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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

Macapá/AP
2023
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

Macapá/AP
2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central/UNIFAP-Macapá-AP
Elaborado por Mário das Graças Carvalho Lima Júnior – CRB-2 / 1451
_________________________________________________________________________

S586 Silva, Amanda Cristina Souza da.


Mulheres de vida livre: prostituição e mundos do trabalho na Amazônia setentrional
(1964-1980) / Amanda Cristina Souza da Silva. - Macapá, 2023.
1 recurso eletrônico. 175 folhas.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Amapá, Programa de


Pós-Graduação em História, Macapá, 2023.
Orientador: Sidney da Silva Lobato.

Modo de acesso: World Wide Web.


Formato de arquivo: Portable Document Format (PDF).

1. Gênero. 2. Trabalho. 3. Prostituição 4. Amazônia setentrional. I. Lobato, Sidney da Silva,


orientador. II. Universidade Federal do Amapá. III. Título.

CDD 23. ed. – 981.1


_________________________________________________________________________

SILVA, Amanda Cristina Souza da. Mulheres de vida livre: prostituição e mundos do trabalho na Amazônia setentrional
(1964-1980) . Orientador: Sidney da Silva Lobato. 2023. 175 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em
História. Universidade Federal do Amapá, Macapá, 2023.
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

DISSERTAÇÃO APRESENTADA PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM


HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UNIFAP

Aprovada em: 21/06/2023

Banca Examinadora:

Sidney da Silva Lobato (Presidente/ PPGH/Unifap)

Lara Vanessa de Castro Ferreira (Membro Interno/ PPGH/Unifap)

Maria Luiza Ugarte Pinheiro (Membro Externo/ PPGH/Ufam)

Macapá/AP
2023
À minha mãe, Maria José, por sonhar comigo.
Ao pequeno Oliver Antônio, por trazer luz à minha vida novamente.
À Lassie, pela companhia e pelas alegrias.
AGRADECIMENTOS

Iniciar o mestrado e ter ele interrompido por uma pandemia que vitimou milhões de
pessoas ao redor do mundo e milhares de brasileiros não foi uma tarefa fácil. Depois, ainda no
ano de 2020, o estado do Amapá sofreu um apagão energético que expôs o descaso dos órgãos
públicos para com a crise que assolava a população amapaense. Nos últimos anos, a educação
e a pesquisa brasileiras também sofreram grandes cortes orçamentários, o que aprofundou a
precarização das universidades públicas. No final do governo negacionista e inimigo da classe
trabalhadora, a educação brasileira sofreu mais um duro golpe: o corte de bolsas de pesquisa
Capes. Tal corte acarretou o atraso no pagamento das bolsas de milhares de estudantes de
pós-graduação do Brasil, inclusive da minha. Termino a escrita dessa dissertação com alívio e
a certeza de que produzir ciência em um contexto de emergência sanitária, política, social e
econômica é um ato de resistência. Assim, inicio agradecendo à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e à Fundação de Amparo à Pesquisa
do Amapá (Fapeap) pelo financiamento dessa pesquisa.
Nos últimos três anos contei com o apoio e a colaboração de muitas pessoas. Começo
agradecendo à minha família pelo apoio e pela saúde de todos. Aos meus pais Maria José e
Adilaudo, minha gratidão pelo incentivo a avançar na trilha da educação. À minha mãe,
agradeço pelo investimento no meu crescimento pessoal e profissional. Obrigada por não
soltar a minha mão. Nós duas para sempre, mamãe. Agradeço também à minha avó Maria
Monteiro, minha tia Eli, meu irmão Mateus e minha prima Camila, esta última pelas ajudas
estruturais durante os eventos científicos on-line.
Agradeço ao meu orientador por me ajudar a trilhar o caminho da pesquisa e escrita
dessa dissertação. Muitas vezes me ajudou a não desviar o caminho, quando eu estava perdida
e não sabia o que fazer. Que sorte eu tive de ser orientada por um profissional tão generoso.
Obrigada pela compreensão, professor. Sou grata ao corpo docente do PPGH-Unifap, um
programa de pós-graduação jovem, mas aguerrido. Agradeço aos colegas do Laboratório de
Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia (Lehstam/Unifap), que muito
contribuíram para a realização dessa pesquisa e para a minha formação como pesquisadora, e
ao Grupo de Pesquisa Democracias e Ditaduras (GPDD/Unifap), especialmente às professoras
Júlia Monnerat e Maura Leal. Também agradeço à Cecília Bastos, minha preceptora no
estágio em docência realizado no curso de Licenciatura em História da Unifap. Agradeço às
valiosas contribuições de Lara de Castro e Maria Luiza Ugarte no exame de qualificação e na
defesa desta dissertação.
Meu muito obrigado ao historiador Marcelo Jacques, ao museólogo Michel Ferraz e ao
arquivista Apoena Ferreira, funcionários da Comissão de Memória do Tribunal de Justiça do
Amapá, pela ajuda na coleta dos processos judiciais. Estendo os agradecimentos aos
funcionários do Almoxarifado do Governo do Amapá por me auxiliar a encontrar o Livro de
Registro de Ocorrências de 1969. Tal foi a minha surpresa quando, na escrita desse texto,
descobri que o endereço do Almoxarifado abrigou um dos locais de prostituição estudados
nessa dissertação.
Agradeço aos queridos Higor Pereira, Marcella Viana e Marlos Vinícius Matos,
amigos que a Unifap me deu e que dividiram comigo as angústias e incertezas da
pós-graduação. Sou grata aos amigos Francisco Antonio, Alan Carlos, Leandra Leal, Nariane
Almeida e Maria Aldeliza pela amizade e por me ajudarem a respirar ares “fora da academia”.
Amo vocês.
Por último, por mais que não saibam, agradeço aos meus filhos de quatro patas. Foram
minha companhia nos tempos de isolamento da Covid-19. À minha gataria pelo amor, pelos
risos e carinhos. À minha Lassie, que me acompanhava nas aulas e eventos remotos, algumas
vezes deixava escapar um latido ou aparecia na frente da câmera, e que infelizmente partiu em
2022.
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou
me levantar.

Maya Angelou (1978)


RESUMO

Ao longo da dissertação, buscamos cumprir com o objetivo de analisar o cotidiano da


prostituição no TFA com foco nas relações de gênero e nas experiências de classe, durante a
Ditadura empresarial-militar. Para isso, nos debruçamos sobre fontes documentais que nos
possibilitaram responder as nossas questões iniciais. Nosso trabalho investigativo procurou
responder as seguintes questões norteadoras: de que forma as concepções de honra da classe
trabalhadora amapaense aparecem na documentação? Como os agentes do regime ditatorial
lidaram com as meretrizes e com os espaços de lazer do TFA? Quais foram as redes de
convivência construídas pelas prostitutas e por aqueles(as) que se relacionavam com elas
como estratégia de sobrevivência? A partir dos conceitos de gênero e experiência e com base
na análise e na confrontação de ocorrências policiais, processos criminais, artigos de
periódicos e entrevista, foi possível inferir que: a preservação a todo custo da virgindade e do
recato era um ideal da classe dominante apenas parcialmente performado pela classe
trabalhadora, pois a moral dos trabalhadores era mais flexível; enquanto boates e botequins,
frequentados por homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram vigiados constantemente,
inclusive com a presença de guardas territoriais dentro dos estabelecimentos em regime de
plantão, os clubes sociais, dos quais políticos, militares, empresários e funcionários públicos
eram habitués, foram prestigiados pela imprensa; as prostitutas do TFA construíram redes de
convivência, tecidas pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela
amizade e vizinhança; a experiência comum de ser prostituta nem sempre resultava em laços
de solidariedade e amizade, pois motivadas por ciúmes e rixas, as meretrizes entravam em
conflitos que resultavam, por vezes, em violência física.

Palavras-chave: Gênero. Trabalho. Prostituição. Amazônia setentrional.


ABSTRACT

Throughout the dissertation, we seek to fulfill the objective of analyzing the daily life of
prostitution in TFA with a focus on gender relations and class experiences, during the
business-military dictatorship. For this, we looked into documentary sources that enabled us
to answer our initial questions. Our investigative work sought to answer the following guiding
questions: how do the conceptions of honor of the working class from Amapá appear in the
documentation? How did the agents of the dictatorial regime deal with the prostitutes and the
TFA leisure spaces? What were the coexistence networks built by the prostitutes and by those
who interacted with them as a survival strategy? Based on the concepts of gender and
experience and based on the analysis and confrontation of police incidents, criminal
processes, journal articles and interviews, it was possible to infer that: the preservation of
virginity and modesty at all costs was an ideal of the ruling class only partially performed by
the working class, as workers' morals were more flexible; while nightclubs and taverns,
frequented by working-class men and prostitutes, were constantly guarded, including the
presence of territorial guards inside the establishments on duty, social clubs, to which
politicians, soldiers, businessmen and civil servants were regulars, were honored by the press;
TFA prostitutes built coexistence networks, woven by work, solidarity, love, kinship,
friendship and neighborhood; the common experience of being a prostitute did not always
result in bonds of solidarity and friendship, as motivated by jealousy and strife, the prostitutes
entered into conflicts that sometimes resulted in physical violence.

Keywords: Gender. Work. Prostitution. Northern Amazon.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1. Família Sarges ................................................................................ 33

Imagem 2. Claudethe na coluna “Em destaque” .............................................. 64

Imagem 3. Mapa dos Pontos de Prostituição em Macapá (1964-1980) ............ 107

Imagem 4. Igarapé da Fortaleza, década de 1950.............................................. 111

Imagem 5. O Igarapé da Fortaleza transformado em canal, década de 1960 ... 111

Imagem 6. Doca da Fortaleza em 1965 ............................................................. 111

Imagem 7. Canal da Mendonça Júnior em 1967................................................ 112


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

34º BIS – 34º Batalhão de Infantaria da Selva


AFCM – Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
CEA – Companhia de Eletricidade do Amapá
CMM – Círculo Militar de Macapá
DSG – Divisão de Segurança e Guarda
DSN – Doutrina de Segurança Nacional
ESG – Escola Superior de Guerra
Icomi – Indústria e Comércio de Minérios S/A
RP – Rádio Patrulha
TFA – Território Federal do Amapá
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................... 13

I. HONRADAS OU DEVASSAS? COTIDIANO E SOBREVIVÊNCIA DE


MULHERES TRABALHADORAS ................……………………………………. 29

1.1. A família honrada ................................................................................................ 29

1.2. “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a
doença social da prostituição ………………………………………………………. 42

1.3. Trabalho doméstico e outros ofícios honestos das mulheres amapaenses ....... 56

1.4. Crimes de Sedução em Macapá: mulheres honradas ou mulheres de vida


questionável? ............................................................................................................... 65

II. A BOEMIA E A PROSTITUIÇÃO: AS FESTAS, OS MILITARES E A


CARTOGRAFIA DO PRAZER …………………………………………………… 82

2.1. Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais ... 82

2.2. Bailes e botequins: uma questão de classe ……………………………………. 88

2.3. O “ser” e “fazer-se” homem: as rixas, os desafios e as masculinidades


amazônicas ................................................................................................................... 97

2.4. Os caminhos da prostituição: deslocamentos e resistências no espaço


urbano amapaense ...................................................................;;;............................... 106

III. AS PROSTITUTAS E AS TENSÕES DAS SOCIABILIDADES DIÁRIAS:


TRABALHO, AMOR, AMIZADE E OS CONFLITOS …………………………. 122

3.1. Relações amorosas, de vizinhança e de clientela …………………………….. 122

3.2.“Pode me matar de porrada, mas eu não te largo”: a relação trágica de


Raimundinha e Belisca ............................................................................................... 140

3.3. “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate
em Macapá .................................................................................................................. 151

Considerações finais ………………………………………………………………... 166

Fontes ........................................................................................................................... 170

Referências Bibliográficas .......................................................................................... 170


13

Introdução

O presente estudo tem por objeto o cotidiano da prostituição no Território Federal do


Amapá (TFA) entre os anos de 1964 a 1980, analisado na perspectiva da interseccionalidade
de gênero e classe. A prostituição, assim como o trabalho doméstico, era uma das
possibilidades de trabalho no TFA, especialmente em Macapá. Nossa pesquisa evidenciou que
o trabalho era uma atividade estruturante da vida cotidiana das prostitutas, pois dele que elas
tiravam o seu sustento. Por isso, para nós, precede levantar discussões sobre a relação entre a
prostituição e o trabalho no capitalismo.
Nos feminismos e nas produções acadêmicas que tematizam prostituição há
discussões sobre a prostituição ser ou não ser trabalho. A historiografia eclipsa essa questão
pois privilegia aspectos sociais e culturais da prostituição. Talvez escrever sobre essa questão
possa parecer algo prescindível para a nossa abordagem, mas, na verdade, há a necessidade de
justificar porque, ao longo desse texto, definimos a prostituição como trabalho. Antes de
adentrar nos aspectos cotidianos dessa atividade no TFA, precisamos responder as seguintes
questões: prostituição é trabalho? Se é trabalho, é produtivo ou improdutivo? Para responder a
essas perguntas, recorremos à teoria marxista. Em primeiro lugar, vamos passar brevemente
por teóricos e teóricas marxistas e socialistas a fim de entender o que eles e elas pensavam
sobre a atividade da prostituição. Em segundo lugar, abordaremos as questões relativas ao
trabalho.
Clarisse Paradis escreveu sobre como a tradição marxista clássica analisou a
prostituição e sobre como marxistas pensaram esse tema não por uma perspectiva moralista,
mas por meio de uma visão contrária às instituições burguesas e às desigualdades do sistema
capitalista. Para isso, ela analisou as obras de Flora Tristan, Karl Marx e Friedrich Engels,
August Bebel, Clara Zetkin e Alexandra Kolontai.
A feminista e socialista utópica Flora Tristan acreditava que a prostituição era fruto da
desigualdade econômica e que o aumento da riqueza destruía os laços familiares.1 A dupla
moral sexual e dominação masculina também eram causas da prostituição porque se exigia a
castidade das mulheres e aquelas que descumprissem essa norma tinham como destino a
prostituição. A isso se soma o preceito de que a mulher deveria servir sexualmente ao homem
e uma vez tomada pela miséria, a prostituição se lhe oferece como caminho.2 Na Europa do
século XIX, foram iniciadas as discussões sobre a regulamentação da prostituição e com isso
1
PARADIS, Clarisse Goulart. A prostituição no marxismo clássico: crítica ao capitalismo e à dupla moral
burguesa. Revista Estudos Feministas, v. 26, 2018, p. 05.
2
Ibidem, p. 06.
14

foram criadas medidas sanitárias para controle das prostitutas, o que implicou na realização de
exames médicos forçados. Na Inglaterra, Tristan denunciou “a arbitrariedade da polícia, que
punia as prostitutas, e a conivência dos governos, que deveriam combater a prostituição e não
regulamentá-la”.3 Para ela, a prostituição era um tipo de morte física e moral para as mulheres
e deveria ser combatida.
Para Marx e Engels, a “comunidade de mulheres” pertence à sociedade burguesa, ou
seja, é uma criação do capitalismo e da propriedade privada. Para ambos, com a queda do
capitalismo, a prostituição teria o seu fim.4 Paradis, a partir disso, aponta que a transformação
das mulheres em propriedade resulta na prostituição.5 Ela acrescenta que Engels, em sua obra
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afirmou que a primeira luta de
classes se deu entre homens e mulheres, na oposição entre os sexos.6 Para ele, o casamento da
família moderna se transformou:

na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges,


porém, muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia
da cortesã habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como
uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma
escrava.7

Então ele associa o casamento à prostituição e à escravidão. Para Engels, a monogamia


era forçada para as mulheres e a transgressão dessa norma social levava à degradação
feminina, o que não acontecia com os homens. Sendo assim, a monogamia era complemento
da prostituição e o fim do capitalismo, com a incorporação das mulheres à indústria, levaria
ao fim da família burguesa e, por consequência, ao fim da prostituição.
O social-democrata alemão August Bebel qualificava a prostituição como uma
instituição social e não como uma instituição humana, porque para ele essa atividade não era
natural. Ele alertou que a prostituição era tão necessária para a sociedade burguesa quanto a
polícia, o exército e a igreja, por exemplo. 8 Paradis explica que Bebel apontou a hipocrisia da
sociedade burguesa, pois a prostituição era parte de uma colaboração entre a religião, o Estado
e os clientes, porque militares, políticos e juízes estavam nas listas de habitués dos bordéis ao

3
Ibidem, p. 5.
4
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 48.
5
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 07.
6
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 70-71.
7
Ibidem, p. 77.
8
BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910, p. 146.
15

mesmo tempo que estes combatiam o meretrício em defesa do casamento, da santidade e da


família.9
Clara Zetkin, uma militante feminista e comunista, afirmava que as mulheres eram
oprimidas pelo capitalismo e não pelos homens. Para ela, a prostituição era um complemento
da família burguesa e a oposição dos homens ao trabalho produtivo feminino fazia com que as
mulheres tivessem uma vida de miséria e recorressem à prostituição. Essa atividade tinha
definições que iam desde o casamento por conveniência ao trabalho sexual. Clarisse Paradis
enfatizou que dentre os marxistas citados, somente Zetkin considerou a prostituição como
trabalho.10
Já Alexandra Kolontai, dirigente do Partido Comunista Russo e articuladora do
movimento de mulheres trabalhadoras da Rússia, afirmava que a revolução dos meios de
produção não seria suficiente para a libertação das mulheres, pois seria necessária também
uma revolução da vida privada, nas relações sexuais, morais e afetivas. Assim como os
autores citados anteriormente, Kolontai explica a prostituição por meio de causas econômicas
e da miséria social. Porém, ela afirma que “a prostituição deformaria as relações sexuais, a
partir de sua visão de que a sexualidade seria uma forma elevada de enriquecimento pessoal, o
espaço do prazer, do amor, da cumplicidade, ou seja, de sentimentos elevados”11, ou seja, o
aspecto sexual era tão importante nas reflexões sobre os males da prostituição quanto as
causas dessa atividade. Além disso, a prostituição faria com que os homens se acostumassem
a desconsiderar o prazer feminino nas relações sexuais, o que reforçaria a opressão das
mulheres. No Estado bolchevique, a propriedade privada e políticas de reforço da família
foram abolidas, mas isso não foi suficiente para abolir a prostituição. Então ela cobrava que o
Estado combatesse esse mal de forma mais assertiva, começando por entender as causas do
fenômeno, que seriam a condição econômica e a educação dada às mulheres no sentido de que
poderiam ter benefícios econômicos em troca de favores sexuais. Desse modo, as mulheres se
prostituíam “temporariamente ou para a vida toda”12, ou seja, no comércio sexual ou no
casamento.
Clarisse Paradis argumenta que as contribuições desses autores e autoras são
absolutamente relevantes, mas eles não levaram em consideração o que as prostitutas
pensavam sobre o assunto. Desse modo, a questão do que leva as mulheres a se prostituir foi
eclipsada por aspectos econômicos, sociais, afetivos e sexuais abordados pelos marxistas. O

9
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 10.
10
Ibidem, p. 11.
11
Ibidem, p. 13.
12
KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977.
16

que fica claro é que a prostituição é uma instituição política e não apenas do âmbito privado,
então seria necessário associar essa atividade à família burguesa, à indissolubilidade do
casamento, à falta de autonomia das mulheres, à monogamia forçada e com todas as
contradições de uma sociedade capitalista.13
É relevante passar pelo pensamento marxista para entender a contribuição de seus
teóricos para as questões das mulheres, especialmente as teóricas no feminismo que
influenciaram os estudos de gênero. Para nós, isso é importante não apenas pelos estudos de
gênero, mas também porque o marxismo é a base da história social do trabalho.
Vera Cotrim, ao analisar os trabalhos produtivo e improdutivo a partir da teoria de
Karl Marx, elucida que o trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia para o capitalista e é
trocado por capital, enquanto o trabalho improdutivo não tem essa característica. Cotrim
elucida essas categorias retomando um exemplo clássico de Marx, o trabalho dos alfaiates:
Marx compara, para exemplificar, o trabalho do alfaiate contratado por um
capitalista para produzir uma calça que será consumida, com o trabalho do
alfaiate que produz a mesma calça na fábrica do capitalista. No primeiro
caso, o trabalho do alfaiate é improdutivo, pois se trocou pela renda, ou
dinheiro que é meio de troca: D – M. A mercadoria entrou para o âmbito do
consumo individual e o valor pago pela força de trabalho foi também
consumido; no segundo, a mesma atividade é produtiva porque foi trocada
por capital, gerando mais-valia para o capitalista: D – M – D’. Desta vez, o
valor pago pela força de trabalho não foi consumido, mas será realizado,
com o excedente de valor que criou, quando a mercadoria for vendida.14

Então, o trabalho do alfaiate como um trabalhador assalariado é um trabalho


produtivo, mas o trabalho do alfaiate enquanto trabalhador autônomo é trabalho improdutivo.
Porque no trabalho produtivo, a força de trabalho gerará valor para a produção capitalista,
mas no trabalho improdutivo, o resultado será consumido de forma individual.15 Artur dos
Santos Neto explica que o capitalismo se apropria das forças produtivas do trabalho, então é o
trabalho produtivo que sustenta o capitalismo porque “o produto do trabalho excedente se
converte em processo de autovalorização do capital”16. Dos Santos Neto indica que a
categoria de trabalho produtivo é restrita, porque está relacionada com a venda da força de
trabalho para os detentores dos meios de produção, ou seja, para os capitalistas.17 Por isso que
uma mesma espécie de trabalho pode ser entendida como produtiva ou improdutiva. Sendo

13
PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 17.
14
COTRIM, Vera Aguiar. Trabalho produtivo em Karl Marx: novas e velhas questões. Tese de Doutorado
(Departamento de História Econômica), Universidade de São Paulo, 2009, p. 45-46.
15
Ibidem, p. 47.
16
DOS SANTOS NETO, Artur Bispo. Trabalho produtivo e trabalho improdutivo nas “Teorias da Mais-Valia”
de Karl Marx. Em Debate, n. 8, p. 5-22, 2012, p. 15.
17
Ibidem, p. 16.
17

assim, um trabalhador que vende sua força de trabalho por conta própria é um trabalhador
improdutivo, já aquele que vende sua força de trabalho para uma grande empresa é um
trabalhador produtivo. Cotrim aponta que a esse trabalho consumido de forma individual e
trocado por renda se dá o nome de serviço:

O serviço se define como uma atividade comprada com a finalidade de obter


seu efeito útil, e portanto, como trabalho concreto, e pode ser material ou
imaterial, isto é, o efeito útil que produz pode ou não recair sobre objeto
material. Além disso, ainda que seu produto não possa separar-se, no âmbito
sensível, da atividade de produzi-lo, todo serviço se distingue de seu efeito
útil: o serviço de uma cantora, ou seu ato de cantar, é distinto do efeito útil, o
canto, que se pretende consumir. Se considerados como efeito útil, de acordo
com a definição de Marx, os serviços nunca são trabalho produtivo, pois sua
força de trabalho não é comprada com vistas ao trabalho abstrato produtor de
capital. A rigor, quando se adquire um serviço, não se compra força de
trabalho, mas um produto que é seu efeito útil. No sentido de seu consumo,
portanto, o serviço não se distingue das outras mercadorias compradas como
valores de uso e consumidas individualmente. Entretanto, quando a mesma
atividade é consumida pelo capital com a finalidade de extrair valor
excedente, então não é mais possível denominá-la serviço, e sim trabalho
produtivo, independente do modo como se configura concretamente a
mercadoria que dela resulta. Toda mercadoria, será consumida após a venda,
isto é, terá seu valor de uso específico consumido individualmente ou como
meio de produção.18

Então, trabalho produtivo é diferente de serviço. Quando um serviço é consumido ou


contratado, não quer dizer que houve a venda de força de trabalho e sim de um produto. Esse
produto pode ser material ou imaterial. Portanto, o trabalho realizado na prostituição é um
serviço, mas sempre é trabalho improdutivo, nunca produtivo.
Maísa Santana aponta que, para Marx, quando o serviço acaba, cessa também o seu
efeito útil porque ele não gera valor excedente para o capital e sim renda para o trabalhador.19
No entanto, para Santana a prostituição não pode ser considerada um trabalho a partir da
perspectiva marxiana porque não possui as características essenciais do processo de trabalho
que são: “a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; a matéria a que se aplica o
trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, o instrumental de trabalho”20. Por isso, “a
prostituição não é um trabalho do ponto de vista do intercâmbio homem/natureza”21. Para ela,
os instrumentos de trabalho e o corpo utilizado na prostituição não produzem mercadorias

18
COTRIM, Vera Aguiar. Op. Cit., p. 48.
19
SANTANA, Maísa Aguiar. Prostituição feminina: uma análise a partir das categorias trabalho e gênero.
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social), Universidade Federal de Sergipe,
2013, p. 72.
20
Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. livro Primeiro. 9. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1984, p. 202.
21
SANTANA, Maisa Aguiar. Op. Cit., p. 70.
18

palpáveis, não geram mais-valia e nem produção excedente para o capital porque “a prostituta
não vende seu corpo, não vende a si mesma, vende serviços de cunho sexual”22. Essa autora
entende a prostituição como um serviço, mas não a vê como trabalho. Ao longo dessas linhas,
vimos que serviço não é o oposto de trabalho, mas sim algo diferente de trabalho produtivo.
De fato, a prostituição não produz mercadoria material, mas produz renda para a prostituta,
que oferece um serviço sexual. Portanto, prostituição é trabalho, mas é trabalho improdutivo,
porque pode ser definida como serviço.
Marcel van der Linden aponta que no capitalismo fica subentendido que a
“verdadeira” classe trabalhadora é constituída pela força de trabalho dos assalariados livres
porque é mercantilizada. Mas, ele pondera: “essa hipótese de Marx, até onde eu saiba, nunca
foi corroborada, nem por análise teórica adequada nem por fatos concretos”23. Para Linden,
isso era óbvio porque explicava a formação do proletariado no Atlântico Norte, mas em todo
o mundo há diversas formas de trabalho. Isso quer dizer, por exemplo, que entre os
assalariados livres há a possibilidade de não se ser tão livres quanto poderia parecer. Linden
escreve que a ortodoxia marxista distingue cinco principais classes no capitalismo:

os trabalhadores assalariados livres, que possuem apenas sua própria força


de trabalho e a vendem; a pequena burguesia, formada por pequenos
produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de
trabalhadores; os trabalhadores autônomos, que são proprietários de sua
força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou
serviços resultantes de seu trabalho [...]; os escravos, que não possuem nem
sua força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidos [...]; e o
lumpemproletariado, que é totalmente excluído do mercado de trabalho
legalizado. Esse último grupo geralmente não é levado em conta nas
análises, sendo usado principalmente como uma categoria “residual”.24

Este autor infere que, para Marx, a luta de classes se dá entre os capitalistas, os
proprietários de terra e os assalariados. Com isso, as outras classes não são percebidas como
importantes historicamente. Porém, Linden destaca que essas classes de trabalhadores são
mais fluidas do que nítidas, isto é, não são tão bem delimitadas como Marx imaginou.
De todas essas classes, a que mais nos interessa é o lumpemproletariado. Segundo
Marx, essa é uma classe perigosa e uma escória social, formada por vagabundos, criminosos e
prostitutas. Como pontuou Linden, trata-se de uma classe excluída do mercado formal de
trabalho, por isso é tida como “não classe”. Ele ainda esclarece que os trabalhadores das

22
Ibidem, p. 77.
23
LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas:
Editora Unicamp, 2013, p. 28.
24
Ibidem, p. 30.
19

classes citadas, em situação de miséria, podem se sentir forçados a roubar25, o que faz esses
trabalhadores ultrapassarem as fronteiras de classe. Marx elucida que as prostitutas quando
trabalham em bordéis são trabalhadoras assalariadas improdutivas26. A partir disso, Linden
considera que a classificação das prostitutas como parte do “verdadeiro lumpemproletariado”
na marxiana faz parte das considerações moralistas do período no qual Marx viveu.27
As trabalhadoras autônomas e assalariadas do Amapá buscavam meios de
sobrevivência e viam no serviço da prostituição uma alternativa de subsistir. Vimos como uma
prostituta de bordel é inserida no mercado de trabalho legalizado, ao passo que uma prostituta
de rua é classificada como parte de uma classe residual. Contudo, essa prostituta que constitui
o lumpemproletariado é também parte da classe dos trabalhadores porque ela pode exercer um
trabalho produtivo ou improdutivo concomitante ao serviço da prostituição.
A assistente social Maria Diniz realizou pesquisa sobre prostitutas que fazem suas
atividades nas ruas e cabarés de Natal, no Rio Grande do Norte, entre os anos de 2008 e 2009.
Ela apontou que a condição econômica é determinante para a inserção de mulheres das classes
populares na atividade sexual. Por meio de entrevistas, ela chegou à conclusão de que as
prostitutas veem a prostituição como um meio de sobrevivência e não como uma profissão.
Diniz aponta que:

Todos(as) nós estamos inseridos(as) numa sociedade consumista onde


prevalece a individualidade e o consumo sem restrições de pessoas e coisas.
Nesse contexto, perceber as prostitutas como trabalhadoras tem o claro
objetivo de reforçar a mercantilização das mulheres numa escala global.
Como estratégias, disseminam a ideia da livre escolha, do desejo que as
prostitutas apresentam pelo “trabalho sexual”, escamoteando assim, o que os
estudos e pesquisas comprovam: que as mulheres se prostituem por questão
de sobrevivência.28

Assim como Maísa Santana, Diniz não considera que a prostituição seja um trabalho
porque ver a prostituta como uma trabalhadora sexual é, segundo ela, uma forma de
naturalizar a mercantilização das mulheres. Diniz entende que a prostituição não é uma
escolha e nem que as mulheres que se prostituem desejam abraçar essa profissão, mas a isso
são impelidas pelo imperativo da busca de meios de sobrevivência. Quando não alcançam o
mercado de trabalho por falta de qualificação profissional e escolaridade, a prostituição é uma
25
Ibidem, p. 30-35
26
MARX, Karl. Theories of Surples Value, vol. I. Trans. Emile Burns (London: Lawrence & Wishart, 1969), p.
166-186.
27
LINDEN, Marcel van der. Op. Cit., p. 45.
28
DINIZ, Maria Ilidiana. Silenciosas e silenciadas: descortinando as violências contra a mulher no cotidiano da
prostituição em Natal-RN. 2009. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009, p. 93.
20

possibilidade de garantir moradia e alimentação.29 Maria Diniz aponta que algumas prostitutas
foram empregadas domésticas e desistiram desse trabalho por conta da baixa remuneração e
das constantes humilhações sofridas.30 A autora infere que as prostitutas vivem em situação de
pobreza e que isso determina se elas permanecerão ou não nessa atividade. Por fim, ela afirma
que o capitalismo empurra os sujeitos para o desemprego, para a precarização e aumento da
jornada de trabalho e que por isso os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado
formal de trabalho, o que atinge diretamente as mulheres, que encontram na prostituição um
meio de sobrevivência.31
À luz da pesquisa que realizamos, também entendemos que a prostituição é uma
estratégia de sobrevivência, mas a “escolha” que uma mulher faz entre se prostituir ou não é
mais complexa do que parece. O capitalismo mercantiliza e explora o corpo de mulheres, seja
no trabalho sexual ou nos trabalhos ditos comuns, como o doméstico ou o operário. Uma
mulher sem escolaridade e sem qualificação profissional pode ter outras profissões
subalternas no mercado formal de trabalho. Acreditamos que considerar as prostitutas como
trabalhadoras não é reforçar a mercantilização de mulheres, mas abrir um caminho para que
os direitos delas sejam garantidos. Pode parecer utópico pensar em garantia de direitos para
trabalhadoras sexuais em um mundo capitalista e patriarcal, mas é ainda mais utópico pensar
que a proibição da prostituição ou o não reconhecimento desse serviço como trabalho vai
diminuir e erradicar a mercantilização e exploração das mulheres.
A trabalhadora sexual e escritora Monique Prada aborda questões de trabalho no seu
livro Putafeminista. Prada escreve que um dos conflitos entre as feministas radicais e as
prostitutas feministas é a discussão sobre a prostituição ser ou não considerada um trabalho.
As feministas radicais32 querem erradicar a prostituição para salvar as prostitutas, o que
Monique discorda veementemente. Para ela, erradicar a prostituição significa jogar as
prostitutas em “situações precárias e inseguras” e reforçar o estigma tão presente nessa
profissão e na vida dessas mulheres. Prada explica que a luta pela abolição da prostituição
contribui para o aprisionamento e clandestinidade das prostitutas, mas não consegue atingir o
objetivo de erradicação dessa atividade.33
Para Monique Prada, “a prostituição consiste no ato, por pessoas adultas e em
condições de consentir, de trocar sexo por dinheiro ou outros bens, de modo regular ou

29
Ibidem.
30
Ibidem, p. 91.
31
Ibidem, p. 96.
32
Monique Prada prefere chamar o feminismo radical de feminismo conservador.
33
PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018, p. 33-34.
21

ocasional. É basicamente uma prestação de serviço.” E os motivos que levam uma pessoa a
prestar esse serviço são a necessidade financeira, curiosidade, liberdade de horário e a
remuneração.34 Sendo assim, ela entende que a prostituição é um serviço, mas destaca que
essa atividade só pode ser considerada dessa forma quando a pessoa que presta esse serviço
consentiu por ele, ou seja, a exploração sexual não está inclusa nessa definição.
Diferentemente dos teóricos marxistas, ela não apresenta apenas o imperativo econômica
como causa do se prostituir, pois vê a curiosidade como motivo para algumas mulheres
começarem a exercer essa atividade.
Prada não romantiza a prostituição, mas também não a demoniza. Ela entende que a
prostituição é uma alternativa de sobrevivência pessoal e familiar para muitas mulheres que
tentam fugir de condições precárias de vida. Não concorda com o discurso de algumas de suas
colegas de profissão e nem de feministas que consideram o trabalho sexual como um trabalho
empoderador:

Não é uma linha que me represente, já que considero que nenhum trabalho
exercido em nossa sociedade, e em especial nenhum trabalho precário
exercido por mulheres de baixa escolaridade e classe social, possa realmente
ser considerado empoderador e emancipatório. Não há nenhum
questionamento sobre o empoderamento alcançado por mulheres que
exercem outros trabalhos precários: ninguém se importa se uma mulher
precisa limpar privadas, ocupar seus dias embalando compras ou costurar até
a exaustão, mas basta que ela use o sexo para garantir seu sustento que
passamos a nos preocupar com sua condição.35

Nesse trecho ela caracteriza a prostituição como um trabalho precário e trabalhos


precários não são emancipatórios, tampouco empoderadores, são possibilidades que mulheres
pobres tiveram para garantir sua sobrevivência. Por último, ela aponta que salvar outras
trabalhadoras pobres de trabalhos precários não tem ganhado tanta importância, então a razão
pela qual isso acontece com as prostitutas é estritamente moral.
Pelo que foi exposto até aqui, podemos inferir que a prostituição é um trabalho
improdutivo que pode ser definido como serviço. Na sociedade capitalista, essa atividade é
uma alternativa para sobrevivência de muitas mulheres da classe trabalhadora. Os debates
sobre a regulamentação, as causas, as questões de trabalho e o impacto da prostituição na vida
das mulheres no capitalismo ocorrem desde o século XIX e parecem estar longe de acabar. O
que concluímos é que não existe escolha no capitalismo para quem compõe a classe
trabalhadora, principalmente os mais pobres e de baixa escolaridade. A opção é sobreviver e,

34
Ibidem, p. 50.
35
Ibidem, p. 58.
22

para isso, as mulheres recorrem aos meios que tem disponíveis e algumas veem na
prostituição uma possibilidade. A questão não é se isso está certo ou errado, mas que a
prostituição existe e é necessário que seja reconhecida para possibilitar melhores condições de
trabalho para as trabalhadoras sexuais.
Nosso estudo se insere nessa discussão por abordar o cotidiano da prostituição no TFA
como parte dos mundos do trabalho locais. Na década de 1950, surgem nesta parte do Brasil
estabelecimentos “especializados” na prostituição. Até então, o local de trabalho das
prostitutas eram as casas de habitação coletiva, com exceção de algumas pensões. Com a
propagação de boates e pensões é iniciada uma nova configuração da prostituição no Amapá.
Como apontamos, o recorte temporal dessa pesquisa compreende o período da
Ditadura empresarial-militar36. Parte da historiografia brasileira busca estudar os aspectos
políticos e sociais desse período da história brasileira e, quando se trata das questões de
gênero e história das mulheres, as resistências de mulheres na Ditadura têm maior destaque.
Mas poucas delas têm como objetivo explorar a influência do regime ditatorial no cotidiano
das trabalhadoras sexuais. Cabe ressaltar que agentes da Ditadura chamavam as mulheres
presas políticas de “putas” para criar uma fronteira simbólica entre essa mulher torturada e as
“mulheres de família”. Já no Amapá, as experiências femininas na Ditadura
empresarial-militar quase não são abordadas e aquelas relativas à prostituição são totalmente
negligenciadas. Como o período privilegiado da pesquisa é a Ditadura empresarial-militar
brasileira, é importante pensar de que forma o governo ditatorial interferiu no cotidiano da
prostituição no TFA.
A partir disso, elucidaremos o cotidiano da prostituição durante parte do período
ditatorial na Amazônia setentrional e as relações sociais aí tecidas na boemia e vida noturna
amapaense, enfatizando as experiências das trabalhadoras e trabalhadores, descortinando os
conflitos existentes nas zonas de meretrício e nos botequins. Assim como analisaremos os
ideais de honra, além de outros aspectos relevantes, a exemplo da família e as masculinidades.
Isso posto, nosso trabalho investigativo procurou responder as seguintes questões
norteadoras: de que forma as concepções de honra da classe trabalhadora amapaense
aparecem na documentação? Como os agentes do regime ditatorial lidaram com as meretrizes
e com os espaços de lazer do TFA? Quais foram as redes de convivência construídas pelas
prostitutas e por aqueles(as) que se relacionavam com elas como estratégia de sobrevivência?

36
Sobre os debates na historiografia acerca dos termos empresarial-militar e civil-militar, ver: MELO, Demian
Bezerra de. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. MELO, Demian Bezerra
de (org.) A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência,
2014.
23

Para responder a essas questões, foram analisados processos e inquéritos criminais,


bem como artigos de jornal e revista (A Voz Católica37, Novo Amapá38, Icomi-Notícias39). O
livro A Margem Esquerda do Amazonas também foi uma das fontes analisadas. Outra fonte
produzida foi uma entrevista com a proprietária de uma boate. Com o uso de gênero e
experiência como categorias de análise, intencionamos evidenciar como a prostituição e as
prostitutas, trabalhadoras e mulheres marginalizadas, estavam inseridas no espaço urbano
amapaense.
Com as novas abordagens historiográficas, novos sujeitos puderam ser melhor
estudados. A “história vista de baixo”40 lançou luzes sobre experiências que outrora eram
ignoradas por historiadores e historiadoras. Para que diferentes temas pudessem ser estudados
a noção de fonte histórica foi ampliada e novos métodos investigativos surgiram, o que era
inimaginável para os historiadores há algumas décadas.41
Louise Tilly destacou que um historiador estadunidense da Revolução Francesa, após a
apresentação de um estudo sobre a recepção dos escritos de Olympe de Gouges à época
revolucionária, questionou o que significava saber qual havia sido a participação das mulheres
na referida Revolução. A partir disso, Tilly argumenta que:

37
“A Voz Católica foi um jornal eclesiástico da Prelazia de Macapá, composto e impresso na Gráfica São José. O
jornal possuía como reitor o Padre Alexandre, como diretor Cônego Ápio Campos, como diretor-presidente
Elfredo Távora Gonçalves e como redator Padre Jorge Basile. O impresso circulou durante 15 anos por todo o
Território Federal do Amapá. A publicação era realizada uma vez por semana, no domingo. A primeira
publicação deste semanário ocorreu no dia primeiro de novembro de 1959 e a sua última no dia vinte e nove de
dezembro de 1974.” In: AZEVEDO COSTA, Johnata Dias Silva; ASSIS, Wanny Kallyni Ferreira de. Fontes
para a história das mulheres amapaenses em dois jornais de Macapá (anos de 1959 a 1964). Monografia
(Bacharelado em História), Universidade Federal do Amapá, 2019, p. 50.
38
O jornal Amapá foi criado em 1945 pelo governador Janary Nunes como um instrumento de propaganda para o
governo territorial. Segundo o Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944,
apresentado pelo então governador Janary Nunes, “na época da criação do Território, não havia, em todo o
Amapá, nenhuma oficina gráfica, nenhum meio de publicidade e propaganda”. Então, foi criado o Serviço de
Imprensa e Propaganda, incluído no plano de organização administrativa com o objetivo de “difundir pela
imprensa e pelo rádio, dentro e fora do Território, todas as informações de interesse para o desenvolvimento
econômico da região, suas possibilidades, e para a divulgação mais ampla dos atos do Governo da União e da
administração local”. Já no governo militar, seu nome é modificado para Novo Amapá, mas segue com o mesmo
objetivo: veicular os feitos da gestão governamental militar do Território Federal do Amapá. Ver: NUNES,
Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1946.
39
A revista Icomi-Notícias circulou no TFA nos anos de 1964 a 1967. Augusto Antunes, na primeira edição da
revista, no artigo de abertura, enfatiza que ela não era um veículo empresarial, apesar de ser vinculada à empresa
e sim uma revista de “todos para todos”, sendo assim, ele tinha “confiança na prevalência dos fatores morais e
sociais que tanto têm engrandecido a nossa terra”. Ainda segundo ele, um dos objetivos do periódico era
promover um elo de ligação entre os membros da ICOMI com o restante da comunidade do TFA e que não tinha
dúvidas de que “servirá ao propósito de esforços pelo bem comum”. In: UMA palavra. Icomi-Notícias, nº 01,
1964, p. 1.
40
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992.
41
Ibidem, p. 59.
24

Há duas tarefas cada vez mais urgentes que se apresentam à história das
mulheres: produzir não somente estudos descritivos e interpretativos, mas
também estudos que resolvam problemas analíticos, e vincular as
descobertas que decorrentes desses às questões gerais que há muito estão
postas à história.42
Isso posto, não há como escrever uma história das mulheres e não relacionar com as
demais questões da História, porque não é uma “história à parte”. Do mesmo modo, Joan
Scott comenta sobre como os historiadores não feministas aceitaram esse novo campo para
colocá-lo em um domínio separado: o que se disse a respeito das mulheres e das relações de
gênero tem que ser de responsabilidade das historiadoras feministas43, porque eles estão muito
ocupados escrevendo sobre uma história “maior”, ou seja, a história dos homens. As duas
autoras concordam que é necessário construir uma história da participação feminina e pensar
as especificidades da categoria de gênero para vincular os problemas da experiência das
mulheres com as questões tradicionais da historiografia.
Scott abre um debate sobre questões teórico-metodológicas relacionadas a “gênero”.
Primeiro, porque a produção historiográfica se limitava a abordagens descritivas sobre o tema,
que não questionavam os conceitos dominantes da história. Então, ela sugere que as questões
teóricas relacionadas a gênero podem ser resolvidas com a análise das experiências de homens
e mulheres no passado. A forma como a sociedades representa o gênero, segundo a
historiadora, é decisiva para se articular as experiências de gênero de uma sociedade. Isto é, as
práticas de dominação de um gênero sobre outro no espaço público ou privado, orientadas
pelos sistemas de significados das sociedades:

Ademais, mesmo ficando em aberto a maneira como o “sujeito” é


construído, a teoria tende a universalizar as categorias e a relação entre o
masculino e o feminino. A consequência para os(as) historiadores(as) é uma
leitura redutora dos dados do passado. Mesmo se esta teoria leva em
consideração as relações sociais, relacionando a castração com a proibição e
a lei, ela não permite a introdução de uma noção de especificidade e de
variabilidade históricas.44

Porém, relacionar as ações dos sujeitos com base no que seria o “comportamento
feminino ou masculino” no pensamento dominante limita a interpretação das historiadoras e
historiadores. O sujeito pode assumir um comportamento fora daquele que foi reservado a ele

42
TILLY, Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu. Vol. 3, 1994, p. 29.
43
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila. Texto original: Joan Scott – Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the
politics of history. New York, Columbia University Press. 1989, p. 5.
44
Ibidem, p. 16.
25

pelas construções de gênero. No artigo “História das mulheres”, Joan Scott pondera que as
experiências de homens e mulheres são diferentes por causa do gênero:

A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir
as mulheres como objetos de estudo, sujeitos da história. Tem tomado como
axiomátíca a ideia de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres
e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e
experiências das mulheres no passado. Entretanto, desde que na moderna
historiografia ocidental, o sujeito tem sido incorporado com muito mais
frequência como um homem branco, a história das mulheres inevitavelmente
se confronta com o “dilema da diferença”.45

Trabalhadoras e trabalhadores pobres podem compartilhar da experiência de classe,


mas a experiência das mulheres inclui assédio, exploração, silenciamentos, jornada dupla de
trabalho, preconceitos e agressões de seus companheiros, por exemplo.
Utilizaremos o conceito de experiência, tendo em conta a construção de identidade e
as aprendizagens das prostitutas, o que envolve as respostas elaboradas por elas diante de
conflitos cotidianos. No atinente a esta categoria de análise, o historiador E.P Thompson
afirma:

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta:
“experiência humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus
seguidores desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o
nome de “empirismo”. Os homens e mulheres também retornam como
sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos
livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações
produtivas determinadas como necessidades e interesses e como
antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e
sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das
mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida
(muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes)
agem, por sua vez, sobre sua situação determinada.46

E adiante ele afirma que “a experiência (descobrimos) foi, em última instância, gerada
na ‘vida material’, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o ‘ser social’
determinou a ‘consciência social’”.47 Então o indivíduo vivencia a experiência no cotidiano
regido por necessidades concretas, depois ele se reconhece enquanto classe e a consciência
social é alcançada quando ele identifica que outros indivíduos compartilham da mesma
experiência.

45
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 77.
46
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
47
Ibidem, p. 189.
26

Karl Marx argumenta que “as ideias da classe dominante, são, em todas as épocas, as
ideias dominantes”. A classe dominante é que detém a força intelectual, a força material e os
meios de produção, ou seja, tem todos os mecanismos disponíveis para tornar a sua visão de
mundo amplamente aceita. Segundo ele, “os indivíduos que formam a classe dominante
possuem, entre outras coisas, consciência e por isso pensam”.48 Desse modo, eles produzem e
distribuem as ideias de seu tempo. Isso é possível porque, além dos meios de produção
espirituais, a classe dominante é também detentora dos meios de produção materiais.
Já E.P. Thompson, no livro Costumes em Comum, explica que a classe trabalhadora
não compartilhava da mesma cultura e costumes da burguesia e da nobreza. Os populares
tinham os seus próprios referenciais morais construídos ao longo de gerações e resistiram
frente às mudanças promovidas pelas classes dominantes, seja no trabalho ou fora dele.
Porém, “quando procura legitimar seus protestos, o povo retorna frequentemente às regras
paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus
interesses atuais”49, ou seja, os trabalhadores sabiam muito bem usar as ideias da classe
dominante a seu favor, quando era necessário.
Sobre espaço e formação de classe, estamos de acordo com a concepção de Mike
Savage, que afirma:
O espaço precisa ser visto como importante em duas maneiras diferentes e
possivelmente contraditórias. Primeiro, lugares particulares podem se tornar
habitats para certos grupos sociais de modo que estes lugares se tornam
integralmente ligados em seus ‘habitus’, seus estilos de vida, e, desse modo,
podem ser a base sobre a qual sua identidade coletiva é formada. Segundo, a
formação de classe pode ocorrer quando classes sociais estendem-se através
do espaço construindo redes que ligam membros da classe mesmo quando
eles estão espacialmente dispersos.50

Por meio do espaço, os sujeitos constroem suas relações sociais e a sua identidade de
classe. Assim, os espaços boêmios e os bairros periféricos constroem a identidade de seus
frequentadores e moradores, que estão ligados espacialmente à mesma classe social. Desse
modo, as prostitutas constroem a sua identidade através do gênero e da classe, no cotidiano do
trabalho e nos locais que elas frequentam e constroem por meio de sua relação com outros
sujeitos.

48
MARX, K. Concepção materialista da História e a inevitável vitória do proletariado. In:
GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995,
p. 160.
49
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.
50
SAVAGE, Mike. Espaços, redes e formação de classe. In: Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n.5,
janeiro-junho de 2011, p. 8.
27

Para pensar o cotidiano, elegemos o conceito de vida cotidiana de Agnes Heller. Para
esta filósofa, todos vivem a vida cotidiana “com todos os aspectos de sua individualidade, de
sua personalidade”.51 De acordo com Heller, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica.
Heterogênea no sentido da “organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e o
descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação”52, pois esses são
aspectos imutáveis e eternos que independem do modo de produção vigente. Mas a vida
cotidiana é hierárquica porque “se modifica de modo específico em função das diferentes
estruturas econômico-sociais”.53 Ela justifica esse argumento com exemplos de sociedades
que definiam sua vida cotidiana em torno do trabalho, subordinando a ele as demais
atividades, e de sociedades que tinham o divertimento como lugar central. Assim, a atividade
principal assume centralidade, ao passo que subordina as demais atividades sociais.
A coleta e análise de fontes para esse trabalho foi diretamente prejudicada pela
pandemia de Covid-19, visto que nosso ano de ingresso neste Programa de Pós-Graduação foi
2020. Desse modo, a escrita desse texto se deu junto as disciplinas obrigatórias e estágio em
docência. Produzir essa pesquisa só foi possível devido a fontes digitalizadas por outros
pesquisadores e pesquisadoras, além de um material digitalizado por nós, em ocasiões
anteriores ao período pandêmico. Com a flexibilização do isolamento social por consequência
do avanço da vacinação, conseguimos acesso ao Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
para coletar mais processos criminais envolvendo meretrizes e conseguimos produzir uma
entrevista com a dona de uma boate onde prostitutas moravam e trabalhavam e que funcionou
por mais de vinte anos no Território Federal do Amapá. A bolsa de pesquisa Capes-Fapeap e
os auxílios proporcionados aos estudantes de pós-graduação da Universidade Federal do
Amapá tiveram papel fundamental na construção dessa dissertação.
Os processos criminais são fontes abundantes para a pesquisa histórica. Segundo
Carlos Bacellar, “a convocação de testemunhos, sobretudo nos casos dos crimes de morte, de
agressões físicas e de devassas, permite recuperar as relações de vizinhança, as redes de
sociabilidade e de solidariedade, as rixas, enfim, os pequenos atos cotidianos das populações
do passado”.54 Então, esse tipo de fonte fornece importantes informações sobre sujeitos
históricos e suas relações sociais. No trato com essa e outras fontes, seguimos as orientações

51
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 17
52
Ibidem, p. 18.
53
Ibidem, p. 18.
54
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas.
São Paulo: Contexto, 2011, p. 37.
28

de Bacelllar, para quem é necessário contextualizar o documento e buscar informações


básicas sobre como, onde, por quê e por quem tal documento foi produzido.
Nos jornais, exploramos ocorrências policiais envolvendo meretrizes. Por fornecer
registros parciais do cotidiano, utilizamos essa fonte para verificar em quais tipos de conflito
as prostitutas se envolviam. Tânia Regina de Luca oferece as orientações metodológicas que
nortearam a análise dos periódicos: verificar a materialidade do jornal, como a impressão e o
tipo de papel; as condições de produção do impresso em determinado momento; a
periodicidade; seus idealizadores e as ligações políticas; e o público a que se destinava.55
Já a história oral, segundo Verena Alberti, “consiste na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e
conjunturas do passado e do presente”56. Assim, as entrevistas fornecem as narrativas de
pessoas que participaram de determinado evento histórico. Tendo isso em mente, realizamos
uma entrevista temática semiestruturada com o objetivo de compreender o cotidiano da
prostituição no TFA, a partir do contato com as memórias da dona de uma boate.
A partir dessas fontes, nossa pesquisa descortina as diversas formas de sobrevivência
das prostitutas amapaenses em um contexto no qual a discussão sobre degradação moral e
família tradicional estava tão presente. Considerando que a maior parte das pesquisas sobre
prostituição é pautada nos conceitos foucaultianos, essa dissertação se insere na linha de
História Social do Trabalho por ter como foco central as experiências cotidianas das
prostitutas. Mas, nossa dissertação será uma contribuição para a historiografia da prostituição
por articular o trabalho sexual na Amazônia a partir dos conceitos de gênero e experiência
para pensar a condição de trabalhadoras marginalizadas das prostitutas na Amazônia.
Os resultados do percurso investigativo que trilhamos são aqui apresentados em três
seções. De forma geral, a primeira seção versa sobre o ambiente doméstico, familiar e de
trabalho das mulheres honradas e devassas no Amapá. A segunda seção trata a respeito da
relação entre boemia e prostituição, identificando modelos de masculinidades e localização
das zonas de meretrício em Macapá e seus distritos. Por último, a terceira seção refere-se às
redes de convivência das meretrizes e às experiências da profissão, abordando aspectos como
o amor, a amizade, a maternidade e as vulnerabilidades dessas trabalhadoras.

