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Macapá/AP
2023
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA
Macapá/AP
2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central/UNIFAP-Macapá-AP
Elaborado por Mário das Graças Carvalho Lima Júnior – CRB-2 / 1451
_________________________________________________________________________
SILVA, Amanda Cristina Souza da. Mulheres de vida livre: prostituição e mundos do trabalho na Amazônia setentrional
(1964-1980) . Orientador: Sidney da Silva Lobato. 2023. 175 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em
História. Universidade Federal do Amapá, Macapá, 2023.
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA
Banca Examinadora:
Macapá/AP
2023
À minha mãe, Maria José, por sonhar comigo.
Ao pequeno Oliver Antônio, por trazer luz à minha vida novamente.
À Lassie, pela companhia e pelas alegrias.
AGRADECIMENTOS
Iniciar o mestrado e ter ele interrompido por uma pandemia que vitimou milhões de
pessoas ao redor do mundo e milhares de brasileiros não foi uma tarefa fácil. Depois, ainda no
ano de 2020, o estado do Amapá sofreu um apagão energético que expôs o descaso dos órgãos
públicos para com a crise que assolava a população amapaense. Nos últimos anos, a educação
e a pesquisa brasileiras também sofreram grandes cortes orçamentários, o que aprofundou a
precarização das universidades públicas. No final do governo negacionista e inimigo da classe
trabalhadora, a educação brasileira sofreu mais um duro golpe: o corte de bolsas de pesquisa
Capes. Tal corte acarretou o atraso no pagamento das bolsas de milhares de estudantes de
pós-graduação do Brasil, inclusive da minha. Termino a escrita dessa dissertação com alívio e
a certeza de que produzir ciência em um contexto de emergência sanitária, política, social e
econômica é um ato de resistência. Assim, inicio agradecendo à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e à Fundação de Amparo à Pesquisa
do Amapá (Fapeap) pelo financiamento dessa pesquisa.
Nos últimos três anos contei com o apoio e a colaboração de muitas pessoas. Começo
agradecendo à minha família pelo apoio e pela saúde de todos. Aos meus pais Maria José e
Adilaudo, minha gratidão pelo incentivo a avançar na trilha da educação. À minha mãe,
agradeço pelo investimento no meu crescimento pessoal e profissional. Obrigada por não
soltar a minha mão. Nós duas para sempre, mamãe. Agradeço também à minha avó Maria
Monteiro, minha tia Eli, meu irmão Mateus e minha prima Camila, esta última pelas ajudas
estruturais durante os eventos científicos on-line.
Agradeço ao meu orientador por me ajudar a trilhar o caminho da pesquisa e escrita
dessa dissertação. Muitas vezes me ajudou a não desviar o caminho, quando eu estava perdida
e não sabia o que fazer. Que sorte eu tive de ser orientada por um profissional tão generoso.
Obrigada pela compreensão, professor. Sou grata ao corpo docente do PPGH-Unifap, um
programa de pós-graduação jovem, mas aguerrido. Agradeço aos colegas do Laboratório de
Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia (Lehstam/Unifap), que muito
contribuíram para a realização dessa pesquisa e para a minha formação como pesquisadora, e
ao Grupo de Pesquisa Democracias e Ditaduras (GPDD/Unifap), especialmente às professoras
Júlia Monnerat e Maura Leal. Também agradeço à Cecília Bastos, minha preceptora no
estágio em docência realizado no curso de Licenciatura em História da Unifap. Agradeço às
valiosas contribuições de Lara de Castro e Maria Luiza Ugarte no exame de qualificação e na
defesa desta dissertação.
Meu muito obrigado ao historiador Marcelo Jacques, ao museólogo Michel Ferraz e ao
arquivista Apoena Ferreira, funcionários da Comissão de Memória do Tribunal de Justiça do
Amapá, pela ajuda na coleta dos processos judiciais. Estendo os agradecimentos aos
funcionários do Almoxarifado do Governo do Amapá por me auxiliar a encontrar o Livro de
Registro de Ocorrências de 1969. Tal foi a minha surpresa quando, na escrita desse texto,
descobri que o endereço do Almoxarifado abrigou um dos locais de prostituição estudados
nessa dissertação.
Agradeço aos queridos Higor Pereira, Marcella Viana e Marlos Vinícius Matos,
amigos que a Unifap me deu e que dividiram comigo as angústias e incertezas da
pós-graduação. Sou grata aos amigos Francisco Antonio, Alan Carlos, Leandra Leal, Nariane
Almeida e Maria Aldeliza pela amizade e por me ajudarem a respirar ares “fora da academia”.
Amo vocês.
Por último, por mais que não saibam, agradeço aos meus filhos de quatro patas. Foram
minha companhia nos tempos de isolamento da Covid-19. À minha gataria pelo amor, pelos
risos e carinhos. À minha Lassie, que me acompanhava nas aulas e eventos remotos, algumas
vezes deixava escapar um latido ou aparecia na frente da câmera, e que infelizmente partiu em
2022.
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou
me levantar.
Throughout the dissertation, we seek to fulfill the objective of analyzing the daily life of
prostitution in TFA with a focus on gender relations and class experiences, during the
business-military dictatorship. For this, we looked into documentary sources that enabled us
to answer our initial questions. Our investigative work sought to answer the following guiding
questions: how do the conceptions of honor of the working class from Amapá appear in the
documentation? How did the agents of the dictatorial regime deal with the prostitutes and the
TFA leisure spaces? What were the coexistence networks built by the prostitutes and by those
who interacted with them as a survival strategy? Based on the concepts of gender and
experience and based on the analysis and confrontation of police incidents, criminal
processes, journal articles and interviews, it was possible to infer that: the preservation of
virginity and modesty at all costs was an ideal of the ruling class only partially performed by
the working class, as workers' morals were more flexible; while nightclubs and taverns,
frequented by working-class men and prostitutes, were constantly guarded, including the
presence of territorial guards inside the establishments on duty, social clubs, to which
politicians, soldiers, businessmen and civil servants were regulars, were honored by the press;
TFA prostitutes built coexistence networks, woven by work, solidarity, love, kinship,
friendship and neighborhood; the common experience of being a prostitute did not always
result in bonds of solidarity and friendship, as motivated by jealousy and strife, the prostitutes
entered into conflicts that sometimes resulted in physical violence.
Introdução ................................................................................................................... 13
1.2. “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a
doença social da prostituição ………………………………………………………. 42
1.3. Trabalho doméstico e outros ofícios honestos das mulheres amapaenses ....... 56
2.1. Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais ... 82
3.3. “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate
em Macapá .................................................................................................................. 151
Introdução
foram criadas medidas sanitárias para controle das prostitutas, o que implicou na realização de
exames médicos forçados. Na Inglaterra, Tristan denunciou “a arbitrariedade da polícia, que
punia as prostitutas, e a conivência dos governos, que deveriam combater a prostituição e não
regulamentá-la”.3 Para ela, a prostituição era um tipo de morte física e moral para as mulheres
e deveria ser combatida.
Para Marx e Engels, a “comunidade de mulheres” pertence à sociedade burguesa, ou
seja, é uma criação do capitalismo e da propriedade privada. Para ambos, com a queda do
capitalismo, a prostituição teria o seu fim.4 Paradis, a partir disso, aponta que a transformação
das mulheres em propriedade resulta na prostituição.5 Ela acrescenta que Engels, em sua obra
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afirmou que a primeira luta de
classes se deu entre homens e mulheres, na oposição entre os sexos.6 Para ele, o casamento da
família moderna se transformou:
3
Ibidem, p. 5.
4
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 48.
5
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 07.
6
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 70-71.
7
Ibidem, p. 77.
8
BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910, p. 146.
15
9
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 10.
10
Ibidem, p. 11.
11
Ibidem, p. 13.
12
KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977.
16
que fica claro é que a prostituição é uma instituição política e não apenas do âmbito privado,
então seria necessário associar essa atividade à família burguesa, à indissolubilidade do
casamento, à falta de autonomia das mulheres, à monogamia forçada e com todas as
contradições de uma sociedade capitalista.13
É relevante passar pelo pensamento marxista para entender a contribuição de seus
teóricos para as questões das mulheres, especialmente as teóricas no feminismo que
influenciaram os estudos de gênero. Para nós, isso é importante não apenas pelos estudos de
gênero, mas também porque o marxismo é a base da história social do trabalho.
Vera Cotrim, ao analisar os trabalhos produtivo e improdutivo a partir da teoria de
Karl Marx, elucida que o trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia para o capitalista e é
trocado por capital, enquanto o trabalho improdutivo não tem essa característica. Cotrim
elucida essas categorias retomando um exemplo clássico de Marx, o trabalho dos alfaiates:
Marx compara, para exemplificar, o trabalho do alfaiate contratado por um
capitalista para produzir uma calça que será consumida, com o trabalho do
alfaiate que produz a mesma calça na fábrica do capitalista. No primeiro
caso, o trabalho do alfaiate é improdutivo, pois se trocou pela renda, ou
dinheiro que é meio de troca: D – M. A mercadoria entrou para o âmbito do
consumo individual e o valor pago pela força de trabalho foi também
consumido; no segundo, a mesma atividade é produtiva porque foi trocada
por capital, gerando mais-valia para o capitalista: D – M – D’. Desta vez, o
valor pago pela força de trabalho não foi consumido, mas será realizado,
com o excedente de valor que criou, quando a mercadoria for vendida.14
13
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 17.
14
COTRIM, Vera Aguiar. Trabalho produtivo em Karl Marx: novas e velhas questões. Tese de Doutorado
(Departamento de História Econômica), Universidade de São Paulo, 2009, p. 45-46.
15
Ibidem, p. 47.
16
DOS SANTOS NETO, Artur Bispo. Trabalho produtivo e trabalho improdutivo nas “Teorias da Mais-Valia”
de Karl Marx. Em Debate, n. 8, p. 5-22, 2012, p. 15.
17
Ibidem, p. 16.
17
assim, um trabalhador que vende sua força de trabalho por conta própria é um trabalhador
improdutivo, já aquele que vende sua força de trabalho para uma grande empresa é um
trabalhador produtivo. Cotrim aponta que a esse trabalho consumido de forma individual e
trocado por renda se dá o nome de serviço:
18
COTRIM, Vera Aguiar. Op. Cit., p. 48.
19
SANTANA, Maísa Aguiar. Prostituição feminina: uma análise a partir das categorias trabalho e gênero.
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social), Universidade Federal de Sergipe,
2013, p. 72.
20
Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. livro Primeiro. 9. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1984, p. 202.
21
SANTANA, Maisa Aguiar. Op. Cit., p. 70.
18
palpáveis, não geram mais-valia e nem produção excedente para o capital porque “a prostituta
não vende seu corpo, não vende a si mesma, vende serviços de cunho sexual”22. Essa autora
entende a prostituição como um serviço, mas não a vê como trabalho. Ao longo dessas linhas,
vimos que serviço não é o oposto de trabalho, mas sim algo diferente de trabalho produtivo.
De fato, a prostituição não produz mercadoria material, mas produz renda para a prostituta,
que oferece um serviço sexual. Portanto, prostituição é trabalho, mas é trabalho improdutivo,
porque pode ser definida como serviço.
Marcel van der Linden aponta que no capitalismo fica subentendido que a
“verdadeira” classe trabalhadora é constituída pela força de trabalho dos assalariados livres
porque é mercantilizada. Mas, ele pondera: “essa hipótese de Marx, até onde eu saiba, nunca
foi corroborada, nem por análise teórica adequada nem por fatos concretos”23. Para Linden,
isso era óbvio porque explicava a formação do proletariado no Atlântico Norte, mas em todo
o mundo há diversas formas de trabalho. Isso quer dizer, por exemplo, que entre os
assalariados livres há a possibilidade de não se ser tão livres quanto poderia parecer. Linden
escreve que a ortodoxia marxista distingue cinco principais classes no capitalismo:
Este autor infere que, para Marx, a luta de classes se dá entre os capitalistas, os
proprietários de terra e os assalariados. Com isso, as outras classes não são percebidas como
importantes historicamente. Porém, Linden destaca que essas classes de trabalhadores são
mais fluidas do que nítidas, isto é, não são tão bem delimitadas como Marx imaginou.
De todas essas classes, a que mais nos interessa é o lumpemproletariado. Segundo
Marx, essa é uma classe perigosa e uma escória social, formada por vagabundos, criminosos e
prostitutas. Como pontuou Linden, trata-se de uma classe excluída do mercado formal de
trabalho, por isso é tida como “não classe”. Ele ainda esclarece que os trabalhadores das
22
Ibidem, p. 77.
23
LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas:
Editora Unicamp, 2013, p. 28.
24
Ibidem, p. 30.
19
classes citadas, em situação de miséria, podem se sentir forçados a roubar25, o que faz esses
trabalhadores ultrapassarem as fronteiras de classe. Marx elucida que as prostitutas quando
trabalham em bordéis são trabalhadoras assalariadas improdutivas26. A partir disso, Linden
considera que a classificação das prostitutas como parte do “verdadeiro lumpemproletariado”
na marxiana faz parte das considerações moralistas do período no qual Marx viveu.27
As trabalhadoras autônomas e assalariadas do Amapá buscavam meios de
sobrevivência e viam no serviço da prostituição uma alternativa de subsistir. Vimos como uma
prostituta de bordel é inserida no mercado de trabalho legalizado, ao passo que uma prostituta
de rua é classificada como parte de uma classe residual. Contudo, essa prostituta que constitui
o lumpemproletariado é também parte da classe dos trabalhadores porque ela pode exercer um
trabalho produtivo ou improdutivo concomitante ao serviço da prostituição.
A assistente social Maria Diniz realizou pesquisa sobre prostitutas que fazem suas
atividades nas ruas e cabarés de Natal, no Rio Grande do Norte, entre os anos de 2008 e 2009.
Ela apontou que a condição econômica é determinante para a inserção de mulheres das classes
populares na atividade sexual. Por meio de entrevistas, ela chegou à conclusão de que as
prostitutas veem a prostituição como um meio de sobrevivência e não como uma profissão.
Diniz aponta que:
Assim como Maísa Santana, Diniz não considera que a prostituição seja um trabalho
porque ver a prostituta como uma trabalhadora sexual é, segundo ela, uma forma de
naturalizar a mercantilização das mulheres. Diniz entende que a prostituição não é uma
escolha e nem que as mulheres que se prostituem desejam abraçar essa profissão, mas a isso
são impelidas pelo imperativo da busca de meios de sobrevivência. Quando não alcançam o
mercado de trabalho por falta de qualificação profissional e escolaridade, a prostituição é uma
25
Ibidem, p. 30-35
26
MARX, Karl. Theories of Surples Value, vol. I. Trans. Emile Burns (London: Lawrence & Wishart, 1969), p.
166-186.
27
LINDEN, Marcel van der. Op. Cit., p. 45.
28
DINIZ, Maria Ilidiana. Silenciosas e silenciadas: descortinando as violências contra a mulher no cotidiano da
prostituição em Natal-RN. 2009. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009, p. 93.
20
possibilidade de garantir moradia e alimentação.29 Maria Diniz aponta que algumas prostitutas
foram empregadas domésticas e desistiram desse trabalho por conta da baixa remuneração e
das constantes humilhações sofridas.30 A autora infere que as prostitutas vivem em situação de
pobreza e que isso determina se elas permanecerão ou não nessa atividade. Por fim, ela afirma
que o capitalismo empurra os sujeitos para o desemprego, para a precarização e aumento da
jornada de trabalho e que por isso os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado
formal de trabalho, o que atinge diretamente as mulheres, que encontram na prostituição um
meio de sobrevivência.31
À luz da pesquisa que realizamos, também entendemos que a prostituição é uma
estratégia de sobrevivência, mas a “escolha” que uma mulher faz entre se prostituir ou não é
mais complexa do que parece. O capitalismo mercantiliza e explora o corpo de mulheres, seja
no trabalho sexual ou nos trabalhos ditos comuns, como o doméstico ou o operário. Uma
mulher sem escolaridade e sem qualificação profissional pode ter outras profissões
subalternas no mercado formal de trabalho. Acreditamos que considerar as prostitutas como
trabalhadoras não é reforçar a mercantilização de mulheres, mas abrir um caminho para que
os direitos delas sejam garantidos. Pode parecer utópico pensar em garantia de direitos para
trabalhadoras sexuais em um mundo capitalista e patriarcal, mas é ainda mais utópico pensar
que a proibição da prostituição ou o não reconhecimento desse serviço como trabalho vai
diminuir e erradicar a mercantilização e exploração das mulheres.
A trabalhadora sexual e escritora Monique Prada aborda questões de trabalho no seu
livro Putafeminista. Prada escreve que um dos conflitos entre as feministas radicais e as
prostitutas feministas é a discussão sobre a prostituição ser ou não considerada um trabalho.
As feministas radicais32 querem erradicar a prostituição para salvar as prostitutas, o que
Monique discorda veementemente. Para ela, erradicar a prostituição significa jogar as
prostitutas em “situações precárias e inseguras” e reforçar o estigma tão presente nessa
profissão e na vida dessas mulheres. Prada explica que a luta pela abolição da prostituição
contribui para o aprisionamento e clandestinidade das prostitutas, mas não consegue atingir o
objetivo de erradicação dessa atividade.33
Para Monique Prada, “a prostituição consiste no ato, por pessoas adultas e em
condições de consentir, de trocar sexo por dinheiro ou outros bens, de modo regular ou
29
Ibidem.
30
Ibidem, p. 91.
31
Ibidem, p. 96.
32
Monique Prada prefere chamar o feminismo radical de feminismo conservador.
33
PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018, p. 33-34.
21
ocasional. É basicamente uma prestação de serviço.” E os motivos que levam uma pessoa a
prestar esse serviço são a necessidade financeira, curiosidade, liberdade de horário e a
remuneração.34 Sendo assim, ela entende que a prostituição é um serviço, mas destaca que
essa atividade só pode ser considerada dessa forma quando a pessoa que presta esse serviço
consentiu por ele, ou seja, a exploração sexual não está inclusa nessa definição.
Diferentemente dos teóricos marxistas, ela não apresenta apenas o imperativo econômica
como causa do se prostituir, pois vê a curiosidade como motivo para algumas mulheres
começarem a exercer essa atividade.
Prada não romantiza a prostituição, mas também não a demoniza. Ela entende que a
prostituição é uma alternativa de sobrevivência pessoal e familiar para muitas mulheres que
tentam fugir de condições precárias de vida. Não concorda com o discurso de algumas de suas
colegas de profissão e nem de feministas que consideram o trabalho sexual como um trabalho
empoderador:
Não é uma linha que me represente, já que considero que nenhum trabalho
exercido em nossa sociedade, e em especial nenhum trabalho precário
exercido por mulheres de baixa escolaridade e classe social, possa realmente
ser considerado empoderador e emancipatório. Não há nenhum
questionamento sobre o empoderamento alcançado por mulheres que
exercem outros trabalhos precários: ninguém se importa se uma mulher
precisa limpar privadas, ocupar seus dias embalando compras ou costurar até
a exaustão, mas basta que ela use o sexo para garantir seu sustento que
passamos a nos preocupar com sua condição.35
34
Ibidem, p. 50.
35
Ibidem, p. 58.
22
para isso, as mulheres recorrem aos meios que tem disponíveis e algumas veem na
prostituição uma possibilidade. A questão não é se isso está certo ou errado, mas que a
prostituição existe e é necessário que seja reconhecida para possibilitar melhores condições de
trabalho para as trabalhadoras sexuais.
Nosso estudo se insere nessa discussão por abordar o cotidiano da prostituição no TFA
como parte dos mundos do trabalho locais. Na década de 1950, surgem nesta parte do Brasil
estabelecimentos “especializados” na prostituição. Até então, o local de trabalho das
prostitutas eram as casas de habitação coletiva, com exceção de algumas pensões. Com a
propagação de boates e pensões é iniciada uma nova configuração da prostituição no Amapá.
Como apontamos, o recorte temporal dessa pesquisa compreende o período da
Ditadura empresarial-militar36. Parte da historiografia brasileira busca estudar os aspectos
políticos e sociais desse período da história brasileira e, quando se trata das questões de
gênero e história das mulheres, as resistências de mulheres na Ditadura têm maior destaque.
Mas poucas delas têm como objetivo explorar a influência do regime ditatorial no cotidiano
das trabalhadoras sexuais. Cabe ressaltar que agentes da Ditadura chamavam as mulheres
presas políticas de “putas” para criar uma fronteira simbólica entre essa mulher torturada e as
“mulheres de família”. Já no Amapá, as experiências femininas na Ditadura
empresarial-militar quase não são abordadas e aquelas relativas à prostituição são totalmente
negligenciadas. Como o período privilegiado da pesquisa é a Ditadura empresarial-militar
brasileira, é importante pensar de que forma o governo ditatorial interferiu no cotidiano da
prostituição no TFA.
A partir disso, elucidaremos o cotidiano da prostituição durante parte do período
ditatorial na Amazônia setentrional e as relações sociais aí tecidas na boemia e vida noturna
amapaense, enfatizando as experiências das trabalhadoras e trabalhadores, descortinando os
conflitos existentes nas zonas de meretrício e nos botequins. Assim como analisaremos os
ideais de honra, além de outros aspectos relevantes, a exemplo da família e as masculinidades.
Isso posto, nosso trabalho investigativo procurou responder as seguintes questões
norteadoras: de que forma as concepções de honra da classe trabalhadora amapaense
aparecem na documentação? Como os agentes do regime ditatorial lidaram com as meretrizes
e com os espaços de lazer do TFA? Quais foram as redes de convivência construídas pelas
prostitutas e por aqueles(as) que se relacionavam com elas como estratégia de sobrevivência?
36
Sobre os debates na historiografia acerca dos termos empresarial-militar e civil-militar, ver: MELO, Demian
Bezerra de. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. MELO, Demian Bezerra
de (org.) A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência,
2014.
23
37
“A Voz Católica foi um jornal eclesiástico da Prelazia de Macapá, composto e impresso na Gráfica São José. O
jornal possuía como reitor o Padre Alexandre, como diretor Cônego Ápio Campos, como diretor-presidente
Elfredo Távora Gonçalves e como redator Padre Jorge Basile. O impresso circulou durante 15 anos por todo o
Território Federal do Amapá. A publicação era realizada uma vez por semana, no domingo. A primeira
publicação deste semanário ocorreu no dia primeiro de novembro de 1959 e a sua última no dia vinte e nove de
dezembro de 1974.” In: AZEVEDO COSTA, Johnata Dias Silva; ASSIS, Wanny Kallyni Ferreira de. Fontes
para a história das mulheres amapaenses em dois jornais de Macapá (anos de 1959 a 1964). Monografia
(Bacharelado em História), Universidade Federal do Amapá, 2019, p. 50.
38
O jornal Amapá foi criado em 1945 pelo governador Janary Nunes como um instrumento de propaganda para o
governo territorial. Segundo o Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944,
apresentado pelo então governador Janary Nunes, “na época da criação do Território, não havia, em todo o
Amapá, nenhuma oficina gráfica, nenhum meio de publicidade e propaganda”. Então, foi criado o Serviço de
Imprensa e Propaganda, incluído no plano de organização administrativa com o objetivo de “difundir pela
imprensa e pelo rádio, dentro e fora do Território, todas as informações de interesse para o desenvolvimento
econômico da região, suas possibilidades, e para a divulgação mais ampla dos atos do Governo da União e da
administração local”. Já no governo militar, seu nome é modificado para Novo Amapá, mas segue com o mesmo
objetivo: veicular os feitos da gestão governamental militar do Território Federal do Amapá. Ver: NUNES,
Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1946.
39
A revista Icomi-Notícias circulou no TFA nos anos de 1964 a 1967. Augusto Antunes, na primeira edição da
revista, no artigo de abertura, enfatiza que ela não era um veículo empresarial, apesar de ser vinculada à empresa
e sim uma revista de “todos para todos”, sendo assim, ele tinha “confiança na prevalência dos fatores morais e
sociais que tanto têm engrandecido a nossa terra”. Ainda segundo ele, um dos objetivos do periódico era
promover um elo de ligação entre os membros da ICOMI com o restante da comunidade do TFA e que não tinha
dúvidas de que “servirá ao propósito de esforços pelo bem comum”. In: UMA palavra. Icomi-Notícias, nº 01,
1964, p. 1.
40
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992.
41
Ibidem, p. 59.
24
Há duas tarefas cada vez mais urgentes que se apresentam à história das
mulheres: produzir não somente estudos descritivos e interpretativos, mas
também estudos que resolvam problemas analíticos, e vincular as
descobertas que decorrentes desses às questões gerais que há muito estão
postas à história.42
Isso posto, não há como escrever uma história das mulheres e não relacionar com as
demais questões da História, porque não é uma “história à parte”. Do mesmo modo, Joan
Scott comenta sobre como os historiadores não feministas aceitaram esse novo campo para
colocá-lo em um domínio separado: o que se disse a respeito das mulheres e das relações de
gênero tem que ser de responsabilidade das historiadoras feministas43, porque eles estão muito
ocupados escrevendo sobre uma história “maior”, ou seja, a história dos homens. As duas
autoras concordam que é necessário construir uma história da participação feminina e pensar
as especificidades da categoria de gênero para vincular os problemas da experiência das
mulheres com as questões tradicionais da historiografia.
Scott abre um debate sobre questões teórico-metodológicas relacionadas a “gênero”.
Primeiro, porque a produção historiográfica se limitava a abordagens descritivas sobre o tema,
que não questionavam os conceitos dominantes da história. Então, ela sugere que as questões
teóricas relacionadas a gênero podem ser resolvidas com a análise das experiências de homens
e mulheres no passado. A forma como a sociedades representa o gênero, segundo a
historiadora, é decisiva para se articular as experiências de gênero de uma sociedade. Isto é, as
práticas de dominação de um gênero sobre outro no espaço público ou privado, orientadas
pelos sistemas de significados das sociedades:
Porém, relacionar as ações dos sujeitos com base no que seria o “comportamento
feminino ou masculino” no pensamento dominante limita a interpretação das historiadoras e
historiadores. O sujeito pode assumir um comportamento fora daquele que foi reservado a ele
42
TILLY, Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu. Vol. 3, 1994, p. 29.
43
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila. Texto original: Joan Scott – Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the
politics of history. New York, Columbia University Press. 1989, p. 5.
44
Ibidem, p. 16.
25
pelas construções de gênero. No artigo “História das mulheres”, Joan Scott pondera que as
experiências de homens e mulheres são diferentes por causa do gênero:
A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir
as mulheres como objetos de estudo, sujeitos da história. Tem tomado como
axiomátíca a ideia de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres
e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e
experiências das mulheres no passado. Entretanto, desde que na moderna
historiografia ocidental, o sujeito tem sido incorporado com muito mais
frequência como um homem branco, a história das mulheres inevitavelmente
se confronta com o “dilema da diferença”.45
O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta:
“experiência humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus
seguidores desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o
nome de “empirismo”. Os homens e mulheres também retornam como
sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos
livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações
produtivas determinadas como necessidades e interesses e como
antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e
sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das
mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida
(muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes)
agem, por sua vez, sobre sua situação determinada.46
E adiante ele afirma que “a experiência (descobrimos) foi, em última instância, gerada
na ‘vida material’, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o ‘ser social’
determinou a ‘consciência social’”.47 Então o indivíduo vivencia a experiência no cotidiano
regido por necessidades concretas, depois ele se reconhece enquanto classe e a consciência
social é alcançada quando ele identifica que outros indivíduos compartilham da mesma
experiência.
45
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 77.
46
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
47
Ibidem, p. 189.
26
Karl Marx argumenta que “as ideias da classe dominante, são, em todas as épocas, as
ideias dominantes”. A classe dominante é que detém a força intelectual, a força material e os
meios de produção, ou seja, tem todos os mecanismos disponíveis para tornar a sua visão de
mundo amplamente aceita. Segundo ele, “os indivíduos que formam a classe dominante
possuem, entre outras coisas, consciência e por isso pensam”.48 Desse modo, eles produzem e
distribuem as ideias de seu tempo. Isso é possível porque, além dos meios de produção
espirituais, a classe dominante é também detentora dos meios de produção materiais.
Já E.P. Thompson, no livro Costumes em Comum, explica que a classe trabalhadora
não compartilhava da mesma cultura e costumes da burguesia e da nobreza. Os populares
tinham os seus próprios referenciais morais construídos ao longo de gerações e resistiram
frente às mudanças promovidas pelas classes dominantes, seja no trabalho ou fora dele.
Porém, “quando procura legitimar seus protestos, o povo retorna frequentemente às regras
paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus
interesses atuais”49, ou seja, os trabalhadores sabiam muito bem usar as ideias da classe
dominante a seu favor, quando era necessário.
Sobre espaço e formação de classe, estamos de acordo com a concepção de Mike
Savage, que afirma:
O espaço precisa ser visto como importante em duas maneiras diferentes e
possivelmente contraditórias. Primeiro, lugares particulares podem se tornar
habitats para certos grupos sociais de modo que estes lugares se tornam
integralmente ligados em seus ‘habitus’, seus estilos de vida, e, desse modo,
podem ser a base sobre a qual sua identidade coletiva é formada. Segundo, a
formação de classe pode ocorrer quando classes sociais estendem-se através
do espaço construindo redes que ligam membros da classe mesmo quando
eles estão espacialmente dispersos.50
Por meio do espaço, os sujeitos constroem suas relações sociais e a sua identidade de
classe. Assim, os espaços boêmios e os bairros periféricos constroem a identidade de seus
frequentadores e moradores, que estão ligados espacialmente à mesma classe social. Desse
modo, as prostitutas constroem a sua identidade através do gênero e da classe, no cotidiano do
trabalho e nos locais que elas frequentam e constroem por meio de sua relação com outros
sujeitos.
48
MARX, K. Concepção materialista da História e a inevitável vitória do proletariado. In:
GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995,
p. 160.
49
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.
50
SAVAGE, Mike. Espaços, redes e formação de classe. In: Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n.5,
janeiro-junho de 2011, p. 8.
27
Para pensar o cotidiano, elegemos o conceito de vida cotidiana de Agnes Heller. Para
esta filósofa, todos vivem a vida cotidiana “com todos os aspectos de sua individualidade, de
sua personalidade”.51 De acordo com Heller, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica.
Heterogênea no sentido da “organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e o
descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação”52, pois esses são
aspectos imutáveis e eternos que independem do modo de produção vigente. Mas a vida
cotidiana é hierárquica porque “se modifica de modo específico em função das diferentes
estruturas econômico-sociais”.53 Ela justifica esse argumento com exemplos de sociedades
que definiam sua vida cotidiana em torno do trabalho, subordinando a ele as demais
atividades, e de sociedades que tinham o divertimento como lugar central. Assim, a atividade
principal assume centralidade, ao passo que subordina as demais atividades sociais.
A coleta e análise de fontes para esse trabalho foi diretamente prejudicada pela
pandemia de Covid-19, visto que nosso ano de ingresso neste Programa de Pós-Graduação foi
2020. Desse modo, a escrita desse texto se deu junto as disciplinas obrigatórias e estágio em
docência. Produzir essa pesquisa só foi possível devido a fontes digitalizadas por outros
pesquisadores e pesquisadoras, além de um material digitalizado por nós, em ocasiões
anteriores ao período pandêmico. Com a flexibilização do isolamento social por consequência
do avanço da vacinação, conseguimos acesso ao Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
para coletar mais processos criminais envolvendo meretrizes e conseguimos produzir uma
entrevista com a dona de uma boate onde prostitutas moravam e trabalhavam e que funcionou
por mais de vinte anos no Território Federal do Amapá. A bolsa de pesquisa Capes-Fapeap e
os auxílios proporcionados aos estudantes de pós-graduação da Universidade Federal do
Amapá tiveram papel fundamental na construção dessa dissertação.
Os processos criminais são fontes abundantes para a pesquisa histórica. Segundo
Carlos Bacellar, “a convocação de testemunhos, sobretudo nos casos dos crimes de morte, de
agressões físicas e de devassas, permite recuperar as relações de vizinhança, as redes de
sociabilidade e de solidariedade, as rixas, enfim, os pequenos atos cotidianos das populações
do passado”.54 Então, esse tipo de fonte fornece importantes informações sobre sujeitos
históricos e suas relações sociais. No trato com essa e outras fontes, seguimos as orientações
51
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 17
52
Ibidem, p. 18.
53
Ibidem, p. 18.
54
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas.
São Paulo: Contexto, 2011, p. 37.
28
55
LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. Ed – São Paulo: Contexto, 2011.
56
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 155.
29
57
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 278-279.
58
Ibidem, p. 285.
