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CAMPINAS
2019
GISELLE SAKAMOTO SOUZA VIANNA
CAMPINAS
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272
Título em outro idioma: To be and not to be free : the morphology of contemporary slavery
in Mato Grosso - Brazil
Palavras-chave em inglês:
Slavery
Slave labor - Brazil
Labor - Mato Grosso
Slave labor - Mato Grosso
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Doutora em Sociologia
Banca examinadora:
Sávio Machado Cavalcante [Orientador]
Bárbara Geraldo de Castro
Ricardo Luiz Coltro Antunes
Marco Aurélio Silva de Santana
Ricardo Rezende Figueira
Data de defesa: 29-03-2019
Programa de Pós-Graduação: Sociologia
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores
Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29 de março de 2019, considerou a
candidata Giselle Sakamoto Souza Vianna aprovada.
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida
acadêmica do aluno.
À minha irmã Candice,
aos meus pais Midory e Bruno
e a todas as pessoas que tecem a igualdade
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que contribuíram para que esta pesquisa se concretizasse e que
fizeram dela, acima de tudo, uma experiência encantadora de vida.
A todas as pessoas entrevistadas, que compartilharam comigo seu conhecimento, seu
tempo, sua história. O encontro dos melhores caminhos na pesquisa sempre nasceu do encontro
com as pessoas.
A meu querido orientador Sávio Cavalcante, que tanto me estimulou no
desenvolvimento deste trabalho, animando-me com seu apoio, inspirando-me com suas inteligentes
questões e ajudando-me com sua grande clareza. Sem sua admirável dedicação e companheirismo
na reta final esta tese não teria os mesmos resultados.
Ao Ministério do Trabalho, onde tive o prazer de trabalhar por 10 anos em nome de
algo em que acredito. Agradeço, especialmente, pela concessão da licença que me permitiu concluir
esta pesquisa.
Ao querido professor Fernando Lourenço, que me orientou nos primeiros anos do
doutorado, por todas as valiosas contribuições, incentivo e carinho. Foi através de suas aulas
inspiradoras, sua confiança e seu olhar atento que descobri, fora e dentro de mim, o universo
transformador da história oral.
Ao querido professor Márcio Naves, que me abriu o horizonte da vida acadêmica
através de sua obra e dedicação. Foram os aprendizados durante sua orientação no programa de
mestrado que permitiram, anos depois, que eu enxergasse no dia a dia da auditoria fiscal do trabalho,
os problemas e hipóteses que deram início a este trabalho.
Ao querido professor Fabio Perocco, que me acolheu com tanto zelo na Università Ca’
Foscari e muito me ensinou e emocionou com suas aulas de Sociologia da Desigualdade.
Aos professores Bárbara Geraldo de Castro, Ricardo Luiz Coltro Antunes, Marco
Aurélio Silva de Santana e Ricardo Rezende Figueira, pela dedicação com que leram esta tese e
pelas valiosas contribuições e reflexões que me ofereceram durante a defesa.
A todas as instituições parceiras nesta pesquisa e no enfrentamento do trabalho escravo,
em especial à Casa do Migrante – Cuiabá, Projeto Ação Integrada, Sindicato Nacional dos
Auditores Fiscais do Trabalho, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Defesa da Vida e dos
Direitos Humanos, Centro Burnier Fé e Justiça, Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública
de Mato Grosso e Missão Paz.
A Gabriela de Andrade Nogueira Gonçalves, Candice Sakamoto Souza Vianna, Patrícia
Villen, Xavier Plassat, Luís Fujiwara, Francco Antonio Neri de Souza e Lima, Samuele Vicil,
Mariana Faiad Alves, Antônio Rosa, Mônica Barros e aos professores Suely Kofes, Cesar Vaz de
Carvalho, Vitale Joanoni Neto, Wanderlei Pignati, Luís Leão, Walter Zanin, Nico Pizzolato, pela
generosidade com que me auxiliaram na trajetória do doutorado.
Aos meus amigos auditores-fiscais do trabalho, que fortalecem em mim a coragem de
lutar por justiça social independentemente das circunstâncias. Em especial, agradeço a Valdiney
Arruda e Amarildo Borges, que, além de me inspirarem com seu exemplo, apoiaram minha
pesquisa desde o início. À Larissa Wanderley dos Santos Moreira, que tanto me ensinou e segue
ensinando.
À UNICAMP, seus professores e funcionários, que forneceram as condições e estrutura
para a realização deste trabalho.
A todos os meus amigos, que compartilharam comigo a alegria e os desafios destes anos
transformadores de grande responsabilidade, mas de aprendizados de ação e leveza.
Às parcerias artísticas que me permitiram achar também palavras, melodia e harmonia
para o “sentimento do mundo” que acompanha e transcende uma tese como esta. Em especial,
agradeço aos meus queridos amigos Ana Moori, Wellington Souza, Sulaiman Damazio, Eduardo
Lacerda, Cibely Zenari Guadalupe, Tâmis Parron, Carlos Lopes e Rafael Castelhano. À música de
Antonio Vivaldi.
À minha família, origem de todo o amor que está nestas páginas.
Agradeço de coração.
“Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo:
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser”.
The present thesis addresses the transformations in the morphology of contemporary coerced labor
in the state of Mato Grosso (Brazil) in the transition from the 20th to the 21st century. It
encompasses the conservative modernization of agriculture to the consolidation of agribusiness in
the recent decades. The objective of the research is understanding the specificities of the
phenomenon, tracing back continuities and discontinuities to colonial slavery. It departs from the
identification of new forms of coercion imposed on workers in the context of the universalization of
the “subject in law” in 1888, with slavery emancipation in Brazil. Based on the premise that free
labor and coerced labor are not opposed forms but, on the contrary, that new forms of slavery
employ the same mechanisms of free labor markets, the research identifies the core of
contemporary coerced labor in the combination of social vulnerability and formal liberty. This
complex is mobilized in order to exploit and degrade workers to conditions which attempt against
their lives and dignity.
The study builds on field and documental research. It combines qualitative analysis of coerced labor
inspections reports in Mato Grosso from 1995 to 2013 with quantitative analysis, by developing an
extensive database. The joint analysis of both data and theoretical frameworks led us to the
realization that, with the establishment of labor market, practices such as forced recruitment and
rights discrimination were replaced by new recruitment practices with false promises and de facto
discrimination, with the persistence of racism.
Moreover, it was possible to observe within the timeframe of the study some important
transformation, as the expansion of mechanisms of “exploitation by interpellation” and harms to
laborers’ health. While physical violence increases in land disputes (due to growing land scarcity),
we note a decline in the assassination rate of rural workers (which was high in the region until the
1990s) and the emergence of other types of control over the workforce (as workers become
increasingly plentiful and disposable).
This new setting, coupled with transformations of the new economic development model,
inaugurates new forms of attack against human life, which are more invisible due to their
biological, chemical and psychical nature. They are fundamentally biopolitical.
TABELAS
Tabela 4 - Frequência das modalidades de trabalho escravo nos casos constatados pela fiscalização
– MT (1995-2013)
GRÁFICOS
FIGURAS
Introdução......................................................................................................................................... 18
Conclusões....................................................................................................................................... 317
INTRODUÇÃO
terreno entre essas duas realidades, atravessado por grandes disputas políticas de sentido e de
institucionalização, é precisamente o das formas de exploração do trabalho que se constituem
como escravização (por atentarem contra a liberdade, integridade física e/ou dignidade
humanas) apesar de se utilizarem de práticas típicas do mercado de trabalho livre, como a
liberdade de locomoção, o consentimento, o contrato.
De fato, apesar da reconhecida proliferação do trabalho escravo por contrato –
Kevin Bales (2004) o retrata como a modalidade que mais cresce em todo o globo – e dos
longos debates sobre o trabalho escravo contemporâneo como fenômeno inscrito no modo de
produção capitalista, pouco ainda se fez no sentido de articular essas duas análises para que se
possa discutir a especificidade capitalista da forma contratual e suas implicações para a
compreensão do fenômeno do trabalho escravo contemporâneo.
Para desenvolver o tema, optei por estudar o trabalho escravo em Mato Grosso,
estado em que atuei como auditora-fiscal do trabalho de 2007 a 2015 e que sempre se
manteve entre as regiões com maior incidência de trabalho escravo no Brasil das últimas
décadas.
Nossa hipótese central é que a escravidão contemporânea em Mato Grosso vale-se
de práticas e instrumentos típicos do mercado de trabalho capitalista, alicerçando-se na
combinação de dois elementos principais: a liberdade formal e a vulnerabilidade social. Nas
últimas décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de
imobilização violenta da força de trabalho, passando a caracterizar-se por novas tecnologias
fundadas na mobilidade dos trabalhadores e em coerções sistêmicas. Neste sentido, busco
captar as transformações na morfologia do trabalho escravo entre a década de 1990 e o início
do presente século em território mato-grossense.
A metodologia utilizada na pesquisa consistiu na combinação de pesquisa
quantitativa e qualitativa em diversas fontes documentais, bem como pesquisa de campo,
incluindo entrevistas não diretivas com diversos atores envolvidos no contexto da escravidão
contemporânea e seu enfrentamento.
Os principais documentos utilizados foram: 1) Dados de 1994-2017 veiculados
nos Cadernos de Conflito no Campo da Comissão Pastoral da Terra (notadamente os dados
sobre conflitos no campo, assassinatos, tentativas de assassinato e ameaças de morte); 2)
Relatórios da Fiscalização de combate ao trabalho escravo de todos os casos constatados pelo
Ministério do Trabalho em Mato Grosso entre 1995 e 2013, a partir dos quais foi construída
uma base de dados para análise de diversas variáveis (forma de arregimentação de
trabalhadores, informalidade, contratação direta x indireta, violência física contra
20
1
Apesar da produtividade dos conceitos de “escravidão tradicional” e “escravidão contemporânea” utilizados
por muitos autores que estudam as singularidades do trabalho contemporâneo atual, é importante lembrar que o
que se chama de “escravidão tradicional” é muitas vezes um universo de relações sociais muito mais vasto e
heterogêneo, como mostrado pelos estudos historiográficos. A escravização de populações indígenas e mesmo a
escravização africana anterior ao século XIX são alguns pontos fundamentais que não podem ser dissolvidos
nestas categorias mais amplas.
22
escravo em Mato Grosso. A análise dos dados é realizada sobre o pano de fundo das
transformações da economia e dinâmicas sociais na região e seu contexto global.
A terceira parte discute a centralidade da vida dos trabalhadores e da reprodução
da força de trabalho para a compreensão da morfologia da escravidão na era do ser humano
descartável. Para tanto, analisaremos temas como as doenças ocupacionais, acidentes de
trabalho, violências e outros atentados à vida dos trabalhadores, com o fim de compreender as
novas formas de exploração, controle e descarte dessas populações. Algumas palavras serão
dedicadas também à problemática da invisibilização do fenômeno da escravidão
contemporânea, através de um enfoque em que se interseccionam questões de raça, classe e
gênero. Neste tópico serão também analisados os tipos de trabalho escravo que ainda
permanecem à margem da política de erradicação construída no país, algumas possíveis
razões desses limites e os desafios à sua visibilidade. Por fim, concluo o capítulo com uma
discussão sobre liberdade e a escravidão a partir das narrativas de resistência/agência2 dos
trabalhadores em situações de escravidão e de produção coletiva de novas realidades.
Saltaremos do sofrimento individual para o sofrimento social e encerraremos retomando a
centralidade da discussão sobre erosão e sedimentação de solidariedades como resposta aos
desafios de nosso tempo.
Ao longo da pesquisa, buscamos responder às seguintes questões: 1) quais os
principais mecanismos de escravização na contemporaneidade em Mato Grosso? 2) Quais as
principais transformações na morfologia do trabalho escravo entre os anos 1970 (primeiras
denúncias de escravidão de peões na abertura de pastos e canaviais), anos 1990 (primeiras
ações fiscalizatórias no Brasil) e a década atual? 3) Como esses processos se inscrevem no
contexto da economia global e regional e nas transformações mais amplas do mundo do
trabalho? 4) O que está por trás das recentes disputas sobre o conceito jurídico do “trabalho
análogo ao de escravo” na legislação brasileira?
2
A perda de força no conceito de “resistência” no debate sobre a escravidão colonial aplica-se também no
presente caso. Segundo Tiago de Melo Gomes, tal perda de força teria ocorrido na década de 1990 e: “Não que
isso tenha implicado a ausência de reconhecimento do fato de que grupos dominantes tentaram à exaustão
suprimir (ou ao menos ‘civilizar’) práticas culturais dos grupos subalternos. Mas significou uma tentativa de ver
nesses setores dominados algo mais do que uma vontade inabalável de manter inalteradas suas práticas. Parecia
simples demais, àquela altura, imaginar que tantas pessoas se dispusessem a correr riscos apenas em função de
manter inalteradas práticas supostamente centenárias, uma visão que enfatizava em demasia a intencionalidade
política dessas atitudes e reduzia a complexidade dos processos a uma dicotomia entre ação dominante e
resistência subalterna. Naquele contexto, parecia essencial notar que as ações desses sujeitos sociais (muitos dos
quais afro-brasileiros pertencentes às camadas mais pobres da população) incluíam também a negociação, a
afirmação e mesmo a reforma de suas práticas, caso se percebesse a possibilidade de serem menos incomodados
pela polícia. Significou também notar que mesmo as ações dos grupos subalternos estão longe de ter sentidos
únicos, e podem indicar modos muito distintos de compreensão no interior do mesmo grupo” (GOMES, T. 2016,
p. 383-4).