55
LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. Ed – São Paulo: Contexto, 2011.
56
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 155.
29

I. HONRADAS OU DEVASSAS? COTIDIANO E SOBREVIVÊNCIA DE MULHERES


TRABALHADORAS

No Amapá da Ditadura empresarial-militar, os ideais de família e mulher pouco


diferem dos modelos familiares e femininos de outros períodos da história brasileira. Há uma
continuidade dessas referências que transpassa diferentes contextos.
O discurso hegemônico estabelecia limites simbólicos entre a mulher honrada e a
mulher desonesta ou a prostituta. Eram levados em consideração o recato, a virgindade e a
frequência delas em bailes noturnos desacompanhadas de um membro da família. O simples
fato de transitarem sozinhas nas ruas, independente do horário, era suficiente para que as
jovens amapaenses, quando recorriam à Justiça, fossem desmoralizadas tanto pelos agentes
policiais e judiciais, quanto por outros trabalhadores.
Esta primeira seção versa sobre o ambiente doméstico, familiar e de trabalho das
mulheres honradas e devassas no Amapá. A partir dos artigos de jornais e revistas,
intencionamos identificar os modelos de família vigentes e a relação familiar da mulher
devassa, além de analisar a forma como a prostituta era vista pelos discursos moralizantes do
regime ditatorial. Seguindo com as subseções, temos como finalidade identificar, através de
processos judiciais e artigos de periódicos, quais as profissões exercidas por essas mulheres,
além do trabalho doméstico não remunerado. Por fim, analisar os processos criminais para
compreender a noção de honra dessas mulheres e as suas relações amorosas, bem como para
examinar os discursos morais presentes nos depoimentos de crimes de sedução.

1.1 A família honrada


Nas sociedades pré-industriais europeias, o trabalho estava ligado ao ambiente
doméstico e tudo o que os membros das famílias faziam ou produziam era importante para a
subsistência familiar. Segundo Eric Hobsbawm, com o capitalismo a renda familiar passou a
ser obtida pelas pessoas que saíam para trabalhar em fábricas ou escritórios, de onde
retornavam com dinheiro “que era distribuído aos demais membros da família, os quais, de
modo igualmente claro, não o ganhavam diretamente, embora sua contribuição para a casa
fosse essencial de outras maneiras”.57 Ele destaca que, nesse contexto, era necessário que
algumas das mulheres de classe média fossem emancipadas financeiramente porque as
famílias não teriam meios de sustentá-las com conforto.58 A partir disso, entendemos que a

57
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 278-279.
58
Ibidem, p. 285.
30

família burguesa composta pelo pai provedor e pela esposa dona de casa foi historicamente
construída pelo capitalismo.
Para Maria Angela D’Incao, no final do século XIX e início do XX, o Brasil viveu a
transição das relações senhoriais para as relações burguesas, o que modificou os laços de
solidariedade entre vizinhos e compadres, por exemplo, dissolvendo relações de compadrio e
tutelagem. O espaço urbano foi remodelado e em nome da modernização e determinados
comportamentos passaram a ser condenados, pois a rua agora era pública em contraposição à
casa, que era privada. No entanto, a casa da família burguesa era aberta para convenções
sociais nas quais a anfitriã era a mulher, que deveria ser um exemplo de mãe dedica e esposa,
o que só era possível no seio da família burguesa. Para D’Incao, o surgimento, ou a criação,
da família burguesa, “ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado
com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a
mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico”.59 Ela destaca como a
medicina, a educação e a imprensa contribuíram para fortalecer esse imaginário da mulher
como guardiã do lar. Questão que nos interessa, pois aqui vamos analisar os textos produzidos
pela imprensa para identificar o ideal de família dos periódicos amapaenses.
Sueann Caulfield destaca que o conceito de família no Rio de Janeiro, nas primeiras
décadas do século XX, serviu “para separar as mulheres simbolicamente e espacialmente dos
homens e as classes trabalhadoras da cidade (denominadas, em geral, de ‘a massa popular’ ou
‘populares’) dos setores sociais privilegiados”.60 Para ela, quando se falava “as famílias” isso
não significava “todas as famílias”, de todas as classes sociais, mas sim aquelas mais
civilizadas ou mais próximas dos padrões europeus (tanto socialmente quando racialmente).
Assim como D’Incao61, Caulfield ressalta que os homens da elite frequentavam o espaço
urbano livremente, mas as mulheres não, mantinham-se protegidas em casa.
Abordando o período que mais diretamente nos interessa, Ana Rita Duarte infere que o
governo ditatorial, por meio da Escola Superior de Guerra (ESG), buscou formas de fortalecer
a instituição social da família com o objetivo de consolidar o poder nacional, ou seja, o poder
da Ditadura empresarial-militar, para evitar que o Brasil fosse tomado pelo comunismo ou
outras ideias subversivas. A ESG, com base na Doutrina de Segurança Nacional (DSN),
apregoava que os valores, ideais e virtudes ensinados no interior dos lares contribuíam com a

59
D’INCAO, Maria Angela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2004, p. 230.
60
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 117.
61
D’INCAO, Maria Angela, Op. Cit.
31

elevação dos padrões éticos e morais dos indivíduos. Mas, na perspectiva desta Escola, a
família e os valores tradicionais estavam correndo riscos por causa da degradação moral do
comunismo, que destruiria a estrutura familiar e a moral sexual. E “o lar é apontado como a
estrutura onde se exercita a convivência familiar para realizar o que seriam as funções
‘essenciais’ da família: a função procriativa, a educativa, a econômica e a afetiva”.62 A autora
afirma que o lar era um tema recorrente nos textos produzidos pelos estagiários da ESG, o que
revela uma preocupação do regime ditatorial de articular o tema da vida doméstica com a
DSN.
Tentando perscrutar tais percepções e discursos, selecionamos artigos de jornais sobre
família, maternidade, papel da mulher no casamento e outros assuntos relacionados. Temas
familiares eram comuns nos jornais A Voz Católica e Novo Amapá, assim como na revista
Icomi Notícias. Foi possível, por meio destas fontes, identificar o ideal família do governo do
TFA nesse período. Grosso modo, esse ideal não difere do modelo de família burguesa e
nuclear estandardizado em contextos anteriores, como no início do período republicano ou no
Estado Novo, porque a família burguesa é uma criação do capitalismo e esse sistema
econômico estava pautando a modernização nacional, o que inclui o Amapá.
Sob o governo ditatorial a imprensa oficial do TFA publicou um artigo afiançando que
estava em curso o rompimento com um passado de atraso e o começo de uma era de
desenvolvimento inaugurada pelo Golpe Militar de 1964, definido pelo jornal Novo Amapá
como “revolução democrática”:

Com a Revolução Democrática foram abertas novas perspectivas para o


Amapá, que é hoje um forte contribuinte do progresso nacional e está
integrado no processo de integração da Amazônia na vida brasileira.
[...]
Os Governos que por aqui passaram podem ser passíveis de críticas, podem
ter cometido erros mas cada um realizou alguma coisa em benefício da
região e do povo.
A revolução democrática trouxe novo alento e modificou velhas estruturas.
Agora quando comemora a passagem do 26° aniversário de instalação do
Governo Federal, o Amapá aparece como um importante pólo de
desenvolvimento, no tradicional quadro de atraso amazônico.63
Como podemos ver, o ideal de integração da Amazônia e de progresso nacional
permeia esse artigo. Maura Leal da Silva argumenta que apontar os problemas dos governos
anteriores e ressaltar que o governo atual traria progresso e desenvolvimento ao Amapá não

62
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Gênero e comportamento a serviço da Ditadura Militar: uma leitura dos escritos
da Escola Superior de Guerra. Diálogos (Maringá. Online), v. 18, n.1, p. 75-92, jan.-abr./2014, p. 87.
63
EM vinte e seis anos muito foi realizado no Amapá. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 1.
32

era exclusividade dos governos da Ditadura, mas uma estratégia política recorrente dos
governos que passaram pelo TFA.64
Já a Igreja Católica no TFA estava sob o episcopado de D. José Maritano, que durou
de 1966 até 1983. Segundo Sidney Lobato, “a Igreja, no contexto do Golpe de 1964, ainda
acreditava que a pobreza era resultado da ausência do capital e não um derivativo da atuação
deste”.65 Essa posição teve uma mudança ao longo dos anos, pois as políticas
desenvolvimentistas da Ditadura empresarial-militar brasileira aprofundaram as desigualdades
sociais no TFA. Isso fez com que bispos e padres progressistas liderassem movimentos para
debater as inseguranças cotidianas dos amapaenses.66 Ainda de acordo com Lobato, Maritano
não tinha um perfil binário de “conservador” ou “progressista”.67 Com isso, ele manteve uma
boa relação com os agentes do governo ditatorial no Amapá e também amparou movimentos
como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais sociais que então se
organizavam no espaço amapaense. Na década de 1960, o mundo passou por fortes
movimentos de contestação social e eles também refletiram na Prelazia de Macapá.
Para além do Estado e da Igreja Católica, o empresariado também quis instituir um
novo modelo de família no TFA. Nos referimos especificamente à Indústria e Comércio de
Minérios S.A. (Icomi), que usava a revista Icomi-Notícias para publicizar as atividades que
realizava em suas company towns, Serra do Navio e Vila Amazonas. De acordo com
Adalberto Paz, havia um “modelo de família operária”68 e isso é perceptível nas páginas da
revista, onde o homem figura como o provedor da casa, a mulher como dona de casa e mãe
exemplar, enquanto as crianças deveriam estudar e receber o cuidado dos pais. A revista
destaca, ainda, a importância da presença dos pais na vida escolar de seus filhos,
principalmente da mãe, pois a responsabilidade do aprendizado das crianças deveria ser
resultado de uma parceria de pais e professores.
Um exemplo desse modelo de família é encontrado na edição de n° 31 da
Icomi-Notícias. Na sua capa vemos uma fotografia da família Sarges. A ela é dedicada a
reportagem de título “uma família na Icomi”, que contém várias outras imagens retratando o
cotidiano da família. Essas fotografias são dispostas numa sequência não aleatória, pois cada
64
SILVA, Maura Leal da. “O Território imaginado”: Amapá, de Território à autonomia política (1943-1988).
Tese (Doutorado em História). Universidade de Brasília, 2017, p. 169.
65
LOBATO, Sidney. Jeitos de ser Igreja: debates sobre a renovação da vida eclesial na Amazônia setentrional
(1966-1983). In: LOBATO, Sidney (org.). Igreja e trabalhadores na Amazônia setentrional. Rio Branco: Nepan,
2018, p. 20.
66
Ibidem, p. 36.
67
Ibidem, p. 39.
68
PAZ, Adalberto Junior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração
industrial amazônica (1943-1964). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2011, p. 184.
33

uma representa um tema. Primeiramente, há uma fotografia da família reunida, seguindo o


modelo idealizado pela Icomi de família operária. Segue-se a imagem de Dona Isabel com um
de seus filhos em um consultório médico para representar a estrutura de saúde da mineradora.
Na sequência, há duas fotografias em sala de aula: a primeira mostra Domingos e Isabel em
um curso supletivo para concluir os estudos, as demonstrar o interesse de ambos em progredir,
e a segunda demonstra que os filhos do casal têm acesso a uma boa preparação escolar e são
dedicados e inteligentes. Por último, duas imagens mostram que um momento de diversão
para Domingos é o futebol, pois é dirigente de um clube, e “nas festas os dois, Domingos e
Dona Isabel, voltam às origens e se deliciam com um delicioso tacacá bebido na cuia”.69

Imagem 1. Família Sarges

Fonte: Icomi-Notícias, 1966.

Da expressão “voltam às origens”, no fragmento acima, tem-se uma impressão


contraditória pois os dois sujeitos são da Amazônia, ele brevense e ela macapaense. Por que
“voltar às origens”? A resposta está na ideia de progresso e de desenvolvimento das vilas
operárias instituídas pela Icomi, em contraposição aos modos de vida dos habitantes da
Amazônia. Então, no discurso da revista, a família habitante das vilas da Icomi já estava
ajustada ao modelo de comportamento social da empresa e ao beber o tacacá em festas tinha
um momento de retorno aos hábitos “atrasados” da região. Dessa forma, segundo Paz, a Icomi
já teria cumprido:

69
UMA família na Icomi. Revista Icomi-Notícias, nº 31, 1966, p. 27.
34

A função de “ajustar” e normatizar a imensa maioria de trabalhadores locais


não-especializados dentro dos padrões de produtividade e ritmos de trabalho
da moderna economia capitalista industrial, buscando incutir-lhes ideais
“adequados” de comportamento, alimentação, lazer, direitos e obrigações
baseados em um modelo de família estável e legalmente constituída, aliado
ao sentimento de civismo e pertencimento à comunidade.70

O que também é uma forma de regular a família para ter trabalhadores disciplinados e
desligados dos hábitos tidos como atrasados de caboclos e ribeirinhos. Havia um desconforto,
principalmente das autoridades governamentais, para com o modo de vida dos amapaenses e
também de trabalhadores migrantes. As habitações construídas com materiais disponíveis na
floresta, como troncos e folhas de árvores, e percebidas como desprovidas dos meios de
higiene, a alimentação supostamente escassa, baseada em farinha de mandioca e avessa ao
consumo de legumes, eram motivos de queixa dos agentes dos órgãos governamentais.
Segundo os jornais analisados, as homenagens de dia das mães e até passagens de
aniversário aconteciam nos clubes esportivos do TFA, as mulheres homenageadas eram
esposas dos militares que ocupavam cargos no governo territorial da Ditadura
empresarial-militar. As confraternizações ocorridas em datas comemorativas eram noticiadas
pelo Novo Amapá, enquanto A Voz Católica se detinha a publicar textos de orientação à
população, mas principalmente para os católicos amapaenses. Segundo articulista de tal
periódico, o clube Círculo Militar realizou uma eleição para consagrar a mãe do ano:

Como noticiei na edição anterior, o Círculo Militar de Macapá homenageou


a data consagrada ao “DIA DAS MÃES”, quando abrigou em sua sede
social, grande número de associados convidados especiais que participaram
da seleta reunião dançante.

Quando os ponteiros marcaram zero hora, em homenagem a todas as mães


presentes, foi oferecida a música “Parabéns às mães”. [...]

Para a eleição da mãe do ano do Círculo Militar, no final da apuração houve


empate entre as excelentíssimas senhoras Irene dos Santos Martins e Maria
Cavalcanti, sendo, por aclamação, recaído a escolha na D. Irene Martins.

A seguir, o CMM prestou significativa homenagem à ilustre mãe visitante,


na pessoa da Madame Pierry Magmam, residente em Calens, sendo o brinde
da Construtora Carmo Lids. Também, na ocasião, foram distribuídos
mimosos brindes às genitoras presentes naquele local, sob o patrocínio das
Empresas Construtoras e do alto comércio local.

Em oração cheia de emoção, que contagiou os presentes, o General Ivanhoé


Martins proferiu uma mensagem a todas as mães do CMM e do Amapá e,
encerrando o programa, usou da palavra o Capitão Fernando Cavalcanti, para
agradecer aos patrocinadores daquela bela reunião, e externou em seu nome

70
PAZ, Adalberto, Op. Cit., p. 127.
35

e do CMM a todas as mães naquela festa, as suas sinceras felicitações pela


passagem do “Dia das Mães”.71

Na eleição da “mãe do ano”, a escolhida foi a primeira-dama do TFA, Irene Martins.


De “seleta reunião dançante”, esta não era uma comemoração aberta à população amapaense,
mas somente para associados e convidados. A mãe do ano não poderia ser uma mãe da classe
trabalhadora, mas sim a esposa do governador que, segundo o articulista, se dedicava
inteiramente à família e aos eventos sociais e de assistência. Um aspecto importante a ser
observado é que o Círculo Militar era então patrocinado pelo empresariado, o que demonstra
uma estreita relação dos associados desse clube com as empresas locais. No ano seguinte, o
colunista social Wilson Sena escreveu sobre a programação do dia das mães:

Dando início à programação, usou da palavra o presidente do Círculo Militar


de Macapá, Cel. Adálvaro Alves que, em bela oratória, comentou o
significado do “Dia das Mães”.
Após, houve a apresentação aos presentes da mãe mais Idosa do Território,
senhora Cândida Ana Gonçalves de Couto. A mencionada senhora conta
atualmente 107 anos de idade e recebeu, como prêmio, oferta do CMM, uma
cadeira de embalo, uma rede de luxo, um rádio a pilha, um cheque de 150
cruzeiros, um cachimbo de luxo com a respectiva munição (tabaco especial).
A seguir, foi contemplada com valiosos prêmios a senhora Raimunda
Santana Ribeiro, escolhida como a mãe de maior prole, ganhando uma
máquina de costura. A referida senhora, possui apenas vinte filhos.
Entre as mães que fazem parte do quadro social do Círculo Militar, foi
escolhida como “Mãe do Ano” a senhora Helita do Carmo que, naquela noite
e na hora em que era distinguida com o honroso título, se encontrava na
Maternidade de Macapá dando à luz a mais rebento da família Carmo.72

Podemos ver que foram escolhidas para ser homenageadas e presenteadas duas mães,
uma por ser a mais velha e outra por causa de sua numerosa prole. Mas, elas não eram
associadas do Círculo Militar. Helita do Carmo foi escolhida como mãe do ano por estar em
trabalho de parto na hora da programação, ela fazia parte do quadro social do CMM. A fonte
sugere que o título de “Mãe do Ano” era concedido somente às mães desse meio social. Todas
exerceram o papel maternal esperado e foram “recompensadas” por isso. Cândida recebeu
presentes de “luxo” e Raimunda foi contemplada com “valiosos prêmios”, como o jornalista
fez questão de destacar. Destacar o valor dos prêmios foi uma opção de Wilson Sena por se
tratar do Círculo Militar, composto por indivíduos de maior poder aquisitivo, o que transmite
a ideia de que os promotores do evento eram generosos para com as mães do TFA. O dia dos
pais também foi tema de publicações dos jornais, mas não com a mesma ênfase das
homenagens às mães:

71
MÃE do ano. Novo Amapá, nº 1.571, 1970, s/p.
72
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.612, 1971, p. 5.
36

Dia do papai

Amanhã transcorre o Dia do Papai. Em cada lar há uma alegria invulgar. O


chefe da casa é festejado com todas as pompas e alvo das maiores
homenagens. No fim, a despesa é por conta do Papai. E que despesa! Mas, o
que vale, é a intenção.73

Para o dia do papai

[...] Meu marido costuma dizer aos amigos, nesta ocasião: “Bonito quando é
o dia da mãe, meus filhos vêm pedir-me dinheiro paga comprar-lhe os
presentes. E quando é o dia do papai eles pedem à mãe, que vem pedir para
mim. Quem paga sou sempre eu.” Porém, atrás das suas palavras, nota-se a
sua alegria por ser ele o centro de tanta atenção e de tanto carinho no seu
dia.74

O destaque das publicações de dia dos pais está relacionado com o papel de provedor
do homem: é ele quem dá o dinheiro para a compra dos presentes porque a esposa não tem
meios financeiros para isso. O pai se “queixa”, mas entende que a intenção dos filhos e da
esposa é lhe homenagear.
As mulheres retratadas no jornal eram caracterizadas como gentis, companheiras e
exemplos de mãe e esposa. Porém, dentre todas, a mais homenageada era a esposa do
governador do TFA, o General Ivanhoé Martins, a senhora Irene Martins, mencionada
anteriormente, que recebeu um texto na passagem de seu aniversário:

Cada assunto uma notícia

Primeira dama

Amanhã, dia 8, assinala a passagem genetlíaca da Excelentíssima Senhora


Irene dos Santos Martins, Primeira Dama do Território. A data, que no
decorrer de três anos vividos no Território pela ilustre dama, já se tornou de
grande significado para a sociedade local e para o espontâneo circulo de
amizades da ilustre senhora, que irá testemunhar, na oportunidade, as mais
expressivas homenagens. Pela sua lhaneza de trato, a distinta aniversariante
é, inegavelmente, possuidora dos mais sadios conceitos, graças aos seus
dotes pessoais que tornaram-na credora da estima e da admiração de quantos
lhe conhecem e sabem da bondade que caracteriza o seu espírito de esposa e
mãe exemplar.

O evento se reveste, pois, de maior significado, sendo portanto justas e


merecidas as demonstrações de afeto que vai receber de nossa sociedade, a
digna dama.

73
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.582, 1970, p. 5.
74
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 459, 1968, p. 2.
37

[...] A nataliciante tem se tornado uma incentivadora e companheira de todas


as horas ao lado de seu ilustre espôso, o Exm. Sr. General Ivanhoé
Gonçalves Martins. D. Irene tem sido incansável à frente da Associação das
Voluntárias, responsável direta pelo Abrigo São José, onde procura todos os
meios dispensáveis para proporcionar o conforto necessário aos velhinhos
daquele abrigo

[...]

O colunista, que vê na virtuosa senhora um belo exemplo de mãe e esposa,


associa-se às inúmeras felicitações pela passagem do evento e, com o devido
respeito, envia os mais efusivos votos de sinceras felicitações.75

Segundo o articulista, os atributos da primeira-dama incluem lhaneza de trato, sadios


conceitos, dotes pessoais, bondade, dignidade, ser virtuosa, além de esposa e mãe exemplar.
Ademais, ela ainda se dedicava a causas sociais, presidindo uma associação de voluntárias
que se dedicam ao Abrigo São José, ou seja, todas as características esperadas por uma
mulher das classes média e alta e por uma primeira-dama.76 Seguindo esses discursos sobre a
esposa ideal, o jornal A Voz Católica publicou um texto de Dom Francisco Pieri sobre a
mulher como edificadora ou demolidora do lar:

Influência dominadora da mulher

No ritual do Matrimônio parece que a Igreja vise especialmente preparar a


mulher com uma bênção toda particular, para que seja o orgulho e o repouso
do homem. E com razão.

A mulher foi sempre a dominadora incontrastada. E a história do mundo,


quer na sua visão universal, quer no âmbito restrito da vida do indivíduo e do
núcleo familiar, foi escrita, nas suas páginas mais belas e decisivas, quase
sempre por influência de uma mulher.

A confirmação destas palavras, basta lembrar que a mulher, aparentemente


fraca, é uma verdadeira força angélica ou diabólica.

75
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.594, 1970, p. 5.
76
Em 1942, foi criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), sob o comando da primeira-dama Darcy Vargas.
A LBA prestou assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica no Brasil até a década de 1990 e
foi um importante instrumento de ação para mulheres das classes dominantes na esfera pública. Segundo Taiana
de Oliveira e Ismael Alves: “Para as mulheres das elites, as atividades filantrópicas eram uma oportunidade de
ingressarem de maneira mais efetiva no mundo público, sem com isso subverter de forma contundente as fortes
amarras morais de gênero que as colocavam em uma posição de subalternidade em relação aos homens. Para
essas mulheres, os trabalhos assistenciais e de benemerência eram considerados extensões de suas atribuições na
esfera do privado e estavam em total conformidade com sua suposta natureza feminina de dedicação à família e
ao próximoXX. Ao se enveredar pelo mundo dos necessitados, as mulheres das classes abastadas projetavam,
diante da sociedade, seus elevados atributos morais, sendo reconhecidas por sua sensibilidade, bondade e
solidariedade com os sentimentos alheios, ou seja, uma extensão de sua função maternal.” In: DE OLIVEIRA,
Taiana; ALVES, Ismael Gonçalves. Legião Brasileira de Assistência e políticas sociais: primeiro-damismo,
gênero e assistência social. Boletim Historiar, v. 7, n. 02, 2020, p. 22.
38

A Sagrada Escritura ressalta sempre a mulher, seja no seu papel de


edificadora, como no de demolidora e causadora de morte. No primeiro caso
e no segundo, as suas palavras são respectivamente suaves ou duríssimas.

[...]

Quase sempre, o caminho do homem é marcado por uma mulher e pela sua
influência ele descerá nos abismos, ou realizará ascensões sublimes.77

O texto esclarece o papel feminino na vida do homem e como a esposa é capaz de


construir e destruir o seu lar. Mais do que isso, é evidente a dicotomia da mulher angelical,
maternal, Maria, em contraposição à mulher diabólica, destruidora, Eva. A figura feminina é
representada como uma figura dúbia. Joan Scott explica que as representações de Eva e Maria
são oriundas da tradição cristã ocidental.78 Essas imagens foram utilizadas para orientar as
amapaenses sobre qual modelo de mulher deveriam se ajustar para contentar seus maridos e
para gerir suas casas, se edificadoras ou causadoras de morte. No ano seguinte, na mesma
página, o jornal transcreveu um texto da revista A Família Cristã79:

1 - Ama teu marido mais que ninguém no mundo, depois do Senhor, e ama o
teu próximo o melhor que puderes, mas lembra-te de que a casa é do teu
marido e não do próximo;

2 - Considera o teu marido como um hóspede de cerimônia e um amigo


precioso. Quanto a amigas, livra-te delas;

3 - Prepara para teu marido uma casa ordenada e um rosto sereno, mas não,
te amofines, se ele não der por isso imediatamente;

4 - Não lhe exijas coisas supérfluas para casa: pede lhe uma casa alegre e um
canto livre para as crianças;

5 - Que os teus filhos sejam alegres e limpos como tu, para que teu marido
sorria quando os ver, e pense neles quando está longe;

6 - Pensa que casaste com ele para os bons e para os maus tempos, mesmo
quando toda a gente o abandonasse, tu devias continuar a apertar a sua mão
nas tuas.80

Decálogo é um conjunto de conselhos. Nesse caso, são apresentados a leitoras e


leitores conselhos tidos como essenciais e que deverão ser cumpridos para se atingir o ideal de
mulher ideal. Selecionamos esses seis itens, porque estão mais diretamente ligados à relação
de esposa e marido. Primeiro, é aconselhado que depois de Deus, essa mulher ame o seu

77
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 423, 1967, p. 2.
78
SCOTT, Joan. Ibidem, p. 21.
79
É uma revista “publicada pelas Irmãs Paulinas, que há mais de 85 anos tem a missão de dialogar com as
famílias.” Fonte: https://revistafamiliacrista.com.br/quem-somos/.
80
O DECÁLOGO da mulher ideal. A Voz Católica, nº 437, 1968, p. 2.
39

marido mais do que a qualquer pessoa e que ele deve ser tratado como um hóspede todos os
dias. Disso, entende-se que esse marido não execute as tarefas domésticas da casa e nem de
cuidado com as crianças. A casa deverá estar sempre arrumada à espera do seu esposo, assim
como os filhos e a própria esposa. Mas, ela não pode esperar reconhecimento do cuidado que
tem com o lar e nem solicitar “coisas supérfluas” para a casa, visto que é uma obrigação dela,
já que seu marido está provendo a família. Por fim, os votos de casamento são relembrados
para que o casal permaneça junto até nos tempos difíceis. Porém, esse fardo é concebido
como sendo exclusivamente uma responsabilidade da mulher. Algumas edições depois, é a
vez dos mandamentos do casamento:

1. Desde que o teu corpo está suficientemente desenvolvido e que te achas


em condições materiais para manter modestamente família, casa-te o mais
cedo possível.
[...]
4. Não encares o casamento como fonte de prazeres, em que tudo é
permitido, pois a vida conjugal tem as suas dificuldades, tentações e lutas.
[...]
8. Em tua companheira procura qualidades morais, a fidelidade, o amor ao
trabalho, a economia, a ternura, a paciência, a pureza, – virtudes que tu
mesmo deves cultivar.81

Aqui, as orientações são tanto para as esposas quanto para os maridos. Segundo o
texto, era preferível que os jovens casassem o mais rápido possível, certamente para evitar “o
pecado” do sexo antes do casamento, devendo, porém, estar cientes que o matrimônio
também passa por momentos adversos. Para o marido, é aconselhado que procure uma
companheira com as qualidades que já mencionamos anteriormente, mas vamos destacar a
qualidade da economia. Um casal cristão deve procurar ser o mais modesto possível e não
gastar mais do que tem ou evitar o consumo excessivo.
Em uma seção direcionada para os jovens, A Voz Católica publicou um texto para
abordar o sexo no casamento. O periódico pontuou que antes o assunto era tabu, mas
acrescentou que os tempos mudaram e era então natural e até necessário falar sobre isso,
porque a formação sexual promove um “harmônico equilíbrio da personalidade”.82 E ainda
reproduziu uma entrevista sobre liberdade sexual da campeã mundial de esqui, a francesa
Marielle Goeitschel:

Juventude e casamento

81
OS DEZ mandamentos para o casamento. A Voz Católica, nº 461, 1968, p. 2.
82
PÁGINA dos jovens. Idem, nº 577, 1971, s/p.
40

À liberdade sexual digo não. Sei que hoje em dia muitas môças têm relações
de casadas antes do matrimônio. Creio que isto não está certo. Não somente
eu penso assim. Tenho conversado com rapazes e observei que detestam as
garotas que se entregam facilmente... Vê-se como desprezam uma moça
depois de terem feito com ela o que bem entendiam... Digo a mim mesma
que em todas essas coisas é preciso adotar uma disciplina, tanto para o amor
como para o esporte, senão um dia a gente se arrasa... Vou dizer uma coisa:
nunca ponho a culpa nos rapazes. Se um deles viesse me pedir o que não
deve, eu é que mereceria uma bofetada e pensaria então: “Você é que não
presta, não é ele, porque, de um modo ou de outro, foi você quem lhe deu a
ideia”.83

Então, a liberdade sexual era causada por mulheres que “se entregavam facilmente” e
que por isso mereciam o desprezo dos que com elas se relacionaram sem conúbio. Quem
deveria controlar e regular essa liberdade eram as mulheres, pois os rapazes só fariam
insinuações sobre relações sexuais se as moças dessem abertura para isso, caso em que
mereceriam ser castigadas.
Maria Angela D’Incao, ao escrever sobre a família burguesa e o amor romântico no
século XIX, esclarece que a virgindade da noiva era tida como um símbolo “de valor
econômico e político, sobre o qual vai se apresentar um sistema de herança de propriedade
que deve sobretudo garantir a linhagem da parentela”. Assim, a vigilância em torno dos
jovens antes do casamento servia para que o sistema de casamento não fosse enfraquecido
pelo “encontro dos corpos” desses jovens.84 Porém, no contexto do regime ditatorial não era
considerado adequado reduzir a virgindade e o casamento somente a valores econômicos e
políticos, pois os valores morais também eram tidos como essenciais. As famílias pobres
também valorizavam os dois aspectos, tanto que buscavam meios para reparar a perda da
virgindade das suas filhas e orientá-las para que não caíssem no pecado e se mantivessem
virgens até o casamento. Apesar de que, por vezes, esses valores, como mostra a
documentação, fossem relativizados, assim como foram para as famílias burguesas.
Os casamentos também eram noticiados nos jornais, quando os noivos eram de
famílias prestigiadas nos círculos da elite do Território Federal do Amapá e os homens
funcionários da Icomi e do governo territorial. Do noivo era noticiada a profissão e a família,
já a noiva era identificada por sua família ou pelos seus modos:

83
Ibidem.
84
D’INCAO, Maria Angela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O
amor e a família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
41

No dia 23 [de dezembro] do corrente, na Igreja de São José, unir-se-ão pelos


laços matrimoniais Valter Sampaio Cantuária (funcionário da ICOMI) e
Doralina da Silva Ramos (filha do casal Alceu (Josefina) Paulo Ramos.85

Sob as bênçãos de Deus e as leis dos homens, contrairão matrimônio a


senhorita Heileni Picanço com o jovem Alfredo Brazão, no dia 22 do mês
em curso. Os noivos são filhos dos casais Heitor (Helenita) Picanço e
Augusto (Olinda) Brazão. O ato será celebrado na Catedral de São José de
Macapá, às 18 hs. do dia já mencionado, e após a cerimônia recepcionarão os
convidados na residência dos genitores da noiva, sita à Rua Eliezer Levy, n.º
1594. O colunista agradece o honroso convite, e almeja aos nubentes uma
vida repleta de paz, felicidade e amor.86

Casamento – Lecy Sônia Duarte e o advogado Luiz Carlos, da BRUMASA,


deverão estar casando lá pelo final do ano. Ela foi miss Cidade de Macapá e
é uma das garotas mais educadas da capital.87

No dia 9 [de maio] do corrente estarão contraindo matrimônio, sob as


bênçãos de Deus, os jovens Natary e Manoel, cujo enlace realizar-se-á na
hospitaleira cidade de Afuá, no vizinho Estado do Pará. A noiva é filha do
Sr. Dinair Chagas de Santana, Prefeito daquela localidade, e sua digna
esposa, senhora Doralice Salomão Santana, e o noivo filho da viúva Paulo da
Silva Vaiz. O colunista agradece o honroso convite, e antecipadamente
almeja ao futuro casal, os melhores dias de venturas.88

As famílias dos noivos certamente eram de classe média e conhecidas do articulista da


coluna “Cada assunto uma notícia”, Wilson Sena, do Novo Amapá. Lecy Duarte é
caracterizada como “uma das garotas mais educadas da capital”, o que pode ser considerado
atributo de uma boa esposa. Outro aspecto observado é a forma com que as esposas eram
identificadas nos jornais, como apêndices do marido, pois os seus nomes aparecem entre
parênteses. Exceto o último artigo, porque nele a mãe da noiva aparece identificada, mas é
importante destacar o caso da mãe do noivo que ao ficar viúva perdeu a sua identidade
tornando-se simplesmente “viúva Paulo da Silva Vaiz”.
A família burguesa como criação do capitalismo disseminou ideais de casamento, de
maternidade, de esposa, de educação dos filhos e de comportamento feminino. O sistema
burguês para implementar a modernização e eliminar hábitos considerados atrasados, rompeu
com diversos costumes sociais. A imprensa amapaense contribuiu para reforçar os modelos de
mulher virtuosa e edificadora do lar, mãe dedicada e esposa companheira, e a separação entre
a esfera doméstica e o mundo dos homens, o espaço público. O que representou a valorização
da virgindade e do recato das mulheres. Vimos se delinear uma distinção de classe: as
mulheres presentes nas páginas dos jornais são esposas e filhas de políticos, empresários ou
85
SOCIEDADE e adjacências. A Voz Católica, nº 424, 1967, p. 03.
86
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.570, 1970, p. 05.
87
NOTÍCIAS da sociedade. Idem, nº 1.686, 1973, p. 03.
88
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.569, 1970, p. 07.
42

de famílias prestigiadas no TFA. As mulheres da classe trabalhadora raramente apareciam e,


quando isso acontecia era, de certa forma, em uma posição de receptora da assistência social
das senhoras de classes média e alta.

1.2 “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a prostituição
como doença social
Os limites que separam a “mulher de família” e a “mulher da vida” são tênues e
fluidos. A figura da prostituta está presente em diversos locais e contextos históricos como
uma mulher fora dos limites da honra. Ela é um símbolo marcador do que uma mulher
honesta não deve ser. Margareth Rago explica que, em São Paulo, no início da República, a
sociedade burguesa polarizou as figuras da “mulher honesta” e da “meretriz” para se defender
da ameaça representada por esta última, como “mulher imaginariamente livre, descontrolada e
irracional”.89 E que “por mais independente que fosse a ‘mulher honesta’, sua liberdade
estaria sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz”.90
Dessa forma, a figura da prostituta é um parâmetro de comportamento para a mulher
honesta, pois o comportamento daquela serve de critério para definir quais atitudes são desta.
Já no livro Do cabaré ao lar, a autora explica que é por causa do combate à sífilis e às
doenças venéreas em geral e para defender a saúde da população “que se estuda e medicaliza
a sexualidade da mulher, que se aborda o problema da prostituição e que se instituem os
padrões de comportamento da mulher honesta e casta e da vagabunda”.91
Janaína Contreiras, na sua dissertação de mestrado, aborda as trajetórias marcadas pela
violência sexual sofrida por presas políticas dos regimes ditatoriais de Brasil e Argentina, mas
também de outras ditaduras como as do Paraguai, Chile e Uruguai. Ela destaca que o corpo da
mulher se torna um campo de batalha em contextos de guerra. Ela pondera que uma das
formas de violentar sexualmente essas mulheres no Brasil dos anos da Ditadura Militar foi
chamá-las de prostitutas, vacas, putas subversivas e putas comunistas. Já nos demais países
elas eram violentadas com adjetivos pejorativos como perras, putas, maracas, dentre outros.
Segundo Contreiras, para uma parcela da sociedade essas mulheres enquanto
militantes políticas ou armadas estavam transgredindo o seu papel natural de mães e esposas,
e ainda eram acusadas de buscar encontros sexuais no meio político. Os militares buscavam
formas de humilhar e enfraquecer essas mulheres, atingindo a sua moral por meio de
89
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 44.
90
Ibidem, p. 44-45.
91
RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar – Brasil 1980-1930. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 87.
43

xingamentos e tortura psicológica, além dos abusos físicos.92 Ela também afirma que muitas
delas eram submetidas à prostituição forçada por militares das ditaduras sul-americanas.
Nesse caso, ela entende a prostituição não como um serviço sexual oferecido por mulheres
trabalhadoras, mas sim como uma forma de violência sexual nas ditaduras da América do
Sul.93 Para a autora, desmoralizar as presas políticas foi um artifício de convencer a opinião
pública para o perigo dessas “inimigas internas”. E atribuir o adjetivo de putas e prostitutas a
elas significava impingir uma “‘mancha’ sobre o nome da família perante a sociedade e
afastava-se a constituição de possíveis redes de apoio e de simpatia”.94 Logo, era preciso
identificar essas mulheres como prostitutas para que a sociedade as visse como um perigo
para a nação e, principalmente, para a família.
Nos jornais amapaenses não eram comuns textos sobre prostituição. Selecionamos
alguns artigos que tratam diretamente do tema ou sobre o comportamento feminino. Apesar
de se tratar de um jornal laico e outro religioso, os textos têm semelhanças entre si, pois
tratam a prostituição como uma doença social causada pela falta de moral e boa educação das
famílias. Em edição de 1971, A Voz Católica transcreveu uma entrevista sobre prostituição da
Revista Salette95 de São Paulo, feita pelo seu redator, o Padre Anacleto Ortigara. Foram
entrevistadas 200 prostitutas da capital paulista:

Um mal de sempre e de toda parte que só o amor pode curar

As prostitutas são, em geral, tristes vítimas duma sociedade que cultua o


sexo e deste se serve como motivação comercial, verdadeira fonte de
recursos e divisas nos grandes centros de convergência internacional das
metrópoles de antanho e de hoje. A vigilância e a violência não bastam para
se extinguir o lenocínio, o tráfico de escravas brancas, apesar de todo esforço
moralizador e coercitivos das autoridades públicas. Caftens e proxenetas
desenvolvem às ocultas seu tráfico escuso, dentro de verdadeira rede de
aliciamento de mulheres que não são propriamente pessoas, mas meros
objetos que constituem negócio lucrativo nas mãos dos exploradores da
felicidade alheia. Alta ou baixa prostituição, pública ou secreta, a dos
palacetes, das choças e prostíbulos baratos – tôda ela representa, hoje, a
continuidade de um mal que não se pode eliminar, mas que poderia atenuar
consideravelmente, se houvesse real compreensão do papel do sexo na vida
humana, respeito pela mulher e sua função junto ao homem, respeito ao
corpo humano, afinal, uma mentalidade mais espiritual que sabe guardar-se
imune da corrupção e vencer os brutais impulsos da natureza. É por não
haver tais requisitos numa grande porcentagem de homens, que os mesmos

92
CONTREIRAS, Janaína Athaydes. Corpo de mulher, um campo de batalha: terrorismo de estado e violência
sexual nas ditaduras brasileira e argentina de segurança nacional. Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018, p. 145.
93
Ibidem, p. 133.
94
Ibidem, p. 151.
95
A Revista Salette é um informativo do Santuário Salette de São Paulo, tem cerca de 80 anos de circulação com
a missão de evangelização. Fonte: www.nsrasalette.org.br/informativo.
44

não sabem conter-se e descem abaixo do nível dos animais entregando-se ao


vício da carne e à prostituição da mulher que deveria ser para ele uma
companheira fiel na vida matrimonial e social e nunca uma escrava como
acontece na prostituição.96

Para a revista, a prostituta nada mais era do que uma vítima da sociedade que vê no
sexo uma oportunidade para obter lucro à custa do sofrimento de mulheres. Não era suficiente
a vigilância e nem a violência da polícia para extinguir esse comércio, porque os cafetões e
proxenetas procuravam meios de continuar seu comércio de exploração sexual. Depois,
conclui que não há maneira de acabar com a prostituição, mas sim de amenizar esse mal. Isso
seria possível se homens e mulheres soubessem o verdadeiro valor do sexo, se as mulheres
fossem respeitadas e que fosse entendida a função feminina junto aos homens, o que passaria
pela formação espiritual. Aqui, o entrevistador afirma que a maioria dos homens não possuía
essa “mentalidade espiritual”, por isso não conseguia conter seus impulsos naturais e tratava a
mulher como escrava na prostituição, e não como companheira.
Em seguida, o Padre Ortigara escreveu sobre os motivos que levaram essas mulheres
ao mundo da prostituição. Mas, ele não responsabilizava nenhuma delas por serem prostitutas
ou perdidas. Os principais motivos eram: família desestruturada, falta de educação sexual,
ausência de proteção legal às trabalhadoras domésticas que eram vítimas de seus patrões e dos
filhos deles e falta de capacidade de constituir um lar. Além desses aspectos, “grande parte
delas se diz vítima dos namorados e noivos que tudo lhes prometeram para levá-las ao
pecado, mas se esquivaram entregues à má sorte depois”.97 Assim, para o entrevistador, as
prostitutas eram vítimas de uma sociedade que não as protegia. A educação sexual reclamada
era certamente uma educação religiosa e não laica. Por fim, chegamos à sedução dessas
mulheres pelos seus namorados, que após o desvirginamento delas, não reparavam o mal pelo
casamento. Ortigara afirma que muitas delas já haviam tentado deixar de praticar a profissão,
mas se tinham se deparado com vários obstáculos, como a perseguição da polícia, falta de
emprego, expulsão dos lugares. Cerca de 180 das 200 entrevistadas falaram que estavam
arrependidas e não queriam mais continuar na vida de prostituta.
Posteriormente, ele critica a concepção de que a prostituição é um mal menor ou
necessário para manter a moral familiar, porque “justifica-se a existência da prostituição e das
casas boêmias como ‘válvulas de escape dos homens’”.98 Segundo Ortigara, o que fica
resguardada é uma falsa moral:

96
UMA ENTREVISTA diferente. A Voz Católica, nº 592, 1971, p. 2-3.
97
Ibidem.
98
Ibidem.
45

Se quase 90% das mulheres que se prostituem vêem de famílias do interior,


de “famílias desorganizadas”, famílias em conflito, famílias em brigas, o
caso é perguntar-se; de quem a culpa? Não é de toda esta situação dos lares,
de pais impreparados, egoístas? Não é de mães que sabem dar orientação às
filhas? Se as “vagabundas” são filhas de famílias, não nasceram nas zonas,
mas na sociedade. A sociedade, portanto, é a culpada. Nem se fale das
doenças levadas aos lares, dos filhos aleijados, sifilíticos, heranças de mortes
prematuras.99

Dessa forma, os conflitos familiares, os pais despreparados e as mães que não sabiam
orientar as filhas eram os causadores da prostituição. Logo, a culpa não era das prostitutas e
nem da prostituição, pois elas eram vítimas de toda essa situação que produzia a exploração
de mulheres e zonas de meretrício. Para Anacleto Ortigara, as famílias desorganizadas de
cidades do interior faziam parte de um ciclo vicioso de uma sociedade egoísta e despreparada,
que produziria ainda mais famílias desorganizadas se continuasse “resguardando uma falsa
moral”. Por fim, ele afirma que a solução cristã para o problema da prostituição era a
formação e a educação que a família poderia dar aos seus filhos e filhas:

Elas são filhas de famílias que não se acertam e então o caminho é a


prostituição. E esta vida de mulher comprada, vendida, alugada, não é cristã,
não é humana. Ninguém avalia o tormento de uma moça que deve viver
assim. Externamente podem parecer felizes, têm de mostrar contentes para o
olhar de pecado, a fim de poderem viver. Ninguém gostaria que uma irmã
sua, sua esposa ou sua mãe vivessem assim. Diante da consciência e de
Deus, somos todos irmãos.100

Segundo o autor, as famílias estavam desestruturadas e o destino de algumas de suas


filhas era a prostituição. Ortigara destaca que a vida das prostitutas não era cristã e era infeliz.
Então deveria ser feito um esforço no sentido da formação familiar pautada nos ideais cristãos
para recuperar as mulheres que já estavam na prostituição e para evitar que outras filhas
também ingressassem na vida de mulher comprada, vendida e alugada.
Em seu livro que mescla memórias, poesias e histórias fictícias sobre o Amapá,
Amiraldo Bezerra questiona: “Quantas filhas de família casaram virgens graças aos serviços
prestados por essas profissionais do sexo?”.101 Para ele, as prostitutas no Amapá contribuíram
com a manutenção da virgindade das moças honradas. Assim, percebemos que no TFA era
corrente a ideia criticada por Ortigara de que a prostituição era necessária para “equilibrar” os
desejos libidinosos dos rapazes e para manter intacta a moral social e familiar. Porém, ele
escreve que a sociedade é hipócrita, porque tenta esconder suas atitudes sob uma cortina de

99
Ibidem.
100
Ibidem.
101
BEZERRA, Amiraldo. A margem esquerda do Amazonas. Fortaleza: Premius, 2008, p. 05.
46

moralidade, enquanto as prostitutas não tentam esconder nada, razão pela qual são
marginalizadas e discriminadas.102
De acordo com Mirela Morgante, na década de 1960, havia diversos bordéis na região
metropolitana de Vitória, nos quais os homens poderiam extravasar seus instintos sexuais para
preservar a honra e a moral burguesa que determinava que as mulheres deveriam casar
virgens. Mas a zona de meretrício da capital do Espírito Santo também servia “para extravasar
suas ‘tensões’ [dos homens] adquiridas no trabalho cotidiano”.103 Logo, era socialmente aceito
que os homens frequentassem bordéis antes e durante o casamento. Além do mais, os
“homens saciavam seus desejos sexuais não tradicionais com as mulheres da indústria sexual,
resguardando a virgindade das namoradas e das noivas e mantendo o conservadorismo na
relação sexual com a esposa”.104 Também era difundida a ideia de que o apetite sexual
masculino era maior do que o apetite sexual feminino e de que as esposas deveriam aceitar
essa “diversão” dos maridos105, porque era natural que agissem desse modo. Era comum que
os pais levassem seus filhos para iniciar a vida sexual com as prostitutas dos bordéis de
Vitória. Desse modo, os rapazes já eram ensinados desde a adolescência a diferenciar a
prostituta, para o sexo, da mulher honesta, para casar.
Segundo Cristiana Schettini, no Rio de Janeiro, as autoridades judiciais entendiam
“que a prostituição deveria ser controlada, mas não reprimida”.106 A prostituição clandestina
deveria ser combatida pelo poder público para proteger mulheres “ainda não totalmente
desonestas”.107 Já a prostituição pública só sofreria alguma intervenção para proteger os
clientes, para que as suas famílias e moças honestas não fossem prejudicadas.108 Desse modo,
o controle da prostituição clandestina era atribuído à Justiça, enquanto que o da prostituição
pública era de responsabilidade da polícia. Nesse caso, a vigilância sobre a prostituição só
seria feita para proteger aquelas que eram prostitutas clandestinas, pois ainda não tinham sido

102
Ibidem, p. 91.
103
MORGANTE, Mirela Marin. Memórias da prostituição: território, poder e resistências em São Sebastião.
Serra-ES (1960-1980). Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do
Espírito Santo, 2020, p. 188.
104
Ibidem, p. 37.
105
Ibidem, p. 188.
106
SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2002, p. 252.
107
Ibidem, p. 252.
108
Em Do cabaré ao lar, a historiadora Margareth Rago explica a diferença entre prostituição pública e
prostituição clandestina. Segundo ela, o médico higienista F. Ferraz de Macedo classificou as prostitutas nessas
duas categorias no século XIX. Desse modo, as prostitutas públicas eram aquelas que trabalhavam em bordéis e
cortiços, mas também eram floristas e costureiras, por exemplo. Já as prostitutas clandestinas eram mulheres
viúvas, casadas, divorciadas e solteiras, além de mulheres escravizadas prostituídas por seus senhores. Lésbicas e
homossexuais também estavam incluídos nessa classificação (RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 87-88).
47

totalmente corrompidas, mas principalmente para proteger as mulheres honestas de qualquer


contato com a prostituta pública. A preocupação do Estado nessa situação não era com a
prostituta, mas sim com a mulher honesta, para que ela se mantivesse honrada e protegida. A
prostituição era tida como um mal necessário justamente para que os namorados das moças de
família não “descarregassem seus desejos carnais” em suas namoradas. De acordo com Rago:

Se moralmente condenada, essa função [a prostituição] era bem-vinda na


sociedade, pois, segundo se acreditava então, garantia a virgindade das
futuras esposas e permitia que os moços arrefecessem parte do “fogo
interno”, numa fase da vida em que os impulsos libidinais eram muito
prementes.109

E conforme Morgante:
Com seus inúmeros parceiros sexuais e comportamento transgressor, as
meretrizes eram vistas como o avesso da mulher honrada, maternal e fiel ao
matrimônio, servindo de parâmetro para a definição da normalidade sexual
da família nuclear legítima. Contudo, apesar de serem consideradas como
anomalias, uma verdadeira doença social, as prostitutas cumpriam uma
função dentro do sistema binário de relação sexual, possibilitando que os
homens exercessem sua performance masculina tendo uma diversidade de
parceiras sexuais e que as mulheres “feitas para casar” preservassem sua
virgindade e o comportamento sexual tradicional.110

Assim, aceitava-se a existência da prostituição como um mal necessário para preservar


a honestidade e a moral sexual das famílias, principalmente das meninas virgens à espera de
um enlace matrimonial e que estavam ameaçadas pelo “fogo interno” de seus futuros esposos.
Logo, as prostitutas eram uma peça indesejada, mas necessária desse sistema social
construído para proteger a moral sexual e familiar. Além disso, o sexo que não era
conservador podia ser praticado somente por homens e prostitutas, à esposa era negado esse
lugar, porque ele rompia o ‘tradicional”, o “normal” e a mulher que rompesse a norma não
poderia presumir-se honesta.
Além desses limites simbólicos e discursivos entre a mulher honesta e da prostituta,
limites físicos também eram impostos. Rago infere que, em algumas ocasiões, as prostitutas
de luxo e as mulheres respeitáveis compartilhavam o mesmo espaço, mas não deveriam se
misturar, ou seja, manter um contato mais próximo. Outra preocupação era a aparência e até o
perfume usado pelas mulheres, um perfume forte e marcante não era característica de uma
mulher pura.111 A prostituição era aceita até determinado ponto em num local visível. No
mais, era necessário, segundo o discurso hegemônico, que houvesse um deslocamento das

109
RAGO, Margareth, 2008, Op. Cit., p. 28.
110
MORGANTE, Mirela, Op. Cit., p. 244.
111
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 40.
48

zonas de meretrício para locais mais afastados. O lugar do sexo e do prazer deveria estar
longe do lugar da família higienizada.112
Em edição de maio de 1974, o Novo Amapá divulgou uma palestra nomeada como
“Prostituição – Um flagelo social”, realizada pela aluna do curso de polícia feminina, Maria
Delci dos Santos:

Estudante faz palestra sobre prostituição: amanhã

[...]
A palestra que Maria Delci dos Santos vai proferir, visa conscientizar as
jovens das causas e consequências desastrosas da prostituição, procurando
dar-lhes uma visão real das frequentes tragédias oriundas da denominada
chaga social.

Advertência e orientação será a técnica da palestra, como orientação para


que as moças não enveredem pelos caminhos da vida.

As moças que por motivo de fraqueza moral, palmilharam os caminhos da


prostituição sofrem negativas consequências para o corpo e para o espírito.
Elementos mal informados dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil
coisa nenhuma. Não existe verdade nessa afirmativa. A vida que essas
mulheres levam é bem difícil. Exemplo? A sociedade as olha com diferença.
A polícia as persegue e os homens não as querem por amor, mas
simplesmente para dar vasão a instintos bestiais, o que contraria os
princípios da filosofia de Cristo, disse a jovem Maria Delci, ao ser inquirida
pelo NOVO AMAPÁ sobre suas ideias a respeito da prostituição – e
acrescentou: como aluna do curso de polícia feminina tenho aprendido muita
coisa útil e me sentiria muito infeliz se não aplicasse meus conhecimentos
como forma de contribuir para formação de uma sociedade melhor.113

O local escolhido foi a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no bairro do Trem.