30
família burguesa composta pelo pai provedor e pela esposa dona de casa foi historicamente
construída pelo capitalismo.
Para Maria Angela D’Incao, no final do século XIX e início do XX, o Brasil viveu a
transição das relações senhoriais para as relações burguesas, o que modificou os laços de
solidariedade entre vizinhos e compadres, por exemplo, dissolvendo relações de compadrio e
tutelagem. O espaço urbano foi remodelado e em nome da modernização e determinados
comportamentos passaram a ser condenados, pois a rua agora era pública em contraposição à
casa, que era privada. No entanto, a casa da família burguesa era aberta para convenções
sociais nas quais a anfitriã era a mulher, que deveria ser um exemplo de mãe dedica e esposa,
o que só era possível no seio da família burguesa. Para D’Incao, o surgimento, ou a criação,
da família burguesa, “ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado
com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a
mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico”.59 Ela destaca como a
medicina, a educação e a imprensa contribuíram para fortalecer esse imaginário da mulher
como guardiã do lar. Questão que nos interessa, pois aqui vamos analisar os textos produzidos
pela imprensa para identificar o ideal de família dos periódicos amapaenses.
Sueann Caulfield destaca que o conceito de família no Rio de Janeiro, nas primeiras
décadas do século XX, serviu “para separar as mulheres simbolicamente e espacialmente dos
homens e as classes trabalhadoras da cidade (denominadas, em geral, de ‘a massa popular’ ou
‘populares’) dos setores sociais privilegiados”.60 Para ela, quando se falava “as famílias” isso
não significava “todas as famílias”, de todas as classes sociais, mas sim aquelas mais
civilizadas ou mais próximas dos padrões europeus (tanto socialmente quando racialmente).
Assim como D’Incao61, Caulfield ressalta que os homens da elite frequentavam o espaço
urbano livremente, mas as mulheres não, mantinham-se protegidas em casa.
Abordando o período que mais diretamente nos interessa, Ana Rita Duarte infere que o
governo ditatorial, por meio da Escola Superior de Guerra (ESG), buscou formas de fortalecer
a instituição social da família com o objetivo de consolidar o poder nacional, ou seja, o poder
da Ditadura empresarial-militar, para evitar que o Brasil fosse tomado pelo comunismo ou
outras ideias subversivas. A ESG, com base na Doutrina de Segurança Nacional (DSN),
apregoava que os valores, ideais e virtudes ensinados no interior dos lares contribuíam com a
59
D’INCAO, Maria Angela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2004, p. 230.
60
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 117.
61
D’INCAO, Maria Angela, Op. Cit.
31
elevação dos padrões éticos e morais dos indivíduos. Mas, na perspectiva desta Escola, a
família e os valores tradicionais estavam correndo riscos por causa da degradação moral do
comunismo, que destruiria a estrutura familiar e a moral sexual. E “o lar é apontado como a
estrutura onde se exercita a convivência familiar para realizar o que seriam as funções
‘essenciais’ da família: a função procriativa, a educativa, a econômica e a afetiva”.62 A autora
afirma que o lar era um tema recorrente nos textos produzidos pelos estagiários da ESG, o que
revela uma preocupação do regime ditatorial de articular o tema da vida doméstica com a
DSN.
Tentando perscrutar tais percepções e discursos, selecionamos artigos de jornais sobre
família, maternidade, papel da mulher no casamento e outros assuntos relacionados. Temas
familiares eram comuns nos jornais A Voz Católica e Novo Amapá, assim como na revista
Icomi Notícias. Foi possível, por meio destas fontes, identificar o ideal família do governo do
TFA nesse período. Grosso modo, esse ideal não difere do modelo de família burguesa e
nuclear estandardizado em contextos anteriores, como no início do período republicano ou no
Estado Novo, porque a família burguesa é uma criação do capitalismo e esse sistema
econômico estava pautando a modernização nacional, o que inclui o Amapá.
Sob o governo ditatorial a imprensa oficial do TFA publicou um artigo afiançando que
estava em curso o rompimento com um passado de atraso e o começo de uma era de
desenvolvimento inaugurada pelo Golpe Militar de 1964, definido pelo jornal Novo Amapá
como “revolução democrática”:
62
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Gênero e comportamento a serviço da Ditadura Militar: uma leitura dos escritos
da Escola Superior de Guerra. Diálogos (Maringá. Online), v. 18, n.1, p. 75-92, jan.-abr./2014, p. 87.
63
EM vinte e seis anos muito foi realizado no Amapá. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 1.
32
era exclusividade dos governos da Ditadura, mas uma estratégia política recorrente dos
governos que passaram pelo TFA.64
Já a Igreja Católica no TFA estava sob o episcopado de D. José Maritano, que durou
de 1966 até 1983. Segundo Sidney Lobato, “a Igreja, no contexto do Golpe de 1964, ainda
acreditava que a pobreza era resultado da ausência do capital e não um derivativo da atuação
deste”.65 Essa posição teve uma mudança ao longo dos anos, pois as políticas
desenvolvimentistas da Ditadura empresarial-militar brasileira aprofundaram as desigualdades
sociais no TFA. Isso fez com que bispos e padres progressistas liderassem movimentos para
debater as inseguranças cotidianas dos amapaenses.66 Ainda de acordo com Lobato, Maritano
não tinha um perfil binário de “conservador” ou “progressista”.67 Com isso, ele manteve uma
boa relação com os agentes do governo ditatorial no Amapá e também amparou movimentos
como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais sociais que então se
organizavam no espaço amapaense. Na década de 1960, o mundo passou por fortes
movimentos de contestação social e eles também refletiram na Prelazia de Macapá.
Para além do Estado e da Igreja Católica, o empresariado também quis instituir um
novo modelo de família no TFA. Nos referimos especificamente à Indústria e Comércio de
Minérios S.A. (Icomi), que usava a revista Icomi-Notícias para publicizar as atividades que
realizava em suas company towns, Serra do Navio e Vila Amazonas. De acordo com
Adalberto Paz, havia um “modelo de família operária”68 e isso é perceptível nas páginas da
revista, onde o homem figura como o provedor da casa, a mulher como dona de casa e mãe
exemplar, enquanto as crianças deveriam estudar e receber o cuidado dos pais. A revista
destaca, ainda, a importância da presença dos pais na vida escolar de seus filhos,
principalmente da mãe, pois a responsabilidade do aprendizado das crianças deveria ser
resultado de uma parceria de pais e professores.
Um exemplo desse modelo de família é encontrado na edição de n° 31 da
Icomi-Notícias. Na sua capa vemos uma fotografia da família Sarges. A ela é dedicada a
reportagem de título “uma família na Icomi”, que contém várias outras imagens retratando o
cotidiano da família. Essas fotografias são dispostas numa sequência não aleatória, pois cada
64
SILVA, Maura Leal da. “O Território imaginado”: Amapá, de Território à autonomia política (1943-1988).
Tese (Doutorado em História). Universidade de Brasília, 2017, p. 169.
65
LOBATO, Sidney. Jeitos de ser Igreja: debates sobre a renovação da vida eclesial na Amazônia setentrional
(1966-1983). In: LOBATO, Sidney (org.). Igreja e trabalhadores na Amazônia setentrional. Rio Branco: Nepan,
2018, p. 20.
66
Ibidem, p. 36.
67
Ibidem, p. 39.
68
PAZ, Adalberto Junior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração
industrial amazônica (1943-1964). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2011, p. 184.
33
69
UMA família na Icomi. Revista Icomi-Notícias, nº 31, 1966, p. 27.
34
O que também é uma forma de regular a família para ter trabalhadores disciplinados e
desligados dos hábitos tidos como atrasados de caboclos e ribeirinhos. Havia um desconforto,
principalmente das autoridades governamentais, para com o modo de vida dos amapaenses e
também de trabalhadores migrantes. As habitações construídas com materiais disponíveis na
floresta, como troncos e folhas de árvores, e percebidas como desprovidas dos meios de
higiene, a alimentação supostamente escassa, baseada em farinha de mandioca e avessa ao
consumo de legumes, eram motivos de queixa dos agentes dos órgãos governamentais.
Segundo os jornais analisados, as homenagens de dia das mães e até passagens de
aniversário aconteciam nos clubes esportivos do TFA, as mulheres homenageadas eram
esposas dos militares que ocupavam cargos no governo territorial da Ditadura
empresarial-militar. As confraternizações ocorridas em datas comemorativas eram noticiadas
pelo Novo Amapá, enquanto A Voz Católica se detinha a publicar textos de orientação à
população, mas principalmente para os católicos amapaenses. Segundo articulista de tal
periódico, o clube Círculo Militar realizou uma eleição para consagrar a mãe do ano:
70
PAZ, Adalberto, Op. Cit., p. 127.
35
Podemos ver que foram escolhidas para ser homenageadas e presenteadas duas mães,
uma por ser a mais velha e outra por causa de sua numerosa prole. Mas, elas não eram
associadas do Círculo Militar. Helita do Carmo foi escolhida como mãe do ano por estar em
trabalho de parto na hora da programação, ela fazia parte do quadro social do CMM. A fonte
sugere que o título de “Mãe do Ano” era concedido somente às mães desse meio social. Todas
exerceram o papel maternal esperado e foram “recompensadas” por isso. Cândida recebeu
presentes de “luxo” e Raimunda foi contemplada com “valiosos prêmios”, como o jornalista
fez questão de destacar. Destacar o valor dos prêmios foi uma opção de Wilson Sena por se
tratar do Círculo Militar, composto por indivíduos de maior poder aquisitivo, o que transmite
a ideia de que os promotores do evento eram generosos para com as mães do TFA. O dia dos
pais também foi tema de publicações dos jornais, mas não com a mesma ênfase das
homenagens às mães:
71
MÃE do ano. Novo Amapá, nº 1.571, 1970, s/p.
72
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.612, 1971, p. 5.
36
Dia do papai
[...] Meu marido costuma dizer aos amigos, nesta ocasião: “Bonito quando é
o dia da mãe, meus filhos vêm pedir-me dinheiro paga comprar-lhe os
presentes. E quando é o dia do papai eles pedem à mãe, que vem pedir para
mim. Quem paga sou sempre eu.” Porém, atrás das suas palavras, nota-se a
sua alegria por ser ele o centro de tanta atenção e de tanto carinho no seu
dia.74
O destaque das publicações de dia dos pais está relacionado com o papel de provedor
do homem: é ele quem dá o dinheiro para a compra dos presentes porque a esposa não tem
meios financeiros para isso. O pai se “queixa”, mas entende que a intenção dos filhos e da
esposa é lhe homenagear.
As mulheres retratadas no jornal eram caracterizadas como gentis, companheiras e
exemplos de mãe e esposa. Porém, dentre todas, a mais homenageada era a esposa do
governador do TFA, o General Ivanhoé Martins, a senhora Irene Martins, mencionada
anteriormente, que recebeu um texto na passagem de seu aniversário:
Primeira dama
73
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.582, 1970, p. 5.
74
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 459, 1968, p. 2.
37
[...]
75
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.594, 1970, p. 5.
76
Em 1942, foi criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), sob o comando da primeira-dama Darcy Vargas.
A LBA prestou assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica no Brasil até a década de 1990 e
foi um importante instrumento de ação para mulheres das classes dominantes na esfera pública. Segundo Taiana
de Oliveira e Ismael Alves: “Para as mulheres das elites, as atividades filantrópicas eram uma oportunidade de
ingressarem de maneira mais efetiva no mundo público, sem com isso subverter de forma contundente as fortes
amarras morais de gênero que as colocavam em uma posição de subalternidade em relação aos homens. Para
essas mulheres, os trabalhos assistenciais e de benemerência eram considerados extensões de suas atribuições na
esfera do privado e estavam em total conformidade com sua suposta natureza feminina de dedicação à família e
ao próximoXX. Ao se enveredar pelo mundo dos necessitados, as mulheres das classes abastadas projetavam,
diante da sociedade, seus elevados atributos morais, sendo reconhecidas por sua sensibilidade, bondade e
solidariedade com os sentimentos alheios, ou seja, uma extensão de sua função maternal.” In: DE OLIVEIRA,
Taiana; ALVES, Ismael Gonçalves. Legião Brasileira de Assistência e políticas sociais: primeiro-damismo,
gênero e assistência social. Boletim Historiar, v. 7, n. 02, 2020, p. 22.
38
[...]
Quase sempre, o caminho do homem é marcado por uma mulher e pela sua
influência ele descerá nos abismos, ou realizará ascensões sublimes.77
1 - Ama teu marido mais que ninguém no mundo, depois do Senhor, e ama o
teu próximo o melhor que puderes, mas lembra-te de que a casa é do teu
marido e não do próximo;
3 - Prepara para teu marido uma casa ordenada e um rosto sereno, mas não,
te amofines, se ele não der por isso imediatamente;
4 - Não lhe exijas coisas supérfluas para casa: pede lhe uma casa alegre e um
canto livre para as crianças;
5 - Que os teus filhos sejam alegres e limpos como tu, para que teu marido
sorria quando os ver, e pense neles quando está longe;
6 - Pensa que casaste com ele para os bons e para os maus tempos, mesmo
quando toda a gente o abandonasse, tu devias continuar a apertar a sua mão
nas tuas.80
77
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 423, 1967, p. 2.
78
SCOTT, Joan. Ibidem, p. 21.
79
É uma revista “publicada pelas Irmãs Paulinas, que há mais de 85 anos tem a missão de dialogar com as
famílias.” Fonte: https://revistafamiliacrista.com.br/quem-somos/.
80
O DECÁLOGO da mulher ideal. A Voz Católica, nº 437, 1968, p. 2.
39
marido mais do que a qualquer pessoa e que ele deve ser tratado como um hóspede todos os
dias. Disso, entende-se que esse marido não execute as tarefas domésticas da casa e nem de
cuidado com as crianças. A casa deverá estar sempre arrumada à espera do seu esposo, assim
como os filhos e a própria esposa. Mas, ela não pode esperar reconhecimento do cuidado que
tem com o lar e nem solicitar “coisas supérfluas” para a casa, visto que é uma obrigação dela,
já que seu marido está provendo a família. Por fim, os votos de casamento são relembrados
para que o casal permaneça junto até nos tempos difíceis. Porém, esse fardo é concebido
como sendo exclusivamente uma responsabilidade da mulher. Algumas edições depois, é a
vez dos mandamentos do casamento:
Aqui, as orientações são tanto para as esposas quanto para os maridos. Segundo o
texto, era preferível que os jovens casassem o mais rápido possível, certamente para evitar “o
pecado” do sexo antes do casamento, devendo, porém, estar cientes que o matrimônio
também passa por momentos adversos. Para o marido, é aconselhado que procure uma
companheira com as qualidades que já mencionamos anteriormente, mas vamos destacar a
qualidade da economia. Um casal cristão deve procurar ser o mais modesto possível e não
gastar mais do que tem ou evitar o consumo excessivo.
Em uma seção direcionada para os jovens, A Voz Católica publicou um texto para
abordar o sexo no casamento. O periódico pontuou que antes o assunto era tabu, mas
acrescentou que os tempos mudaram e era então natural e até necessário falar sobre isso,
porque a formação sexual promove um “harmônico equilíbrio da personalidade”.82 E ainda
reproduziu uma entrevista sobre liberdade sexual da campeã mundial de esqui, a francesa
Marielle Goeitschel:
Juventude e casamento
81
OS DEZ mandamentos para o casamento. A Voz Católica, nº 461, 1968, p. 2.
82
PÁGINA dos jovens. Idem, nº 577, 1971, s/p.
40
À liberdade sexual digo não. Sei que hoje em dia muitas môças têm relações
de casadas antes do matrimônio. Creio que isto não está certo. Não somente
eu penso assim. Tenho conversado com rapazes e observei que detestam as
garotas que se entregam facilmente... Vê-se como desprezam uma moça
depois de terem feito com ela o que bem entendiam... Digo a mim mesma
que em todas essas coisas é preciso adotar uma disciplina, tanto para o amor
como para o esporte, senão um dia a gente se arrasa... Vou dizer uma coisa:
nunca ponho a culpa nos rapazes. Se um deles viesse me pedir o que não
deve, eu é que mereceria uma bofetada e pensaria então: “Você é que não
presta, não é ele, porque, de um modo ou de outro, foi você quem lhe deu a
ideia”.83
Então, a liberdade sexual era causada por mulheres que “se entregavam facilmente” e
que por isso mereciam o desprezo dos que com elas se relacionaram sem conúbio. Quem
deveria controlar e regular essa liberdade eram as mulheres, pois os rapazes só fariam
insinuações sobre relações sexuais se as moças dessem abertura para isso, caso em que
mereceriam ser castigadas.
Maria Angela D’Incao, ao escrever sobre a família burguesa e o amor romântico no
século XIX, esclarece que a virgindade da noiva era tida como um símbolo “de valor
econômico e político, sobre o qual vai se apresentar um sistema de herança de propriedade
que deve sobretudo garantir a linhagem da parentela”. Assim, a vigilância em torno dos
jovens antes do casamento servia para que o sistema de casamento não fosse enfraquecido
pelo “encontro dos corpos” desses jovens.84 Porém, no contexto do regime ditatorial não era
considerado adequado reduzir a virgindade e o casamento somente a valores econômicos e
políticos, pois os valores morais também eram tidos como essenciais. As famílias pobres
também valorizavam os dois aspectos, tanto que buscavam meios para reparar a perda da
virgindade das suas filhas e orientá-las para que não caíssem no pecado e se mantivessem
virgens até o casamento. Apesar de que, por vezes, esses valores, como mostra a
documentação, fossem relativizados, assim como foram para as famílias burguesas.
Os casamentos também eram noticiados nos jornais, quando os noivos eram de
famílias prestigiadas nos círculos da elite do Território Federal do Amapá e os homens
funcionários da Icomi e do governo territorial. Do noivo era noticiada a profissão e a família,
já a noiva era identificada por sua família ou pelos seus modos:
83
Ibidem.
84
D’INCAO, Maria Angela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O
amor e a família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
41
1.2 “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a prostituição
como doença social
Os limites que separam a “mulher de família” e a “mulher da vida” são tênues e
fluidos. A figura da prostituta está presente em diversos locais e contextos históricos como
uma mulher fora dos limites da honra. Ela é um símbolo marcador do que uma mulher
honesta não deve ser. Margareth Rago explica que, em São Paulo, no início da República, a
sociedade burguesa polarizou as figuras da “mulher honesta” e da “meretriz” para se defender
da ameaça representada por esta última, como “mulher imaginariamente livre, descontrolada e
irracional”.89 E que “por mais independente que fosse a ‘mulher honesta’, sua liberdade
estaria sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz”.90
Dessa forma, a figura da prostituta é um parâmetro de comportamento para a mulher
honesta, pois o comportamento daquela serve de critério para definir quais atitudes são desta.
Já no livro Do cabaré ao lar, a autora explica que é por causa do combate à sífilis e às
doenças venéreas em geral e para defender a saúde da população “que se estuda e medicaliza
a sexualidade da mulher, que se aborda o problema da prostituição e que se instituem os
padrões de comportamento da mulher honesta e casta e da vagabunda”.91
Janaína Contreiras, na sua dissertação de mestrado, aborda as trajetórias marcadas pela
violência sexual sofrida por presas políticas dos regimes ditatoriais de Brasil e Argentina, mas
também de outras ditaduras como as do Paraguai, Chile e Uruguai. Ela destaca que o corpo da
mulher se torna um campo de batalha em contextos de guerra. Ela pondera que uma das
formas de violentar sexualmente essas mulheres no Brasil dos anos da Ditadura Militar foi
chamá-las de prostitutas, vacas, putas subversivas e putas comunistas. Já nos demais países
elas eram violentadas com adjetivos pejorativos como perras, putas, maracas, dentre outros.
Segundo Contreiras, para uma parcela da sociedade essas mulheres enquanto
militantes políticas ou armadas estavam transgredindo o seu papel natural de mães e esposas,
e ainda eram acusadas de buscar encontros sexuais no meio político. Os militares buscavam
formas de humilhar e enfraquecer essas mulheres, atingindo a sua moral por meio de
89
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 44.
90
Ibidem, p. 44-45.
91
RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar – Brasil 1980-1930. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 87.
43
xingamentos e tortura psicológica, além dos abusos físicos.92 Ela também afirma que muitas
delas eram submetidas à prostituição forçada por militares das ditaduras sul-americanas.
Nesse caso, ela entende a prostituição não como um serviço sexual oferecido por mulheres
trabalhadoras, mas sim como uma forma de violência sexual nas ditaduras da América do
Sul.93 Para a autora, desmoralizar as presas políticas foi um artifício de convencer a opinião
pública para o perigo dessas “inimigas internas”. E atribuir o adjetivo de putas e prostitutas a
elas significava impingir uma “‘mancha’ sobre o nome da família perante a sociedade e
afastava-se a constituição de possíveis redes de apoio e de simpatia”.94 Logo, era preciso
identificar essas mulheres como prostitutas para que a sociedade as visse como um perigo
para a nação e, principalmente, para a família.
Nos jornais amapaenses não eram comuns textos sobre prostituição. Selecionamos
alguns artigos que tratam diretamente do tema ou sobre o comportamento feminino. Apesar
de se tratar de um jornal laico e outro religioso, os textos têm semelhanças entre si, pois
tratam a prostituição como uma doença social causada pela falta de moral e boa educação das
famílias. Em edição de 1971, A Voz Católica transcreveu uma entrevista sobre prostituição da
Revista Salette95 de São Paulo, feita pelo seu redator, o Padre Anacleto Ortigara. Foram
entrevistadas 200 prostitutas da capital paulista:
92
CONTREIRAS, Janaína Athaydes. Corpo de mulher, um campo de batalha: terrorismo de estado e violência
sexual nas ditaduras brasileira e argentina de segurança nacional. Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018, p. 145.
93
Ibidem, p. 133.
94
Ibidem, p. 151.
95
A Revista Salette é um informativo do Santuário Salette de São Paulo, tem cerca de 80 anos de circulação com
a missão de evangelização. Fonte: www.nsrasalette.org.br/informativo.
44
Para a revista, a prostituta nada mais era do que uma vítima da sociedade que vê no
sexo uma oportunidade para obter lucro à custa do sofrimento de mulheres. Não era suficiente
a vigilância e nem a violência da polícia para extinguir esse comércio, porque os cafetões e
proxenetas procuravam meios de continuar seu comércio de exploração sexual. Depois,
conclui que não há maneira de acabar com a prostituição, mas sim de amenizar esse mal. Isso
seria possível se homens e mulheres soubessem o verdadeiro valor do sexo, se as mulheres
fossem respeitadas e que fosse entendida a função feminina junto aos homens, o que passaria
pela formação espiritual. Aqui, o entrevistador afirma que a maioria dos homens não possuía
essa “mentalidade espiritual”, por isso não conseguia conter seus impulsos naturais e tratava a
mulher como escrava na prostituição, e não como companheira.
Em seguida, o Padre Ortigara escreveu sobre os motivos que levaram essas mulheres
ao mundo da prostituição. Mas, ele não responsabilizava nenhuma delas por serem prostitutas
ou perdidas. Os principais motivos eram: família desestruturada, falta de educação sexual,
ausência de proteção legal às trabalhadoras domésticas que eram vítimas de seus patrões e dos
filhos deles e falta de capacidade de constituir um lar. Além desses aspectos, “grande parte
delas se diz vítima dos namorados e noivos que tudo lhes prometeram para levá-las ao
pecado, mas se esquivaram entregues à má sorte depois”.97 Assim, para o entrevistador, as
prostitutas eram vítimas de uma sociedade que não as protegia. A educação sexual reclamada
era certamente uma educação religiosa e não laica. Por fim, chegamos à sedução dessas
mulheres pelos seus namorados, que após o desvirginamento delas, não reparavam o mal pelo
casamento. Ortigara afirma que muitas delas já haviam tentado deixar de praticar a profissão,
mas se tinham se deparado com vários obstáculos, como a perseguição da polícia, falta de
emprego, expulsão dos lugares. Cerca de 180 das 200 entrevistadas falaram que estavam
arrependidas e não queriam mais continuar na vida de prostituta.
Posteriormente, ele critica a concepção de que a prostituição é um mal menor ou
necessário para manter a moral familiar, porque “justifica-se a existência da prostituição e das
casas boêmias como ‘válvulas de escape dos homens’”.98 Segundo Ortigara, o que fica
resguardada é uma falsa moral:
96
UMA ENTREVISTA diferente. A Voz Católica, nº 592, 1971, p. 2-3.
97
Ibidem.
98
Ibidem.
45
Dessa forma, os conflitos familiares, os pais despreparados e as mães que não sabiam
orientar as filhas eram os causadores da prostituição. Logo, a culpa não era das prostitutas e
nem da prostituição, pois elas eram vítimas de toda essa situação que produzia a exploração
de mulheres e zonas de meretrício. Para Anacleto Ortigara, as famílias desorganizadas de
cidades do interior faziam parte de um ciclo vicioso de uma sociedade egoísta e despreparada,
que produziria ainda mais famílias desorganizadas se continuasse “resguardando uma falsa
moral”. Por fim, ele afirma que a solução cristã para o problema da prostituição era a
formação e a educação que a família poderia dar aos seus filhos e filhas:
99
Ibidem.
100
Ibidem.
101
BEZERRA, Amiraldo. A margem esquerda do Amazonas. Fortaleza: Premius, 2008, p. 05.
46
moralidade, enquanto as prostitutas não tentam esconder nada, razão pela qual são
marginalizadas e discriminadas.102
De acordo com Mirela Morgante, na década de 1960, havia diversos bordéis na região
metropolitana de Vitória, nos quais os homens poderiam extravasar seus instintos sexuais para
preservar a honra e a moral burguesa que determinava que as mulheres deveriam casar
virgens. Mas a zona de meretrício da capital do Espírito Santo também servia “para extravasar
suas ‘tensões’ [dos homens] adquiridas no trabalho cotidiano”.103 Logo, era socialmente aceito
que os homens frequentassem bordéis antes e durante o casamento. Além do mais, os
“homens saciavam seus desejos sexuais não tradicionais com as mulheres da indústria sexual,
resguardando a virgindade das namoradas e das noivas e mantendo o conservadorismo na
relação sexual com a esposa”.104 Também era difundida a ideia de que o apetite sexual
masculino era maior do que o apetite sexual feminino e de que as esposas deveriam aceitar
essa “diversão” dos maridos105, porque era natural que agissem desse modo. Era comum que
os pais levassem seus filhos para iniciar a vida sexual com as prostitutas dos bordéis de
Vitória. Desse modo, os rapazes já eram ensinados desde a adolescência a diferenciar a
prostituta, para o sexo, da mulher honesta, para casar.
Segundo Cristiana Schettini, no Rio de Janeiro, as autoridades judiciais entendiam
“que a prostituição deveria ser controlada, mas não reprimida”.106 A prostituição clandestina
deveria ser combatida pelo poder público para proteger mulheres “ainda não totalmente
desonestas”.107 Já a prostituição pública só sofreria alguma intervenção para proteger os
clientes, para que as suas famílias e moças honestas não fossem prejudicadas.108 Desse modo,
o controle da prostituição clandestina era atribuído à Justiça, enquanto que o da prostituição
pública era de responsabilidade da polícia. Nesse caso, a vigilância sobre a prostituição só
seria feita para proteger aquelas que eram prostitutas clandestinas, pois ainda não tinham sido
102
Ibidem, p. 91.
103
MORGANTE, Mirela Marin. Memórias da prostituição: território, poder e resistências em São Sebastião.
Serra-ES (1960-1980). Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do
Espírito Santo, 2020, p. 188.
104
Ibidem, p. 37.
105
Ibidem, p. 188.
106
SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2002, p. 252.
107
Ibidem, p. 252.
108
Em Do cabaré ao lar, a historiadora Margareth Rago explica a diferença entre prostituição pública e
prostituição clandestina. Segundo ela, o médico higienista F. Ferraz de Macedo classificou as prostitutas nessas
duas categorias no século XIX. Desse modo, as prostitutas públicas eram aquelas que trabalhavam em bordéis e
cortiços, mas também eram floristas e costureiras, por exemplo. Já as prostitutas clandestinas eram mulheres
viúvas, casadas, divorciadas e solteiras, além de mulheres escravizadas prostituídas por seus senhores. Lésbicas e
homossexuais também estavam incluídos nessa classificação (RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 87-88).
47
E conforme Morgante:
Com seus inúmeros parceiros sexuais e comportamento transgressor, as
meretrizes eram vistas como o avesso da mulher honrada, maternal e fiel ao
matrimônio, servindo de parâmetro para a definição da normalidade sexual
da família nuclear legítima. Contudo, apesar de serem consideradas como
anomalias, uma verdadeira doença social, as prostitutas cumpriam uma
função dentro do sistema binário de relação sexual, possibilitando que os
homens exercessem sua performance masculina tendo uma diversidade de
parceiras sexuais e que as mulheres “feitas para casar” preservassem sua
virgindade e o comportamento sexual tradicional.110
109
RAGO, Margareth, 2008, Op. Cit., p. 28.
110
MORGANTE, Mirela, Op. Cit., p. 244.
111
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 40.
48
zonas de meretrício para locais mais afastados. O lugar do sexo e do prazer deveria estar
longe do lugar da família higienizada.112
Em edição de maio de 1974, o Novo Amapá divulgou uma palestra nomeada como
“Prostituição – Um flagelo social”, realizada pela aluna do curso de polícia feminina, Maria
Delci dos Santos:
[...]
A palestra que Maria Delci dos Santos vai proferir, visa conscientizar as
jovens das causas e consequências desastrosas da prostituição, procurando
dar-lhes uma visão real das frequentes tragédias oriundas da denominada
chaga social.
112
Ibidem, p. 46.
113
ESTUDANTE faz palestra sobre prostituição amanhã. Novo Amapá, nº 1.730, 1974, s/p.
114
O artigo não indica o nome da Paróquia, mas certamente se trata de Nossa Senhora da Conceição.
115
AS MOÇAS do Trem. A Voz Católica, nº 439, 1968, p. 3.
49
concordava com a afirmativa de que a prostituta levava uma “vida fácil”, pelo contrário. Ela
atribuía a entrada de mulheres na prostituição à “fraqueza moral”. Então essa palestra serviria
para fortalecer os valores morais das mulheres católicas que estavam recebendo essa
formação. Inclusive, no final de sua fala, a estudante disse que seus conhecimentos sobre o
tema haviam sido adquiridos num curso de polícia feminina, o que nos leva a pensar que a
prostituição e a presença dessas mulheres nos locais públicos era uma preocupação da polícia
no Amapá.
A coluna “Comentando”, de Cordeiro Gomes, tratava de assuntos aleatórios. O
articulista escolhia alguns casos para fazer comentários, por vezes satíricos, sobre eles. Em
um desses comentários, comentou sobre uma comerciante:
Como Cordeiro Gomes usava do humor para apresentar alguns episódios da vida local,
ao se referir ao comércio da dita senhora como “baiúca”, entendemos que ele buscou meios de
não identificar diretamente uma casa de prostituição. Por outro lado, o estabelecimento
poderia ser um mercado ou uma loja e ele pode apenas ter criticado um comportamento
desagradável de uma vizinha para com os demais moradores de sua rua.
Em duas edições de 1974, o periódico destacou o mau comportamento de homens
jovens em locais públicos. Em edição de janeiro abordou os palavrões proferidos pela cidade,
sem a devida preocupação com a presença de pessoas idosas, crianças e mulheres que não
estavam acostumados a ouvir certos termos:
Somos dos que entendem ainda ser a mulher, alguma coisa de respeitável, de
delicado e de poético. Não existissem outras razões, somente a de ser mãe ou
da possibilidade de vir a ser no futuro, já justifica um tratamento especial,
um respeito maior, uma admiração acentuada.
116
Atualmente, o bairro do Jacareacanga corresponde ao bairro Jesus de Nazaré, em Macapá.
117
COMENTANDO. Novo Amapá, nº 1.579, 1970, p. 2.
118
O PALAVRÃO. Novo Amapá, nº 1.714, 1974, p. 02.
50
Como vimos, o jornal também critica mulheres que colaboram com “conversas
indecorosas” e que o fazem por falta de formação, de ambiente e respeito por si próprias,
diferentemente de outras melhores “formadas” e que se sentem desconfortáveis com tais
conversas. Já em edição de maio, o jornal publicou um artigo sobre a bagunça nos cinemas de
Macapá, destacando como os jovens da capital se comportavam de forma inadequada
incomodando as outras pessoas presentes:
O que se ouve nas salas de espetáculos de Macapá talvez não seja ouvido em
prostíbulos da mais baixa categoria, fazendo com que os homens de bem se
sintam mal e tornando impossível a presença do elemento feminino, que por
ser mais delicado não pode se sujeitar a determinados vexames.119
Era esperado que houvesse esse tipo de comportamento nos prostíbulos, considerado
um local de “baixa categoria”. Nesse artigo, o jornal demarca o que é um ambiente adequado
para as famílias e o que não é, já que as senhoras e senhoritas, não as prostitutas, eram seres
delicados e que não podiam presenciar cenas de mau comportamento juvenil praticadas no
cinema.