23
24
NOTA METODOLÓGICA
3 O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, criado em 1995 pelo Estado Brasileiro, consiste num grupo coordenado pela
auditoria fiscal do trabalho, que reúne auditores fiscais do trabalho, policiais e procuradores do trabalho e que realizam as
operações de combate ao trabalho escravo.
25
materializa no Mato Grosso trazem à luz o que Joanoni Neto chamou de "memórias
subterrâneas", que se oporiam à memória oficial dominante (JOANONI NETO, 2013, p. 187).
Em muitos momentos, as narrativas dos agentes funcionam como contranarrativa em relação
ao discurso oficial; em outros, a exemplo da interpretação dos Relatórios de Inspeção,
desnudam o próprio teor de documentos confeccionados nos limites de sua razão prática. Em
outros ainda, apenas escancaram as contradições dos sujeitos, dos pesquisadores e do próprio
objeto de investigação.
O mais fascinante é que a história oral opera algo mais sutil do que a
complementação ou a contraposição: ela vira a história do avesso. É no avesso que se
desnudam as complexidades da agência e resistência das pessoas, o peso real de estruturas,
culturas e símbolos no universo de uma vida; é no avesso que se enxergam as costuras a partir
das quais se descortinam novos significados.
Minha opção por entrevistas não diretivas, mais próximas da conversa,
fundamentou-se principalmente na intenção de evitar que os discursos dos trabalhadores
entrevistados fossem meras repetições de seus depoimentos à fiscalização, polícia e sistema
de justiça. Uma vez que atuo como auditora fiscal do trabalho e muitos dos contatos que me
abriram as portas para conversar com trabalhadores resgatados de trabalho escravo têm
relação com minha atividade profissional, principalmente minha passagem de 3 anos pela
coordenação de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho e
Emprego em Mato Grosso (SRTE/MT), concluí que as entrevistas não poderiam de modo
algum representar, para o trabalhador, mais uma "colheita de depoimento" por uma auditora
fiscal do trabalho. Em muitos casos, inclusive, eu já teria acesso ao seu "Termo de
Declarações" contido no Relatório de Inspeção e a maior contribuição da pesquisa era
justamente o oposto: buscar outras palavras, as palavras que não couberam nos procedimentos
administrativos e no discurso oficial.
A questão de eu representar uma dupla autoridade, pesquisadora e auditora,
mereceu um cuidado constante no campo. A partir de minhas percepções sobre as entrevistas
realizadas e de leituras em metodologia de pesquisa, tornei-me consciente também da
oportunidade e responsabilidade de minha intervenção no campo como agente com
atribuições relacionadas ao objeto de pesquisa e não apenas como entrevistadora adstrita a
objetivos acadêmicos.
29
Num estudo cujo objeto - a escravidão - nada mais é do que a assimetria extrema
das relações sociais e seus componentes políticos, morais e ideológicos, pensar a entrevista
como situação social torna-se imprescindível.
A discriminação racial e contra os pobres está na origem das desigualdades e da
questão agrária brasileira (LOURENÇO, 2001, p. 196-198) e se faz presente não só nos fatos
relatados nos relatórios de inspeção estudados, como também no próprio discurso de muitos
dos trabalhadores entrevistados.
A escravização tem sempre um componente moral. Assim como um forte discurso
de discriminação racial do negro acompanhou a escravidão colonial, também hoje a
degradação dos trabalhadores pós-abolição é praticada costumeiramente sob alguma
justificativa ideológica socialmente construída.
Além disso, o rebaixamento moral de si - com a introjeção da exclusão e estigmas
sociais4 - é, sem dúvida, um dos principais elementos que vulnerabilizam o ser humano e o
tornam mais suscetível à escravidão. Conforme aponta Figueira em sua pesquisa sobre
trabalho escravo contemporâneo e peonagem no Pará e Mato Grosso, “Ser tratado como algo
impuro, uma planta indesejável ou um animal repelente desqualifica a pessoa, degrada-a
diante de si e do outro” (2004, p. 293).
Nas entrevistas que realizei entre 2014 e 2016, essa questão por vezes veio à tona,
confrontando-me com alguns questionamentos metodológicos não apenas sobre a
representação que as pessoas faziam de si, mas também sobre como, na situação da entrevista,
a autodepreciação do trabalhador tido como "braçal" e "sem formação" estava
necessariamente implicada no tipo de relação estabelecida com a minha figura acadêmica,
associada à ideia de pessoa não só "formada" mas que "dita a formação". Afinal, é justamente
nas relações assimétricas estabelecidas com diversas autoridades que se arrogam o monopólio
do poder-saber que se forjam subjetividades obedientes e dóceis, alienadas de seus saberes, do
valor técnico e político de tais saberes.
Muitos trabalhadores atribuem sua experiência de terem sido submetidos a
trabalho escravo ao fato de não terem uma formação profissional e acadêmica específica. A
indignidade das condições de trabalho é muitas vezes assim justificada, tanto por
empregadores quanto por empregados. A produção da crença na indignidade e inferioridade
4
Ver Figueira (2004), Lourenço (2001) e Martins (2009).
30
Antônio: Por isso que é difícil, eu considero isso tipo uma escravidão, que a
gente para de ter aquela classificação de serviço... estudei um pouco
né...estudei até a quarta série. Não tenho serviço certo, só a força mesmo.
Giselle: Mas esse serviço que vocês fazem tem muita coisa que (...) exige
um conhecimento bem específico, né.... Por exemplo se você me colocar pra
ouvir aquele ronco... eu não vou saber que hora é pra trazer a gasolina. Isso é
conhecimento.
Antônio: É, né?
5
O texto apresenta nomes fictícios para todos os trabalhadores vítimas de trabalho escravo que participaram da
pesquisa empírica ou que constam da documentação analisada. Os demais entrevistados também foram
identificados por nomes fictícios sempre que assim optassem ou que a identificação de sua identidade pudesse
acarretar riscos pessoais. Nos demais casos, quando os participantes expressamente optaram por serem
identificados na tese, foram utilizados seus nomes reais.
31
Mais adiante, ele retomou o assunto e me disse "E sobre a motosserra... você ficou
admirada disso né...". Em seguida, relatou com detalhes a técnica que utilizava para saber
quando buscar a gasolina e onde se posicionar na mata enquanto seu companheiro derrubava
algumas árvores e o cuidado mútuo entre ele e seu companheiro de trabalho para não se
acidentarem numa atividade tão perigosa, contando um episódio em que escapou da morte:
6
"Assim como a observação participante pode seguir princípios positivos, as entrevistas podem seguir preceitos
da ciência reflexiva - o que eu chamo de método clínico. A psicanálise é o protótipo aqui, especialmente quando
o psicanalista é visto como um antropólogo reflexivo (CHODOROW, 1999). A relação entre o analista e o
analisado é dialógica e intervencionista. Cada qual reconstitui o outro. [...] O processo é o leitmofit da
psicanálise" (BURAWOY, 2014, p. 89).
33
7
Neste sentido, Portelli afirma que “entrevistas rigidamente estruturadas podem excluir elementos cuja
existência ou relevância fossem desconhecidas previamente para o entrevistador e não contempladas nas
questões inventariadas. Tais entrevistas tendem a confirmar a moldura de referência prévia do historiador”
(1997, p. 35).
34
8
“O fato é que, num momento em que o abolicionismo, mesmo que gradual, prometia a quimera da liberdade, já
o tema da igualdade estava outra vez em questão: não mais por causa do sistema escravocrata, mas agora em
nome da ciência e da biologia, que determinavam de maneira categórica que ‘os homens não nasciam iguais’”
(SCHWARTZ, L., 2018, p. 408).
35
outro (biologicamente iguais, uma vez que as raças são um construto social de dominação,
mas não existem biologicamente).
O terceiro ponto é que a dignidade humana já era a fundamentação política e
jurídica do abolicionismo no século XIX, não havendo que se falar em mudança do paradigma
da “liberdade” para a “dignidade” no campo do combate ao trabalho escravo pelo direito
contemporâneo brasileiro. Que a escravidão colonial atuasse contra a liberdade das vítimas e
que a escravidão contemporânea opere cada vez mais através dessa liberdade, isso em nada
afeta o coração da escravidão, que é crença de que há populações mais dignas do que outras.
As formas pelas quais se expressa o desprezo pelas raças tidas como inferiores e os
mecanismos encontrados para subjuga-las de modo a que produzam para os dominantes (as
“raças senhoras”9) sofrem enormes variações ao longo da história. Por isso, a abolição da
escravidão em 1888 deve ser entendida como a abolição de uma escravidão, não de todas as
escravidões. Além disso, tratou-se de abolição formal que teve grande impacto, mas não
poderia impedir relações escravistas de se reproduzirem às margens da lei.
O quarto ponto é que a escravidão tal qual era praticada no Brasil a partir do
colonialismo (exercendo-se sobre os escravos todos os poderes do direito de propriedade) foi
perdendo a força e sentido nas novas relações sociais que se impunham externa e
internamente, encarnadas nos valores do liberalismo. A abolição em 1888 ocorria, portanto,
num contexto de luta política, mas também de transformações da economia política em que as
velhas formas de servidão e as novas necessidades de exploração entravam em choque.
Alguns paralelos importantes para a análise da escravidão contemporânea também
podem ser estabelecidos retomando a condição de trabalhadores livres e escravos que
coexistiam pouco antes da abolição. Emília Viotti da Costa (2010a) retrata o trabalhador
nacional livre em meados do século XIX, quando a escravidão perdurava a despeito da
proibição do tráfico e os preços dos escravos subiam:
9
Conceito utilizado por Pietro Basso em seu livro Razze schiave e razze signore (“Raças escravas e raças
senhoras”).
37
10
Aprisionados por promessas: a escravidão contemporânea no campo brasileiro (documentário). Brasil: Centro
pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Witness, 2006. Disponível
em: http://escravonempensar.org.br/biblioteca/aprisionados-por-promessas/ (acesso em 18/04/2017).
11
A peonagem em Mato Grosso, como detalharemos um pouco mais no próximo capítulo, compreendeu
predominantemente trabalhadores nordestinos migrantes explorados em áreas de expansão da fronteira
agropecuária.
12
Sobre os conflitos entre colonos e fazendeiros, Emília Viotti da Costa (2010, p. 35) expõe: “Queixavam-se de
que eram tratados como escravos, forçados a comprar mantimentos no armazém da fazenda onde tudo era mais
caro, que não recebiam o que lhes era devido, que as contas eram fraudadas e que os fazendeiros lhes
entregavam os cafezais em formação - os quais ainda não produziam ou cuja produção ainda era pequena -,
38
reservando para seus escravos os cafezais mais produtivos. Os fazendeiros, por outro lado, acusavam os colonos
de não respeitarem os termos do contrato, de serem preguiçosos e desordeiros - a ralé da Europa”.
13
Porém, como veremos, aparecem nos dados de tráfico de pessoas, daí a importância de integração dessas bases
de dados.
39
São as normas internacionais e domésticas, fruto de longas e acirradas lutas populares por
direitos fundamentais, que determinam um padrão civilizatório mínimo a ser obedecido, sob
pena de se violar a dignidade humana, princípio norteador dos ordenamentos jurídicos
modernos. Nas palavras de Steinfeld (2001, p. 321): “Os direitos de cidadania pareciam exigir
que as leis proibissem a completa mercantilização do trabalho. Sob as políticas contratuais
restritivas do trabalho livre assalariado moderno, os trabalhadores só podem vender suas
energias pessoais dentro de certos parâmetros”14.
Neste sentido, qualquer conceito de escravidão alicerçado na ideia de
involuntariedade parece problemático. Afinal, até mesmo na escravidão colonial atlântica de
populações africanas, em que as pessoas escravizadas não eram consideradas seres humanos
“com alma” nem tinham status de sujeito de direito, mas eram tratadas apenas como
mercadorias, havia, na relação entre escravizado e senhor, inúmeras nuances de barganhas,
pressões, concessões e negociações que envolviam a manifestação e exercício
(limitadíssimos, é certo) da vontade do escravizado, sua resistência e protagonismo15.
O conceito de trabalho escravo como sendo aquele extraído de modo a neutralizar
totalmente a vontade e agência de um indivíduo é problemático por dois motivos principais.