Em 1968, A Voz Católica noticiou que as moças do Trem teriam um lugar para a sua diversão
e formação na Paróquia do bairro do Trem114. O jornal ainda enfatiza que espera que o
trabalho realizado no Núcleo Primaveril “seja eficaz e tenha frutos para a vida eterna”.115 O
objetivo deste núcleo era formar mulheres segundo os preceitos cristãos e essa palestra foi
pensada como um meio para advertir que as jovens católicas do bairro do Trem não caíssem
no mundo da prostituição. Maria Delci tinha como objetivo alertar as jovens sobre as causas e
consequências de ser prostituta, dentre elas a exclusão social, perseguição policial e as
intenções escusas de homens que procuram seus serviços apenas para saciar desejos carnais,
sem amor, o que não estava em acordo com a filosofia cristã. Por isso, a palestrante não

112
Ibidem, p. 46.
113
ESTUDANTE faz palestra sobre prostituição amanhã. Novo Amapá, nº 1.730, 1974, s/p.
114
O artigo não indica o nome da Paróquia, mas certamente se trata de Nossa Senhora da Conceição.
115
AS MOÇAS do Trem. A Voz Católica, nº 439, 1968, p. 3.
49

concordava com a afirmativa de que a prostituta levava uma “vida fácil”, pelo contrário. Ela
atribuía a entrada de mulheres na prostituição à “fraqueza moral”. Então essa palestra serviria
para fortalecer os valores morais das mulheres católicas que estavam recebendo essa
formação. Inclusive, no final de sua fala, a estudante disse que seus conhecimentos sobre o
tema haviam sido adquiridos num curso de polícia feminina, o que nos leva a pensar que a
prostituição e a presença dessas mulheres nos locais públicos era uma preocupação da polícia
no Amapá.
A coluna “Comentando”, de Cordeiro Gomes, tratava de assuntos aleatórios. O
articulista escolhia alguns casos para fazer comentários, por vezes satíricos, sobre eles. Em
um desses comentários, comentou sobre uma comerciante:

No bairro do Jacareacanga116 existe uma senhora, proprietária de uma certa


“baiúca” que quando dá na “veneta” vem para frente de sua casa de comércio
e faz um verdadeiro comício, detratando todos os moradores daquele núcleo
populacional, com palavras de baixo calão. Algumas pessoas já estão
providenciando um abaixo-assinado para levá-la de encontro à justiça.117

Como Cordeiro Gomes usava do humor para apresentar alguns episódios da vida local,
ao se referir ao comércio da dita senhora como “baiúca”, entendemos que ele buscou meios de
não identificar diretamente uma casa de prostituição. Por outro lado, o estabelecimento
poderia ser um mercado ou uma loja e ele pode apenas ter criticado um comportamento
desagradável de uma vizinha para com os demais moradores de sua rua.
Em duas edições de 1974, o periódico destacou o mau comportamento de homens
jovens em locais públicos. Em edição de janeiro abordou os palavrões proferidos pela cidade,
sem a devida preocupação com a presença de pessoas idosas, crianças e mulheres que não
estavam acostumados a ouvir certos termos:

Somos dos que entendem ainda ser a mulher, alguma coisa de respeitável, de
delicado e de poético. Não existissem outras razões, somente a de ser mãe ou
da possibilidade de vir a ser no futuro, já justifica um tratamento especial,
um respeito maior, uma admiração acentuada.

Existem mulheres que permitem, aceitam e até participam das chamadas


conversas mais fortes, ou porque não dizer, indecorosas. Existem outras no
entanto, que por questão de formação, de ambiente e de próprio respeito por
si mesma, não aceitam tal estado de coisas, sentido-se constrangidas quando
tais fatos ocorrem em suas presenças. E não se vá dizer que se trata de
cafonismo, quadradismo ou outros ismos. É respeito mesmo, é educação
mesmo, é enfim, classe e dignidade [...].118

116
Atualmente, o bairro do Jacareacanga corresponde ao bairro Jesus de Nazaré, em Macapá.
117
COMENTANDO. Novo Amapá, nº 1.579, 1970, p. 2.
118
O PALAVRÃO. Novo Amapá, nº 1.714, 1974, p. 02.
50

Como vimos, o jornal também critica mulheres que colaboram com “conversas
indecorosas” e que o fazem por falta de formação, de ambiente e respeito por si próprias,
diferentemente de outras melhores “formadas” e que se sentem desconfortáveis com tais
conversas. Já em edição de maio, o jornal publicou um artigo sobre a bagunça nos cinemas de
Macapá, destacando como os jovens da capital se comportavam de forma inadequada
incomodando as outras pessoas presentes:

Ultimamente está se tornando difícil a presença de senhoras e senhoritas nos


cinemas da capital, em face da extrema falta de educação e do rompimento
dos princípios básicos que regem o comportamento social.

O que se ouve nas salas de espetáculos de Macapá talvez não seja ouvido em
prostíbulos da mais baixa categoria, fazendo com que os homens de bem se
sintam mal e tornando impossível a presença do elemento feminino, que por
ser mais delicado não pode se sujeitar a determinados vexames.119

Era esperado que houvesse esse tipo de comportamento nos prostíbulos, considerado
um local de “baixa categoria”. Nesse artigo, o jornal demarca o que é um ambiente adequado
para as famílias e o que não é, já que as senhoras e senhoritas, não as prostitutas, eram seres
delicados e que não podiam presenciar cenas de mau comportamento juvenil praticadas no
cinema.
Sobre o comportamento feminino, A Voz Católica na “Coluna da mulher” critica as
mulheres que expõem partes do corpo para chamar a atenção dos homens e “vendem a sua
dignidade e o seu pudor”, rebaixando, assim, “a sua dignidade e tornando-se seres inferiores a
respeito dos homens”.120 Era esperado que essa mulher não mostrasse certas partes do corpo,
pois, dessa maneira, teria muito mais respeito e admiração dos homens. O jornal afirma que
esse tipo de comportamento era incomum mais em lugares subdesenvolvidos:

Felizmente, isto não acontece em todos os lugares. Parece que se trata de um


fenômeno mais generalizado nas regiões subdesenvolvidas, especialmente
nas menos adiantadas culturalmente.
Hoje todos se queixam da subversão dos valores morais e ninguém mais tem
a coragem de falar claro dizendo às mulheres quanto se tornam ridículas e se
rebaixam com certas modas.
[...]
Não se sentiriam as moças e senhoras, mais belas e nobres e tranquilas se,
procurando tornar-se bonitas, o fizessem com uma verdadeira elegância,
deixando de lado as degradantes e escravizantes manifestações de certa
moda moderna, que faz da mulher um objeto de cobiça e uma fonte de

119
JUVENTUDE não é molecagem. Novo Amapá, nº 1.731, 1974, p. 02.
120
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 472, 1968, p. 2.
51

mercado para lucrar dinheiro, explorando a [rasurado] e a sua falta de


reflexão?.121

O periódico não se refere diretamente ao Território Federal do Amapá ou ao Brasil,


mas o texto leva a crer que esse comportamento feminino moralmente degradante acontecia
localmente, porque o TFA era um lugar culturalmente atrasado. De certo modo, o texto
também atribui a subversão moral às mulheres que aderiam às “roupas da moda” e se
tornavam “ridículas” ao fazer isso, porque estavam provocando a cobiça masculina.
Mulheres que andavam sozinhas pelas ruas, frequentavam bailes e namoravam longe
da vigilância familiar eram facilmente tidas como prostitutas no Amapá. F.T. Lima é um
excelente exemplo dessa concepção do que era ser prostituta na Amazônia setentrional. Ela
foi vítima de um crime de sedução, mas a maioria das testemunhas, que eram homens, e o
acusado, se referiam constantemente aos “maus hábitos” dela. Ela era empregada doméstica,
mas frequentava bailes em clubes suburbanos e, segundo as testemunhas, não era mais
virgem. Inclusive, era vista por quase todos eles como uma meretriz. F.T. Lima não era uma
profissional do sexo, mas o seu suposto comportamento serviu como justificativa para que as
pessoas duvidassem de sua queixa na delegacia122
Em outro exemplo advindo de processos judiciais de crime de sedução, P.P. Borges
declarou que conheceu M.N.C. Lopes próximo à Igreja São José, ocasião em que percebeu
que ela ficava lhe observando, quando sorriu e ela sorriu de volta e se aproximou dele. Ele
disse que “vendo-a assim a tomou por empregada doméstica, mulher sem compromisso de
honra ou de casamento”123. M.N. era de prendas do lar, mas não uma trabalhadora doméstica
remunerada.124 Com essa afirmação, é possível notar como até empregadas domésticas, que
eram tidas como trabalhadoras honestas, eram vistas como mulheres sem compromisso ou
desonradas. Isso porque não eram mulheres que se restringiam à esfera doméstica do seu
próprio lar, mas que se colocavam a serviço de outren. Esse mesmo pensamento poderia
também justificar abusos sexuais de patrões ou de outros homens a empregadas domésticas,
como esse depoimento exemplifica.
Há também casos em que meninas e mulheres eram difamadas pela vizinhança e
xingadas por desconhecidos, o que gerava processos criminais de difamação, crimes contra a
honra e lesões corporais. Em um inquérito de crime contra a honra, a representante M.S.
Picanço (mãe)125, brasileira, amapaense, casada, de prendas domésticas, de 52 anos de idade,
121
Ibidem.
122
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970.
123
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
124
Explicaremos a diferença das categorias de trabalhadoras domésticas no próximo item.
125
Mãe e filha têm a mesma sigla. Não foi possível diferenciar porque não tivemos acesso ao nome delas.
52

residente no bairro Jesus de Nazaré, sabendo ler e escrever, tinha uma filha menor de 15 anos,
M. da S.P. (filha), estudante, residente com sua genitora, brasileira, natural de Macapá,
sabendo ler e escrever, e que teve a reputação ofendida por vizinhos. No ato da denúncia foi
informado que a representante registrou a ocorrência na ausência de seu marido, B.A.P.,
funcionário da Icomi, em Serra do Navio. Isso nos leva a pensar que ela era quem chefiava a
família em Macapá.
Os acusados eram vizinhos “com os quais há pouco tempo mantinha boas relações de
amizades, não levando em consideração as pequenas rusgas de famílias, que surgiam, com a
finalidade de manter a paz com seus vizinhos, vindo entretanto romper essa relação de
amizade”126. Na semana anterior ao registro de ocorrência, sua filha M.S.P., disse que os
vizinhos estavam “propalando na VIZINHANÇA de que ela M., não era mais virgem, fazia
programa na boate Juçarão e outros bordéis, estando até contaminada de doenças venéreas”127.
Em primeiro lugar, a representante afirmava que, apesar dos conflitos entre as famílias,
tinham boa convivência. Contudo, essa cordialidade foi rompida no momento em que os
vizinhos começaram a difamar sua filha. Percebemos como não foi suficiente afirmar que a
adolescente não era mais virgem, pois também afirmaram que ela frequentava bordéis pela
cidade. Com isso, entendemos que uma coisa estava diretamente ligada à outra, ou seja, se
esta menina não era mais virgem, logo, era também prostituta. Após saber disso, ela
perguntou aos seus vizinhos sobre o ocorrido e eles reiteraram que a adolescente não era
virgem e que estava com doenças venéreas. Então ela decidiu registrar ocorrência e realizar
exame de conjunção carnal em sua filha e solicitou que fosse aberto inquérito para apurar os
fatos.128
M.N.C. Lima, brasileira, casada, residente na Vila Maia, em Santana, cor parda, natural
de Breves, 24 anos de idade, doméstica, sabendo ler e escrever, em meio a uma discussão, foi
até a casa de M.N.O do Nascimento, brasileira, natural de Gurupá/PA, doméstica, casada, com
38 anos, sabendo assinar o nome, e a agrediu com um pedaço de pau, o que causou um
profundo golpe no couro cabeludo, no dia 14 de dezembro de 1976, em Vila de Santana129. A
vítima estava nos primeiros meses de gestação. A testemunha B.O.M., brasileira, amapaense,
solteira, estudante, 17 anos de idade, residente em Serra do Navio, sabendo ler e escrever,
disse que o caso começou quando a acusada ouviu M.N.O. do Nascimento falar que ela
gostava de arranjar intrigas com os vizinhos e “começou a insultá-la, chamando diversos

126
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
127
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
128
AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 3.
129
AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 2.
53

nomes pornográficos, inclusive dizendo que a filha de M.N.O. do Nascimento não passava de
‘uma putinha’, ‘uma casseteira’130”.
No dia 02 de junho de 1976, R.C. Pinto, cor parda, doméstica, 28 anos, feriu L.G.
Pereira, brasileira, amapaense, solteira, 14 anos de idade, sabendo ler e escrever, com um cabo
de vassoura. Elas eram vizinhas e se ofenderam mutuamente. A acusada alegou que M.N.G.
Pereira, brasileira, paraense, casada, 40 anos de idade, sabendo ler e escrever, e suas filhas a
viviam hostilizando. No dia do desentendimento, M.N. ofendeu R.C. Pinto com palavras de
baixo calão e insinuou que ela estava tendo um caso com seu marido. Já a vítima L.G. Pereira,
filha de M.N.G Pereira, disse que, inicialmente, a discussão era entre sua mãe e a acusada,
mas R.C. Pinto começou a chamá-la de prostituta e as duas travaram luta corporal na qual ela
saiu lesionada em sua orelha esquerda131. M.N.G. Pereira, paraense, casada, 40 anos de idade,
sabendo ler e escrever, disse que estava separada havia um ano de seu marido e que desde
então era destratada por R.C. Pinto “que a taxa[va] de vagabunda, mulher sem respeito, e
ainda propala[va] que anda[va] mantendo relações amorosas com o amante de R.; que, passou
também a ofender a reputação de suas filhas”132. Nota-se que a rixa entre ela se dava
principalmente pelos relacionamentos amorosos que ambas tinham. M.N. acusava R. de ter
um caso com seu ex marido, por sua vez, R. acusava M.N. de se relacionar com seu amante e
ainda a insultou com termos como “vagabunda”. Independentemente dos motivos que
levaram essas vizinhas a brigar e se ofender mutuamente, observamos que “ter um amante” ou
“estar separada” rendia comentários e julgamentos sobre a vida particular dessas mulheres.
Na madrugada do dia 15 para o dia 16 de setembro de 1974 em uma festa de
aniversário no bairro do Pacoval. M.B.F., cor morena escura, solteira, doméstica, que
trabalhava em casa de família, amapaense, sabendo ler e escrever, 34 anos, agrediu B.C.S.
com uma gilete. B.C.S., amapaense, solteiro, 25 anos de idade, carpinteiro, sabendo ler e
escrever, declarou que foi a uma festa de aniversário próximo a sua casa e dançou com uma
mulher desconhecida,

Mas por motivos que desconhece a mesma achou que não deveria mais
dançar com o declarante, indo postar-se no pátio da casa; que o declarante
não satisfeito com a atitude da dita mulher dissera que já que ela não queria
dançar que fosse embora; que ato contínuo a referida mulher lhe segurou
pela camisa, tendo o declarante de boas maneiras pedido para ela lhe largar,
mas devido à insistência da mulher em segurá-lo, aplicou-lhe um empurrão e
como ela estivesse bem segura em sua camisa, resultou irem ao chão; que
logo chegou alguns colegas do declarante que lhe tiraram de sobre a referida
130
AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 6.
131
AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 9.
132
AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 10.
54

mulher e nessa ocasião um deles lhe advertiu que estava cortado no braço
direito e que foi logo constatado pelo declarante que a seguir o declarante
constatou também estar com um outro ferimento um pouco abaixo da
omoplata, lado esquerdo que o declarante não pode precisar qual o tipo da
arma utilizada pela dita mulher na prática do delito; que nos dois ferimentos
sofridos o declarante sofreu dezoito pontos.133

A acusada, por sua vez, declarou que foi à festa a pedido de uma de suas filhas e foi
tirada para dançar por B., relutou de início

Mas após B. lhe puxar bruscamente pelo braço e dizer que pra ‘puta’ não
tinha vez e para evitar maiores problemas saiu para com ele dançar muito
embora contra sua vontade; que durante aquela parte B. começou a se
exceder, chegando ao ponto de no meio da sala en franco desrespeito aos que
alí se encontrava, apalpar as nádegas da declarante, com o que não ficou
satisfeita; que em decorrência desse fato a declarante saiu da sala ficando no
pátio da casa a espera da filha, quando de sí se acercou B. e à declarante
dissera que se não queria dançar que fosse embora, sem responder qualquer
palavra foi por ele esbofeteada e chutada pelo dito individuo ocasionando
com isso a declarante ser jogada ao chão; que a declarante quando se
levantava foi novamente pisada por B., desta feita na altura da barriga, sendo
outra vez jogada ao chão, disso se aproveitou B. para ficar sobre a declarante
lhe esmurrando, por diversas partes do corpo; que a declarante ao ser
duramente castigada pelo citado indivíduo tirou do bolso do vestido uma
gilete e com esse instrumento recorda de ter cortado o citado indivíduo por
mais de uma vez, não podendo afirmar se acertou todos os golpes e nem os
locais atingidos; que B. vendo-se ferido deixou a declarante, ali se
demorando um pouco para depois se retirar; que mesmo batida como estava
não procurou a Polícia, preferindo silenciar o fato, pois desde esse dia ficou
na casa de sua patroa e somente ontem, foi que apareceu em sua residência;
que a declarante sabia que a Polícia andava a sua procura, porém, temia se
apresentar, o que só o fez nesta data que a declarante esclarece que nunca
teve nada com aquele individuo; que a declarante esclarece mais que nesta
Delegacia não sofreu nenhuma coação por Parte da autoridade que lhe está
inquirindo; que não está arrependida de haver cortado o citado B.; que a
declarante esclarece ainda não ser dada ao uso de bebidas alcoólicas e por
esse motivo estava seu senso normal. E mais não disse.134

Esse caso nos traz diversas informações que merecem destaque. No Boletim Individual
de M.B.F. consta que ela é de cor branca, embora no seu Auto de Qualificação seja declarada
enquanto morena escura, ou seja, negra. Já no Boletim de Vida Pregressa do Indiciado é
qualificada como parda. Esses desencontros de informações são comuns nos processos
judiciais, mas apesar dessa imprecisão podemos concluir que M.B.F. era uma mulher
racializada, uma mulher negra. Ela tinha como recreações preferidas festas dançantes e o
lugar que mais frequentava era salões de festas. Uma mulher solteira com filhas que tinha

133
AFCM, Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 5.
134
AFCM. Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 10.
55

festas e danças como principal lazer e andava com uma gilete no sutiã para se defender de
inconvenientes e de situações de perigo como aconteceu nessa noite. A abordagem de B.C.S
já foi desrespeitosa e para evitar problemas, M.B.F. anulou sua própria vontade em favor das
vontades de um homem que ela não conhecia. Os depoimentos dos envolvidos tem diferenças,
mas o relato de M.B.F. é o que mais condiz com as declarações feitas pelas testemunhas.
Assim, M. estava se defendendo de um espancamento causado porque B. não aceitava ser
recusado, pois para ele, não era concebível que uma puta, como ele a descreveu, lhe negasse
uma dança, a partir do que passou a agir violentamente contra ela. O comportamento
misógino e machista de B. pode ser justificado por ele ver M. como uma prostituta, o que
acentua seu ódio, e pelo fato de desprezar mulheres, independente da profissão ou da forma
que ele as enxergava. O processo prescreveu em 1981.
Percebemos os xingamentos eram recorrentes nos inquéritos e processos criminais.
Uma ofensa à honra dessas mulheres era associá-las à figura da prostituta. Chamar uma
mulher de “puta”, “casseteira”, “putinha” era uma forma de desqualificá-la e diminuí-la, é o
momento em que uma mulher honesta ultrapassa a fronteira e se torna (na representação) uma
mulher desonesta.
Era esperado que as jovens pobres amapaenses não frequentassem festas, não
trabalhassem fora de casa e nem andassem nas ruas sozinhas, mas elas ultrapassavam
cotidianamente esses limites de comportamento para assegurar a sua sobrevivência, no caso
do trabalho, e para ter com o que se divertir, no caso das festas. Então, como consequência,
quando precisavam da Justiça e da Polícia, o seu comportamento e o que a sociedade pensava
delas era o que impedia que elas não “desfrutassem” da proteção do Estado. Ademais, os
bordéis ou prostíbulos foram claramente demarcados como lugares indecorosos, sujos e
desorganizados. As mulheres frequentadoras à maioria desses ambientes não eram as senhoras
e senhoritas delicadas e frágeis de família, mas sim as prostitutas habituadas a ouvir todo tipo
de vocabulário vulgar, especialmente vindo de homens.
A prostituição nesse período era tida como uma doença social. A prostituta era
percebida como uma mulher cuja formação moral era falha, porque a sociedade em geral e as
famílias em particular estavam falhando na educação de seus filhos e filhas. Podemos
perceber que houve certa cooperação entre o Estado e a Igreja Católica para formar
profissionais de segurança com conhecimento sobre a prostituição e suas causas, para que eles
pudessem educar jovens meninas sobre o assunto. No entanto, isso estava muito mais
direcionado a mulheres que estavam na Igreja ou em comunhão com grupos religiosos,
aquelas que já estavam “perdidas”, mesmo que não fossem prostitutas, não eram incluídas
56

nessas ações. Essas mulheres de moral desviante eram consideradas inferiores e se referir a
uma mulher como prostituta significava muito mais do que falar sobre a profissão de fato,
mas sim falar sobre o comportamento, sobre a honra dessas mulheres. Além do mais, também
era uma forma de diminuir mulheres que estavam em situação de privação de liberdade, como
as presas políticas das ditaduras da América Latina, que eram violentadas sexualmente e de
forma verbal.

1.3 Trabalho doméstico e outros “ofícios honestos” das mulheres amapaenses


As mulheres do Amapá exerciam as mais diversas atividades, quase sempre
relacionadas ao trabalho doméstico. Não eram raros os casos em que as mulheres declaravam
ser domésticas ou “do lar” quando perguntadas sobre sua profissão. No entanto, o “serviço
doméstico” podia ocultar outras atividades, como a prostituição. Algumas mulheres exerciam
o meretrício junto com o trabalho de doméstica, eram somente meretrizes ou haviam sido
prostitutas em algum momento e tinham passado a se dedicar somente ao trabalho doméstico.
Além disso, a maior parte das mulheres amapaenses iniciaram a sua vida no mundo do
trabalho com afazeres domésticos ainda na infância, seja na sua própria casa ou como
empregadas domésticas na casa de outrem. Muitas delas passavam a vida inteira como
trabalhadoras domésticas, enquanto outras mudavam de profissão no decorrer dos anos. Sobre
essa relação do serviço doméstico com outras atividades, a historiadora Rachel Soihet
pondera:

Uma série de dificuldades, porém, apresenta-se, quando da contabilização do


trabalho feminino. Por força da ideologia de que a função essencial da
mulher prende-se ao lar, muitas mulheres, mesmo exercendo uma outra
atividade, ao serem inquiridas, declaram apenas o exercício do serviço
doméstico, conforme foi por nós observado em alguns processos
criminais.135.

Soihet atribui a autoidentificação das mulheres como domésticas à ideologia


dominante de que a mulher deve se restringir ao lar, zelar pelos filhos e pelo casamento. Ela
também declara que muitas atividades femininas como lavagem de roupa, prostituição,
artesanato e pequeno comércio não constam em censos, sendo englobadas na categoria de
serviço doméstico, assim como trabalhos que não são remunerados.136 Nesse sentido, segundo
Cristina Wolff: “A categoria de ‘trabalho doméstico’ tem escondido, ao longo da história,
muitas formas diferentes de trabalho. Basicamente, designa um tipo de atividade necessária
135
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 169.
136
Ibidem.
57

para a vida, para a reprodução humana em seu sentido amplo; atividade que não é voltada
para o mercado”.137 Para esta autora, o trabalho doméstico é uma peça-chave para a
subsistência familiar e também para a relação da família com o mercado nos seringais do
Acre. De acordo com Wolff, quanto mais a mulher fizesse trabalhos como a costura, a criação
de animais e colaborasse com as atividades dos seringais, isso quando ela mesma não cortava
a seringa, mais borracha a família teria para vender e menos produtos precisaria comprar.138 E
mesmo assim, o trabalho das mulheres era considerado inferior ou não importante nos
seringais.
É um trabalho majoritariamente feminino e, de certa forma, há uma naturalização
dessa atividade como feminina. Soraia de Mello afirma que “a naturalização do trabalho
doméstico como função feminina se insere em um grupo de ideias a respeito de relações
sociais e morais que são comumente identificadas como conservadoras ou tradicionais”139, e
aponta que o movimento feminista conseguiu conquistas no que se refere à liberdade sexual e
aos direitos das mulheres, seja no trabalho, na saúde e na educação, mas ao que parece a pauta
do trabalho doméstico não acompanhou esses avanços.
Michelle Perrot divide as trabalhadoras domésticas francesas do pós-industrialização,
isto é, dos séculos XVIII e XIX, em três categorias: a dona de casa de origem humilde, a dona
de casa burguesa e a criada, atualmente definida como empregada doméstica.140 A dona de
casa da classe operária realiza todas as tarefas, desde a preparação das refeições à costura de
roupas da família, e também ganha dinheiro com compras e lavagem de roupas para a
vizinhança. Já a dona de casa burguesa, tem a responsabilidade de cuidar da casa, dos filhos e
dos criados. Quando essa mulher era da pequena ou média burguesia, poderia ter somente
uma criada, pois não ter criados significava perder status social. Algumas delas também
ajudavam os pobres e faziam atividades de caridade. Por último, as empregadas domésticas
eram remuneradas com casa e comida, o seu “salário”, que não era regular, e poderia sofrer
descontos, caso causassem algum dano às louças e roupas. Elas não tinham folga e seus
serviços eram frequentemente requisitados.
Já Chitra Joshi levanta aspectos do trabalho feminino na Índia e explica que trabalhar
fora de casa não era algo bem visto para mulheres de algumas regiões indianas e de

137
WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo:
Hucitec, 1999, p. 79.
138
Ibidem, p. 80.
139
MELLO, Soraia Carolina de. A questão do trabalho doméstico: recortes do Brasil e da Argentina. In: PEDRO,
Joana Maria Pedro, WOLFF; Cristina Scheibe; VEIGA, Ana Maria. Resistências, gêneros e feminismos contra
as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011, p. 71.
140
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 115.
58

determinadas castas, o que não significava que elas ficassem totalmente reclusas no espaço
doméstico. A autora ainda aponta que a crescente informalização do trabalho tem mostrado
como os limites do que é público e privado se confundem nesse país. Dessa forma, ainda que
as mulheres sejam empurradas pelo patriarcado ao âmbito doméstico e privado, as famílias da
classe trabalhadora buscam formas de superar esses limites para garantir a sua sobrevivência.
As mulheres se ocupam com a produção de bidis141 nas áreas rurais para vender a
comerciantes locais, enquanto os homens da casa estão nos espaços urbanos trabalhando em
fábricas ou outros serviços. Ela critica a historiografia indiana que define o dinheiro recebido
pelas mulheres como “suplementar” e dos homens como “principal”, mas também explica que
para a sociedade indiana o trabalho desenvolvido pelas famílias nas aldeias não é reconhecido
e nem considerado, ao passo que os ganhos do trabalho dos homens são festejados.142
Ângela Davis pondera que nas sociedades capitalistas, as donas de casa são eternas
servas de seus maridos e “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico
foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a
atividade assalariada capitalista”.143 Então, a dona de casa não tem prestígio nenhum com o
seu trabalho porque não é produtivo. Davis considera que as mulheres passaram a ser
consideradas como “guardiãs do lar”, mas isso entrava em contradição com as trabalhadoras
assalariadas brancas dos Estados Unidos, que só eram donas de casa em segundo plano. Além
das trabalhadoras negras escravizadas que trabalhavam na produção escravagista do Sul
estadunidense. Desse modo, a “dona de casa” é a mulher burguesa ou de classe média. Porém,
apesar da dona de casa ser um produto ideológico do capitalismo do século XIX e ter surgido
no meio da burguesia e das classes médias, se tornou um modelo de feminilidade
generalizante144, como toda ideia da classe dominante.
Eric Hobsbawm afirma que como o trabalho masculino não era suficiente para garantir
a sobrevivência familiar da classe trabalhadora, o trabalho das mulheres e das crianças era
primordial para o sustento das famílias. Na Inglaterra do século XIX, o trabalho feminino
existia, mas era invisibilizado pelos recenseamentos, principalmente o trabalho de mulheres
casadas, “visto que grande parte do trabalho pago feito por elas não seria declarado como tal
ou não seria diferenciado das tarefas domésticas com as quais não raro coincidia”.145 Assim, a

141
“Bidi = Tabaco seco enrolado numa folha de tendu, depois fumado” (ver: JOSHI, Chitra. Além da polêmica
do provedor: mulheres, trabalho e história do trabalho. Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 147-170,
nov. 2009, p. 156).
142
Ibidem, p. 153.
143
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 230.
144
Ibidem, p. 231.
145
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 280.
59

economia excluía as mulheres casadas porque somente eram considerados os ganhos em


dinheiro e o trabalho não-remunerado produzido no interior das casas não constava como uma
ocupação. Para Hobsbawm, houve uma masculinização do trabalho146, isto é, só as atividades
executadas pelos homens eram consideradas trabalho. Ao passo que na era do capital as
mulheres que trabalhavam e tinham seus ganhos financeiros fora do ambiente doméstico,
eram estigmatizadas.
Então o serviço doméstico se torna uma categoria que engloba vários tipos de
atividades desenvolvidas por mulheres e só é possível identificar qual a sua profissão de fato
se elas falam em algum momento ou se algum depoente nos dá essa informação. O trabalho
doméstico pode ou não ser remunerado, dependendo de sua configuração: ser doméstica
significa prestar serviços a alguém e/ou se dedicar aos cuidados de sua própria casa. Porém,
essa trabalhadora doméstica pode ser dividida em categorias marcadas pela classe. A dona de
casa das classes mais favorecidas não vai praticar as mesmas atividades da dona de casa da
classe trabalhadora. E a empregada doméstica é a única que vai exercer esse ofício de forma
assalariada.
Nos processos judiciais é frequente a presença de trabalhadoras domésticas. Afinal de
contas, a maioria dessas mulheres exercia de alguma forma atividades em ambiente
doméstico, fossem remuneradas ou não.
A meretriz Santinha, brasileira, amapaense, solteira, com 21 anos de idade, sabendo
assinar o nome, residente na vila de Porto Grande, começou a trabalhar em serviços
domésticos aos 10 anos de idade, profissão que manteve até os 17 anos quando
“amigou-se”147 e até o período do inquérito era meretriz. O boletim de informações sobre a
vida pregressa de Santinha não deixa claro se quando ela passou a viver junto com este
homem de nome desconhecido também iniciou o trabalho de meretriz ou se começou a
trabalhar no meretrício após a separação.148 Já Luziléia, brasileira, paraense, com 38 anos de
idade, analfabeta, de prenda doméstica, residente na avenida Almirante Barroso. Era dona de
uma casa alugada para meretrizes. O depoimento dela e das outras envolvidas no processo não
esclarece se ela era uma cafetina ou se apenas alugava os cômodos para as prostitutas, mas ela
se declarava como “prenda doméstica”, ou seja, a sua profissão estava ligada ao serviço
doméstico (ela pode se referir ao trabalho de manutenção de sua própria casa) e também tirava
o seu sustento dos aluguéis dos quartos da casa.149

146
Ibidem, p. 281.
147
Relacionamento informal, corresponde a uma união estável que não foi formalizada em cartório.
148
AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969, p. 15.
149
AFCM. Processo nº 2.465 de 21 de outubro de 1971, s/p.
60

Em dois processos criminais de sedução, figuram trabalhadoras domésticas. No


processo criminal n° 1.826 de 1968: M.N.B. Moreira, de 30 anos, R.S. Saraiva, de 38 anos e
M.D.S. de Souza, de 22 anos, se declaram como domésticas. No entanto, não é produzida uma
diferença quando elas declaravam que a sua profissão era “doméstica”, e não é possível
discernir quais eram donas de casa ou empregadas domésticas remuneradas. Já no processo nº
2.234 de 1970, é possível identificar uma empregada doméstica e uma lavadeira: F.T. Lima,
de 16 anos, era empregada doméstica e saía do trabalho à noite e o fato de andar sozinha abriu
precedente para que a sua honestidade fosse questionada; R.C. Fernandes, de 30 anos de
idade, era lavadeira e alternava sua residência entre a cidade de Macapá e o rio Macacoari.
Provavelmente, esta última também exercia atividades de extrativismo e agricultura na zona
rural.150
Os jornais Novo Amapá e A Voz Católica não reservavam seções e tampouco páginas
para publicar textos sobre as trabalhadoras domésticas pobres, fossem remuneradas ou não, do
Território Federal do Amapá. As donas de casa que apareciam no Novo Amapá eram as
esposas de políticos, militares e funcionários do governo territorial e frequentemente
apareciam acompanhando os maridos, ocasião em que era destacado o seu papel de mãe,
esposa, dona de casa e prestadora de serviços à sociedade. Este último se refere às ações de
caridade a crianças e famílias carentes. Essas mulheres das classes mais altas do TFA
certamente tinham empregadas domésticas em casa, então não se ocupavam em realizar as
tarefas domésticas e sim em gerenciá-las. Outros empregadores e empregadoras de
trabalhadoras domésticas seriam funcionários públicos. Para Sidney Lobato, “o crescimento
do número de funcionários públicos solteiros e de funcionárias públicas (enfermeira,
professoras e outras) que passavam boa parte do dia no trabalho externo ao lar criou uma
grande demanda de empregadas domésticas”.151 O autor explica que as trabalhadoras
domésticas eram meninas de 15 a 18 anos, algumas moravam com os patrões e contribuíam
com a manutenção familiar.
Outras trabalhadoras que apareciam eram professoras, inclusive como colunistas, e
profissionais da saúde. Em 1970, o periódico do governo do TFA destacou a estudante Maria
das Dores, estudante de Odontologia da Universidade Federal do Pará, que estava
colaborando com o Hospital Geral de Macapá durante a sua permanência na cidade.152 Ela

150
Sobre o campesinato amapaense na Ditadura empresarial-militar, ver: PEREIRA, Higor Railan de Jesus. O
chão do conflito: estado ditatorial, grandes projetos e campesinato na Amazônia amapaense (1978-1985).
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
151
LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá
(1944-1964). Belém: Paka-Tatu, 2019, p. 191.
152
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 5.
61

aparece no jornal porque é filha de uma “tradicional família amapaense”, como menciona o
colunista e chefe das oficinas do jornal, Wilson Sena. Com isso, é notável a clivagem de
classe no jornal. As mulheres que recebiam destaque eram de famílias “tradicionais” do TFA,
e não havia espaço para as trabalhadoras pobres nas páginas da imprensa oficial.
O jornal A Voz Católica, na coluna intitulada “Coluna da Mulher”, publicou diversos
textos de colunistas e transcrições de outros jornais ou revistas cristãs. Em uma das edições, a
colunista Maria Emília Jucá escreve sobre as novas definições das mulheres:

Um novo conceito de mulher

O mundo vê desaparecerem, aos poucos, os velhos preconceitos talvez que


pesavam sobre a mulher, limitando seus horizontes. E começa a aceitar,
embora ainda com certa relutância, a rebelião lenta que vem modificando os
antigos padrões sociais, a favor da igualdade intelectual dos sexos.

Segundo os velhos conceitos feminilidade era sinônimo de burrice. Ser uma


mulher verdadeira implicava unicamente em ser a boa esposa, a boa dona de
casa, o ser frágil e submisso, escrava absoluta do seu dono..

O pioneirismo quase heroico das primeiras profissionais abriu as portas da


realização para a mulher, desmentindo seculares convenções. Graças a isso,
hoje não cabem mais comparações de inferioridade ou superioridade entre os
sexos. A mulher é tão inteligente e capaz quanto o homem, está provado.

Como tal, ela tem obrigação de usar inteligência e capacidade. A nossa


época exige participação ativa de todas as pessoas capazes, sem distinção de
sexo. Progredir, realizar, são deveres de todos.

Por que a mulher deve omitir-se?

As desculpas de que adquirir cultura significa perder a feminilidade, ou a de


que ter uma vocação e uma profissão implica em negligenciar o lar, não
passam de cego apego as idéias do passado. É óbvio que a medida que for
mais culta e esclarecida, mais terá a dar a seus filhos, mais estará capacitada
a ser a companheira ideal.153

Jucá se refere não somente ao trabalho, mas também à educação feminina. Ao mesmo
tempo que celebra o desaparecimento gradual dos preconceitos contra a realização
profissional das mulheres, destaca que a educação pode auxiliar e melhorar a criação dos
filhos. Com isso, ela defende a dupla jornada de trabalho feminina. Afinal, trabalhar fora de
casa não impediria que as mulheres se dedicassem à família e aos filhos. Para a colunista, a
mulher frágil e submissa, restrita ao ambiente doméstico era parte dos velhos conceitos de

153
COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 428, 1969, p. 2.
62

mulher, pois o novo conceito refere-se àquela que se realiza intelectual e profissionalmente,
mas concilia seu trabalho e sua educação com os cuidados do lar e da família.
Houve uma certa mudança – ou um desacordo entre os articulistas – na opinião do
jornal católico sobre a mulher no mercado de trabalho na década de 1960. Sidney Lobato
explica que no início da década, o articulista José Benevides escreveu que a mulher
trabalhando fora do lar estava se desviando “dos desígnios divinos”.154 Para Benevides, a
mulher deveria se dedicar somente ao espaço privado, sendo mãe e esposa ou fugiria da “sua
verdadeira missão”.155 Como vimos, Emília Jucá não concorda com seu colega articulista. Em
contraponto ao que Benevides escreve sobre a verdadeira missão feminina, Jucá afirma que
essa mulher frágil e submissa que se dedica somente aos filhos e marido estava sendo
superada ou dando lugar a outra tão inteligente e capaz quanto o homem. O texto de Emília
Jucá também pode ser um demonstrativo de uma aceitabilidade maior das mulheres no mundo
do trabalho e de como a própria Igreja Católica estava lidando com essa mudança. Porém, não
podemos perder de vista que esta década foi marcada pela segunda onda do feminismo. Os
movimentos feministas ganharam visibilidade nos Estados Unidos e na França. Dentre as
reivindicações das feministas estavam o direito ao aborto, a luta contra a violência doméstica,
a igualdade entre homens e mulheres e a divisão das tarefas domésticas.156
Se faz necessário esclarecer que essas mulheres que estão entrando no mundo do
trabalho não são pobres e negras, pois estas já estavam inseridas nesse mundo havia muito
tempo. Como Ângela Davis aponta, as virtudes de “fraqueza feminina e submissão da esposa”
foram impostas às mulheres brancas de classes mais favorecidas, porque as mulheres negras
não se dedicaram somente ao trabalho doméstico, apesar de também executarem essa tarefa,
levando uma dupla jornada de trabalho, porque precisavam sobreviver.157
Da mesma maneira, as mulheres pobres do Amapá estavam longe de serem frágeis e
submissas. Se fosse preciso, as mulheres casadas assumiam a gestão da casa e do núcleo
familiar quando os maridos estavam impossibilitados e aquelas que eram solteiras, mas
precisavam sustentar e educar seus filhos, ocupavam-se com as mais diversas atividades
domésticas, de extrativismo e comércio, por exemplo158. Joshi pondera que quando as
mulheres exercem um trabalho remunerado, elas atingem um maior grau de liberdade pessoal

154
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 203.
155
QUERES casar? Prepara-te. A Voz Católica, nº 19, 1960, p. 4.
156
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História (São
Paulo), v. 24, p. 77-98, 2005, p. 79-81.
157
DAVIS, Ângela. Op. Cit., p. 232.
158
Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Senhoras das casas e das ruas: o cotidiano das trabalhadoras. In: Op. Cit.,
2019.
63

e de poder de contestação na economia familiar, porque assim elas poderiam proibir os


homens de gastar o dinheiro do trabalho delas com bebida e até questionar a autoridade
masculina deles em determinadas situações.159
A Icomi-Notícias reservava uma página às mulheres moradoras das vilas de Serra do
Navio e Amazonas. A “Femina” era uma coluna da revista que tratava dos assuntos
“femininos” ou domésticos e que foi veiculada durante o primeiro ano de circulação do
periódico. A coluna dava dicas de culinária, limpeza, lavagem de roupas, costura, truques de
beleza e artesanato. Nela conseguimos observar o que a revista considerava assunto de
mulher, já que eram as donas de casa que deveriam zelar pelo lar da família. As mulheres que
apareciam dando dicas de culinária e receitas como maniçoba, pato no tucupi e biscoitos de
castanha do Pará, eram esposas de funcionários da Icomi. Como Maria de Nazaré Vianna,
esposa do funcionário da contabilidade, Carlos Alberto da Cruz Vianna, que inaugura a sessão
“Cozinha de Icomi Notícias” com receitas culinárias. A revista fez questão de enfatizar que
Maria de Nazaré tinha muita habilidade na cozinha e outras qualidades que a transformaram
em uma excelente anfitriã. Para provar as habilidades dessa dona de casa, o periódico pediu
para ela posar para a foto em frente ao fogão.160
Na edição de nº 18, a trabalhadora da coluna “Em destaque” é a amapaense Claudethe
Silva. Ela começou a trabalhar na companhia como atendente hospitalar. Para a
Icomi-Notícias, nesse degrau inicial da carreira ela era capaz de “amenizar com seu sorriso as
dores dos doentes e necessitados”.161 Depois formou-se como auxiliar de Enfermagem e
continuou prestando serviços à Icomi. Ela era solteira, mas vivia com sua mãe. A revista se
deteve a abordar sua vida profissional e os momentos de lazer de Claudethe, sempre
enfatizando o seu perfil de mulher com simpatia e alegria para com chefes e colegas.162 Perrot
(2007), argumenta que, até as décadas de 1980 e 1990, era esperado que as mulheres
prestadoras de serviços do setor terciário ocupassem cargos que fossem marcados pelas
características domésticas e femininas. Dentre as características femininas, ela destaca “o
devotamento, a prestimosidade, o sorriso” como qualidades importantes, justamente
predicados que a revista destaca como essenciais para uma trabalhadora da empresa.

159
JOSHI, Chitra. Op. Cit.
160
FEMINA. Icomi-Notícias, nº 02, 1964, p. 19.
161
EM DESTAQUE. Icomi-Notícias, nº 18, 1965, p. 21.
162
Sobre as trabalhadoras da Icomi, ver: SOUSA, Rômulo. Experiências femininas nos mundos do trabalho de
Serra do Navio e Vila Amazonas (1960-1985). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Regional), Universidade Federal do Amapá, 2018 e MATOS, Marlos Vinícius Gama de.
Modernização e condições de labuta na Amazônia Setentrional: força de trabalho, acidentes e doenças tropicais
na gênese de um projeto de extração mineral no Amapá (1948-1956). Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
64

Imagem 2. Claudethe na Coluna “Em destaque”.

Fonte: Icomi Notícias, 1965.

As trabalhadoras do Amapá assumiram diversas funções para garantir a sua


sobrevivência e a sobrevivência familiar. Os discursos dos jornais amapaenses, na década de
1960, parecem dar sinais de um início da aprovação do trabalho feminino. Mas, as mulheres
ainda precisavam lidar com julgamentos sobre o tempo que passariam fora de casa e em que
não se dedicariam aos cuidados domésticos. O trabalho doméstico foi o primeiro trabalho das
mulheres pobres do Amapá, ainda que não fosse remunerado. Para ex-prostitutas, se tornar
doméstica após o abandono do meretrício, significava romper o limite de ser uma mulher
desonesta para entrar no limite da mulher honesta. Além disso, quando a real profissão dessa
mulher não era considerada honesta, ela poderia se declarar doméstica, dona de casa ou de
prendas domésticas para se desviar de possíveis julgamentos de autoridades policiais ou
judiciais.
Para as mulheres pobres, ter uma renda não significava somente uma autonomia em
relação aos homens, fossem eles pais, irmãos ou maridos, mas também uma questão de
sobrevivência. Os ganhos das famílias pobres não dependiam unicamente do trabalho
remunerado masculino, pois as mulheres também tinham meios de conseguir dinheiro com
seus serviços, além do trabalho doméstico não-remunerado que é essencial para a subsistência
familiar. Quando não executavam atividades ligadas à domesticidade, era esperado que essa
trabalhadora reproduzisse no trabalho qualidades consideradas essencialmente femininas
como a dedicação, a simpatia e a delicadeza.
65

1.4 Crimes de Sedução em Macapá: Mulheres honradas ou mulheres de vida


questionável?
O jornal Novo Amapá, em edição de 1974, informa que o titular da Divisão de Polícia
Judiciária, Odir Macedo, fez um levantamento do índice de criminalidade do Território
Federal do Amapá. Nesse trabalho, foi identificado que os crimes mais recorrentes no
território eram em primeiro lugar os crimes de calúnia, injúria e difamação ou “fuxico de
vizinho”. Depois, vinham as lesões corporais. E, em terceiro lugar, o crime de sedução, com
cinco a seis casos diários. Macedo afirma que “não obstante a pobreza de recursos humanos e
materiais esses crimes não podem ser evitados”163, referindo-se, especificamente, aos crimes
de calúnia e sedução. O que se pode compreender desta afirmação, é que mesmo que a força
policial e os recursos financeiros não fossem precários, seria difícil conter esses crimes
porque eles não derivavam de um controle policial menos efetivo nas ruas.
O Código Penal de 1940 estabeleceu que o crime sexual de defloramento seria
definido como crime de sedução. A sedução estaria configurada em um duplo aspecto:
“quando o sedutor se aproveita da inexperiência da ofendida” e “quando o sedutor abusa da
justificada confiança que lhe deposita a vítima”164 com o objetivo de tirar-lhe a virgindade. No
entanto, como infere Karla Bessa, além desses itens era necessário que houvesse uma
comprovação de que os jogos de sedução entre a vítima e o acusado tiveram essas
características.165 Então a interpretação do que seria o crime de sedução poderia ser ampla e
subjetiva e não apenas quando envolvia uma promessa de casamento. Como Sueann Caulfield
escreve, “a lei estava mais preocupada com a missão reprodutiva e moralizadora da mulher
que com seus direitos individuais”166, tendo em vista que os juristas acreditavam que uma
mulher desvirginada teria dificuldades de casar e formar família e mais facilidade de entrar
para a prostituição. Defendiam também que a punição para os defloradores deveria ser
exemplar porque evitaria novos delitos, evitando assim novas prostitutas. Já para Martha
Esteves, o controle moral ou sexual sobre as classes populares por meio dos processos

163
DELEGADO pesquisa índice de criminalidade. Novo Amapá, nº 1.740, 1974, s/p.
164
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p.
250.
165
BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos de sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas, Uberlândia, 1950 a
1970. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História). Unicamp, 1994, p. 121.
166
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., 253.
66

judiciais contribuiu não só para o controle da imoralidade, de amancebados e de filhos


ilegítimos, mas também para a formação de trabalhadores disciplinados.167
Cristina Cancela disserta que algumas meninas iniciavam sua vida sexual em festas
que muitas vezes acabavam nas chefaturas de polícia, em Belém do final do século XIX e
início do XX. Mas os encontros amorosos não estavam restritos ao tempo da festa, os
encontros cotidianos nas casas da menor ou acusado, eram mais recorrentes e eram cenário
comum de defloramentos:

Naqueles processos em que o namoro do casal era de conhecimento da


família da menor, há a referência ao fato de os encontros serem frequentes e
se realizarem na casa dos pais e/ou parentes e tutores da menor, à noite ou
em dias e horas corriqueiramente determinados.168

Os namoros oficiais estavam sujeitos à vigilância da família da adolescente, porém


havia momentos em que a família não acompanhava os encontros amorosos porque eles não
conseguiam vigiar todos os passos das meninas por causa do trabalho ou até mesmo por causa
de momentos de descanso e lazer.169 Foi o que aconteceu com M.L.M. Gama, brasileira,
amapaense, solteira, estudante, de cor morena, com 15 anos de idade, sabendo ler e escrever,
residente à avenida Diógenes Silva no Buritizal, que tinha permissão para namorar e liberdade
para dar passeios sozinha com o namorado, sem um acompanhante da família.170
No início do mês de agosto de 1967, a jovem e o rapaz J.F. Nunes, brasileiro, paraense,
19 anos, pedreiro, solteiro, instrução primária, residente à Avenida Central do Buritizal
iniciaram um namoro. Ele começou a assediá-la para manter relações sexuais, justificando
que iriam se casar. No final do mês, ele manteve conjunção carnal com ela. A mãe dela é
quem denuncia. M.N.B. Moreira, brasileira, amapaense, solteira, 30 anos de idade, sabendo
ler e escrever, doméstica, residente à avenida Diógenes Silva no Buritizal, conta que a
adolescente fora desvirginada havia seis meses pelo acusado, quando os dois mantinham uma
relação de namoro. Passados alguns dias, ele foi embora para Belém, regressando havia pouco
tempo, “tendo seduzido a menor a deixar a companhia de seus genitores, passando a viver em
concubinato”.171 Ela resolveu procurar as autoridades porque a filha fugiu com o acusado.
Como veremos adiante, os pais da ofendida já sabiam do seu desvirginamento. No seu

167
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor do Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
168
CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social).
Unicamp, 1997, p. 69.
169
Ibidem, p. 80.
170
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, s/p.
171
Ibidem, p. 4.
67

depoimento, fica claro que o seu desejo era de que o caso fosse resolvido com o casamento
para “que a ofendida não fique infelicitada e jogada no abismo da desonra”172, porém, o
escrivão registrou que o acusado tinha dito “que só se casaria para livrar-se da Justiça, e que
mesmo assim a declarante não se nega a fazer o casamento entre ambos para que possa dar
satisfação à sociedade”.173
Para Sueann Caulfield, a busca pela Justiça em caso de perda de virgindade era um
recurso comum tanto pelas jovens desvirginadas quanto pelos seus pais, tutores ou patrões,
onde a finalidade principal era o casamento. Os pais e a sociedade em geral acreditavam que
recorrendo à Justiça poderiam tornar os defloradores responsáveis pela honra de quem
desvirginaram.174 Percebemos no depoimento da mãe de M.L.M Gama, que não importava o
meio empregado para que houvesse o casamento, o importante era que a sua filha não ficasse
desonrada perante a sociedade e que o concubinato ou “passar a viver junto” não repararia a
honra da menor e da família.
Em seu depoimento, M.L.M. Gama afirma que desde o namoro com J.F. Nunes
“sempre tencionava casar-se consigo em face de nutrir grande paixão” por ele.175 Ela conta
que o desvirginamento se deu em data que não sabe precisar, quando saiu para passear com o
mesmo sem o conhecimento de seus pais:

este a seduziu a manter relação sexual, pois assim apressaria logo o


casamento. Que de início a declarante não atendeu a pretensão de seu
sedutor, contudo por ser uma moça inexperiente e acreditando nas juras de
amor que lhe fazia seu galanteador, entregou-se quando foi deitada ao solo,
às proximidades de sua casa, por volta das vinte e uma horas e trinta
minutos, em local que se encontrava às escuras, [...] que, após o ato chorou
em face de sua situação de moça, sendo acalentada pelo seu sedutor, o qual
dissera-lhe que assumiria inteira responsabilidade pelo delito praticado e que
repararia o mal pelo casamento. [...] Que, a depoente deseja unir-se pelos
laços sagrados do matrimônio com Jacinto por dedicar-lhe grande afeição,
acreditando que possam constituir um lar feliz e venturoso. Que, nunca
conheceu outro homem sexualmente e sempre foi fiel ao seu ex-namorado e
autor de seu desvirginamento, pois acreditava que o mesmo cumprisse com
as promessas anteriormente feita de desposá-la.176

M.L.M. Gama traz em seu depoimento diversos elementos do significado da


virgindade e do casamento para ela. Primeiro, a perda da virgindade para mulheres honradas
significaria “apressar o casamento” para que ela e sua família não ficassem com a honra
manchada. O casamento também poderia ser interpretado como o desligamento dessa menina
172
Ibidem.
173
Ibidem.
174
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.
175
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 6.
176
Ibidem.
68

com a sua família enquanto filha, para que ela formasse a sua própria família como esposa e
mãe, já que esse era o propósito das mulheres honradas e da família segundo os preceitos
cristãos e do próprio Estado. Segundo, identificamos a presença do amor romântico, por ela
“dedicar-lhe grande afeição” acredita que teriam um “lar feliz e venturoso”, mais uma vez
reproduzindo os discursos dominantes que eram esperados. Claro, que o depoimento da
vítima não foi transcrito da forma como ela falou, passando primeiro pela impressão do
escrivão, que escrevia com a norma culta e com termos técnicos. Com isso, perdemos os
“textuais”, mas essa é uma característica das fontes judiciais. E a adolescente também poderia
utilizar esses discursos a seu favor, para que a Justiça entendesse que o seu comportamento e
a sua moral eram merecedores de “reparos” por meio da lei177.
Isabel Silva, nos traz um novo ponto de vista. Ela argumenta que as jovens
defloradas/seduzidas em Manaus, entre os anos de 1932 a 1962, se colocam como submissas e
apaixonadas para justificar que cederam ao sexo para satisfazer à vontade de seus namorados.
Desse modo, elas anulam o prazer ou a vontade delas próprias de estar com seus parceiros
relações sexuais com a finalidade de conseguir o casamento.178 Para Silva, as mulheres
populares conheciam bem o padrão de comportamento esperado, por mais que muitas vezes
as suas vivências não permitissem que elas atendessem a eles.179
O exame de conjunção carnal foi realizado e atestou o desvirginamento. Foi anexado
ao processo o registro civil da vítima para atestar que era menor de idade, além de um
atestado de pobreza da mãe da vítima, no qual o delegado registrou que M.N.B. Moreira era
pobre no sentido da lei.
A testemunha R.S. Saraiva, brasileira, paraense, casada, doméstica, 38 anos, residente
na principal rua do Buritizal s/n, sabendo ler e escrever, era vizinha da família e alegou que a
adolescente tinha comportamento exemplar, sendo uma filha obediente, saindo apenas
acompanhada da família ou de pessoas de confiança e que “lamenta o fato por considerar ser a
moça em tela uma jovem que mereceria ter encontrado melhor sorte, e, não a que encontrou
por ser Jacinto um desocupado, não arcando nem a responsabilidade de sua própria
subsistência”.180 A segunda testemunha, também vizinha da família, M.D.S. de Souza,
brasileira, paraense, casada, doméstica, 22 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente à
rua principal do bairro do Buritizal, disse que “conhece a referida menor desde a infância, e