Sobre o comportamento feminino, A Voz Católica na “Coluna da mulher” critica as
mulheres que expõem partes do corpo para chamar a atenção dos homens e “vendem a sua
dignidade e o seu pudor”, rebaixando, assim, “a sua dignidade e tornando-se seres inferiores a
respeito dos homens”.120 Era esperado que essa mulher não mostrasse certas partes do corpo,
pois, dessa maneira, teria muito mais respeito e admiração dos homens. O jornal afirma que
esse tipo de comportamento era incomum mais em lugares subdesenvolvidos:
119
JUVENTUDE não é molecagem. Novo Amapá, nº 1.731, 1974, p. 02.
120
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 472, 1968, p. 2.
51
residente no bairro Jesus de Nazaré, sabendo ler e escrever, tinha uma filha menor de 15 anos,
M. da S.P. (filha), estudante, residente com sua genitora, brasileira, natural de Macapá,
sabendo ler e escrever, e que teve a reputação ofendida por vizinhos. No ato da denúncia foi
informado que a representante registrou a ocorrência na ausência de seu marido, B.A.P.,
funcionário da Icomi, em Serra do Navio. Isso nos leva a pensar que ela era quem chefiava a
família em Macapá.
Os acusados eram vizinhos “com os quais há pouco tempo mantinha boas relações de
amizades, não levando em consideração as pequenas rusgas de famílias, que surgiam, com a
finalidade de manter a paz com seus vizinhos, vindo entretanto romper essa relação de
amizade”126. Na semana anterior ao registro de ocorrência, sua filha M.S.P., disse que os
vizinhos estavam “propalando na VIZINHANÇA de que ela M., não era mais virgem, fazia
programa na boate Juçarão e outros bordéis, estando até contaminada de doenças venéreas”127.
Em primeiro lugar, a representante afirmava que, apesar dos conflitos entre as famílias,
tinham boa convivência. Contudo, essa cordialidade foi rompida no momento em que os
vizinhos começaram a difamar sua filha. Percebemos como não foi suficiente afirmar que a
adolescente não era mais virgem, pois também afirmaram que ela frequentava bordéis pela
cidade. Com isso, entendemos que uma coisa estava diretamente ligada à outra, ou seja, se
esta menina não era mais virgem, logo, era também prostituta. Após saber disso, ela
perguntou aos seus vizinhos sobre o ocorrido e eles reiteraram que a adolescente não era
virgem e que estava com doenças venéreas. Então ela decidiu registrar ocorrência e realizar
exame de conjunção carnal em sua filha e solicitou que fosse aberto inquérito para apurar os
fatos.128
M.N.C. Lima, brasileira, casada, residente na Vila Maia, em Santana, cor parda, natural
de Breves, 24 anos de idade, doméstica, sabendo ler e escrever, em meio a uma discussão, foi
até a casa de M.N.O do Nascimento, brasileira, natural de Gurupá/PA, doméstica, casada, com
38 anos, sabendo assinar o nome, e a agrediu com um pedaço de pau, o que causou um
profundo golpe no couro cabeludo, no dia 14 de dezembro de 1976, em Vila de Santana129. A
vítima estava nos primeiros meses de gestação. A testemunha B.O.M., brasileira, amapaense,
solteira, estudante, 17 anos de idade, residente em Serra do Navio, sabendo ler e escrever,
disse que o caso começou quando a acusada ouviu M.N.O. do Nascimento falar que ela
gostava de arranjar intrigas com os vizinhos e “começou a insultá-la, chamando diversos
126
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
127
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
128
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 3.
129
AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 2.
53
nomes pornográficos, inclusive dizendo que a filha de M.N.O. do Nascimento não passava de
‘uma putinha’, ‘uma casseteira’130”.
No dia 02 de junho de 1976, R.C. Pinto, cor parda, doméstica, 28 anos, feriu L.G.
Pereira, brasileira, amapaense, solteira, 14 anos de idade, sabendo ler e escrever, com um cabo
de vassoura. Elas eram vizinhas e se ofenderam mutuamente. A acusada alegou que M.N.G.
Pereira, brasileira, paraense, casada, 40 anos de idade, sabendo ler e escrever, e suas filhas a
viviam hostilizando. No dia do desentendimento, M.N. ofendeu R.C. Pinto com palavras de
baixo calão e insinuou que ela estava tendo um caso com seu marido. Já a vítima L.G. Pereira,
filha de M.N.G Pereira, disse que, inicialmente, a discussão era entre sua mãe e a acusada,
mas R.C. Pinto começou a chamá-la de prostituta e as duas travaram luta corporal na qual ela
saiu lesionada em sua orelha esquerda131. M.N.G. Pereira, paraense, casada, 40 anos de idade,
sabendo ler e escrever, disse que estava separada havia um ano de seu marido e que desde
então era destratada por R.C. Pinto “que a taxa[va] de vagabunda, mulher sem respeito, e
ainda propala[va] que anda[va] mantendo relações amorosas com o amante de R.; que, passou
também a ofender a reputação de suas filhas”132. Nota-se que a rixa entre ela se dava
principalmente pelos relacionamentos amorosos que ambas tinham. M.N. acusava R. de ter
um caso com seu ex marido, por sua vez, R. acusava M.N. de se relacionar com seu amante e
ainda a insultou com termos como “vagabunda”. Independentemente dos motivos que
levaram essas vizinhas a brigar e se ofender mutuamente, observamos que “ter um amante” ou
“estar separada” rendia comentários e julgamentos sobre a vida particular dessas mulheres.
Na madrugada do dia 15 para o dia 16 de setembro de 1974 em uma festa de
aniversário no bairro do Pacoval. M.B.F., cor morena escura, solteira, doméstica, que
trabalhava em casa de família, amapaense, sabendo ler e escrever, 34 anos, agrediu B.C.S.
com uma gilete. B.C.S., amapaense, solteiro, 25 anos de idade, carpinteiro, sabendo ler e
escrever, declarou que foi a uma festa de aniversário próximo a sua casa e dançou com uma
mulher desconhecida,
Mas por motivos que desconhece a mesma achou que não deveria mais
dançar com o declarante, indo postar-se no pátio da casa; que o declarante
não satisfeito com a atitude da dita mulher dissera que já que ela não queria
dançar que fosse embora; que ato contínuo a referida mulher lhe segurou
pela camisa, tendo o declarante de boas maneiras pedido para ela lhe largar,
mas devido à insistência da mulher em segurá-lo, aplicou-lhe um empurrão e
como ela estivesse bem segura em sua camisa, resultou irem ao chão; que
logo chegou alguns colegas do declarante que lhe tiraram de sobre a referida
130
AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 6.
131
AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 9.
132
AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 10.
54
mulher e nessa ocasião um deles lhe advertiu que estava cortado no braço
direito e que foi logo constatado pelo declarante que a seguir o declarante
constatou também estar com um outro ferimento um pouco abaixo da
omoplata, lado esquerdo que o declarante não pode precisar qual o tipo da
arma utilizada pela dita mulher na prática do delito; que nos dois ferimentos
sofridos o declarante sofreu dezoito pontos.133
A acusada, por sua vez, declarou que foi à festa a pedido de uma de suas filhas e foi
tirada para dançar por B., relutou de início
Mas após B. lhe puxar bruscamente pelo braço e dizer que pra ‘puta’ não
tinha vez e para evitar maiores problemas saiu para com ele dançar muito
embora contra sua vontade; que durante aquela parte B. começou a se
exceder, chegando ao ponto de no meio da sala en franco desrespeito aos que
alí se encontrava, apalpar as nádegas da declarante, com o que não ficou
satisfeita; que em decorrência desse fato a declarante saiu da sala ficando no
pátio da casa a espera da filha, quando de sí se acercou B. e à declarante
dissera que se não queria dançar que fosse embora, sem responder qualquer
palavra foi por ele esbofeteada e chutada pelo dito individuo ocasionando
com isso a declarante ser jogada ao chão; que a declarante quando se
levantava foi novamente pisada por B., desta feita na altura da barriga, sendo
outra vez jogada ao chão, disso se aproveitou B. para ficar sobre a declarante
lhe esmurrando, por diversas partes do corpo; que a declarante ao ser
duramente castigada pelo citado indivíduo tirou do bolso do vestido uma
gilete e com esse instrumento recorda de ter cortado o citado indivíduo por
mais de uma vez, não podendo afirmar se acertou todos os golpes e nem os
locais atingidos; que B. vendo-se ferido deixou a declarante, ali se
demorando um pouco para depois se retirar; que mesmo batida como estava
não procurou a Polícia, preferindo silenciar o fato, pois desde esse dia ficou
na casa de sua patroa e somente ontem, foi que apareceu em sua residência;
que a declarante sabia que a Polícia andava a sua procura, porém, temia se
apresentar, o que só o fez nesta data que a declarante esclarece que nunca
teve nada com aquele individuo; que a declarante esclarece mais que nesta
Delegacia não sofreu nenhuma coação por Parte da autoridade que lhe está
inquirindo; que não está arrependida de haver cortado o citado B.; que a
declarante esclarece ainda não ser dada ao uso de bebidas alcoólicas e por
esse motivo estava seu senso normal. E mais não disse.134
Esse caso nos traz diversas informações que merecem destaque. No Boletim Individual
de M.B.F. consta que ela é de cor branca, embora no seu Auto de Qualificação seja declarada
enquanto morena escura, ou seja, negra. Já no Boletim de Vida Pregressa do Indiciado é
qualificada como parda. Esses desencontros de informações são comuns nos processos
judiciais, mas apesar dessa imprecisão podemos concluir que M.B.F. era uma mulher
racializada, uma mulher negra. Ela tinha como recreações preferidas festas dançantes e o
lugar que mais frequentava era salões de festas. Uma mulher solteira com filhas que tinha
133
AFCM, Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 5.
134
AFCM. Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 10.
55
festas e danças como principal lazer e andava com uma gilete no sutiã para se defender de
inconvenientes e de situações de perigo como aconteceu nessa noite. A abordagem de B.C.S
já foi desrespeitosa e para evitar problemas, M.B.F. anulou sua própria vontade em favor das
vontades de um homem que ela não conhecia. Os depoimentos dos envolvidos tem diferenças,
mas o relato de M.B.F. é o que mais condiz com as declarações feitas pelas testemunhas.
Assim, M. estava se defendendo de um espancamento causado porque B. não aceitava ser
recusado, pois para ele, não era concebível que uma puta, como ele a descreveu, lhe negasse
uma dança, a partir do que passou a agir violentamente contra ela. O comportamento
misógino e machista de B. pode ser justificado por ele ver M. como uma prostituta, o que
acentua seu ódio, e pelo fato de desprezar mulheres, independente da profissão ou da forma
que ele as enxergava. O processo prescreveu em 1981.
Percebemos os xingamentos eram recorrentes nos inquéritos e processos criminais.
Uma ofensa à honra dessas mulheres era associá-las à figura da prostituta. Chamar uma
mulher de “puta”, “casseteira”, “putinha” era uma forma de desqualificá-la e diminuí-la, é o
momento em que uma mulher honesta ultrapassa a fronteira e se torna (na representação) uma
mulher desonesta.
Era esperado que as jovens pobres amapaenses não frequentassem festas, não
trabalhassem fora de casa e nem andassem nas ruas sozinhas, mas elas ultrapassavam
cotidianamente esses limites de comportamento para assegurar a sua sobrevivência, no caso
do trabalho, e para ter com o que se divertir, no caso das festas. Então, como consequência,
quando precisavam da Justiça e da Polícia, o seu comportamento e o que a sociedade pensava
delas era o que impedia que elas não “desfrutassem” da proteção do Estado. Ademais, os
bordéis ou prostíbulos foram claramente demarcados como lugares indecorosos, sujos e
desorganizados. As mulheres frequentadoras à maioria desses ambientes não eram as senhoras
e senhoritas delicadas e frágeis de família, mas sim as prostitutas habituadas a ouvir todo tipo
de vocabulário vulgar, especialmente vindo de homens.
A prostituição nesse período era tida como uma doença social. A prostituta era
percebida como uma mulher cuja formação moral era falha, porque a sociedade em geral e as
famílias em particular estavam falhando na educação de seus filhos e filhas. Podemos
perceber que houve certa cooperação entre o Estado e a Igreja Católica para formar
profissionais de segurança com conhecimento sobre a prostituição e suas causas, para que eles
pudessem educar jovens meninas sobre o assunto. No entanto, isso estava muito mais
direcionado a mulheres que estavam na Igreja ou em comunhão com grupos religiosos,
aquelas que já estavam “perdidas”, mesmo que não fossem prostitutas, não eram incluídas
56
nessas ações. Essas mulheres de moral desviante eram consideradas inferiores e se referir a
uma mulher como prostituta significava muito mais do que falar sobre a profissão de fato,
mas sim falar sobre o comportamento, sobre a honra dessas mulheres. Além do mais, também
era uma forma de diminuir mulheres que estavam em situação de privação de liberdade, como
as presas políticas das ditaduras da América Latina, que eram violentadas sexualmente e de
forma verbal.
para a vida, para a reprodução humana em seu sentido amplo; atividade que não é voltada
para o mercado”.137 Para esta autora, o trabalho doméstico é uma peça-chave para a
subsistência familiar e também para a relação da família com o mercado nos seringais do
Acre. De acordo com Wolff, quanto mais a mulher fizesse trabalhos como a costura, a criação
de animais e colaborasse com as atividades dos seringais, isso quando ela mesma não cortava
a seringa, mais borracha a família teria para vender e menos produtos precisaria comprar.138 E
mesmo assim, o trabalho das mulheres era considerado inferior ou não importante nos
seringais.
É um trabalho majoritariamente feminino e, de certa forma, há uma naturalização
dessa atividade como feminina. Soraia de Mello afirma que “a naturalização do trabalho
doméstico como função feminina se insere em um grupo de ideias a respeito de relações
sociais e morais que são comumente identificadas como conservadoras ou tradicionais”139, e
aponta que o movimento feminista conseguiu conquistas no que se refere à liberdade sexual e
aos direitos das mulheres, seja no trabalho, na saúde e na educação, mas ao que parece a pauta
do trabalho doméstico não acompanhou esses avanços.
Michelle Perrot divide as trabalhadoras domésticas francesas do pós-industrialização,
isto é, dos séculos XVIII e XIX, em três categorias: a dona de casa de origem humilde, a dona
de casa burguesa e a criada, atualmente definida como empregada doméstica.140 A dona de
casa da classe operária realiza todas as tarefas, desde a preparação das refeições à costura de
roupas da família, e também ganha dinheiro com compras e lavagem de roupas para a
vizinhança. Já a dona de casa burguesa, tem a responsabilidade de cuidar da casa, dos filhos e
dos criados. Quando essa mulher era da pequena ou média burguesia, poderia ter somente
uma criada, pois não ter criados significava perder status social. Algumas delas também
ajudavam os pobres e faziam atividades de caridade. Por último, as empregadas domésticas
eram remuneradas com casa e comida, o seu “salário”, que não era regular, e poderia sofrer
descontos, caso causassem algum dano às louças e roupas. Elas não tinham folga e seus
serviços eram frequentemente requisitados.
Já Chitra Joshi levanta aspectos do trabalho feminino na Índia e explica que trabalhar
fora de casa não era algo bem visto para mulheres de algumas regiões indianas e de
137
WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo:
Hucitec, 1999, p. 79.
138
Ibidem, p. 80.
139
MELLO, Soraia Carolina de. A questão do trabalho doméstico: recortes do Brasil e da Argentina. In: PEDRO,
Joana Maria Pedro, WOLFF; Cristina Scheibe; VEIGA, Ana Maria. Resistências, gêneros e feminismos contra
as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011, p. 71.
140
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 115.
58
determinadas castas, o que não significava que elas ficassem totalmente reclusas no espaço
doméstico. A autora ainda aponta que a crescente informalização do trabalho tem mostrado
como os limites do que é público e privado se confundem nesse país. Dessa forma, ainda que
as mulheres sejam empurradas pelo patriarcado ao âmbito doméstico e privado, as famílias da
classe trabalhadora buscam formas de superar esses limites para garantir a sua sobrevivência.
As mulheres se ocupam com a produção de bidis141 nas áreas rurais para vender a
comerciantes locais, enquanto os homens da casa estão nos espaços urbanos trabalhando em
fábricas ou outros serviços. Ela critica a historiografia indiana que define o dinheiro recebido
pelas mulheres como “suplementar” e dos homens como “principal”, mas também explica que
para a sociedade indiana o trabalho desenvolvido pelas famílias nas aldeias não é reconhecido
e nem considerado, ao passo que os ganhos do trabalho dos homens são festejados.142
Ângela Davis pondera que nas sociedades capitalistas, as donas de casa são eternas
servas de seus maridos e “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico
foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a
atividade assalariada capitalista”.143 Então, a dona de casa não tem prestígio nenhum com o
seu trabalho porque não é produtivo. Davis considera que as mulheres passaram a ser
consideradas como “guardiãs do lar”, mas isso entrava em contradição com as trabalhadoras
assalariadas brancas dos Estados Unidos, que só eram donas de casa em segundo plano. Além
das trabalhadoras negras escravizadas que trabalhavam na produção escravagista do Sul
estadunidense. Desse modo, a “dona de casa” é a mulher burguesa ou de classe média. Porém,
apesar da dona de casa ser um produto ideológico do capitalismo do século XIX e ter surgido
no meio da burguesia e das classes médias, se tornou um modelo de feminilidade
generalizante144, como toda ideia da classe dominante.
Eric Hobsbawm afirma que como o trabalho masculino não era suficiente para garantir
a sobrevivência familiar da classe trabalhadora, o trabalho das mulheres e das crianças era
primordial para o sustento das famílias. Na Inglaterra do século XIX, o trabalho feminino
existia, mas era invisibilizado pelos recenseamentos, principalmente o trabalho de mulheres
casadas, “visto que grande parte do trabalho pago feito por elas não seria declarado como tal
ou não seria diferenciado das tarefas domésticas com as quais não raro coincidia”.145 Assim, a
141
“Bidi = Tabaco seco enrolado numa folha de tendu, depois fumado” (ver: JOSHI, Chitra. Além da polêmica
do provedor: mulheres, trabalho e história do trabalho. Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 147-170,
nov. 2009, p. 156).
142
Ibidem, p. 153.
143
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 230.
144
Ibidem, p. 231.
145
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 280.
59
146
Ibidem, p. 281.
147
Relacionamento informal, corresponde a uma união estável que não foi formalizada em cartório.
148
AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969, p. 15.
149
AFCM. Processo nº 2.465 de 21 de outubro de 1971, s/p.
60
150
Sobre o campesinato amapaense na Ditadura empresarial-militar, ver: PEREIRA, Higor Railan de Jesus. O
chão do conflito: estado ditatorial, grandes projetos e campesinato na Amazônia amapaense (1978-1985).
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
151
LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá
(1944-1964). Belém: Paka-Tatu, 2019, p. 191.
152
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 5.
61
aparece no jornal porque é filha de uma “tradicional família amapaense”, como menciona o
colunista e chefe das oficinas do jornal, Wilson Sena. Com isso, é notável a clivagem de
classe no jornal. As mulheres que recebiam destaque eram de famílias “tradicionais” do TFA,
e não havia espaço para as trabalhadoras pobres nas páginas da imprensa oficial.
O jornal A Voz Católica, na coluna intitulada “Coluna da Mulher”, publicou diversos
textos de colunistas e transcrições de outros jornais ou revistas cristãs. Em uma das edições, a
colunista Maria Emília Jucá escreve sobre as novas definições das mulheres:
Jucá se refere não somente ao trabalho, mas também à educação feminina. Ao mesmo
tempo que celebra o desaparecimento gradual dos preconceitos contra a realização
profissional das mulheres, destaca que a educação pode auxiliar e melhorar a criação dos
filhos. Com isso, ela defende a dupla jornada de trabalho feminina. Afinal, trabalhar fora de
casa não impediria que as mulheres se dedicassem à família e aos filhos. Para a colunista, a
mulher frágil e submissa, restrita ao ambiente doméstico era parte dos velhos conceitos de
153
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 428, 1969, p. 2.
62
mulher, pois o novo conceito refere-se àquela que se realiza intelectual e profissionalmente,
mas concilia seu trabalho e sua educação com os cuidados do lar e da família.
Houve uma certa mudança – ou um desacordo entre os articulistas – na opinião do
jornal católico sobre a mulher no mercado de trabalho na década de 1960. Sidney Lobato
explica que no início da década, o articulista José Benevides escreveu que a mulher
trabalhando fora do lar estava se desviando “dos desígnios divinos”.154 Para Benevides, a
mulher deveria se dedicar somente ao espaço privado, sendo mãe e esposa ou fugiria da “sua
verdadeira missão”.155 Como vimos, Emília Jucá não concorda com seu colega articulista. Em
contraponto ao que Benevides escreve sobre a verdadeira missão feminina, Jucá afirma que
essa mulher frágil e submissa que se dedica somente aos filhos e marido estava sendo
superada ou dando lugar a outra tão inteligente e capaz quanto o homem. O texto de Emília
Jucá também pode ser um demonstrativo de uma aceitabilidade maior das mulheres no mundo
do trabalho e de como a própria Igreja Católica estava lidando com essa mudança. Porém, não
podemos perder de vista que esta década foi marcada pela segunda onda do feminismo. Os
movimentos feministas ganharam visibilidade nos Estados Unidos e na França. Dentre as
reivindicações das feministas estavam o direito ao aborto, a luta contra a violência doméstica,
a igualdade entre homens e mulheres e a divisão das tarefas domésticas.156
Se faz necessário esclarecer que essas mulheres que estão entrando no mundo do
trabalho não são pobres e negras, pois estas já estavam inseridas nesse mundo havia muito
tempo. Como Ângela Davis aponta, as virtudes de “fraqueza feminina e submissão da esposa”
foram impostas às mulheres brancas de classes mais favorecidas, porque as mulheres negras
não se dedicaram somente ao trabalho doméstico, apesar de também executarem essa tarefa,
levando uma dupla jornada de trabalho, porque precisavam sobreviver.157
Da mesma maneira, as mulheres pobres do Amapá estavam longe de serem frágeis e
submissas. Se fosse preciso, as mulheres casadas assumiam a gestão da casa e do núcleo
familiar quando os maridos estavam impossibilitados e aquelas que eram solteiras, mas
precisavam sustentar e educar seus filhos, ocupavam-se com as mais diversas atividades
domésticas, de extrativismo e comércio, por exemplo158. Joshi pondera que quando as
mulheres exercem um trabalho remunerado, elas atingem um maior grau de liberdade pessoal
154
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 203.
155
QUERES casar? Prepara-te. A Voz Católica, nº 19, 1960, p. 4.
156
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História (São
Paulo), v. 24, p. 77-98, 2005, p. 79-81.
157
DAVIS, Ângela. Op. Cit., p. 232.
158
Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Senhoras das casas e das ruas: o cotidiano das trabalhadoras. In: Op. Cit.,
2019.
63
159
JOSHI, Chitra. Op. Cit.
160
FEMINA. Icomi-Notícias, nº 02, 1964, p. 19.
161
EM DESTAQUE. Icomi-Notícias, nº 18, 1965, p. 21.
162
Sobre as trabalhadoras da Icomi, ver: SOUSA, Rômulo. Experiências femininas nos mundos do trabalho de
Serra do Navio e Vila Amazonas (1960-1985). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Regional), Universidade Federal do Amapá, 2018 e MATOS, Marlos Vinícius Gama de.
Modernização e condições de labuta na Amazônia Setentrional: força de trabalho, acidentes e doenças tropicais
na gênese de um projeto de extração mineral no Amapá (1948-1956). Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
64
163
DELEGADO pesquisa índice de criminalidade. Novo Amapá, nº 1.740, 1974, s/p.
164
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.
250.
165
BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos de sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas, Uberlândia, 1950 a
1970. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História). Unicamp, 1994, p. 121.
166
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., 253.
66
167
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor do Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
168
CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social).
Unicamp, 1997, p. 69.
169
Ibidem, p. 80.
170
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, s/p.
171
Ibidem, p. 4.
67
depoimento, fica claro que o seu desejo era de que o caso fosse resolvido com o casamento
para “que a ofendida não fique infelicitada e jogada no abismo da desonra”172, porém, o
escrivão registrou que o acusado tinha dito “que só se casaria para livrar-se da Justiça, e que
mesmo assim a declarante não se nega a fazer o casamento entre ambos para que possa dar
satisfação à sociedade”.173
Para Sueann Caulfield, a busca pela Justiça em caso de perda de virgindade era um
recurso comum tanto pelas jovens desvirginadas quanto pelos seus pais, tutores ou patrões,
onde a finalidade principal era o casamento. Os pais e a sociedade em geral acreditavam que
recorrendo à Justiça poderiam tornar os defloradores responsáveis pela honra de quem
desvirginaram.174 Percebemos no depoimento da mãe de M.L.M Gama, que não importava o
meio empregado para que houvesse o casamento, o importante era que a sua filha não ficasse
desonrada perante a sociedade e que o concubinato ou “passar a viver junto” não repararia a
honra da menor e da família.
Em seu depoimento, M.L.M. Gama afirma que desde o namoro com J.F. Nunes
“sempre tencionava casar-se consigo em face de nutrir grande paixão” por ele.175 Ela conta
que o desvirginamento se deu em data que não sabe precisar, quando saiu para passear com o
mesmo sem o conhecimento de seus pais:
com a sua família enquanto filha, para que ela formasse a sua própria família como esposa e
mãe, já que esse era o propósito das mulheres honradas e da família segundo os preceitos
cristãos e do próprio Estado. Segundo, identificamos a presença do amor romântico, por ela
“dedicar-lhe grande afeição” acredita que teriam um “lar feliz e venturoso”, mais uma vez
reproduzindo os discursos dominantes que eram esperados. Claro, que o depoimento da
vítima não foi transcrito da forma como ela falou, passando primeiro pela impressão do
escrivão, que escrevia com a norma culta e com termos técnicos. Com isso, perdemos os
“textuais”, mas essa é uma característica das fontes judiciais. E a adolescente também poderia
utilizar esses discursos a seu favor, para que a Justiça entendesse que o seu comportamento e
a sua moral eram merecedores de “reparos” por meio da lei177.
Isabel Silva, nos traz um novo ponto de vista. Ela argumenta que as jovens
defloradas/seduzidas em Manaus, entre os anos de 1932 a 1962, se colocam como submissas e
apaixonadas para justificar que cederam ao sexo para satisfazer à vontade de seus namorados.
Desse modo, elas anulam o prazer ou a vontade delas próprias de estar com seus parceiros
relações sexuais com a finalidade de conseguir o casamento.178 Para Silva, as mulheres
populares conheciam bem o padrão de comportamento esperado, por mais que muitas vezes
as suas vivências não permitissem que elas atendessem a eles.179
O exame de conjunção carnal foi realizado e atestou o desvirginamento. Foi anexado
ao processo o registro civil da vítima para atestar que era menor de idade, além de um
atestado de pobreza da mãe da vítima, no qual o delegado registrou que M.N.B. Moreira era
pobre no sentido da lei.
A testemunha R.S. Saraiva, brasileira, paraense, casada, doméstica, 38 anos, residente
na principal rua do Buritizal s/n, sabendo ler e escrever, era vizinha da família e alegou que a
adolescente tinha comportamento exemplar, sendo uma filha obediente, saindo apenas
acompanhada da família ou de pessoas de confiança e que “lamenta o fato por considerar ser a
moça em tela uma jovem que mereceria ter encontrado melhor sorte, e, não a que encontrou
por ser Jacinto um desocupado, não arcando nem a responsabilidade de sua própria
subsistência”.180 A segunda testemunha, também vizinha da família, M.D.S. de Souza,
brasileira, paraense, casada, doméstica, 22 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente à
rua principal do bairro do Buritizal, disse que “conhece a referida menor desde a infância, e
177
Ver: BESSA, Karla. “Virgens” em apuros: o casamento não vingou! In: Op. Cit., p. 87-169.
178
SILVA, Isabel Saraiva. Mulheres impressas: amor, honra e violência no cotidiano das mulheres em Manaus,
1932-1962. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Amazonas, 2016, p. 60.
179
Ibidem, p. 63.
180
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 10.
69
com a idade que possui hoje, sempre a admirou por sua qualidade de moça comportada e de
bons costumes sendo dedicada filha de família”.181 A concepção de que o homem deve ser o
provedor do lar e que uma moça de comportamento exemplar mereceria encontrar um marido
que pudesse arcar com o seu sustento é nítida no depoimento de R.S. Saraiva.
O acusado assumiu a responsabilidade pelo desvirginamento da vítima, mas não
desejava unir-se com ela pelos laços sagrados do matrimônio porque “quando após o delito ter
seguido para Belém do Pará, esta passar a namorar com outros jovens, segundo informações
que obteve quando regressou a esta Capital após uma ausência de seis meses. Que, presume
ter a mesma mantido relação sexual com outras pessoas que a mesma namora”.182 Ele conta
uma outra versão sobre o encontro que teve com a vítima quando regressou à Macapá. Afirma
que, nessa ocasião, a menor se queixou de maus tratos por parte do pai, porque ele soube do
romance amoroso entre os dois. E, para atender a um pedido dela, ele a levou para uma casa
no mesmo bairro, mas sem manter relações sexuais com a mesma. No dia seguinte, ele entrou
em contato com o genitor dela, que estava em sua busca, e ela voltou para a casa de seus pais.
Disse ainda que “lamenta não amar a mesma, pois quando a conheceu e seduziu, apenas tinha
poucos dias de namoro, sem contudo dedicar-lhe nenhuma afeição, apenas desejoso de
satisfazer suas paixões eróticas, atendendo aos desejos que Maria demonstrava em ser
possuída pelo mesmo”.183 Para J.F. Nunes, o namoro com M.L.M. Gama não tinha fins de
matrimônio, e mesmo assumindo ser o autor do desvirginamento da vítima, ele alega que ao
desvirginar a menor, estava atendendo aos desejos dela. Outro aspecto interessante a ser
observado é o fato do pai de M.L.M. Gama já saber do desvirginamento e de maltratá-la por
causa disso. Cancela argumenta que procurar a Polícia ou a Justiça pode ser o último recurso
de pais que antes poderiam ter tentado dialogar com o acusado ou até mesmo feito ameaças.
Porém, quando o acusado fugia ou negava casar-se com a vítima, eles recorriam à delegacia.
Para a autora, por vezes os pais sabiam que suas filhas não eram mais virgens, mas mesmo
assim não deixavam de percebê-las como honestas, o que era um sinal de que para eles as
concepções de namoro, casamento ou honestidade eram mais elásticas do que nos padrões
generalizantes de honestidade do projeto higiênico e moralizante das elites e presentes nos
discursos de delegados, advogados, promotores ou juízes.184
Em relatório, o delegado Oscar Ferreira Lima afirma que:
181
Ibidem, p. 11.
182
Ibidem, p. 13.
183
Ibidem.
184
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 90-92.
70
Em resposta ao defensor do acusado, ela disse “que depois dos fatos da denúncia, a
declarante ainda manteve relação uma vez com o acusado e posteriormente com outros, sendo
que agora porém, está em casa de seus pais, não estando procedendo mal”.187 Não é sabido o
motivo pelo qual a adolescente mudou o seu depoimento. A nova narrativa menciona outro
local, e agora não se tratava mais de um passeio de namorados próximo de sua casa e sim de
um arraial. Além disso, dessa vez a depoente acrescenta que o autor de seu desvirginamento
usou de violência para tal ato. Essa mudança de depoimento abriu margem para a defesa de
J.F. Nunes contestar o comportamento da vítima em abril de 1970 por meio de um
requerimento. O defensor, dr. Edimundo de Souza Moura, disse que a vítima contava duas
versões para o ato e que “esta menor tem verdadeiro pendor para o teatro, pois é uma
185
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 16.
186
Ibidem, p. 31.
187
Ibidem.