Primeiramente, porque ele ignora os espaços de resistência, negociação e luta conquistados
pelos dominados. Em segundo lugar, porque permite, em última instância, que prosperem
argumentos questionáveis quando nos deparamos com situações em que abusos e violências
extremas são utilizados para dominar um indivíduo manipulando o pouco que lhe resta: sua
vontade de sobrevivência. É o caso da corrente escravagista que “retratava a escravidão como
completamente consensual, advinda de um acordo implícito em que o escravo
voluntariamente oferecia a seu senhor o controle absoluto sobre sua pessoa, em troca de poder
permanecer vivo”16 (STEINFELD, 2001, p. 15). Nos termos jurídicos, consolidados nos
institutos do direito civil moderno, a coação vicia o consentimento do indivíduo. Isto é,
alguém que consente em realizar um trabalho degradante sob ameaça de morte não está
manifestando livremente, com tal “anuência”, sua verdadeira vontade. Entretanto,
paralelamente à importância das construções jurídicas que atestam a invalidade de atos
produzidos com vícios de consentimento, é preciso compreender também que, no plano das
14
No original: “Rights of citizenship seemed to demand that the law prohibit the complete commodification of
labor. Under the restrictive contracts policies of modern free wages labor, workers can only sell their personal
energies on certain terms”.
15
Ver Azevedo, 2010.
16
No original: “portrayed slavery as completely consensual, arising out of an implicit agreement in which the
slave voluntarily granted to his master absolute control over his person in exchange for his life”.
40
relações de poder, é justamente essa anuência coagida (cada vez mais invisivelmente coagida)
que tem colocado a nova escravidão em movimento.
Além disso, o vínculo de trabalho (e, portanto, também o trabalho escravo) é uma
relação que se prolonga no tempo em circunstâncias cambiantes. A escravidão pode ter início
no consentimento de trabalhadores aliciados através de promessas que posteriormente se
revelarão fraudulentas. Neste caso, a voluntariedade inicial pode se converter em
involuntariedade num segundo momento, quando se apresentam as condições reais do
trabalho. Aqui, ainda, o direito pode considerar que a promessa enganosa vicia o
consentimento inicial do trabalhador, não gerando maiores problemas interpretativos.
Entretanto, há um leque crescente de práticas de trabalho escravo que não podem
ser apreendidas sob a ótica da ausência ou vício de consentimento. As condições extremas e
descumpridoras do patamar mínimo garantido em lei (nos tempos atuais, o respeito à
dignidade humana) podem ser insuficientes para que determinada pessoa queira retirar-se
daquela relação de trabalho. Infelizmente, há pessoas que migram em razão de violências e
misérias tão agudas que, ainda quando submetidas à escravidão, terão que avaliar qual é o
menor dos males. E podem, inclusive, chegar à conclusão de que a situação de trabalho
escravo é menos gravosa. É o caso dos bolivianos que trabalham exaustivamente e em
condições degradantes por salários ínfimos em oficinas de costura em São Paulo e dos
nordestinos que habitam cidades desoladas pela seca e pelo desemprego e se tornam peões de
trecho migrando para onde houver qualquer serviço. Em contextos internacionais, é também o
caso dos milhares de migrantes que saem da África em direção à Europa, correndo graves
riscos que, provavelmente, não superam os riscos que os impeliram para fora de seus países
de origem.
Nos dias de hoje, em que a escravização é muitas vezes mediada por uma pretensa
“autonomia de contratar” típica do mercado capitalista, não podemos esquecer que grande
parte das histórias das pessoas escravizadas se inicia com uma realidade extremamente nociva
vivida pelo indivíduo em seu local de origem, que o faz migrar ou buscar desesperadamente
qualquer outra oportunidade. Muitas das meninas traficadas e exploradas sexualmente na Ásia
tornam-se vítimas fáceis após o falecimento dos pais ou diante da violência doméstica sofrida,
que as fazem preferir sair de casa e buscar qualquer trabalho, momento em que podem ser
enganadas pelas poderosas redes do crime organizado.
Steinfeld (2001, p. 15, tradução nossa) cita uma argumentação elaborada em 1918
pelo magistrado Oliver Wendell Holmes no sentido de que
41
Interessa sempre a quem está sob coerção a escolha entre o menor de dois
males. Porém, o fato de que uma escolha tenha sido feita de acordo com o
interesse [que não subjuga a vontade] não elimina a coerção. Trata-se da
característica da coerção propriamente dita17.
17
No original: “it always is for the interest of a party under duress to choose the lesser of two evils. But the fact
that a choice was made according to interest [rather than the will being overborne] does not exclude duress. It is
the characteristic of duress properly so called”.
18
Aqui reside o motivo pelo qual o Protocolo de Palermo e o direito brasileiro acolhem a irrelevância do
consentimento das vítimas para a caracterização, respectivamente, do tráfico de pessoas e do trabalho análogo ao
de escravo. No caso do Protocolo de Palermo, tais conceitos são textualmente esclarecidos em seu art. 3º, que
dispõe: “Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou
a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade
ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição
de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, à servidão ou à remoção de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de
pessoas, tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo, será considerado
irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico
de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d) O termo
“criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos”.
42
19
Por esta razão, neste trabalho apenas utilizaremos a expressão “condição análoga a de escravo” para nos
referirmos ao enquadramento legal das situações de trabalho compulsório aqui pesquisadas. É sempre bom
lembrar que não há qualquer incompatibilidade entre os termos “trabalho ou condição análogos a de escravo” e
“trabalho escravo”, uma vez que o primeiro consiste em termo técnico jurídico (que, no sistema da justiça, deve
ser utilizado respeitando a boa técnica do campo) e o segundo consiste num termo cunhado através da lutas
sociais e elaboração intelectual externas ao campo do direito, que buscam compreender o fenômeno social e
contribuir para sua visibilidade e superação. O nome que o direito atribui aos fenômenos não altera a natureza
dos mesmos (apesar de alterar, sim, as possibilidades e formas em que se pode organizar a luta em torno dessas
realidades).
20
Segundo Esterci (2008, p. 62), “a imobilização dos trabalhadores nos seringais da Amazônia persistia, muito
localizada, alternando períodos de relaxamento e de recrudescimento, e chegou, embora debilitada, ao limiar dos
anos de 1990”.
43
O que houve, sim, na segunda metade do século XX, foi a conformação de novas
formas de escravização, do que se convencionou chamar de “trabalho escravo
contemporâneo”, no momento em que se constata a proliferação de práticas escravistas e de
“imobilização da força de trabalho” no bojo do processo de “modernização” da agricultura a
partir da década de 1960, colocando uma questão para as ciências sociais: “Liquidada,
praticamente, nas áreas em que havia prevalecido por tanto tempo, por que a imobilização
ressurgiria exatamente nos anos marcados pela modernização?” (ESTERCI, 2008, p. 63).
Hoje, num momento diverso das dinâmicas estudadas por Esterci, cabe uma nova pergunta:
por que o trabalho escravo persiste após a consolidação do agronegócio em Mato Grosso?
É justamente esse momento histórico de transformação que é o objeto do presente
estudo. Aqui, pretendo examinar os casos de trabalho escravo constatados no estado de Mato
Grosso na transição do século XX para o XXI, buscando chaves que possam contribuir para a
compreensão da morfologia e da gramática destas novas formas de escravização e de luta por
igualdade, dignidade e liberdade substantiva.
trabalho assalariado é desvendada no campo jurídico pela análise de Pachukanis (1989), como
veremos adiante.
Segundo Brass (2013, p. 571), a contribuição do marxismo para a compreensão da
ligação entre desenvolvimento capitalista e formas contemporâneas de escravização –
rompendo com o conceito chamado de “chicotes e correntes” (whips and chains) – foi de
grande importância, por demonstrar que o trabalho não-livre (unfree labour) não só é
compatível com a acumulação capitalista, mas que, em determinadas circunstâncias, ele é “a
relação escolhida” pelo capital21. O aprofundamento dos estudos sobre o tema tem
demonstrado que, além do papel fundamental desempenhado pela escravidão na acumulação
primitiva que impulsionou a consolidação do capitalismo22, também na atualidade o trabalho
escravo “não é resquício do processo de expansão do capital, mas um de seus instrumentos”
(SAKAMOTO, 2011, p. 32)23.
Porém, não basta defender que a escravidão constitui parte fundamental da
dinâmica do capitalismo na contemporaneidade. É preciso também entender a especificidade
capitalista da forma atual de escravizar. Se houve escravos “tanto na economia antiga como
na época medieval, no capitalismo comercial e na época industrial” e “ainda hoje, no nosso
mundo dito pós-industrial, existe escravidão” (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 38), fato
é que em cada sociedade e momento histórico a escravidão toma contornos singulares. No
nosso caso, trata-se de compreender a morfologia da escravidão numa sociedade fundada
sobre a ideia de universalização da liberdade formal.
A substituição do trabalho escravo, politicamente controlado, pelo trabalho
formalmente livre e mobilizado em fluxos migratórios (contando com grandes contingentes de
migrantes nacionais e internacionais), surgiu como uma necessidade no processo de
21
A partir da década de 1980, a teoria marxista sobre a desproletarização confrontou a tese então predominante
de que a substituição de trabalhadores não livres por trabalhadores livres caracterizaria a transformação
capitalista do setor agrário, ao mostrar que, ao contrário, as relações não livres eram reproduzidas, introduzidas
ou reintroduzidas tanto na Índia quanto na América Latina (BRASS, 2013, p. 571).
22
O sistema colonial, “como fonte de acumulação originária de capital, potenciou o desenvolvimento do
capitalismo comercial dos séculos XVII e XVIII, concentrando riqueza na Europa por intermédio do monopólio
do tráfico de escravos” (HIRANO, 2005, p. 39). Nos princípios do desenvolvimento industrial capitalista, do
sucesso ou fracasso do tráfico negreiro dependia o progresso ou a ruína de todos os demais comércios
(GASTON-MARTIN, apud WILLIAMS, 2012, p. 283). Assim: “O capitalismo mercantil do século XVIII
desenvolveu a riqueza da Europa por meio da escravidão e do monopólio. Mas, com isso, ajudou a criar o
capitalismo industrial do século XIX” (WILLIAMS, 2012, p. 284).
23
Assim, para Sakamoto, a erradicação do trabalho escravo contemporâneo não decorrerá de medidas
mitigadoras como a libertação de trabalhadores, exigindo, mais do que isso, a mudança da própria estrutura do
modo de produção, da forma de expansão do capital. Também Figueira e Freitas (2011, p. 292) pontuam que
“Enquanto houver homens e mulheres em situação de pobreza e desemprego, haverá gente disponível ao
aliciamento para uma atividade que vai além da exploração: as pessoas serão tratadas como se fossem objetos,
coisas, vítimas de comercialização e submetidas a tratamentos degradantes – por isso, tratadas como se fossem
escravas –, e não haverá Código Penal ou medidas curativas que erradicarão do Brasil sua prática”.
45
24
“Este processo de libertação e liquidação da dependência colonial e, portanto, dos monopólios comerciais,
transcorre durante a primeira metade do século XIX, e particulariza também o início de um processo redefinido
de dependência colonial: o estilo liberal concorrencial, contraposto ao estilo mercantil-monopolista no qual o
mercado é politicamente controlado; o estilo essencialmente capitalista emergente contrapõe-se ao estilo pré-
capitalista em fase de desagregação. Esta nova forma de dependência, que se realiza pela compensação de
interesses no mercado, inaugura uma forma de racionalidade na exploração e na apropriação das atividades
econômicas. Ela é modelada juridicamente, e tal molde impõe estatutos legais legítimos a uma nova ordem
social e econômica, em oposição à dependência compelida, colonial, politicamente orientada” (HIRANO, 2005,
p. 25-6).
25
Segundo Alysson Mascaro (2003), o contratualismo dispôs o Estado de um lado e uma multiplicidade de
indivíduos de outro. Na relação entre ambos, operou-se uma inversão: os indivíduos – sujeitos racionais – é que
teriam criado o Estado subscrevendo um pacto social, segundo o pensamento iluminista; porém, esse mesmo
Estado, por sua vez, é que constituía os próprios sujeitos – através de dispositivos disciplinares – e lhes conferia
racionalidade conforme os parâmetros da nova ordem social.
46
Para que tal consentimento seja produzido, é preciso que os trabalhadores “sejam
economicamente obrigados a vender a sua força de trabalho sem, no entanto, a isso serem
obrigados juridicamente. Esta situação precisa e original assume juridicamente a forma da
personalidade jurídica” (MIAILLE, 2005, p. 118).
Pachukanis26 mostrou que o circuito das trocas exige a mediação jurídica (acordo
de vontades equivalentes), que a forma do direito reproduz a forma da mercadoria e que a
ideia de equivalência jurídica (dos contratos) funda-se na ideia de equivalência das trocas
mercantis.
Assim, embora mercadoria e direito já existissem nas sociedades pré-capitalistas,
o valor de troca desempenhava um papel acessório até então, limitando-se o direito a aderir à
superfície mercantil (sem adentrar as relações de produção). Somente com a separação entre
produtor direto e meios de produção, com a divisão do trabalho e a consagração do trabalho
abstrato, é que a troca mercantil pôde se generalizar a tal ponto que não só praticamente todos
os produtos constituíssem mercadorias, mas a própria força de trabalho se tornasse uma
mercadoria especial: aquela que permitia a valorização do valor.