177
Ver: BESSA, Karla. “Virgens” em apuros: o casamento não vingou! In: Op. Cit., p. 87-169.
178
SILVA, Isabel Saraiva. Mulheres impressas: amor, honra e violência no cotidiano das mulheres em Manaus,
1932-1962. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Amazonas, 2016, p. 60.
179
Ibidem, p. 63.
180
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 10.
69

com a idade que possui hoje, sempre a admirou por sua qualidade de moça comportada e de
bons costumes sendo dedicada filha de família”.181 A concepção de que o homem deve ser o
provedor do lar e que uma moça de comportamento exemplar mereceria encontrar um marido
que pudesse arcar com o seu sustento é nítida no depoimento de R.S. Saraiva.
O acusado assumiu a responsabilidade pelo desvirginamento da vítima, mas não
desejava unir-se com ela pelos laços sagrados do matrimônio porque “quando após o delito ter
seguido para Belém do Pará, esta passar a namorar com outros jovens, segundo informações
que obteve quando regressou a esta Capital após uma ausência de seis meses. Que, presume
ter a mesma mantido relação sexual com outras pessoas que a mesma namora”.182 Ele conta
uma outra versão sobre o encontro que teve com a vítima quando regressou à Macapá. Afirma
que, nessa ocasião, a menor se queixou de maus tratos por parte do pai, porque ele soube do
romance amoroso entre os dois. E, para atender a um pedido dela, ele a levou para uma casa
no mesmo bairro, mas sem manter relações sexuais com a mesma. No dia seguinte, ele entrou
em contato com o genitor dela, que estava em sua busca, e ela voltou para a casa de seus pais.
Disse ainda que “lamenta não amar a mesma, pois quando a conheceu e seduziu, apenas tinha
poucos dias de namoro, sem contudo dedicar-lhe nenhuma afeição, apenas desejoso de
satisfazer suas paixões eróticas, atendendo aos desejos que Maria demonstrava em ser
possuída pelo mesmo”.183 Para J.F. Nunes, o namoro com M.L.M. Gama não tinha fins de
matrimônio, e mesmo assumindo ser o autor do desvirginamento da vítima, ele alega que ao
desvirginar a menor, estava atendendo aos desejos dela. Outro aspecto interessante a ser
observado é o fato do pai de M.L.M. Gama já saber do desvirginamento e de maltratá-la por
causa disso. Cancela argumenta que procurar a Polícia ou a Justiça pode ser o último recurso
de pais que antes poderiam ter tentado dialogar com o acusado ou até mesmo feito ameaças.
Porém, quando o acusado fugia ou negava casar-se com a vítima, eles recorriam à delegacia.
Para a autora, por vezes os pais sabiam que suas filhas não eram mais virgens, mas mesmo
assim não deixavam de percebê-las como honestas, o que era um sinal de que para eles as
concepções de namoro, casamento ou honestidade eram mais elásticas do que nos padrões
generalizantes de honestidade do projeto higiênico e moralizante das elites e presentes nos
discursos de delegados, advogados, promotores ou juízes.184
Em relatório, o delegado Oscar Ferreira Lima afirma que:

181
Ibidem, p. 11.
182
Ibidem, p. 13.
183
Ibidem.
184
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 90-92.
70

A vítima manteve-se em silêncio, até o mês de janeiro do corrente ano, em


virtude de ter enganado a mesma com promessa de casamento aparato de sua
sórdida atitude, depois de ter o acusado se evadido para Belém do Pará,
regressando a esta Capital sem que a ofendida suspeitasse que o autor de seu
desvirginamento queria apenas ganhar tempo. [...]
Realmente, em agosto do ano passado, J.F. NUNES, sem qualquer motivo
plausível resolveu evadir-se desta Capital, deixando sua vítima ao léo, na
esperança de que, M.L.M. GAMA mantivesse relação de namoro com outros
jovens, e, daí, ser possuída sexualmente pelos mesmos quando no seu
entender poderia ficar livre do delito cometido.
[...] Nem ele mesmo alega em suas declarações qualquer falta cometida por
sua vítima que viesse comprometer posteriormente sua vida conjugal.185

O delegado demonstra estar a favor da adolescente, e o andamento do inquérito


concorreram para isso. Todos os depoimentos estavam alinhados à defesa da vítima, inclusive
o do acusado. Mesmo que ele tentasse questionar a honra de M.L.M. Gama em determinado
momento, o delegado entendeu que esta havia sido somente uma forma de procurar se livrar
da pena do crime ou do casamento.
Contudo, em audiência no ano de 1969, a vítima muda o seu depoimento. Inclusive,
trechos do seu relato sobre o desvirginamento. Dessa vez, ela conta:
que na data da denúncia, foi até ao arraial juntamente com outras amigas que
também se acompanhavam de seus namorados e, de regresso, ficou mais
para traz, distanciando-se das companheiras; que isso ocorria contra a sua
vontade e, por insistência do acusado, seu namorado; que quando se
encontravam em uma baixa atraz do grupo ALEXANDRE VAZ TAVARES,
seu namorado aproveitando-se da situação de se encontrarem distante dos
demais, agarrou a declarante, tapando-lhe a boca e tolhendo-lhe os
movimentos, rasgou-lhes as roupas após derrubá-la ao chão, deflorou-a […].
Que foi a primeira vez que manteve relações sexuais, sendo certo que depois
de algum tempo - novamente manteve relações com o acusado. […].186

Em resposta ao defensor do acusado, ela disse “que depois dos fatos da denúncia, a
declarante ainda manteve relação uma vez com o acusado e posteriormente com outros, sendo
que agora porém, está em casa de seus pais, não estando procedendo mal”.187 Não é sabido o
motivo pelo qual a adolescente mudou o seu depoimento. A nova narrativa menciona outro
local, e agora não se tratava mais de um passeio de namorados próximo de sua casa e sim de
um arraial. Além disso, dessa vez a depoente acrescenta que o autor de seu desvirginamento
usou de violência para tal ato. Essa mudança de depoimento abriu margem para a defesa de
J.F. Nunes contestar o comportamento da vítima em abril de 1970 por meio de um
requerimento. O defensor, dr. Edimundo de Souza Moura, disse que a vítima contava duas
versões para o ato e que “esta menor tem verdadeiro pendor para o teatro, pois é uma

185
AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 16.
186
Ibidem, p. 31.
187
Ibidem.
71

verdadeira artista”.188 O requerimento ainda destacou que a jovem tinha mantido relações
sexuais com outros:

Qual o brasileiro, dentro desta formação que temos, que vai casar com uma
mulher que confessa ter mantido relações com outros? Por que não foi fiel ao
namorado e só depois de manter relações sexuais com outros veio apresentar
queixa à Polícia? Por que escondeu da polícia a verdade ao alegar que tinha
apenas conhecido um homem e que era o réu?189

E ainda disse que como o réu era menor de idade, precisaria de um curador, o que não
houve e ele ficou “a mercê da Polícia, que o fez assinar um depoimento em que declara
assumir inteira responsabilidade pelo desvirginamento da jovem.”.190 Desse modo, o defensor
tenta anular a declaração do réu na qual ele assume que desvirginou a vítima. E em seguida
acrescenta:

As testemunhas arroladas pelo Dr. Promotor, são as mesmas levadas pela


menor a polícia e limitam-se a dizer que a menor é uma moça comportada,
saindo pouco de casa. Ora, ora comportada, saindo pouco de casa e vivia
tendo encontros com rapazes para manter relações sexuais. Ainda bem, pois
em caso contrário, seria um caso de escândalo público.191

Mais uma vez ele questionava o comportamento de M.L.M. Gama para tentar livrar o
réu da pena. Esteves argumenta que a grande questão dos advogados era provar que as vítimas
eram desonestas e imorais, então não tinham os atributos requeridos para serem protegidas e
apoiadas pela Justiça.192 Do mesmo modo, Isabel Silva explica que as vítimas dos crimes de
defloramento/sedução eram o foco dos julgamentos. A conduta moral das vítimas e até das
mulheres de suas famílias eram analisadas nas investigações.193 Mas, em maio de 1970, o
representante do MP, Promotor Edson Gomes Correia, afirmou em despacho:

1) “que o réu afim de evitar a aplicação da pena, viajou para Caiene” [...]; 2)
“Que o réu não compareceu para o interrogatório perante o juízo da
Comarca; 3) que, nestas condições, hão de ser tomadas como verídicas as
declarações prestadas perante a autoridade policial; 4) as testemunhas
afirmam a existência do namoro entre a vítima e o acusado, bem como ser a
menor moça recatada e de bons princípios morais; 5) que o denunciado
assumiu total responsabilidade pelo ato delituoso.”194

188
Ibidem, p. 41.
189
Ibidem.
190
Ibidem.
191
Ibidem, p. 42.
192
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 39.
193
SILVA, Isabel Saraiva. Op. Cit., p. 55.
194
AFCM. Processo nº 1.826 de 1968, p. 43.
72

Sendo assim, solicitou que o denunciado fosse condenado às sanções do artigo 217 do
Código Penal. De fato, J.F. Nunes não compareceu a nenhuma audiência porque não havia
sido encontrado. Os oficiais de Justiça, tentando localizar o acusado para as audiências,
obtinham informações de que ele estava em Caiena, na Guiana Francesa, e nas outras
tentativas as informações eram de que achava no município de Amapá ou em Santana. Essa
pode ter sido uma estratégia utilizada pelo acusado para não casar com a vítima e para não
cumprir a pena do crime de sedução, esperando que o caso fosse arquivado.
Cancela também destaca que os namoros às escondidas não eram raros com as
meninas da classe trabalhadora, visto que estas poderiam ter maior intimidade nos seus
relacionamentos do que as moças de elite. Mesmo que os discursos moralizantes fossem
generalizantes, as meninas pobres e suas famílias tinham uma moral mais elástica.195 Outro
exemplo dessa moral mais elástica da classe trabalhadora era o crime de sedução ocorrido em
agosto de 1969, no qual F.T. Lima, brasileira, paraense, 16 anos, doméstica, sabendo ler e
escrever, residente na Av. Anhanguera, no bairro Buritizal, fora desvirginada por I.T. Gurjão,
brasileiro, amapaense, solteiro, 19 anos, motorista, instrução primária, cor morena, residente
na Granja Santa Maria, bairro Buritizal. Segundo relatório do Delegado Oscar Ferreira Lima,
a vítima declarou ter sido desvirginada pelo acusado em 24 de agosto de 1969. Afirmou que
vinha caminhando de seu emprego para sua residência quando se encontrou com o acusado,
pessoa que não conhecia, mas que lhe falou em namoro e aceitou a proposta. Relatou que
continuou caminhando quando foi puxada pelo braço pelo mesmo, que a levou até uma casa
desocupada, tampou a sua boca e a violentou, jogando-a ao solo. Depois desse dia, ela ainda
manteve outras relações sexuais com ele. Mas, quando ele soube que ela estava grávida, não a
procurou mais e nem cumpriu a promessa de reparar o mal pelo casamento.
Em seu depoimento, o acusado I.T. Gurjão disse que já conhecia a vítima não só por
morar próximo a ela, mas porque já a tinha visto em festas no clube Treze de Setembro:

Que, o respondente a esse tempo servia na Primeira Companhia do


Trigésimo Quarto Batalhão de Infantaria, como soldado e andou escutando
diversos comentários a respeito de Francisca, que diziam não ser a mesma
mais virgem, tanto que alguns colegas do respondente diziam já terem
mantido relações carnais com a mesma. Que, assim, olhando-a como
meretriz […].196

As testemunhas de acusação todas ou eram ou haviam sido soldados da Primeira


Companhia do Trigésimo Quarto Batalhão de Infantaria – 34º BIS, homens que afirmavam

195
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 73.
196
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 11.
73

que haviam mantido relações sexuais com F.T. Lima antes do acusado ou que ouviram
comentários sobre o comportamento dela. Ele contou que o fato se deu na saída de uma festa
na sede do Treze de Setembro e que tinha encontrado com a vítima e uma amiga dela, quando
percebeu que ela estava se aproximando dele com intenções de “conquista”:

Embora não simpatizasse com a mesma, mas “para não passar por mole”
(textuais), convidou-a a manterem relações sexuais, após chegarem no
Buritizal e depois da outra moça se ter apartado deixando-os só. Que, o
convite na cópula foi logo aceito e ambos se dirigiram para perto da casa da
jovem, onde no campo e sobre a terra, mantiveram o coito carnal,
oportunidade em que o respondente verificou que, como aliás já tinha ouvido
falar, F.T. Lima, não era mais virgem.197

Ao final de seu depoimento, alegou que “admira-se bastante de estar sendo acusado
pela vítima, como autor de seu desvirginamento, quando a mesma deveria atentar para a
seriedade do assunto, deixando o culpado a vontade para acusar quem não cometeu o
delito”.198 Durante todo o seu depoimento, o acusado questionou a conduta de F.T. Lima e
destacou comentários de cunho sexual que supostamente ouvira de conhecidos sobre ela. Ele
fez isso para demarcar definitivamente que a vítima não deveria buscar reparações por meios
judiciais porque não era virgem, afinal frequentava festas sozinha e tinha uma vida sexual
ativa.
A testemunha F.P.M. Souza, brasileiro, amapaense, solteiro, 20 anos de idade,
mecânico, de instrução primária, residente nesta cidade à rua Treze de Setembro, bairro do
Beirol, relatou que, quando ainda fora soldado, havia mantido relações sexuais com F.T.
Lima, em novembro de 1969, por volta de 23 horas. Ele estava participando de uma festa
dançante no bairro Buritizal, na qual ela também estava. Ao final da festa, ao ver que estava
sozinha, dirigiu-se até ela e a convidou para manter relação sexual, “convite que foi aceito
sem qualquer relutância”.199 Adiante, ainda acrescentou que “por diversas vezes teve o ensejo
de ver a vítima andando sozinha alta hora da noite, andando pela rua ou em festas dançantes,
inclusive no Treze de Setembro Esporte Clube local impróprio para moças que se presam”.200
J.C. Nascimento, brasileiro, paraense, solteiro, 20 anos de idade, militar, residente na rua
General Rondon, s/n, bairro do Trem, relatou que nunca havia mantido relação sexual com a
vítima, mas que tivera oportunidade ao final de uma festa no Treze de Setembro. Relatou que
ao saírem da festa, foram para as matas do bairro do Buritizal, mas que aí não chegara a

197
Ibidem.
198
Ibidem, p. 12.
199
Ibidem, p. 14.
200
Ibidem.
74

consumar o ato. Disse também que a vítima era muito mal falada pelos soldados e que chegou
a vê-la próximo ao quartel, à procura de soldados: “O depoente tinha a mesma como
prostituta e justamente por isso ela depois passou a não mais ser aceita no Treze de Setembro,
embora ali seja lugar frequentado por [rasurado] e mulheres de vida duvidosa”.201
O primeiro disse que havia mantido relação sexual com F.T. Lima e o segundo alegou
que tivera oportunidade, mas não a consumara. F.P.M. Souza destacou os passeios noturnos da
vítima. Inclusive, os dois destacaram a presença dela em festas do clube Treze de Setembro,
sede de uma associação do bairro do Trem que, segundo eles, não era adequado para moças de
família. J.C. Nascimento ainda disse que para ele a menor era uma prostituta. O termo é usado
como adjetivo, foi uma característica atribuída à vítima porque os seus hábitos não eram
compatíveis àqueles esperados de moças honradas e era usado como uma forma de
desqualificar o depoimento dela. Para Cristina Cancela, “a imagem da mulher prostituída
estava também associada ao fato da menor frequentar locais públicos onde se concentravam
muitos homens”.202 Logo, identificar essa menina como prostituta era também uma maneira
de destruir a reputação dela diante da Justiça.
Ele concluiu acrescentando que a conduta de F.T. Lima era tão reprovável que nem
lugares frequentados por mulheres de vida duvidosa permitiam sua presença. Os dois
depoimentos são cheios de desqualificações da adolescente e de discursos moralizantes do
período. Como não é difícil de perceber, o comportamento da vítima era tido como
reprovável, mas o comportamento do acusado e das testemunhas não. Todos frequentavam os
mesmos locais, contudo, somente a presença de F.T. Lima era questionada em passeios e
bailes noturnos. Do mesmo modo, os homens poderiam se relacionar com quem quisessem
que não seriam menos honrados, porque a honra masculina não estava ligada ao aspecto
sexual, diferentemente da honra feminina. Esteves afirma que não importa se o homem
frequenta prostíbulos ou “locais suspeitos”, importa que ele seja trabalhador e tenha
comportamento exemplar no seu trabalho. Diferente das mulheres que são julgadas pelo seu
comportamento moral ou sexual.203 A autora ainda argumenta que:

As festas populares foram sendo consideradas bárbaras e vulgares por


médicos e políticos. As famílias precisariam relegar as festas de caráter
religioso, pois eram ocasiões em que se processava uma intensa
secularização dos costumes. Nessa medida, o que se poderia dizer a favor
das mulheres pobres que frequentavam aqueles locais e por vezes se dirigiam
às delegacias com o objetivo de denunciar um crime de defloramento ou

201
Ibidem, p. 16.
202
CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 110.
203
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 45.
75

estupro do qual tinham sido vítimas? Dificilmente conseguiriam reunir


provas que as caracterizassem como mulheres higiênicas, uma vez que o dito
lazer popular passava a ser considerado como nocivo à saúde do corpo
social.204

As festas religiosas ainda poderiam ser desculpadas, mas as mulheres que


frequentavam outras festas populares como o Carnaval não tinham a mesma “sorte”. F.T.
Lima foi julgada pelo seu lazer em um clube suburbano, frequentado pela classe trabalhadora
de Macapá que não usufruía dos clubes da alta sociedade amapaense, como o Esporte Clube
Macapá, o Círculo Militar ou o Santana Esporte Clube.
Por outro lado, a testemunha R.C. Fernandes, brasileira, paraense, casada, de 30 anos
de idade, lavadeira, alfabetizada, residente no bairro Buritizal em rua que não sabe o nome,
disse que conhecia F.T. Lima desde menina e que podia afirmar ter sido Isaac o autor do
defloramento da adolescente. Disse que a vítima era “moça de bom comportamento, que
quase não sai de casa, nem de dia e nem de noite, esclarecendo, que a vítima é sempre gabada
por suas patroas, já pela eficiência do trabalho e já pelo comportamento, tendo saído do
último emprego por causa do fato que lhe aconteceu”.205 R.C. Fernandes foi a única
testemunha favorável à vítima e pautou seu depoimento no trabalho e no bom comportamento
de F.T. Lima, trazendo qualidades que eram consideradas dignificantes para mulheres, nesse
contexto. Porém, o delegado afirmou que o depoimento de R.C. Fernandes, estava em
desacordo com os depoimentos das demais testemunhas, que eram unânimes em relatar sobre
as “andanças da vítima em festas de reputação duvidosa.206 Logo, o seu depoimento não foi
levado em consideração e não ajudou a vítima.
Martha Esteves destaca que as testemunhas dos crimes sexuais não eram requisitadas
para falar apenas sobre o que sabiam do crime, pois eram interrogadas sobre o que sabiam do
comportamento anterior das vítimas. Eram chamados a falar se as meninas andavam sozinhas
na rua, se frequentavam festas noturnas ou se tinham liberdades com namoros longe da
vigilância da família.207 Já Isabel Silva destaca que os denunciados agiam para que as vítimas
fossem vistas como “as mais públicas possíveis”208. Para isso, eles alegavam que estas
mulheres não eram mais virgens, tinham ex-namorados e até apontavam o trabalho delas
como um indicativo de que tinham muito contato com as ruas.209

204
Ibidem, p. 51.
205
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 17.
206
Ibidem, p. 22.
207
ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 42.
208
SILVA, Isabel. Op. Cit., p. 70.
209
Ibidem.
76

Em 02 de julho de 1970, em defesa prévia, o advogado José Newton Moutinho,


alegou que “a suposta vítima não foi de forma alguma seduzida pelo réu, pessoa a quem seu
capricho escolheu como ‘bode espiatório’ para reparar um delito que não praticou”. E que ela
é:

Acostumada às festas do Treze de Setembro, antro de meretrizes e de


mulheres de reputação duvidosa, estava habituada a ser acompanhada ao
término das festas para a prática de relações sexuais, assim ocorrendo com o
réu e com inúmeros rapazes [...], notadamente soldados da 1ª/34° BI, muitos
dos quais mantiveram relações sexuais com a suposta vítima antes da época
em que se disse desvirginada pelo réu. 210

Em audiência no dia 16 de março de 1971, a vítima afirmou que “nunca namorou


nenhum outro homem anteriormente ao acusado”. Disse que era virgem até esse dia. Em
resposta ao promotor, disse que tentou reagir, mas foi dominada pelo réu e o local onde
estavam era muito escuro e deserto. Em resposta à defesa do acusado, disse que nunca marcou
encontro com I.T. Gurjão e nem o conhecia, que após o desvirginamento ele prometeu
casamento e ela acreditou havia acreditado promessa, mantendo com ele outras relações
sexuais.211
Em um processo de estupro, F.S. Lopes, brasileiro, natural do Rio Grande do Norte,
casado, de 56 anos, comerciante, alfabetizado, autor da denúncia e pai de M.N.C. Lopes,
amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, declarou que:

Veio a ter conhecimento de que sua referida filha fora vítima de sedução e
desvirginada pelo representado [P.P.B], sob as ordens e responsabilidade de
qual fugira de casa para ir morar em um casebre na baixa do Remanso212, em
companhia de uma certa N. de tal, mulher solteira de vida irregular213.

A partir dessa declaração, podemos questionar sobre o que significava ser uma mulher
solteira e de vida irregular em Macapá. Aliás, ser solteira já poderia significar ter uma vida
irregular, afinal, se tratava de uma mulher que não estava casada e nem vivendo em
companhia de seus pais, já que a casa era dela.
M.N.C. Lopes, amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, residente à
avenida Coaracy Nunes, bairro do Trem, depôs que foi estuprada pelo acusado, P.P. Borges,
brasileiro, natural do Rio Grande do Norte, casado, 35 anos, comerciante, alfabetizado,
residente na avenida Padre Júlio s/n, bairro da Favela, em março de 1968, nas proximidades

210
AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 27.
211
Ibidem, p. 31.
212
A “Baixa do Remanso” corresponde atualmente a uma parte do bairro Santa Inês, em Macapá.
213
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, s/p.
77

do Hospital São Camilo. Ela afirma que ele a levou de carro e a ameaçou com um revólver,
cometendo, assim, o estupro e seu desvirginamento. Porém, ela continuou a ter encontros com
ele para manter relações sexuais no mesmo local por diversas vezes. Ela ficou grávida e com a
gestação avançada, o acusado deu uma quantia em dinheiro para ela alugar uma casa e
contratar uma mulher para lhe auxiliar. O escrivão não deixa explícito, mas acreditamos que
fosse para auxiliar em um aborto. Ela fugiu de casa e pediu abrigo a uma conhecida na baixa
do “Remanso”, depois o seu pai localizou o endereço em que estava.
P.P. Borges alegou que “não obstante ser casado, o respondente vez por outra mantém
relações sexuais extraconjugais com mulheres que comumente encontra fazendo
meretrício”214. Disse que manteve relações sexuais consentidas com a jovem e que ela não era
mais virgem nessa ocasião. No caminho de volta, perguntou se devia algo a ela e ela
respondeu que devia “só dez cruzeiros”. Ele então fez o pagamento de dez mil cruzeiros a
ela215. P.P.Borges relata que os outros encontros sexuais não foram cobrados, mas no sexto
encontro, M.N.C. Lopes cobrou a quantia de cinquenta cruzeiros novos, valor que não tinha e
disse que pagaria no dia seguinte. Ela então o ameaçou dizendo que, se não o pagasse, faria
um escândalo junto à família dele. Ele fez o pagamento no dia seguinte. Nessa parte do
depoimento, o acusado descreve uma relação de prostituta e cliente, relação com a qual já era
familiarizado. Ao contrário de muitas das mulheres citadas ao longo desse texto, sejam elas
vítimas ou acusadas, P.P.B. não se envergonha de sua infidelidade conjugal ou de estar em
companhia de meretrizes. Independente do período político ou social, aos homens é permitido
um comportamento fora daquele idealizado pelo Estado, o que claramente não acontece com
as mulheres, pois estas devem sempre estar atentas para não perderem a proteção da Justiça.
Três meses após conhecê-la, ela disse quem era o pai dela e ele disse em depoimento
que tinha muito apreço e amizade pelo referido homem porque era seu conterrâneo, mas
também ficou em choque com a informação, pois tomava a jovem como prostituta. Nesse
mesmo período, ela informou que estava grávida216 e ele negou que tivesse aconselhado M. de
N.C.L. a procurar um médico ou enfermeira para fazer o aborto, mas que deu uma injeção
para a vítima tomar, a pedido dela. Alegou que não poderia afirmar que o filho era seu, mas
poderia admitir pois havia mantido relações sexuais com ela.217 A amizade dele para com o
pai da vítima fez com que ele se surpreendesse com M. de N.C.L., pois aparentemente não
esperava que a filha de um conhecido seu fosse prostituta. Ele também tentara se desvincular

214
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
215
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
216
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 14.
217
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 15.
78

da acusação de aborto, alegando que a injeção para a menstruação descer foi ideia da vítima e
não dele.
Houve uma acareação e os dois mantiveram seus depoimentos e ela disse que recebeu
os 10 cruzeiros em novembro e não após a relação sexual e que ele tirou o revólver da cintura
e mostrou para ela. Essas foram as únicas mudanças, pois eles mantiveram seus depoimentos.
Uma testemunha disse em depoimento que ouviu da jovem que teria sido desvirginada por um
rapaz que agora morava em Belém. N. da S. Costa, mulher que abrigou a jovem em sua casa,
disse que ouviu dela que seu filho era de um caixeiro viajante que estava em Belém e que na
delegacia, na ausência do delegado, confessara para ela que não deveria ter acusado P.P.
Borges. Ainda sobre esse assunto, declarou que a menor afirmou que recebeu “CINQUENTA
CRUZEIROS NOVOS [de P.P. Borges] em pagamento de havê-la possuído sexualmente,
tendo a vítima dito ainda que se caso ele não lhe tivesse pago, ela o teria levado de encontro à
Polícia”218 N. Costa disse que quando vizinha da adolescente, viu ela chegando, após a
meia-noite com uma irmã, por duas vezes, acompanhadas de dois homens. Essa testemunha
fez declarações opostas ao que F.S. Lopes e M.N.C. Lopes haviam dito, por evidenciar uma
conduta da vítima que até então não havia sido apontada por outra pessoa que não o acusado.
Caulfield219, Cancela220, Bessa221, Silva222 e Esteves223 concordam que os acusados
faziam uso dos discursos que questionavam a honra das jovens que tinham liberdade para sair
de casa desacompanhadas, trabalhar, ir a festas e bailes de carnaval, para tentar se livrar da
pena ou do casamento, porque não teriam responsabilidade sobre a honra dessas mulheres e
nem de suas famílias. As meninas seduzidas eram de famílias pobres, com atestado de
pobreza emitido pelo delegado.
Em Macapá, como afirma Sidney Lobato, bem como em outras cidades do Brasil, os
ideais de moralidade e comportamento das filhas da classe trabalhadora eram elásticos.
Mesmo porque elas já estavam inseridas no mundo do trabalho como trabalhadoras
domésticas, seja em casa de outra família ou na sua própria. Então era comum que
circulassem pelo espaço urbano desacompanhadas, inclusive com maior liberdade para
frequentar festas e “depois de desvirginadas e abandonadas por namorados ou amásios,

218
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 09.
219
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.
220
CRISTINA, CANCELA. Op. Cit.
221
BESSA, Karla. Op. Cit.
222
SILVA, Isabel. Op. Cit.
223
ESTEVES, Martha. Op. Cit.
79

encetavam novos relacionamentos amorosos”.224 As meninas, vítimas dos casos de sedução,


são exemplos dessa moral elástica, o que é usado contra elas nos processos judiciais.
Cancela escreve que “deteriorar a imagem da menina ofendida foi um dos principais
artifícios usados por esses personagens masculinos para se eximir do possível julgamento de
procedência de um processo”.225 Do mesmo modo, Karla Bessa afirma que no decorrer do
processo, a mulher vai se tornando ré porque as suas atitudes e comportamentos passam a ser
descritos nos depoimentos das testemunhas e “no final do processo, aquela mesma ‘moça’,
inexperiente e frágil, se transforma numa ‘fêmea fatal’, capaz de usar não só o homem com
quem manteve relação sexual, como também o dispositivo legal em seu próprio
favorecimento”.226 Assim, os acusados buscavam maneiras de identificar no comportamento
das vítimas algo que estivesse fora do padrão moral do que seria uma jovem sexualmente
inexperiente e honrada, o que poderia descredibilizar o depoimento da vítima. Foi o que
aconteceu com F.T. Lima, pois testemunhas e acusado falaram que ela era alvo de
comentários masculinos por não ser mais virgem e por ter mantido relações sexuais com
alguns deles, que andava até tarde da noite em festas frequentadas por meretrizes e mulheres
de vida questionável e que não recusava propostas para “cópulas carnais”.
O estudo de Cristina Donza Cancela não está inserido no mesmo contexto histórico
dos processos judiciais de nosso trabalho, mas percebemos que alguns aspectos moralizantes
na sociedade brasileira são redefinidos com o passar das décadas, enquanto outros
permanecem e se tornam marca dos discursos de vítimas, acusados, testemunhas, delegados,
promotores e juízes. Dessa forma, Sueann Caulfield afirma que, na redação do Código Penal
de 1890, os juristas concordavam que, ao punir um caso de defloramento, não estariam
somente protegendo a marca fisiológica de uma mulher, mas princípios morais. A autora
argumenta que:

Os conflitos sobre como a lei deveria intervir nas relações familiares e sobre
a definição de honestidade e de virgindade resultaram da coexistência, na lei
e na jurisprudência, de duas noções divergentes sobre honra: a noção
patriarcal de honra como um recurso familiar e a noção burguesa de honra
como uma virtude individual.227

Os juristas republicanos concordavam que a honra era individual, mas não conseguiam
se desvencilhar da noção de honra patriarcal. Então fizeram uma combinação de teorias do
direito e análises sociais e científicas para definir os princípios de defesa e definição de honra
224
LOBATO, Sidney. Op. Cit., 210.
225
CRISTINA, CANCELA. Op. Cit., p. 109.
226
BESSA, Karla. Op. Cit., p. 154.
227
CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., p. 85.
80

sexual. No decorrer dos anos, a noção burguesa de honra como uma virtude individual ganhou
terreno, porém:

A intervenção do Estado paternalista nas relações familiares e sociais e a


reação dos juristas aos novos desafios às hierarquias de gênero e classe –
fizeram com que as interpretações jurídicas sobre a honra ficassem ainda
mais complexas durante o período em que, mais uma vez, se tentava
reescrever o direito penal brasileiro.228

No período anterior e durante o Estado Novo, já havia uma discussão sobre uma
adaptação do código penal para que ele se ajustasse aos tempos modernos. Essa modernidade
estava ligada ao desenvolvimento econômico e social, mas também significava a dissolução
da família e dos bons costumes. Para Karla Bessa,

A prática de vincular a honra feminina à sua conduta sexual seria, ao meu


ver, mais do que uma forma de controlar e confinar as mulheres ao âmbito
doméstico (do lar), representaria a medida da supervalorização do coito, e
junto a ele, a supervalorização do casamento como instituição saudável para
organizar e administrar as relações carnais e os descendentes oriundos
destas.229

Bessa infere que nos casos de sedução, mesmo após a leitura de muitos deles, não fica
claro em que momento houve um conflito que culminou na denúncia para a polícia. Daí
podem emergir diversas possibilidades.230 Aqui, fica claro que o momento que causou a
denúncia no processo n° 1.826 foi a recusa do acusado em casar, pois ele disse à mãe da
vítima que casaria somente se fosse obrigado pela Justiça. Já no processo n° 2.234 foi a
gravidez da adolescente. Pouco podemos falar sobre esse ponto porque o processo estava
incompleto e ele não continha o depoimento da vítima na delegacia, somente em juízo e
pouco se fala desse aspecto no decorrer do processo. Porém, pudemos identificar que essa foi
a causa da denúncia, porque F.T. Lima dissera que quando o acusado soube da gravidez,
passara a não mais procurá-la. Enquanto que o inquérito S/N teve como motivo de denúncia a
fuga da jovem da casa de seus pais por conselho de P.P. Borges, que além da acusação de
estupro, também foi acusado de tentativa de aborto, pois a adolescente estava grávida.
Percebemos que os casos têm diferenças, mas também semelhanças. No processo n°
1.826, a vítima tinha todas as testemunhas a seu favor, dizendo que era uma boa filha com
bom comportamento. Já a vítima do processo n° 2.234 tinha somente uma testemunha a seu
favor, alguém que o delegado nem levara em consideração, pois as demais testemunhas

228
Ibidem, p. 186.
229
BESSA, Karla. Op. Cit., p. 104.
230
Ibidem, p. 90
81

contradisseram seu depoimento e o da própria vítima, confirmando o relato do réu. No


primeiro caso, o réu assumiu que desvirginou a vítima, o que não aconteceu no segundo, em
que a vítima estava grávida. Infelizmente, o processo estava incompleto e não foi possível ler
a íntegra dos depoimentos da mãe e da vítima na delegacia. Os dois casos foram arquivados,
porque os acusados eram menores de idade quando da abertura do inquérito231.
No inquérito S/N, o acusado não assume o desvirginamento da vítima, mas disse que
poderia ser o pai da criança, porque mantivera relações sexuais com M.N.C. Lopes. O
representante do Ministério Público, Edson Correia pediu o arquivamento do inquérito pois
M.N.C.L. era uma “pseudo vítima” e o indiciado não havia cometido o crime232. Nesse caso, é
perceptível como as duas partes tentaram, cada uma a seu modo, convencer delegado e
promotor de Justiça a seu favor, mas as testemunhas acabaram resolvendo o imbróglio e P.P.B.
conseguiu escapar da acusação. Desse modo, M.N.C.L. certamente entrou no grupo de mães
que criaram seus filhos com a ausência do genitor.
Assim, a moral da classe trabalhadora amapaense, no período aqui analisado, era
flexível e as meninas já estavam inseridas no mundo do trabalho, o que lhes dava maior
liberdade para transitar pela cidade, inclusive em passeios a sós com namorados ou em festas
noturnas. As menores vítimas dos processos tornavam-se rés ao longo dele, porque o
comportamento delas é que definiria se eram mulheres honestas e honradas, e mereceriam
uma reparação, ou uma mulher de vida questionável que não teria apoio nenhum da Justiça.

231
Conforme o Código Penal Brasileiro: Art. 115 - São reduzidas de metade os prazos da prescrição, quando o
criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos ou maior de setenta anos.
232
AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 27.
82

II. A BOEMIA E A PROSTITUIÇÃO: AS FESTAS, OS MILITARES E A


CARTOGRAFIA DO PRAZER

As prostitutas tinham uma estreita relação com a boemia e com as festas. Nesses
locais, elas encontravam mais do que divertimentos, encontravam trabalho. O que para
homens e outras mulheres que frequentavam a noite amapaense era lazer, para elas era uma
oportunidade de conseguir os meios de sustento de suas famílias. Claro que elas uniam o útil
ao agradável e também usufruíam do entretenimento dos bares, botequins, boates e dançarás,
prova disso são as detenções por embriaguez. Elas não são as únicas protagonistas dessa
seção, porque não é possível negligenciar os homens, enquanto agentes importantes desses
lugares e dos casos documentados pela polícia e pelo poder judiciário.
O lazer noturno não foi marcado somente pelo entretenimento, pois nele ocorriam
muitas prisões de homens e mulheres que se embriagavam e promoviam desordens. Sem
contar os processos criminais com origem nas festas e nos botequins. Usando como fontes um
livro de ocorrências, processos criminais, jornais e uma entrevista, enfocamos as
contravenções penais de embriaguez e desordem que resultaram em prisões de meretrizes e de
homens trabalhadores em Macapá. Além disso, temos como objetivo analisar por meio das
páginas dos periódicos os bailes promovidos por clubes, procurando identificar quem eram os
seus frequentadores e, em contrapartida, identificar os habitués dos botequins. Nossa
finalidade é igualmente analisar as sociabilidades dos botequins e das ruas a partir do conceito
de masculinidade, atentando para a participação de soldados do Exército nos casos de
conflito. Por fim, vamos caracterizar os locais de prostituição no Amapá e pôr em evidência a
relevância deles para o lazer ocorrido no TFA, além de discorrer sobre os deslocamentos da
espacialidade da prostituição de Macapá.

2.1 Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais


Embriaguez, desordem, vadiagem eram contravenções penais já previstas no Código
Penal de 1890. No Estado Novo, com o Código Penal de 1940, criou-se uma lei própria para
esses “crimes-anões”233. Assim, foi instituída a Lei de Contravenções Penais234. Para Érico de
Loyola, essa lei proporcionou ao Estado brasileiro maior poder para controlar as “classes

233
DE LOYOLA, Érico Teixeira. Juristas em Lilliput: a interpretação da Lei das Contravenções Penais nas suas
duas primeiras décadas de vigência (1940-1950). Clio: Revista Pesquisa Histórica, v. 38, n. 2, p. 345-366, 2020,
p. 346.
234
Brasil. Decreto-Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
83

perigosas”235, a população negra e pobre das cidades, para proteger não só o que era
moralmente adequado às classes dominantes, mas também a propriedade privada. governos
agentes da Ditadura empresarial-militar também se se orientaram por essa ótica. Por isso não
eram raras as detenções de embriagados e desordeiros no TFA do período ditatorial.
Dentre todos os motivos de detenção em Macapá, “embriaguez e desordem” era o mais
comum. Como era uma contravenção penal, apenas uma noite ou algumas horas no “xadrez”
para cessar o efeito do álcool eram considerados punição suficiente. Não importava o gênero,
homens e mulheres eram igualmente detidos e colocados à disposição do delegado de plantão.
Por ser motivo de prisão recorrente, tal contravenção não podia ser ignorada. Núncia de
Constantino explica que no processo de modernização de Porto Alegre entre a metade final do
século XIX e início do século XX, a repressão policial sobre a classe trabalhadora era
motivada principalmente pela vadiagem, pela embriaguez, pelo jogo e pela prostituição. Para
isso, as forças policiais contavam com o apoio da imprensa, que reproduziu campanhas contra
essas práticas nos jornais236. Desse modo, “manter a ordem pretendida foi, portanto, tarefa
empreendida com tenacidade pelas autoridades. Estatísticas revelam a desordem como delito
de maior incidência, em sucessivos relatórios”237. Em seguida, vinham os delitos de
embriaguez e embriaguez e desordem.
No Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia esse delito foi, sem
dúvidas, o maior motivo de prisão. Para essa subseção, selecionamos apenas registros de
ocorrências de embriaguez e desordem que envolveram meretrizes, um total de 11
ocorrências. Em algumas edições do ano de 1970, o jornal Novo Amapá também nos fornece
dados do movimento policial. E em poucas edições do ano de 1974 esse periódico manteve
uma coluna denominada “Ronda Policial”, na qual são publicadas as ocorrências policiais
mais detalhadas.
As brigas de casal, quando ocorriam em via pública, comumente eram apartadas pela
patrulha da Guarda Territorial, ocasião em que os amantes eram levados à delegacia para ficar
à disposição do delegado de plantão. Assim aconteceu em três ocorrências envolvendo
meretrizes e seus amásios:

Embriaguez e Desordem: - Maria C. Leitão, amapaense, solteira, de 19 anos


de idade, meretriz e J. Pereira, vulgo Jagunço, foram detidos e conduzidos à
esta Permanência quando alcoolizados promoviam desordem no dançará

235
DE LOYOLA, Érico Teixeira, Op. Cit., p. 348-349.
236
DE CONSTANTINO, Núncia Santoro. A conquista do tempo noturno: Porto Alegre moderna. Estudos
Ibero-Americanos, v. 20, n. 2, p. 67-84, 1994, p. 80.
237
Ibidem.
84

“Merengue”. Foram recolhidos ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de


Plantão.238

Desordem: - Quando alcoolizados engalfinharam-se em luta corporal foram


detidos e conduzidos a esta Permanência J.C. Guedes, paraense, solteiro, de
21 anos de idade e sua amásia Jacira, meretriz de 20 anos de idade residentes
a Av. Mendonça Júnior s/n, na luta ambos tiveram suas roupas rasgadas.
Foram recolhidos ao xadrez até segunda ordem.239

Embriaguês e desordem: Por estarem travando luta corporal em plena via


pública, em visível estado de embriaguez alcoólica, foram detidos e
apresentados nesta Permanência pelos GTs m. Lino e m. Salvador, Jacira,
amapaense, meretriz, de 19 anos e seu amásio A. C. Gomes, paraense,
solteiro, de 15 anos de idade, ambos residentes na Doca da Fortaleza. Foram
recolhidos ao xadrez a disposição do Sr. Delegado de Plantão. Obs.:
Permanecem até segunda ordem.240

Na primeira ocorrência não fica claro se os envolvidos eram um casal ou não, mas
destaca-se que estavam promovendo desordem juntos no “Merengue”. Podemos perceber o
envolvimento da meretriz Jacira em duas ocorrências e pelo mesmo motivo. Porém, os
amásios são diferentes. Apesar de a idade dela não coincidir nos dois registros, se trata da
mesma pessoa, o que conseguimos identificar pelo sobrenome. O tempo de uma ocorrência
para a outra é de mais ou menos 45 dias, o que nos leva a pensar que esses amásios eram
clientes ou Jacira separou de J.C. Guedes e, nesse ínterim, iniciou um novo relacionamento
com A.C. Gomes. É difícil concluir que se trata de um caso ou outro, porque o amasiamento
pode tanto ser uma relação de namoro ou de união estável, segundo as definições atuais,
quanto uma relação passageira, como a das meretrizes com seus clientes.
Prostitutas também foram presas em grupo pela Guarda Territorial, seja por
embriaguez, seja desordem, ou pelos dois motivos. Como veremos mais adiante, as meretrizes
amapaenses costumavam andar em grupo. Esses grupos eram criados por questões de
afinidade, parentesco ou porque moravam na mesma casa de habitação coletiva ou pensão:

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentadas nesta Permanência


Lucila e Maria dos Santos, amapaenses de 38 e 22 anos, respectivamente,
meretrizes, residentes à Doca da Fortaleza, por estarem apresentando
indícios de ingestão alcoólica às proximidades do Mercado Central,
proferindo palavras que a moral condena. Foram recolhidas ao xadrez à

238
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.146 de 11 de outubro de 1969, p.
81-82.
239
Ibidem. Ocorrência nº 1.049 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
240
Ibidem. Ocorrência nº 1.184 de 26 de outubro de 1969, p. 119.
85

disposição do sr. Delegado de Plantão. (p. 40-41). Obs.: Permanecem até


segunda ordem.241

Embriaguez: Pelo Inspetor Amorim foi detida e apresentada nesta


Permanência, a meretriz Mirazilda, amapaense, solteira, de 17 anos de idade,
por encontrar-se perambulando pela via pública, apresentando sintomas de
embriaguez alcoólica. Foi recolhida ao xadrez até cessar o efeito do álcool.242

Embriaguez e desordem: Pelo GT Medeiros de ordem à Permanência, foi


apresentada nesta Central de Polícia Rosângela, meretriz, residente à Doca
da Fortaleza, por haver momentos antes, promovido séria desordem na via
pública, em consequência, danificou o óculos do GT Farias, nesta
Permanência, portou-se de maneira inconveniente, sendo a muito custo
recolhida a xadrez. Obs.: Permanece até segunda ordem.243

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentadas nesta Permanência,


por estarem perambulando em via pública, em visível estado de embriaguez
alcoólica; as meretrizes: Eluiza e Marilze, paraenses, ambas com 17 anos,
residentes na Doca da Fortaleza. Foram recolhidas ao xadrez à disposição do
Sr. Delegado de Plantão. Obs.: Permaneceram até segunda ordem.244

Como se pode observar, a ingestão de bebidas alcoólicas e a embriaguez não eram


práticas exclusivamente masculinas. Vemos aqui um exemplo de desvio de um
comportamento moralmente idealizado para as mulheres. Exemplo semelhante vem Fortaleza,
no Ceará, onde, no início do século XX, “a embriaguez não era uma prática restrita aos
homens, já que as evidências sobre as mulheres ébrias eram constantes, embora em menor
número”245. Apesar de não se tratar do mesmo período, tal exemplo é importante para nos
ajudar a pensar que independente do contexto histórico ou do regime político, as mulheres
conseguiam ir além dos modelos de comportamento idealizados para elas.
Meretrizes também foram detidas em grupos compostos por homens e mulheres.
Podemos perceber que a profissão dos homens não é informada em nenhuma das ocorrências
até aqui, mas as mulheres são identificadas como meretrizes:

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentados nesta


Permanência: M.T. da Silva, amapaense, solteiro, com 31 anos, Maria
Honorata, amapaense, meretriz, de 33 anos e M.P. da Silva, amapaense,
solteiro, de 26 anos, todos residentes nesta cidade, por se encontrarem
perambulando na via pública demonstrando sintomas de embriaguez

241
Ibidem. Ocorrência nº 1.087 de 26 de setembro de 1969, p. 40-41.
242
Ibidem. Ocorrência nº 1.168 de 19 de outubro de 1969, p. 103.
243
Ibidem. Ocorrência nº 1.188 de 27 de outubro de 1969, p. 125.
244
Ibidem. Ocorrência nº 1.223 de 10 de novembro de 1969, p. 155.
245
DA COSTA, Raul Max Lucas. “Júlio Torres em cena”: embriaguez pública e moral impressa em Fortaleza
(1915-1935). Revista de História da UFBA, v. 5, n. 1-2, 2013, p. 231.
86

alcoólica foram recolhidos ao xadrez de ordem e à disposição do sr.


Delegado de Plantão. Obs.: Permanecem até cessar o efeito do álcool.246

Embriaguez e desordem: Pela Patrulha da Cidade foram apresentados sendo


recolhidos ao xadrez desta Permanência, ficando à disposição do Sr.
Delegado de Plantão: N.S. Flexa, paraense, solteiro, de 21 anos, e as
meretrizes: Maria do Socorro e Deuzarina, amapaenses, de 17 e 17 anos de
idades, respectivamente. Todos residentes nesta cidade, por haverem
alcoolizados promovido desordem no dançarás denominado “Merengue”.
Permanecem à disposição da citada autoridade.247

Embriaguês: Pela Patrulha da Cidade foi apresentada nesta Permanência,


Elza, paraense, solteira, meretriz de 19 anos, residente na baixa da Fortaleza
por estar promovendo algazarra na via pública apresentando sintomas de
embriaguez alcoólica, foi recolhida ao xadrez à disposição do sr. Del. de
Plantão. Obs.: Permanece até segunda ordem.248
Detenção: Pela Patrulha foram detidos e apresentados F.C. Ferreira, R. A. de
Souza, M.E.S. Silva, Elza e Ducila, de 24, 34, 22, 19 e 38 anos,
respectivamente, por se encontrarem às proximidades do Bar “Caboclo”, em
visível estado de embriaguez alcoólica e promovendo desordem perturbando
o sossego público. Vale salientar que R.A. de Souza, portava no momento
uma faca de mesa toda ensanguentada. Foram recolhidos ao xadrez de ordem
e à disposição do Sr. Delegado de Plantão.249

As desordens causadas pela embriaguez aconteciam em via pública, mas também em


estabelecimentos noturnos, como dançarás e bares. É necessário destacar o caso de Elza,
detida duas vezes em um curto período de tempo. Mas, na primeira vez ela foi detida sozinha
e, na seguinte, a meretriz foi presa com outras pessoas. Ela e Ducila não são identificadas
como meretrizes no registro em que estavam em grupo, mas a caracterização de Elza é
semelhante em ambas ocorrências destacadas.
O jornal Novo Amapá, como órgão oficial de governo, divulgava as atividades da
Divisão de Segurança e Guarda. Na edição de 21 de fevereiro de 1970, na coluna “DSG em
números”, foram registradas 11 ocorrências de embriaguez e desordem250. Já na edição de 19
de março de 1970, a coluna muda de nome e passa a ser “Movimento Semanal da Polícia”, na
qual encontramos 6 registros de embriaguez e desordem e a data de cada um começa a ser
informada: as ocorrências foram registradas do dia 02 a 08 de março de 1970251. A próxima
publicação da coluna ocorre duas edições depois e o período do registro é de 09 a 29 de março

246
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.183 de 25 de outubro de 1969, p. 118.
247
Ibidem. Ocorrência nº 1.236 de 13 de novembro de 1969, p. 164.
248
Ibidem. Ocorrência nº 1.136 de 08 de outubro de 1969, p. 73-74.
249
Ibidem. Ocorrência nº 1.183 de 26 de novembro de 1969, p. 198.
250
DSG em números. Novo Amapá, nº 1.562, 21 de fevereiro de 1970, p. 5.
251
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.565, 19 de março de 1970, p. 2.
87

de 1970, quando foram registradas 42 ocorrências de embriaguez e desordem252. A coluna


retorna em 1º de agosto de 1970 com 07 registros253. Em 26 de setembro, o nome da coluna é
alterado para “Boletim Policial” e no período de 24 de agosto a 13 de setembro de 1970 houve
44 registros na Permanência da Delegacia Central e nos Postos Policiais254. No período de 14
a 27 de setembro foram registrados 25 casos de embriaguez e desordem255. Totalizando 135
ocorrências publicadas no jornal em 1970.
Na coluna “Ronda Policial” foi publicada uma notícia de desordem. Os envolvidos
estavam alcoolizados e começaram a brigar fisicamente em via pública, quando a patrulha
policial passou e prendeu os dois homens:

Desordem

José Benedito e Ademir Samorais, são dois sujeitos que quando ingerem
qualquer bebida alcóolica, gostam de fazer cenas pouco apreciáveis, e
travam luta corporal em plena via pública, "para dar uma demonstração de
que não somos moleza e sabemos brigar pra valer". Mas como há aquele
ditado que diz que um dia é da caça e outro do caçador, os dois brigões não
foram muito felizes em suas demonstrações de luta corporal em via pública,
A patrulha passava por lá no exato momento em que, de simples brincadeira,
passavam a esmurrar violentamente um a cara do outro. Conclusão: foram
recolhidos ao xadrez da permanência e só sairam após curtirem vinte e
quatro horas o sol quadrado, nas grades do xadrez256.

Vemos que o autor do texto destaca que a ingestão de bebida alcoólica fez com que
José e Ademir fossem protagonistas de briga cujo intuito era provar que eram fortes e, assim,
performar masculinidade. O que começou como brincadeira, acabou virando uma luta
violenta que cessou pela intervenção policial. Assim como nas ocorrências registradas pela
Central de Polícia, esse recorte do jornal destaca como a embriaguez e desordem eram
contravenções penais complementares para a força policial. Para Raul Max da Costa, o
“controle sobre a embriaguez pública era efetivado pela força policial através das prisões
correcionais. Enquanto a polícia prendia, o jornal registrava”257. Nesse caso, vemos a atuação
de dois órgãos do governo ditatorial no TFA: a Patrulha Policial prende e faz o registro de
ocorrência para que a imprensa oficial estampe a atuação da polícia nas folhas do jornal Novo
Amapá. Um trabalho complementava o outro.

252
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.567, 04 de abril de 1970, p. 2.
253
MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.581, 01 de agosto de 1970, p. s/n.
254
BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.588, 26 de setembro de 1970, p. s/n.
255
BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.590, 10 de outubro de 1970, p. s/n.
256
RONDA policial. Novo Amapá, nº 1.747, 13 de setembro de 1974, p. 5.
257
DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 223.
88

A partir dos registros analisados, conseguimos observar como as meretrizes do TFA


circulavam pelas ruas da capital se divertindo com colegas e amigas, brigando com amásios
ou clientes, entrando em conflitos com forças policiais. Mas, não podemos deixar de
questionar se essas mulheres identificadas como meretrizes eram realmente trabalhadoras
sexuais, ou se eram percebidas assim pela polícia por apresentarem um comportamento
estigmatizado no espaço público, uma conduta não esperada de mulheres “honradas”:

A embriaguez feminina era representada como um hábito de mulheres


“decaídas”, “de vida ruim”, “rameiras”, “alegres”, que perturbavam a ordem
pública incomodando moradores dos bairros, ruas e avenidas da cidade. A
associação corrente da embriaguez com o meretrício era uma peculiaridade
da representação da mulher ébria, tendo em vista que a prostituição era o
negativo do ideal feminino, na mesma proporção que o alcoolismo era o
avesso do ideal masculino258.