71
verdadeira artista”.188 O requerimento ainda destacou que a jovem tinha mantido relações
sexuais com outros:
Qual o brasileiro, dentro desta formação que temos, que vai casar com uma
mulher que confessa ter mantido relações com outros? Por que não foi fiel ao
namorado e só depois de manter relações sexuais com outros veio apresentar
queixa à Polícia? Por que escondeu da polícia a verdade ao alegar que tinha
apenas conhecido um homem e que era o réu?189
E ainda disse que como o réu era menor de idade, precisaria de um curador, o que não
houve e ele ficou “a mercê da Polícia, que o fez assinar um depoimento em que declara
assumir inteira responsabilidade pelo desvirginamento da jovem.”.190 Desse modo, o defensor
tenta anular a declaração do réu na qual ele assume que desvirginou a vítima. E em seguida
acrescenta:
Mais uma vez ele questionava o comportamento de M.L.M. Gama para tentar livrar o
réu da pena. Esteves argumenta que a grande questão dos advogados era provar que as vítimas
eram desonestas e imorais, então não tinham os atributos requeridos para serem protegidas e
apoiadas pela Justiça.192 Do mesmo modo, Isabel Silva explica que as vítimas dos crimes de
defloramento/sedução eram o foco dos julgamentos. A conduta moral das vítimas e até das
mulheres de suas famílias eram analisadas nas investigações.193 Mas, em maio de 1970, o
representante do MP, Promotor Edson Gomes Correia, afirmou em despacho:
1) “que o réu afim de evitar a aplicação da pena, viajou para Caiene” [...]; 2)
“Que o réu não compareceu para o interrogatório perante o juízo da
Comarca; 3) que, nestas condições, hão de ser tomadas como verídicas as
declarações prestadas perante a autoridade policial; 4) as testemunhas
afirmam a existência do namoro entre a vítima e o acusado, bem como ser a
menor moça recatada e de bons princípios morais; 5) que o denunciado
assumiu total responsabilidade pelo ato delituoso.”194
188
Ibidem, p. 41.
189
Ibidem.
190
Ibidem.
191
Ibidem, p. 42.
192
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 39.
193
SILVA, Isabel Saraiva. Op. Cit., p. 55.
194
AFCM. Processo nº 1.826 de 1968, p. 43.
72
Sendo assim, solicitou que o denunciado fosse condenado às sanções do artigo 217 do
Código Penal. De fato, J.F. Nunes não compareceu a nenhuma audiência porque não havia
sido encontrado. Os oficiais de Justiça, tentando localizar o acusado para as audiências,
obtinham informações de que ele estava em Caiena, na Guiana Francesa, e nas outras
tentativas as informações eram de que achava no município de Amapá ou em Santana. Essa
pode ter sido uma estratégia utilizada pelo acusado para não casar com a vítima e para não
cumprir a pena do crime de sedução, esperando que o caso fosse arquivado.
Cancela também destaca que os namoros às escondidas não eram raros com as
meninas da classe trabalhadora, visto que estas poderiam ter maior intimidade nos seus
relacionamentos do que as moças de elite. Mesmo que os discursos moralizantes fossem
generalizantes, as meninas pobres e suas famílias tinham uma moral mais elástica.195 Outro
exemplo dessa moral mais elástica da classe trabalhadora era o crime de sedução ocorrido em
agosto de 1969, no qual F.T. Lima, brasileira, paraense, 16 anos, doméstica, sabendo ler e
escrever, residente na Av. Anhanguera, no bairro Buritizal, fora desvirginada por I.T. Gurjão,
brasileiro, amapaense, solteiro, 19 anos, motorista, instrução primária, cor morena, residente
na Granja Santa Maria, bairro Buritizal. Segundo relatório do Delegado Oscar Ferreira Lima,
a vítima declarou ter sido desvirginada pelo acusado em 24 de agosto de 1969. Afirmou que
vinha caminhando de seu emprego para sua residência quando se encontrou com o acusado,
pessoa que não conhecia, mas que lhe falou em namoro e aceitou a proposta. Relatou que
continuou caminhando quando foi puxada pelo braço pelo mesmo, que a levou até uma casa
desocupada, tampou a sua boca e a violentou, jogando-a ao solo. Depois desse dia, ela ainda
manteve outras relações sexuais com ele. Mas, quando ele soube que ela estava grávida, não a
procurou mais e nem cumpriu a promessa de reparar o mal pelo casamento.
Em seu depoimento, o acusado I.T. Gurjão disse que já conhecia a vítima não só por
morar próximo a ela, mas porque já a tinha visto em festas no clube Treze de Setembro:
195
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 73.
196
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 11.
73
que haviam mantido relações sexuais com F.T. Lima antes do acusado ou que ouviram
comentários sobre o comportamento dela. Ele contou que o fato se deu na saída de uma festa
na sede do Treze de Setembro e que tinha encontrado com a vítima e uma amiga dela, quando
percebeu que ela estava se aproximando dele com intenções de “conquista”:
Embora não simpatizasse com a mesma, mas “para não passar por mole”
(textuais), convidou-a a manterem relações sexuais, após chegarem no
Buritizal e depois da outra moça se ter apartado deixando-os só. Que, o
convite na cópula foi logo aceito e ambos se dirigiram para perto da casa da
jovem, onde no campo e sobre a terra, mantiveram o coito carnal,
oportunidade em que o respondente verificou que, como aliás já tinha ouvido
falar, F.T. Lima, não era mais virgem.197
Ao final de seu depoimento, alegou que “admira-se bastante de estar sendo acusado
pela vítima, como autor de seu desvirginamento, quando a mesma deveria atentar para a
seriedade do assunto, deixando o culpado a vontade para acusar quem não cometeu o
delito”.198 Durante todo o seu depoimento, o acusado questionou a conduta de F.T. Lima e
destacou comentários de cunho sexual que supostamente ouvira de conhecidos sobre ela. Ele
fez isso para demarcar definitivamente que a vítima não deveria buscar reparações por meios
judiciais porque não era virgem, afinal frequentava festas sozinha e tinha uma vida sexual
ativa.
A testemunha F.P.M. Souza, brasileiro, amapaense, solteiro, 20 anos de idade,
mecânico, de instrução primária, residente nesta cidade à rua Treze de Setembro, bairro do
Beirol, relatou que, quando ainda fora soldado, havia mantido relações sexuais com F.T.
Lima, em novembro de 1969, por volta de 23 horas. Ele estava participando de uma festa
dançante no bairro Buritizal, na qual ela também estava. Ao final da festa, ao ver que estava
sozinha, dirigiu-se até ela e a convidou para manter relação sexual, “convite que foi aceito
sem qualquer relutância”.199 Adiante, ainda acrescentou que “por diversas vezes teve o ensejo
de ver a vítima andando sozinha alta hora da noite, andando pela rua ou em festas dançantes,
inclusive no Treze de Setembro Esporte Clube local impróprio para moças que se presam”.200
J.C. Nascimento, brasileiro, paraense, solteiro, 20 anos de idade, militar, residente na rua
General Rondon, s/n, bairro do Trem, relatou que nunca havia mantido relação sexual com a
vítima, mas que tivera oportunidade ao final de uma festa no Treze de Setembro. Relatou que
ao saírem da festa, foram para as matas do bairro do Buritizal, mas que aí não chegara a
197
Ibidem.
198
Ibidem, p. 12.
199
Ibidem, p. 14.
200
Ibidem.
74
consumar o ato. Disse também que a vítima era muito mal falada pelos soldados e que chegou
a vê-la próximo ao quartel, à procura de soldados: “O depoente tinha a mesma como
prostituta e justamente por isso ela depois passou a não mais ser aceita no Treze de Setembro,
embora ali seja lugar frequentado por [rasurado] e mulheres de vida duvidosa”.201
O primeiro disse que havia mantido relação sexual com F.T. Lima e o segundo alegou
que tivera oportunidade, mas não a consumara. F.P.M. Souza destacou os passeios noturnos da
vítima. Inclusive, os dois destacaram a presença dela em festas do clube Treze de Setembro,
sede de uma associação do bairro do Trem que, segundo eles, não era adequado para moças de
família. J.C. Nascimento ainda disse que para ele a menor era uma prostituta. O termo é usado
como adjetivo, foi uma característica atribuída à vítima porque os seus hábitos não eram
compatíveis àqueles esperados de moças honradas e era usado como uma forma de
desqualificar o depoimento dela. Para Cristina Cancela, “a imagem da mulher prostituída
estava também associada ao fato da menor frequentar locais públicos onde se concentravam
muitos homens”.202 Logo, identificar essa menina como prostituta era também uma maneira
de destruir a reputação dela diante da Justiça.
Ele concluiu acrescentando que a conduta de F.T. Lima era tão reprovável que nem
lugares frequentados por mulheres de vida duvidosa permitiam sua presença. Os dois
depoimentos são cheios de desqualificações da adolescente e de discursos moralizantes do
período. Como não é difícil de perceber, o comportamento da vítima era tido como
reprovável, mas o comportamento do acusado e das testemunhas não. Todos frequentavam os
mesmos locais, contudo, somente a presença de F.T. Lima era questionada em passeios e
bailes noturnos. Do mesmo modo, os homens poderiam se relacionar com quem quisessem
que não seriam menos honrados, porque a honra masculina não estava ligada ao aspecto
sexual, diferentemente da honra feminina. Esteves afirma que não importa se o homem
frequenta prostíbulos ou “locais suspeitos”, importa que ele seja trabalhador e tenha
comportamento exemplar no seu trabalho. Diferente das mulheres que são julgadas pelo seu
comportamento moral ou sexual.203 A autora ainda argumenta que:
201
Ibidem, p. 16.
202
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 110.
203
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 45.
75
204
Ibidem, p. 51.
205
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 17.
206
Ibidem, p. 22.
207
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 42.
208
SILVA, Isabel. Op. Cit., p. 70.
209
Ibidem.
76
Veio a ter conhecimento de que sua referida filha fora vítima de sedução e
desvirginada pelo representado [P.P.B], sob as ordens e responsabilidade de
qual fugira de casa para ir morar em um casebre na baixa do Remanso212, em
companhia de uma certa N. de tal, mulher solteira de vida irregular213.
A partir dessa declaração, podemos questionar sobre o que significava ser uma mulher
solteira e de vida irregular em Macapá. Aliás, ser solteira já poderia significar ter uma vida
irregular, afinal, se tratava de uma mulher que não estava casada e nem vivendo em
companhia de seus pais, já que a casa era dela.
M.N.C. Lopes, amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, residente à
avenida Coaracy Nunes, bairro do Trem, depôs que foi estuprada pelo acusado, P.P. Borges,
brasileiro, natural do Rio Grande do Norte, casado, 35 anos, comerciante, alfabetizado,
residente na avenida Padre Júlio s/n, bairro da Favela, em março de 1968, nas proximidades
210
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 27.
211
Ibidem, p. 31.
212
A “Baixa do Remanso” corresponde atualmente a uma parte do bairro Santa Inês, em Macapá.
213
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, s/p.
77
do Hospital São Camilo. Ela afirma que ele a levou de carro e a ameaçou com um revólver,
cometendo, assim, o estupro e seu desvirginamento. Porém, ela continuou a ter encontros com
ele para manter relações sexuais no mesmo local por diversas vezes. Ela ficou grávida e com a
gestação avançada, o acusado deu uma quantia em dinheiro para ela alugar uma casa e
contratar uma mulher para lhe auxiliar. O escrivão não deixa explícito, mas acreditamos que
fosse para auxiliar em um aborto. Ela fugiu de casa e pediu abrigo a uma conhecida na baixa
do “Remanso”, depois o seu pai localizou o endereço em que estava.
P.P. Borges alegou que “não obstante ser casado, o respondente vez por outra mantém
relações sexuais extraconjugais com mulheres que comumente encontra fazendo
meretrício”214. Disse que manteve relações sexuais consentidas com a jovem e que ela não era
mais virgem nessa ocasião. No caminho de volta, perguntou se devia algo a ela e ela
respondeu que devia “só dez cruzeiros”. Ele então fez o pagamento de dez mil cruzeiros a
ela215. P.P.Borges relata que os outros encontros sexuais não foram cobrados, mas no sexto
encontro, M.N.C. Lopes cobrou a quantia de cinquenta cruzeiros novos, valor que não tinha e
disse que pagaria no dia seguinte. Ela então o ameaçou dizendo que, se não o pagasse, faria
um escândalo junto à família dele. Ele fez o pagamento no dia seguinte. Nessa parte do
depoimento, o acusado descreve uma relação de prostituta e cliente, relação com a qual já era
familiarizado. Ao contrário de muitas das mulheres citadas ao longo desse texto, sejam elas
vítimas ou acusadas, P.P.B. não se envergonha de sua infidelidade conjugal ou de estar em
companhia de meretrizes. Independente do período político ou social, aos homens é permitido
um comportamento fora daquele idealizado pelo Estado, o que claramente não acontece com
as mulheres, pois estas devem sempre estar atentas para não perderem a proteção da Justiça.
Três meses após conhecê-la, ela disse quem era o pai dela e ele disse em depoimento
que tinha muito apreço e amizade pelo referido homem porque era seu conterrâneo, mas
também ficou em choque com a informação, pois tomava a jovem como prostituta. Nesse
mesmo período, ela informou que estava grávida216 e ele negou que tivesse aconselhado M. de
N.C.L. a procurar um médico ou enfermeira para fazer o aborto, mas que deu uma injeção
para a vítima tomar, a pedido dela. Alegou que não poderia afirmar que o filho era seu, mas
poderia admitir pois havia mantido relações sexuais com ela.217 A amizade dele para com o
pai da vítima fez com que ele se surpreendesse com M. de N.C.L., pois aparentemente não
esperava que a filha de um conhecido seu fosse prostituta. Ele também tentara se desvincular
214
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
215
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
216
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 14.
217
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 15.
78
da acusação de aborto, alegando que a injeção para a menstruação descer foi ideia da vítima e
não dele.
Houve uma acareação e os dois mantiveram seus depoimentos e ela disse que recebeu
os 10 cruzeiros em novembro e não após a relação sexual e que ele tirou o revólver da cintura
e mostrou para ela. Essas foram as únicas mudanças, pois eles mantiveram seus depoimentos.
Uma testemunha disse em depoimento que ouviu da jovem que teria sido desvirginada por um
rapaz que agora morava em Belém. N. da S. Costa, mulher que abrigou a jovem em sua casa,
disse que ouviu dela que seu filho era de um caixeiro viajante que estava em Belém e que na
delegacia, na ausência do delegado, confessara para ela que não deveria ter acusado P.P.
Borges. Ainda sobre esse assunto, declarou que a menor afirmou que recebeu “CINQUENTA
CRUZEIROS NOVOS [de P.P. Borges] em pagamento de havê-la possuído sexualmente,
tendo a vítima dito ainda que se caso ele não lhe tivesse pago, ela o teria levado de encontro à
Polícia”218 N. Costa disse que quando vizinha da adolescente, viu ela chegando, após a
meia-noite com uma irmã, por duas vezes, acompanhadas de dois homens. Essa testemunha
fez declarações opostas ao que F.S. Lopes e M.N.C. Lopes haviam dito, por evidenciar uma
conduta da vítima que até então não havia sido apontada por outra pessoa que não o acusado.
Caulfield219, Cancela220, Bessa221, Silva222 e Esteves223 concordam que os acusados
faziam uso dos discursos que questionavam a honra das jovens que tinham liberdade para sair
de casa desacompanhadas, trabalhar, ir a festas e bailes de carnaval, para tentar se livrar da
pena ou do casamento, porque não teriam responsabilidade sobre a honra dessas mulheres e
nem de suas famílias. As meninas seduzidas eram de famílias pobres, com atestado de
pobreza emitido pelo delegado.
Em Macapá, como afirma Sidney Lobato, bem como em outras cidades do Brasil, os
ideais de moralidade e comportamento das filhas da classe trabalhadora eram elásticos.
Mesmo porque elas já estavam inseridas no mundo do trabalho como trabalhadoras
domésticas, seja em casa de outra família ou na sua própria. Então era comum que
circulassem pelo espaço urbano desacompanhadas, inclusive com maior liberdade para
frequentar festas e “depois de desvirginadas e abandonadas por namorados ou amásios,
218
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 09.
219
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.
220
CRISTINA, CANCELA. Op. Cit.
221
BESSA, Karla. Op. Cit.
222
SILVA, Isabel. Op. Cit.
223
ESTEVES, Martha. Op. Cit.
79
Os conflitos sobre como a lei deveria intervir nas relações familiares e sobre
a definição de honestidade e de virgindade resultaram da coexistência, na lei
e na jurisprudência, de duas noções divergentes sobre honra: a noção
patriarcal de honra como um recurso familiar e a noção burguesa de honra
como uma virtude individual.227
Os juristas republicanos concordavam que a honra era individual, mas não conseguiam
se desvencilhar da noção de honra patriarcal. Então fizeram uma combinação de teorias do
direito e análises sociais e científicas para definir os princípios de defesa e definição de honra
224
LOBATO, Sidney. Op. Cit., 210.
225
CRISTINA, CANCELA. Op. Cit., p. 109.
226
BESSA, Karla. Op. Cit., p. 154.
227
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., p. 85.
80
sexual. No decorrer dos anos, a noção burguesa de honra como uma virtude individual ganhou
terreno, porém:
No período anterior e durante o Estado Novo, já havia uma discussão sobre uma
adaptação do código penal para que ele se ajustasse aos tempos modernos. Essa modernidade
estava ligada ao desenvolvimento econômico e social, mas também significava a dissolução
da família e dos bons costumes. Para Karla Bessa,
Bessa infere que nos casos de sedução, mesmo após a leitura de muitos deles, não fica
claro em que momento houve um conflito que culminou na denúncia para a polícia. Daí
podem emergir diversas possibilidades.230 Aqui, fica claro que o momento que causou a
denúncia no processo n° 1.826 foi a recusa do acusado em casar, pois ele disse à mãe da
vítima que casaria somente se fosse obrigado pela Justiça. Já no processo n° 2.234 foi a
gravidez da adolescente. Pouco podemos falar sobre esse ponto porque o processo estava
incompleto e ele não continha o depoimento da vítima na delegacia, somente em juízo e
pouco se fala desse aspecto no decorrer do processo. Porém, pudemos identificar que essa foi
a causa da denúncia, porque F.T. Lima dissera que quando o acusado soube da gravidez,
passara a não mais procurá-la. Enquanto que o inquérito S/N teve como motivo de denúncia a
fuga da jovem da casa de seus pais por conselho de P.P. Borges, que além da acusação de
estupro, também foi acusado de tentativa de aborto, pois a adolescente estava grávida.
Percebemos que os casos têm diferenças, mas também semelhanças. No processo n°
1.826, a vítima tinha todas as testemunhas a seu favor, dizendo que era uma boa filha com
bom comportamento. Já a vítima do processo n° 2.234 tinha somente uma testemunha a seu
favor, alguém que o delegado nem levara em consideração, pois as demais testemunhas
228
Ibidem, p. 186.
229
BESSA, Karla. Op. Cit., p. 104.
230
Ibidem, p. 90
81
231
Conforme o Código Penal Brasileiro: Art. 115 - São reduzidas de metade os prazos da prescrição, quando o
criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos ou maior de setenta anos.
232
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 27.
82
As prostitutas tinham uma estreita relação com a boemia e com as festas. Nesses
locais, elas encontravam mais do que divertimentos, encontravam trabalho. O que para
homens e outras mulheres que frequentavam a noite amapaense era lazer, para elas era uma
oportunidade de conseguir os meios de sustento de suas famílias. Claro que elas uniam o útil
ao agradável e também usufruíam do entretenimento dos bares, botequins, boates e dançarás,
prova disso são as detenções por embriaguez. Elas não são as únicas protagonistas dessa
seção, porque não é possível negligenciar os homens, enquanto agentes importantes desses
lugares e dos casos documentados pela polícia e pelo poder judiciário.
O lazer noturno não foi marcado somente pelo entretenimento, pois nele ocorriam
muitas prisões de homens e mulheres que se embriagavam e promoviam desordens. Sem
contar os processos criminais com origem nas festas e nos botequins. Usando como fontes um
livro de ocorrências, processos criminais, jornais e uma entrevista, enfocamos as
contravenções penais de embriaguez e desordem que resultaram em prisões de meretrizes e de
homens trabalhadores em Macapá. Além disso, temos como objetivo analisar por meio das
páginas dos periódicos os bailes promovidos por clubes, procurando identificar quem eram os
seus frequentadores e, em contrapartida, identificar os habitués dos botequins. Nossa
finalidade é igualmente analisar as sociabilidades dos botequins e das ruas a partir do conceito
de masculinidade, atentando para a participação de soldados do Exército nos casos de
conflito. Por fim, vamos caracterizar os locais de prostituição no Amapá e pôr em evidência a
relevância deles para o lazer ocorrido no TFA, além de discorrer sobre os deslocamentos da
espacialidade da prostituição de Macapá.
233
DE LOYOLA, Érico Teixeira. Juristas em Lilliput: a interpretação da Lei das Contravenções Penais nas suas
duas primeiras décadas de vigência (1940-1950). Clio: Revista Pesquisa Histórica, v. 38, n. 2, p. 345-366, 2020,
p. 346.
234
Brasil. Decreto-Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
83
perigosas”235, a população negra e pobre das cidades, para proteger não só o que era
moralmente adequado às classes dominantes, mas também a propriedade privada. governos
agentes da Ditadura empresarial-militar também se se orientaram por essa ótica. Por isso não
eram raras as detenções de embriagados e desordeiros no TFA do período ditatorial.
Dentre todos os motivos de detenção em Macapá, “embriaguez e desordem” era o mais
comum. Como era uma contravenção penal, apenas uma noite ou algumas horas no “xadrez”
para cessar o efeito do álcool eram considerados punição suficiente. Não importava o gênero,
homens e mulheres eram igualmente detidos e colocados à disposição do delegado de plantão.
Por ser motivo de prisão recorrente, tal contravenção não podia ser ignorada. Núncia de
Constantino explica que no processo de modernização de Porto Alegre entre a metade final do
século XIX e início do século XX, a repressão policial sobre a classe trabalhadora era
motivada principalmente pela vadiagem, pela embriaguez, pelo jogo e pela prostituição. Para
isso, as forças policiais contavam com o apoio da imprensa, que reproduziu campanhas contra
essas práticas nos jornais236. Desse modo, “manter a ordem pretendida foi, portanto, tarefa
empreendida com tenacidade pelas autoridades. Estatísticas revelam a desordem como delito
de maior incidência, em sucessivos relatórios”237. Em seguida, vinham os delitos de
embriaguez e embriaguez e desordem.
No Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia esse delito foi, sem
dúvidas, o maior motivo de prisão. Para essa subseção, selecionamos apenas registros de
ocorrências de embriaguez e desordem que envolveram meretrizes, um total de 11
ocorrências. Em algumas edições do ano de 1970, o jornal Novo Amapá também nos fornece
dados do movimento policial. E em poucas edições do ano de 1974 esse periódico manteve
uma coluna denominada “Ronda Policial”, na qual são publicadas as ocorrências policiais
mais detalhadas.
As brigas de casal, quando ocorriam em via pública, comumente eram apartadas pela
patrulha da Guarda Territorial, ocasião em que os amantes eram levados à delegacia para ficar
à disposição do delegado de plantão. Assim aconteceu em três ocorrências envolvendo
meretrizes e seus amásios:
235
DE LOYOLA, Érico Teixeira, Op. Cit., p. 348-349.
236
DE CONSTANTINO, Núncia Santoro. A conquista do tempo noturno: Porto Alegre moderna. Estudos
Ibero-Americanos, v. 20, n. 2, p. 67-84, 1994, p. 80.
237
Ibidem.
84
Na primeira ocorrência não fica claro se os envolvidos eram um casal ou não, mas
destaca-se que estavam promovendo desordem juntos no “Merengue”. Podemos perceber o
envolvimento da meretriz Jacira em duas ocorrências e pelo mesmo motivo. Porém, os
amásios são diferentes. Apesar de a idade dela não coincidir nos dois registros, se trata da
mesma pessoa, o que conseguimos identificar pelo sobrenome. O tempo de uma ocorrência
para a outra é de mais ou menos 45 dias, o que nos leva a pensar que esses amásios eram
clientes ou Jacira separou de J.C. Guedes e, nesse ínterim, iniciou um novo relacionamento
com A.C. Gomes. É difícil concluir que se trata de um caso ou outro, porque o amasiamento
pode tanto ser uma relação de namoro ou de união estável, segundo as definições atuais,
quanto uma relação passageira, como a das meretrizes com seus clientes.
Prostitutas também foram presas em grupo pela Guarda Territorial, seja por
embriaguez, seja desordem, ou pelos dois motivos. Como veremos mais adiante, as meretrizes
amapaenses costumavam andar em grupo. Esses grupos eram criados por questões de
afinidade, parentesco ou porque moravam na mesma casa de habitação coletiva ou pensão:
238
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.146 de 11 de outubro de 1969, p.
81-82.
239
Ibidem. Ocorrência nº 1.049 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
240
Ibidem. Ocorrência nº 1.184 de 26 de outubro de 1969, p. 119.
85
241
Ibidem. Ocorrência nº 1.087 de 26 de setembro de 1969, p. 40-41.
242
Ibidem. Ocorrência nº 1.168 de 19 de outubro de 1969, p. 103.
243
Ibidem. Ocorrência nº 1.188 de 27 de outubro de 1969, p. 125.
244
Ibidem. Ocorrência nº 1.223 de 10 de novembro de 1969, p. 155.
245
DA COSTA, Raul Max Lucas. “Júlio Torres em cena”: embriaguez pública e moral impressa em Fortaleza
(1915-1935). Revista de História da UFBA, v. 5, n. 1-2, 2013, p. 231.
86
246
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.183 de 25 de outubro de 1969, p. 118.
247
Ibidem. Ocorrência nº 1.236 de 13 de novembro de 1969, p. 164.
248
Ibidem. Ocorrência nº 1.136 de 08 de outubro de 1969, p. 73-74.
249
Ibidem. Ocorrência nº 1.183 de 26 de novembro de 1969, p. 198.
250
DSG em números. Novo Amapá, nº 1.562, 21 de fevereiro de 1970, p. 5.
251
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.565, 19 de março de 1970, p. 2.
87
Desordem
José Benedito e Ademir Samorais, são dois sujeitos que quando ingerem
qualquer bebida alcóolica, gostam de fazer cenas pouco apreciáveis, e
travam luta corporal em plena via pública, "para dar uma demonstração de
que não somos moleza e sabemos brigar pra valer". Mas como há aquele
ditado que diz que um dia é da caça e outro do caçador, os dois brigões não
foram muito felizes em suas demonstrações de luta corporal em via pública,
A patrulha passava por lá no exato momento em que, de simples brincadeira,
passavam a esmurrar violentamente um a cara do outro. Conclusão: foram
recolhidos ao xadrez da permanência e só sairam após curtirem vinte e
quatro horas o sol quadrado, nas grades do xadrez256.
Vemos que o autor do texto destaca que a ingestão de bebida alcoólica fez com que
José e Ademir fossem protagonistas de briga cujo intuito era provar que eram fortes e, assim,
performar masculinidade. O que começou como brincadeira, acabou virando uma luta
violenta que cessou pela intervenção policial. Assim como nas ocorrências registradas pela
Central de Polícia, esse recorte do jornal destaca como a embriaguez e desordem eram
contravenções penais complementares para a força policial. Para Raul Max da Costa, o
“controle sobre a embriaguez pública era efetivado pela força policial através das prisões
correcionais. Enquanto a polícia prendia, o jornal registrava”257. Nesse caso, vemos a atuação
de dois órgãos do governo ditatorial no TFA: a Patrulha Policial prende e faz o registro de
ocorrência para que a imprensa oficial estampe a atuação da polícia nas folhas do jornal Novo
Amapá. Um trabalho complementava o outro.
252
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.567, 04 de abril de 1970, p. 2.
253
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.581, 01 de agosto de 1970, p. s/n.
254
BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.588, 26 de setembro de 1970, p. s/n.
255
BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.590, 10 de outubro de 1970, p. s/n.
256
RONDA policial. Novo Amapá, nº 1.747, 13 de setembro de 1974, p. 5.
257
DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 223.
88
258
DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 231.
259
LOBATO, Sidney. O despertar de Orfeu: prazer e lazer dos trabalhadores de Macapá (1944-1964). Topoi (Rio
de Janeiro), v. 15, p. 223-241, 2014, p. 231.
89
dia, o que nos leva a pensar que as características diurnas e noturnas desse local se
confundiam e não eram bem delimitadas. Esse bairro era atravessado por um fluxo intenso de
pessoas, o que gerava grande preocupação nas autoridades governamentais. Mas, a partir da
década de 1960, esse lugar passou a dividir o protagonismo das ocorrências policiais com
outros bairros periféricos como o Buritizal e o Santa Rita260.
Essas farras não eram marcadas somente pela camaradagem dos divertimentos, mas
também por conflitos. A junção das danças, dos festejos e do álcool causava brigas e ensejava
prisões. Em locais como botequins, salões de festa e clubes, embriaguez e desordem eram os
motivos mais comuns de detenção. Em setembro de 1969, os bombeiros J.C. Picanço, J.C. da
Silva e S.P. de Andrade, de 30, 22 e 35 anos261, respectivamente, e A.R. da Silva, O.A. Moraes
e J.T.P. Nascimento, de 18, 19 e 22 anos, residentes em Macapá262, respectivamente foram
presos por promover desordem no Merengue. E em novembro, Jagunço foi detido no dançarás
pelo mesmo motivo263.
Foram detidos no Bar Gato Azul: J.N. Gomes, paraense, casado, motorista
profissional, residente no bairro Buritizal264; E.A. de Araújo, A.A.F. de Sena, I.P. Dias e R.
Miranda, paraenses, solteiros, marítimos, de 31, 31, 26 e 33 anos de idade, respectivamente,
estavam de passagem por Macapá e foram presos embriagados por promover desordem no
referido bar e fazer necessidades fisiológicas em via pública265.
Já no Bar Banavita, W.M. Picanço, paraense, casado, funcionário público, com 32 anos
de idade, e M.C. Mendes, amapaense, estudante, com 18 anos de idade, foram presos por
promover desordem no bar. Eles se comprometeram a pagar o prejuízo que causaram e foram
liberados266. Em uma festa na Sede do Trem Esporte Clube, M.R.N. Caldas e E.M. Alfaia,
amapaenses, solteiros, estudantes, moradores do bairro do Trem, de 19 e 20 anos de idade,
respectivamente, fizeram desordem e foram presos267. O único registro que tem um motivo
diferente para a detenção ocorreu na Pensão da Suerda: “Detenção: Por haver feito despesa na
Pensão da Suerda na importância de 28,00 e mais 6,00 de carro sem ter dinheiro para pagar
foi detido E. Souza, paraense, casado, funcionário de Platon Indústria e Comércio, sendo
recolhido ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de Plantão”268. A Pensão da Suerda é outro
260
Nessa época, o bairro Santa Rita também era chamado de “Favela” e de “bairro da CEA”, a antiga Companhia
de Eletricidade do Amapá.
261
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.038 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
262
Ibidem. Ocorrência nº 1.039 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
263
Ibidem. Ocorrência nº 1.216 de 08 de novembro de 1969, p. 149.
264
Ibidem. Ocorrência nº 1.044 de 13 de setembro de 1969, p. 7.
265
Ibidem. Ocorrência nº 1.202 de 02 de novembro de 1969, p. 136.
266
Ibidem. Ocorrência nº 1.093 de 28 de setembro de 1969, p. 46.
267
Ibidem. Ocorrência nº 1.123 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
268
Ibidem. Ocorrência nº 1.231 de 12 de novembro de 1969, p. 161.
90
local que atravessou os anos e continua presente na memória dos amapaenses como um
importante espaço de prostituição e diversão noturna. Mas, ao contrário do Bar Caboclo, ela
não foi cenário frequente de registros policiais. Inclusive, não é difícil ouvir comentários de
que a Suerda “não era pra qualquer um”, que era uma casa de meretrício para pessoas de
maior poder aquisitivo. A ocorrência acima foi a única encontrada no Livro de Ocorrências,
nos jornais e nos processos judiciais.
Alguns botequins eram mais frequentes nos registros policiais. No Bar Caboclo, R.S.
Carvalho e J. Sarmento, paraenses, solteiros, de 24 e 42 anos, respectivamente, foram detidos
por embriaguez, ficaram presos até passar o efeito do álcool269. Já por desordem, após
agredirem-se, foram presos J.R. dos Santos, paraense, casado, de 39 anos de idade, e seu
vizinho F.B. Santos, amapaense, solteiro, de 23 anos de idade, moradores do bairro do
Trem270; e R.S. de Morais, paraense, solteiro, estudante, de 21 anos, foi detido após quebrar
copos no bar271. Por embriaguez e desordem, foram presos L.C. Picanço, amapaense, de 22
anos de idade, solteiro, motorista, G.G. da Silva, paraense, solteiro, de 19 anos de idade,
trabalhador do Matadouro de Fazendinha272; A.C. Gomes de 21 anos e M.D. do Vales,
paraenses, solteiros, residentes do bairro do Beirol273; o grupo de jovens R.S. dos Santos, F.
