modo interpretado pela crítica
em que se destaca que Meursault é punido pelo absurdo, que o torna “estrangeiro”, e não pelo
crime de assassinato. Não houve justiça ou direito a uma palavra para o irmão de Haroum. A
crítica de Barthes confirma o fato e a todo o momento do ensaio, ele encontra uma maneira de
reverenciar Camus pelo romance que é “pequeno como uma joia”, “mantém seu frescor e vai
além das modas” (2004, p. 96). A obstinação de Barthes em explicar o romance pelo seu
aspecto solar, assim, tece o comentário:

Na praia, a figura do sol: esse não liquefaz, endurece, transforma a matéria em


metal, o mar em espada, a areia em aço, o gesto em homicídio: o sol é arma, lâmina,
triângulo, mutilação, oposto à carne mole e surda do homem. E, na sala do tribunal
75
onde Meursault é julgado, eis finalmente um sol seco, um sol poeira, o raio vetusco
do hipogeu (2004, p. 97).
É notável, portanto, mais um trecho da crítica francesa que revela a tendência de
reproduzir a versão de Meursault para justificar o assassinato: a de que matou “por causa do
sol” (CAMUS, 2016, p. 108). O sol em Barthes se reafirma como arma e condutor de
Meursault ao crime. Não há responsabilidade do homem, há responsabilidade da estrela.
Quem mata não é Meursault, mas o sol o conduz ao gesto homicida. A ideia de romance solar
em Barthes é, basicamente, a de que Camus dialoga com o sol e com a sua responsabilidade
estelar sob o destino humano, a tal ponto que é possível fazer a associação da obra ao mito e à
tragédia, pois o sol é a explicação de uma origem, como no mito, e o agente de uma
fatalidade, como ocorre na tragédia. Para o ensaísta francês, há na obra uma ambiguidade
entre um “Sol calor” e um “Sol-lucidez”; esta “faz de O estrangeiro uma tragédia. Assim
como Édipo em Colona ou Ricardo II, de Shakespeare, a conduta de Meursault tem seu duplo
num itinerário carnal que nos liga à magnífica e frágil existência” (2004, p.98). A associação
de Barthes surge para se afirmar mais uma tese sobre O estrangeiro: “baseia-se não só em
filosofia, mas em literatura” (2004, p. 98).
Como bem nota Haroum, é perceptível que o texto de Barthes está entre “todos
aqueles” que não falam de seu irmão, que inocentam Meursault e propagam o sucesso do
livro, sendo, em contrapartida, a sua família quem tem que lidar com o peso dessa morte
prolongada, mesmo após 71 anos de sua publicação em livro, uma situação que é vista como
“injustiça”, da qual a crítica literária também se faz agente. Se o sol mata o árabe em Camus,
pelas mãos dessa “crítica solar”, ele também assassina a identidade argelina para o narrador
daoudiano.
É possível fazer a observação de que tanto Sartre quanto Barthes escrevem sobre O
estrangeiro num período em que a França ainda é a metrópole de uma Argélia colonial. São
textos, respectivamente, de 1943 e 1954. A libertação argelina só ocorre em 1962. Nesse
sentido, o período colonial da Argélia registra, ainda, uma crítica de O estrangeiro cujos
nomes mais significativos Sartre e Barthes focalizam em suas reflexões aquilo que representa
a França, os franceses, a filosofia do “absurdo” o dialogismo literário entre o romance, o mito
e a tragédia.
Após a independência argelina, a crítica pós-colonial de Edward Said apresenta uma
observação pontual sobre “Camus e a experiência colonial francesa”, e é o que será discutido
76
no próximo item para que sejam percorridos os objetivos deste capítulo: mapear as imagens
de O estrangeiro na crítica do século XX e em cotejo com o romance de Kamel Daoud.

3.2 EDWARD SAID: “CAMUS E A EXPERIÊNCIA COLONIAL FRANCESA”

Em Cultura e imperialismo (1995), obra já assinalada no primeiro capítulo como um


marco teórico para a consolidação da crítica pós-colonial em seus primeiros momentos e,
assim, aqui, tomada como uma referência teórica em relação a como é possível entender a
literatura como um reduto da cultura que reverbera e também se molda da experiência da
colonização, Edward Said expõe a sua tese sobre “Camus e a experiência colonial francesa”
em ensaio homônimo. Neste item, estão pinçadas e comentadas as principais colocações do
crítico em duplo movimento: a) recortar o que se apresenta como uma contribuição da sua
leitura pós-colonial da obra de Camus; b) questionar alguns de seus argumentos, a fim se
instalar uma reflexão que reconheça a importância de Said na construção de um
entendimento, até certo ponto, inédito e diverso da obra camusiana naquele quadro de fins do
século XX, sem necessariamente apenas repeti-lo, mas propondo, também, uma
suplementação das possibilidades de interpretação em torno de O estrangeiro.18
A tese de Said resumida nas últimas páginas do ensaio consiste em:

os romances e contos de Camus destilam com grande precisão as tradições, lugares-


comuns e estratégias discursivas da apropriação francesa da Argélia. ... temos que
considerar as obras de Camus como uma transfiguração metropolitana do dilema
colonial: elas representam a literatura colonial para um público francês, cuja história
pessoal está indissoluvelmente ligada a esse departamento meridional da França;
(1995, p. 238).
É notável que o viés analítico de Said rompe com a linha de raciocínio do ciclo de
leitura fundamentado por Sartre e Barthes, voltado para a focalização do absurdo, do
simbolismo solar, elementos que, aqui, são entendidos como representação de um olhar
eurocentrado para as questões trazidas pelo romance O estrangeiro, uma vez que se referem
aos dilemas filosóficos ocidentais19. O autor palestino, diversamente dos críticos franceses,
propõe uma abertura a investigações que procuram a geografia periferizada da Argélia nos
textos e sua relação colonial com a França, que ressaltam a França colonial “tomando” o
território da Argélia nos textos. Tal particularidade é a sua contribuição acadêmica, por
convidar leitores e leitoras a reflexões antes não propostas e para se reavaliar a produção
romanesca de Camus numa outra esfera, alargando as suas interpretações e possibilidades de

18 A leitura particular de O estrangeiro é apresentada no próximo capítulo


19 No próximo capítulo, também o falocentrismo é associado a tal leitura.
77
sentidos em relação ao que cristalizava uma tradição de leitura que “ocupou” os espaços
semânticos da obra com olhares voltados apenas ao protagonismo de Meursault e suas
angústias de “homem absurdo”, condenado por uma sociedade francesa que não se mostrava
disposta a lidar com a “alteridade” de um personagem rebelde a seus códigos morais e
religiosos. Não há perdão concedido ao “outro”, como já reforçou Barthes (2004), vindo da
sociedade francesa. Contudo, o perdão negado, como também assinalou Sartre (2005), pouco
tem a ver com a punição a respeito do assassinato do “árabe”, mas está atravessado pelo dever
ser “familiar” e “cristão” próprio do humanismo da sociedade francesa. Assim, a transição do
foco crítico, operada por Said, da França e suas questões existencialistas do contexto do Pós-
guerra para o foco na geografia colonial argelina representa uma nova esfera de análise que
suplementa as leituras de Camus ao longo da história de sua recepção.
Uma primeira observação sobre o ensaio de Said se dirige a respeito da sua tendência
dupla de tanto fazer crítica literária, quanto de defender a plataforma crítica pós-colonial que
o norteia. É como se seu texto fosse além de uma tese sobre Camus, mas uma tese sobre o
propósito da crítica política na linha dos Estudos pós-coloniais. Dentro dessa perspectiva,
afirma ele que “Voltar a situar L’étranger no nexo geográfico de onde surge sua trajetória
narrativa é interpretá-lo como uma forma elevada de experiência histórica” (1995, p. 239).
Com relação ao uso da expressão “forma elevada de experiência histórica” conferida ao
romance, percebe-se em Said um visível elogio de seu próprio método analítico sobre o
romance: aquele que enaltece o focalizar da geografia periférica e da experiência da
colonização. É compreensível que o que sua crítica realiza ao pensar a questão geográfica a
partir da presença da Argélia, reconhecida por ele como “marginalizada” no texto, é, de fato,
começar ineditamente a ler a experiência histórica da colonização presente na obra.
Entretanto, não seria exatamente cabível definir que uma vez que se focalize criticamente essa
experiência, imediatamente o romance se revitalize como uma “forma elevada de experiência
histórica”. Trata-se a experiência colonial, certamente, de uma experiência histórica que pode
ser lida no texto, contudo, é uma entre outras tantas chaves de leitura possíveis. A propósito,
se faz uma chave de leitura cuja contribuição é, evidentemente, reconhecida e louvável, por
adentrar por “outros lugares” possíveis na obra, como coloca Inocência Mata (2016). São,
portanto, “lugares” que se revelam significativas maneiras de leituras por oferecerem o
“diverso” na busca de sentidos interpretativos, mas, ainda assim, se trata de “uma” entre
“outras” maneiras de leitura também viáveis, já que a crítica, em geral, pode seguir múltiplas
visões a partir da obra literária, a qual é sempre polissêmica, seja sincrônica ou
78
diacronicamente, como bem coloca Jauss (1994), ao ressaltar o seu caráter de “partitura”.
Como “partitura”, a literatura pode ser atualizada pelos vários leitores e seus conhecimentos
de mundo cujas naturezas, por sua vez, se fazem contextualmente localizadas e, assim,
diversificadas. O elogio presente na expressão “forma elevada de experiência histórica”, feito
por Said, revela, então, a necessidade de legitimar a escolha analítica da experiência colonial,
de reverenciá-la como “oportuna” diante do texto. Contudo, cabe lembrar, como já dito por
Stuart Hall (2003) e comentado, aqui, no capítulo um, a Crítica pós-colonial não se trataria de
uma “qualidade”, de um olhar que deva necessariamente elevar obras ou críticos, isto é, não é
cabível vê-la como um parâmetro “avaliativo” dos sentidos possíveis das obras, mas, sim,
como um exercício de “descrição” daquilo que os textos representam ficcionalmente ao se
atentar para os espaços narrativos, personagens e histórias que ensejam imagens das relações
coloniais e pós-colonias.
É compreensível, entretanto, o esforço de Said no sentido de gerar em seu ensaio uma
reputação válida para os Estudos pós-coloniais ainda na década de 90 do século XX, ao se
pretender colocar a geografia periferizada como uma baliza de análise necessária para a
investigação política da ficção. Entretanto, passadas duas décadas do século XXI, isto é, quase
30 anos após a publicação de Cultura e imperialismo, faz-se importante reavaliar alguns
pontos de seu pensamento, para que não se perca a ideia de que a literatura é sempre uma
porta para muitas visões, para uma pluralidade de teses, de modo que se sabe que uma não
necessariamente se “eleva” à outra, mas suplementa a outra. Ademais, cada visão crítica está
aportada em uma tomada de posição que é em si também política (EAGLETON, 2003),
havendo, portanto, implícitas no campo da investigação literária muitas posições políticas a
serem reveladas. Cabe a leitores e a grupos diversificados de pesquisa construírem suas
cadeias demonstrativas (LIMA, 1981), que são descritivas e inevitavelmente ideológicas,
estarem abertos ao debate frente às múltiplas possibilidades de leitura dos textos literários.
Considero importante fazer, neste trabalho, esse apontamento, porque justamente o que se
procura nesse capítulo é mapear as múltiplas leituras de O estrangeiro, sem que se estabeleça
necessariamente um julgamento hierárquico entre as diferentes leituras. Se, por exemplo,
Sartre e Barthes não focalizaram a geografia da Argélia em seus ensaios, isso não os define
como leitores insuficientes ou de críticas que não percebem o caráter “elevado” da
experiência de leitura proposta em O estrangeiro.
Na verdade, o que argumento é que tais leituras estão sob uma perspectiva
eurocentrada e, como recorte analítico, assim como uma fotografia que apanha apenas um dos
79
20
ângulos do referente fotografado, e não o suposto “real em si” , acabam por circunscrever a
descrição dos sentidos do romance de Camus a tais aspectos europeus. O diferencial da
abordagem de Said, o que não exatamente a torna “superior” a dos demais pensadores, mas
que é, sim, o caráter diferencial da sua contribuição suplementar, é sua “redefinição” de olhar
e de posição para a leitura dos sentidos de O estrangeiro, agora investigados pela perspectiva
pós-colonial. Uma perspectiva de descrição que, aqui, se comenta e se analisa a partir de
então.
Em termos gerais, a escrita de Said no ensaio “Camus e a experiência colonial
francesa” se realiza a partir do pressuposto de que é preciso revisitar Camus e entender que a
sua obra situa as histórias no espaço narrativo da Argélia, em cidades como Orã e Argel, mas
está a tratar de questões francesas e, nesse formato, representaria “um gesto colonial”, ou seja,
sua ficção seria uma projeção da dominação francesa na Argélia. Proponho, em contrapartida,
que seja analisado e, em certo sentido, em relação a alguns aspectos específicos, proponho
que seja repensado o caráter absoluto da perspectiva defendida por Said, sob o seguinte ponto
de vista: a sua leitura se dirige a uma camada única de sentido da obra de Camus, havendo,
contudo, outras camadas interpretativas possíveis e latentes no texto literário, dada a sua
natureza polissêmica. Voltando a Ezra Pound na sua definição de que a “Literatura é
linguagem carregada de significados até o máximo grau possível” (2006, p. 32), é cabível
argumentar que a produção literária de Camus realiza mais do que somente encenar um “gesto
colonizador”, ainda que este gesto possa também nela, de certa forma, ser reconhecido, como
se faz perceber na leitura de Said, e estaria aí a sua contribuição enquanto leitura pós-colonial,
voltada para intercalar cultura e imperialismo, o que pouco se fazia até aquele momento
histórico em que seu texto foi pensado e incialmente veiculado. Prossigo adiante à análise do
discurso crítico de Said nesse sentido.
Para chegar à acima citada conclusão desenvolvida nas páginas finais do ensaio, Said
inicia sua abordagem, destacando que a experiência colonial francesa se mostra diversa da
Inglesa e apresenta-se no formato de uma verdadeira “teoria”. Tal teoria teria o status
praticamente de uma “ciência exata”, tecendo o autor seu artigo com análises de falas dos
ícones franceses que levaram a cabo a colonização: generais, sociólogos, escritores. Trata-se,
segundo o crítico, de uma teoria colocada menos como um convite, do que imposta pela força
à população argelina. Nessa ótica, a ideia central de Said é “emparelhar” a produção ficcional

20 Barthes (2004b), no artigo “O efeito do real”, recordo, aqui, já desconstrói a realidade como algo dado e
apreensível de modo concreto, apontando que há sempre uma perspectiva particular a ver e construir o que se
entende por real.
80
de Camus a essa “ciência” colonial “de governar criaturas inferiores cujas terras e recursos e
destino estavam a cargo da França” (1995, p. 222). Sobre a representação dos nativos nos
discursos coloniais, argumenta Said que eles, bem como “seus territórios não deveriam ser
tratados como entidades que pudessem se tornar francesas, e, sim, como possessões cujas
características imutáveis requereriam separação e subserviência, muito embora isso não
excluísse a “mission civilisatrice” (1995, p. 22). Nesse sentido, as representações de argelinos
e franceses em textos camusianos, para o autor, seguiriam o binarismo “sujeito imperialista
dominador/sujeito argelino dominado”, o que aqui se convida ao repensar ao longo das
próximas linhas.
Descrevendo detalhadamente a tese de Said, haveria uma projeção direta na obra de
Camus da gestão colonial francesa na Argélia, como se nos romances e contos do autor, a
França “tomasse” o país de modo idêntico, espelhado. Said vai trançando sua cadeia
demonstrativa, oferecendo um panorama da gestão colonial francesa e seus impactos na vida
argelina. Cito:

Na Argélia, por mais incoerente que fosse a política dos governos franceses desde
1830, continuou o processo de afrancesá-la. Primeiro, as terras foram tomadas pelos
nativos e seus edifícios ocupados; a seguir, os colonos franceses tomaram conta das
matas de sobreiros e jazidas minerais. Depois, como observa David Prochaska em
relação a Annaba (antes chamada Bône), “eles removeram os argelinos e povoaram
lugares como Bône com europeus”. Durante várias décadas, desde 1830, a economia
foi movida por um “capital de pilhagem”, houve um decréscimo da população
nativa, e aumentaram os grupos de colonos. ... Assim, enquanto a França se
reproduzia na Argélia, os argelinos eram relegados à marginalidade e à pobreza
(1995, p. 223).
Diante do quadro contextual argelino acima, Said o interliga à ideia de que a obra
camusiana protagonizaria o domínio francês com a seguinte “seleção” estética: ocultar a
descrição da Argélia, particularmente quanto a seu contexto de geografia explorada e
dominada pelo imperialismo, de modo que o cerne de seus textos seriam dilemas filosóficos
franceses, as angústias dos cidadão franceses voltados para um Pós-guerra europeu, ainda que
estivessem sobre o solo argelino. É nesse sentido que Said assinala ser a literatura camusiana
dirigida a um público francês (seja na França, seja na Argélia), isto é, uma produção que
dialoga com o que representa valores e leitores franceses. Tal conotação literária, para o autor,
é o símbolo de que, na Argélia, viver-se-ia na França e na Europa, porque o país era seu
território, sua extensão além-mar, de maneira que as particularidades locais e geográficas nos
romances de Camus estariam marginalizadas, inferiorizadas, como assim foi o povo argelino
na “teoria imperial francesa” tal qual é descrita pelo crítico. É o que está afirmado nos
seguintes trechos:
81
Camus é o único autor da Argélia francesa que pode ser considerado
justificadamente como escritor de estatura mundial. Tal como Jane Austen
um século antes, Camus é um romancista que não descreve os fatos da
realidade imperial, evidentes demais para serem mencionados; como em
Austen, permanece um ethos que se destaca sugerindo universalidade e
humanismo, em profundo desacordo com as descrições do palco geográfico
dos acontecimentos, feitas de maneira chã na ficção. Fanny abrange
Mansfield Park e a fazenda de Antiguar; a França abarca a Argélia e, no
mesmo gesto narrativo, o assombroso isolamento existencial de Meursault.
Camus é uma figura imperial bastante tardia que não só sobreviveu ao auge
do império, mas permanece ainda hoje como um escritor “universalista” com
raízes num colonialismo agora esquecido. As narrativas de Camus sobre a
resistência e o confronto existencial, que antes pareciam falar da luta contra
a mortalidade e o nazismo, agora podem ser lidas como parte do debate
sobre a cultura e o imperialismo (1995, p. 224).
Da mesma forma, Conrad e Camus não são meros representantes de
algo tão relativamente imponderável quanto uma “Consciência ocidental”, e
sim, da dominação ocidental no mundo não europeu (1995, p. 225).
Said, em contrapartida, faz a ressalva de que não há nenhuma razão para Camus ser
responsabilizado, por mais desgraçada que esta seja, pela “natureza coletiva do colon francês
na Argélia” (1995, p. 226), uma vez que sua criação francesa no país “não o impediu de
escrever um famoso relatório pré-guerra sobre as misérias do lugar”, decorrentes do
colonialismo. Contudo, paradoxalmente, desabona o escritor quando afirma haver uma
contradição na sua postura de intelectual político, a partir do pressuposto de que nele ter-se-ia
o “homem moral numa situação imoral”, pois, segundo Said, a sua escolha de enfocar o
individual num contexto social, o afastaria da crítica ao colonialismo, sendo, pois, essa
tendência acrítica o que se observaria em O estrangeiro, A peste e A queda, obras nas quais
Camus não valorizaria o relato do colonialismo, mas sim “o auto-reconhecimento, a
maturidade desiludida, a firmeza moral diante de condições ruins” (1995, p.226)
representados pelos personagens dessas histórias. Volto, mais a diante, a comentar sobre essa
tendência de Said de ora desassociar, ora associar as posturas dos escritos de Camus no plano
da ficção e da crítica política.
A tese de Said sobre a “escolha” da marginalização da geografia argelina nos textos de
Camus é a seguinte: não seria feita de modo inocente, mas pensada, para que a Argélia figure
a França e “de modo geral, a França sob a ocupação nazista” (1995, p. 227) e argumenta: “boa
parte do que aparece nas narrativas (por exemplo, o julgamento de Meursault) é uma
justificação sub-reptícia ou inconsciente do domínio francês ou uma tentativa ideológica de
embelezá-lo” (1995, p. 227). Said se mostra convicto, assim, de que a forma e o significado
ideológico das obras camusianas se referem e consolidam o imperialismo francês na Argélia.
82
Sob tal perspectiva, passa a assinalar uma “falta histórica” no escritor, a qual estaria ligada ao
seu lugar de sujeito “franco-argelino”, de colono, de modo que, segundo ele, um argelino não
ousaria produzir tal falta histórica em sua possível ficção ao localizá-las na Argélia: “Salvo
algumas exceções, de modo geral ele ignora ou passa por cima da História, coisa que um
argelino, para o qual a aplicação diária de poder, não faria” (1995, p. 227). Para um argelino,
assim, na visão do crítico, 1962 seria visto como um ano de libertação, de inauguração de
novos tempos, após uma longa e infeliz história iniciada em 1830, com a invasão francesa.
Sob tal desenho, sua leitura parte, então, de uma correlação direta entre projeto ficcional
camusiano e projeto imperialista francês. Sobre os romances, diz ser uma forma correlata de
interpretá-los passar a “vê-los como intervenções na história das iniciativas francesas na
Argélia, de fazê-la e mantê-la francesa, e não como romances que nos falam do estado de
espírito do autor” (1995, p. 227).
A visão de Said, remarco, endossa a existência de um binarismo estreito entre as
posições de argelinos e franceses numa possível representação da Argélia, como se houvesse
um mecanismo fixo e transparente de representação: argelinos recusariam necessariamente a
dominação francesa/ franceses imporiam necessariamente a dominação. A própria abordagem
de Stuart Hall, aqui comentada, assim como a de Hommi Bhabha em O local da cultura
(2003), alertam para o fato de que no campo das relações coloniais e pós-coloniais, os
binarismos caem por terra, sendo os sujeitos atravessados por visões de mundo ambivalentes,
conflitantes, contraditórias e, portanto, falhas às representações centralizadoras, cristalizadas
das relações entre colonizador e colonizado, como se nelas não houvesse espaço para que
questionamentos se instalem e quebrem barreiras. A questão é que, diferente do que Said
argumenta neste seu ensaio, não há como garantir que todo argelino se nutra de apenas uma
visão “x” sobre a França, isto é, de pura resistência, bem como, não há como determinar que
todos os sujeitos franceses tenham apenas uma visão celebrativa da colonização. Há uma
diversidade de sujeitos atravessados pelas conflituosas marcas da colonização e isso as
palavras de Said parecem desconsiderar, o que se faz um verdadeiro paradoxo em seu
pensamento versado em Cultura e imperialismo (1995), uma vez que ele próprio demonstra
na seção introdutória da obra, aqui comentada no capítulo um, a consciência das implosões
dos antigos binarismos no campo pós-colonial.
No caso da ficção de Kamel Daoud em O caso Meursault, é possível identificar que o
escritor argelino elabora, na tessitura da sua narrativa, o que Said entende como uma “falta
histórica” na ficção de Camus: a descrição mais detalhada da geografia argelina e do contexto
83
de dominação francesa e subjugação do povo árabe, sua marginalidade, sua história relegada
ao analfabetismo e ao trabalho subalternizado, às posses tomadas, sejam elas referentes às
propriedades, como casas e fazendas, aos acidentes geográficos, como o mar, os jardins,
sejam elas concernentes às próprias mulheres argelinas, encaradas pelo narrador (impregnado
pela ideologia patriarcal), singularmente, também como “propriedades” do país tomadas pelos
colonos. Nesse sentido, a obra de Daoud parece se colocar como uma resposta à de Camus
atravessada pelos argumentos colocados por Said, isto é, Daoud suplementa com a geografia e
a História da Argélia a obra do escritor francês naquilo que este teria “ocultado”, por exercer
através da cultura literária o projeto imperialista francês.
Contudo, é preciso remarcar que o narrador Daoudiano não o faz sem apresentar uma
subjetividade ambivalente. Ao mesmo tempo em que ele repele, condena e critica a
dominação colonial francesa, aceita e recebe para dialogar o francês (o intelectual francês que
é o narratário no texto) sobre o passado histórico do país tal como este está “transposto” ou
mesmo ocultado em O estrangeiro. Do mesmo modo, este mesmo intelectual francês não
impõe sua fala ao narrador Haroum, pelo contrário, ele está localizado na obra por Daoud
como alguém que em vez de exercer uma “teoria colonial” pela força e imposição de sua voz,
realiza um gesto de escuta para o que Haroum tem a dizer sobre “o caso Meursault”. O
narratário francês, então, reconhece não saber com todos os detalhes da história, mas o que
sabe apenas é de acordo com a versão exclusiva de Meursault e do escritor francês. Na obra, o
intelectual francês escuta, e o argelino vindo de uma família de pouca instrução fala. Eles
dialogam, mas a voz que se lê é apenas argelina, a qual ecoa, em certro sentido, a francesa, ao
respondê-la ou retomá-la para constituir-se em alguns momentos. Nesse formato estético da
narrativa em diálogo21, quando um argelino reconstrói a história da Argélia numa narrativa
sobre um “livro” francês que teria ocultado a geografia local e suas tensões históricas
coloniais, isso não é feito de modo simplista, binário, sem intersecções e sem ambivalências
como supôs categoricamente Said. As suposições de Said, assim, falam mais sobre o seu
próprio projeto crítico e método de encarar os sujeitos dentro do binômio “periferia x
metrópole” do que da propriedade das obras enquanto fenômenos estéticos que se prestam a
múltiplos olhares e possibilidades de leitura.
Na continuidade da sua abordagem ao longo do texto, o próximo passo de Said é
estender a declarada oposição de Camus em depoimentos políticos à independência Argelina
em analogia ao seu modus operandi ficcional, como se seus romances e contos defendessem

21 O tópico será desenvolvido em item específico do Capítulo 4.


84
ideologicamente a dominação francesa na Argélia pari passu sua opinião subjetiva de colono.
Para elucidar seu argumento, o autor transcreve a declaração de Camus, presente na obra
Essais:

Nunca houve uma nação argelina. ... A importância e a antiguidade do povoamento


francês, em particular, bastam para criar um problema que não pode se comparar a
nada na história. Os franceses da Argélia são, eles também, e no sentido forte do
termo, nativos. Cumpre acrescentar que uma Argélia apenas árabe não conseguiria
aceder à independência econômica sem a qual a independência política não passa de
um engodo (CAMUS, apud SAID, 1995, p. 232).
Ou seja, Said destaca que a posição de Camus defende a legitimidade da presença
francesa na Argélia e, ao mesmo tempo, subestima a população local de fazer-se independente
economicamente, ainda que politicamente, reafirmando a superioridade francesa sobre os
“árabes”. O crítico interpreta que tal postura ensaística, na condição de posicionamento
ideológico de Camus, estaria transposta para sua literatura, sobretudo no aspecto em que seus
romances ocultariam a geografia da Argélia, travestidos de universalismo, e minimizariam a
presença árabe nas histórias. A ausência de nome para o árabe assassinado em O estrangeiro
seria, para Said, nesse sentido, o reflexo da posição ideológica de Camus, que propaga a teoria
imperialista francesa, a qual, por sua vez, inferioriza os nativos e se apropria de seus
territórios, excluindo-os do poder sobre o país. Afirma o autor de Cultura e imperialismo:

Assim, quase cinquenta anos após sua primeira edição, os romances de Camus são
lidos como parábola da condição humana. É verdade que Meursault mata um árabe,
mas esse árabe não tem nome e não parece ter história, muito menos pai e mãe; é
verdade que a peste também mata árabes em Oran, mas tampouco eles têm nome, ao
passo que Rieux e Tarrou são impelidos à ação. Naturalmente, podemos dizer que os
textos devem ser lidos pela riqueza que contêm, e não pelo que eventualmente tenha
sido excluído. Mas o que quero frisar é que encontramos em seus romances aquilo
que, antigamente, julgava-se ter sido eliminado – detalhes daquela conquista
imperial muito claramente francesa que começou em 1830, prosseguindo durante a
vida de Camus e projetando-se na composição de textos (1995, p. 228).
É por apresentar tal configuração que o crítico confere a Camus o título de escritor que
põe em prática um “gesto imperial” (1995, p. 229), minimizador da presença “árabe” em suas
composições. Não nomear o “árabe”, não conferir a ele uma identidade é, no seu
entendimento, uma seleção ficcional explicada pelo empreendimento de Camus de fazer a
França dominar o espaço narrativo argelino pela inferiorização da figura nativa e, nesse
campo, se inseriria

a ausência de qualquer contextualização do árabe morto por Meursault; daí também


o senso de devastação de Oran que se destina implicitamente a expressar não tanto
as mortes árabes (que, afinal, são os únicos que importam em termos demográficos),
e sim a consciência francesa (1995, p. 232).
85
Para assegurar a sua tese sobre a obra de Camus, Said ainda assinala que há uma
correspondência entre a sua produção literária e o projeto educacional colonial, tal como este
se realiza na escritura da História em livros didáticos escolares. Os livros estampavam a
imagem de uma França civilizadora, que agia não exatamente por violência deliberada, mas
pelo fato de que os “árabes” só entendiam a linguagem da força. Assim como os livros
escolares, os contos e romances de Camus trazem histórias ficcionais que “narram o resultado
de uma vitória conquistada sobre uma população muçulmana dizimada e pacificada, cujos
direitos a terra foram seriamente restringidos” (1995, p. 234).
Descrita a lógica do pensamento de Said com relação a Camus, segue-se, agora, a uma
breve análise de seus pontos problemáticos. Primeiramente, justiça seja feita, a abordagem de
Said aponta para uma perspectiva bem diversificada da trazida por Sartre e Barthes, as quais
são as mais indiscriminadamente reproduzidas quando o assunto é ler a obra do escritor.
Nesse sentido, Camus é dinamizado e revitalizado pela Crítica pós-colonial de Said, na
medida em que sua obra ganha nova vida em novas possibilidades de leitura. A imagem de
Camus é reconfigurada em Said, de modo que à sua imagem de escritor universalista, que se
ocupa de um “mal-estar” da condição humana, acrescenta-se outra: a de escritor imperialista,
que age conjuntamente ao exército francês e às demais forças administrativas na execução do
projeto colonial de dominar o território argelino por intermédio da força francesa, só que,
nesse caso, uma foça cultural e literária que opera pelo recurso estético da “ocultação” e
“minimização” da presença e identidade argelinas no território francês: a Argélia.
A esse respeito, a tese que defendo aqui é a de que a abordagem de Said é
significativa, porém não se faz necessário absolutizá-la. Não cabe entendê-la como a
“verdadeira” forma de perceber Camus, antes agraciado por uma crítica eurocentrada e
supostamente limitada à filosofia ocidental. Seu mérito suplementar deve ser reconhecido e,
através dele, é possível aprender outro Camus e outro O estrangeito, A peste, A queda, por
exemplo, romances os quais não haviam sido visitados desse modo, senão por meio do
“adentramento” oportunizado pelo olhar de Said. Contudo, a leitura do autor de Cultura e
Imperialismo me parece dotada de uma dinâmica linear que entende o texto literário por uma
perspectiva, de certa forma, normativa e pouco atenta a suas possíveis ambivalências, a seu
caráter específico de se fazer polissêmico. Como diz Wolfgang Iser (2002) em “Os atos de
fingir e o que é fictício no texto ficcional”, os escritores, no processo de ficção, 1) selecionam
elementos estéticos (personagens, lugares, etc), 2) passam a combiná-los dentro de
ordenamentos variados possíveis e, assim, nesse jogo de seleção e combinação, 3) colocam a
86
realidade entre parênteses, isto é, em suspensão, estabelecendo o como se literário, que seria,
na realidade, a ideia de que aquele imaginário antes solto, difuso e, agora, realizado na
escrita, se torna um campo de possibilidade de sentidos, e não o campo do real, dotado de
uma significado unilateral. A abordagem de Said, em certo sentido, parece não focalizar a
obra por esse prisma apontado por Iser, isto é, desconsidera, seu estatuto ficcional por
natureza. Como ficcionista, entendo, diferentemente de Said, que Camus não estaria
“deixando de descrever” a realidade colonial, mas seus atos de “seleção” e “combinação” não
priorizam a geografia da Argélia do modo estético idêntico como Said cobra, isto é,
“explicitamente descritivo”, fazendo declaradamente com que “árabes” tenham nomes e
possibilidades de ação tão quanto os sujeitos franceses nos textos. Ao proceder dessa forma, o
pensamento de Said deixa de contemplar a polissemia de significados quanto à experiência
colonial presente em O estrangeiro, por exemplo.
A minha interpretação é a de que para além da legitimidade da abordagem de Said,
existe um O estrangeiro que pode ser lido menos como um escrito de um puro “espelho” do
projeto de dominação colonial francês, do que como uma obra de ficção dotada de suas
ambivalências semânticas. Defendo que, para além de verificar na obra uma intenção
premeditada da autoria, coisa já desmistificada pelo próprio Barthes em O rumor da Língua
(2004b), no texto clássico “A morte do autor”, ou mesmo por Antoine Compagnon em O
demônio da teoria (1999), faltou a Said ver o romance, primordialmente, como literatura e
ficção, não como mero registro documental da dominação, e, como tal, faltou-lhe o
discernimento de que diante de um texto literário não se explica unicamente ou se limita seus
sentidos pela estratégia de emparelhamento de seu conteúdo a posições políticas declaradas
por seus autores em escritos de outra natureza de gênero, como o ensaio. O que Camus
declara em Essais, como sua subestimação do povo árabe e a defesa da dominação francesa
(já que franceses formam também população nativa da Argélia), não seria o espelho dos
sentidos petrificados em seus romances. Para além de uma intenção autoral, existe o texto
literário em si, e suas pistas textuais podem, na interação obra x leitor produzir significados
sequer vislumbrados pela autoria (COMPAGNON, 1999). Tal entendimento é o legado
teórico da Estética da Recepção alemã, que, nas figuras de Iser (1979) e Jauss (1994), revelam
não haver proprietários de sentidos dos textos, o que há são leituras construídas a partir da
interação texto x leitores.
Nesta perspectiva, considero muito possível entender O estrangeiro também pelo
seguinte viés: trata-se de uma obra literária narrativa em que a voz que encabeça a história é a
87
voz de um narrador colono francês: Meursault. Considerando, nessa dinâmica, a “experiência
colonial francesa” de um modo diverso do executado por Said, é um caminho de leitura viável
ver nessa “seleção” de narrador de subjetividade francesa que oculta o árabe uma revelação
crua feita pelo texto da dominação colonial da França na Argélia e, assim, da geografia
argelina tomada pela França. A obra de Camus traria, de modo, sim, visível e palpável, não de
“maneira chã” e “oculta” na ficção, como sugeriu Said, um narrador colonizador,
eurocentrado, ensimesmado, que se coloca como protagonista absoluto e que, então, fala
basicamente de si mesmo, ainda que em muitos trechos se refira a e verdadeiramente descreva
os hábitos repetitivos de seus conterrâneos franceses que viviam na Argélia colonial. Esse
narrador conta, indiferentemente, que matou um árabe, minimiza a presença dessa figura
argelina e, por extensão, de toda a população nativa (quando as representa o faz sem conferir
nomes ou identidade, descrevendo-as como produtoras de ruídos de flauta ou as silencia em
espaços públicos, como as ruas de Orã, ou em suas cadeias).
Não há que se afirmar, contudo, que Camus em pessoa desejou premeditadamente
oportunizar tais imagens, mas considero que a sua obra, com tais pistas seletivas em sua
forma estética, oportuniza que os leitores pensem como seria ou como foi a figura do
colonizador francês na Argélia: aquele que criou uma narrativa como dominador da história,
como assassino, minimizador da alteridade argelina. Tal retrato pode ser visto na obra não
apenas ao modo de Said como o executar de um “gesto imperial” de Camus, mas também
pode ter uma segunda leitura e revelar uma ambivalência: a obra abre espaço para que se leia
uma “descrição”, sim, do “gesto colonial” francês no personagem Meursault, e, assim, ao
revelar a dominação, abre espaço também para a sua percepção e crítica. Said, em excerto
recortado acima, reclama que “tal como Jane Austen um século antes, Camus é um
romancista que não descreve os fatos da realidade imperial” (1995, p. 224).
Entretanto, na minha visão, o escritor apresenta, sim, essa realidade ao selecionar um
narrador francês com tal perfil de Meursault: dominador do espaço narrativo, das
representações subjetivas de árabes e franceses. O que talvez Camus não faça é uma
“descrição” numa seleção estética compatível com a cobrança de Said ipsis litteris.
Possivelmente, aí residiria certo normativismo na abordagem do crítico: exigir de Camus um
“relatório da colonização”, quando o que Camus escreve é um romance, impassível de se
conter as formas cristalizadas de descrição do real exigidas pela crítica e sua plataforma
conceitual e política. A literatura não existe para “descrever” o real de um modo determinado
e que responda univocamente aos desejos das gerações de intérpretes; existe, diversamente,
88
para recriá-lo, para versar sobre uma possibilidade de encará-lo através de uma forma estética
livre, a qual pode ensejar múltiplas visões dos leitores e leitoras, bem como não se prende ao
projeto autoral inicial.
Outro aspecto que merece atenção em O estrangeiro e que foge ao determinismo
interpretativo de Said (direcionado a julgar a obra como um total “gesto imperial”) é o fato de
que há uma punição jurídica ao narrador francês assassino do árabe na colônia francesa.
Ainda que Meursault, esse narrador com um perfil de colonizador, mate o árabe em “uma
praia onde havia sido feliz” (CAMUS, 2016, p. 64), ou seja, em pleno espaço geográfico
argelino, dominado pela invasão francesa (isto é, a praia, as cidades litorâneas), a história é
conduzida para que ele passe por um processo judicial, por um julgamento em que vem a ser,
de fato, condenado. O assassino é, então, punido, ou seja, o colonizador perde a sua liberdade
mecânica de ir e vir dentro do território geográfico e dentro de uma ordem jurídica colonial
que, como assinalam Fanon (1965) e Mustafa Yazbek em A revolução argelina (2010),
costumava arbitrariamente privilegiar franceses em detrimento dos direitos dos nativos. Nessa
conjuntura, o romance, no plano ficcional, subverte uma ordem de privilégios e de uma justiça
francesa colonial seletiva que beneficiava, no plano da conjuntura política argelina, a França
em detrimento da Argélia.
O romance, a meu ver, torna ainda mais evidente as contradições visíveis na
representação da França ao retratar o julgamento de Meursault como retratou, isto é, pautado
menos no crime em si que na transgressão operada pelo protagonista na ordem social
francesa, enquanto “homem absurdo”. Retratar o problema na justiça francesa no território da
colônia é questionar, na obra, a sua imagem exemplar de nação que se coloca para o mundo
como democrata, revolucionária em nome da igualdade, liberdade e fraternidade. Assim, na
França, para os franceses, a nação ostenta a defesa da justiça, em contrapartida, na posição de
metrópole dominadora e manipuladora dos direitos da colônia argelina, sua imagem de nação
justa desaba. O julgamento de Meursault na obra revela, então, que a sua condenação, como
reforçou Sartre em sua “Explicação de O estrangeiro”, não o conduz à punição por ter
executado um nativo, ou mesmo por sequer saber seu nome e sua história. O julgamento se dá
por este narrador colono/colonizador ser “um estrangeiro” aos códigos franceses, códigos de
conduta moral familiar e religiosa22.
Ademais, uma vez na Argélia, o narrador colonizador francês estaria sujeito a outras
leis geográficas vivificadas pelo romance e que remarcam a todo tempo que o personagem se

22 O aspecto, dada a sua importância, é retomado nos próximos capítulos.


89
sente um corpo “estrangeiro” numa geografia climática a ele “estrangeira” e incômoda. A
geografia mediterrânea, o calor solar da região que incomodam Meursault a todo momento e
podem ser lidos como elementos indicadores de que a presença de um francês naquele
território é “estrangeira”, e não nativa. A geografia climática não seria, pois, hospitaleira para
com o colono e, nesse sentido, tem-se em Camus a representação simbólica de uma natureza
argelina personificada e que não receberia de bom grado a colonização. Entretanto, mesmo
diante do sol, da adversidade climática, da nota geográfica “afirmando” que um corpo francês
não suportaria aquela geografia escaldante, Meursault é um personagem que persiste em seu
desejo de ocupar sozinho a praia, de não dividi-la com a presença “árabe” e, então, assassina o
nativo, que lhe aparece com uma faca e representa uma “ameaça”. Clima e povo argelino
ameaçariam, dessa forma, a ocupação francesa no território colonial.
Esses podem ser sentidos passíveis de serem encontrados no texto, pelos quais Said
não navega, mas que, sim, demonstram que o romance de Camus não procedeu a uma simples
“ocultação” da descrição colonial ou da geografia argelina dominada pela França. Para
lembrar o Hamlet (SHAKESPEARE, 2008), “existem mais pistas no texto do que sonha a
filosofia de Said”. Por outro lado, esta observação não se trata aqui de uma desvalidação da
sua abordagem em Cultura e imperialismo. Na verdade, se trata mais de validar o texto
literário como um gênero de sentidos ilimitados, o que não acontece com o gênero da crítica
literária, o qual, pela escolha de leitura, pelo projeto de defender uma tese em sentido
denotativo, acaba confinada à sua missão necessária: encontrar uma chave de interpretação,
que é também uma tomada de posição ideológica. Acontece que as obras são abertas e, muitas
vezes, as chaves de leitura surgem para, em diversos casos, “fechá-las”. A dogmatização
talvez seja o preço ingrato que todo crítico tributa ao texto que estuda. Contudo, a
dogmatização da crítica é sempre um processo também de criação de sentidos para o texto;
paradoxalmente, também é uma forma de renová-lo e traduzi-lo. Como diria João Alexandre
Barbosa23 em As ilusões da modernidade (2005), o exercício da crítica é um exercício de
tradução que, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que contém/ freia a obra, a movimenta
ao longo do tempo e dos significados.
Estabelecendo uma ponte com a Literatura brasileira de Machado de Assis, a qual,
como sinalizei na Introdução deste trabalho, se constituiu como meu objeto de pesquisa no
Mestrado, e o caso da crítica de Said perante Camus, gostaria de pontuar um observação
curiosa. Vejo a exigência de uma descrição determinada ao seu modo explícito da colonização

23 Autor cujas ideias são retomadas no Capítulo 4.


90
francesa na Argélia feita por crítico palestino frente ao escritor francês como algo similar
ocorrido entre certa parcela da crítica brasileira e a obra de Machado de Assis em relação a
uma possível “ausência” dos “retratos da escravidão” em seus romances e contos. Considero
que o caso de Camus é um tanto semelhante ao de Machado neste aspecto. O escritor
brasileiro escreve boa parte de seus romances a partir de narradores da elite aristocrática
brasileira do século XIX. Estes narradores estão voltados para si, para unicamente suas
questões internas, para seus feitos no seu minúsculo círculo elitista, não se conferindo, muitas
vezes, a oportunidade de sequer olhar e falar sobre o “outro”, sobre o escravo, de uma forma
que não seja para violentá-lo ou excluí-lo e minimizá-los nas cenas narradas (DUARTE,
2013). No conto Missa do Galo (1986), por exemplo, o narrador-personagem Senhor
Nogueira coloca em primeiro plano seu desconsertar a respeito de uma conversa que teve na
noite de Natal com uma senhora casada, Conceição. O conto está centrado no diálogo
notívago e transgressor entre os dois: um jovem de 17 anos e uma senhora casada de 30. Os
escravos da diegese são duas mulheres negras sem nomes, que aparecem na introdução do
texto, localizadas nos fundos da cozinha, ou seja, a realidade de base colonial do Brasil ainda
latente no século XIX, pautada por uma sociedade aristocrática e escravocrata estava presente
e desenhada, sim, no texto, estava lá representada, contudo, as seleções e combinações
estéticas operadas pela escrita de Machado não foram lidas e notadas pela crítica que o
comentou, a qual dele exigia outra escrita, possivelmente dotada de “atos de fingir” diversos,
talvez mais realistas, “retratistas”, como se a ficção tivesse a função de “relatório” ou
“espelho” unívoco do real.
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1986) e o escravo animalizado que aparece como
“brinquedo”, um “cavalo” a ser chicoteado pelo narrador aristocrata, Brás Cubas quando
criança, bem como Dom Casmurro (1986) e o escravo que substitui o narrador Bentinho no
seminário, para que este se liberte da promessa materna e venha a se casar com Capitu, são
amostras romanescas de como a dita “marginalização da escravidão” na obra machadiana não
pode ser lida apenas como um simples “ocultar” da realidade brasileira, mas pode também ser
vista como a sua total presença, entretanto elaborada pelas teias estéticas próprias da ficção
literária machadiana. Uma ficção que opera pela dominação de narradores elitistas, os quais
nem sempre reservam, em suas falas, lugares para os sujeitos explorados e inferiorizados na
sociedade de bases coloniais. É nesse ponto que vejo um encontro, uma semelhança estética,
entre as produções de Camus e Machado de Assis: elas falam sobre narradores
“ensimesmados” (DAL FARRA, 1978) e sobre o que eles escolhem narrar da posição de
91
privilégio, de dominação em que se encontram. São ficções em que os narradores se mostram
controladores do discurso, são narradores que violentam, são narradores que usurpam direitos
das figuras subalternizadas em suas realidades sociais características. Nesse sentido, tanto a
obra de Machado, quanto a de Camus, ao trazerem indiretamente a subalternização dos
sujeitos sociais inferiorizados de seus locais, a partir da técnica da narrativa apoiada na figura
do narrador-personagem, podem, sim, ser vistas como uma forma de “revelação” das
psicologias sociais desses narradores e, portanto, da geografia local onde se inserem como
figuras privilegiadas e dominantes: o colonizador/ homem absurdo voltado para suas
angústias, em Camus, o aristocrata escravocrata em Machado.
Através dessa comparação entre a Literatura argelina e a brasileira (Camus x
Machado), bem como do modo como a crítica pode operar por uma “cobrança” normativa
diante dos autores a partir de seus pressupostos teóricos e posicionamentos ideológicos de que
eles representem o real de modo espelhado, transparente e direto, pretendo lançar luz sobre o
ponto de que a Crítica pós-colonial de Edward Said cumpre sua função de apontar novos
sentidos para a recepção da obra de Camus em fins do século XX, ao mesmo tempo que
ofusca, de certa maneira, a sua potência enquanto ficção, que, pela sua natureza, pode se
oferecer também como local de “ambivalência”. Nesse sentido, é preciso reverenciar a
contribuição de Said, mas não necessariamente repeti-lo. A minha tese consiste na percepção
de que se O estrangeiro pode ser visto como o faz Said, isto é, como um “ocultamento” de
Camus da geografia argelina e, assim, como um romance de minimização do povo árabe, pelo
fato de o escritor se “emparelhar” com o projeto imperialista francês, da mesma forma, ele
também pode ser encarado por uma segunda perspectiva: a que o toma como um romance
ambivalente em seus significados. Explico: a obra pode ser concebida como uma escrita que
tem a potência de revelar como um narrador francês se mostra dominador e violento. Nessa
segunda perspectiva, O estrangeiro vigora como uma ficção que pode ser lida também como
uma “denúncia crítica” desse mesmo projeto de imperialismo francês na Argélia.
A diferença que observo da minha percepção “ambivalente” em torno de O
estrangeiro frente à de Edward Said é a de que enquanto Said trabalha para provar a tese de
que o romance é, em si, um projeto de dominação colonial, “um gesto colonial”, a minha
visão propõe que se leia a obra mais como literatura – linguagem carregada de significados
(POUND, 2006) – do que como apenas um projeto ideológico. As obras veiculam as
ideologias de seus atores? Sim, mas essas ideologias não são extraíveis exata e
cientificamente do corpo textual como um feto é extraído de um útero numa maca hospitalar
92
numa situação de aborto. Ainda que fosse possível tal extração, a obra literária não está presa
aos projetos ideológicos dos seus autores em seus contextos de produção. Como dizem
Barthes (2004b) e Iser (1979), as obras literárias são “escrevíveis” na relação com seus
leitores e suas múltiplas visões diante das pistas textuais. Sendo assim, há em O estrangeiro,
alguma “coisa” que não se petrifica: a narrativa encabeçada por um personagem francês num
espaço narrativo da Argélia colonial. Esta narrativa, ao ser assim colocada por Camus, abre
espaço para que se debata, para que se critique essa personagem, suas escolhas, seus
procedimentos. Se a crítica eurocentrada de Sartre e Barthes praticamente “inocentam”
Meursault de matar um árabe pelo viés do “absurdo” ou do Sol, a crítica de Said o condena
por vê-lo como um “colonizador” que minimiza o argelino. A verdade é que Said só chega a
essa conclusão, que é, em si, um significativo suplemento à História da recepção deste
protagonista, frequentemente circunscrito a um universalismo (concordo nesse sentido com o
crítico), e assim, revela uma nova forma de “adentramento” no texto, que, de fato, expõe as
inter-relações entre cultura e imperialismo, justamente porque a obra camusiana lhe conferiu
pistas explícitas, não de “maneira chã na ficção”, ou mesmo “ocultas”, para fazê-lo. Estas
pistas são os elementos que fundamentam a sua crítica, essas pistas em si já podem ser vistas
como um “colocar em suspensão”, um colocar em “crise” as figuras de colonizador e
colonizado. Assim, vejo que a própria ambivalência de O estrangeiro penetra Said,
fundamenta seu olhar, mas ele não opta por destacá-la. É o que nesta seção procurei
descrever: a potência ambivalente, múltipla das “explicações de O estrangeiro”.
Kamel Daoud, em O caso Meursault, dialogará com a ambivalência de O estrangeiro
de modo particular. É o que se confere na abordagem do Capítulo 4. Contudo, no capítulo
seguinte, apresento uma revisão crítica sobre o clássico francês levada pelos sentidos
sugeridos no romance paródico do escritor argelino.
93

4 O CASO MEURSAULT E A QUESTÃO DE GÊNERO EM O ESTRANGEIRO

4.1 O ESTRANGEIRO: COLONIZAÇÃO E GÊNERO

Nesta seção, apresento uma leitura particular de O estrangeiro. Depois do contato com a
reescritura criada por Kamel Daoud do “primeiro romance clássico do Pós-guerra”
(BARTHES, 2004), não há como ignorar que “o caso” do narrador Meursault convida a
crítica contemporânea a um reexame da obra camusiana a partir de novas perspectivas
teórico-críticas. É esta, pois, minha tarefa: reinterpretar O estrangeiro, uma vez que sua
paródia em romance (HUTCHEON, 1991), O caso Meursault (2013), assim sugere neste
século XXI.
Neste exercício, sustento que o romance paródico de Daoud indica ser de significativa
importância focalizar a “questão de gênero” na obra de Camus. Assim, ocupar-me-ei das
mulheres e dos homens criados como personas na obra, enfatizando a relação existente entre
“colonialidade e gênero” (LUGONES, 2008). É este aspecto, afirmo sem tanta surpresa, um
ponto um tanto negligenciado pela crítica tradicional do século XX. A questão de gênero em
O estrangeiro foi tão subalternizada quanto foi “o árabe” (assassinado a tiros) pela narrativa
de Meursault e pela história da recepção do romance de Camus.
Tal olhar sobre a problemática de gênero, contudo, é necessário remarcar, não se faz de
modo gratuito, simplesmente porque este seria um recorte de análise que o meu desejo
exclusivo de pesquisadora necessita levar adiante de modo individual, impondo-se ao texto.
Não é essa, de fato, a minha percepção. Na realidade, tal “recorte de gênero” (aqui o encaro
dessa forma: um “recorte possível”) se trata mais da iniciativa de ouvir um “pedido” de leitura
interpretativa feito pelas “pistas textuais” do romance O caso Meursault (2013). Como coloca
Inocência Mata (2016), cuja visão aqui já fora discutida no primeiro capítulo, este recorte se
interpõe como, em perspectiva pós-colonial, “outro lugar de adentramento” para a leitura
crítica do clássico camusiano, um lugar diverso daquele ocupado pela crítica do século XX
aqui discutida.
Como vem sendo exposto ao longo desta tese, na obra de Kamel Daoud, o narrador
Haroum escolhe personagens e fatos em O estrangeiro para desses falar sob sua ótica de
“homem” argelino que retoma a história de seu irmão (o qual, agora, em sua narrativa, recebe
um nome, antes inexistente: Moussa), assassinado por outro “homem”, um colono francês,
94
nomeado Meursault e revestido, no clássico camusiano, do poder de narrar como assassinou
“um árabe” e como foi julgado por “seu crime” pela justiça francesa. As palavras do narrador
argelino o fazem, defendo e explico neste trabalho, acionando pontos interligados a questões
que envolvem gênero e colonização. Haroum retoma a narrativa meursaultiana, da primeira
metade do século XX, para recontá-la, criticá-la, dizendo o que sente ao revisitá-la por meio
de sua memória. Nesse seu movimento de rememorizar o “lido” numa obra francesa (haveria,
metaficcionalmente, “o livro” escrito pelo autor Meursault na obra) e o “vivido” em família
argelina, destaco a presença daquilo que o texto de Daoud, com certa evidência, “seleciona” e
“combina” para montar o seu “como se” literário (ISER, 2002): representações de
masculinidades, certa misoginia e outras representações cristalizadas e patriarcais das
mulheres (francesas e argelinas), sacralização e culpabilização da figura materna.
A questão de gênero, pois, na obra de Kamel Daoud, se faz presente, a meu ver, na
maneira como o narrador reapresenta as figuras da “mãe árabe”, das mulheres de Orã e da
França, dos homens nativos e colonos, esses em jogo com o delinear das “masculinidades
hegemônicas” (MEDRADO & LYRA, 2008) na conjuntura particular das relações entre a
cultura argelina e a francesa sob as marcas da colonização. Recortar este aspecto de gênero e
colonialidade em O estrangeiro é, dessa maneira, investigar em Camus aquilo que Daoud põe
em crise e sob a luz de refletores: existiriam “bastidores” da narrativa de Meursault ignorados
por uma tradição de leitores que construíram uma imagem interpretativa de O estrangeiro de
modo eurocentrado. “Bastidores” que seriam passíveis, então, de uma revisão crítica, a qual
pode se colocar mais atenta às relações de gênero interseccionadas pela colonização francesa
na Argélia e seus atravessamentos pelas categorias de raça, classe, religiosidade.
Nessa conjuntura, faço minhas as palavras de Barthes em seu ensaio O estrangeiro:
romance solar (2004), já aqui comentado, o qual, junto ao artigo de Sartre, A explicação de O
estrangeiro (2005), funciona como uma das interpretações críticas mais repetidas em décadas
por professores, jornalistas, booktubers (blogueiros de crítica literária)24 ao se referirem, em
pleno século XXI, ao O estrangeiro, classificando-o como um romance “solar”, emblemático
da “filosofia do absurdo”: “a obra envelhece bem, amadurece, segue o tempo e põe à mostra,
pouco a pouco, poderes ocultos” (2004a, p. 96). Assim, tal como o autor de O rumor da
língua assinala, Camus teceu uma obra de “poderes ocultos”, de sentidos múltiplos, de modo
que, mesmo mediante várias e várias leituras, ela teria a faculdade de manter significados
camuflados.
24 Como um exemplo, cito o vídeo intitulado O estrangeiro (Albert Camus) do canal no Youtube de Tatiana
Feltrin, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9rmUWgX-6zg
95
Esta pesquisa procura, desse modo, nesta seção, demonstrar outros sentidos ainda pouco
visitados em O estrangeiro, sentidos, portanto, diversos dos produzidos por uma engrenagem
crítica já consolidada e posta em repetição até o presente momento com evidência e prestígio,
como se o texto de Camus estivesse limitado ao circuito da filosofia do Pós-guerra, à
plataforma de conhecimento eurocentrada e seus conflitos centrais articulados à falta de
sentido vivenciada pelo “homem absurdo” de meados do século XX. Estes sentidos novos
seriam sugeridos, por sua vez, por um olhar contemporâneo da ficção argelina atual, bastante
diferenciado do lugar da crítica tradicional; um olhar, em realidade, lançado pelo romance de
Kamel Daoud, que demanda nova investigação ao romance de Camus.
De certa forma, entretanto, desconfio que a obra camusiana teria apenas poderes
“ocultos”, mas, também, uma potência de significados “ocultada” pela ação de uma crítica e
seu lugar político inerente, como assim entende a natureza permanentemente política da
crítica literária do inglês Terry Eagleton (2003). A crítica em torno de O estrangeiro, sustento,
da maneira como se escreveu até aqui, jogou bem mais seus holofotes para o recorte particular
da figura masculina que narra o romance de Camus, interpretando-a de maneira limitada à sua
relação como o que era de interesse ocidental: a filosofia atida ao dito “homem absurdo’ do
Pós-guerra, conceituado por Camus em O mito de Sísifo (2018). Tal ponto de vista ignorou o
que O estrangeiro não exatamente ocultaria sobre as relações de gênero na Argélia colonial
do século XX, mas o que ele poderia revelar sobre estas relações. O que há na obra, mais do
que camuflagem, seriam revelações (um verdadeiro pôr a nu) de questões de gênero ligadas às
masculinidades e à maternidade (ambos representados em contexto colonial), que, agora,
neste trabalho, oito décadas após a publicação do romance, têm oportunidade de serem
interpretadas.
Nessa dinâmica de observação, é preciso atestar que se Sartre e Barthes, os críticos ainda
hoje mais replicados pelos estudos camusianos do século XXI, ignoraram a questão de gênero
latente no texto, para focalizar a “filosofia do absurdo”, convém também apontar que Edward
Said, ainda que “pai dos Estudos pós-coloniais”, igualmente, o fez, ao enfatizar, na sua leitura
de O estrangeiro, a relação imperialista que a França mantinha com o território argelino
durante a colonização sem mencionar a ligação estabelecida entre colonização, raça, divisão
do trabalho e patriarcado (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008). Na tentativa de provar que o
romance de Camus seria um artefato histórico do projeto de dominação da Argélia pelos
franceses, o qual seria partilhado intencionalmente pelo ficcionista, Said acabou
desconsiderando nas suas análises sobre as tensões políticas visíveis no texto, do mesmo
96
modo que os críticos franceses, as imagens construídas de homens e mulheres dentro da
lógica da colonização.
Nesse panorama crítico “bipolarizado” do século XX entre 1) a “filosofia ocidental do
Pós-guerra” e 2) em termos de Estudos Pós-colonias, a “cultura e o imperialismo”, os papéis
de gênero, que aqui pretendo demonstrar serem de significativa importância na trama
narrativa de Camus, podem ser vistos como “ocultados” pelo olhar de pensadores (todos
homens) que realizaram a interpretação crítica da obra como se esta fosse desprendida da
criação de personagens que, na ficção, representam corpos políticos (MIGNOLO, 2008), os
quais agregam sua parcela simbólica nas tensões sociais. Estes corpos ficcionais dialogam
com representações de gênero e sexualidade trançadas no real, em cotejo com os territórios
geográficos, e, dessa forma, precisam ser relidos e reinterpretados.
O gênero, como se pode observar a partir da discussão dos textos críticos de Sartre,
Barthes e Said apresentada no capítulo anterior, não se constituiu como um recorte de análise
significativo para esses pensadores, tidos como os nomes mais responsáveis pela construção
da imagem literária de O estrangeiro até a presente data. Contudo, nesta pesquisa, a questão
de gênero é defendida como uma lupa de análise fundamental para: a) se entender o texto
literário, através de uma “outra forma de adentramento”, como diz Inocência Matta (2016), e
b) para reconfigurar a obra de Camus na história de sua recepção, ampliando-se seus
significados.
A esta altura, o leitor que acompanha o desenvolvimento desta pesquisa já é capaz de
observar que opto, utilizando uma estratégia particular de iniciar as reflexões de cada seção,
por encabeçar a escrita pelo que convida à interpretação o texto (citado em trechos) do
escritor argelino Kamel Daoud. Assim procedo, porque este trabalho objetiva discutir,
principalmente, sobre como seu romance pertencente à francofonia literária periferizada, O
caso Meursault (2013), ressignifica O estrangeiro (1942), bem como suplementaria a história
de recepção de Camus redigida pela crítica literária do século XX. É evidente que a discussão
não deixa e nem poderia deixar de focalizar O estrangeiro, mas é importante que seja frisado
que esta tese não está apenas centrada no texto de Camus na condição de clássico e na
cristalização de seus sentidos operada pelas leituras canônicas. Na verdade, insisto em frisar,
procuro investigar, entre outros aspectos, como o romance de Camus, estabelecido como
clássico ocidental, pode ser relido, sobretudo, a partir do que sugerem os sentidos de uma obra
argelina contemporânea que se coloca como sua reescritura paródica (HUTCHEON, 1991),
tendo os seus principais significados interpostos na tradição da crítica mais tradicional presa à
97
questão filosófica do “absurdo”, marca do pensamento camusiano no Pós-guerra, revisitados e
ampliados. O intuito é que se teçam novos quadros semânticos, tanto a respeito do que se
pensa sobre o Ocidente quanto sobre a Argélia, a respeito dos sujeitos colonizadores e
colonizados, acerca, pois, desses sujeitos na sua condição de seres dotados de um corpo
político, sujeitos trançados, sendo assim, a partir de papéis de gênero, os quais se atravessam
também pela ideia de raça e território (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008).
Assim sendo, seguem-se dois trechos de O caso Meursault, para que fiquem visíveis as
razões que me conduzem a jogar a lupa desta análise para a questão de gênero na revisão
crítica que aqui estabeleço sobre O estrangeiro. Dois aspectos, assim, reforço, podem
exemplificar aquilo que me autoriza, no texto, a entender que focalizar gênero é uma
abordagem necessária na relação paródica entre os dois romances: a) a projeção da figura
materna como um elemento significativo da estruturação dos afetos que impulsionam as
narrativas e b) a sugestão da masculinidade e seus ritos patriarcais de honra e suas maneiras
particulares de interagir com as figura femininas como códigos ligados ao assassinato de
Moussa (“o árabe” assassinado por Meursault, assim chamado em Daoud). Esses dois
aspectos são ilustrados em dois excertos capitais para aqui se entender a importância da
abordagem de gênero no cotejo entre os dois romances em análise comparativa. Procedo,
apontando e comentando brevemente cada um dos segmentos da obra de Kamel Daoud.
Trecho primeiro: “Hoje, mamãe ainda está viva. Ela não fala mais, mas poderia contar
muitas coisas. Ao contrário de mim, que, de tanto remoer essa história, já quase nem me
lembro dela” (2013, p.9).
Aqui, se vê Haroum, narrador daoudiano, no primeiro período que inaugura seu discurso,
trazendo o exato oposto ao que Meursault escreve sobre a condição de sua mãe ao também
iniciar O estrangeiro: “Hoje mamãe morreu” (CAMUS, 2016, p.13). A mãe argelina no
romance paródico (HUTCHEON, 2001) de Daoud é retratada viva. Contudo, ainda que
opostamente a Meursault, Haroum repete a tendência do narrador camusiano de começar sua
fala pela figura da “mamãe”. Em Camus, tem-se uma mãe que abre a obra “já” morta, ao
passo que, em Daoud, a mãe vive “ainda” e tem memória. Destaco, assim, a evidência escrita
de que ambas as produções romanescas apoiam-se na maternidade para encabeçar o texto,
uma maternidade, por sua vez, assinalo, desnomeada nos dois casos, como o próprio “árabe”
morto em Camus. Nesse sentido, fica aparente que as mães nos dois autores circulam pelo
texto ficcional sem nomes próprios, como se as personagens maternas pertencessem a uma
categoria genérica, despersonalizada, sem subjetividade: “mamãe”.
98
Assinalo, dessa forma, que este signo da mãe, por apresentar tal recorrência e tais traços
genéricos, pede uma leitura mais atenta, já que foi tão pouco explorado pela crítica canônica.
A maternidade na obra camusiana se mostra subalternizada pela crítica, a qual se manteve
bipolarizada: 1) voltada em sua maior parte para a análise do protagonista Meursault e seus
conflitos emblemáticos de “homem absurdo”, como atestam os escritos de Sartre (2005) e
Barthes (2004a) ou 2) preocupada com o imperialismo da França na Argélia sem se ater em
especial às relações familiares da trama literária, como se exemplifica a abordagem de
Edward Said.
Há oito décadas, portanto, O estrangeiro foi publicado, tendo o narrador, um protagonista
homem, como marco zero de sua memória narrativa, a figura materna morta, trazendo-a na
frase de abertura deste romance que se tornou um clássico e referenciando-a insistentemente
ao longo da obra, mas pouco se problematizou e pouco ainda se problematiza esta figura
feminina da mãe e seus desdobramentos nos sentidos do texto. A crítica do século XX, como
se pôde verificar, se mostra falocentrada, por marginalizar de seus olhares a figura feminina
genitora do narrador, protagonizado, por sua vez, absolutamente, pelos leitores do século XX.
É, pois, tempo de revisitar o clássico, sob a perspectiva diversa e contemporânea do romance
de Kamel Daoud, que grita para que se revisite a maternidade na literatura de Camus, esta
escrita premiada e canonizada pela França e pelo campo literário de prestígio em geral. Tal
retorno precisa ser feito em cotejo com a imagem da mãe argelina do árabe sem nome
assassinado pelo colono-narrador da França, criado pelo “seu escritor” (francês, colono).
Proponho, neste sítio argumentativo, executar esta revisita crítica e com ela suplementar as
interpretações em torno de O estrangeiro, para que estas possam ir além das afirmações de
Barthes, Sartre e Said, alcançando novas perspectivas trançadas a uma interpretação
conectada aos Estudos pós-coloniais (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008), por sua vez,
numa perspectiva de abordagem feminista (ZINANI, 2015).
O trecho segundo traz a tentativa do narrador Haroum, pela memória, recontar como
vivenciou o dia do assassinato do seu irmão Moussa, “o árabe” atingido por cinco tiros vindos
das mãos de Meursault. Cito:

Então, nada de especial naquele dia. Nem mesmo mamãe, que adorava presságios e
era sensível aos espíritos, não detectara nada de anormal. ... Ninguém poderia
ouvir de tão longe um tiro, disparado mais lá para baixo da cidade, na beira do mar.
Mesmo na hora do diabo, duas da tarde no verão — a hora da sesta. Portanto, nada
de especial, senhor investigador. Claro que, mais tarde, pensei muito nisso, e, aos
poucos, entre as mil e uma versões de mamãe, os fragmentos da memória e as
intuições ainda frescas, acabei achando que devia haver uma versão mais verdadeira
que as outras. Não tenho certeza, mas em nossa casa, naquela época, pairava no ar
99
uma espécie de cheiro de rivalidade entre mulheres: mamãe e alguma outra. Alguém
que eu nunca vi, mas de quem Moussa trazia alguns traços na voz, nos olhos e na
maneira violenta com que rejeitava as insinuações de mamãe. Uma tensão de harém,
vamos dizer. Como um combate surdo entre um perfume estrangeiro e um cheiro de
cozinha muito familiar. No bairro, as mulheres eram todas “irmãs”. Um código de
honra impedia os amores interessantes, limitando o jogo da sedução às festas de
casamento ou a meros olhares enquanto as mulheres estendiam as roupas de cama
nas varandas. Para os jovens da idade de Moussa, eu suponho que as irmãs do bairro
ofereciam uma perspectiva de casamento quase incestuoso e sem grandes paixões.
Ora, entre o nosso mundo e o dos roumis, mais lá embaixo, nos bairros franceses,
circulavam às vezes algumas argelinas usando saia e com seios rígidos, Marias ou
Fátimas inquietas que nós, garotos, chamávamos entre nós de putas e apedrejávamos
com os olhos. Eram presas fascinantes, que podiam prometer o prazer do amor sem
a fatalidade do casamento. Essas mulheres costumavam provocar amores violentos e
rivalidades odiosas. O seu escritor conta um pouco disso. Mas a versão dele é
injusta, pois a tal mulher invisível não era a irmã de Moussa. Talvez fosse, no fim
das contas, uma de suas paixões. Eu sempre considerei que todo o malentendido
provém daí: um crime filosófico atribuído a algo que, de fato, nunca passou de um
acerto de contas que acabou degenerando, no qual Moussa, querendo salvar a honra
da moça, aplicou uma surra no seu herói, e este, para se defender, abateu-o na praia
friamente. Nos bairros populares de Argel, havia, com efeito, esse sentido aguçado e
grotesco da honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de perder a terra, os
poços e o gado, só lhes sobraram as suas mulheres (2013, p.29).
Aqui, se observam dois pontos: a) a representação das mulheres na Argélia colonial
nas figuras da mãe e das mulheres da cidade, vistas como uma mistura entre irmãs, namoradas
e prostitutas; b) a necessidade de se repensar a versão do assassinato de Moussa contada por
Meursault. Daoud a associa a uma disputa pela honra no interior das performances de
masculinidade(s) e poder face às tensões entre o homem colonizado e o colonizador. Nesse
sentido, o texto de Daoud convida à revisão de O estrangeiro, sugerindo uma procura de
pistas sobre a relação entre o crime e as masculinidades hegemonizadas no texto camusiano, o
que, por seu turno, sugere que, além do conceito filosófico de “absurdo” (Sartre, 2005;
Barthes, 2004) e do “sol” (Barthes, 2004) como mobilizadores de um Meursault “vítima” das
condições de mundo (sociais ou simbólico-climáticas), pode haver novas portas para entradas
de sentidos ligadas à questão de gênero. Aceito o convite da obra de Daoud, publicada em
2013, e volto ao romance francês, de 1942, para demonstrar como o lado assassino de
Meursault ganha nova perspectiva ao ser reinterpretado sob novas bases de uma crítica
feminista (ZINANI; 2015) e decolonial (LUGONES, 2008).

4.1.1 A crítica feminista

Proponho a justificada revisão de O estrangeiro como uma reflexão que dialoga com o
que vem se constituindo desde o fim do século XIX como uma perspectiva de crítica literária
atrelada ao movimento feminista, a qual se volta, sobretudo, para questionar o papel das
100
mulheres enquanto personas subalternizadas nas suas relações com teias do campo literário.
Nesse sentido, é importante demarcar que compartilho da visão interposta por Cecil Zinani
(2015):

A representação da mulher na literatura, independente do sexo do autor/a, favorece


aproximações de variadas ordens, tais como psicanálise, pós-colonialismo, pós-
modernismo, entre outras, constituindo um modelo de crítica literária muito
produtivo, a crítica feminista. A teoria crítica feminista desenvolveu-se a partir do
movimento das mulheres e apresenta como um de seus resultados, novas discussões
sobre a abordagem do fenômeno literário, a constituição do cânone literário e a
escrita da história da literatura (2015, p. 407-409).
Ao propor aqui a reinterpretação crítica da figura materna em Camus, bem como da
constituição das masculinidades hegemônicas e as representações de francesas e argelinas,
procuro gerar um efeito de deslocamento da obra camusiana de um campo já consabidamente
cristalizado de sentidos atravessados por um sistema de produção de conhecimento patriarcal
(LUGONES, 2008), para assinalar sua polissemia literária em jogo com o movimento da
crítica feminista, atento a novas formas de se ler as personas ficcionais nas suas relações com
os papéis de gênero. Estudar Camus sob a perspectiva feminista, assim, pode oferecer uma
lente inovadora para interpretar seu texto, uma vez que se opera uma subversão e uma
ampliação perante a leitura hegemônica, patriarcal e eurocêntrica do clássico, ao se propor
pensar O estrangeiro para além da categoria filosófica ocidental universalizada, que, como se
sabe, está focada no conceito de “absurdo”, fixado na tradição crítica (SARTRE, 2005;
BARTHES, 2004). Uma tradição que se circunscreveu a encarar a figura de Meursault como
um representante universal da “existência humana”, sem a preocupação aqui levantada de
investigar, acrescento, as cenas do texto em cotejo com as concepções de masculinidades ou
de maternidade. Tal linha de abordagem acaba fazendo parecer, já mencionei, que os
personagens seriam “descorporificados”, isto é, desprovidos de um “corpo político”
(MIGNOLO, 2008) ou intocados pelas representações de gênero numa cidade colonial
francesa e suas dimensões históricas particulares.
Cecil Zinani, sublinho, muito contribui para a pesquisa em seu artigo “Feminismo e
literatura: apontamentos sobre a crítica feminista” (2015), no qual define os objetos da crítica
feminista na literatura, entendida por ela como “um elemento integrante dos Estudos Culturais
de gênero” (2015, p. 414). Segundo a autora, as principais questões de interesse dessa espécie
particular de leitura são: “opressão patriarcal, construção da identidade, representação da
mulher na literatura, escrita feminina, experiência de leitura, entre outras” (2015, p. 414). Em
extensão à referida listagem da professora da Universidade de Caxias do Sul, aponto a
categoria de “masculinidades” como um ponto de interesse dos Estudos Culturais de gênero
101
que aqui se faz igualmente central, remarcando sua ligação com os estudos feministas
(MEDRADO & LYRA, 2008). Na verdade, seguindo a linha de pensamento dos sociólogos
brasileiros Benedito Medrado e Jorge Lyra (2008), bem como da filósofa francesa Badinter
(1985), pensar nas identidades de mulheres, na realidade ou na ficção, é entender a categoria
mulher como construção “relacional”, isto é, tecida em conexão com as demais identidades
culturais de gênero pré-estabelecidas. Da mesma maneira, lidar com a categoria “homem”
também é pensá-la na relação com a figura feminina e com as questões de sexualidade, gênero
e poder (MEDRADO & LYRA, 2008) em conexão com uma ampla diversidade de
subjetividades socialmente arquitetadas. Assim, ao se problematizar as figuras femininas
nesta análise, estas terão suas identidades entendidas na relação com a construção social das
identidades masculinas e vice-versa.
Cabe, na esteira dessas definições, a demarcação específica do que aqui se entende
como gênero, o que será feito mais adiante neste capítulo. Por ora, prossigo a continuidade da
reflexão na delimitação da concepção de crítica feminista, apontando as seguintes conjecturas
de Zinani:

As teorias críticas feministas estão ancoradas em abordagens pós-estruturalistas,


pós-colonialistas e pós-modernistas, nos aspecto que discutem o descentramento da
autoridade e o questionamento do conceito de verdade, consequentemente são
ampliados os significados de literário, com a incorporação de novas perspectivas de
arte, o que promove a ressignificação da composição do cânone (2015, p. 416).
É, portanto, em sintonia com tais descrições que concebo o tipo de estudo que aqui
busco desenvolver, principalmente no que se alinha com as tarefas de “ampliar significados”,
“questionar autoridades” e “ressignificar a composição do cânone”.
Considero oportuno, nessa conjuntura, partilhar a reflexão de que observo também que
o diálogo aqui estabelecido com a crítica feminista pode ser visto como relacionado ao “lugar
de fala” (RIBEIRO, 2019) que ocupo enquanto pesquisadora, produzindo interpretações que
partem do meu corpo político (MIGNOLO, 2008). Nesse sentido, remarco que teço minhas
escolhas e reflexões analíticas em diálogo com o grupo ao qual me considero fazer parte: o de
mulheres intelectuais da América-latina. Observo, assim, na minha trajetória acadêmica,
evidências para a observação de Jonathan Culler, sublinhada por Zinani, de que se precisa
considerar a existência de uma experiência de leitura particular feminina, entendida como
uma “experiência original relacionada à construção da identidade da mulher” (2015, p. 416).
A esse respeito, cabe trazer a relevância das palavras de Zinani para que se compreenda a
crítica literária na sua relação com o feminismo:
102
Cada sexo ocupa uma posição diferenciada na sociedade, o que resulta em
particularidades na constituição psicológica, como consequência, a visão que
homens e mulheres possuem sobre determinados fatos não é igual (2015, p. 416).
Dessa forma, uma vez me percebendo com a identidade de pesquisadora latino-
americana atenta à crítica feminista, entendo-me sensível à possibilidade de desenvolver um
olhar dirigido a focalizar as figuras das mulheres na obra de Camus. Estas figuras femininas
aparecem subalternizadas, pouco exploradas pela crítica tradicional, a qual se faz representada
por nomes, em sua grande maioria, masculinos, e que se manteve, até aqui, centrada naquilo
que a interessou interpretar acima de tudo: o narrador Meursault e sua figura (uma figura
masculina, deixo em relevo) apontada como emblema geral do “homem moderno”, do
“homem universal”, atravessado pela “falta de sentido” na existência de uma sociedade que
convivia, na década de quarenta, com a II Guerra, com a percepção da ausência de um paraíso
após a morte, abandonada por Deus, temáticas presentes em O mito de Sísifo (CAMUS,
2018a).
Sartre e Barthes, como já comentado aqui, mas insisto em grifar e ratificar o fato, são
os nomes mais visitados dentro da crítica sobre Camus, como atestam as bibliografias de teses
e dissertações sobre o autor, fato que reafirma uma tradição crítica de hegemonia de vozes
masculinas e que falam da plataforma ocidental francesa. Já Edward Said, mesmo na condição
de intelectual decolonial, fala também do lugar de homem e, igualmente, sob as colunas de
uma plataforma do saber colonizada pelo sistema eurocentrado patriarcal (LUGONES, 2008).
São perceptíveis, aí, aspectos que se reafirmam na construção da imagem de O estrangeiro na
História da Literatura: vozes masculinas, ocidentais ou indiretamente ocidentalizadas pela
colonialidade, respeitadas pelo cânone da crítica.
Em contrapartida, caso se levante o questionamento sobre quem foram as intelectuais
mulheres que falaram sobre Camus, ao longo do século XX, com o mesmo poder de posição
de fala e alcance, respostas não aparecem com o mesmo destaque. Este ponto exemplifica
aquilo que a crítica feminista tem se organizado para demonstrar: a invisibilidade do trabalho
feminino no campo da Literatura, seja no terreno da produção crítica, seja no da ficção. Sobre
a questão, afirma Zinani:

Essa invisibilidade, como é denominada por Rita Schimidt, leva a autora a


questionar “onde estavam as mulheres nos textos, nos programas de ensino
de literatura, nas histórias literárias”. Embora movimentos de resgate de
escritoras de séculos anteriores estejam em curso, a posição das escritoras
não tem se modificado substancialmente em relação à história da literatura
(2015, 416).
103
O que a história da recepção da obra camusiana demonstra, portanto, é que os
principais nomes de críticos que fizeram O estrangeiro sustentar a imagem cristalizada de
clássico da filosofia do Pós-guerra, ainda hoje ostentada, são de autores homens. Nesse
contexto, é indagável o que os críticos aqui estudados no presente capítulo, Sartre, Barthes e
Said, no que tange à imagem construída da obra de Camus no século XX e solidificada na
História da recepção desta narrativa, têm em comum ao fornecerem suas interpretações de O
estrangeiro ao cânone de uma crítica dotada de audiência privilegiada quando se está em
pauta o estudo do autor. Observo pontualmente que os três críticos homens, dotados de uma
reputação acadêmica respeitada e de vozes amplamente reproduzidas na crítica universitária e
jornalística, se encontram neste aspecto particular: apresentaram interpretações que
subalternizam a problematização das personagens femininas e protagonizam as masculinas,
mas sem se voltarem para o papel das masculinidades hegemonizadas (MEDRADO & LYRA,
2008) em suas condutas nas ações enquanto personagens literários, como se a socialização a
partir da categoria de gênero não fosse uma questão em destaque no texto.
Entretanto, considero ser relevante destacar que observo essa particularidade da
subalternização das mulheres em suas reflexões sobre Camus, porque me coloco como uma
pesquisadora que se reconhece atravessada por duas peculiaridades a serem remarcadas: a) a
própria subalternidade imposta ao grupo social ao qual me considero pertencer: o de mulher
latino-americana, produzindo pesquisa no Nordeste do Brasil; assim, a minha própria
experiência de subalternidade imposta pelo que me atravessa enquanto poder, gênero e
geografia, me oportuniza a identificação com a subalternidade das mulheres preteridas pela
análise da crítica em torno da obra camusiana (o que está em consonância com a observação
de Jonatan Culler acima citada); b) também do meu lugar de intelectual que dialoga com os
desenhos teórico-políticos da crítica feminista e do feminismo decolonial (LUGONES, 2008).
Dessa forma, chamo a atenção para o fato de que os clássicos textos críticos de Sartre,
Barthes e Said, colocados como verdadeiros artigos sacralizados, de “leitura obrigatória”, na
História dos estudos camusianos, subalternizaram a análise em O estrangeiro de personagens
como eu: mulheres e, como mais adiante explicarei, a partir da discussão do pensamento de
María Lugones (2008), mulheres nativas da periferia Argélia. O feminino – fosse o ocidental
ou o argelino periferizado, fosse o materno ou qualquer outro papel assumido por mulheres
plurais, como o de “amante”, o de irmã, por exemplo –, suas formas particulares de
representação, foi praticamente ignorado no século XX pela crítica falocêntrica e ainda é
pouco discutido no século XXI. Pode-se, em analogia, sublinhar que, de forma semelhante ao
104
árabe morto em Camus, as mulheres por esses críticos se passaram como figuras
“assassináveis” nas análises literárias, “mortas” e “desnomeadas”.
Destaco, também, uma segunda particularidade: os dois autores franceses, Sartre e
Barthes, acabam através de seus argumentos, por elucidar na figura de Meursault a identidade
de um “homem universal”, protótipo da “alma humana moderna”. Mesmo Said, na década de
90, já familiarizado com as referências do movimento feminista, inclusive citando-o em
Cultura e imperialismo, em trechos finais da obra, como mobilizador de movimentos de
independência colonial na segunda metade do século (1993), marginaliza as figuras de
mulheres na sua análise. O autor assinala em primeiro plano a importância de sua abordagem
própria dos Estudos pós-coloniais, voltando-se, como visto na seção anterior, mais
especificamente para protagonizar o “homem colonizador europeu” vivido pelo narrador e
assassino “do árabe”. Dessa forma, embora questionador da abordagem canônica anterior a
sua, a leitura de Said termina não rompendo com o androcentrismo da crítica do século XX.
Assim como marginalizaram as personagens femininas de suas reflexões, os três
pensadores não usaram também a lupa de gênero para ler, por exemplo, como as
masculinidades na trama do escritor francês seriam importantes para definir fatos da diegese e
do discurso; não versaram sobre como a categoria de masculinidades hegemômicas
(MEDRADO & LYRA, 2018) se mostraria importante para orientar a leitura dos sentidos do
crime e da justiça, dos significados das relações entre Ocidente e periferia, como se
relacionariam com o signo da maternidade e de outros afetos. A crítica camusiana
bipolarizada do Século XX, situada entre 1) o “homem universal” e 2) o “homem
colonizador”, a partir de suas matrizes críticas dissociadas da questão de gênero, não pensou
sobre como personagens homens e mulheres, fossem ocidentais ou nativos da Argélia, foram
construídos no texto de modo relacional, a ponto de suas figuras tecerem a trama a partir
também de seus corpos políticos (MIGNOLO, 2008).
Não tenho a intenção, por outro lado, de concluir categoricamente que assim os
críticos do Século XX o fizeram porque exclusivamente seriam homens. Na verdade, não há
causalidade obrigatória e direta, transparente, entre ser homem e subalternizar personagens
mulheres na análise das narrativas literárias. Ao contrário do que se estabelece no senso
comum, como mostram os sociólogos Mariana Azevedo, Benedito Medrado e Jorge Lyra
(2018), em texto de autoria conjunta publicado nos “Cadernos Pagu”, “Homens e o
Movimento Feminista no Brasil: rastros em fragmentos de memória”, é consabido que há
inclusive registros históricos de que a luta por direitos iguais entre homens e mulheres, pauta
105
maior do movimento feminista, já havia se iniciado com o apoio de figuras masculinas.
Também é preciso frisar que, aqui, não se acredita que uma leitura contestadora de visões
patriarcais nos textos literários seria desenvolvida apenas por mulheres. A esse respeito, cita-
se o referido artigo dos três sociólogos:

Ocupar um lugar na ordem de gênero não faz (nem impossibilita) de maneira


imediata um sujeito político. Trazendo a reflexão de Patrícia Hill Collins sobre o
feminismo negro, Hernandez (2008) toca em uma questão importante: a de que se
deve renunciar a uma visão materialista e determinista, que suponha um tipo de
experiência e consciência automática pelo fato de se ser mulher. Mas também evitar
os riscos do idealismo, adotando uma posição crítica que tenha em vista uma história
e a localização social particular dos sujeitos (AZEVEDO; MEDRADO; LYRA,
2018).
Também a esse propósito de evitar a ideia engessada de ligação direta entre o sujeito
feminino e uma abordagem crítica necessariamente contra-hegemônica e, então, capaz de
subverter o patriarcado nos estudos sobre Camus, pode ser trazida à tona a figura da
pensadora Susan Sontag em ensaio da década de 60, “Os cadernos de Camus” (2020). No
texto de 1965, os argumentos de Sontag, autora de títulos premiados e significativos para a
cultura do século XX e XXI, não apresentam ruptura substancial como a leitura mais corrente
e de aspectos falocentrados em torno da obra do autor francês, a qual está voltada, como
sabido, mais precipuamente para retratar as feições niilistas e filosóficas do escritor em sua
ficção, considerada por ela como aquém de nomes de homens como Sartre, Kafka, George
Orwell. Tal caráter reprodutor do ponto de vista falocêntrico característico da crítica
camusiana do século XX no ensaio da escritora pode ser verificado na citação de seu texto
entrecortada abaixo. Nela, a pensadora, sem sair do escopo das conjecturas mais usuais sobre
Camus, que basicamente discutem seu estilo em comparação a outros nomes masculinos,
igualmente não aponta uma só figura feminina do campo literário ou filosófico do Século XX
em suas analogias com o perfil camusiano ou mesmo, sequer, faz menção a possíveis
representações de gênero nas obras do autor. Ela ressalta a parcela filosófica em sua ficção,
sua intersecção com temas como niilismo, suicídio, temas prsente em O mito de Sísifo. Segue
a citação:

Refiro-me a Albert Camus, o marido ideal das Letras contemporâneas. Sendo


contemporâneo, ele teve que trafegar pelos sentimentos dos loucos: suicídio,
insensibilidade, culpa, terror absoluto. Mas trafega com tal ar de sensatez, mesure,
facilidade e graciosa impessoalidade que se coloca à parte dos demais. Partindo das
premissas de um niilismo popular, ele leva o leitor – pelo exclusivo poder de sua voz
e entonação tranquila – a conclusões humanistas e humanitárias que não decorrem
de maneira nenhuma de suas premissas. O salto ilógico do abismo niilista é a dádiva
que os leitores agradecem a Camus.
...
106
Sempre que se fala em Camus, misturam-se juízos pessoais, morais e
literários. Nenhuma discussão sobre Camus deixa de trazer ou, pelo menos,
de sugerir um tributo à sua bondade e tração como homem. Assim, escrever
sobre Camus é refletir sobre o que se passa entre a imagem e a obra de um
escritor, o que equivale à relação entre a moral e a literatura. (SONTAG,
2020, p. 78-79).
Nota-se que, neste ensaio, visivelmente, a atmosfera da crítica de Sontag se revela
semelhante às falas clássicas de Sartre e Barthes a respeito da produção de Camus,
reproduzindo em muito o teor analítico dos autores franceses, sobretudo, naquilo que
concerne a igualar sua filosofia a sua ficção, ressaltando o caráter humanista que deixa célebre
a produção do autor. Há a ressalva, contudo, de que Sontag, diferente destes seus
contemporâneos mais elogiosos a Camus, e está aí o seu reconhecível diferencial, dilatado não
sem certa ironia, tende a, francamente, evitar uma postura unanimemente reverencial à
literatura camusiana, ao julgá-la mais fruto de um desejo de o escritor se colocar como um
“homem bom” no campo intelectual, do que propriamente ser capaz de sugerir temas de
relevo, através de soluções estéticas de impacto para a sua geração.
O ensaio de Sontag, datado de 1965, nesse sentido, revela posuir aspectos que podem
ser lidos como afinados com a crítica daquele período, ainda sincronizada, sobretudo, com o
padrão filosófico ocidental e masculino: 1) ainda se tece numa linha um tanto impressionista,
sobretudo por se apresentar alicerçado em sentenças avaliativas categóricas, de sintaxe
predicativa sem justificativas demonstrativas, tais como “em Camus não se encontra uma arte
de primeira grandeza” (2020, p.80); “Sartre, por mais desagradáveis que algumas de suas
simpatias políticas sejam para seu público de língua inglesa, traz à análise filosófica,
psicológica e literária um intelecto vigoroso e original. Camus, por mais que sejam atraentes
suas simpatias políticas, não” (2020, p. 80); 2) Reproduz a visão habitual de tantos intérpretes
do século XX: atrelar, em grande peso, o autor diretamente aos sentidos de sua obra, isto é, os
impactos do texto literário de Camus se fazem, em seu olhar, condicionados à pessoa do
escritor, fato que o próprio Barthes refuta anos seguintes, em seu ensaio clássico de 1968 “A
morte do autor”, ao propor “o nascimento do leitor” (2004, p. 64) diante da responsabilidade
de se criar a escritura-texto (BARTHES, 2004).
Nessa perspectiva, fica evidente, a partir das reflexões em torno das falas de Sontag
(2020), mais centradas na parcela “Sísifo”, niilista, humanista da obra de Camus, que não
seria obrigatoriamente o gênero feminino do sujeito crítico o definidor exclusivo de suas
escolhas e ferramentas de leitura crítica desconstrutoras de perspectivas falocentradas. O
tempo histórico do intérprete, o seu “lugar de fala” como indivíduo pertencente a certo grupo
107
social (RIBEIRO, 2019) e uma série de variáveis podem incidir na sua leitura. Em todo caso,
faz-se salutar considerar as situações em que a experiência de gênero, de classe, de geografia
facultariam olhares investigativos epistemologicamente ricos e diversos pela alteridade e
pluralidade que ora ofereceriam. A esse respeito, torna-se oportuno trazer o ponto de vista da
socióloga Cynthia Hamlin quando o assunto é a produção de saberes gestada pelo grupo de
mulheres subalternizadas. Ao comentar a questão, afirma a autora:

Isto significa dizer que uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente
mais “verdadeira” ou produz melhores concepções da realidade, mas certamente
apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e
questionamentos alternativos. Em outras palavras, a vantagem do conhecimento
gerado por grupos marginalizados não se refere ao status de verdade das respostas
obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou
significativas (LAWSON, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar
visível aquilo que é invisível ou de subverter questões tradicionais. (HAMLIN,
2008, p. 78)
Tendo as ressalvas acima em mente, o que seria passível de observação no que tange à
interpretação de O estrangeiro, neste trabalho, contudo, é que, em especial, os estudiosos
camusianos renomados, reconhecidos como homens (não como mulheres), como Sartre,
Barthes e Said, tidos como verdadeiros ícones do campo literário, ligados a correntes críticas
e a períodos diversos do século XX, de qualquer forma, não tornaram a questão de gênero um
objeto de discussão em evidência. Dessa mesma maneira, dentro do universo hegemônico da
crítica tradicional, perpetuaram um protagonismo da figura masculina que narra O
estrangeiro. Sobretudo, estes autores reproduziram a imagem de uma masculinidade
“naturalizada” e “invisível” por ser esta considerada, na cultura patriarcal que molda a
plataforma de conhecimento ocidental, como “norma”.
Por tais traços, até mesmo passíveis de serem verificados em autoras do porte de
Susan Sontag (2020), considero importante perceber a crítica camusiana do século XX como
uma crítica de aspectos “patriarcais e falocentrados”, tendo em vista os objetos que
privilegiaram em suas análises, ligados estes a uma argumentação que marginaliza o jogo
relacional entre homens e mulheres, o qual, como será demonstrado adiante, assume aspectos
simbólicos relevantes na tessitura da obra.
Utilizando as terminologias de María Lugones (2008), o pensamento teórico dos
autores obedeceu à ordem “engrendrada” de produção de saber dentro da lógica da
modernidade colonial, a qual impõe o masculino como centro normativo da produção e
circulação do conhecimento. Discutirei o pensamento da autora mais adiante, que se mostra
significativo para o desenrolar da revisão analítica de O estrangeiro no século XXI, sob a
108
perspectiva de um feminismo contra-hegemônico, ou seja, crítico às questões centradas
apenas a mulheres brancas e ocidentais e colaborativo com o protagonismo das ditas
“mulheres de cor”, figuras subalternizadas pelo entrecruzar das ficções de raça e gênero na
conjuntura de diversos territórios geográficos periféricos.
Barthes, Sartre, Said e também uma leva de críticos contemporâneos que os
reproduzem em seus estudos, sejam homens ou mesmo mulheres (desconectadas da
abordagem feminista, trabalhando ainda sob uma perspectiva de produção e circulação de
saber sob o signo da colonialidade), não estudaram ou deixam de estudar a questão de gênero
no texto camusiano, a qual recebe, a partir de então, nesta pesquisa, um recorte evidenciado,
destacado como um “nó” essencial para se compreender seus significados e a própria figura
masculina do narrador Meursault, que constrói, a partir de seu olhar vindo de um corpo
político específico (MIGNOLO, 2008), identificado com o gênero masculino, atravessado por
questões de classe e geografia, a representação das outras figuras masculinas e femininas, a
representação do lugar, da justiça, da sociedade em seu tempo histórico dentro da ficção
francesa.
É necessário sublinhar, em contrapartida e novamente, que assim entendo a relevância
da questão de gênero e da colonialidade em O estrangeiro, não porque estaria eu, unicamente
e simplesmente, como pesquisadora, no grupo de mulheres subalternizadas da periferia Brasil,
me identificando com as personas subalternizadas na ficção estudada por uma crítica
falocentrada. Na realidade, sustento que executo tal leitura, com tal desenho, por me
reconhecer, sim, situada no grupo das pesquisadoras mulheres latino-americanas, mas
adicionalmente e principalmente, porque, de modo particular, ao entrar em contato com o
romance O caso Meursault, de Kamel Daoud, escritor francófono também periferizado no
campo da Literatura Ocidental, noto, enquanto crítica literária e estudiosa da área, que o que
esta obra sinaliza em suas linhas, em suas pistas textuais ficcionais, aqui citadas acima em
trecho robusto é a necessidade de se encontrar novas versões para se entender o clássico de
Camus, bem como para se refletir sobre as relações França-Argélia antes e após a
independência argelina, considerando a pauta de gênero. Vejo que a obra de Daoud, assim,
demanda uma abordagem de leitura para si própria, a partir das chaves das masculinidades
hegemônicas, da maternidade e das representações das diversas figuras femininas aparentes
na obra, das chaves que focalizam as mulheres e os demais desdobramentos dos estudos de
gênero, de modo que tal percepção de minha parte brota, sobretudo, insisto, das possibilidades
109
oferecidas pelo modelo analítico da crítica feminista e do feminismo decolonial tal como aqui
venho os concebendo nestas linhas.
Reafirmo, contudo, uma observação: não se exclui a possibilidade de que, hoje, uma
crítica escrita sobre O estrangeiro por uma mulher possa reproduzir de algum modo
falocentrismo (como se escritoras mulheres fossem atualmente completamente imunes ao
pensamento patriarcal imposto pela colonialidade do saber eurocêntrico), tendo em vista sua
hegemonia na tradição crítica do século XX em torno da obra. Uma crítica de autoria
feminina sob as rédeas de uma tradição intelectual patriarcal nos estudos literários, na
verdade, pode ser vista como algo ainda comum, não sendo exclusiva de um nome como
Susan Sontag (2020) em um ensaio datado de 1965, produzido a partir da conjuntura daquele
período. Não é esta, entretanto, a questão aqui posta em relevo. O que proponho neste espaço
como algo significativo e necessário é justamente o pensamento de que uma crítica escrita por
mulheres ou mesmo por homens, se norteada politicamente pelos Estudos culturais numa
perspectiva de gênero e descolonização do imaginário, e se consciente de que a própria crítica
é também política, por partir de sujeitos políticos (EAGLETON, 2003), pode vir a inserir
certa quebra no ciclo patriarcal eurocentrado que se institui ainda atualmente em torno da obra
camusiana. Este é o meu projeto de leitura teórica neste trabalho: a partir do texto e de suas
pistas (ISER, 1979), estabelecer um contraponto a uma tradição de leitura que se construiu em
uma silhueta falocentrada, de modo que entendo que o faço pela aliança dessas duas razões
que aqui venho apontando, mas que podem, a meu ver, ser entendidas, e ganham se
entendidas de modo conjunto:
a) reconheço-me como uma pesquisadora identificada com a subalternidade delegada
às personagens mulheres na obra de Camus por uma tradição crítica masculina que teceu
análises falocentradas e isso deixa marcas no meu modo subjetivo de visualizar as questões
interpretativas;
b) entendo, como pensadora e produtora de crítica literária, que as ferramentas da
Crítica feminista e do pensamento de intelectuais decoloniais, voltadas para a
problematização dos papéis de gênero e colonialidade, em muito atendem ao que é solicitado
pelas obras em estudo, como atestado no trecho citado acima do romance de Kamel Daoud
(2013) e como será elucidado adiante neste capítulo na revisão crítica da obra de Camus
(2016).
110
4.1.2 A crítica decolonial latino-americana e o feminismo decolonial

Inicialmente, reforço o que foi discutido no primeiro capítulo, afirmando que esta é uma
pesquisa inserida dentro da corrente de Estudos Culturais e Pós-coloniais, a qual procura reler
O estrangeiro a partir desse ponto de vista particular num vasto campo de possibilidades de
investigação crítica de textos literários existente. Nesse sentido, atenta ao romance camusiano,
tomo como caminho de análise evidenciar que sua diegese ocorre no espaço narrativo
argelino, sendo o tempo histórico do texto o período de uma Argélia colonial. Seguindo
minha linha de raciocínio, procurando ler a obra diversamente do modo executado por Sartre
(2005) e Barthes (2004a), que buscaram o universal ocidental centrado no “homem absurdo”
(Meursault) que narra o discurso da história. Coloco-me de modo mais próximo ao recorte
analítico da geografia colonial e suas implicações na trama, como fez Said, contudo, opto por
me diferenciar do autor palestino em pontos estratégicos, os quais estariam conectados ao
seguinte aspecto: julgo ser necessário também focalizar O estrangeiro, pensando a
colonização no espaço argelino, mas indo além – investigando os personagens nas suas
condições de representação de gênero, raça e sexualidade naquele tempo e naquela geografia.
Dessa forma, a pesquisa “abre a obra” por uma “nova porta”, encarando um denso e
significativo campo de sentidos que não tem sido estudado com o devido cuidado em oito
décadas de publicação do “clássico do Pós-guerra” (BARTHES, 2004).
Interponho este caminho analítico por, além do que discuti acima sobre a Crítica
feminista, considero de relevância teórica dialogar com o pensamento decolonial de
intelectuais latino-americanos que enxergaram na relação Ocidente-América padrões de
dinâmicas políticas que colocam a Europa em posição de dominação econômica e cultural no
mundo: Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2008), María Lugones (2008).
O pensamento de tais intelectuais, embora focalize a relação
Europa x América Latina, pode também funcionar como um apoio teórico para se pensar as
relações coloniais na geografia argelina, ainda que esta disponha, logicamente, de suas
peculiaridades locais no Norte da África colonizado pela França em período historicamente
específico.
Anibal Quijano, em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina” (2005),
fala em uma nova ordem de capitalismo mundial introjetada a partir das relações europeias
estabelecidas no contexto de expansão colonial com a América. Esta ordem se apoiou na
noção de “modernidade técnica”, no controle da construção e circulação de conhecimento e
111
no disciplinar dos corpos pela divisão do trabalho alicerçada no racismo e no regime
patriarcal. Cito o intelectual peruano em sua reflexão sobre como a invasão da América funda
outra ordem mundial, entendida como um “sistema-mundo” relacionado a esses quatro pontos
específicos:

Em primeiro lugar, o atual padrão de poder mundial é o primeiro efetivamente


global da história conhecida. Em vários sentidos específicos. Um, é o primeiro em
que cada um dos âmbitos da existência social estão articuladas todas as formas
historicamente conhecidas de controle das relações sociais correspondentes,
configurando em cada área uma única estrutura com relações sistemáticas entre seus
componentes e do mesmo modo em seu conjunto. Dois, é o primeiro em que cada
uma dessas estruturas de cada âmbito de existência social, está sob a hegemonia de
uma instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento deste
mesmo padrão de poder. Assim, no controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos, está a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e
produtos, a família burguesa; no controle da autoridade, seus recursos e produtos, o
Estado-nação; no controle da intersubjetividade, o eurocentrismo. Três, cada uma
dessas instituições existe em relações de interdependência com cada uma das outras.
Por isso o padrão de poder está configurado como um sistema. Quatro, finalmente,
este padrão de poder mundial é o primeiro que cobre a totalidade da população do
planeta. (2005, p. 112-113).
Nesse sentido, em síntese, dominar sujeitos na América é: 1) definir a origem étnico-
racial dos corpos a serem explorados na produção do trabalho, 2) disciplinar as relações com a
sexualidade em acordo com o padrão patriarcal da família burguesa; 3) controlar a forma de
produção e circulação de saberes, centralizando-os na visão de mundo europeia; 4) estipular
um padrão em escala mundial de exercício da própria dominação. As bases da dominação
europeia estão aí alicerçadas sob a nomenclatura, criada por Quijano, de “Matriz colonial do
poder”, a qual, penso, pode ser vista também enquanto um sistema útil para interpretar
sentidos em variadas narrativas literárias, seja na tessitura do discurso e da diegese, para
utilizar as terminologias do Formalismo Russo (LIMA, 2002), seja na “seleção” de
determinados espaços, de personagens com estes e aqueles caracteres, na “combinação” de
ações que montam o enredo dos textos, citando os termos teóricos da Estética da Recepção e
do Efeito, como os vistos no pensamento de Wolfgang Iser e suas definições de texto
ficcional (2002).
Pinço em complemento a Quijano, a respeito da “Matriz colonial do poder”, o que
comenta Walter Mignolo no ensaio “La opción descolonial” (2008). O autor remarca a força
dialética entre as bases da Matriz colonial, não deixando de ressaltar que uma e outra, a
depender das condições históricas e geográficas de cada lugar, podem se sobressair como
formas de controle mais severas. Cito:

Los quatro lados del cuadrado o domineos de control y gestion de sociedades non-
europeas y a partir de la primera metade del siglo XX, no-estado-unidenses, están
112
estrechamente relacionados de manera tal que cada uno implica a todo los otros. De
nuevo, em distintas maneras e intensidades, según la época histórica y la región
geográfica de expansion e interferencia.
Ahora bien, en las cuatro esferas de la matriz colonial, el lado oscuro de la retórica
de la modernidad, es lo enunciado, lo que se dice y se hace en cada una de esas
áreas en nombre del progreso, que legitima la guerra (simbólica y material) a los
obstáculo que dificulten o se opongan a la salvación y al progreso. En el centro del
cuadrado aparecen los dos polos o los dos pilares que sostienen la enunciación. En
efecto, ¿cuáles son las agencias (instituciones y personas) que legitiman, mediante
el conocimiento, tanto la retórica de la modernidad como la lógica de colonialidad
que se ejerce mediante la matriz de poder? El control del conocimiento en el
Renacimiento europeo y en la España renacentista, estaba en manos de hombres,
cristianos blancos (católicos en el sur, protestantes en el norte), conservadores en
materia de género y sexualidad. De tal manera que tanto la retórica de modernidad y
progreso como la lógica de colonialidad y control, están sostenidas en un aparato
cognoscitivo que es patriarcal (norma las relaciones de género y las relaciones
sexuales), es racista (defiende la cristiandad frente a otras religiones, la pureza de
sangre tanto en materia religiosa como biológica) (2008, p. 11).
No trecho, é visível que Mignolo aponta o patriarcado e o racismo (atravessado pela
moral cristã) como as duas bases que são fortalecidas no exercício do poder europeu sobre as
colônias espanholas na América. Esses dois pilares semelhantemente são preponderantes na
atmosfera colonial que a) tanto externamente circunda o romance camusiano na sua relação
com a Crítica literária ocidental quanto b) é interiormente encontrada no discurso narrado por
Meursault e sua história. No primeiro caso, já assinalei que as críticas europeias de Barthes
(2004a) e Sartre (2005) se atêm eurocentricamente ao narrador colonizador e suas angústias
existenciais diante da França no Pós-guerra, circunscrevendo, como também notificou
Edward Said em Cultura e imperialismo (1993), os limites dos sentidos do romance a dores e
embates filosofais ocidentais, desconsiderando a questão de gênero latente no texto, sobretudo
na relação entre o narrador e as mulheres plurais da obra. No segundo caso, racismo,
patriarcado e moral cristã estão na base de ações como o assassinato do “árabe”, a construção
das personagens da mãe e da namorada, a autoridade da justiça francesa sentenciando crime e
culpa de modo eurocentrado e sugestionado pelo cristianismo e pelos valores da família
burguesa.
Desse modo, o conhecimento tecido em torno da obra nas críticas aqui visitadas está
sob o jugo da “Matriz colonial do poder” (QUIJANO, 2005), inclusive, na própria crítica
decolonial de Edward Said (1995), pelo fato específico de que seu ensaio sobre O estrangeiro
se mantém de acordo com o padrão patriarcal. Explico: o autor não considera a questão de
gênero no interior da “Matriz colonial do poder” e seus pilares presentes na conjuntura da
obra, centrando-se nas figuras masculinas sem relacioná-las ao jugo patriarcal sobre as
mulheres. É como se o autor invisibilizasse também o gênero feminino em sua crítica,
113
reforçando as bases de uma crítica patriarcal, modelo de conhecimento de mundo
eurocêntrico, como aponta Quijano (2008). Da mesma forma, o discurso de Meursault
também reflete a dominação masculina, branca, colonial da retórica da modernidade
ocidental.
Como um romance centralizado numa história que se passa numa colônia francesa e é
narrada por um homem na posição de dominação em relação ao contexto colonial (francês), a
“Matriz colonial do poder” passeia pela vida dos personagens e pelo discurso do narrador.
Tem-se uma obra com um narrador que, sim, dentre tantos adjetivos que pode assumir na
ficção, é um sujeito colono a contar que sua mãe morre e que, em sequência, protagoniza
ações entendidas na ordem cristã e burguesa como moralmente incoerentes e reprováveis:
namorar uma moça francesa no dia seguinte ao enterro da sua genitora. O personagem, ainda,
se mostra inserido nos ritos patriarcais ao ser solidário a um “amigo” também europeu em
violentar uma moça argelina apresentada nebulosamente entre a condição de prostituta e
namorada desse seu amigo, chegando finalmente a matar um homem nativo, “um árabe”, sem
sequer nomeá-lo ou apresentar uma razão explicitamente inteligível para o crime, além da
interferência do sol sobre sua conduta. Por fim, este assassinato não se apresenta como o
motivo real de sua condenação à morte pela autoridade da justiça francesa na Argélia, de
modo que a sentença de culpa se dá muito mais pelo personagem não se mostrar cristão e bom
filho, conforme os valores da família burguesa ocidental. Tal conjuntura aponta no texto os
pilares indicados por Quijano e Mignolo no sistema colonial mundial europeu: patriarcado,
racismo, controle moral, os quais, faz-se mais do que em tempo, merecem ser destacados na
engrenagem do romance camusiano como uma maneira de apontar novos significados para as
relações entre literatura e sociedade no que tange à obra.
Adiante, ao selecionar trechos específicos do romance para análise, pretendo elucidar
de modo mais detalhado as afirmações acima, mas, antes, é preciso, ainda, apontar as
decisivas observações críticas que María Lugones faz sobre o pensamento de Quijano quanto
à sua generalidade ao desenhar o pilar de gênero e patriarcado em seu conceito de “Matriz
colonial do poder”. Atenho-me especificamente ao artigo da pensadora intitulado
“Colonialidad y Gênero” (2008), no qual declara ter como objetivo investigar a intersecção
entre raça, classe e sexualidade, a fim de problematizar a indiferença que homens, mesmo que
sejam estes figuras subalternizadas, não ocidentais, vítimas de dominação colonial
eurocêntrica, racista e violadora de direitos trabalhistas na ordem capitalista global,
demonstram quanto à persistência da violência contra “mujeres de color” (2008, p. 75). Estas
114
mulheres seriam identificadas como figuras femininas periféricas, subalternizadas e vítimas
de múltiplas dominações no contexto colonial, como mulheres chicanas, indígenas, negras,
pobres e todas aquelas que se ligam a formas de exploração, violência e estigmas nesse
contexto; mulheres que são vistas pela autora, ainda, como protagonistas de um feminismo
decolonial por oposição a um feminismo hegemônico atido a pautas da branquitude ocidental.
A autora afirma que Quijano, em sua teoria, a partir do lugar de homem
colonizado/subalternizado que ocupa, (mesmo enquanto criador do que ela julga ser um
marco analítico para se repensar a própria dinâmica da colonização), termina,
contraditoriamente, por reproduzir em seu pensamento o padrão eurocentrado e patriarcal de
um tipo específico de sexualidade: a heterossexual, atendo-se também à questão de gênero
focalizada na branquitude, perdendo, pois, a oportunidade de pensar a “Matriz colonial do
poder” segundo uma perspectiva realmente diversa da produção e circulação do saber
disciplinador do sistema colonial europeu, a qual constrói normativamente a categoria de sexo
numa perspectiva biologizante e binarista. Quijano, assim, se afasta de uma abordagem
decolonial solidária às tantas diversidades possíveis envolvidas nas das relações coloniais de
poder e disputas. Diz Lugones:

Por lo tanto, para Quijano, las luchas por el control del «acceso sexual, sus recursos
y productos» definen el ámbito del sexo/género y, están organizadas por los ejes de
la colonialidad y de la modernidad. Este análisis de la construcción
moderna/colonial del género y su alcance es limitado. La mirada de Quijano
presupone una compresión patriarcal y heterosexual de las disputas por el control del
sexo y sus recursos y productos. Quijano acepta el entendimiento capitalista,
eurocentrado y global de género. El marco de análisis, en tanto capitalista,
eurocentrado y global, vela las maneras en que las mujeres colonizadas, no-blancas,
fueron subordinadas y desprovistas de poder. El carácter heterosexual y patriarcal de
las relaciones sociales puede ser percibido como opresivo al desenmascarar las
presuposiciones de este marco analítico.
Tanto el dimorfismo biológico, el heterosexualismo, como el patriarcado son
característicos de lo que llamo el lado claro/visible de la organización
colonial/moderna del género. El dimorfismo biológico, la dicotomía hombre/mujer,
el heterosexualismo, y el patriarcado están inscriptos con mayúsculas, y
hegemónicamente en el significado mismo del género. Quijano no ha tomado
conciencia de su propia aceptación del significado hegemónico del género. Al
incluir estos elementos en el análisis de la colonialidad del poder trato de expandir y
complicar el enfoque de Quijano que considero central a lo que llamo el sistema de
género moderno/colonial (2008, p. 78).
Havendo, portanto, detectado a tendência de se seguir o padrão hegemônico que molda
mesmo o pensamento de Quijano, intelectual reconhecido pela autora como divisor de águas
no entendimento da interseccionalidade que define as relações de dominação eurocentradas,
Lugones propõe a sua reflexão particular, como intelectual e mulher subalternizada na
América latina, para evitar categorizações hegemônicas no tratamento da luta contra a “Matriz
115
colonial do poder”. Ela entende que a própria ideia de intersecção, dentro do pensamento de
intelectuais decoloniais como Quijano, para se pensar a subalternização, tem se mostrado
baseada no cruzar de categorias fixas, pré-moldadas numa origem europeia normativa:
mulheres (entendidas hegemonicamente como mulheres brancas) e negros (entendidos
majoritariamente como homens heterossexuais), o que a seu ver merece uma revisão. Nesse
sentido, observa a intelectual argentina:

Entonces, se vuelve lógicamente claro que la lógica de separación categorial


distorsiona los seres y fenómenos sociales que existen en la intersección, como la
violencia contra las mujeres de color. Dada la construcción de las categorías, la
intersección interpreta erróneamente a las mujeres de color. En la intersección entre
«mujer» y «negro» hay una ausencia donde debería estar la mujer negra
precisamente porque ni «mujer» ni «negro» la incluyen. La intersección nos muestra
un vacío. Por eso, una vez que la interseccionalidad nos muestra lo que se pierde,
nos queda por delante la tarea de reconceptualizar la lógica de la intersección para,
de ese modo, evitar la separabilidad de las categorías dadas y el pensamiento
categorial. Solo al percibir género y raza como entretramados o fusionados
indisolublemente, podemos realmente ver a las mujeres de color. Esto implica que el
término «mujer» en sí, sin especificación de la fusión no tiene sentido o tiene un
sentido racista, ya que la lógica categorial históricamente ha seleccionado solamente
el grupo dominante, las mujeres burguesas blancas heterosexuales y por lo tanto ha
escondido la brutalización, el abuso, la deshumanización que la colonialidad del
género implica (2008, p. 82).
Sendo assim, a crítica de Lugones à teoria de Quijano se torna útil à presente pesquisa,
uma vez que, aqui, entendo como fulcral seguir o pensamento da autora ao analisar os
personagens literários com a lupa de uma interseccionalidade capaz de abranger as múltiplas
diversidades com as quais estes possam ser interpretados em face das plurais representações
de gênero no universo da ficção.
Na obra de Camus, considero necessário focalizar os personagens pelas suas relações
com a “raça”, o trabalho, o gênero, a geografia, a cultura, avaliando, como propõe Lugones, o
mais interseccionadamente possível, suas subjetividades no entrecortar das diversidades de
identidades pelas quais transitam. Meursault, por exemplo, na condição de narrador
personagem, o qual é responsável dentro da narrativa por construir, a partir de seu olhar
parcial, todo o universo de ações contadas no texto, demanda interpretações de sua
personalidade e seu discurso, levando-se em consideração a sua condição de homem branco,
de francês na Argélia colonial, de heterossexual, profissional liberal, de “estrangeiro” à moral
cristã francesa, de sujeito ficcional relacional, tecido em função de demais personagens
engendradas dentro de papéis de gênero.
É nessa perspectiva que pretendo, neste capítulo, destacar como ideia basilar, que o
narrador camusiano na sua condição de colono francês não se mostra tão completamente
rebelde ou alheio assim aos valores da sociedade francesa e às “regras de seu jogo”
116
(SARTRE, 2005, p. 120) quando se estão em voga determinados ritos de dominação patriarcal
ocidental sobre as diversas figuras femininas e sobre a sexualidade, guardando, mesmo, ao
contrário do que supunha, uma tradição crítica falocentrada. Essa tradição, como se viu em
itens anteriores deste capítulo, o taxou como um “inocente”, condenado pela moral francesa
por teoricamente contrariá-la em suas bases, deixando, contudo, de notar e de problematizar a
parcela de misoginia por entre vestígios inapagáveis de sua “nacionalidade” francesa naquilo
que ela continha de imperialista e patriarcal. Estes vestígios, a serem discutidos adiante,
compõem a figura de Meursault enquanto colono, heterossexual, profissional liberal de um
escritório na Argélia, enquanto filho. Tal observação peculiar é nesta pesquisa tecida pela
interação entre o texto romanesco e a minha leitura particular (ISER, 1979) executada do meu
lugar intelectual de “mujer de color”, tal qual é definido por Lugones (2008) e, por isso,
também engendrada à revelia do que denominarei em diálogo com SCHWARZ (2002), a
seguir, de “estrangeirismo por subtração”, limitadamente concluído por Sartre (2005) e
Barthes (2004a) sobre o protagonista de Camus. Os dois críticos, ligados a uma plataforma
eurocentrada na lógica da modernidade colonial, não leram o romance em associação a uma
possível interseccionalidade contrahegemônica na linha do pensamento da intelectual
argentina, não consideraram em seus olhares centralizados na figura masculina de Meursault o
seu caráter transcultural demarcado por tensões e contradições (WALTER, 2015; BHABHA,
2003). Meursault, tal qual pretendo demonstrar ainda neste capítulo, revela um caráter
peculiar de “estrangeiro”, atravessado por contradições que merecem análise por tais
perspectivas interseccionais de um feminismo decolonial como o de Lugones e associadas ao
conceito de “transculturação”, discutido por Roland Walter25 (2015).
A perspectiva de Lugones, vale ratificar, nota em Quijano aquilo que tenho também
percebido e aqui apontado no que concerne às leituras críticas do romance O estrangeiro ao
longo de sua construção enquanto clássico francês mesmo por autores e autoras brasileiros: a
dominação masculina, branca, eurocentrada no olhar sobre os sujeitos da colonização. Para
confirmar o fato, basta visitar os títulos e o corpo textual dos ensaios, orelhas e prefácios da
grande maioria das publicações a respeito da ficção de Camus, dissertações e teses sobre o
escritor. Trago, desse modo, novamente a palavra de Lugones sobre Quijano, este intelectual

25 A noção de “transculturação” é colhida no pensamento de Walter (2015), contudo gostaria de remarcar que a
ideia de pensar Meursault como um sujeito transculturado brotou da leitura feita do artigo “Budapeste: as
fraturas identitárias da ficção”, de Sônia Ramalho, no qual a autora analisa o protagonista José Costa como
personagem atravessado pelas diferentes culturas com as quais conviveu, sendo, pois, um caso de identidade
transcultural no romance de Chico Buarque. Vide: RAMALHO, Sônia. Budapeste: as fraturas identitárias da
ficção. In: As fraturas identitárias da ficção. Recife: Editora UFPE, 2014, p. 15-38.
117
latino-americano, homem, que ainda sucumbe ao modelo eurocêntrico de produção de saberes
ao denunciá-lo enquanto violência colonial:

Quijano parece dar por sentado que la disputa por el control del sexo es una disputa
entre hombres, sostenida alrededor del control, por parte de los hombres, sobre
recursos que son pensados como femeninos. Los hombres tampoco no parecen ser
entendidos como «recursos» en los encuentros sexuales. Y no parece, tampoco, que
las mujeres disputen ningún control sobre el acceso sexual. Las diferencias se
piensan en los mismos términos con los que la sociedad lee la biología reproductiva
(2008, p. 84).
O conhecimento, como se verifica na percepção da crítica decolonial e feminista de
Lugones, é construído por homens, centralizado em homens em posição de domínio,
repassado por suas vozes dominantes. Nesse movimento de hegemonia patriarcal, são
periferizadas da crítica as diversidades presentes nas interseccionalidades dentro da categoria
socialmente construída de sexo, dada como biológica. É importante, nesse sentido, trazer aqui
a revisão crítica que Lugones interpõe sobre a divisão biológica binária dos seres humanos em
sexos. É desta revisão da autora argentina que se extrai, nesta tese em Teoria da Literatura,
situada em um programa de pós-graduação brasileiro, aquilo que se entende como “gênero”,
enquanto se discute a questão numa obra literária clássica francesa em contexto de produção
colonial, escrita por um escritor ocidental premiado pelo Nobel de Literatura, partindo-se, é
importante destacar, do que demanda sua reescritura paródica da francofonia periférica
(HUTCHEON, 1991) redigida por um autor argelino, o qual dialoga, por sua vez, também
com o patriarcado magrebino. Todos os sujeitos envolvidos na autoria literária são entendidos
como homens dentro da demarcação social do binarismo relacional homem x mulher e
constroem narradores masculinos. Nesse sentido, o que é o gênero na conjuntura do “sistema
de gênero colonial/moderno” para Lugones é o ponto significativo da base teórica desta
investigação.
Lugones inicia sua reflexão trazendo a figura marginalizada das pessoas ditas
“intersexuais”. Ela atenta para o fato de que a lei na ordem colonial não compreende esses
sujeitos como de Direitos e aponta a existência de uma normatização para que tais indivíduos
se definam na ordem binária como homens ou como mulheres. Dessa observação, a argentina
conclui que a ordem binária, instituída por instrumentos de autoridade e pela plataforma
científica ocidental, se faz útil à divisão do trabalho que sustenta o regime colonial capitalista
e alicerçado na ideia de raça. Nesse sentido, diferente da visão limitada e “engenerizada”
(LUGONES, 2008, p. 83) de Quijano, e tendo como referência os trabalhos de Paula Gunn
Allen, ela afirma que o conceito de gênero, em si, é uma criação (não um dado natural) que
alicerça o sistema global de colonização europeia cujo padrão heterossexual e branco, para
118
que, assim, se explorem as forças de trabalho dos corpos na ordem econômica. Tal noção de
gênero é responsável pelas formas de se reconhecer, categorizar, disciplinar pessoas e suas
relações, de produzir conhecimento sobre os sujeitos. Diz: “tanto la producción del
conocimiento como todos los niveles de la concepción de la realidad se hallan
‘engenerizados’” (2008, p. 92). Sobre as contrubuições de Allen, ela remarca:

Además, Allen también evidencia que la heterosexualidad característica de la


construcción colonial/moderna de las relaciones de género es producida, y
construida míticamente. Pero la heterosexualidad no está simplemente biologizada
de una manera ficticia, también es obligatoria y permea la totalidad de la
colonialidad del género, en la compresión más amplia que le estamos dando a este
concepto. En este sentido, el capitalismo eurocentrado global es heterosexual. Creo
que es importante que veamos, mientras intentamos entender la profundidad y la
fuerza de la violencia en la producción tanto del lado oculto/oscuro como del lado
visible/claro del sistema de género moderno/colonial, que esta heterosexualidad ha
sido coherente y duraderamente perversa, violenta, degradante, y ha convertido a la
gente «no blanca» en animales y a las mujeres blancas en reproductoras de La Raza
(blanca) y de La Clase (burguesa) (LUGONES, 2008, p. 92).
Dessa forma, é importante compreender a questão de gênero na análise literária,
levando em conta a plataforma capitalista eurocentrada colonial moderna descrita pela autora,
entendendo o lugar de inferiorização na ordem patriarcal e heterossexual eurocêntrica das
mulheres brancas (vistas como reprodutoras de filhos dentro do esquema da família
burguesa), como uma posição diversa da ocupada por mulheres colonizadas, as quais passam
também pela violência da subalternização racial que, para além das demais violências, as
animaliza. Como acrescenta Lugones, a intersecção entre as noções de gênero, sexualidade e
raça são constitutivas do poder colonial; sem elas numa relação entramada, a dominação não
se tornaria um sistema globalizado.
O trecho a seguir se faz igualmente importante para compreender a concepção da
autora de que gênero se trata de uma ficção atrelada a outra ficção, que é a ideia de raça.
Interseccionadas, essas “ficções” se materializam como combustíveis para os motores do
sistema capitalista eurocentrado global. Cito:

Problematizar el dimorfismo biológico y considerar la relación entre el dimorfismo


biológico y la construcción dicotómica de género es central para entender el alcance,
la profundidad, y las características del sistema de género colonial/moderno. La
reducción del género a lo privado, al control sobre el sexo y sus recursos y productos
es una cuestión ideológica presentada ideológicamente como biológica, parte de la
producción cognitiva de la modernidade que ha conceptualizado la raza como
«engenerizada» y al género como racializado de maneras particularmente
diferenciadas entre los europeos-as/blancos-as y las gentes colonizadas/no-blancas.
La raza no es ni más mítica ni más ficticia que el género –ambos son ficciones
poderosas (2008, p. 93-94).
O panorama colonial, então, além de tudo, reduziu mulheres indígenas e escravizadas
africanas à animalização, pois eram, dentro da heterormatividade, violentadas pelo estupro ou
119
circunscritas ao concumbinato pela dominação masculina. Por seu turno, as mulheres brancas
da burguesia estavam limitadas à procriação e à dominação heterossexual de seus corpos
também em favor da produção capitalista global, contudo tinham os privilégios da
branquitude, o que não ocorria com as “mujeres de color”: “las hembras colonizadas
recibieron el estatus inferior que acompaña al género mujer pero ninguno de los privilegios
que constituían ese status en el caso de las mujeres burguesas blancas” (LUGONES, 2008, p.
95). São, portanto, lugares femininos diferentes de subalternização em função do racismo
entranhado ao gênero e ao usufruto dos corpos, os quais aparecem ficcionalmente
representados nos dois romances estudados e, partircularmente, no caso de O estrangeiro, em
análise neste capítulo, essas posições revelam como a narrativa de Meursault construiu as
mulheres em diálogo com o sistema de conhecimento patriarcal, racista, próprio do sistema
colonial. Dessa forma, ao revisar as leituras tradicionais e hegemônicas no campo literário do
romance camusiano, pretendo dar visibilidades às figuras femininas plurais, entendendo-as
como figuras que se tecem de modo relacional aos personagens homens (BADINTER, 1985;
MEDRADO & LYRA, 2018) e suas representações de masculinidades, em face da conjuntura
normativa colonial heterossexual e entrecortada pela “raça”.
Tal traço específico de minha análise ajustado à Crítica feminista e ao feminismo
decolonial contra-hegemônico de María Lugones pode tornar nítida a parcela “não tão
estrangeira assim” de Meursault aos valores da família burguesa, a despeito do que afirmaram
Sartre e Barthes em suas críticas até hoje referenciadas e “sacralizadas” no campo dos estudos
sobre Camus. Sim, é inegável que o personagem esculpido em jogo com o conceito de
“homem absurdo”, emblemático da filosofia camusiana em O mito de Sísifo (1942), ousou
atacar em muito de sua conduta como sujeito francês pied-noir os valores de uma França
capitalista, alicerçada em valores como religião e família, mas, ainda assim, a personagem
“Meursault” concentra uma série de ambiguidades e contradições que aqui encontrarão uma
análise menos maniqueísta a respeito do que pode significar ser um “estrangeiro”; uma
análise, diria, que atentará para o protagonista em seu caráter relacional aos sujeitos franceses
e argelinos, à geografia do texto, ao que se representa como papéis de gênero na trama. Na
verdade, logo adiante, proponho pôr em questão a própria noção de “estrangeiro” (tomada
pela crítica) em O estrangeiro, considerando que ela, da forma que foi tecida pelo pensamento
exegético do Século XX, merece uma reavaliação a partir da plataforma dos Estudos culturais
(WALTER, 2015; BHABHA, 2003; HALL, 2006).
120
Nessa conjuntura, penso, com base em Stuart Hall (2006) e suas reflexões sobre as
interações entre “o Ocidente e o Resto (periferia)”, uma pequena analogia nesses termos:
Meursault estaria para a crítica literária francesa da primeira metade do século XX como o
“Ocidente” hierarquicamente estaria para “o Resto”, ou seja, em posição central, atrativa,
dominante e subalternizante dos demais elementos do romance. É preciso descentralizar
(palavra que não significa descartar, friso) a crítica ocidental de seu único ponto de atração no
texto, o narrador-personagem Meursault, sobretudo na sua forma particular de entendê-lo:
como se este fosse a exclusiva força atrativa da obra por ser o narrador (um narrador, observo,
não por acaso: francês, letrado e empregado de um escritório para negócios franceses,
heterossexual, representante de uma masculinidade hegemonizada). Bem como é possível ir
além de agir exegeticamente como se este personagem fosse uma figura solitária, um sujeito
solar, uno e indivisível (HALL, 2006), a irradiar os sentidos da obra individualmente pelo fato
de narrá-la, passando-se do início ao fim do texto como se encarnasse apenas um sujeito
francês avesso à França burguesa e cristã; um sujeito representado nas páginas como homem,
contudo, como se vivesse “inafetado” pela própria socialização masculina hegemônica de sua
época e pela posição social de pied-noir. A identidade cultural de Meursault, penso, necessida
de uma revisita interpretativa e, ao que me parece, seria mais complexa “do que sonha a
filosofia” sartreana e barthesiana, pelo seguinte motivo: ela está constituída, também, pelas
tensões das relações coloniais entre Argélia e França, das relações de gênero, além de
dialogar, evidentemente, assinalo, com uma vasta tradição literária, mitológica e filosófica
ocidental que compõe a formação intelectual de Camus e seu contexto ficcional de produção.
Tal detalhe dialógico presente na obra camusiana é importante de ser destacado, uma vez que
a literatura não vem a ser aqui entendida como um mero reflexo transparente das relações
econômicas imperialistas, sendo, como entende o próprio Barthes (2004b) vista como um
construto simbólico da realidade social, a partir igualmente de uma rede de citações de vozes
e obras ligadas a uma vasta tradição reconhecida por autores e leitores diversos, agentes que,
segundo o crítico de O rumor da língua (2004b), em seu marcante ensaio “Escrever a leitura”,
escrevem o texto e seus significados (BARTHES, 2004b).
Também, necessito que fique claro, almejo, com todo respeito a seu legado à
interpretação literária do século XX, ir além da crítica de Edward Said (1993), que, ao
praticamente fundar outro método crítico para a análise de romances de escritores das
potências nacionais imperialistas nas décadas finais dos novecentos, os Estudos Pós-coloniais,
elegeu o espaço narrativo de O estrangeiro, “a Argélia”, como foco central dos sentidos da
121
narrativa de Meursault, configurando-se, como demostrei nas páginas antecedentes, como
uma crítica que iguala e, assim, reduz o projeto ficcional camusiano ao projeto imperialista
francês no Magreb (vide capítulo 2). O estrangeiro precisaria ser lido, penso, como uma
narrativa literária que simboliza o social (CANDIDO, 2006), então, composta de elementos
formais interdependentes na construção de seus sentidos possíveis face a leitores diversos
(CANDIDO, 1976). Nessa perspectiva, Meursault, ainda que ocupe uma posição de destaque,
central e centralizador do texto, como narrador protagonista que é, pode, em contrapartida, ser
interpretado como um dos elementos significativos da narrativa, não como o único; assim
como o espaço do romance, “a Argélia”, não seria, ainda que fundamental, o determinante
exclusivo das interpretações da obra.
Partindo dessas premissas e, em consonância com os Estudos pós-coloniais e
dialogando com o pensamento decolonial dos autores acima comentados, pretendo
suplementar Said no sentindo de analisar O estrangeiro como narrativa romanesca a se
constituir de elementos formais em interação retroalimentar e entrelaçados à sociedade com a
qual a obra dialoga ficcionalmente: narrador, personagens, espaço, tempo, história e discurso.
Elementos estéticos estes que, conjuntamente, funcionariam para o analista literário, tal como
esta ocupação é entendida por Antonio Candido (2006), como uma face formal em interação
dialética com os fatores sociais a promover os sentidos dos textos. Cito Candido em
Literatura e sociedade, remarcando a necessidade de se pensar os elementos da obra em
conjunto:

A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos
elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar
um todo indissolúvel, do qual se pode dizer, como Fausto do Macrocosmos, que
tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra (2006, p. 15).
Mais adiante, na obra, que, unanimemente, é de visita praticamente incontornável para
todo estudioso atento da Literatura, Candido explica a dialética entre “forma e conteúdo”, a
qual marca a sua escolha metodológica de se pensar, bem como se fazer crítica literária, e que
também é, aqui, entendida como uma das mais significativas contribuições do mestre ao modo
de se interpretar a ficção literária, tomada, agora, portanto, como referência analítica para a
leitura de O estrangeiro. Cito:

Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história


sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a
dimensão social como fator da arte. Quando isso se dá, ocorre o paradoxo assinalado
inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica para ser
apenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na
economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Neste
nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões
122
pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de
que resultou a diversidade coesa do todo (2006, p. 17).
Dessa forma, o objetivo das páginas que se seguem é observar, na perspectiva do jogo
entre “forma e conteúdo” proposto pelo crítico brasileiro, os pontos de tensão entre o discurso
narrativo de Meursault e as demais personagens da história no contexto histórico colonial do
espaço argelino, procurando suplementar, de modo reverencial e modesto, o que ensina
significativamente o autor de Cultura e imperialismo (atido em sua escolha analítica à
circunscrição do binômio sociológico “Ocidente x colônia”). Em suma, o modo interpretativo
aqui desenvolvido assim se delineia: executar a leitura de O estrangeiro entendendo os
personagens como figuras sociais que assumem papéis também de gênero, os quais julgo,
como pretendo arquitetar em demonstração a seguir, são de imensa relevância para as relações
culturais que se apresentam na tessitura da trama e merecem, por isso, uma atenção até aqui
pouco concedida.
Nesse sentido, retomando a analogia com as ideias do autor de A identidade cultural
na pós-modernidade (2006) lançada acima, a crítica que este trabalho intenciona desenvolver
é aquela que percebe “the Rest in the West” (HALL, 2006, p. 80), isto é, uma crítica que
busca atentar para o que tanto os pensadores franceses do Século XX quanto Said terminaram,
de um modo ou de outro, com suas escolhas analíticas, por periferizarem em seus estudos,
mas que, sim, compõe os sentidos do romance: as questões trançadas à noção de gênero,
sexualidade e racismo no espaço colonial. Em recorte mais específico, o que será analisado se
divide em dois pontos: a) a questão das masculinidades, decisiva na trama entre as ações de
franceses e argelinos em território colonial, significativa na relação com a mulher árabe
(violentada e animalizada por personagens colonos do romance) e, principalmente, ligada ao
assassinato do árabe em Camus; b) o papel da mãe e da maternidade na conjuntura burguesa,
cristã e institucional (jurídica) da França imperialista, junto aos demais papéis do feminino
(amante, prostituta, namorada, esposa, etc), sejam entre francesas ou argelinas, na composição
da narrativa criada por Meursault.
Na verdade, o “caso” do personagem Meursault se configura um “nó” a ser estudado
nesta pesquisa como um aspecto simbólico presente num romance clássico do século XX que,
sim, entrança esteticamente, em sua narrativa, no modo como esta “seleciona e combina”
(ISER, 2002) os personagens dentro do espaço e do tempo, as instâncias de colonização e
gênero. A seguir, discutem-se os pontos a e b por ora listados.
123
4.2 AS MASCULINIDADES INVISÍVEIS EM O ESTRANGEIRO: FRAGILIDADE,
VIOLÊNCIA, MISOGINIA

O romance de Camus é guiado pela voz narrativa de um homem: Meursault. É esta


voz que vai tecendo o universo das demais personagens e possivelmente, por tal razão,
acredito, tem sido a personagem mais focalizada pelos intérpretes do autor. Indubitavelmente,
é imprescindível pensá-la, porque é uma categoria estrutural e estruturante do texto e de seus
sentidos simbólicos diante do real. Como se articula uma forma de pensá-la é, obviamente, a
questão que diferencia uma interpretação de outra. Aqui, neste trabalho, Meursault é visto –
tendo a destacar inicialmente entre tantas peculiaridades, entre tantas “perdas de significados”
que uma interpretação, ao ser redigida, é capaz reconhecidamente de apresentar – como um
narrador contando a seus leitores um recorte de sua vida até o momento da enunciação: que
sua mãe morreu, que matou um homem, revelando em que condições de julgamento pela
justiça francesa foi condenado, partilhando suas impressões sobre seu trajeto por esses dois
eventos de “morte”. Trata-se de um personagem que se faz “nascer” em seu discurso narrativo
primeiramente no papel de “filho” a se tornar “órfão”; papel oriundo em caráter
dialeticamente relacional à frase inaugural do texto a introduzir a simbologia da maternidade:
“Hoje mamãe morreu” (CAMUS, 2016, p. 13). Em seguida, de filho órfão, não
necessariamente vivenciando um luto convencional, Meursault se apresenta como trabalhador
francês na Argélia colonial, um profissional liberal de um escritório, que socializa, de modo
que transita aparentemente entre o amistoso e o indiferente, com outros homens franceses. Em
sequência, surge sua identidade de homem heterossexual (branco e colono francês) que se
envolve “afetivamente” com uma namorada francesa (Marie), “indireta e misoginamente”
com uma mulher “moura” (sem nome explicitado em sua fala), até partir para a violência
armada ao assassinar “um árabe”, culminando a sua história com uma condenação judicial “à
moda francesa”: cadafalso e execução.
Meursault, diversamente do que afirmaram Barthes (2004a) e Sartre (2005), não
passará por esta interpretação brasileira como um “inocente”. Também não será lido como um
homem de valores completamente forasteiros e destoantes da comunidade pied-noir em que
foi socializado, sendo, pois, percebido como um “estrangeiro” na condição mais conflitante e
ambivalente que a acepção da palavra pode denotar, assumindo, nessa ótica, posições
contraditórias e interseccionais em relação à sua identidade, lida, aqui, como uma identidade
transcultural (WALTER, 2015), como ficará elucidado ao longo deste capítulo.
124
O caso a ser focalizado, agora, sob o impacto da obra de Kamel Daoud, é que
Meursault mata “um árabe”, o qual não recebe nome na história (assim como a “mulher
árabe” e a mulher “mãe”) nem pelo narrador, nem pelo próprio tribunal que supostamente
julgaria o crime de assassinato do argelino. Edward Said (1995) já assinalara o fato de
Meursault ser um francês colono matando um argelino e, assim, na sua visão, o romance
reproduziria a lógica da violência imperial francesa orquestrada no interior da ficção
camusiana. Por seu turno, o narrador do romance de Kamel Daoud, Haroun, também retorna
para assinalar o crime de assassinato de seu irmão (na obra, nomeado Moussa), desprezado
por uma tradição de leitores que recepcionaram o clássico de Camus (no plano do real) e pelo
próprio tribunal francês (no plano da diegese romanesca). Nesse contexto, entretanto, o que a
ficção contemporânea argelina de Daoud faz que não foi feito pela análise crítica pós-colonial
do próprio Edward Said é, justamente, apontar mais um nó para a interpretação do romance de
Camus: não se tem apenas um francês matando um árabe em território argelino, fato ficcional
que muito foi vivenciado na realidade da colonização francesa na Argélia (YAZBEC, 2010;
FANON, 1965). O que Daoud mostra em seu romance paródico (HUTCHEON, 1991) é que
este assassinato na trama pode guardar significações ocultadas, mas findou por se tornar um
crime de sentidos “encerrados” pela crítica canonizada a praticamente duas leituras: a) o
assassinato é lido como um delito do narrador-personagem causado pela “filosofia do
absurdo” de Camus desenvolvida em O mito de Sísifo (2018), com destaque para uma espécie
de “motor mítico” a conduzir Meursault ao ato “pela falta de sentido” na vida que mobilizava
os comportamentos, igualmente percebidos como “gratuitos”, do personagem (visões já vistas
de Sartre (2005) e Barthes (2004a)) e b) o assassinato como um suposto ato de violência
imperialista de um colono francês sobre um nativo argelino, subalternizado e dominado.
Existiria, a partir da leitura da ficção paródica contemporânea do autor argelino, um campo
semântico invisibilizado diante do crime praticado por Meursault, bem como em alguns dos
seus atos mais triviais. A presente pesquisa que, guiada pela obra O caso Meursault
(DAOUD, 2013), revisa os sentidos de O estrangeiro, propõe deixar visível e exposto ao
debate tal campo invisibilizado. Este campo, com base nas observações das pistas lançadas no
texto argelino, é percebido como o das masculinidades (hegemônicas).
Para articular o início de tal abordagem das “masculinidades invisíveis”, chamo
atenção para o seguinte fato: a crítica brasileira que traduz os sentidos de O estrangeiro, ainda
hoje, em gêneros discursivos como orelhas e prefácios de edições do romance, repete a
invisibilidade das masculinidades, que, sim, se apresentam em tensão no texto francês. Trata-
125
se da mesma invisibilidade já praticada ao longo do século XX por Barthes (2004a), Sartre
(2005) e Said (1995). Seleciono para ilustrar a presente discussão a crítica de dois jornalistas
brasileiros que estampam uma das edições, atualmente, mais vendidas no país do romance de
Camus pela Editora Record, Artur Dapieve e Manuel da Costa Pinto, nomes que, pela posição
de destaque que ocupam na publicação da editora e na imprensa nacional, estão sempre nas
escrivaninhas de leitores comuns e especializados, professores que se interessam pela leitura
de O estrangeiro.
Destaco, primeiramente, o trecho escrito pelo jornalista e professor Arthur Dapieve
para a orelha da edição recente de O estrangeiro, da Record, editora que, no Brasil, tem
republicado a obra completa de Camus em vários tomos:

é o mais pop(ular) dos livros de Albert Camus. Tão pop, que rendeu até música do
grupo The cure (“Killing an Arab”). Tão popular porque à parte ser a seca narrativa
das desventuras de Meursault, condenado à morte por matar um árabe a troco de
nada, é também a narrativa das desventuras de um homem do século XX. Uma
espécie de autobiografia de todo mundo (DAPIEVE, 2016).
É verificável que o autor entende que Meursault mataria um argelino (ao qual não
confere um nome) pela seguinte razão: “a troco de nada”. A sua interpretação age como se
não houvesse ao menos uma única ação do personagem encadeada à outra na trama que fosse
capaz de conduzir aos tiros de um homem francês em outro homem (particularmente, não
outro ocidental, mas um árabe, numa praia da Argélia colonial). Desse modo, a impressão que
o jornalista passa é a de que Meursault pega o revolver de Raymond e atira por “nada”,
porque nada faria sentido num universo existencial de um europeu em crise filosófica no Pós-
guerra, centralizando a interpretação da motivação criminosa nessa ótica que se atém ao
diálogo com o escopo filosófico do Pós-guerra.
Essa leitura disposta no corpo material, repito, de uma das edições mais vendidas do
romance no Brasil, criada, como visível, em “looping” repetitivo, a partir das visões de Sartre
(2005) e Barthes (2004a), e que se passa praticamente como uma daquelas faixas musicais
pop, “marteladas” insistentemente pelas rádios, se constitui mais como uma maneira de
“reproduzir” a ideia de que a teoria filosófica que Camus desenvolve em O mito de Sísifo de
“homem absurdo” está entrelaçada à sua produção romanesca, do que provém de uma análise
que também considere com atenção a narrativa literária, a partir de seu nó estrutural formal: o
texto. Depieve, focado ao componente filosófico, não se atém tanto à trama em jogo com a
incidência do componente social, que, como explicou Candido em citação acima (2006),
“externamente” lhe confere elementos “internos” de composição. O brasileiro termina,
portanto, por, novamente, apontar a primazia da filosofia de Camus sobre a própria literatura
126
de Camus e, nessa escolha procedimental, a narrativa literária, em seu sentido mais clássico e
teórico (ARISTÓTELES, 2005), concebida como concatenada ao encadeamento de ações a
compor a trama e o destino dos personagens, fica em segundo plano na orelha do produto
livro a ser distribuído e vendido. Insistir na tradição filosófica da cultura eurocentrada, assim,
como chave de interpretação principal para as motivações dos atos dos personagens
romanescos é o que faz essa vertente de crítica jornalística brasileira sobre O estrangeiro,
reproduzir, pois, sua subalternidade à colonialidade do saber de que falam Quijano e Lander
(2005). A crítica, dessa maneira, assume desenhos bastante subservientes e pouco
suplementar a um “já dito” ocidental sobre Camus, sendo, então, necessário e interessante,
pela perspectiva de alargamento de suas possibilidades interpretativas, analisar a obra
francesa em diálogo com novos ângulos, partindo para outros “adentramentos” de sentidos
que questionem a “biblioteca colonial”, para utilizar termos de Inocência Mata (2016),
referência teórico-crítica já posta no capítulo primeiro deste trabalho.
Uma forma de pensar O estrangeiro para além de uma repetição crítica de uma
filosofia ocidental passaria por, com o alicerce das teorias da narrativa, desde Aristóteles às
terminologias do século XX cunhadas pelos Formalistas russos (LIMA, ANO), revisar os
sentidos do romance e retirá-los do lugar de petrificação em que se instalaram, ao se lançar
mão, também, da crítica feminista e do feminismo decolonial. Tal iniciativa metodológica
revela o paradoxo inevitável do trajeto científico contra-hegemônico contemporâneo em que
este trabalho se insere: partir da plataforma científica ocidental, isto é, utilizar alguns de seus
instrumentos teóricos basilares, para questioná-la como centro absoluto de produção de saber,
única fonte de possibilidades investigativas no campo da ciência da teoria literária.
No que concerne ao prefácio na edição da Record, do jornalista Manuel da Costa
Pinto, também autor do livro Albert Camus: Um elogio do ensaio e organizador e tradutor da
antologia de ensaios camusianos A inteligência e o Cadafalso, pode-se sublinhar que, já se
levando em consideração seu título “O estrangeiro, tragédia solar”, faz-se visível mais um
“elogio” à crítica francesa do século XX em torno do romance, igualando-se, como fez
Roland Barthes em “O estrangeiro: romance solar” (2004), a trajetória do personagem
Meursault a um resultado da incidência do Sol e de sua simbologia mítica. Contudo, um
trecho em especial do prefácio de Costa Pinto merece destaque pela possibilidade que oferece
de se refletir, além do que sua própria análise argumenta em geral, sobre a obra literária na
condição de objeto estético. O excerto é, decerto, uma “fenda” em sua conjuntura crítica, a
qual, reitero, não se distancia muito de uma repetição da abordagem francesa, por se encontrar
127
limitada a destacar em Camus um estilo narrativo que se particularizaria por ser dialógico
com o mito. É o que fica evidente em suas palavras: “A oscilação entre o natural e o
inverossímil define, portanto, a literatura de Camus e nos auxilia a ver no herói trágico uma
entidade mítica nas vestes do homem comum” (2016, p. 9). Transcrevo, enfim, o tal trecho
excepcional, que insere uma quebra na linha geral da crítica do jornalista brasileiro,
“assombrada” pelo Sol e que se mostra ilustrativa de certa “colonialidade do saber”
(QUIJANO, 2008) a repousar sobre a plataforma crítica nacional:

Meursault é um funcionário de escritório, na cidade de Argel, que assiste


indiferentemente ao enterro da mãe, para em seguida se enamorar de uma ex-colega
de trabalho e se deixar envolver numa trama de vingança amorosa que lhe é
inteiramente alheia, mas cujos acasos o levarão a cometer um assassinato (PINTO,
2016, p. 5).
Pinço do trecho, que, como se percebe, é uma breve explanação do enredo do
romance, alguns termos que, neste trabalho, são importantes de serem destacados e
analisados: 1) a condição de trabalhador do narrador; 2) a geografia do texto: Argel, cidade
colonial francesa; 3) a relação entre a narrativa e as mulheres: mãe e namorada; 4) o nexo
causal entre uma “vingança amorosa alheia” e o assassinato cometido. Costa Pinto traz à tona
esses elementos da diegese, mas acaba por marginalizá-los, elegendo o Sol, a mitologia, a
tragédia e, assim, a explicação da obra pela tradição literária ocidental, como determinante na
ação do personagem na narrativa. Contudo, é um dos poucos intérpretes aqui listados que
associam o assassinato cometido por Meursault ao seu envolvimento com demais personagens
da trama. Ele alude à trama, a qual se apresenta como um dos cernes investigativos desta
pesquisa, disposta a demonstrar a leitura de que a conduta violenta do narrador camusiano, no
desenrolar da ação, pode ser também associada à questão de gênero e a hábitos sociais
atravessados pela construção das masculinidades hegemônicas e sua misoginia característica
(WELZER- LANG, 2001).
Nota-se o paradoxo que se encontra, em Costa Pinto, associar o assassinato do
argelino a um nó entre as personagens da trama narrativa, para, em seguida, tratar o assassino
como um herói mítico atravessado pelo acaso, pelo destino, pelas “forças alheias” à sua
conduta. No entanto, esta espécie de paradoxo é uma das ambivalências que compõem o
romance de Camus; o texto, materialmente, nas palavras selecionadas pela narrativa, nos
elementos da história combinados, realizam esse imaginário ambíguo que alimenta o
romance, tal qual se comportam, segundo ISER (2002), “Os atos de fingir ou o que é fictício
no texto ficcional”. Na perspectiva que apresento, o romance se posiciona entre: a) denunciar
a conduta assassina de Meursault atrelada à sua condição de classe, de origem étnica, de
128
dominância política enquanto francês branco, heterossexual, profissional liberal frente ao
povo argelino subalternizado nas condições de vulnerabilidade diferentes entre homens e
mulheres locais e b) responsabilizar a violência imposta na história pela figura simbólica da
estrela solar, pela força mítica, a qual, como diria André Joules (1976), se impõe como
verdade inquestionável na ordem das explicações das origens dos fenômenos humanos e
naturais. O caso é que tal lógica da ambivalência no romance não tem recebido destaque ao
longo de variados intérpretes que o analisaram, de modo que a faceta da obra, na maioria das
vezes ressaltada e, enfatizo, retomada até hoje, mesmo após oito décadas de sua publicação,
ainda é a que protagoniza a tradição literária ocidental nas formas do mito e da tragédia e a
que continua por invisibilizar a questão de gênero e das masculinidades que se impõem como
elementos também estruturantes do enredo e da obra. Eclipsada pela força material e
simbólica do Sol, esta faceta invisível, a determinados olhos, de O estrangeiro precisa sair das
sombras de uma crítica ocidentalizada e ciclópica.
A questão de gênero, definitivamente, não foi a pauta central dos críticos de renome
no cânone, debruçados sobre Camus de meados do século XX até aqui. Falou-se, ao longo de
todos esses anos, exaustivamente, da filosofia e do mito de Sísifo, do sagrado, do capitalismo
e até da colonização, mas não se analisou, como se poderia ter feito, dentro da própria
moralidade francesa – sempre pontuada pelos variados intérpretes como algo diante do qual
Meursault se colocaria como crítico ferrenho, “estrangeiro” absoluto – os personagens
homens, performando como homens (BUTLER, 2003) naquele enredo “clássico do Pós-
guerra”. De modo semelhante, nem se comentou o suficiente a respeito das mulheres
“meursaultianas”, representadas nos típicos papéis impostos pelo patriarcado de “mães”, de
madame de corpo branco a ser sexualmente desfrutado com algum “afeto” na figura da
“namorada”, de “amante/prostituta” de corpo árabe a ser violentado, animalizado, sexualizado
e não nomeado. A invisibilidade na crítica da pauta de gênero e, dentro desta, da questão das
masculinidades, pode e merece ser explicada por outras razões que não sejam “o sol mítico”
obnubilando a consciência dos variados intérpretes enraizados na tradição ocidental. No que
concerne à masculinidade invisibilizada, este é um fenômeno que resulta da “dominação
masculina” (BOURDIEU, 2010), isto é, da tendência hegemônica de se tomar o masculino
como norma. Tal qual atestado pelas palavras de François de Singly, encontradas no artigo de
Daniel Welzer-Lang (2001) “A construção do masculino: dominação das mulheres e
homofobia”, “o masculino é menos perceptível que o feminino na medida em que o primeiro
pode mais facilmente disfarçar-se de interesse geral: os conteúdos culturais completamente
129
neutros em aparência mascaram a essência masculina” (apud WELZER- LANG, 2001, p.
471).
Existe, portanto, no interior da lógica que seguem os críticos da Literatura, a introjeção
da dominação masculina a ponto de ser possível, aqui, compará-la à força de raios solares que
cegam os analistas e os levam a assassinar, por invisibilidade, qualquer outra perspectiva que
evidencie as desigualdades socialmente impostas quando se divide a sociedade na lógica
naturalista e binária entre os sexos feminino e masculino. Trata-se de uma falta de percepção,
de um naturalizar o que é cultural de tal forma, que a cultura de papéis diversos entre os
gêneros se passa como algo tão biológico quanto a “fotossíntese”. O fato de plantas se
alimentarem a partir da luz solar não costuma ser questionado enquanto dispositivo que
mantém a vida vegetal. Desse modo, a luz do sol tomada metaforicamente como astro
masculino dominante, encandeia a possibilidade de se enxergar a sociedade em outros
esquemas de organização, que não o patriarcal, o qual alimenta, cotidianamente, a violência
sobre mulheres e homens, nas suas mais variadas diversidades ligadas a etnias, sexualidade,
geografias, idades, tendo em vista que “nossas situações materiais são o produto de um
conjunto de relações sociais” (WELZER-LANG, 2001, 461).
Na contramão de abordagens naturalistas binárias e heteronormativas, Daniel Welzer-
Lang (2001) comenta as desigualdades ocasionadas pela hegemonia masculina, a qual se
passa como invisível, como se fosse consequência neutra de um sistema universal em que os
grupos feminino e masculino ocupassem posições simétricas e iguais nas análises de suas
trajetórias em sociedade. Diz o autor:

Não somente homens e mulheres não percebem da mesma maneira os fenômenos,


que são, no entanto, designados pelas mesmas palavras, mas, sobretudo, não
percebem que o conjunto do social está dividido segundo o mesmo simbólico que
atribui aos homens e ao masculino as funções nobres e às mulheres e ao feminino as
tarefas e funções afetadas de pouco valor. Esta divisão do mundo, esta cosmogonia
baseada sobre o gênero, mantém-se e é regulada por violências: violências múltiplas
e variadas as quais – das violências masculinas domésticas aos estupros de guerra,
passando pelas violências no trabalho – tendem a preservar os poderes que se
atribuem coletivamente e individualmente os homens à custa das mulheres (2001, p.
461).
As bases teóricas do pensamento de Welzer-Lang remontam aos anos noventa e
provêm de feministas da França como Christine Delphy, Colette Guillaumin, Nicole Claude-
Mathieu e Paola Tabet, as quais, redigiram trabalhos fundadores de um tornar visível que a
dominação masculina: “é apresentada como obvia, como um fenômeno natural, integrado de
algum modo à divisão social e hierárquica por sexo” (2001, p. 462).
130
O que pode ser dito sobre O estrangeiro, a partir do que traz o autor, então, é que os
gestos de Meursault, no enredo da obra, foram interpretados pela crítica como algo “natural” e
dissociado a uma conduta de um sujeito social homem numa sociedade patriarcal a narrar a
própria história de vida, marcada por um assassinato e pelas relações (atravessadas pela
dominação masculina) com a mãe, com a namorada, com homens franceses e argelinos na
colônia, com as mulheres argelinas, as quais, por sua vez, se relacionam com esses homens na
conjuntura da França como metrópole da Argélia. Na realidade, não só a crítica, mas, como
será visto adiante, o próprio Meursault não enxerga com nitidez ou não assume com firmeza
frente ao tribunal que o crime que comete contra a vida do nativo, “o árabe” sem nome, vai
muito além da explicação que sai de sua boca no tribunal: “fora por causa do sol” (CAMUS,
2016, p. 108). Exatamente tal célebre fala de Meursault entre a crítica tradicional sobre os
“motivos que inspiraram” (CAMUS, 2016, p. 108) o seu ato é a evidência, nem sempre
evidenciada nos estudos sobre o romance, de que a dominação masculina possui raios tão
intensos, que conseguem afetar a visão dos sujeitos sociais; mesmo personagens de ficção,
sobre o próprio destino, sobre a própria história. Parto, agora, portanto, para demonstrar, no
texto camusiano, as marcas invisibilizadas de uma masculinidade pintada com notas de
violência a atacar os personagens da obra.
Como Sartre, Barthes e a crítica brasileira que os “mimetiza” (BHABHA, 2003) em
subserviência analítica, na lógica da colonialidade do saber (LANDER, 2008) já se ocuparam
de O estrangeiro para provar que Camus desenvolve, na sua ficção, um conceito universal de
“homem” que enfrenta o “absurdo”, conceito já cunhado em seu ensaio filosófico O mito de
Sísifo (2018), faz-se oportuno, de modo suplementar, investigar pelas pistas do texto literário
as masculinidades presentes na composição desse personagem que se entende “homem”.
Nesse caso, investigar o texto literário, é entendê-lo como narrativa ficcional, é ter atenção
aos elementos estéticos que a estruturam: discurso, diegese/intriga, personagens, narrador.
Passo a desenvolver reflexões sobre a seguinte premissa já presente, contudo não
satisfatoriamente analisada, no pensamento do próprio Sartre na sua “Explicação de O
estrangeiro”: “o menor incidente tem peso; não há nenhum que não contribua a conduzir o
herói em direção ao crime e à execução” (2005, p. 132).
Muito determinado, ao que parece, em seu contexto de produção crítica de primeira
metade do século XX, em reafirmar a incidência direta da filosofia do Pós-Guerra na literatura
camusiana e em reverenciar a tradição filosófica e literária Ocidental, Sartre se ateve a
conferir ao romance o título de “clássico”, de “curto romance de moralista com discreta ponta
131
de sátira ..., muito próximo de um conto de Voltaire” (2005, p.127). Contudo, deixou neste
seu artigo, reconhecido como de leitura obrigatória sobre o romance, uma certeza: a de que o
texto literário existe, nele havendo uma intriga em que “cada incidente” tem “peso”. Esta é,
então, capaz de gerar inúmeras reflexões na ordem da polissemia literária (POUND, 2006).
Como remarca Sartre, a intriga aponta que “Meursault enterra sua mãe, arranja uma
amante e comete um crime” (SARTRE, 2005, p. 125). Tal elemento estrutural do romance de
Camus, a intriga, a qual é, na maioria das vezes, citada superficialmente e pouco investigada
para além do insólito “peso solar”, explicita o que conduz o narrador camusiano a um
homicídio. Nesse compasso, a partir do que demanda o narrador daoudiano de O caso
Meursault (2013), a intriga pode ser reinterpretada de forma distinta da executada por Sartre.
Esta outra forma se dirige para tomar como norte o fato de que o corpo morto é o de um
homem “árabe”, nomeado Moussa, pertencente a uma família argelina, sujeito, portanto, a
uma identidade, memória e afetos, mas, sobretudo, é um corpo argelino assassinado na praia
de uma colônia francesa. Esta, na condição de metrópole, através de sua gramática jurídica
(representada em Camus), que controla território e corpos nativos, toma, descaradamente,
como vítima do crime em juízo menos o assassinado que a mãe do assassino. As razões para
tanto é que uma vez sendo o corpo feminino um objeto instrumentalizado, se branco e francês,
para a procriação, base da ascensão burguesa capitalista (BADINTER, 1980), a maternidade,
sim, deve ser protegida pelo Estado francês imperialista em expansão. Ademais, a intriga
aponta que o que conduz Meursault ao crime de assassinato do “árabe” na praia se conecta a
uma situação anterior, ligada a outros personagens: uma “mulher árabe” (sem nome
igualmente) e um colono, Raymond, que atravessam o destino do narrador pelo território da
vizinhança próxima ao porto. Tais pontos serão retomados e elucidados a partir das letras de
O estrangeiro, que se fazem traduzidas na ficção de Kamel Daoud.
“Meursault enterra sua mãe, arranja uma amante e comete um crime” (SARTRE,
2005, p. 125). Centralizo, pois, as reflexões que por ora se seguem nessas figuras sinalizadas
sumariamente por Sartre na sua forma de apresentar a intriga do romance: o narrador
(criminoso, ressalto) e as mulheres que este retrata em seu discurso: mãe e amante.
Acrescento ainda a vítima assassinada, “o árabe”, pouco comentada pelo filósofo de “A
explicação de O estrangeiro”, ocupado quase totalmente com o sujeito da enunciação
discursiva. Este meu recorte particular da intriga é articulado em diálogo com o que Haroum,
em O caso Meursault (2013), narra e sente em citação aqui já trazida anteriormente, mas que
132
vejo necessidade em retomá-la, para que a trança demonstrativa da crítica que proponho possa
ser elucidada e enfatizada:

Essas mulheres costumavam provocar amores violentos e rivalidades odiosas. O seu


escritor conta um pouco disso. Mas a versão dele é injusta, pois a tal mulher
invisível não era a irmã de Moussa. Talvez fosse, no fim das contas, uma de suas
paixões. Eu sempre considerei que todo o malentendido provém daí: um crime
filosófico atribuído a algo que, de fato, nunca passou de um acerto de contas que
acabou degenerando, no qual Moussa, querendo salvar a honra da moça, aplicou
uma surra no seu herói, e este, para se defender, abateu-o na praia friamente. Nos
bairros populares de Argel, havia, com efeito, esse sentido aguçado e grotesco da
honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de perder a terra, os poços e o
gado, só lhes sobraram as suas mulheres (DAOUD, 2013, p.29).
De posse das palavras do narrador Haroum, irmão de “Moussa”, “árabe” assassinado,
faz-se importante voltar e revisar o discurso de Meursault para contar o seu crime de
assassinato, evento que permeia e move a intriga e o qual é apresentado aos leitores na
primeira parte do romance camusiano, dividido em “Parte I”: narração do “crime” e “Parte
II”: narração de como seu “castigo” de execução em face do crime é articulado pela justiça
francesa na colônia argelina. O crime é, portanto, pelo poder de transformação dos
acontecimentos na história, ressaltado, aqui, como elemento que faz da narrativa de Camus,
de fato, uma “história narrável”, isto é, que se mostra provida de “competência narrativa”
(CULLER, 1999, p. 85), caso seja tomada como referência a teoria da narrativa defendida por
Jonathan Culler (1999).
Como explica Culler, para haver o que ele chama de “texto narrável” (1999, p. 85), é
necessária a presença de uma alteração do trajeto dos personagens:

Um enredo exige uma transformação. Deve haver uma situação inicial, uma
mudança envolvendo algum tipo de virada e uma resolução que marque a mudança
como sendo significativa. ...Uma mera sequência de acontecimentos não faz uma
história. Deve haver um final que se relacione com o começo – de acordo com
alguns teóricos, um final que indique o que aconteceu com o desejo que levou aos
acontecimentos que a história narra (1999, p. 86).
Nesse ângulo, o final da obra de Camus revela um Meursault condedado à execução, evento
que, em si, é a sequência que resulta de um início do contar em que o personagem revela que
recebe a notícia de morte de sua mãe e, em seguida, que retoma sua rotina, cometendo um
assassinato de “um árabe”, seguindo, então, para julgamento. O evento julgamento, como é
notável, é o resultado do evento transformador crime, fechando o ciclo narrativo ao conduzir
o protagonista ao desfecho da condenação. Fica nítido que sem o crime, não seria gerado o
final da história, o qual, para Culler, é a seta que move o desejo da leitura. Para o americano,
uma produção é entendida como competente narrativamente também quando não provoca no
133
leitor o questionamento “E daí?”: “Os contadores de história estão sempre evitando a questão
potencial, ‘E daí?’(CULLER, 1999, p. 92).
Em suma, no universo de O estrangeiro, o crime é, dessa maneira, o ponto que move o
personagem para seu final e que transforma a história em narrável, dotando-a de interesse por
parte dos espectadores. O crime, pelo peso que assume na obra, no papel de elemento
propulsor da trama, merece uma leitura atenta, vigilante de suas possibilidades de
significados. Há um curso de eventos que precisam, pois, se suceder para que a narrativa seja
encarada como tal e não malogre a empresa do romancista com um “E daí?”, por parte dos
leitores. Se Meursault fosse ao enterro da mãe e apenas em seguida arranjasse uma amante,
continuando como de costume a trabalhar no escritório sem que nada além de transformador
fosse vivenciado, O estrangeiro não seria um “clássico do Pós-Guerra” (BARTHES, 2004a),
simplesmente porque restaria a pergunta “e daí?” Surgiria a inquietação de que deveria haver
algo mais a ser relatado para que o relato viesse a fazer na condição de uma história para ser
ouvida e refletida com interesse.
Logo, matar, ato de violência extrema contra a vida, é um ponto do romance de Camus
que o engendra e que necessita, dentro da obra, de uma reflexão atrelada à relação entre os
elementos da própria estrutura narrativa; sobretudo, dentro desta, é fundamental investigar os
personagens e suas relações, o nexo causal entre suas ações e os eventos que dela resultam. O
discurso de Meursault aponta o sol como “copartícipe” de seu destino, sendo esse aspecto já
exaustivamente explorado na obra. Basta ir à plataforma Google e digitar “O estrangeiro/
Camus”, que, facilmente, “raiará” o sol sobre a barra de rolagem nas frases temáticas de
artigos acerca da obra francesa nos mais variados idiomas em que fora traduzida nessas oito
décadas. A questão que precisa ser proposta é diversa: “Quanto à intriga do romance e às
relações entre os personagens, o que elas podem revelar se iluminadas? O próprio Sol a
“assombrar” o discurso narrativo poderia sugerir algo mais que somente a tragédia grega;
poderia até chegar a indicar outro aspecto, por exemplo, que Meursault, como colono francês,
representar-se-ia atingido pela geografia árida da Argélia, porque narraria sua história no
Norte da África, possivelmente, como se seu referencial geográfico, climático, fosse a
Metrópole europeia, como se seu ponto de partida fosse a temperatura que envolve Paris no
inverno. Diante de outras possibilidades interpretativas, adentrar no texto por novas “portas”
se faz oportuno e necessário.
Nesse universo de O estrangeiro, pois, a crítica de traço epistemológico
ocidentalizado, aprisionada ao “sol” como elemento trágico a marcar o destino criminoso do
134
herói, pode ser identificada, como já dito, como a crítica reprodutora de certa naturalização da
“dominação masculina”, já que, assim, oculta, por omissão, o papel de gênero na trama e no
seu desenrolar até o crime. Ao entender que Meursault mataria “por causa do sol”, a
tradicional crítica camusiana francesa desconsidera a simbologia da honra masculina inserida
no crime (como supõe o narrador daoudiano no trecho citado acima). A escolha de
responsabilizar o sol pelo crime cometido por Meursault afasta a incidência de questões
ligadas à masculinidade como relacionadas, também, ao assassinato, o qual, como evento da
intriga realizado pelas personas da história, faz da obra de Camus uma narrativa, de fato, e
não uma sucessão de eventos desconexos (CULLER, 1999).
Sendo assim, a análise feminista de envergadura decolonial aqui pretendida, seguindo
um caminho metodológico particular, toma a narrativa, a intriga, as personagens e seus laços
como referenciais significativos de reinterpretação do romance francês. Neste trabalho, então,
pretendo não protagonizar a perspectiva solar, mas sim, analisar as figuras femininas da trama
e suas relações com o crime de assassinato de “Moussa” (DAOUD, 2013) levado a cabo por
Meursault. Tais relações se estabelecem porque essas personagens mulheres se apresentam
ligadas aos homens na condição de papéis sociais entrecortados pelas figuras da amante, da
namorada, da esposa, da prostituta, de modo que são personas numa ficção criadas na história
(diegese) pelo discurso do narrador (CULLER, p. 87), moldado este último por palavras que,
uma vez “selecionadas e combinadas” pelo ficcionista (ISER, 2002), materializam-lhes com
determinadas configurações e significados no texto literário.
Para que os aspectos da intriga e das personagens, assim, tenham suas acepções de uso
definidas nesta análise, constitui-se importante recobrar as clássicas visões teóricas entre os
estudos literários de Todorov (1970) e de Antonio Candido (1976) expostas em sequência.
Em “Análise estrutural da narrativa” (1970), Todorov chama atenção para o fato de
que, neste ensaio em particular, está interessado em definir a intriga como uma categoria
teórica que está presente nas variadas narrativas em caráter abstrato, sendo esta composta por
elementos recorrentes: “ação, personagens, reconhecimento” (1970, p. 84). Ao discutir várias
produções de Decameron, apontando a recorrência de certos esquemas narrativos, o autor
explica o pretendido em sua discussão: contribuir com possibilidades de análise, descrição e
reflexão da literatura, não de uma obra pontual em si. Diz o teórico:

Nosso objetivo não é o conhecimento de Decameron (embora tal análise possa servir
também a esse objetivo), mas o conhecimento da literatura ou, no caso preciso, da
intriga. As categorias da intriga aqui introduzidas podem permitir uma descrição
mais avançada e mais precisa de outras intrigas. O objeto estudado deve ser os
135
modos narrativos, ou os pontos de vista, ou as sequências, e não tal ou tal conto, em
si mesmo e por ele mesmo (1970, p. 87).
Como perceptível, o texto do autor, ícone do Formalismo Russo, assinalou as bases
teóricas para que a crítica pudesse passar a refletir sobre a literatura em geral a partir de
estruturas narrativas, dando destaque ao papel da intriga. Ainda afirma o autor: “Isso não quer
dizer que para mim a literatura se reduza unicamente à intriga. Penso antes que a intriga é
uma noção que os críticos não apreciam e, por essa mesma razão ignoram” (1970, p. 84).
Chamo atenção, desse modo, para o fato de que, sim, em torno de O estrangeiro, a crítica
particular dos críticos comentados neste capítulo poderia ter sido mais atenta ao sucesso dos
eventos e ações que levaram Meursault a matar, mas, tal qual demonstrado neste capítulo, não
foi essa exatamente a sua tendência destinada, digo assim, “a responder a outras perguntas
encontradas no texto”.
O sucesso dos eventos na trama que conduziram ao assassinato não se constituiu
como uma chave de análise central pra os intérpretes de Camus. Esta observação, que fique
claro, não é colocada aqui para descredibilizar ou invalidar essas análises que assumem
relevância na história da interpretação da obra; do contrário, a presente pesquisa cometeria a
falha epistemológica de se pretender autoritária sobre os sentidos possíveis de serem
localizados em um romance, objeto teórico que, por excelência, se pauta pela polissemia
(POUND, 2006). É nesse sentido que se compartilha das observações de Jonathan Culler a
respeito do que vem a ser um debate produtivo no campo da Teoria literária e de suas variadas
ramificações em tempos contemporâneos:

Para introduzir a teoria, é melhor discutir asserções partilhadas do que fazer um


panorama das escolas teóricas. É preferível discutir debates importantes que não
opõem uma escola a outra, mas que podem marcar divisões evidentes no interior dos
movimentos. Tratar a teoria contemporânea como um conjunto de abordagens ou
métodos de interpretação que competem entre si deixa escapar muito de seu
interesse e de sua força, que vêm de seu desafio amplo ao senso comum e de suas
investigações a respeito de como se cria sentido e se configuram as identidades
humanas (1999, p. 8).
Nesses termos, no que concerne aos pareceres da crítica tradicional em torno de O
estrangeiro, centralizados na ideia de “romance solar” (BARTHES, 2004) e de que
Meursault seria um “inocente em todos os sentidos do termo” (SARTRE, 2005, p. 120),
prefiro fazer a leitura de que as subjetividades dos analistas demarcam os sentidos que
analisam nos textos literários que estudam. Nesse viés, concordando com Todorov sobre a
parcela subjetiva que há na crítica ao se escolher este ou aquele aspecto para investigação,
cito, novamente, seu artigo:
136
Existe outro argumento muito divulgado contra a introdução de princípios
científicos nos estudos literários. Dizem-nos, nesse caso, que a ciência deve ser
objetiva enquanto a interpretação da literatura é sempre subjetiva. Em minha
opinião, essa oposição brutal é insustentável. O trabalho do crítico pode ter
diferentes graus de subjetividade, tudo depende da perspectiva que ele escolheu.
Esse grau será muito menos elevado se ele tentar identificar as propriedades da obra
do que se ele procurar a significação de determinada época ou determinado meio.
Aliás, os diferentes estratos da obra deixam-se identificar com grau desigual de
subjetividade. Haverá poucas discussões sobre o esquema métrico ou fônico de um
poema; um pouco mais, sobre a natureza de suas imagens; ainda mais, sobre as
unidades semânticas superiores. Por outro lado, não existe ciência social (nem
mesmo ciência) que seja livre de toda subjetividade. A simples escolha de um
conjunto de conceitos teóricos ao invés de outro já pressupõe uma decisão subjetiva;
mas, se não se faz essa escolha, fica-se a marcar passo, o economista, o antropólogo,
o lingüista devem igualmente ser subjetivos; a única diferença é que eles são
conscientes disso e tentam circunscrever essa subjetividade e levá-la em conta no
interior da teoria. Não tentaremos, pois, repudiar a subjetividade das ciências sociais
numa época em que ela penetra até mesmo nas ciências naturais (TODOROV, 1970,
p. 83).