Portanto, é com a emergência do capitalismo que o direito se eleva a elemento
constituinte das próprias relações de produção. Assim, a despeito do princípio fundamental da
equivalência atuar nas formações sociais pré-capitalistas, a especificidade burguesa do direito
reside no papel que este assume enquanto mediador necessário na troca de força de trabalho
por salário, que se sustenta enquanto relação consensual e igualitária entre sujeitos livres, isto
é, enquanto relação jurídica entre sujeitos de direito.
Sabemos, com Marx, que a relação de capital vincula, em uma unidade
contraditória, o proprietário das condições da produção e o proprietário da força de trabalho (o
trabalhador expropriado dos meios de produção e capaz de dispor de si mesmo) por meio de
um ato de vontade e não por meio da violência direta. Contudo, é a mediação do direito que
permite que os homens levem ao mercado sua força de trabalho e que se submetam à
26
A análise pachukaniana da forma jurídica como uma forma histórica – tomando o direito enquanto fenômeno
real e não em seu idealismo abstrato, seguindo os passos de Marx – permitiu-nos compreender o direito na
ordem social capitalista. A questão da forma jurídica, estudada pioneiramente por Pachukanis, foi aprofundada
por autores como Bernard Edelman e Michel Miaille; na literatura nacional, foi introduzida por Márcio
Bilharinho Naves.
47
fundamental levantada por Miaille (2005, p. 115): “Se, hoje, todos os indivíduos são sujeitos
de direito, que função desempenha esta forma jurídica?”.
Como vimos no item anterior, a partir dos estudos de Pachukanis, a exploração
capitalista só pode se sustentar enquanto acordo de vontades equivalentes pela construção da
categoria do sujeito de direito, concebido sobre o fetiche da liberdade individual, mas que, em
sua estrutura, é tão somente a expressão jurídica da comercialização do homem.
Para Edelman (1979, p. 69-70), a própria estrutura do sujeito de direito se assenta
sobre o conceito da livre disposição de si mesmo, isto é, sobre a necessidade que cada pessoa
tem, sob o capitalismo, de tomar a forma geral de mercadoria, de ser o representante de si
mesmo enquanto mercadoria27.
Temos, portanto, que os seres humanos sob o capitalismo convertem-se,
simultaneamente, em mercadorias (força de trabalho indiferenciada e intercambiável) e em
sujeitos de direito. Tornado, a um só tempo, sujeito e objeto, o indivíduo pode, por fim, dispor
livremente de si mesmo enquanto mercadoria, pois, “[...] se a mercadoria adquire o seu valor
independentemente da vontade do sujeito que a produz, a realização do valor, no processo de
troca, pressupõe, ao contrário, um ato voluntário, consciente, de parte do proprietário da
mercadoria” (PACHUKANIS, 1989, p. 84).
Estamos diante da contradição entre a “responsabilidade jurídica do sujeito de
direito, calcada na ideia de livre-arbítrio, e os processos de constituição da individualidade
moderna, calcados na produção de seres humanos obedientes (dóceis-úteis) e submetidos à
coação da necessidade” (VIANNA, 2011, p. 130). Pois é precisamente essa contradição (que é
a contradição por excelência do direito e do sujeito de direito, do ser humano feito
simultaneamente sujeito e objeto) que, segundo Edelman (1979), viabiliza a troca de
equivalentes (esfera da circulação) e, por conseguinte, a troca de não-equivalentes (esfera da
produção) sob o fetiche do igualitarismo.
O “acordo de vontades livres”, que é a forma como o contrato de trabalho aparece
na esfera da circulação, faz sombra sobre a exploração que, de fato, ocorre na esfera
produtiva, com a extração da mais-valia. Assim, tomando o processo produtivo enquanto
processo de um sujeito28 (dotado de livre-arbítrio), o direito viabiliza a exploração
27
Os sujeitos de direito se apresentam na circulação em detrimento da exploração produtiva, de modo que o
processo do valor de troca é o próprio processo do sujeito de direito e vice-versa (EDELMAN, 1979, p. 97; 106).
28
A criação de um novo sujeito, que deve se tornar protagonista de uma sociedade cada vez mais urbana,
manufatureira e racional, ocorre dentro de um amplo processo de disciplinamento e racionalização. A
subjetivação capitalista, portanto, implica a constituição de sujeitos que saibam ler, escrever, calcular, ser
pontuais, previsíveis e que pratiquem “uma ‘autonomia’ que se baseia na introjeção das normas de
comportamento mais do que na ameaça externa” (MELOSSI, 2006b, p 25). Tratou-se de criar sujeitos “livres”,
49
regulamentada: “Ao fixar a totalidade das relações sociais no modo como elas aparecem na
esfera da circulação, o direito ao mesmo tempo torna possível a produção” (EDELMAN,
1979, p. 91).
Podemos finalmente compreender melhor a natureza da liberdade aclamada com o
advento das sociedades capitalistas: trata-se de uma liberdade meramente formal, uma vez
que, conforme aponta Edelman, a liberdade do sujeito de direito é produzida apenas na
determinação da propriedade29.
Assim, se o sujeito de direito é, para a filosofia jurídica, o ser humano detentor de
uma vontade e da possibilidade de determinar-se, por outro lado, os processos sociais em
curso na formação do modo de produção capitalista caminham no sentido contrário, através
da configuração de novas relações de exploração e de dominação30. Com o desenvolvimento
do capitalismo,
(...) o termo crucial da “liberdade” sofre uma redução em seu cerne alienado,
saudado como conquista “do poder de vender-se livremente” por meio do
suposto “contrato entre iguais”, em oposição às restrições políticas da ordem
feudal, mas ignorando e até idealizando as graves restrições materiais e
sociais da nova ordem (MÉSZÁROS, 2007, p. 188).
Com efeito, no ordenamento jurídico como sistema que trabalha para sua própria
unidade tentando excluir contradições (MIAILLE, 2005, p. 179), a abolição legal da
escravidão, a um tempo libertária, também teve o condão de aprisionar as novas formas de
servidão na invisibilidade confeccionada pela crença na ideologia da liberdade universal.
Apenas reconhecendo-se que a coerção pode ser elemento constituinte das
relações jurídicas é que se pode apreender a verdadeira natureza da liberdade sob o direito
capitalista. Trata-se de aprofundar a discussão sobre os diferentes tipos de violência e de
cerceamento de liberdade para podermos pensar até que ponto o combate ao trabalho escravo
racionais, que, submetidos ao poder do panóptico (FOUCAULT, 1993), tivessem desenvolvido o autocontrole
individual e, com isso, a possibilidade do autogoverno coletivo, da democracia. Estes são, nas palavras de Dario
Melossi (2002, p. 28): “os indivíduos ‘livres’ do Iluminismo e os sujeitos dotados de ‘livre-arbítrio’ das teorias
penais iluministas”.
29
Com efeito, “os aspectos econômico-sociais que determinam as condições de vida do sujeito não estão
atrelados ao seu consentimento. [...] O sujeito não escolhe o preço pelo qual gostaria que seu trabalho fosse pago,
ao contrário, o pilar do modo de produção econômico capitalista é o da não remuneração da força de trabalho,
espaço este da geração da mais-valia”. (SILVA, A., 2008, p. 72).
30
Hannah Arendt (2005, p. 188-9) também escreve sobre tal contradição: segundo a autora, por um lado “nossa
consciência e nossos princípios morais [...] nos dizem que somos livres e responsáveis”; por outro, em “nossa
experiência cotidiana no mundo externo [...] nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade”.
Portanto, Arendt (2005, p. 208-9) defende que a noção de liberdade filosófica é inadequada para fins políticos,
uma vez que exige apenas o exercício da vontade, ignorando que a liberdade só se consuma quando são
superados os fatores internos e externos que condicionam a ação do indivíduo e o sujeitam à necessidade. Isto é,
quando podem coincidir o “querer” e o “poder”.
50
31
Cf. Chalhoub (2011).
32
Aqui discorremos sobre a forma predominante de exploração sob o capitalismo consolidado e dos novos
fenômenos de escravização que se originam de sua lógica. Evidentemente, como será objeto de discussão
posterior, em territórios, economias, culturas e setores específicos ainda há ocorrência (mesmo que minoritária)
de recrutamento forçado de mão de obra, compra e venda de seres humanos e outras modalidades de trabalho
forçado em sentido estrito que se diferenciam mais sutilmente da escravidão do antigo regime.
33
A ilusão, mais do que a coerção direta, passou a ser o principal instrumento de captura da mão de obra a partir
do momento em que o trabalhador, enquanto sujeito formalmente livre, passa a ser um dos pilares das relações
sociais de produção. Esse tema remete ao Discurso da servidão voluntária de La Boétie e à questão da
manutenção da tirania, que é explicada por Chauí (2014, p. 151): “Ainda que a fortuna possa explicar o advento
da tirania, não pode explicar sua manutenção, e retornamos assim a nosso enigma inicial: como a servidão
voluntária é possível? La Boétie parte, então, em busca de uma nova resposta. Se por natureza os homens são
livres e servem só a si mesmos, servindo à razão, a servidão só pode explicar-se pela coerção e pela ilusão. Por
coerção: os homens são forçados contra sua vontade a servir ao mais forte. Por ilusão: são enganados pelas
palavras e gestos de um outro que lhes promete bens e liberdade enquanto os submete e abusa deles. Mas, de
novo, a resposta não é satisfatória, pois a coerção e a ilusão podem explicar por que o tirano acede ao poder, mas
não podem explicar por que nele se mantém. La Boétie parece, então, encontrar a resposta correta: a tirania se
mantém pela força do costume. Este é uma segunda natureza, e os humanos, de início forçados ou enganados,
habituam-se a servir e criam seus filhos alimentando-os com o leite da servidão; é por isso que os que nascem
sob a tirania não a percebem como servidão e servem voluntariamente, pois, de fato, ignoram a liberdade”.
51
que marca o nosso tempo é a emergência de duas peças fundamentais que passam a funcionar
como engrenagem única: de um lado, as declarações (e, logo, sistemas) universais de direitos
humanos (postulando a cidadania perfeita) e, de outro, as cisões operadas por mecanismos de
biopolítica (expondo a cidadania impossível) (AGAMBEN, 2007).
Numa passagem de Homo sacer: poder soberano e a vida nua I, Agamben (2007,
p 183-4) expõe este processo a partir da análise do termo “povo” que, nas línguas europeias
modernas, denomina “tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não
de direito, é excluída da política”; isto é, tanto “os cidadãos integrados e soberanos” quanto a
escória de miseráveis, oprimidos e vencidos.
34
O conceito de vida nua desenvolvido por Agamben parte da cisão entre zoé e bíos, termos “semântica e
morfologicamente distintos” que, para os gregos, designavam aspectos distintos do que hoje chamamos
homogeneamente de vida. A zoé “exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais,
homens ou deuses)”, enquanto bíos “indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um
grupo” (2007, p. 9).
35
Agamben (2007, p. 184) prossegue escancarando a contradição encerrada no “povo”: “Daí as contradições e as
aporias às quais ele dá lugar toda vez que [o ‘povo’] é evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo que
já é desde sempre, e que deve, todavia, realizar-se; é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém,
continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território. Ou então, no
polo oposto, ele é aquilo que falta por essência a si mesmo e cuja realização coincide, portanto, com a própria
abolição; é aquilo que, para ser, deve negar, com o seu oposto, a si mesmo”.
36
No caso do Brasil, observamos a mesma ambivalência do termo “povo”, bem como usos de termos dele
derivados, muito presentes na fala coloquial, para designar a “escória” citada por Agamben (2007): o “povinho”
(em que o diminutivo aponta para uma população inferior) e o “povão” (em que o aumentativo aponta para uma
população excedente, que sobra, uma massa de indesejáveis que, como veremos a seguir, são também sob certos
aspectos necessários/desejados).
53
interna do povo era aberta, institucionalizada, juridicamente sancionada. Cita a divisão clara
entre populus e plebs (cada qual com instituições e magistrados próprios) em Roma e entre
popolo minuto e popolo grasso na Idade Média. No caso aqui estudado, também podemos
lembrar a cisão e o abismo jurídico entre senhores e escravos até o século XIX.
A transformação brutal que marca as origens das conformações de nosso tempo é
então explicada por Agamben (2007, p. 185):
Quando Agamben defende que o “povo” contém uma cisão mais originária do que
a de amigo-inimigo, ele toca num ponto central que, no contexto de nossa pesquisa atinente à
escravidão e ao mundo do trabalho, pretendo mobilizar aproximando sua discussão da
compreensão das novas economias da desigualdade.
Em alguma medida fundamental, o capitalismo depende da desigualdade para se
reproduzir e para se reinventar a cada crise. A escravidão contemporânea, assim como toda
contemporânea exploração de populações marginalizadas, apresenta uma
dinâmica/tensão/regulação entre exclusão e eliminação, ora pendendo mais para um polo, ora
para o outro. Neste sentido, é importante questionarmos qual o interesse das populações
dominantes em não exterminar de imediato toda a “vida indigna de ser vivida” das populações
dominadas. A resposta parece estar justamente na exploração. E, em nosso tempo, numa
exploração que se faz a taxas crescentes.