Sendo assim, no discurso hegemônico, a embriaguez estava diretamente ligada à


prostituição. Então, para os registros policiais uma mulher embriagada que estivesse
promovendo desordem em via pública só poderia ser prostituta, porque as mulheres que
seguiam os padrões morais dominantes não reproduziriam esse tipo de comportamento. A
repressão policial e o controle moral sobre trabalhadoras e trabalhadores não foi exclusividade
do período ditatorial brasileiro, e vimos que a tentativa de controlar os corpos dos populares
não fez com que cessassem suas aventuras festivas, ébrias e desordeiras.

2.2 Bailes e botequins: uma questão de classe


Macapá desenvolveu uma efervescente boêmia desde a criação do TFA, na década de
1940. Até o início da década de 1970, a concentração de boêmios era intensa na Doca da
Fortaleza. O Bar Caboclo, que estava localizado na Doca, está ainda hoje presente no
imaginário popular amapaense e foi um dos locais de predileção daqueles que buscava se
divertir, encontrar amigos e até prostitutas. De acordo com Lobato, “esse lugar [a Doca],
durante o dia, recebia dezenas de embarcações vindas de vários pontos da Amazônia e do
restante do Brasil. Chegada a escuridão, a doca era tomada pelos notívagos que buscavam
seus pequenos bares para rápidos aperitivos ou demoradas farras”259. Era um espaço que
assumia duas territorialidades, que poderiam se confundir porque os botequins também
funcionavam durante o dia. Algumas das ocorrências policiais foram registradas durante o

258
DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 231.
259
LOBATO, Sidney. O despertar de Orfeu: prazer e lazer dos trabalhadores de Macapá (1944-1964). Topoi (Rio
de Janeiro), v. 15, p. 223-241, 2014, p. 231.
89

dia, o que nos leva a pensar que as características diurnas e noturnas desse local se
confundiam e não eram bem delimitadas. Esse bairro era atravessado por um fluxo intenso de
pessoas, o que gerava grande preocupação nas autoridades governamentais. Mas, a partir da
década de 1960, esse lugar passou a dividir o protagonismo das ocorrências policiais com
outros bairros periféricos como o Buritizal e o Santa Rita260.
Essas farras não eram marcadas somente pela camaradagem dos divertimentos, mas
também por conflitos. A junção das danças, dos festejos e do álcool causava brigas e ensejava
prisões. Em locais como botequins, salões de festa e clubes, embriaguez e desordem eram os
motivos mais comuns de detenção. Em setembro de 1969, os bombeiros J.C. Picanço, J.C. da
Silva e S.P. de Andrade, de 30, 22 e 35 anos261, respectivamente, e A.R. da Silva, O.A. Moraes
e J.T.P. Nascimento, de 18, 19 e 22 anos, residentes em Macapá262, respectivamente foram
presos por promover desordem no Merengue. E em novembro, Jagunço foi detido no dançarás
pelo mesmo motivo263.
Foram detidos no Bar Gato Azul: J.N. Gomes, paraense, casado, motorista
profissional, residente no bairro Buritizal264; E.A. de Araújo, A.A.F. de Sena, I.P. Dias e R.
Miranda, paraenses, solteiros, marítimos, de 31, 31, 26 e 33 anos de idade, respectivamente,
estavam de passagem por Macapá e foram presos embriagados por promover desordem no
referido bar e fazer necessidades fisiológicas em via pública265.
Já no Bar Banavita, W.M. Picanço, paraense, casado, funcionário público, com 32 anos
de idade, e M.C. Mendes, amapaense, estudante, com 18 anos de idade, foram presos por
promover desordem no bar. Eles se comprometeram a pagar o prejuízo que causaram e foram
liberados266. Em uma festa na Sede do Trem Esporte Clube, M.R.N. Caldas e E.M. Alfaia,
amapaenses, solteiros, estudantes, moradores do bairro do Trem, de 19 e 20 anos de idade,
respectivamente, fizeram desordem e foram presos267. O único registro que tem um motivo
diferente para a detenção ocorreu na Pensão da Suerda: “Detenção: Por haver feito despesa na
Pensão da Suerda na importância de 28,00 e mais 6,00 de carro sem ter dinheiro para pagar
foi detido E. Souza, paraense, casado, funcionário de Platon Indústria e Comércio, sendo
recolhido ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de Plantão”268. A Pensão da Suerda é outro
260
Nessa época, o bairro Santa Rita também era chamado de “Favela” e de “bairro da CEA”, a antiga Companhia
de Eletricidade do Amapá.
261
Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.038 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
262
Ibidem. Ocorrência nº 1.039 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
263
Ibidem. Ocorrência nº 1.216 de 08 de novembro de 1969, p. 149.
264
Ibidem. Ocorrência nº 1.044 de 13 de setembro de 1969, p. 7.
265
Ibidem. Ocorrência nº 1.202 de 02 de novembro de 1969, p. 136.
266
Ibidem. Ocorrência nº 1.093 de 28 de setembro de 1969, p. 46.
267
Ibidem. Ocorrência nº 1.123 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
268
Ibidem. Ocorrência nº 1.231 de 12 de novembro de 1969, p. 161.
90

local que atravessou os anos e continua presente na memória dos amapaenses como um
importante espaço de prostituição e diversão noturna. Mas, ao contrário do Bar Caboclo, ela
não foi cenário frequente de registros policiais. Inclusive, não é difícil ouvir comentários de
que a Suerda “não era pra qualquer um”, que era uma casa de meretrício para pessoas de
maior poder aquisitivo. A ocorrência acima foi a única encontrada no Livro de Ocorrências,
nos jornais e nos processos judiciais.
Alguns botequins eram mais frequentes nos registros policiais. No Bar Caboclo, R.S.
Carvalho e J. Sarmento, paraenses, solteiros, de 24 e 42 anos, respectivamente, foram detidos
por embriaguez, ficaram presos até passar o efeito do álcool269. Já por desordem, após
agredirem-se, foram presos J.R. dos Santos, paraense, casado, de 39 anos de idade, e seu
vizinho F.B. Santos, amapaense, solteiro, de 23 anos de idade, moradores do bairro do
Trem270; e R.S. de Morais, paraense, solteiro, estudante, de 21 anos, foi detido após quebrar
copos no bar271. Por embriaguez e desordem, foram presos L.C. Picanço, amapaense, de 22
anos de idade, solteiro, motorista, G.G. da Silva, paraense, solteiro, de 19 anos de idade,
trabalhador do Matadouro de Fazendinha272; A.C. Gomes de 21 anos e M.D. do Vales,
paraenses, solteiros, residentes do bairro do Beirol273; o grupo de jovens R.S. dos Santos, F.
Mira, J. Magno, R.P. Gemaque, J.P. Gemaque e B.B. da Silva, paraenses, solteiros, de 20, 19,
21, 19, 18 e 18 anos, respectivamente, estavam alcoolizados e fazendo desordem no Bar
Caboclo274; S. Lima, paraense, de 31 anos, casado, residente no bairro da Favela, foi preso por
estar embriagado e por promover desordem e na delegacia foi “inconveniente” com o
delegado275.
Diferentemente do que foi feito na subseção anterior, aqui escolhemos citar os
registros em que somente homens figuram detidos em bares, botequins, clubes e dançarás.
Isso com o objetivo de identificar quem eram os homens frequentadores desses lugares. A
idade deles ficava entre 18 e 42 anos, eram paraenses e amapaenses e a maioria residia em
Macapá. Eles eram trabalhadores braçais, bombeiros, marítimos e estudantes. Nem sempre
essas informações eram descritas, pois não havia um padrão no preenchimento das
ocorrências. Em alguns casos somente o nome dos contraventores era informado.

269
Ibidem. Ocorrência nº 1.220 de 09 de novembro de 1969, p. 153.
270
Ibidem. Ocorrência nº 1.048 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
271
Ibidem. Ocorrência nº 1.145 de 11 de outubro de 1969, p. 81.
272
Ibidem. Ocorrência nº 1.085 de 26 de setembro de 1969, p. 39-40.
273
Ibidem. Ocorrência nº 1.122 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
274
Ibidem. Ocorrência nº 1.189 de 28 de outubro de 1969, p. 126.
275
Ibidem. Ocorrência nº 1.203 de 02 de novembro de 1969, p. 137.
91

Pensando em diminuir o número de ocorrências, a Secretaria de Segurança Pública do


TFA estudou proibir a venda de bebidas alcoólicas, porque o consumo de cachaça estava
contribuindo muito para o aumento dos índices de crimes cometidos na capital, como
podemos verificar nos dois artigos a seguir:

Polícia estuda meio de proibir venda de cana


A exemplo de Belém e outras capitais brasileiras, a Secretaria de Segurança
Pública de Território vai proibir a venda de cachaça e seus derivados,
principais responsáveis por atos de desordens e até crimes que vem
ocorrendo com frequência em nossa capital.

Proibição

O dr. Odir Macedo, diretor da Divisão de Polícia Judiciária, informou que as


providências já estão sendo estudadas, com vistas a proibir a venda de
cachaça e seus derivados, geralmente consumidas nos botecos que se
espalham pelos bairros da cidade em número assustador. Como exemplo, um
recente levantamento feito pela polícia, acusou somente no Igarapé das
Mulheres, a existência de 22 botequins que vendem exclusivamente cachaça.
Pelo menos aos sábados e domingos, quando cresce o maior índice de
embriaguez e desordens, referidos botecos estão proibidos de vender a
bebida maldita, sob pena de serem enquadrados em lei.

Disse ainda o dr. Odir Macedo que a medida do Secretário da SEGUP vai
proporcionar maior tranquilidade às famílias e o espetáculo proporcionado
por elementos em avançado estado de embriaguez alcoólica vai diminuir
sensivelmente276.

Delegado Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”

O dr. Odir Macedo, da Polícia Judiciária, continua trabalhando com sua


equipe para apurar com exatidão o número de botequins que vendem
exclusivamente cachaça, depois do que serão seus proprietários proibidos
terminantemente de vender a bebida diabólica aos sábados e domingos.

O trabalho que o dr Odir Macedo pretende desenvolver, por solicitação do


Chefe de Polícia, se estriba no exemplo de outras capitais brasileiras que
usaram do mesmo expediente, visando diminuir o índice de desordens e
criminalidades.
Num recente levantamento feito no bairro Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, foi constatada a existência de nada menos de 22 botequins abertos
com exclusividade para a venda de “cachaça”. Presume-se que em toda a
cidade, no mínimo, deverá existir uns duzentos e poucos comércios no
gênero.

276
POLÍCIA estuda meio de proibir venda de cana. Novo Amapá, nº 1.745, 31 de agosto de 1974, p. 2.
92

A polícia depois de baixar uma ordem proibindo a venda de “cachaça” aos


sábados e domingos, vai montar um esquema de investigação a toda prova. É
que muitos proprietários de botequins receberão a ordem mas não cumprirão
com determinado. Para evitar abusos, o esquema será montado277.

É nítida a preocupação da administração pública com a quantidade de botequins em


Macapá, com atenção especial aos que se dedicam a vender somente bebidas alcoólicas. Os
números apresentados são interessantes porque somente em um bairro havia 22 botequins e a
estimativa era de que havia mais de 200 estabelecimentos comerciais dessa natureza na
capital. A proibição da venda de “cana” aos finais de semana foi uma medida usada para
tentar frear o número de registros que tinham o álcool como fio condutor e para tranquilizar as
famílias amapaenses perturbadas pela desordem dos bêbados nas ruas da cidade. Não sabemos
se essa medida causou o efeito desejado, mas podemos afirmar que essa ação da Secretaria de
Segurança Pública foi uma tentativa de repressão moral na capital amapaense e, tentando
antecipar as ações dos comerciantes, a polícia já planejava montar um esquema para garantir
que todos cumprissem a ordem.
A Divisão de Segurança e Guarda publicou no jornal A Voz Católica uma portaria para
a regularização de associações que estavam sendo criadas no TFA e causando desordens pelas
ruas:

Divisão de Segurança e Guarda

Seção de Coordenação
Portaria Nr. 39/64-DSG

CONSIDERANDO que, ultimamente, vêm se organizando nesta capital,


pequenos grupos de pessoas que passam a usar denominações como de
associações;

CONSIDERANDO que, tais grupos se aproveitam dessas denominações


para realizar festas dançantes e usufruir outras vantagens;

CONSIDERANDO que, referidas associações, mesmo em caráter precário,


não possuem estatutos próprios, e consequentemente personalidade jurídica;

CONSIDERANDO que com esse procedimento, vem os bairros desta capital


sofrendo, muitas vezes, perturbação da ordem, durante o horário destinado
ao repouso público;

277
DELEGADO Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”. Novo Amapá, nº 1.746, 07 de setembro de
1974, p. 2.
93

CONSIDERANDO caber a esta Divisão regulamentar as festas em


sociedade, fazendo cumprir o que a lei determina, a fim de evitar abusos
prejudiciais à população;

RESOLVE:

I - CONCEDER o prazo de trinta (30) dias para que referidas associações


regularizem suas situações.
II - DETERMINAR que, expirado esse prazo, sejam cassadas todas as
licenças para festas dançantes nas sociedades que não estejam devidamente
legalizadas, somente sendo concedidas após a apresentação de documento
hábil que comprove a sua legalização.

DÊ-SE CIÊNCIA E CUMPRA-SE


Gabinete de Chefia da Polícia, em Macapá, 09 de março de 1964.

TEN. UADIR CHARONE


Diretor e Cmt. da DSG278

A partir da leitura desse documento podemos inferir que as associações eram diferentes
de clubes sociais como o Esporte Clube Macapá. Podemos supor que as associações citadas
eram as escolas de samba de Macapá. É necessário observar que essa portaria foi publicada
antes do Golpe de 1964, o que nos leva a concluir que o controle policial sobre os espaços
festivos não foi exclusividade do regime ditatorial. Nos anos da Ditadura empresarial-militar,
A DSG também publicou nos jornais locais portarias com normas a serem seguidas no
carnaval amapaense. Localizamos duas delas nos anos de 1970 e 1971279:

DIVISÃO DE SEGURANÇA E GUARDA

O Capitão Luiz Gonzaga Valle, titular da DSG, vem de baixar portaria de n°


022/70-DSG, disciplinando as normas que perdurarão durante a quadra
carnavalesca do corrente ano, cuja portaria foi devidamente aprovada pelo
Chefe de Executiva amapaense que será publicada no “Diário Oficial”. Para
conhecimento dos nossos leitores, transcrevemos as resoluções.
*Determinar que sejam adotadas no decorrer da respectiva quadra as
seguintes providências:

[…]

2°- Os festejos carnavalescos só poderão ser realizados após a concessão da


licença policial expedida pela 3ª Delegacia Auxiliar (Seção de Costumes) e
Juizado de Menores.

3° - As festas dançantes promovidas por agremiações esportivas e


recreativas, clubes, grupos carnavalescos que venham a se realizar em sedes
sociais, boates, dancings, casas particulares e publicamente, os promotores,
obrigatoriamente deverão solicitar da 3ª Delegacia Auxiliar a licença
respectiva, com antecedência de 48 horas e do Juizado de Menores;
278
DIVISÃO de Segurança e Guarda. A Voz Católica, nº 229, 15 de março de 1964, p. 3.
279
As portarias de 1970 e 1971 são muito parecidas, por isso escolhemos citar apenas a primeira.
94

4° - Os frequentadores das festas carnavalescas ficarão sujeitos a revista


pessoal e os portadores de armas de qualquer espécie as terão apreendidas
mesmo que seja exibido o porte;

5° - Os menores de 18 anos e maiores de 14, somente poderão freqüentar


festas carnavalescas em clubes sociais quando acompanhados de seus pais ou
responsáveis, até 22 horas; (portaria n° 7 do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito);

6° - Fica expressamente proibido o ingresso de menores de 21 anos em festas


dançantes realizadas nas boates, dancings e similares […]280

De acordo com esta portaria, todos os lugares que fossem realizar festas carnavalescas
deveriam solicitar licença. Além dessas determinações, também foi proibido que os foliões se
fantasiassem de policiais, de padres, freiras e que usassem qualquer identificação que fizesse
referência a uniformes militares.
O carnaval movimentava o TFA e os clubes preparavam bailes para os foliões. A
agitação carnavalesca marcava presença nas páginas dos jornais. Parte da divulgação das
festas e dos preparativos dos clubes ficava a cargo de Wilson Sena, colunista e chefe das
oficinas do Novo Amapá:

O CARNAVAL CHEGOU e os clubes com êle estão prontinhos para


enfrentá-lo. O Esporte Clube Macapá terá o seu grito momesco na noite de
hoje. Programou mais dois bailes nos dias 7 e 10 vindouro. E para a
criançada, o dia 8 foi reservado a ela. Carnaval é com o azulino, assim diz o
seu presidente lacy.

O TREM BENEFICENTE CLUBE é “aquela” coisa no carnaval: dias 7 e 10


o carnaval rubro-negro, contará com o embalo da juventude do bairro do
Trem.

O SANTANA ESPORTE CLUBE confirmará o seu conceito perante os seus


associados e admiradores com monumental baile de carnaval. Carnaval é no
“canarinho milionário”, porque a coisa é divertida mesmo281.

O MAIS NOVO CLUBE social de Macapá, que é o Círculo Militar, terá a


grande oportunidade de se fazer presente nos dias dedicados ao “Rei
Momo”, quando a sua pista de dança será pequena para abrigar seus
frequentadores que desejam brincar o carnaval, aproveitando ainda, “aquela”
brisa amazônica que não deixa ninguém cansar. A gurizada também terá a
sus oportunidade de mostrar que sabe sambar. Vamos prestigiar as
promoções, comparecendo em massa à sede do Círculo Militar local282.

Os bailes desses clubes eram frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo do
TFA. Na edição seguinte do jornal, o colunista critica a organização de um dos bailes
280
DIVISÃO de Segurança e Guarda. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 6.
281
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.55824 de janeiro de 1970, p. 5.
282
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 5.
95

carnavalescos do Esporte Clube Macapá no qual “entrou todo mundo”, deixando de ser uma
“seleta reunião dançante”:

A MISSÃO JORNALÍSTICA, muitas vezes dá uma certa compensação,


quando as promoções em que se comparece, decorre dentro de um padrão
elevado e cheio de cordialidade, disciplina e organização em todos os pontos
de vista. Isto, sempre aconteceu em todas as festas em que o Esporte Clube
Macapá arcou com a responsabilidade. Desta coluna sempre elogiamos as
seletas reuniões dançante daquele clube. Mas como força de profissão e
sinceridade de propósitos não é possível calar diante do que ocorreu na festa
de sábado passado, grito de carnaval azulino que deixou muito a desejar.
Entrou todo mundo, o que vem ferir os preceitos sociais daquele clube, e
toda gente sabe o que aconteceu e o muito que poderia ter acontecido. Que a
diretoria do azulino, faça voltar aquela rigorosidade que fez o Macapá ser o
clube das grandes reuniões dançantes.283

Não sabemos o que aconteceu na festa para gerar o incômodo de Wilson Sena pela
falta de seletividade da diretoria do Macapá, mas podemos atestar que não era “qualquer
pessoa” que frequentava o clube e quando isso acontecia causava uma indisposição naqueles
que estavam habituados a um ambiente socialmente excludente. Para sanar esse desconforto,
Sena sugeriu que o clube voltasse a utilizar seus critérios de seleção de participantes na
portaria. Ao escrever sobre a programação de carnaval dos clubes locais, o articulista destacou
que “Os clubes suburbanos, ao som de suas boas aparelhagens, terão oportunidade de também
mostrar que sabem aproveitar a quadra momesca e responderão presente ao Rei Momo”284.
Desse modo, ele separava clubes como Trem Desportivo Clube, Esporte Clube Macapá,
Santana Clube e o Círculo Militar, dos clubes suburbanos de Macapá.
No ano seguinte, ao abordar as festas de Réveillon que frequentou com sua família,
Wilson Sena referiu-se ao Círculo Militar e ao Santana Esporte Clube como clubes
aristocráticos e destacou que no primeiro estavam presentes o governador do TFA, o General
Ivanhoé Martins, e o prefeito de Macapá João Oliveira Côrtes, além de outras autoridades não
citadas285. Logo, inferimos que esses clubes, em especial o Círculo Militar, eram locais de
encontro e confraternização dos gestores do TFA. Por fim, ele destacou que “em ambos os
bailes, predominou a elegância da mulher amapaense”286. Essa mulher amapaense não era a da
classe trabalhadora, mas sim as esposas, mães, irmãs e filhas dos políticos do TFA. O tom
mudou quando o articulista passou a abordar as festas dos subúrbios, porque “tem muito
menor por aí fazendo o que quer” e a fiscalização estava “dando duro” nessas festas287. Vemos

283
Ibidem.
284
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.560, 07 de fevereiro de 1970, p. 05.
285
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 05.
286
Ibidem.
287
Ibidem.
96

como a classe dos frequentadores de cada festa é relevante para o colunista. Por um lado, ele
destaca a aristocracia e a elegância, por outro, por outro, ele destaca a fiscalização nos clubes
suburbanos, porque neles não havia organização e critérios para participar dos festejos.
Depois, ele menciona “os animados bailes carnavalescos” dos clubes suburbanos 13 de
Setembro e Cruzeiro, “mostrando que também no subúrbio, o som da cuíca e do pandeiro é
coisa pra valer”288. Mas, ele não comenta se vai frequentar os bailes suburbanos com sua
família, ao contrário do que faz quando comenta as festas promovidas pelos clubes
“aristocráticos”
Um exemplo de como a classe social era um marcador usado para diferenciar os
foliões amapaenses, não só por colunistas, mas também para a polícia, foi a notícia de um
roubo. As casas noturnas suburbanas eram alvos prediletos da vigilância policial, porque na
visão das forças do controle social era mais fácil criminosos frequentarem esses espaços do
que as festa da “aristocracia” amapaense:

Um ladrão roubou jóias da Casa Lima, no valor aproximado de 160 mil


cruzeiros, na madrugada de 5 de fevereiro.

Logo que a Polícia tomou conhecimento do roubo, entrou em incansável


diligência, sob o comando do delegado Pedro da Costa Uchôa, da Delegacia
de Investigações e Capturas, não só cobrindo as saídas da cidade como
também vigiando as casas noturnas do subúrbio, onde haveria mais
condições de o ladrão passar a terceiros os materiais do furto289.

Sidney Lobato, abordando o período anterior ao Golpe de 1964, escreve que


“enquanto os clubes ofereciam bailes aos mais endinheirados, as ruas e as praças eram o
território da folia popular”.290 Já no contexto por nós estudado, observamos que trabalhadores
e trabalhadoras amapaenses também frequentavam clubes e associações, como o Treze de
Setembro, assim como ocupavam as praças e as ruas para brincar no carnaval. Os clubes
ligados à Icomi, o Santana Esporte Clube e o Manganês Esporte Clube, eram frequentados
tanto pelo staff da empresa quanto por seus trabalhadores. Nas páginas da Icomi Notícias os
funcionários eram descritos como “família icomiana”, enquanto as autoridades
governamentais e os representantes eram citados nominalmente porque eram presenças
“brilhantes” nos festejos dos clubes291.
Na pequena amostra das ocorrências policiais analisada, foi mencionado apenas o
Trem Esporte Clube, em única ocorrência. Não há qualquer menção a outros clubes

288
CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.602, 30 de janeiro de 1971, p. 05.
289
POLÍCIA põe as mãos no ladrão da “Casa Lima”. Novo Amapá, nº 1.671, 17 de fevereiro de 1973, p. s/n.
290
LOBATO, Sidney. Op. Cit., 2014, p. 238.
291
LANÇAMENTO foi festa. Icomi Notícias, ano 1, nº 03, p. s/n.
97

frequentados pelos “mais endinheirados”. Por outro lado, os botequins eram recorrentemente
citados como locais de confusão. Enquanto botequins, associações e clubes suburbanos eram
frequentados por funcionários públicos, estudantes, meretrizes, marítimos, motoristas e
trabalhadores braçais em geral, os clubes “aristocráticos” eram frequentados por políticos,
empresários, militares e suas famílias. Desse modo, fica evidente que era em razão de critérios
de classe que uns tinham mais fiscalização policial do que outros.

2.3 O “ser” e “fazer-se” homem: as rixas, os desafios e as masculinidades amazônicas


Botequins, bares, dançarás e boates foram palco de muitas atuações dos personagens
dessa pesquisa, as rixas e confusões generalizadas chamaram a atenção no conjunto
documental analisado. Vimos a necessidade de analisar a relação desses lugares de lazer e de
diversão com as ocorrências criminais e a existência de um padrão específico de
masculinidade amazônica. Os sujeitos que figuravam nessas ocorrências eram homens pobres
e heterossexuais, que partilhavam das masculinidades marginalizadas292, reproduzindo
comportamentos forjados pelo meio social e cultural no qual viviam; e prostitutas, que eram
vítimas das ações desses homens pobres com os quais conviviam. A partir da bibliografia,
abordaremos a influência das masculinidades e do machismo nas ações de homens
amapaenses, registradas em dois processos judiciais.
Raewyn Connell293 definiu a masculinidade como “uma configuração de prática em
torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero”294. Para ela, essa definição
tem a ver com as ações das pessoas, com o que é vivido por elas e não com aquilo que
esperam que elas façam. Dessa forma, a masculinidade é um modo de agir dos homens a
partir das construções de gênero. A masculinidade hegemônica, representada por homens
brancos e heterossexuais, figura como centro, enquanto outras masculinidades orbitam em
torno dela.295 Connell e James W. Messerchmidt argumentam que o conceito de masculinidade
hegemônica sofreu diversas críticas desde a sua formulação. Algo que pode se manter é o
argumento de que as masculinidades subordinadas também são agentes. Isso porque homens

292
Segundo Soraya Januário: Esta forma de masculinidade está discriminada devido à condição subordinada de
classe social ou etnia. A marginalização é produzida nos grupos explorados ou oprimidos que podem
compartilhar muitas das características da masculinidade hegemónica, mas que são socialmente desautorizados.
In: JANUÁRIO, Soraya Barreto. Masculinidades em (re)construção: Genero, Corpo e Publicidade. Covilhã:
Labcom. Ifp, 2016, p. 126.
293
Originalmente, o texto citado tem como referência o nome morto de Raewyn Connel, antes da transição de
gênero. Por isso, vamos nos referir a ela com seu nome atual.
294
CONNELL, Robert W. “Políticas da masculinidade”. In: Educação e Sociedade. 1995, p. 188.
295
Ibidem, p. 189.
98

pobres, negros ou homossexuais, não seguem (ou não se encaixam) totalmente o modelo de
masculinidade hegemônico.
As masculinidades hegemônicas e marginalizadas exercem influência uma sobre a
outra e ambas se apropriam de aspectos exôgenos.296 Então, alguns aspectos do conceito
podem e devem ser mantidos, como a pluralidade e a hierarquia das masculinidades. Segundo
os autores, “padrões múltiplos de masculinidade têm sido identificados em muitos estudos,
em uma variedade de países e em diferentes contextos institucionais e culturais”.297 Do
mesmo modo, Soraya Januário argumenta que:

O género é experienciado de forma quotidiana e as suas práticas permitem a sua


existência e transformação. Desta forma, é impossível falar numa única forma de
“fazer-se homem”; o que existe na realidade são formas múltiplas. Esse modelo
multifacetado de vivências de homens apresenta-se continuamente complexo,
contraditório e em mutação, forjando-se em diferentes tempos e espaços.298

Cada lugar tem uma forma única de masculinidade, ou de “ser” e “fazer-se” homem.
Assim, as masculinidades amazônicas são marcadas por questões culturais e sociais locais. Os
casos a seguir evidenciam uma faceta das masculinidades e do machismo na sociedade
amapaense. Homens que brigavam entre si por causa de rixas anteriores e homens que
agrediram meretrizes motivados pelo álcool e pela valentia masculina.
Vamos aos episódios: A.C.B.P, macapaense, solteiro, com 19 anos de idade, tipógrafo,
alfabetizado, residente à av. Ataíde Teive e O.F.G., 25 anos de idade, solteiro, militar,
alfabetizado, residente à rua São Paulo, foram acusados pelo crime de lesões corporais. Eles
agrediram-se mutuamente no dia 02 de abril de 1972. Na companhia de um colega, A.C.B.P.
saiu do dançará Merengue às três horas e quando estavam caminhando próximo à Usina Costa
e Silva, O.G.F. quase atropelou seu colega com a bicicleta, o que gerou uma reclamação. O.,
que estava com um companheiro conhecido como Curica, desceu da bicicleta e foi em direção
à A. com uma corda e os dois entraram em luta corporal. Um guarda separou os dois e eles
seguiram seus caminhos. Mas, acabaram se encontrando novamente, quando A. acertou seu
oponente na cabeça com um cinto. Por sua vez, O. feriu A. com um objeto cortante.299 Um
simples atrito foi o suficiente para causar essa tensão entre os acusados, suscitando uma
intervenção policial.

296
CONNELL, Raewyn; MESSERCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, v. 21(1): 424, p. 241-282, jan-abr, 2013.
297
Ibidem, p. 262.
298
JANUÁRIO, Soraya. Op.Cit., p. 118.
299
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 05-06.
99

A testemunha M.C.F., paraense, solteiro, de 21 anos de idade, residente na avenida


Ataíde Teive, sabendo ler e escrever, disse que O. e Curica pediram cigarro a ele e A., e que
caso não o dessem levariam “porrada”. Relatou que ele e seu companheiro foram atacados por
quatro homens, sendo um deles soldado do 34º BIS (o acusado O.). M. informou que Curica
tinha mágoa com ele por causa de uma garota.300 A partir desse depoimento, já conseguimos
identificar que havia uma faísca entre alguns dos envolvidos, algo anterior a esse episódio. A
disputa por uma mulher poderia ser a causa de rixas entre homens. Nesse caso, houve uma
confusão generalizada, mas haviam pequenos desentendimentos dentro dela. A. e O. brigaram
por um quase atropelamento e uma reclamação, enquanto M. e Curica possuíam rivalidade
por uma disputa amorosa e o pedido de cigarro foi um meio encontrado para iniciar a briga.
Para Sidney Chalhoub:

O desafio pode ser visto como o último estágio de uma escalada contínua de
tensões específicas ativadas a partir do surgimento da rixa. O desafio precede
imediatamente o conflito e anuncia aos membros de um determinado meio
sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de funcionamento e ajuste de
tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado. Neste contexto, a
violência não é algo gerado espontaneamente num dado momento, mas sim o
resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma
cultura ou sociedade.301

Então, “a mágoa por causa de uma garota” é uma rixa, o pedido de cigarro, o
atropelamento e a reclamação podem ser definidos como o desafio resultante dessa rixa.
Note-se que esse episódio de violência não surgiu do nada, e a rixa que está na sua origem
pode ter sido alimentada em outras ocasiões. E uma noite de festa e bebida encorajou os
envolvidos.
O funcionário público H.F.P., de 36 anos, casado, paraense, residente à rua Hildemar
Maia, sabendo ler, separou a briga dos acusados. Conhecia O., sabendo ser militar do 34º BIS,
e dissera para ele parar com a briga pois era feio um militar promover desordem. Com isso, O.
lhe disse que iria voltar ao quartel. Foi embora e não soube o que aconteceu depois, mas no
dia seguinte foi procurado pelo delegado Oscar Lima para relatar o que sabia do ocorrido.
Esse depoente, “depois, em conversa com a mundana que conhece por BOSSA NOVA e uma
outra desconhecida, foi informado de tudo o que havia se passado entre o dito soldado e
aquele desconhecido”.302 H. era guarda territorial, em seu depoimento aponta que para saber

300
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 07-08.
301
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. 3 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 310.
302
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 9.
100

do restante do ocorrido recorreu a duas meretrizes. A partir disso, podemos cogitar que esse
guarda territorial tinha uma relação amistosa com as prostitutas que conhecia, e a quem
recorreu como fontes confiáveis.
Bossa Nova era meretriz, paraense, solteira, com 36 anos de idade, residente na
avenida Antônio Coelho de Carvalho, próximo à Usina Costa e Silva, e não sabia ler e
escrever. Disse que no dia do ocorrido, saiu do Merengue com sua amiga Lindalva, em
direção às suas casas. Viu todo o ocorrido e ouviu quando O. falou para seu companheiro
Raimundinho esperar o guarda H. tomar distância para dar “porrada” em A. e M., o que
aconteceu. O militar foi ferido na orelha por A., que fugiu com seu colega. Ela viu seis
recrutas dando apoio a O., correndo atrás dos dois rapazes que entraram no terreno da usina.
Disse que conhece todos de vista, o que sugere que os militares do Exército eram conhecidos
das prostitutas amapaenses. Primeiro, isso ocorria porque os soldados faziam a patrulha da
cidade junto a a Guarda Territorial. Segundo, porque frequentavam os mesmos espaços que
elas em momentos de lazer. Eles queriam obrigar o vigilante a deixá-los entrar no terreno da
usina, o que lhes foi negado. Por isso, se desentenderam com o vigilante e puxaram o chapéu
dele, só devolvendo com muito custo. Ela ouviu que Raimundinho segurou A. para que O. o
furasse. Identificou um dos militares como Uriel, que acompanhado de Raimundinho, era
acostumado a provocar os recrutas para promover desordem. E sabe que “O. todas as vezes
que chega[va] no Merengue acompanhado de RAIMUNDINHO procura[va] tumultuar a
coisa, pois são dados ao vício da embriaguez”.303 Os militares do 34º BIS se envolviam em
desordens, o contrário do que poderíamos pensar, já que tinham como missão manter a ordem
social no TFA. Ainda mais levando-se em consideração os anos da Ditadura
empresarial-militar, nos quais se sentiam encorajados pela certeza da impunidade, de que não
seriam punidos. Aparentemente andavam em grupo pelos locais de festa em Macapá e usavam
de seu poder para cometer abusos.
Por meio desse depoimento de Bossa Nova, vemos como a junção de álcool e valentia
masculina poderia culminar em conflitos e lesões corporais. Nos tumultos que O. e
Raimundinho causavam no dançará Merengue, e nas provocações de Raimundinho e Uriel aos
recrutas vemos atos orientados por códigos de masculinidade. Alessandro Cerqueira Bastos,
ao analisar as masculinidades populares em Feira de Santana, na Bahia, e analisar a relação
entre a agressividade masculina e o álcool, pondera que a embriaguez poderia desencadear a
violência masculina. Mas, é importante entender que o álcool também tinha um papel

303
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 11-12.
101

importante na camaradagem da classe trabalhadora e pode ser um elemento de fuga da


exploração cotidiana do trabalho,304
A meretriz M.E.S., amapaense, solteira, de 19 anos de idade, residente na avenida Cora
de Carvalho, quarto número três, não sabendo ler e escrever, saiu do Merengue com seu
amante de nome Castelo. Ao passarem juntos pela avenida Padre Júlio, eles encontraram com
Bossa Nova que lhes disse que O., companheiro de Castelo, tinha sido ferido e estava
sangrando. Castelo perseguiu um dos rapazes, mas sem sucesso.305 Deduzimos que Castelo
também era militar, já que era companheiro de O. e se juntou à perseguição dos militares
contra seus oponentes. A meretriz Maria de Fátima, paraense, de 17 anos de idade, residente
na avenida Cora de Carvalho, sabendo assinar o nome, não foi testemunha desses
acontecimentos, mas presenciou uma cena que pode ter relação com o caso, dias depois. Em
seu depoimento, disse que ao retornar para seu quarto, tinha visto quatro homens conversando
na rua sobre o que ocorrera com o soldado O. Um deles estava armado com uma faca e foi em
sua direção. Ela não tinha certeza, mas acreditava que um dos homens tinha sido o mesmo
que havia brigado com o referido soldado, dias antes. Disse que não tinha ido ao posto
policial porque temia ser agredida por esses homens.306 Não nos interessa se o depoimento de
Maria de Fátima ajudou a elucidar o caso ou não, mas o fato dela temer ser agredida por esses
homens no caso de procurar a polícia. Ela seria agredida por ter visto esses homens
conversando ou ela estava apenas tentando se proteger de uma agressão por ser prostituta?
Sua fala não dá condições para responder a essas perguntas, mas acreditamos que as duas
hipóteses são verdadeiras.
Outro caso envolvendo um soldado do 34º BIS aconteceu em agosto de 1976. Desta
vez o crime foi de desacato e resistência. A Patrulha da Polícia Militar foi avisada por um
motorista de táxi que a meretriz Helena de tal promovia desordem no Dançará Xadrezão. A
polícia chegou ao local para prendê-la e Antônio Luiz, vulgo “Abutre”, brasileiro, amapaense,
casado, cor preta, 18 anos de idade, soldado do exército do 34º BIS, setor primeira companhia
de fuzileiro, se opôs à prisão. O comandante da viatura da Rádio Patrulha, F. Cumarú,
brasileiro, paraense, casado, cabo da Polícia Militar, 38 anos de idade, sabendo ler e escrever,
havia sido desacatado e sofrera tentativa de agressão pelo denunciado, ocasião em que
efetuara sua prisão.307

304
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Homem trabalhador, pacato e de bom procedimento: masculinidades
populares, violência e cotidiano (Feira de Santana, 1960-1970). Dissertação de Mestrado (Programa de
Pós-Graduação em História Social), Universidade Federal da Bahia, 2021, p. 79-80.
305
AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 14.
306
Ibidem, p. 15.
307
AFCM. Processo nº 4.209 de 13 de fevereiro de 1978.
102

O Xadrezão era uma boate e também era chamado de pensão, prostíbulo e dançará.
Nesse processo, muitas prostitutas estavam envolvidas porque eram moradoras da boate.
Algumas nem prestaram depoimento e foram somente citadas. Maria Inês, brasileira,
amapaense, solteira, meretriz, 14 anos de idade, residente na pensão Xadrezão, sabendo ler e
escrever, disse que estava dançando na boate e que o acusado estava ali presente se
divertindo. Em certo momento, “ouviu Rosineide, meretriz e que também estava naquela
boate queixar-se de ter sido esbofeteada pelo acusado, no interior daquela casa; que, em
seguida generalizou-se uma discussão entre a referida mulher e o acusado presente,
desentendimento esse que chegou até a rua”.308 Já a meretriz Marize, brasileira, amapaense,
solteira, residente na rua Hildemar Maia, 147, bairro da CEA, 18 anos de idade, sabendo ler e
escrever. Disse:

Que, a poucos momentos dirigiu-se até a boate “Xadrezão”, a fim de chamar


uma sua irmã que ali se achava de nome Maria Das Dores; que, ao chegar à
porta da referida boate já havia uma confusão entre algumas mulheres e o
acusado presente; que, nesse momento a depoente, foi segura pela alça de
sua blusa e atingida por uma bofetada que acusa ter sido o acusado
presente.309

Abutre relatou que estava na boate Xadrezão, fardado e de passagem para o quartel, na
estrada Macapá-Santana. Disse que não havia batido em nenhuma mulher e que, quando a
viatura chegou, estava do lado de fora da boate, com Maria Helena. Segundo seu relato, um
policial descera do carro e deteve Maria Helena, mandando que ela entrasse no veículo. Ele se
dirigira até ela para perguntar pelo dinheiro que estava faltando no seu bolso, quando fora
atingido com um pontapé por um dos policiais, ocasião em que reclamara e fora ameaçado de
ser quebrado de cacete.310 Na sua ficha de vida pregressa, consta que sua esposa tinha 16 anos
e que sua filha estava com alguns meses de idade. Abutre era mais um homem casado que se
permitia ter a companhia de meretrizes, sem que isso lhe causasse qualquer prejuízo conjugal.
Rosineide, brasileira, paraense, de 17 anos de idade, meretriz, residente no bairro
Santa Rita, às proximidades do abrigo dos Velhos, no prostíbulo ocupado por diversas
meretrizes, sob a responsabilidade da mulher Maria Pretinha, disse que Antônio Luiz vulgo
“Abutero” era xodó da meretriz Maria Helena:

Que, em dado momento a declarante foi avisada por outra mulher que
Abutero iria batê-la a pedido de Helena; que, a declarante sabedora de que

308
Ibidem, p. 4.
309
Ibidem, p. 4.
310
Ibidem, p. 5.
103

seria agredida pelo dito elemento procurou afastar-se da festa que se


realizava naquela boite, porém, quando se achava na rua o mesmo seguiu-a e
aplicou-lhe um pontapé e uma bofetada, esta acertando em outra mulher que
seguia ao seu lado; que, antes, porém, Antônio Luiz, havia agredido a jovem
Maria Inez, aplicando-lhe uma bofetada e rasgando suas vestes; que, no
momento em que o acusado agredia a declarante chegava um carro da Rádio
Patrulha da Polícia Militar, cujos seus elementos saltaram calmamente e
procurando apaziguar os ânimos em virtude de Helena, que se acompanhava
de Antônio Luiz insuflar a situação, generalizando-se uma desordem; que,
como os policiais detivessem Helena, o acusado interferiu-se afirmando que
jamais eles conduziriam a referida mulher que o acompanhava; que, Antônio
Luiz, afirmou ainda de que: “essa mulher que tá comigo não vai, se for pra
levar ela, leva eu também” (textuais); que, ato contínuo os ditos policiais,
usando muita calma, colocaram Helena no carro da RP, passando desse
instante em diante o acusado a detratar os elementos da Polícia, taxando-os
de cretinos, dizendo ser homem para todos os elementos e que se abusassem
muito quebrava todo o carro da RP; que, não obstante a advertência de um
dos policiais para que o acusado cessasse com aquele procedimento, o
mesmo passou a ofendê-los com palavras imorais, para em seguida agredir o
cabo Comandante da mencionada viatura; que, nesse momento os policiais o
prenderam e a força colocaram-no na viatura da RP-PR, levando-o; que,
ontem [dia 11 de agosto de 1976] naquela boite, a noite, reuniu-se uma turma
de soldados do exército, com atitudes ameaçadoras contra as mulheres que
denunciaram o comportamento do acusado, o qual também estava presente,
fardado, afirmando que iria em sua casa trocar de roupa e voltava para
conversar com Maria Inês que testemunhou sua prisão pelos policiais”.311

O depoimento de Rosineide é bem elucidativo sobre o que aconteceu na noite do


crime. As declarações do proprietário da boate Xadrezão corroboram o depoimento dela. F.
Castro, brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34 anos, comerciante, residente na rua
Hildemar Maia, 2640, bairro do “Miritizal” (Buritizal), sabendo ler e escrever, depôs que no
dia 10, na madrugada, soldados do 34º BIS chegaram na boate, entre eles estava Abutre. As
mulheres que frequentavam essa casa de tolerância haviam comentado que foram agredidas
por Abutre na rua, fora da boate. O depoente deixou o bar e foi para o local, onde encontrou
Abutre ofendendo os policiais. Ele declarou que não era a primeira vez que o denunciado
promovia desordem na boate, especialmente agredindo prostitutas:

Que em certa ocasião Abutre, desligou todas as luzes da boite para promover
uma desordem, sendo domingado pelo motorista Hely Barbosa que evitou
maiores consequências, que, dias depois deste fato, o declarante em
momento do seu almoço, foi chamado por alguém que desejava lhe falar e o
atendendo, deparou com Antônio, o qual lhe ameaçou e avisou que à noite
estaria lá com uma Patota (textuais) para quebrar a referida boite em revide
de haver sido contido na noite anterior pelo motorista Hely que o dominou e
o fez retirar-se do local; que, ao anoitecer, por volta das vinte e duas horas,
311
Ibidem, p. 14.
104

deu entrada no salão da boite um grupo de soldados, chefiados por Antônio


Luiz, o qual, já no meio do salão, gritou ‘quede o dono da boite e as putas
daqui que me deram porrada (textuais), ato contínuo, desligaram a luz e
passaram a depredar os móveis do salão, pondo em pânico as mulheres e os
demais frequentadores que ali se achavam amesendados”. Saíram em
correria pela rua com destino ignorado e depois disso outros fatos de menor
importância aconteceram e sempre com a presença de Abutre que era
acostumado a agredir as mulheres que frequentam aquela casa.312

Depois da prisão pelos policiais militares, Abutre foi apresentado ao Comandante do


34 º BIS e recolhido ao seu quartel, ficando à disposição do Juízo. Para o promotor do caso, a
denúncia era improcedente, pois a prova era fraca, o que gerava dúvida e favorecia o
denunciado. Outra observação é que o desacato e as ameaças sofridas por um policial militar
seriam tratados de outra forma se o acusado fosse um civil ou se não fosse um soldado do
exército.
Os depoimentos foram unânimes em acusar Abutre de tumultuar boates com suas
atitudes machistas e misóginas contra prostitutas. Ele agredira Rosineide, Marize e Maria Inês
somente em uma noite. Pelas declarações somos informados que ele agrediu Rosineide a
pedido de Maria Helena. Logo, concluímos que as duas tinham uma rixa e que Helena se
aproveitara da posição de seu “xodó” para se vingar de Rosineide. Abutre fizera uso do seu
lugar de macho para ameaçar e xingar policiais, agredir prostitutas e reforçar sua
masculinidade perante sua amante. No dia seguinte ao ocorrido, ele foi ao Xadrezão com um
grupo de soldados para intimidar as meretrizes e o proprietário da boate. Abutre se sentiu à
vontade para fazer isso pela certeza de que não seria punido, o que de fato não aconteceu.
Aliás, ele era acostumado a promover desordens e agredir as meretrizes que moravam na
boate, ou simplesmente a frequentavam.
Sidney Chalhoub infere que para os homens pobres afirmarem a sua masculinidade,
eles agiam de acordo com normas construídas pela própria comunidade e era o machismo que
norteava amiúde as suas práticas:
O homem despossuído constrói sua identidade social a partir do que faz, e não,
obviamente, a partir do que tem, pois, por definição, ele nada ou pouco tem. Sendo
assim, para ele, ser é fazer, e não possuir. Por isso, a ideologia machista como
reconstrução dos despossuídos reveste-se de todo um sentido de ação, de normas
do agir na comunidade social. O machismo, porém, como conjunto de normas que
induzem e orientam as ações dos homens, é um fenômeno social profundamente
dialético. De um lado, o machismo é o código que norteia a dramatização e a
ritualização dos conflitos entre os homens pobres em questão, permitindo, assim,

312
Ibidem, p. 16.
105

que os microgrupos socioculturais estudados construam um sentimento coletivo e


uma identidade social relativamente autônomos e originais.313

Desse modo, como bem explica Chalhoub, o homem pobre constrói sua identidade
pelo que faz. Como alerta Cerqueira Bastos, não podemos naturalizar o comportamento e
achar que é destino dos homens, principalmente os pobres, serem violentos e agressivos com
mulheres e com outros homens.314 No contexto amapaense, acreditamos que o motivo pelo
qual os sujeitos citados na documentação agiram com violência foi a sensação de impunidade
decorrente de seu poder político e social. Ou seja, não se trata de uma violência natural, mas
institucionalizada e autorizada pelo Estado ditatorial territorial e nacional.
Nesse sentido, O., Raimundinho, Uriel, Abutre e demais homens citados, precisavam
demarcar que eram machos perante seus rivais, mas também diante de mulheres. Quando
promoviam tumultos nas boates e nas ruas de Macapá, os soldados estavam se valendo de
uma masculinidade particular, compartilhada somente com seus pares e marcada pela
hierarquia militar. Nesse contexto, podemos até mesmo definir a masculinidade de Abutre,
Raimundinho, O. e Uriel como uma masculinidade hegemônica, enquanto a masculinidade
dos recrutas é marginalizada, porque é colocada à margem da masculinidade hegemônica dos
soldados. Porém, todos esses homens citados assumem uma masculinidade marginalizada
perante seus superiores militares e de homens da classe dominante, porque eles são apenas
trabalhadores. Ao que parece, esses militares assumiram uma postura de “donos da cidade”
ou, no mínimo, donos dos ambientes festivos. Mas, no momento em que as meretrizes e o
proprietário do Xadrezão se acharam seguros para denunciar os excessos do soldado Abutre,
ficou claro que as vítimas também tinham seus meios de resistência.

313
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 326-327.
314
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Op. Cit., p. 16.
106

2.4 Os caminhos da prostituição: deslocamentos e resistências no espaço urbano


amapaense
A segregação social do espaço urbano macapaense dividia a capital do Território
Federal do Amapá em bairros privilegiados e periféricos. O centro político-administrativo e o
Bairro Alto315 eram os lugares privilegiados e urbanizados de Macapá. Os trabalhadores
pobres e negros já haviam sido retirados daí justamente por não terem condições de cumprir
os padrões ocupacionais estabelecidos pelo governo territorial.316 Como consequência, outros
bairros foram formados pelos trabalhadores pobres retirados do centro urbano e também pelos
migrantes que chegavam a Macapá. Bairros como Trem, Laguinho, Buritizal, Beirol, Pacoval
e Santa Rita eram bairros periféricos, assim como o bairro da Doca da Fortaleza. Este tinha
fama de local perigoso e desse modo era apresentado nas páginas da imprensa do TFA.
A geografia da prostituição poderia ser definida também como geografia das diversões
populares. Porém, decidimos mapear somente os lugares que, segundo as fontes, contavam
com a presença de prostitutas. Esses lugares eram bares, botequins, dançarás, pensões, clubes,
boates e casas de habitação coletiva. Nossa intenção é fazer uma caminhada simbólica pelos
lugares urbanos de prostituição no TFA. Contudo, esse mapa se restringe à cidade de Macapá,
pois não foi possível desenhar outro com as demais localidades do TFA, pois em alguns locais
só identificamos um ponto de prostituição. Já em Macapá identificamos vários pontos.