Na esteira dessas reflexões, considero oportuno acionar, ainda, a visão do crítico


brasileiro Luiz Costa Lima (2002) quando este chama atenção para o fato de que
determinados textos fundadores da Teoria literária na configuração do campo de
conhecimento (caso do artigo citado de Todorov) não seriam exatamente “ferramentas a
serem aplicadas aos textos” (LIMA, 2002, p. 544) de modo mecânico e forçado, mas sim,
representariam aportes para que sejam tecidas reflexões variadas sobre a própria literatura.
Nas suas palavras, seriam textos “relevantes das diversas maneiras de se refletir a literatura”
(LIMA, 2002, p. 544). Sendo assim, com tal consciência, sem pretensão, pois, de
autoritarismo crítico, é que a intriga e seus elementos constitutivos são mobilizados como
uma entre as possíveis fontes relevantes de sentidos na análise do romance de Camus.
Recorrer à intriga é, declaradamente, uma perspectiva subjetiva de investigação, a qual tem
como efeito focalizar a interpretação nas ações das personagens, entendendo-as como sujeitos
ficcionais convivendo em meio à sociedade em que transitam dentro do texto.
Por seu turno, no que se refere ao quesito peculiar das personagens, se torna relevante
o pensamento de Antonio Candido. Em “A personagem de ficção” (1976), o autor, de
maneira complementar a Todorov (1990), colabora para que se desenvolva neste trabalho o
modo como se percebe conceitualmente o poder específico do elemento da intriga
“personagem” em configurar sentidos na apresentação da obra como um todo completo e
complexo. Diz o crítico brasileiro:

Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade que o material bruto da
observação ou do testemunho, é porque a personagem é, basicamente, uma
composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade.
137
Portanto, está sujeita, antes de mais nada, às leis de composição das palavras, à sua
expansão em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos coerentes, que
permitem estabelecer uma estrutura novelística. O entrosamento nesta é condição
fundamental na configuração da personagem, porque a verdade da sua fisionomia e
do seu modo de ser é fruto, menos da descrição, e mesmo da análise do seu ser
isolado, que da concatenação da sua existência no contexto. Em Fogo Morto, por
exemplo, a sola, a faca, o martelo de Mestre José ganham sentido, referidos não
apenas ao seu temperamento agressivo, mas ao cavalo magro, ao punhal, ao chicote
do Capitão Vitorino; ao cabriolé, à gravata, ao piano do Coronel Lula, — os quais,
por sua vez, valem como símbolos das respectivas personalidades. E as três
personagens existem com vigor, não só porque se exteriorizam em traços materiais
tão bem combinados, mas porque ecoam umas às outras, articulando-se num nexo
expressivo.
...
Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança,
o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário
pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade
dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais
coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos. (CANDIDO,
1976, p. 78).
O entendimento de Candido é, dessa forma, a maneira que considero indispensável
para se pensar as personagens em O estrangeiro, já que é a interação entre elas que molda o
caráter e o destino de cada uma frente aos leitores que as conhecem via discurso narrativo.
Nesse sentido, Meursault só assume o caráter de “homem absurdo”, tão discutido pelas
críticas tradicionais de Sartre (2005) e Barthes (2004a), porque conta a sua jornada em relação
à sua mãe, à sua namorada Marie, ao seu vizinho/ “amigo” Raymond, ao “árabe”, ao “juiz”, a
“Cristo”, e, nesse jogo, personagem face a personagem, observo na obra a pintura da relação
que o narrador estabelece com a “cultura da execução” pela justiça francesa na colônia e,
acrescento, também, com a questão de gênero. Focalizar intriga e personagens é, portanto, um
recorte analítico subjetivo que oportuniza pensar os actantes do texto no entrecruzar de suas
próprias subjetividades e seus aspectos intercambiantes: a nacionalidade, a etnia, o gênero, a
sexualidade, a posição de classe, etc.
Interpondo a ponte com a leitura pretendida na pesquisa em torno das masculinidades
inseridas no universo do assassinato do “árabe”, é interessante assinalar que tal perspectiva
teórica relacional entre as personagens na intriga de O estrangeiro, tomada a partir de
Candido (1976), se coaduna com a concepção de como deveriam ser encaradas as relações de
gênero na sociedade, se olhadas na perspectiva também relacional adotada por Benedito e
Medrado (2008). Os autores, semelhantemente, chamam atenção para o fato de que, como
pessoas no mundo, os sujeitos não podem ser pensados isolados em si mesmos quando está
em pauta a noção de gênero, pois gênero não é uma entidade ilhada, mas uma construção de
elementos interdependentes. Eles explicam que tal modo relacional de considerar a questão
138
dialoga com a necessidade de se compreender que o objeto de estudo de gênero é muito mais
amplo do que apenas se pensar a condição feminina ou mesmo a masculinidade em caráter
estanque, sendo o mais indicado, do ponto de vista epistemológico, problematizar as
interrelações mulher-homem, homem-homem, mulher-mulher, etc para que se atinjam
resultados analíticos mais abrangentes a respeito do problema. Dentro desse jogo dialético,
Benedito e Medrado alertam para o seguinte quesito:

Porém, é necessário considerar que relacional não implica complementaridade, mas


assimetria de poder. É preciso, portanto, submeter o conceito de “gênero” a uma
leitura feminista. Ou seja, deve-se adotar a perspectiva de gênero, buscando
compreender como diferenças se constituem em desigualdades, indo além dos sexos
como determinantes biológicos e da ‘di-visão’ sexual do mundo. (BENEDITO &
MEDRADO, 2008, p. 819).
E, nessa conjuntura de assimetrias, os autores ainda ressaltam que é preciso ir além de
reflexões que circundem o campo da vitimização de mulheres e da culpabilização masculina.
Afirmam:

Afinal, reconhecer a dimensão relacional do gênero possibilita desconstruir


principalmente os argumentos culpabilizantes sobre os homens que demarcam o
discurso de parte do movimento feminista e que ainda se faz presente, direta ou
indiretamente, nas produções acadêmicas contemporâneas. Como destaca Medrado,
ao invés de procurar os culpados, é necessário identificar como se institucionalizam
e como se atualizam as relações de gênero, possibilitando efetivamente
transformações no âmbito das relações sociais “generificadas”, ou seja, orientadas
pelas desigualdades de gênero. Isso não implica processo de desresponsabilização
individual, mas reconhecer que as análises que agregam a dimensão relacional do
conceito de “gênero” permitem compreender ou interpretar uma dinâmica social que
hierarquiza as relações entre o masculino e o feminino e não apenas entre homens e
mulheres, mas nos homens e nas mulheres (2008, p. 820).
Dito isso. A partir da aliança entre: 1) a perspectiva de Cândido sobre as personagens
de ficção que, na forma como agem, constroem pistas tanto da imagem de si próprias quanto
impulsionam a intriga, na medida em que se relacionam umas com as outras e 2) a perspectiva
relacional no estudo das questões de gênero sugerida por Benedito e Medrado (2008), que
observa a construção do feminino a partir do masculino e vice-versa e a construção do
feminino diante dos demais femininos, bem como do masculino diante dos demais papéis
masculinos, é que se pretende articular um olhar interpretativo particular sobre as personagens
de O estrangeiro, as quais, na interação entre si, produzem sentidos possíveis para leituras
variadas da obra.
É tal aliança que me permite, como analista, interpretar Meursault como narrador que
se relaciona com a socialização masculina e, assim, como construtor, através do seu discurso,
da história e das identidades dos demais actantes; porém é a mesma que me faculta a não
centralizar a análise apenas na sua figura de narrador em caráter isolado, evitando-se, assim,
139
limitar a crítica a esta única personagem, como foi a tendência da maioria dos intérpretes até o
presente: o sujeito da enunciação discursiva. Vale a observação de que o narrador camusiano
é encarado como um “homem francês”, mas que ainda, com tal identidade de “grupo”, como
personagem ficcional, pode significar, na condição de sujeito dotado de suas complexidades
no patamar inconsciente e social, muito além do que se entende no entrecortar de categorias
de gênero, etnia e classe. Destarte, numa perspectiva diversa da crítica tradicional composta,
em maioria, por autores homens, aqui já debatida, opto por olhar para a obra com uma lente
peculiar e, sim, como advertem as palavras de Todorov (1970) acima citadas, com uma crítica
“subjetiva”.
O estrangeiro pretende ser lido como um romance contado por um narrador
“ensimesmado” (DALFARRA, 1978), cujo discurso oferece margem para que a sua própria
figura seja pensada também como um personagem que vivencia uma intriga no interagir com
os demais personagens da obra literária, recortados intencionalmente nos papéis de homens e
mulheres entre tantos outros. Estes são encarados como sujeitos que ocupam lugares
assimétricos na ordem do poder que hierarquiza as relações de gênero (BENEDITO &
MEDRADO, 2008), as quais serão lidas de maneira trançada, claro, à raça e ao território
colonial (LUGONES, 2008).
Tal recorte crítico em torno de O estrangeiro, mais que utilizado para demonstrar que
as mulheres na obra seriam vítimas da dominação patriarcal imposta pelos personagens
masculinos do texto, assim de modo simplista, ou, da mesma forma, mais que ser um recorte
selecionado para atestar que os personagens homens são algozes ou, do contrário, alvos
maculados pelo masculino hegemônico que neles habita, se coloca precipuamente no sentido
de se propor a reflexão de como a questão pode ser mais complexa, mais abissal e mais
estrutural do que se imagina quando figuradas na ficção de Camus em meados do século XX.
Nas palavras de Medrado, é cabível afirmar que a análise de O estrangeiro aqui interposta
leva em conta que:

A dominação dos homens sobre as mulheres e sobre o feminino não possui autoria
única, mas uma constelação de autores, que inclui, além dos homens, a mídia, a
educação, a religião, as mulheres e as próprias políticas públicas. Em outras
palavras, partimos da perspectiva de que o poder coletivo dos homens não é
construído apenas nas formas como os homens interiorizam, individualizam e o
reforçam, mas também nas instituições sociais (2008, p. 826).
Assim, como elementos da intriga literária, os personagens necessitam ser enxergados
diante da conjuntura interna textual, dentro da interrelação com os demais, mas, tal interação
ficcional será interpretada como uma recriação mimética das relações de poder que estruturam
140
a sociedade a partir do gênero, entendido, reforço, como uma construção também relacional, e
não como produto fixo e dicotômico da natureza.
Com tal definição de escolha teórica de análise, passo ao estudo demonstrativo de
como as masculinidades se apresentam como um elemento significativo do texto que está na
intriga no papel de um mobilizador de poder, de hierarquias e do sucesso das personagens.
Ler O estrangeiro, dessa forma é, a partir da mímesis literária, propor uma investigação de
como os personagens no interior da obra de Camus reproduzem forças institucionais que
hierarquizam o poder dentro da ordem de gênero, a qual não será vista como indisssociada da
etnia e demais singularidades em meio a condições de colonização vivenciadas na Argélia.
Além disso, é também a partir da mímesis literária, que objetivo seguir um caminho crítico
indicador acerca de que maneira a própria crítica tradicional em torno do romance reproduziu
hierarquias de gênero e etnia nos métodos adotados e rechaçados nas suas análises.
A literatura de Camus, nessa perspectiva, é material que pode propor: a) um
questionamento das “forças institucionais” propulsoras de uma masculinidade hegemônica
que se delineava no interior de sua diegese, passada na Argélia em tempos de colônia, bem
como b) uma revisão da própria crítica do século XX sobre O estrangeiro e seu papel
institucionalizador das hierarquias de gênero. Esta crítica traduziu a obra para o mundo, ora a
partir de sua plataforma epistemológica eurocentrada, como um romance filosófico do Pós-
guerra (SARTRE, 2005) e como uma “tragédia solar” (BARTHES, 2004), ora, a partir dos
Estudos pós-coloniais, como um “documento cultural” emblema do projeto imperialista
francês (SAID, 1993), de modo que, nesse movimento de tradução, acabou por atestar o fato
de que as assimetrias de gênero, dentro das hierarquias de poder, são institucionalizadas no
campo literário pelo próprio ato crítico e suas escolhas teóricas de análise.

4.2.1 Uma revisão da trama: “a tal mulher invisível”, o assassinato “do árabe” e
as masculinidades

Escrever sobre a masculinidade em O estrangeiro, após terem sido definidos os


instrumentais conceituais de gênero e narrativa que norteiam a presente análise passa por
começar problematizando o lugar do “outro”, que não é o sujeito da enunciação, melhor
dizendo, a figura da “outra”, “a tal mulher invisível” mencionada pelo narrador Haroum em O
caso Meursault (DAOUD, 2023, p. 29). Em Camus, ela é a “mulher árabe”, assim, sem nome
expresso no romance; uma personagem que se relaciona com Raymond, homem da
vizinhança que desenvolve algo próximo de um laço de “amizade” com Meursault, ainda que
141
este indique um “tanto faz”, isto é, certa indiferença sobre tal elo. As críticas em torno da
obra, como as de Sartre (2005) e Barthes (2004), que também praticamente ignoraram “o
árabe” morto, pouco falaram acerca dessa personagem feminina; daí sua “invisibilidade”
reclamada em Daoud. Tratada, então, a priori, como um item “invisível” pela maioria da
crítica, a “mulher árabe” recebe, neste trabalho, seu quilate de importância no desenrolar da
trama que levou “outro árabe”, igualmente sem nome, a ser assassinado por um homem pied-
noir. Encontram-se nessas duas figuras do romance francês as faces do “outro”, do
colonizado, atingido por condutas de violência que cercam o caráter de Meursault como
homem, como francês, como “amigo” de outros homens, e, dentro dessa cadeia, como figura
misógina. Por tal traço patriarcal, a personagem se delineia nem tanto “fora”/ completamente
“estrangeira” ao território cultural metropolitano (caso se tome o sentido purista com que o
termo “estrangeiro” tem sido empregado há décadas de recepção do romance; detalhe
importante que será retomado à frente).
Nesse sentido, essas duas personagens da alteridade argelina contestam Sartre na sua
afirmação de que o protagonista camusiano seria um “inocente em todos os sentidos do
termo” (2005, p. 120); elas, caso sejam analisadas com peças relevantes na trama, podem
levar ao questionamento do próprio discurso de Meursault frente ao júri, “matei por causa do
sol” (CAMUS, 2016, p. 108). A partir desse prisma, “mulher e homem árabes” do texto
francês passam a se encontrar com o pensamento de Haroum, narrador de O caso Meursault
(2013), a revisar o passado narrado pelo francês e recontar, a partir de seu prisma argelino, de
familiar da vítima de homicídio, que não seria unicamente um “acaso solar” a motivação do
crime, ou tão somente uma “filosofia do absurdo”, mas que o sujeito Meursault seria o agente
principal do assassinato a tiros de seu irmão, imputando-lhe o título de criminoso,
“eufemizado” pela crítica europeia, cujos principais nomes o representam como herói mítico,
um nobre emblema de um paradigma filosófico ocidental do Pós-guerra. Modifico, então, a
lente investigativa do romance, para observar esses marginalizados personagens, já que, como
disse o próprio Sartre, repito, – apesar de este não ter se atido à intriga em si, mas bem mais à
presença nela de O mito de Sísifo (CAMUS, 2018) – “o menor incidente tem peso; não há
nenhum que não contribua a conduzir o herói ao crime e à execução” (2005, p. 132).
A “mulher árabe” aparece no discurso de Meursault no capítulo três da “Primeira
parte” da obra, quando o protagonista apresenta ao leitor a sua vizinhança e seus hábitos
cotidianos. São nesses comentários, imbuídos de descrição e narração, que os leitores vão
conhecendo as personagens do romance que com Meursault interagem e, assim, moldam
142
também o seu caráter, passando a definir, igualmente, seu destino nas sucessões do que é
vivido como evento na história, tal como lembra acima Candido (1976) a respeito do efeito da
interação dos actantes no todo textual.
Neste terceiro capítulo, Meursault apresenta inicialmente sua vizinhança. Fala sobre o
“velho” Salamano e seu cocker spaniel sarnento, homem que repetia mecanicamente,
semelhante ao movimento sem sentido de Sísifo empurrando a pedra até o alto da montanha,
como descrito em O mito de Sísifo (CAMUS, 1942), o mesmo gesto diário de xingar o animal
como um espetáculo corrente para todo o prédio. Logo em seguida, a narrativa introduz o
personagem decisivo para a circunstância do crime: Raymond Sintés. Este é o “homem” que o
levará à praia, onde matará outro “homem”, “o árabe”, que, então, na história, é identificado
como “irmão” da tal “mulher árabe”, personagem com quem Raymond revela ter uma relação
“amorosa” permeada por tensões que lhe atordoam. Cito, pois, a apresentação de Raymond
em Camus com intuito de conectá-la à questão de gênero que percebo presente na obra: “No
bairro, dizem que vive à custa de mulheres. Mas quando perguntam a sua profissão responde
que é “comerciante” (CAMUS, 2016, p.35). Chamo atenção para o sinal gráfico das aspas
grafadas originalmente no texto na palavra “comerciante”. Elas sugerem que o bem material
supostamente comercializado por Raymond é desenhado com certa ambiguidade e ironia pelo
narrador, não se desmentindo a possibilidade de o sujeito viver explorando mulheres, ao
mesmo tempo em que não se confirma o fato ao longo da trama. Contudo, o que fica explícito
é que os vizinhos não simpatizam muito bem com o moço em função de sua personalidade,
possivelmente, afetar os códigos morais locais: “Em geral, não gostam dele” (CAMUS, 2016,
p.35).
No detalhe do trabalho “duvidoso” de Raymond, remarco que O estrangeiro traz à
tona, de modo ambiguamente sugerido, envolta na névoa do interdito, uma prática da cultura
patriarcal desde períodos remotos, em muitas sociedades neolíticas e antigas, como deixa
claro as pesquisas de Gayle Rubin (1993) e Gerda Lerner (2019): a utilização do corpo
feminino como moeda de troca pelas lideranças masculinas. O corpo feminino, explicam os
pesquisadores, foi constantemente instrumentalizado por homens, no intuito de que o domínio
sexual sobre o “produto” mulher estabelecesse parcerias e uma série de compensações nas
relações de disputa e, mesmo, de amistosidade entre distintos grupos. Nesse sentido, a
“mulher árabe” aparece no texto, em associação a Raymond (pied-noir), ainda que
implicitamente, também conectada aos rituais do patriarcado em suas origens históricas mais
remotas, vivificados no retrato do vizinho. Cito a obra para que se observe a descrição da
143
figura de Raymond. Seleciono e comento, a partir de então, alguns trechos relevantes para o
entendimento da personagem e sua trança à noção de masculinidade que, como argumento, é
uma das bases para que o protagonista francês assassine um argelino e para que o romance
tenha o formato que tem: duas partes, na primeira, em termos de enredo, se narram os fatos
que se conduzem ao crime; na segunda, se contam como a justiça julga o acusado.
Gostaria, antes de qualquer coisa, de fazer a seguinte observação: os excertos são aqui,
intencionalmente, recortados com o mínimo de cortes possível, de modo que, como citação,
podem se apresentar extensos a certos leitores da pesquisa, mas assim julgo necessário que
seja feito: transcrever e reler especialmente essas passagens em O estrangeiro, as quais foram
tão pouco citadas e comentadas pela crítica tradicional, que, em muito, invisibilizou de que
possíveis formas os demais personagens concorreriam para o delinear da trama narrada por
Meursault, transformado-o em absoluto protagonista dos estudos sobre a obra. Seguem,
enfim, o texto e a análise:

Chama-se Raymond Sintès. É bem baixo, com ombros largos e um nariz de


pugilista. Anda sempre muito corretamente vestido. Ele também me disse ao falar de
Salamano: “Não é mesmo uma desgraça?” Perguntou-me se aquilo não me
revoltava, respondi que não. Subimos, e eu ia deixá-lo quando me disse: — Tenho lá
em casa vinho e linguiça. Quer comer comigo? Pensei que isso me pouparia fazer
minha comida e aceitei. Ele também só tem um quarto, com uma cozinha sem
janela. Por cima da cama há um anjo de gesso, branco e cor-de-rosa, retratos de
campeões e duas ou três fotografias de mulheres nuas. O quarto estava sujo e a cama
desfeita. Primeiro, acendeu a lamparina a óleo, depois tirou do bolso uma atadura de
aspecto bastante duvidoso, enrolando nela a mão direita. Perguntei-lhe o que tinha
na mão. Respondeu-me que brigara com um sujeito que criou um caso com ele
(CAMUS, 2016, p. 36).
Chamo atenção, primeiramente, para o laço de proximidade que então se estabelece
entre Meursault e Sintès, ainda que o narrador afirme que só aceita o convite do vizinho por
comodidade. Tornam-se próximos, pois, ao dividirem a refeição, ao compartilharem o espaço
do quarto de Raymond, cuja descrição atesta visíveis marcas de uma masculinidade
performada: imagens de campeões de futebol, de mulheres nuas e sexualizadas (ostentando-se
a heterossexualidade), tudo espacialmente próximo ao símbolo religioso visto nos anjos,
realçando-se a tensão entre luxúria e moral cristã. O campo de visão pintado nitidamente
como “descuidado”, pela maneira como se descrevem os lençóis desalinhados no leito, se faz
compatível com os mesmos signos masculinos da brutalidade e da indiferença estética em
relação ao lar (lugar de preocupações ornamentais próprias do feminino) presentes no relato
de Raymond sobre a “briga” com “um sujeito”. Esses elementos do universo do personagem
desenham a imagem masculina hegemonizada: a da virilidade, definida por contraste ao
144
imaginário de um feminino socialmente associado ao prisma estético, ao zelo doméstico, ao
frágil (WELZER-LANG, 2001).
No texto “A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia”, Daniel
Welzer-Lang (2001) afirma haver uma tendência masculina de temer a identificação com o
gênero feminino e mesmo de odiá-lo, já que este é estabelecido, na ordem da dominação
patriarcal, como “inferior”, fragilizado física e intelectualmente. Assemelhar-se a uma mulher
seria, nessa conjuntura misógina, a máxima a ser evitada por um indivíduo que se representa
como homem. A luta contra o feminino é, assim, o que estabelece um homem com o status
privilegiado de homem. Nesse domínio, também a homossexualidade, pensada em jogo com
as marcas do que Welzer-Lang (2001) entende como “socialização masculina”, se revela de
dois modos diversos: a) ora como uma performance que macula o homem por aproximá-lo da
identidade feminina: ser homossexual seria ser próximo de ser mulher, logo, inferior; b) ora
como os ritos afetivos entre homens que só conseguem respeitar homens, que só constroem
afetos de respeito e admiração com homens, justo porque inferiorizam e odeiam mulheres.
Sobre este último aspecto em particular, afirma o pesquisador:

Em nossas sociedades, quando as crianças do sexo masculino deixam, de certo


modo, o mundo das mulheres, quando começam a se reagrupar com outros meninos
de sua idade, elas atravessam uma fase de homossociabilidade na qual emergem
fortes tendências e/ou grandes pressões para viver momentos de homossexualidade.
Competições de pintos, maratonas de punhetas (masturbação), brincar de quem mija
(urina) o mais longe, excitações sexuais coletivas a partir de pornografia olhada em
grupo, ou mesmo atualmente em frente às strip-poker eletrônicas, em que o jogo
consiste em tirar a roupa das mulheres... Escondidos do olhar das mulheres e dos
homens de outras gerações, os pequenos homens se iniciam mutuamente nos jogos
do erotismo (2001, p. 462).
A masculinidade, assim, é definida como uma construção que se estabelece de modo
relacional ao feminino, de forma que ser homem se iguala a ser superior e a recusar,
misóginamente, tudo que se liga a mulheres, sendo comum à socialização que se estreitem os
laços com outros homens para que, desse modo, estes se firmem como superiores. Welzer-
Lang (2001), acerca de seus resultados de pesquisa em torno da temática, cria o conceito-
metáfora denominado “casa dos homens”, uma espécie de “lugar” social onde se vivenciam
práticas que fazem com que garotos, em convivência conjunta, se reconheçam como homens e
reforcem sua identidade de gênero ao interporem condutas que se orientam para negar o que
se entende como feminino. Cito o autor:

Descrevi como a educação dos meninos nos lugares monossexuados (pátios de


colégios, clubes esportivos, cafés..., mas mais globalmente o conjunto de lugares aos
quais os homens se atribuem a exclusividade de uso e/ou de presença) estrutura o
masculino de maneira paradoxal e inculca nos pequenos homens a ideia de que, para
145
ser um (verdadeiro) homem, eles devem combater os aspectos que poderiam fazê-los
serem associados às mulheres. Eu propus, referindo-me aos trabalhos de Maurice
Godelier (1982), nomear o conjunto desses lugares e espaços como a “casa dos
homens” (2001, p. 462).
A partir do pensamento de Welzer Lang, ler a descrição acima do quarto de Raymond
é, repito, reconhecer que a masculinidade está no texto construída pelos objetos ali presentes
na narração, remontando-se a futebol e mulheres nuas (o que reforçaria o caráter viril do
personagem). Também a descrita atadura em sua mão, relacionada à briga com “um sujeito”
solidifica a masculinidade, uma vez que o embate corporal com uso da força física, a
violência, entendida como virtude de bravura, fazem parte da construção de um masculino
respeitável no interior da mencionada metáfora da “casa dos homens”.
O caso é que este “sujeito” desnomeado com qual Raymond se desentende se revela
mais adiante no romance de Camus como um cidadão “árabe”, um personagem sem
identidade formal, mas ligado, por sua vez, à figura daquela citada “mulher árabe”, “amante”
do vizinho, também desnomeada. Por fim, e, principalmente, aqui é o ponto no qual pretendo
chegar: este homem “árabe” se relaciona ao assassinato a ser cometido no capítulo seis desta
Primeira parte da obra, sendo a própria vítima morta. O assassinato cometido pelo narrador
Meursault, comumente explicado pela intervenção mítica do sol (BARTHES, 2004a), estaria,
defendo, atravessado significativamente também pela “casa dos homens”, tal qual pretendo
explicar neste capítulo. Para tanto, continuo a citar a longa apresentação de Raymond no
romance pelo discurso de Meursault. Os personagens prosseguem na conversa em que Sintès
revela detalhes de sua briga com o tal “sujeito” sem nome no texto:

— Não sei se entende, Sr. Meursault — disse-me. — Não que eu seja mau, o que
sou é nervoso. O sujeito me desafiou: “Desça do bonde se for homem.” Respondi-
lhe: “Vamos, sossegue.” Ele me disse que eu não era homem. Então desci e disse-
lhe: “Chega, é melhor parar ou vou lhe dar uma lição.” “Que lição?” Então, dei-lhe
uma. Caiu. Eu ia ajudá-lo a se levantar. Mas, do chão, ele me dava pontapés. Então,
dei-lhe uma joelhada e duas cutiladas. Seu rosto sangrava. Perguntei-lhe se bastava.
Disse que sim. Enquanto isso, Sintès ia enrolando a atadura. Eu estava sentado na
cama. — Como vê, não fui eu que provoquei — continuou. — Ele é que quis.
Reconheci que era verdade. Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um
conselho a propósito deste assunto, que eu, sim, era um homem que conhecia a vida,
que podia ajudá-lo e que em seguida ficaria meu amigo. Não disse nada e ele me
perguntou de novo se eu queria ser amigo dele. Respondi que tanto fazia; ele ficou
com um ar satisfeito. Pegou a linguiça, fritou-a na frigideira e arrumou copos,
pratos, talheres e duas garrafas de vinho. Tudo isto em silêncio. Depois, nos
instalamos. Enquanto comia, começou a contar-me a sua história. A princípio,
hesitava um pouco (CAMUS, 2016, p. 36-37).
O trecho deixa claro o motivo da briga em que Raymond se envolveu: defender a
própria masculinidade. Esta condição que formaria “um homem como um homem” é, como a
situação da diegese de O estrangeiro atesta, algo tão frágil, que precisa ser defendido “no
146
braço”, que carece ser reforçado, comprovado constantemente, mesmo que para tanto seja
necessário o uso da violência física contra um “ato de fala”: “Ele me disse que não era
homem”.
A pesquisadora francesa Elisabeth Badinter, em seu livro XY. Sobre a identidade
masculina (1993), chama atenção para o fato de que os homens seriam assombrados pela
junção de duas variáveis que os pressionariam: a) pelo feminino que biologicamente neles
habita na composição dos cromossomos XY (tese da autora), e b) pela cobrança social dos
pais para assumirem determinadas performances normativas. São, então, estes dois fatores em
parceria que levariam os homens à necessidade de, a todo tempo, provar que são homens, e
não mulheres. Badinter afirma: “Não basta ser XY e ter um pênis funcional para sentir-se
homem”, destacando a autora a frequente “luta que o menino vai ter de travar durante muito
tempo para tornar-se um homem” (1993, p. 43). A palavra “luta” utilizada pela filósofa
francesa se faz compatível com as ações de Raymond perante o sujeito “árabe”: a briga, a
violência são os meios de manutenção da masculinidade. Vale ressaltar ainda que, perante
esse jogo de autoarfimação masculina, ofender um homem é desdizê-lo homem; em
contrapartida, afirmá-lo na condição de homem é uma prática de elogio, cordialidade e
solidariedade entre o gênero masculino (o que, na história, será dito por um “amigo” de
Meursault, Celeste, para aboná-lo, como testemunha de defesa, em seu julgamento por
assassinato, fato retomado adiante). Faz-se visível, nessa conjuntura, que Raymond demonstra
seu respeito a Meursault ao qualificá-lo como “um homem que conhecia a vida”,
demonstrando-se como, nesse contexto, a palavra “homem” se faz mais adjetivo que
substantivo, sendo proferida no diálogo das personagens para que se demarquem suas
posições de poder e de respeito mútuo na ordem hierárquica de gênero.
Dando sequência ao debate, seleciono outro trecho do romance de Camus para que
outra marca da masculinidade, também indicada nos trabalhos de Badinter (1993) e Welzer-
Lang (2001), seja evidenciada na relação que os personagens homens estabelecem com as
mulheres: a misoginia e a violência física contra o feminino. Porém, antes de mais nada, nesse
caso particular das cenas que serão citadas a seguir, é preciso destacar: a mulher violentada
será revelada no texto como uma mulher argelina. Segue excerto em que Raymond passa a
estreitar vínculo afetivo e amistoso com Meursault à medida que vai lhe confidenciando sua
história relacionada à figura feminina de sua “amante árabe” para, em seguida, pedir-lhe um
conselho e, um favor:
147
Conheci uma mulher... era minha... amante, por assim dizer... O homem com quem
brigara era irmão dessa mulher. Disse-me que a sustentara. Nada comentei, mas ele
acrescentou imediatamente que sabia muito bem o que se dizia pelo bairro, mas que
tinha a consciência tranquila, e que era comerciante. — Voltando à minha história
— disse ele —, a certa altura percebi que havia uma jogada. — Ele lhe dava
dinheiro contado para viver. Pagava ele mesmo o aluguel do quarto e dava-lhe vinte
francos por dia para a comida. — Trezentos francos de quarto, seiscentos francos de
comida, um par de meias de vez em quando, dava bem uns mil francos. E a madame
não trabalhava. Mas dizia-me que era apertado, que o que eu lhe dava não era
suficiente. E, no entanto, eu lhe dizia: “Por que não arranja um trabalho de meio
expediente? Já me aliviaria bastante. Este mês comprei para você um conjunto, dou
vinte francos por dia, pago o aluguel... e você passa as tardes tomando café com as
amigas. E ainda fornece o café e o açúcar. E eu... sou eu que dou o dinheiro. Agi
bem com você e você não me paga na mesma moeda.” Mas ela não trabalhava, dizia
sempre que não conseguia, e foi assim que percebi que havia uma jogada. Contou-
me, então, que encontrara dentro de sua bolsa um bilhete de loteria e que ela não lhe
soubera explicar como se arranjara para comprá-lo. Mais tarde, encontrara em sua
casa um recibo de penhor, provando que empenhara duas pulseiras. Até então,
desconhecia a existência dessas pulseiras. — Vi logo que se tratava de alguma
trapalhada. Então a deixei. Mas, primeiro, dei-lhe uma surra. E, depois, disse-lhe
umas verdades. Disse-lhe que ela só queria se divertir. Disse a ela, compreende, Sr.
Meursault: “Não vê que todos têm inveja da felicidade que lhe dou! Um dia, ainda
vai reconhecer a felicidade que tinha.” Espancara-a até sangrar. Antes disso, não
batia nela. — Ou, por outra, batia, mas ternamente, por assim dizer. Ela gritava um
pouco. Eu fechava as janelas e tudo terminava como sempre (CAMUS, 2016, p. 37-
38).
Aqui, se deixa claro que o sujeito com quem Raymond havia brigado, por lhe haver
“insultado” de “não ser homem”, seria justo o irmão de sua amante (o que é contestado, como
se viu, na narrativa de Haroum, em Daoud, que afirma ser a moça, não irmã, mas “uma das
paixões” do argelino)26. Este outro homem, argelino e sem nome, duvidara de sua
masculinidade, como confessado acima, em razão de Raymond ter batido em “sua irmã”, uma
mulher, portanto, um ser visto como inferior, cujo corpo, na organização hierárquica familiar
local, deve ser controlado (em situações de defesa ou mesmo de agressão doméstica) pela
autoridade do irmão ou do pai, homens em seu patamar de superioridade social, de
“proprietário” do corpo feminino, o qual se transmuta em espelho de sua honra. A
masculinidade, por outro lado, nesse mesmo contexto, também se reafirma quando a violência
é, por sua vez, dirigida a um sujeito de semelhante patamar físico: outro homem. Bater em
mulheres seria se inferiorizar, ao se agredir um sujeito desprovido de virilidade e força física
(“virtudes” entendidas como masculinas), o que não geraria glória na “casa dos homens”,
mas, sim, vergonha, porque não se demanda coragem e habilidade bélica, elementos que
adornam a masculinidade paradoxalmente frágil justamente por demandar esses tipos de
subterfúgios e autoafirmações para que se legitime.

26 Questão retomada no capítulo 4.


148
No que tange à figura feminina argelina, a partir do relato, esta é apresentada pelo
vizinho como uma figura que não trabalha, que deseja apenas se divertir, que é sustentada
pelo amante sem retribuir com qualquer contribuição, sendo sugerido que ela chega até a
enganá-lo quando se trata de finanças no caso citado das pulseiras de existência ignorada pelo
“homem da relação”, o qual tudo deve controlar na “amante”: corpo, finanças, pensamento.
No transcrito relato de Raymond, aparecem com naturalidade, então, os sintomas do ódio e da
violência explícita contra a mulher árabe e sua integridade física: a surra, um espancamento
até sangrar, gritos, contudo: “tudo acabava como sempre”. O “como sempre” alude à
conformidade e à submissão, traços femininos que, como já apontara Gerda Lerner (2019),
fazem parte das condutas históricas que tornaram as mulheres responsáveis também pela
própria trajetória de dominação a que são submetidas. A expressão “batia, mas ternamente,
por assim dizer” já evidencia o abuso masculino naturalizado numa trajetória de submissão
feminina, recompensada por posição econômica, bens, sustento, como explica Gerda Lerner
(2019) no plano da História do patriarcado e como ocorre no caso da mulher espancada pelo
colono na ficção de Albert Camus. A mulher argelina, ainda destaco, está representada por
Raymond segundo os estereótipos racistas atribuídos ao colonizado pelo colonizador, tal
como estes são assinalados por Albert Memmi em Retrato do colonizado precedido de retrato
do colonizador (2007): pessoas fadadas à preguiça, à falta ética, à ingratidão, à
desumanização, à miséria, à inabilidade para a técnica, para a liderança. Cito Memmi:

a famosa ingratidão do colonizado, sobre a qual insistiriam autores considerados


sérios: ela lembra ao mesmo tempo tudo que o colonizado deve ao colonizador, que
todos esses benefícios são um desperdício, e que é inútil pretender emendar o
colonizado (2007, p. 120).
Desse modo, nitidamente, a “mulher árabe” é receptária de violência na obra pelas
condições conjuntas de inferiorização feminina e por racismo orientalista que legitima a
violência contra a sua figura moura colonizada.
Continuando a exegese da obra, no trecho seguinte, tem-se narrado o requinte do
desejo de Raymond em violentar a “amante”, o qual só se torna realidade na diegese com a
colaboração de Meursault. Ainda que o narrador camusiano, com recorrência em seu discurso,
afirme que “tanto faz” ser amigo de Raymond, um agressor de mulheres, ele não se opõe a seu
plano de castigar a sua amante “árabe”, tornando-se, como fica nítido na cena citada, seu
cúmplice, em meio a partilhas de bebida, cigarro, linguiça, dentro, pois, do conceito-metáfora
“casa dos homens”, tecido por Daniel Welzer-Lang (2001) como lugares de práticas de
masculinidade construídas de homem para homem. Cito:
149
Mas agora é sério. E, a meu ver, não a castiguei bastante. Explicou-me, então, que
era por isso que precisava de um conselho. Parou para regular o pavio do lampião.
Eu continuava a ouvi-lo. Bebera quase um litro de vinho e sentia muito calor nas
têmporas. Como os meus haviam acabado, fumava os cigarros de Raymond.
Passavam os últimos bondes, levando com eles os ruídos agora longínquos do
bairro. Raymond prosseguiu. O que o aborrecia era ainda sentir fisicamente
necessidade dela. Mas queria castigá-la. Primeiro, pensara em levá-la para um hotel
e chamar a delegacia de costumes para provocar um escândalo e ela ser registrada
como profissional. Depois, dirigira-se a uns amigos que tinha no submundo. Estes
não tinham tido nenhuma ideia. E, como me salientava Raymond, valia realmente a
pena pertencer ao submundo. Dissera-lhes isso mesmo e eles lhe tinham, então,
proposto “marcá-la”. Mas não era ainda o que ele queria. Precisava pensar. Mas,
primeiro, queria perguntar-me uma coisa. Aliás, antes de perguntar, queria saber o
que eu pensava desta história toda. Respondi que não pensava nada, mas que a
achava interessante. Perguntoume se eu achava que havia tapeação nisso tudo.
Parecia-me claro que sim; se achava que ela deveria ser castigada, e o que faria, se
estivesse no seu lugar. Disse-lhe que nunca se podia saber, mas compreendia que ele
a quisesse castigar. Bebi ainda um pouco de vinho. Ele acendeu um cigarro e me
revelou sua ideia. Queria escrever-lhe uma carta “com pontapés e, ao mesmo tempo,
com coisas para fazê-la se arrepender”. Depois, quando ela voltasse, levá-la-ia para
a cama como fazia habitualmente e, “justo no momento de acabar”, cuspiria na sua
cara e a poria para fora. Achei que dessa maneira ela estaria castigada. Mas
Raymond me disse que não se sentia capaz de escrever a carta necessária e que
pensara em mim para redigi-la. Como eu nada dissesse, perguntou-me se me
importava de fazê-lo agora mesmo. Respondi que não. Então, depois de beber um
copo de vinho, Raymond levantou-se. Afastou os pratos e o pouco de linguiça fria
que tínhamos deixado. Limpou cuidadosamente o encerado da mesa. Tirou de uma
gaveta da mesa de cabeceira uma folha de papel quadriculado, um envelope
amarelo, uma pequena pena de madeira vermelha e um tinteiro quadrado de tinta
roxa. Quando me disse o nome da mulher, vi que era moura. Escrevi a carta. Redigia
um pouco sem pensar, mas esforcei-me o mais possível para contentar Raymond,
pois não tinha razão nenhuma para não contentá-lo. Depois, li a carta em voz alta.
Escutou-me, fumando e balançando a cabeça, e em seguida pediu-me que a relesse.
Ficou inteiramente satisfeito (CAMUS, 2016, p. 38-39).
Visivelmente, Meursault colabora em suas condutas, por iniciativa própria, e não pela
intervenção mítica da figura do sol, com as ações misóginas de seu vizinho; ele diz que
“compreende” seus desejo de castigo, que acha seu plano “interessante”, ainda que também
diga ter agido “um pouco sem pensar”. Portanto, o narrador camusiano apoiou o “amigo” em
sua violência contra a mulher, “esforçou-se o possível para contentá-lo”, mesmo que tal
amizade lhe representasse um “tanto faz”, assumindo, sem titubear, que não teria razão para
não contentar Raymond com a escrita da tal carta, a qual simboliza em si, um instrumento
discursivo de uma armadilha imbuída de ódio contra aquela figura feminina “moura”, uma
vingança. Sim, faz-se significativo sublinhar que, no excerto acima, é revelada com todas as
letras a origem da “amante” como “moura”, justo a partir de seu nome ouvido por Meursault
na diegese, mas não verbalizado em seu discurso, porém, sim, omitido. Assim retratada, esta
“mulher moura” (sem direito sequer a um nome na fala do narrador) se passa como um corpo
sexualizado e animalizado (até sendo proposto, por figuras do próprio “submundo”, que fosse
esta marcada no corpo, como um bicho é marcado), tal como Lugones em “Colonialidade y
150
gênero” (2008) indica ser o tratamento das “mulheres de cor” em sua crítica à colonização e
seus traços patriarcais diversos impressos por racismo ao feminino periferizado e também ao
branco na lógica da dominação eurocêntrica.
Perante a tais pistas do texto dispostas aos leitores, portanto, essa mulher da periferia
argelina é construída no discurso narrativo do narrador branco e homem colono como um
animal: “açoitada”, objetificada sexualmente, e sem direito a ter seu nome grafado. Uma
mulher “moura”, uma amante, uma candidata à armadilha de “prostituta”, uma madame que
não quer trabalhar, uma mulher que engana, que é espancada, que se submete, num desfecho
violento que se repete “como sempre”, uma “irmã” que vem a ser defendida pelo “suposto
irmão” também sem nome, que também apanha por ofender a masculinidade do colono
branco. É, pois, esta personagem subalternizada e violentada, “invisível”, como diz o narrador
Haroum (DAOUD, 2013, p. 29) que vai (na relação com os homens do texto) mobilizar a
trama para que, no entrelaçar dos fios da intriga em face às masculinidades, as condutas de
Meursault cheguem a um assassinato de um homem “árabe”.
A partir do exposto, sobressai-se um aspecto importante de ser apontado no romance
“clássico do Pós-guerra” de Camus: os sujeitos argelinos, que não recebem subjetividade ou
nome no texto, se relacionam com os colonos de uma maneira atravessada pela violência, por
gênero e sexualidade. As cenas desse capítulo três de Camus se concluem, enfim, com a
simbologia da “casa dos homens” (WELZER-LANG, 2001) na obra estabelecida entre
Raymond e Meursault no momento em que os personagens se despedem desse encontro
construtivo de uma proximidade afetiva que se estabelece nos rituais de socialização
masculina entre pares, homens colonos: “Levantei-me, Raymond deu-me um forte aperto de
mão dizendo-me que entre homens a gente sempre se entende” (CAMUS, 2016, p. 40). O
estrangeiro, como aparente, está repleto dos signos da masculinidade na ebulição das ações de
violência presentes na história. Nesse sentido, é preciso acompanhar a continuidade do plano
de Raymond para castigar a amante com a “carta-armadilha” escrita por Meursault e
prosseguir com a interpretação da trama.
Passo a analisar o capítulo quatro e a refletir sobre “o dia D” em que “a mulher árabe”
é agredida por Raymond, no intuito de destrinchar os traços dos papeis de gênero na obra e
suplementar a identidade de Meursault, dando o curso à empresa que proponho levar adiante
ao longo da interpretação neste trabalho realizada: problematizar a alcunha que lhe foi dada
como “estrangeiro” e seus possíveis sentidos.
151
A sequência narrativa escolhida pelo narrador apresenta, agora, a figura de Marie,
namorada de Meursault, mulher branca e francesa. A maneira como esta é referenciada (em
narração e descrição) é diversa em comparação à mulher árabe objetificada sexualmente e
também animalizada pelo gênero entrecortado pela raça e classe (LUGONES, 2008). As
palavras escolhidas para designar o retrato de Marie são mais afetivas em relação à
brutalidade com que é referida a “amante moura” de Raymond. Cito:

Ontem foi sábado e, como havíamos combinado, encontrei-me com Marie. Desejei-a
intensamente porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e
sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava
um aspecto de flor. Pegamos um ônibus e fomos para uma praia, a alguns
quilômetros de Argel. ...
Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a
minha. A língua dela refrescava-me os lábios, e rolamos por instantes nas ondas.
Quando nos vestimos na praia, Marie olhava-me com olhos brilhantes. Beijei-a. A
partir desse momento, não falamos mais. Apertei-a contra mim e tivemos pressa de
encontrar um ônibus, de voltar, de ir para a minha casa e de nos atirarmos na minha
cama. ...
Quando riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois perguntou-me se eu a
amava. Respondi-lhe que isto não queria dizer nada, mas que me parecia que não.
Ficou com o ar triste. Mas ao preparar o almoço e a propósito de nada voltou a rir,
de tal forma que eu a beijei. Foi nesse momento que repercutiram os ruídos de uma
discussão na casa de Raymond (CAMUS, 2016, p. 42).
Como está claro, o léxico selecionado pelo discurso do narrador não deixa de colocar a
figura feminina no reduto de um corpo sexualizado (“seios”, “boca”, “língua”, “olhos”) e num
lugar limitado de sujeito que, ainda que se destine mais ao contato físico que ao diálogo (“não
nos falamos mais. Aperteia-a contra mim”), se preocupa em perguntar se é amado por um
homem numa relação amorosa. Marie é retratada como um sujeito que sorri, que faz sexo, que
transita entre espaços como uma praia em hábito lúdico e sensual, a cama e cozinha, obstinada
em agradar e, justo por assim se colocar, é que agrada. Um perfil de mulher que não se cogita
ser espancada ou marcada na face como um animal, tal como feito com a moura, mas que não
deixa de corresponder a um fetiche patriarcal da francesa bela, “na moda” (“vestido de listras
e sandálias de couro”), sexy, passiva e submissa ao roteiro “destinado” a uma mulher europeia
na época, segundo tal perspectiva: entristecer-se quando não escuta que tem o amor
masculino, mas contentar-se apenas com a companhia do homem que a sexualiza sem lhe
entregar o afeto que deseja.
A narrativa abandona a ternura sensual do fetiche masculino que envolve o contato
com a mulher francesa e prossegue, trazendo de volta a violência intrínseca ao casal vizinho
Sintès e sua “árabe sem nome”. Lembrando que, como explica Caio Caramico Soares (2010),
defender o desfrute dos prazeres sensoriais e individual no tempo presente, ligados à comida,
152
à bebida, ao sexo, como uma forma de contestação da crença futura de um paraíso após a
morte, fazia parte da filosofia da “revolta” 27 presente já no conceito de “absurdo” camusiano
em O mito de Sísifo (2018). Contudo, é relevante perceber que, para além de tal sentido
filosófico, quando o corpo de Marie é representado no romance, a sua sexualidade feminina e
seu desejo são construídos esteticamente sob o prisma do fetiche do ponto de vista do
narrador, o qual segue, como se vê na citação acima, o paradigma patriarcal da época. Este
construir da personagem da namorada, dessa forma, faz brotar, em jogo relacional, ainda, a
identidade do narrador como heterossexual, dotado, pois, de virilidade, configuração que
alimenta a sua imagem segundo as masculinidades hegemônicas.
Continuando, vem à tona o evento que resulta da “armadilha” planejada pelos
“amigos”, Meursault e Raymond no universo afetivo da “casa dos homens” (WELZER-
LANG, 2001) e com ele os papéis da masculinidade, agora conectada também à esfera
institucional da polícia imperial francesa, se revelam. Cito Camus:

Ouviu-se, primeiro, uma voz estridente de mulher e, depois, Raymond que dizia
“Você me enganou, você me enganou. Vou ensiná-la a me enganar”. Uns ruídos
surdos e a mulher berrou, mas de maneira tão horrível que o corredor se encheu logo
de gente. Marie e eu também saímos. A mulher continuava a gritar e Raymond não
parava de bater. Marie disse-me que era terrível, e eu nada respondi. Pediu-me que
fosse chamar um guarda, mas respondi-lhe que não gostava de guardas (CAMUS,
2016, p. 42-43).
É perceptível que as palavras mudam quando o referente do discurso é o casal vizinho
entre um comerciante de mulheres e a mulher moura. Marie retratada no trecho anterior com
termos ligados a um universo semântico afetivo, ainda que sexualizado, pratica ações como
brincar, sorrir, receber beijos, estando longe da violência física. Ela, tal qual se viu, é
silenciada através de uma descrição que a transforma em uma “imagem estética”, uma
imagem sorridente em um corpo de seios firmes, sem falas na maior parte do tempo e quando
abre a boca, não para beijar, mas para perguntar, sua pergunta envolve um tema que “não
importa”, para o narrador (no sentido de não ser uma questão estruturante de sua
personalidade): o amor; ela deseja ser amada. Em contrapartida, Marie não é animalizada ou
tem a integridade física abalada pela figura masculina com quem se relaciona. A “mulher
árabe”, sim, tem seu trajeto contado com expressões que a identificam como “enganadora”,
como um bicho que “berra” de maneira horrível, a ponto de se tornar espetáculo, como num
zoológico. É significativo o uso do verbo “berrar”, que animaliza a personagem e ainda pode
ser atrelado aos latidos do cachorro do velho Salamano, que, xingado, sarnento, sofre maus-
27 Vide: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2018b.
153
tratos, assim como a garota, tornando-se cena para os espectadores do prédio. A forma
selecionada por Meursault em tecer sua narrativa, mais uma vez, demonstra faces do racismo
frente à “mulher de cor” (LUGONES, 2008).
É interessante destacar a relação de vínculo que então se estabelece entre duas
personagens cujos contrastes de posição de poder aparecem pela forma sequencial narrativa
do discurso, Marie e a “mulher árabe”. Ao escutar os “berros” de uma mulher desconhecida, a
francesa, em solidariedade, cobra a “seu homem” que tome uma atitude, fato que demonstra já
a sua passividade em agir por conta própria no auxílio à vítima e fato que também explicita a
visão hegemônica que carrega de que seria o homem o provedor da proteção, pela virilidade
que lhe caberia (isto, quando ele não está na posição naturalizada de agressor das próprias
mulheres). Meursault, contudo, em face da cobrança de convocar a força masculina policial (a
qual detém o monopólio da violência na ordem jurídica estabelecida), se recusa a cumpri-la,
recua e, nesse movimento, se “diminui” frente a essa figura de poder institucional na
hierarquia das masculinidades no contexto, atitude que revela também sua natureza omissa e
misógina/racista em prestar socorro a uma figura feminina “árabe”. O narrador-protagonista
se faz, portanto, duplamente omisso: 1) em ouvir o pedido da sua “namorada francesa”; 2) em
socorrer a “amante moura” do “amigo” dos maus-tratos sofridos. Nesse caso, ambas as
mulheres, cada uma à sua maneira, isto é, em situações sociais de vulnerabilidade diferentes,
sofrem o peso do patriarcado que as diminui como sujeitos de voz e de direito à dignidade.
Meursault, por agir de tal forma e pelo desenho espelhado que seu discurso, ao contar suas
ações, lhe constrói desde o início da obra, não aparenta ser tão “estrangeiro”, como se tem
largamente repetido e entendido o termo a tradição crítica ocidental (SARTRE, 2005;
BARTHES, 2004a) às normas patriarcais de sua “cidadania europeia”28 na Argélia colonial.
A reação de Raymond, por sua vez, reforça a ideia de que há uma diferença entre a
masculinidade civil comum e a encarnada pelo policial francês, a qual, pela força repressiva
viril institucionalizada que lhe confere, estaria acima de qualquer outra, transformando
“machões” violentos que batem em mulheres em cidadãos obedientes ao Estado. Cito o trecho
em que chegam um guarda e um bombeiro para abordar Raymond no momento:

Ele bateu à porta e não se ouviu mais nada. Bateu com mais força e, alguns instantes
depois, a mulher chorou, e Raymond abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar sonso.
A moça precipitou-se para a porta e declarou ao guarda que Raymond a espancara.
— Seu nome — perguntou o policial. Raymond respondeu. — Tire o cigarro da
boca quando falar comigo — ordenou o guarda. Raymond hesitou, olhou para mim e
deu uma tragada no cigarro. Neste momento, o guarda deu-lhe uma bofetada com
toda a força, em plena cara, com um estalo surdo e pesado. O cigarro caiu alguns

28 Desenvolvo este aspecto mais adiante de modo mais evidente.


154
metros adiante. Raymond mudou de expressão, mas nada disse na hora, até
perguntar com uma voz humilde se podia apanhar o cigarro. O guarda declarou que
sim e acrescentou: — Mas fique sabendo, da próxima vez, que um policial não é um
palhaço. Enquanto isso, a moça chorava e repetia: — Ele me bateu. É um cafetão. —
Senhor guarda — perguntou, então, Raymond —, está na lei isso de chamar um
homem de cafetão? Mas o guarda mandou que calasse o bico. Raymond voltou-se
para a mulher e disse: — Não perde por esperar, pequena. O guarda ordenou-lhe que
calasse a boca, que a moça devia ir embora e que ele ficasse no quarto até ser
chamado à delegacia. Acrescentou que Raymond devia ter vergonha de estar bêbado
a ponto de tremer daquele jeito. — Não estou bêbado, senhor guarda. Mas é só que,
diante do senhor, não posso deixar de tremer (CAMUS, 2016, p. 42-43).
Destaco a fala imperativa do guarda, despindo Raymond de elementos que
compunham a sua imagem de virilidade: o “cigarro” cai longe, o tom de “voz” muda (agora,
humilde), a posição de poder cai (ele passa do sujeito que bate para o que apanha e obedece,
do sujeito que fala para o que é silenciado, do viril ao frágil que treme e tem a honra
questionada pelo guarda, inclusive pelo uso excessivo da “bebida”). É neste momento, apenas
em face do guarda, do Estado, não pela sua condição de sujeito, de pessoa humana, que a
mulher “árabe”, de animal que berra, se torna cidadã que fala para denunciar o espancamento
e identificar o “amante” como “cafetão”, o que, relacionalmente, a qualificaria na diegese
como prostituta, ser triplamente subalterno (mulher, nativa, profissional do sexo), frente ao
Império francês (de política moralista, violenta, racista, machista), o qual, com autoridade
sobre seu trânsito no território argelino tomado, a ordena que vá embora num movimento
ambíguo entre protegê-la da agressão de um homem e impor-lhe sua ordem imperial de
controle de corpos.
O quadro da ficção de Camus gera uma cadeia hierárquica de gênero com traços em
comum às hierarquias comentadas pela filósofa brasileira Djamila Ribeiro29, em Lugar de fala
(2019), ao discutir racismo interseccionado a gênero no Brasil e ao apontar a mulher negra
como a última colocada na posição de acesso a direitos sociais e individuais. A cena
romanesca citada acima traz os personagens nas seguintes camadas de uma estrutura
piramidal: 1) no topo da dominação, o homem da Guarda francesa, símbolo privilegiado da
frente imperial (a qual gere sujeitos diversos no território colonial sob sua força repressiva
estatal); 2) abaixo, o homem branco e pied-noir (que se impõe como homem frente a outros
homens e mulheres sejam franceses ou nativos, necessitando ser vigilante da sua condição
masculina por meio de gestos de violência e misoginia); 3) o homem autóctone (que é
violentado e fracassa ao precisar disputar, na luta corporal, ou seja, também a partir do sema
da violência física, a masculinidade com o branco em face da defesa do corpo feminino
nativo, sua propriedade e espelho de honra, como visto na briga citada entre Raymond e “o
29 Inspirada no trabalho de Spivak, Pode um subalterno falar (2010).
155
árabe”, este que seria irmão da “moura” em Camus); 4) a mulher branca (sexualizada, ao ser
transformada em imagem de um corpo que atende ao olhar de desejo masculino e silenciada,
já que produz menos falas do que uma mudez sorridente, porém não degradada pela violência
física); 5) em posição final e de maior vulnerabilidade, está a “mulher moura” (sexualizada
também, mas dotada de uma sexualidade explorada pelo “cafetão europeu”, ainda animalizada
pelo olhar narrativo, além de ser vista como propriedade e espelho da honra masculina do
“árabe”). O próprio texto de Kamel Daoud, como visto acima, suplementa, nos seus moldes
de “crítica-ficção” (FELINTO, 1999), os sentidos do que viria a representar “a mulher árabe”:
não um sujeito, mas um objeto, uma propriedade a ser protegida como qualquer outro espaço,
bem ou “gado” argelino tomados pelo colonizador. Repito a fala do narrador Haroum na
“reescritura” doudiana de O estrangeiro: “Nos bairros populares de Argel, havia, com efeito,
esse sentido aguçado e grotesco da honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de
perder a terra, os poços e o gado, só lhes sobraram as suas mulheres” (DAOUD, 2013, p.29)30.
A conexão entre masculinidade e as instituições repressivas do Estado para reforçar a
ideia de nação na Europa em expansão colonial é explicada por Mário Lugarinho (2016), que
a referencia tematizada nas próprias produções literárias ocidentais:

O paradigma de identidade nacional se estabelecia um paradigma flagrantemente


masculino. Para Mousse (2000), nesta altura, a centralidade da identidade masculina
é levada ao paroxismo a fim de dar sentido às identidades nacionais, com a criação,
ao longo do século XVIII, na Europa, dos exércitos nacionais. A criação do braço
armado do Estado nacional determina uma mudança drástica na cultura europeia a
partir da qual o serviço ao Estado passava a agregar valor de masculinidade ao
indivíduo, alçando-o da esfera comum da vida cotidiana aos desígnios nacionais
(como se observa pela transformação operada em Heatchcliff, protagonista de
Wuthering Heights, de Emily Brontë (1847)) (LUGARINHO, 2016, p. 191).
E comenta a transformação do ser e estar homem após a queda do Antigo Regime e no
desenvolvimento da expansão colonial das nações europeias:

Na tradição ocidental do Antigo Regime, a masculinidade hegemônica estava


instalada pelo patriarcado, instituição social, cuja face jurídica, advinda do Direito
romano, era o princípio do pater famílias. O patriarcado concedia ao chefe do
agrupamento familiar o direito de dispor sobre a vida de todos que a ele se
subordinavam .... O patriarca, num tempo em que as comunicações eram difíceis,
entre espaços distantes, era efetivamente um representante bastante autônomo do
poder imperial e, posteriormente, colonial. Apenas com a formulação do estado
nacional e com a instalação da vida burguesa, o pater famílias, foi sendo esvaziado
paulatinamente até o seu completo desaparecimento – o direito sobre a vida dos
subordinados, ao passar para o Estado através da disseminação das instituições
jurídicas, exigiu uma redefinição da forma de ser e estar homem e das características
que viriam a pautar a masculinidade (LUGARINHO, 2016, p. 191-192).

30 No próximo capítulo, volto à fala de Haroum sobre a questão.


156
A explanação de Lugarinho, dessa forma, ajuda a interpretar as atitudes de Raymond e
Meursault ao se subalternizarem ambos, como homens e cidadãos que não possuem mais o
controle sobre a vida dos sujeitos pelo poder famílias, diante da Guarda francesa e seu status
de valor nacional ligado às masculinidades hegemônicas do topo piramidal. São as
masculinidades diversas em tensão no trajeto da História europeia e na história romanesca,
instâncias de gênero que, como venho trabalhando para demonstrar, interferem
significativamente no sucesso das personagens e estarão ligadas ao evento crime a ser narrado
por Meursault na sequência dessas cenas citadas e analisadas acima; crime e evento narrativo
decisivo para a narrativa e seus significados sociais.
Essas tensões entre as masculinidades hegemônicas ficam ainda mais elucidadas no
trecho seguinte em que Raymond procura Meursault para comentar o acontecido:

Contou-me que tinha feito o que queria, mas que ela lhe dera uma bofetada e que
ele, então, começara a espancá-la. Quanto ao resto, eu mesmo o presenciara. Disse-
lhe parecer-me que agora ela fora castigada e que ele devia estar contente. Era
também a opinião dele, e observou que, por mais que o guarda fizesse, não mudaria
as pancadas que ela recebera. Acrescentou que conhecia bem os guardas e sabia
perfeitamente como se deve lidar com eles. Perguntou-me, então, se eu esperava que
ele reagisse à bofetada do guarda. Respondi-lhe que não esperava absolutamente
nada e que, aliás, não gostava de guardas. Raymond pareceu ficar muito contente.
Perguntou-me se queria sair com ele. Levantei-me e comecei a me pentear. Disse
que era preciso que eu servisse de testemunha. A mim tanto fazia, mas não sabia o
que devia dizer. Segundo Raymond, bastava declarar que a mulher o enganara.
Aceitei servir de testemunha. Saímos e Raymond ofereceu-me um trago. Depois,
quis jogar uma partida de bilhar, e perdi por pouco. A seguir, queria ir ao bordel,
mas eu disse que não, porque não gosto disso. Então voltamos lentamente, e ele me
dizia quanto se sentia contente por ter conseguido castigar a amante. Achei-o muito
simpático comigo e pensei que aquele era um momento agradável (CAMUS, 2016,
p. 44).
Sublinho, pois, acima, dois aspectos: 1) o fato de Raymond ser vigilante e inseguro
sobre a própria virilidade, ao perguntar a Meursault sobre o que pensava de ele não ter reagido
com violência à bofetada do guarda. A postura antipática de Meursault aos oficiais também
denunciam o seu desconforto perante a imagem masculina que tem o monopólio repressivo do
Estado nacional; 2) a misoginia explícita de ambos os personagens em relação à “moura”;
Raymond alegre com a agressão praticada contra a mulher, de retrocesso inacessível ao poder
do Estado, e Meusault satisfeito em ser “camarada” como o vizinho, aceitando ser sua
testemunha na delegacia, para declarar a argelina como “enganadora”. As notas da “casa dos
homens” descritas por Welzer-Lang (2001) estão expressas, pois, no texto: inferiorização
feminina, violência contra a mulher, lugares de socialização que reforçam os laços afetivos
entre os homens: jogo de bilhar, convite ao bordel. São aparentes os signos de uma
masculinidade que precisa ser “forjada” pelos personagens dentro de O estrangeiro. Nesse
157
viés, não importa muito que nas “palavras” que escolha para narrar os fatos Meursault deseje
se mostrar indiferente ou “estrangeiro” à socialização masculina vivenciada do seu lugar de
personagem pied-noir, uma vez que também suas próprias palavras e ações indicam o seu
pertencimento à socialização que o gerou enquanto sujeito no espaço colonial em que habita.
Passo a registrar, para que se verifique a relação hierárquica entre os diversos sujeitos
do texto, a cena em que, passando no apartamento de Raymond para irem juntos, como
combinaram, aproveitar um dia de praia com conhecidos franceses, Meursault conta que foi à
delegacia depor a favor do “amigo”:

Na véspera, tínhamos ido à delegacia e eu testemunhei que a mulher o “enganara”.


Foi liberado com uma advertência. Não verificaram a minha informação. Diante da
porta, comentamos isso com Raymond e, depois, decidimos tomar o ônibus
(CAMUS, 2016, p. 54).
É notório que a polícia escuta Meursault, toma seu depoimento como verdade sem
cumprir seu suposto dever legal de investigação e libera o agressor da “mulher árabe”, o qual
se mostrou “obediente” ao Império ao se mostrar subalterno como homem à Guarda francesa.
A cena denuncia as instituições imperiais como dotadas de práticas desiguais e patriarcais,
privilegiando, nesse caso, o sujeito masculino europeu em detrimento da proteção de uma
“prostituta moura”.
O crime de assassinato do “árabe”, narrado em seguida, neste sexto e último capítulo
da “Primeira parte” do romance, segue uma trilha que continua desenhando, no romance, o
curso de uma masculinidade presente nos sujeitos ficcionais. Se, como apontou a crítica
literária tradicional até aqui, a figura masculina do Sol estaria a guiar Meursault (BARTHES,
2004), junto à falta de sentido que conduz o “homem absurdo” (SARTRE, 2005), “Sísifo
moderno” (CAMUS, 1942) a puxar o gatilho quatro vezes contra o “sujeito árabe”, as
representações de masculinidade naquela conjuntura social em que se encontravam os
personagens, embora não problematizadas como se poderia ter feito, também podem ser
interpretadas como uma variante válida para se compreender o homicídio.
A conjuntura da narrativa até esse momento em destaque mostra as tensões de gênero
na trama: mulher argelina (associada ao signo da prostituição) é violentada por europeu, o
qual não é punido, mas, sim, liberado por uma polícia imperial que toma como verdade o
depoimento de outro europeu, “amigo” do acusado. Em vista do quadro de um Estado francês
colonial que lesiona as mulheres “árabes”, os homens nativos irão buscar uma forma
alternativa de justiça. Contudo, como vai sugerindo as pistas do texto, o bem em disputa entre
esses diversos sujeitos masculinos não passaria, ou não passaria somente, pela defesa do bem-
158
estar da argelina, mas pela defesa da “honra masculina” (seja dos árabes que não podem
perder o controle das mulheres locais junto ao controle já perdido da terra e do litoral tomado
pela França; seja do europeu que deveria poder explorar sexualmente e violentar o corpo da
“mulher moura” para, aos sustentar a misoginia, se colocar como homem, diferenciando-se da
inferioridade feminina).
Notem-se as figuras coletivas dos “homens árabes” que, após a liberação de Raymond
pela polícia, surgem na narrativa e parecem ser descritos como personagens
despersonalizados que tentarão agir pela própria “força”, no intuito de restaurar algum tipo de
justiça em contraste ao poder institucional imperial policial, que não pune a violência
europeia:

Íamos partir quando Raymond, de súbito, me fez sinal para olhar em frente. Vi um
grupo de árabes encostados na vitrina de uma tabacaria. Olhavam-nos em silêncio,
mas à maneira deles, como se fôssemos pedras ou árvores mortas. Raymond disse-
me que o sujeito era o segundo a contar da esquerda, e ficou com uma expressão
preocupada. Acrescentou, no entanto, que agora era um caso encerrado. Marie não
compreendia muito bem e nos perguntou o que se passava. Expliquei-lhe que eram
uns árabes que tinham raiva de Raymond. Marie quis que fôssemos embora logo.
Raymond endireitou-se e riu, concordando em que era preciso nos apressarmos.
(2016, p. 54).
A subalternidade masculina árabe aparece, em alguns aspectos, como: eles estão em
silêncio, o espaço que ocupam (a tabacaria simboliza um espaço urbano usual da
masculinidade, de modo que eles estão ainda à margem do local: fora e “encostados na
vitrine”); a maneira pela qual são descritos: não há nomes, apenas indicações genéricas com
numerais, artigos indefinidos e palavras circunstanciais de espaço (“o segundo a contar da
esquerda”/“uns árabes”) e, principalmente, o modo como o narrador-personagem quer
dominar o que se passa até na mente desses sujeitos, ao criar comparações que qualifiquem os
significados mais profundos de seus olhares: “Olhavam-nos em silêncio, mas à maneira deles,
como se fôssemos pedras ou árvores mortas.”. Tal detalhe da figura comparativa denotaria
mais a visão de Meursault, este narrador ensimesmado” (DALFARRA, 1978), sobre si e sobre
os europeus (“pedra”/ “árvore morta”, ou seja obstáculos imóveis, infrutíferos) na Argélia
colonial do que poderia traduzir o olhar daqueles sujeitos masculinos, aos quais não se tem
acesso no romance, uma vez que eles não falam, não dialogam, estão silenciados, apenas se
deslocam, olham e lutam com fracasso e morte no espaço narrativo.31
Desse ponto da narração em diante, Marie, Raymond e Meursault sobem no ônibus e
chegam à praia suburbana de Argel, onde ocorrerá o assassinato do argelino. Eles não notam
mais a presença dos árabes, que surgirão, sim, seguindo os passos dos europeus até o mar para
31 Esta questão também é retomada no capítulo 4.
159
protagonizarem juntos duas brigas, a segunda com o resultado morte. Antes de citar as cenas,
gostaria de apontar para a simbologia do espaço litorâneo da Argélia colonial e sua relação
com a violência que o homem francês impõe ao colonizado. Como descrevem Yazbec (2010)
e Fanon (1965), a tomada francesa da Argélia ocupou, sobretudo, o litoral, empurrando os
sujeitos locais para as regiões do deserto, descaracterizando suas atividades econômicas
tradicionais, ao transformar a ocupação das cidades e as atividades agrícolas da região. A
original plantação de cereais argelina anterior foi trocada por vinícolas, para geração de lucros
à Metrópole, o que gerou grande impacto à população nativa. A tomada do litoral é, assim,
sem dúvida, a marca da dominação da terra pelo imperialismo francês, da violência cultural
imperialista, de modo que se faz muito simbólico, no romance, o fato de o assassinato do
“árabe” ocorrer justo na praia e de franceses e argelinos se relacionarem de modos
hierarquicamente distintos neste cenário marítimo.32
Enquanto os europeus se divertem com namoradas (o lazer e a libido de Meursault
com Marie são descritos recorrentemente em banhos de mar, como na ocasião, tão condenada,
logo após a morte de sua mãe, em que eles flertam na praia, vão ao cinema ver uma comédia
francesa e seguem para o sexo em seu apartamento, o que demostra a associação entre
masculinidade heterossexual e domínio do território litorâneo. Horas antes do crime, também
é acionada a ligação entre mar e sexualidade: “Corremos e nos atiramos às primeiras ondas.
Demos algumas braçadas e ela colou-se a mim. Senti suas pernas em volta das minhas e
desejei-a” (CAMUS, 2016, p. 57)). Os mesmos europeus, modificam o território, construindo
suas casas de veraneio para desfrutar suas riquezas entre amigos franceses e suas esposas de
“sotaque parisiense” (CAMUS, 2016, p. 55). Os argelinos, diferentemente, tal como delineia
o romance, vão até lá em situações de tensão e de subalternidade: disputar a honra masculina,
perder as lutas corporais munidos de facas, arma de precariedade técnica, enquanto são
abatidos a tiros pelos colonos. Estes, por sua vez, como ressalta Said (1995), figuram como
sujeitos sísificos, dotados de angústias filosóficas, e, como friso, sujeitos representados como
“homens heterossexuais”, carentes de sentidos na vida por terem uma França tomada pelo
nazismo alemão, num contexto em que Deus não mais oferece certezas e que, apesar disso, na
Argélia, em posição imperialista, além da terra, exploram e animalizam argelinas para
sentirem-se homens, continuando a inferiorizar também suas mulheres europeias ao tratá-las
como “bibelôs sorridentes” que cozinham, andam na moda e querem sempre os mesmo

32 Este aspecto é central na obra de Daoud, sendo retomado e desenvolvido no capítulo 4.


160
desejos limitantes e marginais de uma real participação política igualitária: sexo, afeto e
casamento.
Outro detalhe notável, dentro de tal conjuntura simbólica litorânea, é que enquanto as
mulheres francesas ocupam a costa marítima “espalhando flores”, “catando cristais”, posando
de namoradas alegres ou cozinhando e lavando a louça na casa de praia de propriedade de
metropolitanos, os homens europeus estão lá reforçando seus laços de masculinidade entre si,
na “casa dos homens” (WELZER-LANG, 2001), em passeios pela faixa de areia ou
disputando esta faixa com os colonos ou os matando. As diferenças entre os modos como
franceses homens e mulheres ocupam a praia são tantas na obra, que se seu título fosse “A
estrangeira” e se quem narrasse a história fosse Marie como protagonista, em vez de
Meursault, seria muito possível, dentro da lente da narrativa que se estabelece, que não
houvesse crime de homicídio, mas (ironizo) apenas belos almoços entre casais, servindo
“fritadas de peixe” (CAMUS, 2016, p. 55) feitas pelas esposas ao sol mítico escaldante de
Argel, além, claro, da apropriação da natureza, narrada com lirismo, ambas seguidas de cenas
de carência afetiva feminina. Cito, nesse sentido, para ilustrar a representação do feminino
francês no texto, a obra: “Marie divertia-se espalhando as pétalas de flores, batendo nelas com
a bolsa de praia”/ “Marie colheu alguns cristais de rocha” (CAMUS, 2016, p. 55)/ “Marie
reclamou que não a beijara desde a manhã” (CAMUS, 2016, p. 57). Talvez Marie, então,
como uma suposta narradora, pudesse encarnar a “mulher absurda”, sísifica, que repete o
mesmo “sem sentido” e “feliz” (CAMUS, 2018a) percurso de empurrar continuamente a
pedra do patriarcado até o topo da colina para, novamente, soltá-la do alto, servindo, casando,
maternando, embelezando o ambiente33. Ironias à parte, que as pego emprestadas do melhor
estilo Rebecca Solnit em Os homens explicam tudo para mim (2017), o que aqui quero
sublinhar com marca-texto fluorescente amarelo-limão ao cogitar tais hipóteses sobre uma
possível narradora do texto, as quais, reconheço, beiram a “superinterpretação” (ECO, 1993) é
que, sim, em O estrangeiro, de Camus, o crime e a trama convocam as representações das
masculinidades e do patriarcado no espaço colonial francês no romance como moduladores de
seus significados. É o que ficará ainda mais exposto a partir de então.