Mira, J. Magno, R.P. Gemaque, J.P. Gemaque e B.B. da Silva, paraenses, solteiros, de 20, 19,
21, 19, 18 e 18 anos, respectivamente, estavam alcoolizados e fazendo desordem no Bar
Caboclo274; S. Lima, paraense, de 31 anos, casado, residente no bairro da Favela, foi preso por
estar embriagado e por promover desordem e na delegacia foi “inconveniente” com o
delegado275.
Diferentemente do que foi feito na subseção anterior, aqui escolhemos citar os
registros em que somente homens figuram detidos em bares, botequins, clubes e dançarás.
Isso com o objetivo de identificar quem eram os homens frequentadores desses lugares. A
idade deles ficava entre 18 e 42 anos, eram paraenses e amapaenses e a maioria residia em
Macapá. Eles eram trabalhadores braçais, bombeiros, marítimos e estudantes. Nem sempre
essas informações eram descritas, pois não havia um padrão no preenchimento das
ocorrências. Em alguns casos somente o nome dos contraventores era informado.
269
Ibidem. Ocorrência nº 1.220 de 09 de novembro de 1969, p. 153.
270
Ibidem. Ocorrência nº 1.048 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
271
Ibidem. Ocorrência nº 1.145 de 11 de outubro de 1969, p. 81.
272
Ibidem. Ocorrência nº 1.085 de 26 de setembro de 1969, p. 39-40.
273
Ibidem. Ocorrência nº 1.122 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
274
Ibidem. Ocorrência nº 1.189 de 28 de outubro de 1969, p. 126.
275
Ibidem. Ocorrência nº 1.203 de 02 de novembro de 1969, p. 137.
91
Proibição
Disse ainda o dr. Odir Macedo que a medida do Secretário da SEGUP vai
proporcionar maior tranquilidade às famílias e o espetáculo proporcionado
por elementos em avançado estado de embriaguez alcoólica vai diminuir
sensivelmente276.
276
POLÍCIA estuda meio de proibir venda de cana. Novo Amapá, nº 1.745, 31 de agosto de 1974, p. 2.
92
Seção de Coordenação
Portaria Nr. 39/64-DSG
277
DELEGADO Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”. Novo Amapá, nº 1.746, 07 de setembro de
1974, p. 2.
93
RESOLVE:
A partir da leitura desse documento podemos inferir que as associações eram diferentes
de clubes sociais como o Esporte Clube Macapá. Podemos supor que as associações citadas
eram as escolas de samba de Macapá. É necessário observar que essa portaria foi publicada
antes do Golpe de 1964, o que nos leva a concluir que o controle policial sobre os espaços
festivos não foi exclusividade do regime ditatorial. Nos anos da Ditadura empresarial-militar,
A DSG também publicou nos jornais locais portarias com normas a serem seguidas no
carnaval amapaense. Localizamos duas delas nos anos de 1970 e 1971279:
[…]
De acordo com esta portaria, todos os lugares que fossem realizar festas carnavalescas
deveriam solicitar licença. Além dessas determinações, também foi proibido que os foliões se
fantasiassem de policiais, de padres, freiras e que usassem qualquer identificação que fizesse
referência a uniformes militares.
O carnaval movimentava o TFA e os clubes preparavam bailes para os foliões. A
agitação carnavalesca marcava presença nas páginas dos jornais. Parte da divulgação das
festas e dos preparativos dos clubes ficava a cargo de Wilson Sena, colunista e chefe das
oficinas do Novo Amapá:
Os bailes desses clubes eram frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo do
TFA. Na edição seguinte do jornal, o colunista critica a organização de um dos bailes
280
DIVISÃO de Segurança e Guarda. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 6.
281
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.55824 de janeiro de 1970, p. 5.
282
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 5.
95
carnavalescos do Esporte Clube Macapá no qual “entrou todo mundo”, deixando de ser uma
“seleta reunião dançante”:
Não sabemos o que aconteceu na festa para gerar o incômodo de Wilson Sena pela
falta de seletividade da diretoria do Macapá, mas podemos atestar que não era “qualquer
pessoa” que frequentava o clube e quando isso acontecia causava uma indisposição naqueles
que estavam habituados a um ambiente socialmente excludente. Para sanar esse desconforto,
Sena sugeriu que o clube voltasse a utilizar seus critérios de seleção de participantes na
portaria. Ao escrever sobre a programação de carnaval dos clubes locais, o articulista destacou
que “Os clubes suburbanos, ao som de suas boas aparelhagens, terão oportunidade de também
mostrar que sabem aproveitar a quadra momesca e responderão presente ao Rei Momo”284.
Desse modo, ele separava clubes como Trem Desportivo Clube, Esporte Clube Macapá,
Santana Clube e o Círculo Militar, dos clubes suburbanos de Macapá.
No ano seguinte, ao abordar as festas de Réveillon que frequentou com sua família,
Wilson Sena referiu-se ao Círculo Militar e ao Santana Esporte Clube como clubes
aristocráticos e destacou que no primeiro estavam presentes o governador do TFA, o General
Ivanhoé Martins, e o prefeito de Macapá João Oliveira Côrtes, além de outras autoridades não
citadas285. Logo, inferimos que esses clubes, em especial o Círculo Militar, eram locais de
encontro e confraternização dos gestores do TFA. Por fim, ele destacou que “em ambos os
bailes, predominou a elegância da mulher amapaense”286. Essa mulher amapaense não era a da
classe trabalhadora, mas sim as esposas, mães, irmãs e filhas dos políticos do TFA. O tom
mudou quando o articulista passou a abordar as festas dos subúrbios, porque “tem muito
menor por aí fazendo o que quer” e a fiscalização estava “dando duro” nessas festas287. Vemos
283
Ibidem.
284
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.560, 07 de fevereiro de 1970, p. 05.
285
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 05.
286
Ibidem.
287
Ibidem.
96
como a classe dos frequentadores de cada festa é relevante para o colunista. Por um lado, ele
destaca a aristocracia e a elegância, por outro, por outro, ele destaca a fiscalização nos clubes
suburbanos, porque neles não havia organização e critérios para participar dos festejos.
Depois, ele menciona “os animados bailes carnavalescos” dos clubes suburbanos 13 de
Setembro e Cruzeiro, “mostrando que também no subúrbio, o som da cuíca e do pandeiro é
coisa pra valer”288. Mas, ele não comenta se vai frequentar os bailes suburbanos com sua
família, ao contrário do que faz quando comenta as festas promovidas pelos clubes
“aristocráticos”
Um exemplo de como a classe social era um marcador usado para diferenciar os
foliões amapaenses, não só por colunistas, mas também para a polícia, foi a notícia de um
roubo. As casas noturnas suburbanas eram alvos prediletos da vigilância policial, porque na
visão das forças do controle social era mais fácil criminosos frequentarem esses espaços do
que as festa da “aristocracia” amapaense:
288
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.602, 30 de janeiro de 1971, p. 05.
289
POLÍCIA põe as mãos no ladrão da “Casa Lima”. Novo Amapá, nº 1.671, 17 de fevereiro de 1973, p. s/n.
290
LOBATO, Sidney. Op. Cit., 2014, p. 238.
291
LANÇAMENTO foi festa. Icomi Notícias, ano 1, nº 03, p. s/n.
97
frequentados pelos “mais endinheirados”. Por outro lado, os botequins eram recorrentemente
citados como locais de confusão. Enquanto botequins, associações e clubes suburbanos eram
frequentados por funcionários públicos, estudantes, meretrizes, marítimos, motoristas e
trabalhadores braçais em geral, os clubes “aristocráticos” eram frequentados por políticos,
empresários, militares e suas famílias. Desse modo, fica evidente que era em razão de critérios
de classe que uns tinham mais fiscalização policial do que outros.
292
Segundo Soraya Januário: Esta forma de masculinidade está discriminada devido à condição subordinada de
classe social ou etnia. A marginalização é produzida nos grupos explorados ou oprimidos que podem
compartilhar muitas das características da masculinidade hegemónica, mas que são socialmente desautorizados.
In: JANUÁRIO, Soraya Barreto. Masculinidades em (re)construção: Genero, Corpo e Publicidade. Covilhã:
Labcom. Ifp, 2016, p. 126.
293
Originalmente, o texto citado tem como referência o nome morto de Raewyn Connel, antes da transição de
gênero. Por isso, vamos nos referir a ela com seu nome atual.
294
CONNELL, Robert W. “Políticas da masculinidade”. In: Educação e Sociedade. 1995, p. 188.
295
Ibidem, p. 189.
98
pobres, negros ou homossexuais, não seguem (ou não se encaixam) totalmente o modelo de
masculinidade hegemônico.
As masculinidades hegemônicas e marginalizadas exercem influência uma sobre a
outra e ambas se apropriam de aspectos exôgenos.296 Então, alguns aspectos do conceito
podem e devem ser mantidos, como a pluralidade e a hierarquia das masculinidades. Segundo
os autores, “padrões múltiplos de masculinidade têm sido identificados em muitos estudos,
em uma variedade de países e em diferentes contextos institucionais e culturais”.297 Do
mesmo modo, Soraya Januário argumenta que:
Cada lugar tem uma forma única de masculinidade, ou de “ser” e “fazer-se” homem.
Assim, as masculinidades amazônicas são marcadas por questões culturais e sociais locais. Os
casos a seguir evidenciam uma faceta das masculinidades e do machismo na sociedade
amapaense. Homens que brigavam entre si por causa de rixas anteriores e homens que
agrediram meretrizes motivados pelo álcool e pela valentia masculina.
Vamos aos episódios: A.C.B.P, macapaense, solteiro, com 19 anos de idade, tipógrafo,
alfabetizado, residente à av. Ataíde Teive e O.F.G., 25 anos de idade, solteiro, militar,
alfabetizado, residente à rua São Paulo, foram acusados pelo crime de lesões corporais. Eles
agrediram-se mutuamente no dia 02 de abril de 1972. Na companhia de um colega, A.C.B.P.
saiu do dançará Merengue às três horas e quando estavam caminhando próximo à Usina Costa
e Silva, O.G.F. quase atropelou seu colega com a bicicleta, o que gerou uma reclamação. O.,
que estava com um companheiro conhecido como Curica, desceu da bicicleta e foi em direção
à A. com uma corda e os dois entraram em luta corporal. Um guarda separou os dois e eles
seguiram seus caminhos. Mas, acabaram se encontrando novamente, quando A. acertou seu
oponente na cabeça com um cinto. Por sua vez, O. feriu A. com um objeto cortante.299 Um
simples atrito foi o suficiente para causar essa tensão entre os acusados, suscitando uma
intervenção policial.
296
CONNELL, Raewyn; MESSERCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, v. 21(1): 424, p. 241-282, jan-abr, 2013.
297
Ibidem, p. 262.
298
JANUÁRIO, Soraya. Op.Cit., p. 118.
299
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 05-06.
99
O desafio pode ser visto como o último estágio de uma escalada contínua de
tensões específicas ativadas a partir do surgimento da rixa. O desafio precede
imediatamente o conflito e anuncia aos membros de um determinado meio
sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de funcionamento e ajuste de
tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado. Neste contexto, a
violência não é algo gerado espontaneamente num dado momento, mas sim o
resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma
cultura ou sociedade.301
Então, “a mágoa por causa de uma garota” é uma rixa, o pedido de cigarro, o
atropelamento e a reclamação podem ser definidos como o desafio resultante dessa rixa.
Note-se que esse episódio de violência não surgiu do nada, e a rixa que está na sua origem
pode ter sido alimentada em outras ocasiões. E uma noite de festa e bebida encorajou os
envolvidos.
O funcionário público H.F.P., de 36 anos, casado, paraense, residente à rua Hildemar
Maia, sabendo ler, separou a briga dos acusados. Conhecia O., sabendo ser militar do 34º BIS,
e dissera para ele parar com a briga pois era feio um militar promover desordem. Com isso, O.
lhe disse que iria voltar ao quartel. Foi embora e não soube o que aconteceu depois, mas no
dia seguinte foi procurado pelo delegado Oscar Lima para relatar o que sabia do ocorrido.
Esse depoente, “depois, em conversa com a mundana que conhece por BOSSA NOVA e uma
outra desconhecida, foi informado de tudo o que havia se passado entre o dito soldado e
aquele desconhecido”.302 H. era guarda territorial, em seu depoimento aponta que para saber
300
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 07-08.
301
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. 3 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 310.
302
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 9.
100
do restante do ocorrido recorreu a duas meretrizes. A partir disso, podemos cogitar que esse
guarda territorial tinha uma relação amistosa com as prostitutas que conhecia, e a quem
recorreu como fontes confiáveis.
Bossa Nova era meretriz, paraense, solteira, com 36 anos de idade, residente na
avenida Antônio Coelho de Carvalho, próximo à Usina Costa e Silva, e não sabia ler e
escrever. Disse que no dia do ocorrido, saiu do Merengue com sua amiga Lindalva, em
direção às suas casas. Viu todo o ocorrido e ouviu quando O. falou para seu companheiro
Raimundinho esperar o guarda H. tomar distância para dar “porrada” em A. e M., o que
aconteceu. O militar foi ferido na orelha por A., que fugiu com seu colega. Ela viu seis
recrutas dando apoio a O., correndo atrás dos dois rapazes que entraram no terreno da usina.
Disse que conhece todos de vista, o que sugere que os militares do Exército eram conhecidos
das prostitutas amapaenses. Primeiro, isso ocorria porque os soldados faziam a patrulha da
cidade junto a a Guarda Territorial. Segundo, porque frequentavam os mesmos espaços que
elas em momentos de lazer. Eles queriam obrigar o vigilante a deixá-los entrar no terreno da
usina, o que lhes foi negado. Por isso, se desentenderam com o vigilante e puxaram o chapéu
dele, só devolvendo com muito custo. Ela ouviu que Raimundinho segurou A. para que O. o
furasse. Identificou um dos militares como Uriel, que acompanhado de Raimundinho, era
acostumado a provocar os recrutas para promover desordem. E sabe que “O. todas as vezes
que chega[va] no Merengue acompanhado de RAIMUNDINHO procura[va] tumultuar a
coisa, pois são dados ao vício da embriaguez”.303 Os militares do 34º BIS se envolviam em
desordens, o contrário do que poderíamos pensar, já que tinham como missão manter a ordem
social no TFA. Ainda mais levando-se em consideração os anos da Ditadura
empresarial-militar, nos quais se sentiam encorajados pela certeza da impunidade, de que não
seriam punidos. Aparentemente andavam em grupo pelos locais de festa em Macapá e usavam
de seu poder para cometer abusos.
Por meio desse depoimento de Bossa Nova, vemos como a junção de álcool e valentia
masculina poderia culminar em conflitos e lesões corporais. Nos tumultos que O. e
Raimundinho causavam no dançará Merengue, e nas provocações de Raimundinho e Uriel aos
recrutas vemos atos orientados por códigos de masculinidade. Alessandro Cerqueira Bastos,
ao analisar as masculinidades populares em Feira de Santana, na Bahia, e analisar a relação
entre a agressividade masculina e o álcool, pondera que a embriaguez poderia desencadear a
violência masculina. Mas, é importante entender que o álcool também tinha um papel
303
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 11-12.
101
304
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Homem trabalhador, pacato e de bom procedimento: masculinidades
populares, violência e cotidiano (Feira de Santana, 1960-1970). Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História Social), Universidade Federal da Bahia, 2021, p. 79-80.
305
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 14.
306
Ibidem, p. 15.
307
AFCM. Processo nº 4.209 de 13 de fevereiro de 1978.
102
O Xadrezão era uma boate e também era chamado de pensão, prostíbulo e dançará.
Nesse processo, muitas prostitutas estavam envolvidas porque eram moradoras da boate.
Algumas nem prestaram depoimento e foram somente citadas. Maria Inês, brasileira,
amapaense, solteira, meretriz, 14 anos de idade, residente na pensão Xadrezão, sabendo ler e
escrever, disse que estava dançando na boate e que o acusado estava ali presente se
divertindo. Em certo momento, “ouviu Rosineide, meretriz e que também estava naquela
boate queixar-se de ter sido esbofeteada pelo acusado, no interior daquela casa; que, em
seguida generalizou-se uma discussão entre a referida mulher e o acusado presente,
desentendimento esse que chegou até a rua”.308 Já a meretriz Marize, brasileira, amapaense,
solteira, residente na rua Hildemar Maia, 147, bairro da CEA, 18 anos de idade, sabendo ler e
escrever. Disse:
Abutre relatou que estava na boate Xadrezão, fardado e de passagem para o quartel, na
estrada Macapá-Santana. Disse que não havia batido em nenhuma mulher e que, quando a
viatura chegou, estava do lado de fora da boate, com Maria Helena. Segundo seu relato, um
policial descera do carro e deteve Maria Helena, mandando que ela entrasse no veículo. Ele se
dirigira até ela para perguntar pelo dinheiro que estava faltando no seu bolso, quando fora
atingido com um pontapé por um dos policiais, ocasião em que reclamara e fora ameaçado de
ser quebrado de cacete.310 Na sua ficha de vida pregressa, consta que sua esposa tinha 16 anos
e que sua filha estava com alguns meses de idade. Abutre era mais um homem casado que se
permitia ter a companhia de meretrizes, sem que isso lhe causasse qualquer prejuízo conjugal.
Rosineide, brasileira, paraense, de 17 anos de idade, meretriz, residente no bairro
Santa Rita, às proximidades do abrigo dos Velhos, no prostíbulo ocupado por diversas
meretrizes, sob a responsabilidade da mulher Maria Pretinha, disse que Antônio Luiz vulgo
“Abutero” era xodó da meretriz Maria Helena:
Que, em dado momento a declarante foi avisada por outra mulher que
Abutero iria batê-la a pedido de Helena; que, a declarante sabedora de que
308
Ibidem, p. 4.
309
Ibidem, p. 4.
310
Ibidem, p. 5.
103
Que em certa ocasião Abutre, desligou todas as luzes da boite para promover
uma desordem, sendo domingado pelo motorista Hely Barbosa que evitou
maiores consequências, que, dias depois deste fato, o declarante em
momento do seu almoço, foi chamado por alguém que desejava lhe falar e o
atendendo, deparou com Antônio, o qual lhe ameaçou e avisou que à noite
estaria lá com uma Patota (textuais) para quebrar a referida boite em revide
de haver sido contido na noite anterior pelo motorista Hely que o dominou e
o fez retirar-se do local; que, ao anoitecer, por volta das vinte e duas horas,
311
Ibidem, p. 14.
104
312
Ibidem, p. 16.
105
Desse modo, como bem explica Chalhoub, o homem pobre constrói sua identidade
pelo que faz. Como alerta Cerqueira Bastos, não podemos naturalizar o comportamento e
achar que é destino dos homens, principalmente os pobres, serem violentos e agressivos com
mulheres e com outros homens.314 No contexto amapaense, acreditamos que o motivo pelo
qual os sujeitos citados na documentação agiram com violência foi a sensação de impunidade
decorrente de seu poder político e social. Ou seja, não se trata de uma violência natural, mas
institucionalizada e autorizada pelo Estado ditatorial territorial e nacional.
Nesse sentido, O., Raimundinho, Uriel, Abutre e demais homens citados, precisavam
demarcar que eram machos perante seus rivais, mas também diante de mulheres. Quando
promoviam tumultos nas boates e nas ruas de Macapá, os soldados estavam se valendo de
uma masculinidade particular, compartilhada somente com seus pares e marcada pela
hierarquia militar. Nesse contexto, podemos até mesmo definir a masculinidade de Abutre,
Raimundinho, O. e Uriel como uma masculinidade hegemônica, enquanto a masculinidade
dos recrutas é marginalizada, porque é colocada à margem da masculinidade hegemônica dos
soldados. Porém, todos esses homens citados assumem uma masculinidade marginalizada
perante seus superiores militares e de homens da classe dominante, porque eles são apenas
trabalhadores. Ao que parece, esses militares assumiram uma postura de “donos da cidade”
ou, no mínimo, donos dos ambientes festivos. Mas, no momento em que as meretrizes e o
proprietário do Xadrezão se acharam seguros para denunciar os excessos do soldado Abutre,
ficou claro que as vítimas também tinham seus meios de resistência.
313
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 326-327.
314
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Op. Cit., p. 16.
106
315
O Bairro Alto compreendia o perímetro da rua Hamilton Silva até a rua Cândido Mendes. Atualmente essa
região corresponde ao bairro central.
316
Nesse atinente, afirma Sidney Lobato: “Novos e cada vez mais populosos bairros foram surgindo em Macapá,
a partir de 1944. [...] Dois processos concorreram para a formação dos bairros suburbanos: o grande movimento
migratório rumo a Macapá e a inviabilização da permanência dos moradores mais pobres no centro urbanizado
desta cidade, por meio do estabelecimento de padrões ocupacionais que eles não podiam alcançar” (LOBATO,
Sidney. Op. cit., p. 85).
107
Na década de 1960, o Trem já não estava fora dos limites da cidade, porque Macapá já havia
expandido seu perímetro urbano e o bairro já contava com vários melhoramentos de infraestrutura. O
Beirol já não era mais uma chácara, pois estava delimitado enquanto bairro. Nele estava localizada a
Colônia Penal do Beirol, o antigo presídio do TFA. O bairro da Favela foi formado após parte da
população pobre e negra habitante do centro histórico de Macapá ser deslocada para seu perímetro e
para o bairro do Laguinho. Sidney Lobato descreve a Favela da seguinte maneira:
317
Ibidem, p. 86-87.
109
Uma das áreas dessa zona [suburbana] que mais rapidamente cresceu foi a
Favela – nome dado a uma baixa alagadiça que se localizava ao norte do
“bairro Alto”. Como já afirmamos, uma parcela da comunidade negra que
residia no centro histórico de Macapá mudou-se para tal área. [...]. Muitos
imigrantes decidiram construir na Favela as suas novas moradias. Entre
outros fatores, tal escolha decorria da proximidade deste lugar em relação ao
centro político-social de Macapá.318
A Favela também era conhecida como Santa Rita, que é o atual nome do bairro. Nele
foi formada uma importante área de meretrício que é constantemente citada nas fontes, mas
não como zona. Nós é que a estamos definindo assim, pois nela havia várias boates. Lá
estavam localizados o Juçarão, Lago dos Sonhos e Merengue, locais conhecidos como
inferninhos, segundo a definição popular. Em entrevista, a comerciante Maria Albuquerque
cita diversos estabelecimentos noturnos e classifica alguns como inferninhos: “tinha esse tal
de Merengue. Era só dança e bagunça. Pense na bagunça, era bêbado e brigava, polícia
pegava, levava”.319 Ela era proprietária de uma boate – ou casa de mulheres como ela a define
–, e afirma que o Merengue era apenas um dançarás, pois não possuía quartos para meretrizes.
Mas, ela não classifica a sua boate como inferninho, inclusive a diferencia deles.320.
A Doca da Fortaleza ficava na margem esquerda do Igarapé da Fortaleza no bairro
central321, era um local importante para cidade de Macapá. Tanto que historiadores como
Paulo Costa, Adalberto Paz e Sidney Lobato se dedicaram a escrever sobre ela322. Sempre
movimentada, era pela Doca que a cidade era abastecida pelos ribeirinhos e pelos regatões. A
Doca tinha meretrizes, comerciantes, marítimos, estudantes e tantos outros sujeitos como
moradores e frequentadores. Era constituída de palafitas e pontes de madeira para facilitar a
mobilidade dos transeuntes. Adalberto Paz define a doca da Fortaleza da seguinte maneira:
323
PAZ, Adalberto Junior Ferreira, Op. cit., p. 41-42.
324
PLUMAUZILLE, Clyde. Le «marché aux putains»: économies sexuelles et dynamiques spatiales du
Palais-Royal dans le Paris révolutionnaire. Éros parisien. 2014. Disponível em: http://gss.revues.org/2943.
325
Ibidem, p. 6.
326
LOBATO, Sidney. Op. cit., p. 146. Entrevista com Arlindo Silva de Oliveira, realizada em 13 de outubro de
2006.
327
NASCIMENTO, Uelba Alexandre do. O doce veneno da noite: prostituição e cotidiano em Campina Grande
(1930-1950). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de Campina Grande, 2007, p.
53-54.
328
Ibidem, p. 60.
111
329
COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 182.
330
Novo Amapá, nº 1.568, 20 de abril de 1970.
331
COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 190-192.
332
MINIATURAS. Novo Amapá, n° 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 5.
113
As canoas e regatões deixaram de navegar por ali, mas os sujeitos que antes
frequentavam aquele local não. Os boêmios, os bêbados e as prostitutas continuaram
transitando e ocupando aquele espaço remodelado e urbanizado, seja porque moravam lá em
quartos alugados, seja porque frequentavam boates como a Hollywood e botequins como o
Bar Caboclo. Em agosto de 1970, a seção da DSG publicou uma portaria de 16 de junho,
proibindo a moradia e permanência de meretrizes na avenida Mendonça Júnior, no perímetro
entre as ruas Cândido Mendes e Eliezer Levy:
Portaria n° 126/70-DSG
Aprovo:
Gen. Ivanhoé Gonçalves Martins
Governador
RESOLVE:
333
DIVISÃO de Segurança e Guarda. Novo Amapá, n° 1.582, 08 de agosto de 1970, p. 2.
114
Essa portaria foi uma tentativa de higienizar socialmente o novo canal e a área central
de Macapá. Havia décadas esse espaço era ocupado pelas meretrizes e com a retificação do
canal o governo passou a exigir que elas se retirassem para não “sujar” a capital urbanizada
com o que era identificado como promiscuidade, falta de higiene e sordidez. O texto informa
que a região mencionada era policiada pela DSG, mas o comportamento e vocabulário
indecorosos dessas mulheres não podiam ser controlados pelas forças policiais. Assim, a
presença delas era considerada incômoda e uma influência negativa para as famílias que
passavam por li.
O documento cita a existência de locais mais afastados do centro da cidade que podem
acomodar as meretrizes com melhor higiene, trecho que consideramos mais importante.
Primeiro porque a falta de decoro, os palavrões e as roupas curtas são constantemente citados
pelos governantes, por jornalistas, pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade em geral. Em
segundo lugar, essa portaria revela que a prostituição urbana feminina sempre foi alvo da
vigilância das forças de segurança do TFA e que eliminar a prostituição não era a intenção do
governo ditatorial, mas sim tira-la do centro da cidade. Por último, destacamos que a
proibição da permanência das meretrizes no centro da cidade e seu deslocamento para áreas
mais afastadas e, consequentemente, longe do centro de Macapá, também se explica pelo fato
de, não muito longe do canal, funcionarem órgãos de governo. Logo, não é de se admirar que
as prostitutas fossem uma presença incômoda não só pelo que constava na portaria, mas
também porque sua proximidade não agradava as autoridades governamentais. Contudo, essa
“sugestão” de que as decaídas fossem transferidas para locais mais afastados do centro urbano
não explica o aparecimento de novos locais de meretrício nos bairros periféricos, porque eles
já existiam. Lobato indica que os maiores prostíbulos estavam situados fora dos limites do
centro da cidade de Macapá334, então essa proposta do diretor da DSG pode ser entendida no
sentido de que elas fossem pedir abrigo e trabalho nas pensões e boates periféricas e que
deixassem de viver em cômodos e quartos alugados, especialmente no reformado logradouro
público da cidade.
Em Vitória-ES, ocorreu um movimento similar no mesmo período. As prostitutas,
majoritariamente pobres e negras, foram expulsas do centro de Vitória, “lugar de lazer e
residência das classes médias e altas, compostas, principalmente, por uma população
branca”335. Dessa forma, podemos considerar que a expulsão das prostitutas das áreas centrais
das duas capitais foi não apenas uma higienização de classe, mas também de cor. Para Mirela
334
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219, 2019.
335
MORGANTE, Mirela Marin. Op. Cit., p. 64, 2020.
115
Morgante, o decreto de expulsão das prostitutas de Vitória teve como finalidade preservar a
moral e os bons costumes porque as mulheres moradoras do centro poderiam ser confundidas
ou influenciadas pelas prostitutas capixabas336. Já em Joinville-SC, também foi na década de
1960 que as práticas das prostitutas começaram a incomodar o poder público a ponto deste
querer fixa-las em um só local, ao invés de ficarem espalhadas pela cidade, sobretudo no
centro urbano.337
A preocupação das autoridades governamentais brasileiras com a prática da
prostituição nas ruas centrais das cidades não foi exclusiva da Ditadura empresarial-militar.
No início do século XX, no Rio de Janeiro, então capital federal, os delegados de polícia
tentavam retirar as prostitutas das ruas, principalmente as moradoras dos sobrados do centro
da cidade. Em 1900, o delegado Olympio Leite disse que tinha tirado a prostituição de uma
região do centro, mas no ano seguinte outro delegado continuava preocupado com a mesma
região.338O delegado em questão era Vicente Reis que, ao tentar sanear socialmente a região,
cometeu diversas arbitrariedades contra as prostitutas, como tirá-las à força de casa e, mesmo
depois de recolhidas, prendê-las. Prostitutas procuraram a imprensa para denunciar as ações
de Reis. Apesar de ser a favor do saneamento moral da cidade, tal imprensa criticou o
delegado, admitindo que ele “atropelou a lei”.339 Outra forma de resistir às arbitrariedades
policiais foram os pedidos de habeas corpus feitos por algumas das prostitutas que foram
presas sem motivos.
Em 1904, no contexto da revolta da vacina, da remodelação urbana e dos conflitos
sociais daí decorrentes, a tentativa de saneamento moral do centro do Rio de Janeiro
continuou. Mas dessa vez teve êxito. O delegado Ernesto Garcez ameaçou prostitutas de
prisão caso não saíssem da rua Sete de Setembro. Por causa da revolta da vacina, o Rio de
Janeiro estava em estado de sítio, então não era possível questionar qualquer medida por meio
de habeas corpus.340
O deslocamento de prostitutas ocorrido em Macapá durante a Ditadura nos permite
entender porque a Doca da Fortaleza deixa de ser a maior referência de zona de meretrício da
capital amapaense. Outros locais começam a figurar com mais frequência que ela nas fontes.
Então, acreditamos que a eliminação da prostituição na frente da cidade foi efetivada com
336
Ibidem, p. 188.
337
SILVA, Janine Gomes da. Casas, esquinas e ruas ‘do pecado’: lugares de prostituição, memórias sobre um
‘discurso caminhante’. In: FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.).
Prostituição em áreas urbanas: Histórias do Tempo Presente. Florianópolis: Editora UDESC, 2010, p. 53.
338
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 56-57.
339
Ibidem, p. 58.
340
Ibidem, p. 60-61.
116
relativa eficiência pelo governo ditatorial. Atualmente, o canal da avenida Mendonça Júnior é
um local de intenso comércio varejista e não há sequer menção ou indício de prostituição no
local. O objetivo dessa proibição foi eliminar as meretrizes do centro da cidade, e podemos
considerar que essa finalidade foi alcançada, mas não no ritmo que o governo ditatorial
desejava. Em junho de 1974, temos um indício de que as prostitutas não obedeceram a
portaria:
Informação errada
341
Novo Amapá, n° 1734, 15 de junho de 1974, p. 03.
117
nesse período. De fato, no processo do homicídio de uma meretriz é mencionada uma casa de
cômodos existente na avenida Mendonça Júnior que era habitada por prostitutas, inclusive
pela vítima.342 Apesar do temor da polícia, as meretrizes acabaram voltando a frequentar e a
morar nas imediações do Bar Caboclo. Mas, segundo Abraão, no seu bar elas estavam
proibidas de entrar. Importante atentar à pequena fala desse comerciante sobre a associação de
seu nome à prostituição e sobre o perigo desta para as famílias que residiam nesse local.
Podemos então concluir que a presença das prostitutas era incômoda tanto para o poder
público quanto para os moradores da área central de Macapá, mas essas mulheres, por meio
de suas experiências, estavam batalhando por esse espaço que há tanto tempo ocupavam.
Como destacamos anteriormente, nas reformas urbanas das primeiras décadas do
século XX no Rio de Janeiro, os delegados conseguiram retirar as prostitutas de algumas ruas
do centro da cidade, mas:
342
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973.
343
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 64-65.