A categoria do “escravo” não pode ser enquadrada nem como “amigo” e nem
como “inimigo”, justamente por conter em si uma ambivalência: o escravo é simultaneamente
necessário (como mão de obra disponível para trabalhar por remunerações e em condições
inferiores às estabelecidas por lei) e indesejável (como indivíduo político que pleiteia a
cidadania de exercer seus direitos). E ainda que cada vida dessa nova escória não apresente,
para o sistema, qualquer valor, de modo que não merece investimentos que prolonguem e
melhorem sua existência (portanto, a sociedade a “deixa morrer”), a manutenção de uma
escória, enquanto população, é essencial para a sobrevivência do sistema.
54
de modo que essas duas facetas se retroalimentam e se impõem duramente aos trabalhadores37
(2018, p. 27).
É justamente este duplo processo que traz para o centro da questão social a
descartabilidade do ser humano nas sociedades contemporâneas. Hoje observamos a
exacerbação de velhas e novas práticas de exploração, porém, ao contrário do que ocorria no
século XIX, no momento atual temos cada vez menos “a intervenção mediadora dos Estados,
voltada a impedir um desgaste muito rápido da força de trabalho” (BASSO, 2018, p. 17).
Afinal, como esclarece Mészáros, na era da globalização avançada, o único modo de alargar
as margens que se encolhem de acumulação do capital é à custa do trabalho (2007, p. 153).
Eis, portanto, a novidade radical de nosso tempo: “o sistema do capital não está mais em
posição de conceder absolutamente nada ao trabalho, em contraste com as aquisições
reformistas do passado” (MÉSZÁROS, 2007, p. 157).
É neste contexto de ameaça à própria sobrevivência dos trabalhadores, de níveis
de exploração que põem em risco a própria reprodução da força de trabalho, que a vida e a
saúde humanas passam a ser um campo de embate entre trabalho e capital. Daí a contribuição
que a categoria da biopolítica oferece para integrar os estudos sobre exploração e mais-valia,
aprofundando os estudos não só sobre duração, intensidade, remuneração do trabalho, mas
também sobre as condições em que ele é realizado. É preciso estender o olhar para além do
trabalho e da energia despendida, para abarcar também as condições de descanso e de
reposição da energia dos trabalhadores. Alcançar, portanto, a saúde dos obreiros e também
seu adoecimento no trabalho e, por fim, o trabalho a que se submetem (por imposição ou
necessidade material) os próprios trabalhadores doentes.
A compreensão da morfologia e do regime das novas formas de trabalho
compulsório sob o primado da liberdade formal esbarram na questão fundamental levantada
por Agamben (2007, p. 14): “qual é o ponto em que a servidão voluntária dos indivíduos
comunica com o poder objetivo?”38.
37
No mesmo sentido, Mészáros afirma que “a selvageria real do sistema continua firme, não somente
expulsando cada vez mais pessoas do processo de trabalho, mas, com uma contradição característica, também
prolongando o tempo de trabalho, sempre que o capital consegue” (2007, p. 150).
38
Segundo Agamben (2007), o ponto de convergência entre as técnicas de individuação subjetivas e os
procedimentos de totalização objetivos teria permanecido como uma sombra na obra de Foucault, que estudou
ambos os processos.
56
39
A categoria classe-que-vive-do-trabalho é uma noção ampliada de classe trabalhadora utilizada por Antunes e
que, segundo o próprio autor, inclui “todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de
salário, incorporando, além do proletário industrial, dos assalariados do setor de serviços, também do
proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital. Essa noção incorpora o proletariado
precarizado, o subproletariado moderno, part time, o novo proletariado dos Mc Donalds, os trabalhadores
hifenizados de que falou Beynon, os trabalhadores terceirizados e precarizados das empresas liofilizadas de que
falou Juan José Castillo, os trabalhadores assalariados da chamada ‘economia informal’, que muitas vezes são
indiretamente subordinados ao capital, além dos trabalhadores desempregados, expulsos do processo produtivo e
do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e que hipertrofiam o exército industrial de reserva, na fase
de expansão do desemprego estrutural” (ANTUNES, 1999, p. 103-4).
58
Em sua obra New Slavery, Kevin Bales aponta a “escravidão por contrato” como
uma das principais modalidades de escravidão contemporânea, tomando por base a realidade
brasileira.
40
Cf. Martins (1999), Figueira (2004) e Costa, P. (2009).
61
A maioria não quer fugir, não acha que está sendo explorado, acha que é o
trabalho. [...] E eles acham que estão devendo e têm que pagar. Eu falava
‘você não está devendo mais, o Estado chegou...’ (...) e o pessoal falava
‘não, eu sou homem, eu sou sujeito homem, eu tenho honra: eu pedi, eu
comprei, eu tenho que pagar...
No que diz respeito à realidade brasileira, nossa hipótese é de que, nas últimas
décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de mera
imobilização da força de trabalho, para combiná-las com novas tecnologias neoliberais
alicerçadas na mobilidade dos trabalhadores. Altera-se a forma de dominar e também as
formas impostas de violência, que consistem cada vez menos em castigos físicos e
assassinatos, passando a predominar a violência psicológica e os agravos físicos e mortes
causados não por castigos, mas sim por doenças e acidentes de trabalho. Afasta-se, portanto,
do predomínio do universo dos pistoleiros, da vigilância armada, das agressões físicas, para o
predomínio do controle pela dívida, das condições degradantes de trabalho, das jornadas
extenuantes, de novos atentados à saúde e à vida dos trabalhadores. Transita-se da visibilidade
da violência direta para a invisibilidade da violência sistêmica e simbólica nos termos
estudados por Žižek (2009) 41.
Casos como os relatados no estudo Contemporary slavery in UK demonstram que,
também em outros contextos, as relações de escravização contemporânea muitas vezes não
envolvem violência física; porém, as formas de controle da mão de obra utilizadas (retenção
de documentos como passaporte, abuso de poder, condições extremas de alojamento e
trabalho) funcionam como uma ameaça real (CRAIG et al, 2007, p. 12).
Ora, o trabalho escravo contemporâneo, à semelhança da escravidão colonial,
também se utiliza de “ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e
até assassinatos” na “manutenção da ordem” (SCHWARTZ, R., 2008, p. 124). Porém, minha
hipótese é de que o emprego da violência direta, apesar de persistir, tende a ceder espaço para
o exercício de outras formas de violência na medida em que vão se consolidando novas
formas de dominação.
Assim, se, no início da formação do mercado de trabalho e na ocupação de
territórios por frentes pioneiras, a coação direta e a violência física eram invariavelmente
empregadas, tais métodos primários de subjugar a força de trabalho na formação do
capitalismo vão sendo substituídos por outras formas “politicamente mais viáveis e
41
Em seu livro Sobre la violencia, Slavoj Žižek mostra a visibilidade da violência subjetiva (aquela praticada
por um agente identificável), mas que tais arrebatos só podem ser compreendidos captando-se, por detrás deles,
outros tipos de violência menos visíveis: a violência simbólica (encarnada na linguagem) e a violência sistêmica
(violência inerente ao sistema e que abarca não só a violência física direta, mas também formas mais sutis de
coerção que impõem relações de dominação e exploração). Contrapondo a violência subjetiva às demais
modalidades de violência (aglutinadas no termo violência objetiva), Žižek demonstra por que elas não podem ser
percebidas simultaneamente, a partir de um único ponto de vista, uma vez que a "violência objetiva é
precisamente a violência inerente a este estado de coisas ‘normal’. A violência objetiva é invisível posto que
sustenta a normalidade de nível zero contra aquilo que percebemos como subjetivamente violento” (ŽIŽEK,
2009, p. 10).
63
42
"A pobreza por si mesma gera uma gama de vulnerabilidades que demanda a priorização da satisfação de
necessidades práticas de curto prazo, em detrimento de estratégias de mais longo prazo para a acumulação e a
obtenção de segurança” (WOOD, 2000, p. 19, apud PHILLIPS, 2013, p. 176, tradução nossa).
43
As disposições do direito só se amparam na repressão em última instância, sendo a norma interiorizada sob a
forma de ideologia moral (ALTHUSSER, 1999).
44
Ver Banaji (2003).
45
Segundo o que foi sedimentado pela filosofia do direito moderno, o contrato, célula elementar do direito
capitalista, pressupõe o consenso, que, por sua vez, pressupõe o livre arbítrio dos sujeitos de direito.
64
É preciso, ainda, destrinchar um pouco mais o que vem a ser esta realidade “social
e econômica difícil e trágica”. Em alguns estudos brasileiros (e mesmo no meu primeiro olhar
enquanto auditora que já atuou na fiscalização de trabalho escravo) observa-se a tendência
compreensível para uma abordagem economicista da vulnerabilidade, ainda que existam
diversas exceções. O universo de documentos analisados nesta pesquisa, se não fosse
complementado pela realização de entrevistas e não fosse interpretado levando-se em conta
seus limites, reforçariam automaticamente tal economicismo. Foi a trajetória da pesquisa,
sobre a qual farei uma breve digressão abaixo, que desnudou outras facetas menos conhecidas
das vítimas de escravidão no Brasil.
Toda pesquisa empírica traz a justa preocupação em torno do “entrar no campo”,
da participação, de como fazer essa imersão com as escolhas metodológicas que permitam
uma maior compreensão do fenômeno a ser estudado e o respeito à ética. A importância desse
tema não é novidade. Porém, no caso desta tese, pelo fato de eu já estar inserida
profissionalmente no campo estudado, tive sempre uma preocupação também em “sair do
campo”, em sair e reentrar ou sair de seus limites provisórios para expandi-lo. Esta foi, sem
dúvida, a escolha metodológica que gerou os melhores frutos. Ao menos, os mais
transformadores. Era preciso ampliar meu olhar de auditora (que conhece o trabalho escravo a
partir dos casos em que a fiscalização atua), de brasileira residente sem sua terra natal, de
pesquisadora inserida num contexto em que a profusão do mesmo tipo de dado e ausência de
outros acaba por gerar inclinações inconscientes a conclusões nem sempre generalizáveis.
Ao constatar que o universo de casos de trabalho escravo com que eu estava
trabalhando (casos constatados pela fiscalização do GEFM em Mato Grosso de 1995 a 2013)
continha pouquíssimas vítimas mulheres, nenhum caso de trabalho doméstico, apenas um
caso de exploração sexual e ocorrências decrescentes de violência física e ameaças de morte,
optei por realizar uma incursão em outros territórios que não apresentassem tais ausências,
para depois retornar ao meu campo e buscar uma melhor compreensão das suas
singularidades. Ou, em outros casos, da sua oculta universalidade.
46
“Le vittime sono prigionere della povertà, non istruite e vivono in realtà social ed economiche extremamente
difficili, sovente tragiche, ove tutti i diritti umani fondamentali possono essere violati e sono violati: è la
mancanza di alternative concrete che spinge molte persone (più o meno volontariamente) verso la schiavitù”.
66
Boa parte dos aliciadores das vítimas mulheres do tráfico de pessoas também
são mulheres já traficadas e vê que ali a economia é bastante lucrativa. Ela
então acolhe essas crianças expulsas de casa, dão lar, amor e carinho para
essa travesti. Só que em troca o corpo dela vai ser utilizado, porque é jovem,
chamativo e vai começar a trabalhar.
47
Inúmeros casos podem ser encontrados em TRODD; BALES, 2008.
67
48
Estes dois elementos que sustentam o conceito de “trabalho forçado” da OIT derivam do texto da Convenção
n. 29, que assim dispõe em seu art. 2.1: “Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou
obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e
para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (OIT, 2012)
68
49
Na questão do survey “Can you leave your employer?”, a resposta “No, because there are no jobs available
locally” não é considerado elemento de “forced labour”, que se restringe à hipótese de impedimento direto e
pessoal por parte do empregador (“No, the employer would not let me go”) e que envolva um risco para a vítima
que seja diferente do risco econômico e material de não sobreviver. Na questão seguinte (“What do you risk if
you were to leave?”), a resposta “I would have no income” é invariavelmente desconsiderada como elemento de
trabalho forçado, que se concentra apenas nas demais respostas: “The employer would get other employers from
the area to boycott me or my family”; “Violence to myself by the employer or recruiter”; “Violence against my
family”; “Denunciation to authorities and possible deportation”; “ Other members of my family would be
dismissed”; “Loss of benefits for myself/members of my family” (OIT, 2012, p. 79-80).
50
Na questão “Were you free to refuse to work for this employer?”/ “If No, what would you have risked in the
case of refusal?”, dentre as respostas “No”, que assinalavam a falta de liberdade para deixar o trabalho, o motivo
econômico (“Nothing, but work opportunities are scarce”) não é considerado indicador de trabalho forçado. As
respostas que caracterizariam trabalho forçado para esta mesma questão, seriam apenas: “The employer would
have tried to prevent other employers in the area from hiring me”; “Other people from my family would lose
their job”; “My family would have lost access to land or other productive assets”; “Threats of violence against
myself or my family”; “Other, specify” (OIT, 2012, p. 77-8).