33 Tenho, ao longo do Doutorado, também aproximado O mito de Sísifo e a mecânica do absurdo, de Camus a
uma leitura inserida na Crítica feminista (ZINANI, 2015) das personagens femininas em obras escritas por
autoras. Nesses estudos, observo, por exemplo, que as mulheres criadas por Clarice Lispector, em narrativas
como os contos “Amor” e “Laços de família”, estão seguindo um trajeto semelhante ao personagem mítico no
percurso dominado pelo patriarcado em que se situam em meados do Século XX. A esse respeito, vide:
CAVALCANTI, Ariane da Mota. Clarice Lispector e Albert Camus: Representações de gênero e mecânica
Sísifica. IN: ASSIS, Emanoel C P. de; OLIVEIRA, Lígia V. P.; MORAIS, Solange S. G. (Orgs). E-book do XIX
Simpósio de Letras, Caxias, EDUEMA, 2021.
161
Depois da confraternização praieira entre franceses: banho de mar e almoço com
fritada de peixe recém-pescado pelo anfitrião e amigo de Raymond, Masson, há um evento
que reforça a condução dos homens a saírem da casa para um passeio na areia, passeio que os
colocará de frente a uma briga com “os árabes” sem nome que os olhavam desde a vitrine da
tabacaria: a hora de lavar a louça, da qual homens deveriam ser expulsos pelas mulheres.
Nota-se que Masson, proprietário da casa, como confessa, costuma passear após o almoço,
enquanto sua esposa tem o hábito diverso de fazer uma sesta, mas, nesse dia em particular, o
evento de cuidado doméstico, “lavatório da louça”, estimula que os três amigos homens saiam
em passeio, enquanto as mulheres limpam: “Marie declarou que ficaria para ajudar a Sra.
Masson a lavar a louça. A pequena parisiense disse que para isso era preciso pôr os homens
para fora. Descemos os três” (CAMUS, 2016, p. 58).
Durante “o passeio”, enquanto as mulheres cuidavam do lar, surgem “os árabes” no
espaço praia, gerando tensão e suspense. Eles teriam seguido os franceses e Meursault
reconheceu a figura que negava desde o início da narrativa o título de “homem” a Raymond
em virtude de sua ligação com a “mulher moura”:

Mas percebi, ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois árabes de
macacões azuis, que vinham na nossa direção. Olhei para Raymond e ele me disse:
— É ele. ...
Os árabes avançavam lentamente e já estavam muito mais perto. Não mudamos
nosso passo, mas Raymond disse: — Se houver briga, você, Masson, fica com o
segundo. Eu me encarrego do meu sujeito. Você, Meursault, se vier outro, é seu. —
Está bem — respondi, e Masson botou as mãos nos bolsos. A areia superaquecida
me parecia agora vermelha. Avançávamos no mesmo ritmo em direção aos árabes.
A distância entre nós foi diminuindo regularmente. Quando estávamos apenas a
alguns passos uns dos outros, os árabes se detiveram. Masson e eu começamos a
andar mais devagar. Raymond foi direto ao seu sujeito. Não ouvi muito bem o que
lhe disse, mas o outro fez menção de lhe dar uma cabeçada. Raymond deu, então, o
primeiro soco, e logo a seguir chamou Masson. Este dirigiu-se ao que lhe fora
destinado e aplicou-lhe dois socos com toda a força. O árabe estatelou-se no mar, o
rosto dentro d’água, e ficou assim alguns segundos; à volta da cabeça, na superfície,
rebentavam bolhas de ar. Enquanto isso, Raymond continuou a bater, e o outro
estava com o rosto coberto de sangue. Raymond voltou-se para mim e disse: — Vai
ver como ele vai apanhar! — Cuidado — gritei-lhe —, ele está com uma faca. —
Mas Raymond já estava com o braço ferido e um talho na boca. Masson deu um
salto para a frente. Mas o outro árabe tinha se levantado e se colocara atrás do que
estava armado. Não ousamos nos mexer. Eles recuaram lentamente, sem deixar de
nos olhar e de nos ameaçar com a faca. Quando viram que a distância era suficiente,
fugiram muito rapidamente enquanto nós ficávamos ali pregados, ao sol, e Raymond
comprimia o braço do qual escorria sangue (CAMUS, 2016, p. 58-59).
O trecho evidencia que: 1) dois árabes surgem na praia e disputam o espaço e a honra
com os franceses em maior número no litoral; 2) Raymond inicia a briga, de modo que cada
um dos três europeus já tem seu papel determinado no combate corporal, fazendo ele questão
de mostrar que será violento: “veja como ele irá apanhar”; 3) os dois árabes
162
despersonalizados, referenciados através de numerais e pronomes indefinidos, apanham
recuam e fogem, apesar de ferirem Raymond. A briga, desse modo, reflete a disputa pela
masculinidade no território praia e a dominação francesa.
Masson e Raymond saem à procura do médico francês que tem uma casa no local e
veraneia aos domingos, enquanto Meursault tem a tarefa de explicar a situação às mulheres,
que ficaram lavando a louça. O narrador confessa o quanto lhe é desagradável dialogar com as
personas femininas, o que, mais uma vez, reforça o seu lugar de reprodução misógina “na
casa dos homens” (WELZER-LANG, 2001):

Saiu com Masson e eu fiquei para explicar às mulheres o que havia acontecido. A
Sra. Masson chorava e Marie estava muito pálida. Para mim, era desagradável ter de
lhes explicar. Por fim, calei-me e fiquei fumando, olhando para o mar (CAMUS,
2016, p. 60).
Por seu turno, Raymond, também do seu lugar da “casa dos homens” (WELZER-
LANG, 2001), após receber o socorro médico, com apoio do amigo Masson, e constatar a
superficialidade de seus ferimentos, sente-se ferido de uma forma mais profunda: na sua
masculinidade, afinal, foi violentado pelo “homem árabe”, em quem suas palavras
asseguraram aos “amigos europeus” aplicar uma surra, saindo novamente à praia, em busca de
vingança contra aqueles sujeitos que, até então, no romance, perdem as suas disputas e são
violentados. Encontrando “os árabes”, mais uma cena de tensão, suspense e violência se
segue, agora com códigos oficiais da masculinidade europeia em situação de duelo: agredir ou
matar em caso de defesa da vida e da honra. Cito:

Mas sem tirar os olhos do adversário Raymond me perguntou: — Acabo com ele?
Pensei que se respondesse não ficaria excitado por si próprio e dispararia, com
certeza. Disse unicamente: — Ele ainda nada disse. Disparar assim seria um golpe
baixo. Ouvíamos ainda o leve ruído de água e de flauta no coração do silêncio e do
calor. — Então vou xingá-lo, e quando ele responder eu o mato — replicou
Raymond. — Isso mesmo. Mas se ele não puxar a faca, você não pode atirar —
ponderei. Raymond começou a enervar-se um pouco. O outro continuava a tocar e
os dois observavam cada gesto de Raymond. — Não — disse eu a Raymond. —
Pegue-o, de homem para homem, e dê-me o revólver. Se o outro se meter ou se
puxar a faca, eu o mato. Quando Raymond me deu o revólver, o sol refletiu nele. No
entanto, ficamos imóveis, como se tudo se houvesse fechado à nossa volta.
Olhávamo-nos sem baixar os olhos e tudo aqui se detinha entre o mar, a areia, o sol,
o duplo silêncio da flauta e da água. Pensei neste instante que se podia atirar ou não
atirar. Mas, bruscamente, os árabes começaram a recuar e deslizaram por trás do
rochedo. Raymond e eu voltamos, então. Ele parecia estar melhor e falou sobre o
ônibus de volta. (CAMUS, 2016, p. 61).
Na cena, é visível que Meursault atua como um conselheiro da “luta honrada” entre
homens, definindo qual seria o momento legítimo ou não de atacar o sujeito “árabe”: “Mas se
ele não puxar a faca, você não pode atirar — ponderei” e qual seria a maneira legitima de
fazê-lo: “Pegue-o, de homem para homem, e dê-me o revólver. Se o outro se meter ou se
163
puxar a faca, eu o mato.” Diante da cautela “honrada” dos franceses, os árabes recuam
novamente. A disputa pelo território praia não é vencida novamente pelos argelinos e os
franceses também pensam em retornar, em posição de domínio, ao centro da cidade. Todavia,
mais um lampejo de masculinidade hegemônica salta da persona de Meursault, que,
novamente, como um Sísifo que repete os mesmos rituais, demonstra misoginia frente às
mulheres, sendo este aspecto um dos elementos definidores de seu retorno em direção à praia
e aos árabes que lá estariam:

Acompanhei-o até a casa da praia, e enquanto subia a escada de madeira


fiquei no primeiro degrau, a cabeça latejando por causa do sol, desanimado
diante do esforço que era preciso fazer para subir as escadas de madeira e
voltar a enfrentar as mulheres. Mas o calor era tanto que me era igualmente
penoso ficar assim imóvel, sob a chuva ofuscante que caía do céu. Ficar aqui
ou partir dava na mesma. Ao fim de alguns instantes voltei para a praia e
comecei a caminhar.
...
Tinha vontade de reencontrar o murmúrio de sua água, vontade de fugir do
sol, do esforço e do choro de mulher, enfim, vontade de reencontrar a
sombra e seu repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o árabe de
Raymond tinha voltado. (CAMUS, 2016, p. 62).
A citação revela no discurso do narrador seu cansaço confesso, fruto do “esforço
sísifico” de suportar as figuras femininas, tal qual o herói mítico suportava o peso da “pedra-
castigo” (CAMUS, 2018a), figuras as quais se uniriam a tão já comentada imagem do sol para
representarem juntas o eixo-motor de seu desgaste físico e mental na praia. Estar à sombra,
assim, seria, na metáfora narrativa, evitar lidar como os sentimentos das mulheres, seres
visivelmente repulsados por Meursault em conjunturas que não envolvam sexualidade ou que
demandem diálogo franco e empatia com outro sujeito humano em posição igual de respeito.
Meursault dirige, sim, seu companheirismo e sua atenção verbal a outros homens,
demonstrando-se dentro da rede afetiva entre sujeitos masculinos explicada por Wellzer-Lang
(2001), resultante e resultado, dialeticamente, por sua vez, na/da inferiorização das mulheres.
E cansado de sol e do peso do “choro de mulher”, o protagonista camusiano segue em direção
ao “árabe” e “aos quatro tiros na porta de desgraça”. Entrecorto trechos do momento ápice da
“Primeira parte” do romance – o homicídio:

Logo que me viu, ergueu-se um pouco e meteu a mão no bolso. Eu, naturalmente,
agarrei o revólver de Raymond dentro do paletó. Então, o árabe deixou-se cair outra
vez para trás, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava bastante longe dele, a uns dez
metros de distância....
Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a
frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas
dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a
164
faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina
fulgurante me atingisse na testa. ...
Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da
faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e
penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. ...
Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei
o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e
ensurdecedor, que tudo começou. ...
Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem
que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.
(CAMUS, 2016, p. 63-64).
Destaco no texto que, ao encontrar “o árabe”, Meursault, assim como Raymond, nas
duas brigas anteriores com os “nativos”, toma a iniciativa de dar o “passo à frente” na disputa,
o que demonstra (caso se interponha uma leitura na linha de Said (1995)) a segurança dos
franceses em disputar o território. Como resposta à iniciativa de conquista francesa, “o árabe”,
novamente puxa sua faca, da mesma forma que havia sucedido na primeira briga em que fere
e sangra Raymond. O ato de “puxar a faca” seria a atitude que autorizaria os homens
franceses, como visto acima nas palavras do narrador, a atacar outro homem, caso fosse
levada em conta a espécie de “código de honra” vindo à tona na outra ocasião em que
Raymond, por vingança de sua “frágil masculinidade” atingida com os ferimentos superficiais
na boca e braço, cogitava matar “o árabe”. Retomo a fala conselheira de Meursault ao
“amigo”: “Se o outro se meter ou se puxar a faca, eu o mato” (CAMUS, 2016, p. 61). Nesse
sentido, não é unicamente à toa, ou apenas em razão de uma simples ofuscação solar, que
Meursault puxa o gatilho. O sol bate na lâmina, deixando-a visível, a tal ponto que seus olhos
são feridos de luz. Um primeiro golpe de faca atinge Meursault e seu domínio ocular do
espaço, o que o leva a responder com tiros. As balas denotariam, ainda, se for adotada a
perspectiva de Castro-Gomes (2005), a supremacia da técnica dentro da lógica do projeto de
modernidade eurocêntrica, isto é, aludiriam à tecnologia moderna para matar do homem
francês, difundida, pois, como se estivesse acima de uma suposta “brutalidade de alcance
reduzido” da arma branca, manufatura encarada como “antiga”, “ultrapassada”, do homem
“árabe”, inferiorizado, silenciado, enfraquecido, fracassado na disputa e assassinado por um
homem francês que chegou até o local do crime por estreitar laços com outro europeu,
explorador e agressor da “mulher moura”.
Foram, grifo, um primeiro e depois mais quatro tiros disparados “num corpo inerte”,
não apenas um ou dois. A quantidade de tiros e o objeto revólver pode imprimir na morte do
“árabe” certo tom de autoritarismo e violência, elementos típicos de socializações masculinas
(WELZER-LANG, 2001). É possível considerar, ainda, a diferença entre os instrumentos de
165
violência do homem francês e do “árabe”. Os colonos trazem o “requinte tecnológico”
(CASTRO-GOMEZ, 2005) de matar com arma de fogo, enquanto o colonizado, representado
como carente de “modernidade técnico-bélica”, “puxa uma faca” sob a luz do sol argelino.
Nota-se que são os elementos fundidos “faca e natureza” (reflexo da luz solar na lâmina) que
“ferem” Meursault e atingem sua visão e a sensação de domínio ocular da praia “em que
havia sido feliz” (CAMUS, 2016, p. 64), território conquistado pelo império francês. Se é
passada a ser considerada, como fez Said (1993) a geografia colonial argelina como espaço do
romance, “o árabe” ali, mesmo em silêncio ou apenas tocando uma flauta (único som audível
que dele parte, sujeito com falas ausentes), mesmo vestido de macacão azul, o que simboliza
naquele contexto histórico seu lugar de classe: mão-de-obra barata para serviços rústicos,
mesmo sem tecnologia bélica à altura, ou seja, mesmo numa posição dominada e
subalternizada, parece agredir fisicamente a visão do narrador francês, que também
demonstra, pela forma que descreve seu corpo (olhos, testa, temperatura), sentir-se
“estrangeiro” àquela geografia climática solar que é Argel, localizada no Magreb. Como
ressalta Melissa Scanhola, “a palavra Magreb, em árabe, significa terra do sol poente e se
refere à porção ocidental da Península arábica” (2013, p. 17). Se for levada em conta a própria
nomenclatura da região em que se passa a história romanesca, “terra do sol”, o significado de
ser “estrangeiro” atribuído durante décadas a Meursault é passível de ampliação: o
personagem pode ser lido como um francês na “terra do sol”, enfrentando as intempéries
estranhas desse lugar, disputando o seu lugar de homem francês com os nativos, matando para
se impor naquele espaço, utilizando de sua tecnologia bélica, para tanto. Friso: não é apenas
esse traço que qualificaria a personagem Meursault, mas é também isso considerável na
interpretação do texto literário, que é polissêmico (POUND, 2006), a partir de suas pistas: as
letras e os lugares de poder que os personagens ocupam na ficção e seu entrançamento com as
condições históricas da época.
Portanto, em consonância com as análises dos trechos do romance aqui citados, torna-
se aparente que a trança da trama de O estrangeiro, na sequência em que o discurso narrativo
lhe deu formas por meio dos atos de seleção e combinação de elementos (ISER, 2002), gera
pistas de que a questões de gênero também animam o destino das personagens e os
significados da obra. A leitura que interponho é, assim, uma tentativa de alargar as
possibilidades de visões sobre O estrangeiro junto à fortuna crítica que engloba a obra de
Camus.
166
Nesse ponto do trabalho, em especial, volto a citar Sartre para propor uma reflexão em
torno de suas conjecturas frente ao caráter “estrangeiro” do narrador Meursault. Retomo as
palavras do crítico francês:

O estrangeiro que ele Camus quer descrever é justamente um desses que fazem o
escândalo de uma sociedade porque não aceitam as regras do seu jogo. Vive também
entre estrangeiros, mas também é um estrangeiro para eles (SARTRE, 2005, p. 120).
Percebo que Sartre entende o sujeito “estrangeiro”, e por extensão o personagem
Meursault, como dotado de uma identidade “puramente estranha”, “puramente sui gêneris”
em relação à comunidade em que vive, a qual ele toma exclusivamente como a comunidade
francesa, como se tal comunidade: a) não penetrasse de nenhuma forma na identidade do
personagem; b) como se, em si, tivesse seus valores culturais puros, intocados pelas tensões
identitárias que são consequências do imperialismo francês e dos mutáveis processos de
globalização moderna (HALL, 2006; BHABHA, 2003). Entretanto, como procurei apontar,
Meursault congrega uma tensão entre tentar se mostrar indiferente e crítico aos rituais
moralistas e canônicos da sociedade francesa (cristianismo, justiça, casamento, amizade,
maternidade, capitalismo, etc) e reproduzir aspectos hegemônicos desta comunidade (como a
própria masculinidade, a misoginia, o racismo, o privilégio branco ocidental, a
heterossexualidade, paradoxalmente o próprio apego, em parte, a uma noção cristalizada de
maternidade a conviver com sua destruição). Em realidade, a própria natureza identitária
francesa pode ser vista como fissurada e entrecortada pelos choques culturais com as
identidades, por sua vez, também variadas de suas diversas colônias.
Nesta ótica, não se identifica, aqui, Meursault como “estrangeiro” entendendo o termo
de modo binário, sendo capaz de designar aquele sujeito que estaria totalmente “fora” de um
“dentro”, leia-se um inteiriço e indivisível solo cultural e político. Essa tendência verificada
acima em Sartre de identificar o estrangeiro como um sujeito dotado de uma natureza cultural
“completamente fora” do estabelecido por outra “nação pura, intocável e intercambiável” é
muito similar a um tipo de mentalidade excludente e ainda binária bastante comum no Brasil
até a segunda metade do século XX, como explica Roberto Schwarz (2002): o raciocínio
“nacional por subtração”. Tal mentalidade ilusória, segundo o crítico brasileiro, considerava a
cultura nacional como possível e necessitada de ser blindada de outras culturas pela
“subtração” de tudo aquilo que fosse “estrangeiro”. Afirma Schwarz:

Quando os nacionalistas de direita de 64 denunciavam como alienígena o marxismo


talvez imaginassem que o fascismo fosse invenção brasileira. Neste ponto,
guardadas as diferenças, as duas vertentes nacionalistas coincidiam: esperavam
achar o que buscavam através da eliminação do que não é nativo. O resíduo, nesta
167
operação de subtrair, seria a substância autêntica do país. A mesma ilusão funcionou
no século XIX, quando a nova cultura nacional se deveu muito mais à diversificação
dos modelos europeus que à exclusão do modelo português. Na outra banda, dos
retrógrados, os adversários da descaracterização romântico-liberal da sociedade
brasileira tampouco chegava ao país autêntico, pois extirpadas as novidades
francesas e inglesas, ficava restaurada a ordem colonial, isto é, uma criação
portuguesa. O paradoxo geral desse tipo de purismo está encarnado na figura do
Policarpo Quaresma, a quem o afã da autenticidade leva a se expressar em tupi,
língua estranha para ele. Analogamente em Quarup, de Antonio Callado, onde o
depositário da nação autêntica não é o passado pré-colonial, como queria a figura de
Lima Barreto, mas o interior longínquo do território, distante da costa atlântica e de
seus contatos estrangeirizantes. Um grupo de personagens identifica no mapa o
centro geográfico do país e sai à sua busca. Depois de muita peripécia a expedição
chega ao termo da procura, onde encontra – um formigueiro (2002, p. 33).
Nesse sentido, traçada uma analogia com a referida mentalidade brasileira “nacional
por subtração”, quando Sartre define estrangeiro como “um desses que fazem o escândalo de
uma sociedade porque não aceitam as regras do seu jogo”, acaba por colocar Meursault na
condição de um “estrangeiro por subtração”, isto é, entende que o personagem não pactua
com “as regras” da sociedade francesa, fato diverso do que é apresentado no romance, como
demonstrei, através das análises do texto, as quais apontaram como o personagem atua, sim,
dentro das regras sociais das masculinidades hegemônicas, da misoginia, do racismo, do
autoritarismo de um sujeito em posição de dominação, como está o colonizador branco
ocidental.
O sujeito Meursault se apresenta na obra como o sujeito estrangeiro fissurado,
contraditório, envolvido em tensões de fronteira, de paradoxo de posições. Como exemplifica
Schwarz (2002), a literatura traz personagem que podem apresentar as ilusões cotidianas de
grupos que desejam encontrar e viver um purismo cultural, porque rejeitam a diversidade
imbricada a qualquer tipo de relação entre sujeitos e povos: como em Policarpo Quaresma e
Quarup. Após a leitura aqui demonstrada, sob o prisma teórico e crítico dos Estudos Pós-
coloniais, com ênfase para a problematização de gênero, proponho que O estrangeiro também
possa ser visto como um romance que aponta as ilusões binárias sobre o que se concebe como
estrangeiro. O sujeito estrangeiro, tal como ilustra o narrador Meursault, pactua, sim, em
parte, com regras do jogo da sociedade francesa, o que acontece é que: a) ele também
descompactua de suas regras, ora sim, ora não; b) as sociedades com as quais dialoga,
assimilando ou repulsando seus valores, não é apenas uma, ele tem referências territoriais e
culturais diferentes; c) cada uma das sociedades diversas com as quais interage, no interior de
si próprias, são habitadas por sujeitos plurais, dotadas de regras plurais. Nessa perspectiva, a
minha sugestão é que o sentido de “estrangeiro” em Camus possa ser considerado como um
sujeito que vivencia o fenômeno da “transculturação”, assim explicada por Roland Walter:
168
O termo abrange fenômenos culturais, sociais, políticos, econômicos e narrativos.
Mediante o uso do termo é possível problematizar o papel da diferença e das
contradições na construção da identidade é construída por meio de uma negociação
de diferenças e que a presença de fissuras, lacunas e contradições é uma parte
necessária desse processo. A transculturação, afirmo, deve ser compreendida como
polivalente que abrange um diálogo incômodo entre a síntese e a simbiose, a
continuidade e a ruptura, a coerência e a fragmentação, a utopia e a distopia, o
consenso e o dissenso, a desconstrução e a reconstrução. Um diálogo desconfortável,
em outras palavras, entre forças e práticas hegemônicas e contra-hegemônicas, entre
gestos, atos e estratégias de coerção, expropriação e (re)apropriação, que discrimina
entre diversas categorias: a assimilação intencional e imposta, o auto-desprezo
internalizado e diversas formas de resistência como, por exemplo, a mímica e o
Signifyng (2015, p. 621).
Assim, Meursault seria um homem “transculturado”, nessa acepção de apresentar
contradições indissolúveis em noções binárias ou definitivas e estanques que apenas o
localizem como alguém que rompe com uma moral. Ele rompe e reitera, ele a credibiliza e a
descredibiliza.
Foi visto, por exemplo, que Meursault compactua com os rituais da “casa dos homens”
(WELZER-LANG, 2001), ostentando misoginia, violência, apreço afetivo pelo masculino,
elogio à heterossexualidade, colocando-se exatamente “dentro das regras” hegemônicas do
que viria a ser “homem” dentro da cultura ocidental, inclusive no que diz respeito ao código
de honra masculina em eventos de “duelo” (como os que envolveram as brigas com “os
árabes” na praia), esquema cavalheiresco que remonta aos tempos do Antigo Regime europeu
(LUGARINHO, 2016). A própria fala dos demais personagens do romance remarca o caráter
masculino do narrador, reforçando a sua parcela de cidadão “comum” e não totalmente
estranho ao francês hegemônico: branco, homem, heterossexual. Cito, contudo, a cena do
julgamento de Meursault em que depõe em favor do réu, o personagem Celeste, proprietário
do restaurante frequentado pelo agora, nesta “Segunda parte” do romance, já “narrador
assassino” (a quem desejamos, como leitores, a despeito de qualquer regra social que condena
homicidas, ler e continuar a ouvir sua fala, sem que isso nos torne “estrangeiros por
subtração” à urbanidade):

Perguntaram-lhe se eu era seu cliente e ele respondeu: — Sim, mas era também um
amigo. Sobre o que pensava de mim, ele respondeu que eu era um homem; o que
queria dizer com isso, e ele declarou que todo mundo sabia o que isso queria dizer;
se reparara que eu era fechado, e ele reconheceu apenas que eu não falava por falar.
O promotor perguntou-lhe se eu pagava regularmente as minhas despesas. Céleste
riu, e declarou: — Isso é assunto nosso. Perguntaram-lhe, ainda, o que pensava do
meu crime. Pôs então as duas mãos na barra e via-se que preparara alguma coisa.
Disse: — Para mim, é uma desgraça. Uma desgraça todo mundo sabe o que é. Isto
deixa qualquer um sem defesa. ...
Parecia-me que tinha os olhos brilhantes e os lábios trêmulos.
Quanto a mim, nada disse, não esbocei gesto algum, mas foi a primeira vez na
minha vida que tive vontade de beijar um homem. (CAMUS, 2016, p. 96-97)
169
Na cena, o narrador é caracterizado por Celeste como “um homem”, o que parece ser
aos olhos da testemunha de defesa e do júri um qualificativo virtuoso a ser ressaltado em
favor do réu. Nesse qusito, a obra põe em evidência a dominação masculina naturalizada e
instrumentalizada diante da justiça. “Homem” está, pois, no trecho figurando como adjetivo
que qualifica Meursault como um cidadão de bem, pouco estranho às regras francesas, tanto o
é que a expressão surge no intuito de defendê-lo com o qualificativo. Assinalo que, no
excerto, sim, Meursault performa como “homem” dentro das hegemonias da masculinidade ao
demonstrar afeto e respeito por Celeste: “mas foi a primeira vez na minha vida que tive
vontade de beijar um homem”, contudo tal expressar afetivo sugestiona a quebra da
heteronormatividade. A descrição dos olhos brilhantes e da boca trêmula de Celeste
prenunciam, no discurso, o desejo confesso de, pela primeira vez na vida heterossexual, beijar
um homem. Tal tensão entre a heterossexualidade e a homoafetividade é, como explicado por
Daniel Welzer-Lang (2001) um dos paradoxos da masculinidade hegemônica, paradoxo no
qual Meursault se insere. Isto é, o próprio território da identidade de gênero e da sexualidade
não se desenha sem conflitos e tensões. Por este ângulo, Meursault não é aqui apontado como
um personagem “transculturado” porque apenas validaria e ao mesmo tempo paradoxalmente
contestaria sua masculinidade hegemônica em seus atos na narrativa, mas também e,
sobretudo, porque a própria noção de masculinidade com a qual dialoga é conflitante e
paradoxal, gerada e geradora de pontos de tensão que convivem harmônica e
desarmonicamente. É nesse aspecto que o narrador pode ser lido como um “estrangeiro-
sujeito transculturado”.
É curioso como, ao cindir a heteronormatividade, desejando homoafetivamente beijar
Celeste, o personagem já imediatamente se reposiciona com identidade heterossexual na
forma um tanto permeada por libido como descreve Marie no tribunal, que irá depor em
sequência ao “amigo”:

Marie entrou. Pusera um chapéu e estava ainda muito bonita. Mas eu gostava mais
dela de cabelos soltos. Do lugar onde estava, eu adivinhava o peso leve dos seios e
reconhecia o lábio inferior, sempre um pouco inchado. Parecia muito nervosa
(CAMUS, 2016, p. 97)
A mulher branca, novamente, é referenciada na sua condição de imagem ornamental (usa
chapéu, está bonita) e sexualizada: cabelos, lábios, o peso dos seios, o que sugere, numa
mesma cena em seu julgamento por assassinato, a alternância de desejo em Meursault: entre o
masculino (com afeto e respeito) e o feminino (objetificado em imagem corporal). Desse
modo, Meursault é estrangeiro: sujeito de um diálogo “entre forças e práticas hegemônicas e
170
contra-hegemônicas” (WALTER, 2015, p. 621). Entre ser réu na própria história e
proprietário da própria história narrada, entre ser francês e corromper o que é francês, entre
ser assassino de um árabe e filho “desnaturado”, entre diversos afetos e desejos, entre um
destino solar e uma masculinidade hegemônica de uma cultura ocidental e patriarcal, na
fronteira e em múltiplos lugares conflitantes, entre ser colono e violentar o colonizado e criar
um discurso narrativo que denuncia a própria violência colonial está “o estrangeiro”
Meursault. Assim, O estrangeiro coloca sob a ponte da ficção entre os seus variados leitores o
sujeito que narra nos “locais da cultura”, na expressão de Bhabha: “no momento de trânsito
em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão ... aqui e lá, de todos os lados,
para lá e para cá” (BHABHA, 2002, 19). Assim, mais do que nos apontar um sujeito “fora” da
sociedade francesa, como interpretou a crítica sartreana e a longa tradição de intérpretes que o
replicou, convido a se refletir, sob a luz da ficção argelina de Daoud, que nos aponta
caminhos críticos diversos, sobre o fato de que a obra de Camus pode conduzir a reflexões
sobre “o ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 2002, p.20).

4.3 A MATERNIDADE EM O ESTRANGEIRO: PERIFERIZADA E POLISSÊMICA

Levantei em item anterior a peculiaridade de o narrador daudiano iniciar sua primeira


frase na obra O caso Meursault (2013) “parodiando” (HUTCHEON, 1991) a fala do narrador
de O estrangeiro: “Hoje, mamãe ainda está viva”. Nesta secção, guiada pelo romance argelino
e sua predisposição em fazer retornar a imagem da mãe, pretendo refletir sobre a presença
materna no clássico francês de Camus, um tanto marginalizada pelos seus intérpretes. Estes,
ainda que a tenham citado, na maioria das vezes, se ativeram em ressaltar e confirmar a
existência de uma “frieza” no caráter de um filho como Meursault, que vai à praia, que vai ao
cinema e faz sexo com uma “namoradinha” no dia seguinte ao enterro da matriarca, e o que,
por seu turno, o qualificaria como “estrangeiro”, rebelde por completo às regras sociais
francesas, o que o legitimaria como “homem absurdo” na linha filosófica de O mito de Sísifo
(2018a). Observo que a maioria dos críticos, alude à importância da mãe para a justiça
criminal francesa na obra, porém pouco a exploraram enquanto personagem polissêmico tal
qual se apresentaria no texto.
Como a obra, que pode se chamar de “crítica-ficção” (FELINTO, 1999) de Kamel
Daoud sugere, a mãe francesa do assassino Meursault e a mãe argelina da vítima, “árabe”
171
agora nomeado Moussa, podem ser reconvocadas à literatura e revisitadas criticamente, tendo
seus papéis suplementarmente investigados em cada romance. Por ora, passo a apontar pistas
dos significados nem sempre trazidos à tona a respeito da “Sra Meursault”, a qual, assim
como os sujeitos subalternizados da narrativa, o “árabe”, “a moura”, não recebe a dignidade
subjetiva de um nome próprio na narrativa, figurando apenas de modo genérico como
“mamãe”. A maternidade em Kamel Daoud será focalizada, por sua vez, de modo mais direto,
no próximo capítulo de número 4, no qual me detenho à análise de variados aspectos
particulares de sua paródia de O estrangeiro (HUTCHEON, 1991).
Já foi mais que comentado anteriormente que a personagem “mamãe” não recebe os
devidos “créditos” dos críticos pelo motivo de que a crítica, por seu turno, veio se desenhando
com olhares falocentrados e voltados para a filosofia existencialista do pós-guerra, ou seja,
para a epistemologia ocidental e seu poder colonial de irradiação científica (QUIJANO,
2008). Mesmo Edward Said, como foi analisado no seu parecer sobre Camus em Cultura e
imperialismo (1993), a partir de sua leitura decolonial, não reparou na potência polissêmica da
maternidade como sema importante para o capitalismo imperialista na trama literária. Esta é a
chave de leitura que desejo arquitetar: a maternidade, na obra de Camus, guardaria também
significados relacionados com o patriarcalismo que sustenta, por sua vez, o capitalismo e as
relações coloniais (QUIJANO, 2008; LUGONES, 2008). Também, a maternidade pode ser
considerada na obra numa perspectiva que faz interagir literatura e psicanálise, linha de
pensamento que aqui pode vir a ser mencionada, mas não exatamente explorada como cerne
do debate, pois me interessa, dentro da minha linha de pesquisa em estudos Pós-coloniais,
bem mais elaborar uma “cadeia demonstrativa com a qual se construa o argumento crítico”
(LIMA, 1981, p. 64) sobre a questão social das representações de gênero na literatura
camusiana, do que propriamente sobre meandros da psiquê no texto.
Havendo, esclarecido os pontos acima, reflito, então, sobre “mamãe” em O
estrangeiro. Inicio por sua aparição justo na primeira parte da história: na primeira linha da
narrativa de Meursault. Como explica Culler (1999) acerca da teoria da narrativa, partindo dos
Formalistas Russos, há de ser reconhecida a diferença entre história e discurso, sendo o
discurso o fio condutor da apresentação da diegese e o responsável pela articulação da
narrativa, de sua sequência e sua temporalidade. Tendo o detalhe teórico em mente, como
leitores, é possível compreender que Meursaul é o sujeito que enuncia e, assim, escolhe por
qual evento iniciar o relato. O personagem teria várias possibilidades de começar, por
exemplo: a) pelo assassinato do “árabe”; b) pelo seu julgamento; c) pelo momento em que se
172
vê condenado pós-julgamento e dialoga em sua cela com um padre; d) pelo banho de mar com
Marie; enfim, na condição de autoridade narrativa, ele dispunha de “n” maneiras de começar,
contudo inicia por “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama
do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isso não esclarece nada.
Talvez tenha sido ontem” (CAMUS, 2016, p. 13). Tal particularidade revela que a memória
narrativa de Meursault, pinça a morte da mãe como elemento que encabeça aquilo que ele
deseja contar, que orienta aquilo que seu leitor deve escutar em primeiro plano na sua vontade
se ser ouvido: “Hoje mamãe morreu”. O narrar é atravessado pelo que a mente lembra e,
como bem atesta Todorov, em Los abusos de la memória (2000, p. 16): “a memória como tal,
é forçosamente uma seleção: alguns aspectos de sucesso serão conservados, outros imediata
ou progressivamente esquecidos”. Nesse sentido, mamãe morta é “conservada” em absoluto
primeiro plano, exatamente no primeiro período do texto. É o sujeito “mamãe” que, sendo o
primeiro citado, primeiro define, face aos leitores, a condição de Meursault como narrador
protagonista. Ela e ele, no imediato primeiro verbalizar de “mamãe”, se estabelecem
simultaneamente como personagens da narrativa. Assim se assevera a importância materna na
obra e sua simbiose com a identidade do sujeito narrativo.
Portanto, visivelmente, a narrativa meursaultiana, isto é, a sua vontade de dizer
primeira, passa por trazer sua mãe à baila, o que remarca a importância da personagem
materna e o que impele leitores atentos de O estrangeiro a olharem para esta imagem e seus
significados construírem. Ocorre que faz parte desta pesquisa chamar atenção para o fato de
que a persona da mãe, historicamente, é mesmo pouco vista como sujeito de múltiplos
sentidos na cultura patriarcal ocidental que ainda permeia a mente dos receptores de romances
em parte marjoritária. Para esta cultura hegemônica, a “mãe” não representa tanto um sujeito
de uma individualidade peculiar com seus anseios, temores, desejos, sexualidade, etc. Ela é,
em uma acepção tomada, quase sempre, como generalizada, a “mamãe”, sujeito que deveria
performar com práticas ritualizadas na moral: gestar, parir, amamentar e cuidar das crianças,
encontrando em tais tarefas, que seriam “naturais” de seus instintos, o sentido de sua vida e de
sua felicidade dentro do seio da família burguesa (BADINTER, 1985).
Na França e no Ocidente, tal performatividade do “cuidado” indissociado à mulher na
condição de mãe toma formas mais normativas, na modernidade, a partir do final do século
XVIII, como argumeta Elisabeth Badinter em Um amor conquistado: o mito do amor materno
(1985). A pesquisa de Badinter é de significativa contribuição para se refletir sobre as
representações históricas e ideológicas que moldaram a figura materna, sendo considerada,
173
aqui, como referência estruturante das discussões teóricas em torno da mãe dentro do universo
da Literatura. A autora francesa (1985) explica, primeiramente, que a maioria das visões sobre
a maternidade foram tecidas por teóricos homens ao longo da História (Aristóteles, Santo
Agostinho, Descartes, Rousseau, etc) e estes, quase sempre convertidos à ideologia do
patriarcado uniformizaram, cada um ao modo dos interesses de seu tempo, a figura feminina
materna como um indivíduo de identidade sem individualidade. Sendo assim, a figura
materna carecia de uma interpretação que partisse de uma perspectiva crítica feminista de
estudos de gênero que a problematizasse, ao longo das épocas, como uma figura de
sentimentos e escolhas individuais que se relacionariam com as imposições da cultura, muito
mais que da “natureza”.
Antes do século XVIII, argumenta Badinter, a maternidade na França, obedecia à
cultura do Antigo Regime, à cultura do poder pátris, da igreja como controladora das
identidades e vontades. Tal conjuntura seria resumida nos seguintes aspectos principais: a) o
homem pai detinha o poder sobre a vida da esposa e dos filhos; b) os filhos eram considerados
pelos discursos filosóficos (como em Descartes) seres inferiores, espúrios pela irracionalidade
que lhes era atribuída, e pelos escritos católicos, como os de Santo Agostinho, por exemplo,
eram vistos como frutos do pecado sexual, não sendo valorizados ou queridos, mas
“diabolizados” e encarados como motivo de tensão social: “vista desse ângulo, a infância é a
antitranscendência divina, a punição do homem ... ao nos distanciar de Deus e de sua
perfeição. Erro ou pecado, a infância é um mal” (BADINTER, 1985, p. 64); c) as mães,
subalternizadas à dominação masculina, deviam exclusividade às vontades do pai e do
marido, este que, inclusive, costumava requerer a posse de seus corpos para usufruto servil
exclusivo, fosse no trabalho agrícola no campo e no lar, fosse na prestação de serviços
sexuais, a depender da classe.
Para refletir sobre as transformações nos papéis de gênero e de trabalho doméstico,
associado este à figura feminina e, nos séculos XVIII e XIX, sobretudo, às mulheres mães,
Badinter discute a questão das representações e discursos sobre amamentação e cuidado com
as crianças. As visões sobre o trabalho de amamentar, remarco, ainda que este não seja uma
prática verbalizadamente vivenciada pelas personagens maternas das obras em análise, se
fazem interessantes de serem pontuadas para que se vislumbrem certos lugares e sentidos
destinados à figura materna dentro da lógica da Matriz colonial do poder, atravessada por
pilares como capitalismo, racismo e patriarcado (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2008); lógica
esta que, sim, se mostra, como venho argumentado aqui, um elemento presente nos romances
174
estudados. No panorama levantado, então, pela filósofa francesa, que considera a história da
maternidade na França do Antigo Regime, passando pela modernidade imperialista e
chegando à contemporaneidade, há mudanças nos discursos masculinos sobre maternar e na
própria maternagem hegemônica que podem ser aqui trazidas como ponto de reflexão em
torno da maternidade em O estrangeiro e sobre como esta é valorizada e defendida pela
justiça francesa no julgamento de Meursault.
Até ao Antigo Regime, mostra ela, as crianças eram consideradas um verdadeiro
estorvo às famílias e à sociedade, enviadas, dessa maneira, assim que nasciam para amas de
leite, localizadas em zonas periféricas e rurais em relação à capital. Uma mãe amamentar o
próprio filho não era indicado neste período, inclusive, porque se acreditada que um possível
laço afetivo entre mãe e bebê estabelecido nos acalantos do colo feminino, geraria uma
criança “fraca”, “manhosa”, mimada e improdutiva. Nesse sentido, delegar a amamentação a
outra mulher se tornou comum e conveniente à cultura do Antigo Regime, não sendo o amor
materno um sentimento enaltecido ou cobrado naquele período. As amas de leite eram
mulheres de classe baixa, cujos corpos serviam, inicialmente, às famílias aristocráticas. As
agências de amas de leite, sublinha a pesquisadora, datam na França desde o Século XIII, mas
por volta do início do século XVIII, a prática já havia se popularizado, de modo que muitas
das famílias contratantes do serviço de amamentação fora de casa não eram mais
necessariamente abastadas. O que se fortalecia, então, era o hábito de separar parte da renda
familar para contratar as amas de leite, já que era culturalmente um padrão a prática de
“terceirizar” a criação do estorvo criança, indesejado no seio familiar, para dele se livrar.
Livres da amamentação e do cuidado, as mães biológicas, se aristocráticas, se entregavam a
uma vida confortável e afeita a festas e a bebidas, à leitura; as menos abastadas, por seu turno,
poderiam vagar sua força de trabalho para dedicarem-se ao cuidado do próprio lar ou da
colheita, bem como guardar sua atenção para servir ao marido de todas as formas, os quais
costumavam reclamar a exclusividade de seus corpos, de seu seio (sexualizado) apenas para
si.
As amas de leite eram, dentro dessa lógica, mão-de-obra barata do cuidado, que,
muitas vezes, por também procriarem e terem filhos, até contratavam suas próprias amas de
leite, pagando ainda menos em relação àquilo que recebiam, com o intuito de garantirem o
próprio sustento a partir de seus seios. Badinter registra que, durante o ápice da amamentação
terceirizada, a mortalidade infantil na França era altíssima. As condições precárias em que
viviam as amas de leite, por sua vez, precarizavam os cuidados com as crianças, que, frágeis,
175
vinham a óbito sem que o caso obrigasse os pais a reverem a prática de contratação das amas
de leite. Muitas crianças eram comidas por animais dentro das fazendas, morriam subnutridas
porque eram mal alimentadas, uma vez que as próprias amas as deixavam sós para poderem
trabalhar em seus afazeres fora de casa. A autora chega à minúcia de descrever uma espécie
de método de “enrolar” os bebês em panos com nós que lhes comprimiam o abdômem para
que não pudessem chorar e incomodar as amas ou atrair animais para dentro de casa que
pudessem lhes atacar; a prática gerava doenças gástricas e deformações ortopédicas. Muitos
infantes eram alimentados com chifres bovinos sem a devida higienização necessária; também
costumavam ser pendurados em pregos dentro de casa pela roupa, passando horas sozinhos
até que as amas, tendo finalizado tarefas domésticas pudessem lhes prestar assistência. A
máquina de alimentar o ego das famílias francesas através da delegação de cuidados infantil
dos infantes, sendo assim, era uma verdadeira máquina de matar sem que alguma repressão
moral interferisse no quadro, pelo contrário. Tudo se passava tranquilamente, sendo,
inclusive, apoiado pelos alicerces ideológicos do Antigo Regime: a igreja, a cultura patriarcal,
o sistema econômico.
Tais detalhes são descritos em Um amor conquistado (BADINTER, 1985) para que se
compreenda que é, de fato, no final do século XVIII, a serviço das transformações
econômicas e culturais daquele tempo, que novos autores, homens franceses, como Rousseau,
em O Emílio, além de figuras institucionais, como chefes da polícia, ou médicos, vêm
transformar, em seus discursos, as mentalidades a respeito da figura da criança e,
consequentemente, da mãe e seus “novos” deveres. Esta se torna, decaído o Antigo Regime,
base necessária para o cuidado das crianças, figura que, agora, com a ascensão da burguesia,
com a empresa industrial em desenvolvimento e com o imperialismo em ordem sobre as
novas colônias, tem sua importância completamente modificada para representar o novo ícone
do desenvolvimento nacional e do futuro próspero da economia imperialista, que se vê cada
vez mais capitalista. O raciocínio era o de que mais crianças saudáveis, bem cuidadas e
alimentadas poderiam reduzir gastos do Estado e gerar várias fontes de lucro e hábitos de
consumo nas famílias, até ser oportuno para constituir uma nova população a ser exportada
para os novos territórios dominados pela pátria. Explica Badinter:

Se outrora insistia-se tanto no valor da autoridade paterna, é que importava antes de


tudo formar súditos dóceis para Sua Majestade. Nesse fim do século XVIII, o
essencial, para alguns, é menos educar súditos dóceis do que pessoas, simplesmente:
produzir seres humanos que serão a riqueza do Estado. Para isso, é preciso impedir a
qualquer preço a hemorragia humana que caracteriza o Antigo Regime.
176
O novo imperativo é portanto a sobrevivência das crianças. E essa nova preocupação
passa agora à frente da antiga, a do adestramento daquelas que restavam após a
eliminação das mais fracas. As perdas passam a interessar o Estado, que procura
salvar da morte as crianças. Assim, o importante já não é tanto o segundo período da
infância (depois do desmame), mas a primeira etapa da vida, que os pais se haviam
habituado a negligenciar, e que era, não obstante, o momento da maior mortalidade.
Para operar esse salvamento, era preciso convencer as mães a se aplicarem às tarefas
esquecidas.
Moralistas, administradores, médicos puseram-se em campo e expuseram seus
argumentos mais sutis para persuadi-las a retornar a melhores sentimentos e a "dar
novamente o seio". Parte das mulheres foi sensível a essa nova exigência. Não
porque obedecessem às motivações econômicas e sociais dos homens, mas porque
um outro discurso, mais sedutor aos seus ouvidos, esboçava-se atrás desse primeiro.
Era o discurso da felicidade e da igualdade que as atingia acima de tudo (1985, p.
146 -147).
A pesquisadora adverte ainda que, frequentemente violentadas, subalternizadas na vida
pública, as mulheres enxergaram na maternagem uma alternativa de obterem certo prestígio
junto à sociedade. Ela destaca, em seguida, o discurso econômico e a colonização na
reformulação da mentalidade em torno das crianças e da materninade:

A verdade é que a criança, especialmente em fins do século XVIII, adquire um valor


mercantil. Percebe-se que ela é, potencialmente, uma riqueza econômica. Ouçamos
Moheau falar, pois não se poderia ser mais claro: "Se há príncipes cujo coração
esteja fechado ao grito da natureza, se vãs homenagens lhes puderam fazer esquecer
que seus súditos lhes são semelhantes... eles deveriam pelo menos observar que o
homem é ao mesmo tempo o último termo e o instrumento de toda espécie de
produto; e mesmo considerado apenas como um ser que tem um preço, é o mais
precioso tesouro de um soberano." ...
O ser humano converteu-se numa provisão preciosa para um Estado, não só porque
produz riquezas, mas também porque é uma garantia de seu poderio militar. Em
conseqüência, toda perda humana passa a ser considerada um dano para o Estado.
Em 1770 Diderot resume a nova ideologia nos seguintes termos: "Um Estado só é
poderoso na medida em que é povoado.. em que os braços que manufaturam e os
que o defendem são mais numerosos."
Nessa nova óptica quantitativa, todos os braços humanos têm valor, mesmo os que
outrora eram vistos com certo desprezo. Os pobres, os mendigos, as prostitutas e,
certamente, as crianças abandonadas tornaram-se interessantes enquanto forças de
produção em potencial. Por exemplo, podiam ser enviados para povoar as colônias
francesas, grandes reservatórios de riquezas que esperavam apenas braços sólidos
para dar seus melhores frutos. (1985, p. 153-154).
A mulher na condição de procriadora, desse modo, passa por dois processos impostos
pela mudança ideológica: a) é recriminada pela sociedade se a família continuar a utilizar
amas de leite, porque a prática significa mortalidade de um ente agora visto como gerador de
prosperidade econômica para a nação, devendo o próprio marido controlar sua liberdade
(dela) e conduzi-la à amamentação para mostrar-se um chefe do lar viril e, simultaneamente,
cidadão humanizado e colaborador do bem nacional; b) encorajada a amamentar, ela é
condicionada a exercer o papel de cuidado, acima de qualquer outra ocupação fora da casa, a
177
performar como mãe amorosa sob pena de ter sua imagem arranhada, inferiorizada face à
sociedade, caso resistisse a esse papel, agora “naturalizado” pelos discursos vigentes, de
cuidar e prover amor ao filho, enaltecendo qualquer sacrifício daí decorrente.
Cito, em seguida, Badinter a comentar a discussão dominantemente masculina sobre
maternidade que, na tentativa de convencer as mulheres de seu destino materno e “leiteiro”,
oferecia algumas promessas de “benefícios”, assim entendidos naquele circuito patriarcal:
beleza, felicidade, carinhos dos filhos e maridos mais fiéis. Segue trecho:

Como as mulheres se queixavam de que a amamentação as cansava, estagnava-lhes


os seios e lhes dava mau aspecto, fez-se o elogio da beleza das lactantes. Alguns
admiravam a frescura de sua pele, outros as proporções de seu peito e a aparência
saudável que tinham. Ainda no século XIX, o doutor Bochard afirma que se os
poetas, os historiadores e os pintores celebram a beleza das gregas e romanas, é
porque elas amamentaram seus filhos. ... Todos esses homens que se dirigiam às
mães se põem de acordo para dizer que não há ocupação mais agradável do que
zelar pelos filhos. Prost, o chefe de polícia, adora um tom comovente ao evocar os
prazeres da maternidade: “A voz da natureza se fez ouvir no coração de algumas de
nossas jovens mulheres. Prazeres, encantos, repouso, elas tudo sacrificam. Mas que
elas nos digam se as inquietudes e as privações de seu estado não constituem um
prazer como todos os proporcionados pelo amor. ...
Os mesmos argumentos são usados pelo médico Gilibert, que enfatiza com mais
força o contraste entre as agruras da maternidade e a felicidade que a mulher delas
obtém. Como Prost, Royer e Freud um século mais tarde, ele evidencia a qualidade
masoquista da mãe que agora encontra o seu prazer na dedicação absoluta. Ouçamo-
lo: “Segui essas mães que ama-mentam os filhos. Elas esquecem todos os objetos de
seu prazer. Atentas unicamente aos filhos, passam as noites sem dormir, suas
refeições são tomadas à pressa, só comem o que sabem ser propício a um bom leite;
todas as horas de seu dia são empregadas em lavar, limpar, aquecer, distrair,
alimentar, fazer dormir o objeto do seu amor. Todos os que lhe cercam olham-na
com piedade. Julgam-nas as mais infelizes das mulheres.”
Todo esse longo discurso anuncia que não nos devemos fiar nas aparências, pois, na
realidade: “Essas mães encontram um prazer indefinível em tudo que lhes parece
desagradável quando moças; fazem com alegria o que então lhes provocava repulsa”
(BADINTER, 1985, p. 191-192).
Do último quartel do século XVIII em diante, como se nota acima, a própria noção de
dignidade social feminina e de felicidade foram forjadas sob o signo da maternidade amorosa,
para que mulheres, antes habituadas a estarem libertas, via exploração das amas de leite, das
suas crianças (estorvo da família no Antigo Regime), passassem a desejar exercer
pessoalmente o papel de mãe zelosa, tão estruturalmente valioso, nesta nova configuração
histórico-econômica, à engrenagem capitalista e à manutenção do sistema patriarcal, o qual
continuava a incutir a divisão do trabalho para que homens permanecessem no domínio da
política e da vida externa e para que mulheres acumulassem tarefas domésticas, a serviços
deles, do Estado e da economia liberal de combustível imperialista.
178
Como as palavras masculinas recortadas na análise de Badinter podem atestar: a
mulher na condição de mãe estaria naturalmente interessada em anular sua individualidade
por um “outro”, que não ela própria: a criança. Cuidar do filho renderia beleza e a fidelidade
do “pai”, reconhecimento familiar e social, itens norteadores exclusivos de sua felicidade e
que compensariam seu sofrimento e cansaço neste trabalho. A maternagem identificaria o
sujeito feminino como figura que é, vive e atua em função do outro. A parcela “manutenção
de uma existência independente” fora desse cerco relacional a filho e marido é, dessa forma,
diminuída, ao passo que “a generalidade natural de um eu feminino despersonalizado”, para
viver, mesmo que masoquistamente, para cuidar do outro é ampliada e enaltecida. Traçando
um paralelo entre o quadro e O estrangeiro, daí se compreende que a mãe de Meursault não
tenha recebido na narrativa o direito à identidade individual proferida por um nome próprio.
Na condição de “filho-narrador”, ele faz com que ela seja designada genericamente como
“mamãe”. É preciso sublinhar que a personagem atravessa toda a obra, na fala de todas as
demais personagens, identificada pelo título de “mãe”, “a própria mãe”, “sua mãe”, já que o
sujeito feminino que carrega a maternidade raramente é visto com autonomia, mas sempre
como uma posse “de outro”. Na verdade, a mãe é tão comumente vista genericamente como
“genitora” e “cuidadora”, que falta até iniciativa por parte da crítica (falocentrada) do
romance camusiano em aprofundar a investigação sobre os seus múltiplos sentidos possíveis
no texto. Periferizada, mas polissêmica, aqui a personagem ganhará relevo para que sejam
refletidas as relações entre as duas obras em cotejo comparativo.
Retomando Badinter, em sua pesquisa, ela remarca que até houve resistência por parte
de alguns grupos femininos na época em que tais falas se tornavam correntes, sobretudo em
grupos aristocráticos, que se recusavam a maternar nesses novos termos masoquistas
interferentes na liberdade feminina em relação ao cuidado com as crianças. Todavia, a
gestação da ideia de “felicidade” feminina condicionada a amar e a cuidar da prole,
massivamente disseminada em discursos filosóficos, religiosos, políticos, midiáticos, acabou
ganhando cada vez mais força, a ponto de se verter em hegemônica na cultura francesa,
contribuindo, pois, para estruturar as bases econômicas e imperiais do país em expansão. A
maternidade passou a ser elogiada como fomento da nação e de sua prosperidade político-
econômica, dos valores da cultura, todos comandados por homens. Reforça a autora: “os
homens foram melhores defensores da causa das mães, a menos que, através desse artifício,
não tenham defendido na realidade senão a própria causa” (BADINTER, 1985, p. 193).
179
Nessa conjuntura ora explanada, a maternidade, portanto, não se faz entendida aqui
como uma mera atividade braçal ou afetiva natural, mas como um campo ideológico, uma
construção cultural, condição de gênero que se faz alicerce da economia moderna ocidental.
As mulheres de fins do XVIII, ainda que tenha havido certa resistência de muitas, ocuparam o
lugar de “cuidadoras”. Fosse pela própria anuência, já que entendiam obter benefícios sociais
da condição, fosse pelo próprio desejo de maternar criado por discursos hegemônicos, e, aqui,
destaco, nesse sentido o prestígio dos discursos masculinos proferidos por filósofos, médicos,
estadistas. Diferentemente do Antigo Regime, na modernidade de então, a felicidade feminina
estaria sob esse outro signo do procriar com amor e zelo atualizado pelas novas necessidades
socioculturais. Vale recordar que este signo materno do cuidado, como mostra Gerda Lerner,
em A criação do patriarcado (2019), está, com suas particularidades reservadas, presente já
em tempos do Neolítico, período em que, afirma a historiadora americana, homens líderes de
tribos utilizavam a procriação e o corpo feminino como estratégia para gerar mais “cabeças”,
que viriam a fortalecer numericamente a comunidade em busca de sobrevivência frente a
disputas com outras tribos e diante, também, da natureza ainda hostil e tendo muito a ser
transformada pela técnica.
A tese de Badinter assim se delineia para elucidar que o amor materno não viria a ser
um sentimento natural e instintivo, como muito se difundiu ao longo de séculos nos mais
variados discursos hegemômicos e patriarcais produzido por homens intitulados ícones da
cultura ocidental e ratificado por parte massiva de mulheres. A própria expressão corrente
“mãe desnaturada”, desmitificada pela autora, está alicerçada nessa crença ideológica de um
amor naturalmente estabelecido entre mãe e bebê, que tomou cada vez mais fôlego em fins do
Século XVIII. Seu trabalho publicado na década de oitenta do século XX, desse modo,
contribui para os estudos de gênero (dentro da perspectiva feminista peculiar que concebe os
sujeitos como performativos de identidades relacionais), ao demonstrar, partindo do contexto
cultural francês, de que maneira a visão sobre a tarefa de maternar é uma arquitetura cultural
mediada pelas diversas ideologias vigentes em cada recorte histórico. Para Badinter, dentro
desse domínio, é importante que seja considerado que o amor materno funciona como um tipo
de sentimento que, sem ser instantâneo ou obrigatório, se faz uma possibilidade de construção
entre sujeitos históricos. Assim, não seria, portanto, passível de ser identificado como
resultado biológico de um instinto, muito menos causa absoluta da felicidade feminina.
Para a autora, é importante frisar que as mulheres não parem e amam automaticamente
ou necessariamente o filho, ou que seriam os únicos seres capazes de deles cuidar. Segundo
180
ela, as mulheres desenvolveriam seus variados afetos possíveis pela prole (amor, indiferença,
ódio, dependência, etc), e, mesmo, encampariam a tarefa do cuidado, à medida que a relação
tomaria paulatinamente forma dentro da cultura coletiva (e suas camadas de poder e
ideologia) emparelhada à e cocriadora da vida íntima. Chegar a essa premissa, a partir da
reflexão crítica acerca de discursos cunhados por homens ao longo da História, é uma
contribuição significativa para se questionar posições e papéis de gênero cristalizados na
sociedade, mantenedores de um ser e estar no mundo da figura feminina e materna carregados
de dominação e exploração dos corpos, do trabalho, carregados de tirania frente aos
sentimentos de mulheres (sujeitos históricos dotados de contradições) e à sua liberdade.
São dignos de congratulações, pois, os esforços e os resultados da pesquisa da autora,
os quais fornecem campo para que se reflita que a cultura em torno da maternagem, uma vez
modificada via discursos patriarcais no passado histórico, pode, novamente, se ressignificar
em termos feministas (como movimento teórico e político), não sendo esta cultura uma
determinação estática. Sua pesquisa fornece, assim, condições para que se teçam novas
interpretações da maternidade em variados discursos, sobretudo reinterpretações da
maternidade na ficção de autoria masculina ou feminina, ocidental ou periférica, e, em
especial, aqui, da revisão crítica da personagem “mamãe” no clássico francês O estrangeiro,
parodiado por Kamel Daoud em O caso Meursault (2013).

4.3.1 “Hoje mamãe morreu”.

Comentei acima sobre o uso do termo genérico “mamãe” por Meursault e sua relação
com a configuração ideológica da arquitetura econômica francesa em vias de imperialismo na
virada do século XVIII para o XIX. Sartre (2005) também o menciona, mas sua cadeia
analítica voltada para O mito de Sísifo (CAMUS, 2018a) não o explora em consonância com
problemas de gênero e colonização, nele envoltos em sua polissemia. Diz Sartre: “Ademais,
ele sempre denomina sua mãe terna e infantilmente como “mamãe” e não perde uma ocasião
de compreendê-la e de identificar-se com ela” (2005, p. 123). Gostaria de destacar aí dois
pontos comentados adiante.
Primeiramente, além do “infantil” e “ternamente” há campo para se perceber, depois
da referida pesquisa de Elisabeth Badinter (1985) que o uso generalizado que Meursault faz
de “mamãe” remonta à concepção cultural patriarcal de materninade que alimentou, desde o
fim do Século XVII, o capitalismo francês colonial, sendo a mãe um ser sem subjetividade,
181
autonomia, individualidade, por ser encarregada do “outro”, este fraturado em diversas
figuras: a criança, o marido, o Estado. Neste primeiro aspecto, fica visível que Meursault, nas
palavras escolhidas para designar sujeitos que, dominados, periferizados e sublaternizados,
estruturam as bases econômicas da França imperialista: a “mãe”, “o árabe”, “a moura”,
demonstra partilhar da visão de mundo da moralidade francesa hegemônica. Tal aspecto não
o torna completamente estranho ou “fora” dos jogos sociais patriarcais de seu tempo e
comunidade, como a leitura da sua condição de “homem absurdo” o faz crer ao longo da
tradição crítica de base ocidental.
Contraditoriamente, entretanto, Meursault é um personagem que, sim, em muitas
passagens da obra revela “indiferença” à morte da figura basilar da economia francesa: a mãe.
Cito Camus: “Pensei que em todo caso fora um domingo puxado, que mamãe agora estava
enterrada, que ia retomar o meu trabalho e que afinal de contas nada havia mudado” (2016, p.
32). São suas palavras ao final do capítulo dois do romance, mesmo capítulo em que conta aos
leitores que no dia seguinte ao enterro da mãe, vai divertir-se na praia, encontra uma
namorada (Marie), vai ao cinema ver uma comédia e faz sexo. Esses são atos que não são bem
vistos ou compreendidos em período de luto numa cultura francesa, que, como visto em
Badinter, aprendeu a “sacralizar” a figura materna, a colocá-la numa posição de importância
tal como eixo social da nação, ainda que a subjetividade da pessoa dentro da “couraça”
materna tenha sido negligenciada e irrelevante. As atitudes rebeldes a um luto moralmente
conhecido na sociedade por parte de Meursault, sim o equiparam a um indivíduo que não vê
na morte os mesmo sentidos que sua comunidade. Para Meursault, morrer e viver não têm (em
sua totalidade) os mesmos significados guardados pela sua comunidade. É nesse aspecto que
ele é identificado como “estrangeiro”, como estranho, como “protótipo do absurdo” e tal
parcela de sujeito absurdo em Meursault “dessacraliza” a maternidade, pela vivência de um
luto pela morte da mãe que congrega simultaneamente o que a moral interdita: o desfrute da
vida e seus prazeres carnais (a comida, o sexo, a sensibilidade ao mar, ao cinema, ao café com
leite, ao cigarro). A morte não muda, para Meursault, o sentido da vida, uma vez que a vida
não estaria presa a sentidos fixos daquela sociedade: Deus, paraíso, casamento, família, morte.
Essa é a filosofia camusiana em O mito de Sísifo (2018a) e é esta filosofia que é vivenciada,
em muitos trechos do romance pelo protagonista Meursault, mas não em todos. O absurdo é a
contestação do sentido moral vigente. Meursault não se mostra no texto em diálogo com o
“absurdo” o tempo inteiro. Sua identidade é fraturada, aparecendo lampejos dos valores
habituais da comunidade francesa, o que lhe confere uma atmosfera da “transculturação”
182
(WALTER, 2015), como destaquei em seção anterior deste capítulo. Nessas fraturas
identitárias, quando Meusault recusa o luto comum e mostra indiferença e a estaticidade de
sua existência frente à morte da mãe, a sua personagem oferece, como ente ficcional, uma
quebra com a sacralidade da figura materna, isto é, com sua concepção patriarcal e capitalista
indicada por Badinter na cultura francesa. O discurso de O mito de Sísifo (2018a) presente na
obra, na mentalidade do narrador Meursault, ataca, em certa medida, então, o patriarcado
capitalista alicerçado na mãe. Existe aí uma agressão a tal memória ideológica da
maternidade. Seria uma violência dupla: ao capitalismo francês e à figura materna que o
alicerça.
Em contrapartida, Meursault, mesmo que recuse viver um luto comum, “homem
revoltado” (CAMUS, 2018a; 2018b) que é, não deixa, como remarca Sartre (2005), de trazer
sua mãe ao texto com frequência, conferindo-lhe relevância como ente que permeia a sua
memória e seu desejo de narrar. Desse modo, paradoxalmente à sua violência à memória
materna, apontada acima, vigora também a reverência à mãe pela sua memória narrativa, que,
como dito, encabeça a história pela notícia da sua morte: “Hoje mamãe morreu”. O primeiro
capítulo em si é todo sobre o enterro de sua mãe. Em cada capítulo ele a referencia e sua força
no texto é recorrente e ponte para sua identidade fraturada, em tensão entre ser “homem
absurdo” e ser “cidadão de valores franceses hegemômicos”.
Apresento dois trechos na obra que evidenciam a dubiedade do narrador-personagem;
um em que a narrativa quer mostrar a identidade de Meursault como filho que desdenha a mãe
(trecho 1, o qual comento e apresento algumas digressões importantes a serem relacionadas),
outro em que seu afeto se faz entrever pelas palavras que seleciona (trecho 2).
Entrecorto, pois, o trecho 1, no qual Meursault novamente reinicia sua fala trazendo a
mãe protagonizando em sua memória, o que reforça a sua reverência a ela:

Hoje, trabalhei muito no escritório. O patrão foi amável. Perguntou se eu não estava
muito cansado e quis também saber a idade de mamãe. Para não incorrer em erro,
respondi “Uns 60 anos” e, não sei por que, ficou com um ar de alívio, parecendo
achar que se tratava de um assunto encerrado (CAMUS, 2016, p. 33).
É observável que, ao mesmo tempo, pelo sentido de “para não incorrer em erro,
respondi ‘Uns 60 anos’”, é uma passagem que denuncia como ele desconhece a idade exata da
mãe, o que o caracterizaria, possivelmente, numa leitura mais conservadora, como um filho
desafetuoso na sua cultura que enaltecia a maternidade masoquista, já que o personagem
mostra ignorar traços importantes da identidade da “mulher que o gerou e cuidou”, como seria
o traço da idade numa comunidade que valoriza, por exemplo, datas como aniversário e o
183
respeito pela memória dos ancestrais. Contraditório também é o retrato do “patrão”, sujeito
também sem nome (personagem tipo), que se por um lado apresenta preocupação em ser
“polido”, perguntando sobre a mãe morta do empregado, revela certo desdém por esta já estar
na casa dos 60 anos. Pode ser interpretado, pois, que para um sujeito “patrão”, a morta,
mesmo sendo uma “mãe”, não renderia tanto pesar, por ser uma mão-de-obra inválida, a qual
teria pouco a explorar e despesas a dar ao Estado, caso que revelaria as hipocrisias sociais
frente ao sujeito materno sacralizado.
É interessante destacar que Meursault, com frequência, seleciona narrar como os
demais personagens reagem à morte de sua mãe, descrevendo cenas em que estes desejam
apresentar seu respeito e seus “pêsames” pela sua perda. Raymond assim se comporta:
“Explicou-me, então, que soubera da morte de minha mãe, mas que era uma coisa que mais
dia menos dia tinha de acontecer. Essa era também minha opinião” (CAMUS, 2016, p.40); o
velho Salamano assim também o faz:

Disse-me que mamãe gostava muito do cão. Ao falar dela, chamava-a de ‘sua pobre
mãe’. Emitiu a opinião de que eu deveria sentir-me muito infeliz desde que minha
mãe morrera, e eu nada respondi. Acrescentou, então, muito depressa e com um ar
sem jeito, que no bairro me tinham criticado por tê-la mandado para o asilo, mas ele
me conhecia e sabia que eu gostava muito de mamãe. Respondi, não sei ainda por
que, que ignorava até o momento que me julgassem um mau filho por causa disso,
mas que o asilo me parecia uma coisa natural, pois não tinha recursos para mantê-la
comigo.
— Além disso — acrescentei —, havia muito tempo que ela não tinha assunto
algum para conversar comigo, e se entediava sozinha. — Sim — concordou ele —, e
no asilo pelo menos arranjam-se amigos. (CAMUS, 2016, p. 52).
O comportamento de compaixão pela morte da mãe do “outro” visível nas falas desses
personagens vai desenhando a importância da mãe, enquanto ser que gera, pare e cuida, que
abdica da própria individualidade pela felicidade de fazer o papel materno, supostamente
compensador, para aquela cultura francesa filtrada pela mente masculina do patrão, dos
vizinhos de Meursault. A mãe vai se delineando no texto como um bem importante para a
comunidade colona. O comportamento de Meursault diante de tal “bem” é que é peculiar, ora
o personagem rompe com a visível sacralidade da mãe, ora ele a reafirma como sujeito de
memória a narrar sua história e sempre trazer a figura materna como elemento inaulgural do
texto e recorrente em sua fala ao longo de toda a narrativa. A sombra da mãe está em O
estrangeiro, assim como está também em recorrência a presença solar. O que acontece é que
esta última foi mais comentada por uma crítica tradicional que esteve mais atenta a figuras
masculinas na trama que a femininas.
184
Ainda sobre a fala de Salamano, ela deixa a sugestão no leitor de que Meursault não
teria pela mãe o mesmo apreço que a comunidade francesa a ela atribui pelo fato de a ter
deixado num asilo. A resposta de Meursault ao velho mostra que essa sua atitude significa:
individualismo, liberdade e gestação de despesas ao Estado, entidade obrigada a se
responsabilizar pelas custas de seus idosos. Ao não cuidar da mãe, e, assim, ser um “mau
filho”, Meursault oneraria o Estado. Nessa conjuntura, parece evidente que, para o Estado
francês em solo colonial argelino, a mãe precisaria gerar filhos lucrativos na juventude e na
sua velhice ser assistida pela própria família, não pela instituição. Fica sugerido no texto que a
exploração da figura materna deseja ser total e sem custo ou sem qualquer ônus, de forma que
os valores morais da sociedade são significativos disciplinadores das relações afetivas que,
por sua vez, interferem nas riquezas da França.
A fala de Meursault em resposta à observação de Salamo sobre sua conduta duvidosa
pela comunidade como filho ainda releva como tais relações afetivas familiares não
apresentam harmonia: “havia muito tempo que ela não tinha assunto algum para conversar
comigo, e se entediava sozinha”. Nesse ponto, o narrador camusiano joga na face do leitor as
fraturas da família, instituição de unidade “harmoniosa”, muitas vezes forjada pela política
governamental, para que esta possa manejar seus interesses políticos, os quais, como muito se
vem ressaltando aqui, envolve também problemas de gênero.
É curioso notar no romance sua incessante ambiguidade quanto a várias questões que
envolvem o julgamento da comunidade em face da relação que Meursault estabelece com a
mãe. Ora há a sugestão de que ele seria mau filho por deixar a mãe no asilo, ora os
personagens compreendem sua atitude, mostram-se complacentes e também a naturalizam.
Destaco a fala acima de Salamano: “— Sim — concordou ele —, e no asilo pelo menos
arranjam-se amigos” e cito o diálogo entre o protagonista e o Diretor do asilo no momento do
enterro da Sra Meursault:

Consultou uma pasta e disse-me: — A Sra. Meursault entrou aqui há três anos. O
senhor era seu único apoio. — Achei que me estava censurando por alguma coisa e
comecei a explicar-lhe. Mas ele me interrompeu: — Não tem de justificar-se, meu
filho. Estive lendo o dossiê da sua mãe. O senhor não podia prover o seu sustento.
Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, afinal, ela era mais
feliz aqui. — Sim, Sr. Diretor — concordei. — O senhor sabe — acrescentou ele —,
aqui ela tinha amigos, gente da mesma idade. Podia partilhar com eles interesses de
outros tempos. O senhor é jovem e ela certamente se entediava na sua companhia.
Era verdade. Quando estava lá em casa, mamãe passava todo o tempo a me seguir
em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo chorava muitas vezes. Mas era
por causa do hábito. Ao fim de alguns meses teria chorado se a tirassem de lá, tudo
por causa do hábito. Foi um pouco por isto que no último ano quase não fui visitá-la.
E também porque a visita me tirava o domingo, sem contar o esforço para ir até o
ônibus, pegar as passagens e fazer duas horas de viagem (CAMUS, 2016, p. 14-15).
185
A citação revela o rondar de um “mal-estar” social em se deixar uma mãe enfrentar a
experiência do asilo, mas imediatamente alude à fragilidade das relações afetivas familiares e
ao distanciamento entre mãe e filhos. O diálogo também demonstra que Meursault insiste em
descrever em seu discurso narrativo certa indiferença afetiva em relação à mãe, apontando-a,
inclusive, como um estorvo, caso precisasse perder o domingo de folga para visitá-la.
Confessa aos leitores a sua individualidade e seu desejo genuíno de cuidar apenas de si, não
da mãe envelhecida, confessa sua escolha de não visita-la mesmo diante de seu choro
constante. A filosofia do absurdo presente na mentalidade de Meursault, baseada na ideia de
que a humanidade repete os mesmo atos diariamente sem sentido, assim como Sísifo empurra
a sua pedra em O mito de Sísifo (CAMUS, 2018a), permite ao personagem que este se libere
pra não visitar a mãe. Os sentimentos não teriam um sentido dentro da lógica sísifica, seriam
resultados mecanizados de nossos rituais cotidianos. Dentro dessa lógica filosófica, “mamãe”
encontraria novos hábitos e, como filho, Meursault estaria liberto das convenções sociais de
retribuir o cuidado materno, sobretudo para desfrutar do que ao “homem absurdo” parecia ser
útil, como explica Caio Caramico Soares (2010): a sensorialidade do corpo: banho de mar,
sexo, cigarro, comida, o prazer da matéria e do presente.
Feitas as anunciadas digressões sobre o trecho 1, discorro sobre o trecho 2 acima
mencionado como ponto relevante para se reconhecer as ambiguidades do personagem
Meursault decorrentes de suas relações com a mãe. Trata-se de uma conversa no capítulo 1 da
Segunta parte da narrativa travada com seu advogado de defesa, que precisava entender seu
caso e preparar sua arguição frente à justiça. Segue trecho 2:

Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se naquele dia eu sofrera. Esta pergunta me


espantou muito e parecia-me que ficaria muito constrangido se tivesse de fazê-la a
alguém. Entretanto, respondi que perdera um pouco o hábito de interrogar a mim
mesmo e que era difícil dar-lhe uma informação. É claro que amava mamãe, mas
isso não queria dizer nada. Todos os seres normais tinham em certas ocasiões
desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Nesse ponto, o
advogado me interrompeu e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que
não diria isto no julgamento, nem ao juiz. Expliquei-lhe, no entanto, que o meu
temperamento era este — meus impulsos físicos perturbavam com frequência os
meus sentimentos. No dia em que enterrara mamãe, estava muito cansado, e com
sono. De forma que não me dei muito bem conta do que se passava. O que podia
afirmar, com toda a certeza, era que preferia que mamãe não tivesse morrido. Mas o
advogado não se mostrou satisfeito. — Isso não basta — comentou ele. Refletiu um
pouco. Perguntou-me se ele poderia dizer que, no dia, eu controlara os meus
sentimentos naturais. — Não, porque não é verdade — respondi.
Olhou-me de modo estranho, como se eu lhe inspirasse uma certa repulsa. Disse-me,
quase maldosamente, que, de qualquer forma, o diretor e os funcionários do asilo
seriam ouvidos como testemunhas, o que “poderia me deixar em maus lençóis”.
Comentei que essa história não tinha nenhuma relação com o meu caso, mas ele me
186
respondeu que era óbvio que eu nunca me envolvera com a justiça (CAMUS, 2016,
p. 69).
No trecho, dois aspectos necessitam ser salientados: a questão do afeto e a questão da
justiça francesa. Passo a analisá-los por parte.
Sobre afeto. O sentimento de amor pela mãe é deixado transparecer por parte do
narrador personagem, o qual, insistentemente, precisa em sua narrativa, de modo
contraditório, apresentar simultaneamente certa aparência de indiferença junto a ela.
Depreende-se do texto certo esforço do narrador em se descrever como rebelde à moralidade
instituída. Esse movimento pendular do protagonista delineia a sua condição conflitante, seja
na posição de filho (que ama a mãe e despreza sua morte), seja na de sujeito social (que segue
o código hegemonizado e que o recusa): “É claro que amava mamãe, mas isso não queria
dizer nada”.
A cena citada acima sugere, por parte do narrador, também uma fissura no próprio
construto cultural hegemônico de determinar, linear e harmonicamente, uma estrutura de amor
inabalável à figura familiar materna, quando sugere o “inconfessável” pela massa social e
suas características interdições discursivas (FOUCAULT, 1996) (“Todos os seres normais
tinham em certas ocasiões desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam”). O
próprio advogado demonstra se sentir “agitado”, pela descrição, incomodado com o aforismo
de Meursault e reforça a interdição (“Obrigou-me a prometer que não diria isto no
julgamento, nem ao juiz”). “Nem ao juiz”, traduz-se: nem àquele para quem
institucionalmente deve ser dito o que se consente como “a verdade”.
O excerto se faz mais interessante, ainda, se analisado pela perspectiva do diálogo
interposto entre narrativa e leitor, considerando a prefiguração dos valores ideológicos
possivelmente patriarcais frente ao materno deste último sugeridos no texto camusiano. A
cena se faz notável quando o apontado caráter “estrangeiro” de Meursault, tal como este aqui
é compreendido, isto é, dotado de tensão transcultural (WALTER, 2015) – leia-se: revelador
de contradições e conflitos interiores entre repulsar e reafirmar os códigos hegemômicos
sociais – é verbalmente descrito pelo narrador como uma tendência de “todos os seres
normais”. Ou seja, para Meursault, não haveria cidadão francês que, por completo, estivesse
totalmente dentro do que a moralidade disciplinante impõe no quesito amar pessoas e, no
caso, amar a mãe.
Em trecho que aparece logo em seguida ao acima citado, tal perspectiva meursaultiana
contra-hegemônica, possivelmente incômoda a determinados sujeitos, como pareceu
incômoda ao advogado na cena acima, é diretamente jogada “no colo” (aqui, meu uso irônico
187
desta “metáfora materna” é proposital) dos leitores da narrativa camusiana, não mais se
restringindo a um ente ficcional interno à diegese. Segue a citação da cena em que tendo
partido o advogado, Meursault imediatamente reflete: “Desejava afirmar-lhe que eu era como
todo mundo, exatamente como todo mundo. Mas tudo isso, no fundo, não era de grande
utilidade e deixei de lado por preguiça” (CAMUS, 2016, p. 70). Nesse momento, em
particular, o romance parece dialogar diretamente com os códigos sociais dos leitores, que,
então, para além de interpretarem o caráter do narrador, são facultados e refletirem sobre si
mesmos diante de seus próprios afetos e concepções perante a figura da mãe.
Neste aspecto apontado acima, recobro, novamente, meu objeto de pesquisa no
Mestrado (CAVALCANTI, 2009), o romance Dom Casmurro, e traço um paralelo entre ele e
a ficção camusiana. Aproximo Meursault ao narrador Bento Santiago/ Bentinho, de Machado
de Assis, lançando mão do comparativo com a literatura brasileira, para ensaiar elucidar, de
modo mais ilustrativo, como vejo o jogo estabelecido pelo tripé autor-obra-público no
clássico de Camus. Parece-me que ressaltar alguns pontos semelhantes entre as narrativas
brasileira e francesa pode tornar a reflexão sobre a interação entre narrador e leitor implícito
(CULLER, 1999) existente em O estrangeiro mais rica. No romance brasileiro, pois,
Machado faz seu narrador, também autodiegético, confessar a seus leitores ter desejado a
morte de sua mãe, Dona Glória. Por trás de seu desejo, ele realmente queria mesmo era se
libertar da obrigação do seminário, decorrente de uma promessa de sua genitora feita em
retribuição a Deus, por este ter-lhe supostamente “abençoado” com “a proeza da maternidade”
logo após um primeiro aborto, o qual tinha lhe causado grande pesar. Bentinho viraria
seminarista, assim, como uma forma de gratidão cristã da sua mãe pela própria maternidade,
hábito religioso compatível com a cultura brasileira colonizada, atravessada estruturalmente
pela marca jesuítica, conforme ratifica Silviano Santiago em “A retórica da verossimilhança”
(SANTIAGO, 2000). Diz o narrador Dom Casmurro: “Mamãe defunta, acaba o seminário”
(ASSIS, 1997, p. 100). Em diálogo direto com seu leitor implícito ao texto, ele sente
necessidade de se justificar de seu “pecado”:

Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a


escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma
sugestão de luxúria e egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a
perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um
instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a
minha aflição (ASSIS, 1997, p. 100).
O remendo do personagem Dom Casmurro faz, neste capítulo que intitula de “Um
pecado” (ASSIS, 1997, p. 99), parte de um diálogo que a obra de Machado de Assis interpõe
188
com os leitores brasileiros e seus valores patriarcais, religiosos e bacharelescos (SANTIAGO,
2000); um diálogo capaz de revelar as próprias contradições desse público leitor, que, guiados
por uma retórica de um narrador advogado, “retórica da verossimilhança”, na qual o que se
legitima frente à justiça é o que “parece verdade”, não necessariamente “a verdade”, se vê
diante de um impasse frente aos valores hegemônicos daquela sociedade atravessada pelo
cristianismo: acreditar no arrependimento confessado de um filho “estranho”, que “em
pecado”, chega a “verbalizar em público ter desejado a morte da mãe para ser livre” (para
casar com vizinha Capitolina) ou não? Dever-se-ia desconfiar desse mesmo sujeito
“estranho”, pecador confesso, cuja profissão é a advocacia, curiosamente seguida pela
aristocracia brasileira do século XIX dentro de suas tradições de poder e autoritarismo?
Desse modo, nesse jogo interpretativo imputado ao leitor, jogo que guarda múltiplos
outros dentro de si, dado que este é um dos romances mais polissêmicos da Literatura
brasileira (CAVALCANTI, 2009), Machado de Assis põe a nu as possíveis ironias envoltas
no ato da leitura. Por exemplo, é possível que personagens ficcionais projetem pelo seu
caráter desenhado na obra, pela maneira como expõem suas filosofias de vida, como agem e
dialogam com outros dentro da trama, elementos como o conservadorismo ou a revolta, ainda,
como o conservadorismo conflitante com a revolta, pertencentes ao próprio público diante da
moral vigente. Na Literatura brasileira do Século XIX, Machado, então, já “jogava no colo”
dos leitores personagens como Dom Casmurro, que, pelas suas contradições aparentes e
reveladas pelo verbo, poderiam gerar certo “mal-estar” na moralidade compartilhada com o
leitor implícito da obra. Tal desconforto seria também decorrente de um possível espelho
cindido que a ficção seria capaz de interpor entre as palavras e os desejos íntimos e
interditados de quem as lê. Seriam as faculdades da ficção literária: dialogar com a recepção e
seus múltiplos valores, referentes ideológicos, interpelá-los, alargá-los.
Mas, diferente do narrador Dom Casmurro em que o sagrado cristão entrecorta a
maternidade e define seu arrependimento justificado, Meursault não sente a mesma
necessidade de se “desculpar” perante o leitor (que supostamente seria também cristão), não
se arrepende do que disse ao advogado, pois, tal como é visível no trecho citado, ele assume
que sua conduta carrega a contradição que há em todo cidadão entre amar e odiar a mãe, e, em
termos mais expansivos, entre obedecer à ordem e recusá-la, não a intitulando como um
“pecado”, uma vez que muito de suas ações e discurso recusam a ordem cristã. Camus,
diversamente de Machado de Assis, dialoga, agora, com o público francês entre as Guerras do
século XX, entre o nazismo e a ocupação alemã, manejando filosoficamente os impactos
189
desses eventos em um sagrado cristão instituído. Se no caso de ambos os romances, o
brasileiro e o francês, a figura da mãe e as ações dos sujeitos sobre ela estão atravessadas pelo
sagrado cristão, cada narrador diferente simboliza isso de modo diverso e particular:
Meursault revolta-se e recusa o sagrado, enquanto Dom Casmurro dele se aproveita para
convencer seus leitores da sua “integridade narrativa”.
Esse detalhe revoltado quanto ao sagrado cristão em O estrangeiro já tem sido
amplamente comentado pela crítica tradicional em analogia a O mito de Sísifo (CAMUS,
2018a), fato já apontado. Tal revolta, para a tradição, definiria o personagem como
“estrangeiro”, um “fora” das regras do jogo estabelecidas. Sobre o ato de leitura, Sartre
sublinha o caráter de “choque” que Meursault impõe ao leitor em relação à sua parcela de
frieza perante a morte da mãe (enaltecida na cultura cristã) da seguinte forma: “aberto o livro,
o leitor irá se chocar. ... Esse primeiro choque, deliberado, é o resultado de seu do leitor
primeiro encontro com o absurdo” (2005, p. 121). Penso ser válido suplementar a ideia
sartreana, propondo frisar que, se os leitores se chocam diante da parcela de indiferença
meursaulteana frente à mãe, seria, para além do choque com a filosofia do absurdo, ainda pela
razão de que os mesmos leitores possivelmente se defrontariam com a existência em si
próprios de uma visão conservadora que trariam em torno da figura da mãe, significada como
sujeito cuja função geral é gestar, cuidando; um sujeito enaltecido e sacralizado, dentro da
lógica econômica (capitalista) e cultural (cristã) hegemônica. O leitor se chocaria porque,
internamente, sua socialização patriarcal o teria levado a conceber a mãe como aquela que se
sacrifica pelo filho em detrimento da própria individualidade e liberdade. Assim, nessa ótica
hipotética, o leitor teria se habituado a pensar desse modo por ter sido esta a simbologia
naturalizada da maternidade em variados discursos hegemônicos que constroem o horizonte
de expectativa (JAUSS, 1994) com o qual interagem, sobretudo naqueles discursos que
interligaram a maternidade à condição da felicidade feminina. “Chocar-se” com Meursault no
tratamento da mãe seria, nesse raciocínio, caso se viesse a ser considerado o pouco enfatizado
caráter conflitante e dúbio do personagem (entre o amor e a indiferença), por em prática outra
recusa. Recursa-se-ia, por uma questão de incômodo à socialização cristã e patriacal, também
a possibilidade de identificar-se, na condição de leitor, com o narrador camusiano no acúmulo
da ternura ao lado do ódio à mãe – essa entidade moralmente sacralizada a quem é interditado
odiar, mas ironicamente, a quem não é vetado explorar trabalho enquanto jovem; uma
entidade dotada de energia para cuidar das proles, mão-de-obra econômica para a
prosperidade de um império colonial (BADINTER, 1985).
190
Sobre a questão da leitura e as relações dos leitores com seus valores ideológicos
frente à figura feminina da mãe, aproximo a exposição de Jonathan Culler (1999) sobre
especificamente a categoria do leitor implícito no texto literário narrativo:

Quem fala para quem? O autor cria um texto que é lido pelos leitores. Os leitores
inferem a partir do texto um narrador, uma voz que fala. O narrador se dirige a
ouvintes que às vezes são subentendidos ou construídos, às vezes explicitamente
identificados. ... A narrativa implicitamente constrói um público através daquilo
que sua narração aceita sem discussão e através daquilo que explica. Uma obra de
um outro tempo e lugar geralmente subentende um público que reconhece certas
referências e partilha certos pressupostos que um leitor moderno pode não partilhar.
A crítica feminista está especialmente interessada na maneira como as narrativas
europeias e norte-americanas frequestemente postulam um leitor masculino: elas se
dirigem implicitamente ao leitor como alguém que partilha uma visão masculina
(CULLER, 1999, p. 88).
O pensamento de Culler ajuda a entender que a narrativa de Meursault dialoga com
leitores que, pressupostamente, teriam um conjunto de valores morais partilhados, no caso:
cristãos (como aponta Sartre), capitalistas e patriarcais (como venho indicando aqui). A
questão é que tal relato meursaultiano rasura tais pressupostos dos leitores implícitos do
romance pela revolta que lhe habita como personagem, cuja mentalidade esboça uma
“filosofia do absurdo”, denunciando a falta de sentido nos hábitos humanos modernos em face
de um contexto de Pós-guerra, hábitos ligados ao trabalho, ao sagrado, aos afetos, à vida e à
morte (CAMUS, 1942). Rasurar não seria negá-los completamente, mas cindi-los como se
cinde um espelho rachado em várias fissuras: sem deixar de ser espelho, o mesmo objeto, uma
vez partido, devolve reflexos que desfiguram o todo refletido, alterando sua imagem
duplicada. Todavia a questão particular que me interessa destacar em Culler é sobre o modo
como a crítica feminista vem problematizando essa categoria de leitor implícito, elucidando
formas de escrita que estão dialogando com os sujeitos hegemônicos do patriarcado: os
homens. Na situação específica de O estrangeiro, o que intenciono, na posição de
pesquisadora que assume o viés da crítica feminista, é elucidar outro aspecto, contudo: que na
construção ficcional da figura materna, na forma como a nomeia e a ela se refere,
conflitantemente entre o afeto e o descaso, entre a reprodução da imagem materna cristã e sua
rasura, o narrador personagem de Camus revela que seu leitor implícito possivelmente se
chocará com suas descrições narrativas por encampar, provavelmente, valores de uma moral
francesa. Ele dialoga com os franceses, e não exatamente com o leitor argelino neste romance.
É, pois, uma obra que se articula pra chocar uma comunidade determinada: a ocidental e,
fatalmente, seus alicerces cristãos, seu patriarcalismo, seu capitalismo que tornam a pessoa
feminina materna a imagem sem subjetividade e generalizada: “mamãe”.
191
Devo dizer que a empresa de Meursault, continua a ser bem-sucedida, tendo em vista
que, passadas oito décadas da publicação da obra, eu ainda escuto entre colegas da crítica
literária, e entre esses, algumas colegas de Graduação em Letras que são mães, o confessar de
que consideram Meursault “um sujeito frio por narrar na primeira frase do texto que sua mãe
morreu e não sabe se a morte foi exatamente hoje ou ontem”, que “assusta tamanha frieza”. O
exemplo informal, mas realmente colhido entre conversas de leitores e leitoras especializados,
atesta que boa parte da comunidade leitora ainda guarda referentes cristãos e patriarcais sobre
a maternidade e, por isso, Meursault ainda a choca tanto em 2022. Claro que, nesse quesito,
não se descarta também que impressões leitoras como tais em estado de choque, costumam-se
reproduzir devido à tendência, já comentada, de se repetir a ideia de “choque” tão difundida
por Sartre em seu ensaio clássico “A explicação de O estrangeiro”, já que é comum na
dinâmica da “colonialidade do saber” (QUIJANO, 2008) repetir a epistemologia ocidental.
De qualquer forma, está entre a intenção da presente pesquisa a seguinte: atribuir
sentidos às interpretações de O estrangeiro e apontar nelas as faces patriarcais e imperialistas
que envolvem narrador, personagens e leitores implícitos do romance, para que estas faces
possam ser, uma vez pecebidas, debatidas, alargando a polissemia do texto e as possibilidades
de se entendê-lo nesta perspectiva crítica particular, se se toma como referência uma tradição
de intérpretes canonizada sobre Camus.
O debate sobre a mãe não se esgota nas ideias aqui escritas. Seria possível descortirnar
o texto muito além. Eu poderia mencionar, num viés que entrecorta Literatura e Psicanálise,
que Meursault, por exemplo, como seria próprio da figura da psiquê do menino fazer, segundo
Badinter em XY: Sobre a identidade masculina (1993), “mata a mãe” simbolicamente logo no
iniciar da narrativa, pondo em exercício o seu medo da expressão do incesto frente a essa
figura, a qual é a origem do contato da criança com a sensorialidade do corpo, pelo colo, seio,
portanto, com o desejo. A frieza de Meusault seria lida, nessa ótica, tal qual uma resposta de
violência que a persona do menino tipicamente apresentaria como forma de expurgar seu ódio
a mulheres, sentimento que haveria na sua composição genética, via o cromosso X (do gênero
feminino) presente na sua natureza cromossômica XY. Assim, medo do incesto e misoginia
seriam “sintomas” de Meursault que explicariam sua revolta, seu descaso frente à mãe e até
seu crime de assassinato, ápice de sua agressividade material. Tal interpretação notadamente
correlacionada a uma visão psicanílitca de masculinidade entende que o caráter agressivo
masculino seria moldado por essas particularidades que revolvem seu lado feminino,
elemento que precisaria ser extirpado de sua identidade e seu corpo (BADINTER, 1993).
192
Nessa conjuntura ligada ao inconsciente, ainda poderia ser remarcado que Meursault sentiria
ódio da mãe por ela estar mais feliz e ter outras afetividades no asilo, possuindo
individualidade para além do “cercado patriarcal” do cuidado com o filho. É significativo,
nesse sentido, que ele descreve que a Senhora Meursault, segundo o Diretor do asilo, dá
indícios de ter até um “afeto masculino” na instituição, Thomaz Perez, fato que indicaria que,
no romance, somente livre da casa e da prole, desatrelada, pois, do serviço da maternidade,
contudo sem a jovialidade para o trabalho produtivo e na faixa dos sessenta anos, é que a
mulher poderia, no espaço marginal e disciplinar do asilo na cidade (ROLNIK, 1995), viver
outras experiências mais intimistas e outros afetos:

Então o diretor sorriu e disse – Não sei se compreende, é um sentimento um pouco


infantil. Mas ele e sua mãe nunca se separavam. No asilo, brincavam com eles, e
diziam a Perez: “É a sua noiva. Ele ria. Isso lhe agradava. E o fato é que a morte da
Sra Meursault o abalou muito (CAMUS, 2016, p. 22)
É notável que a afetividade de uma mulher idosa na condição materna é comparada
pelo diretor do asilo ao “infantil”, isto é, à fantasia lúdica, ao carente de autonomia.
A mãe, desse modo, visivelmente, em O estrangeiro é uma figura polissêmica no
texto, ainda que tenha sido na diegese marginalizada pelo espaço asilo e pouco investigada na
crítica tradicional. Sua polissemia pode seguir variadas teias interpretativas, contudo, as teias
da psicanálise não são aqui o cerne da discussão que se pretende aprofundar e, com vistas ao
desfecho momentâneo da abordagem da maternidade em Camus, figura relevante na análise
comparativa entre O estrangeiro e O caso Meursault, sigo a discussão para nesta seção
arrematá-la frente a um segundo aspecto que lhe atravessa: a sua relação com a justiça e com
o julgamento do assassinato “do árabe”.
Destarte, o segundo aspecto a ser salientado na citação recortada mais acima, que
transcreve a cena do diálogo entre Meursault e seu defensor público, é a importância da
maternidade para a justiça francesa. Retomo a citação: “Comentei que essa história não tinha
nenhuma relação com o meu caso, mas ele me respondeu que era óbvio que eu nunca me
envolvera com a justiça” (CAMUS, 2016, p.69). A passagem é o primeiro estalar do romance
para o fato de que a justiça da França da colônia argelina segue os valores culturais franceses
nos quais a cultura cristã, patriarcal, imperial e racista determinam os vereditos e podem fazer,
literalmente, as cabeças rolarem. A conduta criminosa em si, que envolve os elementos como
ação ou omissão, dolo ou culpa, resultado danoso, recebe veredito nas malhas da cultura e dos
interesse de grupos hegemônicos que a modulam em seus discursos religiosos, econômicos,
midiáticos, filosóficos, etc.
193
De fato, o julgamento de Meursault, que rendeu variados trabalhos de pesquisa em
linhas que estreitam Direito, Literatura e Filosofia, põe a nu a construção da justiça pela
cultura. No que tange especificamente à mãe, os questionamentos do juiz de instrução
revelam a importância materna para a cultura francesa:

Depois de um silêncio levantou-se e afirmou que queria me ajudar, que ele se


interessava por mim, e que com a ajuda de Deus faria alguma coisa em meu favor.
Mas, antes, queria fazer-me mais algumas perguntas. Sem transição, perguntou se eu
amava mamãe. — Sim, como todo mundo — respondi ... Ainda sem lógica
aparente, o juiz me perguntou então se disparara os cinco tiros seguidos. (CAMUS,
2016, p. 71)
O trecho evidencia que a primeira preocupação do juiz francês é sobre o afeto que o
réu teria pela sua mãe. Em seguida, a investigação segue tentando estabelecer um nexo de
causalidade entre a conduta de Meursault como filho e como assassino. O juiz francês se
declara disposto a ajudar e a interceder por um assassino francês, mas entre a disposição e a
ajuda jurídica seletiva está “a mãe” em primeiro plano, só em segundo está a conduta
específica de atirar “num corpo caído” (CAMUS, 2016, p. 71).
Ao longo do julgamento, as testemunhas de defesa: Celeste, Raymond, Marie, etc
estão todas dispostas a ajudar Meursault. As falas se passam como se ele fosse a vítima das
circunstâncias, do Sol, não “o árabe” morto, de nome nunca citado na situação jurídica
institucional do julgamento que condenaria seu próprio assassino. Outro ser sem nome, mas
com epíteto também “genérico”, a mãe se torna a vítima atacada para o tribunal francês,
expondo-se o racismo imperial europeu que invisibiliza a comunidade argelina e sua
identidade e dignidade como sujeitos de direitos civis. No direito civil, é garantido que se
tenha um nome. Nesta cadeia hierárquica de sujeitos invisibilizados, segregados e explorados
na geografia colonial francesa de poder patriarcal e racista, a mulher branca na condição de
mãe está acima do “homem árabe”, um subalterno (SPIVAK, 2010). No julgamento, essas
posições, primeiro a vítima é a mulher branca mãe (deixada no asilo) e só em seguida viria o
argelino assassinado, aparecem novamente na ordem desses referentes distribuída nas cadeias
de perguntas no júri pelas figuras institucionais da justiça: Juízes e promotores. É o que se
nota a seguir:

Disse-me que devia abordar agora questões aparentemente estranhas ao meu caso,
mas que talvez o tocassem de muito perto. Compreendi que ele ia falar novamente
em mamãe e senti ao mesmo tempo até que ponto isso me entediava. Perguntou-me
por que a mandara para o asilo. Respondi que era porque não tinha dinheiro para
mantê-la comigo e cuidar dela. Perguntou-me se, pessoalmente, sofrera com o fato, e
respondi que nem mamãe nem eu esperávamos mais nada um do outro, nem, aliás,
de ninguém, e que nós dois nos havíamos habituado às nossas novas vidas. O
presidente disse, então, que não queria insistir neste ponto, e perguntou ao promotor
194
se tinha alguma outra pergunta a fazer. Este estava quase de costas para mim e, sem
me olhar, declarou que, com a autorização do presidente, gostaria de saber se eu
voltara sozinho à nascente com a intenção de matar o árabe. — Não — respondi. —
Então, por que estava ele armado e por que voltar justamente àquele lugar? —
Disse-lhe que fora por acaso. E o promotor concluiu, com uma entonação maldosa:
— Por ora, é só. (CAMUS, 2016, p. 92).
Novamente, as respostas de Meursault sobre a mãe revelam suas certezas sobre a
natureza da relação que mantém com ela, escancarando, sem qualquer pudor, as questões
problemáticas familiares, as quais revelam o falir de um “cuidado mútuo idealizado” em
termos morais vigentes, mas frisam a desconexão entre mãe e filho, configuração que gera
repulsa numa sociedade que enaltece a maternidade nos termos cristãos do “mito de Maria”
(DELUMEAU, 2009), sempre serviçal a Jesus, ambos sustentando, no discurso bíblico, uma
relação de harmonia e respeito. O júri na diegese está marcado por essa cultura da
maternidade e o julgamento concorre para que se condene Meursault, em princípio acusado de
ter matado “um árabe”, precipuamente por ter periferizado a mãe em um asilo e por
manifestar o que julgam como “frieza” e desdém para com ela.
Várias passagens descritivas do julgamento refletem a prioridade que se dá para julgar
o “pecado” de periferizar a mãe, primeiramente, que julgar o réu pelo “crime” de matar um
argelino numa praia do subúrbio de Argel. Continuo a transcrever essas passagens. Segue a
investigação do depoimento do Diretor do asilo:

Enxuguei o suor que me cobria o rosto e só tomei consciência do lugar e de mim


mesmo quando ouvi chamar o diretor do asilo. Perguntaram-lhe se mamãe se
queixava de mim e ele respondeu que sim, mas que todos os pensionistas tinham um
pouco a mania de se queixar da família. O presidente disse-lhe para especificar se
ela me censurava por tê-la colocado no asilo e o diretor respondeu novamente que
sim. Mas desta vez nada acrescentou. A uma outra pergunta, respondeu que a minha
calma no dia do enterro o surpreendera. Perguntaram-lhe o que entendia por
“calma”. O diretor olhou então para as pontas dos sapatos e disse que eu não quisera
ver mamãe, que não chorara uma única vez e que partira logo depois do enterro, sem
me recolher junto ao túmulo. Ainda outra coisa o surpreendera: a agência funerária
lhe dissera que eu não sabia a idade de mamãe. Houve um momento de silêncio e o
presidente perguntou-lhe se o que ele tinha falado era de fato sobre mim. Como o
diretor não compreendia a pergunta, o presidente disse: “É a lei.” Depois ele
perguntou ao promotor se tinha mais alguma pergunta a fazer à testemunha: — Ah,
não, isso basta — exclamou ele com uma tal veemência e um tal olhar de triunfo na
minha direção que, pela primeira vez há muitos anos, tive uma vontade tola de
chorar, porque senti até que ponto era detestado por toda aquela gente. (CAMUS,
2016, p. 93)
Aqui se faz notável a reação frustrante de Meursault por se perceber julgado menos
por matar (ato que reconhece que comete), e mais por ter supostamente a conduta de destratar
a mãe, coisa que ele não sente ter feito, inclusive reafirma que ama a mãe em vários
momentos. Confessa, nessa ocasião, que lastima ser odiado pelo seu tratamento dirigido à
figura materna, mas, consabidamente o romance termina afirmando algo peculiar: “faltava-me
195
desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem
com gritos de ódio” (CAMUS, 2016, p. 126). Se, ao final, Meusault se manifesta sobre a
opinião alheia é dizendo que praticamente lhe resta34 desejar o ódio vindo daquela
comunidade. Inicialmente, ele se incomoda em ser odiado, mas, ao final do texto, o que
descreve é justo estar entregue ao desejo de despertar ódio em uma plateia, ou seja: ele deseja
ser o protagonista do ódio e o centro da intriga da moral comum.
Trago, agora, o depoimento do porteiro do asilo. Torna-se aparente que as personagens
do asilo são fortemente recrutadas para depor sobre um crime que ocorre em outro espaço da
cidade: a praia. O assassinato não foi num asilo, foi na praia; a vítima lesada foi “o árabe” e
sua família, sua comunidade argelina, em interface à relação de disputa territorial na colônia,
mas o julgamento interpela testemunhas ligadas uma instituição pública francesa: o asilo.
Cito:

Depois de ter perguntado ao júri e ao meu advogado se tinham perguntas a fazer, o


presidente ouviu o porteiro. Para este, como para todos os outros, repetiu-se o
mesmo cerimonial. Ao chegar, o porteiro olhou-me e depois desviou os olhos.
Respondeu às perguntas que lhe dirigiam. Disse que eu não tinha querido ver
mamãe, que tinha fumado, que tinha dormido e que tinha tomado café com leite.
Senti, então, alguma coisa que agitava toda a sala e compreendi, pela primeira vez,
que era culpado. Fizeram o porteiro repetir a história do café com leite e a do
cigarro. O promotor olhou-me com brilho irônico nos olhos. Nesse momento, meu
advogado perguntou ao porteiro se não tinha fumado comigo. Mas o promotor
objetou violentamente contra esta pergunta: — Quem é o criminoso, e que métodos
são estes, que consistem em denegrir as testemunhas de acusação para minimizar
depoimentos que nem por isso continuam menos esmagadores! Apesar de tudo, o
presidente pediu ao porteiro para responder à pergunta. O velho disse com um ar
constrangido: — Bem sei que errei. Mas não ousei recusar o cigarro que ele me
ofereceu. Por último, perguntaram-me se tinha algo a acrescentar. — Nada —
respondi —, a não ser que a testemunha tem razão. É verdade que lhe ofereci um
cigarro. O porteiro olhou-me com um pouco de espanto e uma espécie de gratidão.
Hesitou e em seguida disse que fora ele quem me oferecera o café com leite. Meu
advogado triunfou ruidosamente e declarou que os jurados saberiam formar a sua
opinião. Mas o promotor esbravejou acima de nossas cabeças: — Sim, os senhores
jurados saberão formar a sua opinião. E concluirão que um estranho podia oferecer
café, mas que um filho devia recusá-lo diante do corpo daquela que o dera à luz.
(CAMUS, 2016, p. 94-95).
A narrativa de Meursault, como se vai percebendo, seleciona apontar, pela sequência
de eventos pinçados para narrar, que a sua condenação é mais como filho, que como
assassino. E ele costura ao depoimento do porteiro do asilo, imediatamente, o relato do
personagem Perez (“amigo” ou “afeto romântico da Sra. Meursault também do asilo). O

34 Na versão original, está escrito: “Il me restáit à souhaiter qu’il y ait beaucoup de spectateurs le jour de mon
exécution et qu’ils m’accueillent avec des cris de haine. (CAMUS, 2017, p. 184). Vide: CAMUS, Albert.
L’étranger. Paris: Gallimard, 2017.
196
trecho demostra mais uma cena de como a conduta jurídica estatal, na interface das
testemunhas, corrobora com a culpabilização do réu, sobretudo, pela sua relação condenável
com o símbolo da maternidade:

O promotor perguntou-lhe se, ao menos, me vira chorar. Pérez respondeu que não. O
promotor disse, então, por sua vez: — Os senhores jurados saberão formar a sua
opinião. Mas o meu advogado irritou-se. Perguntou a Pérez, num tom que me
pareceu exagerado, se tinha visto que eu não chorei. — Não — respondeu Pérez. O
público riu. E o meu advogado, arregaçando uma das mangas, disse, num tom
peremptório: — Eis a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade.
(CAMUS, 2016, p. 95).
A sequência polifônica a revelar uníssonamente que Meursault é um filho culpado é
que interessa àquela justiça francesa. Uma justiça narcísica por proteger o bem jurídico que
considera de valor “a cultura cristã da maternidade”, relegando a segundo plano a vida
roubada do árabe por Meursault, réu francês, julgado por um descaso com a mãe que não
acredita ter cometido. Nada do que se dizia sobre seu desdém com sua mãe era para ele
desdém, mas apenas o curso habitual da vida. A cena emblemática da sua defesa, que contesta
tal configuração de justiça seria no trecho apresentada:

Mas o meu advogado, já sem paciência, gritou levantando os braços de tal forma que
as mangas, ao caírem para trás, descobriram as pregas de uma camisa engomada: —
Afinal, ele é acusado de ter enterrado a mãe ou de matar um homem? O público riu.
Mas o promotor endireitou-se outra vez, ajustou a beca e declarou que era preciso
ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de
fatos havia uma relação profunda, patética, essencial. — Sim — exclamou com
veemência —, acuso este homem de ter enterrado a mãe com um coração de
criminoso. Esta declaração parece ter tido um efeito considerável sobre o público.
Meu advogado deu de ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa. Mas ele
próprio parecia abalado e compreendi nesta altura que as coisas não iam muito bem
para mim. (CAMUS, 2016, p. 100).
A resposta do público e da promotoria, contudo, reafirmam a natureza da justiça
francesa na colônia: priorizar a proteção da maternidade, acima da vida argelina (que aparece
em último plano nesse julgamento). Nesse domínio, é preciso chamar atenção para a seguinte
particularidade incomum para o período e para a geografia colonial do romance: ainda que
posta em segundo plano, a vida “árabe”, mesmo que pela interferência do autoritarismo e do
narcisismo francês em decidir que fazer justiça num processo que julga o assassinato de um
homem é tutelar não o direito à vida deste, mas sim, sua cultura materna e tudo que a
representa: sagrado cristão, patriarcado, prosperidade econômica e imperialista, recebe na
diegese uma reparação jurídica, afinal, o assino é condenado à execução.
A prisão de um francês naquele contexto não era algo esperável. Em Os condenados
da terra, Fanon ressalta que, dificilmente, franceses eram presos; em contrapartida, as cadeias
estavam lotadas de nativos (o próprio romance de Camus ilustra o fato com Raymond saindo
197
impune ao espancar uma cidadã “moura” e com a descrição que Meursault faz da prisão:
repleta de árabes). O cinema da década de 60 também oferece evidências do caráter dubtável
da justiça colonial na Argélia. O próprio Luchino Visconti traduz O estrangeiro para filme em
1967 e compõe imagens de poder significativo para a representação da justiça francesa
(atrelada ao racismo) a encarcerar, majoritariamente, argelinos. Pentecorvo, diretor que ficou
conhecido, na voz da crítica americana Pauline Kael, “por ser o mais perigoso tipo de
marxista, um poeta marxista” (apud TRAVERSO, 2018), em seu filme “A batalha de Argel”
(1966), premiado com o Leão de ouro no Festival de Veneza de 1966, também apresenta
potentes retratos do encarceramento de argelinos por autoritarismo e racismo.
Cito Fanon para que se evidencie o alcance dos significados contra-hegemômicos da
prisão de Meursault no romance. Trata-se de um dos relatos do autor: “Caso número 1.
Assassinato por dois argelinos de 13 e 14 anos de seu companheiro de jogos europeu”. Está
inserido no capítulo cinco, “Guerra colonial e perturbações mentais”. Os adolescentes
argelinos, sujeitos do relato, contam e dialogam com o autor:

a) O de 13 anos:
... “Um dia decidimos matá-lo, porque os europeus querem matar todos os
árabes. Nós não podemos assassinar os grandes. Mas como ele tem a nossa
idade, já podemos. ...
b) O de 14 anos:
... Também não nega ter morto o seu colega. Por que o matou? Não
responde, mas perguntava-me se vi algum europeu na prisão. Nunca um
europeu foi preso por assassinar um argelino. Respondo-lhe que
efetivamente, nunca vi europeus encarcerados.
- E sem dúvida são mortos argelinos todos os dias, não é verdade?
- Sim.
- Então, por que existem apenas argelinos nos cárceres? (FANON, 1961, p.
286-288)
Portanto, a execução de Meursault se faz, contraditoriamente, um evento contra-
hegemônico naquela geografia colonial de O estrangeiro. Destaco aqui, a partir das análises
dos trechos selecionados, que esta nuance contra-hegemônica está relacionada,
contraditoriamente, aos contornos da cultura materna cristã e imperial, que, no texto,
protagonizou a “mãe” diante da justiça institucional do império.
Tal quadro é ilustrativo de como no seio de uma cultura disciplinar imperialista existe
mecanismos de sua própria fratura. Sujeitos subalternizados podem encontrar no dominador
venenos que ele mesmo aplica sobre as estruturas que os sustentam. É o que é notado por
Bhabha (2003) e Mignolo (2008). A geografia literária colonial é, pois, um território
198
“empestado” de escorpiões encalacrados. Nessa posição, utilizada como metáfora por
Arrigucci Jr (2003) para pensar uma “poética da destruição em Julio Cortázar”, os artrópodes
aplicam sobre suas cabeças o veneno do próprio ferrão como estratégia de defesa e, ao mesmo
tempo de controle da própria morte (ARIGUCCI JR, 2003). A imagem se faz compatível com
as tensões contraditórias que O estrangeiro é capaz de potencializar, “linguagem carregada de
significados” (POUND, 2006) que é, como Literatura.
Concluindo este capítulo, sublinho a polissemia de “mamãe” em O estrangeiro e friso
que, paradoxalmente, esta mãe protagonizada pela justiça francesa na história, é uma figura
duplamente periferizada: 1) sua subjetividade como indivíduo é negada e sacrificada, para que
possa ser enaltecida como emblema do amor e do cuidado, na medida em que é explorada
pela sociedade patriarcal em ritmo de produção e gestação de lucro; 2) sua polissemia é
marginalizada por muitos estudos literários canonizados que, centrados em Meursault, e,
muitas vezes, desconsiderando as próprias tensões identitárias do personagem interpretado
como “estrangeiro”, a esquecem no asilo da diegese do romance, não a enxergando como
peça estrutural da memória narrativa meursaultiana e da própria geografia colonial em que se
se passa o romance.
No próximo e quarto capítulo, será analisado o romance paródico O caso Meursault
(2013). Nessa nova etapa da pesquisa, retomarei as perspectivas da maternidade e da
masculinidade, da geografia local, versarei sobre as alteridades árabes na construção
narrativa, sobre o sagrado e as relações entre os modelos religiosos cristão e islâmico, sobre a
memória familiar argelina na interface com a pós-colonialidade com qual dialoga o escritor.
Sendo assim, o foco das análises se descentra da narrativa de Meursault (interpelada por
Daoud) para se ramificar até a narrativa de Haroum, irmão do “árabe” assassinado (a traduzir
O estrangeiro) na ficção contemporânea da Argélia, cotejando as duas obras em estudo.
199
5 O CASO MEURSAULT E A TRADUÇÃO PARÓDICA PÓS-COLONIAL DE O
ESTRANGEIRO

Neste último capítulo da pesquisa35, O caso Meursault (2013) pretende ser lido como
um romance que, seguindo os ritmos das produções “pós-modernas”, realiza uma “tradução”
de O estrangeiro (1942), utilizando o recurso estético da “paródia”, tal como esta é
compreendida pela canadense Linda Hutcheon em Poética do pós-modernismo (1991). Ao
tecer seu romance nesta conjuntura, Daoud, através de sua escrita, ressignifica variados
aspectos da obra “clássica camusiana do Pós-guerra”, dentre eles, serão selecionados aqui
aqueles mais pontuais: 1) o recurso narrativo, que se refaz em tom dialógico, abrindo espaço
para a reflexão sobre alteridade e ficção; 2) a representação do sagrado e das religiosidades
cristã e islâmica em tensão; 3) as imagens da geografia local, que suplementam a memória das
cidades argelinas pela perspectiva do olhar argelino do novo narrador; 4) as relações de
gênero, que reformulam as noções de masculinidade e maternidade.
Para que a exposição das reflexões sobre os pontos acima seja erguida, recorro ao
seguinte trajeto dissertativo: primeiramente, serão definidas as noções teóricas de paródia e
tradução com as quais a pesquisa dialoga para pensar o romance pós-colonial de Daoud; em
seguida, os quatro aspectos listados acima serão comentados e analisados em trechos do
romance argelino.

5.1 PARÓDIA: A POÉTICA PÓS-MODERNA EM O CASO MEURSAULT

O contexto literário do início do século XXI, no qual é publicado O caso Meursault,


caso se considere em caráter abrangente a produção ocidental, assiste a variados escritores
fazerem uso da paródia como um de seus recursos estéticos mais expressivos. Vale atestar,
entretanto, que já circulavam textos paródicos bem antes do final do século XX, mas o que
pode ser enfatizado é que, exatamente em fins do milênio, a paródia se fez cada vez mais
presente na ficção, assumindo novos contornos e elevando-se a um construto estético entre os
preferidos por parte de variados escritores. Nesse sentido, Kamel Daoud foi um dos

35 Muito do que apresento neste capítulo resulta da ampliação e da reavaliação de variados artigos publicados
em anais de Congresso, sobretudo, nos anais da ABRALIC, ao longo desses anos de pesquisa no Doutorado vide
bibliografia (CAVALCANTI, 2018; 2019a; 2019b, 2019c). Também aqui escrevo retomando e suplementando
as noções teóricas de paródia e tradução que discuto na minha já citada pesquisa de Mestrado (CAVALCANTI,
2009), como mencionado na introdução, minha primeira experiência de pesquisa com o campo da tradução
literária.
200
ficcionistas argelinos dos tempos correntes que aderiram à prática paródica na sua maneira de
traduzir e ressignificar O estrangeiro em face de toda uma tradição crítica acerca de Camus.
Linda Hutcheon (1991) é uma das responsáveis por localizar e sublinhar a recorrência
do exercício paródico no plano da criação artística pós-modernista, tecida nos final do século
XX. Ela conceitua pós-modernismo como um campo que não obedeceria a uma lógica
fechada e fixa de definição, assinalando, por outro lado, que o termo se aproximaria de uma
espécie de concepção menos inflexível e mais “moldável” e “aberta”, tal qual uma forma
“poética”. “A poética do pós-modernismo” estaria, assim, atravessada por, entre outras
nuances, operar uma revisão crítica, a partir das produções estéticas, do que foi estabelecido
como passado. Neste universo revisionista e crítico, prima-se pela implosão de antigas
fronteiras e limites entre os variados gêneros, de modo que, não raro, misturam-se os campos
da ficção, da teoria, da história. Na esteira desse novo formato criativo, são notáveis
produções cada vez menos aprisionadas a rótulos engessados e que partem com intensa
frequência para um maior contato interativo com diversos meios semióticos, provocando
misturas e amálgamas que passaram a refazer velhos métodos de escrever e produzir arte.
Sendo assim, de acordo com Hutcheon, a paródia se estabeleceria como um dos
principais símbolos da “Poética do pós-modernismo”, uma vez que seria por meio dela que as
interações entre obras do presente e do passado poderiam passar por uma reavaliação
problematizadora, questionando-se o velho tabu da total originalidade de uma produção,
tentando-se, nesse sentido, transgredir uma tradição alicerçada em ditames que já não
comportariam mais as reflexões necessárias à arte no que concerne a, a partir do presente,
reexaminar o que se viveu e o que se construiu em termos de discurso, imagem, estética, etc.
Tal silhueta singular, conforme a canadense, faria da poética pós-modernista uma
tendência autocrítica e autoreflexiva, se comparada à iniciativa modernista, visto que esta se
fez marcada pela obsessão vanguardista, voltada para abandonar o passado em função de uma
postura criativa que se colocaria, em primeira ordem, como dotada de novidade e
originalidade. O pós-modernismo, dessa forma, carregaria, segundo Hutcheon certa
“maturidade” frente ao mundo, já que não se propõe a recusar por completo o passado, mas a
revisitá-lo de modo reflexivo. Uma revisita ao “ontem” realizada com a consciência de que
seria um mito a demandar desconstrução a possibilidade de uma novidade original absoluta.
Dentro desse ângulo, a autora propõe que se reconceitue a paródia em consonância
com o projeto pós-modernista. Ela insurge contra a acepção restrita e negativa que a prática
201
adquiriu tanto em face de teóricos de referência significativa, quanto em face de atores do
senso comum: o de que parodiar seria ridicularizar um texto primeiro. Cito Hutcheon:

Quando falo em “paródia”, não estou me referindo à imitação ridicularizadora das


teorias e das definições padronizadas que se originam das teorias de humor do
século XVIII. A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da
paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da
diferença no próprio âmago da semelhança (HUTCHEON, 1991, p. 47).
A autora complementa seu raciocínio delimitando ainda o seguinte: “essa paródia
realiza, paradoxalmente, tanto mudança como a continuidade cultural: o prefixo grego “para”
pode tanto significar “contra” como “perto” ou “ao lado” (HUTCHEON, 1991, p. 47)”.
A posição de Linda Hutcheon vem, portanto, alargar os modos de se compreender a
paródia, relocalizando-a. Antes, o recurso estético foi alocado dentro de uma circunscrição
limitada insuficiente se for levada a própria etimologia da palavra “Padódia”; agora, com sua
redefinição, recebe contornos mais amplos e capazes de abarcar fenômenos literários da era
contemporânea que se voltam ao passado para reconstituí-lo de novas formas, via reflexão
crítica. É nesse sentido ampliado que a postura paródica de O caso Meursault diante de O
estrangeiro necessita ser percebida. O que o romance de Daoud opera não se trata de uma
mera ridicularização do texto primeiro camuseano, mas sim, se apresenta como uma
reverência ao clássico e, simultaneamente, como sua revisão crítica na ficção, tentando
suplementá-lo a partir de um novo ponto de vista narrativo capaz de trazer à baila (guiado por
sentimentos como rancor, raiva e utilizando da ironia) a memória argelina e a memória da
família de Moussa (árabe), assassinado por Meursault (pied noir).
É importante pontuar que a reverência daoudiana se realiza com esse distanciamento
crítico e é por tal motivo que o retorno a O estrangeiro dificilmente se opera por uma prática
“nostálgica”. O retornar à obra primeira, à obra do passado, é baseado, pois, por um olhar
crítico e irônico, que será, assim, capaz de alargar as suas leituras iniciais, vislumbrando-se
novos caminhos de interpretação, fato que foi possível ser demonstrado no capítulo anterior,
no qual discuti como O caso Meursault, na maneira como estrategicamente articula sua
ficcionalidade, enseja um retorno à investigação sobre o crime de assassinato de Moussa.
Nesse retorno, se faz possível entrever uma percepção do caso via questão de gênero,
sobressaindo-se a forma de socialização masculina naquele contexto colonial entre franceses e
argelinos. Nessa ótica, com o fim de remarcar a natureza desse tal “quê” de “novidade” que a
paródia oferece ao texto gerador, afirma Hutcheon: “esse projeto paródico demonstra a sua
consciência crítica e seu amor à história com a atribuição de novos sentidos a velhas formas,
embora muitas vezes o faça com ironia” (1997, p. 53).
202
Para a autora canadense, é importante demarcar a sua concepção de paródia dentro do
Pós-modernismo, acima descrita, como uma forma de entendimento diversa da executada por
autores como Jameson e Eagleton. Cito suas palavras quanto a este aspecto:

Em seus textos recentes sobre o pós-modernismo, Jameson e Egleaton o censuraram


por ser nostálgico em sua relação com o passado. Porém, se a nostalgia conota uma
evasão do presente, a idealização de um passado (de fantasia) ou uma recuperação
desse passado como sendo edênico, então decididamente o repensar irônico da
história não é nostálgico. De forma crítica ele confronta o passado com o presente e
vice-versa. Numa relação direta contra a tendência da nossa época no sentido de
valorizar apenas o novo e a novidade, ele nos faz voltar a um passado repensado,
para verificar o que tem valor nessa experiência passada, se é que ali existe
realmente algo de valor. Mas a crítica de sua ironia é uma faca de dois gumes, o
passado e o presente são julgados a luz um do outro (HUTCHEON, 1991, p. 63).
O romance de Daoud se alinha a tal iniciativa. Através da paródia, o escritor argelino
demonstra dialogar com a poética do pós-modernismo na concepção particular de Linda
Hutcheon, já que ao retomar O estrangeiro, de Camus, um romance de 1942, em diálogo com
o Pós-guerra e com a experiência colonial francesa na Argélia, não o realiza por uma empresa
pretensamente apenas “nostálgica”, mas, sim, o faz por uma iniciativa de revisão crítica sobre
o romance francês, questionando seus significados constituídos no passado sob o ângulo,
agora, de outra envergadura interposta pelo seu projeto de reescrita realizado na segunda
década do século XXI. Dito de outra maneira, quando Daoud revisita o romance camusiano,
trazendo-lhe um semblante diverso, ao narrá-lo do ponto de vista inédito de Haroum, irmão
do “árabe” morto (agora chamado de “Moussa”), conferindo-lhe identidade, e, assim,
dignidade, humanidade, esta sua iniciativa se mostra crítica às demais interpretações que a
obra de Camus suscitou, por ser encabeçada por uma narrativa impregnada da subjetividade
do narrador Meursault: carregada da filosofia “do absurdo” já abordada em O mito de Sísifo
(CAMUS, 2018a) e de seus tons marcantes como francês em posição de dominação na
Argélia colonial. Portanto, não é possível enxergar em O caso Meursault um retorno
nostálgico a O estrangeiro. Pelo contrário, a energia narrativa se mostra dona de um retorno,
sobretudo, reflexivo, a sugerir novas maneiras de a obra ser lida. É nessa perspectiva que a
paródia se opera: amplificando o romance de Camus e seus significados, na medida em que o
revisa e o reescreve, procurando romper com o exercício limitado do que poderia ser uma
estreita ridicularização do mesmo.
Dessa forma, faz-se evidente que o jogo paródico observado na ficção de Daoud não
se esforçaria para “desmontar” por completo o texto Camusiano, mas a partir dele, o argelino
passa a fornecer suplementações de sentidos às formas como, ao longo do tempo, ele foi
interpretado, trançando, nessa dinâmica, uma diferenciada imagem sua. As tônicas da
203
reescrita de O estrangeiro em Daoud são as da revisão e a da suplementação de significados
em compasso com a interposição de uma nova voz narrativa argelina (a qual se tece em
diálogo, como será comentado mais à frente, com um interlocutor francês). Sua meta é
visivelmente também crítico-literária e erigida em diálogo com seu país, uma Argélia,
diversamente da Argelia colonial camusiana, mas pós-colonial, com seus atuais desafios e
desejos de futuro.
É possível observar com nitidez que Daoud faz da sua obra um espaço para se propor
reflexões de cunho critico e teórico sobre a composição da própria ficção. A problemática da
sua obra é reflexiva em torno de como o recurso estético-ficcional do ponto de vista narrativo
poderia modificar os fatos narrados por Meursault (um narrador francês) na obra primeira. Tal
aspecto sinaliza as tendências mais recorrentes com as quais a ficção, desde os fins do século
XX, dialoga de maneira mais enfática e explícita: o domínio da autorreflexão teórica e crítica.
A parte majoritária da ficção literária produzida nos últimos tempos faz, com mais intensidade
do que nunca, questão de não mais se limitar ao narrar simples e linear de um enredo, ou, em
caso da criação de poemas, a se circunscrever a um reduzido versar imerso na subjetividade
da voz lírica. Os autores contemporâneos transitam num circuito no qual, como aponta
Hutcheon, os limites entre as diversas espécies de gêneros discursivos/literários se dissolvem,
conferindo-se campo para a amálgama de diversas molduras estéticas num texto ficcional. É
situada nessa plataforma pós-modernista que se encontra a tradução de O estrangeiro em O
caso Meursault, a qual executa uma verdadeira mistura entre literatura e crítica literária, uma
crítica que, por sua vez, em muito dialoga (não sem questionamentos e revisão também) com
a perspectiva dos Estudos pós-coloniais, sobretudo, na linha de Edward Said.
Na esteira da observação acima, torna-se relevante destacar que o romance de Daoud é
compatível ao que Davi Arrigucci Jr. (2003) indica como uma recorrência na obra de Borges
e Cortázar: uma espécie de ficção que, em si mesma, carrega a sua própria composição a
problematização teórica de sua estética. Arrigucci adverte que a visão do gênero romanesco
como um tipo de história que encerraria uma busca por parte de um herói problemático de
ditos “valores autênticos", visão originária das teorias de Lukács e Lucien Goldman, não
consegue mais abarcar a produção de escritores do século XX, como Borges e Cortázar,
fazendo, assim, a ressalva de que a ficção dos dois latino-americanos vai além dessa
esquemática teórica em torno da narrativa e do romance. Arrigucci assinala que as obras de
Borges e Cortázar são ilustrativas de uma forte tendência típica da literatura contemporânea: a
procura que a narrativa faz em face de si mesma, ou seja, de sua arquitetura própria. Como já
204
mencionado neste trabalho, a imagem capaz de sintetizar tal “voltar-se” da obra literária
diante de si, segundo o autor, seria a de um “escorpião encalacrado”, representando a
literatura injetando em seu dorso, pelo seu afã de autocriticidade, o veneno ficcional que lhe
habita. A esse respeito, cito Arrigucci Jr:

Rumando o movimento indagador para si mesma, ela já não é uma narrativa apenas
de herói problemático, mas uma narrativa problemática. Não é somente o herói que
não consegue alcançar os valores autênticos ao fim da busca; ela própria, enquanto
linguagem da busca, titubeia quanto ao modo de indagar esses valores
adequadamente, ou, pelo menos, apresenta como crítica essa investigação.
Incorpora, por isso, a hesitação ambígua à sua técnica de construção: defrontando-se
consigo mesma, encaracola-se, volta-se contra si própria. A linguagem criadora é
minada pela metalinguagem. O projeto para construir transformase, paradoxalmente,
no projeto para destruir. A poética da busca se faz uma poética da destruição
(ARRIGUCCI JR, 2003, p. 24-25).
Desse modo, estabelecendo uma relação entre O caso Meursault e a fala do crítico
citado, é possível apontar que a própria narrativa de Haroum já se apresenta como
metalinguagem, pois sua prática principal, como narrador protagonista em diálogo com um
francês que o procura para pedir-lhe uma nova versão dos fatos narrados anteriormente em
1942, é propor uma releitura/reescritura/renarração de uma história matriz, contada, por sua
vez, em um livro que veio a se tornar famoso, escrito por um francês que disse ter matado seu
irmão meramente por causa do sol – Meursault. Em outras palavras: Haroum não está ali para
contar/ criar uma história nova, mas para revisar e reapresentar sentidos para uma narrativa
anterior publicada em livro e de autoria francesa, especificamente, pelo assassino de seu
irmão que, sequer, recebeu um nome na obra, tamanho fora a indiferença para com o sujeito
“árabe”. É com tal caráter metalinguístico que a obra do escritor argelino reúne características
marcantes da literatura contemporânea, isto é, a “destruição” da narração “pura” de fatos a
compor uma diegese em favor de um problematizar crítico da própria forma de narrar.
A paródia também é correlacionada por Arrigucci aos recursos recorrentes da
literatura do século XX, sobretudo, em seus anos finais. Ela percebida como uma forma de
produzir literatura atravessada pela mencionada “destruição”, técnica que tanto compõe a
criação das últimas décadas. Cito novamente o autor:

Um dos procedimentos centrais utilizados na demolição é a paródia: mecanizamse


certos recursos estilísticos, enrijecendoos e produzindo o efeito cômico. Desnudam-
se, por outro lado, os procedimentos técnicos por alusão direta no próprio texto
ficcional, provocando o efeito de estranhamento que quebra a ilusão realista e
desmascara o laboratório literário convidando o leitor a participar do jogo da ficção,
a passar de mero consumidor passivo a consumador ativo do texto (ARRIGUCCI,
2003, p. 25).
205
Em compasso com a percepção acima de Arrigucci pode ser encarada a prática
paródica de Kamel Daoud. Apesar de o escritor argelino não interpor uma perspectiva
ridicularizante, ligada ao humor, por exemplo, no seu modo de parodiar Camus, o seu
romance faz ressurgir esse traço característico da paródia e das produções mais recentes que é
a de pôr no cerne da criação dos sentidos ficcionais o trabalho da leitura, da recepção. O
leitor, pois, é transformado de mero espectador em um “coautor” da obra. Ao parodiar O
estrangeiro em O caso Meursault, Daoud convida, como já aqui destacado no capítulo
anterior, os leitores a revisitarem a leitura de Camus e a reinterpretar o romance colonial de
1942, mas, agora, sob o crivo de uma nova voz narrativa: a do irmão do “árabe” morto, que,
ao se estabelecer em diálogo com um personagem francês, refaz em seu discurso a
desconstrução da subjetividade ensimesmada e autoritária do narrador Meursault, oferecendo
outras percepções e organização dos fatos contados inicialmente no romance primeiro.36
Destarte, é curso da pesquisa investigar como se dá essa suplementação que o romance
de Daoud opera em face do clássico de Camus via paródia, sendo importante indagar como os
conceitos (e preconceitos) do narrador camusiano são revisitados, refeitos ou até que ponto
são mantidos alguns deles na produção argelina contemporânea. Como essa nova narrativa em
tom dialógico e em contexto pós-colonial ressignificaria e traduziria a obra primeira, O
estrangeiro, narrada por uma voz monológica, que é a voz de Meursault, a controlar toda a
direção do relato? Estes são pontos de análise na comparação entre os textos que aqui são
entendidos como produções que travam uma relação dialógica de “tradução”, conceito a ser
sistematicamente elucidado a partir de então.

5.2 TRADUÇÃO: A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE O CASO MEURSAULT E O


ESTRANGEIRO

5.2.1 Tradução – além da transposição interlingual: intertextualidade

Eneida Maria de Souza em artigo intitulado “Tradução e intertextualidade”, em que


discute aspectos da crítica literária, aponta que é notável o campo acolher em seu percurso

36 Apesar de não ser o foco da pesquisa, considero oportuno assinalar a possibilidade de leitores que não
conheçam Camus leiam O caso Meursault e do romance possam também extrair sentidos, os quais seriam
diversos, logicamente, daqueles que têm no repertório O estrangeiro. A autora brasileira Andréa Müller
considera essa possibilidade de leitura e a comenta brevemente em seu ensaio sobre o romance do autor argelino.
Vide: MÜLLER, Adréa Correa Paraiso. Uma voz deste século em busca de um lugar na literatura. Revista
Soletras. Nº. 36, vol.2, 2018.
206
histórico “nova roupagem para velhos termos e a renovação resulta sempre em ganho teórico”
(1993, p.35). Nesse sentido, a autora se volta, particularmente, para a noção teórica de
tradução. Cito Souza:

O conceito de tradução, que há muito se tem infiltrado no campo da Teoria da


Literatura, é um dos termos que tem enriquecido o campo literário e ampliado a sua
atuação. Seu sentido remete não apenas à prática usual da tradução interlingual de
um texto em outro, mas também ao processo de leitura e reescrita de um texto
aproximando-se do significado amplo de intertextualidade. Grande número de
estudiosos confirmam a estreita aliança entre a operação tradutora e a apropriação
textual [...] (1993, p. 3536).
É tal acepção ampliada de tradução que interessa no diálogo intertextual entre O caso
Meursault e o romance de Camus. Vista para além do cercado de seu conceito tradicional,
strito sensu, a tranposição de uma composição textual de um idioma para outro, a ideia de
tradução revista como uma prática de leitura e reescrita (em caráter amplificado) de um texto,
transmutando-o em outro, se adéqua ao que Daoud executa em face de O estrangeiro. Encarar
a prática tradutória por tal ângulo abre portas para compreendê-la não apenas como simples
cópia do texto inicial, mas para entendê-la como uma categoria que se enlarguece para uma
relação de intertextualidade, para uma forma de operar uma reescrita que interpõe a
criatividade, a novidade, o diverso. É, pois, tal diferença e tal suplementação que se fazem
visíveis na revisitação de Daoud ao romance camusiano, como pretendo expor nos próximos
itens em fase da análise das obras em trechos selecionados.
Haroldo de Campos, remarca Eneida de Souza, se apresentou como uma figura que
muito contribuiu para o campo dos estudos da tradução. Ela explica que o crítico chamou
atenção para o ponto crucial de que traduzir seria propor novos sentidos ao texto matriz pelo
fato mesmo de que o sujeito que traduz, como leitor que é, traduz interpondo imagens e vozes
de outras produções inseridas numa tradição literária que lhe forma a visão de mundo. Logo,
segundo tal premissa, “a tradução é entendida como atividade criativa, em que a liberdade do
tradutor instaura o intercâmbio amoroso entre os textos, embora não se processe a fidelidade
ao texto original e sim sua transgressão” (SOUZA, 1993, p. 36). Diante do exposto, é factível
ser considerado que Kamel Daoud, na condição de “tradutor” de O estrangeiro, o “reescreve”,
ampliando seus significados por meio de uma ficção que funde o conjunto de obras por ele
lidas, gerando uma outra e diversa criação, a qual ainda que remeta ao romance de Camus,
extravasa seus contornos.
Seguindo a empresa de demonstrar o novo e mais amplo alcance da concepção de
tradução, Eneida Souza também destrincha a categoria em três significações possíveis: 1) na
sua correlação com a antropofagia de Oswald de Andrade, destacando a importância da
207
atividade tradutória na construção do legado brasileiro e latino-americano para o campo da
cultura, legado que foi capaz de “traduzir/digerir” o repertório cultural do “outro”, dele se
fazendo valer para a edificação de uma tradição literária própria, e, concomitantemente,
extravasando seus limites iniciais; 2) a noção por Jakobson pensada como a tradução
intersemiótica, tal qual transcorre no exercício da “transposição de um texto literário para uma
linguagem pictural ou cinematográfica” (SOUZA, 1993, p. 39), por exemplo; e 3) o modo de
tradução presente na exegese da crítica literária; como afirma Souza, “interpretar símbolos,
desvendar escritas enigmáticas, sistematizar as imagens e transformá-las em conceitos
participam também do processo mais abrangente de tradução” (1993, p. 39). Sendo assim, a
partir do prisma de Eneida Souza, se faz perceptível que a terminologia “tradução” se refaz
ampliada e não se restringe ao mero transpor de textos de uma língua para outra.
A tradução, em resumo, se transmuta para o dialogismo interposto pela
intertextualidade. Nessa reconceituação, o termo tem como premissa a criação, a
suplementação do texto inicial, oferecendo a ele nova roupagem e configuração de sentidos. A
tradução, assim, nessa nova conjuntura, “rompe com a ideologia da fidelidade, abalando o
limite rígido entre o original e a cópia e se impõe como texto mais livre” (SOUZA, 1993, p.
38).
É neste conjunto que o romance de Daoud mantém um elo intertextual e tradutório em
relação ao texto de Camus. O caso Meursault, então, “traduz” O estrangeiro de sua condição
inicial e original, ligada ao contexto ficcional de 1942 (em que prepondera uma Argélia
colonial em tensão com uma França vivenciando os impactos da Segunda Guerra) com o qual
Camus interage. Ele o faz e joga com uma conjuntura específica de uma Argélia que passou
pela guerra da libertação e que, em fase pós-colonial, agora, pode ser lida com uma política
que atrela, entre outros aspectos, nacionalismo e fundamentalismo islâmico. Dessa forma,
Daoud acaba imprimindo, pois, ao romance francês novas imagens e sentidos na condição de
seu tradutor.

5.2.2 Tradução: traducere e translatio

João Alexandre Barbosa, na obra As ilusões da modernidade (1986), apresenta uma


concepção de tradução que se concatena com a explanação acima desenvolvida em torno da
prática tradutória, isto é, como ampliada para figurar no interior da crítica literária e englobar
outras e diversas formas de escrita e de intertextualidade. No breve ensaio “Envoi: a tradução
208
como resgate”, que finaliza o citado livro, Alexandre Barbosa se mostra em compasso com as
principais ideias acerca da atividade tradutória em sua acepção mais ampliada, tal como acima
vistas no artigo de Eneida Souza. Na realidade, o crítico pernambucano escreveu seu trabalho
em período anterior à autora de Traço crítico (SOUZA, 1993), já antecipando questões
basilares como a que concerne ao fato de que a tradução pode ser vista como um
procedimento que fundamenta a escritura no interior da tradição literária, e que também
precisa ser, na condição de categoria teórica, concebida como uma reformulação, em tom de
crítica e de renovação, da obra que se toma por matriz.
O início da abordagem do autor aponta a tradução na sua potencialidade mais geral
possível. Ele a entende como gesto elementar do uso cotidiano da linguagem. Cito Barbosa:

a transformação que vai do pensamento à fala ou à escrita, é por assim dizer, o


mecanismo inicial do ato de traduzir. Nesse sentido, a tradução equivale à própria
definição do ser humano enquanto ser dotado de uma linguagem de comunicação
articulada. Embora corra-se o risco da generalização, é preciso acentuar esse caráter
amplo do conceito de tradução: senhor de linguagens, a das artes, das ciências, a da
especulação filosófica, a dos gestos, a dos ritos, e não somente a verbal, o homem é
aquele ser que traduz (1986, p. 155).
Nas acepções em latim do termo, tal qual remarca o pernambucano, o ato tradutório
envolve uma cadeia permanente de reformulação de sentidos, tendo em vista que o termo
denota duplamente: a) levar adiante (de traducere) e b) transferir (de translatio) os
significados daquele corpo textual em trabalho de tradução. A noção de transmutação da
composição matricial na sua tradução se encontra exposta com precisão na citação do crítico:
“Traduzir significaria assim distanciar-se cada vez mais do sentido original pela modificação
de um contexto básico perdido”. Dessa maneira, como o texto de origem se reformula na
tradução, prática executada por um sujeito tradutor, o qual é diferido da autoria original, e
prática também executada a partir de um novo contexto sócio-histório de produção literária
com suas nuances estético-ideológicas, o qual se distancia do contexto de produção primeiro,
apenas resta encará-la na condição de trabalho que estabelece a “diferença”, ainda que
conceba um novo texto que se interliga, de qualquer forma, ao texto gerador através de
aspectos que guardam, sim, semelhanças. Destarte, fica evidente a “perda” da obra original,
em face de sua tradução, de modo que a distância entre ela e seu “duplo” traduzido é aferida
por meio da transformação imposta pelo novo contexto de produção e recepção (JAUSS,
1994). Este a confere nova roupagem e a recupera pelo ganho no interior de uma escritura
diversa.
Tem-se aí um ponto de encontro entre a perspectiva de Barbosa a respeito da tradução
e reformulação da categoria teórica também desenvolvida por Else Vieira (1992) a partir da
209
teoria de Jauss em sua tese de doutorado intitulada “Por uma teoria pós-moderna da tradução”
(1992). A tese de Else Vieira em muito contribuiu para as reflexões que desenvolvi na
pesquisa que realizei de Mestrado, na qual, repito, recortei a tradução do romance machadiano
Dom Casmurro por duas outras obras brasileiras do século XX: São Bernardo, de Graciliano
Ramos (1934) e Amor de Capitu, de Fernando Sabino (1999). Na discussão, assim comento a
leitura que a autora realiza das contribuições de Jauss (1994) para a ampliação da ideia de
tradução:

Na perspectiva da autora, a teoria de Jauss instiga o entendimento da tradução como


uma prática que imprime a marca da diferença, devido à ideia de que a interpretação
do original feita pelo tradutor ocorrerá mediada pelo seu “horizonte de expectativa”
em particular, isto é, será mediada pela sua bagagem cultural característica;
notavelmente, um horizonte que se difere do que envolve a obra originária, sendo
essa diferenciação o que possibilita a recriação, a reinterpretação do texto primeiro,
a sua abertura para o novo (CAVALCANTI, 2009, p. 111).
Mais adiante, destaco no trabalho as ressalvas feitas por Else sobre a teoria de Jauss:
É, contudo, importante destacar que Else Vieira atenta para o fato de que a teoria de
Jauss apresenta algumas limitações. A autora afirma que há uma falta de empirismo
na proposta do teórico alemão, não havendo um instrumental concreto para se
avaliar com precisão as mudanças dos significados na obra por parte das variadas
recepções ao longo da história; em suas palavras: “as idéias em si podem ser
esclarecedoras, mas caem num certo vazio metodológico enquanto instrumentos
descritivos” (1992, p. 107). A autora ataca a ampla e vaga conceituação de noções
chaves, como a de “horizonte de expectativa” e a de leitor, por exemplo. Quanto
especificamente à segunda, ela se queixa de que Jauss não fornece coordenadas
válidas e concretas o suficiente para que seja definido de uma maneira mais palpável
quem é esse leitor, como ele/ela existe na história. Apesar das lacunas deixadas pelo
“pai da estética da recepção”, e assinaladas pela autora, opta-se aqui por tomar a
teoria de Jauss como uma mediação relevante na contemplação da prática tradutória,
ainda que se reconheça que ela não apresenta instrumentais exatos para a obtenção
de respostas fechadas sobre a questão da variação dos sentidos da obra mediante os
diferentes horizontes de expectativa dos diversos leitores no percurso da história
(CAVALCANTI, 2009, p. 112).
Feitas as devidas observações sobre a perspectiva de Jauss para se ampliar a definição
do ato de traduzir, o que pode ser sublinhado é o fato de que Daoud, por estar em novo
contexto de recepção da obra camusiana, dialogando com a tradição literária ocidental e
mesmo com as produções do campo literário argelino, estando na conjuntura histórica de uma
Argélia que, via Revolução, se transformou em nação “independente”, irá traduzir O
estrangeiro, no século XXI, em interface com tais traços conjunturais, inclusive, na interação
com a aqui já comentada ambivalências e tensões culturais das ex-colônias tão bem discutidas
pelo pensamento de Stuart Hall recortado no primeiro capítulo da pesquisa.
Retomando, contudo, a noção de Barbosa sobre a tradução, o que fica retido é seu
aspecto mais amplo que a ideia convencional e lato sensu, baseada na transposição
interlingual; a tradução em uma primeira apreciação é vista como uma dinâmica própria da
210
humanidade vivida no corpo a corpo diário com a linguagem. Igualmente, no pensamento do
crítico, a tradução se amplia na ligação que mantém com o movimento típico da tradição
literária, o qual se faz notório por meio do mecanismo, já descrito por T. S. Eliot (1989) em
“Tradição e talento individual”, no qual autores do presente estão constantemente traduzindo
textos que compõem o imaginário literário do passado, revitalizando as sua balizas estéticas,
seus traços ideológicos, isto é, “transferindo” (translatio) seus sentidos originários e
“levando-os adiante” (traducere) sob outras roupagens e títulos. Nestes se sobressai o novo,
através do intenso esforço e emprego de talentos a modularem as criações dos escritores. O
que ocorre, pois, na relação entre O caso Meursault e O estrangeiro passa por tal mecanismo
tradutório da tradição. Nessa dinâmica, a tradução assume contorno de resgate e revisão
crítica, sobretudo quanto a um passado histórico e a uma memória das relações coloniais que
podem ser problematizados pela escrita do presente.
Por fim, a tradução, para João Alexandre Barbosa, implica, ainda, no seu cerne, o
caráter de se “interpretar criticamente” o texto original em apreciação. É nesse sentido que
pode ser dito que nunca o reproduz copiosamente, mas sempre o refaz e dele se reapropria
oferecendo-lhe suplementarmente uma revisão reflexiva que vem a contraverter sua imagem
inicialmente pré-moldada. É com tais contornos particulares de leitura dotada de criticidade
via tradução que é possível conjecturar sobre o modo como Daoud se volta para o romance
camusiano. Que fique remarcado, portanto, o seguinte trecho da obra de Alexandre Barbosa,
ao conceituar a prática tradutória, uma vez que se coloca como compatível ao dialogismo
intertextual entre os autores em estudo, na medida em que delimita a tradução como atividade
problematizadora e crítica dos objetos textuais a que se refere:

Ao transformar-se em crítica radical das linguagens, a tradução se desaliena,


libertando-se da posição secundária da paráfrase. Ao fazer-se produtora de sentidos,
sem dobrar-se reverencialmente à busca do Sentido, a tradução encontra o seu papel
radicalizador: a crítica do sentido faz convergir os dois movimentos básicos
descritos inicialmente, isto é, aquele que leva adiante e aquele que transfere (1986,
p. 157).
Tendo havido conceituado paródia e tradução para se tecer um construto teórico em
torno do diálogo intertextual que O caso Meursault estabelece com a obra camusiana, um
outro ponto se faz necessário de ser assinalado para qualificar a ficção doudiana. Aqui, ela se
apresenta como uma “tradução paródica pós-colonial”; é o que se discute a seguir.
211
5.2.3 A tradução paródica pós-colonial argelina

A presente tese defende que o romance de Daoud pode ser visto como uma “tradução
paródica pós-colonial” de O estrangeiro, de forma que o adjetivo pós-colonial indica traços
centrais na produção do escritor argelino e a singulariza no contexto da ficção contemporânea
da Argélia. O termo pós-colonial vem aí indicar que tal diálogo intertextual de ressignificação
suplementar da obra primeira se faz ciente de que esta pertence a uma tradição literária
instituída como canônica e ocidental, possuindo hegemonia no quesito de fixação de uma
memória histórica e dominação em valores estéticos aceitos como legítimos dentro dos
quadros literários metropolitanos. Continuando, o termo “pós-colonial” vem aí indicar que a
tradução paródica realizada por Daoud se faz pela autoria de um escritor que é nativo de uma
ex-colônia francesa e que tal condição, como demonstra Hall (2006), dialoga com um
contexto histórico social permeado por conflitos culturais, por tensões entre presente
“independente” e passado “colonial”, por tensões entre os idiomas locais (variações do árabe
e dialetos cabiles) e o francês, por uma literatura magrebina que, como destaca Melissa
Scanhola (2013), desde o período colonial, em momentos próximos ao estourar dos conflitos
que culminariam com a Revolução de independência argelina, se fez atravessar pelo projeto
de recontar a História da nação. Nesse exercício, surgiu a necessidade de criar traços estéticos
autônomos tal como era o desejo de libertação por parte da literatura local criativamente, a
qual, em termos de Literatura, também passava, entre as décadas de 40 e 50, a retornar ao
passado das tradições locais e ancestrais, no afã de construir uma imagem do país que
remetesse às origens autóctones.
Antes da geração contemporânea de Daoud, a Literatura argelina foi interpelada por
uma conjuntura que até o presente se faz uma questão de peso na ficção magrebina: o
paradoxo entre questionar o colonizador e fazê-lo a partir de sua língua “dominadora”. A esse
respeito, cito o trabalho da pesquisadora Melissa Scanhola (2013) a respeito da ficção argelina
do século XX no limiar da Guerra da Independência. A autora, em seu recorte particular,
discorre sobre o escritor argelino Kateb Yacine e sobre a tessitura da nação argelina por ele
realizada no romance Nedjma. Diz ela em trecho no qual contextualiza a produção literária da
região diante das tensões idiomáticas vigentes, o que aqui se faz objeto de interesse para
refletir sobre a tradição estética local que se estabelecia no período circundante às lutas pela
libertação, com a qual dialoga Kamel Daoud de seu lugar contemporâneo:

Mais de um século após o início da colonização, o estrangeiro já se encontrava


arraigado em sua cultura. Isso pode ser visto tanto no domínio da língua francesa,
212
servindo-se dela como instrumento de luta, quanto na influência da literatura
ocidental, que também penetrava os interstícios da literatura magrebina de língua
francesa. Mas era preciso estabelecer uma “fronteira” para se diferenciar da
literatura do Ocidente. No Magreb havia outras línguas, como o berbere, o árabe
dialetal e o árabe clássico, este último pouco acessível à população, por ser
exclusivamente uma língua escrita. Nesse contexto, a língua francesa atribuiu certa
unidade ao Magreb e, consequentemente, desempenhou um papel fundamental na
luta de independência. Por outro lado, alguns desses autores defendiam uma
literatura veiculada por uma língua que lhes fosse “própria”, como o árabe clássico;
outros argumentavam a favor de uma Argélia da qual a língua francesa também
fizesse parte, pois esta já pertencia ao patrimônio cultural argelino (SCANHOLA,
2013, p. 30).
Nesse sentido, “escrever em país dominado” – para utilizar oportunamente um jogo de
sentidos com o título homônimo da obra de Patrick Chamoiseau (1997), representante da
francofonia periférica da Martinica37 –, representava ter que “engolir” a língua colonizadora
para “cuspi-la em ficção” na face da violência colonial, um paradoxo que gerou suas marcas
traumáticas e ao mesmo tempo, frente à condição dominada do escritor autóctone, se
transformou também na sua forma de resistência. O narrador-personagem de O caso
Meursault, Haroum, 1) mesmo narrando décadas depois da publicação de Nedjma (1956) obra
que veio à tona no período dos conflitos iniciais da guerra argelina; 2) mesmo distante,
temporalmente, da corrente literária da Literatura magrebina de expressão francesa cujos
ícones de meados do século XX foram Albert Memmi, Mouloud Feraoun, Mohammed Dib,
Mouloud Mammeri, Driss, Charaib, entre outros (SCANHOLA, 2013), ainda assinala (com
certo rancor aliado a uma visão de estrategista, diga-se de passagem), numa produção do
século XXI, a necessidade de narrar em francês para ser ouvido e para fazer com que sua
resistência possa ecoar do plano da arte para o plano político: “As palavras do assassino e
suas expressões são o meu imóvel desocupado” (DAOUD, 2013, p.10)/ “Aprendi essa língua,
em parte, justamente para contar essa história do lugar do meu irmão” (DAOUD, 2013, p. 15).
Vale ressaltar que a corrente magrebina que vigorava no auge dos conflitos de
libertação pelos ícones citados acima no século XX insurgia contra uma estética literária
anterior que se estabelecia na cultura da região. Esta estava calcada no desejo de reproduzir os
valores literários europeus, estando, não raro, atravessada pela ratificação de estereótipos
orientalistas (SAID, 2007) sobre o próprio povo magrebino, apoiada, conflitantemente, em
uma série de preconceitos. A respeito, considero relevantes as observações de Scanhola sobre
as tendências literárias magrebinas especificamente sobre o fato de sofrer mutações pelos

37 CHAMOISEAU, Patrick. Anabiose sur la Pierre-Monde. In: Écrire em pays dominé. Paris: Gallimard, 1997.
Na obra, o autor da Martinica partilha suas observações sobre a literatura caribenha utilizar o francês como
idioma contradiscursivo à própria dominação.
213
meados do século XX, mas antes de apresentar as palavras da pesquisadora, nesse sentido,
julgo também importante fazer uma ressalva sobre os sentidos da ideia de literatura produzida
no Magrebe, conforme as considerações de Müller (2018), autora que, como eu, visita a
produção de Daoud no Brasil em reflexões em ensaio aqui já mencionado em nota. Coloca
Müller:

A região geográfica conhecida como Magrebe situa-se no norte da África e


compreende cinco países: Argélia, Tunísia, Marrocos, Líbia e Mauritânia. No
entanto, quando falamos em literatura magrebina de língua francesa, referimo-nos
aos três primeiros, devido aos diversos aspectos históricos, culturais e literários que
eles partilham. Apesar das semelhanças, não se pode estudar as literaturas da região
como se formassem um todo homogêneo; é preciso considerar as particularidades da
produção de cada país. Cristianne Lameirinha (2013, p. 58) concorda com Charles
Bonn (1982), segundo o qual não haveria uma literatura magrebina única, sendo
mais adequado falar em literatura argelina, literatura tunisiana e literatura
marroquina (2018, p.225).
Nesse sentido, ficando marcada a necessidade de não se tomar como um todo unívoco
o campo literário em que se insere Daoud como voz magrebina, e de se considerar a
existência de especificidades de cada país que compõem o Magrebe, e aqui, eu ainda sublinho
a necessidade de se atentar sempre também para as outras diversidades que se afloram dentro
do sistema literário de cada nação em face de uma série de variantes, como tempo histórico,
condição geopolítica, autoria e impactos das instâncias de classe, gênero, etinia, religiosidade,
questões editoriais e etc, sigo apresentando a perspectiva de Melissa Scanhola sobre certo giro
político nas produções da Argélia em face da atimosfera da Independência:

Antes, porém, já havia no Magreb uma literatura de língua francesa: a literatura do


norte da África. Ao adotar as mesmas formas de expressão europeias, as obras não
evocavam um desprendimento político e ideológico da matriz. Muito pelo contrário,
eram baseadas nos princípios e formas lá consagrados e faziam ecoar a visão de
famílias francesas enraizadas na Argélia, ou de famílias magrebinas “afrancesadas”,
que possuíam cidadania francesa e forte relação com o velho mundo. O colonizado
nativo, assim como a libertação da colônia, não eram temas que inspiravam os
autores dessa literatura. Posto isso, pode-se afirmar que o processo de
amadurecimento de uma literatura nascida nas terras norte-africanas provém antes
da necessidade de autonomia estética, de uma literatura autêntica, como aparecia no
Manifesto dos algerianistas, publicado em 1920 ... É assim que uma geração
espontânea faz nascer uma literatura que se distinguia da anterior, tanto pela
temática relacionada ao desvencilhamento dos países magrebinos da matriz, como
pela contestação das formas literárias vigentes. Isso ocorreu precisamente com o
final da Segunda Guerra ... A função desses escritores autóctones era denunciar a
espoliação na colônia, a usurpação dos direitos do homem e as atrocidades do
sistema colonial. Proclamavam uma literatura revolucionária e preparavam seus
países para a independência (SCANHOLA, 2013, p. 27-28).
A partir do panorama exposto pela autora, é notável que O caso Meursault brota em
outro contexto histórico de produção, interligado, agora, a recursos estéticos de resistência
critico-literária, como a paródia (HUTCHEON, 1991) e a própria metaficção. Dessa maneira,
214
é preciso, sim, entender que a literatura daoudiana tende a carregar marcas da trajetória
literária magrebina, sobretudo, quanto ao uso do idioma francês em face de uma sociedade
que se atravessa pelo analfabetismo, mas é necessário, também, sublinhar a peculiaridade de
seu projeto literário arquitetado em jogo com seu tempo. Assim, remarcar a consciência
crítica da ficção daoudiana que problematiza a escrita literária na língua do colonizador como
algo que está na base da tradição literária argelina de resistência é não fechar os olhos para as
particularidades da produção do Daoud, que se faz, diversamente, em ritmo paródico pós-
moderno (HUTCHEON, 1991). A esse respeito particularmente do idioma, torna-se oportuno
apontar que Daoud assume uma posição peculiar pela sua visão de mundo diante da cultura
islâmica. O escritor, em várias entrevistas e em algumas crônicas, explica sua opção pelo
francês como uma forma de recusar a língua árabe, já que esta estaria imbricada a valores
muçulmanos dos quais ele prefere se “afastar”38.
Em Daoud, o olhar sobre o passado não se opera mais para se tentar recuperar com
saudosismo tradições ancestrais, como em alguns casos ocorridos nas correntes anteriores,
mas, sobretudo, para, por meio da ironia e crítica que se colocam como as tônicas da paródia,
segundo Hutcheon (1991), romper com uma tradição literária que tinha como projeto a
arquitetura de um nacionalismo, por vezes, nostálgico, suplementando-a com sua marca
própria de escritor argelino na contemporaneidade a dialogar com novas problemáticas entre
França e Argélia. A obra de Daoud, diferentemente, nascida no século XXI, passado o clímax
da Guerra da Independência (1954-1962), mostra se debruçar sobre seu país na relação com a
França sob o crivo da crítica, da denúncia, não ausente de paradoxos, da violência colonial
pela ironia, mas também da problematização do próprio nacionalismo argelino e do
fundamentalismo islâmico, dos autoritarismos políticos, característicos da dinâmica local, os
quais fundaram as bases culturais de uma Argélia dita independente em termos de Estado no
século XX, para enfrentar a condição contraditória pós-colonial (HALL, 2003; 2006;
BHABHA, 2003) a amalgamar escombros de uma ex-colônia em tentativa de se reprojetar
como nação que acolhe novos problemas sociais.
Tentar situar a produção do autor de O caso Meursault na tradição literária argelina,
na esteira do que aqui é apresentado, implica levar em consideração as três fases de que fala
Raqbi (2015) em seu artigo La littérature maghrébine d’expression française: littérature de
déracinement et de dénonciation. Para o autor, haveria uma geração inicial de obras que
problematizavam a identidade local e a denúncia das violências do imperialismo colonial;
38 A referência à visão de mundo apresentada por Daoud em sua ficção e sua crônica é retomada nas
considerações finais da pesquisa.
215
uma segunda leva de escritores que levaram adiante a tematização das práticas injustas do
colonialismo, mas, agora, adicionaram à pauta, de modo explícito, a sensação de bastardia ao
produzirem em francês, o idioma do opressor; por fim, haveria a fase mais recente, cujo foco
central se estabeleceria no ato de se mostrar atenta às questões atuais da sociedade argelina,
seus problemas mais gritantes no presente. O panorama tripartido nessas vertentes, observo,
se revelaria no romance estudado de Daoud de modo diluido. Particularmente, no que sua
obra apresenta os traços das três gerações, caso se atente para seu caráter de representar o
imaginário social da Argélia. Contudo, para além de se procurar um espelhamento da
realidade argelina no texto, o romance induz o analista a nele buscar a problematização sobre
o próprio fazer literário, e, nesta esfera, projetar olhares sobre a metaficção e a paródia como
elementos que apontam rumos da literatura argelina no presente. Como sublinha Müller:

A partir do diálogo com Camus, O caso Meursault interroga as memórias da relação


entre França e Argélia, as dores da colonização e o lugar da língua francesa na
produção literária argelina. E, ao abordar todas essas questões, põe em foco a
própria literatura (2018, p.220).
De qualquer forma, e já avançando a discussão, torna-se significativo pensar as
relações intertextuais entre Daoud e Camus de modo atento também às relações entre as
literaturas francesa e francófonas periféricas em jogo com aquilo que Pascale Casanova
(2002) entende como o universo particular da “República mundial das Letras”. Na sua visão,
tal República concerne ao campo político em que determinadas obras da cultura ocidental
adquirem poder e dominam a política de publicação, circulação e prestígio literário. A autora
francesa discute, dentro dessa “engrenagem republicana literária”, o império construído pela
língua francesa, situada no alto da cúpula, por “cidades editoriais” como Paris e abre espaço
para refletir sobre a categoria que nomeia de “romance pós-colonial”. Segundo Casanova, os
romances produzidos por autores de ex-colônias seriam “utilitários” à hegemonia da cultura
metropolitana por, de uma forma muito particular, demostrarem, pelos próprios recursos
estéticos utilizados por eles, em diálogo crítico com o idioma metropolitano e com sua
tradição literária canonizada, paradoxalmente, causar o efeito também de reforçar o poder
cultural da matriz colonizadora. Em outras palavras, seriam tais romances pós-coloniais uma
ferramenta para explicitar como o poder cultural ocidental continua a se estender, mesmo, e
sobretudo, em função de escritores que, ao desejarem subverter o idioma metropolitano, dele
prescindem para construir uma cultura letrada e, assim, o propagam, de alguma forma, como
referencial inegável de poder cultural. Explica a autora:
216
Exportando suas línguas, as nações europeias também exportaram suas lutas; ou
melhor, os escritores excentrados tornaram-na um dos principais fulcros dessa luta.
O poder literário de uma nação central consegue doravante ser medido pelas
inovações, pelas reviravoltas literárias produzidas em sua língua por escritores
excentrados e reconhecidos universalmente. Para uma língua (e para a tradição
literária vinculada a ela) é a nova maneira de “provar” em ato sua capacidade de
criar uma modernidade e de reavaliar, assim, seu próprio capital por meio dos
escritores sobre os quais exerceu influência. Pode-se compreender desse modo a
importância de noções como a de “literatura do Commonwealth” ou da
“francofonia” que permitem recuperar e anexar as inovações literárias periféricas
sob um estandarte linguístico-cultural central (CASANOVA, 2002, p. 154).

As palavras da crítica francesa revelam a ambivalência existente nas obras de


escritores periféricos: ainda que estes utilizem o idioma metropolitano e subvertam, muitas
vezes, as raízes estéticas ocidentais – as configurações de vocabulário, sintaxe e gêneros
literários, por exemplo – esta dita “subversão” estará “amarrada”, de um modo ou de outro, no
“depender” do resgate da literatura do colonizador. Ao resgatá-la, ainda que criticamente, o
periférico a traduz (BARBOSA, 2005): levando-a adiante e transplantando-as para novos
rumos de sentidos, também, nesse movimento, fortalecendo-a no campo literário. A
ambivalência entre reforçar e desconfigurar a literatura ocidental é, pois, a dinâmica
vivenciada pela escritura em “um país dominado” na conjuntura pós-colonial. Como escritor
da francofonia periférica contemporânea é que Daoud pode ser encarado como autor de um
romance paródico pós-colonial que traduz O estrangeiro na literatura argelina, estando, assim,
marcado pela ambivalência de sua condição na “República mundial das letras”: depender do e
romper com o cânone.
Entretanto, eu ainda acrescentaria a peculiaridade política que há na paródia de Daoud,
caso se tenha em mira a perspectiva de Hutcheon 39 (1991) de que parodiar pode ser também
usar o próprio código canônico, isto é, valer-se de seu prestígio, para de sua plataforma
valorizada, oferecer uma voz que o descentra e o contesta. Ainda em Hutcheon esse
movimento seria a própria junção de reverenciar, homenagear o texto clássico primeiro ao
mesmo tempo em que põe a problematizá-lo, rasurá-lo e suplementá-lo, suplemento enquanto
um “duplo diferido”, como diria Derrida (Apud SANTIAGO, 1972). É ciente desse lugar de

39 Fredric Jameson (1985), é importante destacar, no texto “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, mostra
entender a paródia de modo distinto ao de Hutcheon, atrelando-a precipuamente ao signo do humor. Sendo
assim, o autor cunha o conceito de “pastiche”, o qual, para ele, “é a paródia lacunar, paródia que perdeu seu
senso de humor” (1985, p. 18-19). Opto, contudo, por dialogar com Hutcheon e utilizar a noção de paródia tal
como ela entende. Distanciando-se do termo pastiche, que, para ela, seria “uma paródia neutra ou inexpressiva”
(1991, p. 47), a canadense compreende ser a paródia o construto estético da pós-modernidade e lembra: “não há
exatamente nada de aleatório ou sem princípio na recordação ou no reexame paródicos do passado .... A
inclusão da ironia e do jogo jamais implica necessariamente a exclusão da seriedade e do objetivo na arte pós-
modernista” (1991, p. 47-48).
217
onde parte a ficção Daoudiana, a qual, sobretudo, dialoga com a contemporaneidade das
relações entre França e Argélia, sobressaindo-se aí a questão da imigração e também dos
atentados de autoria do Estado islâmico, que as análises que se seguem serão desenvolvidas.
Estudar o romance pós-colonial de Daoud ainda, na linha dos Estudos culturais e pós-
coloniais, como realizo, é observar que sua ficção entrelaça elementos interligados àquilo que
Quijano (2005), pensando o projeto de “modernidade eurocêntrica” em face da América
Latina, define como “Matriz colonial do poder” (conceituada no capítulo anterior ao se
focalizar O estrangeiro): exploração da terra, do trabalho, dos corpos no seu controle da
sexualidade e da reprodução para o fortalecimento das bases econômicas capitalistas. Nesse
sentido, se faz relevante mapear em Daoud como, na reescritura do romance camusiano, a
partir de uma base estética agora pós-moderna, sua ficção articula a representação de tais
elementos.
No romance argelino, a narrativa representa, de modo articulado, terra e gênero sob o
olhar de nuance patriarcal do narrador; articula terra e sagrado/religiosidade, sob o olhar
conflituoso entre fundamentalismo islâmico e a crítica de tal fundamentalismo por parte do
narrador; ela interliga as fabulações das imagens de argelinos e franceses em jogo com a
posição de poder quanto ao trabalho, a exploração dos corpos, a ocupação do território pelos
diferentes corpos argelinos e franceses e suas relações com questões de gênero. Tal quadro de
embricamento possui tamanha complexidade, que se torna difícil separar, na obra, onde a fala
do narrador discute precisamente a cidade argelina e onde discute as noções de
sagrado/religião e de sexualidade em especial. A narrativa emaranha esses aspectos, porque
assim seria a natureza de suas relações numa conjuntura em que se protagoniza um país
lidando com o pós-colonial (QUIJANO, 2005; HALL, 2003). Dessa forma, sublinho a
extrema dificuldade de setorizar a análise da obra em itens distintos sobre a fabulação da
alteridade, da geografia local, de gênero. Contudo opto, a título de organização cognitiva da
cadeia demonstrativa crítica (LIMA, 1981), por dividi-los, sim, em seções diversas, mas
fazendo a seguinte ressalva: ao se falar das subjetividades árabes, se fala da terra, do sagrado
e da condição de gênero aí implicada; ao se falar do sagrado, se discute a alteridade árabe, a
representação das cidades argelinas no texto e a questão do fundamentalismo local de base
patriarcal; ao se problematizar gênero e, nesse domínio, as masculinidades e a maternidade, é
forçoso pensar a memória da geografia e a afetividade dos personagens diante da família e da
memória argelina sobre as lutas pela independência.
218
O desenho estético de O caso Meursault, portanto, propõe um desafio àqueles que
decidem estudá-lo: organizar uma análise linear de seus aspectos em uma cadeia textual
inteligível. Reconhecendo o impasse presente no texto literário e na sua peculiaridade estética,
julgo propício me entregar a esse emaranhado de sentidos e assumo que os tópicos analíticos
que se seguem são divisões meramente ilustrativas de focalizações de certos trechos em que
um aspecto em estudo se sobressai mais evidentemente que o outro. Entretanto, o faço
advertindo que todos esses pontos (subjetividades árabes, sagrado e religiosidade, islamismo,
geografia, gênero) se encontram e se interpenetram. Destarte, convido os meus leitores, a
assim como eu, permanecerem vigilantes desses encontros interseccionais na obra e nas
análises, compreendendo as visíveis repetições presentes na ficção de Daoud. Estas repetições
ganham mais em serem percebidas não como um retorno ocioso ou como uma “falta” de
habilidade elíptica e sequencial da autoria, mas como a capacidade da obra de enfatizar com
crítica, entre tantos outros aspectos, a interconexão entre as bases da matriz colonial do poder
em sua arquitetura estética.

5.3 A NARRATIVA EM DIÁLOGO COM O OUTRO

Como delimitado acima40, o romance O caso Meursault (2013), de Kamel Daoud, se


realiza como tradução em caráter paródico (HUTCHEON, 1991) do clássico O estrangeiro
(1942), de Camus. O ponto de vista narrativo, frente à obra camusiana até então é inédito: o
do irmão do “árabe” morto por Meursault, narrador-protagonista do romance francês. O caso
é que tal “seleção” e “combinação” estética (ISER, 2002) termina por retirar do silenciamento
e da marginalidade, no contexto literário do século XXI, a memória da família árabe, tantas
vezes subalternizada pela narrativa meursaultiana e pela crítica tradicional no século XX
(como visto no Capítulo 2). Daoud realiza uma reconstrução das identidades argelinas a partir
de nomes árabes agora expressos no texto, contrariando o anonimato argelino em Camus:
“Haroum” é o personagem que encabeça a narrativa e conta detalhes do que ocorrera com seu
irmão “Moussa”, assassinado numa praia de Argel, num exercício de repensar a memória do
passado e “corrigir” a versão da história oficializada pelo prestígio e pelo requinte estilístico
em língua francesa concedido ao citado “livro” em que Meursault é indicado como herói.

40 Os próximos itens do trabalho retomam pontos já exaustivamente indicados na pesquisa, mas tal retomada
objetiva inserir as devidas suplementações analíticas que trazem novas nuances ao que já disse sobre o romance
de Daoud.
219
O romance argelino vem, assim, elucidar um passado tanto histórico quanto ficcional
das representações dos sujeitos árabes e da Argélia, que, com frequência, são sujeitos
subalternizados e marginalizados pela crítica tradicional, sobretudo, quando se tem como
corpus investigativo preponderantemente narrativas hegemônicas e canônicas da História da
Literatura ocidental, tal qual O estrangeiro. Trata-se, pois, de uma forma de construir a ficção
que aparenta, quebrando as barreiras entre arte e espistemologia crítica bastante em jogo com
as tendências pós-modernistas, estar em consonância com o que vem desenvolvendo os
Estudos Pós-coloniais nas últimas décadas. Estes, por sua vez, aqui já foram definidos, a
partir de Inocência Matta (2016), como um amplo domínio de estudos que entrecruza variados
campos e disciplinas para examinar as relações entre as produções culturais e panoramas
políticos atravessados pelo histórico colonial e pela violência inerente à empresa imperialista.
Dessa forma, a partir do momento em que a tradução paródica de Daoud frente ao
clássico camusiano arquiteta um olhar para focalizar as alteridades argelinas (iniciativa que
dialoga com a Crítica pós-colonial), passa a pôr em evidência a dimensão ética que é capaz de
estar presente na Literatura, como bem observa Roland Walter (2015) em ensaio intitulado
“Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica”. Cito o autor:

O efeito ético da literatura reside na sua capacidade de provocar ideações de (outras)


identidades e (outros) mundos; ideações estas que abrem o pensamento racional para
seus horizontes emocionais, constituindo encruzilhadas imaginativas, onde é
possível avaliar as nossas escolhas. É assim que a semiótica cultural mediante a
análise da diferença cultural entre os grupos sociais multiétnicos e suas formas de
expressão e vivência ganhou sua maior força sociopolítica, teórico-literária e, por
meio dos estudos pós-coloniais, histórica (2015, p. 609).
É a partir desse entendimento que O caso Meursault é, neste trabalho, discutido:
como uma espécie de ficção que, esteticamente, assume traços a provocarem uma abertura
para a convivência ética, por parte de variados leitores, com a diversidade cultural argelina.
Esta, não de outra maneira, se faz representada em sua obra com as cores das mais tensas
contradições em face da conjuntura pós-colonial que lhe atravessa.
Finalizado o preâmbulo acima, o primeiro ponto a ser destacado no romance de Daoud é
o de que o autor seleciona o recurso estético em que o seu narrador-protagonista Haroum (o
irmão do árabe assassinado) tece sua narrativa numa conversa com um narratário francês.
Trata-se de um homem identificado como “investigador universitário”; a figura aparenta ser
um estudante ou crítico literário vindo da França e dotado, então, de prestígio na “República
mundial das letras”, comentada por Casanova (2002). O francês teria procurado Haroum para
ouvi-lo, como fonte informativa, para a sua declarada busca por conhecer fatos da história
inicialmente contada sob o domínio de Meursault (agora, podendo ser percebidos a partir da
220
voz do familiar da vítima assassinada). Na escuta, o narratário europeu (junto aos leitores da
obra) terá acesso a particularidades nunca antes reveladas no original de Camus, como, por
exemplo, quem era o árabe morto, para além de um sujeito genérico e estereotipado, de
macacão azul com uma faca na mão e uma flauta na boca a transitar (sem falas) pela praia e a
estar, de algum modo, envolvido com a espancada mulher árabe (também sem nome em
Camus) pelo personagem Raymond em O estrangeiro.41 Assim, Moussa, a vítima de
Meursault, recebe pela narrativa de seu irmão sobrevivente e permeado por lembranças, uma
descrição física, psicológica, sociocultural. Sua intimidade familiar é trazida à tona e atrelada
a todo um trauma que sua morte causou a sua mãe e a seu irmão, seres “solitários” que
restaram do mesmo sangue argelino, abandonados, por sua vez, por um pai que sumiu desde
cedo para emigrar.
Este aspecto dialógico da narrativa doudiana que rasura o monólogo meursaultiano,
nos põe diante de duas identidades historicamente conflitantes e intercambiantes (o francês e
o árabe-argelino). No texto, estes sujeitos decidem e desejam se enfrentar rosto a rosto para
dialogarem e construírem sentidos de si e do mundo ali, naquele momento diegético presente,
suas vozes e ouvidos que se conectam por livre iniciativa. Eles conseguem interpor um
diálogo, ainda que, no passado, a guerra da Independência tenha sido, como destaca Yazbec
(2010), um dos episódios mais sangrentos do século XX; eles conseguem dialogar, ainda que
imigrantes argelinos transitem pela França e incomodem boa parte da população francesa que
carrega o medo de perder sua identidade cultural no próprio solo (SAYAD, 1998), tamanho é
o alcance das amálgamas tensionadas da cultura pós-colonial (HALL, 2003; BHABHA,
2003). Tratam-se de pólos identitários (o francês x o árabe) colidentes dentro dos processos
coloniais entre a Argélia e a França e de processos socioeconômicos enfrentados
contemporaneamente pelos dois países, como a questão da imigração argelina e dos atentados
do Estado Islâmico à França. Fatos estes responsáveis pela tensão que persiste entre ex-
colônia e metrópole, mesmo após décadas da sangrenta Revolução argelina pela
independência (1954-1962), demostrando que as farpas históricas do imperialismo europeu
entrelaçam as identidades culturais na pós-modernidade, como bem explica Stuart Hall
(2000). Nesse sentido, ao interpor o diálogo entre os dois pólos França e Argélia, por meio de
uma ficção que, em si, se mostra dialógica (pela paródia) com um clássico literário da França
e do Ocidente, o autor traz à tona as possibilidades de leitores atuais (franceses, argelinos e
todos os demais), pensarem nessas culturas como culturas passíveis de fala e escuta,

41 Vide análise no Capítulo 3.


221
quebrando, em certo sentido, uma ordem pré-estabelecita pela História de que um subalterno
não poderia falar (SPIVAK, 2010) ou só poderia escutar e de que o imperialista não poderia
ouvir, ou delegar importância à fala de um ex-colono. A ficção de Daoud, pois, autoriza um
mecanismo de relações entre os sujeitos que se coloca como dissidente de uma ordem
hegemônica binarizante: a que reproduz o estereótipo de uma única relação entre os sujeitos: a
de pura violência e de autoritarismo congenitamente surdo.
O recurso estético de um narrador que se dirige a um narratário selecionado por Daoud
se afasta da narrativa “ensimesmada” de Meursault, uma narrativa centrada apenas na sua
figura, que controla o discurso. Nesta seleção estética, é perceptível uma semelhança entre O
caso Meursault e o romance A queda, de Camus, no qual o autor francês põe em prática
também uma narrativa dialógica em que um narratário estimula o tecer da narrativa de um
francês operador do Direito, gerando-se uma cadeia de questionamentos implícitos e
impelindo um exercício por parte do leitor para que este se conscientize de que compreender
os sentidos do texto é, para além da oitiva da superficialidade textual, suprir vazios presentes
no diálogo entre os dois sujeitos que conversam, recuperar pelo narrador ecos da fala implícita
de um interlocutor. Segue um trecho ilustrativo de A queda em que se verificam o tom
dialógico da narrativa e a importância da figura do narratário para que o narrador teça sua
história. Nessa interface, o leitor exercita o trabalho de reconstrução dos ecos das falas não
disponíveis do interlecutor nos sentidos da fala do locutor. Cito:

Que é um juiz penitente? Ah, deixei-o intrigado com esta história! Não coloquei
nisso malícia alguma, acredite, e posso explicar-me com mais clareza. De certa
forma, isso faz mesmo parte das minhas funções. Mas, em primeiro lugar, é
necessário expor-lhe um determinado número de fatos que o ajudarão a
compreender melhor a minha narrativa (2017, p. 15).
Remarco a tendência do discurso do narrador se erguer como resposta a perguntas do
narratário, muitas vezes, retomadas em eco pela sua fala, como tipicamente ocorre numa
conversação oral. Esta particularidade de A queda é elemento que se funde à paródia de
Daoud. Nela, os dois romances de Camus revivem em novas articulações e simbologias.
Adréa Müller também observa o dialogismo entre o romance de Daoud e A queda.
Nesses termos, se coloca a autora:

Outras obras de Camus também são solicitadas pelo romance de Daoud. La Chute
(1956), por exemplo, parece ressoar na composição da narrativa de Haroun: este
último, já idoso, conta sua história a um estudante em um bar da cidade argelina de
Orã; caberá a esse estudante escrever o relato transmitido oralmente. A situação
lembra a de Jean-Batiste Clamence, protagonista de La Chute, que constrói sua
narrativa em forma de monólogo dirigido a um homem em um bar de Amsterdam.
Há estudos que consideram O caso Meursault como pastiche de La Chute
(LOUAIL, 2016). No entanto, é com O estrangeiro que se estabelece um diálogo
222
mais direto, cujas marcas se deixam identificar de maneira mais contundente desde o
título (2018, p.220).
Em seguida, faz-se significativo o fato de Müller fazer questão de ressaltar a própria
atração que a figura de Camus exerce sobre os escritores contemporâneos locais. Afirma ela:

Kamel Daoud não é o único nem o primeiro escritor argelino francófono a revisitar
Albert Camus. Seu romance faz parte do que Christiane Achour chama de “conjunto
impressionante de referências argelinas a Camus” (ACHOUR, 2015). Destaca-se
entre as diversas obras que alargaram esse conjunto em 2013, quando do centenário
de nascimento do autor de O estrangeiro (LOUAIL, 2016) (MÜLLER, 2018, 220).42
Mas, a semelhança de O caso Meursault com A queda está além da sua narração
dialógica em face de um narratário; ela se caracteriza também no que diz respeito ao tom
crítico de ambos os narradores (camusiano e daoudiano) para com a sociedade que têm como
referência e, sobretudo, ao espaço onde ocorre a narrativa: um bar. Se Camus cria um diálogo
em um bar de Amsterdã em que um operador do Direito problematiza as hipocrisias da
própria área de atuação profissional, Daoud leva ao ápice a crítica da sociedade a partir da
qual escreve ao construir a sua paródia como um texto dialógico entre um argelino e um
francês que pede para ouvi-lo exatamente em um bar de Orã acerca de uma revisão do “caso
Meursault” no “livro que ficou famoso”. A locação, em Daoud, diversamente do que ocorre
em uma metrópole ocidental como Amsterdã, deixa à mostra que o consumo de álcool e o bar
não são elementos iguais em todas as culturas. Numa cultura islâmica autoritária e
nacionalista, numa cultura argelina em que, historicamente, a colonização francesa, como
ressalta Yasbec (2010), explorou a terra e a mão-de-obra para a produção de vinho, o bar é um
espaço narrativo de tensão por aludir a uma memória de um duplo autoritarismo: a) o da
política argelina, que gere interesses de grupos fundamentalistas, os quais não veem com bons
olhos práticas alcoólicas e inibem a liberdade de uma Argélia que poderia ser acolhida como
um país plural e não unicamente de vertente islâmica (DAOUD, 2018); b) o da política
colonial francesa, que, violentamente, no auge de seu imperialismo, retirou a cultura de
cereais, a qual era a base agrícola da população do Mediterrâneo magrebino, para impor a
cultura de vinícolas, explorando a terra e o trabalho dos argelinos miseráveis e analfabetos,
dos quais muitos foram desterrados do litoral para se agruparem no deserto (YASBEC, 2010).
Com tal delinear, as escolhas estéticas de Daoud na tessitura da narrativa e do espaço
diegético revelam a tendência de sua ficção paródica de procurar jogar no “colo” dos leitores
as tensões histórico-políticas da memória argelina. Cito Daoud em passagens nas quais o bar
se apresenta como um lugar de tensão na Argélia:

42 Schatz (2015) adverte que Camus é referência para outros escritores argelinos e cita a obra de Hamid Grine
Camus dans le Narguilé, “sobre um homem que ouve o boato de que Camus seria seu pai biológico”.
223
Quem é Moussa? É meu irmão. E é aí que eu quero chegar. Quero lhe contar
o que Moussa nunca poderá contar. Ao abrir a porta desse bar, você adentrou
um túmulo, meu jovem amigo. Está com o livro aí na sua pasta? Muito bem,
dê uma de bom aluno e leia para mim os primeiros trechos... ...
Rá-rá! Você quer beber? Aqui, as melhores bebidas são oferecidas para
depois da morte, não antes. É a religião, meu irmão. Seja rápido, pois em
alguns anos o único bar ainda aberto será no paraíso, bem depois do fim do
mundo.
...
Beba um pouco e olhe pela janela; pode-se dizer que o país é um aquário.
Bem, bem, é culpa sua também, meu amigo; a sua curiosidade me instiga.
Faz anos que espero por você, e, se eu não puder escrever o meu livro, posso
ao menos contá-lo para você, certo? Um homem que bebe sonha sempre com
um homem que o escute. Esse é o ditado do dia, para você registrar nos seus
cadernos... (2013, p. 12-15)
As palavras de Haroum expressam sua ironia diante: a) um livro que se torna
referência canônica a ser reinvestigado, isto é, o livro do colonizador francês; b) uma Argélia
fundamentalista que, em dado momento, reprime a bebida, mas, paradoxalmente, liberaria
para fiéis islâmicos no plano do “paraíso”; c) a de uma França que, por meio de um narratário,
se permite escutar e descentra-se de sua hegemonia em termos de lugar de fala.
A obra, em todo caso, oferece pistas textuais para, a partir da interposição do diálogo
“narrador-narratário”, cravar uma crítica à Meursault e questionar: seria o seu tom narrativo
autocentrado, monológico, um hábito de um narrador autoritário, em semelhança ao
autoritarismo do colonizador? Meursault, em O estrangeiro, se apresenta como um homem
que controla o discurso, julgando, pela sua voz unívoca, os demais personagens, julgando
Deus (no cristianismo) e os árabes. Sua posição é de quem fala de modo assertivo, numa
sintaxe que afirma e não titubeia, pouco questiona. Ele é uma espécie de “juiz” de uma
sociedade que presencia o absurdo, do qual a sua existência toma consciência e o
problematiza, diversamente dos demais actantes, que parecem não se dar conta de que a vida
não teria sentido e de que Deus não haveria preparado um paraíso após a morte para os
sujeitos cristãos, portanto, presos a ilusões. Seu discurso é de si, sobre si, para si e para uma
tradição moral que continuaria a repetir a tarefa de Sísifo, de empurrar ininterruptamente o
peso da pedra, sem dela tomar ciência.
É válido atentar ainda para o fato de que quando Kamel Daoud opta por uma narrativa
em diálogo entre narrador e narratário, faz seu texto se aproximar do campo da ética da
alteridade proposto por Emmanuel Lévinas (2010). A ideia de alteridade em Lévinas está
conectada à de ética. Subverter o aporte filosófico ocidental calcado na ontologia, na
centralidade de um sujeito ensimesmado, é a perspectiva do pensador lituano para a tessitura
224
de uma identidade que, de acordo com seu olhar, não está fixamente acabada, em
contrapartida, se constitui em jogo com o outro, face a face, em diálogo. Cita-se o filósofo:

Esta inversão humana do em-si e do para-si, do “cada um por si”, em um eu ético,


em prioridade do para-outro, esta substituição do para-si da obstinação ontológica de
um eu doravante decreto único, mas único por sua eleição a uma responsabilidade
pelo outro homem – irrecusável e incessível – esta reviravolta radical produzir-se-ia
no que chamo do encontro do rosto de outrem. Por trás da postura que ele toma ou
que suporta – em seu aparecer, ele me chama e me ordena do fundo de sua nudez, de
sua miséria, de sua mortalidade. É na relação pessoal, do eu com o outro, que o
acontecimento ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz
além ou eleva acima do ser (2010, p.242).
Assim, sob o ângulo de Levinás, em Daoud, ter-se-iam as identidades árabes refeitas
em O estrangeiro de uma maneira peculiar: um escritor argelino projetaria o seu ato de
escrever uma história (dirigida tanto a uma tradição ocidental, quanto a comunidades
periféricas) de que um francês universitário, na contramão do que fora historicamente, na
conjuntura imperialista, a imposição francesa de um silenciamento dos sujeitos que colonizou,
busca reconhecer as possíveis arestas de uma história argelina e familiar ocultada no romance
camusiano de caráter monológico francês e centrado na perspectiva daquele que mata “o
árabe”, que violenta e assassina.
Daoud, dessa forma, arquiteta em sua ficção, uma imagem de uma França “outra”: a de
uma ex-metrópole que quer e pede para ouvir sua ex-colônia na pessoa de seu subalternizado
explorado e agredido na memória familiar; uma França que, nessa esteira, em se tratando de
tradição literária, abdicaria de cristalizar e obedecer unicamente aos sentidos de uma narrativa
ensimesmada, canonizada e feita por um narrador assassino de um árabe (que era Meursault).
Trata-se, assim, da imagem ficcional de uma França que se dispõe a “re-conhecer” as
identidades argelinas marginalizadas e sem voz/nome em um romance clássico de uma era
colonial do século XX.
Tem-se aí a percepção de escritor argelino contemporâneo que, a partir de seu lugar
francófono periférico, articula seu projeto de criar um narrador “árabe-outro”, não mais
carbonizado junto a uma memória argelina negada por uma História única (ADICHIE, 2019),
eurocêntrica. O que O caso Meursault traz à baila é um narrador que tem sua voz demandada
e “valorizada” pelos dispostos ouvidos ocidentais, e que, nessa dinâmica, rompendo com um
passado histórico de silenciamento, desfruta do “privilégio” de contar a própria história
familiar e argelina. O ato é um fato ficcional que transgride uma realidade magrebina em que
os sujeitos estariam mais acostumados a apenas sufocarem suas memórias, impassíveis de
225
serem escritas, dado ao quadro de analfabetismo local, afeitos a apenas sofrerem (no caso da
maioria pobre) com a fome, a exploração, a emigração, à subalternização.
Cabe, entretanto, remarcar: essa façanha do narrador daoudiano escolher narrar sua
experiência só toma a proporção de abertura à transgressão de uma imagem subalternizada
cristalizada no texto da forma que toma, porque a sua “fala-narrativa” é dirigida a um jovem
francês intelectual que lhe pediu outra versão dos fatos e que se coloca como disponível à
escuta. É apenas pelo diálogo com o francês que a transgressão se opera. Ainda que a fala do
narrador Haroum domine e norteie o discurso em seu quinhão marjoritário, tudo o que ele
revela se faz porque ele fala em função do outro, do francês, nessa interface e intersecção. O
“árabe”, cujo irmão “árabe” fora assassinado, ao se reportar a um intelectual francês que
investiga o que está “por trás” na narrativa meursaultiana, deixará entrever a face
traumatizada e revoltada contra a ex-metrópole francesa, contra a tradição literária e crítico-
literária, no que concerne à versão da história do assassinato contada por Meursault. Todavia,
tal revolta não se faz sem contradições e tensões ambivalentes. Irá, pois, se manifestar
conflituosamente, na posição simultânea de reverência e crítica ao clássico, bem como ao que
a própria Argélia se transformou ao travar conexões com um fundamentalismo religioso e se
deixar atravessar por um regime político autoritário e nacionalista.
É de sublinhar que, embora o narrador Haroum demonstre, ao dialogar com o
“investigador universitário”, ceder e servir ao desejo francês de ouvir, também é seu desejo
falar. E, é importante também destacar que, ainda que Daoud selecione esteticamente a
narrativa dialógica, o romance, igualmente, não faculta que o intelectual francês tenha um
nome, não lhe confere subjetividade, tratando-lhe de modo genérico como
“francês/universitário”. Também a narrativa de Haroum não permite que “o livro”, cuja
história “(re)investiga” o narratário, tenha um título expresso no seu romance. Sempre o
personagem Haroum cita no seu discurso de modo lacunar a publicação de um “livro que
ficou famoso”, mas este, fica apenas sugerido, nunca definido, como sendo o livro escrito por
Camus, O estrangeiro, em que Meursault é o herói. Assim, nem Camus, nem o narratário,
nem O estrangeiro, entidades francesas, são citados nominalmente e com suas identidades
determinadas. Apenas o nome do personagem Meursault aparece na obra, e assim se faz
expressamente no título: Meursault contre-enquête/ O caso Meursault. A identidade do
assassino francês precisaria estar bem exposta na memória da história, daí Daoud não oculta a
sua expressão explícita e enfatizada: O caso Meursault. Escreve o autor, dessa maneira, sua
ficção paródica para trazer os nomes árabes em protagonismo, em “canto paralelo”
226
(HUTCHEON, 1991) à marginalização que lhes é atribuída em O estrangeiro. Moussa,
nomeado pelo narrador e irmão Haroum, se faz a personificação familiar do retorno da vítima
devidamente revisitada, reescrita e legitimada como vítima (fato descartado, na diegese de O
estrangeiro, pela justiça colonial que julgou Meursault, caracterizada por subalternizar a
memória do morto na defesa da moralidade francesa ligada ao cristianismo e à maternidade,
supostamente, devassados pelo discurso narrativo de Meursault). Nesse compasso, o escritor
argelino revolve a memória da tensão colonial, bem como sua presença latente no texto de
Camus.
A primeira identidade árabe posta em problematização aqui, então, é a do narrador
daoudiano. Sua narrativa não vem da sua possibilidade de narrar voluntariamente. Ela serve a
uma demanda do intelectual francês. Está-se aí diante de uma narrativa que aponta para as
ambivalências da identidade desse sujeito que narra: ele não controla totalmente o discurso,
uma vez que sua fala é gestada a partir do outro, ele só tem o privilégio de ser narrador em
face do narratário (um só é narrador porque o outro é narratário e vice-versa, são figuras
imbricadas como elementos que tecem esteticamente a narrativa), contudo, tem-se um
discurso argelino em tom de revolta contra o passado colonial e literário, de modo que só pela
narrativa, o outro lado da História pode vir à tona. Há no ato narrativo de Haroum uma
dialética entre “servir e reagir”: é a dialética da narrativa pós-colonial, trançada a contradições
e conflitos, como é a própria história colonial.
O trecho a seguir se faz ilustrativo do tom dialógico da narrativa e do tom revoltado
que marca o discurso do narrador Haroum presentes no romance de Daoud:

Você registrou isso? Meu irmão se chamava Moussa. Ele tinha um nome. Mas
continuará sendo o árabe, para sempre. O último da lista, excluído do inventário do
seu Robinson. Estranho, não é? Há séculos, o colono espalha a sua fortuna dando
nomes às coisas de que se apropria e retirando os nomes daqueles que os
incomodam. Se ele chama o meu irmão de o árabe, é pra matá-lo como se mata o
tempo, passeando sem rumo. Para seu governo, saiba que, depois da independência,
mamãe lutou durante anos para manter uma pensão materna de mártir. Você deve
imaginar que ela nunca conseguiu. Pois me diga, por favor, por quê? Impossível
provar que o árabe era um filho – e um irmão. Impossível provar que ele havia
existido, sendo que ele foi morto publicamente. Impossível encontrar e confirmar
alguma ligação entre Moussa e ele próprio! Como dizer isso para a humanidade se
você não sabe escrever livros? Mamãe passou um bom tempo, durante os primeiros
meses da Independência, tentando colher assinaturas ou testemunhos, em vão.
Moussa não tinha nem mesmo cadáver!
Moussa, Moussa, Moussa... Gosto às vezes, de repetir esse nome, para que ele não
desapareça dos alfabetos. Insisto nesse ponto e quero que você escreva em alto e
bom som. Um homem acaba de receber seu nome meio século depois de sua morte e
de seu nascimento. Insisto nisso.
Eu pago a conta nesta primeira noite. E o seu nome, qual é? (DAOUD, 2013, p. 22-
23).
227
Note-se que marcar o nome do irmão morto é declaradamente uma insistência e uma
reparação frente ao relato de Meursault. E mais: note-se que ainda que o nome do intelectual
francês seja interpelado por Haroum, seu discurso narrativo não permite que ele se revele. Tal
configuração explicita que Daoud, ao fazer ressurgir criticamente o relato meursaultiano em O
estrangeiro em sua obra, lança mão de um construto estético no qual não há lugar para a
identidade do interlocutor francês, que figura sem subjetividade ou memória familiar, tal
como se passou como figurara o árabe em Camus. É como se sua ficção resgatasse, em parte,
o código de Hamurabi: “olho por olho, dente por dente”, para “reparar” a omissão da
identidade árabe em O estrangeiro. Em contrapartida, sublinho as contradições do
personagem: diversamente de Meursault, Haroum nomeia o “francês” que assassina no texto,
demarcando a sua distinção ética nesse quesito frente ao narrador camusiano: “Haveria
também Joseph, o homem que eu matei” (2016, p. 106).43
A segunda alteridade a aqui ser destacada é a alteridade do árabe assassinado pelo
colono: Moussa. Os trechos comentados a seguir apresentam descrições do personagem que
lhe conferem uma subjetividade anteriormente negada. É a primeira vez na História da
literatura ocidental, revisada pela literatura contemporânea argelina, que se oferece uma
silhueta, voz, corpo, face, uma memória do “árabe” assassinado e marginalizado no clássico
camusiano. Seguem-se algumas nuances da obra nesse sentido.