315
O Bairro Alto compreendia o perímetro da rua Hamilton Silva até a rua Cândido Mendes. Atualmente essa
região corresponde ao bairro central.
316
Nesse atinente, afirma Sidney Lobato: “Novos e cada vez mais populosos bairros foram surgindo em Macapá,
a partir de 1944. [...] Dois processos concorreram para a formação dos bairros suburbanos: o grande movimento
migratório rumo a Macapá e a inviabilização da permanência dos moradores mais pobres no centro urbanizado
desta cidade, por meio do estabelecimento de padrões ocupacionais que eles não podiam alcançar” (LOBATO,
Sidney. Op. cit., p. 85).
107

Imagem 3. Mapa dos Pontos de Prostituição em Macapá (1964-1980)


108

Como podemos ver, os pontos de meretrício estavam espalhados pela cidade de


Macapá. Não havia uma grande zona definida, mas pequenas áreas de meretrício situadas nos
bairros mais afastados. Os bairros Central e Santa Rita se destacam. Foi necessário classificar
esses lugares, porque eles tinham diferenças entre si. Nem todos eram dedicados ao serviço
sexual, mas eram frequentados por prostitutas. Aqueles que eram boates, pensões e casas de
habitação coletiva eram residências das damas da noite. Algumas boates como Juçarão e
Suerda tinham quartos e também funcionavam como pensão de prostitutas. Já outras como a
Hollywood e Merengue eram conhecidas como dançarás e não possuíam quartos para serviços
sexuais e nem eram resididos pelas “meninas”. As pensões citadas no mapa também davam
festas, talvez até na mesma proporção das boates e dançarás, mas classificamos como pensões
porque assim foram apresentadas no conjunto documental. Os bares e botequins eram
frequentados por meretrizes, mas elas não possuíam residência neles. Frequentavam tais
lugares na companhia de amásios, namorados, amantes, colegas e clientes, e por vezes iam a
esses lugares a trabalho, com o objetivo de conseguir clientes.
Infelizmente, nem todos os bairros localizados no mapa foram descritos pela
historiografia amapaense. O bairro do Trem era conhecido como bairro operário, seus
habitantes eram em sua maior parte trabalhadores advindos de outros estados. Lobato cita dois
dos bairros que mais diretamente nos interessam:

Na Denúncia redigida pelo promotor Hildemar Maia e endereçada ao juiz da


Comarca de Macapá, em 13 de de novembro de 1948, Francisco foi acusado
de atropelar e matar Benedita dos Santos Ataide, “quando transitava com o
caminhão nº 41, de propriedade do Govêrno do Território, do qual era
motorista profissional, pela estrada de rodagem que liga esta cidade ao
bairro denominado ‘Trem’, nas imediações da chácara ‘Beirol’, pertencente
ao senhor Paulo Moacir Carvalho”. Francisco depôs que “viajara desta
cidade para o bairro do ‘Trem’, a fim de transportar areia e que, ao se
aproximar da chácara ‘Beirol’, viu uma senhora (acompanhada de uma
menina) repentinamente atravessar a rodovia diante do carro que ele dirigia.
Havia um hiato no espaço habitado de Macapá, que permitia se perceber o
Trem como algo localizado fora da cidade.317

Na década de 1960, o Trem já não estava fora dos limites da cidade, porque Macapá já havia
expandido seu perímetro urbano e o bairro já contava com vários melhoramentos de infraestrutura. O
Beirol já não era mais uma chácara, pois estava delimitado enquanto bairro. Nele estava localizada a
Colônia Penal do Beirol, o antigo presídio do TFA. O bairro da Favela foi formado após parte da
população pobre e negra habitante do centro histórico de Macapá ser deslocada para seu perímetro e
para o bairro do Laguinho. Sidney Lobato descreve a Favela da seguinte maneira:

317
Ibidem, p. 86-87.
109

Uma das áreas dessa zona [suburbana] que mais rapidamente cresceu foi a
Favela – nome dado a uma baixa alagadiça que se localizava ao norte do
“bairro Alto”. Como já afirmamos, uma parcela da comunidade negra que
residia no centro histórico de Macapá mudou-se para tal área. [...]. Muitos
imigrantes decidiram construir na Favela as suas novas moradias. Entre
outros fatores, tal escolha decorria da proximidade deste lugar em relação ao
centro político-social de Macapá.318

A Favela também era conhecida como Santa Rita, que é o atual nome do bairro. Nele
foi formada uma importante área de meretrício que é constantemente citada nas fontes, mas
não como zona. Nós é que a estamos definindo assim, pois nela havia várias boates. Lá
estavam localizados o Juçarão, Lago dos Sonhos e Merengue, locais conhecidos como
inferninhos, segundo a definição popular. Em entrevista, a comerciante Maria Albuquerque
cita diversos estabelecimentos noturnos e classifica alguns como inferninhos: “tinha esse tal
de Merengue. Era só dança e bagunça. Pense na bagunça, era bêbado e brigava, polícia
pegava, levava”.319 Ela era proprietária de uma boate – ou casa de mulheres como ela a define
–, e afirma que o Merengue era apenas um dançarás, pois não possuía quartos para meretrizes.
Mas, ela não classifica a sua boate como inferninho, inclusive a diferencia deles.320.
A Doca da Fortaleza ficava na margem esquerda do Igarapé da Fortaleza no bairro
central321, era um local importante para cidade de Macapá. Tanto que historiadores como
Paulo Costa, Adalberto Paz e Sidney Lobato se dedicaram a escrever sobre ela322. Sempre
movimentada, era pela Doca que a cidade era abastecida pelos ribeirinhos e pelos regatões. A
Doca tinha meretrizes, comerciantes, marítimos, estudantes e tantos outros sujeitos como
moradores e frequentadores. Era constituída de palafitas e pontes de madeira para facilitar a
mobilidade dos transeuntes. Adalberto Paz define a doca da Fortaleza da seguinte maneira:

O nome referia-se a um canal natural que tinha início em um igarapé


bem ao lado da Fortaleza de São José de Macapá e prolongava-se pelo
interior da cidade, sendo navegável por embarcações de pequeno porte
e canoas. Porém, com o passar do tempo, toda a área nas imediações
318
Ibidem, p. 86.
319
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
320
Ocultamos o nome da boate da entrevistada por solicitação dela, que não quis expor a desgastes as mulheres
que lá trabalharam. Maria Albuquerque é uma personagem importante para nossa pesquisa, por isso destinamos
um espaço específico (próxima seção) para analisar a sua entrevista.
321
A Doca da Fortaleza ficou conhecida como um bairro, mas no período estudado já era entendido que essa
região fazia parte do bairro central. Contudo, o local permaneceu como bairro na tradição popular durante várias
décadas.
322
COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os
significados dos regatões na vida do Amapá (1945-1970). Belém: Açaí, 2008; PAZ, Adalberto Júnior Ferreira.
Op. Cit., 2011; LOBATO, Sidney da Silva. Op. Cit., 2019.
110

do canal passou a receber a mesma denominação. A Doca da


Fortaleza, portanto, representava a instituição e manutenção autônoma
de um ambiente de entretenimento, trabalho e convívio essencialmente
popular, perfeitamente incorporado ao universo cultural e boêmio da
cidade.323

Ao escrever sobre a área de prostituição do Palais-Royal, na época da Revolução


Francesa, em Paris, Clyde Plumauzille324 destaca que havia aí uma dinâmica econômica e
sexual porque as prostitutas eram parte do lazer parisiense. Então, aí existiam diversos
estabelecimentos comerciais, assim como: shows, teatros, casas de aposta e restaurantes.
Como as prostitutas moravam nos arredores do Palais-Royal, elas se exibiam nas janelas ou
em passeios e assim encontravam clientes. Estes poderiam passear nos jardins do palácio, ler
algum livro nas bibliotecas, assistir a um espetáculo e terminar a noite acompanhados por
prostitutas.325
Em Macapá, o intenso comércio praticado durante o dia e a boemia noturna animavam
as redes de sociabilidade que se formaram na Doca. Em entrevista, o ex-piloto do governo
territorial Arlindo Oliveira relatou que “o mercado era ali. Aquilo era palafita, tinha até
prostituição. Uma vez eu fui fazer compra lá e eu vi uma mulher sair de dentro d’um buraco
daqueles, completamente nua […]”.326 Uelba do Nascimento explica que em Campina
Grande-PB, desde fins do século XIX, homens ricos e letrados cobravam o saneamento da
cidade às autoridades governamentais, sobretudo do centro urbano. Assim, na década de
1930, um articulista anônimo escreveu em um jornal que os casebres, a falta de higiene, a
sordidez e imundície de mulheres prostitutas não poderiam ocupar as áreas centrais da
cidade.327 Nascimento afirma que as prostitutas do centro de Campina Grande foram
transferidas para a região dos Currais, uma área rural.328
Imagem 4. Igarapé da Fortaleza, década de 1950

323
PAZ, Adalberto Junior Ferreira, Op. cit., p. 41-42.
324
PLUMAUZILLE, Clyde. Le «marché aux putains»: économies sexuelles et dynamiques spatiales du
Palais-Royal dans le Paris révolutionnaire. Éros parisien. 2014. Disponível em: http://gss.revues.org/2943.
325
Ibidem, p. 6.
326
LOBATO, Sidney. Op. cit., p. 146. Entrevista com Arlindo Silva de Oliveira, realizada em 13 de outubro de
2006.
327
NASCIMENTO, Uelba Alexandre do. O doce veneno da noite: prostituição e cotidiano em Campina Grande
(1930-1950). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de Campina Grande, 2007, p.
53-54.
328
Ibidem, p. 60.
111

Fonte: Blog Porta-Retrato

Imagem 5. O Igarapé da Fortaleza transformado em canal, década de 1960

Fonte: Blog Porta-Retrato

Imagem 6. Doca da Fortaleza em 1965

Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS)


112

No ano de 1965, o governo territorial iniciou a construção de um canal artificial no


Igarapé da Fortaleza, que ficou conhecido como Canal da Avenida Mendonça Júnior. Segundo
Paulo Costa, “o novo canal não permitiu a navegação, tendo apenas um caráter urbanístico
para o melhoramento do centro da cidade”.329 Essa remodelação urbanística teve como
objetivo disciplinar e higienizar essa parte da cidade. Era um local que havia muitos anos
preocupava os gestores amapaenses, não pelo comércio de gêneros e pelas embarcações, mas
pelos botequins e pela prostituição.

Imagem 7. Canal da Mendonça Júnior em 1966

Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS)

O jornal Novo Amapá informou que o processo de alteração do Canal da Fortaleza


estava sendo realizado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e que
essa era “uma das mais importantes obras iniciadas pelo governo Revolucionário, a fim de
mudar o aspecto desolador e contribuir com a saúde pública desta terra”330. O Igarapé da
Fortaleza, até o início da obra, era considerado um símbolo do atraso causado pelos governos
anteriores e o governo ditatorial seria o responsável pelo novo momento de progresso
marcado por melhoramentos urbanísticos. Em novembro de 1967, houve um grande incêndio
no canal da Doca e, para Paulo Costa, esse episódio acelerou o processo de reordenamento
daquele espaço, o que foi concluído no início da década de 1970331. O já referido jornal fez
questão de publicar que “a Doca da Fortaleza está se transformando num dos melhores
logradouros públicos”332. O impresso assim buscava publicizar as obras governamentais e
indicar que aquele local outrora descrito como desolador, agora estava transformado e
urbanizado.

329
COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 182.
330
Novo Amapá, nº 1.568, 20 de abril de 1970.
331
COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 190-192.
332
MINIATURAS. Novo Amapá, n° 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 5.
113

As canoas e regatões deixaram de navegar por ali, mas os sujeitos que antes
frequentavam aquele local não. Os boêmios, os bêbados e as prostitutas continuaram
transitando e ocupando aquele espaço remodelado e urbanizado, seja porque moravam lá em
quartos alugados, seja porque frequentavam boates como a Hollywood e botequins como o
Bar Caboclo. Em agosto de 1970, a seção da DSG publicou uma portaria de 16 de junho,
proibindo a moradia e permanência de meretrizes na avenida Mendonça Júnior, no perímetro
entre as ruas Cândido Mendes e Eliezer Levy:

Portaria n° 126/70-DSG
Aprovo:
Gen. Ivanhoé Gonçalves Martins
Governador

O Capitão de Corveta (AFN) R. Rem. Luiz Gonzaga Valle, Diretor da


Divisão de Segurança e Guarda, usando de suas atribuições legais e,

Considerando a promiscuidade, a falta de higiene e a sordidez dos


prostíbulos localizados na Av. Mendonça Júnior, perímetro compreendido
entre as Ruas Cândido Mendes e Eliezer Levy;

Considerando que embora seja a zona policiada por esta Divisão, as


meretrizes que ali vivem ferem o decoro público proferindo palavras de
baixo calão e exibindo-se com trajes escandalosos;
Considerando que os referidos prostíbulos estão justamente situados no
centro da cidade, em local de acesso às famílias e sobretudo aos estudantes
que descem do populoso bairro do Trem;

Considerando que existem locais afastados do centro da cidade com


habilitações que podem perfeitamente e em melhores condições de higiene
receber as decaídas que exploram o triste comércio da prostituição;

Considerando, finalmente, que compete a esta Divisão a fiscalização e a


repressão nos casos desta natureza,

RESOLVE:

Proibir terminantemente a localização de meretrizes no local acima referido,


dando o prazo de sete (7) dias, a partir desta data, para que as mesmas
desocupem os cômodos que ali ocupam.

Dê-se Ciência e Cumpra-se

Gabinete da Chefia de Polícia, em Macapá, 16 de Junho de 1970

Luiz Gonzaga Valle


CCAFN - Diretor da D.S.G.333

333
DIVISÃO de Segurança e Guarda. Novo Amapá, n° 1.582, 08 de agosto de 1970, p. 2.
114

Essa portaria foi uma tentativa de higienizar socialmente o novo canal e a área central
de Macapá. Havia décadas esse espaço era ocupado pelas meretrizes e com a retificação do
canal o governo passou a exigir que elas se retirassem para não “sujar” a capital urbanizada
com o que era identificado como promiscuidade, falta de higiene e sordidez. O texto informa
que a região mencionada era policiada pela DSG, mas o comportamento e vocabulário
indecorosos dessas mulheres não podiam ser controlados pelas forças policiais. Assim, a
presença delas era considerada incômoda e uma influência negativa para as famílias que
passavam por li.
O documento cita a existência de locais mais afastados do centro da cidade que podem
acomodar as meretrizes com melhor higiene, trecho que consideramos mais importante.
Primeiro porque a falta de decoro, os palavrões e as roupas curtas são constantemente citados
pelos governantes, por jornalistas, pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade em geral. Em
segundo lugar, essa portaria revela que a prostituição urbana feminina sempre foi alvo da
vigilância das forças de segurança do TFA e que eliminar a prostituição não era a intenção do
governo ditatorial, mas sim tira-la do centro da cidade. Por último, destacamos que a
proibição da permanência das meretrizes no centro da cidade e seu deslocamento para áreas
mais afastadas e, consequentemente, longe do centro de Macapá, também se explica pelo fato
de, não muito longe do canal, funcionarem órgãos de governo. Logo, não é de se admirar que
as prostitutas fossem uma presença incômoda não só pelo que constava na portaria, mas
também porque sua proximidade não agradava as autoridades governamentais. Contudo, essa
“sugestão” de que as decaídas fossem transferidas para locais mais afastados do centro urbano
não explica o aparecimento de novos locais de meretrício nos bairros periféricos, porque eles
já existiam. Lobato indica que os maiores prostíbulos estavam situados fora dos limites do
centro da cidade de Macapá334, então essa proposta do diretor da DSG pode ser entendida no
sentido de que elas fossem pedir abrigo e trabalho nas pensões e boates periféricas e que
deixassem de viver em cômodos e quartos alugados, especialmente no reformado logradouro
público da cidade.
Em Vitória-ES, ocorreu um movimento similar no mesmo período. As prostitutas,
majoritariamente pobres e negras, foram expulsas do centro de Vitória, “lugar de lazer e
residência das classes médias e altas, compostas, principalmente, por uma população
branca”335. Dessa forma, podemos considerar que a expulsão das prostitutas das áreas centrais
das duas capitais foi não apenas uma higienização de classe, mas também de cor. Para Mirela

334
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219, 2019.
335
MORGANTE, Mirela Marin. Op. Cit., p. 64, 2020.
115

Morgante, o decreto de expulsão das prostitutas de Vitória teve como finalidade preservar a
moral e os bons costumes porque as mulheres moradoras do centro poderiam ser confundidas
ou influenciadas pelas prostitutas capixabas336. Já em Joinville-SC, também foi na década de
1960 que as práticas das prostitutas começaram a incomodar o poder público a ponto deste
querer fixa-las em um só local, ao invés de ficarem espalhadas pela cidade, sobretudo no
centro urbano.337
A preocupação das autoridades governamentais brasileiras com a prática da
prostituição nas ruas centrais das cidades não foi exclusiva da Ditadura empresarial-militar.
No início do século XX, no Rio de Janeiro, então capital federal, os delegados de polícia
tentavam retirar as prostitutas das ruas, principalmente as moradoras dos sobrados do centro
da cidade. Em 1900, o delegado Olympio Leite disse que tinha tirado a prostituição de uma
região do centro, mas no ano seguinte outro delegado continuava preocupado com a mesma
região.338O delegado em questão era Vicente Reis que, ao tentar sanear socialmente a região,
cometeu diversas arbitrariedades contra as prostitutas, como tirá-las à força de casa e, mesmo
depois de recolhidas, prendê-las. Prostitutas procuraram a imprensa para denunciar as ações
de Reis. Apesar de ser a favor do saneamento moral da cidade, tal imprensa criticou o
delegado, admitindo que ele “atropelou a lei”.339 Outra forma de resistir às arbitrariedades
policiais foram os pedidos de habeas corpus feitos por algumas das prostitutas que foram
presas sem motivos.
Em 1904, no contexto da revolta da vacina, da remodelação urbana e dos conflitos
sociais daí decorrentes, a tentativa de saneamento moral do centro do Rio de Janeiro
continuou. Mas dessa vez teve êxito. O delegado Ernesto Garcez ameaçou prostitutas de
prisão caso não saíssem da rua Sete de Setembro. Por causa da revolta da vacina, o Rio de
Janeiro estava em estado de sítio, então não era possível questionar qualquer medida por meio
de habeas corpus.340
O deslocamento de prostitutas ocorrido em Macapá durante a Ditadura nos permite
entender porque a Doca da Fortaleza deixa de ser a maior referência de zona de meretrício da
capital amapaense. Outros locais começam a figurar com mais frequência que ela nas fontes.
Então, acreditamos que a eliminação da prostituição na frente da cidade foi efetivada com

336
Ibidem, p. 188.
337
SILVA, Janine Gomes da. Casas, esquinas e ruas ‘do pecado’: lugares de prostituição, memórias sobre um
‘discurso caminhante’. In: FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.).
Prostituição em áreas urbanas: Histórias do Tempo Presente. Florianópolis: Editora UDESC, 2010, p. 53.
338
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 56-57.
339
Ibidem, p. 58.
340
Ibidem, p. 60-61.
116

relativa eficiência pelo governo ditatorial. Atualmente, o canal da avenida Mendonça Júnior é
um local de intenso comércio varejista e não há sequer menção ou indício de prostituição no
local. O objetivo dessa proibição foi eliminar as meretrizes do centro da cidade, e podemos
considerar que essa finalidade foi alcançada, mas não no ritmo que o governo ditatorial
desejava. Em junho de 1974, temos um indício de que as prostitutas não obedeceram a
portaria:

Dono do bar nega arruaças

Um órgão de informação de nossa capital está responsabilizando o


proprietário do conhecido Bar Caboclo, sr. Abraão Serrão de Castro, pela
constante falta de respeito que se verifica nas adjacências daquele bar, em
consequência de uma quantidade enorme de prostitutas que por ali se
aglomeram, principalmente a partir das 10 horas da noite. A polícia vai
entrar em ação. As prostitutas terão de abandonar o local.

Informação errada

Para verificar a verdade em torno do assunto, o NOVO AMAPÁ esteve


conversando com moradores da redondeza e com o proprietário do
mencionado bar, que disseram realmente haver fatos contrários à moral, só
que, não é propriamente no Bar Cabloco, mas numa pensão que existe ali
bem próximo.

O sr. Abraão de Castro chegou a declarar que não permite a entrada de


prostitutas em seu bar, desde quando a polícia, numa batida sensacional,
obrigou-as a se retirarem definitivamente daquele recinto. Desde essa época,
diz ele: “tenho procurado não contrariar o trabalho da polícia. impedindo que
elas entrem no meu bar. Acontece que as mulheres estiveram um tempo
sumidas, temerosas da ação policial, mas depois voltaram. Desta concentram
numa pensão que fica bem próximo ao meu bar. Acontece que todo mundo
toma como ponto de referência o Bar Caboclo, o que não é verdade”.

Polícia vai agir

Sabedora de que as prostitutas voltaram ao local de onde haviam sido


expulsas, a polícia vai entrar novamente em ação e exigir que as mulheres se
retirem de uma vez por todas das imediações daquele bar, o que, inclusive
disse o sr. Abraão, “não só põe em jogo o meu nome como é um sério perigo
para as famílias que residem às proximidades”341.

O proprietário do Bar Caboclo estava sendo responsabilizado pela presença das


prostitutas no estabelecimento. Abraão alegara que tais mulheres não frequentavam mais o
seu bar. Mas, este local já tinha se tornado um conhecido ponto de prostituição antes da
proibição, então ele (proprietário) pagaria pela fama e não pelos fatos. A indicação da
existência de uma pensão na região revela que a expulsão das meretrizes não foi bem sucedida

341
Novo Amapá, n° 1734, 15 de junho de 1974, p. 03.
117

nesse período. De fato, no processo do homicídio de uma meretriz é mencionada uma casa de
cômodos existente na avenida Mendonça Júnior que era habitada por prostitutas, inclusive
pela vítima.342 Apesar do temor da polícia, as meretrizes acabaram voltando a frequentar e a
morar nas imediações do Bar Caboclo. Mas, segundo Abraão, no seu bar elas estavam
proibidas de entrar. Importante atentar à pequena fala desse comerciante sobre a associação de
seu nome à prostituição e sobre o perigo desta para as famílias que residiam nesse local.
Podemos então concluir que a presença das prostitutas era incômoda tanto para o poder
público quanto para os moradores da área central de Macapá, mas essas mulheres, por meio
de suas experiências, estavam batalhando por esse espaço que há tanto tempo ocupavam.
Como destacamos anteriormente, nas reformas urbanas das primeiras décadas do
século XX no Rio de Janeiro, os delegados conseguiram retirar as prostitutas de algumas ruas
do centro da cidade, mas:

Quando não voltavam para as mesmas casas depois do momentâneo arroubo


moralizador de algum delegado, elas ocupavam novas ruas ou contribuíam
para o aumento da visibilidade de uma outra modalidade de prostituição, em
que as ruas viravam o palco da exposição dessas mulheres, que
arrebanhavam clientes para encontros em hospedarias ou casas de
rendez-vous estrategicamente localizadas em ruas centrais. Quando as
mulheres visavam uma clientela socialmente distinta, elas “optavam” por
trocar o centro da cidade pelos arredores da Lapa, de onde sempre podiam
tomar um bonde da Companhia Jardim Botânico e passear pela Avenida
Central. Qualquer que fosse o caso, a preocupação policial passou a se
concentrar na chamada prostituição clandestina, a que não envolvia mulheres
notoriamente conhecidas como prostitutas. Dessa forma, o espectro de
mulheres sob suspeita policial aumentava, incluindo uma variedade de
trabalhadoras que circulavam pelas ruas da cidade. O espraiamento
geográfico e a crescente visibilidade dessas outras modalidades de comércio
sexual eram decorrência da estratégia de policiamento descentralizada que se
consolidava por aqueles anos, e começaram a motivar as autoridades
policiais a desenvolver novas estratégias.343

Assim, as ações policiais tinham efeito momentâneo, porque as prostitutas sempre


voltavam para o lugar em que moravam e exerciam sua atividade sexual antes ou
simplesmente começavam a ocupar novas ruas. Segundo Schettini, as medidas de retirada
dessas mulheres não conseguiram exterminar com a atividade sexual nas ruas, pelo contrário,
o resultado foi o espalhamento das prostitutas e, consequentemente, a ampliação da geografia
da prostituição. Em diferentes recortes temporais, notamos que o simples ato de expulsar
trabalhadoras sexuais de determinadas regiões não fazia com que elas deixassem de realizar
seu trabalho e nem que elas definitivamente se deslocassem para lugares mais afastados.

342
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973.
343
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 64-65.
118

Outros bairros como Buritizal e Pacoval também foram citados nas fontes, mas na
bibliografia utilizada não há registros sobre esses bairros. No período dessa pesquisa, eles
eram os mais afastados da área central. No Pacoval estava localizada a já citada Pensão/Boate
da Suerda. Em um processo criminal, Francisco, brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34
anos, comerciante, residente na rua Hildemar Maia, bairro do Miritizal [Buritizal], sabendo ler
e escrever, foi testemunha de um caso de desacato e resistência à prisão. Em seu depoimento,
ele disse que era proprietário da Boite Xadrezão, localizada na esquina da rua Paraná com a
avenida Mendonça Furtado, no bairro Santa Rita, explorando o comércio de bar e botequim
com danças, durante a noite e:

Que a referida boite está licenciada somente pela Delegacia de Costumes e


Diversões, recebendo para isso um alvará mensalmente e pagando a quantia
de cento e seis cruzeiros e mais duzentos e cinquenta cruzeiros sobre direitos
autorais, a Divisão de Polícia Federal; que, o declarante faz funcionar o dito
estabelecimento diariamente até às duas horas da madrugada, com entradas
grátis e venda de bebidas no bar, seguido de dança, de caráter popular.344

A partir disso, constatamos que os proprietários de bares, botequins, boates e dançarás


pagavam uma taxa mensal para a Polícia Federal e recebiam um alvará de funcionamento por
meio de uma delegacia especializada em costumes e diversões. Também notamos que havia
um horário limite de funcionamento: até duas horas da madrugada, o que não significava que
esse horário não era ultrapassado pelos proprietários.
No bairro Buritizal, mais precisamente na rua Claudomiro de Morais, atualmente
existe uma zona de prostituição. Essa via, conhecida também como Rua do Amor, assumiu as
características antes observadas na Doca da Fortaleza. Trata-se de uma rua de intensa
atividade comercial, mas que ao anoitecer assume outras características, porque mulheres cis
e trans fazem ponto no decorrer da via. Podemos destacar também a diversidade de motéis
existente ao longo da rua. Ao analisar as territorialidades da prostituição em Macapá, com
foco na rua Claudomiro de Morais, Diego Silva, Worlen Souza e Gutemberg Silva, explicam
que tais territorialidades são reputadas, no Brasil, como ambientes escuros, lugares com
grande fluxo de pessoas e atividade comercial, além da proximidade com casas de show, bares
e motéis.345 Podemos inferir que tanto a Doca da Fortaleza, quanto a rua Claudomiro de
Moares, consideradas suas distâncias cronológicas, assumem características das
territorialidades da prostituição.

344
AFCM. Processo crime nº 4209 de 13 de fevereiro de 1978, p. 05.
345
DA SILVA, Diêgo Soares; DA SILVA SOUZA, Worlen; DE VILHENA SILVA, Gutemberg. A territorialidade
da prostituição em Macapá-AP: um estudo de caso a partir da Rua Claudomiro de Morais. Boletim Gaúcho de
Geografia, v. 42, n. 2, 2015, p. 569.
119

Para além de Macapá, é necessário citar algumas outras localidades do TFA que
apareceram nas fontes. Como a área portuária da Vila de Santana, conhecida pela população e
pela polícia como zona de meretrício. Segundo os autos de investigação social, o adolescente
Pretinho havia furtado três mil cruzeiros de J.G. da Silva e fugira com outro homem, em uma
bicicleta:

Que diante dessa informação a autoridade pessoalmente e com a ajuda dos


soldados PARAENSE e LUIZ, do destacamento desta Vila, passou a efetuar
buscas na zona do meretrício (área portuária) onde tomou conhecimento de
que “PRETINHO” quase ao amanhecer esteve bebendo e se fez acompanhar
de uma meretriz conhecida por “CEARENSE”; Que naquela redondeza não
encontrou “PRETINHO”; Que da zona se dirigiu a um quarto onde reside
“PRETINHO” com uma amante porém ali não o encontrou; Que fez buscas
em moradia coletiva na área portuária onde moram várias mulheres solteiras,
e onde “PRETINHO” costuma frequentar.346 (p. 4)

Nesse fragmento, associa a prostituição no TFA com as casas de habitação coletiva de


mulheres solteiras. Podemos até fazer uma comparação entre a Doca da Fortaleza e essa área
portuária, ambas caracterizadas pelo constante fluxo de pessoas e embarcações, o que
possibilitava a circulação de possíveis clientes para as prostitutas. Após o furto, Pretinho foi
farrear com uma meretriz. Não se sabe por qual motivo a polícia foi diretamente à área
portuária, mas talvez não fosse a primeira vez que um ladrão tivesse gastado o resultado de
seu furto com farras e meretrizes.
As vilas de Porto Grande e Pedra Branca também tinham suas zonas de prostituição.
Em Porto Grande, Santinha lesionou um homem com um pedaço de garrafa de vidro.347 Em
um inquérito de lesões corporais, a meretriz M.C.S., amapaense, solteira, de 26 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, declarou que, com outras
meretrizes, viajava frequentemente pela Estrada de Ferro do Amapá até Pedra Branca.348
M.C.V.P, meretriz, amapaense, solteira, de 18 anos de idade, residente na avenida Padre Júlio,
depôs que frequentava a Pensão da Zeca e o bar do Baltazar nessa localidade.349
Os adeptos da boemia amapaense não se contentavam com as diversões de suas
cidades, vilas ou distritos. As prostitutas faziam esse trânsito em busca de trabalho, mas
outros sujeitos como o adolescente L.S.S., amapaense, 17 anos de idade, sem ocupação,
residente na rodovia Macapá/Fazendinha, sabendo ler e escrever, se deslocavam de um lugar
para outro em busca de lazer, festas e mulheres. Ao completar 14 anos, L.:

346
AFCM. Autos de Investigação Social Furto Qualificado de 06 de maio de 1980, p. 04.
347
AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969.
348
AFCM. Processo nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 05.
349
Ibidem, p. 08.
120

Já frequentava festas dançantes bares no bairro do Buritizal, e começou a


beber bebidas alcoólicas; Que, tomou gosto de festas e bebidas, e como não
tem condição financeira para sustentar seus desejos, passou a furtar. […]
agora no mês de dezembro do ano passado penetrou em uma casa da Vila
Amazonas, de onde furtou QUATRO CORTES DE FAZENDA próprios para
homem, os quais vendeu para um canoeiro na Praia da Vacaria, em Macapá;
Que, ao chegar a quadra carnavalesca e estando sem dinheiro para farrear,
resolveu voltar à Vila Amazonas, para ver se havia possibilidade de arrumar
algum dinheiro; Que, na terça-feira de carnaval, dia três do corrente, chegou
Vila Amazonas por volta das quinze horas, e passou a bater nas portas como
que estava procurando alguma coisa”. Furtou quatro casas e delas levou
objetos, joias e dinheiro. “Que, ao anoitecer tomou um táxi e foi direto para
Macapá, a fim de farrear; Que nessa mesma noite, ou seja, na noite de
terça-feira, encontrou-se com um rapaz conhecido por MANDUCA, no
Clube Atlético Amapaense, no bairro do Buritizal, e o convidou para
participar da farra que estava começando naquela hora; Que, dali em
companhia de MANDUCA foi a Boate ‘SÓ MARISCO’, onde tomou muitas
cervejas; Que, do SÓ MARISCO se dirigiu boate ‘HOLLYWOOD’ onde se
fez acompanhar de uma meretriz, com a qual se fez grande despesa, indo
dormir depois com ela em um quarto no bairro de Santa Rita; Que, melhor
esclarecendo não passou a noite no quarto, apenas ficou com ela durante
umas duas horas, e após copular voltou para boate ‘HOLLYWOOD’, e ali
ficou ate o término da festa.350

O adolescente era um notável frequentador das festas populares. Praticava furtos para
sustentar suas noites com bebidas na companhia de meretrizes. Para participar do carnaval, ele
saiu de sua residência, situada na estrada Macapá via Fazendinha351, para furtar casas na Vila
Amazonas. Ao anoitecer, foi de táxi para Macapá e se juntou a Manduca em um clube
suburbano para farrear. Juntos, foram à boate do Marisco para beber, depois rumaram para a
boate Hollywood, onde L. finalmente pôs-se na companhia de uma meretriz, com quem
gastou o que pôde. Ele e a meretriz saíram da boate Hollywood, na Doca da Fortaleza,
tomando a direção do bairro Santa Rita, certamente para chegar a uma casa de habitação
coletiva ou à pensão onde residia a prostituta. Por fim, após tantos divertimentos, terminou a
noite sozinho, na festa da Hollywood. Felizmente, podemos identificar o trajeto desse
personagem, mas infelizmente pouco sabemos sobre a prostituta que lhe fizera companhia.
As tentativas do governo territorial de sanear socialmente Macapá ensejaram a
constituição de novas zonas de meretrício em áreas afastadas do centro da capital. Boates,
pensões, dançarás e botequins se espalharam em novos pontos de encontro e de residência de
meretrizes. Porém, o espaço urbano outrora ocupado por elas não foi dado de mão beijada às
autoridades governamentais. Já que não detinham poder político, financeiro e social, as
350
AFCM. Autos de investigação social de menor infrator, art. 155 de 02 de abril de 1981, p. 07-08.
351
Atualmente, essa estrada é denominada como Rodovia Josmar Chaves Pinto.
121

prostitutas resistiram e lutaram pelo seu espaço na urbe macapaense com a única possibilidade
que tinham: ocupando as vias públicas com seus corpos.
122

III. AS PROSTITUTAS E AS TENSÕES NAS SOCIABILIDADES DIÁRIAS:


TRABALHO, AMOR, AMIZADE E OS CONFLITOS COTIDIANOS

As vidas das meretrizes tinham muitas facetas. A partir das fontes identificamos redes
de convivência construídas pelo trabalho, pelo amor e pelas amizades. Mas parte dessas
relações se desdobraram em conflitos. Nesta seção, elas figuram como irmãs, amigas,
vizinhas, amantes, esposas, mães, estrangeiras, brasileiras e amapaenses, todas
compartilhando a experiência de ser prostituta e de ser mulher em um contexto político muito
específico, a Ditadura empresarial-militar. As histórias aqui abordadas evidenciam as
vulnerabilidades, as estratégias de sobrevivência e as tentativas dessas mulheres serem vistas
como humanas, ainda que marginalizadas ou socialmente excluídas.
Primeiro, temos como finalidade abordar os diversos tipos de relacionamento das
prostitutas do Amapá e identificar aspectos como cumplicidade, rivalidade, ciúmes e
solidariedade. Na sequência, a partir de um processo criminal de homicídio, discutimos as
fragilidades de uma meretriz diante de um amor não correspondido e as consequências da
misoginia de seu amado. Para finalizar, nos debruçamos sobre as memórias da proprietária de
uma boate de Macapá, que revelam sua trajetória desde a chegada à capital do TFA, até o fim
do funcionamento da boate.

3.1 Relações amorosas, de vizinhança e de clientela


Conforme temos demonstrado, a criminalização da prostituição tem feito das
meretrizes alvos prediletos da polícia. Não era raro encontrá-las como vítimas, testemunhas e
acusadas em processos criminais. Brigavam entre si, chegavam a ferir homens para se
defender ou defender seus amantes, eram agredidas por seus clientes ou ex-maridos. Outras
mulheres, mesmo não exercendo mais a profissão, ainda sofriam com o estigma e vigilância
de vizinhos. Como veremos, os autos dos processos não descortinam apenas essas relações
conflituosas que precisavam ser remediadas pela Polícia ou pela Justiça, mas também os
deslocamentos das meretrizes no TFA, suas relações amorosas, de amizade e vizinhança, o
funcionamento dos locais de divertimento noturno e suas relações familiares. Sendo assim,
vamos caminhar por algumas dessas histórias.
Na boate Lago dos Sonhos, de propriedade de Eunice, houve uma confusão
envolvendo Osvaldo, vulgo Capitão, Américo e soldados do 34º BIS. Os militares ameaçaram
bater nos homens citados caso não lhes dessem a cerveja que estava na mesa. Américo reagiu
e foi espancado por mais de dez soldados. Osvaldo, paraense, solteiro, de 18 anos de idade,
123

viu que seu colega seria atingido por trás por um dos soldados e interviu. Nesse momento, foi
esfaqueado pela meretriz Socorro, amante deste soldado.352
Socorro, brasileira, amapaense, meretriz, 15 anos de idade, solteira, sabendo ler e
escrever, declarou que foi seduzida com 13 anos e desvirginada, mas as devidas medidas não
foram tomadas pelas autoridades competentes, e “esse fato concorreu para que a depoente
trilhasse o caminho da prostituição, passando a frequentar os ambientes noturnos e de caráter
suspeito, onde conheceu moças na mesma condição social”.353 A pensão Lago dos Sonhos foi
um desses locais. No dia do crime, foi a esse lugar com outras colegas quando houve o
desentendimento entre o militar fardado J.N.S., seu ex-amante, e Capitão. Como o militar
ficou em desvantagem, ela golpeou Capitão na região dos mamilos, na garganta e nas costas.
A adolescente se evadiu do local, jogou a arma em um matagal e se escondeu na casa de sua
mãe, na esperança de que o episódio caísse em esquecimento. No entanto, dias depois foi
localizada e intimada a comparecer na delegacia com sua responsável. Já era a sexta vez que
ela se envolvia em crimes dessa natureza. Inclusive, já estava em tramitação “outra
investigação social proveniente de haver ferido uma colega de infortúnio”.354 A mãe da
adolescente, O.A.M., brasileira, solteira, de 39 anos de idade, doméstica, não sabendo ler e
nem escrever, disse que sua filha sempre tinha sido muito rebelde e que após o fato
denunciado mudara de comportamento, se tornando obediente e passando a viver amasiada
com outro rapaz.355
O fato de Socorro ter sido desvirginada sem que esse fato sofresse uma reparação, teria
contribuído para que ela se tornasse prostituta. É de se duvidar que Socorro tenha declarado
frequentar lugares de “caráter suspeito”, por isso é necessário observar que as fontes judiciais
e os depoimentos presentes nelas, são escritos por um funcionário do Estado, nesse caso, pelo
escrivão. Ele escreve a partir da sua visão de mundo e suas construções sociais enquanto
sujeito masculino, mas também orientado pelos preceitos morais e sociais do TFA. O começo
do depoimento nos leva a pensar sobre como haviam locais que eram convenientes a moças
de família, mas outros não. No caso da acusada, os locais que ela passou a frequentar não
eram adequados às mulheres honradas, mas somente para as prostitutas. Na boate Lago dos
Sonhos ou em qualquer outra, Socorro conheceu seu amante, um soldado do Exército, e
quando viu que estava em perigo, não hesitou em defendê-lo, mesmo que isso custasse sua

352
AFCM. Autos de Investigação Social contra a menor M. do S. dos A. Moraes por prática de ato tido como
infração penal de 21 de junho de 1976, p. 04.
353
Ibidem, p. 06.
354
Ibidem, p. 06.
355
Ibidem, p. 08.
124

liberdade. O depoimento de sua mãe nos dá informações sobre o que aconteceu com ela após
a infração penal. Sobre ter mudado o comportamento, cabe indagar o que causou tal
mudança? Isso não saberemos. A adolescente já estivera envolvida em seis casos semelhantes
a esse e estava sendo investigada por ter ferido outra meretriz. Contudo, ela encontrou outro
amásio. Teria sido esse o motivo da mudança de comportamento de Socorro?
Em ofício destinado ao juiz José Clemenceuau Pedrosa Maia, o delegado José Maria
Franco alegou que a adolescente era de alta periculosidade e fora “infelicitada aos treze anos
de idade, e sem o apoio paternal, enveredou pelos caminhos da prostituição”356. Para o juiz
José Maia, a ausência de uma figura paterna contribuira para que Socorro se encaminhasse ao
meretrício. Nesse período, como citamos na primeira seção, a família ideal era composta por
pai e mãe. Nessa família, a mãe era responsável pelos cuidados do lar e dos filhos, enquanto o
pai era o provedor da família. Logo, na ausência do pai, a mãe assumia todas essas
responsabilidades. Assim, a manutenção da família se tornava deficiente e os filhos
enveredavam por caminhos “suspeitos”.
Ao pesquisar sobre o cotidiano da República do Mangue, famosa zona de meretrício
no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1970, Juçara Leite dedicou algumas páginas para
discutir os crimes de sedução e seus desdobramentos. Ela identificou que algumas mulheres
defloradas viam a prostituição como uma punição. Vale destacar que nos casos de sedução,
como vimos na primeira seção, poderia haver o consentidos ou não, mas na maioria das vezes
haiva. Para Leite, “a moral cristã sempre condenara o prazer sexual, de modo que a mulher
seduzida e abandonada pelo seu sedutor, no fundo, desejava ser punida porque cedera ao
desejo”.357 Assim, a culpa cristã influenciava jovens seduzidas a se “torturar” pelos seus
pecados na prostituição e algumas das mulheres do Rio de Janeiro mudavam até de cidade
para não lidar com a culpa e a vergonha do defloramento, enquanto outras eram expulsas de
casa pela família. Mas, o entendimento geral era de que uma vez informado às autoridades
policiais e judiciais, esse “pecado” poderia ser reparado por meio do casamento.
Em um inquérito policial para investigar um suposto crime de lenocínio, o funcionário
municipal Luiz, brasileiro, paraense, 42 anos de idade, casado, sabendo ler e escrever, acusou
Conceição, brasileira, paraense, 30 anos de idade, doméstica, solteira, instrução primária,
residente na avenida General Gurjão, de explorar a prostituição de terceiros. Ele residia em
frente à residência dela, no bairro da Favela. Luiz declara “que embora [Conceição] viva em

356
Ibidem, p. 10.
357
LEITE. Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2005, p. 89.
125

concubinato e [com] uma prole numerosa, transforma aquela casa em antro de prostituição,
numa verdadeira orgia afrontando as famílias ali residentes”. Ele afirma que esses fatos
ocorrem em plena luz do dia ou nas primeiras horas da noite, quando ele e seus familiares
assistem “as cenas mais degradantes” e “ali aparecem diversos casais para aventuras amorosas
e satisfação de seus apetites libidinosos”.358 Apesar da prática da prostituição não ser crime no
Brasil, lenocínio é. Esse crime consiste no favorecimento da prostituição de outras pessoas.
Uma mulher se prostituir não é crime, mas ela ser prostituída por outra pessoa sim. Era essa a
denúncia contra Conceição feita por Luiz, que estava muito incomodado com as “cenas
degradantes” protagonizadas pelos frequentadores da referida residência.
Júlio, brasileiro, natural do Estado de Guanabara, casado, funcionário público federal,
59 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente no bairro do Trem, foi citado como um dos
frequentadores da casa de Conceição. Disse que a frequentou em 1966: a primeira vez, levado
por Maria, uma jovem funcionária pública federal; a segunda teve como motivo a venda de
galinhas para a dona da casa; e a terceira foi para passar aí uma festa de aniversário a convite
de Maria:

Que, durante as duas vezes que ocupou uma dependência reservada daquela
casa, não chegou o depoente a custear nenhuma despesa monetária, pois se
tratava de um ambiente sigiloso e previamente preparada para encontros
amorosos. Que, o depoente, já no dia vinte e três de fevereiro corrente, o
declarante dirigiu-se aquela residência sem ter sido acompanhado por
qualquer representante do sexo oposto, apenas interessando por desejar
alugar um quarto daquela casa, sem contudo ter sido atendido por não existir
para esse fim.359

Com o depoimento de Júlio, o inquérito toma outras formas. Ele declarou que
frequentou a casa de Conceição com Maria, para encontros amorosos, mas não fez pagamento
para isso. Maria poderia ser uma amiga próxima de Conceição ou era habituada a usar os
quartos da residência desta para encontros sexuais. Segundo a entrevistada Maria
Albuquerque, Macapá não tinha motéis nesse período:

Maria: Macapá era um lugar que não permitia motel, não sei como hoje tá
cheio de motel.
Amanda Silva: Não tinha motel, não permitia?
Maria: Não permitia.
Amanda Silva: Mas quem não permitia? Era o governo?
Maria: Era a própria polícia que formou uma lei que lá não podia, não tinha
motel. Existia essas boatezinhas assim, mas motel não.
358
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 2.
359
Ibidem, p. 5.
126

Amanda Silva: As boates tinham os quartos?


Maria.: É.
Amanda Silva: Mas motel não tinha?
Maria: Não tinha permissão, eles falavam que a área… Não sei, não tinha
permissão pra motel.360

A entrevistada não recorda o motivo da proibição e nós não encontramos nenhuma


menção ao tema na documentação analisada. Maria não era prostituta, então não estava apta a
utilizar os quartos das boates e pensões. Aparentemente, não podia levar Júlio para sua
residência, os motivos dela não saberemos, mas o motivo dele talvez seja o fato de ser casado
e manter um caso extraconjugal com a funcionária pública. Com a proibição de motéis, os
encontros amorosos e sexuais eram feitos em casas como a de Conceição, como bem
informou Júlio.361
Durval, brasileiro, paraense, casado, comerciante, sabendo ler e escrever, com 44 anos
de idade, residente na avenida Coriolano Jucá, apontado como frequentador da residência,
conhecia superficialmente Conceição e nunca frequentara sua casa, assim como:

Desconhece se a mesma possui algum cômodo para encontros e deleites


carnais, pois como homem casado que é e gozar do conceito perante à
sociedade em que vive, jamais procuraria se comprometer com problemas
dessa natureza. Que, o depoente ainda considera indigno o lenocínio e
exploração de prostitutas com interesse único de locupletar com vantagens
pecuniares em troca de carne de referidas infelizes.362

Diferentemente de Júlio, Durval desconhecia essa utilidade da residência de Conceição


e fez referência ao seu estado civil de homem casado, pois, como tal, não se envolveria em
encontros carnais na casa de terceiros. A última frase de seu depoimento converge para o de
Socorro, pois denota também a opinião do escrivão. Durval pode ter dito que desprezava o
lenocínio e a exploração das infelizes mulheres, mas o escrivão pode ter transcrito isso com
base em suas percepções.
A denunciada Conceição declarou nunca ter sido casada, mas acrescentou que “desde
quando se amasiou com José, nunca mais frequentou cassinos ou dançarás e abandonou a
prostituição, vivendo honestamente com o homem acima referido”. Residia havia mais de seis

360
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
361
Para saber sobre a relação dos cabarés com os motéis, conferir: PEREIRA FILHO, Raimundo Alves.
Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amazonas, 2014.
362
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 7.
127

anos nesse endereço, onde recebia visitas de amigos e de pessoas que tratavam de negócios
com seu amásio:

Sem contudo facilitar em proveito próprio ou de outrem encontros amorosos


em sua própria casa. Que há tempos passados antes de viver em concubinato
com José alguns casais procuravam sua residência onde permaneciam e
praticavam relações sexuais, sem contudo cobrar-lhes quaisquer vantagens
pecuniares pelo cômodo que essas pessoas ocupavam momentaneamente.363

Ela completou dizendo que nunca prostituiu nenhuma mulher que foi lhe visitar, assim
como nunca obteve lucro ou se sustentou pela prostituição de outra pessoa e acreditava que o
objetivo de seu vizinho era destruir a felicidade de sua família, pois era inimigo de seu
marido.364 Conceição largou o meretrício e deixou de frequentar cassinos e dançarás para
viver honestamente com seu amásio, o que nos leva a pensar que para os ideais da período,
uma mulher que frequentava esses ambientes era solteira, desonesta ou os dois. Ela negara
haver favorecido encontros amorosos na sua casa, mas relatou ter cedido cômodos para esse
fim no passado, sem, contudo, cobrar qualquer quantia pelo uso deles.
Raimundo Pereira Filho realizou uma pesquisa sobre os rendez-vous em Manaus,
enfocando a transição do uso desses locais para os motéis. Ele explica que, no início da
década de 1950, as pensões eram os locais de prostituição em Manaus, assim como em
Macapá, as pensões eram resididas por meretrizes e funcionavam como bordel. Nessa mesma
década, foram surgindo os rendez-vous “onde os casais procuravam unicamente para
praticarem sexo e as prostitutas, salvo exceção, não moravam onde trabalhavam”.365
Resumidamente, os rendez-vous eram cômodos alugados para relações sexuais e não eram
habitados por meretrizes. Nos depoimentos de Conceição e Júlio encontramos indícios de que
a casa dela havia sido (ou ainda era) um rendez-vous.
O delegado Oscar Ferreira Lima considerou que o crime não podia ser comprovado e
não responsabilizou Conceição por lenocínio, porque entendeu que o denunciante queria
prejudicar a ela e a seu amásio, por ser inimigo de José.366 Em acareação ocorrida no mês de
julho, Luiz disse que estava em estado de ânimo alterado quando fizera a denúncia e não se
dava bem com a família de Conceição, mas que então eram amigos. Ao final, declarou que

363
Ibidem, p. 10.
364
Ibidem, p. 10.
365
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade
manauara (1959/1969). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade
Federal do Amazonas, 2014, p. 63.
366
AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 12.
128

desmentia seu depoimento anterior.367 O palpite de Conceição estava correto, Luiz queria se
vingar de José, seu desafeto. Para isso, procurara acusar a amásia dele de lenocínio.
Certamente Luiz conhecia o passado de Conceição e achou que sua denúncia levaria aos
efeitos pretendidos por ele. O surpreendente é que os envolvidos se tornarem amigos ao longo
da investigação. Luiz atribuiu a culpa de sua falsa denúncia a seu “estado de ânimo alterado”,
não informando se isso se deveu a embriaguez ou a forte emoção.
A historiadora Ivonete Pereira explicou que a relação de vizinhança não pode ser vista
apenas como sinônimo de solidariedade, pois “apresentava-se como vigilante, delatora e
suscitadora de repressão sobre aquelas pessoas que estavam fora de seus círculos de
amizade”.368 Ela observou que, em Florianópolis de 1900 a 1940, a repressão sofrida pelas
prostitutas não vinha apenas das autoridades, pois a comunidade da qual elas faziam parte
também tinha contribuição nisso. Ela entende que esse controle não ocorria apenas em
Florianópolis, mas ocorria igualmente no Rio de Janeiro, em Salvador, São Paulo e, podemos
dizer, em Macapá. Luiz, por não ter vínculo de amizade com a família de Conceição, tentou
exercer esse controle e repressão com a ajuda das autoridades públicas, ele só não contava
com a rede de convivência e solidariedade que Conceição e seu amásio José tinham
construído com o passar dos anos.
Não era incomum as meretrizes brigarem entre si. Em julho de 1976, em frente ao
restaurante A Peixaria, a meretriz Telma agrediu suas colegas de profissão, as irmãs Valda e
Maria Lúcia com um canivete.
Valda, residente na boate Juçarão, paraense, 21 anos, meretriz, solteira, sabendo ler e
escrever, disse que desde 1974 residia e fazia ponto na boate Juçarão. No dia do ocorrido,
quando a festa na boate acabara, por volta das três horas da madrugada, ela foi para A
Peixaria, próximo à Usina Costa e Silva, na companhia das amigas Francisca, Conceição e
outras que não recorda o nome, para dar “prosseguimento em sua noitada alegre”.369 Ela disse
que ingeriram bebida alcoólica, mas estavam sãs. Minutos depois de se acomodarem na
Peixaria, a sua irmã Maria Lúcia chegou e se juntou a elas na mesa. Maria Lúcia levantou-se e
foi para a frente do estabelecimento. Minutos depois, Valda foi informada de que sua irmã
estava envolvida em uma confusão. Ao chegar na frente do local, viu que Maria Lúcia estava
discutindo com duas mulheres desconhecidas e com Telma:

367
Ibidem, p. 17.
368
PEREIRA, Ivonete. As decaídas: Mulheres no quotidiano de Florianópolis (1900-1940). Dissertação
(Mestrado em História do Brasil). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 111.
369
AFCM. Processo crime nº 4.016 de 15 de fevereiro de 1977, p. 6.
129

A qual, dirigindo-se para MARIA LUCIA, irmã da declarante, tomando a


questão para sí, insultou-a nos seguintes têrmos: ‘Com puta não se conversa,
a gente mete logo porrada’ (textuais) e em seguida agrediu-a com um chute;
Que, tendo MARIA LUCIA apanhado esse chute, avançou contra sua
agressora e engalfinharam-se, momento em que a declarante interferiu e
conseguiu separá-las.370

Porém, em seguida, Telma começou a agredir Valda com tapas e as duas se


engalfinharam no chão. Ninguém interferiu e, após alguns minutos, elas se separaram. Valda
continuou no local, conversando com suas amigas e irmã e disse que Telma se retirara de lá.
No entanto, minutos depois, sua irmã fora ferida nas costas por um golpe de canivete dado por
Telma e caíra ao chão sangrando. Quando a declarante socorrera Maria Lúcia, também fora
atingida por Telma no seu ombro esquerdo. A acusada tentara fugir em um táxi, mas fora
detida por um policial. As irmãs foram socorridas e levadas ao Pronto Socorro Osvaldo
Cruz.371
Maria Lúcia, residente no Juçarão, 18 anos, meretriz, sabendo ler e escrever, disse que
ao fim da festa no Juçarão, saiu acompanhada de um homem e foi dar uma volta, e que depois
ele a deixou na Peixaria. Neste local, encontrou com duas mulheres desconhecidas, mas que
“são useiras e veseiras em ameaçarem de espancamento as mulheres do Juçarão, todas as
vezes que ali dão entrada”.372 Ela foi tirar satisfação e perguntou porque sempre jogavam
“xavecos” para as mulheres residentes do Juçarão. A partir daí, a confusão foi iniciada.
Maria da Conceição, brasileira, paraense, natural de Afuá, 20 anos, solteira, residente
na Boate Juçarão, analfabeta, declarou residir no Juçarão havia cinco meses e como Maria
Lúcia e Valda também moram lá, costumavam sair juntas e assim ocorreu no dia do crime. Ela
disse que das vezes que saiu com as irmãs não houve nenhuma confusão, nem na boate onde
moram.373
A acusada Telma, 18 anos, solteira, meretriz, amapaense, residente a rua Hildemar
Maia, próximo do Aeroporto, parda escura, disse que morava com seus pais, mas costuma
frequentar as boates no bairro Santa Rita, “participando de noitadas alegres”.374 No dia do
ocorrido, saiu da boate Xadrezão, às 4 horas da madrugada e foi para A Peixaria. Viu sua
amiga Rute conversando com Maria Lúcia, que até então desconhecia, e se dirigiu até ela.
Maria Lúcia dissera para Telma: “Tu já vens para cá querer criar bronca, vai te embora daqui

370
Ibidem, p. 06.
371
Ibidem, p. 07.
372
Ibidem, p. 8.
373
Ibidem, p. 12.
374
Ibidem, p. 15.
130

que ninguém te chamou”.375 Rute entrou em um táxi e foi embora, enquanto Telma e Maria
Lúcia discutiam. Telma declarou que foi Maria Lúcia quem começou a agredi-la e que
também foi agredida por Valda. Então, ela brigou com as duas irmãs ao mesmo tempo.
Ninguém se intrometeu na briga e elas se separaram sozinhas. Telma lembrou que dentro de
sua roupa íntima, trazia uma bolsa com um canivete, pegou a arma e chamou suas adversárias
para continuar a briga. As duas foram em sua direção e tentaram lhe espancar, ela já
empunhava o canivete e acertou suas oponentes. Ela disse que não tinha qualquer intimidade
com as vítimas e somente após o fato soube que eram irmãs e frequentadoras da boate
Juçarão. Disse que nunca foi processada, mas já havia sido detida por motivo de confusão nas
boates que frequentava.376 Telma certamente era uma das tantas prostitutas do TFA detidas por
embriaguez e desordem, mas liberada após passar algumas horas na delegacia.
Em diversas partes do processo, tanto vítimas quanto acusadas são caracterizadas como
domésticas. Claudielle Silva afirma que algumas prostitutas envolvidas em inquéritos e
processos judiciais diziam serem domésticas, porque era “uma atividade com menor estigma
que a prostituição”377. Essa era uma estratégia utilizada por elas para serem ouvidas pelas
autoridades de segurança, bem como para se protegerem de eventuais abusos do Estado. Para
Cristiana Schettini, ao passo que as autoridades republicanas transformavam meretrizes em
mulheres públicas e permitiam que elas fossem tratadas fora da lei por agentes do Estado
como policiais e delegados, as redes de apoio e solidariedade tecidas por elas com amigos e
conhecidos propiciavam que buscassem por respeito e dignidade nas delegacias, nas ruas e
nos tribunais.378 Ocultar sua verdadeira profissão ou não revelar todas elas, era uma estratégia
de proteção dessas mulheres habituadas a sofrer abusos e repressões fora da lei por agentes de
segurança do Estado.
Vemos aqui um caso de uma rixa entre mulheres e como isso antecede o desafio379,
posto que as envolvidas já tinham uma faísca de desentendimento. No depoimento de Maria
Lúcia, é dito que Rute e outra prostituta ameaçavam as mulheres do Juçarão. Havia uma
rivalidade entre as meretrizes das boates? Essa rivalidade era por clientes, pelo domínio da
região ou por outras questões de convivência? Maria Lúcia, ao tirar satisfação com as
litigantes, iniciou o desafio que consiste no contato físico, nesse caso, na agressão. Após o