51
No original: “[…] the obligation to stay in a job due to the absence of alternative employment opportunities,
taken alone, does not equate to a forced labour situation; however, if it can be proven that the employer is
deliberately exploiting this fact (and the extreme vulnerability which arises from it), to impose more extreme
69
working conditions than would otherwise be possible, then this would amount to forced labour” (OIT, p. 2012,
16).
70
países mais desenvolvidos, onde passam a trabalhar com contratos especiais que permitem
que eles recebam salário com valores referentes não ao território onde se encontram, mas sim
ao país de sua origem.
Este fenômeno inicia um discreto processo de erosão de um dos elementos
caracterizadores do Estado de Direito Moderno, que é a vigência territorial das leis. E, a
reboque, erode-se também a noção (ou ao menos o modo de aferição) da isonomia. No
fenômeno dos “posted workers”, que escancara o movimento também presente no mote da
“primazia do negociado sobre o legislado” de nossa recente reforma trabalhista, a vigência da
norma trabalhista é trans-espacial, virtual e, acima de tudo, personalizada. Ao invés de um
único limite social à exploração da mão de obra, calcula-se o limite individual de cada
trabalhador. O limite da exploração aceitável pode ser determinado de forma personalizada,
conforme a vulnerabilidade de cada população ou de cada indivíduo, aumentando a taxa de
exploração.
O recrutamento forçado (venda, sequestro e captura de seres humanos como ponto
de entrada para o trabalho escravo) diminui drasticamente no Brasil e se concentra em
situações específicas e gravíssimas, a exemplo do tráfico de mulheres para serem forçadas a
trabalhar em redes internacionais de prostituição. O mesmo ocorre com a compra e venda de
seres humanos, observada em raríssimos casos, porém com incidência muitíssimo menor do
que na escravidão do Brasil pré-1888, em que essa era a regra (também com exceções) no uso
da mão de obra africana e indígena em nosso país. Na escravidão contemporânea prevalece o
recrutamento e aliciamento através de promessas enganosas, isto é, através da fraude
contratual e não da violência direta. Ademais, em casos mais recentes, formas de
recrutamento consensuais começam a servir como novas portas de entrada para trabalhos
exaustivos e em condições degradantes.
Em suma, a forma de escravizar mudou. O capitalismo não inventou a escravidão,
mas a adaptou (e continua a readaptar). Muitos estudos comparam a escravidão
contemporânea com a escravidão dita “tradicional”, no que diz respeito a tempo de duração,
porte do investimento financeiro no escravo etc. (BALES, 2004, p. 9; SCHWARTZ, R., 2008,
p. 124). Esta pesquisa também persegue a especificidade da escravidão contemporânea no que
diz respeito à forma de dominação, aos próprios mecanismos de escravização.
Assim, derivadas de nossa hipótese principal sobre a transformação das formas de
escravizar causadas pelas transformações nas formas e dominação entre o século XX e XXI
em Mato Grosso, apresentamos aqui nossas principais hipóteses secundárias, que detalham
alguns aspectos da nova morfologia do trabalho escravo.
72
ESCRAVIDÃO
ESCRAVIDÃO ESCRAVIDÃO
CONTEMPORÂNEA –
COLONIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA -
ECONOMIA
EUROPEIA NOVA FRONTEIRA
CONSOLIDADA
Abuso da vulnerabilidade –
TIPO PREDOMINANTE Abuso da vulnerabilidade –
Restrição da liberdade – prevalência do
DE COERÇÃO AO recrutamento por promessas
recrutamento forçado recrutamento por promessas
TRABALHO enganosas ou consentido
enganosas
TIPO PREDOMINANTE Controle extenso
DE (direito de
Deixar viver ou fazer
CONTROLE/VIOLÊNCIA propriedade). Deixar morrer
morrer
SOBRE O CORPO DO Tratamento dependendo
TRABALHADOR do preço do escravo
DIMENSÃO
PREDOMINANTE DA Tratar como coisa
Tratar como coisa Tratar como coisa
DESIGUALDADE (discriminação de
(discriminação de fato) (discriminação de fato)
IMPOSTA AO direito)
ESCRAVIZADO
Manipula (geralmente na
RELAÇÃO
entrada) e contraria
PREDOMINANTE
Contraria a vontade (geralmente durante o Manipula a vontade
ENTRE ESCRAVIDÃO E
trabalho e na saída) a
LIVRE ARBÍTRIO
vontade
52
Neste mesmo sentido, Alves explica que “a elevação dos índices do desemprego aberto no decorrer da década
neoliberal contribuiu não apenas para fragilizar o poder de barganha dos trabalhadores assalariados e aumentar
as taxas de exploração, intimidando o sindicalismo combativo de luta de classes; mas possuiu uma função
sociorreprodutiva, ou seja, criou a sociabilidade adequada aos consentimentos espúrios, às renúncias de direitos
sociais e de conquistas trabalhistas históricas e aos envolvimentos estimulados pelo medo do desemprego. No
novo ambiente social da década neoliberal proliferam valores, expectativas e utopias de mercado, impregnados
de individualismo liberal que aparece como novo pragmatismo” (2011, p. 126).
73
149 do Código Penal, que define o crime a partir do referencial da escravidão colonial), como
na maioria das elaborações teóricas e pesquisas que perseguem a especificidade
contemporânea das formas de escravizar53.
O que designamos na tabela por “escravidão contemporânea da nova fronteira”
reporta-se ao trabalho escravo que se proliferou entre as décadas de 1960 e 1990, fundado na
lógica repressiva de “imobilização da força de trabalho”, no contexto de integração da
agricultura brasileira à economia global do país (GRAZIANO, 1981 apud ESTERCI, 2008, p.
62). Nesse contexto é que
Por fim, antes de entrarmos na última parte do capítulo, que se concentrará sobre
questões jurídicas, aproveito para encerrar esta primeira parte teórica do trabalho fazendo
algumas considerações sobre a superexploração, um conceito que esta pesquisa não
mobilizará, apesar de manter com ele um horizonte comum de temas e questões.
Esclareço que essa escolha não prejudicará em nada o diálogo com os autores aqui
estudados e que discutem a questão da superexploração (MARTINS, 2009, ANTUNES,
2018). Além disso, a especificidade da exploração no capitalismo periférico estará presente no
capítulo II quando discutiremos a economia mato-grossense no contexto da nova ordem
mundial. Entretanto, no campo da discussão do fenômeno do trabalho escravo, em nossa
avaliação, uma abordagem ancorada no conceito de exploração mostrou-se mais apropriado,
uma vez que, não obstante corroborarmos com as teses da dependência e da mais valia
53
Os estudos sobre a “escravidão moderna” de Kevin Bales centram-se na comparação entre as novas e as
“velhas formas de escravidão”. Para o autor, as características da velha escravidão seriam: a) escravo legalmente
como propriedade; b) alto custo de aquisição de mão de obra; c) baixos lucros; d) escassez de mão de obra; e)
vínculos de longa duração; f) relevância das diferenças étnicas para a escravização. Em contraste, a “escravidão
moderna” se caracterizaria por: a) proibição da propriedade sobre os escravos; b) custo de aquisição de mão de
obra muito baixo; c) altos lucros; d) mão de obra descartável; e) vínculos de curta duração; f) diferenças étnicas
sem relevância para a escravidão (BALES, 2004). Já a manutenção da ordem, em ambos os contextos, seria
garantido por ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos” (BALES,
apud REPÓRTER BRASIL) por diversos autores, o que será problematizado em nossa pesquisa
(https://reporterbrasil.org.br/trabalho-escravo/comparacao-entre-a-nova-escravidao-e-o-antigo-sistema/).
54
Neide Esterci expõe os efeitos da prática em grande escala da imobilização da força de trabalho no Brasil a
partir dos anos 1960: “além de baixar o custo da mão-de-obra, (...) retardou a instauração do padrão contratual de
trabalho, diminuiu o poder de negociação dos trabalhadores e opôs obstáculos à consolidação da identidade de
assalariados dos trabalhadores, ao reconhecimento dos seus direitos e das suas entidades de representação”
(2008, p. 59).
74
extraordinária, nossa discussão enfatiza a tendência de aumento das taxas de exploração como
algo inerente à própria lógica do capital.
No contexto atual, em que se observam as jornadas “típicas da periferia” sendo
progressivamente replicadas no centro do sistema (BASSO, 2018), a presença da escravidão
contemporânea por todo o globo e, no caso das cadeias internacionais de produção de
alimentos (que estudaremos adiante), a pressão devastadora das grandes corporações sobre
trabalhadores e pequenos produtores de todo o mundo, a categoria da exploração mostrou-se
mais adequada à pesquisa. Evidentemente, as questões que animam os debates sobre a
superexploração estão presentes também neste trabalho. Principalmente no que tange à
exploração realizada a taxas tão altas de modo a negar ao trabalhador as condições necessárias
para repor o desgaste de sua força de trabalho (MARINI, 2000, apud AMARAL;
CARCANHOLO, 2009, p. 222), tema que, como se verá, receberá destaque neste estudo.
Entretanto, a categoria da superexploração apresenta algumas desvantagens para
uma pesquisa com a temática e enfoque aqui adotados. Um deles é que, apesar de todo
“trabalho escravo” poder ser considerado também um caso de superexploração, o inverso não
é verdadeiro. E a linha divisória entre a superexploração considerada trabalho escravo e
aquela que não pode ser assim compreendida passa por uma análise fenomênica das relações
de trabalho mas, principalmente, não pode prescindir, hoje, do crivo jurídico. É o direito, por
exemplo, que diz quando o trabalho que compromete a reprodução da força de trabalho pode
ser considerado juridicamente “degradante”.
Por outro lado, é papel das Ciências Sociais produzir conhecimento sobre a
morfologia destas novas e renovadas formas de exploração, contribuindo para que o aparato
jurídico não seja utilizado – sem resistências – para restringir a compreensão do fenômeno e o
alcance das lutas populares. Neste sentido, as questões levantadas nos debates sobre a
superexploração são imprescindíveis para o avanço na compreensão das dinâmicas e
implicações do que a legislação denominou “jornada exaustiva”.
Um outro ponto a ser observado é que, além da aproximação sem precauções
entre superexploração e escravidão apresentar problemas, o contrário – imprecisões derivadas
de uma acepção de superexploração e trabalho escravo como duas categorias totalmente
separadas – também se observa. Nos dados da Comissão Pastoral da Terra, uma das principais
fontes para pesquisas sobre o tema no Brasil, o indicador “superexploração” é utilizado em
oposição ao de “trabalho escravo”, para poder dar conta de aumentos nas taxas de exploração
que não possam ser medidas pelo indicador “trabalho escravo” (o que se mostrou relevante
principalmente nos anos em que os dados do trabalho escravo declinaram, ainda que o
75
declínio tenha sido muitas vezes motivado por questões burocráticas sem relação com o real
número de casos ocorridos).
Por esses motivos, entendemos que o debate sobre a superexploração é de extrema
relevância e pode contribuir para estudos de trabalho compulsório, notadamente quando
abarquem países distintos. No nosso caso, em que uma das questões centrais de análise – o
desemprego estrutural – atinge países tanto da periferia quanto do centro, pareceu-nos mais
vantajoso o debate através da categoria da exploração, tendo em vista que nela já está contida
a tendência do capital a aumentar a taxa de exploração ao nível mais elevado possível.
Feitos esses esclarecimentos, passamos ao debate sobre o conceito de trabalho
escravo na ordem jurídica, que nos servirá de subsídio para as análises elaboradas nos
capítulos II e III, quando a questão da exploração aqui mencionada será efetivamente
depreendida nos casos concretos e nas narrativas sobre o trabalho escravo contemporâneo.
Nosso estudo sobre as formas do trabalho escravo contemporâneo tem como pano
de fundo as disputas políticas em torno da legislação que conceitua o que é “trabalho análogo
a escravo” no Brasil. O fenômeno jurídico, portanto, estará sempre implicado durante a
pesquisa.
Buscaremos um enfoque crítico do direito, que identifique as determinações das
relações sociais sobre o fenômeno jurídico sem, contudo, recair numa esterilidade mecanicista
e economicista. Parte-se do reconhecimento de que, apesar de não ter história própria (Marx),
o direito detém uma autonomia relativa55 que, tanto na promulgação, revogação, aplicação ou
ineficácia funcional das leis, é uma importante arena da luta de classes.
Deste modo, a análise da legislação sobre trabalho escravo aqui proposta tem
como premissa que as normas jurídicas são precedidas pelas relações jurídicas; e estas, por
sua vez, são precedidas pelas relações sociais propriamente ditas. Nas palavras de Kashiura
Júnior (2009, p. 77): “As relações sociais se instalam independentemente de normas nas quais
estejam previstas, são fruto da própria dinâmica social e não de uma criação jurídica
consciente”. Tanto é assim que, apesar da Constituição Brasileira de 1824 ter incluído, em um
de seus artigos, a transcrição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirmando
a liberdade como um direito inalienável de todo ser humano, a escravidão ainda foi mantida,
assolando quase metade da população brasileira à época (COSTA, E., 2010a, p. 16).