Para ser claro: éramos apenas dois irmãos, sem nenhuma irmã de hábitos levianos,
como sugere no livro o seu herói. Moussa era mais velho, e sua cabeça tocava nas
nuvens. Era muito alto, sim, tinha um corpo magro e enrijecido por causa da fome e
da força que a raiva gera em uma pessoa. Tinha um rosto anguloso, mãos enormes
que me defendiam e olhos duros por causa da terra perdida pelos seus antepassados.
Mas, quando penso nisso, acredito que ele já nos amava como fazem os mortos, quer
dizer, com um olhar vindo do além e sem palavras inúteis. Guardo poucas imagens
dele, mas faço questão de descrevê-las para você detalhadamente. Como naquele dia
em que voltou cedo da feira do nosso bairro, ou do porto; ele trabalhava ali como
carregador e faz-tudo, levando coisas, empurrando, erguendo, suando. Nesse dia,
cruzou comigo enquanto eu brincava com um pneu velho, colocou-me sobre os
ombros e me pediu para segurar as suas orelhas como se a cabeça dele fosse um
volante. Lembro-me da alegria que eu sentia por tocar o céu, enquanto ele fazia o
pneu rolar e imitava o barulho de um motor. Sinto o cheiro dele. Um cheiro forte de
verdura podre e suor, músculos e respiração misturados. Outra imagem é de um dia
de celebração do Aïd. Na véspera, ele tinha me dado uma surra por causa de uma
bobagem qualquer, e estávamos chateados um com o outro. Era o dia do perdão, ele
deveria me abraçar, mas eu não queria que ele perdesse o orgulho ou se rebaixasse
para me pedir desculpas, mesmo em nome de Deus. Lembro-me também de como
ele ficava parado na entrada de casa, de frente para o muro dos vizinhos, com um
cigarro e uma xícara de café servida pela minha mãe (2013, p. 16-17).
A passagem coloca os leitores de O estrangeiro de frente com aquilo que a justiça
francesa no julgamento de Meursault não chegou a trazer à tona numa possível, mas

43 Retomo esse detalhe adiante.


228
inexistente, fala de uma testemunha judicial, da família da vítima no dia do julgamento do
assassino francês: quem era Moussa, o argelino assassinado. Na sua descrição décadas mais
tarde (71 anos), via paródia daoudiana, o discurso de Haroum dá amostras do teor patriarcal
da narrativa e da valorização de uma masculinidade hegemônica local relacionada ao morto.
Tal masculinidade se faz presente pela imagem física apresentada do corpo de Moussa, pela
agressividade que lhe é característica, pela ligação que este estabelecia com a figura feminina,
mencionada, de modo machista por Haroum, como “irmã de hábitos levianos”; o adjetivo
“levianos” evidencia o controle da sexualidade feminina na cultura local.
Ainda no trecho acima que faz o “retrato” de Moussa, a exploração de seu trabalho e
sua pobreza são sublinhadas na alusão à fome e à profissão de “faz-tudo”, de “carregador” na
geografia periferizada do porto e da feira em Argel, bem diversa da geografia recortada pelo
mar tecido no romance de Camus, como visto no capítulo anterior, como instrumento/recanto
de prazer e lazer desfrutado por Meursault na sua posição privilegiada de pied-noir. O rosto e
os olhos da vítima assassinada guardam no excerto a memória da colonização e a implicação
das perdas territoriais e emotivas; a perplexidade dos sujeitos locais diante de assistirem à sua
terra ser tomada por franceses se revela no desenho do personagem. A subjetividade
complexa do “árabe” assassinado se refaz na sua ambiguidade: ele é afetuoso e ao mesmo
tempo agride sua família (irmão, em quem bate esporadicamente, e a mãe, com quem grita e é
violento); suas crenças e rituais culturais árabes como o Aïd são evidenciados, remarcando-se
a Argélia naquele território dominado por franceses, o que nunca recebeu espaço, fosse no
romance de Camus, fosse na fala de críticos franceses aqui analisados como Sartre (2005) e
Barthes (2004a). Por fim, destaco na passagem citada, que a figura materna ressurge viva, no
papel de cuidadora e servil ao filho, o que salienta a ordem patriarcal da cultura argelina, na
qual cabem tais papéis cristalizados, como servir café a um filho homem mais velho, o qual,
na ausência de um pai para chefiar a família, se torna a personificação do patriarca.
Continua adiante Haroum a detalhar Moussa:

Moussa era, portanto, um deus sóbrio e pouco falante, transformado em gigante por
uma barba grossa e braços capazes de quebrar o pescoço de um soldado de qualquer
faraó de antigamente. Por isso lhe digo que, no dia em que soubemos da morte dele
e das circunstâncias em que ela se deu, eu não senti nem dor nem raiva, mas, antes
de qualquer coisa, uma decepção e uma ofensa, como se me tivessem insultado. Meu
irmão Moussa era capaz de abrir o mar ao meio, mas morreu na insignificância,
como um figurante qualquer, em uma praia que hoje nem existe mais, perto das
ondas que deveriam tê-lo tornado célebre para sempre! (2013, p. 18)
Nas palavras do narrador, revela-se, na frustração pela forma da morte, a sua mágoa
por uma masculinidade árabe (reproduzida novamente pelo fenótipo de força física, pela
229
agressividade e virilidade) devassada por um ato de assassinato lido como “sem sentido” de
um francês, afetado por suas perdas existenciais sob a linha filosófica que cunhava suas ideias
como personagem ficcional (o qual, remarco, é frequentemente encarado como um duplo de
Sísifo, em O mito de Sísifo, de Camus). O protagonismo patriarcal argelino ferido pela
hegemonia filosófica francesa é lamentado pela voz narrativa de Haroum, que, dessa forma,
se apresenta apoiada nas bases de um etos patriarcal característico de sua cultura.
A seguir, destaco outro excerto que reconstrói a identidade de Moussa silenciada em O
estrangeiro. Nele, grifo a confluência de expressões na língua árabe, como forma de
resistência cultural argelina, em meio ao monopólio do francês na narrativa. Também assinalo
a tendência à bebida, vinda justo de um fiel islâmico (não autorizado pela religião a consumir
álcool) que tatua sua devoção na pele. Trata-se de um paradoxo da identidade do personagem
cuja complexidade e ambivalência são frequentemente destacadas no romance. Cito:

Eu recompunha tudo. As bebedeiras frequentes de Moussa nos últimos tempos,


aquele cheiro que pairava no ar, o sorriso orgulhoso que ele exibia ao cruzar com os
amigos, suas conversas excessivamente sérias, quase engraçadas, e aquele jeito que
meu irmão tinha de brincar com sua faca e me mostrar suas tatuagens. “Echeda fi
Allah” (“Deus é o meu apoio”). “Ande ou morra”, no ombro direito dele, “cala a
boca”, com um coração partido desenhado no antebraço esquerdo. Esse foi o único
livro que Moussa escreveu. Mais curto que um último suspiro, resumindo-se a três
frases registradas no papel mais antigo do mundo, a sua própria pele. (...) mais
detalhes? Oh, não sei mais, o seu macacão, as suas sandálias, a sua barba de profeta
e as suas mãos enormes que tentavam segurar o fantasma de meu pai, e a sua
história de uma mulher sem nome e sem honra. Realmente, não sei mais do que isso,
senhor “investigador universitário” (2013, p. 30).
O excerto faz questão de remarcar a hierarquia entre franceses e argelinos no que
tange ao acesso à escrita, à cultura letrada, remarcando que Moussa jamais, como foi capaz de
realizar Meursault, e mesmo Camus, escreveria/publicaria um livro a se tornar famoso sobre a
sua história. Aí, nesta relação entre a narrativa de Haroum (oralizada na diegese para um
francês universitário) e a narrativa de Meursault, entendida pelo narrador daoudiano (dentro
da diegese de O caso Meursault) como resultante em um “produto” livro (escrita privilegiada
do francês colono em torno de como sua existência sem sentido e a ação solar o fizeram matar
um “árabe” sem nome) se estabelece a veia metaficcional do escritor argelino. Sua paródia de
O estrangeiro aciona tal recurso da metaficção para revisitar criticamente de modo evidente
ao menos dois pontos: 1) a ficção camusiana e sua recepção crítica (como visto no Capítulo
2); e 2) a realidade de um passado histórico argelino, atravessado pela violência colonial
francesa, pelas lutas sangrentas por parte de uma massa da população unificada pelo
nacionalismo e pela fé islâmica em prol da independência (YASBEC, 2010) e por um
230
processo de reestruturação política pós-colonial que, como destaca Fanon (1965), enfrentou
perspectivas locais de governo autoritárias, elitistas e fundamentalistas.
Além da questão metaficcional do “livro”, Haroum insiste em trazer de volta a
personagem feminina (Zoubida) criada ficcionalmente sem nome em O estrangeiro (e em
Camus representada de modo animalizado e sexualizado, como se apontou no capítulo três da
presente pesquisa) e que teria sido o motivo da disputa fatal entre “Moussa” e Meursault na
praia de Argel. Todos esses aspectos suplementam aquela imagem antes “vazia” do “árabe”
morto em Camus e o preenche com a dignidade de poder ser “alguém” com suas
singularidades subjetivas, suas complexidades em família e ambivalências culturais.
Destaco no trecho acima, ainda, o fato de que à proporção que Moussa vai ganhando
traços humanizados, subjetividade e dignidade em sua existência singular, a identidade
“despersonalizada” do narratário francês é reforçada pela sua nomeação genérica
“investigador universitário”, a qual guarda certa ironia com os tipos intelectuais franceses e
todo um sistema filosófico construído como superior e civilizador por parte da França. Aqui,
se sente revolta, vingança e crítica nas pistas do romance frente ao domínio francês na
Argélia, de modo que a obra de Daoud dá vida a um narrador argelino que se mostra um
construto ficcional ambivalente e conflituoso, entre se abrir ao outro, ao com ele dialogar
enquanto se partilham bebidas em um bar local, e atacá-lo, dar-lhe o “troco” com a mesma
nomeação genérica, despersonalizante atrelada a uma etnia/nacionalidade/cargo empregatício:
“Investigador francês universitário”. Haroum, nessa perspectiva, parece dar “tiros”,
“assassinar” a subjetividade francesa na pessoa do narratário. Contudo, há uma diferença: este
não morre na narrativa, não é silenciado por completo com uma violência da mesma espécie.
Enquanto categoria que impulsiona a fala de Haroum, o francês sem nome ainda se coloca
como sujeito responsável por garantir ao narrador argelino seu lugar de fala, uma vez que o
escuta e com ele celebra um diálogo amistoso entre alguns drinks. Em alguns trechos do
romance, Haroum até mesmo chama o francês de “meu amigo”, o que reconfigura as relações
entre os sujeitos argelinos e franceses em relação à diegese em O estrangeiro.
Continuando as análises, chama igualmente atenção a maneira como o romance
reapresenta a coletividade árabe que passa na rua. A coletividade sem nome, que figura no
texto camusiano, se reconstrói na narrativa de Haroum. Segue o trecho:

Como todos os demais você deve ter lido essa história tal como a contou o homem
que a escreveu. Ele escreve tão bem que as suas palavras parecem pedras talhadas
pela própria exatidão. (...) Você viu a maneira dele de escrever? Ele parece usar toda
a arte da poesia apenas para falar de um tiro! Seu mundo é limpo, burilado pela
claridade da manhã, preciso, nítido, composto com pinceladas de aromas e
231
horizontes. A única sombra é a dos “árabes”, objetos fluidos e disparatados, vindos
de “antigamente”, como fantasmas, tendo apenas o som de uma flauta como
linguagem. Digo a mim mesmo que ele devia ficar cansado de ficar dando voltas em
vão em um país que não queria saber dele, nem morto, nem vivo. O assassinato que
cometeu parece o de um amante decepcionado com uma terra que ele não conseguiu
possuir. Como deve ter sofrido o pobre! Ser filho de um lugar que não o deu à luz
(2013, p. 11).
E mais adiante, o modo de Meursault representar despersonalizada e
subalternizadamente o povo argelino é, novamente, destacado:

Nós éramos fantasmas nesse país enquanto os colonos abusavam dele e passeavam
nele fazendo o que bem entendessem. E hoje? Pois bem, hoje é o contrário! Eles
voltam aqui, à vezes, segurando as mãos de seus descendentes em viagens
organizadas para os pied-noirs ou para os filhos dos nostálgicos, procurando
reencontrar uma rua, uma casa ou uma árvore com as suas iniciais gravadas no
tronco. Vi recentemente um grupo de franceses na frente de uma loja de tabaco do
aeroporto. Como espectros discretos e calados, eles nos olhavam, a nós, os árabes,
em silêncio, exatamente como se fossemos pedras ou árvores mortas. E, no entanto,
essa história já acabou. É o que o silêncio deles dizia (2013, p. 20).
Os trechos mostram o sentimento de revolta, de raiva de Haroum em relação ao modo
como os árabes foram construídos em Camus. O romance daoudiano insurge, portanto, contra
a massificação identitária dos argelinos, denuncia a estereotipização como a prática chave de
um narrador imperialista e colonizador que foi Meursault. A “revanche” crítica de Haroum
contra Meursault, contudo, está posta na necessidade acima observada de o narrador
daoudiano atestar a forma como a coletividade árabe foi tecida no clássico como passiva e
silenciosa, “pedras ou árvores mortas”.
Nesse movimento, o romance de Daoud grita a toda uma tradição literária, ao
Ocidente, à própria Argélia e mesmo a todas as periferias colonizadas que podem ouvi-lo em
variadas traduções recebidas pelo romance, premiado pelo Goncourt de 2015, quem foi
Meursault: um narrador imperialista, que assassinou, que fantasmagorizou os argelinos. E este
narrador teria sido aplaudido por toda uma geração de leitores e escritores, porque, entre
outros privilégios, tinha como sua a potência da alfabetização francesa e foi tecido, como
personagem ficcional, sob um estilo impecável de ficção ilustrada no interior do cânone
ocidental. Fica saliente do tom narrativo de Haroum a sua revolta contra o prestígio canônico
do “livro” em que Meursault é o herói na República mundial das Letras (CASANOVA,
2002).
Igualmente, no seu reescrever da imagem de Moussa, cria-se um campo para pensar a
pobreza, a fome, o analfabetismo, a exploração e a violência contra a população colonizada.
Esses traços ajudam a compreender, na contraface ficção x realidade, interposta pela produção
de Daoud, porque: a) tal população magrebina traçou as estratégias históricas de sua
232
independência política como traçou (YASBEC, 2010), isto é, em consonância com o
nacionalismo intrincado à religião islâmica, prefigurando uma cultura de base fundamentalista
e regulada por lideranças políticas que se estabeleceram com autoritarismo (FANON, 1965;
HALL, 2006; SAID, 1995); b) a emigração como uma maneira de tentar reconstruir uma
história de exploração e opressão por meio de uma nova empreitada na metrópole, utopia que
esbarrará com muitas situações de xenofobia impostas a argelinos por parte de cidadãos
franceses que recusam a memória da própria exploração imperialista como justificativa para o
deslocamento de ex-colonos para a França, vistos muitas vezes, como ameaça à cultura
ocidental (SAYAD, 1998). Paradoxalmente, os mesmo imigrantes rejeitados são a mão-de-
obra precípua para trabalhos subalternizados no país, trabalhos braçais, sexuais, que
organizam a França como ela é atualmente: uma potência da União Europeia a enfrentar a
diversidade cultural em seu território (HALL, 2006), em decorrência de seu percurso
imperialista no Magreb e em outras regiões da África, da América.
Sendo assim, a ficção paródica de Daoud, em muito contribui para o alargamento
crítico das percepções sobre as variadas relações entre França e Argélia sobre as alteridades
magrebinas. Contudo, é relevante apontar que as alteridades árabes se refiguram em muitos
outros pontos na obra daoudiana. Os aspectos elencados nesta seção foram apenas alguns
daqueles passíveis de serem destacáveis no conjunto do texto. Por ora, ao longo das próximas
análises, será viável, por exemplo, observar mais detalhes sobre a personalidade de Haroum,
de Moussa, dos homens da sociedade argelina e das mulheres (tão subalternizadas, como já
dito aqui, pela recepção tradicional do romance original de Camus), na abordagem da questão
do sagrado, da geografia local e das questões de gêneros mais pontuais que mobilizam as
masculinidades, as sexualidades e a maternidade.

5.4 A RESSIGNIFICAÇÃO DO SAGRADO “ABSURDO” DE CAMUS

Para discutir como Daoud ressignifica as noções de sagrado e religiosidade presentes


em O estrangeiro em sua paródia pós-moderna tecida no século XXI, se faz necessário
reconhecer tais conceitos no pensamento filosófico camusiano, que dialoga com o contexto
epistemológico ocidental do Pós-guerra no século XX. Passo a refletir sobre a questão a
seguir.44
44 Os termos “sagrado” e “religiosidade” serão acionados nessa seção, de modo que é importante defini-los.
Entendo o sagrado seguindo a posição a ser aqui descrita de Caio Caramico Soares, a qual dialoga coma visão de
Karem Amstrong, baseada na ideia de mito (AMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo:
Companhia das Letras 2005). Contudo, para definir a noção de religiosidade, aqui referenciada, faz-se relevante
233
O sagrado no conjunto da obra camusiana é estudado e reinterpretado, no Brasil, pelo
pesquisador Caio Caramico Soares em Evangelhos da Revolta: Camus Sartre e a
remitologização moderna (2016), sua tese de doutorado defendida no campo da Filosofia
(USP). O autor detecta em Camus e Sartre uma espécie de “sagrado camuflado”. Tal noção
estaria articulada àquilo que ele convencionou nomear de “remitologização moderna”. Soares
toma como norte teórico fundamental dois pensadores, Karen Amstrong, em Breve história do
mito, e Mircea Eliade, em O mito do eterno retorno, com a finalidade de definir o mito como
categoria narrativa estruturante da experiência humana. Nesse domínio conceitual
selecionado pelo autor, a ideia de mito se estabelece interseccionada pela experiência
religiosa, uma vez que se interliga ao sagrado. O conceito de sagrado corresponderia, nesse
sentido, a uma força suprema localizada acima do ser humano a lhe proporcionar sentidos
narrativos para ser e existir. O mito se apresenta, pois, nesta esfera, como um recurso
narrativo útil na tessitura de significados que se tornam a base para o indivíduo encarar a sua
existência em vida.
Entretanto, a dita “remitologização moderna” visualizada por Soares não se
confundiria, assinala ele, com uma procura por Deus, exatamente. Ela seria, na verdade, uma
espécie de “espelho cindido”, dilacerado, do mito primitivo, porque criticamente, em face de
uma desfiguração de sentidos, constrói estratagemas de significados possíveis. Sobre tal
empreendimento mito-poético em Camus, explica o autor:

o anseio de remitologização é o anseio de uma nova síntese, de uma religação, se


não mais com a totalidade positiva e institucionalizada que a cristandade usufruía
antes da modernidade, ao menos como potência de contestação da modernidade
enquanto status quo sociocultural e de denúncia da “Ratio” ocidental, que
historicamente se soerguera rumo à hegemonia com base na crítica cerrada, pelo
Logos filosófico desde Platão contra o “mythos” que provinha desde a aurora dos
tempos (2010, p.26).
Nessa configuração particular, a mitologia e o sagrado específico observados em
Camus estariam atrelados, principalmente, ao fato de que o escritor utiliza em suas
composições as estruturas míticas. O estrangeiro, na condição de romance, recorre à estrutura
da narrativa mítica e ao mito de Sísifo, presentes na história do narrador Meursault. Ao modo
de Sísifo, Meursault, como todos os humanos, estaria na vida desempenhando atividades sem
trazer as definições de Durkheim. Embora os conceitos de Sagrado e Religioso/religiosidade sejam
intercambiáveis, é importante que, analiticamente, eles sejam considerados também a partir de suas nuances que,
em contextos diversos, fazem diferença na compreensão dos fenômenos. Na clássica discussão de Durkheim
(1996), o Sagrado é todo objeto, prática, imagem, escritura etc., que marca a diferença com o profano.
Fundamentalmente, é a cisão entre o que é excepcional (sagrado) e banal (profano). O religioso, ou a
religiosidade é o conjunto de ritos que dão acesso ao sagrado ou, ao menos, sacralizam o banal. É importante
ressaltar, para Durkheim, sagrado e religioso podem ser pensados em ambientes laicos, na medida em que a
temporalidade e os ritos são partes integrantes da produção simbólica humana.
234
sentido, tal qual o ato de empurrar uma pedra ao topo da montanha e rolá-la novamente para
baixo, repetindo incessantemente o movimento. Estaria a humanidade sem Deus, na solidão
coletiva completa, numa vida dirigida à morte, sem esperanças de um paraíso. Essa dinâmica
da repetição sem sentido, remarca Soares, é o próprio desenho estrutural do “mito do
absurdo” em Camus, o qual figuraria como um tipo específico de “evangelho”, cuja base é
sustentar a ausência de sentido para a vida. Esta seria a história cíclica sagrada da
humanidade: movimentar-se ciclicamente sem que haja sentido para tanto além do próprio
movimento.
Camus defende em sua obra ficcional e filosófica, atesta igualmente o autor, que é preciso
encarar a existência do ciclo humano do absurdo; seria necessário aceitá-lo, mas pensando
criticamente. Tal aceitação com reserva crítica não significaria desistir de viver utilizando
subterfúgios como o suicídio, por exemplo. Não significaria também chegar a matar o outro
por razões revoltosas e revolucionárias; daí a querela de Camus com Sartre, que assumia
posição contrária, defendendo a violência contra a opressão por meio da revolução (SOARES,
2010). Para Camus, precisar-se-ia amar a vida exatamente no interior se seu caráter absurdo,
sem sentido; e, nessa perspectiva, seria necessário viver a presença corpórea no presente,
estando-se ciente de que no futuro pós-morte não há continuidade humana. A noção teórico-
filosófica de revolta desenvolvida por Camus em O homem revoltado (1951)45, pois, consiste
em manifestar conscientemente amor pelo enfrentamento presente do absurdo, despindo-se de
ilusões como a existência de um paraíso futuro.
Defende, então, Soares (2010) que, nesse pensamento camusiano, pela forma em que se
apresenta, é notável um estratagema mítico que acompanha as produções do filósofo francês.
De acordo com o autor brasileiro, a revolta e o absurdo seriam, pois, o próprio sagrado em
Camus, ambos vetores de sentido que guiam Meursault em O estrangeiro. A tentação diante
desse sagrado, para Camus, seria diversa daquilo que se concebe no universo cristão: seria a
tentação de ter fé em Deus ou de ter esperança na transcendência. Para ele, o sentido da vida
seria o próprio absurdo, isto é, a própria ausência de sentido nas coisas. Nessa conjuntura,
seria necessária a crença de que “o absurdo” existiria como uma força acima do humano,
sendo preciso enfrentá-lo com a postura da revolta, a qual proviria da consciência racional de
que a vida é finita.
Distanciando-se da preocupação estrita de se pensar a relação subjetiva entre Deus e o
homem em Camus, a leitura de Edward Said em Cultura e imperialismo (1995), como já aqui

45 O ano de publicação da obra é 1951. A edição que utilizo para estudo e referência é de 2018.
235
se discutiu (Capítulo 2), vai chamar atenção para o fato de que O estrangeiro, ao centralizar-
se nesses aspectos de preocupação filosófica claramente ocidental, ligados a um contexto
europeu do Pós-guerra, ao nazismo, dentro de um espaço ficcional como a Argélia, acaba por
reafirma a dominação de um imaginário cultural francês no país. Este imaginário, remarco, se
atualiza pela narrativa tecida por Meursault na sua condição de narrador colono, isto é, na
posição de dominação frente ao território local. Cito Said, nesse sentido, novamente:

As narrativas de Camus sobre a resistência e um confronto existencial, que pareciam


falar de luta contra a mortalidade e o nazismo, agora podem ser lidas como parte do
debate sobre cultura e imperialismo (1993, p. 224).
O empreendimento de Camus explica o vazio e a ausência de qualquer
contextualização do árabe morto; daí também o senso de devastação de Orã que se
destina implicitamente a expressar não tanto as mortes de árabes, e sim, a
consciência francesa. (1993, p.232)
Said, desse modo, retomo o que já comentei anteriormente, se distancia de toda uma
tradição crítica que se volta para Camus, como faz o próprio trabalho do Caio Caramico
Soares, por exemplo, num recorte que focaliza primordialmente seu diálogo com as questões
filosóficas do seu contexto de produção, o Pós-guerra; uma tradição que deixa de atentar para
a correlação de sua obra com a tematização do imperialismo da França na Argélia. O caso é
que o romance de Daoud, ao reescrever o clássico camusiano, parece, curiosamente, se
colocar também, entre tantas outras possibilidades, como uma resposta às investigações da
leitura crítica de Said, desmascarando na trama de O estrangeiro as tensões coloniais entre
Argélia e a França. Dessa forma, ao retomar parodicamente o texto de Camus, apresentará o
autor o sagrado camusiano reconfigurado com novos sentidos, os quais levam em
consideração as tensões imperialistas e os impactos sobre a religiosidade na Argélia.

5.4.1 O sagrado pós-colonial em Daoud e as imagens do Islã

A orelha da edição brasileira, publicada pela Biblioteca Azul, de O caso Meursault,


desenvolvida por Bernardo Ajzemberg, de modo diverso da já aqui comentada orelha de O
estrangeiro (veiculada pela editora Record e com autoria de Arthur Dapieve), texto que
sequer menciona a colonização na Argélia, já sugere que o romance de Daoud pode ser
“vendido” ao público dentro de sua proposta questionadora do passado colonial. Ajzemberg
sintetiza o romance, assinalando os rancores do narrador criado por Daoud em face do
silenciamento da memória argelina e da memória subjetiva de sua família, marcada pela
236
violência que o colono Meursault lhe impõe no interior das relações imperialistas entre França
e Argélia. Cito a orelha:

O ponto central do romance de Camus é um assassinato de um árabe cometido pelo


narrador, Meursault, em plena praia, sob um sol escaldante, no verão de 1942. Numa
espécie de continuação às avessas, elevando à enésima potência a crueza camusiana,
Kamel Daoud parte dessa cena para fazer desfilarem, aos olhos do leitor, mais de
cinco décadas de história argelina, destacando o conflito pela independência contra a
dominação francesa.
O autor revisita Camus por meio das confidências rancorosas e ferinas de Haroum,
para quem aquela tão consagrada obra traz uma gigantesca e imperdoável lacuna:
em nenhum momento se atribui uma identidade ao assassinado, nenhuma palavra
sobre a sua história. Pois Haroum é justamente o irmão caçula desse “árabe”, que
tem então o nome por ele revelado: Moussa, um homem simples, cheio de vida.
Em sua cadeira no bar, Haroum conta a história de Moussa, de sua família e de seu
combate pelo reconhecimento do crime, a busca obsessiva da mãe pelo corpo do
filho, que nunca apareceu. Empenha-se a se tornar visível aquilo que se oculta há
décadas (AJZEMBERG, 2016)

O romance, por apresentar tais traços, dialoga, que fique remarcado mais uma vez,
com as ideias defendidas por Edward Said (1995), como se apresentasse uma resposta ao
domínio colonial francês visível entre as linhas de O estrangeiro, já apontado pelo autor de
Cultura e imperialismo, trazendo à tona, então, a memória ocultada da colonização da Argélia
para ser matéria a compor o relato do narrador Haroum e matéria oferecida como ponto de
reflexão para o narratário (investigador francês/ intelectual europeu) e para os leitores
variados. É nessa conjuntura que o romance irá projetar também as questões religiosas no país
na contemporaneidade. Na realidade, tendo em vista que a questão do sagrado e do
cristianismo é uma seara central recortada pela tradição crítico-literária na abordagem de O
estrangeiro, repensá-la, revisitá-la parodicamente, se transforma, igualmente, em um ponto
relevante no romance do escritor argelino.
Detecto e elenco nesta pesquisa, sendo assim, alguns aspectos precípuos na tessitura
do sagrado e do religioso em Daoud, conforme sua releitura paródica para comentá-los
adiante. São eles:
1) diversamente do tratamento dado ao divino por Meursault, que lhe confere
indiferença e descrença, a figura de Deus ressurge para o novo narrador Haroum como uma
entidade que não deixa de ser referenciada com constância e, assim, valorizada. Entretanto,
que fique sublinhado: a religiosidade se apresenta para o protagonista de modo contraditório,
uma vez que Deus é invocado e reverenciado, porém entre queixas e insatisfações em relação
à religiosidade na Argélia;
237
2) existe a menção explícita ao sagrado islâmico, ao próprio Corão, (o que não
ocorrera em Camus e que, em Daoud, muitas vezes é representado no texto na alusão a
mesquitas que compõem as cidades argelinas, aos ritos mulçumanos). O islamismo, por vezes,
rivaliza na obra com o código cristão e, por vezes, a ele se integra, nuance paradoxal que
atesta a própria ambivalência com a qual a questão se reprojeta na ficção do autor, a por a nu
as tensões culturais da colonização;
3) existe uma tendência em O caso Meursault de criticar o fundamentalismo islâmico
e, ao mesmo tempo, se observam, contraditoriamente, posturas fundamentalistas nas falas e
atitudes do narrador argelino;
4) fica notável no texto a tentativa de atacar o conceito de “absurdo”, tal qual este se
apresenta nas atitudes indiferentes que moldam o caráter do personagem francês Meursault,
sobretudo, quanto ao fato de “o absurdo” (isto é, a falta de sentido no mundo moderno) ter
sido encarado como a razão do assassinato de Moussa. Este “ataque” pode ser compreendido
como uma maneira de se operar certa “desmistificação” do absurdo construído em Camus em
jogo com O mito de Sísifo (2018a), sendo operacionado esteticamente por meio da
reconstituição do crime, traçada agora por Haroum com suplementações que concernem aos
entornos da morte de seu irmão sentidos inéditos, detalhes anteriormente não aparentes no
relato meursaultiano (inclusive, detalhes que se conectam à questão de gênero na colônia
Argélia, como discuti no capítulo anterior);
5) constrói-se outra espécie de dessacralização: a de O estrangeiro diante da tradição
crítica ocidental (tal qual inicialmente avaliei no capítulo dois);
6) o discurso de Haroum propõe uma abertura para que se compare a crença religiosa
ao pacto ficcional estabelecido entre a literatura, na sua condição de mimesis (isto é, de
recriação da realidade a partir do olhar humano), e o leitor. Aqui, a obra, com ousadia em face
de uma tradição islâmica de histórico autoritário no país, relativiza os dogmas religiosos.
Tais aspectos passam a ser refletidos da forma como aparecem no texto de Daoud, a
partir de alguns excertos selecionados para análise. A ideia é que, através das citações, fiquem
perceptíveis as tendências estético-ideológicas do autor magrebino para tecer a ressignificação
crítica do sagrado camusiano, da religiosidade aparente na trama narrada por Meursault.
O primeiro trecho que recorto para comentário é o que abre o romance, já citado
anteriormente neste trabalho. Nele, fica evidente que a figura de Deus tem poder sobre o
imaginário do narrador, fazendo parte de suas crenças, o que é bastante diferente daquilo que
ocorre com Meursault. Como vastamente já se discutiu ao longo de décadas sobre O
238
estrangeiro, Meursault ataca o cristianismo e se mostra um personagem explicita e
unilateralmente indiferente ao divino cristão, fato emblematicamente evidenciado na cena do
romance em que ele faz questão de se apresentar descrente em Cristo ao depor ao Juiz sobre
seu crime, um juiz francês atuante numa Argélia sob o domínio imperialista (caricaturado
como imparcial por mobilizar Deus em sua conduta jurídica processual). Segue o relato
meursaultiano da cena:

Mas ele me interrompeu e exortou-me uma última vez, do alto de sua posição,
perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado.
Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os
que lhe viravam o rosto. Essa era a sua convicção, e se algum dia viesse a duvidar
dela, a sua vida deixaria de ter sentido (CAMUS, 2016, P. 73).
O trecho, assim, caracteriza o protogonista do romance camusiano: assassino e
descrente em Deus. O caso Meursault trará, diversamente, um narrador argelino que não
manifesta nitidamente ou polarizadamente descrença ou total fé em Deus. Seu caráter é
complexo, conflitante, porque ele ora dialoga com Deus em seu discurso, demonstrando
alguma fé, ora condena a religiosidade mulçumana naquilo que ela traria de hipócrita na
prática de seus fiéis. Cito, contudo, para abrir a análise do texto quanto ao tema, o primeiro
parágrafo de Daoud:

Hoje mamãe ainda está viva.


Ela não fala mais, mas poderia contar muitas coisas.
Ao contrário de mim, que de tanto remoer essa história já quase nem me lembro
dela.
Devo dizer que é uma história que remonta há mais de meio século. Ela aconteceu
de fato, e foi muito comentada. As pessoas ainda falam dela, mas com o maior
descaramento, evocam apenas um morto, sendo que havia dois: não um morto, mas
mortos. Sim, dois. Qual o motivo dessa omissão? O primeiro deles sabia contar
histórias, a tal ponto que conseguiu fazer com que o seu crime fosse esquecido,
enquanto o segundo era um pobre analfabeto que Deus pôs no mundo, ao que
parece, unicamente para levar um tiro de revolver e retornar ao pó, um anônimo que
não teve nem sequer tempo de ter um nome.
Digo logo de cara: O segundo morto, o que foi assassinado, era meu irmão. Não
sobrou nada dele. Sobrei eu, apenas, para falar por ele, sentando aqui neste bar
esperando por condolências que ninguém jamais me apresentará. Você pode achar
engraçado, mas é um pouco esta a minha missão: Reapresentar um segredo de
bastidores enquanto a sala se esvazia. Foi por isso, aliás, que aprendi a falar essa
língua, e a escrever nela também; para falar por um morto, prolongar um pouco as
frases dele. O assassino ficou famoso e a sua história é demasiado bem escrita para
que eu pense em imitá-la. Era a língua dele. É por isso que farei o que se fez neste
país depois da sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos
colonos e erguer com elas uma casa minha. As palavras do assassino e suas
expressões são o meu imóvel desocupado. O país está, aliás, inundado de palavras
que já não pertencem a ninguém e que observamos nas fachadas das velhas lojas,
nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda, transformadas pelo estranho dialeto
que a descolonização forja (2016, p. 10-11).
239
Remarco que, no trecho, o autor faz seu narrador citar o nome de Deus logo na
primeira página da obra, entrelaçando-o com a referência à história do assassinato contada por
Meursault, bem como adicionando uma descrição robusta sobre o lugar argelino. Tal detalhe
indica “certa ligação com a religiosidade” presente na identidade de Haroum – mesmo que,
possivelmente, por força da tradição a permear a sua emoção discursiva por puro hábito de
falar – demarcando-se, assim, seu caráter opositivo ao do narrador camusiano, avesso a
qualquer menção religiosa em seu linguajar narrativo.
Seguindo o raciocínio acima, no segundo trecho que seleciono para abordagem, é
perceptível que o Deus francês, citado por Meursault e cultuado pela sociedade colonial
francesa a gerir a Argélia, aparece em contraste com o referido “o meu deus”, de Haroum, a
quem o narrador argelino clama com revolta e indignação diante do que aconteceu com seu
irmão. Cito:

De novo! Sempre que reconstituo essa história na minha cabeça, fico com raiva pelo
menos toda vez que tenho forças para isso. O francês age como se o morto fosse ele,
e conta como perdeu a mãe, fala como perdeu o corpo de uma amante, em seguida
como foi à igreja e constatou que o seu Deus havia abandonado o corpo do homem,
e depois como velou o corpo da mãe e o seu próprio etc. Meu Deus! Como é
possível matar alguém e apoderar-se dele até a própria morte? Quem levou uma bala
no corpo foi o meu irmão, não ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? (2016,
p.12).
Torna-se, mais uma vez, aí aparente a diferença cultural entre os dois narradores das
obras em estudo, que se relacionam com a religiosidade de modos diversos. A questão do
sagrado na obra de Camus se atravessa pela relação de indiferença de Meursault com Deus
(mas dentro dos contornos eurocentrados do contexto de produção do romance sob a égide da
formação filosófica do escritor). Nesse caso, a obra de Camus, ao ser frequentemente
estudada pela chave de leitura do “absurdo”, seria assinalada por certa relativização das
razões/culpa do crime de assassinato “do árabe”, justamente porque tal crime estaria sob a
responsabilidade não absolutamente da conduta criminosa/dolosa de Meursault, mas seria
atribuído à intervenção solar e à indiferença do herói em relação ao binômio humano vida x
morte. Tal leitura do crime é a que tem vigorado, como já discutido aqui (vide capítulo dois),
seja na tradição crítica que interpretou o clássico, seja nas palavras defendidas por Meursault
em seu julgamento (“por causa do sol”), de forma que na obra daoudiana vem esta versão a
ser questionada como única possível para o fato.
Por esse viés assinalado pela paródia de Daoud de questionar as razões do crime
unicamente vinculadas ao “absurdo”, o texto camusiano poderia ser reinterpretado
criticamente tal como fez Edward Said (1995): como uma obra que problematizaria o sagrado
240
univocamente sob o olhar francês, sua intersecção com o absurdo, tal como explicado por
Soares (2010), mesmo numa história que se passa no espaço narrativo da Argélia colonial, e
como uma obra que, dessa forma, ocultaria a violência sintomática do imperialismo praticada
pelo colono Meursault contra “o árabe”.
Contudo, sugiro novamente que tal visão do Sagrado, via Said (1995), seja pouco
atenta às ambivalências encontradas no romance francês. É preciso lembrar que, sim, há em O
estrangeiro a construção do absurdo como um tipo de “sagrado” (SOARES, 2010) e como
motor a guiar os atos, por vezes, passíveis de serem vistos como indiferentes de Meursault; é
preciso estar-se atento, sim, à potência mítica solar na conjuntura do crime, mas, sobretudo, é
mister compreender, do ponto de vista da teoria literária, que todos esses elementos da
história são trazidos pelo ponto de vista mais visível da voz do narrador Meursault. Na
polifonia do romance, descrita por Bakhtin (2002), distinguem-se as vozes da autoria (em
profundidade) e do narrador (em superfície) a guiarem a arquitetura da obra. De acordo com
tal raciocínio polifônico, se Meursault acusa o sol ou se dá a entender que seus atos seriam
indiferentes pelo seu caráter de homem absurdo, a obra construída por Camus enseja também
arestas de possibilidades de sentidos ambivalentes. Apontei no capítulo anterior que o crime
de assassinato em muito se interliga com a relação que Meursault estabelece na trama com os
personagens Raymond e com a “mulher árabe” sem nome, a qual seria “amante” deste último,
interseccionando-se aí as questões de gênero e de raça na conjuntura colonial argelina (vide
capítulo três). Dessa forma, pensar a reescritura do sagrado camusiano em Daoud é ir muito
além de identificar Camus como dono de um projeto unicamente imperialista em seu romance
(como fez Said). Na verdade, problematizar o sagrado no autor argelino implica levar em
consideração as tantas apontadas ambivalências e complexidades do clássico francês, fugindo-
se a reducionismos interpretativos.
No terceiro trecho em recorte, Daoud introduz explicitamente a cultura muçulmana e
faz Haroum comparar ironicamente a narrativa de Meursault (veladamente uma referência ao
livro O estrangeiro) ao Corão. O personagem critica o sagrado em Camus, que seria a própria
crença no conceito filosófico do absurdo a guiar os atos de Meursault, denunciando como o
narrador pied-noir silenciaria o teor de barbárie da violência colonial, realizada por meio de
assassinatos de argelinos (no caso, seu irmão), ao atrelá-la a uma condição meramente
existencial de sua consciência como francês erudito. Cito a obra:

Conheço esse livro de cor, posso recitá-lo inteirinho, como o Corão. Quem escreveu
essa história foi um cadáver, não um escritor. A gente percebe isso pela sua maneira
de sofrer com o sol e com o brilho ofuscante das cores e por não ter opinião sobre
241
nada que não seja o sol, o mar, as pedras de antigamente. ... O que me dói, toda
vez que penso nisso, é que ele o matou ao cruzar com ele, e não atirando
diretamente. Você sabe: o crime foi cometido com uma indiferença majestosa. Ela
impossibilitou, na sequência, qualquer iniciativa de apresentar o meu irmão como
um charid. O mártir só apareceu muito tempo depois do assassinato. Nesse ínterim,
meu irmão apodreceu, enquanto o livro teve o sucesso que todos conhecemos (2016,
p.13).
O trecho visivelmente ainda desnuda o conflito colonial entre Cristianismo e Islã,
porque Haroum se dirige ao irmão Moussa, de modo lamentoso e indignado, como um
argelino que poderia ter sido visto como um mártir, o que remeteria também ao papel de
Cristo na cultura ocidental. Mas note-se que a palavra que Haroum utiliza para designar mártir
também aparece em árabe, Charid. Nesse detalhe idiomático, na contraface da referência
ambígua ao cristianismo europeu, o discurso narrativo violenta a hegemonia do idioma
francês no romance, interpondo o árabe em suas terminologias que envolvem a religiosidade
local. É fundamental aqui mencionar, já que estão em debate os conflitos e a convivência
ambígua das religiões diversas com as quais dialogam os dois narradores dos textos em
estudo, que em muitos trechos do romance de Daoud, narrado por um argelino que conhece e
segue parcialmente algumas tradições mulçumanas, há referências a mitologias cristãs; ao
diabo, a Caim e a Abel, a Maria, ou seja, há uma confluência conflitante das religiosidades
cristã e islâmica no imaginário do narrador que habita um território pós-colonial, o qual revela
cidadãos atravessados pela transculturação (WALTER, 2015).
Apresento, agora, aquela “outra” face mais crítica de Haroum quanto ao quesito
religiosidade (apenas mencionada acima) de um modo mais ilustrativo no trecho que se segue.
Nesta “outra” face, Deus não é mais objeto de invocação comum na fala do personagem para
mostrar-se estupefato com a barbárie do ato assassino do francês contra seu irmão, não seria
mais uma referência, mas sim, corporificada na ideia de “pai” a ser buscado, se torna objeto
de depreciação e questionamento. Cito:

Meu vizinho é um sujeito invisível que todo fim de semana resolve recitar o Corão
aos berros a noite inteira. Ninguém se atreve a pedir para ele parar, porque é Deus
que está gritando pela boca dele. Eu também não me atrevo, pois já sou marginal o
suficiente nessa cidade. Ele tem uma voz anasalada, lamurienta, servil. ... Para
mim, a religião é um transporte coletivo que eu não pego. Gosto de ir em direção a
esse Deus, mas a pé, se for preciso, não em uma viagem organizada. Detesto as
sextas-feiras desde a Independência, eu acho. Sou crente? Resolvi essa questão do
céu com uma evidência: dentre todos aqueles que falam sobre a minha condição —
essa corja de anjos, deuses, diabos ou livros —, eu soube, desde bem pequeno, que
eu era o único que conhecia a dor e a obrigatoriedade da morte, do trabalho e da
doença. Sou o único que paga a conta de luz e que serei comido pelos vermes ao
final. Portanto, caiam fora! Além do mais, detesto as religiões e a submissão. Que
ideia é essa de correr atrás de um pai que nunca colocou os pés no chão e que nunca
teve de conhecer a fome nem de se esforçar para ganhar a vida? (DAOUD, 2016, p.
81-82).
242
Dessa forma, o narrador personagem se assemelha parcialmente a Meursault pela
relação opositiva e crítica diante de Deus vista em passagens como essa. Ele declara seu ódio
e sua amargura em relação ao domínio religioso e suas manipulações em face de uma camada
de leitores. Sua postura é crítica ao duvidar dos sentidos de Deus na cultura, o que estreita
também as figuras de Daoud e Camus, cada um a problematizar a religião de seu tempo e sua
cultura.
Prosseguindo com a análise, apresenta-se, no próximo excerto abordado, uma
ilustração significativa de como a ficção de Daoud trabalha para “rasurar” o absurdo
construído na narrativa de Meursault, isto é, para violar o sagrado (SOARES, 2010) na obra
camusiana. Neste recorte, o narrador Haroum recontando a história a partir de seu crivo
argelino, confere uma motivação para a morte do irmão, a qual contesta a versão
meursaultiana baseada na sua indiferença e na ação solar. O motivo, já debatido aqui no
capítulo anterior, mas que vale ser retomado pela articulação que estabelece com a questão do
sagrado, se relaciona ao machismo de mulçumanos árabes/argelinos e de cristãos franceses,
incluindo-se ao machismo do descrente Meursault. Apontar o machismo conectado à
violência homicida, reconhecê-lo como uma força motriz também a movimentar os
personagens para a cena dos tiros contra “o árabe” na praia, seria uma maneira de
“desmistificar o absurdo”, calcado na suposta falta de sentido que guiaria Meursault, na
medida em que um novo cenário é reconstituído pela memória narrativa que aciona uma
história inédita para o mesmo fato. Cito novamente, pois, o trecho do romance, para que o
sistema patriarcal que rege as relações de gênero na plataforma colonial possa ser agora
encarado como uma suplementação interposta por Daoud para ressignificar o ideal mítico de
sagrado (“o absurdo”), aparente no clássico francês:

Ora, entre nosso mundo e o dos roumis, mais lá embaixo, no bairro dos franceses,
circulavam à vezes, algumas argelinas usando saia e com seios rígidos, Marias ou
fátimas, inquietas entre nós, garotos, chamávamos entre nós de putas e
apedrejávamos com os olhos. Essas mulheres costumavam provocar amores
violentos e rivalidades monstruosas. O seu escritor conta um pouco disso. Mas a
versão dele é injusta, pois a tal mulher invisível não era a irmã de Moussa. Talvez
fosse no fim das contas uma de suas paixões. Eu sempre considero que todo o mal
entendido provém daí: um crime filosófico, atribuído a algo que, de fato, nunca
passou de um acerto de contas que acabou degenerando, no qual Moussa, querendo
salvar a honra da moça, aplicou uma surra no seu herói e este, para se defender,
abateu-o na praia friamente. Nos bairros populares de Argel, havia, com efeito esse
sentido aguçado e grotesco da honra. Defender as mulheres e suas coxas! Depois de
perder a terra, os poços, o gado, só lhes sobravam as suas mulheres (2016, p.29).
A citação sugere que a masculinidade atingida de Moussa seria o item pelo qual a
vítima teria desafiado os franceses na praia. Fica nítido acima, pois, que Moussa, como sujeito
243
colonizado, o qual perdera a terra para os metropolitanos, necessitaria recuperar parte da
honra perdida que se fora com a “propriedade” feminina também tomada pelo europeu. Sob
essa ótica, Haroum ressignifica a passividade árabe que se sobressai em O estrangeiro e joga
pontos de luz para que se veja um argelino que, movido pela estrutura patriarcal de sua
cultura, reage contra o imperialismo francês que invade propriedades materiais (mulheres) e
corporais/sexuais da massa masculina da Argélia. A passagem denuncia o olhar machista do
narrador para com as mulheres locais e enaltece a masculinidade hegemônica na sua cultura:
atrelada à agressividade, ao uso da faca, à disputa pela posse que seriam as mulheres. Desse
modo, se o sagrado ligado ao absurdo em Camus seria a visão filosófica francesa a encobrir,
como ressalta Said (1995), a violência colonial na Argélia, a rasura crítica desse sagrado
europeu interposta por Daoud, traz à tona a violência patricarcal de homens argelinos para
com mulheres argelinas, tratadas como objetos de domínio. Faz-se relevante, aqui, perceber a
lâmina de dois gumes daoudiana para atacar tanto o reducionismo/etnocentrismo francês,
quando o machismo da cultura argelina.
É significativo pontuar que a crítica ao fundamentalismo islâmico também é um ponto
central do romance do escritor. O projeto ficcional de Daoud além de revisitar Camus
criticamente quanto ao absurdo/sagrado europeu, que é uma marca da hegemonia ocidental na
obra, ataca as forças políticas da Argélia, as quais se ancoram historicamente no
fundamentalismo islâmico, visto como foco irradiador de uma série de censuras e interdições
que tomam o país (SCHATZ, 2015). No trecho citado a seguir, seu narrador argelino ataca
novamente o islamismo e as religiões como um todo. É visível que a obra traz o protagonista
numa posição que parece recriminar, por exemplo, a presença do véu, como na situação
abaixo, julgando-a como uma espécie de opressão característica das tradições mulçumanas.
Cito o romance:

Sexta-feira não é um dia em que Deus descansou, mas um dia em que ele decidiu
fugir e nunca mais voltar. Vejo isso pelo som vazio que se prolonga após as orações
dos homens, pelos seus rostos colados contra o vidro da súplica. E pela sua
expressão de quem reage ao medo do absurdo com a cautela. De minha parte, não
gosto daquilo que se eleva para o céu, mas somente daquilo que conhece a
gravidade. Atrevo-me a lhe dizer que tenho horror a religiões. Todas elas! Porque
elas distorcem o peso do mundo. Sinto às vezes vontade de derrubar o muro que me
separa do meu vizinho, agarrá-lo pelo pescoço e gritar para ele parar com a sua
recitação de choramingas, assumir o mundo, abrir os olhos para a sua própria força e
sua dignidade e parar de correr atrás de um pai que fugiu para os céus e que jamais
irá voltar. Veja aquele grupo que está passando ali, aquela menina com o véu
cobrindo a cabeça sendo que ela nem sabe ainda o que é um corpo, o que é o desejo.
O que você faria com essas pessoas? Hein? (2016, p.86).
244
É de chamar atenção no trecho como Haroum interpela o narratário francês em relação
ao véu, destacado por ele como uma imposição às mulçumanas ainda em estágio infantil, fato
que tanto: a) assinala a sua crítica ao que, de seu lugar masculino, magrebino e antiislâmico,
lê como opressões ao feminino atreladas ao modo como determinados fiéis seguem o
Islamismo quanto b) remete à visão ocidental frente ao véu, muitas vezes pregada por
feministas ditas “neoorientalistas” (LAMRABET, 2014), que também entendem o véu
unicamente como símbolo da dominação patriarcal islâmica. Ao fazê-lo, Daoud pode deixar
pistas para que leitores contemporâneos se questionem sobre o que eles próprios pensam a
respeito da conduta islâmica frente a mulheres, suscitando as variadas e, por vezes,
contraditórias opiniões a respeito. Mais que ser vista como uma produção romanesca que
conduz a questão do véu a uma percepção unívoca, a obra, no trecho acima, pode ser lida
também como um instrumento estético que pode abrir a problemática ao diversos leitores sem
restringi-la a uma resposta tangível no próprio texto. Quando a questão “O que você faria com
essas pessoas, hein?” é trazida por Haroum ocorre a abertura instalada pela obra. Tendo em
vista que narratário não desenvolve a sua fala em resposta à pergunta, não ratificando a
perspectiva crítica de Haroum, resta o “vazio” textual a ser preenchido de variadas formas
pelos diversos leitores.
Nesse movimento de demarcar a posição crítica e masculina ao véu de Haroum, na
condição de sujeito argelino antiislâmico e de lançar um questionamento ao narratário para o
qual não há resposta fechada na obra, o romance também deixa transparecer que a posição
feminina e muçulmana quanto ao véu não é apresentada verbalizadamente na ficção de
Daoud. Contudo, tal “lacuna” se mostra interessante por facultar a geração da perpecção e do
questionamento sobre a própria imposição de Haroum a um dever ser femino na Argélia, um
dever ser “desvelado”. Assim, por não travar uma escuta de mulheres sobre o véu e suas
variadas representações para as próprias mulheres, enquanto debate de homem magrebino
para homem francês, numa mesa de bar, sobre as vestes no corpo da mulher muçulmana, o
personagem comete também reducionismos de seu lugar “secularizado”. Ele termina por
desconsiderar a voz daquelas figuras subalternizadas na comunidade patriarcal que, muitas
vezes, usam o véu duplamente como prática religiosa e como forma de resistência a uma
ocidentalização forçada ao mundo árabe no plano das relações de globalização e pós-
coloniais.
De qualquer forma, a obra deixa a polêmica, que é bastante complexa, instalada e
suscita reflexões que estão na ordem contemporânea do debate feminista decolonial travado
245
por autoras como Asma Lamrabet. Em seu artigo El velo (El Hiyab) de las mujeres
musulmanas: entre la ideologia colonialista y el discurso islâmico, uma visión decolonial
(2014), ela demonstra como as interpretações sobre o véu são plurais e revelam disputas
ideológicas entre posições polarizadas. Lamrabet aponta essas duas ramificações que
binarizam o problema a) o debate das feministas ocidentais, designadas por elas como
“neoorientalistas” que entendem o uso do véu, a partir de suas posições externas à
comunidade islâmica, como uma “mácula” no desenvolvimento da modernidade de uma
comunidade e, portanto, como uma marca opressiva e patriarcal do islamismo sobre as
mulheres; e b) certo discurso islâmico tradicionalista majoritário, o qual defende o véu como
“el símbolo último de la identidade islâmica” (2014, p.31). Diante do quadro binário,
Lamrabet, questiona se a posição das feministas ocidentais não revelaria uma espécie de
“miedo a la islamización insidiosa de las sociedades contemporâneas” (2014, p.34) e atenta
para o fato de que apenas as mulheres islâmicas têm suas práticas tradicionais e religiosas
questionadas publicamente, como se seus corpos (com ou sem o véu) estivessem objetificados
e instrumentalizados dentro de uma questão que expõe serem extrapolados os limites entre
privado e o público. Nesse sentido, a autora aponta a necessidade de novos caminhos para se
percorrer a temática, sendo estes traçados também por vozes femininas do Islã,
frequentemente subalternizadas, e dentro da arquitetura da desconstrução. Afirma ela:

Como mujer musulmana, y en una doble crítica, decolonial e interna al discurso


islámico, me pareció importante deconstruir tanto la visión neoorientalista inherente
a la ideología feminista dominante como aquella visión en «espejo» del discurso
islámico tradicionalista refractario a toda visión reformista (2014, p. 34).
A partir da perspectiva da pensadora, pensar o diálogo citado acima entre Haroum e o
narratário francês em O caso Meursault, abre espaço para se perceber como visões unilaterais
sobre muçulmanas são comuns em “mesas de bar”, sobretudo, dentro da ótica masculina. A
temática se coloca mais complexa do que faz parecer o personagem daoudiano, mas sua voz
argelina deixa evidente como a problemática encerra tensões entre múltiplas posições,
gerando perguntas sem respostas, sobretudo vindas de vozes marginais ao texto. A tônica do
comentário de Haroum, portanto, revela um personagem que reduz a complexa imagética do
véu, a qual ganharia mais em ser pensada numa perspectiva mais aberta que estivesse apta a
encarar suas contradições, tal qual sugere Lamrabet:

El velo es finalmente el lugar de todas las contradicciones, porque a la par que


oculta, expone la vulnerabilidad del ideal igualitario, de las diferencias y de la
relación dominante/dominados, pero también muestra la incoherencia del imaginario
interpretativo musulmán sobre el cuerpo de las mujeres musulmanas (2014, p.34)
246
Ainda sobre o trecho acima citado do romance de Daoud, sublinho que ele se faz
revelador por mostrar como Haroum é adepto da própria filosofia camusiana do absurdo que
tanto critica na pessoa de Meursault e no seu relato do crime contra Moussa. Ao se confessar
como alguém que enxerga que as pessoas a versarem orações de som vazio, que entende que
Deus está em fuga e não mais voltará, que prefere a gravidade (força científica) à elevação
(metáfora do etéreo, da transcendência ao paraíso), ao se recusar a adorar religiões, Haroum
se espelha no “outro”, no protótipo da filosofia francesa do Pós-guerra que é Meursault: no
homem que crê, a seu modo bem particular, conflitante e contraditório tal qual é o seu lugar
de transculturação via experiência pós-colonial (WALTER, 2015), no sagrado absurdo e que,
como Camus, enxerga que há medo dos indivíduos em reconhecer o próprio absurdo. Esta é a
nuance de Haroum: todos os seus poros vibram contradição e complexidade. É este narrador
que refaz os sentidos de O estrangeiro a partir do seu olhar argelino, expandindo sua crítica
do clássico a reflexões mais amplas sobre a realidade que enfrenta em seu contexto pós-
revolução da Independência.
Para assinalar outro ponto paradoxal em Haroum, é preciso atestar que, de forma
contraditória, ele próprio, que chega a denunciar o machismo presente em determinadas
práticas de sua cultura, demonstra, aqui e acolá no texto, posturas discursivas misóginas,
agressivas às mulheres, fato que sublinha ainda mais a ambivalência da sua personalidade.
Segue sua fala e a naturalidade nela presente a respeito de se relacionar o ato de maldizer a
cidade ao de maldizer as mulheres: “Sim, eu gosto desta cidade, apesar de adorar maldizê-la
com palavras que jamais consegui usar para maldizer as mulheres” (2013, p. 36). Mais
adiante, diversamente, o narrador reverencia a figura feminina, reforçando seu caráter
contraditório no trato para com o sexo oposto: “Para iluminar o seu caminho, você deveria
procurar uma mulher, não um morto” (2013, p. 63). Voltarei a examinar de modo mais direto
a relação entre gênero, representações femininas e o discurso de Haroum nas secções
subsequentes.
No que se refere a dessacralizar o romance de Camus dentro da tradição literária
ocidental, é possível afirmar que Daoud assim o faz ao “cometer a transgressão” de incitar
uma outra leitura para o clássico: aquela que o reescreve de maneira vigilante às cicatrizes do
imperialismo. Cito novamente Daoud:

Retomemos. É sempre necessário retomar e voltar ao que é fundamental. Um


francês mata um árabe deitado em uma praia deserta. São duas horas da tarde no
verão de 1942. Cinco tiros, seguidos de um processo. O assassino é condenado à
morte por ter enterrado mal a sua mãe e ter falado sobre ela com demasiada
indiferença. Tecnicamente, a morte se deve ao sol ou ao puro ócio. ... O árabe é
247
morto porque o assassino acha que ele quer vingar a prostituta, ou talvez porque ele
se atreve indolentemente a fazer a sesta. Você fica nervoso quando eu resumo o seu
livro assim? Mas é a verdade pura e simples. O resto são apenas floreios devido à
genialidade do seu escritor. Depois disso, ninguém se preocupa com o árabe, a sua
família ou seu povo. Ao sair da prisão, o assassino escreve um livro que se torna
famoso, em que ele conta como fez frente ao seu Deus, a um padre e ao absurdo
(2016, p.65).
Percebe-se na citação, que Haroum acaba “matando” o exclusivismo da versão
meursaultiana. Sua narrativa descontrói a visão de que Meursault teria matado um argelino na
conjuntura imperialista francesa no Magreb porque o mundo seria sem sentido e absurdo. Tal
iniciativa dessacraliza, assim, a leitura única do romance O estrangeiro na ordem canônica,
uma vez que deixar turva a tão comentada inocência, já cobrada por Sartre (2005), de
“homem universal” e “homem absurdo” atribuída a Meursault.
Por fim, mas não esgotando a temática, que renderia infinitas observações, o narrador
Haroun desfecha seu discurso com uma sugestão de reconfiguração da relação com o sagrado
e com a forma de entendê-lo por parte do leitor. Daoud, nessa investida, dá a entender que
seria o sujeito da leitura a persona que decidiria sobre aquilo que o faria ou não ter fé. Dentro
dessa lógica, tanto crer em Deus quanto na versão do árabe morto (posta “no livro” escrito por
Meursault) ficaria, então, a cargo do sujeito que lê. Ao final da leitura de O caso Meursault,
fica sugerido que não há um veto completo ao código religioso cristão ou ao mulçumano na
visão contraditória do narrador protagonista. Há, sim, mesmo após tantas ironias e críticas á
religiosidade, a deixa de uma abertura para a reflexão e a escolha das próprias crenças por
parte das pessoas. Há, para Haroum, a partir de sua narrativa, uma liberdade consciente e
característica dos leitores para acreditar ou não numa determinada história, esta pode ser
tomada como real ou ficcional a depender daquilo que concebe o leitor. É o que se verifica no
trecho abaixo, que finaliza a obra:

Minha história é útil pra você? É tudo que eu posso lhe dar. É a minha palavra, para
pegar ou largar. Sou o irmão de Moussa ou o irmão de ninguém. Apenas um
mitômano que você encontrou para preencher os seus cadernos... A escolha é sua,
meu amigo. É como a biografia de Deus. Rá-rá! Ninguém jamais esteve com ele,
nem mesmo Moussa, e ninguém sabe se sua história é verdadeira ou não. O árabe é
o árabe, Deus é Deus. Sem nome, sem iniciais. Macacão azul e céu azul. Dois
desconhecidos com duas histórias em uma praia sem fim. Qual delas é mais
verdadeira? É uma questão de foro íntimo. Você decide. El-Merssoun! Rá-rá.
Eu também quero que os meus espectadores sejam muitos, e que o seu ódio seja
selvagem (2016, p.165).
O pacto entre o leitor e Deus se coloca, como visto acima, como análogo ao pacto
entre o leitor e o romance (COSTA LIMA, 2006), de maneira que o texto sugere que só se
acredita naquilo que se decide acreditar: “A escolha é sua, meu amigo”. Aí, neste ponto,
248
reside mais um distanciamento entre Daoud e Camus. No romance deste, o protagonista
rompe nitidamente com o Deus cristão e descrê ou é indiferente a sua existência; no romance
daquele Deus é transformado numa escolha livre por parte de quem executa a leitura. Tal
traço da obra do argelino que relativiza a fé, o coloca como um discurso crítico em face de
uma cultura cuja própria independência política só ocorreu pela intervenção de uma
unificação islâmica no país (YASBEC, 2010). Destaco também no trecho, que tal transgressão
daoudiana vem acrescida de certo deboche irônico com o mundo que descreve, visível na
recorrência da expressão “Rá-rá”. Ela traz um sentido de riso, mas não de um riso por alegria,
e, sim, por certo sarcasmo, revolta (CAMUS, 2018B), crítica e consciência de ousadia frente a
uma parcela populacional elideranças políticas locais que sustentam a bandeira muçulmana de
modo autoritário. E. Existem mais cores nos sentimentos deste narrador se o compararmos às
vibrações emotivas de Meursault, sujeito cujo traço indiferente se destaca em seu caráter,
sujeito que deseja o ódio dos outros, mas que se coloca acima de todos com certa pretensão.
Haroum, diversamente, mesmo naquilo que se aproxima de Meursault, deixa transbordar na
sua voz paixões mais variadas e que, combinadas, geram um efeito de impacto que julgo
dotado de uma violência peculiar: ele sente ódio, rancor, culpa, inveja; ele é generoso ao
dialogar com o francês, ao pagar-lhe a conta, ao chamá-lo de “amigo”, mas nenhum desses
sentimentos são transparentes e puros; eles carregam o brilho da ironia e do sarcasmo. Uma
mente narrativa que carrega tais tons em sua memória despejada no público que lhe escuta.
Daoud, assim, ao ressignificar o sagrado camusiano e a religiosidade com tais
contornos, afronta o histórico político argelino, afronta a memória da crítica francesa em torno
de um clássico ocidental. Sua reescritura paródica também não só redimensiona o passado de
seu país, mas problematiza a Argélia contemporânea, as questões conflitantes de seu cenário
hoje: fortes marcas do fundamentalismo islâmico e de um nacionalismo que, por vezes,
escamoteia as diversidades locais (SCHATZ, 2015); marcas as quais são resultantes também
da relação colonial com a França (HALL, 2006). A dinâmica que a Argélia mantém com o
sagrado islâmico interfere na liberdade de expressão de muitos habitantes do país, bem como
da própria Literatura argelina. Abordar o sagrado/religioso, nesse desenho ficcional acionado
pelo autor, que atua escrevendo na língua francesa, é um ato político de coragem. Daoud já foi
alvo de ameaças por parte das forças político-religiosas que dominam a gestão da Argélia
(SCHATZ, 2015)46. Sua resistência é notável, uma vez que sua produção enfrenta o “ódio
selvagem de muitos de seus espectadores”.

46 O tópico é retomado nas “Considerações finais”.


249
5.5 A GEOGRAFIA PÓS-COLONIAL E RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA
ARGELINA.

Pensar a literatura pós-colonial da Argélia contemporânea demanda que se leve em


consideração, de modo destacado, a ficcionalização da geografia local. Como afirma
Inocência Mata, referência relevante nesta pesquisa, “o estudo do lugar de cada obra ou
estética literária é também uma reflexão sobre o percurso cultural de uma geração ou uma
nação” (2013, p.48). Sendo assim, problematizar o lugar na ficção pode facilitar o acesso a
sentidos relevantes interpostos pelas obras sobre a representação dada ao país e os sujeitos
(personagens) que o ocupam. Em posição que se coaduna a Mata, Arturo Escobar (2005)
também enfatiza a importância de se manter a ideia de lugar sob a mira dos estudos críticos
que têm como objeto questões interseccionadas pelo imperialismo e pelas tensões entre o
local e o global na formação cultural dos povos. Em compasso com ambos os autores, entendo
que O caso Meursault em muito ganha ao ser analisado sob a perspectiva da geografia local
argelina e suas formas de acionar a noção de memória, de fundamental relevância para a
trança narrativa do texto.
Nesse sentido, no que se refere a focalizar a articulação entre memória e tessitura do lugar
presente nas obras de autores de periferias francófonas, procuro dialogar com a produção de
Roland Walter. Por ora, vejo que a perspectiva da minha pesquisa em muito se afina com a do
autor, quanto à sua maneira de conceber a noção de lugar e espaço, a partir do que ele tem
concebido junto a demais teóricos que contribuem com a formação de seu pensamento crítico
estreito à Ecocrítica, como Soja e Glissant, no que concerne, sobretudo, à inerência entre o ser
humano e a terra onde vive, entre Geografia e História, entre lugar e afeto, entre lugar e
memória, sobretudo, de corpos violentados pelos processos ligados à “Colonialidade do
poder”, tal como esta é entendia por Quijano.
Recorto aqui alguns trechos do ensaio de Walter “Multitransintercultura: literatura, teoria
pós-colonial e ecocrítica” (2015), em que o autor desenvolve ideias que desejo acolher:

Para Ashcroft, “o lugar é resultado de habitação, uma consequência dos modos


como as pessoas vivem num espaço”. Por outro lado, a maneira como as pessoas
habitam um lugar – seu imaginário espisteme cultural, língua, gestos, maneira de
falar e vestir, etc. – é determinada por este lugar: o que é verdade realidade num
lugar e para determinado grupo necessariamente não é para outro. As formas de
espaço constituem tanto o meio quanto o modo de nossa conscientização, ou seja, o
espaço torna-se simultaneamente, a forma das experiências vividas e a imagem de
seus conteúdos. Isso significa que pertencer a um lugar é determinado menos pelo
que se possui em termos de propriedade (terreno, casa, etc.) do que pela relação
entre a memória fragmentada e seletiva e a experiência vivida. Com base nesse
250
duplo sentido de lugar como entidade geográfica e produção sociocultural,
argumento que qualquer análise espacial deve examinar o seu significado intrínseco
e extrínseco, ou seja, seus próprios vetores como também as ramificações
socioculturais e político-econômicas nas quais raça, etnia, gênero e sexualidade,
idade e classe, entre outros vetores sociais, contribuem para a constituição da
experiência ambiental – como, em outras palavras, as histórias “naturais” são
profundamente enraizadas em si mesmas e ao mesmo tempo no processo glocal das
histórias mundiais. (2015, p. 626).
Assim, ao atuar analiticamente diante do texto, considero em que medida ele interage
com tempo histórico e espaço a partir desse entendimento de Walter. A pesquisa se mantém
atenta ao fato de que “As pessoas e a terra são enredadas num ser unificado e mutuamente
recíproco; o ser e a história da terra são inseparáveis do ser e da história das pessoas e vice-
versa” (2015, p.628). Acredito que a relação que Daoud mantém com a geografia da Argélia
está relacionada às suas formas de criar na literatura contemporânea em uma ex-colônia
francófona periferizada. Do mesmo modo, os lugares que sua obra seleciona para transitarem
seus personagens são também reveladores das representações dos sujeitos “árabes” e das
relações de poder pelas quais são atravessados em função do imperialismo francês e dos
próprios desdobramentos coloniais que desenham a cultura e a política local do presente.
Uma noção que se faz central na análise, junto à ideia de lugar, é a de memória.
Considero a abordagem feita por Roland Walter a respeito da literatura afro-americana
caribenha de expressão francófona uma alternativa interpretativa que em muito se estreita
com o que a obra de Daoud demanda. Walter percebe que a literatura afro-americana, no caso,
por exemplo, de escritores como Glissant, Chamoiseau, Condé, entre outros, se utiliza de um
voltar-se para dizer a paisagem e a terra como um recurso estético de reconstrução das
memórias caribenhas. Assim, a narrativa, pela memória oral de narradores e personagens,
reapresenta e põe em evidência a geografia como uma natureza simbólica, na qual, de acordo
com Glissant, como destaca Walter: “o indivíduo, a comunidade e a terra são
inextricavelmente entrelaçados no processo de criar a História” (GLISSANT, apud,
WALTER, p.129). Em síntese, para o autor, esse processo mnemônico, que revela o que
ele chama de “saber terra”, precisa ser entendido como uma prática social pelas duas razões
seguintes: “a) ratifica as distorções e vazios da História oficial por meio de histórias
subalternas, iluminando as atrocidades bárbaras cometidas em nome do processo civilizador e
b) esboça uma vivência alternativa” (2009, p.130).
Assim sendo, a prática literária se estreita à prática social, de modo que a relação entre
a geografia e a ficção afro-americanas passa a ser interpretada por Walter (2017) a partir de
nomenclaturas conceituais como a de “ecoestética” (2009), atrelada a um “inconsciente
251
ecológico” (2015) que permearia as obras. Estas, dessa forma, acabam apresentando o que
chama de “geografia crítica”47, num fazer literário, por sua vez, por ele também nomeado de
“estética da terra” (2017). Tal estética reconfiguraria o trauma da violência colonial e seus
silenciamentos históricos da diáspora negra. Enfrentar pela memória ficcional os traumas da
colonização torna-se uma prática que encerra a ambivalência da purgação emocional e do
reencontro com as “feridas”, do reviver na pele a dor para, enfim, trocar de pele, pele que não
se refaz sem marcas, mas com o peso da consciência crítica em torno do passado e o
semblante das utopias para redefinições de futuro. Neste jogo de ambivalências, a terra faz-se
uma potente morada, torna-se uma terra agora redesenhada pelo prisma do afeto, da
imaginação, da emoção, isto é, um prisma alternativo que se quer distanciado (distanciamento
não vivenciado sem tensões ou contradições) daquele pragmático, dominante do que seria o
“território”, explorado e dominado pela colonialidade.
Chamo a atenção para a correlação entre trauma, memória, corpo e narrativa que
Walter reconhece na literatura caribenha, com base no pensamento de Cathy Caruth. De
acordo com crítico, a autora:

Explica que um acontecimento traumático pode causar uma ruptura na experiência


de tempo, self e mundo da vítima. Para ela, o primeiro sintoma de trauma é o atraso.
Esta demora, este adiantamento no processo de lembrar o momento do trauma isola-
o de outras memórias normais, levando à trajetória de repetição. Flashbacks podem
acontecer a qualquer momento, como uma interrupção, como algo com uma força ou
um impacto interruptor.
...
A memória traumática na sua aparência tardia não pode ser relacionada somente a
aquilo que é conhecido, mas também aquilo que permanece não conhecido nas
nossas ações e na nossa linguagem. Portanto, é importante destacar que o trauma,
por causa da latência inerente na sua estrutura, aparece somente em outro lugar em
outro momento. Frequentemente a memória traumática tem sua origem e permanece
inscrita no corpo; corpo este apresentado como um arquivo e uma testemunha ativa
que é prova única e obstinada dos horrores do passado. O corpo é figurado como um
lugar pós-traumático (WALTER, 2014, p.146).
Os apontamentos de Caruth podem ser utilizados para se olhar para a narrativa pós-
colonial do narrador Haroum. Seu discurso contém interrupções, flashbacks, repetições nessa
perspectiva do contar a partir do trauma e, não raras vezes, o personagem coloca as marcas do
passado na representação tanto do seu corpo, quanto do corpo da mãe e do irmão assassinado
por Meursault. Assim, apresentando tais contornos, a visão de Walter, entendo, pode ser
extensiva ao que projeta Daoud em seu texto, o qual também revisita a geografia de seu país,

47 Termo que toma emprestado de Toni Morrison, quando a autora afirma que a resistência discursiva precisa
“desenhar um mapa de uma geografia crítica”. A referência de seu ensaio assim se apresenta: MORRISON,
Toni. Playng in the dark: Whitness and Literary Imagination. Cambridge: Havard UP, 1992.
252
toca nos traumas da família árabe, reconfigurando, de modo semelhante à literatura caribenha,
as representações da paisagem (seja no descrever de elementos naturais, como o mar, que
ganha imagens suplementares e de destaque em relação ao que é figurado em O estrangeiro,
seja no descrever das cidades de Argel e Orã, espaços igualmente significativos na narrativa)
e a representação das identidades dos sujeitos subalternizados.
Delimitados, portanto, os referenciais dos quais parto para entender a importância do
lugar na narrativa tal qual esta se erige em jogo com a memória do narrador, passo a focalizar
as representações das cidades e do mar no romance paródico do escritor argelino.