118
Outros bairros como Buritizal e Pacoval também foram citados nas fontes, mas na
bibliografia utilizada não há registros sobre esses bairros. No período dessa pesquisa, eles
eram os mais afastados da área central. No Pacoval estava localizada a já citada Pensão/Boate
da Suerda. Em um processo criminal, Francisco, brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34
anos, comerciante, residente na rua Hildemar Maia, bairro do Miritizal [Buritizal], sabendo ler
e escrever, foi testemunha de um caso de desacato e resistência à prisão. Em seu depoimento,
ele disse que era proprietário da Boite Xadrezão, localizada na esquina da rua Paraná com a
avenida Mendonça Furtado, no bairro Santa Rita, explorando o comércio de bar e botequim
com danças, durante a noite e:
344
AFCM. Processo crime nº 4209 de 13 de fevereiro de 1978, p. 05.
345
DA SILVA, Diêgo Soares; DA SILVA SOUZA, Worlen; DE VILHENA SILVA, Gutemberg. A territorialidade
da prostituição em Macapá-AP: um estudo de caso a partir da Rua Claudomiro de Morais. Boletim Gaúcho de
Geografia, v. 42, n. 2, 2015, p. 569.
119
Para além de Macapá, é necessário citar algumas outras localidades do TFA que
apareceram nas fontes. Como a área portuária da Vila de Santana, conhecida pela população e
pela polícia como zona de meretrício. Segundo os autos de investigação social, o adolescente
Pretinho havia furtado três mil cruzeiros de J.G. da Silva e fugira com outro homem, em uma
bicicleta:
346
AFCM. Autos de Investigação Social Furto Qualificado de 06 de maio de 1980, p. 04.
347
AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969.
348
AFCM. Processo nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 05.
349
Ibidem, p. 08.
120
O adolescente era um notável frequentador das festas populares. Praticava furtos para
sustentar suas noites com bebidas na companhia de meretrizes. Para participar do carnaval, ele
saiu de sua residência, situada na estrada Macapá via Fazendinha351, para furtar casas na Vila
Amazonas. Ao anoitecer, foi de táxi para Macapá e se juntou a Manduca em um clube
suburbano para farrear. Juntos, foram à boate do Marisco para beber, depois rumaram para a
boate Hollywood, onde L. finalmente pôs-se na companhia de uma meretriz, com quem
gastou o que pôde. Ele e a meretriz saíram da boate Hollywood, na Doca da Fortaleza,
tomando a direção do bairro Santa Rita, certamente para chegar a uma casa de habitação
coletiva ou à pensão onde residia a prostituta. Por fim, após tantos divertimentos, terminou a
noite sozinho, na festa da Hollywood. Felizmente, podemos identificar o trajeto desse
personagem, mas infelizmente pouco sabemos sobre a prostituta que lhe fizera companhia.
As tentativas do governo territorial de sanear socialmente Macapá ensejaram a
constituição de novas zonas de meretrício em áreas afastadas do centro da capital. Boates,
pensões, dançarás e botequins se espalharam em novos pontos de encontro e de residência de
meretrizes. Porém, o espaço urbano outrora ocupado por elas não foi dado de mão beijada às
autoridades governamentais. Já que não detinham poder político, financeiro e social, as
350
AFCM. Autos de investigação social de menor infrator, art. 155 de 02 de abril de 1981, p. 07-08.
351
Atualmente, essa estrada é denominada como Rodovia Josmar Chaves Pinto.
121
prostitutas resistiram e lutaram pelo seu espaço na urbe macapaense com a única possibilidade
que tinham: ocupando as vias públicas com seus corpos.
122
As vidas das meretrizes tinham muitas facetas. A partir das fontes identificamos redes
de convivência construídas pelo trabalho, pelo amor e pelas amizades. Mas parte dessas
relações se desdobraram em conflitos. Nesta seção, elas figuram como irmãs, amigas,
vizinhas, amantes, esposas, mães, estrangeiras, brasileiras e amapaenses, todas
compartilhando a experiência de ser prostituta e de ser mulher em um contexto político muito
específico, a Ditadura empresarial-militar. As histórias aqui abordadas evidenciam as
vulnerabilidades, as estratégias de sobrevivência e as tentativas dessas mulheres serem vistas
como humanas, ainda que marginalizadas ou socialmente excluídas.
Primeiro, temos como finalidade abordar os diversos tipos de relacionamento das
prostitutas do Amapá e identificar aspectos como cumplicidade, rivalidade, ciúmes e
solidariedade. Na sequência, a partir de um processo criminal de homicídio, discutimos as
fragilidades de uma meretriz diante de um amor não correspondido e as consequências da
misoginia de seu amado. Para finalizar, nos debruçamos sobre as memórias da proprietária de
uma boate de Macapá, que revelam sua trajetória desde a chegada à capital do TFA, até o fim
do funcionamento da boate.
viu que seu colega seria atingido por trás por um dos soldados e interviu. Nesse momento, foi
esfaqueado pela meretriz Socorro, amante deste soldado.352
Socorro, brasileira, amapaense, meretriz, 15 anos de idade, solteira, sabendo ler e
escrever, declarou que foi seduzida com 13 anos e desvirginada, mas as devidas medidas não
foram tomadas pelas autoridades competentes, e “esse fato concorreu para que a depoente
trilhasse o caminho da prostituição, passando a frequentar os ambientes noturnos e de caráter
suspeito, onde conheceu moças na mesma condição social”.353 A pensão Lago dos Sonhos foi
um desses locais. No dia do crime, foi a esse lugar com outras colegas quando houve o
desentendimento entre o militar fardado J.N.S., seu ex-amante, e Capitão. Como o militar
ficou em desvantagem, ela golpeou Capitão na região dos mamilos, na garganta e nas costas.
A adolescente se evadiu do local, jogou a arma em um matagal e se escondeu na casa de sua
mãe, na esperança de que o episódio caísse em esquecimento. No entanto, dias depois foi
localizada e intimada a comparecer na delegacia com sua responsável. Já era a sexta vez que
ela se envolvia em crimes dessa natureza. Inclusive, já estava em tramitação “outra
investigação social proveniente de haver ferido uma colega de infortúnio”.354 A mãe da
adolescente, O.A.M., brasileira, solteira, de 39 anos de idade, doméstica, não sabendo ler e
nem escrever, disse que sua filha sempre tinha sido muito rebelde e que após o fato
denunciado mudara de comportamento, se tornando obediente e passando a viver amasiada
com outro rapaz.355
O fato de Socorro ter sido desvirginada sem que esse fato sofresse uma reparação, teria
contribuído para que ela se tornasse prostituta. É de se duvidar que Socorro tenha declarado
frequentar lugares de “caráter suspeito”, por isso é necessário observar que as fontes judiciais
e os depoimentos presentes nelas, são escritos por um funcionário do Estado, nesse caso, pelo
escrivão. Ele escreve a partir da sua visão de mundo e suas construções sociais enquanto
sujeito masculino, mas também orientado pelos preceitos morais e sociais do TFA. O começo
do depoimento nos leva a pensar sobre como haviam locais que eram convenientes a moças
de família, mas outros não. No caso da acusada, os locais que ela passou a frequentar não
eram adequados às mulheres honradas, mas somente para as prostitutas. Na boate Lago dos
Sonhos ou em qualquer outra, Socorro conheceu seu amante, um soldado do Exército, e
quando viu que estava em perigo, não hesitou em defendê-lo, mesmo que isso custasse sua
352
AFCM. Autos de Investigação Social contra a menor M. do S. dos A. Moraes por prática de ato tido como
infração penal de 21 de junho de 1976, p. 04.
353
Ibidem, p. 06.
354
Ibidem, p. 06.
355
Ibidem, p. 08.
124
liberdade. O depoimento de sua mãe nos dá informações sobre o que aconteceu com ela após
a infração penal. Sobre ter mudado o comportamento, cabe indagar o que causou tal
mudança? Isso não saberemos. A adolescente já estivera envolvida em seis casos semelhantes
a esse e estava sendo investigada por ter ferido outra meretriz. Contudo, ela encontrou outro
amásio. Teria sido esse o motivo da mudança de comportamento de Socorro?
Em ofício destinado ao juiz José Clemenceuau Pedrosa Maia, o delegado José Maria
Franco alegou que a adolescente era de alta periculosidade e fora “infelicitada aos treze anos
de idade, e sem o apoio paternal, enveredou pelos caminhos da prostituição”356. Para o juiz
José Maia, a ausência de uma figura paterna contribuira para que Socorro se encaminhasse ao
meretrício. Nesse período, como citamos na primeira seção, a família ideal era composta por
pai e mãe. Nessa família, a mãe era responsável pelos cuidados do lar e dos filhos, enquanto o
pai era o provedor da família. Logo, na ausência do pai, a mãe assumia todas essas
responsabilidades. Assim, a manutenção da família se tornava deficiente e os filhos
enveredavam por caminhos “suspeitos”.
Ao pesquisar sobre o cotidiano da República do Mangue, famosa zona de meretrício
no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1970, Juçara Leite dedicou algumas páginas para
discutir os crimes de sedução e seus desdobramentos. Ela identificou que algumas mulheres
defloradas viam a prostituição como uma punição. Vale destacar que nos casos de sedução,
como vimos na primeira seção, poderia haver o consentidos ou não, mas na maioria das vezes
haiva. Para Leite, “a moral cristã sempre condenara o prazer sexual, de modo que a mulher
seduzida e abandonada pelo seu sedutor, no fundo, desejava ser punida porque cedera ao
desejo”.357 Assim, a culpa cristã influenciava jovens seduzidas a se “torturar” pelos seus
pecados na prostituição e algumas das mulheres do Rio de Janeiro mudavam até de cidade
para não lidar com a culpa e a vergonha do defloramento, enquanto outras eram expulsas de
casa pela família. Mas, o entendimento geral era de que uma vez informado às autoridades
policiais e judiciais, esse “pecado” poderia ser reparado por meio do casamento.
Em um inquérito policial para investigar um suposto crime de lenocínio, o funcionário
municipal Luiz, brasileiro, paraense, 42 anos de idade, casado, sabendo ler e escrever, acusou
Conceição, brasileira, paraense, 30 anos de idade, doméstica, solteira, instrução primária,
residente na avenida General Gurjão, de explorar a prostituição de terceiros. Ele residia em
frente à residência dela, no bairro da Favela. Luiz declara “que embora [Conceição] viva em
356
Ibidem, p. 10.
357
LEITE. Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2005, p. 89.
125
concubinato e [com] uma prole numerosa, transforma aquela casa em antro de prostituição,
numa verdadeira orgia afrontando as famílias ali residentes”. Ele afirma que esses fatos
ocorrem em plena luz do dia ou nas primeiras horas da noite, quando ele e seus familiares
assistem “as cenas mais degradantes” e “ali aparecem diversos casais para aventuras amorosas
e satisfação de seus apetites libidinosos”.358 Apesar da prática da prostituição não ser crime no
Brasil, lenocínio é. Esse crime consiste no favorecimento da prostituição de outras pessoas.
Uma mulher se prostituir não é crime, mas ela ser prostituída por outra pessoa sim. Era essa a
denúncia contra Conceição feita por Luiz, que estava muito incomodado com as “cenas
degradantes” protagonizadas pelos frequentadores da referida residência.
Júlio, brasileiro, natural do Estado de Guanabara, casado, funcionário público federal,
59 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente no bairro do Trem, foi citado como um dos
frequentadores da casa de Conceição. Disse que a frequentou em 1966: a primeira vez, levado
por Maria, uma jovem funcionária pública federal; a segunda teve como motivo a venda de
galinhas para a dona da casa; e a terceira foi para passar aí uma festa de aniversário a convite
de Maria:
Que, durante as duas vezes que ocupou uma dependência reservada daquela
casa, não chegou o depoente a custear nenhuma despesa monetária, pois se
tratava de um ambiente sigiloso e previamente preparada para encontros
amorosos. Que, o depoente, já no dia vinte e três de fevereiro corrente, o
declarante dirigiu-se aquela residência sem ter sido acompanhado por
qualquer representante do sexo oposto, apenas interessando por desejar
alugar um quarto daquela casa, sem contudo ter sido atendido por não existir
para esse fim.359
Com o depoimento de Júlio, o inquérito toma outras formas. Ele declarou que
frequentou a casa de Conceição com Maria, para encontros amorosos, mas não fez pagamento
para isso. Maria poderia ser uma amiga próxima de Conceição ou era habituada a usar os
quartos da residência desta para encontros sexuais. Segundo a entrevistada Maria
Albuquerque, Macapá não tinha motéis nesse período:
Maria: Macapá era um lugar que não permitia motel, não sei como hoje tá
cheio de motel.
Amanda Silva: Não tinha motel, não permitia?
Maria: Não permitia.
Amanda Silva: Mas quem não permitia? Era o governo?
Maria: Era a própria polícia que formou uma lei que lá não podia, não tinha
motel. Existia essas boatezinhas assim, mas motel não.
358
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 2.
359
Ibidem, p. 5.
126
360
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
361
Para saber sobre a relação dos cabarés com os motéis, conferir: PEREIRA FILHO, Raimundo Alves.
Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amazonas, 2014.
362
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 7.
127
anos nesse endereço, onde recebia visitas de amigos e de pessoas que tratavam de negócios
com seu amásio:
Ela completou dizendo que nunca prostituiu nenhuma mulher que foi lhe visitar, assim
como nunca obteve lucro ou se sustentou pela prostituição de outra pessoa e acreditava que o
objetivo de seu vizinho era destruir a felicidade de sua família, pois era inimigo de seu
marido.364 Conceição largou o meretrício e deixou de frequentar cassinos e dançarás para
viver honestamente com seu amásio, o que nos leva a pensar que para os ideais da período,
uma mulher que frequentava esses ambientes era solteira, desonesta ou os dois. Ela negara
haver favorecido encontros amorosos na sua casa, mas relatou ter cedido cômodos para esse
fim no passado, sem, contudo, cobrar qualquer quantia pelo uso deles.
Raimundo Pereira Filho realizou uma pesquisa sobre os rendez-vous em Manaus,
enfocando a transição do uso desses locais para os motéis. Ele explica que, no início da
década de 1950, as pensões eram os locais de prostituição em Manaus, assim como em
Macapá, as pensões eram resididas por meretrizes e funcionavam como bordel. Nessa mesma
década, foram surgindo os rendez-vous “onde os casais procuravam unicamente para
praticarem sexo e as prostitutas, salvo exceção, não moravam onde trabalhavam”.365
Resumidamente, os rendez-vous eram cômodos alugados para relações sexuais e não eram
habitados por meretrizes. Nos depoimentos de Conceição e Júlio encontramos indícios de que
a casa dela havia sido (ou ainda era) um rendez-vous.
O delegado Oscar Ferreira Lima considerou que o crime não podia ser comprovado e
não responsabilizou Conceição por lenocínio, porque entendeu que o denunciante queria
prejudicar a ela e a seu amásio, por ser inimigo de José.366 Em acareação ocorrida no mês de
julho, Luiz disse que estava em estado de ânimo alterado quando fizera a denúncia e não se
dava bem com a família de Conceição, mas que então eram amigos. Ao final, declarou que
363
Ibidem, p. 10.
364
Ibidem, p. 10.
365
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade
manauara (1959/1969). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade
Federal do Amazonas, 2014, p. 63.
366
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 12.
128
desmentia seu depoimento anterior.367 O palpite de Conceição estava correto, Luiz queria se
vingar de José, seu desafeto. Para isso, procurara acusar a amásia dele de lenocínio.
Certamente Luiz conhecia o passado de Conceição e achou que sua denúncia levaria aos
efeitos pretendidos por ele. O surpreendente é que os envolvidos se tornarem amigos ao longo
da investigação. Luiz atribuiu a culpa de sua falsa denúncia a seu “estado de ânimo alterado”,
não informando se isso se deveu a embriaguez ou a forte emoção.
A historiadora Ivonete Pereira explicou que a relação de vizinhança não pode ser vista
apenas como sinônimo de solidariedade, pois “apresentava-se como vigilante, delatora e
suscitadora de repressão sobre aquelas pessoas que estavam fora de seus círculos de
amizade”.368 Ela observou que, em Florianópolis de 1900 a 1940, a repressão sofrida pelas
prostitutas não vinha apenas das autoridades, pois a comunidade da qual elas faziam parte
também tinha contribuição nisso. Ela entende que esse controle não ocorria apenas em
Florianópolis, mas ocorria igualmente no Rio de Janeiro, em Salvador, São Paulo e, podemos
dizer, em Macapá. Luiz, por não ter vínculo de amizade com a família de Conceição, tentou
exercer esse controle e repressão com a ajuda das autoridades públicas, ele só não contava
com a rede de convivência e solidariedade que Conceição e seu amásio José tinham
construído com o passar dos anos.
Não era incomum as meretrizes brigarem entre si. Em julho de 1976, em frente ao
restaurante A Peixaria, a meretriz Telma agrediu suas colegas de profissão, as irmãs Valda e
Maria Lúcia com um canivete.
Valda, residente na boate Juçarão, paraense, 21 anos, meretriz, solteira, sabendo ler e
escrever, disse que desde 1974 residia e fazia ponto na boate Juçarão. No dia do ocorrido,
quando a festa na boate acabara, por volta das três horas da madrugada, ela foi para A
Peixaria, próximo à Usina Costa e Silva, na companhia das amigas Francisca, Conceição e
outras que não recorda o nome, para dar “prosseguimento em sua noitada alegre”.369 Ela disse
que ingeriram bebida alcoólica, mas estavam sãs. Minutos depois de se acomodarem na
Peixaria, a sua irmã Maria Lúcia chegou e se juntou a elas na mesa. Maria Lúcia levantou-se e
foi para a frente do estabelecimento. Minutos depois, Valda foi informada de que sua irmã
estava envolvida em uma confusão. Ao chegar na frente do local, viu que Maria Lúcia estava
discutindo com duas mulheres desconhecidas e com Telma:
367
Ibidem, p. 17.
368
PEREIRA, Ivonete. As decaídas: Mulheres no quotidiano de Florianópolis (1900-1940). Dissertação
(Mestrado em História do Brasil). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 111.
369
AFCM. Processo crime nº 4.016 de 15 de fevereiro de 1977, p. 6.
129
370
Ibidem, p. 06.
371
Ibidem, p. 07.
372
Ibidem, p. 8.
373
Ibidem, p. 12.
374
Ibidem, p. 15.
130
que ninguém te chamou”.375 Rute entrou em um táxi e foi embora, enquanto Telma e Maria
Lúcia discutiam. Telma declarou que foi Maria Lúcia quem começou a agredi-la e que
também foi agredida por Valda. Então, ela brigou com as duas irmãs ao mesmo tempo.
Ninguém se intrometeu na briga e elas se separaram sozinhas. Telma lembrou que dentro de
sua roupa íntima, trazia uma bolsa com um canivete, pegou a arma e chamou suas adversárias
para continuar a briga. As duas foram em sua direção e tentaram lhe espancar, ela já
empunhava o canivete e acertou suas oponentes. Ela disse que não tinha qualquer intimidade
com as vítimas e somente após o fato soube que eram irmãs e frequentadoras da boate
Juçarão. Disse que nunca foi processada, mas já havia sido detida por motivo de confusão nas
boates que frequentava.376 Telma certamente era uma das tantas prostitutas do TFA detidas por
embriaguez e desordem, mas liberada após passar algumas horas na delegacia.
Em diversas partes do processo, tanto vítimas quanto acusadas são caracterizadas como
domésticas. Claudielle Silva afirma que algumas prostitutas envolvidas em inquéritos e
processos judiciais diziam serem domésticas, porque era “uma atividade com menor estigma
que a prostituição”377. Essa era uma estratégia utilizada por elas para serem ouvidas pelas
autoridades de segurança, bem como para se protegerem de eventuais abusos do Estado. Para
Cristiana Schettini, ao passo que as autoridades republicanas transformavam meretrizes em
mulheres públicas e permitiam que elas fossem tratadas fora da lei por agentes do Estado
como policiais e delegados, as redes de apoio e solidariedade tecidas por elas com amigos e
conhecidos propiciavam que buscassem por respeito e dignidade nas delegacias, nas ruas e
nos tribunais.378 Ocultar sua verdadeira profissão ou não revelar todas elas, era uma estratégia
de proteção dessas mulheres habituadas a sofrer abusos e repressões fora da lei por agentes de
segurança do Estado.
Vemos aqui um caso de uma rixa entre mulheres e como isso antecede o desafio379,
posto que as envolvidas já tinham uma faísca de desentendimento. No depoimento de Maria
Lúcia, é dito que Rute e outra prostituta ameaçavam as mulheres do Juçarão. Havia uma
rivalidade entre as meretrizes das boates? Essa rivalidade era por clientes, pelo domínio da
região ou por outras questões de convivência? Maria Lúcia, ao tirar satisfação com as
litigantes, iniciou o desafio que consiste no contato físico, nesse caso, na agressão. Após o
375
Ibidem, p. 15.
376
Ibidem, p. 16.
377
SILVA, Claudielle Pavão da. “Flores horizontais”: Sociabilidade, prostituição e travestilidade na Zona do
Mangue (1960-1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2016,
p. 68.
378
SCHETTINI, Cristiana, Op. Cit., p. 302-303.
379
Ver a seção anterior.
131
início da discussão, Telma se envolveu e afirmou que para lidar com puta, só com “porrada”.
Rute e a outra meretriz foram embora, Telma ficou e brigou com as irmãs Valda e Maria
Lúcia, até o momento em que cortou as duas com um canivete. Pereira Filho afirma que o uso
de giletes era comum em brigas envolvendo prostitutas,380 mas percebemos que elas andavam
armadas com objetos cortantes para se defender em situações de perigo, seja contra suas
colegas de profissão seja em face de homens agressivos e inconvenientes.
Leite assegura que “as prostitutas desenvolvem seus próprios códigos e relações,
unidas pela segregação”381. Como sofriam com a marginalização social e tinham a mesma
experiência de trabalho, elas construíram suas próprias regras para lidar com o seu mundo,
separado do mundo moralmente aceito. Elas precisavam definir uma hierarquia entre si para
garantir o respeito mútuo. Essa hierarquia era estabelecida no interior dos bordéis que
contavam com uma prostituta gerente, que detinha certo poder sobre as outras meretrizes.
Mas, a autora destaca que a violência era decorrente de conflitos de convivência no bordel,
por objetos e disputas pelos clientes.
Valda, Maria Lúcia e Maria da Conceição residiam no Juçarão. A primeira era
moradora de lá havia dois anos e a última havia apenas cinco meses. Elas tinham um laço de
amizade que pode ter se construído pela experiência da profissão e pela moradia, mas Valda e
Maria Lúcia tinham laços de sangue. Eram irmãs, haviam sido criadas juntas e agora
compartilhavam as experiências da profissão. Maria da Conceição disse que saia
frequentemente com suas colegas e nunca haviam criado confusão, dando a entender que as
meretrizes rivais fossem “encrenqueiras” ou “useiras e veseiras”, como Maria Lúcia as
definiu.
Outra observação a ser feita é o horário de funcionamento do restaurante A Peixaria,
pois a festa na boate Xadrezão terminou às quatro horas da madrugada e o restaurante
continuava funcionando. Como vimos na seção anterior, no ano de 1978, o proprietário do
Xadrezão alegou que seu estabelecimento funcionava até as duas horas da madrugada. De
acordo com o que foi relatado por Telma, um ano antes do depoimento do dono do Xadrezão,
ela havia saído de uma festa lá ocorrida às quatro horas. Ele mentiu em seu depoimento sobre
o horário de funcionamento para se defender de qualquer multa que pudesse pagar ou nesse
período de um ano as normas de funcionamento dos locais de diversão no TFA mudaram.
Mas essa regra de horário limite de funcionamento poderia aplicar-se somente a boates,
380
PEREIRA FILHO, Raimundo, Op. Cit., p. 90.
381
LEITE, Juçara Luzia, Op. Cit., p. 111.
132
382
VENERA, Raquel Alvarenga Sena. A Cidade das Camélias e as Camélias na cidade. In: FÁVERI, Marlene
de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.). Op. Cit., p. 129.
383
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 119.
384
AFCM. Processo crime nº 4.189 de 19 de dezembro de 1977, p. 5.
385
Ibidem, p. 11.
133
bastante alcoolizado, tendo sido carregado para sua residência por praças do 2º Pel PM, onde
o mesmo era destacado, como escrivão, por ser 3º Sgt PM”.386
A relação entre policiais e meretrizes não estava restrita à fiscalização e prisões, pois
os relacionamentos amorosos e de clientela não eram incomuns entre eles. N. usou seus
privilégios de homem e de policial militar para importunar e agredir a meretriz H., ele
também usou a sua patente para destratar o soldado Antônio. Carolina Mendonça pesquisou
aspectos da prostituição feminina em Salvador, no estado da Bahia, nas primeiras décadas da
República e apontou que as meretrizes conviviam diariamente com “homens de farda” e havia
com eles uma interação social marcada por conflitos, mas não existia um padrão nessas
relações:
Se, teoricamente, a farda deveria inspirar temor e respeito por parte dessas
mulheres em relação aos ocupantes de postos militares, percebemos que o
contato formou também uma rede de ajuda mútua e camaradagem, em que
mulheres utilizavam a relação com homens fardados em busca de proteção
contra a ação policial, e a vantagem financeira alcançada pelas profissionais
do sexo as permitia retribuir alguns favores.387
A relação descrita por nós, não tem relação com proteção de policiais a prostitutas.
Contudo, os apontamentos de Carolina Mendonça nos levam a refletir que as interações
desses sujeitos com as meretrizes não estavam restritas a repressões, prisões e violência, mas
poderiam ter caráter de ajuda mútua também.
Em Pedra Branca, Naldo, amapaense, solteiro, comerciário, de 17 anos de idade,
residente em Pedra Branca, sabendo ler e escrever, foi atingido no pescoço por um tiro de
revólver efetuado por S.M.S, maranhense, solteiro, de 21 anos de idade, mecânico da
Construtora Mendes Júnior S/A, através da porta do quarto onde estava acompanhado de uma
meretriz. A vítima tentava entrar no quarto à força.
Maria Creuza, amapaense, solteira, meretriz, com 26 anos de idade, residente na
avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, relatou que costuma viajar com outras
meretrizes para a localidade de Pedra Branca na Estrada de Ferro do Amapá. Lá, passavam
alguns dias morando em quartos disponíveis para elas. Ela disse que Naldo estava à procura
da meretriz Catarina quando bateu na porta de seu quarto. Maria Creuza indicou a porta do
quarto de sua colega e ouviu ele dizer: “essa faca que tenho aqui é para furar a Catarina e seu
acompanhante”. Ele jogou garrafas e tentou arrombar a porta do quarto de Catarina, outros
386
Ibidem, p. 15.
387
MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias sem Glória: retratos da prostituição feminina na Salvador
das primeiras décadas republicanas. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, 2014,
p. 82-83.
134
homens tentaram acalmá-lo, mas sem sucesso. Naldo disse que estava ali para morrer ou para
matar.388
Lúcia, amapaense, casada, meretriz, com 23 anos de idade, residente na avenida Padre
Júlio, sabendo ler e escrever. Respondeu que viajava para Pedra Branca de vez em quando e aí
ficava em quartos que sempre eram ocupados por meretrizes. Ela estava no quarto
acompanhada de S., deitada em uma rede, enquanto a meretriz Catarina estava em outra rede,
deitada com um rapaz chamado Vicente, cearense, solteiro, com 22 anos, residente em Pedra
Branca, Estrada de Ferro do Amapá, sabendo apenas assinar o nome, quando Naldo começou
a bater na porta para entrar, mas isso lhe foi negado até que conseguiu fazê-lo após uma saída
da depoente. Ele estava embriagado e armado com uma faca, mas os dois homens que
estavam no quarto conseguiram contornar a situação. No meio de toda a confusão, uma
inquilina chamada Ana foi chamar o Comissário Jacy, que levou Naldo, mas ele não demorou
a voltar. Iniciou outro arrombamento e ameaçou matar os ocupantes do quarto. A partir disso,
o acusado S. atirou duas vezes contra a porta e eles ouviram Naldo falar: “Catarina, estou
morrendo por teu amor”. Ele foi atingido no pescoço por um dos projéteis e o acusado fugiu.
A depoente disse que Catarina até desmaiou enquanto abraçava Naldo caído no chão.389
Catarina, amapaense, solteira, meretriz, de 18 anos de idade, residente em Macapá,
sabendo ler e escrever. Também viaja para Pedra Branca constantemente. Ela disse que desde
cedo Naldo estava embriagado, perturbando a ordem na Pensão da Zeca e no bar do Baltazar,
e que depois foi promover desordem nos quartos onde moram ela e outras meretrizes.
Catarina falou que Naldo primeiro chamava por ela e que depois começou a chamar por
Lúcia, mas as duas falaram que estavam acompanhadas. Mesmo assim, ele não desistiu.390 De
outro lado, Naldo disse que não tinha nenhuma relação de amizade com Catarina.391
Em 1986, um oficial de Justiça tentou intimar todos os envolvidos por ordem do juiz
Dôglas Evangelista Ramos. Ele informou que encontrou Maria Creuza e conseguiu intimá-la.
Porém, não encontrou Catarina e Lúcia, mas foi informado que as duas estavam morando em
Caiena, na Guiana Francesa.392
Maria Creuza, Lúcia e Catarina se deslocavam de Macapá para o distrito de Pedra
Branca a fim de oferecer serviços de prostituição. O acusado era funcionário de uma
388
AFCM. Processo crime nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 5.
389
Ibidem, p. 6.
390
Ibidem, p. 8.
391
Ibidem, p. 11.
392
Sobre o trânsito de mulheres brasileiras nas fronteiras da Amazônia, ver: TEDESCO, Letícia. As mulheres no
garimpo: entre fronteiras, papéis e classificações. In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.; Moraes,
Aparecida Fonseca. Prostituição e outras formas de amor. Niterói: Editora da UFF, 2014.
135
Dessa forma, a autora acrescenta que como o trabalhador pobre não tinha poder e
autoridade na esfera pública, ele exercia esse poder na esfera privada. E a sua “agressividade
natural” era manifestada sobre a mulher. O homem acreditava que o corpo de uma mulher era
sua propriedade e, quando ela não correspondia positivamente a suas vontades, ele reagia com
agressividade. Assim, por não conseguir exercer sobre a sua companheira o poder que o
sistema dominante lhe prometia, o homem pobre a violentava, num extravasamento de sua
393
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 133.
394
SOIHET, Rachel, Op. Cit., p. 256.
136
frustração. Naldo até teve a intenção de violentar Catarina, Lúcia e os homens que lhe
acompanhavam, mas foi atingido por um tiro antes que conseguisse realizar seu intento.
Segundo Margareth Rago, as prostitutas do baixo meretrício enfrentavam fregueses
bêbados, violentos e desequilibrados que não podiam pagar o preço dos bordéis mais caros.395
Em Pedra Branca havia bordéis mais caros ou os prostíbulos oferecidos eram apenas as
pensões em que as meninas ficavam hospedadas? Naldo e o mecânico S. certamente não
tinham outras opções no distrito, assim como os limites do que seria prostituição de luxo e
baixo meretrício em Macapá não eram bem definidos, e talvez nem existissem. Catarina e
Lúcia rejeitaram Naldo, o que demonstra que elas tinham o poder de escolher com quem
comercializar relações sexuais e este também pode ser um indicativo de que elas não tinham
vários clientes em uma noite ou poderiam cobrar um valor maior para pernoitar com um
deles.
No dia 1º de novembro de 1970, Geraldo, brasileiro, amapaense, com 21 anos de
idade, solteiro, braçal, alfabetizado, residente em Macapá, cor morena, causou ferimentos no
seu cunhado Veríssimo, brasileiro, amapaense, casado, 33 anos de idade, funcionário público,
sabendo assinar o nome, residente no Quartel da Guarda Territorial na Fortaleza de São José
de Macapá, na casa da meretriz Carmosina, próximo ao presídio São Pedro.
Veríssimo, disse que ao chegar na casa de Carmosina, ela já tinha preparado cachaça e
refrigerante para seus convidados. Minutos depois chegou a sua esposa Josefina, de quem
estava separado havia sete anos, mas esta não lhe deu atenção. A meretriz Maroca também
chegou e se juntou a eles. Momentos depois, Maroca, Geraldo e Carmosina saíram e ele ficou
sozinho com Josefina. Próximo das 14h, Geraldo retornou e gritou: “tu estás dando na minha
irmã”, em seguida agrediu Veríssimo. Os dois iniciaram luta corporal e Geraldo atingiu o
rosto do depoente com um soco que o fez cair desacordado.396
Geraldo, por sua vez, disse que era irmão de Josefina, casada com Veríssimo, mas
separada dele havia muito tempo. No dia do ocorrido, estava com seu cunhado bebendo em
um botequim e este mandou um recado para sua irmã encontra-lo na casa de Carmosina. Eles
foram para a casa dela e Josefina já estava lá. Todos estes citados estavam embriagados, mas
brincavam sem qualquer anormalidade. Maroca chegou e passado um tempo, pediu para que
alguém lhe deixasse em casa. Ele a acompanhou e passou uma hora nessa viagem. Quando
voltou, viu sua irmã chorando e perguntou o que tinha acontecido. Ela respondeu que fora
espancada pelo seu marido. Ele entrou na casa, onde passou a tirar satisfações com seu
395
RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 261.