375
Ibidem, p. 15.
376
Ibidem, p. 16.
377
SILVA, Claudielle Pavão da. “Flores horizontais”: Sociabilidade, prostituição e travestilidade na Zona do
Mangue (1960-1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2016,
p. 68.
378
SCHETTINI, Cristiana, Op. Cit., p. 302-303.
379
Ver a seção anterior.
131

início da discussão, Telma se envolveu e afirmou que para lidar com puta, só com “porrada”.
Rute e a outra meretriz foram embora, Telma ficou e brigou com as irmãs Valda e Maria
Lúcia, até o momento em que cortou as duas com um canivete. Pereira Filho afirma que o uso
de giletes era comum em brigas envolvendo prostitutas,380 mas percebemos que elas andavam
armadas com objetos cortantes para se defender em situações de perigo, seja contra suas
colegas de profissão seja em face de homens agressivos e inconvenientes.
Leite assegura que “as prostitutas desenvolvem seus próprios códigos e relações,
unidas pela segregação”381. Como sofriam com a marginalização social e tinham a mesma
experiência de trabalho, elas construíram suas próprias regras para lidar com o seu mundo,
separado do mundo moralmente aceito. Elas precisavam definir uma hierarquia entre si para
garantir o respeito mútuo. Essa hierarquia era estabelecida no interior dos bordéis que
contavam com uma prostituta gerente, que detinha certo poder sobre as outras meretrizes.
Mas, a autora destaca que a violência era decorrente de conflitos de convivência no bordel,
por objetos e disputas pelos clientes.
Valda, Maria Lúcia e Maria da Conceição residiam no Juçarão. A primeira era
moradora de lá havia dois anos e a última havia apenas cinco meses. Elas tinham um laço de
amizade que pode ter se construído pela experiência da profissão e pela moradia, mas Valda e
Maria Lúcia tinham laços de sangue. Eram irmãs, haviam sido criadas juntas e agora
compartilhavam as experiências da profissão. Maria da Conceição disse que saia
frequentemente com suas colegas e nunca haviam criado confusão, dando a entender que as
meretrizes rivais fossem “encrenqueiras” ou “useiras e veseiras”, como Maria Lúcia as
definiu.
Outra observação a ser feita é o horário de funcionamento do restaurante A Peixaria,
pois a festa na boate Xadrezão terminou às quatro horas da madrugada e o restaurante
continuava funcionando. Como vimos na seção anterior, no ano de 1978, o proprietário do
Xadrezão alegou que seu estabelecimento funcionava até as duas horas da madrugada. De
acordo com o que foi relatado por Telma, um ano antes do depoimento do dono do Xadrezão,
ela havia saído de uma festa lá ocorrida às quatro horas. Ele mentiu em seu depoimento sobre
o horário de funcionamento para se defender de qualquer multa que pudesse pagar ou nesse
período de um ano as normas de funcionamento dos locais de diversão no TFA mudaram.
Mas essa regra de horário limite de funcionamento poderia aplicar-se somente a boates,

380
PEREIRA FILHO, Raimundo, Op. Cit., p. 90.
381
LEITE, Juçara Luzia, Op. Cit., p. 111.
132

pensões e dançarás e não a restaurantes, como a Peixaria. Também é possível que a


fiscalização fizesse vista grossa e deixasse a festa rolar até altas horas.
Nesses depoimentos foram citados três locais de diversão: Juçarão, Xadrezão e A
Peixaria. Localizavam-se no bairro Santa Rita e não eram distantes uns dos outros. Próximos
a eles havia outros ambientes de diversão noturna. Meretrizes, seus clientes e outros sujeitos
boêmios circulavam por vários desses locais durante a noite, procurando a continuação de
suas diversões. As prostitutas eram um caso à parte porque elas não tinham só a intenção de
buscar diversão, mas também procurar trabalho. Raquel Venera ao estudar a prostituição na
cidade portuária de Itajaí, em Santa Catarina, nas décadas de 1970 e 1970, por meio de
processos crimes, observou que o lazer de muitos, era trabalho para as prostitutas.382 Para se
divertir, os homens pagavam por um serviço sexual e as meretrizes se sustentavam com esses
pagamentos. Para além disso, Ivonete Pereira identificou nos processos judiciais que as
meretrizes não esperavam pelos clientes em um ponto na rua ou dentro de suas casas, elas
saíam ao encontro deles e procuravam lugares propícios à sua presença.383 As meretrizes do
TFA faziam exatamente isso, circulavam pelas ruas em busca de possíveis fregueses.
Na vila de Porto Grande, no mês de agosto de 1976, N.B.M., 3º Sargento PM do 2º
Pelotão, trabalhando no Quartel Plácido de Castro, amapaense, casado, 28 anos, residente em
Macapá, cor parda clara, sabendo ler e escrever, agrediu a meretriz H.M.V., brasileira, 18 anos
de idade, natural e residente em Porto Grande, sabendo ler e escrever. H.M.V. disse que estava
dormindo acompanhada em seu quarto. O acusado bateu em sua janela, ela acordou e
perguntou o que ele queria. O sargento disse que queria conversar, mas ela respondeu dizendo
que não tinha o que conversar com ele. Quando tentou fechar a janela, recebeu um soco. O
acusado ainda se armou com um pau e passou a destratar a meretriz. Foi contido por outras
pessoas e por um soldado chamado Antônio, que também recebeu xingamentos do sargento.384
O sargento disse que não estava embriagado no dia do ocorrido e negou todas as
acusações. No seu Boletim de Vida Pregressa afirmou que não tinha vícios de bebida e não
costumava embriagar-se385, mas as testemunhas ouvidas afirmaram o contrário. Inclusive, em
seu relatório, o 2º Tenente PM e delegado Jorge Teixeira Moreira afirmou: “Nas investigações
por mim efetuadas, apurei que N. passara o dia bebendo e quando do ocorrido encontrava-se

382
VENERA, Raquel Alvarenga Sena. A Cidade das Camélias e as Camélias na cidade. In: FÁVERI, Marlene
de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.). Op. Cit., p. 129.
383
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 119.
384
AFCM. Processo crime nº 4.189 de 19 de dezembro de 1977, p. 5.
385
Ibidem, p. 11.
133

bastante alcoolizado, tendo sido carregado para sua residência por praças do 2º Pel PM, onde
o mesmo era destacado, como escrivão, por ser 3º Sgt PM”.386
A relação entre policiais e meretrizes não estava restrita à fiscalização e prisões, pois
os relacionamentos amorosos e de clientela não eram incomuns entre eles. N. usou seus
privilégios de homem e de policial militar para importunar e agredir a meretriz H., ele
também usou a sua patente para destratar o soldado Antônio. Carolina Mendonça pesquisou
aspectos da prostituição feminina em Salvador, no estado da Bahia, nas primeiras décadas da
República e apontou que as meretrizes conviviam diariamente com “homens de farda” e havia
com eles uma interação social marcada por conflitos, mas não existia um padrão nessas
relações:

Se, teoricamente, a farda deveria inspirar temor e respeito por parte dessas
mulheres em relação aos ocupantes de postos militares, percebemos que o
contato formou também uma rede de ajuda mútua e camaradagem, em que
mulheres utilizavam a relação com homens fardados em busca de proteção
contra a ação policial, e a vantagem financeira alcançada pelas profissionais
do sexo as permitia retribuir alguns favores.387

A relação descrita por nós, não tem relação com proteção de policiais a prostitutas.
Contudo, os apontamentos de Carolina Mendonça nos levam a refletir que as interações
desses sujeitos com as meretrizes não estavam restritas a repressões, prisões e violência, mas
poderiam ter caráter de ajuda mútua também.
Em Pedra Branca, Naldo, amapaense, solteiro, comerciário, de 17 anos de idade,
residente em Pedra Branca, sabendo ler e escrever, foi atingido no pescoço por um tiro de
revólver efetuado por S.M.S, maranhense, solteiro, de 21 anos de idade, mecânico da
Construtora Mendes Júnior S/A, através da porta do quarto onde estava acompanhado de uma
meretriz. A vítima tentava entrar no quarto à força.
Maria Creuza, amapaense, solteira, meretriz, com 26 anos de idade, residente na
avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, relatou que costuma viajar com outras
meretrizes para a localidade de Pedra Branca na Estrada de Ferro do Amapá. Lá, passavam
alguns dias morando em quartos disponíveis para elas. Ela disse que Naldo estava à procura
da meretriz Catarina quando bateu na porta de seu quarto. Maria Creuza indicou a porta do
quarto de sua colega e ouviu ele dizer: “essa faca que tenho aqui é para furar a Catarina e seu
acompanhante”. Ele jogou garrafas e tentou arrombar a porta do quarto de Catarina, outros
386
Ibidem, p. 15.
387
MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias sem Glória: retratos da prostituição feminina na Salvador
das primeiras décadas republicanas. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, 2014,
p. 82-83.
134

homens tentaram acalmá-lo, mas sem sucesso. Naldo disse que estava ali para morrer ou para
matar.388
Lúcia, amapaense, casada, meretriz, com 23 anos de idade, residente na avenida Padre
Júlio, sabendo ler e escrever. Respondeu que viajava para Pedra Branca de vez em quando e aí
ficava em quartos que sempre eram ocupados por meretrizes. Ela estava no quarto
acompanhada de S., deitada em uma rede, enquanto a meretriz Catarina estava em outra rede,
deitada com um rapaz chamado Vicente, cearense, solteiro, com 22 anos, residente em Pedra
Branca, Estrada de Ferro do Amapá, sabendo apenas assinar o nome, quando Naldo começou
a bater na porta para entrar, mas isso lhe foi negado até que conseguiu fazê-lo após uma saída
da depoente. Ele estava embriagado e armado com uma faca, mas os dois homens que
estavam no quarto conseguiram contornar a situação. No meio de toda a confusão, uma
inquilina chamada Ana foi chamar o Comissário Jacy, que levou Naldo, mas ele não demorou
a voltar. Iniciou outro arrombamento e ameaçou matar os ocupantes do quarto. A partir disso,
o acusado S. atirou duas vezes contra a porta e eles ouviram Naldo falar: “Catarina, estou
morrendo por teu amor”. Ele foi atingido no pescoço por um dos projéteis e o acusado fugiu.
A depoente disse que Catarina até desmaiou enquanto abraçava Naldo caído no chão.389
Catarina, amapaense, solteira, meretriz, de 18 anos de idade, residente em Macapá,
sabendo ler e escrever. Também viaja para Pedra Branca constantemente. Ela disse que desde
cedo Naldo estava embriagado, perturbando a ordem na Pensão da Zeca e no bar do Baltazar,
e que depois foi promover desordem nos quartos onde moram ela e outras meretrizes.
Catarina falou que Naldo primeiro chamava por ela e que depois começou a chamar por
Lúcia, mas as duas falaram que estavam acompanhadas. Mesmo assim, ele não desistiu.390 De
outro lado, Naldo disse que não tinha nenhuma relação de amizade com Catarina.391
Em 1986, um oficial de Justiça tentou intimar todos os envolvidos por ordem do juiz
Dôglas Evangelista Ramos. Ele informou que encontrou Maria Creuza e conseguiu intimá-la.
Porém, não encontrou Catarina e Lúcia, mas foi informado que as duas estavam morando em
Caiena, na Guiana Francesa.392
Maria Creuza, Lúcia e Catarina se deslocavam de Macapá para o distrito de Pedra
Branca a fim de oferecer serviços de prostituição. O acusado era funcionário de uma

388
AFCM. Processo crime nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 5.
389
Ibidem, p. 6.
390
Ibidem, p. 8.
391
Ibidem, p. 11.
392
Sobre o trânsito de mulheres brasileiras nas fronteiras da Amazônia, ver: TEDESCO, Letícia. As mulheres no
garimpo: entre fronteiras, papéis e classificações. In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.; Moraes,
Aparecida Fonseca. Prostituição e outras formas de amor. Niterói: Editora da UFF, 2014.
135

construtora. As obras trazem circulação de dinheiro e homens trabalhando. Provavelmente,


era mais vantajoso para elas viajar até Pedra Branca e aí passar uns dias do que ficar em
Macapá. Não muito diferente da dinâmica de moradia de meretrizes em Macapá, nesse
distrito, elas se hospedavam em quartos destinados para esse fim. Certamente, a Pensão da
Zeca tinha a finalidade de hospedagem e residência de prostitutas e o Bar do Baltazar era
ponto de encontro delas com possíveis clientes. Inicialmente, entende-se que Naldo estava
enciumado porque Catarina estava acompanhada por outro homem que não ele. Mas, a partir
do depoimento dela, percebemos que ele também procurava por Lúcia. A intenção dele era
passar a noite com uma delas, mas ambas já estavam acompanhadas. Porém, é interessante
observar a reação de Naldo por não ter suas vontades e desejos atendidos: ele tentou arrombar
a porta do quarto e prometeu matar todos que estivessem aí dentro dele, um sinal da sua
valentia masculina. Porém, a relação dele com Catarina aparentava ser mais estreita, porque
quando ele foi alvejado com um tiro gritou estar morrendo de amor e ela chegou a desmaiar
abraçada a ele. É controverso ele declarar não ter relação de amizade com Catarina depois de
todos os depoimentos dados no processo.
As relações das meretrizes eram marcadas pelo ciúme, seja delas ou de seus amantes.
Ivonete Pereira destaca que ex-amantes enciumados eram uma ameaça ao sossego delas e
armavam brigas em decorrência disso.393 Rachel Soihet destaca que os homens pobres
“desprovidos de poder e de autoridade no espaço público – no trabalho e na política, seriam
assegurados pelo sistema vigente de possuí-los no espaço privado, ou seja, na casa e sobre a
família”. (SOIHET, 1989, p. 256). E mais adiante:

Na medida em que é dado ao homem o direito de extravasar sua


agressividade ‘natural’ sobre os objetos de sua propriedade e sendo o corpo
da mulher considerado uma propriedade sua, este se constitui no local
próprio de extravasamento da agressividade masculina.394

Dessa forma, a autora acrescenta que como o trabalhador pobre não tinha poder e
autoridade na esfera pública, ele exercia esse poder na esfera privada. E a sua “agressividade
natural” era manifestada sobre a mulher. O homem acreditava que o corpo de uma mulher era
sua propriedade e, quando ela não correspondia positivamente a suas vontades, ele reagia com
agressividade. Assim, por não conseguir exercer sobre a sua companheira o poder que o
sistema dominante lhe prometia, o homem pobre a violentava, num extravasamento de sua

393
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 133.
394
SOIHET, Rachel, Op. Cit., p. 256.
136

frustração. Naldo até teve a intenção de violentar Catarina, Lúcia e os homens que lhe
acompanhavam, mas foi atingido por um tiro antes que conseguisse realizar seu intento.
Segundo Margareth Rago, as prostitutas do baixo meretrício enfrentavam fregueses
bêbados, violentos e desequilibrados que não podiam pagar o preço dos bordéis mais caros.395
Em Pedra Branca havia bordéis mais caros ou os prostíbulos oferecidos eram apenas as
pensões em que as meninas ficavam hospedadas? Naldo e o mecânico S. certamente não
tinham outras opções no distrito, assim como os limites do que seria prostituição de luxo e
baixo meretrício em Macapá não eram bem definidos, e talvez nem existissem. Catarina e
Lúcia rejeitaram Naldo, o que demonstra que elas tinham o poder de escolher com quem
comercializar relações sexuais e este também pode ser um indicativo de que elas não tinham
vários clientes em uma noite ou poderiam cobrar um valor maior para pernoitar com um
deles.
No dia 1º de novembro de 1970, Geraldo, brasileiro, amapaense, com 21 anos de
idade, solteiro, braçal, alfabetizado, residente em Macapá, cor morena, causou ferimentos no
seu cunhado Veríssimo, brasileiro, amapaense, casado, 33 anos de idade, funcionário público,
sabendo assinar o nome, residente no Quartel da Guarda Territorial na Fortaleza de São José
de Macapá, na casa da meretriz Carmosina, próximo ao presídio São Pedro.
Veríssimo, disse que ao chegar na casa de Carmosina, ela já tinha preparado cachaça e
refrigerante para seus convidados. Minutos depois chegou a sua esposa Josefina, de quem
estava separado havia sete anos, mas esta não lhe deu atenção. A meretriz Maroca também
chegou e se juntou a eles. Momentos depois, Maroca, Geraldo e Carmosina saíram e ele ficou
sozinho com Josefina. Próximo das 14h, Geraldo retornou e gritou: “tu estás dando na minha
irmã”, em seguida agrediu Veríssimo. Os dois iniciaram luta corporal e Geraldo atingiu o
rosto do depoente com um soco que o fez cair desacordado.396
Geraldo, por sua vez, disse que era irmão de Josefina, casada com Veríssimo, mas
separada dele havia muito tempo. No dia do ocorrido, estava com seu cunhado bebendo em
um botequim e este mandou um recado para sua irmã encontra-lo na casa de Carmosina. Eles
foram para a casa dela e Josefina já estava lá. Todos estes citados estavam embriagados, mas
brincavam sem qualquer anormalidade. Maroca chegou e passado um tempo, pediu para que
alguém lhe deixasse em casa. Ele a acompanhou e passou uma hora nessa viagem. Quando
voltou, viu sua irmã chorando e perguntou o que tinha acontecido. Ela respondeu que fora
espancada pelo seu marido. Ele entrou na casa, onde passou a tirar satisfações com seu

395
RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 261.
396
AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 5.
137

cunhado, e os dois discutiram até chegar à agressão física. Geraldo declarou se dar bem com
seu cunhado, mas sabia que essa não era a primeira vez que ele agredira sua irmã e nunca
fizera nada antes porque ainda era menor de idade.397
Cristina Wolff explica que na região do Alto Juruá, no Acre, “certas situações deviam
levar necessariamente a atos violentos, sob pena de desmoralização perante a comunidade,
especialmente situações que envolviam adultério, ou ofensas às mulheres da família”.398 Ela
também usa o conceito de honra, definido por Julian Pitt-Rivers ao estudar a Andaluzia: “a
honra é o valor de uma pessoa para si mesma, mas também para a sociedade. É sua opinião
sobre seu próprio valor, sua reivindicação de orgulho, mas também é a aceitação desta
reivindicação, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”.399 Nas
sociedades mediterrânicas e nas latino-americanas, a honra de um homem está ligada à pureza
sexual das mulheres de sua família.400 Então a figura masculina zelava pela honra das
mulheres de sua família e reivindicava o respeito por ela por meio da violência se fosse
necessário. Geraldo precisava defender a sua irmã, pois “já era homem” para isso. Quando
mais novo não podia medir forças com Veríssimo.
Josefina de Jesus dos Santos, brasileira, amapaense, de 26 anos de idade, meretriz,
casada, sabendo assinar o nome, residente à Praça São Pedro, entre as ruas Jovino Dinoá e
Leopoldo Machado, declarou que pela manhã do dia 1º de novembro seu irmão foi lhe visitar
e seguiu para um botequim nas proximidades. Depois de um tempo, sua colega Carmosina
chegou com um recado de seu marido:

dizendo que ele viria em sua casa, tendo dito que alí seria impossível, pois
abandonados como estavam, já tinha compromisso com outro homem, mas
sabendo que Veríssimo quando está bebendo, não se importa com o que lhe
pode acontecer; que, em seguida dissera a Carmosina que iria para sua casa e
com isso fazer com que Veríssimo não fosse a sua e então não haver
confusão.401

Ela disse que todos estavam embriagados, mas tudo seguia bem. Quando os demais se
retiraram, ela e Veríssimo foram para um quarto da casa. Ele queria manter relações sexuais
com ela, mas Josefina se negou a isso e ele começou a bater nela, na frente da filha deles. Isso
demorou pouco tempo, porque ela conseguiu se desvencilhar dele. Quando estava saindo da
casa, encontrou com seu irmão e como estava chorando, ele perguntou o que havia acontecido
397
Ibidem, p. 06.
398
WOLFF, Cristina. Op. Cit., p. 216.
399
PITT-RIVERS, J.A. Antropologia del honor o política de los sexos. Ensayos de antropologia mediterrânea.
Traducción castellana de Carlos Manzano. Barcelona: Crítica, 1979, p. 18.
400
Ibidem, p. 48.
401
AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 07.
138

e ela relatara o ocorrido. Depois da confusão, Josefina e seu filho mais velho colocaram
Veríssimo em um carro e o levaram para a casa dela. O carro da polícia chegou na sua
residência e o levou para o Pronto Socorro, depois para a Fortaleza. Seu irmão foi preso. Ela
relatou que seu irmão havia dito que Veríssimo prometera, naquele dia, dar umas “porradas”
nela, o que de fato aconteceu.402 Carmosina, brasileira, amapaense, casada, com 36 anos de
idade, analfabeta, meretriz, residente no Beirol, disse que quando se ausentou foi para ver seu
filho doente na casa de uma irmã.403
Nunca houve audiência pois o acusado não foi encontrado, assim como a vítima que
havia sido destacada para o Oiapoque, e os oficiais de Justiça não tinham transporte para se
deslocar até lá. Várias tentativas foram realizadas e, após alguns anos, foi extinta a
punibilidade. Sobre essa ausência dos envolvidos no processo, Ivonete Pereira aponta que
tanto os populares buscavam a Justiça quando precisam resolver questões sofridas por eles,
quanto também se negavam colaborar com ela, quando isso lhes prejudicava.404 Eis uma
justificativa para o desaparecimento do acusado. A vítima todos sabiam onde se localizava,
mas pela dificuldade de contratação de transporte para o oficial de Justiça de Macapá para ir
Oiapoque, não foi possível realizar a sua intimação.
Aparentemente, a casa de Carmosina era um ponto de encontro e de festas para
homens conhecidos e suas parceiras de profissão. Veríssimo e Josefina ainda eram casados no
papel, mas separados havia sete anos. Josefina, inclusive, já tinha outro relacionamento, que
mantinha junto à profissão de meretriz. No entanto, seu ex-marido não deixava de lhe
procurar e de tentar forçar relações sexuais. Como ela se negara a ter uma relação sexual com
ele, foi agredida na frente da filha deles. Veríssimo fez uma ameaça a ela por meio de Geraldo
e a concretizou. Rago escreveu que as prostitutas construíam suas próprias sociabilidades e
viviam uma “mundanidade nômade” em contraposição ao mundo sedentário da ordem
burguesa e da vida sexual monogâmica. A prostituta, aqui representada por Josefina, “podia
viver simultaneamente tanto a relação sedentarizante com o amante principal, nas ocasiões em
que este estava presente, quanto outros encontros descomprometidos com vários fregueses”405.
No caso, esse amante principal de Josefina era seu amásio atual, mas também pode ter sido
seu ex-marido, quando eram casados. Eles eram parte das relações sedentárias de Josefina,
enquanto seus clientes compunham suas relações nômades.

402
Ibidem, p. 7.
403
Ibidem, p. 8.
404
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., 118-119.
405
RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 268.
139

Por outro lado, Cristiana Schettini aponta que as sociabilidades das prostitutas do Rio
de Janeiro na virada do século XIX ao XX não se limitavam a um “mundo da prostituição”,
pois articulava-se também ao mundo cotidiano, apesar das oposições estabelecidas por
homens da classe dominante. Para Pereira, “mesmo este aspecto não pode ser compreendido
sem as tensões que marcavam a existência desses homens numa sociedade que definia
hierarquias e naturaliza desigualdades sociais mobilizando critérios raciais, de gênero e de
moralidade sexual”.406 Não é possível pensar as sociabilidades da prostituição sem articular os
aspectos de gênero, raça, moralidade sexual, mas também sem pensar em classe. Como
Cristiana Schettini bem apontou, as hierarquias e desigualdades sociais são estruturadas a
partir desses critérios. Para ela, a prostituição é fortemente marcada pelo gênero, mas também
permite a mobilização de várias masculinidades que se encontravam em horas de diversão.407
Porém, como vimos, essas masculinidades nem sempre conviviam em harmonia, pois os
conflitos também eram parte das sociabilidades masculinas construídas nas ruas do TFA.
É interessante observar que Josefina havia sido agredida por Veríssimo, mas neste
processo criminal somente ele figura vítima por ter sido espancado por Geraldo. Ela é
arrolada apenas como testemunha. Não é possível saber se Josefina era meretriz antes de
casar-se com Veríssimo, se permaneceu meretriz durante o casamento, ou se abandonou o
meretrício por causa do matrimônio ou ainda se tornou prostituta após a separação. Por outro
lado, vemos que seus filhos moravam com ela e não sabemos se esta oferecia seus serviços de
meretriz na sua casa ou em outro local. Contudo, o filho de Carmosina morava com sua irmã.
Isso nos leva à conclusão de que ela usava a sua casa para receber seus clientes e preferia que
seu filho ficasse aos cuidados de sua irmã. Raquel Venera, usando as figuras de Eva e Maria,
afirma que Maria foi a escolhida para ser a mãe da família burguesa, já as prostitutas eram
“Evas que não se reconciliaram e continuam exercendo seu potencial mágico capaz de seduzir
e fazer os homens pecarem”.408 Porém, era possível ser Maria e Eva, ou camélia, ao mesmo
tempo, como quando as meretrizes eram mães. Isso se considerarmos outros modelos de
família que não apenas o modelo burguês. Para pensar a existência das prostitutas, a autora
utilizou o conceito de “entre lugar” de Homi K. Bhabha409. Nesse conceito, as pessoas não
tem uma identidade fixa, mas transitam entre várias identidades. Então, uma prostituta pode
sim exercer a sua profissão – sendo Eva – e ao mesmo tempo ser mãe – e ser Maria.

406
SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 302.
407
Ibidem, p. 302.
408
VENERA, Raquel Alvarenga Sena, Op. Cit., p. 125.
409
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
140

Ao passar pelas sociabilidades da prostituição, é impossível não se deparar com as


relações amorosas, familiares, de vizinhança e outras interações das meretrizes amapaenses.
Nos processos e inquéritos criminais, localizamos algumas dessas relações. Eles revelaram
muitos conflitos, mas também redes de solidariedade e convivência, assim como estratégias
elaboradas por essas trabalhadoras para se legitimarem enquanto indivíduos, mas também
para se proteger.

3.2 “Pode me matar de porrada, mas eu não te largo”: a relação trágica de


Raimundinha e Belisca
Às quatro horas do dia 18 de janeiro de 1973, na cidade de Macapá, capital do Amapá,
foi atestado o óbito da meretriz Raimundinha, natural de Breves-PA, 20 anos, solteira, de cor
morena, por “hemorragia interna e contusões várias”.410 Seu corpo foi encontrado por guardas
territoriais em uma calçada no canal da avenida Mendonça Júnior, entre as ruas Tiradentes e
São José, próximo ao Bar Caboclo. Eles trataram de investigar quem era essa mulher. Para
isso, bateram nas portas das casas de cômodo ao longo do canal, até encontrar pessoas que,
após serem informadas sobre as características físicas e os sinais de agressão no corpo,
concluíram se tratar de Raimundinha. Essas pessoas eram vizinhas dela, algumas eram
colegas de profissão, e presenciaram toda a briga entre ela e o sapateiro Belisca. Logo,
sugeriram ser ele o autor do crime. De acordo com as informações colhidas, os guardas
territoriais se locomoveram à casa do acusado, na avenida Padre Júlio Maria Lombaerd, para
detê-lo. Belisca, amapaense, solteiro, de 21 anos de idade, sapateiro, alfabetizado, cor
morena/parda, foi preso em flagrante e recolhido à Colônia Penal São Pedro.
As testemunhas e o réu foram ouvidos e deram suas versões do que aconteceu.
Antonio, brasileiro, amapaense, com 23 anos de idade, solteiro, comerciário, residente na
avenida General Gurjão, sabendo ler e escrever, declarou que vivia maritalmente com a
meretriz Maria Nilza, vizinha de cômodo de Raimundinha. Ele disse que esteve no dançará
Merengue com Maria Nilza no período de 01h a 02h30 da madrugada e o acusado também
havia estado lá. Quando retornaram para o quarto de Maria Nilza, Raimundinha estava na
companhia de Belisca, bastante alcoolizada. Ele disse que vítima e acusado estavam
começando a discutir e que o homem passou a esbofeteá-la. Depois foram embora, e então o
declarante e sua amante se recolheram. Às 04h40 foram despertados por policiais que
procuravam informações sobre uma mulher morta em uma calçada nas proximidades do
cruzamento da rua Tiradentes com a avenida Mendonça Júnior. Então, ele e as colegas de
410
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 66.
141

Raimundinha concluíram se tratar dela.411 Antonio e Maria Nilza tinham uma relação marital
na época do crime, mas não fica claro se moravam juntos, porque ele informa um endereço
diferente da residência dela. O que sabemos é que dormiam juntos. Meses depois, essa relação
teve fim, como ele afirma mais à frente. Além dos mais, “viver maritalmente” pode não
significar que eles tinham uma relação de marido e esposa, como tradicionalmente é
conhecida, pode ser sim uma forma usada pelo escrivão para definir o relacionamento
relativamente estável dos envolvidos. Essa expressão pode servir para caracterizar um
namoro, um amasiamento ou concubinato.
Belisca também declarou que vivia maritalmente com a vítima havia dois meses e que:

Quando alcoolizada ficava possuída de ciúmes doentio, agredindo-o vez por


outra, tendo desta feita lhe ferido com uma gilet suas pernas, que muito
embora frequentemente mantivesse encontros amorosos com
RAIMUNDINHA, ontem foi sozinho ao dançarás Merengue, isto é, na
companhia de seu conhecido RUBENS DE TAL, onde, cerca de meia noite
chegou acompanhada de outras meretrizes, a mencionada RAIMUNDINHA,
a qual, ao vê-lo foi ao seu encontro, entretanto, notou que o declarante não
estava com intenção de sair em sua companhia.412

Por volta das três horas, quase ao término da festa, chamou um carro de praça para ir embora e
foi seguido por Raimundinha. Ela então entrou no carro e não quis sair, só restando a alternativa de
seguir viagem com ela até o Bar Caboclo, onde tentou fugir da mesma:

Que encontrando-se bastante alcoolizado faltou-lhe paciência para suportar


os puxavões de Raimundinha e, para livrar-se dela passou a batê-la, dando de
caminhar na direção de seu quarto; que, RAIMUNDINHA o seguiu
persistentemente, agarrando-se ao declarante por quase uma hora; que
esgotada sua calma resolveu afastar de qualquer maneira Raimundinha,
desferindo-lhe socos e pontapés até deixá-la caída na calçada próximo ao
cruzamento da avenida Mendonça Júnior com a rua Tiradentes; que
RAIMUNDINHA ainda se ergueu apanhando uma ripa tentando cacetá-lo;
que revidou com um violento empurrão prostrando-a novamente na calçada;
que notando que a mesma não mais se erguera e nem lhe perseguira, deixou
ali e dirigiu-se ao seu quarto, jamais presumindo que os socos e pontapés
desferido em RAIMUNDINHA ocasionassem sua morte, ficando surpreso
ao saber que a mesma fora encontrada morta no mesmo local onde caíra em
consequência do empurrão. [...] Que o desfecho trágico de citada desavença
deixa o declarante bastante emocionado e triste, isto porque tinha em
RAIMUNDINHA, não só uma amante, mas antes de tudo uma amiga, pois
algumas vezes a mesma lhe dava pequenas importâncias em dinheiro.413

411
Ibidem, p. 7.
412
Ibidem, p. 7.
413
Ibidem, p. 7-8.
142

A todo momento, o acusado reitera a informação de que a vítima insistia pela sua
companhia, o que é corroborado pelos depoimentos das testemunhas. Ele usa desse argumento
para justificar as agressões sofridas por Raimundinha. Note-se que após uma suposta reação
dela, ele a empurrou, viu que ela ficou jogada no chão, mas não se preocupou se ela tinha
ficado desacordada, pois somente foi embora para dormir em seu quarto. Ao final de seu
depoimento, o que percebemos é que a tristeza e a emoção a que ele se refere não derivam de
um sentimento afetuoso por Raimundinha, mas da falta das quantias em dinheiro que ela lhe
dava.
Neuza, brasileira, paraense, solteira, sem profissão definida, com 36 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, próximo ao Bar Caboclo, era vizinha de Raimundinha
e disse que no momento em que Belisca aplicava socos e pisões na vítima, Antonio interferiu
e pediu para ele parar de bater nela, mas Maria Raimunda gritava: “pode me matar de porrada
mas eu não te largo”. Depois disso, Belisca disse que ia para casa, mas Maria Raimunda saiu
atrás dele. Todos acharam que ela tinha ido dormir com o acusado e ficaram surpresos com a
notícia de sua morte.414 Maria Tereza, brasileira, natural de Amapá, solteira, com 20 anos de
idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever,
era vizinha da vítima havia três anos, vivendo sob o mesmo teto, mas em cômodos separados.
Assistiu quando Belisca atingia a vítima com bofetadas e pontapés no corredor da casa
mencionada. Disse que as brigas entre os dois eram rotineiras e nenhuma das testemunhas
imaginou que essa briga teria um fim trágico.415 Maria Nilza, brasileira, natural de Amapá,
solteira, com 18 anos de idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior,
analfabeta, era vizinha de quarto de Maria Raimunda havia um ano e sete meses. No dia do
crime, viu Belisca e Maria Raimunda no Merengue, mas em mesas separadas. Voltou a vê-los
na casa de cômodos do Compadre Artur, onde moravam, próximo ao Bar Caboclo. Presenciou
a briga dos dois e quando Antonio interferiu, Maria Raimunda respondeu que era briga entre
ela e seu “macho”.416
Com a finalização dos depoimentos das testemunhas e término do inquérito, o
Ministério Público denunciou, por meio do promotor Geraldo Telles, que o crime fora
perpetrado por motivo fútil e meio cruel. Na sua instrução criminal, em 21 de fevereiro de
1973, Belisca negou as acusações e disse que deu tapas no rosto da vítima, mas não acreditava

414
Ibidem, p. S/N.
415
Ibidem, p. S/N.
416
Ibidem, p. S/N.
143

que isso tenha causado a sua morte. No mês seguinte ao crime, já preso, o acusado mudou a
sua versão inicial, numa tentativa de atenuar a sua pena.
Nesse dia, as testemunhas foram ouvidas novamente. Santos, brasileiro, funcionário
público, casado, com 32 anos de idade, era Comissário de Polícia e soube por meio de
informações “que o acusado frequentava constantemente o meritrício desta Capital; que o
depoente foi informado que a vítima costumava a dar dinheiro ao acusado; que a uns três
meses a vítima era xodó do acusado”.417 Antonio, relatou que mudou de profissão e agora
trabalhava como braçal, bem como mudou de endereço para a rua General Rondon.
Acrescentou ao seu depoimento que o acusado não era de beber, mas Raimundinha era
escandalosa quando estava embriagada:

Que a vítima tinha um xodó com o acusado há cerca de um a dois meses; que
de vez em quando o acusado dormia na casa da vítima; que de uma certa vez
a vítima comprou um corte de tecido para o acusado; que o depoente veio da
boate Merengue com destino ao Bar Caboclo; que o depoente morava na
época do crime com uma mulher da vida e tomava conta de um bar São José;
que o depoente ouviu falar que o acusado havia espancado a vítima; que a
briga com o acusado era decorrente de ciúme da vítima em relação ao
acusado.418

Esse depoimento confirma que Raimundinha dava presentes e dinheiro para Belisca.
Inclusive, isso poderia ser uma forma dela manter seu “xodó” próximo a ela. Ela dependia
emocionalmente dele que recebia pequenas recompensas financeiras para estar junto dela. Em
Manaus, Pereira Filho identificou a transição do cliente para o xodó, ou seja, o momento em
que a relação comercial ganha contornos de envolvimento afetivo e sexual. Mas,
diferentemente do caso de Raimundinha e Belisca, “o xodó manauara bancava integral ou
parcialmente a prostituta, ou apenas demonstrava uma preferência no convívio e na relação
sexual com ela dentro do puteiro”.419 Já Belisca não sustentava Raimundinha, pelo contrário,
recebia dinheiro dela. Não sabemos se eles se conheceram em um puteiro, nas ruas da cidade,
em dançarás ou em qualquer outro lugar. Do mesmo modo, não sabemos se algum dia ele foi
cliente dela e se foi a partir dessa relação que ele se tornou seu xodó.
Neuza, brasileira, desta vez tem como profissão doméstica, declarou que estava com a
vítima na boate Merengue, quando o acusado chegou e insultou Raimundinha e “que
terminado o serviço na Boate Merengue a vítima saiu acompanhada do acusado”.420 Ao

417
Ibidem, p. 44-45.
418
Ibidem, p. 46.
419
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves, Op. Cit., p. 75.
420
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 47.
144

responder às perguntas do Promotor Público disse “que o acusado batia na vítima porque
ambos tinham ciúme um do outro; que no corredor do Bar Caboclo o acusado bateu muito na
vítima; ficando a vítima caída ao chão; que o acusado batia enquanto a vítima estava caída”.421
Maria Nilza, também descrita como doméstica nessa fase do processo, ao contrário de Neuza,
disse que o acusado não falou palavras ofensivas para Raimundinha. Também relatou que a
vítima estava embriagada, mas não sabia se Belisca também estava.422 Maria Tereza,
doméstica, respondeu que após bater na vítima na casa de cômodos, o acusado se retirou e
Raimundinha correu atrás dele, dizendo que ele poderia matá-la de porrada, mas ela iria atrás
dele. Maria Tereza disse que Belisca estava um pouco embriagado, mas Raimundinha estava
muito.423
Neuza, Maria Tereza e Maria Nilza foram descritas como “sem profissão definida” na
delegacia. Depois, na instrução criminal, foram definidas como “domésticas”. Contudo,
sabemos que elas eram meretrizes, inclusive eram vizinhas de cômodo de Raimundinha e
faziam seus serviços nos mesmos lugares, como Neuza informou. Percebemos, com isso, que
frequentar as boates, dançarás e afins, não era algo que se fazia somente para fins de diversão,
mas também para trabalhar. As três mulheres são enfáticas no dizer que as brigas e agressões
entre o casal eram rotineiras, tanto que não imaginavam que Raimundinha teria o fim que teve
por causa do espancamento promovido por Belisca. Essa normalização das agressões, nos
leva a pensar que o cotidiano dessas meretrizes era marcado por violências e brigas de casal,
algo banalizado e que por isso não era causa de preocupação.
Ademais, as quatro meretrizes citadas no processo moravam na mesma casa, mas não
compartilhavam cômodos. As casas de cômodo ou de habitação coletiva podem ser definidas
como locais de residência das prostitutas, locais que não eram usados para trabalho. Claro que
concluir isso a partir de um processo pode ser precipitado, mas ao menos para Raimundinha,
Neuza, Maria Nilza e Maria Tereza é possível que esta seja uma conclusão acertada.
Raimundinha e Maria Nilza conviviam com seus companheiros Belisca e Antonio,
respectivamente, em seus cômodos. Raimundinha e Neuza tiravam serviço no dançarás
Merengue: a primeira saiu de lá e foi atrás de Belisca, já a segunda voltou para sua casa sem
um cliente ou um “xodó”. Assim, a residência delas podia ser usada apenas para casos de
maior intimidade ou afeto, e não para encontros com seus clientes.

421
Ibidem.
422
Ibidem, p. 48.
423
Ibidem.
145

Após a instrução criminal, em documento endereçado ao Juiz de Direito da Comarca


de Macapá, o Promotor Público Geraldo Telles requereu a denúncia do réu como homicídio
qualificado por motivo fútil e meio cruel, nos termos da denúncia:

MM. Julgador.

A materialidade do delito e a autoria do mesmo estão mais que patentes


nestes autos.
O denunciado, que era “xodó” da vítima, dormindo sempre ou
frequentemente no quarto desta, decidiu, em a noite da ocorrência, não
dormir com a mesma. Daí a exigência da amante que, sendo prostituta o
tinha como seu homem, dedicando-lhe parte das noites e sendo mesmo
generosa em dinheiro e presentes para com o denunciado – julgava-se
naturalmente merecedora da companhia deste naquela noite, à semelhança
do que faziam com frequência.
E, assim, insistiu em seu propósito, passando a persegui-lo à medida que
verificava mais acentuada a negativa do amante em comparecer ao ninho de
amor de ambos naquela noite.
A sua negativa foi tomando caráter de violência até chegar ao ponto
extremo de espancá-la com socos e pontapés de tal modo que a prostrou por
terra, na rua, alta madrugada, desfalecida ou já quase morta, e ali a deixou ao
Deus dará, de maneira cruel depois de havê-la espancado também de modo
cruel.
Os depoimentos são veementes contra o denunciado que, tal como a
vítima, se achava embriagado.
O denunciado, pelo que existe nos autos, é frequentador do meretrício,
com o grau máximo de degeneração moral, qual seja a de amante da meretriz
e vítima e também seu explorador.
Por tudo isso, conclui-se seja o denunciado de alta periculosidade e de
mau comportamento moral e social.424

Como citado, o Promotor Geraldo Telles denunciou Belisca por homicídio qualificado
por motivo fútil e meio cruel. Após a instrução criminal, ele seguiu com essa indicação. A
partir desse documento, Telles entende que o ato de dar dinheiro e presentes, além de dedicar
parte das noites, tão caras para as meretrizes, significava, para Raimundinha, o direito de ter a
presença de Belisca em sua cama. O Promotor narra o episódio da morte da meretriz cometida
pelo sapateiro para cumprir com o seu papel de acusador do suspeito. O final do documento é
esclarecedor sobre o que ele pensa a respeito do meretrício. Como frequentador das zonas de
meretrício de Macapá, o acusado foi considerado um degenerado moral, o que é agravado por
ser amante de uma meretriz e ser seu explorador. Pela violência usada nas agressões contra
Raimundinha, Geraldo Telles considerou Belisca como um indivíduo de alta periculosidade e
de mau comportamento moral e social, pela aproximação com o mundo da prostituição e

424
Ibidem, p. 50.
146

relação íntima com uma meretriz. Esse homem com tais características era um sujeito
corrompido, com facilidades para cometer crimes e ter comportamentos inadequados para o
meio urbano e desenvolvido idealizado pelas classes dominantes. Em nenhum momento, o
Promotor atenua o crime pela vítima ser uma prostituta ou por ter insistido na companhia do
acusado, porém, ele expõe a sua opinião sobre o meretrício ao final do texto. Uma opinião
difundida por juristas e médicos desde o século XIX, que viam a prostituição como símbolo
da degeneração moral e social que precisava ser combatida (higienizada e normalizada).
Já o advogado do réu, Cícero Borges Bordalo, argumentou que Belisca não teve a
intenção de matar Raimundinha e não assumiu esse risco:

Daí depreende-se, sob o ponto de vista jurídico-penal, que a tipificação legal


do fato, não sendo dolosa, configura-se plenamente em lesão corporal
seguida de morte, catalogada no disposto do parágrafo 3º, do art. 129, do
Código Penal vigente.
Realmente, o R., na noite do trágico acontecimento, foi insultuosamente
provocado pela vítima, com palavras condenadas pela moral e pelos bons
costumes, de modo reiterado, unicamente porque na citada noite desejava
recolher-se ao seu quarto de dormir, sozinho. Insolentemente, contudo, a
vítima queria ver cumprido seu desiderato: passar o restante daquela
malsinada noite com o acusado.
Considere-se, ademais, que a ação do acusado foi única e exclusivamente
dirigida no sentido de desvencilhar-se de sua companhia, “jamais presumido
que os socos e ponta-pés desferidos na vítima ocasionassem sua morte”,
consoante se lê às fls. 8, dos autos. Dessarte, não se evidenciou o ato volitivo
do acusado, a intenção de matar a vítima, mas sim lesioná-la.
Na espécie sob judice, de fato, reunem-se todos os elementos da “lesão
corporal seguida de morte”, quais sejam: a) uma lesão corporal voluntária; b)
o resultado “morte”, não querido pelo agente, nem mesmo eventualmente; c)
previsibilidade desse resultado. Houve, portanto, um concurso de dolo e
culpa; dolo no antecedente (lesão corporal) e culpa no subsequente (evento
“morte”).
Diante do exposto, digne-se Vossa Excelência de desqualificar a imputação
formulada pela denúncia de fls. 2, dos autos, de vez que como ficou
exuberantemente demonstrado, permissa venia, o crime não foi cometido por
motivo futil e por meio cruel, mas sim trata-se de lesão corporal seguida de
morte […].425

A partir daqui o advogado de Belisca constrói a sua defesa para mudar a tipificação do
crime cometido. Diferentemente do Promotor Geraldo Telles, o advogado Cícero Bordalo
justifica as ações de Belisca pela insistência de Raimundinha em ter a companhia dele e pelos
insultos que ela dirigiu a sua pessoa. Ele agrediu a meretriz somente para tentar livrar-se dela,
não tivera a intenção de matá-la, mas só de lhe machucar. Com isso, ele contesta a tipificação

425
Ibidem, p. 51-52.
147

do crime de seu cliente porque se ele não teve a intenção de matar, não poderia ser
denunciado por homicídio, mas sim por lesão corporal seguida de morte. Bordalo posiciona
Belisca como sujeito passivo no crime, alguém que apenas reagiu ao comportamento insolente
e imoral da meretriz Raimundinha. Nota-se também a banalidade dos termos usados para
retratar as lesões causadas na meretriz, mesmo sendo as testemunhas são unânimes em
denunciar a excessiva violência usada pelo acusado. Ele não cita o histórico de agressões do
casal porque isso não era favorável ao seu cliente. Essa disputa discursiva faz parte da
construção de um processo judicial, no qual tanto acusador quanto defensor tentam convencer
o juiz ou o júri popular, e só um deles sai vencedor.
Mariza Corrêa aponta que acusado e vítima são julgados a partir das disputas entre a
defesa e a Promotoria, “cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto
de vista”426. Assim, os atores jurídicos usam somente o que lhes favorece para convencer o
júri e o juiz. Corrêa explica que a maior estratégia do advogado é convencer sobre a “conduta
adequada de seu constituinte e o comportamento inadequado da vítima”427. Justamente o que
Cícero Bordalo fez para defender Belisca, pois este queria dormir sozinho na fatídica noite,
mas Raimundinha tomada pelo desejo da companhia de seu amante, lhe perseguiu e lhe
provocou com ofensas.
Após o recebimento desses documentos, o juiz de Direito José Clemenceau Pedrosa
Maia declarou:

As partes arrazoaram no prazo legal, requerendo o Órgão do Ministério


Público a pronuncia do réu, nos termos da denúncia, pleiteando o defensor
do réu a desclassificação do crime para lesão corporal seguida de morte.
[…]
Compete, porém, ao Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida.
Assim, somente o Júri poderá decidir se o réu teve o “animus necandi” a
intenção de matar (homicídio) ou agiu apenas com intenção de ferir, não
tendo querido nem mesmo eventualmente, o resultado morte, hipótese em
que o crime a configurar-se será o de lesão corporal seguida de morte.
Cabe, pois, ao Tribunal Popular, examinando melhor as provas dos autos
decidir livre soberanamente o caso conforme parecer mais acertado.428

No julgamento do Tribunal de Júri Popular no dia 30 de maio de 1973, o réu foi


interrogado:

426
CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983,
p. 40.
427
Ibidem, p. 61.
428
AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 54-55.
148

Anteriormente viveu em estado de concubinato com a vítima; que,


posteriormente o interrogando terminou com a vítima suas ligações sexuais;
porque não deu certo; que, no dia e hora mencionados na denúncia o
interrogando se encontrava na boate Merengue, com um companheiro
quando momento depois chegou a vítima; que a vítima ao chegar a boate
Merengue começou a perturbar o interrogando não deixando que o mesmo
brincasse com as outras mulheres.429

Belisca disse que após Antonio lhe aconselhar a parar de agredir a vítima, e que
aceitou tal conselho e foi embora. Mas a vítima continuou a ir atrás dele, proferindo
xingamentos como: fresco, chupão e filho da puta. Então, “enraivecido com as palavras de
baixo calão contra a sua reputação o interrogado desferiu uma tapa na vítima tendo a mesma
caído”.430 Por ciúmes, Raimundinha atrapalhou as investidas de Belisca sobre outras
mulheres. Esse foi o início de toda a confusão, mas não podemos ignorar a declaração feita
por Neuza de que Belisca insultou a vítima ao chegar ao dançará Merengue, informação que
Maria Nilza nega. Seja qual for o estopim da briga do casal de amantes, o acusado dá ênfase
aos xingamentos recebidos pela vítima, palavras que lhe teriam causado revolta.
Alessandro Cerqueira Bastos, a partir da contribuição teórico-metodológica de David
Garrioch431, explica que os xingamentos podem ajudar a entender os significados da
construção das masculinidades de determinados contextos. Isso porque ser chamado de “filho
da puta” é uma ofensa à mãe, então réus e vítimas “que viviam em um universo cultural
matrifocal no qual a figura materna era supervalorizada e, ao mesmo tempo, associada à
dependência da proteção masculina, sentiram-se impelidos a resolverem suas diferenças por
meio da violência”432. Esse xingamento não ofendeu somente Belisca, mas feriu
simbolicamente sua mãe. Influenciado pelo discurso dominante de que mãe é sagrada, em
conjunto com a ideia de que o homem – seja filho, irmão ou marido – deve proteger essa
figura, ele investiu violentamente contra Raimundinha para defender a honra de sua genitora
e, por consequência, reforçar a sua masculinidade. Já o xingamento de “fresco” era um golpe
na identidade de macho e de homem heterossexual de Belisca, pois esse é um termo utilizado
para se referir, de forma estereotipada, a homens homossexuais, mas também utilizado para
ofender homens heterossexuais com o objetivo de manchar sua honra de macho. A reação de
Belisca foi pautada nas referências de gênero construídas na sua experiência, pois reagir com

429
Ibidem, p. 71.
430
Ibidem, p. 72.
431
GARRIOCH, David. Insultos Verbais na Paris do século VIII. In: BURKE, Peter e PORTER, Roy (orgs.)
História social da Linguagem. São Paulo: Unesp, 1997.
432
CERQUEIRA BASTOS, Alessandro, Op. Cit., p. 109.
149

violência diante de ofensas e insistências de uma mulher era uma forma de simbolizar o poder
do gênero masculino, construído socialmente e culturalmente sobre o corpo feminino.
Vamos voltar ao processo. Na disputa dos discursos, venceu a defesa do acusado. O
Júri Popular qualificou o crime como lesão corporal e seu julgamento passou a ser de
competência do Juiz José Clemenceau Pedrosa Maia. Foi condenado a cinco anos de reclusão
pelo artigo 129, conforme o Código Penal Brasileiro. Em agosto de 1975, Belisca conseguiu a
liberdade condicional por ter cumprido mais da metade da pena. Em 1978, sua pena privativa
de liberdade foi extinta. O julgamento foi noticiado nas páginas do jornal:

Na quarta-feira, ainda com o dr. Geraldo Telles, na Promotoria e o dr. Cícero


Bordalo na defesa, realizou-se o julgamento do processo criminal de
Cristóvão que, aproximadamente, um ano atrás, matou a socos e pontapés,
uma mulher de vida livre, após o término de uma festa no salão
“Merengue”.433

Nessa notícia, Raimundinha não tem nome, ela é apenas uma mulher de vida livre
tendo a morte como infortúnio, enquanto o periódico dá destaque aos homens “da lei”. O
jornal registra que o crime havia ocorrido em 1972, mas ele tinha acontecido meses antes. O
julgamento foi célere nesse caso, em comparação com outros processos criminais. Por
exemplo, a maioria dos processos de crimes de sedução eram arquivados porque a
punibilidade era extinta, assim como os processos de lesões corporais. Isso nos leva a
identificar que a gravidade do crime levava a um julgamento rápido.
Ana Ottoni, ao pesquisar sobre os casos de homicídio envolvendo meretrizes no Rio de
Janeiro entre os anos de 1896 a 1925, afirma que os amantes de meretrizes sabiam e eram
coniventes com o trabalho sexual praticado por elas.434 A partir da imprensa, ela identificou
dois tipos de homens que foram assassinos de prostitutas: “homens que matavam meretrizes
porque eram vítimas das seduções maléficas dessas mulheres e indivíduos que eram pintados
como réus dos crimes que cometiam, uma vez que eram considerados ‘cáftens’”.435 Belisca
não se encaixa nesses modelos, pois nem foi vítima da sedução de Raimundinha e nem era seu
“cafetão”. Estava, na verdade, mais próximo de ser seu gigolô.436 Belisca, seja por homicídio
qualificado ou lesão corporal grave, assassinou Raimundinha por ódio e desprezo pelo que ela
era e representava: primeiro por ser mulher, segundo por ser prostituta. O valor que ela tinha

433
MULHER que matou a irmã foi absolvida. Novo Amapá. Edição n° 1.686 de 02 de junho de 1973, p. 4.
434
OTTONI, Ana Vasconcelos. Flores do vício: Imprensa e homicídio de meretrizes no Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 76.
435
Ibidem, p. 76.
436
Na Argentina havia um tipo de caftén, denominado de criollo: “Explorador, atuava individualizadamente nos
meios da prostituição de luxo. No Brasil, essa figura é identificada ao gigolô que, ao contrário do cafetão,
explora a mulher da qual se faz amante, sem exigir pagamento certo. In: RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 307.
150

para ele derivava do que a vítima podia lhe oferecer: presentes e dinheiro. No seu depoimento
e no das testemunhas sobressaem relatos de atitudes violentas misóginas que culminaram na
morte de Raimundinha.
Ottoni ressaltou que, para a imprensa do Rio de Janeiro, as meretrizes eram mulheres
que não amavam porque “elas tinham o ‘vício’ do dinheiro e/ou do sexo que fazia obliterar o
seu amor”437. Ou seja, por serem viciadas em dinheiro e em sexo, não eram capazes de amar
como as mulheres “saudáveis”, essas mulheres saudáveis eram as mães e esposas fiéis aos
maridos. Então os jornais reforçavam que as meretrizes “sofriam intensamente por amor,
principalmente quando este era repudiado pelos companheiros”438, e era na separação que elas
cometiam os maiores “desatinos” (como suicídio) por causa de seu “amor viciado”. A autora
destaca que os jornais representavam a morte das meretrizes como fruto da degeneração e a
última consequência das inúmeras agressões advindas de seus amásios, porque elas “tinham
um fascínio pelo amor que trazia desgraças e morte”439. Desse modo, Ana Ottoni destaca que
a imprensa acreditava que as meretrizes gostavam de ser espancadas, e que isso poderiam
suportar, mas uma separação não.
Margareth Rago analisa a relação do gigolô/caftén com a prostituta, porque esse
homem era a principal referência pessoal para essa mulher:

Nessa relação, a prostituta – figura extremamente fragmentada na


multiplicidade das relações despersonalizantes – podia refazer
psicologicamente sua identidade. Como um espelho, ele devolvia-lhe uma
imagem completa, reconhecendo-a como indivíduo, ao contrário dos
fregueses para quem representava um órgão e uma performance. […] Sob o
olhar do gigolô, a prostituta podia reconstruir sua auto-imagem unitária e
inscrever-se novamente num espaço psíquico fundamental para a vida em
sociedade.
Neste jogo em que ela referendava a virilidade e a importância do homem,
mesmo que não fossem amantes, como acontece entre muitos caftens e
meretrizes, em que ela também constituía e sustentava a imagem do parceiro
como figura necessária, protetora e exploradora ao mesmo tempo, o apanhar
e o bater, por mais violentos que fossem, possuíam um certo encanto:
constituía-se como uma dimensão afetiva da relação homem-mulher pela
qual ambos se posicionavam no mundo como ser frágil e ser superior.440

Na vida de Raimundinha, era esse homem, ou melhor, a relação e os sentimentos que


ela sentia por ele que faziam com que se sentisse humana, amada e querida, diferentemente da
relação de trabalho estabelecida com os clientes. Porém, as brigas constantes e a dependência
emocional que ela tinha em relação a ele foram a marca do casal. Rago afirma que a aceitação
437
OTTONI, Ana Vasconcelos, Op Cit., p. 103.
438
Ibidem, p. 104.
439
Ibidem, p. 104.
440
RAGO, Margareth, Op. Cit., 315-316.
151

das agressões por parte das meretrizes fazia parte dos papéis de gênero exercidos por homens
e mulheres em uma relação, a mulher como um ser frágil que deve ser protegida ou que deve
obedecer ao homem, que é forte, viril e superior a ela.
Raimundinha queria a companhia de Belisca a todo custo e isso custou a sua vida. Ele
tinha um trabalho e um quartinho alugado, mas aceitava agrados e dormia frequentemente no
cômodo alugado de Raimundinha. Influenciado pelos códigos de gênero, entendia que a
meretriz deveria assumir o papel de sua serva. Porém, quando ela buscava que o seu
sentimento e seus desejos fossem correspondidos, os desentendimentos entre o casal e a
violência tomavam conta da relação. Pelos depoimentos, percebemos que os xingamentos
utilizados pela meretriz tinham como objetivo não só ofender, mas também chamar a atenção
de Belisca para que ele não fosse embora. Para Raimundinha, era melhor ser agredida e ter a
companhia de seu amado, do que ficar sozinha porque o sentimento que ela tinha por ele era o
que a fazia se reconhecer como pessoa novamente.