Assim, contrapondo-se à noção de prevalência do dever-ser sobre o ser,
encampada pelos normativistas, esta pesquisa buscará na realidade das relações sociais em
que a escravidão contemporânea se materializa, bem como nas lutas sociais em torno do
trabalho, os elementos fundamentais para a compreensão das idas e vindas na legislação sobre
o tema. Para tanto, é preciso compreender tanto o fetichismo quanto a materialidade do
direito:
55
Nas palavras de Michel Miaille, “A instância jurídica é autónoma na estrutura social de conjunto no sentido
em que que, se está submetida à determinação do nível econômico, é só em última instância. Ela possui, pois, um
modo de existência e de funcionamento próprios, traduzindo-se no facto de constituir um sistema de
comunicação expresso em termos de normas, tendo a sua própria lógica e compreendendo uma estrutura
complexa” (2005, p. 103).
77
Estado que lhe estão ligadas, tais como a justiça, a polícia, a administração.
Mas ao mesmo tempo, [...] as relações reais estão ocultas por todo um
imaginário jurídico: o direito designa e desloca ao mesmo tempo os
verdadeiros problemas. Este imaginário é o da pessoa sujeito de direito e o
da norma regra imperativa. Porque estou convencido de que o homem é a
fonte do direito, posso submeter-me ou resignar-me a obedecer a um sistema
de normas de que ele é o autor. Mais precisamente, estas normas parecem-
me lógicas e necessárias para organizar relações que eu não posso então
perceber que estão já organizadas “noutro lado”. Ao realizar-se, o direito não
diz pois o que deve ser, diz já “aquilo que é” (MIAILLE, 2005, p. 95)56.
56
O autor prossegue: “Mas esta realidade não pode surgir-me uma vez que, à semelhança da mercadora, a norma
me deixa crer que é fonte de valor, que ela é pois um imperativo primeiro e categórico. É aqui que entra a
fetichização: atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, a imperatividade),
justamente quando esta qualidade pertence não à norma mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta
norma é expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor mas o realiza no momento da troca, a
norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo é
tanto mais acentuado na sociedade capitalista quanto o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas
normativos, o que conquistou a hegemonia na função de ‘dizer’ o ‘valor dos actos sociais’” (MIAILLE, 2005, p.
95).
57
Em seu clássico livro Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra, Thompson conclui que algumas
passagens de seu estudo “confirmaram as funções classistas e mistificadoras da lei. Mas rejeitaria seu
reducionismo inconfesso e alteraria sua tipologia de estruturas superiores e inferiores (mas determinantes)”
(THOMPSON, 1997, p. 350).
78
O mesmo autor frisa que há uma enorme diferença entre o exercício do poder
através do arbítrio extralegal e através do domínio da lei, de modo que, ao se tornar um
sociais e na mediação do direito as chaves de compreensão desse problema que, nos últimos
anos, tornou-se candente: quais são as especificidades, a forma e a força da escravidão
contemporânea?
58
A Carta Pastoral de outubro de 1971 da Prelazia de São Félix do Araguaia é, também, um testemunho
emocionante de um bispo que, após 3 anos de trabalho naquela prelazia cuja população era formada pelos
sofridos peões flutuantes, questiona-se: “Como se faz ‘comunidade de base’ com um povo em constante
dispersão?”. Conclui ele: Com respeito aos fazendeiros – que normalmente não moram na região – e aos
gerentes e pessoal administrativo das companhias latifundiárias – que moram aqui com intermitência – a ação
pastoral é praticamente impossível, sempre que não se aceite o poder de opressão social que eles encarnam;
sempre que não se queira amancebar a Missa, esporádica, com a injustiça permanente, e a presença do padre – da
Igreja – na sede da Fazenda (com seus teco-tecos, nos seus refeitórios, nos seus escritórios paulistas ou gaúchos)
com a ausência do Evangelho e da Justiça no conflito dela com os posseiros e nos barracões, nas derrubadas e na
vida toda dos peões escravos (CASALDÁLIGA, 1971, p. 7). O texto continua: “Isso é o que a gente pensa
depois de três anos de vida e de luta. Ajudar a libertação dos oprimidos é o meio mais direto e eficaz de
contribuir para a libertação dos opressores. Nem todos poderão ‘entender’ esta atitude. É uma opção dolorosa, de
pobreza, de risco e de ‘escândalo’ evangélico...” (1971, p. 6).
80
Não há nenhuma fiscalização com relação ao trabalho nas fazendas” (CASALDÁLIGA, 1971,
p. 20).
As décadas de 1970 e 1980 terem sido marcadas por casos e denúncias de trabalho
escravo na Amazônia, mas foi apenas na década de 1990 que um ampliado aparato jurídico
foi sendo criado em torno do enfrentamento do trabalho escravo. Essa mudança foi
consequência da exposição internacional do Brasil pelo caso José Pereira59, levado em 1992 à
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 1999 responsabilizou o Brasil por sua
omissão ante as violações de direitos humanos cometidas (CAVALCANTI, 2016, p. 96).
A partir de 1995 vão sendo criados todos os instrumentos de enfrentamento do
trabalho escravo que temos até hoje no Brasil. A continuidade das políticas de combate ao
trabalho escravo observada entre os governos do PSDB e PT leva alguns atores a
classificarem-na como uma verdadeira “política de Estado” (GOMES, M., 2019). Um dos
auditores entrevistados ressalta que nas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio
Lula da Silva e Dilma Roussef sempre houve certa priorização do combate ao trabalho
escravo, com o aporte de recursos e infraestrutura para viabilizar as fiscalizações. O apoio à
pauta do combate ao trabalho escravo no poder executivo veio a ser claramente rompido a
partir do governo de Michel Temer, quando foram feitas investidas dentro do próprio
Ministério do Trabalho visando à suspensão da Lista Suja e à restrição do conceito de
“trabalho análogo ao de escravo”, bem como à limitação dos poderes dos auditores-fiscais do
trabalho.
A construção dos instrumentos de enfrentamento do trabalho escravo no Brasil
ocorreu num contexto político caracterizado por alguns fatores importantes: a) visibilidade da
existência de trabalho escravo no país em razão do “Caso José Pereira” e posteriormente,
através de campanhas oficiais; b) pressão da comunidade internacional para que o Brasil
59
“Em 1989, o adolescente de 17 anos de idade chamado José Pereira era escravizado na Fazenda Espírito
Santo, localizada em Sapucaia, no Estado do Pará. Ele e outros companheiros (sessenta trabalhadores,
posteriormente resgatados), que trabalhavam, sob vigilância armada, no preparo do solo e na formação da
pastagem para alimentação do gado, eram trancados no barracão na hora de dormir e possuíam dívidas
impagáveis decorrentes da compra de produtos inflacionados no armazém da fazenda. Juntamente com um
colega de trabalho conhecido por Paraná, José Pereira aproveitou um breve momento de folga durante a
madrugada para evadir-se do local. Na tentativa de fuga, no entanto, os dois foram perseguidos e emboscados
pelos capatazes, que logo abriram fogo contra os fugitivos. José Pereira levou um tiro no olho, fingiu-se de
morto para despistar os algozes, conseguiu sobreviver e pediu socorro à Fazenda Brasil Verde e à Comissão
Pastoral da Terra. Paraná, no entanto, não teve a mesma sorte do seu colega, falecendo no local. A Comissão
Pastoral da Terra, que já havia denunciado a Fazenda Espírito Santo pela prática de trabalho escravo desde 1987,
acompanhou o caso do adolescente. A demora na responsabilização criminal dos envolvidos e a ineficácia e o
desinteresse do aparato estatal na recomposição dos bens jurídicos lesados fizeram a CPT levar o caso a uma
ONG internacional denominada Center for Justice and International Law (CEJIL), responsável por denunciar o
Estado brasileiro perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos”
(CAVALCANTI, 2016, p. 96).
81
foi naquela época que nós também construímos, em 2002 e 2003, o Fórum
Social de Erradicação do Trabalho Escravo, que (...) precedeu toda uma
estrutura de estado que desembocou então na COETRAE61.[...] Construímos
60
O Movimento Ação Integrada foi objeto de Termos de Cooperação Técnica, dentre os quais o firmado em
2015 no Supremo Tribunal Federal, por representantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Organização
Internacional do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF),
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH) e do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
(SINAIT) O objetivo do movimento é “conjugar esforços para promover a modificação social, educacional e
econômica dos resgatados do trabalho escravo e vulneráveis por meio do exemplo vindo de Mato Grosso e pela
replicação e adequação dessa iniciativa em estados e municípios que queiram aderir ao Movimento”
(http://www.acaointegrada.org/movimento-acao-integrada/)
61
O entrevistado refere-se à Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo – Mato Grosso. As
Comissões Estaduais para a Erradicação do Trabalho Escravo são integradas por agentes atuantes na erradicação
do trabalho escravo contemporâneo em cada estado federativo, reunindo membros do governo estadual, do
governo federal e da sociedade civil. O Decreto n. 985, de 07/12/2007, que criou a COETRAE em Mato Grosso,
conferiu-lhe as seguintes competências: I – elaborar e acompanhar o cumprimento das ações constantes do Plano
Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo, propondo as adaptações que se fizerem necessárias; II –
acompanhar e avaliar os projetos de cooperação técnica firmados entre o Governo do Estado e os organismos
nacionais e internacionais; III – propor a elaboração de estudos e pesquisas e incentivar a realização de
campanhas relacionadas à erradicação do trabalho escravo; IV – elaborar e aprovar seu regimento Interno”.
83
62
Blairo Borges Maggi foi governador do estado de Mato Grosso de 01/01/2003 a 31/03/2010. Conhecido como
“rei da soja” e como o braço político do poderoso grupo André Maggi, recebeu em 2006 o troféu “motosserra de
ouro” do Greenpeace, que o considerou responsável por metade da devastação ambiental brasileira entre 2003 e
2004.
63
Este caso será retomado com mais detalhes no próximo capítulo.
84
obteve destaque dentre as demais comissões estaduais, recebendo menções e apoio técnico da
OIT. Segundo Aurora, que foi uma das primeiras e mais atuantes integrantes da COETRAE
em Mato Grosso,
Mato Grosso está no topo da lista dos estados que mais têm profissionais na
segurança pública capacitados nessa área dos cursos online. Mato Grosso
desponta. Nós temos hoje, no último relatório da EAD – EAD é o Ensino à
Distância da Justiça - tinha quase 8 mil servidores capacitados nos cursos de
Direitos Humanos. Na atual grade curricular das academias de polícia militar
e civil, toda a formação de soldado, pra quem tá entrando, e oficiais, também
tem essa disciplina presencial de 60 horas e 120 horas tratando dessa questão
também. [...] Temos relatos de soldado no interior que foi atender uma
diligência numa fazenda e percebeu que tinha alguma coisa lá, denunciando.
Aí os auditores fiscais do trabalho foram lá e verificaram que realmente era
questão do trabalho escravo. Foi o primeiro caso no Brasil de prisão por
trabalho escravo, uma pessoa foi presa por cometer esse crime.
e de outros órgãos públicos no enfrentamento do trabalho escravo em Mato Grosso. Por outro,
o compromisso e seriedade da constante atuação das entidades não governamentais, o impacto
da ação de organismos internacionais e a força da mobilização social no país foram e
continuam sendo alicerces fundamentais nos avanços e manutenção do instrumental de
combate ao trabalho escravo no Brasil.
dívida”. Se, hoje em dia, ninguém mais ousaria discursar em favor da escravidão, por outro
lado, praticamente nenhum senador ousou defender que jornada exaustiva e trabalho
degradante configuram modalidades de trabalho escravo observadas no Brasil.
Com efeito, durante o período da pesquisa esteve em trâmite o Projeto de Lei n.
432/2013, de autoria de Romero Jucá, propondo a restrição do conceito jurídico de “trabalho
análogo ao de escravo”. Visava-se eliminar de seu conceito as modalidades “jornada
exaustiva” e “trabalho degradante”. E, nas próprias falas de uma parcela dos senadores no dia
27 de maio daquele ano, estava explícito que o voto em favor da PEC, para muitos deles,
estava condicionado à sua regulamentação, com o objetivo de alterar a definição legal de
trabalho análogo ao de escravo.
Nos dias que se seguiram à aprovação da Emenda Constitucional, constatou-se um
temor generalizado de que a regulamentação da Emenda Constitucional jamais ocorresse ou
que fosse executada de forma a trazer um retrocesso para a luta contra o trabalho escravo.
Movimentos sociais, Auditores Fiscais do Trabalho, Procuradores do Trabalho e Juízes do
Trabalho têm advertido que a Emenda Constitucional será esvaziada caso a bancada ruralista
no Congresso consiga aprovar um conceito mais brando de trabalho análogo ao de escravo.
E, de fato, a articulação da bancada ruralista para o abrandamento do conceito
legal de trabalho escravo já vem acompanhando há muito tempo as discussões parlamentares
sobre o tema. A defesa da restrição do conceito de trabalho escravo faz-se sob a alegação de
que a atual definição legal seria vaga, gerando insegurança jurídica.