396
AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 5.
137
cunhado, e os dois discutiram até chegar à agressão física. Geraldo declarou se dar bem com
seu cunhado, mas sabia que essa não era a primeira vez que ele agredira sua irmã e nunca
fizera nada antes porque ainda era menor de idade.397
Cristina Wolff explica que na região do Alto Juruá, no Acre, “certas situações deviam
levar necessariamente a atos violentos, sob pena de desmoralização perante a comunidade,
especialmente situações que envolviam adultério, ou ofensas às mulheres da família”.398 Ela
também usa o conceito de honra, definido por Julian Pitt-Rivers ao estudar a Andaluzia: “a
honra é o valor de uma pessoa para si mesma, mas também para a sociedade. É sua opinião
sobre seu próprio valor, sua reivindicação de orgulho, mas também é a aceitação desta
reivindicação, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”.399 Nas
sociedades mediterrânicas e nas latino-americanas, a honra de um homem está ligada à pureza
sexual das mulheres de sua família.400 Então a figura masculina zelava pela honra das
mulheres de sua família e reivindicava o respeito por ela por meio da violência se fosse
necessário. Geraldo precisava defender a sua irmã, pois “já era homem” para isso. Quando
mais novo não podia medir forças com Veríssimo.
Josefina de Jesus dos Santos, brasileira, amapaense, de 26 anos de idade, meretriz,
casada, sabendo assinar o nome, residente à Praça São Pedro, entre as ruas Jovino Dinoá e
Leopoldo Machado, declarou que pela manhã do dia 1º de novembro seu irmão foi lhe visitar
e seguiu para um botequim nas proximidades. Depois de um tempo, sua colega Carmosina
chegou com um recado de seu marido:
dizendo que ele viria em sua casa, tendo dito que alí seria impossível, pois
abandonados como estavam, já tinha compromisso com outro homem, mas
sabendo que Veríssimo quando está bebendo, não se importa com o que lhe
pode acontecer; que, em seguida dissera a Carmosina que iria para sua casa e
com isso fazer com que Veríssimo não fosse a sua e então não haver
confusão.401
Ela disse que todos estavam embriagados, mas tudo seguia bem. Quando os demais se
retiraram, ela e Veríssimo foram para um quarto da casa. Ele queria manter relações sexuais
com ela, mas Josefina se negou a isso e ele começou a bater nela, na frente da filha deles. Isso
demorou pouco tempo, porque ela conseguiu se desvencilhar dele. Quando estava saindo da
casa, encontrou com seu irmão e como estava chorando, ele perguntou o que havia acontecido
397
Ibidem, p. 06.
398
WOLFF, Cristina. Op. Cit., p. 216.
399
PITT-RIVERS, J.A. Antropologia del honor o política de los sexos. Ensayos de antropologia mediterrânea.
Traducción castellana de Carlos Manzano. Barcelona: Crítica, 1979, p. 18.
400
Ibidem, p. 48.
401
AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 07.
138
e ela relatara o ocorrido. Depois da confusão, Josefina e seu filho mais velho colocaram
Veríssimo em um carro e o levaram para a casa dela. O carro da polícia chegou na sua
residência e o levou para o Pronto Socorro, depois para a Fortaleza. Seu irmão foi preso. Ela
relatou que seu irmão havia dito que Veríssimo prometera, naquele dia, dar umas “porradas”
nela, o que de fato aconteceu.402 Carmosina, brasileira, amapaense, casada, com 36 anos de
idade, analfabeta, meretriz, residente no Beirol, disse que quando se ausentou foi para ver seu
filho doente na casa de uma irmã.403
Nunca houve audiência pois o acusado não foi encontrado, assim como a vítima que
havia sido destacada para o Oiapoque, e os oficiais de Justiça não tinham transporte para se
deslocar até lá. Várias tentativas foram realizadas e, após alguns anos, foi extinta a
punibilidade. Sobre essa ausência dos envolvidos no processo, Ivonete Pereira aponta que
tanto os populares buscavam a Justiça quando precisam resolver questões sofridas por eles,
quanto também se negavam colaborar com ela, quando isso lhes prejudicava.404 Eis uma
justificativa para o desaparecimento do acusado. A vítima todos sabiam onde se localizava,
mas pela dificuldade de contratação de transporte para o oficial de Justiça de Macapá para ir
Oiapoque, não foi possível realizar a sua intimação.
Aparentemente, a casa de Carmosina era um ponto de encontro e de festas para
homens conhecidos e suas parceiras de profissão. Veríssimo e Josefina ainda eram casados no
papel, mas separados havia sete anos. Josefina, inclusive, já tinha outro relacionamento, que
mantinha junto à profissão de meretriz. No entanto, seu ex-marido não deixava de lhe
procurar e de tentar forçar relações sexuais. Como ela se negara a ter uma relação sexual com
ele, foi agredida na frente da filha deles. Veríssimo fez uma ameaça a ela por meio de Geraldo
e a concretizou. Rago escreveu que as prostitutas construíam suas próprias sociabilidades e
viviam uma “mundanidade nômade” em contraposição ao mundo sedentário da ordem
burguesa e da vida sexual monogâmica. A prostituta, aqui representada por Josefina, “podia
viver simultaneamente tanto a relação sedentarizante com o amante principal, nas ocasiões em
que este estava presente, quanto outros encontros descomprometidos com vários fregueses”405.
No caso, esse amante principal de Josefina era seu amásio atual, mas também pode ter sido
seu ex-marido, quando eram casados. Eles eram parte das relações sedentárias de Josefina,
enquanto seus clientes compunham suas relações nômades.
402
Ibidem, p. 7.
403
Ibidem, p. 8.
404
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., 118-119.
405
RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 268.
139
Por outro lado, Cristiana Schettini aponta que as sociabilidades das prostitutas do Rio
de Janeiro na virada do século XIX ao XX não se limitavam a um “mundo da prostituição”,
pois articulava-se também ao mundo cotidiano, apesar das oposições estabelecidas por
homens da classe dominante. Para Pereira, “mesmo este aspecto não pode ser compreendido
sem as tensões que marcavam a existência desses homens numa sociedade que definia
hierarquias e naturaliza desigualdades sociais mobilizando critérios raciais, de gênero e de
moralidade sexual”.406 Não é possível pensar as sociabilidades da prostituição sem articular os
aspectos de gênero, raça, moralidade sexual, mas também sem pensar em classe. Como
Cristiana Schettini bem apontou, as hierarquias e desigualdades sociais são estruturadas a
partir desses critérios. Para ela, a prostituição é fortemente marcada pelo gênero, mas também
permite a mobilização de várias masculinidades que se encontravam em horas de diversão.407
Porém, como vimos, essas masculinidades nem sempre conviviam em harmonia, pois os
conflitos também eram parte das sociabilidades masculinas construídas nas ruas do TFA.
É interessante observar que Josefina havia sido agredida por Veríssimo, mas neste
processo criminal somente ele figura vítima por ter sido espancado por Geraldo. Ela é
arrolada apenas como testemunha. Não é possível saber se Josefina era meretriz antes de
casar-se com Veríssimo, se permaneceu meretriz durante o casamento, ou se abandonou o
meretrício por causa do matrimônio ou ainda se tornou prostituta após a separação. Por outro
lado, vemos que seus filhos moravam com ela e não sabemos se esta oferecia seus serviços de
meretriz na sua casa ou em outro local. Contudo, o filho de Carmosina morava com sua irmã.
Isso nos leva à conclusão de que ela usava a sua casa para receber seus clientes e preferia que
seu filho ficasse aos cuidados de sua irmã. Raquel Venera, usando as figuras de Eva e Maria,
afirma que Maria foi a escolhida para ser a mãe da família burguesa, já as prostitutas eram
“Evas que não se reconciliaram e continuam exercendo seu potencial mágico capaz de seduzir
e fazer os homens pecarem”.408 Porém, era possível ser Maria e Eva, ou camélia, ao mesmo
tempo, como quando as meretrizes eram mães. Isso se considerarmos outros modelos de
família que não apenas o modelo burguês. Para pensar a existência das prostitutas, a autora
utilizou o conceito de “entre lugar” de Homi K. Bhabha409. Nesse conceito, as pessoas não
tem uma identidade fixa, mas transitam entre várias identidades. Então, uma prostituta pode
sim exercer a sua profissão – sendo Eva – e ao mesmo tempo ser mãe – e ser Maria.
406
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 302.
407
Ibidem, p. 302.
408
VENERA, Raquel Alvarenga Sena, Op. Cit., p. 125.
409
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
140
Raimundinha concluíram se tratar dela.411 Antonio e Maria Nilza tinham uma relação marital
na época do crime, mas não fica claro se moravam juntos, porque ele informa um endereço
diferente da residência dela. O que sabemos é que dormiam juntos. Meses depois, essa relação
teve fim, como ele afirma mais à frente. Além dos mais, “viver maritalmente” pode não
significar que eles tinham uma relação de marido e esposa, como tradicionalmente é
conhecida, pode ser sim uma forma usada pelo escrivão para definir o relacionamento
relativamente estável dos envolvidos. Essa expressão pode servir para caracterizar um
namoro, um amasiamento ou concubinato.
Belisca também declarou que vivia maritalmente com a vítima havia dois meses e que:
Por volta das três horas, quase ao término da festa, chamou um carro de praça para ir embora e
foi seguido por Raimundinha. Ela então entrou no carro e não quis sair, só restando a alternativa de
seguir viagem com ela até o Bar Caboclo, onde tentou fugir da mesma:
411
Ibidem, p. 7.
412
Ibidem, p. 7.
413
Ibidem, p. 7-8.
142
A todo momento, o acusado reitera a informação de que a vítima insistia pela sua
companhia, o que é corroborado pelos depoimentos das testemunhas. Ele usa desse argumento
para justificar as agressões sofridas por Raimundinha. Note-se que após uma suposta reação
dela, ele a empurrou, viu que ela ficou jogada no chão, mas não se preocupou se ela tinha
ficado desacordada, pois somente foi embora para dormir em seu quarto. Ao final de seu
depoimento, o que percebemos é que a tristeza e a emoção a que ele se refere não derivam de
um sentimento afetuoso por Raimundinha, mas da falta das quantias em dinheiro que ela lhe
dava.
Neuza, brasileira, paraense, solteira, sem profissão definida, com 36 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, próximo ao Bar Caboclo, era vizinha de Raimundinha
e disse que no momento em que Belisca aplicava socos e pisões na vítima, Antonio interferiu
e pediu para ele parar de bater nela, mas Maria Raimunda gritava: “pode me matar de porrada
mas eu não te largo”. Depois disso, Belisca disse que ia para casa, mas Maria Raimunda saiu
atrás dele. Todos acharam que ela tinha ido dormir com o acusado e ficaram surpresos com a
notícia de sua morte.414 Maria Tereza, brasileira, natural de Amapá, solteira, com 20 anos de
idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever,
era vizinha da vítima havia três anos, vivendo sob o mesmo teto, mas em cômodos separados.
Assistiu quando Belisca atingia a vítima com bofetadas e pontapés no corredor da casa
mencionada. Disse que as brigas entre os dois eram rotineiras e nenhuma das testemunhas
imaginou que essa briga teria um fim trágico.415 Maria Nilza, brasileira, natural de Amapá,
solteira, com 18 anos de idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior,
analfabeta, era vizinha de quarto de Maria Raimunda havia um ano e sete meses. No dia do
crime, viu Belisca e Maria Raimunda no Merengue, mas em mesas separadas. Voltou a vê-los
na casa de cômodos do Compadre Artur, onde moravam, próximo ao Bar Caboclo. Presenciou
a briga dos dois e quando Antonio interferiu, Maria Raimunda respondeu que era briga entre
ela e seu “macho”.416
Com a finalização dos depoimentos das testemunhas e término do inquérito, o
Ministério Público denunciou, por meio do promotor Geraldo Telles, que o crime fora
perpetrado por motivo fútil e meio cruel. Na sua instrução criminal, em 21 de fevereiro de
1973, Belisca negou as acusações e disse que deu tapas no rosto da vítima, mas não acreditava
414
Ibidem, p. S/N.
415
Ibidem, p. S/N.
416
Ibidem, p. S/N.
143
que isso tenha causado a sua morte. No mês seguinte ao crime, já preso, o acusado mudou a
sua versão inicial, numa tentativa de atenuar a sua pena.
Nesse dia, as testemunhas foram ouvidas novamente. Santos, brasileiro, funcionário
público, casado, com 32 anos de idade, era Comissário de Polícia e soube por meio de
informações “que o acusado frequentava constantemente o meritrício desta Capital; que o
depoente foi informado que a vítima costumava a dar dinheiro ao acusado; que a uns três
meses a vítima era xodó do acusado”.417 Antonio, relatou que mudou de profissão e agora
trabalhava como braçal, bem como mudou de endereço para a rua General Rondon.
Acrescentou ao seu depoimento que o acusado não era de beber, mas Raimundinha era
escandalosa quando estava embriagada:
Que a vítima tinha um xodó com o acusado há cerca de um a dois meses; que
de vez em quando o acusado dormia na casa da vítima; que de uma certa vez
a vítima comprou um corte de tecido para o acusado; que o depoente veio da
boate Merengue com destino ao Bar Caboclo; que o depoente morava na
época do crime com uma mulher da vida e tomava conta de um bar São José;
que o depoente ouviu falar que o acusado havia espancado a vítima; que a
briga com o acusado era decorrente de ciúme da vítima em relação ao
acusado.418
Esse depoimento confirma que Raimundinha dava presentes e dinheiro para Belisca.
Inclusive, isso poderia ser uma forma dela manter seu “xodó” próximo a ela. Ela dependia
emocionalmente dele que recebia pequenas recompensas financeiras para estar junto dela. Em
Manaus, Pereira Filho identificou a transição do cliente para o xodó, ou seja, o momento em
que a relação comercial ganha contornos de envolvimento afetivo e sexual. Mas,
diferentemente do caso de Raimundinha e Belisca, “o xodó manauara bancava integral ou
parcialmente a prostituta, ou apenas demonstrava uma preferência no convívio e na relação
sexual com ela dentro do puteiro”.419 Já Belisca não sustentava Raimundinha, pelo contrário,
recebia dinheiro dela. Não sabemos se eles se conheceram em um puteiro, nas ruas da cidade,
em dançarás ou em qualquer outro lugar. Do mesmo modo, não sabemos se algum dia ele foi
cliente dela e se foi a partir dessa relação que ele se tornou seu xodó.
Neuza, brasileira, desta vez tem como profissão doméstica, declarou que estava com a
vítima na boate Merengue, quando o acusado chegou e insultou Raimundinha e “que
terminado o serviço na Boate Merengue a vítima saiu acompanhada do acusado”.420 Ao
417
Ibidem, p. 44-45.
418
Ibidem, p. 46.
419
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves, Op. Cit., p. 75.
420
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 47.
144
responder às perguntas do Promotor Público disse “que o acusado batia na vítima porque
ambos tinham ciúme um do outro; que no corredor do Bar Caboclo o acusado bateu muito na
vítima; ficando a vítima caída ao chão; que o acusado batia enquanto a vítima estava caída”.421
Maria Nilza, também descrita como doméstica nessa fase do processo, ao contrário de Neuza,
disse que o acusado não falou palavras ofensivas para Raimundinha. Também relatou que a
vítima estava embriagada, mas não sabia se Belisca também estava.422 Maria Tereza,
doméstica, respondeu que após bater na vítima na casa de cômodos, o acusado se retirou e
Raimundinha correu atrás dele, dizendo que ele poderia matá-la de porrada, mas ela iria atrás
dele. Maria Tereza disse que Belisca estava um pouco embriagado, mas Raimundinha estava
muito.423
Neuza, Maria Tereza e Maria Nilza foram descritas como “sem profissão definida” na
delegacia. Depois, na instrução criminal, foram definidas como “domésticas”. Contudo,
sabemos que elas eram meretrizes, inclusive eram vizinhas de cômodo de Raimundinha e
faziam seus serviços nos mesmos lugares, como Neuza informou. Percebemos, com isso, que
frequentar as boates, dançarás e afins, não era algo que se fazia somente para fins de diversão,
mas também para trabalhar. As três mulheres são enfáticas no dizer que as brigas e agressões
entre o casal eram rotineiras, tanto que não imaginavam que Raimundinha teria o fim que teve
por causa do espancamento promovido por Belisca. Essa normalização das agressões, nos
leva a pensar que o cotidiano dessas meretrizes era marcado por violências e brigas de casal,
algo banalizado e que por isso não era causa de preocupação.
Ademais, as quatro meretrizes citadas no processo moravam na mesma casa, mas não
compartilhavam cômodos. As casas de cômodo ou de habitação coletiva podem ser definidas
como locais de residência das prostitutas, locais que não eram usados para trabalho. Claro que
concluir isso a partir de um processo pode ser precipitado, mas ao menos para Raimundinha,
Neuza, Maria Nilza e Maria Tereza é possível que esta seja uma conclusão acertada.
Raimundinha e Maria Nilza conviviam com seus companheiros Belisca e Antonio,
respectivamente, em seus cômodos. Raimundinha e Neuza tiravam serviço no dançarás
Merengue: a primeira saiu de lá e foi atrás de Belisca, já a segunda voltou para sua casa sem
um cliente ou um “xodó”. Assim, a residência delas podia ser usada apenas para casos de
maior intimidade ou afeto, e não para encontros com seus clientes.
421
Ibidem.
422
Ibidem, p. 48.
423
Ibidem.
145
MM. Julgador.
Como citado, o Promotor Geraldo Telles denunciou Belisca por homicídio qualificado
por motivo fútil e meio cruel. Após a instrução criminal, ele seguiu com essa indicação. A
partir desse documento, Telles entende que o ato de dar dinheiro e presentes, além de dedicar
parte das noites, tão caras para as meretrizes, significava, para Raimundinha, o direito de ter a
presença de Belisca em sua cama. O Promotor narra o episódio da morte da meretriz cometida
pelo sapateiro para cumprir com o seu papel de acusador do suspeito. O final do documento é
esclarecedor sobre o que ele pensa a respeito do meretrício. Como frequentador das zonas de
meretrício de Macapá, o acusado foi considerado um degenerado moral, o que é agravado por
ser amante de uma meretriz e ser seu explorador. Pela violência usada nas agressões contra
Raimundinha, Geraldo Telles considerou Belisca como um indivíduo de alta periculosidade e
de mau comportamento moral e social, pela aproximação com o mundo da prostituição e
424
Ibidem, p. 50.
146
relação íntima com uma meretriz. Esse homem com tais características era um sujeito
corrompido, com facilidades para cometer crimes e ter comportamentos inadequados para o
meio urbano e desenvolvido idealizado pelas classes dominantes. Em nenhum momento, o
Promotor atenua o crime pela vítima ser uma prostituta ou por ter insistido na companhia do
acusado, porém, ele expõe a sua opinião sobre o meretrício ao final do texto. Uma opinião
difundida por juristas e médicos desde o século XIX, que viam a prostituição como símbolo
da degeneração moral e social que precisava ser combatida (higienizada e normalizada).
Já o advogado do réu, Cícero Borges Bordalo, argumentou que Belisca não teve a
intenção de matar Raimundinha e não assumiu esse risco:
A partir daqui o advogado de Belisca constrói a sua defesa para mudar a tipificação do
crime cometido. Diferentemente do Promotor Geraldo Telles, o advogado Cícero Bordalo
justifica as ações de Belisca pela insistência de Raimundinha em ter a companhia dele e pelos
insultos que ela dirigiu a sua pessoa. Ele agrediu a meretriz somente para tentar livrar-se dela,
não tivera a intenção de matá-la, mas só de lhe machucar. Com isso, ele contesta a tipificação
425
Ibidem, p. 51-52.
147
do crime de seu cliente porque se ele não teve a intenção de matar, não poderia ser
denunciado por homicídio, mas sim por lesão corporal seguida de morte. Bordalo posiciona
Belisca como sujeito passivo no crime, alguém que apenas reagiu ao comportamento insolente
e imoral da meretriz Raimundinha. Nota-se também a banalidade dos termos usados para
retratar as lesões causadas na meretriz, mesmo sendo as testemunhas são unânimes em
denunciar a excessiva violência usada pelo acusado. Ele não cita o histórico de agressões do
casal porque isso não era favorável ao seu cliente. Essa disputa discursiva faz parte da
construção de um processo judicial, no qual tanto acusador quanto defensor tentam convencer
o juiz ou o júri popular, e só um deles sai vencedor.
Mariza Corrêa aponta que acusado e vítima são julgados a partir das disputas entre a
defesa e a Promotoria, “cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto
de vista”426. Assim, os atores jurídicos usam somente o que lhes favorece para convencer o
júri e o juiz. Corrêa explica que a maior estratégia do advogado é convencer sobre a “conduta
adequada de seu constituinte e o comportamento inadequado da vítima”427. Justamente o que
Cícero Bordalo fez para defender Belisca, pois este queria dormir sozinho na fatídica noite,
mas Raimundinha tomada pelo desejo da companhia de seu amante, lhe perseguiu e lhe
provocou com ofensas.
Após o recebimento desses documentos, o juiz de Direito José Clemenceau Pedrosa
Maia declarou:
426
CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983,
p. 40.
427
Ibidem, p. 61.
428
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 54-55.
148
Belisca disse que após Antonio lhe aconselhar a parar de agredir a vítima, e que
aceitou tal conselho e foi embora. Mas a vítima continuou a ir atrás dele, proferindo
xingamentos como: fresco, chupão e filho da puta. Então, “enraivecido com as palavras de
baixo calão contra a sua reputação o interrogado desferiu uma tapa na vítima tendo a mesma
caído”.430 Por ciúmes, Raimundinha atrapalhou as investidas de Belisca sobre outras
mulheres. Esse foi o início de toda a confusão, mas não podemos ignorar a declaração feita
por Neuza de que Belisca insultou a vítima ao chegar ao dançará Merengue, informação que
Maria Nilza nega. Seja qual for o estopim da briga do casal de amantes, o acusado dá ênfase
aos xingamentos recebidos pela vítima, palavras que lhe teriam causado revolta.
Alessandro Cerqueira Bastos, a partir da contribuição teórico-metodológica de David
Garrioch431, explica que os xingamentos podem ajudar a entender os significados da
construção das masculinidades de determinados contextos. Isso porque ser chamado de “filho
da puta” é uma ofensa à mãe, então réus e vítimas “que viviam em um universo cultural
matrifocal no qual a figura materna era supervalorizada e, ao mesmo tempo, associada à
dependência da proteção masculina, sentiram-se impelidos a resolverem suas diferenças por
meio da violência”432. Esse xingamento não ofendeu somente Belisca, mas feriu
simbolicamente sua mãe. Influenciado pelo discurso dominante de que mãe é sagrada, em
conjunto com a ideia de que o homem – seja filho, irmão ou marido – deve proteger essa
figura, ele investiu violentamente contra Raimundinha para defender a honra de sua genitora
e, por consequência, reforçar a sua masculinidade. Já o xingamento de “fresco” era um golpe
na identidade de macho e de homem heterossexual de Belisca, pois esse é um termo utilizado
para se referir, de forma estereotipada, a homens homossexuais, mas também utilizado para
ofender homens heterossexuais com o objetivo de manchar sua honra de macho. A reação de
Belisca foi pautada nas referências de gênero construídas na sua experiência, pois reagir com
429
Ibidem, p. 71.
430
Ibidem, p. 72.
431
GARRIOCH, David. Insultos Verbais na Paris do século VIII. In: BURKE, Peter e PORTER, Roy (orgs.)
História social da Linguagem. São Paulo: Unesp, 1997.
432
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro, Op. Cit., p. 109.
149
violência diante de ofensas e insistências de uma mulher era uma forma de simbolizar o poder
do gênero masculino, construído socialmente e culturalmente sobre o corpo feminino.
Vamos voltar ao processo. Na disputa dos discursos, venceu a defesa do acusado. O
Júri Popular qualificou o crime como lesão corporal e seu julgamento passou a ser de
competência do Juiz José Clemenceau Pedrosa Maia. Foi condenado a cinco anos de reclusão
pelo artigo 129, conforme o Código Penal Brasileiro. Em agosto de 1975, Belisca conseguiu a
liberdade condicional por ter cumprido mais da metade da pena. Em 1978, sua pena privativa
de liberdade foi extinta. O julgamento foi noticiado nas páginas do jornal:
Nessa notícia, Raimundinha não tem nome, ela é apenas uma mulher de vida livre
tendo a morte como infortúnio, enquanto o periódico dá destaque aos homens “da lei”. O
jornal registra que o crime havia ocorrido em 1972, mas ele tinha acontecido meses antes. O
julgamento foi célere nesse caso, em comparação com outros processos criminais. Por
exemplo, a maioria dos processos de crimes de sedução eram arquivados porque a
punibilidade era extinta, assim como os processos de lesões corporais. Isso nos leva a
identificar que a gravidade do crime levava a um julgamento rápido.
Ana Ottoni, ao pesquisar sobre os casos de homicídio envolvendo meretrizes no Rio de
Janeiro entre os anos de 1896 a 1925, afirma que os amantes de meretrizes sabiam e eram
coniventes com o trabalho sexual praticado por elas.434 A partir da imprensa, ela identificou
dois tipos de homens que foram assassinos de prostitutas: “homens que matavam meretrizes
porque eram vítimas das seduções maléficas dessas mulheres e indivíduos que eram pintados
como réus dos crimes que cometiam, uma vez que eram considerados ‘cáftens’”.435 Belisca
não se encaixa nesses modelos, pois nem foi vítima da sedução de Raimundinha e nem era seu
“cafetão”. Estava, na verdade, mais próximo de ser seu gigolô.436 Belisca, seja por homicídio
qualificado ou lesão corporal grave, assassinou Raimundinha por ódio e desprezo pelo que ela
era e representava: primeiro por ser mulher, segundo por ser prostituta. O valor que ela tinha
433
MULHER que matou a irmã foi absolvida. Novo Amapá. Edição n° 1.686 de 02 de junho de 1973, p. 4.
434
OTTONI, Ana Vasconcelos. Flores do vício: Imprensa e homicídio de meretrizes no Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 76.
435
Ibidem, p. 76.
436
Na Argentina havia um tipo de caftén, denominado de criollo: “Explorador, atuava individualizadamente nos
meios da prostituição de luxo. No Brasil, essa figura é identificada ao gigolô que, ao contrário do cafetão,
explora a mulher da qual se faz amante, sem exigir pagamento certo. In: RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 307.
150
para ele derivava do que a vítima podia lhe oferecer: presentes e dinheiro. No seu depoimento
e no das testemunhas sobressaem relatos de atitudes violentas misóginas que culminaram na
morte de Raimundinha.
Ottoni ressaltou que, para a imprensa do Rio de Janeiro, as meretrizes eram mulheres
que não amavam porque “elas tinham o ‘vício’ do dinheiro e/ou do sexo que fazia obliterar o
seu amor”437. Ou seja, por serem viciadas em dinheiro e em sexo, não eram capazes de amar
como as mulheres “saudáveis”, essas mulheres saudáveis eram as mães e esposas fiéis aos
maridos. Então os jornais reforçavam que as meretrizes “sofriam intensamente por amor,
principalmente quando este era repudiado pelos companheiros”438, e era na separação que elas
cometiam os maiores “desatinos” (como suicídio) por causa de seu “amor viciado”. A autora
destaca que os jornais representavam a morte das meretrizes como fruto da degeneração e a
última consequência das inúmeras agressões advindas de seus amásios, porque elas “tinham
um fascínio pelo amor que trazia desgraças e morte”439. Desse modo, Ana Ottoni destaca que
a imprensa acreditava que as meretrizes gostavam de ser espancadas, e que isso poderiam
suportar, mas uma separação não.
Margareth Rago analisa a relação do gigolô/caftén com a prostituta, porque esse
homem era a principal referência pessoal para essa mulher:
das agressões por parte das meretrizes fazia parte dos papéis de gênero exercidos por homens
e mulheres em uma relação, a mulher como um ser frágil que deve ser protegida ou que deve
obedecer ao homem, que é forte, viril e superior a ela.
Raimundinha queria a companhia de Belisca a todo custo e isso custou a sua vida. Ele
tinha um trabalho e um quartinho alugado, mas aceitava agrados e dormia frequentemente no
cômodo alugado de Raimundinha. Influenciado pelos códigos de gênero, entendia que a
meretriz deveria assumir o papel de sua serva. Porém, quando ela buscava que o seu
sentimento e seus desejos fossem correspondidos, os desentendimentos entre o casal e a
violência tomavam conta da relação. Pelos depoimentos, percebemos que os xingamentos
utilizados pela meretriz tinham como objetivo não só ofender, mas também chamar a atenção
de Belisca para que ele não fosse embora. Para Raimundinha, era melhor ser agredida e ter a
companhia de seu amado, do que ficar sozinha porque o sentimento que ela tinha por ele era o
que a fazia se reconhecer como pessoa novamente.
3.3 “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate em
Macapá
Aos 83 anos de idade, Maria Albuquerque vive às margens do Rio Pedreira, na zona
rural de Macapá. Atualmente, tem um restaurante onde recebe clientes que procuram tomar
banho de rio aos finais de semana e feriados, e amigos dos tempos em que foi proprietária de
uma muito conhecida boate. Apesar da idade, Maria é muito ativa e tem como principal lazer
pescar no seu pequeno barco. Quando lhe disse que a minha avó havia nascido na comunidade
de Ipixuna Miranda, não muito longe dali, falou com orgulho e empolgação que às vezes vai
até esse rio para pescar. Apesar de não trabalhar “na noite” há muitos anos, ainda tem hábitos
noturnos. Passa a noite em claro e costuma acordar próximo ao meio-dia. Seu filho disse ser
consequência dela ter passado tantos anos trabalhando com boate. Muito simpática e
receptiva, Maria contou a sua história sobre a boate, a relação com as “meninas”, políticos,
delegados, funcionários e clientes.
Nascida na Paraíba, ela fugiu de casa aos 13 anos com um namorado e foi morar na
casa dele. Com a fuga, sua família contactou a polícia para realizar o casamento com o jovem
de 22 anos. A família dele alegou que o rapaz não devia nada à Maria, mas a família dela
discordava. Para não ser morto pelos irmãos da jovem ou condenado por crime de sedução,
eles tiveram um casamento civil “na polícia”. No ano seguinte, em 1953, Maria deu à luz a
seu primeiro filho, fruto de seu casamento. Mas, sua vida não era boa com seu marido. Ela
fugiu e seus pais ficaram com a criança. Seu primeiro destino foi Pernambuco, onde procurou
152
a sua cunhada, que não quis recebê-la por medo de represálias de seu irmão, marido de Maria.
Ela teve que ir embora e foi para Fortaleza, no Ceará. Disse que não deu certo e logo foi para
Natal, mas lá não deu certo também:
Maria não foi informada de que o seu local de destino em Belém era uma boate. O
diálogo com a proprietária sugere que houve um desentendimento. De um lado, Maria disse
que não deve fazer serviços sexuais porque “não presta”. Ela via esse trabalho como indigno e
degradante, principalmente porque seria “mandada”. De outro, a dona da boate questionou se
ela era virgem e tinha filho, e como Maria respondeu negativamente à primeira pergunta e
positivamente à segunda, a mulher entendeu que ela estava apta à profissão de meretriz. Isso
porque, no discurso hegemônico, se uma mulher não é mais virgem, ela não tem o que perder,
pois a sua honra não existe mais. Assim, a nossa entrevistada saiu dessa casa e conheceu uma
senhora que morava perto de Macapá. Em 1958, passou a cuidar dos filhos desta mulher por
um tempo em algum local fora dos limites urbanos da cidade, mas logo saiu de lá e pegou um
transporte para Macapá:
441
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
442
Ibidem.
153
Vim pra Macapá, conheci uma moça que trabalhava no hospital. Quando eu
cheguei lá em Macapá, eu cheguei parece que doente. Fui no hospital e lá ela
conversou: onde você mora? E eu comecei a explicar, eu não morava em
lugar nenhum porque eu tinha saído duma casa, ido não sei pra onde.
– Você sabe fazer o quê?
– Eu faço de tudo.