5.5.1 As cidades e o mar em Daoud

Inicio o debate apresentando a definição de cidade, a partir de Raquel Rolnik (1995).


A autora aponta que o movimento de construção de uma cidade, centrado em unir tijolos,
conectar prédios, interseccionar ruas, encerra uma dinâmica similar a da escrita, sublinhando
o fato de que a cidade: a) constrói, pela sua estrutura arquitetônica, textos para que os
transeuntes leiam e b) é também construída por textos variados que a erguem no plano da
memória coletiva. Cito Rolnik:

Na cidade escrita, habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma


vez que se fixa em uma memória que, ao contrário da lembrança, não se
dissipa com a morte. Não são somente os textos que a cidade produz e
contém (documentos, ordens, inventários) que fixam esta memória, a própria
arquitetura urbana cumpre esse papel” (1995, p.17).

Aproveito as palavras da autora para considerar a partir dela que a Literatura é uma
“arquiteta” de cidades ficcionais, escrevendo-as no tempo, no espaço, no campo cultural.
Dentro do estudo comparado aqui estabelecido, cabe a tentativa de buscar respostas possíveis
paras as questões: que cidades arquitetaram as obras de Camus e Kamel Daoud? Que escrita/
imagem de memória os autores sugerem para as cidades na Argélia? Para tal investigação, é
importante ter como âncora o seguinte aspecto: os dois autores em estudo as arquitetam a
partir de lugares diferenciados e com meios estéticos diversos. Os referenciais de Camus são
eurocêntricos (SAID, 1995), os de Daoud dialogam com as necessidades de se reconstruir,
como escritor nascido numa Argélia “independente” da França, uma cidade pós-colonial.
Cada um, dessa forma, imprime em sua obra a sua subjetividade como escritores em diálogo
com projetos ficcionais diferentes.
253
Em As cidades invisíveis (2017), de Ítalo Calvino, Marco Polo, personagem
navegador, tem a incumbência de descrever ao imperador Kublai Khan as diversas cidades do
seu próprio império (por ele desconhecido territorialmente). Após muito relatar sobre o que
viu nas diversas arquiteturas e costumes de “Isidora”, “Armila”, “Zobeide”, “Maurília” e
tantas outras cidades, o viajante recebe a seguinte interpelação do monarca sobre o seu lugar
de origem (cito a obra):

– Resta uma cidade que você jamais menciona – Veneza. – Disse o Khan. Marco
Sorriu. – E de que outra cidade imagina que eu estava falando? – No entanto, você
nunca citou seu nome. E Polo: - Todas as vezes que descrevo uma cidade, digo algo
a respeito de Veneza (2002, p.83).

Calvino, assim, põe seus leitores diante dessa ancoragem da visão de mundo do sujeito
a sua própria cidade, levada no olhar, ao se tentar descrever outras cidades. Seu texto enfatiza
a ideia de pertencimento do indivíduo ao seu lugar de origem, o qual se imprime na sua forma
particular de escrever/construir cidades ao delas falar ou sobre elas escrever. No caso de
Camus e Daoud, seus referenciais subjetivos de pertencimento são distintos, logo seus
respectivos narradores Meursault e Haroum demonstrarão particularidades no dizer a cidade
argelina. Aquele fala como pied noir, isto é, como francês que nasce na Argélia colonial em
posição privilegiada de dominação; este fala como representante de uma família árabe
marcada por um assassinato contra um ente querido nos tempos coloniais argelinos, isto é,
como sujeito que carrega a memória das cidades argelinas colonizadas. É a partir dessas
ancoragens diferentes que suas narrações vão arquitetar as cidades argelinas com construtos
imagéticos diferentes.
Calvino, ao se referir à relação entre as cidades e a memória, escreve:

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de
Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas
antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada seguimento riscado por
arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras (CALVINO, 1990, p.14-15).

Segundo o escritor italiano, assim, pode-se depreender a ideia de que a memória da


cidade, seu passado, não poderia estar verbalizado em sua totalidade nos registros históricos,
mas se dilataria pela própria materialidade do lugar, que enfrenta, fatalmente, a erosão do
tempo e reconstrução humana. Nesse sentido, a imagem da cidade está naquilo que cada
sujeito pode ver em cada detalhe de sua arquitetura, de suas ruas, de tal modo que esse
passado contido na matéria erguida, da mesma forma que a mão humana contém linhas na
254
pele, pode ser dito de variadas formas, tanto mais variados sejam os ângulos de visão de quem
o descreve. No confrontar dos dois romances em estudo, noto que Meursault “lê a mão” de
Argel, isto é, descreve a cidade argelina, como um flâneur (BENJAMIM, 1994), uma vez que
ele a observa a partir de sua individualidade, que tenta ler o movimento das pessoas na rua, e
a entrega a seus leitores suas impressões sem que seu relato esteja embebido de revolta contra
o passado. Ele conta Argel, de um prisma que resvala certo “conforto emocional” em relação
ao passado local, pois a sua preocupação central é apanhar o presente da cidade e de si mesmo
e o faz na posição de cidadão pied-noir. Em contrapartida, o relato de Haroum articula o
presente ao passado colonial, ao passado do assassino de seu irmão, ao passado do período
das lutas pela independência do país, trazendo na sua memória narrativa sentimentos de
tensão frente às marcas que o imperialismo ainda deixa (no seu presente enunciativo) nas ruas
e nos seus contornos que atravessam as pessoas nativas e francesas, sobretudo franceses
ligados a famílias expulsas durante a revolução na década de 60. Demarcada essa diferença
basilar entre os narradores camusiano e daoudiano, passo, agora, a analisar trechos dos
romances em estudo, para que as particularidades com que ambos constroem os espaços
narrativos sejam evidenciadas.
Recorto a descrição feita por Meursault no capítulo dois do romance daquilo que ele
observa nas ruas do alto de sua varanda:

Meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, a
rua parecia oleosa, as pessoas espalhadas aqui e ali, e, mais, tinham pressa. Primeiro,
eram as famílias que passeavam, dois meninos de roupa de marinheiro, calças
abaixo do joelho, um tanto sem jeito nos seus trajes engomados, uma menina com
um grande laço cor-de-rosa e sapatos de verniz preto. Atrás deles, uma mãe enorme,
com um vestido de seda marrom, e o pai, um homenzinho bastante franzino, que
conheço de vista. Usava um chapéu de palha, uma gravata-borboleta e uma bengala
na mão. Ao vê-lo com a mulher, entendi por que se dizia no bairro que ele era uma
pessoa distinta. Um pouco mais tarde, passaram os rapazes do bairro, de cabelos
esticados, gravata vermelha, o paletó muito cintado com um bolsinho bordado e
sapatos de bico quadrado. Pensei que iam aos cinemas no centro. Por isso é que
partiam tão cedo, rindo tanto e correndo para o bonde (2016, p. 29-30).
Comento a minha primeira observação: Meursault se comporta como um flâneur a
olhar Paris. Como explica Walter Benjamim, na sua apreciação da produção de Baudelaire, “o
simples flanador está sempre em plena posse de sua individualidade” (1994, p. 202), de modo
que a “fantasmagoria” do flâneur, ao olhar a multidão na cidade parisiense, seria “a partir dos
rostos, fazer a leitura da profissão, da origem e do caráter” dos passantes nas ruas. No excerto
acima, Meursault descreve a rua ocupada por pessoas de características francesas, o que se
deduz pelas vestimentas e pelo comportamento devidamente lido e interpretado ao modo
flanador explicado por Benjamim. Destaco a sua necessidade em selecionar os trejeitos de
255
circulação das famílias e suas vestimentas burguesas e obedientes ao status hegemônico de
gênero pela rua (crianças meninos, de marinheiro, já as meninas de laço cor-de-rosa) 48. Trata-
se de uma clássica família dentro dos padrões hegemônicos: pai, mãe, filhos, roupas distintas.
A mãe, ainda que bem vestida de seda, tem seu corpo remarcado como “enorme”, atentando-
se o policiamento sobre o corpo da mulher que pariu e quebra seu “contrato” com o padrão da
magreza, como também o pai é identificado como “homenzinho” distinto, o que fica sugerido
pela sua condição de chefe de família e ratificado pela gravata e pela bengala. Quando o
narrador afirma “Ao vê-lo com a mulher, entendi por que se dizia no bairro que ele era uma
pessoa distinta”, percebe-se certa ironia sua (como flâneur que tudo julga e supõe) frente às
convenções sociais daquela sociedade colonial francesa que valoriza a instituição familiar
burguesa e que ocupa as ruas da cidade.
Os letreiros em língua francesa dos cafés, os bondes, a tabacaria, os gatos, isto é,
elementos comuns na poesia de Baudelaire, criadora do flâneur, são destacados também na
narração:

Depois deles, pouco a pouco, a rua ficou deserta. Acho que os espetáculos tinham
começado em todos os lugares. Só se viam na rua os comerciantes e os gatos. O céu
estava puro mas sem brilho por cima dos fícus ao longo da rua. Na calçada em
frente, o dono da tabacaria pegou uma cadeira, instalou-a diante da porta e sentou-se
a cavalo, apoiando-se com os dois braços no encosto. Os bondes, há pouco cheios,
estavam quase vazios. No pequeno Café Chez Pierrot, ao lado da tabacaria, o
empregado varria a serragem na sala deserta. Era realmente domingo. Virei minha
cadeira e coloquei-a como a do dono da tabacaria porque achei que assim era mais
cômodo. Fumei dois cigarros, entrei para buscar um pedaço de chocolate e voltei
para comê-lo à janela. Pouco depois, o céu escureceu e achei que íamos ter uma
tempestade de verão (CAMUS, 2016, p. 30).
O trecho demonstra o tipo de cidadão que Meursault seleciona para ser evidenciado ao
narrar, a partir do que vê na cidade: o cidadão que passeia, que sobe no transporte público
para um destino de lazer dominical: os espetáculos. Também os jogos de futebol são citados
mais adiante no texto como um destino daquela população, que no seu dia de descanso
semanal, tem o privilégio do lazer e um lazer com “distinção” e estilo próprio: vestir-se
requintadamente e caminhar em família, ostentando a vida burguesa, apreciar a arte,
frequentar cafés “franceses” (“Café Chez Pierrot”), animar-se com um jogo esportivo. Tudo
isso é descrito de uma posição também privilegiada: da varanda, enquanto se fuma e se come
chocolate num domingo.
A citação a seguir ainda acrescenta mais detalhes ao clima de “tranquilidade” de um
dia de domingo num bairro burguês que vem sendo apresentado ao leitor:

48 Bourdieu estuda as vestimentas e os costumes franceses como formadores de sua “distinção” na colônia
argelina. Entre suas publicações, vide: BOURDIEU, Pierre. The Algeriens. Boston:Beacon Press, 1961.
256
Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram na rua uma onda de
espectadores. Entre eles, os rapazes tinham gestos mais decididos do que de
costume, e calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam
dos cinemas do centro chegaram um pouco mais tarde. Pareciam mais sérios. Ainda
riam, mas de vez em quando pareciam cansados e pensativos. Ficaram pela rua,
andando de um lado para o outro na calçada em frente. As mocinhas do bairro, de
cabelos soltos, andavam de braços dados. Os rapazes deram um jeito de passar por
elas e dirigiam-lhes piadas, das quais elas riam, desviando o olhar. Várias delas, que
eu conhecia, acenaram para mim (CAMUS, 2016, p. 31).
O trecho evidencia o hábito do cinema entre aqueles transeuntes de um bairro francês
próximo ao porto, evidencia, sobretudo, a ousada característica “flanadora” de Meursault de
julgar os homens mais “decididos” ou mais “sérios” por suas próprias impressões a partir dos
rostos estudados por ele; como disse Benjamim, o flâneur estuda “a aparência fisionômica das
pessoas para ler-lhes a nacionalidade e a posição, o caráter e o destino, pelo seu modo de
andar, pela sua constituição corporal, pela sua mímica facial” (1994, p.203), e é exatamente
esse o método utilizado pelo narrador camusiano na sua forma de ler a muldidão na cidade.
Sobre as mulheres, chamo atenção para o detalhe de que não são descritas com véu, tendo os
cabelos à mostra e sendo flagradas em explícito ritual de paquera na rua, o que é contado com
leveza, trançando-se também, com certo distanciamento, o retrato da vida burguesa da
comunidade pied noir naquele momento presente. O quadro também traz nitidamente hábitos
culturais ocidentais em evidência, ratificando a própria observação de Said (1995) sobre o
fato de que O estrangeiro seria o testemunho literário de que, na época, a França dominava a
Argélia e silenciava as particularidades da cultura local.
Nesse quadro pintado por Meursault, não há muito espaço para que sejam enfatizadas
características da cidade de Argel que eram igualmente reais na época (YAZBEC, 2010;
FANON, 1965): fome, bairros pobres, mesquitas, mulheres mulçumanas de véu, analfabetos
nativos que, salvo raríssimas exceções, dificilmente iriam ao cinema após um café ao
domingo. Estes traços das outras condições da Argélia em dominação colonial serão, em
contrapartida, trazidos pela ficção paródica de kamel Daoud, a qual também introduz detalhes
das cidades argelinas após a independência, revendo criticamente, portanto, este discurso de
prisma eurocêntrico de Meursault, que forjou uma imagem praticamente “parisiense”, ao
melhor estilo flâneur baudelairiano, para Argélia e sua vida urbana no passado colonial.
É preciso, contudo, não deixar de pontuar que a narrativa de Camus confere, sim,
arestas, sobretudo em determinadas cenas mais que em outras, para que se perceba a
dominação colonial através das descrições explícitas dos espaços. Pode-se depreender do
discurso de Meursault no seu próprio aspecto predominante de tender a focalizar na rotina
francesa da cidade quais são os espaços ocupados pelos nativos: os espaços periféricos. A
257
“moura” sem nome frequenta a cama do francês Raymond, extamente para lá ser violentada;
os árabes sem nome vestem macacão azul de conotação operária, o que é diverso do traje
francês burguês à base de gravata e bengala descrito por Meursault na rua argelina de mímica
parisiense. Estes árabes carentes de subjetividade como personagens da obra estão do lado de
fora de uma tabacaria – “vi um grupo de árabes encostados na vitrina de uma tabacaria”
(CAMUS, 2016, p. 54), isto é, ocupando as bordas dos espaços burgueses, nunca inseridos
neles de modo digno. Eles não aparecem em frente à tabacaria descritos fumando ou
passeando, confraternizando, como foram retratados os cidadãos num domingo por Meursault
do alto de sua varanda; na verdade, eles ocupam a margem do estabelecimento com o seguinte
semblante percebido pelo olhar flâneur do narrador: “Olhavam-nos em silêncio, mas à
maneira deles, como se fôssemos pedras ou árvores mortas” (CAMUS, 2016, p. 54). Estes
mesmo árabes – “uns árabes que tinham raiva de Raymond” (CAMUS, 2016, p. 54) – quando
em trânsito pela praia, carregavam facas e flautas, estando sujeitos a homicídios e a conflitos
corpo a corpo com os homens franceses (o que é uma condição de ocupação do espaço
completamente diversa de ser um proprietário de casa na praia para desfrute de lazer, como
são os colonos na obra).
As prisões de Argel são representadas como espaços da cidade cuja arquitetura
contém, em sua esmagadora maioria, árabes, o que se percebe quando Meursault descreve o
cenário ao seu redor ao ser preso pelo assassinato cometido. O personagem, inclusive, remete
ao fato por três vezes: 1) “No dia da minha prisão fecharam-me, primeiro, num quarto onde já
havia muitos detidos, árabes em sua maioria” (CAMUS, 2016, p. 77); 2) “Do meu lado, havia
dezenas de presos, quase todos árabes (CAMUS, 2016, p.78); 3) “A maioria dos prisioneiros
árabes, assim como suas famílias, estavam de cócoras, frente a frente. Eles não gritavam.
Apesar do tumulto conseguiam entender-se falando em voz baixa” (CAMUS, 2016, p. 78).
Este detalhe deixa claro que, na escrita de O estrangeiro, é perceptível a recuperação de uma
memória da história do imperialismo francês. Nela, cadeias comportam argelinos em maioria,
sendo estas lugares onde mães nativas transitam para visitar seus filhos detidos. A esse
respeito, destaco o trecho em que Marie visita o namorado na prisão de Argel, ocasião em que
também outra mulher, uma mãe árabe, visita seu filho. As vozes das duas se cruzam em meio
à visitação coletiva, na qual não há qualquer privacidade ao detentos e todos podem ser
escutados no recinto:

— Vai sair depressa e vamos nos casar!


258
— Você acha? — respondi, mas era sobretudo para dizer alguma coisa. Ela disse
então muito depressa, e sempre em voz muito alta, que sim, que eu seria absolvido e
que nós ainda tomaríamos banhos de mar. Mas a outra mulher gritava do seu lado e
dizia que deixara um cesto na entrada. Enumerava tudo que colocara no cesto. Era
preciso verificar, pois tudo aquilo custava muito caro. O meu outro vizinho e a mãe
continuavam a se fitar. O murmúrio dos árabes prosseguia abaixo de nós. Lá fora, a
luz parecia inchar de encontro à janela (CAMUS, 2016, p. 80).
A passagem deixa claro que, enquanto a mulher francesa, ao ocupar o prédio da prisão
para visitar o homem acusado de assassinato com quem sonha em casar, se mostra confiante
em ocupar novamente o espaço de lazer que é a praia, diversamente, a mãe árabe tem outra
preocupação: a de fazer a comida cara chegar a seu filho devidamente. A cena revela que,
naquele contexto colonial, se franceses preocupam-se em desfrutar da vida burguesa junto ao
mar de uma cidade tomada, as famílias argelinas eram pobres e se preocupam com
necessidades básicas, como alimentação.
Sobre, especificamente, o tópico da fome que assolava a Argélia durante a dominação
enquanto franceses detinham privilégios mediante o imperialismo, uma leitura atenta de O
estrangeiro pode fazer com que os leitores percebam que enquanto os árabes são registrados
quase sempre em silêncio, marginalizados dos espaços de poder da cidade e violentados na
própria praia, que é pública, os colonos são flagrados constantemente comendo, isto é, não
lhes é apontada a dificuldade de se obter o que se come. Meursault, é importante destacar,
bebe café com leite no enterro da mãe, come chocolate na sua varanda, sai para comprar
massa na mercearia do bairro, prepara ovos com Marie em sua cozinha, compartilha linguiça
com Raymond no apartamento deste, fritada de peixe com os anfitriões da casa de praia,
frequenta o restaurante do personagem Celeste. Diversamente, os personagens nativos não
foram descritos pelos espaços com acesso fácil à alimentação. O momento da refeição em
Camus é associado à socialização dos personagens franceses, à definição de suas rotinas e
caracteres subjetivos. Tal detalhamento no mesmo grau dos personagens árabes não ocorre;
eles seguem pelos espaços sem subjetividade e quando uma nuance da sua condição social
vem a se mostrar é atrelada a questões gerais identificadas com a subalternidade: falta de
recursos – “Era preciso verificar, pois tudo aquilo custava muito caro”, silenciamento,
violência. Acerca da questão alimentar no período inicial das lutas pela expulsão francesa,
Arthur Poerner em sua obra Argélia: o caminho da independência (1966), registra: “Em 1954,
a dieta diária de um argelino não continha as 1.500 calorias indispensáveis, enquanto os
colonos franceses consumiam em média três mil calorias (1966, p. 40).
Na verdade, em se tratando da forma de viver como cidadão da Argel colonial e ter
direitos básicos, como alimentação, emprego, educação, segurança pública, há muita
259
discrepância entre nativos e colonos na obra camusiana. Em O estrangeiro, é possível assistir
à morte do sujeito árabe na praia com sucessivos tiros à queima roupa, ao mesmo tempo em
que as mulheres argelinas transitam como sexualmente exploradas por suspeitos “cafetões”
ocidentais pelos bairros franceses, deles apanhando até berrarem como animais. Existe, pois,
uma marca da geografia colonial aparente, sim, em Camus, ainda que Said (1995) se tenha
optado por enfatizar uma imagem do escritor como um literato que se preocupou
principalmente em discutir a filosofia ocidental no espaço colonial, em vez de escancarar a
violência imperialista (vide Capítulo 2). As formas de os personagem ocuparem os espaços no
texto de Camus revelam, como visível nos trechos citados, as desigualdades gritantes entre
franceses e argelinos, entre homens e mulheres na cidade, estas sujeitas, muitas vezes, à
objetificação sexual. Remarco que, no romance, no prédio do tribunal francês, é possível
entrever que a obra mostra transitarem apenas franceses: do réu aos juízes, passando pelas
testemunhas. Não há menção no texto à família da vítima ocupando repartição pública
colonial em que se julgava o crime. Detalhe: a imprensa teve acesso ao prédio para tudo
cobrir nos jornais, os quais dificilmente seriam lidos por uma população argelina de maioria
analfabeta em francês, entre a qual está o próprio Moussa, assassinado, e sua mãe, empregada
doméstica, tal como nos conta a tradução paródica de Daoud. Poerner aponta: “Conforme
estatísticas oficiais do Governo Geral Francês para a Argélia, datadas de 1954, 82% da
população originária do país era constituída por analfabetos, o que não é, decididamente, um
índice das civilizações europeias” (1966, p. 39). Portanto, a desigualdade na vivência da
cidadania está desenhada em Camus na maneira como os personagens se movimentam pelos
espaços da narrativa. É preciso, desse modo, pensar analiticamente como Kamel Daoud traduz
essa questão no seu romance paródico.

5.5.2 As cidades e o mar: marcas da colonização na terra

Daoud, por sua vez, traz em O caso Meursault a arquitetura das cidades de Argel e
Orã, não apenas de Argel, como assim agiu Meursault, e o faz de um modo suplementar,
explicitando os traços da cultura nativa, da memória familiar da vítima. Quando as fachadas
com letreiros franceses são destacadas no relato de Haroum, por exemplo, é para serem vistas
como emblemas da hegemonia francesa e do idioma francês justo numa região em que
predominava antes da colonização a língua árabe e outras variações dialetais. O escritor
introduz no quadro dos espaços aparentes no texto a presença das mesquitas e da atmosfera
260
cultural islâmica que paira na cidade no presente; deixa explícita a divisão dos bairros na
Argélia colonial entre os bairros franceses e os argelinos, como bem atesta esta tensa divisão
Fanon em Os condenados da terra (1965); ressignifica as relações da cidade com o mar, traz
os problemas urbanos, como a sujeira das ruas, estas são lidas como dotadas de uma espécie
de cicatriz da desocupação francesa. Dessa forma, diversamente do que ocorre em O
estrangeiro, ele escreve na cidade as marcas arquitetônicas da violência colonial, mas
criticando explicitamente o passado imperialista. Além disso, o autor não se mostra cego a
uma autocrítica nacional e também escreve sobre os “hematomas” deixados pelo
fundamentalismo islâmico que domina o país e policia moralmente a liberdade das pessoas na
frequência a bares no presente (SCHATZ, 2015). Cito Daoud:

É por isso que farei o que se fez neste país depois da sua independência: pegar uma
a uma as pedras das velhas casas dos colonos e erguer com elas uma casa minha. As
palavras do assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está,
aliás, inundado de palavras que já não pertencem a ninguém e que observamos nas
fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda,
transformadas pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2016, p. 9-10).
O trecho esboça um tom de crítica dirigida às marcas da colonização ainda aparentes
atualmente nas ruas das cidades, visíveis nos imóveis e suas fachadas com letreiros em
francês. A marca da colonização é arquitetônica e o narrador faz essa denúncia da existência
de uma cidade nada tranquila ou unívoca, mas atravessada por uma memória de um trânsito
de dominação imperialista: inicialmente invadida, em seguida desocupada, esvaziada pelos
colonos expulsos na revolução pela independência. Tal como é descrita acima, a ideia que fica
na narrativa que emana tensão, rancor e revolta de Haroum é que a cidade argelina continua a
violentar os olhos de quem lê pelas suas ruas um passado de disputa territorial, de hegemonia
francesa e apagamento da identidade cultural e linguística do povo árabe. Aqui fica notável
que semelhante à já mencionada ideia de Rolnik (1995), de que a cidade e a escrita estão
correlacionadas, está o desabafo do narrador; sem dúvida uma palavra possível para
identificar seu relato é “desabafo”. Diferente de Meursault, que narra como flâneur uma Argel
parisiense, Haroum “desabafa” que a arquitetura francesa do período colonial de algum modo
permanece na Argélia contemporânea revolvendo as cicatrizes da violência. É por tal
característica que, ao narrar o que narra sobre a cidade, o personagem expõe a sua memória e
seu trauma, tenta purgá-lo no gesto narrativo (WALTER, 2014).
Cito outro excerto de Kamel Daoud em que o narrador descreve a cidade argelina de
Argel para que fique evidenciado, de modo ainda mais nítido, seu tom crítico ao passado
colonial e sua marcada dicção traumática em relação ao lugar em que cresceu desde a
261
infância. O trecho conta as memórias do trajeto de mudança/fuga de Haroum e sua mãe da
cidade natal Argel para Orã. Sua mãe atormentada pelo crime contra Moussa ocorrido na
praia, decide buscar nova morada com o filho mais novo, único sobrevivente de ataques à
mão armada de franceses e à própria fome que assolava a região naquele tempo. O trauma foi
o motor daquela família “retirante”: “mamãe tinha decidito fugir de Argel, do mar” (DAOUD,
2013, p. 31). Haroum conta:

Lembro-me do caminho para Hadjout, ladeado por campos cujas colheitas não eram
destinadas a nós, o sol a pino, os viajantes no ônibus empoeirado. O cheiro do
combustível do motor me causava náuseas, mas eu gostava do seu ronco viril e
quase reconfortante, como uma espécie de pai que nos tirava, minha mãe e eu, de
um imenso labirinto feito de prédios, pessoas esmagadas, favelas, moleques sujos,
policiais mal-humorados e praias mortais para os árabes. Para nós dois a cidade seria
sempre o local do crime ou da perda de alguma coisa pura e antiga. Sim, Argel, em
minha memória, é uma criatura suja, corrompida, ladra de homens, traidora e
sombria (DAOUD, 2016, p.31-32)
A passagem, como é notável, está carregada da memória magoada do narrador pela
colonização francesa. “A colheita que não era para nós”, numa terra de argelinos que
passavam fome, traz o pesar de uma pátria saqueada, roubada. Historicamente, como ressalta
Quijano (2008), os recursos da terra colonial (matéria prima e mão-de-obra explorada)
formaram as riquezas das metrópoles e as instituíram como centro da dominação. Tal
memória de um trajeto da infância, junto à mãe para fugir de Argel, como a vista acima, a
ressaltar o destino da colheita negado aos nativos da terra onde se planta, uma vez dita a um
narratário francês, um investigador/intelectual universitário, na narrativa dialógica de
Haroum, abre campo também para que leitores contemporâneos pensem, inclusive, nos
trajetos migratórios de argelinos para a França atualmente. O romance confere ao público de
hoje (seja ocidental ou periférico), pela fala do personagem argelino (sujeito historicamente
silenciado e periferizado), a possibilidade de enxergar a memória da exploração francesa que
negou a nativos árabes os frutos da própria terra. Tal empreitada é revisitar criticamente uma
história hegemônica do passado imperialista francês e oferecer materiais para que se reflitam
sobre os motivos das migrações contemporâneas, arraigados a este passado. No trecho lido
acima, assim, a cidade ganha a imagem da violência que sofreu e que, no entanto, não recebeu
a devida ênfase em Camus, visto que seu romance traz apenas a visão exclusiva do francês,
silenciando a voz argelina. Tratam-se, pois, de cidades marcadas pela sujeira, pelas cicatrizes
coloniais as que se mostram em Daoud.
262
O olhar dos cidadãos argelinos para a cidade é uma novidade que não foi, de fato,
tateada pelo narrador camusiano e seu caráter de flâneur, mas que aparece em O caso
Meursault, merecendo ser aqui enfatizada. Cito o texto:

Por que razão eu estou de novo afundado em uma cidade, aqui, em Orã? Boa
pergunta. Talvez seja para me punir. Observe um pouco à sua volta, aqui, em Orã ou
em qualquer outra parte, parece que as pessoas têm raiva da cidade, e só vem aqui
para saquear uma espécie de país estrangeiro. A cidade é um butim, as pessoas a
veem como uma velha prostituta, insultam-na, maltratam-na, atiram-lhe lixo na cara
e a comparam sem parar com a aldeia saudável e pura que ela era antigamente, mas
já não conseguem abandoná-la, pois é a única saída para o mar e o lugar mais
distante do deserto. Anote essa frase, que ela é bonita, rá-rá-rá! (2016, p. 31-32)
Assinalo nesta passagem que Haroum sugere a semelhança entre a relação de
tratamento que as pessoas estabelecem com a cidade e a relação que travam com uma
“prostituta velha”, o que se revela como uma figuração peculiar por reconstruir a memória
geográfica da nação em interseção com a questão de gênero. Em “Feminismo e trabalho
sexual” (2021), afirma Barbara V 49 que a persona da prostituta assume sentidos, por vezes,
não consensuais na cultura. Para a autora, haveria como: a) em um sentido mais tradicional,
vê-la unilateralmente como ser objetificado sexualmente e explorado pelo patriarcado,
estando por essa razão sujeita a condições de vida e trabalho degradantes; b) Em um prisma
mais aberto, o qual evita associar venda de práticas sexuais a uma necessária degradação
material e moral, vê-la como uma profissional que vende sua força de trabalho no sentido
marxista (e precisa ser livre para vendê-la no interior de uma cultura machista que controla a
sexualidade feminina), estando, assim, sujeita a mais valia como estão outros trabalhadores
que vendem outros serviços. Aberto esse breve parênteses50 sobre as representações variadas

49 A autora assina seu texto como Bárbara V., demarcando que reflete sobre o tema a partir da sua experiência
como profissional do sexo. Não há, portanto, sobrenome explícito da colaboradora nesta publicação de caráter
coletivo. Segue referência: V., Bárbara. Feminismo e trabalho sexual. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO,
Lina (Orgs.). Feminismos dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jadaíra, 2021, p. 157-171).

50 Interessa-me, aqui, apenas pontuar a relação entre cidade e prostituição estabelecida na obra de Daoud,
considerando que a prostituta é uma imagem feminina que assume interpretações diversas, por vezes
contraditórias, a depender, inclusive, do referencial cultural e da lente analítica. Contudo, assumindo que tal
problemática da prostituição reverbera desdobramentos muito mais complexos, que, por ora, não se fazem objeto
central de investigação, considero oportuno fazer um breve apanhado a respeito do pensamento da autora citada
Bárbara V. sobre os olhares em torno da figura da prostituta. A prostituta poderia ser vista, atesta V., a partir de
um prisma que ela considera “menos moralista”, como uma profissional do sexo, e, assim, sua força de trabalho
seria vender prazeres, tal como outras profissões vendem sua força de trabalho prestando serviços diferentes.
Assim, como outros profissionais na ordem hegemônica, a prostituta poderia ser tratada, portanto, também como
um sujeito de direitos trabalhistas igualmente digno, defende, mas não é o que é corrente na maioria das culturas.
Nesta conotação específica trazida por V, ela reconhece, sua atividade, encarada como profissão, se mostra
nitidamente uma transgressão à moral patriarcal hegemônica, a qual tem sob vigilância os corpos das mulheres,
impedindo-as de usá-los a seu bel prazer, sobretudo quando na interface da gestão da própria sexualidade. Por
outro lado, coloca a autora, a imagem da prostituta aciona sentidos mais tradicionais divergentes; ela também
estaria interseccionada pelos caminhos que a entendem como ser explorado e subalternizado, encontrado em
condição degradante. Seria esta a interpretação, por exemplo, da corrente feminista que a estudiosa identifica
263
da prostituição, leio nas entrelinhas da comparação estabelecida por Haroum entre a cidade e
a prostituta que a moral patriarcal é uma sombra na sua visão de mundo. A comparação que
estabelece para qualificar Orã (“uma velha prostituta, insultam-na, maltratam-na, atiram-lhe
lixo na cara”) indicaria que, na sua perspectiva, o processo de colonização pelo qual a Argélia
passou (e que deixa suas consequências na cidade) é comparável à degradação moral da
mulher que trabalha vendendo sexo e que, no momento, se encontra velha. Fica subentendido
que o adjetivo que aciona a velhice indica que a mulher perdeu o seu vigor e seu potencial de
exploração sexual, pensamento decorrente da existência de um padrão patriarcal que
hierarquiza mulheres jovens e “velhas” num pódio do desejo condicionado à estética e ao
etarismo.
Sustentar a “leitura da cidade” argelina pós-colonial, como faz Haroum, como uma
trabalhadora sexual que se permitiu ser explorada (pela metrópole) em troca de “migalhas”,
recebendo por isso a raiva das pessoas, revela o caráter misógino desta sociedade que assim a
maltrata. Em outras palavras, essa lógica (colonização/prostituição) inferida no texto
possibilitaria o seguinte entendimento: Haroum assim pensaria: Já que a cidade não se deu
“ao respeito”, isto é, como não foi “casta”, mas “oferecida” ao colonizador, e hoje se encontra
“velha”, as pessoas se sentem no direito de lhes insultarem, de lhes maltratarem com lixo,
sujeira. Tal visão apreensível do personagem põe a nu o machismo de uma sociedade que se
percebe como autorizada a violentar mulheres que são profissionais do sexo e que não
atendem ao padrão hegemônico estipulado pelo patriarcado local: casta e jovem. O quadro
comparativo demonstra que a violência é um trajeto inevitável destinado à cidade argelina,
assim como é, na visão de Haroum, à prostituta (aqui, neste aspecto particular, sobressai-se a
visão tradicional da prostituta como “subalternizada” e impura). É nessa dinâmica de
violência contra a mulher que memória geográfica e gênero se interseccionam no texto.
A ambivalência é também uma tônica presente no desenho que o narrador daoudiano
projeta da cidade, pois ora esta recebe degradação das pessoas por se assemelhar a uma

como “Abolicionistas da prostituição”. Colocando-se em oposição a essa perspectiva de feminismo, Bárbara V.


argumenta (partindo da sua experiência pessoal como profissional do sexo que é) o seguinte: “Muitos dos
problemas e das dificuldades que apontam para nossa atividade são reais, tenho de admitir, mas a verdade é que
esses problemas também existem em diversos outros contextos. Para argumentar em defesa da prostituição,
muitas vezes eu não preciso falar da prostituição especificamente, mas sim de outros espaços que nós mulheres
podemos ocupar nesta sociedade. O que dizer dos outros trabalhos precários? O que dizer sobre o casamento?
Existe algum lugar nesta sociedade no qual a mulher esteja livre da opressão masculina?” (2021, p. 170). A
autora continua sua fala em defesa da prostituição, alegando que as feministas abolicionistas idealizam uma
posição melhor para estas profissionais que, em contextos reais, não existiria na sociedade em que vivemos. Ela
assinala que impedir as prostitutas de exercerem seu trabalho, sob a hipótese utópica de que encontrariam uma
atividade menos degradante, seria condenar estas mulheres à perda do próprio sustento nas condições em que se
encontram, além de cerceá-las da própria liberdade de gerir seus corpos.(2021, p. 170).
264
mulher que vende sexo e envelheceu, ora ela representa um verdadeiro bálsamo para a
sociedade: “é a única saída para o mar e o lugar mais distante do deserto”, tendo, inclusive,
sua beleza marcadamente reconhecida em meio ao lixo jogado em sua face: “Anote essa frase,
que ela é bonita, rá-rá-rá!”. Assim como a cidade descrita, a prostituta é reconhecida também
na cultura paradoxalmente ora como ser degradado, ora como fonte de prazer. Destaco ainda
no trecho recortado a ironia e o sarcasmo conscientes do narrador vivificados pelo recorrente
riso “rá-rá-rá” na sua fala dirigida a seu interlocutor francês.
A respeito da cidade, cito novamente Daoud:

Há uma velha canção daqui que diz que “a cerveja é árabe e o uísque é ocidental”. É
mentira, claro. Quando bebo, eu sempre a corrijo: esta canção é oranense, a cerveja é
árabe, o uísque europeu, os barmen são cabilas51, as ruas, francesas, os velhos
pórticos, espanhóis... isso não acaba nunca. Vivo aqui há algumas dezenas de anos e
me sinto bem. O mar fica na parte de baixo, lá longe, esmagado ao pé das grandes
construções do porto. Ele não roubará ninguém de mim e jamais conseguirá me
atingir (2016, p. 31-32).
Na narrativa, fica aparente que as ruas, novamente ressoam mimeticamente as ruas
francesas, também evidenciam a convivência entre sujeitos europeus e locais, mencionando-
se os cabilas. Contudo, o que salta aos olhos é que a representação do lugar na ficção
daoudiana necessita evidenciar o mar. O mar recebe em Daoud o peso da morte, do
assassinato do povo argelino, da dor e da memória traumatizada daquela família que perdeu
Moussa (segundo Haroum, o perdeu para a pretensão de uma filosofia eurocêntrica do
absurdo, que estava entranhada na mente de um narrador eurocentrado, o qual foi um
assassino de um cidadão argelino, não de um cidadão francês). Estes desenhos, antes
silenciados em Camus, ganham primeiro plano na ficção de Daoud. Tem-se aí, a
representação pós-colonial da Argélia.
No trecho seguinte, destaco as imagens do mar em Daoud como bem diversas das
apresentadas por Meursault, para quem a praia é lugar de lazer, de experiências sensuais com
a namorada Marie, e de assassinar árabes sem nomes. Na passagem, Haroum relembra sua
infância, quando sua mãe o carregava pelas ruas de Argel procurando investigar sobre a morte
de Moussa, buscando notícias do próprio corpo do irmão, nunca encontrado, segundo sua
versão do crime. Na verdade, o que este movimento de investigação materno, percorrendo as
ruas, os bairros da cidade e a praia, sugere é que a família árabe cumpre a tarefa dolorosa de

51 Sobre o povo cabila, explica Poerner: Precedendo os árabes na região, os cabila sempre tiveram idioma (não
falam árabe, mas cabila) e métodos de ação próprios, que tornariam suas cidades e vilarejos montanhosos da
região da Cabília os alvos prioritários das bombas da aviação militar francesa durante a Guerra da
Independência” (1966, p. 22)
265
investigar o assassinato de Moussa, uma tarefa nunca descrita como cumprida pela polícia ou
nunca mencionada pela justiça francesa no julgamento de Meursault em O estrangeiro. Cito:

Lembro-me do dia em que finalmente fomos até o mar, a última testemunha a ser
interrogada. O céu estava nublado, e eu tinha diante de mim, a poucos metros, o
imenso, o enorme rival da nossa família, o ladrão de árabes e assassino de malandros
vestidos com macacão. Era, de fato, a última testemunha na lista de mamãe. Ao
chegar ali, ela disse o nome de Sidi Abderrahmane e, muitas vezes, o nome de Deus;
mandou-me ficar longe das ondas e se sentou para massagear um pouco os seus
tornozelos doloridos. Fiquei atrás, uma criança diante da imensidão do crime e do
horizonte. Anote essa frase, eu faço questão. E o que foi que eu senti? Nada, a não
ser o vento na pele — era outono, a estação seguinte à morte. Senti o sal, vi o cinza
intenso das ondas. E isso foi tudo. O mar era como um muro de contornos fluidos,
móveis. Ao longe, no céu, havia pesadas nuvens brancas. Comecei a catar algumas
coisas que havia na areia: conchas, cacos de vidro e rolhas de garrafas, algas
escuras. O mar não nos disse nada, e mamãe ficou ali prostrada na areia, como que
debruçada sobre um túmulo. Por fim, ela se ergueu, olhou atentamente para o lado
direito, depois para o esquerdo, e gritou, com uma voz rouca: “Maldito seja!”.
Agarrou-me pela mão e me puxou para fora da areia, como havia feito antes várias
vezes. E eu fui atrás dela (DAOUD, 2013, p. 55-56).
Portanto, o mar em O caso Meursault recebe novos tons: os de sangue, de mote, de
túmulo, de lugar de memória traumática de uma família argelina que enfrenta luto e violência
colonial. Ao compartilhar tal memória com o narratário dentro da diegese, Haroum permite
que, ao menos na ficção, algum francês escute a sua dor, a sua memória traumática marcada
por um irmão morto e por uma mãe transtornada com a ausência de direitos em relação a uma
investigação policial digna para com seu filho, um analfabeto argelino, trabalhador do porto,
sem nome nos registros da literatura francesa, sem corpo enterrado na diegese do clássico
francês.
Tal particularidade em ressignificar a imagem do mar na literatura francófona
periférica que dialoga criticamente com o imperialismo francês também é visível na produção
caribenha, como demonstra Patrick Chamoiseau em Écrire en pays dominé (1997), o que
aproxima o projeto ficcional de Kamel Daoud ao de escritores antilhanos. A reconstrução da
representação do mar nas vozes literárias afro-americanas igualmente, refaz o lugar marítimo
pela consciência crítica da violência colonial. Há aí, novamente, a desconstrução do
imaginário paradisíaco e um enfrentamento da violência na memória. É o que fica aparente,
quando, na passagem abaixo, Chamoiseau traz a voz crítica de Glissant, pensador e escritor da
Martinica com quem nutre profundo diálogo, e sua reinterpretação do mar:

Chez Glissant, um scène perfure: celle du Nègre marron qui, au bout de sa fuit, bute
sur l’nfranchissable inconnu de la mer. Pour les esclaves traqués par des dogues et
les milices armées, la mer devait représenter ce que signifiait la forêt aux yeux des
bagnards de Guyane: une masse d’enceinte vivante que avalait ses proies. Unev
erticale sans perspective et sans promesse de libertés. Mais il y a aussi chez Glissant
l’idée du gouffre. Le Nègre continental d’Áfrique, jeté dans une cale de bateau
266
négrier, inaugure son rapport à la mer dans l’angoisse de la terre africaine que
s’éloigne de lui. À travers la coque, il éprouve le clapotis de l’onde, la rumeur
sépulcrale des abysses. Quand les négriers (traqués par les navires anglais après
l’interdit de la Traite) ne pouvaient plus s’enfuir, ils balaçaient leur cargaison par-
dessus bord. Et cette image d’une tapis sous-marin de cadavres que relierait les iles
antillaises est une hantise de toute son ouvre (1997, p. 264)52.
Assim, a natureza em Écrire en pays dominé, entendo, ao resgatar as vozes poéticas
afro-americanas que ressignificam o mar, desmascarando que, ao fundo das ondas
paradisíacas, existe um escuro “não dito”, mascarado: um tapete de cadáveres negros, que é a
prova viva da brutalidade ocidental, torna-se emblema da descolonização do imaginário
colonial. Assim, tal desconstrução do imaginário em torno do mar vivifica uma “ecoestética”
que não encerra apenas uma “conciliação” entre senhores e escravos, mas apresenta, de modo
mais forte, uma potencialidade crítica às violências do colonizador, da escravidão. O trecho é
um potente ataque ao unívoco mar paradisíaco e se dá, justamente, operado pelo elogio ao
pensamento de Glissant, uma voz local, que, ao invocar o mar, reativa a dominação
geográfica europeia, acionando também em seus textos uma “geografia crítica”.
Quando a ressignificação do mar interposta pela literatura argelina contemporânea é
colocada lado a lado à observada na literatura caribenha, como visto acima, é perceptível a
existência de um diálogo que Daoud interpõe com a ideia de mar como “muro” e como
“túmulo”, como receptáculo de cadáveres de sujeitos colonizados e explorados. São esses
mesmos termos aludidos pela narrativa de Haroum recortada em trecho mais acima. Por esse
prisma, a subalternidade negra das “Antilhas” na América francófona é aproximada à
subalternidade argelina no Magrebe, e nesse encontro, rompe-se a imagem ocidental de mar
como fonte paradisíaca de prazeres turísticos e uma outra história, a da opressão, é entregue

52 Segue tradução livre: Na obra de Glissant uma cena perdura: aquela do Negro marrom que, ao final de sua
fuga, se choca com o instransponível desconhecido do mar. Para os escravos caçados pelos cachorros e milícias
armadas, o mar devia representar aquilo que significaria a floresta aos olhos dos prisioneiros da Guiana: uma
massa de muro vivo que engolia suas presas. Um vertical sem perspectiva e sem promessa de liberdade. Mas há
também na obra de Glissant a ideia de abismo. O Negro continental da África, jogado num cargueiro de navio
negreiro, inaugura sua relação com o mar na angústia da terra africana que dele se afasta. Através do casco ele
sente o barulho da onda, o rumor sepulcral dos abismos. Quando os negreiros (fiscalizados pelos navios ingleses
após a interdição do tráfico) não podiam mais fugir, eles jogavam suas cargas ao mar. E essa imagem de um
tapete submarino de cadáveres que religaria as ilhas antilhanas é uma obsessão de toda a sua obra.

Chez Glissant, um scène perfure: celle du Nègre marron qui, au bout de sa fuit, bute sur l’nfranchissable inconnu
de la mer. Pour les esclaves traqués par des dogues et les milices armées, la mer devait représenter ce que
signifiait la forêt aux yeux des bagnards de Guyane: une masse d’enceinte vivante que avalait ses proies. Unev
erticale sans perspective et sans promesse de libertés. Mais il y a aussi chez Glissant l’idée du gouffre. Le Nègre
continental d’Áfrique, jeté dans une cale de bateau négrier, inaugure son rapport à la mer dans l’angoisse de la
terre africaine que s’éloigne de lui. À travers la coque, il éprouve le clapotis de l’onde, la rumeur sépulcrale des
abysses. Quand les négriers (traqués par les navires anglais après l’interdit de la Traite) ne pouvaient plus
s’enfuir, ils balaçaient leur cargaison par-dessus bord. Et cette image d’une tapis sous-marin de cadavres que
relierait les iles antillaises est une hantise de toute son ouvre.
267
ao vasto público de leitores via literatura de países que viveram o silenciamento da
colonização, de países que escrevem em face da sua memória como “pays domine”. A ficção
de Daoud, assim, ao escrever a sua “geografia crítica” forma uma rede de resistência junto a
uma tradição de escritas pós-coloniais que se forma no Caribe do século XX e que ressignifica
as memórias da natureza e do mundo.

5.6 AS RESSIGNIFICAÇÕES NAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO

No capítulo três, muito já foi discutido sobre as masculinidades em tensão entre


argelinos e franceses em O estrangeiro. No presente capítulo, também no item 4.3, “A
narrativa em diálogo com o outro”, comentei a necessidade de Haroum reconstruir a
identidade de Moussa em jogo com o ideal patriarcal da cultura local de masculinidade
hegemônica, isto é, uma masculinidade cristalizada em elementos como a força física, a
agressividade, a virilidade articulada à defesa da honra das mulheres “saqueadas” pelos
colonos. Esta masculinidade, de modo tensionado, dividia, como afirmei, espaço com
questões ligadas à espiritualidade islâmica. Moussa chegou, em vida, como registrei, a tatuar
na pele sua devoção religiosa, mas infringia o código muçulmano com a bebida, além de agir
de modo violento com a figura materna, demonstrando seu machismo e, assim, figurando
como uma espécie de tipo social da sociedade argelina na ficção de Daoud, reveladora dos
rituais patriarcais de seu país a conviverem como a religião mulçulmana. Neste subtópico,
retomo a questão de gênero presente na obra para focalizar os temas da masculinidade e a da
materninade.
Pretendo desenvolver a discussão nas seguintes perspectivas: 1) Comentarei a
associação entre a masculinidade do colono e a dominação da colônia, representada em
Daoud como uma mulher explorada e sexualizada; 2) Abordarei a relação que a narrativa
estabelece com a figura materna. Haroum faz a mãe transitar em sua narrativa com sentidos
particulares em relação ao que se passa no relato meursaultiano em O estrangeiro,
interpretado aqui no capítulo três. A misoginia do narrador argelino face às mulheres será
apontada nos dois recortes.

5.6.1 A dominação masculina (França) sobre a identidade feminina (Argélia)


268
Em Os homens explicam tudo para mim (2017) Rebecca Solnit interpõe uma relação entre
gênero e colonização:

Como posso contar uma história que já conhecemos tão bem e até demais? O nome
dela era África. O nome dele era França. Ele a colonizou, a explorou, a silenciou, e
mesmo décadas depois que isso já deveria ter terminado, continuou forçando e
usando a sua superioridade para resolver os negócios dela, em lugares como a Costa
do Marfim – nome dado ao país em função dos seus produtos de exportação, não da
sua própria identidade.
O nome dela era Ásia. O nome dele, Europa. O nome dela era silêncio. O dele,
poder. O nome dela era pobreza. O dele, riqueza. O nome dela era dela, mas o que
pertencia a ela? O nome dele era dele, e ele presumia que tudo fosse dele, inclusive
ela, e julgou que poderia tomá-la sem pedir nem perguntar, e sem consequência
alguma. É uma história muito antiga, embora seu desfecho tenha mudado um pouco
nas últimas décadas (2017, p. 57-58).

É notável que a autora associa a França imperialista ao gênero masculino, o qual,


dentro do mecanismo patriarcal, domina a figura feminina, no seu ponto de vista,
emblemática da colônia. A colônia representa, nesse sentido, “ela”, na condição de gênero
dominado e explorado pelo poder masculino da metrópole. A noção de colônia encampa a
África, a Ásia e também a América Latina. Destaco, na passagem, “o nome dela era silêncio”
para estabelecer uma conexão com a obra do escritor argelino. O romance de Daoud insurge
contra essa mudez imposta à (ex)colônia, uma vez que se tem uma voz narrativa argelina a
escrever para retirar do apagamento a memória de uma família de árabes silenciados em suas
subjetividades num romance de um escritor colono francês, agraciado com o prêmio Nobel e,
portanto, canonizado pela tradição literária ocidental. A memória que ressurge na obra
paródica de Daoud (pelo relato de seu narrador protagonista Haroum, acolhido pela escuta de
um francês) é uma memória da Argélia, por vezes, emudecida pelo poder patriarcal do qual se
investe o imperialismo francês, representado no papel de “ele”: o colonizador homem/e seu
poder, inclusive, seu domínio cultural na História da Literatura ocidental.
Diversas passagens em Daoud representam a Argélia enquanto terra dominada pela
masculinidade do imperialismo francês, assim como uma mulher é dominada no sistema
patriarcal; apontei uma dessas passagens no item anterior, ao discutir as imagens da cidade na
produção do escritor. Cito, contudo, novamente um trecho em que a cidade de Orã é associada
mais uma vez ao corpo da figura feminina, de novo atrelada à figura da mulher como
prostituta. A narrativa de Haroum, por estar calcada na sua memória sobre o passado de seu
irmão e de sua mãe (que ainda vive, mas está muda), está repleta de repetições, de retomadas
dos mesmos sentimentos amargurados, de modo que tais repetições, de forma alguma, são
ociosas, mas funcionam como motor enfático da dor que sente o personagem e que precisa ser
269
constantemente purgada na sua fala. Existe nele, entre tantas outras feridas magoadas aqui
apontadas, a dor de ver sua terra ser violada pela força bélica da masculinidade metropolitana.
Cito:

É uma cidade que tem as pernas abertas em direção ao mar. Quando você descer
para ver os bairros de Sidi-el-Hourai, para os lados da Calère des Epangnols, dê uma
olhada no porto: Cheira a uma velha puta a quem a nostalgia leva a ficar falando
sem parar. Eu mesmo desço para o jardim denso do Passeio de Létang para beber
alguma coisa sozinho e dar uma espiada nos delinquentes. Sim ali onde cresce a
vegetação estranha e intensa, fícus, coníferas, aloés, sem esquecer as palmeiras,
assim como as outras árvores profundamente enraizadas, proliferando tanto pelo ar
quanto por baixo do solo. Para baixo, há um labirinto amplo de galerias espanholas e
turcas que eu já visitei. Normalmente estão fechadas, mas eu observei um espetáculo
impressionante: as raízes das árvores centenárias vistas por dentro, digamos assim
gigantescas e tortuosas, flores gigantes nuas como que suspensas. Vá a esse jardim.
Gosto do lugar, mas às vezes capto os eflúvios de um sexo feminino, gigante,
exausto. Isso confirma um pouco a minha visão lúbrica, essa cidade tem as pernas
abertas para o mar, as coxas abertas, desde a baía até as partes altas, onde fica esse
jardim exuberante e de forte aroma. Foi um general – o general Létang – que o
concebeu em 1847. Eu diria que o fecundou, rá-rá! (2013, p. 21 e 22).
É observável a associação do jardim descrito à imagem de uma vagina; um sexo
“exausto” e “fecundado” por um general francês cujo nome (Létang) é dado ao próprio lugar
“Passeio de Létang”; a via argelina, de corpo associado ao feminino, é nomeada com o nome
“dele”, o homem colonizador militar. O general, o homem/colonizador fecunda, possui e
nomeia esta terra de “pernas abertas”. A terra é “ela” em Daoud, de maneira que o quadro
pinta uma realidade semelhante ao pensamento de Solnit (2017). A cidade se passa, mais uma
vez, como uma prostituta: vista como uma mulher rendida, explorada. Está aí a consciência
em seu texto daquilo que Quijano (2008) sinaliza: o patriarcado forma um dos pilares da
matriz colonial do poder.
É simbólico o trecho assinalar que justamente um general “fecunde” a cidade/mulher,
uma vez que a nacionalidade e a masculinidade hegemônica estiveram associadas ao processo
imperialista, sobretudo, no que diz respeito à instituição do exército nacional, constituído por
homens desbravando e dominando terras. A esse respeito, interponho, mais uma vez, o olhar
de Mário César Lugarinho (2017), quando o crítico discute como a nacionalidade nos séculos
XVIII e XIX está atravessada por valores da masculinidade. Em suas palavras: “a centralidade
da identidade masculina é levada ao paroxismo a fim de dar sentido às identidades nacionais,
com a criação, ao longo do século XVIII, na Europa, dos exércitos nacionais” (2017, p. 191).
Desse modo, nada mais simbólico da menção ao imperialismo francês do que citar um
general, ícone da masculinidade, atrelada ao ideal de nacionalidade francesa, de modo
associado a um agente que “fecunda” a terra tomada. Ao fazê-lo, o narrador-personagem
argelino (Haroum) se mostra magoado com a “possessão” de sua terra, sua cidade por “outro’
270
homem, o ocidental. Essa posse e esse domínio estão simbolizados não apenas pela metáfora
sexual, mas pelo fato de o jardim ornamentado em folhas da vegetação local (de aspectos
genitais de uma mulher) receber o nome de um militar, líder das tropas francesas na região.
Essa posse que o francês impõe a terra, se faz aparente no tom da narrativa de Haroum, causa
mágoa e atinge o senso de masculinidade do homem colonizado que sente sua “honra” ser
afetada por outros homens.
Neste aspecto sinalizado acima, Daoud denuncia a força do patriarcado na “matriz
colonial do poder” (QUIJANO, 2008) que abarca a Argélia. Tratar a terra como mulher
fecundada pelo militar europeu é revolver a história argelina e reescrevê-la com os sinais de
uma violência patriarcal, associada à exploração do país, ao ritmo imperialista da dominação
francesa. Esta é uma memória da Argélia que a tradição literária ocidental pode, agora, visitar,
para que a própria memória da França seja plural, uma vez que tem a oportunidade de
descentrar-se das imagens cristalizadas de metrópole “civilizadora”, promotora da “liberdade,
igualdade e fraternidade”. Daoud oferece na sua ficção imagens que a Franca, muitas vezes,
evita estampar em seu espelho: uma nação também violenta, imperialista,
“estupradora/fecundadora de terras”, de uma história argelina. Assim como retira das sombras
um pesar na mentalidade masculina hegemônica dos argelinos: a fragilidade de sua condição
de virilidade para afastar outros homens de “suas posses”: as mulheres.
Um detalhe que precisa ser destacado é que ler a terra como mulher, dentro dessa ótica
que se apresenta na obra, é lê-la como sujeito “inferior”, já que, como destaca Welzer-Lang
(2001), ser mulher na cunjuntura patriarcal é ser inferiorizada constantemente por uma
masculinidade que, para se afirmar do alto de sua fragilidade, precisa violentar mulheres e
homossexuais homens. Haroum narra com certo derrotismo que seu país tenha sido
“feminilizado” e dominado. Tal sentimento revela traços misóginos que nele também
habitam, resultantes da cultua patriarcal local. É necessário, pois, discutir a misoginia presente
na cultura argelina, que se perfaz no estabelecimento da masculinidade de seus nativos.
Para exemplificar o fenômeno misógino argelino em alguns eventos históricos
específicos, trago duas visões de autores que discutem a Revolução argelina e as
consequências psicológicas das relações França x Argélia; são eles respectivamente: Arthur
Poerner e Franz Fanon. Transcrevo a seguinte observação de Poerner acerca da entrada de
mulheres no exército revolucionário argelino durante as lutas pela independência:

Quando as perdas de vidas humanas se tornavam maiores, por uma série eventual de
sucessos franceses, o Exército de Libertação, como medida preventiva, adotava a
intensificação do recrutamento. Três ou quatro mulheres eram admitidas em cada
271
unidade combatente, tendo por única e exclusiva missão a de doutrinar mulheres nas
aldeias no sentido de concitarem seus filhos, maridos, noivos ou irmãos a se
engajarem nos maquis. O efeito psicológico desse recurso era extraordinário, porque
as tradições ancestrais faziam com que os aldeões se sentissem profundamente
desafiados em seus brios pelo simples fato de existirem mulheres nas unidades
revolucionárias de combate (1966, p. 61).
O registro deixa claro que a cultura das aldeias sustentava a necessidade de uma
vigilância da manutenção da masculinidade hegemônica. A ancestralidade obrigava os locais
a se estabelecerem como viris, de maneira que a virilidade seria resultante da adesão ao
combate, escolha capaz de minimizar qualquer sentimento de inferiorização diante de
mulheres ocupando posições militares. O gênero feminino era, nitidamente, visto como
“inferior”, e caso perfomasse com atitudes “viris”, dentro daqueles códigos históricos
específicos, como pertencer ao exército, ameaçava a reputação daquele homem que não
fizesse o mesmo trajeto militar. Fica visível, então, que a masculinidade hegemônica de
origens marcadamente ancestrais se fez como um motor cultural para garantir a própria
independência argelina na década de 60, recrutando soldados à base de misoginia, sendo,
portanto, compreensível em Haroum, personagem que dialoga com a cultura e a história da
Argélia, traços misóginos e demais cacoetes do patriarcado.
Mais indícios da exigência de uma conduta masculina nativa que acionasse virilidade e
controle sobre as mulheres argelinas em meio aos tensos processos de disputa territorial com
os franceses estão aparentes nas análises de Os condenados da terra (1965) sobre as
perturbações mentais naquele contexto desenvolvidas. O caso registrado por Fanon que se
mostra relevante para entender por que razões os homens argelinos se sentem tão violentados
na masculinidade por terem suas mulheres violadas por soldados franceses se chama “A
impotência num argelino como consequência da violação de sua mulher”. Conta o
martiniquenho que “B” é um militante de 26 anos da Frente de Libertação Nacional (FLN)
com manifestações de insônia, ansiedade, anorexia e impotência, sendo invalidado para suas
atividades profissionais habituais, ou seja, o serviço bélico. Ao ouvi-lo, descobre que quando
ele estava ausente de casa em uma missão do exército, sua esposa havia sido interrogada
sobre seu paradeiro por soldados franceses. Recusando-se a falar, a mulher foi estuprada pelos
dois militares que lhes disseram: “Se algum dia voltares a ver o teu asqueroso marido, não te
esqueças de lhe dizer o que fizemos” (1965, p. 277). A fala dos estupradores é consciente de
que o ato, não só foi uma violência à insubordinação feminina que se recusou a delatar o
marido à França, como um ataque direto ao bem valorizado na cultura local: a honra do
marido que teve seu “domínio”, isto é, o corpo de sua esposa, sexualmente invadido. Fanon
272
assinala o quanto era comum que as mulheres dos guerrilheiros fossem estupradas para gerar
esse efeito de “castigo” aos homens, o qual se tornava um verdadeiro pesadelo psicológico
capaz de invalidá-los com combatentes. Vista por esse ângulo, a questão de gênero também
foi um trunfo de ataque utilizado pelos franceses para desestabilizar o movimento da
revolução. O caso é que “B” se viu afetado em sua masculinidade tanto por ter perdido a
honra como único “proprietário” do corpo da esposa, como por ter perdido a ereção, fator de
garantia da virilidade numa cultura machista que associa sexo unicamente à prática da
penetração. Sua derrota diante dos soldados franceses se exprime nas palavras seguintes em
que confessa seus sentimentos e, entre eles, o ódio pela própria filha e a desconfiança para
com a esposa:

Decidi voltar pra ela, mas, todavia, não sei como reagiria ao vê-la. E muitas vezes,
ao ver a fotografia da minha filha, penso que ela foi também violada. Como se tudo
o que viesse de minha mulher estivesse apodrecido. Se a tivessem torturado, se lhe
tivessem partido os dentes, se lhe tivessem partido um braço, não me importava.
Mas como é possível esquecer isso? E por que teria ela de me contar tudo?
(FANON, p. 1965, p. 279).
A fala demonstra um sujeito que convive com a misoginia contra mulheres que são
vítimas de violência sexual, contém ego masculino ferido por estar condicionado ao controle
perdido do corpo feminino em face do “outro”: o francês. A fala não contém solidariedade por
familiares, por uma companheira agredida. Na verdade, tudo se passa como se a lesão fosse
aplicada à sua masculinidade devassada, não à mulher estuprada. Esta é menos vista como
vítima, do que como alguém que desajusta a masculinidade do próprio marido por verbalizar
ter sido estuprada. Dela é, violentamente, cobrado, inclusive, o silêncio frente ao próprio
trauma. A mentalidade patriarcal, ainda, não está apenas no marido que culpa a esposa por ter
sido penetrada contra a própria vontade – “ela já provou os franceses” (FANON, p. 278), mas
na própria esposa que não se reconhece mais digna do marido após o estupro, como se fosse
realmente culpa sua a ferida na honra de “B”. Relata o psiquiatra martiniquenho sobre a
conduta da vítima: “Ao contar o sucedido a sua mãe, esta convence-a de que deve dizer tudo
ao seu marido. Por isso, ao entrar em contato com “B”, confessa-lhe a sua desonra” (FANON,
p. 277). Pelo diálogo entre mãe e filha, fica confirmado o que alerta Medrado e Lyra (2018)
sobre a masculinidade hegemônica: ela não é um construto que rege apenas muito da conduta
masculina numa sociedade, mas que se impõe sobre as mulheres e variados indivíduos
sujeitos às pressões quanto a papéis fixos de gênero que ressoam as hierarquias patriarcais.
Articulando os trabalhos de Poerner e Fanon, então, aos trechos do romance de Daoud
citados acima, é possível reconhecer em O caso Meursault as marcas ficcionalizadas desse
273
histórico argelino de uma cultura atravessada pela masculinidade hegemônica a emoldurar as
mentes de seus nativos. Isto se mostra ficcionalizado na conduta narrativa do narrador-
personagem e nas suas associações figurativas que entrelaçam colonização e sexo quase como
uma obsessão misógina que se repete ao longo da obra. Haroum, no último excerto acima,
como exposto, relaciona a cidade argelina a uma mulher cuja imagem é fundida a um jardim
“fecundado” pela força militar francesa, cujo ícone da masculinidade tem o nome de um
general, Létang. A terra é sexualizada, assim, pelo narrador e parece também ser culpabilizada
por um ato de desonra, uma vez que este a identifica, numa tonalidade sutil de denúncia,
como uma mulher que se “oferece”, que “abre as pernas para o mar”, entrada geográfica por
onde chega e se estabelece o colonizador. A associação da colônia a uma “puta velha” que
“fala sem parar” revela o seu incômodo, sua reprovação para com ela.
A atitude de Haroum não é muito distante da do paciente “B”, de Fanon, que está
ciente de ter sido a mulher estuprada, mas que consegue enxergar em primeiro plano apenas a
própria masculinidade devassada, tratando a vítima como “culpada” por esta ser uma mulher
cujo corpo não foi controlado e que não silenciou a própria violência que sofreu como deveria
para não afetá-lo. Mais que ter ódio dos franceses estupradores, “B” parece se concentrar em
ter ódio da própria esposa, sobretudo porque esta fala o que ele não suporta ouvir: que uma
vez estuprada, feriria seu brio. A atitude da mulher chega a invalidar a sanidade mental do
marido para que este continue a ser um soldado em combate e capaz de uma ereção. Assim
como incomoda “B”, a fala da dita “puta velha” no romance magrebino parece incomodar
Haroum e a memória de sua masculinidade; como homem argelino implicado nas
normatividades da masculinidade hegemônica, ele, não podendo controlar o corpo sexual de
sua “cidade feminina”, parece reclamar da “verborragia” que ela se “atreve” a destilar. Fica
subentendido, nesse contexto, que a cidade “fala” do que não deveria: da “desonra” do país
em face da “cópula” com homens franceses, dominadores e “feminizadores” da memória
histórica do lugar.
Os tons da questão de gênero em Daoud, assim, dialogam com Os condenados da
terra, de Fanon. A memória traumática de Haroum guarda a misogonia que o psiquiatra
martiniquenho já detectava nos casos em que analisou em seus trabalhos durante o período
das lutas pela independência. Esta particularidade mostra que o escritor argelino em sua
paródia da ficção camusiana, não faz uma interface apenas com a literatura, mas também
como a produção teórico-crítica de autores cujos trabalhos circundam a sociologia da Argélia
e de demais ex-colônias. No hall dos diálogos travado por O caso Meursault com demais
274
obras, estão os nomes de Sartre, Said, Fanon, Bourdieu, Spivak (2010) e, certamente, outros
autores que a minha lente não consegue alcançar.
Rebecca Solnit em outra produção, História do caminhar (2016), faz uma menção à
peculiaridade de a Literatura francesa ter a tradição de retratar as cidades em representações
femininas. Coloca a autora: “Paris, c’est une blonde” diz a canção francesa, e os poetas
parisienses geralmente fazem de sua cidade uma mulher” (2016, p.312). Não seria, a partir
dessa observação de Solnit, impossível pensar que Daoud dialogaria criticamente também
com essa tradição literária francesa, fazendo incidir sobre ela, contudo, aspectos da cultura
patriarcal argelina, a qual modula parte do imaginário do narrador de O caso Meursault.
Portanto, o romance paródico pós-colonial de Daoud, para além de revisitar o passado
colonial, cria possibilidades para que os leitores reflitam sobre como tradições estéticas
ocidentais perdurariam “repaginadamente”, isto é, traduzidas (BARBOSA, 2005), na memória
da Literatura argelina contemporânea e suas seleções estéticas. Levada pela observação de
Barthes (2004b) de que “levantar a cabeça” ao ler é também um exercício de escrever sentidos
no texto lido em meio ao brotar de um “afluxo de ideias, excitações e associações” (2004b, p.
26), o quadro me suscita, quando “levanto a cabeça” diante da leitura do texto daoudiano,
questionamentos sobre o papel das mulheres locais.
Foi visto que Haroum destila, difusa em suas palavras sobre a cidade, a misoginia que
lhe habita, a conexão que estabelece entre sexualidade e dominação; e o faz num diálogo
dirigido a um jovem francês, seu narratário, na locação específica de um bar; são, pois, dois
homens em diálogo, em protagonismo, ocupando um espaço de socialização típico da “casa
dos homens” (WELZER-LANG, 2001). Sendo assim, me indago: onde estão as vozes
femininas da Argélia? Identifico, e demonstro adiante, que as mulheres são mais objetos que
sujeitos falantes e devidamente ouvidos na obra. Nesta, detecto, predomina o que Spivak
(2010) já havia pontuado quanto ao sujeito subalterno, isto é, o sujeito não ocidental, no que
tange à condição feminina: “a mulher subalterna continuará tão muda como sempre esteve”
(2010, p.86). Passo, assim, na seguinte e última seção deste capítulo final, a pensar sobre as
subalternidades femininas, dando destaque à figura materna. Procuro investigar quais seriam
seus espaços resistentes de fala e que simbologias assumiriam, que ambivalências essas
mulheres ficcionais arrastam consigo pela memória narrada de um personagem cujo perfil é
também ambivalente, atravessado pelo fundamentalismo e ao mesmo tempo crítico a práticas
representativas do islamismo e seus tons autoritários na configuração política local, um
275
narrador que frequenta “a casa dos homens” no território minado pela hegemonia patriarcal
que é a Argélia contemporânea.
Ressalva. Até o momento, é passível de se acompanhar a já alertada – desde o início
desta abordagem de O caso Meursault como romance paródico pós-colonial de O estrangeiro
(item 4.2.3) – intersecção incessante no texto das esferas: narrativa e alteridade, sagrado e
cultura religiosa, memória e geografia, gênero. O (A) leitor(a) do presente trabalho é capaz de
sentir que, a cada item diferente de sequenciação analítica deste capítulo lido, sobrevém uma
impressão de repetição e entrançamento dos temas. Tal sensação pode ser melhor aproveitada
para a compreensão da análise aqui proposta, insisto, se for realmente tomada como uma
necessidade técnica e exegética para explicar o romance na sua própria natureza circular,
labiríntica e repetitivo-obsessiva, que, assim se erige, porque é assim a condição da própria
mente do narrador, da sua trajetória pessoal e da própria História argelina como as projeta.
Para aproveitar a última seção desta pesquisa, então, sugiro que se perceba, de maneira ainda
mais enfática, que o narrador argelino está a “remoer” a história de sua vida pela modalidade
da fala (cuja natureza se sabe tendente à repetição, a lacunas), numa conversa com um
interlocutor francês. Nas primeiras linhas da obra, ele confessa: “de tanto remoer essa história,
já quase nem me lembro dela” (2013, p.9). Entre narrador e narratário, paira toda a tensa
história da colonização e suas violências, suas segregações sociais e é este “entre” um aspecto
de total relevância para compreender o romance.
Faz-se oportuno não perder de vista que há uma força retórica nesse ambiente “entre”:
Haroum conta a sua visão dos fatos e irá defendê-la com a estratégia de revolver e contar as
sombras de sua memória, confessadamente falha e magoada. O narrador fala porque deseja a
escuta e deseja ser creditado e legitimado pela sua versão sustentada. No trecho seguinte, se
observa esse seu esforço em contar sua versão de uma maneira que convença, e, para isso, ele
até chega a usar a estratégia da analogia à bíblia, dialogando com seu espectador de cultura
ocidental:

Você captará melhor a minha versão dos fatos se aceitar a ideia de que essa história
se parece com um relato das origens: Caim veio aqui para construir cidades e
estradas, domesticar pessoas, terras e raízes. Zoudj53 era o parente pobre, deitado ao
sol com uma pose indolente que se imagina, não tinha nada, nem mesmo um
rebanho de carneiros que pudesse suscitar a cobiça ou motivar um assassinato. De
certa forma, o seu Caim matou o meu irmão por... nada! Não foi nem mesmo para
lhe roubar os animais. Deveríamos ficar por aqui, você já tem material para escrever
um bom livro, não? A história do irmão do árabe. Mais uma história de árabe. Você
caiu em uma armadilha... (2013, p. 69-70).

53 Zoudj é um segundo nome para Moussa, assassinado por Meursault em O estrangeiro.


276
Esta é apenas uma entre tantas marcas de uma retórica na narrativa de Haroum, de
modo que na sua formulação de defesa, ele dialogará crítica e ironicamente com variados
códigos da hegemonia ocidental e local.
Feita a observação acima, passo a demonstrar como a representação da mãe em
Daoud, através da dicção repetitiva do narrador, entrança a memória do lugar, traumas
familiares e históricos, religiosidade islâmica, a desigualdade social e espacial entre colonos e
colonizados. Todo esse percurso do romance vigora num movimento de ressignificação da
maternidade frente a O estrangeiro a mobilizar os papéis sociais de homens e mulheres na
diversidade complexa do universo argelino pós-colonial.

5.6.2 “Hoje, mamãe ainda está viva”

Se Camus “matou a mãe” no clássico francês, Daoud traduz a figura materna no


presente argelino viva, mas muda: “Hoje, mamãe está viva. Ela não fala mais, mas poderia
contar muitas coisas. Ao contrário de mim, que de tanto remoer essa história, já quase nem
lembro dela” (DAOUD, 2013, p. 9). O trecho sugere duas disparidadess: 1) a existente entre
as mães de Daoud e Camus (viva x morta); 2) a existente entre mãe e filho argelinos (mulher
muda x homem falante/narrador). Para além das divergências a serem aqui comentadas entre a
maternidade nos dois escritores comparados, há um ponto de encontro entre seus narradores:
ambos não nomeiam as mães e elas atravessam as duas histórias como um sujeito genérico
cobrado a cumprir um papel social: o de cuidar e servir. Sem nomes e sem vozes, as mães de
Meursault e Haroum seguem nos romances mudas e subalternizadas; aquela porque está
morta, esta porque sobrevive, mas o trauma da violência na Argélia – que mata seu filho e
muda seu destino e sua circulação no espaço geográfico local – a deixa impossibilitada de
narrar a própria história sobre a qual teria “muitas coisas a contar”. A mãe árabe é silenciada
pela memória traumática da violência, a mãe de Meursault, é periferizada no espaço
disciplinar que é o asilo na cidade (ROLNIK, 1995), sendo silenciada pela morte. Ambas são
objetificadas nos textos e cristalizadas como mulheres ligadas prioritariamente ao papel da
maternagem. Contudo, restam entre elas particularidades que serão comentadas.
No capítulo três, discuti a mãe meursaultiana, que, como apontado, figura em O
estrangeiro como um ponto de crítica de Camus à família burguesa francesa, a qual, para se
estabelecer na configuração patriarcal que assume, precisa da figura feminina para procriar
crianças, delas cuidar. Estas, por seu turno, são valorizadas dentro desse esquema, para além
277
do afeto familiar, porque, sobretudo, simbolizam lucros na ordem capitalista e imperialista
(BADINTER, 1985). Dentro dessa particularidade, ressaltei que a justiça francesa fora
atacada criticamente por Camus em conexão à representação materna, uma vez que, como
denunciado no romance, mais que se aterem ao crime de assassinato, os juízes preocuparam-
se em julgar o assassino por este ser mau filho e um descrente em Cristo, e assim, por agredir
a moral social hegemônica da época, importando em plano secundário o homicídio contra um
argelino. Tal moral revela as contradições dos valores franceses, que, se por um lado
objetificam a mulher ao instrumentalizá-la para a procriação, por outro lado a valorizam na
condição de mãe servil ao Estado (e ao “pai”) que esta pode exercer quando disciplinada.
Paradoxais também tais valores por se apresentarem em defesa do cristianismo, mas
revelarem racismo na indiferença quanto ao assassinato do sujeito árabe. Destaquei ainda que
a mãe, como ser, é estimada quando jovem, pela prosperidade que seu ventre pode oferecer
aos interesses da nação, entretanto, quando seu corpo envelhece e não mais pode procriar, é
destinada a espaços citadinos disciplinares como os asilos (Rolnik, 1995). Agora, ampliando o
campo perceptivo da relação intertextual em estudo, reflito sobre que outras simbologias
carrega a mãe em Daoud na sua tradução paródica de O estrangeiro.
Daoud não ataca diretamente a figura da mãe como ser instrumentalizado pelo Estado,
como Camus, não a mata, mas a deixa viva, muda e traumatizada. Interpreto tal estratégia
como uma maneira de se apropriar da moral patriarcal, que ainda se alicerça sobre a
exploração do corpo e do trabalho doméstico feminino no papel da mãe, com uma finalidade
particular de resistência ao apagamento da memória do árabe morto em O estrangeiro. Sim,
para legitimar a condição de vítima do seu irmão assassinado, Moussa, – invisibilizado pela
justiça colonial da metrópole na diegese e também pela crítica tradicional francesa de quem
nutre mágoa e rancor (vide capítulo 2) – Haroum aciona a exposição de sua mãe, que, como
espólio da colonização, recebeu trauma e mudez. Esta publicização alimenta a sua retórica e
ajuda a legitimar sua versão dos fatos recontados décadas depois da publicação “do livro”
sugerido como escrito por Meursault.
A partir da hipótese apresentada acima, Haroum, que na primeira linha já expõe a mãe
viva e traumatizada com uma história repleta de eventos passíveis de narração, mas que não
tem voz, tece um caminho retórico de sensibilização e culpabilização desse narratário francês
com quem dialoga num bar. Esta sensibilização pode se estender aos leitores múltiplos que,
como também socializados numa cultura patriarcal, terão, possivelmente, piedade da figura
materna que perdera um filho, estando passíveis, assim, a reconhecerem a história de Moussa
278
e do crime de Meursault, a partir de outra perspectiva: a árabe, antes silenciada. Como a
condição de vítima de Moussa não recebeu o devido reconhecimento pela justiça francesa na
diegese de O estrangeiro, bem como não o foi nas críticas clássicas da obra, amplamente
repetidas até hoje nos cursos universitários de Letras, feitas por Sartre (2005) e Barthes
(2004a) – que inocentam respectivamente o personagem como um sujeito existencialmente
afetado pelo conceito de absurdo ou pela força mítica solar – Haroum se apóia na trajetória
penosa e onerosa da mãe para legitimar o luto merecido por Moussa.
Roberto Efrem, sob a perspectiva de Judith Butler, argumenta que a condição de
vítima de um indivíduo é decorrente de uma rede de disputas. Como afirma o autor, em seu
ensaio “A reinvindicação da violência: gênero, sexualidade e a condição da vítima” (2017), “a
violência não é óbvia porque as vítimas não são óbvias” (2017, p.11). No campo social em
que persistem desigualdades de variadas e complexas esferas, determinados sujeitos, ao
contrário de outros privilegiados, precisam disputar a condição de vítima, uma vez que para
serem considerados como tal, suas vidas precisariam ser reconhecidas como socialmente
relevantes no interior das hierarquias de poder. Efrem Filho se apóia em Butler com o
seguinte fim: tecer uma articulação entre o estatuto legitimado de uma vítima
“subalternizada” socialmente e o necessário luto e sofrimento de uma mãe. Tal articulação é
possível porque faz sentido num contexto dominante de valores patriarcais, os quais
valorizam a maternidade pelos retornos de fortalecimento do próprio patriarcado que a mãe,
como fábrica de mão-de-obra e ao mesmo tempo como própria “mão-de-obra” doméstica,
pode lhe conferir (FERNANDES, 2021); claro, se devidamente disciplinada em sua condição
feminina e nos papéis de gênero que deve ou não assumir.
Assim, o autor define as visões das quais parte para analisar sociologicamente, no
campo da justiça no Brasil, casos de assassinatos de mulheres e tráfico de pessoas ocorridos
em comunidades pobres do interior da Paraíba. São elas: “a) a de que a luta por justiça requer
disputa pela legitimidade da vítima a ser vítima; b) a de que no seio das disputas, a
publicização da intimidade da dor e do sofrimento costuma operar nos contornos de
legitimação de denúncias, denunciantes e vítimas, mobilizando, por exemplo, noções de
gênero ligadas à maternidade” (2017, p. 1).
Ora, essas duas premissas podem ser utilizadas para fazer a leitura do papel da mãe
colonizada de Haroum e Moussa em O caso Meursault. Descrita como uma mulher inserida
numa cultura de casamento arranjado pela família, e não oriundo da própria autonomia
feminina, apresentada traumatizada e muda com o assassinato do filho mais velho, com o
279
abandono do marido que emigrou para a França e com a vida sofrida de pobreza,
analfabetismo e trabalho subalterno como doméstica na Argélia, a mãe solteira, árabe e
mulçumana, desnomeada do narrador-personagem tem sua intimidade exposta. Cito uma das
passagens que a descrevem no texto:

Imagine um pouco essa mulher: arrancada da família, oferecida a um marido que


não a conhecia e que logo tratou de fugir, mãe de um morto e de um outro filho
calado demais para poder substituí-lo, viúva duas vezes, obrigada a trabalhar nas
casas dos roumis para sobreviver. Ela pega gosto pelo próprio martírio. ...
Juro a você, meu amigo, ela, que não sabe ler, lhe contaria a história da nossa
família e de meu irmão melhor do que eu. Ela mentia, não por uma vontade de
enganar, mas para corrigir a realidade e atenuar o absurdo que tomara conta do seu
mundo e do meu. O desaparecimento de Moussa a destruiu, mas, paradoxalmente,
ensinou-lhe também a usufruir de um prazer insano, que é o de um luto sem fim.
Durante muito tempo, não houve um ano em que minha mãe não jurasse ter
encontrado o corpo de Moussa, ouvido a sua respiração, os seus passos, ou
reconhecido marcas de seus sapatos no chão (2013, p. 48).
Consegue também o leitor do romance ver que o seu papel materno é aquele
tradicional: uma cuidadora que serve aos filhos, e mais, uma cuidadora pobre, que habita as
favelas de Argel, que trabalha como doméstica para sustentá-los. Como resposta ao ocorrido
com Moussa, ela passa anos da sua vida, percorrendo a cidade (bairros pobres, bairros
franceses, a praia), em busca de explicações sobre o crime de homicídio contra Moussa, uma
tarefa, insisto em sublinhar, não feita pela justiça francesa em O estrangeiro, no qual há um
silenciamento completo sobre o morto (SAID, 1995), como se este sequer fosse um corpo
assasinado a tiros e, portanto, como não fosse uma vítima, como se o corpo não existisse.
Cito, na sequência, trecho em que se verifica o delinear exposto sobre a mãe traumatizada e
andarilha de Haroum:

Lembro-me de alguns dias, raros, em que eu acompanhava minha mãe pelas ruas de
Argel em busca de informações sobre o meu irmão desaparecido. Ela andava
depressa e eu a seguia, os olhos presos no haïk dela para não me perder. Uma
intimidade divertida se criava, assim, dando origem a uma breve ternura. Com o seu
linguajar de viúva e seus lamentos bem estudados, ela coletava sinais e misturava
informações verdadeiras com as labaredas de seus sonhos da véspera. Ainda vejo
mamãe se agarrando com força no braço de um dos amigos de Moussa, atravessando
cheia de medo o bairro dos franceses, pois ali éramos intrusos, pronunciando nomes
de testemunhas do crime, citando-os um a um, todos com sobrenomes esquisitos,
“Sbagnioli”, “El-Bandi” etc. Ela pronunciava “Sale mano” em vez de “Salamano”,
para se referir ao homem com cachorro, de quem o herói do seu livro diz ter sido
vizinho. Ela exigia a cabeça de “Rimon”, ou Raymond, que nunca mais apareceu e
que me pergunto se realmente existiu, ele, que supostamente estaria na origem da
morte de meu irmão e de todo esse imbróglio de costumes, putas e honra. Da mesma
forma como cheguei a duvidar da hora do crime, da presença de sal nos olhos do
assassino e, às vezes, da própria existência do meu irmão Moussa (2013, p. 54-55).
Torna-se perceptível que o trajeto materno é revolver a cidade em busca de pistas, o
que é feito com dor, revolta. A mãe está emocionalmente exposta no excerto; todo o impacto
280
sobre sua sanidade, sobre seu presente atormentado e sobre o seu futuro a ser encarar a mudez
pelo trauma é narrado por Haroum. É nesse movimento que fica aparente ser a sua narrativa
apoiada na publicização da intimidade da mãe como uma espécie de estratégia retórica para
sensibilizar e convencer o narratário francês e todo o público de que Moussa é uma vítima
legítima. Por extensão ao personagem morto, é possível entrever que a própria família árabe e
a própria Argélia, pela condição de colônia, podem ser legitimadas como vítima das
violências imperiais, uma vez que a obra de Daoud reconstrói a memória das feridas do
imperialismo nos personagens e suas relações familiares, na cidade, no país, deixando-as
expostas no campo literário pela própria voz narrativa subalternizada do “árabe”, agora
autorizado na ficção a falar, e não mais silenciada. Nesse sentido, nos termos de Efrem Filho,
que toma como base Butler, em Vida precária: os poderes do luto e da violência, a condição
de vida precária concedida ao “árabe morto”, Moussa”, está em disputa no texto, de modo que
a “arma retórica” utilizada é a imagem da mãe na cultura patriarcal, esta que possui
representatividade significativa tanto na cultura ocidental, quanto na periferia argelina e
colabora na sensibilização do público em geral. Trago, nesta perspectiva, as palavras Efrem
Filho:

Em seu léxico, Butler se refere a “vidas precárias”. Essa precariedade das vidas,
entretanto, contra o que se possa imaginar, não se limita à ideia de uma potência
universal para a morte, à certeza de que toda a vida é frágil e, ao fim, morrível.
Trata-se de bem mais que isso. Corte profundo. A vida somente se faz apreensível
diante das circunstâncias em que sua perda adquire relevância. O valor da vida se dá
à importância da perda. A vida é precária porque perdível, mas apenas é perdível se
digna de luto. Em outras palavras, a perda precisa ser sentida (2017, p. 11).
Seguindo o raciocínio do autor, é factível de enxergar na narrativa de Haroum a
tentativa de fazer seus interlocutores se emocionarem, se sensibilizarem com a dor e o trauma
de uma mãe, para validar a condição de vítima de Moussa. Tal iniciativa ratifica o valor da
mãe na cultura árabe e ocidental (com o qual dialogam Daoud e Haroum), de modo que esta
figura feminina, viva e circulante pela cidade, a cruzar os bairros franceses, proibidos para
nativos (FANON, 1965; BOUDIEU, 1961), em busca de justiça com as próprias forças,
assume a simbologia complexa e contraditória de ser um ícone ora de uma resistência política,
ora de uma rede de opressões quanto aos papéis de gênero impostos a mulheres.
No primeiro caso, a mãe indicaria uma representante da resistência para que a vida
argelina seja concebida cobrada como precária, como digna de choro – “A apreensão da
capacidade de ser chorada precede e torna possível a apreensão da vida precária” (BUTLER,
2019, p.33) – em face do Ocidente e sua prática racista e orientalista (SAID, 2007;
BOURDIEU, 1961) e da literatura ocidental, representada, no caso, pelo romance O
281
estrangeiro. No segundo caso, a mãe com os contornos que assume, servil e devota à família
no texto, funcionaria como um emblema das forças vivas do tipo de patriarcado que é base
importante na cultura fundamentalista local, a qual, em muitas situações, controla corpos
femininos e suas possibilidades de cidadania e de manutenção de uma subjetividade que vá
além da possibilidade de ser explorada em trabalhos domésticos – desvalorizados e
dificilmente reconhecidos como uma atividade de trabalho, diversa de prover afeto/cuidado,
sujeita à remuneração justa na cultura (FERNANDES, 2021).
Cabe, nesta altura da reflexão, repassar os possíveis motivos que levam um narrador
argelino, um filho, a ter que apelar para a exposição de seu trauma familiar para ser escutado.
Ora, se torna mais fácil que leitores supostamente socializados numa cultura patriarcal
escutem com mais empatia a revisão da história de Meursault contada ineditamente por um
subalterno argelino, inferiorizado como colono (BOURDIEU, 1961) na hierarquia
imperialista apoiada no racismo e no machismo (QUIJANO, 2008), quando o apelo à mãe é
acionado como estratégia retórica. De acordo com Vianna e Farias, também citadas por Efrem
filho, por exemplo, a recorrência ao que elas chamam de “protagonismo simbólico das mães”
é uma tática de legitimação da vítima bastante usada nos tribunais de culturas patriarcais,
como a brasileira, sobretudo, na luta por justiça em caso de assassinatos de subalternizados.
As autoras discutem a questão em “A guerra das mães: dor e política em situações de
violência institucional” (2011), ao refletirem sobre os julgamentos de policiais do Rio de
Janeiro, acusados de matarem jovens negros habitantes de favelas. A defesa dos policiais,
conforme o que elas verificam, costuma deslegitimar a vítima como vítima, imputando-lhe
acusações de crimes, comprometendo, pois, a sua imagem moral, ao passo que a promotoria
trabalha no sentido de sensibilizar o júri a partir das dores das figuras maternas junto,
naturalmente, a demais indícios que colaborem para “provar que os mortos eram honestos e
não bandidos ou traficantes54” (2011, p.95).
Ao ser proposta a indagação de por que motivo para Moussa, um colonizado, ser
legitimado como vítima, frente a um narratário francês, e frente ao Ocidente leitor, seria
necessário o apelo à mãe e à carga tradicional que ela carrega, penso que a seguinte resposta
pode ser conjecturada: o fato se atrelaria, sobretudo, ao projeto ficcional de Daoud
problematizar o racismo na tradução que enseja de Camus. O racismo dirigido aos colonos
argelinos estruturou as relações coloniais na época (como visto do romance camusiano),
multiplicadora de inúmeras desigualdades e ainda estrutura as relações pós-coloniais
54 Vale ressaltar que a polícia não poderia matar deliberadamente indivíduos porque aparentam ser ou são
bandidos e traficantes.
282
contemporâneas. A respeito do preconceito e do racismo europeu, das intensas desigualdades
sociais e espaciais entre colonos e colonizados na Argélia, já bastante, aqui, aludidas,
inclusive, no Capítulo 3, como projetadas ao mundo pelo cinema de Pentecorvo
(TRAVERSO, 2018), faz-se importante compreendê-las, também, pela perspectiva de castas
colocada por Bourdieu. O sociólogo retrata de maneira enfática as relações de hierarquia e a
segregação nas cidades argelinas na citação a seguir:

Considerado do ponto de vista sincrônico, a sociedade colonial nos faz pensar em


um sistema de castas. Ela é, de fato, composta por duas “comunidades” justapostas e
distintas... A adesão a cada uma dessas comunidades é determinada pelo
nascimento; a marca da associação é a aparência física ou às vezes a roupa ou o
nome de família. O fato de nascer dentro da casta superior confere automaticamente
privilégio, e isso tende a desenvolver um sentimento de superioridade natural na
pessoa que se beneficia dessas vantagens ... As duas sociedades são colocadas em
uma relação de superioridade e inferioridade e são separadas por muitas barreiras
invisíveis, criadas por instituições ou por autodefesa espontânea ... Por isso, uma
segregação racial de fato se desenvolveu. A função do racismo não é senão a
racionalização do estado atual das coisas, para que pareça ser uma ordem legalmente
instituída (BOURDIEU, 1961, p. 133).
Dessa maneira, em meio ao racismo estrutural presente na conjuntura Argélia-França,
preconceito que atravessa as fronteiras da própria Argélia e é vivenciado pela classe de
imigrantes de argelinos na França ao longo das últimas décadas (SAYAD, 1998) é inteligível
que Moussa necessite de “uma carta na manga”, um elemento de legitimação mais convicente,
para ter sua vida reconhecida como precária e passível de luto: a exposição da dor da mãe
pelo seu irmão que sobreviveu e que pode falar, diferente dela, que ainda é analbeta, inábil
para escrever, e muda, incapaz de narrar o próprio luto.
A mãe de Haroum, contudo, é preciso destacar, não apresentava apenas trauma e
melancolia de modo inativo. Como personagem ambivalente que buscava justiça e um espaço
de fala, ela mobilizava também revolta, raiva, insurreição contra a injustiça para com seu
filho, contra franceses, chegando a insultar e praguejar contra uma francesa (sem nome no
texto) que supostamente se acreditava que seria uma parente do “assassino” Meursault.
Insultar não foi sua única transgressão de limites impostos a sua fala pelas hierarquias
vigentes; para vociferar pragas contra franceses cristãos, a personagem precisou transitar no
bairro francês, o que era passível de vigilância policial, a depender do caso, passível de
repressão institucional, como explicou Fanon em Os condenados da terra (1965). Cito o autor
em um trecho que necessita ser lido para se entender a realidade dual e desigual da Argélia e,
assim, para que seja mensurado o nível exato de transgressão da mãe árabe e mulçumana de
Haroum ao se dirigir ao bairro francês para insultar a colona:
283
A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos
colonos. Essas duas zonas opõem-se, mas não ao serviço de uma unidade superior.
Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio de exclusão
recíproca: não há conciliação possível, um dos termos está a mais. A cidade do
colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada,
asfaltada, onde os caixotes do lixo estão sempre cheios de vestígios desconhecidos,
nunca vistos, nem sonhados. Os pés do colono não se vêem nunca, a não ser no mar,
mas poucas vezes se podem ver de perto. Pés protegidos por fortes sapatos, apesar
das ruas da sua cidade serem limpas, lisas, sem covas, sem pedras. A cidade do
colono é uma cidade farta, indolente e está sempre cheia de coisas boas. A cidade do
colono é uma cidade de brancos e de estrangeiros.
A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o bairro árabe, é um
lugar de má fama, povoado por homens também de má fama. Ali, nasce-se em
qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe nunca
de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns sobre os outros, as
cabanas dispõem-se do mesmo modo. A cidade do colonizado é uma cidade
esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do
colonizado é uma cidade agachada, de joelhos, a chafurdar. É uma cidade de negros,
uma cidade de ruminantes. O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do colono
é um olhar de luxúria, um olhar de desejo. Sonhos de possessão. (1965, p. 34).
O trecho é útil para se vislumbrar o grau de subalterninade da mãe solteira de Moussa:
mulher, colonizada, árabe, analfabeta, doméstica, sujeita ao racismo. É esse grau de
subalternidade, paradoxalmente, que lhe confere sua condição de “mulher revoltada”,
parodiando o próprio Camus em seu volume O homem revoltado (2018). Para Camus, chega
um momento na trajetória do indivíduo em que ele não se sujeita mais à posição de opressão
que lhe é imposta, agindo para caminhar até mudar de lugar sem retroceder. Este é o momento
e a face da revolta55. Pois bem, quando decide sair do seu bairro colonizado e de “má fama”
(FANON, 1965), chegar ao bairro das “luzes” francesas, para insultar seu “opressor”, esta
mãe transgride, naquele mínimo instante, a sua condição. Ela se faz resistência, ela luta pela
memória de seu filho e ela busca um tipo de justiça particular. Cito a cena:

O dia estava bonito, e eu estava colado nela, ofegante, pois ela tinha andado com
bastante rapidez. Em todo o caminho, eu a escutara murmurar insultos e ameaças,
orando para Deus e seus antepassados, ou para os antepassados do próprio Deus,
quem sabe. Eu sentia em mim mesmo um pouco da agitação dela, sem saber muito
bem por quê. Era um sobrado, e as janelas estavam fechadas — nada além disso a
destacar. Na rua, os roumis nos olhavam desconfiados. Ficamos parados ali em
silêncio por um bom tempo. Uma hora, talvez duas. Depois, sem se preocupar
comigo, mamãe atravessou a rua e bateu na porta com determinação. Uma velha
francesa veio abrir. A contraluz a impedia de enxergar com clareza a sua
interlocutora, mas, fazendo uma espécie de viseira com a mão, acabou por vê-la e
fitou-a com atenção, e eu pude perceber o mal-estar, a perplexidade e, por fim, o

55 Camus assim define a revolta em O homem revoltado: “Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram
demais”, até aí, sim; a partir daí, não; assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’.
Em suma Em suma, este não a firma a existência de uma fronteira. Encontra-se a mesma ideia de limite no
sentimento do revoltado de que o outro “exagera”, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da
qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Dessa forma, o movimento de revolta apoia-se na recusa categórica
de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na
impressão do revoltado de que ‘ele tem direito de’... . A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma
forma e em algum lugar, se tem razão” (CAMUS, 2018b, p. 27).
284
terror que tomava conta do seu rosto. Ela ficou vermelha, seus olhos se mostravam
apavorados, parecia prestes a dar um grito. Compreendi, então, que mamãe estava
lhe recitando a série mais longa de maldições que ela já havia pronunciado. A
senhora começava a se agitar na soleira da casa, tentava afastar mamãe. Senti medo
pela minha mãe, por nós dois. De repente, a francesa se sentou na escada e
desmaiou. As pessoas tinham parado, eu percebia as sombras delas atrás de mim,
pequenos grupos tinham se formado aqui e ali, e alguém chamou: “Polícia!”. Uma
voz feminina gritou em árabe para mamãe correr, fugir, rápido. Foi então que
mamãe, virando-se para trás, e como que se dirigindo a todos os roumis do mundo,
berrou: “O mar vai engolir todos vocês!” (DAOUD, 2013, p. 56).
A passagem demarca o medo e a desconfiança que os franceses sentem diante dos
colonizados, o que é decorrente de seu racismo e da consciência da dominação que exercem
sobre eles e que gera a inveja e cobiça dos locais (FANON, 1965) espalhados em grande
quantidade pelo país. Por isso a polícia, na cena, sempre atenta. Chamo atenção, por outro
lado, para a solidariedade entre as mulheres argelinas e para o uso do árabe na fuga da
opressão policial. A resistência ali se fez feminina e local, usando a fala, o idioma nativo para
se vencer a disputa territorial contra a polícia, emblema do controle colonial apoiado na
masculinidade hegemônica. A mulher francesa fora, contudo, agredida pela voz subalterna da
mulher/mãe argelina, nesse ponto não ainda muda pelos traumas, o que denuncia as tensões
entre as diferentes representações femininas em posições hierárquicas distintas na colônia.
Outra particularidade de O caso Meursault apresentar na sua tradução da maternidade
camusiana a ser aqui abordada é a culpabilização da mãe por parte de Haroum. O personagem
que dá claras demonstrações de que sente que o desequilíbrio emocional da mãe lhe deixou
marcas na mente e no próprio corpo. Já no trecho anterior, o fato de ele dizer “sem se
preocupar comigo, mamãe atravessou a rua”, já se anuncia que ele está a desenhar um
“descuidado” na conduta materna, uma falha, uma queixa. O excerto abaixo, todavia, deixa
sua mágoa para com o fato de mãe se deixar impactar completamente pela perda de Moussa, a
ponto de suas reações traumáticas afetá-lo intensamente. Cito:

Como eu já lhe disse, o corpo de Moussa nunca foi encontrado. Consequentemente,


minha mãe impôs a mim um dever rigoroso de reencarnação. Quando comecei a
ficar um pouco mais encorpado, ela me fazia usar as roupas do defunto, mesmo que
ficassem largas — suéteres, camisas, sapatos —, e isso até se gastarem totalmente.
Eu não podia me afastar dela, passear sozinho, dormir em lugares desconhecidos ou,
quando ainda estávamos em Argel, me aventurar à beira- mar. Sobretudo no mar.
Mamãe me ensinou a temer até mesmo a mais suave aspiração do ar da praia, a tal
ponto que ainda hoje a sensação da areia se movendo sob a planta dos pés ali onde
as ondas vêm morrer continua associada, para mim, ao começo de um afogamento.
No fundo, mamãe queria acreditar, para sempre, que as ondas é que tinham levado o
corpo do seu filho. O meu corpo se transformou, então, no rastro do morto, e acabei
cedendo a essa imposição silenciosa. É certamente isso que explica a minha
covardia física, que eu compensei, é bem verdade, com uma inteligência incansável,
mas também sem grandes ambições, para falar a verdade. Eu adoecia com muita
frequência. Toda vez, ela cuidava do meu corpo com uma atenção que flertava com
o pecado, uma solicitude que adquiria certo tom incestuoso. Criticava-me pelo
285
menor dos arranhões como se eu tivesse ferido o próprio Moussa. Dessa forma, fui
privado das alegrias saudáveis da infância, do despertar dos sentidos e dos erotismos
clandestinos da adolescência. Eu me tornei calado e envergonhado. ...Mamãe me
transmitiu os medos dela, e Moussa, o seu cadáver. O que você queria que um
adolescente encurralado entre a mãe e a morte fizesse? (DAOUD, 2013, p. 56).
As palavras são de um filho que desabafa ter sofrido condutas até sexualmente
abusivas da mãe e revelam uma família de relações mutiladas pelo assassinato de Moussa, por
sua vez, atravessado pela história da Argélia ser dominada pelos franceses. São todas essas
experiências traumáticas consequências do que fez Meursault, do seu homicídio, crime que,
por sua vez, se motiva em Camus variadamente: pelas tensões coloniais, pelas relações de
gênero e pressões da masculinidade hegemônica, pelo absurdo, pelo sol, mas um crime cuja
vítima não fora reconhecida como deveria, não fora honrada e reparada judicialmente como
deveria, uma vez que a instituição imperial defendeu retoricamente no tribunal bem mais a
memória da mãe francesa, cuja morte não fora chorada pelo filho, uma justiça que
explicitamente defendeu bem mais a vida de Cristo do que a da vítima.
Meursault foi preso em O estrangeiro, o que já se apresenta como um alento para
Haroum diante do contexto de impunidade para com franceses na Argélia colonial. Contudo,
na mecânica emocional das punições, o personagem daoudiano guarda rancor não só do
assassino condenado por uma promotoria eurocentrada, mas da própria mãe. Haroum divide
seu ódio também com sua mãe, a culpa por ela despejar sobre ele a violência que Meursault e
os franceses a Moussa aplicaram. Aqui, fica notável a carga de ciúmes perante o irmão, de
misoginia e de cobranças de um cuidado perfeito de uma mãe solteira, devastada pela
violência do lugar em que habita. Aí, claramente, a figura materna aparece punida por ser
duplamente subalterna: colonizada e mulher/mãe. Nas queixas de Haroum, nos desabafos de
seus traumas revela-se essa culpabilização materna, as quais só evidenciam que, antes de ser
um ser que pode ser livre e digno para viver seu luto, a mãe recebe a cobrança de servir ao
filho, à família. Por esse prisma, a mãe não é vista como ser necessitado de assistência
psicológica ou qualquer cuidado, estando compelida a sufocar o próprio equilíbrio enquanto
trabalha como cuidadora, ironicamente, sem que seja reconhecida por esse trabalho, já que
sua obrigação é servir “por amor” (BADINTER, 1985; FERNANDES, 2021). Seguem mais
trechos nos quais se reforça a culpa materna, através de repetições rancorosas do narrador a
“remoer” a própria história. Neste abaixo, a busca da mãe analfabeta de conforto na religião
aparece em contraste com a busca do personagem pelas “luzes” acadêmicas: estudo, escrita,
num processo de mímica (BHABHA, 2003) ao colonizador e ao assassino, desdenhado
paradoxalmente, muitas vezes, ao longo da trajetória narrativa. Cito:
286
Juro a você que consigo entender melhor o seu herói quando ele fala mais da mãe do
que de meu irmão. É estranho, não? Será que eu a amava? Com certeza. Em nosso
país, a mãe representa metade do mundo. Mas jamais perdoei a maneira como ela
me tratava. Ela parecia ter raiva de mim por causa de uma morte pela qual eu, no
fundo, sempre me neguei a sofrer, e então me castigava. ...
Por muito tempo, senti uma vergonha inacreditável — mais tarde, isso me levou a
estudar uma língua capaz de criar uma barreira entre mim e o delírio de minha mãe.
Sim, a língua. Essa em que leio, essa em que me expresso hoje e que não é a língua
dela. A dela, rica, imagética, cheia de vitalidade, sobressaltos e improvisações, por
falta de precisão. A dor de mamãe durou tanto tempo que ela precisou de um idioma
novo para exprimi-la. Com essa língua, ela falava como um profeta, recrutava
carpideiras improvisadas, e não vivia outra coisa além desse escândalo: um marido
engolido pelos ares, um filho engolido pelas águas. Eu precisava aprender outra
língua além daquela. Para sobreviver. E foi esta, então, em que falo neste momento.
A partir dos meus quinze anos presumidos, momento em que partimos para Hadjout,
eu me tornei um aluno sério e taciturno. Os livros e a língua do seu herói me deram
a possibilidade, progressivamente, de chamar as coisas por outros nomes e organizar
o mundo com as minhas próprias palavras (DAOUD, 2013, p.48).
Novamente, a menção ao uso do idioma francês é feita, mas agora como uma maneira
de buscar uma nova forma de expressão que se afastasse da língua árabe por essa ser
instrumentalizada pela religião islâmica, por sua vez instrumentalizada pela sua mãe para se
refugiar do trauma que atravessou a família. Fica perceptível que mãe e filho se afastam por
falarem línguas diversas respectivamente: a fé mulçumana e a palavra francesa. Os laços de
sangue e de nacionalidade não bastaram para manter a conexão afetiva entre eles, cujos
vínculos se mostram mutilados: eles não se entendem.
Neste próximo excerto disposto em sequência, Haroum confessa ser cruel com a mãe,
e assim, revela toda a sua ambivalência entre amá-la, desejando, pelo exercício da crueldade,
conseguir a sua atenção e odiá-la:

Eu gostava de roubar o pão que mamãe escondia em cima do armário dela e depois
vê-la a procurá-lo por toda a casa murmurando maldições. Uma noite, alguns meses
depois da morte de Moussa, quando ainda morávamos em Argel, esperei que ela
adormecesse, peguei a chave da dispensa e comi quase todo o açúcar que estava
guardado ali. Na manhã seguinte, ela ficou fora de si, começou a praguejar e a
arranhar o próprio rosto chorando e lamentando o seu destino: um marido
desaparecido, um filho assassinado e um outro que a observava naquele estado com
uma alegria no limite da crueldade. Ah, sim! Eu me lembro disso. Eu tinha sentido
um estranho júbilo ao vê-la sofrer de verdade, pelo menos uma vez. Para mostrar a
ela que eu existia, eu precisava decepcioná-la. Era quase uma fatalidade. Esse laço
nos uniu mais profundamente do que a morte (DAOUD, 2013, p. 73).
A passagem estampa uma cena rotineira de um lar pobre, comandado por uma mãe
solteira: o controle da comida. A tensão entre mãe e filho é confessada como gerada por este
para fazê-la premeditadamente sofrer, sentir estresse, roubar suas energias. Como ele é bem
sucedido em sua crueldade, a mãe reage e também expressa seu sentimento de raiva,
praguejando maldições, isto é, acionando os ritos da religião para desabafar ódio pela conduta
287
do filho. Portanto, além do trauma pela morte de Moussa, a desarmonia une ambos, únicos
sobreviventes de uma família despedaçada.
A parcela de ódio que Haroum sente pela mãe, por vezes devolvido por ela com
maldições, acaba irradiada para o gênero feminino, a ponto de o personagem não ser capaz de
manter um relacionamento afetuoso genuíno e verdadeiro com uma mulher. Ele confessa
sentir desconfiança para com mulheres, as quais, na sua visão, estariam sempre em disputa
com as mães de seus parceiros, como se houvesse rivalidade entre elas e como se todas juntas
ameaçassem o gênero masculino. Solidão e celibato foram o destino de tal mente misógina de
Haroum, até encontrar Mariem, personagem que ele acredita tê-lo amado e ter tido a coragem
de enfrentar sua mãe (como se a rede de disputas femininas pelo afeto do homem/filho que
povoa a sua mentalidade estivesse dado como certo naquele contexto em que vivia). Contudo,
a relação com Mariem não se solidificou, não houve casamento. É o que ele conta na
passagem recortada abaixo:

Eu deixei a minha própria família antes mesmo de ter uma, pois nunca me casei.
Claro que conheci o amor de muitas mulheres, mas sem que isso desfizesse o pesado
e sufocante segredo que me algemava à minha mãe. Depois de todos esses anos de
celibato, cheguei à seguinte conclusão: eu sempre nutri uma poderosa desconfiança
em relação às mulheres. No fundo, eu nunca acreditei nelas.
A mãe, a morte, o amor — todo mundo se divide, de maneira desigual, entre esses
três polos de atração. A verdade é que as mulheres nunca conseguiram me libertar
de minha própria mãe e da raiva contida que eu sentia dela nem me proteger do seu
olhar, que, por muito tempo, me seguiu por toda a parte. Em silêncio. Como se
estivesse sempre a me perguntar por que eu não tinha encontrado o corpo de Moussa
ou por que eu tinha sobrevivido no lugar dele ou por que eu tinha vindo ao mundo.
...Em minha vida, a única história que lembra um pouco uma história de amor foi a
que eu vivi com Meriem. Ela é a única mulher que teve a paciência de me amar e de
me trazer de volta para a vida. ... A partir desse caso com Meriem, eu entendi que
as mulheres se afastam do meu caminho, fazem uma espécie de desvio, como se
sentissem, instintivamente, que, mais do que um potencial companheiro, eu sou o
filho de uma outra mulher (DAOUD, 2013, p. 83-84)
É contraditório e curioso notar que todo esse culpabilizar da mãe pelos seus insucessos
e crises como indivíduo, podem funcionar como uma forma de retratá-la com desabono,
denunciando a “mãe má” que ela teria sido. Este detalhe frente a leitores mais conservadores,
acorrentados às cobranças do patriarcado dirigidas a mulheres para que estas se passem como
perfeitas serviçais domésticas e cuidadoras, de fato, soaria como um desabono, o que entra em
conflito com a sua retórica de legitimação de Moussa como vítima pelo sofrimento de uma
mãe sacralizada pela dor da perda de um filho por homicídio. Muito além disso, arrisco a
interpretar que tal culpabilização materna, dotada, pois, de tons patriarcais, legitimaria
também como vítima precípua da história, tanto quanto Moussa, o próprio Haroum por não ter
recebido os devidos cuidados. O narrador daoudiano, portanto, se representaria em seu relato
288
ao “investigador universitário francês”, vindo do Ocidente para ouvir sua versão dos fatos em
torno de um livro escrito por Meursault sobre a morte de seu irmão, como uma igual vítima
daquele assassinato. Sua condição de vítima disputada em seu discurso se fundamentaria no
espólio descrito como recebido de tudo aquilo que viveu ao acompanhar o luto materno e
sofrer seus impactos: a solidão amorosa, as marcas físicas no corpo cuja desenvoltura
muscular não se desenvolveu a contento de uma masculinidade hegemônica (ele aponta seu
físico franzino), a convivência com a necessidade da crueldade contra a própria mãe, cuja
história é reconstruída em sua fala para também, contraditoriamente, defendê-la na posição de
vítima traumatizada, silenciada por uma memória agora muda e inenarrável ao mundo.
Sobrevivente da colonização, das lutas sangrentas pela independência, a mente de Haroum
carregaria variados tipos de abusos e traumas provenientes do binômio: França e relação com
a mãe. Nessa perspectiva, a sua narrativa traz uma retórica para defendê-lo e para “purgar”
seu próprio passado, entranhado na sua musculatura. Ao narrar seu passado com a sua própria
voz – que lhe restou, diversamente do que ocorrera com sua mãe (sujeito duplamente
subalterno: argelina e mulher em maternagem) – o personagem aproveita para desabafar seu
ódio no presente contra o fanatismo religioso em vigor no seu país, escancarar seu ódio contra
mulheres e contra o também “fanatismo crítico-literário” pela “história única” (ADICHIE,
2019) contada por Meursault.
Se por um lado Haroum tece caminhos retóricos, em muitas passagens da obra, para
pintar-se como vítima traumatizada pela violência contra seu irmão, por outro ele se retrata
também como agente da violência. Este seu lado “algoz” e propenso a condutas de crueldade
se revela tanto na relação tensa que estabelece com a mãe, como visto, quanto em demais
ações em pontos chave de seu relato memorial. Tentando se desenhar, e mesmo se
reconhecendo, como um “sósia” de Meursault, o personagem confessa que matou um francês.
O crime, ocorrido também num dia ensolaradamente incômodo (como em Camus), não havia
sido por ocasião da luta armada pela independência, o que, se fosse o caso, pelo prisma do
“colonizado”, teria “justificado” o ato de violência no cenário histórico da Revolução
argelina.
Müller (2018), em breve e contundente artigo no qual estuda o romance de Daoud, já
havia pontuado que “o árabe” matou um francês para, na verdade, se libertar da pressão
materna de vingar o irmão (a mãe, vingança, incentiva o crime e dele é cúmplice). A autora
destaca que é possível notar em Haroum o desejo de imitar Meursault e igualar-se a ele após
atirar: “Pela primeira vez minha mente passava a ideia de que eu finalmente poderia ir ao
289
cinema e nadar com uma mulher” (DAOUD, 2016, p. 102). Uma série de outras “alusões” à
conduta de Meursault que se repetiria em Haroum é indicada por ela, na tentativa de
demonstrar que o romance de Daoud apresenta dois tipos específicos de intertextualidade em
face ao de Camus: a alusão e a referência. Aquela funciona como uma espécie de
intertextualidade “implícita”, não referenciada diretamente com aspas ou menções diretas no
texto, dependendo, então, do conhecimento prévio e minucioso do leitor a associar as
passagens de O caso Meursault ao O estrangeiro; esta, diversamente, realiza a referência
direta e expressa ao romance, como ao citar o personagem Meursault, que, nitidamente, se
estabelece como elemento textual do clássico francês. Feita a distinção, Müller segue sua
abordagem procurando a pontar as semelhanças entre os trajetos dos dois narradores.
Remarca, pois, que além de também assassinar, Haroum é preso, como Meursault, e completa
ela:

No momento do processo contra Haroun pela morte do francês, este se pergunta do


que poderiam acusá-lo se sempre servira sua mãe, o que pode ser visto como uma
alusão ao processo contra Meursault, no qual o acusam mais por ter abandonado sua
mãe em um asilo e não ter chorado no enterro dela do que por ter matado um
homem. E quando Haroun é colocado na prisão, seus companheiros de cela são
todos franceses; ao perguntarem por que está ali, responde que havia matado um
francês. A cena remete, evidentemente, ao momento em que Meursault é preso e
encontra, como colegas de cela, diversos árabes que lhe perguntam por que razão ele
está ali, e ele responde que havia matado um árabe. A correlação entre as cenas só
pode ser estabelecida por um leitor que conheça O estrangeiro (MÜLLER, 2018, p.
222).
Tendo Müller assinalado as semelhanças para indicar a manifestação da
intertextualidade na obra, gostaria de lançar um ponto de luz ao caso pelas possibilidades de
nele ressaltar como extremamente significativas as diferenças. Entendo que ao tentar “imitar”
o francês, Haroum acaba gerando, inversamente, semblantes dissidentes deste; diferenças que
brotam exatamente nessa dinâmica mimética de buscar ser semelhante. O próprio narrador
argelino, ao confessar a busca da imitação, revela nas palavras que escolhe em seu discurso a
impossibilidade de sua realização total: “Eu procurei ali marcas do meu irmão e encontrei o
meu próprio reflexo, vendo-me quase como um sósia do assassino” (DAOUD, 2013, p. 151).
A expressão “quase como” assinala a marca da diferença encontrada quando ele tenta se ver
como o Outro: Meursault, assassino, colonizador, francês. Assinalo, então, que quanto mais
Haroum tenta “mimicar” (BHABHA, 2003) Meursault, mais se depara com a sua diferença
frente herói camusiano, com a sua alteridade ali camuflada. Faz-se, nesse sentido, oportuno
articular o “quase um sósia” dito por Haroum à reflexão sobre os processos miméticos
assumidos pelo colonizado em face do colonizador feita por Homi Bhabha:
290
Sob o disfarce da camuflagem, a mímica, como o fetiche, é um objeto parcial que
radicalmente reavalia os saberes normativos da propriedade da raça, da escrita, da
história, pois o fetiche imita as formas de autoridade ao mesmo tempo que as
desautoriza. De modo semelhante, a mímica rearticula a presença em termos de sua
alteridade, exatamente aquilo que ela recusa....
Isso leva à cisão do discurso colonial de modo que persistem duas atitudes com
relação à realidade externa; uma leva a realidade em consideração equanto a outra a
recusa e a substitui por um produto do desejo que repete, rearticula a “realidade”
como mímica (2003, p. 154).
Estando claro que repetir, nesse contexto, é ativar a diferença e a alteridade, examinar
as diferenças carregadas pelo “árabe” é relevante.
Noto que ao matar, Meursault qualifica seu ato homicida como “quatro batidas secas
na porta da desgraça” (CAMUS, 2016, p. 64), ao passo que o personagem argelino, quanto a
seu crime, profere diversamente “Foram duas batidas rápidas na porta da libertação” (2013, p.
102). Dessa forma, ainda que Haroum se considere um “duplo” de Meursault, a relação que
ele estabelece com a mãe de ódio, culpabilização e desejo de “libertação”, o distancia do
protagonista francês, que nutre para com a figura materna mais uma relação de indiferença
diante de sua morte, chocando uma cultura que a valoriza, como atesta a fala do personagem
Celeste em O estrangeiro: “‘mãe só se tem uma’” (CAMUS, 2016, p. 14). Nesse sentido,
Haroum, ainda que em muitos aspectos pareça se aproximar ou tente se construir como um
“duplo” do narrador camusiano, se configura, na verdade, como um “outro” diante dele,
jamais sua réplica perfeita, mas “quase um sósia”. Ele se faz, portanto, uma “tradução
argelina” de um herói francês aclamado pela crítica e filosofia ocidental do século XX para a
literatura contemporânea local, de modo que “traduzir”, neste sentido, é traducere (levar
adiante) e translatio transportar e transformar sentidos, ou seja, recriar e transformar os
sentidos anteriores.
Haroum transforma tanto os sentidos de Meursault, que ao tentar ser um “sósia do
assassino”, não reproduz a indiferença racista deste de sequer nomear sua vítima em seu livro
sobre o caso. O francês assassinado ganha, em Daoud, a dignidade de um nome: Joseph
Larquais, e assim, a indiferença racista do colonizador de silenciar a identidade do colonizado
é desautorizada por tal gesto de diferença. A própria punição do crime, ainda que tente se
assemelhar a uma punição que revela descaso com a vida do morto em detrimento dos valores
importantes para a instituição do Estado argelino, como ocorre em O estrangeiro e é objeto da
crítica sutil que Camus imprime ao autoritarismo judiciário francês (MITTERAND, 2013),
cristão e patriarcal, assume contornos diferentes, porque próprios a um argelino, e não a um
francês, ambos sujeitos que vivem em períodos distintos. Não há como duplicar perfeitamente
291
um francês pied-noir de 1942 na persona de um argelino do século XXI sem que despontem
suas diferenças, como não há como duplicar um argelino na persona de um francês da mesma
forma, uma vez que as duas nacionalidades assumem posições históricas e políticas
56
divergentes, contrapostas muitas vezes . Cito a observação de Schatz a respeito da
simbologia da repressão argelina ao assassinato do francês nomeado e morto com apenas dois,
e não quatro tiros em O caso Meursault:

As novas autoridades punem Haroum não pelo crime em si, mas pelo momento em
que foi cometido. Como ocorreu depois do dia 5 de julho de 1962, o dia da
independência, o assassinato não foi um ato de libertação, e sim um estorvo para o
regime (SCHATZ, 2015).
Este detalhe na trajetória da narrativa do personagem argelino que vai tentando
“copiar” o “livro” de Meursault não é mero detalhe, mas uma amostra relevante de que há
diferenças escancaradas no modo de França e Argélia acionarem a justiça, ainda que ambas
levadas bem mais pelos interesses de seus grupos de poder. É visível que enquanto a França
protegia no julgamento de Meursault os pilares de sua matriz colonial do poder: os valores
cristãos e o patriarcado sustentado pela figura materna, a Argélia protege claramente os
interesses de sua independência do colonialismo: a autorização do ataque e do assassinato
pelo bem maior da “libertação”. Sendo assim, a tentativa mimética, como já a descreve
Bhabha (2003) só acirra a impossibilidade de se ser o outro, só expõe o desejo inviável de
espelhá-lo.
No que se refere às representações da mulher na condição de amante e namorada,
torna-se importante sublinhar as diferenças trazidas por Daoud. Marie, namorada de
Meursault, recebe a tradução na figura de Mariem (nome local), que se coloca como o oposto
da figura feminina em O estrangeiro: não sonha em casar e deseja ser livre, frequenta a
universidade. Haroum diz tê-la pedido em casamento, diferente de Meursault, que é pedido, e

56 Sujeitos duplos não se igualam por completo nem mesmo na ficção fantástica de José Saramago. O fantástico
está habituado ao usufruto do duplo (RODRIGUES, 1988). Ilustro a observação da mímica ressaltar o diverso
com o exemplo suplementar da produção insólita do escritor português. Em seu romance O homem duplicado,
Saramago apresenta a intrigante façanha de um homem que descobre haver um duplo de si próprio, com
características corporais idênticas, na mesma cidade (Borges já criara algo semelhante em “O outro”, conto
contido em O livro de areia). Eles não se tratavam de irmãos gêmeos, o que seria explicado pela ciência, mas,
fantasticamente, seriam idênticos na aparência. Contudo, as suas trajetórias de vida e suas personalidades, ainda
que revelasse algumas semelhanças, estavam marcadas pela diferença, o que impossibilita a interpretação de que
poderia haver um sujeito idêntico a outro em completa totalidade, ainda que em uma ficção insólita como a do
tipo. Um era divorciado, o outro, casado; um professor de História, o outro, ator; um andava de moto, o outro de
carro e as diferenças se acirram com a leitura da obra. É curioso notar no texto que quando o ator tenta fingir ser
o professor para ter sexo com a namorada deste, ela percebe a diferença entre eles, ainda que haja a mímica; bem
como a esposa do ator, percebe que quem está em sua cama seria outro homem e não o seu marido ator. As
mulheres notam a alteridade e não deixam se enganar. O exemplo da obra portuguesa trona ainda mais
improvável a possibilidade de a mímica copiar sem fissuras o referente copiado, como acontece entre Haroum e
Meursault.
292
o que recebe é uma recusa, não uma insistência, como no caso de Marie, ansiosa para casar
mesmo que com um assassino. Cito a passagem em que se sobressaem as diferenças entre as
mulheres francesa de meados do século XX e a argelina contemporânea:

Chegamos à estação daquele jeito, enlaçados. Naquela época, isso era permitido.
Não é como hoje. Enquanto nos olhávamos com uma curiosidade nova, trazida pelo
desejo dos nossos corpos, ela me disse: “Eu sou mais morena que você”. Perguntei
se um dia ela poderia vir mais tarde, à noite. Ela riu de novo e balançou a cabeça
para dizer que não. Eu ousei ainda mais: “Quer casar comigo?”. Ela fez um
movimento súbito de surpresa — e isso foi como um punhal no meu coração. Ela
não esperava por isso. Eu acredito que ela teria preferido viver aquela relação como
um divertimento natural e não como o prelúdio de um compromisso mais sério. “Ela
quis saber, então, se eu a amava.” Respondi que não sabia o que isso queria dizer
quando eu usava palavras, mas que, quando eu me calava, isso aparecia como uma
coisa evidente em minha cabeça. Você está sorrindo? Hmm, quer dizer que você já
entendeu... Isso mesmo, é uma balela. Do começo ao fim. É uma cena perfeita
demais; eu inventei tudo. É óbvio que eu nunca me atrevi a dizer nada a Meriem. A
extravagância da sua beleza, a sua natureza e a promessa de uma vida melhor do que
a minha que ela significava sempre me deixavam mudo. Ela pertencia a um tipo de
mulher que não existe mais neste país: livre, conquistadora, insubmissa e vivendo o
seu corpo como um dom, não como um pecado ou uma vergonha. A única vez em
que a vi se cobrir com uma sombra gélida foi quando me contou de seu pai,
dominador, polígamo e cujo olhar, cheio de cobiça, despertava nela a dúvida e o
pânico. Os livros a libertaram de sua família e lhe forneceram o pretexto para sair de
Constantine; assim que foi possível, entrou na universidade de Argel (DAOUD,
2013, p.155-156).
O trecho atesta que Mariem seria uma mulher do Século XXI: com possibilidades de
cogitar propósitos que conseguiriam ir além de formar uma família e servir a um marido, o
que não era cogitável em certos contextos históricos anteriores. Ela fugiria do destino de estar
suscetível a homens como seu pai: polígamos e autoritários. Sua rota de fuga foi a leitura, o
conhecimento, a universidade, capazes de lhe conferir uma liberdade que não encontraria nos
rituais culturais de sua comunidade familiar e local. Contudo, o personagem alerta que
mulheres como Marie “não existem mais no país”, uma solo que interdita a liberdade,
sobretudo a feminina, uma vez que as mulheres são levadas a entender o próprio corpo como
objeto de vergonha a ser encoberta. A personalidade livre e próspera de Mariem, que resiste à
ancestralidade patriarcal argelina, confessa Haroum, afeta a sua masculinidade, porque o
transforma em um sujeito inferior a uma mulher, revolve as sombras da sua insegurança
enquanto homem. Mais uma vez, a misoginia, o medo da mulher livre e próspera, no controle
de seu corpo e seu destino abala a história do narrador.
A partir do exposto, torna-se evidente que a tessitura da maternidade em O caso
Meursault se compõe de diversas e cumulativas particularidades em relação ao romance
parodiado de Camus. São elas 1) Expõe a dor e o trauma materno, dialogando com a cultura
patriarcal argelina, bem como problematizando o racismo para com árabes na geografia
293
colonial; 2) cria formas tanto para a imagem da mãe, como sujeito feminino subalternizado,
de resistência e “revolta” quanto para a sua imagem culpabilizada; 3) aponta indícios da
misoginia presente na mentalidade do narrador argelino; 4) assinala as aproximações e as
diferenças entre os heróis camusiano e daoudiano.
Quanto ao desenho das mulheres argelinas na obra, destaco que diferentemente da
predominância da “prostituta” moura e sem nome, violentada e animalizada em Camus, ou da
mocinha casamenteira e dependente do afeto masculino, Daoud oferece uma nova
personalidade que pode transitar no espaço pós-colonial: a mulher livre, que rompe com as
amarras da maternidade, da família, do trabalho doméstico e que se lança ao trabalho
intelectual. Contudo, seu narrador atesta estar esta mulher em extinção na Argélia: “Ela
pertencia a um tipo de mulher que não existe mais neste país”. É como se a ficção do autor
oferecesse um desejo utópico de representação feminina que mal teria surgido em uma ficção
e já morre antes mesmo de se tornar real e consolidada no país.
E com tal delinear os pilares selecionados para o debate da tradução de O estrangeiro
em O caso Meursault aqui se apresentaram, na tentativa de tatear algumas das múltiplas
linhas pertencentes a um diálogo crítico e reverencial (HUTCHEON, 1991) que Kamel Daoud
estabelece com a produção de Albert Camus no interior da literatura argelina contemporânea.
Restam muitas outras linhas a serem percorridas desse diálogo de vasto alcance, diante das
quais faço votos de que mais tecelãs pelo mundo se debrucem para trançar novas e diversas
interpretações.
294

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa trouxe à tona o romance amplamente traduzido e vencedor do Goncourt em


2015, premiação mais prestigiosa da França, de Kamel Daoud, escritor e jornalista argelino
representante da francofonia periférica contemporânea, autor que tem se destacado
peculiarmente pela sua representação polêmica57 nos campos literários ocidental e magrebino.
Receberam edição suas produções ficcionais: Le minotaure 504 (2011); Meursault contre-
enquête (2013); Zabor: ou Les psaumes (2017); e a reunião de suas crônicas jornalísticas sob
o título Mes indépendances. Chroniques: 2010-2016 (2018).  A obra de maior destaque na
produção de Daoud, contudo, e, portanto, ponto de partida deste trabalho é, de fato, o romance
O caso Meursault (Meursault contre-enquête), o qual se faz explicitamente, como aqui
definido, uma tradução paródica pós-colonial do clássico camusiano O estrangeiro (1942).
Daoud, como procurei demonstrar, revisitou e convida todos a revisitarem a história
narrada por Meursault, recontando-a e suplementando-a, em compasso com a posição
paradoxal e polivalente da paródia, tal qual a entende Hutcheon (1991), isto é, de modo ao
mesmo tempo crítico, reverencial e irônico, a partir de um lugar narrativo inédito, “ex-
cêntrico” (HUTCHEON, p. 84): o do sujeito argelino, de fala subalternizada (SPIVAK, 2010)
na obra de referência primeira. Entretanto, para além de ressignificar O estrangeiro, a sua
ficção também problematiza os pontos de maior tensão da realidade argelina da última
década. Estes pontos, na sua visão, a qual aqui tento apresentar, circundam dois entraves
principais, são eles: a) uma sonhada liberdade individual de parte da população em choque
com a imposição massificadora dos valores islâmicos, não raro marcada por fanatismo,
censura e violência por parte de grupos radicais; b) a disputa de uma minoria pelo

57 A respeito, cito Adam Schatz: “Nos textos de Daoud, seja nos jornalísticos, seja nos literários, salta aos olhos
o destemor com que ele defende as liberdades individuais – um destemor que me pareceu chegar às raias da
irresponsabilidade num país em que são intensas as paixões coletivas despertadas pelo nacionalismo e pela
religião. Fiquei me perguntando se sua experiência podia fornecer alguma pista da situação em que se encontra a
liberdade intelectual na Argélia, um híbrido de democracia eleitoral e Estado policial. No fim do ano passado,
tive uma resposta. Daoud já não era apenas um escritor: era um nome em relação ao qual se devia tomar uma
posição, tanto na Argélia como na França” (2015, p. 2).
295
reconhecimento das diversidades locais entre o tradicional controle da unidade nacional pela
exigência, julgada pelo autor como autoritária, da manutenção dos costumes árabes e
islâmicos. No passado das lutas pela Independência (1954-1962), como tais valores da
unificação popular foram decisivos para a vitória sobre os invasores franceses (YAZBEC,
2010), eles estão, há décadas, em vigilância pelas lideranças políticas mais ortodoxas, para
que resistam como norma numa cultura que cada vez mais, nas voltas do fenômeno da
globalização, dialoga com o ritmo de assimilação cultural e de práticas de consumo na ordem
de uma unificação que se estreita a padrões “ocidentalizantes” (HALL, 2006).
Nesse âmbito de embates e disputas entre o presente de uma população que em parte se
abre para uma juventude que deseja consumir liberdade e o passado da Guerra da
Independência, que se arrasta pela força representativa dos líderes septuagenários e
octogenários da Frente de Libertação Nacional, se inscreve a produção de Daoud, e não o faz
com neutralidade. O autor assume uma posição e, aqui, há uma procura por evidenciá-la, no
sentido de demonstrar o que a sua voz, como escritor da ficção contemporânea argelina
propaga em termos de imagens das relações culturais que atravessam o seu contexto de
produção. A obra do autor além de revisitar com crítica e ironia o imperialismo francês, toma
sua posição pelo que acredita ser a liberdade individual no país, criticando a política local de
seu tempo e até incomodando argelinos desde os mais conservadores até os da esquerda
(SCHATZ, 2015). Dizem variadas personalidades da cena cultural e política contemporânea
do eixo França-Argélia e, sobretudo, os jornais argelinos mais nacionalistas que Daoud
escreve para agradar os franceses e alimentar a repulsa que a ex-metrópole não se preocupa
em esconder contra a cultura islâmica.
O caso é que seja em O caso Meursault, seja em suas crônicas nos jornais, leitores atentos
perceberão que Daoud não se mostra uma mente simplista, isto é, que defende sem ressalvas
os ideais dos grupos racistas e antiislamistas franceses por pura subserviência às editoras
ocidentais, ou que ataque cegamente o imperialismo francês, por conceber a Argélia como
afogada em problemas sociais unicamente pela exploração europeia. Nada é tão dicotômico e
absolutamente homogêneo ou transparente nas representações que Daoud cria em suas
composições. O que O caso Meursault põe a nu, como procurei expor, é justamente a
complexidade das posições dos sujeitos nas relações do passado e do presente pós-colonial
entre França e Argélia, posições atravessadas por contradições, tensões e ambivalências.
No seu romance, os exegetas franceses de O estrangeiro e o próprio Edward Said são
levados a uma reinterpretação com crítica; as marcas traumáticas da colonização e da ação
296
francesa são, sim, evidenciadas nas seleções estéticas do autor, tal qual comentei no Capítulo
4. Contudo, também a maioria da população argelina, as lideranças nacionais mais radicais
são criticadas pela subserviência a um tipo de prática fanática, ortodoxa do islamismo que
traria, em sua ótica, também consequências impactantes no desenvolvimento local e na
relação que a população poderia vir a travar com a liberdade. A presença de uma hipocrisia
visível nessa população, vista por Daoud, é desenhada e denunciada na obra, sobretudo por
vigorar em homens (como o próprio Moussa, “árabe” assassinado por Meursault) que se
dizem mulçumanos para policiar a liberdade alheia, supostamente defender a honra feminina,
mas ultrajariam o próprio Alcorão, consumindo álcool e agredindo mulheres, como a própria
mãe (dita valorizada na cultura local), e destilando variadas modalidades de misoginia.
Haroum, que ora se faz crítico de uma apontada parcela misógina islâmica, não consegue
esconder a própria misoginia; um crítico da dita ortodoxia islâmica que violenta,
paradoxalmente, as liberdades, não consegue deixar de invocar Deus, em seus hábitos
cotidianos e automatizados de fala, para mostrar-se chocado com a violência francesa de
Meursault e, ao mesmo tempo, evitar cometer certas crueldades, como assassinar um homem,
tal qual fez Meursault. Pelo que apresentam os próprios textos daoudianos, é difícil colocar
sua produção em “caixinhas” definidas pró ou contra “isso” e “aquilo” de modo estanque, fixo
e definido, sem que haja ressalva ou indicação de problemáticas abertas aparentes. Seu texto é
um emaranhado de posições, emoções, fechamentos e aberturas de questões inquietantes
sobre passado e presente, sobre o “pós-colonial”, sobre o que se pensar como sujeito argelino
décadas após a Revolução socialista da Independência, caracteriza como uma das mais
sangrentas da História (YAZBEC, 2010). Todos esses traços se interpenetram para arrebatar
os leitores e sacodir suas falsas certezas e ilusões de pureza.
Nessa conjuntura de complexidades, considero que estudar Daoud se faz relevante por
ensejar a tarefa crítico-política de contactar novas leituras menos cristalizadas e reducionistas
da memória argelina via ficção e, assim, criar espaços para que a literatura francófona das
periferias colonizadas possa circular e, portanto, oferecer alargamento às possibilidades de se
refletir sobre a História, a Geopolítica do imperialismo, sobre  as escolhas estéticas
contemporâneas de se reconfigurar o mundo de um lugar diverso do canônico. Procurei, neste
estudo, responder a alguns questionamentos gerais e específicos cujas respostas aqui traçadas
só posso reconhecê-las como provisórias, porque apoiadas na minha subjetividade como
analista que percorreu trajetos investigativos particulares, em condições histórico-culturais
específicas, passíveis de suplementações e questionamentos.
297
Relembro as questões principais lançadas na introdução do trabalho que foram
verdadeiros motores de formulação da tese então sustentada, a fim de pontuar, no presente
desfecho da investigação, a que premissas cheguei. Indaguei de modo geral: 1) Que imagens
da Argélia a ficção de Daoud oferece ao mundo contemporâneo? 2) Haveria em Daoud
espaço para uma outra Argélia diferente da camusiana e da exposta no filme de André
Techinè, “Adeus à noite” (2019) no qual estrelava Catherine Deneuve? Passo a fazer o
apanhado das investigações.
A memória que Daoud oferece ao mundo contemporâneo acerca da Argélia é a de um país
cujo campo literário ficou decididamente marcado pela produção de Camus, um país que
nesta mesma produção teve seus sujeitos silenciados e assassinados, uma vez que eram árabes
na conjuntura da violência colonial francesa. Se Camus elabora esteticamente tal
silenciamento que, como disse, oportuniza que a partir dele se realize uma leitura
contrapontística, tal como a entende Said (1995), revelando uma dinâmica da violência
colonial da qual precisa se ter uma memória, Daoud, por sua vez, suplementou a memória do
seu país, a partir de sua perspectiva diversa. Na ficção argelina contemporânea, ele mostrou
que, pela paródia de um clássico ocidental, é possível reescrever a história dos argelinos que
figura nesse mesmo clássico e o fez utilizando a própria língua do colonizador para tanto. Não
só a própria língua, mas a própria estrutura romanesca prestigiada de um agraciado com o
Nobel da Literatura, utilizando-o, paradoxalmente, como fundamento/impulso para seu “voo-
mergulho” “subversivo-dependente”, que se coloca tanto como homenagem a Camus quanto
como sua reavaliação crítica. Esta dinâmica contraditória e polivalente da prática paródica
(HUTCHEON, 1991) é o que é posto em cena em O caso Meursault, um romance inserido no
campo pós-moderno.
A respeito da contradição que é típica da poética pós-modernista, Hutcheon assinala: “A
descentralização de nossas categorias de pensamento sempre depende dos centros que
contesta, por sua própria definição (e, muitas vezes, por sua forma verbal)” (1991, p. 87). Ela
insiste que se veja no interior dessa dependência e dessa referência e reverência das obras pós-
modernas a parcela de ressignificação, de subversão e de suplementação que oferecem.
Principalmente, a canadense sugere que não se perca de mira o fato de que “a força dessas
novas expressões sempre provém paradoxalmente daquilo que contestam” (HUTCHEON,
1991, p. 87). Nesse sentido, que, aqui, fique remarcada a peculiaridade do fato de que a força
da voz descentralizada de Daoud encontra energias justo na força da centralidade de Camus.
Não há como, nem por um desejo que se considerasse contra-hegemônico, protagonizar o
298
estudo de O caso Meursault sem que seja atestada a sua dependência ao O estrangeiro.
Acontece que tal dependência é a mola da própria transgressão e suplementação crítica do
romance “clássico do pós-guerra.” Nesse cotejo entre os dois romances, seria ingênuo supor
que Camus, por ser um escritor ocidental, “roubaria a cena” neste trabalho e figuraria, pois,
como único destaque das reflexões traçadas, já que teria sido infinitamente aqui citado. Na
verdade, “Camus é a cena” para que Daoud o subverta num exercício crítico, reverencial e
suplementar, de modo que sempre que o francês apareceu aqui analisado, foi como um gesto
de mapear as ressignificações que Daoud interpôs ao O estrangeiro, fraturando-o ao mesmo
tempo em que o recompondo em novos moldes. Tal é a engrenagem da “tradução paródica
pós-colonial” do escritor argelino contemporâneo que aqui me dediquei a pesquisar.
Na suplementação de Kamel Daoud, pois, destaco, é formulada esteticamente uma nação
magrebina que carrega traumas irreparáveis do imperialismo, marcados nas veias
arquitetônicas das cidades e nas imagens que se guardam do mar (igualado a um espaço de
segregação, como um “muro” e a um “túmulo”, onde corpos se escondem do inimigo através
da morte, tal qual é simbologia marítima na produção francófona caribenha, de Glissant e
Chamoiseau). Sua ressignificação evidencia as cicatrizes emocionais nas famílias argelinas,
nas mães, nos irmãos que perderam seus entes de sangue durante os embates com a França.
Sua reescritura revela que existiriam mais que islâmicos ortodoxos e radicais na Argélia
contemporânea (ou em diáspora pelo mundo), mostrando que esses mesmos sujeitos
encarados como radicais carregam contradições e hipocrisias frente às palavras do Alcorão,
sugerindo que existem argelinos que, como Haroum, preferem encontrar Deus de outras
maneiras, que optam por entender que crer ou não em Deus é uma livre decisão de um sujeito,
como livre é a relação de crença que um leitor estabelece com as páginas de uma ficção. Sua
literatura arquiteta uma imagem de seu país, na qual um argelino que vive hoje em Orã
poderia falar em francês por vontade própria de resistir a algum tipo de opressão que ainda
restaria na região, pode dialogar civilizadamente com franceses, pode ser crítico ao passado
colonial e à França e, ao mesmo tempo, pode ser questionador do fundamentalismo islâmico,
que, ironicamente, foi a base para a libertação da colonização que aprendeu a criticar.
Em outras palavras, Sim, Daoud quebra certos estereótipos em torno de seu país, não
deixa de reafirmar outros, e, sim, apresenta, pela literatura, o que o cinema de André Téchine
não fez: uma diversidade de subjetividades na Argélia, uma ficção que grita por liberdade pela
via humanizada da arte. Por assim se portar, Daoud convive com “o ódio de alguns de seus
espectadores” mais religiosos, tendo recebido fatwa via facebook após uma entrevista para um
299
programa da TV francesa, On N’est pas couché (Não estamos dormindo), em que debatia o
romance premiado e reafirmava que a ortodoxia “havia se tornado um obstáculo ao progresso
do mundo muçulmano” (SCHATZ, 2015, p.2).58
A obra do escritor dialoga com a tendência de se afastar do que significa o Estado
Islâmico e sua prática de atentados terroristas verificada em muitas comunidades diaspóricas
muçulmanas. O movimento Not in my name/Pas en mon nom é um dos símbolos recentes
dessa tendência, tendo se iniciado nas redes sociais. Segue a descrição da campanha e sua
análise, a partir de Laurent Greilsamer, cofundador do Le Monde 1:

É uma imagem muito forte: uma jovem, com rosto enquadrado por um grande lenço
em cores pastel, vem nos dizer em inglês: “O Estado Islâmico não representa nem o
Islã nem muçulmano algum”. Só o tempo de uma frase e já um jovem, de cabelo
raspado e moletom, continua: “O que eles fazem é totalmente antiislâmico”. E assim
por diante, muçulmanos se sucedendo, uma jovem de blusa vermelha, um senhor
bigodudo. Esse clipe, concebido na Grã-Bretanha, tem uma energia rara. É muito
bom. De modo algum resignado ou submisso a uma injunção britânica. De modo
algum hipócrita. Sincero, pelo contrário, espontâneo. Soa como uma afirmação. Mas
quem são esses terroristas que pretendem falar por nós? Eles dizem cada um a sua
maneira. Essas pessoas são as porta-vozes da imensa maioria muçulmana silenciosa
que não encontra as palavras para dizer isso. Os muçulmanos são eles, explicam.
Muçulmanos livres, modernos. Que a organização Estado Islâmico se cale, pare de
reivindicar a tutela do Profeta. Not in my name! A expressão atravessou o Canal da
Mancha. As redes sociais se apropriam da fórmula na França, gerando rajadas de
tweets “Pas en mon nom” em resposta aos comunicados sangrentos do grupo Estado
Islâmico. Isso quer dizer, sim, nós somos desse país, solidários de cada um. E ressoa
como um ato fundador de emancipação (2016, p. 55-56).
Dessa forma, por seu conteúdo crítico ao fundamentalismo e ao radicalismo islâmico,
a produção de Daoud também se ajusta a esse desejo de demarcar uma identidade emancipada
que as comunidades muçulmanas, sobretudo os grupos de imigrantes no Ocidente e, em
especial, na França, apresentam frente à violência armada do Estado Islâmico. Nessa
conjuntura, Daoud, em O caso Meursault, apresenta um romance que oferece outra

58 Sobre as ameaças de morte contra Daoud, Schatz coloca: “Na tevê, ele não disse nada que já não tivesse
escrito em suas colunas ou no romance. Mas o fato de ter dito aquilo na França, país que governou a Argélia de
1830 a 1962, chamou a atenção de argelinos que tendem a ignorar a imprensa em língua francesa. Um deles foi o
obscuro imã Abdelfattah Hamadache, do qual se dizia ter sido informante dos serviços de segurança. Três dias
depois do programa, Hamadache escreveu em sua página no Facebook que Daoud – um “apóstata” e “criminoso
sionizado” – deveria ser julgado e executado em público pelo insulto ao Islã. Não estava exatamente
conclamando seu assassinato, uma vez que apelava ao Estado, e não a jihadistas freelancers. Mas a Argélia é um
país onde setenta jornalistas foram mortos por rebeldes islamistas durante a guerra civil dos anos 90, a chamada
Década Negra. Muitos desses assassinatos foram precedidos de ameaças anônimas por cartas, panfletos ou
pichações nas paredes de mesquitas. A “fatwa via Facebook” de Hamadache, como ficou conhecida, era
novidade de uma ousadia única, porque assinada. Provocou um clamor, e não apenas entre liberais. Ali Belhadj,
líder da proibida Frente Islâmica de Salvação (FIS), criticou duramente o imã, afirmando que ele não tinha
autoridade para declarar Daoud um apóstata e que somente Deus tinha o direito de decidir quem era ou não
muçulmano – um indício, disseram alguns, que a FIS enxergava em Hamadache um instrumento do Estado. De
fato, embora o ministro dos Assuntos Religiosos, Mohamed Aïssa, homem de modos amenos e inclinações
sufistas, tivesse saído em defesa do escritor, o restante do governo manteve uma neutralidade inexplicável,
recusando-se a reagir quando Daoud deu queixa de Hamadache por incitamento à violência” (2015, p.2-3).
300
representatividade muçulmana que agradaria às diversas comunidades de leitores críticos do
radicalismo islâmico, seja a comunidade ocidental, seja a própria comunidade muçulmana em
diáspora, a qual sofre, por sua vez, com o preconceito e o racismo dos grupos xenófobos, os
quais associam diretamente ir à mesquita a ir explodir-se e matar europeus nos grandes
centros. Tais sujeitos ensejam outro tipo de radicalismo: o que vem do ódio de uma grande
parcela de europeus, eleitores da extrema direita (ZIZEK, 2014) e que assim o fazem por
insistirem em esquecer a memória do imperialismo que os colocou na posição de Centro e na
rota do desejo periférico, por se recusarem a entender a responsabilidade do Ocidente nos
motivos de saída dos imigrantes de sua terra natal (HALL, 2003), guardando medo de perder
a identidade ocidental (SAYAD, 1998) e o poder sobre o próprio território.
Contudo, ainda que defensor da liberdade em um contexto que denuncia como autoritário,
o tom da produção daoudiana não se desenvolve de modo utópico e esperançoso; na verdade,
soa como um “lamento”, um “desabafo” de frustação, um versar sobre a consciência da
barbárie em que habitaria e que precisa ser dita, ser jogada ao público para que este a veja e a
enfrente, como um último gesto insurgente da arte, de um escritor que explica em suas
entrevistas não ser “islamofóbico, mas livre”, não ser “árabe”, mas argelino, escolher não
escrever em árabe pela carga devota à religião e, portanto, fetichizada, segundo ele, que
haveria na língua (MEDDI, 2016), escrevendo em francês para dialogar com leitores para
além dos muros que ilham a nação.
É significativo assinalar como Daoud em sua ficção questiona a ideia de ser “árabe”,
como se a denominação da identidade árabe fosse uma construção cultural de um olhar
ocidental, branco que deseja e precisa categorizar o “outro”, “o selvagem”, para dominá-lo e
circunscrevê-lo sempre ao seu alcance na demarcação da sua diferença. Em O caso Meusault,
o escritor reflete sobre a questão, através da fala de seu narrador Haroum, estabelecendo uma
analogia entre a formulação da identidade “árabe” à identidade “negra”, a qual, na sua visão,
seguiria o mesmo mecanismo categorizador e racista: “Árabe. Eu nunca me senti árabe, sabia?
É como a negritude, que só existe a partir do olhar do branco. ... Foi necessário, então, o
olhar do seu herói para que o meu irmão virasse um “árabe” e morresse por isso” (DAOUD,
2013, p. 74-75). O documentário Eu não sou seu negro, dirigido pelo haitiano Raoul Peck,
cujo roteiro é retirado do livro nunca finalizado e inédito do americano James Baldwin (1924
– 1987), intitulado Remember This House (1979), de fato, invoca a mesma prerrogativa de
Daoud e provoca a branquitude a reconhecer a sua responsabilidade histórica pelo racismo
atual que violenta a sociedade decorrente da escravidão que tanto enriqueceu o colonizador.
301
Questionar uma identidade criada para segregar é o que interliga, nesse sentido, as duas obras
(na literatura e no cinema) e o que carimba a importância que assumem em tempos
contemporâneos nos quais, passado o colonialismo do século XIX, batalhadas as
independências às custas de sangue e exílio, persistem suas marcas pós-coloniais que
necessitam ser pensadas por vias artísticas, dado que a arte é o campo aberto para multiplicar
sentidos, alargar as possibilidades do real e redimensionar eticamente nossas escolhas em
comunidade (WALTER, 2015). Contudo, a recusa em ser árabe que atravessa o personagem e
está no autor (ele assim declara nas suas entrevistas) para além de ser uma recusa do olhar
ocidental para o sujeito argelino, é também a recusa de um sujeito argelino a se ver como
essencializado pela vigília cultural que, na sua percepção, domina em seu próprio país, para
que as únicas formas de expressão sejam uma língua e uma única espiritualidade que estão
entrelaçadas, as quais ele não mais reconhece fora de amarras que apanham a sua liberdade
como jornalista e ficcionista. Recusar a identidade árabe, por esse prisma, seria escolher ser
livre, na visão do autor, e duplamente: da imposição racista europeia e do controle político
local atravessado pelo radicalismo islâmico. Romper seria acionar formas particulares de suas
próprias independências.
A ponte entre a ficção e as crônicas de Daoud se faz arquitetar a cada vez em que o autor
escreve, publica, posta ou aparece nos canais televisivos magrebinos ou franceses. De modo
semelhante à atuação de Camus nos jornais do seu tempo, em que o escritor francês se
mostrava um intelectual de destaque e se envolvia em polêmicas por suas posições por vezes
dissonantes dos quadros da esquerda (YASBEC, 2010; SOARES; 2010), as quais estavam
versadas em A peste, O estrangeiro, A queda, Daoud também faz da sua literatura um
contínum (diferido) de sua prática jornalística. Em Mês indépendances (2018), há duas
crônicas que muito se estreitam com os sentimentos de revolta e crítica que pairam na
narrativa de Haroum em O caso Meursault e que, portanto, merecem menção nestas
considerações finais em torno do escritor argelino. São elas: “L’inévitable france algérienne”
(Samedi 21 de décembre 2013) e “Est- Il possible d’étre heureux em Algérie?” (Jeudi 5 mar
2014). Na primeira, destaco a vibração da crítica pela ironia delegada às formas de
autoritarismo que se estreitam entre Argélia e França; na segunda, ressalto a iniciativa crítica
pela frustração revelada na descrença da felicidade em seu país.
Em “L’inévitable France algérienne”, uma relação afetiva é estabelecida entre a França e
a Argélia como se os países fossem um “casal” de relacionamento complexo e ambivalente. O
302
quadro se assemelha bastante à relação que é estabelecida entre colônia e metrópole em O
caso Meursault. Recorto um trecho:

Vu d’ailleurs, ce vieux ménage qui n’est pas une histoire d’amour, ni une histoire de
célibataires, lasse un peu. Voici ce vieux couple–qui a deux religions, une histoire,
une guerre, des milliers d’enfants qui ne sont pas heureux–qui agace le monde par
ses histoires de ménage et de divorce perpétuelles. En gros, et pour résumer, la
France est encore nécessaire aux élections algériennes qui tournent autour comme
une interrogation liée à un assentiment. De Gaulle est français mais, curieusement,
l’Algérie politique est très gaulliste. Pas française, mais elle aime trop la tradition de
l’homme qui sauve, du militaire messianique, du général qui unit le pays 59
(DAOUD, 2018, p. 303).
É perceptível o tom sarcástico de Daoud a ironizar que a Argélia, tão nacionalista,
orgulhosa pela Revolução (1954-1962) se utilize do mesmo recurso do autoritarismo
messiânico representado pela figura masculina de um militar no qual se baseou a França
colonial. A mímica do gaullismo francês operado pela Argélia décadas após a independência
seria a hipocrisia nacional que o escritor denuncia. Por outro lado, a mesma França que
sacraliza a República em um lugar privilegiado da sua memória (NORA, 1989), globalmente
célebre pelo lema da “liberdade, igualdade e fraternidade”, pratica o extremismo da
segregação contra imigrantes, reproduzindo condutas intolerantes semelhantes ao salafismo
contra o qual se opõe. Cito Daoud:

À la fin? La France devient amusante quand elle cède au salafisme du Front national
pour croire se débarrasser de l’Algérie. Salaf c’est l’ancêtre, selon la traduction.
Qu’il soit Gaulois pur rêvé ou Arabe noble fantasmé. Les salafistes de la France sont
l’extrême droite, ceux de l’Algérie sont, eux, des islamistes. Les deux rêvent de
revenir aux temps purs où les sangs n’étaient pas mêlés à la carte de séjour. Mais?
Mais cela n’est pas l’histoire, et l’histoire coule vers le lendemain, toujours. Il est
amusant de voir comment chacun des deux pays fait mine de se débarrasser de
l’autre puis, lentement, tente de se faire passer pour le visiteur étranger, le vis-à-vis
qui marque sa distance, le parfait poli neutre et sans couleur. Il existe cependant,
malgré ses détracteurs fiévreux, une “France algérienne” qui n’est pas la
conséquence de la colonisation positive, ni l’œuvre du pied-noir, de la

59 Segue tradução livre: Vista de outro lugar, esta velha casa que não é uma história de amor, nem uma história
de solteiros, cansa um pouco. Aqui está esse velho casal — que tem duas religiões, uma história, uma guerra,
milhares de crianças que não estão felizes — que irritam o mundo com suas histórias de família perpétua e
divórcio. Basicamente, e resumindo, a França ainda é necessária nas eleições argelinas que giram em torno de
uma questão relacionada a um consentimento. De Gaulle é francês, mas, curiosamente, a Argélia política é muito
gaullista. Não é francês, mas ela ama demais a tradição do homem que salva, o soldado messiânico, o general
que une o país.
303
décolonisation ou de l’amour ou de l’entente ou du partage 60 (DAOUD, 2018, p.
304).
Assim, o escritor apresenta a sua marca no cenário do jornalismo internacional:
ironizar as hipocrisias de um país que reproduz as misérias do outro. Ambos o fazem no afã
de demarcarem fronteiras que, ao fim das contas, derretem-se e revelam as fraturas e
imbricações entre as duas culturas que arrastam uma relação histórica cuja natureza nem é de
amor, nem de afastamento completo. Sua crônica revolve as contradições insolúveis entre ex-
colônia e ex-metrópole na esfera pós-colonial, tal qual é a vibração da narrativa de Haroum.
Em “Est- Il possible d’étre heureux em Algérie?” a negação total como resposta à
questão proposta, que vem como carga enfática e repetitiva ao longo de todo o
desenvolvimento do texto, enseja os mesmos sentimentos de frustração, trauma, lamento,
revolta diante da precariedade da liberdade que ele defende haver na Argélia. Não há um fio
de esperança nessas palavras de Daoud:

On n’est pas heureux car ce pays est construit, par nous, commeune prison, une salle
d’attente ou un camp. Beaucoup d’Algériens disent qu’on ne peut pas être heureux
en Algérie, donc. C’est un pays qui ne rit pas, où l’amour est un crime, le corps un
clandestin, et où le but des polices et de l’ordre est de nous enfermer, nous
immobiliser, nous séparer et nous pourchasser. Où la religion est une inquisition ou
une bigoterie, où l’identité est un arôme artificiel, où la liberté est une menace pour
les politiques et où être jeune, c’est avoir mal vieilli. On n’est pas heureux en
Algérie parce que le bonheur n’est pas le but de l’Algérie. C’est très simple 61
(DAOUD, 2018, p.315).
Sobre ser feliz, é consabido que Camus, em diálogo com suas referências europeias
sob os impactos bélicos e nazistas de meados do século XX, escreve O mito de Sísifo (2018a)
para afirmar que, não havendo paraíso, o trajeto presente é o único terreno concreto que tem o
ser humano, um trajeto que qualificado como desprovido de sentido, mecânico (tal qual a
modernidade capitalista, moldada pela exploração diária do trabalho operário), cansativo,
pesado, no qual os indivíduos estariam, de modo análogo ao personagem mítico grego, Sísifo,

60 Segue tradução livre: No final? A França torna-se engraçada quando cede ao salafismo da Frente Nacional
para acreditar que se está se livrando da Argélia. Salaf é o antepassado, de acordo com a tradição. Quer ele seja o
puro gaulês sonhado ou o nobre árabe fantasiado. Os Salafistas da França são de extrema-direita, os da Argélia
são islamistas. Ambos sonham em regressar aos tempos puros em que o sangue não era misturado com a
autorização de residência. Mas? Mas essa não é a história, e a história flui para o dia seguinte, sempre. É
divertido ver como cada um dos dois países finge livrar-se do outro e depois tenta lentamente fazer-se passar
pelo visitante estrangeiro, o vis-à-vis que marca a sua distância, o perfeito neutro e incolor educado. No entanto,
apesar dos seus detratores febris, existe uma "França argelina" que não é a consequência da colonização positiva,
nem do trabalho do pied-noir, da descolonização ou do amor ou da compreensão ou da partilha.
61 Segue tradução livre: Não estamos felizes porque este país é construído, por nós, como uma prisão, uma sala
de espera ou um campo. Muitos argelinos dizem que não se pode ser feliz na Argélia. É um país que não ri, onde
o amor é um crime, o corpo um clandestino, e onde o objetivo da polícia e da ordem é nos prender, nos
imobilizar, nos separar e nos caçar. Onde a religião é uma inquisição ou um fanatismo, onde a identidade é um
aroma artificial, onde a liberdade é uma ameaça para os políticos e onde ser jovem é ter envelhecido mal. Não
somos felizes na Argélia porque a felicidade não é o objetivo da Argélia. É muito simples.
304
a empurrar uma enorme pedra para o cume de uma montanha e, em sequência, a rolá-la até
sua base, ininterruptamente, aprisionados a tal destino irracional. Um trajeto, pois, “absurdo”.
Enfrentar que não há esperanças (sobretudo de que exista um paraíso divino, no qual após a
morte, haveria “salvação”) é um modo de o sujeito camusiano se emancipar das ilusões nesse
contexto62 e manter-se consciente da “certeza de um mundo esmagador” (CAMUS, 2018,
p.68), na medida em que se dispõe ao “confronto com sua própria escuridão” (CAMUS, 2018,
p. 68). Mas, é preciso destacar, aqui, com bastante ênfase: para Camus, anular as esperanças
não seria necessariamente deixar de desejar viver 63, pelo contrário: “viver é fazer com que o
absurdo viva. Fazê-lo viver é, antes de mais nada, contemplá-lo” (2018, p.68). Assim, aceitar
racionalmente o absurdo e abandonar as esperanças fabricadas pela moral social é uma forma
de libertação64: “O retorno à consciência, a evasão para fora do sono cotidiano representam os
primeiros passos da liberdade absurda” (CAMUS, 2018, p.72). Nesse panorama, o filósofo
argumenta que é necessário imaginar, sim, Sísifo feliz65 (CAMUS, 1942).
Como “duplo” ficcional moderno de Sísifo, Meursault, em O estrangeiro, está ciente
do absurdo que enfrenta, se faz indiferente aos preceitos cristãos, à morte e busca desfrutar do
seu presente. Soares (2010) destaca que o enfrentamento do absurdo em Camus se faz pelo
desfrute sensorial do presente. “Hoje mamãe morreu”, inicia Meursault sua narrativa, mas, tal
qual Sísifo diante da sua tarefa, “também ele sabe que está tudo bem” (CAMUS, 2018, p.
141) e, então, se preocupa em seguir a vida e alimentar seu corpo de desfrute no agora. Seja
em um agradável banho de mar no verão com a namorada sensual e sorridente, seja num
“flanar” pela multidão do conforto de sua varanda enquanto fuma e come chocolate, num sexo
após a praia, numa seção de cinema, num restaurante que se frequenta, até mesmo em uma
cadeia de onde aguarda o cadafalso. É possível, portanto, recuperando pontos da diegese do
romance, “imaginar Meursault feliz”; ele é livre diante de seu corpo para desfrutar do presente
em toda a sua sensorialidade, justo porque as esperanças não mais o iludem, pelo contrário, o

62 Cito Camus em O mito de Sísifo sobre o homem absurdo: “Ele reconhece a luta, não despreza em absoluto a
razão e admite o irracional. Recobre assim com o olhar todos os dados da experiência e está pouco disposto a
saltar antes de saber. Ele só sabe que, nessa consciência atenta, já não há lugar para a esperança” (2018, p.51).
63 Cito Camus sobre a recusa do homem absurdo ao suicídio: “Mas eu sei que para manter-se, o absurdo não
pode ser resolvido. Recusa o suicídio na medida em que é ao mesmo tempo consciência e recusa da morte”
(2018, p.68).
64 Para entender a filosofia de Camus como uma forma de “sagrado moderno” e de “evangelho da revolta”, vide
tese de doutorado de Caio Caramico Soares (USP), já referenciada neste trabalho anteriormente no capítulo 4.
65 Cito Camus no último parágrafo de sua obra filosófica: “Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas
sempre reencontram o seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas.
Também ele acha que está tudo bem. Esse universo doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada
grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria
luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz” (2018, p.
141).
305
absurdo o liberta para viver e para matar; ele é livre na Argélia colonial para narrar o que
narrou, sobretudo, por ser francês.
Quanto à felicidade em Daoud, seu referencial reflexivo é o século XXI, no qual
dialoga com as questões argelinas de seu lugar argelino, como visto na crônica, mas também
com questões que envolvem os árabes em seus países de origem e em diáspora pelo Ocidente.
Nesse âmbito, o escritor produz sua obra jornalística e ficcional em face do quadro observado
por Eugene Rogan em Os árabes, uma história:

Não seria um exagero descrever os anos posteriores aos ataques do Onze de


setembro como os piores da história árabe, com a Primavera árabe servindo como
um breve hiato, embora trágico. O que Samir Kassir observou em 2004 é cada vez
mais verdadeiro: “Não é agradável ser árabe hoje em dia”.
Durante a maior parte dos últimos dois séculos, os árabes lutaram por sua
independência das potências estrangeiras. Ao mesmo tempo procuraram restringir o
poder autocrático de seus governantes. As revoluções da Primavera árabe
representam o último capítulo de uma luta centenária por um governo transparente e
pelo Estado de direito (ROGAN, 2021, p. 22).
As palavras de Rogan retomam o já dito sobre a Argélia por Fanon (1965) a respeito
dos grupos nacionalistas islâmicos que tomaram o poder no Pós-independência, e encontram
as reflexões de Achille Membe (2019) sobre as sociedades pós-coloniais francófonas da
África, nas últimas décadas, sobre o autoritarismo das elites locais, submetido, muitas vezes
ainda ao paternalismo francês, o qual, segundo o autor, esconde “atitudes racistas
maldisfarçadas” (MEMBE, 2019, p.101). Para Membe, na verdade, o século XXI, na atuação
das elites locais, está a perpetuar as relações de dependência e explorações coloniais:

Colônia, neocolônia, pós-colônia: tudo seria o mesmo teatro, os mesmos jogos


miméticos, com atores e espectadores diferentes (pelo menos!), mas com as mesmas
convulsões e a mesma injúria. É esse, por exemplo, o ponto de vista dos militantes
anti-imperialistas, para os quais a colonização francesa na África nunca terminou.
Ela teria simplesmente mudado de rosto, passando a usar mil outras máscaras (2019,
p. 99).
Dessa forma, o cenário da ficção de Daoud, a qual se torna também, em certo sentido,
uma “extensão” de suas inquietações como pensador e jornalista, como ocorrido com Camus,
arremato, não conferiria, na sua visão, aqui “colhida” e apresentada, campo para que se
projete na arte a felicidade de modo semelhante ao do escritor francês. Em se tratando de O
caso Meursault, vejo, a partir das análises aqui propostas, que de Haroum, não posso dizer o
mesmo do dito sobre Meursault: que se sente “livre” para enfrentar a desesperança e para
encontrar felicidade no desfrute sensorial do corpo no presente. Não há, pelo que pude
conferir neste estudo, muitas frestas de felicidade na sua trajetória construída no romance
daoudiano. A memória da fome, da terra tomada, do irmão assassinado, da família devastada
306
pelo luto, da infância e de um futuro tomados pelos impactos da convivência com uma mãe
emocionalmente destruída pelo assassinato do filho; a constatação presente das cidades sujas
e “fecundadas” pelo estrangeiro que as “estuprou”, deixando seu nome nas placas dos cafés
“num dialeto que ninguém entende”, das mulheres que se aprendeu a odiar, da censura social
sobre estar num bar, de onde se fala com a certeza de uma vigilância autoritária que julga
como desabonada a liberdade de beber e conversar, são pedras talhadas na obra como muito
pesadas para Haroum levar ao cume da montanha. Assim, tal como o romance se desenha,
não seria possível imaginar o trajeto de Haroum como passível de encontrar mais alegrias que
tristezas, porque seu desfrute sensorial do agora estaria interditado no seu “país dominado”.
Camus e Daoud, portanto, não encontrariam, do mesmo modo, a felicidade para seus
narradores que enfrentam “a escuridão do mundo” cada um a sua maneira. Os autores partem
de lugares e pontos de vistas diferentes e os resultados de suas buscas são desiguais nas
representações estético-literárias que emitem sobre a realidade. No escritor francês, premiado
pelo Nobel em 1967, encontrar a felicidade passaria por um esforço filosófico para “estar
sóbrio”, a fim de se enfrentar o absurdo e libertar-se das ilusões cotidianas a partir dele (o que
foi possível em O estrangeiro para “o homem absurdo”, Meursault, dono de seu corpo no
“subir e descer da montanha”). No escritor argelino, vencedor do Goncourt de 2015, achar a
felicidade passaria por, por exemplo, ter direitos mais básicos, como o de ir e vir com
liberdade. Estar feliz seria, nessa ótica, partilhar algo “simples” do cotidiano como o
apresentado na narrativa de O caso Meursault: um cidadão argelino poder dialogar livremente
sobre a vida, a ficção, a política, a religião, sobre o passado colonial e seus traumas, sobre o
presente e o futuro com qualquer outro cidadão ou com o próprio francês. A felicidade
passaria por poder amar, por ver nas ruas, e não em “extinção” 66, mulheres que poderiam
escolher desfrutarem de relações por divertimento, não por “casamento”, que poderiam ler,
entrar nas universidades, escreverem na língua que desejassem. Enfim, a felicidade passaria
não exatamente por manter-se “sóbrio” e atento sobre a desesperança (como em Meursault),
mas por conseguir, por exemplo, ter a escolha de, com um copo de vinho ou uísque na mão,
poder sentar-se em um bar para alterar a própria consciência entre um drink e outro. Haroum é
um personagem que, pela ficção, realizou parcialmente essas ações no romance, pelo menos a
de beber e dialogar com um estrangeiro francês, mas não sem deixar de apontar haver a
sombra da censura daqueles espectadores tomados pelo “ódio selvagem” (DAOUD, 2013, p.
165). Na realidade jornalística, contudo, a crônica de Daoud afirma não ser possível ser feliz
66 “Ela pertencia a um tipo de mulher que não existe mais neste país: livre, conquistadora, insubimissa e
vivendo o seu corpo como um dom, não como um pecado ou uma vergonha” (DAOUD, 2016, p. 156).
307
na Argélia. Na verdade, Daoud assim o escreve, porque demonstra entender que sua ficção o
coloca de frente com a liberdade, mas com as interdições e as ameaças de morte. Seu romance
figura como uma estetização das infelicidades que problematiza diante do contexto com o
qual dialoga.
A obra de Daoud desafia as sociedades francesa e argelina ao pensamento, à
autocrítica. A infelicidade de Haroum vai atravessando O caso Meursault por várias facetas
estéticas selecionadas pelo ficcionista, aqui analisadas. Recomponho-as:
1) a narrativa memorial, ressentida, repetitiva e lacunar, em diálogo com um
narratário francês, desnomeado, mas dele dependente para que o narrar se instale
com escuta; uma construção retórica para corrigir a história Meursaultiana e
reiventar o passado, permeada, contudo, de traços que a subertem e a minam;
2) a ressignificação do sagrado e do religioso, com tendência crítica ao islamismo
ortodoxo;
3) a reconfiguração da geografia das cidades e do mar, para refazer a memória local
e atrelá-la à dominação (masculina) francesa da terra argelina (feminina), bem
como ao estupro, à prostituição e à misoginia, o que demonstra como espaço
ficcional e gênero se interligam no texto;
4) a ressignificação das relações com a figura materna, recriando-se a maternidade
com simbologia ambivalente: a) legitimadora da vítima árabe diante do racismo
francês que desconsiderou sua vida como passível de luto e b) culpabilizada por
não ter cuidado “devidamente do filho”, na ordem patriarcal, gerando-lhe traumas
que afetaram a sua masculinidade hegemônica gravados em sua própria
musculatura;
5) a recriação das imagens das mulheres. As argelinas, na condição de amantes além
de figurarem como prostitutas, ressurgem, na figura de Mariem, com liberdade
para recusarem o casamento, usarem o corpo como queiram, e estudarem nas
universidades; as francesas aparecem no texto em disputa com as argelinas em
situações de racismo mútuo e violência verbal, o que retrata as tensões entre o
gênero feminino em suas pluralidades na Argélia.
6) A presença da mímica do narrador casmusiano é acionada para que se ressalte a
diferença entre ambos os personagens no âmago de suas semelhanças;
A tradução (traducere/translatio) paródica pós-colonial de O estrangeiro em kamel
Daoud, com tais contornos, “leva adiante” Camus na tradição literária francófona do
308
Magrebe, transformando o clássico francês, alocado numa Argélia colonial, numa plataforma
para que o mundo reflita sobre a Argélia pós-independência, pós-Primavera árabe e,
principalmente, sobre “L’inévitable France algérienne”.
Procurei demonstrar aqui, portanto, como se constituiu esteticamente esta tradução que
O caso Meursault opera do romance O estrangeiro. Inicialmente, demarquei que o âmbito da
presente pesquisa são os Estudos pós-coloniais, realizando, em seguida, a convite do texto
daoudiano, uma revisão feminista decolonial das principais abordagens críticas do século XX
em torno da obra francesa, desvelando, nesse movimento, novas interpretações que assinalam
o papel decisivo das masculinidades hegemônicas e da maternidade na trama e, assim, retiram
a leitura do clássico de lugares cristalizados e falocentrados. Apontei também que novas
ressignificações Daoud imprimiria ao texto de Camus, trazendo à tona um revolver da
memória coletiva de seu país, agora a partir da perspectiva descentralizada da voz argelina.
Nesse percurso, pude mapear, por fim, os principais tons da visão do escritor como
representante contemporâneo da ficção da Argélia. Acredito que, com essa arquitetura, este
trabalho oferece um ponto de partida possível, entre tantos outros tateáveis, para que a voz
daoudiana se propague na América Latina e fora do domínio Magrebe-França. Que ela se
alastre, então, não exatamente de modo “espelhado”, mas, assim faço votos, de modo
“problematizado” e transformado em novas e diversas veredas de investigação. O que me
resta, agora, é desejar o questionamento de meus leitores. Sigo em direção ao cadafalso do
tempo, que, certamente, revelará as fronteiras interpretativas que a minha ótica, hoje, não foi
capaz de cruzar, apenas de pressentir, mas não por causa do sol.
309
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