3.3 “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate em
Macapá
Aos 83 anos de idade, Maria Albuquerque vive às margens do Rio Pedreira, na zona
rural de Macapá. Atualmente, tem um restaurante onde recebe clientes que procuram tomar
banho de rio aos finais de semana e feriados, e amigos dos tempos em que foi proprietária de
uma muito conhecida boate. Apesar da idade, Maria é muito ativa e tem como principal lazer
pescar no seu pequeno barco. Quando lhe disse que a minha avó havia nascido na comunidade
de Ipixuna Miranda, não muito longe dali, falou com orgulho e empolgação que às vezes vai
até esse rio para pescar. Apesar de não trabalhar “na noite” há muitos anos, ainda tem hábitos
noturnos. Passa a noite em claro e costuma acordar próximo ao meio-dia. Seu filho disse ser
consequência dela ter passado tantos anos trabalhando com boate. Muito simpática e
receptiva, Maria contou a sua história sobre a boate, a relação com as “meninas”, políticos,
delegados, funcionários e clientes.
Nascida na Paraíba, ela fugiu de casa aos 13 anos com um namorado e foi morar na
casa dele. Com a fuga, sua família contactou a polícia para realizar o casamento com o jovem
de 22 anos. A família dele alegou que o rapaz não devia nada à Maria, mas a família dela
discordava. Para não ser morto pelos irmãos da jovem ou condenado por crime de sedução,
eles tiveram um casamento civil “na polícia”. No ano seguinte, em 1953, Maria deu à luz a
seu primeiro filho, fruto de seu casamento. Mas, sua vida não era boa com seu marido. Ela
fugiu e seus pais ficaram com a criança. Seu primeiro destino foi Pernambuco, onde procurou
152

a sua cunhada, que não quis recebê-la por medo de represálias de seu irmão, marido de Maria.
Ela teve que ir embora e foi para Fortaleza, no Ceará. Disse que não deu certo e logo foi para
Natal, mas lá não deu certo também:

Voltei pra Fortaleza e conheci uma menina que disse:


– Ah, menina, tá dando muito emprego no Norte. Belém…
Aí ela foi falando os lugares, Santarém, Manaus, ela falava e eu me
entusiasmei com aquilo.441

Interessante observar as sugestões dos lugares para migração. A oportunidade de


trabalho fez brilhar os olhos de quem estava em um contexto de insegurança, como era o caso
da nossa entrevistada. Maria contou que essa mulher propôs uma viagem para Belém e ela
aceitou, mas ao chegar na cidade se deu conta de que se tratava de uma boate:

Chegou em Belém, meu Deus do céu! Era uma boate e eu digo:


– Ah, dona Cleonice, eu não quero ficar aqui, pra eu ficar aqui a dona da
casa vai mandar eu… fazer o que não devo.
A dona da casa falou:
– O que você não deve fazer? Você é virgem?
Não senhora.
– Já teve filho?
– Já sim, senhora.
– Pois é, o quê que eu posso mandar você fazer o que não deva fazer?
E eu digo:
– Ah, o que não presta.442

Maria não foi informada de que o seu local de destino em Belém era uma boate. O
diálogo com a proprietária sugere que houve um desentendimento. De um lado, Maria disse
que não deve fazer serviços sexuais porque “não presta”. Ela via esse trabalho como indigno e
degradante, principalmente porque seria “mandada”. De outro, a dona da boate questionou se
ela era virgem e tinha filho, e como Maria respondeu negativamente à primeira pergunta e
positivamente à segunda, a mulher entendeu que ela estava apta à profissão de meretriz. Isso
porque, no discurso hegemônico, se uma mulher não é mais virgem, ela não tem o que perder,
pois a sua honra não existe mais. Assim, a nossa entrevistada saiu dessa casa e conheceu uma
senhora que morava perto de Macapá. Em 1958, passou a cuidar dos filhos desta mulher por
um tempo em algum local fora dos limites urbanos da cidade, mas logo saiu de lá e pegou um
transporte para Macapá:

441
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
442
Ibidem.
153

Vim pra Macapá, conheci uma moça que trabalhava no hospital. Quando eu
cheguei lá em Macapá, eu cheguei parece que doente. Fui no hospital e lá ela
conversou: onde você mora? E eu comecei a explicar, eu não morava em
lugar nenhum porque eu tinha saído duma casa, ido não sei pra onde.
– Você sabe fazer o quê?
– Eu faço de tudo.
Aí ela me botou na casa dela, essa menina do hospital, me botou lá. Aí,
conclusão cortando isso aí, eu fiquei lá um tempo com ela. Belo dia eu
conheci um senhor idoso […]. Ele vendia costela de porco, churrasquinho
ele fazia, assim de rua na noite. […] Fui trabalhar com ele.443

Apesar da insegurança financeira e de não ter o que comer ou onde morar, Maria
conseguiu estabelecer redes de solidariedade por onde passou e trabalhava com o que
conseguia. A mulher do hospital lhe deu abrigo, até ela conhecer um senhor chamado Luciano
e começar a trabalhar com ele. Certa noite, uma mulher chegou para conversar:

Era amiga do Luciano, amiga dele, chamava-se Józima. Era professora do


Amapá. Tinha um companheiro com o nome Costinha, era um prático de
navio. E ela tinha uma boate que não funcionava mais porque o Costinha não
deixava. […] Era professora e tinha [a boate] por debaixo dos panos, alguém
tomava conta pra ela.444

Aqui, temos uma confirmação de que algumas donas de boates e pensões não eram ou
haviam sido prostitutas. Antes de ser dona de boate, Maria trabalhava com serviços
domésticos e vendia espetinho com Luciano. Já Józima, conciliava a profissão de professora
com a administração da boate, mas como Maria bem pontuou, tinha quem tomasse de conta
do empreendimento por ela e só abandonou a gestão da boate porque seu companheiro não
aprovava tal atividade. Józima continuou contando sua história e disse que ia fechar ou alugar
a boate. Maria pensou ser uma boa oportunidade para ela. Depois, perguntou a Luciano sobre
a natureza da casa e ele disse ser uma boate, mas ela só acomodava mulheres, não tinha festa.
Ela pediu para Luciano falar com Józima, pois se dispunha a lugar. Porém, Maria não tinha
dinheiro. Contou sua história para Józima e disse que estava em Macapá para trabalhar.
Józima aceitou “fazer negócio” com ela, mas ela precisava assinar doze promissórias de
duzentos cruzeiros, equivalentes a um ano de pagamento. Em 1964, ela iniciou as atividades
da boate. Porém, nenhuma mulher morava na casa:

Só fiquei com o lugar, [para] ajeitar e começar a chamar gente. E assim foi o
início da minha vida em Macapá foi esse. Daí arrumei a casinha, arrumei
tudo, ajeitei e não podia comprar nada porque não tinha dinheiro, tinha que

443
Ibidem.
444
Ibidem.
154

primeiro movimentar. Mas como Macapá naquela época era famoso, Macapá
onde o povo chegava e falava: Ah, Macapá é o lugar.445

Quando perguntada sobre a divulgação da boate disse que os homens levavam “as
meninas” e nunca foi buscar nenhuma, pois elas iam, gostavam e começavam a morar aí. A
boate funcionava no turno da noite e durante o dia era apenas espaço de moradia.

E pelo menos a minha casa era respeitada, não entrava polícia, não entrava
quem brigava, porque quem brigava eu chamava com toda educação e
explicava a situação. Depois que passou a morar meninas comigo, todo mês
eu tava na polícia. Chegava meninas, apresentava lá, registrava. Na outra
semana, hospital.446

O “Registro de Meretrizes” era feito na Terceira Delegacia, que Maria informou ficar
localizada no perímetro entre as praças Veiga Cabral e Isaac Zagury. Na República do
Mangue, Juçara Leite afirma que “a prosperidade de um bordel dependia da fama de seus
atributos, entre eles a limpeza, a organização e a segurança. Por isso, as cafetinas aceitavam a
disciplinarização policial”.447 Essa disciplinarização policial ocorria por meio de fichas de
meretrizes. As fichas continham informações de saúde, mas também de comportamento. Uma
prostituta “fichada” estava suscetível a ter suas “falhas” registradas. Caso tivesse histórico de
doença, embriaguez, roubos e desordem na ficha, poderia ter seu trabalho dificultado ou
proibido pela polícia.448 De acordo com Sidney Lobato, o “Registro de Meretrizes” no TFA
continha os dados pessoais e os motivos pelos quais as mulheres enveredaram nos caminhos
da prostituição449; mas, a partir da fala da entrevistada, acreditamos que o histórico de saúde
também era anotado. Maria relatou que registros precisavam ser feitos enquanto as meninas
fizessem programa e eram atualizados mensalmente. Já na polícia isso ocorria somente uma
vez.
Maria levava as meninas assiduamente para fazerem exames no posto de saúde, e na
entrevista destacou: “se alguém dissesse que entrou lá, ficou com uma das garotas e pegou
doença, eu processava”.450 Em diversos momentos de nosso diálogo, ela usou os termos “eu
processava” e “mandava prender”, isso indica o uso que ela fazia das instituições do Estado e
até mesmo uma certa familiaridade com as autoridades do TFA. No começo, ela conseguiu
realizar melhorias no local:

445
Ibidem.
446
Ibidem.
447
LEITE, Juçara, Op. Cit., p. 107.
448
Ibidem.
449
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219.
450
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
155

Agora, minha filha, eu era cozinheira, eu era garçonete, eu era arrumadeira


de quarto, era tudo. E fui melhorando o ambiente, o lugar e transformei ele
em um bom local pras meninas. E elas viviam comigo e gostavam muito.
Fazia aniversário delas. Era como uma mãe, eu jovem, e era como uma mãe
pra elas. Então por isso que eu acho que Deus me ajudou por isso.451

Em nenhum momento, Maria se refere às mulheres que trabalhavam em sua boate


como prostitutas, pois sempre as chamava de “meninas”. Ela também não se identificava
como cafetina, aliás, não encontramos sequer menção a ela com esse termo em nenhum lugar.
Parece que a figura do cafetão e da cafetina não existia no TFA, ou que os sujeitos aí
residentes não utilizam essas palavras. Quem era dono ou dona de boate era percebido apenas
nestes termos, a exemplo do proprietário da boate Xadrezão, citado na segunda seção.
Claudielle Silva explica que as iniciantes no mundo da prostituição ou recém-chegadas
nas casas recebiam as primeiras orientações das donas dos estabelecimentos e das prostitutas
experientes. Ela destaca que algumas cafetinas haviam sido meretrizes quando jovens e
tinham sofrido explorações. Mas, quando alcançavam uma posição de privilégio diante das
demais prostitutas, reproduziam o que haviam sofrido outrora. Além da exploração de que
eram vítimas, “as prostitutas recém-chegadas aprenderam com as cafetinas os segredos do
ofício, as regras implícitas e explícitas de convivência. Essas mulheres mais velhas
contribuíram com sua experiência e proteção”.452 A relação de donas de pensões/cafetinas e
meretrizes era complexa. Se por um lado poderia haver exploração financeira e de trabalho,
por outro as mais velhas orientavam as jovens no serviço sexual e na convivência cotidiana
nas casas.
No decorrer da entrevista, Maria falou sobre momentos em que protegeu as que
moravam e trabalhavam em sua boate. Ela destacou que se enxergava como uma mãe para
essas meninas, que estavam em Macapá sozinhas, sem família, assim como ela estava anos
antes. Esse papel de “mãe” não era incomum para as cafetinas e donas de boates ou cabarés.
Em São Paulo, no início da República, muitas prostitutas romperam com os laços familiares,
se não total ao menos parcialmente. Margareth Rago afirma que elas buscaram constituir laços
de amizade e companheirismo com as suas iguais e com as proprietárias de bordéis. Essas
últimas eram privilegiadas nessa relação, porque eram vistas mais como figuras maternais e
protetoras do que como exploradoras.453 Rago acrescenta que essa era uma relação ambígua,
porque ao mesmo tempo em que a proprietária da casa era conselheira e confidente, a cafetina

451
Ibidem.
452
SILVA, Claudielle, Op. Cit., p. 60.
453
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 262.
156

exercia controle sobre o cotidiano da meretriz. Ela compara essa relação com a de um patrão
exigindo produtividade dos operários de uma fábrica.454 Esse controle cotidiano também pode
ser observado a partir da fala de Maria:

E outra coisa, as meninas que moravam comigo elas não bebiam, só


moravam se elas não bebessem. [...] Pelo menos em casa elas não podiam
beber, podia fumar, usar droga não, não podia. E se bebessem, muitas delas,
que eu não podia mandar na vontade. Você sai com seu parceiro, com
qualquer pessoa que você quiser e lá você bebe, volta pra casa boa. Elas
tinham a vida livre também, não eram obrigadas a nada, por mim não.455

Bebida alcoólica era um item proibido para as meninas da casa de Maria, ao menos no
interior da residência. Fora dali elas podiam fazer o que quisessem, desde que voltassem
sóbrias. Havia regras a serem seguidas e não usar álcool ou drogas ilícitas, não eram as
únicas. Sair dos quartos só de camisola e babydoll também não era permitido. Elas
precisavam vestir uma blusa e uma bermuda para ficarem “tudo bonitinha na mesa sentada”.
Como outra forma de evitar problemas com a polícia, ela não aceitava menores de idade em
sua casa, somente meninas a partir de 18 anos: “Porque eu via muita fofoca de menina de
menor nesses lugares que prendia. [...] A polícia entrava e pegava bebendo lá, garoto,
meninas. [...] Não, nunca quis. Não quero essas coisas”.456 De fato, a boate de Maria não foi
mencionada em nenhum dos casos registrados nos processos criminais ou nas ocorrências
analisadas em que meretrizes menores de idade foram presas na rua ou em ambientes
fechados.
Com o tempo, Maria já não cuidava da boate sozinha, pois contratara funcionários.
Uma gerente, um cozinheiro e uma arrumadeira. A gerente morava na boate com as meninas.
Inclusive, Maria já tinha conseguido comprar um terreno, para aí construir sua própria boate e
assim se livrar das dívidas das promissórias. Maria tinha residência própria, onde morava com
o marido, um engenheiro inglês que conheceu na sua boate, e com seus filhos. Ela ia todo dia
pela manhã para prestar contas com a gerente e pegar a lista de compras. Ficava durante o
expediente, mas ia para casa a fim de dormir com a sua família. Essa prática da dona não
morar na pensão ou boate já foi identificada em Macapá. Em um inquérito de 1953, Sidney
Lobato encontrou o depoimento da meretriz Ercília Maria, que disse ser proprietária de uma
pensão de mundanas, mas não ia lá diariamente, pois só fazia isso quando precisava de
dinheiro. Na sua ausência, cada meretriz era responsável pelo seu quarto e despesas.457
454
Ibidem, p. 266.
455
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
456
Ibidem
457
LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 198.
157

Contudo, a boate de Maria tinha uma estrutura de organização e uma gerente para cuidar do
funcionamento na ausência da proprietária, diferentemente da pensão de Ercília Maria.
Em outro momento, Maria disse que quando o Exército começou a fazer ronda na
cidade “ficou muito melhor, porque aí era a polícia do Território e era o Exército”.458 A
entrevistada afirma que a cidade ficou mais segura com as patrulhas do Exército. Porém, mais
segura para quem? Mais segura em quais lugares? Com certeza não para prostitutas que
moravam, trabalhavam e frequentavam os chamados inferninhos, porque soldados fardados as
agrediam e causavam frequentes tumultos em locais de diversão noturna e nas ruas da cidade.
Ela fala de um lugar de certo privilégio, porque conseguiu estabelecer boa relação com
autoridades governamentais e policiais do TFA, além de conseguir exercer controle e ditar
regras no seu estabelecimento para que ele não figurasse nas páginas policiais da imprensa e
nos processos judiciais. Não sabemos se essas ações dos soldados eram incentivadas pelo
Exército, como uma tática de censura moral ou se eram fruto de iniciativas individuais e
coletivas de alguns soldados. Perguntei também sobre a relação dela com a guarda territorial e
a polícia. Como vimos, em alguns locais, guardas territoriais ficavam de plantão dentro dos
estabelecimentos. Porém, não era o caso da boate de Maria:

Mas eles não entravam na sua boate?


Não, não entrava porque eu sempre cheguei com os delegados e falava:
“Olha, qualquer problema que tiver na minha casa eu quero que o senhor me
chame e resolva, não deixe que chegue polícia.” Porque em outros lugares a
polícia chegava, entrava, acendia as luzes na cara do povo lá. Qualquer boate
tem luzinha.459

Para ela, se a polícia entrasse e deixasse os clientes desconfortáveis, perderia a sua


autoridade de dona da casa. Para evitar isso, Maria se antecipava e conversava com os
delegados. A boate dela se distinguia das demais por ela ter conseguido estabelecer boas
relações com os delegados de polícia. Nos inferninhos, como ela chama, a polícia entrava sem
pudor algum e causava a exposição dos clientes. A prostituição da boate da entrevistada não
era a mesma exercida nos inferninhos e nas ruas do TFA. Embora haja uma classificação de
baixo e alto meretrício460, entendemos que ela não se aplica ao local que estudamos, porque
Macapá não era um grande centro urbano com cabarés de luxo. Diferentemente de São Paulo,
Rio de Janeiro, Belém e Manaus. Raimundo Pereira Filho explica que na capital do
Amazonas, durante a Belle Époque, no auge da exploração da borracha, era possível fazer

458
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
459
Ibidem.
460
Ver: RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar. Op. Cit. 1985.
158

essa distinção de alto e baixo meretrício, pois as prostitutas de luxo serviam aos “barões da
borracha”, sendo muitas delas europeias, especialmente francesas e polacas, e por isso
despertavam o interesse desses homens. Diferentemente das prostitutas mais pobres, que
ofereciam seus serviços para marinheiros, estivadores, operários e estudantes por um preço
bem mais baixo.461 Pereira Filho esclarece que as prostitutas do baixo meretrício em Manaus
eram, em sua maioria, nordestinas e amazonenses, da capital e do interior.462 Em Belém, a
situação não era diferente, porque os “coronéis da borracha” também tinham as suas cocottes
estrangeiras, que exibiam seus vestidos de luxo trazidos da Europa. Maria de Nazaré Sarges
argumenta que economicamente os “coronéis” eram dependentes de empresas da Inglaterra e
dos Estados Unidos, porém, a sua referência cultural era Paris.463 Consideramos que os limites
do que era considerado luxuoso e miserável eram tênues e fluidos no TFA. No entanto, é
importante distinguir o estabelecimento da entrevistada das demais boates, pensões e dançarás
de Macapá e suas vilas e distritos. Ela própria não identificava a sua boate como um
prostíbulo ou cabaré:

Então tinha muito isso, não era propriamente dizer assim “Maria teve um
cabaré, um prostíbulo”. Não, era uma casa que abrigava-se mulher que
viesse de avião, não fui eu que mandei buscar.
– Tá aqui, delegado, elas vieram por conta própria.
Levava passagem, bilhete tudinho, mostrava. Era tudo registrado, tudo
dentro do limite. Pra evitar de… Por isso que eu levei a minha vida todinha
sem polícia me incomodar e eu incomodar a polícia.464

Como citado anteriormente, lenocínio é crime no Brasil. Maria afirma que não foi
buscar nenhuma mulher para se prostituir em sua casa, elas chegavam com o intuito de morar
na boate, e que aí se prostituíam por conta própria, o que não configura crime para Maria.
Contudo, não sabemos como era essa relação das meninas e Maria sobre o serviço da
prostituição. Quando perguntada sobre como era a convivência com elas, a entrevistada falou
que era boa, mas não deu detalhes. Não sabemos como os programas eram definidos, se os
pagamentos eram divididos entre as meninas e ela, por exemplo. Pela sua fala, vemos que os
delegados também viam assim ou não davam importância para isso, já que ela buscava seguir
todas as regras exigidas pela polícia, como fichar as meninas e levá-las ao hospital para fazer
exames. Mais do que isso, mostrava todos os documentos que pudessem comprovar que ela

461
PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Op. Cit., p. 59-60.
462
Ibidem, p. 61-62.
463
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas Produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu,
2010, p. 113.
464
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
159

não tinha ido buscar nenhuma delas. Certamente, Maria sabia da previsão legal do crime de
lenocínio e queria se precaver com a finalidade de mostrar que estava “dentro do limite” do
permitido pela lei.
Os delegados não eram as únicas autoridades com quem Maria estabeleceu boas
relações. Em determinado momento, ela menciona que até mesmo um dos governadores do
TFA chegou a indicar sua boate:

Na época do Doutor Nova da Costa465, […] ele mandava os que vinham de


Brasília e queriam se divertir, ele mandava: olha, diz que tem uma casa
muito boa aí, a casa da Maria, muito boa. E mandava o pessoal. Só tinha
gente boa.
[...]
É, não tem bagunça, não tem polícia lá, não tem ninguém pra tá falando.466

Ao passo que funcionários do governo federal frequentavam a boate de Maria e não


eram incomodados pela polícia quando estavam aí se divertindo e fazendo uso do serviço da
prostituição, os frequentadores de outras boates não tinham a mesma sorte. Pela fala dela, não
ter bagunça e não ter polícia parecem estar diretamente vinculados, porque onde há confusão,
há polícia, o que não era o caso de sua boate. Pensando no papel do Estado de forma geral, se
a prostituição era controlada e higienizada, não sofria qualquer interferência violenta das
autoridades governamentais. Inclusive, poderia ser indicada para possíveis frequentadores
pelo próprio governador. Por outro lado, para os inferninhos, o que restavam eram as
frequentes invasões policiais e quebra-quebra promovidos por soldados do Exército.
Como citado anteriormente, no final do século XIX, houve campanhas promovidas por
delegados para retirar prostitutas de algumas áreas do Rio de Janeiro. Sobre esse episódio,
Beatriz Prechet argumenta que a preocupação com a presença de prostitutas “moralmente
degradantes” era somente direcionada a mulheres negras e pobres, pois aquelas meretrizes que
frequentavam teatros não precisavam ser importunadas com a vigilância e o controle policial.
Elas ocupavam esses lugares ao lado de médicos, advogados e altos comerciantes.467 Podemos
afirmar que semelhante diferença de tratamento ocorria entre os inferninhos e a casa de Maria.
Enquanto os inferninhos sofriam com invasões policiais recorrentes, Maria não era
incomodada com guardas territoriais, soldados do Exército e policiais militares que à sua
porta viessem prender suas meninas ou clientes. Como Prechet aponta, o incômodo era
também uma questão de classe e raça. Maria afirma que havia estrangeiras na sua boate,

465
Foi governador do Território Federal do Amapá de 1985 a 1990.
466
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
467
PRECHET, Beatriz. Op. Cit., p. 76.
160

certamente brancas, o que não significa que não havia igualmente mulheres negras, pois além
das amapaenses, havia outras brasileiras e a entrevistada não identificou a cor como um
critério para permanência de mulheres na sua casa. No entanto, o que observamos é que a
maioria das meretrizes dos inferninhos eram negras. Sem dúvidas eram da mesma classe, mas
não tinham as mesmas condições de trabalho e nem eram vistas como iguais pelas autoridades
policiais. Neste atinente, Margareth Rago afirma que:

É possível que os códigos de civilidade que se instituíram nos bordéis de


luxo e nos cabarés elegantes incitassem a uma relação maior de respeito
entre o freguês e sua “protegida”, ao contrário do que ocorria, em geral, na
zona do baixo meretrício. O próprio fato de estar cercado por amigos
influentes na vida pública da cidade impunha determinados limites e regras
civilizadas de conduta aos homens que solicitavam a companhia de uma
prostituta.468

Assim, podemos incluir outro fator nessa diferença de tratamento: o comportamento


dos clientes. Como parte dos clientes tinha maior poder aquisitivo – políticos, engenheiros,
etc. – e certamente encontrava seus pares na boate, esses homens tendiam a ter limites mais
estreitos de conduta e a não maltratar as meretrizes, como acontecia em boates mais populares
em Macapá. Porém, isso também decorria das regras impostas pela proprietária do
estabelecimento.
A sua boate funcionou de 1964 a 1986, só não o mesmo tempo que a Ditadura
empresarial-militar brasileira pela diferença de um ano. Maria falou brevemente sobre a
Macapá dos anos que sucederam a sua chegada, e disse que “não tinha nada”, não tinha
asfalto e contava com poucas casas de comércio. Contudo, disse que a cidade melhorou aos
poucos com o Exército começando a operar nas ruas mais efetivamente:

Olha, o Exército melhorou muito Macapá. Na época que eu tinha meus filhos
pequenos, eu tinha o Exército onde tinha as pessoas, o avião vinha três,
quatro vezes por semana. Esses aviões grandes. E uma pessoa como eu que
tinha como, não tinha poder né, não tinha mais dinheiro, pedia caixa de
tomate, fazia amizade com eles lá. Mesmo que eu desse, sustentasse três,
quatro deles com alimentação, café, mas eu tinha como eles vim de Macapá
e trazer pra mim repor tomate, laranja, essas coisas todas. Pra eu alimentar as
próprias meninas em casa, porque era tipo restaurante.469

Esse período que ela faz referência é a vinda das autoridades das Forças Armadas a
Macapá no ano de 1973 por causa da Operação Engasga ou engasga-engasga, como ficou

468
RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 260.
469
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
161

popularmente conhecida.470 Ela construiu uma relação de troca com o Exército, e não explicita
quem eram as pessoas, podendo ser soldados ou até funcionários do TFA. Como a sua boate
também começou a funcionar como restaurante, ela oferecia refeições a eles, mas esperava
que lhe dessem tomates e laranjas. Não era somente por amizade, ela tinha um interesse nessa
relação, assim como eles tiveram daí proveito, pois recebiam refeições gratuitamente.
A boate funcionava todos os dias, de 21h a 4h. Perguntei se não houve algum período
em que o governo territorial ordenou limite de funcionamento e sua resposta foi negativa,
acrescentando que o único período em que houve ordem para fechar os estabelecimentos, foi
o contexto do engasga. No entanto, ela não fechou as portas, e só recebeu a recomendação de
um delegado para que tivesse cuidado, e se visse alguma irregularidade, teria que fechar.
Sobre o engasga-engasga, Maria revela:

Eu não sei porque foi aquilo não. Não sei se era político que queria levantar
o astral de Macapá, não sei o que foi aquilo. E depois culparam não sei
quem, que veio gente da Guiana, veio gente não sei do quê. [...] Olha, eu vou
te contar. Nunca fechei as portas nenhum dia, nenhuma hora e nunca vi nada.
Nunca.
– Ah, pegaram numa saída de igarapé não sei quem e surraram, bateram.
Eu disse:
– Olha, amanhã eu vou tirar uma de vocês, vocês se arruma e procura no
hospital se deu entrada de alguma pessoa ferida com esse problema.
Mentira. Aquilo ali foi uma coisa que eu não sei o que era, não sei o que
aconteceu. Mas durou muito tempo e assustou muita gente.471

O engasga-engasga recebeu esse nome porque, supostamente, um homem atacava


mulheres e tentava estrangulá-las. Para Maria, tudo não passava de mentira e fofoca. Um fato
a ser destacado é que ela fez com que uma das meninas fosse investigar no hospital, mas nada
encontrara. Segundo Maura Leal, a Operação Engasga “teria servido de pretexto para a prisão
de várias pessoas, supostamente, envolvidas com o comunismo, obtendo grande repercussão
entre a população e ficando marcada no imaginário amapaense como um tempo de medo e
terror”.472 E acrescenta adiante:

Apesar das várias denúncias à polícia e à Rádio Difusora, não se tem registros
de uma mulher assassinada ou gravemente ferida por esses ataques, mas essas
geraram em Macapá um clima de tensão e medo generalizados entre os

470
Sobre a Operação Engasga, ver: SANTOS, Dorival da Costa. O regime ditatorial militar no Amapá: terror,
resistência e subordinação 1964-1974. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas,
2001.
471
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
472
SILVA, Maura Leal da. Op. Cit., p. 222.
162

moradores, intensificados por estranhos cortes de energia elétrica, que


coincidiam com a saída dos estudantes das escolas no turno da noite.473

Não é de se estranhar que Maria veja esse episódio da história amapaense como fofoca
e mentira. Ela até se questiona se não era ação de algum político querendo “levantar o astral”
de Macapá, uma forma de animar a cidade. Mas, como bem pontuou Maura Leal, o
engasga-engasga foi um pretexto para prender opositores do regime ditatorial. Adamor
Oliveira lembrou que as escolas interromperam as aulas, cinemas não funcionavam e o
comércio ficou paralisado parcialmente474. A partir das reminiscências de Maria e de Adamor
podemos elaborar a questão: os locais eram fechados por recomendação de delegados ou os
proprietários fechavam por medo? Maria disse que não fechou sua boate porque achava que
se tratava de uma invenção.
Maria chamou nossa atenção ao afirmar que não aceitava em seu estabelecimento
meninas do Amapá e explicou seus motivos:

Depois eu resolvi um dilema, uma questão que eu não queria pegar mulher
do Amapá porque elas eram rebeldes, usava droga, bebia e não aceitava a
minha condição de viver comigo.
– Olha, você tem café da manhã, você tem almoço, você tem jantar, tem a
sua liberdade, tem o seu quarto. […] Pra isso, você tem que seguir as regras
da casa.
– Que regra? Aqui é puteiro, puteiro não tem regra.
– Por isso mesmo, você não serve pra morar comigo.
Aí eu não aceitava mulher daqui de Macapá.475

A rebeldia da mulher amapaense era um impedimento para a sua estadia na casa de


Maria. Mas, será que a rebeldia era o único fator para essa negativa? Ou a permanência de
mulheres rebeldes que não seguiam regras, poderia atrapalhar a relação construída com os
delegados e a polícia? E ter mulheres “de fora” do Amapá não poderia chamar mais atenção
dos clientes e ser um diferencial para manter a casa “cheia”? Acreditamos em uma
combinação desses fatores. Possivelmente, todos eles tiveram influência na decisão de Maria.
Segundo Ivonete Pereira, em Florianópolis, na primeira metade do século XX, “se dar bem”
com a dona da pensão era um dos principais motivos para que as meretrizes continuassem no
local. Isso proporcionava proteção em face de outras meninas e até de ataques policiais.
Porém, quando a dona desejava a saída de uma das prostitutas, ela deveria se retirar

473
Ibidem, p. 222-223.
474
OLIVEIRA, Adamor de Sousa Oliveira. Tesouros de Memória. Fortaleza: Premius, 2013. Memória., p.
178-179.
475
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
163

imediatamente.476 Vemos como o padrão de donas de pensão não é muito distinto, mesmo se
tratando de locais tão distantes.
Questionei sobre a prostituição realizada nas ruas e ela falou sobre as mulheres
bêbadas no Canal da Mendonça Júnior. Disse que eram muitas e:

É porque a mulher bebe. Vai nos bar, bebe, anda pela rua. Às vezes uma
abraçada. Cansei de ver mulher bêbada naquele canal ali e saía do Bar
Caboclo.
[...]
Entravam naqueles barcos, transavam com aqueles homens que vinham de
barco. Até ali atrás do Banco do Brasil, aquilo ali ficava assim de
embarcação.477

Mais uma vez o Bar Caboclo se faz presente nas memórias da prostituição em
Macapá. Como já pudemos constatar antes, o Canal da Mendonça Júnior era um dos
territórios da prostituta pobre amapaense que se embriagava e executava seu serviço sexual à
luz do dia ou na escuridão da noite nas ruas ou em embarcações que ali ancoravam. A
prostituição nos barcos é um aspecto singular dessa atividade no TFA. Observamos que as
prostitutas amapaenses não limitavam o seu ofício às boates, ruas e pensões. Sendo
necessário, entravam nas embarcações para trabalhar. Com isso, é possível supor que o a
interdição do uso de bebida alcoólica pelas meninas na boate de Maria estivesse ligada ao fato
dela não querer que aquelas moças fossem confundidas com as prostitutas pobres do canal.
Alguns aspectos da vida das meninas foram revelados, assuntos amorosos e familiares
anteriores e posteriores à permanência delas na boate. Perguntamos sobre namorados,
maridos, casamentos arranjados durante o meretrício e filhos. Maria disse que elas não tinham
namorados, pois esses eram os clientes que passavam as noites com elas, mas logo iam
embora. Segundo suas palavras, o homem de boas intenções diz: “a partir de hoje eu não
quero essa menina no salão, fazendo programa porque eu vou tirar ela”.478 Um homem que
não fazia isso não poderia ser namorado, mas sim cliente.
Ela citou a nacionalidade e nomes de algumas moradoras da sua casa como a
paraguaia Maria, a argentina Cristiane e a austríaca Solange, também mencionou duas
francesas que já eram radicadas no Brasil, o que indica que as outras mulheres tinham vindo
de outros países diretamente para Macapá. Como ela afirmou, não aceitava mulheres de
Macapá na sua boate, o que não significa que não aceitava mulheres de outras regiões do

476
PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 130.
477
Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
478
Ibidem.
164

Brasil. Quando chegavam em Macapá e procuravam por Maria, diziam que tinham
encontrado alguma menina que morou muito tempo na casa e lhes dissera que era bom. Dessa
forma, Maria as recebia e lhes dava boas-vindas. Porém, cada uma delas tinha uma história
marcada por dor, violência e abuso, principalmente de maridos ou amásios:

Outros não era marido, outros viviam e maltratavam elas. Outros botavam
elas pra ganhar dinheiro pra ele. Tem tudo isso. [...] Prostituía a mulher, pra
dar dinheiro pra eles. Já pensou, como é que pode? […] Fugiam pra fazer a
vida delas, porque a mulher depois que ela tem marido ou filhos e sai da casa
de suas famílias, não adianta voltar mais.479

A partir desse relato, percebemos como não era incomum alguns companheiros
obrigarem as esposas a se prostituir para lucrar com a exploração delas. Essas mulheres
exploradas fugiam e, como não viam alternativa, continuavam na prostituição, mas por conta
própria ou nem tanto, pois algumas iam morar em boates. Maria também falou que algumas
das meninas haviam sido estupradas pelos maridos ou tinham filhos estuprados por aqueles,
razão pela qual decidiam fugir, mas chegavam sem filhos em sua boate. Aquelas que
engravidavam na boate, recebiam uma passagem de viagem e eram mandadas embora de onde
vieram.
Algumas das meninas conheceram seus maridos na boate. Algumas delas casaram
com funcionários da Eletronorte480, indo em seguida embora para os estados de origem deles.
Outras casaram com estrangeiros e saíram do Brasil com destino a países como Itália e
Estados Unidos.
O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, nas décadas de 1960 e 1970 recebia navios
estrangeiros cotidianamente. Erika Pinho, Cristian Paiva e Francisca Sousa inferem que “os
encontros interculturais forjavam, entre as mulheres nativas, novos desejos e idealizações
sobre as masculinidades, que contrapunham as características dos homens locais àquelas
atribuídas aos estrangeiros.”481 A prostituta Maria Angelina disse que o diferencial dos
estrangeiros era o pagamento em dólar e o tratamento dado às meretrizes, eles lhes ofereciam

479
Ibidem.
480
“20 de junho de 1973. A Eletronorte nascia com a missão de desenvolver e integrar o Brasil com a sua
energia. Com sede no Distrito Federal, tem unidades nos nove estados da Amazônia Legal: Acre, Amapá,
Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A Empresa surgiu com a função
estratégica de investir na Amazônia quando poucos se arriscavam a fazê-lo. Uma decisão de governo que, mais
tarde, se tornaria referência na geração de energia de forma sustentável, com responsabilidade e de forma
integrada.” In: www.eletronorte.com.br/a-eletronorte-2/.
481
PINHO, Érika de Meneses; PAIVA, Cristian; SOUSA, Francisca Ilnar de. Memórias de mulheres e “amigos”:
interesse e intimidade no meretrício de Fortaleza (1960-1980). In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.;
Moraes, Aparecida Fonseca, Op. Cit., p. 372.
165

um bom trato, diferentemente dos homens da “terra”.482 Macapá também era uma área
portuária e pela fala de Maria, notamos que havia aí uma circulação significativa de
estrangeiros que chegavam em navios. Ela própria casou com um deles, assim como algumas
das meninas da sua casa. A diferença é que o seu marido permaneceu em Macapá, com ela,
enquanto as meninas foram morar no exterior. Podemos supor que, assim como aconteceu em
Fortaleza, as meretrizes de Macapá tinham preferência por estrangeiros, não somente pelo
aspecto financeiro, mas também pelo tratamento. Algumas delas abandonaram o meretrício
para casar, constituir família com eles e esquecer os anos de serviço sexual no Brasil.
Sobre as mulheres que casaram e permaneceram em Macapá, ela disse não manter
contato para não as prejudicar. Com a violência e o uso de drogas crescente na cidade, a partir
da década de 1980, Maria decidiu fechar seu estabelecimento. Perguntei como se deu o
fechamento da boate e ela disse que só encerrou as atividades quando todas meninas viajaram
e foram para as casas de suas famílias.
Apesar de dizer que não foi buscar nenhuma menina para viver na sua boate, Maria
revela em muitos momentos o controle que exerceu sobre elas. Primeiro pelas regras, que
incluíam não ingerir bebida alcoólica em sua casa e a forma de se vestir. Depois, pelo controle
dos relacionamentos amorosos delas, pois Maria esperava que os pretendentes lhe falassem
quais eram as suas intenções, se queriam casamento e constituir família ou não. Isso já
descortina essa relação familiar e maternal que ela disse ter constituído com essas
trabalhadoras. Assim, o que fica oculto em toda a entrevista é o trato com o dinheiro gerado
pelo trabalho das meninas. Não tivemos acesso a temas como aluguel, roupas, alimentação,
salário, programas. Mas tudo o que foi falado, ajudou a elucidar muitas questões levantadas
pela leitura das outras fontes e mostrou alguns dos contrastes existentes entre as boates de
Macapá e as contradições nas formas de atuação das autoridades do governo territorial.

482
Ibidem.
166

Considerações Finais

Ao longo dessa dissertação, buscamos cumprir com o objetivo de analisar o cotidiano


da prostituição no TFA com foco nas relações de gênero e nas experiências de classe, durante
a Ditadura empresarial-militar. Para isso, nos debruçamos sobre fontes documentais que nos
possibilitaram responder as nossas questões iniciais. Ao longo de nossa pesquisa, além das
prostitutas, outros sujeitos apareceram, como agentes de Segurança Pública, estudantes,
braçais, motoristas, funcionários públicos, proprietários de pensões e boates, trabalhadoras
domésticas, primeira-dama, governadores, juízes, promotores, advogados e jornalistas.
Trabalho foi uma categoria central dessa pesquisa que revisitou debates em torno da
prostituição. Muitas vezes vista como exploração ou meio de sobrevivência, a prostituição
deve ser reconhecida como uma atividade que não gera valor para a produção capitalista, mas
que tem seu valor consumido de forma individual, sendo, desse modo, trabalho improdutivo.
No relativo à identidade de classe, cabe destacar que as prostitutas, não raro,
ultrapassaram as fronteiras das classes sociais, ou mesmo transitaram entre elas. Por meio de
diferentes casos encontrados na documentação, vimos que a classe trabalhadora amapaense
possuía, as suas concepções de honra que também passavam por identidades de gênero. As
mulheres dessa classe eram influenciadas pelo discurso hegemônico que impunha a
virgindade como marcador fundamental de honra e honestidade. Frequentar festas e boates
sem a presença de um familiar, andar pelas ruas da cidade e namorar eram motivos suficientes
para elas terem sua honra questionada e sua palavra desacreditada quando recorriam à Justiça.
Serem associadas às prostitutas era outro motivo das mulheres amapaenses buscarem
reparação policial ou judicial. Geralmente, as ofensas eram realizadas por vizinhos, por causa
de desentendimentos cotidianos. Já os homens eram impactados na honra de forma diferente,
pois para eles ela está vinculada à masculinidade e à honra das mulheres de suas famílias. De
maneira geral, a masculinidade estava associada à coragem, à imposição do respeito pela
força e ao papel de provedor. Assim, quando confrontado por outro homem, o sujeito via a
necessidade de se impor por meio da força para garantir que sua imagem social de macho não
fosse manchada. A honra das mulheres da família era importante para os homens a ponto
deles terem a necessidade de preservar a reputação de suas mães, irmãs, esposas e filhas,
fazendo isso, em alguns casos, por meio de confrontos físicos.
A preservação a todo custo da virgindade e do recato era um ideal da classe dominante
apenas parcialmente performado pela classe trabalhadora, pois a moral dos trabalhadores era
mais flexível. As trabalhadoras amapaenses já conheciam o mundo do trabalho desde
167

meninas, e eram habituadas a frequentar as ruas para trabalhar e tinham liberdade para
frequentar festas e namorar. Porém, quando precisavam buscar o Estado, assumiam os
parâmetros hegemônicos de comportamento feminino, negando que frequentavam festas, que
namoravam, alegando que viviam restritas ao domínio do lar e da família. Portanto, as
mulheres da classe trabalhadora ao mesmo tempo resistiam à imposição de tais parâmetros e
se apropriavam deles quando era conveniente. Então, quando se viam diante dos agentes do
Estado, como ao prestar depoimentos à Polícia ou à Justiça, elas poderiam usar as ideias
dominantes a seu favor, mesmo que não as reproduzissem no seu cotidiano. Assim, é forçoso
admitir que a classe dominante pode até ter os meios necessários para criar e divulgar
amplamente suas ideias em determinada sociedade de determinada época, mas essa
constatação não significa que a classe trabalhadora reproduzirá isso indiscriminadamente, pois
ela tem seus códigos, valores e costumes criados a partir de experiências específicas,
diferentes daquelas da burguesia.
A clivagem de classe é essencial para entender de que forma o governo ditatorial
amapaense lidou com botequins, boates e clubes sociais e seus frequentadores. Enquanto
boates e botequins, frequentados por homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram
vigiados constantemente, inclusive com a presença de guardas territoriais dentro dos
estabelecimentos em regime de plantão, os clubes sociais, dos quais políticos, militares,
empresários e funcionários públicos eram habitués, foram prestigiados pela imprensa. Estes
eram os espaços de lazer e festa do TFA. Todavia, para as meretrizes, esses não eram
restritamente espaços de diversão, pois também eram locais de trabalho. Mas elas também se
divertiam, dançavam, se embriagavam na companhia de colegas e clientes. Muitas vezes
foram detidas pela contravenção penal de embriaguez e desordem, passando uma noite na
delegacia ou até a ordem de soltura do delegado de plantão. Soldados do Exército igualmente
promoviam desordens nas ruas, boates e pensões. Por vezes, quando denunciados, voltavam
para intimidar proprietários de boates e prostitutas que ali residiam. Assumiram uma
identidade de “donos da cidade”, onde tudo podiam fazer, tendo a certeza de que nada ou
pouco aconteceria com eles, porque detinham poder como militares do Exército.
A intervenção mais evidente da Ditadura empresarial-militar no TFA sobre a
prostituição ocorreu nas zonas de meretrício. O canal da Avenida Mendonça Júnior, outrora
conhecido como Igarapé da Fortaleza, estava localizado no antigo bairro da Doca da
Fortaleza. A Doca foi alvo de preocupação do governo territorial desde o governo de Janary
Nunes, desconforto que permaneceu na Ditadura. Um decreto publicado no jornal oficial do
TFA tornou evidente que a presença das prostitutas era incômoda no canal, local que abrigava
168

residências de meretrizes e lugares de diversão. Por isso, ficou estabelecido que elas deveriam
se retirar de lá em um prazo de sete dias. Elas saíram, mas logo voltavam e tentavam resistir
nesse espaço que disputavam com o governo territorial. O resultado dessas disputas, ocorridas
desde a década de 1940, foi o deslocamento e criação de zonas de meretrício em bairros mais
afastados do centro da capital. O bairro Santa Rita tornou-se o local com maior concentração
de botequins, dançarás, boates e pensões de Macapá, mas as meretrizes também continuavam
ocupando o canal da Mendonça Júnior.
Identificar os pontos de prostituição existentes na Macapá de outrora foi como fazer
uma caminhada por essa cidade e imaginar sua boemia abundante, pois os espaços e seus
deslocamentos contam uma história, como bem analisou o historiador José D’Assunção
Barros483. Outrora bastante frequentados e com grandes festas, os clubes sociais tiveram o seu
declínio, assim como os botequins, pensões, dançarás e boates. Poucos resistiram ao tempo,
como foi o caso do Trem Desportivo Clube, que ainda hoje realiza concursos de beleza como
o Rainha das Rainhas484 no carnaval amapaense, mas concentra suas atividades no esporte.
Terrenos de boates como o Juçarão, hoje abrigam residências. No local onde antes existia o
popular dançará Merengue, foi construída uma escola. O lugar que foi ocupado pelo Bar
Caboclo contém atualmente a Sede dos Bancários e o lote que um dia foi da boate da Suerda,
ou Pensão da Margot, é ocupado pelo Almoxarifado do Governo do Amapá.
As prostitutas do TFA construíram muitas redes de convivência na sua vida cotidiana.
Tais redes foram tecidas pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela
amizade e vizinhança. Essas relações deixaram expostos os sentimentos entre essas mulheres
e seus amantes, filhos, irmãs, desafetos. Como interações humanas, tinham suas contradições.
Ora compartilhavam amor e amizade, ora ódio e violência. A partir dessas redes, observamos
que os espaços de vivência dessas meretrizes não se restringiam às zonas de meretrício, pois
elas caminhavam pela capital e se deslocavam pelos distritos, onde conheciam guardas
territoriais, soldados do Exército, policiais militares e os frequentadores da boemia
amapaense. Elas não andavam sozinhas, quase sempre estavam em grupo de duas ou mais
prostitutas, algumas moravam na mesma pensão, outras eram irmãs e amigas.
Conforme apontamos ao longo das seções, a experiência comum de ser prostituta nem
sempre resultava em laços de solidariedade e amizade. Motivadas por ciúmes e rixas, elas

483
BARROS, José D.’Assunção. A imaginação da cidade na História e nas Ciências Sociais: da leitura
institucional às abordagens complexas. Urbana: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
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Rainha, mais que uma realidade, é um marco divisor no carnaval de salão e na cultura amapaense”.
169

entravam em conflitos que resultavam por vezes em violência física. Para defender seus
amantes, não hesitaram em ferir outros homens, mesmo que fossem presas por isso. Por
vingança, moradores da capital do TFA foram capazes de denunciar uma vizinha
ex-prostituta, por lenocínio. Mas por meio das redes de convivência constituídas entre essa
ex-meretriz e amigos, ela conseguiu provar sua inocência. Os relacionamentos com xodós
permitiram a algumas das meretrizes sentirem-se humanas novamente e se verem enquanto
pessoas cheias de afeto e sonhos. Mas, tais relacionamentos, sempre orientados pelos papéis
de gênero, poderiam ser marcados pela dependência emocional, caso em que as prostitutas
aceitavam o lugar de força ou as agressões de seus amantes para não ficarem sozinhas.
O depoimento da dona de uma boate, que conseguiu estabelecer relações com
delegados e governadores, descortinou muitos aspectos da prostituição no TFA do regime
ditatorial. Os inferninhos frequentados por trabalhadores pobres recorrentemente eram
invadidos pelas forças policiais, enquanto a boate dela, frequentada por pessoas de maior
poder aquisitivo, não sofreu a mesma vigilância. Essa boate foi o maior exemplo de
prostituição institucionalizada que encontramos. A proprietária exerceu um controle sobre o
cotidiano das “meninas”, ao mesmo tempo que construiu uma relação maternal e de afeto com
elas. A origem das meninas que procuravam morar na boate era um critério importante de
seleção porque as mulheres do Amapá não eram aceitas nesse espaço por serem consideradas
rebeldes em razão de não obedecerem às regras impostas pela depoente. O tratamento
desigual entre as boates do TFA expõe as contradições do governo territorial e mostra que o
problema não era o meretrício em si, mas quem exercia essa profissão e quem eram os
indivíduos que buscavam por ele.
Meretrizes, prostitutas, mundanas, marafonas, horizontais e mulheres de vida livre são
alguns termos utilizados para designar as trabalhadoras sexuais, marginalizadas socialmente,
mas essenciais para a manutenção da família burguesa e dos ideais de feminilidade.
Consideradas pelas feministas radicais como vítimas e pelas feministas liberais como
empoderadas, as prostitutas não são tão diferentes de outras trabalhadoras, mas são marcadas
pelo estigma do trabalho sexual. Observamos que elas atuavam na intersecção entre gênero e
classe com outras mulheres trabalhadoras que não compartilhavam das experiências de ser
prostitutas. Já com os homens, compartilham a intersecção de classe, mas não de gênero.
Essas relações eram marcadas por violências e estigmas, mas também por solidariedade e
afeto. Ao mesmo tempo em que eram silenciadas, agredidas, desacreditadas, essas mulheres
elaboraram estratégias para resistir no espaço amapaense e no tempo.
170

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