Aí ela me botou na casa dela, essa menina do hospital, me botou lá. Aí,
conclusão cortando isso aí, eu fiquei lá um tempo com ela. Belo dia eu
conheci um senhor idoso […]. Ele vendia costela de porco, churrasquinho
ele fazia, assim de rua na noite. […] Fui trabalhar com ele.443
Apesar da insegurança financeira e de não ter o que comer ou onde morar, Maria
conseguiu estabelecer redes de solidariedade por onde passou e trabalhava com o que
conseguia. A mulher do hospital lhe deu abrigo, até ela conhecer um senhor chamado Luciano
e começar a trabalhar com ele. Certa noite, uma mulher chegou para conversar:
Aqui, temos uma confirmação de que algumas donas de boates e pensões não eram ou
haviam sido prostitutas. Antes de ser dona de boate, Maria trabalhava com serviços
domésticos e vendia espetinho com Luciano. Já Józima, conciliava a profissão de professora
com a administração da boate, mas como Maria bem pontuou, tinha quem tomasse de conta
do empreendimento por ela e só abandonou a gestão da boate porque seu companheiro não
aprovava tal atividade. Józima continuou contando sua história e disse que ia fechar ou alugar
a boate. Maria pensou ser uma boa oportunidade para ela. Depois, perguntou a Luciano sobre
a natureza da casa e ele disse ser uma boate, mas ela só acomodava mulheres, não tinha festa.
Ela pediu para Luciano falar com Józima, pois se dispunha a lugar. Porém, Maria não tinha
dinheiro. Contou sua história para Józima e disse que estava em Macapá para trabalhar.
Józima aceitou “fazer negócio” com ela, mas ela precisava assinar doze promissórias de
duzentos cruzeiros, equivalentes a um ano de pagamento. Em 1964, ela iniciou as atividades
da boate. Porém, nenhuma mulher morava na casa:
Só fiquei com o lugar, [para] ajeitar e começar a chamar gente. E assim foi o
início da minha vida em Macapá foi esse. Daí arrumei a casinha, arrumei
tudo, ajeitei e não podia comprar nada porque não tinha dinheiro, tinha que
443
Ibidem.
444
Ibidem.
154
primeiro movimentar. Mas como Macapá naquela época era famoso, Macapá
onde o povo chegava e falava: Ah, Macapá é o lugar.445
Quando perguntada sobre a divulgação da boate disse que os homens levavam “as
meninas” e nunca foi buscar nenhuma, pois elas iam, gostavam e começavam a morar aí. A
boate funcionava no turno da noite e durante o dia era apenas espaço de moradia.
E pelo menos a minha casa era respeitada, não entrava polícia, não entrava
quem brigava, porque quem brigava eu chamava com toda educação e
explicava a situação. Depois que passou a morar meninas comigo, todo mês
eu tava na polícia. Chegava meninas, apresentava lá, registrava. Na outra
semana, hospital.446
O “Registro de Meretrizes” era feito na Terceira Delegacia, que Maria informou ficar
localizada no perímetro entre as praças Veiga Cabral e Isaac Zagury. Na República do
Mangue, Juçara Leite afirma que “a prosperidade de um bordel dependia da fama de seus
atributos, entre eles a limpeza, a organização e a segurança. Por isso, as cafetinas aceitavam a
disciplinarização policial”.447 Essa disciplinarização policial ocorria por meio de fichas de
meretrizes. As fichas continham informações de saúde, mas também de comportamento. Uma
prostituta “fichada” estava suscetível a ter suas “falhas” registradas. Caso tivesse histórico de
doença, embriaguez, roubos e desordem na ficha, poderia ter seu trabalho dificultado ou
proibido pela polícia.448 De acordo com Sidney Lobato, o “Registro de Meretrizes” no TFA
continha os dados pessoais e os motivos pelos quais as mulheres enveredaram nos caminhos
da prostituição449; mas, a partir da fala da entrevistada, acreditamos que o histórico de saúde
também era anotado. Maria relatou que registros precisavam ser feitos enquanto as meninas
fizessem programa e eram atualizados mensalmente. Já na polícia isso ocorria somente uma
vez.
Maria levava as meninas assiduamente para fazerem exames no posto de saúde, e na
entrevista destacou: “se alguém dissesse que entrou lá, ficou com uma das garotas e pegou
doença, eu processava”.450 Em diversos momentos de nosso diálogo, ela usou os termos “eu
processava” e “mandava prender”, isso indica o uso que ela fazia das instituições do Estado e
até mesmo uma certa familiaridade com as autoridades do TFA. No começo, ela conseguiu
realizar melhorias no local:
445
Ibidem.
446
Ibidem.
447
LEITE, Juçara, Op. Cit., p. 107.
448
Ibidem.
449
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219.
450
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
155
451
Ibidem.
452
SILVA, Claudielle, Op. Cit., p. 60.
453
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 262.
156
exercia controle sobre o cotidiano da meretriz. Ela compara essa relação com a de um patrão
exigindo produtividade dos operários de uma fábrica.454 Esse controle cotidiano também pode
ser observado a partir da fala de Maria:
Bebida alcoólica era um item proibido para as meninas da casa de Maria, ao menos no
interior da residência. Fora dali elas podiam fazer o que quisessem, desde que voltassem
sóbrias. Havia regras a serem seguidas e não usar álcool ou drogas ilícitas, não eram as
únicas. Sair dos quartos só de camisola e babydoll também não era permitido. Elas
precisavam vestir uma blusa e uma bermuda para ficarem “tudo bonitinha na mesa sentada”.
Como outra forma de evitar problemas com a polícia, ela não aceitava menores de idade em
sua casa, somente meninas a partir de 18 anos: “Porque eu via muita fofoca de menina de
menor nesses lugares que prendia. [...] A polícia entrava e pegava bebendo lá, garoto,
meninas. [...] Não, nunca quis. Não quero essas coisas”.456 De fato, a boate de Maria não foi
mencionada em nenhum dos casos registrados nos processos criminais ou nas ocorrências
analisadas em que meretrizes menores de idade foram presas na rua ou em ambientes
fechados.
Com o tempo, Maria já não cuidava da boate sozinha, pois contratara funcionários.
Uma gerente, um cozinheiro e uma arrumadeira. A gerente morava na boate com as meninas.
Inclusive, Maria já tinha conseguido comprar um terreno, para aí construir sua própria boate e
assim se livrar das dívidas das promissórias. Maria tinha residência própria, onde morava com
o marido, um engenheiro inglês que conheceu na sua boate, e com seus filhos. Ela ia todo dia
pela manhã para prestar contas com a gerente e pegar a lista de compras. Ficava durante o
expediente, mas ia para casa a fim de dormir com a sua família. Essa prática da dona não
morar na pensão ou boate já foi identificada em Macapá. Em um inquérito de 1953, Sidney
Lobato encontrou o depoimento da meretriz Ercília Maria, que disse ser proprietária de uma
pensão de mundanas, mas não ia lá diariamente, pois só fazia isso quando precisava de
dinheiro. Na sua ausência, cada meretriz era responsável pelo seu quarto e despesas.457
454
Ibidem, p. 266.
455
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
456
Ibidem
457
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 198.
157
Contudo, a boate de Maria tinha uma estrutura de organização e uma gerente para cuidar do
funcionamento na ausência da proprietária, diferentemente da pensão de Ercília Maria.
Em outro momento, Maria disse que quando o Exército começou a fazer ronda na
cidade “ficou muito melhor, porque aí era a polícia do Território e era o Exército”.458 A
entrevistada afirma que a cidade ficou mais segura com as patrulhas do Exército. Porém, mais
segura para quem? Mais segura em quais lugares? Com certeza não para prostitutas que
moravam, trabalhavam e frequentavam os chamados inferninhos, porque soldados fardados as
agrediam e causavam frequentes tumultos em locais de diversão noturna e nas ruas da cidade.
Ela fala de um lugar de certo privilégio, porque conseguiu estabelecer boa relação com
autoridades governamentais e policiais do TFA, além de conseguir exercer controle e ditar
regras no seu estabelecimento para que ele não figurasse nas páginas policiais da imprensa e
nos processos judiciais. Não sabemos se essas ações dos soldados eram incentivadas pelo
Exército, como uma tática de censura moral ou se eram fruto de iniciativas individuais e
coletivas de alguns soldados. Perguntei também sobre a relação dela com a guarda territorial e
a polícia. Como vimos, em alguns locais, guardas territoriais ficavam de plantão dentro dos
estabelecimentos. Porém, não era o caso da boate de Maria:
458
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
459
Ibidem.
460
Ver: RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar. Op. Cit. 1985.
158
essa distinção de alto e baixo meretrício, pois as prostitutas de luxo serviam aos “barões da
borracha”, sendo muitas delas europeias, especialmente francesas e polacas, e por isso
despertavam o interesse desses homens. Diferentemente das prostitutas mais pobres, que
ofereciam seus serviços para marinheiros, estivadores, operários e estudantes por um preço
bem mais baixo.461 Pereira Filho esclarece que as prostitutas do baixo meretrício em Manaus
eram, em sua maioria, nordestinas e amazonenses, da capital e do interior.462 Em Belém, a
situação não era diferente, porque os “coronéis da borracha” também tinham as suas cocottes
estrangeiras, que exibiam seus vestidos de luxo trazidos da Europa. Maria de Nazaré Sarges
argumenta que economicamente os “coronéis” eram dependentes de empresas da Inglaterra e
dos Estados Unidos, porém, a sua referência cultural era Paris.463 Consideramos que os limites
do que era considerado luxuoso e miserável eram tênues e fluidos no TFA. No entanto, é
importante distinguir o estabelecimento da entrevistada das demais boates, pensões e dançarás
de Macapá e suas vilas e distritos. Ela própria não identificava a sua boate como um
prostíbulo ou cabaré:
Então tinha muito isso, não era propriamente dizer assim “Maria teve um
cabaré, um prostíbulo”. Não, era uma casa que abrigava-se mulher que
viesse de avião, não fui eu que mandei buscar.
– Tá aqui, delegado, elas vieram por conta própria.
Levava passagem, bilhete tudinho, mostrava. Era tudo registrado, tudo
dentro do limite. Pra evitar de… Por isso que eu levei a minha vida todinha
sem polícia me incomodar e eu incomodar a polícia.464
Como citado anteriormente, lenocínio é crime no Brasil. Maria afirma que não foi
buscar nenhuma mulher para se prostituir em sua casa, elas chegavam com o intuito de morar
na boate, e que aí se prostituíam por conta própria, o que não configura crime para Maria.
Contudo, não sabemos como era essa relação das meninas e Maria sobre o serviço da
prostituição. Quando perguntada sobre como era a convivência com elas, a entrevistada falou
que era boa, mas não deu detalhes. Não sabemos como os programas eram definidos, se os
pagamentos eram divididos entre as meninas e ela, por exemplo. Pela sua fala, vemos que os
delegados também viam assim ou não davam importância para isso, já que ela buscava seguir
todas as regras exigidas pela polícia, como fichar as meninas e levá-las ao hospital para fazer
exames. Mais do que isso, mostrava todos os documentos que pudessem comprovar que ela
461
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Op. Cit., p. 59-60.
462
Ibidem, p. 61-62.
463
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas Produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu,
2010, p. 113.
464
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
159
não tinha ido buscar nenhuma delas. Certamente, Maria sabia da previsão legal do crime de
lenocínio e queria se precaver com a finalidade de mostrar que estava “dentro do limite” do
permitido pela lei.
Os delegados não eram as únicas autoridades com quem Maria estabeleceu boas
relações. Em determinado momento, ela menciona que até mesmo um dos governadores do
TFA chegou a indicar sua boate:
465
Foi governador do Território Federal do Amapá de 1985 a 1990.
466
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
467
PRECHET, Beatriz. Op. Cit., p. 76.
160
certamente brancas, o que não significa que não havia igualmente mulheres negras, pois além
das amapaenses, havia outras brasileiras e a entrevistada não identificou a cor como um
critério para permanência de mulheres na sua casa. No entanto, o que observamos é que a
maioria das meretrizes dos inferninhos eram negras. Sem dúvidas eram da mesma classe, mas
não tinham as mesmas condições de trabalho e nem eram vistas como iguais pelas autoridades
policiais. Neste atinente, Margareth Rago afirma que:
Olha, o Exército melhorou muito Macapá. Na época que eu tinha meus filhos
pequenos, eu tinha o Exército onde tinha as pessoas, o avião vinha três,
quatro vezes por semana. Esses aviões grandes. E uma pessoa como eu que
tinha como, não tinha poder né, não tinha mais dinheiro, pedia caixa de
tomate, fazia amizade com eles lá. Mesmo que eu desse, sustentasse três,
quatro deles com alimentação, café, mas eu tinha como eles vim de Macapá
e trazer pra mim repor tomate, laranja, essas coisas todas. Pra eu alimentar as
próprias meninas em casa, porque era tipo restaurante.469
Esse período que ela faz referência é a vinda das autoridades das Forças Armadas a
Macapá no ano de 1973 por causa da Operação Engasga ou engasga-engasga, como ficou
468
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 260.
469
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
161
popularmente conhecida.470 Ela construiu uma relação de troca com o Exército, e não explicita
quem eram as pessoas, podendo ser soldados ou até funcionários do TFA. Como a sua boate
também começou a funcionar como restaurante, ela oferecia refeições a eles, mas esperava
que lhe dessem tomates e laranjas. Não era somente por amizade, ela tinha um interesse nessa
relação, assim como eles tiveram daí proveito, pois recebiam refeições gratuitamente.
A boate funcionava todos os dias, de 21h a 4h. Perguntei se não houve algum período
em que o governo territorial ordenou limite de funcionamento e sua resposta foi negativa,
acrescentando que o único período em que houve ordem para fechar os estabelecimentos, foi
o contexto do engasga. No entanto, ela não fechou as portas, e só recebeu a recomendação de
um delegado para que tivesse cuidado, e se visse alguma irregularidade, teria que fechar.
Sobre o engasga-engasga, Maria revela:
Eu não sei porque foi aquilo não. Não sei se era político que queria levantar
o astral de Macapá, não sei o que foi aquilo. E depois culparam não sei
quem, que veio gente da Guiana, veio gente não sei do quê. [...] Olha, eu vou
te contar. Nunca fechei as portas nenhum dia, nenhuma hora e nunca vi nada.
Nunca.
– Ah, pegaram numa saída de igarapé não sei quem e surraram, bateram.
Eu disse:
– Olha, amanhã eu vou tirar uma de vocês, vocês se arruma e procura no
hospital se deu entrada de alguma pessoa ferida com esse problema.
Mentira. Aquilo ali foi uma coisa que eu não sei o que era, não sei o que
aconteceu. Mas durou muito tempo e assustou muita gente.471
Apesar das várias denúncias à polícia e à Rádio Difusora, não se tem registros
de uma mulher assassinada ou gravemente ferida por esses ataques, mas essas
geraram em Macapá um clima de tensão e medo generalizados entre os
470
Sobre a Operação Engasga, ver: SANTOS, Dorival da Costa. O regime ditatorial militar no Amapá: terror,
resistência e subordinação 1964-1974. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas,
2001.
471
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
472
SILVA, Maura Leal da. Op. Cit., p. 222.
162
Não é de se estranhar que Maria veja esse episódio da história amapaense como fofoca
e mentira. Ela até se questiona se não era ação de algum político querendo “levantar o astral”
de Macapá, uma forma de animar a cidade. Mas, como bem pontuou Maura Leal, o
engasga-engasga foi um pretexto para prender opositores do regime ditatorial. Adamor
Oliveira lembrou que as escolas interromperam as aulas, cinemas não funcionavam e o
comércio ficou paralisado parcialmente474. A partir das reminiscências de Maria e de Adamor
podemos elaborar a questão: os locais eram fechados por recomendação de delegados ou os
proprietários fechavam por medo? Maria disse que não fechou sua boate porque achava que
se tratava de uma invenção.
Maria chamou nossa atenção ao afirmar que não aceitava em seu estabelecimento
meninas do Amapá e explicou seus motivos:
Depois eu resolvi um dilema, uma questão que eu não queria pegar mulher
do Amapá porque elas eram rebeldes, usava droga, bebia e não aceitava a
minha condição de viver comigo.
– Olha, você tem café da manhã, você tem almoço, você tem jantar, tem a
sua liberdade, tem o seu quarto. […] Pra isso, você tem que seguir as regras
da casa.
– Que regra? Aqui é puteiro, puteiro não tem regra.
– Por isso mesmo, você não serve pra morar comigo.
Aí eu não aceitava mulher daqui de Macapá.475
473
Ibidem, p. 222-223.
474
OLIVEIRA, Adamor de Sousa Oliveira. Tesouros de Memória. Fortaleza: Premius, 2013. Memória., p.
178-179.
475
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
163
imediatamente.476 Vemos como o padrão de donas de pensão não é muito distinto, mesmo se
tratando de locais tão distantes.
Questionei sobre a prostituição realizada nas ruas e ela falou sobre as mulheres
bêbadas no Canal da Mendonça Júnior. Disse que eram muitas e:
É porque a mulher bebe. Vai nos bar, bebe, anda pela rua. Às vezes uma
abraçada. Cansei de ver mulher bêbada naquele canal ali e saía do Bar
Caboclo.
[...]
Entravam naqueles barcos, transavam com aqueles homens que vinham de
barco. Até ali atrás do Banco do Brasil, aquilo ali ficava assim de
embarcação.477
Mais uma vez o Bar Caboclo se faz presente nas memórias da prostituição em
Macapá. Como já pudemos constatar antes, o Canal da Mendonça Júnior era um dos
territórios da prostituta pobre amapaense que se embriagava e executava seu serviço sexual à
luz do dia ou na escuridão da noite nas ruas ou em embarcações que ali ancoravam. A
prostituição nos barcos é um aspecto singular dessa atividade no TFA. Observamos que as
prostitutas amapaenses não limitavam o seu ofício às boates, ruas e pensões. Sendo
necessário, entravam nas embarcações para trabalhar. Com isso, é possível supor que o a
interdição do uso de bebida alcoólica pelas meninas na boate de Maria estivesse ligada ao fato
dela não querer que aquelas moças fossem confundidas com as prostitutas pobres do canal.
Alguns aspectos da vida das meninas foram revelados, assuntos amorosos e familiares
anteriores e posteriores à permanência delas na boate. Perguntamos sobre namorados,
maridos, casamentos arranjados durante o meretrício e filhos. Maria disse que elas não tinham
namorados, pois esses eram os clientes que passavam as noites com elas, mas logo iam
embora. Segundo suas palavras, o homem de boas intenções diz: “a partir de hoje eu não
quero essa menina no salão, fazendo programa porque eu vou tirar ela”.478 Um homem que
não fazia isso não poderia ser namorado, mas sim cliente.
Ela citou a nacionalidade e nomes de algumas moradoras da sua casa como a
paraguaia Maria, a argentina Cristiane e a austríaca Solange, também mencionou duas
francesas que já eram radicadas no Brasil, o que indica que as outras mulheres tinham vindo
de outros países diretamente para Macapá. Como ela afirmou, não aceitava mulheres de
Macapá na sua boate, o que não significa que não aceitava mulheres de outras regiões do
476
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 130.
477
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
478
Ibidem.
164
Brasil. Quando chegavam em Macapá e procuravam por Maria, diziam que tinham
encontrado alguma menina que morou muito tempo na casa e lhes dissera que era bom. Dessa
forma, Maria as recebia e lhes dava boas-vindas. Porém, cada uma delas tinha uma história
marcada por dor, violência e abuso, principalmente de maridos ou amásios:
Outros não era marido, outros viviam e maltratavam elas. Outros botavam
elas pra ganhar dinheiro pra ele. Tem tudo isso. [...] Prostituía a mulher, pra
dar dinheiro pra eles. Já pensou, como é que pode? […] Fugiam pra fazer a
vida delas, porque a mulher depois que ela tem marido ou filhos e sai da casa
de suas famílias, não adianta voltar mais.479
A partir desse relato, percebemos como não era incomum alguns companheiros
obrigarem as esposas a se prostituir para lucrar com a exploração delas. Essas mulheres
exploradas fugiam e, como não viam alternativa, continuavam na prostituição, mas por conta
própria ou nem tanto, pois algumas iam morar em boates. Maria também falou que algumas
das meninas haviam sido estupradas pelos maridos ou tinham filhos estuprados por aqueles,
razão pela qual decidiam fugir, mas chegavam sem filhos em sua boate. Aquelas que
engravidavam na boate, recebiam uma passagem de viagem e eram mandadas embora de onde
vieram.
Algumas das meninas conheceram seus maridos na boate. Algumas delas casaram
com funcionários da Eletronorte480, indo em seguida embora para os estados de origem deles.
Outras casaram com estrangeiros e saíram do Brasil com destino a países como Itália e
Estados Unidos.
O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, nas décadas de 1960 e 1970 recebia navios
estrangeiros cotidianamente. Erika Pinho, Cristian Paiva e Francisca Sousa inferem que “os
encontros interculturais forjavam, entre as mulheres nativas, novos desejos e idealizações
sobre as masculinidades, que contrapunham as características dos homens locais àquelas
atribuídas aos estrangeiros.”481 A prostituta Maria Angelina disse que o diferencial dos
estrangeiros era o pagamento em dólar e o tratamento dado às meretrizes, eles lhes ofereciam
479
Ibidem.
480
“20 de junho de 1973. A Eletronorte nascia com a missão de desenvolver e integrar o Brasil com a sua
energia. Com sede no Distrito Federal, tem unidades nos nove estados da Amazônia Legal: Acre, Amapá,
Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A Empresa surgiu com a função
estratégica de investir na Amazônia quando poucos se arriscavam a fazê-lo. Uma decisão de governo que, mais
tarde, se tornaria referência na geração de energia de forma sustentável, com responsabilidade e de forma
integrada.” In: www.eletronorte.com.br/a-eletronorte-2/.
481
PINHO, Érika de Meneses; PAIVA, Cristian; SOUSA, Francisca Ilnar de. Memórias de mulheres e “amigos”:
interesse e intimidade no meretrício de Fortaleza (1960-1980). In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.;
Moraes, Aparecida Fonseca, Op. Cit., p. 372.
165
um bom trato, diferentemente dos homens da “terra”.482 Macapá também era uma área
portuária e pela fala de Maria, notamos que havia aí uma circulação significativa de
estrangeiros que chegavam em navios. Ela própria casou com um deles, assim como algumas
das meninas da sua casa. A diferença é que o seu marido permaneceu em Macapá, com ela,
enquanto as meninas foram morar no exterior. Podemos supor que, assim como aconteceu em
Fortaleza, as meretrizes de Macapá tinham preferência por estrangeiros, não somente pelo
aspecto financeiro, mas também pelo tratamento. Algumas delas abandonaram o meretrício
para casar, constituir família com eles e esquecer os anos de serviço sexual no Brasil.
Sobre as mulheres que casaram e permaneceram em Macapá, ela disse não manter
contato para não as prejudicar. Com a violência e o uso de drogas crescente na cidade, a partir
da década de 1980, Maria decidiu fechar seu estabelecimento. Perguntei como se deu o
fechamento da boate e ela disse que só encerrou as atividades quando todas meninas viajaram
e foram para as casas de suas famílias.
Apesar de dizer que não foi buscar nenhuma menina para viver na sua boate, Maria
revela em muitos momentos o controle que exerceu sobre elas. Primeiro pelas regras, que
incluíam não ingerir bebida alcoólica em sua casa e a forma de se vestir. Depois, pelo controle
dos relacionamentos amorosos delas, pois Maria esperava que os pretendentes lhe falassem
quais eram as suas intenções, se queriam casamento e constituir família ou não. Isso já
descortina essa relação familiar e maternal que ela disse ter constituído com essas
trabalhadoras. Assim, o que fica oculto em toda a entrevista é o trato com o dinheiro gerado
pelo trabalho das meninas. Não tivemos acesso a temas como aluguel, roupas, alimentação,
salário, programas. Mas tudo o que foi falado, ajudou a elucidar muitas questões levantadas
pela leitura das outras fontes e mostrou alguns dos contrastes existentes entre as boates de
Macapá e as contradições nas formas de atuação das autoridades do governo territorial.
482
Ibidem.
166
Considerações Finais
meninas, e eram habituadas a frequentar as ruas para trabalhar e tinham liberdade para
frequentar festas e namorar. Porém, quando precisavam buscar o Estado, assumiam os
parâmetros hegemônicos de comportamento feminino, negando que frequentavam festas, que
namoravam, alegando que viviam restritas ao domínio do lar e da família. Portanto, as
mulheres da classe trabalhadora ao mesmo tempo resistiam à imposição de tais parâmetros e
se apropriavam deles quando era conveniente. Então, quando se viam diante dos agentes do
Estado, como ao prestar depoimentos à Polícia ou à Justiça, elas poderiam usar as ideias
dominantes a seu favor, mesmo que não as reproduzissem no seu cotidiano. Assim, é forçoso
admitir que a classe dominante pode até ter os meios necessários para criar e divulgar
amplamente suas ideias em determinada sociedade de determinada época, mas essa
constatação não significa que a classe trabalhadora reproduzirá isso indiscriminadamente, pois
ela tem seus códigos, valores e costumes criados a partir de experiências específicas,
diferentes daquelas da burguesia.
A clivagem de classe é essencial para entender de que forma o governo ditatorial
amapaense lidou com botequins, boates e clubes sociais e seus frequentadores. Enquanto
boates e botequins, frequentados por homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram
vigiados constantemente, inclusive com a presença de guardas territoriais dentro dos
estabelecimentos em regime de plantão, os clubes sociais, dos quais políticos, militares,
empresários e funcionários públicos eram habitués, foram prestigiados pela imprensa. Estes
eram os espaços de lazer e festa do TFA. Todavia, para as meretrizes, esses não eram
restritamente espaços de diversão, pois também eram locais de trabalho. Mas elas também se
divertiam, dançavam, se embriagavam na companhia de colegas e clientes. Muitas vezes
foram detidas pela contravenção penal de embriaguez e desordem, passando uma noite na
delegacia ou até a ordem de soltura do delegado de plantão. Soldados do Exército igualmente
promoviam desordens nas ruas, boates e pensões. Por vezes, quando denunciados, voltavam
para intimidar proprietários de boates e prostitutas que ali residiam. Assumiram uma
identidade de “donos da cidade”, onde tudo podiam fazer, tendo a certeza de que nada ou
pouco aconteceria com eles, porque detinham poder como militares do Exército.
A intervenção mais evidente da Ditadura empresarial-militar no TFA sobre a
prostituição ocorreu nas zonas de meretrício. O canal da Avenida Mendonça Júnior, outrora
conhecido como Igarapé da Fortaleza, estava localizado no antigo bairro da Doca da
Fortaleza. A Doca foi alvo de preocupação do governo territorial desde o governo de Janary
Nunes, desconforto que permaneceu na Ditadura. Um decreto publicado no jornal oficial do
TFA tornou evidente que a presença das prostitutas era incômoda no canal, local que abrigava
168
residências de meretrizes e lugares de diversão. Por isso, ficou estabelecido que elas deveriam
se retirar de lá em um prazo de sete dias. Elas saíram, mas logo voltavam e tentavam resistir
nesse espaço que disputavam com o governo territorial. O resultado dessas disputas, ocorridas
desde a década de 1940, foi o deslocamento e criação de zonas de meretrício em bairros mais
afastados do centro da capital. O bairro Santa Rita tornou-se o local com maior concentração
de botequins, dançarás, boates e pensões de Macapá, mas as meretrizes também continuavam
ocupando o canal da Mendonça Júnior.
Identificar os pontos de prostituição existentes na Macapá de outrora foi como fazer
uma caminhada por essa cidade e imaginar sua boemia abundante, pois os espaços e seus
deslocamentos contam uma história, como bem analisou o historiador José D’Assunção
Barros483. Outrora bastante frequentados e com grandes festas, os clubes sociais tiveram o seu
declínio, assim como os botequins, pensões, dançarás e boates. Poucos resistiram ao tempo,
como foi o caso do Trem Desportivo Clube, que ainda hoje realiza concursos de beleza como
o Rainha das Rainhas484 no carnaval amapaense, mas concentra suas atividades no esporte.
Terrenos de boates como o Juçarão, hoje abrigam residências. No local onde antes existia o
popular dançará Merengue, foi construída uma escola. O lugar que foi ocupado pelo Bar
Caboclo contém atualmente a Sede dos Bancários e o lote que um dia foi da boate da Suerda,
ou Pensão da Margot, é ocupado pelo Almoxarifado do Governo do Amapá.
As prostitutas do TFA construíram muitas redes de convivência na sua vida cotidiana.
Tais redes foram tecidas pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela
amizade e vizinhança. Essas relações deixaram expostos os sentimentos entre essas mulheres
e seus amantes, filhos, irmãs, desafetos. Como interações humanas, tinham suas contradições.
Ora compartilhavam amor e amizade, ora ódio e violência. A partir dessas redes, observamos
que os espaços de vivência dessas meretrizes não se restringiam às zonas de meretrício, pois
elas caminhavam pela capital e se deslocavam pelos distritos, onde conheciam guardas
territoriais, soldados do Exército, policiais militares e os frequentadores da boemia
amapaense. Elas não andavam sozinhas, quase sempre estavam em grupo de duas ou mais
prostitutas, algumas moravam na mesma pensão, outras eram irmãs e amigas.
Conforme apontamos ao longo das seções, a experiência comum de ser prostituta nem
sempre resultava em laços de solidariedade e amizade. Motivadas por ciúmes e rixas, elas
483
BARROS, José D.’Assunção. A imaginação da cidade na História e nas Ciências Sociais: da leitura
institucional às abordagens complexas. Urbana: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
Cidade, v. 4, n. 1, p. 213-240, 2012.
484
Concurso para eleger a “Soberana do Carnaval Amapaense”. Segundo o Trem Desportivo Clube: “Hoje, o
Rainha, mais que uma realidade, é um marco divisor no carnaval de salão e na cultura amapaense”.
169
entravam em conflitos que resultavam por vezes em violência física. Para defender seus
amantes, não hesitaram em ferir outros homens, mesmo que fossem presas por isso. Por
vingança, moradores da capital do TFA foram capazes de denunciar uma vizinha
ex-prostituta, por lenocínio. Mas por meio das redes de convivência constituídas entre essa
ex-meretriz e amigos, ela conseguiu provar sua inocência. Os relacionamentos com xodós
permitiram a algumas das meretrizes sentirem-se humanas novamente e se verem enquanto
pessoas cheias de afeto e sonhos. Mas, tais relacionamentos, sempre orientados pelos papéis
de gênero, poderiam ser marcados pela dependência emocional, caso em que as prostitutas
aceitavam o lugar de força ou as agressões de seus amantes para não ficarem sozinhas.
O depoimento da dona de uma boate, que conseguiu estabelecer relações com
delegados e governadores, descortinou muitos aspectos da prostituição no TFA do regime
ditatorial. Os inferninhos frequentados por trabalhadores pobres recorrentemente eram
invadidos pelas forças policiais, enquanto a boate dela, frequentada por pessoas de maior
poder aquisitivo, não sofreu a mesma vigilância. Essa boate foi o maior exemplo de
prostituição institucionalizada que encontramos. A proprietária exerceu um controle sobre o
cotidiano das “meninas”, ao mesmo tempo que construiu uma relação maternal e de afeto com
elas. A origem das meninas que procuravam morar na boate era um critério importante de
seleção porque as mulheres do Amapá não eram aceitas nesse espaço por serem consideradas
rebeldes em razão de não obedecerem às regras impostas pela depoente. O tratamento
desigual entre as boates do TFA expõe as contradições do governo territorial e mostra que o
problema não era o meretrício em si, mas quem exercia essa profissão e quem eram os
indivíduos que buscavam por ele.
Meretrizes, prostitutas, mundanas, marafonas, horizontais e mulheres de vida livre são
alguns termos utilizados para designar as trabalhadoras sexuais, marginalizadas socialmente,
mas essenciais para a manutenção da família burguesa e dos ideais de feminilidade.
Consideradas pelas feministas radicais como vítimas e pelas feministas liberais como
empoderadas, as prostitutas não são tão diferentes de outras trabalhadoras, mas são marcadas
pelo estigma do trabalho sexual. Observamos que elas atuavam na intersecção entre gênero e
classe com outras mulheres trabalhadoras que não compartilhavam das experiências de ser
prostitutas. Já com os homens, compartilham a intersecção de classe, mas não de gênero.
Essas relações eram marcadas por violências e estigmas, mas também por solidariedade e
afeto. Ao mesmo tempo em que eram silenciadas, agredidas, desacreditadas, essas mulheres
elaboraram estratégias para resistir no espaço amapaense e no tempo.
170
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