Durante a tramitação da PEC 438/2001, Katia Abreu fez o seguinte
pronunciamento em sessão da Câmara dos Deputados (INATOMI, 2016, p. 99):
64
Dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra. Ver
http://reporterbrasil.org.br/2014/02/escravidao-urbana-passa-a-rural-pela-primeira-vez/.
65
O Cadastro dos Empregadores Infratores, popularmente conhecido por “Lista Suja”, é um instrumento de
combate ao trabalho escravo criado no Brasil em 2004, que consiste na divulgação da relação de pessoas físicas e
jurídicas flagradas explorando trabalho escravo pela Fiscalização do Trabalho, após o trânsito em julgado
administrativo de todos os processos na Secretaria de Inspeção do Trabalho. Esse tema será tratado mais
detalhadamente no capítulo V do texto.
92
Assim, apesar de terem sofrido tantos ataques nos anos recentes, os principais
instrumentos de nossa política de erradicação do trabalho escravo ainda sobrevivem,
amparados por grandes mobilizações nacionais e internacionais, que mostraram a força das
redes construídas em torno dos planos de erradicação do trabalho escravo, a penetração das
campanhas informativas, educacionais e preventivas no nível de conscientização popular
sobre o fenômeno, bem como o amadurecimento de legislações e estudos sobre a escravidão
contemporânea internacionalmente, sedimentando entendimentos sobre sua caracterização e a
necessidade de seu efetivo enfrentamento.
Em abril de 2016 o escritório da ONU no Brasil posicionou-se oficialmente em
defesa da manutenção de nosso conceito jurídico de “trabalho análogo a de escravo”,
ressaltando o papel de nosso país como referência mundial em matéria de boas práticas de
combate a escravidão. No documento, “a ONU reconhece e enaltece as boas práticas
construídas pelo Brasil nesses últimos 20 anos, e em especial sua legislação, que sem dúvida
servirão de base para a atuação de diversos outros países que desejarem combater mais
efetivamente o crime” (ONU-BRASIL, 2016, p. 5).
A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
no caso de trabalho escravo envolvendo a fazenda Brasil Verde, ocorrida em dezembro de
2016, também fortaleceu as possibilidades de enfrentamento da escravidão contemporânea.
Foi a primeira vez que a corte se debruçou sobre o tema e condenou um Estado
em matéria de trabalho escravo, elaborando seu entendimento sobre os elementos
constitutivos do fenômeno, que foram muito além do trabalho forçado e da servidão por
dívida, conforme esclarece Beatriz Affonso66:
66
Beatriz Affonso é a diretora do programa CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) para o Brasil.
94
Estado de Mato Grosso - CETRAP/MT. Esses dados apresentam alguns problemas, dentre os
quais se destaca a limitação temporal.
De outro lado, temos os dados oficiais sobre trabalho escravo do Ministério do
Trabalho, que contêm informações mais completas, desde o início da atuação dos Grupos
Especiais de Fiscalização Móvel, em 1995. São estes os dados oficiais brasileiros sobre
trabalho escravo que alimentam diversos estudos e relatórios publicados não só pelo governo,
mas também por organizações da sociedade civil, organismos internacionais e movimentos
populares.
Os dados do Ministério do Trabalho apresentam também algumas limitações, que
nos fizeram adaptar nosso método de análise para evitar vieses na interpretação. Um exemplo
de análise enviesada, que às vezes é empreendida a partir desses dados, é sobre a variação no
tempo do número de casos de trabalho escravo. A aferição do número total de ocorrências de
trabalho escravo requer a utilização de outras fontes de dados e metodologias mais
complexas, de maneira que apenas com a fonte dos relatórios de inspeção seria virtualmente
impossível empreender algum estudo sério sobre o problema. Afinal, como o universo dos
casos flagrados é extremamente reduzido em relação ao dos casos denunciados que, por sua
vez, também é limitado frente à totalidade dos casos praticados, não podemos tirar conclusões
sobre a amplitude do fenômeno a partir dos dados aqui estudados.
Além disso, é importante verificar a existência de importantes “confundidores não
observados” (hidden bias) e “variáveis omitidas”, que impactam o número de constatações de
trabalho escravo a cada ano, a exemplo do número de auditores-fiscais na carreira, na UF
analisada e mesmo no projeto de fiscalização específico (Grupos Móveis ou Coordenações de
Fiscalização de Trabalho Escravo ou de Trabalho Rural, dependendo da superintendência).
Em Mato Grosso, o ano de 2008 foi marcado pelo incremento de 81 auditores em atividade, o
que explica em grande parte o aumento expressivo de números de casos de trabalho escravo
constatados entre os anos anteriores (10 casos em 2005, 8 em 2006 e 6 em 2007) e os anos de
2008, 2009 e 2010 (respectivamente, 31, 22 e 17 casos), principalmente, até que os servidores
fossem gradualmente removidos para outras gerências e superintendências,
Nesta pesquisa, utilizei dados dos Cadernos Conflitos no Campo Brasil,
documentos consultados (online e presencialmente) nos arquivos da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) 67 e informações cedidas pelo Frei Xavier Plassat.
67
A visão da Comissão Pastoral da Terra que, muito antes da década de 1990, combatia o trabalho escravo no
Brasil enquanto o governo negava sua existência, foi crucial para a constituição de um centro de documentação
importantíssimo sobre conflitos no campo, incluindo a problemática do trabalho escravo. As inúmeras denúncias
97
Portanto, a intenção da pesquisa nos relatórios de inspeção não foi produzir dados
estatísticos que pudessem representar a totalidade dos casos de escravidão ocorridos em Mato
Grosso no período e muito menos no Brasil. Por meio da análise qualitativa e quantitativa
desse material, o objetivo consistiu em identificar linhas, ainda que borradas, de
transformação das formas de escravizar, que acompanham o processo de modernização
conservadora em Mato Grosso.
Para extrairmos conclusões mais consistentes desses dados (que, como quaisquer
dados, possuem suas lacunas e limitações), optei por realizar uma pesquisa integrativa68,
combinando análise quantitativa de dados de duas fontes (relatórios de casos de trabalho
escravo da Inspeção do Trabalho e dados de conflitos no campo da Comissão Pastoral da
Terra), análise qualitativa dos mesmos relatórios (que foi utilizada para elucidar as relações e
processos estudados, além de oferecer subsídios importantes para construção da base de dados
e modelagem da pesquisa quantitativa) e entrevistas com diversos atores envolvidos (que
contribuíram para revelar questões ausentes da base de dados criada, aclarar relações entre
variáveis, entender motivações de ações descritas ou não nos documentos, bem como
esclarecer contextos dos fatos estudados – principalmente em relação aos anos anteriores à
minha estadia em Mato Grosso).
Por fim, antes de adentrarmos os resultados da análise dos relatórios propriamente
dita, recuperaremos um pouco da história econômica e demográfica de Mato Grosso entre os
séculos XX e XXI, com enfoque no meio rural, com destaque para a agropecuária, por
concentrar a quase totalidade dos casos de nossa base de dados. Dos 18069 casos de trabalho
recebiam firmes encaminhamentos e, simultaneamente, eram arquivadas compondo uma base de dados sobre
conflitos no campo, anualmente compilados nos Cadernos Conflitos no Campo Brasil com textos analíticos,
pesquisas e relatos sobre a situação no campo brasileiro a cada ano.
68
As vantagens do enfoque integrativo em relação ao enfoque da “triangulação” nas pesquisas multimétodo são
defendidas por Jason Seawright: enquanto na triangulação trabalha-se com dois métodos separadamente sobre o
mesmo tema, produzindo-se resultados de tipos diferentes que, ao final, não podem ser combinados, mas tão
somente justapostos (não raro, dando origem a conclusões divergentes ou cujas inferências não podem ser
explicadas), na pesquisa integrativa são combinados dois ou mais métodos de maneira cuidadosa, de modo a
sustentar uma mesma inferência de causalidade. Na pesquisa multimétodo integrativa, as inferências podem ser
testadas e reelaboradas através do uso combinado de métodos, que são utilizados de forma casada, produzindo
inferências causais mais precisas e resultados mais consistentes (SEAWRIGHT, 2016, p. 45-47).
69
Dos 193 casos de trabalho escravo acessados através dos relatórios de inspeção fornecidos pela DETRAE,
após a coleta, processamento e limpeza dos dados, foram excluídos 13 pelos seguintes motivos: a) relatórios
sobre fiscalização de empresas não localizadas em Mato Grosso, apesar da inspeção ter sido realizada em
operação de fiscalização que incluía outros empregadores em solo mato-grossense; b) relatórios que não
concluíram pela existência de condição “análoga a de escravo”; c) relatório com informação incompleta por se
tratar de fazenda arrendatária de outra fazenda com relatório próprio e completo; d) relatório de operação
frustrada porque trabalhadores teriam prestado informações falsas à auditoria fiscal do trabalho; e) relatório com
informações inconsistentes por conter dados de diferentes operações sem possibilidade de distinção. Os
relatórios referentes a empresas que terceirizaram a mesma atividade de uma mesma tomadora não foram
unificados porque em muitos casos cada terceirizada apresentava dados muito diversos (um caso em que havia
98
O estado de Mato Grosso, que era uma das regiões menos povoadas do país,
passou a ter um grande impulso demográfico a partir de 1930 e, sobretudo, a partir da
intensificação do incentivo à colonização privada do estado na década de 1960.
homogeneidade entre as terceirizadas também foi mantido como dois casos separados para preservar a unidade
de critério em toda a base). Os relatórios com informações parciais, mas cujo restante dos dados pôde ser
coletado em outros relatórios da mesma operação ou por outras fontes foram mantidos na base de dados para
análise.
70
2 dentre os 3 casos de trabalho escravo constatados no ramo da construção civil sem qualquer relação com a
economia rural e agropecuária ocorreram no ano de 2013, no contexto das obras de infraestrutura que se
espalharam pelo país. Foi justamente o ano de 2013 que registrou, pela primeira vez, a predominância do
trabalho escravo urbano sobre o rural no Brasil, tendência esta que se manifestou também em Mato Grosso, que,
além de tudo, recebeu diversas obras como sede da Copa Mundial de Futebol.
99
O objetivo dessas políticas, conhecidas como “terras sem homens para homens
sem terra” teria sido o de transferir a população expropriada para novas áreas, fornecendo
“força de trabalho, até então inexistente, para os projetos agrominerais e agropecuários
dirigidos por grandes empresas” (FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 115).
A adoção da política agrária do governo militar sem que se alterasse a política
fundiária (FERNANDES, 2000, apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 115), teria
não só garantido a manutenção dos latifúndios já existentes em Mato Grosso, mas também a
formação de novos latifúndios onde se desenvolveram as monoculturas. A expansão das
71
“Nessa região, grandes quantidades de terras foram compradas, griladas ou ocupadas por latifundiários,
grileiros, fazendeiros e empresários, predominando a grande concentração de terra (PICOLI, 2006). A grilagem
(apropriação privada irregular ou ilegal de terras públicas), tem sido uma regra na formação da propriedade
privada rural no Brasil e não diferente na Amazônia em diferentes momentos históricos (IPAM, 2006). Dessa
forma “toda parte norte de Mato Grosso se constituiu no ‘paraíso’ das empresas colonizadoras” (GUIMARÃES
NETO, 2002, p. 24). Sendo assim, a abertura da fronteira agrícola no norte do estado de Mato Grosso (MT), com
absoluto controle sobre o território, através da colonização privada, desencadeou uma “corrida desenfreada” de
milhares de trabalhadores e suas famílias influenciadas pelos instrumentos de propagandas a migrarem para
buscarem um pedaço de chão (VIEIRA, 2005), a conquistarem a “terra prometida”. Num processo de
desterritorialização (COSTA, 1995), aconteceu a transferência do camponês do sul do Brasil para a Amazônia
(ZART, 2005). Esse processo de (re)ocupação, com recursos públicos, executado de forma predatória, provocou
uma transformação social e ambiental radical na Amazônia norte mato-grossense (SOUZA, 2012). Atualmente,
essa terra em grande parte, está ocupada por pastagens e por enormes extensões cultivadas com soja, milho e
algodão (BARROZO, 2010). Ou seja, o grande mosaico Amazônia foi e está sendo substituído pela
agropecuária, pelas cidades através do êxodo rural, pela especulação imobiliária e pela construção de usinas
hidrelétricas” (BERGAMASCO; ROBOREDO e GERVAZIO, 2016, p. 2).
100
Segundo Ianni (1981, p. 132), a política da ditadura militar teria sido uma
combinação de expansionismo militar e desenvolvimento capitalista:
O fato de esse espaço ter sido considerado vazio, o que significou que toda a
ocupação pré-existente de diferentes grupos indígenas, garimpeiros,
posseiros, comunidades extrativistas e quilombolas foi ignorada para
qualquer fim, tornou o avanço dessa nova fronteira do capital muito violento
(JOANONI NETO, 2014, p. 187).
72
“A opção política em não implementar a reforma agrária, implicava numa necessidade crescente de ampliação
da fronteira agrícola (Centro-Oeste e Amazônia) que temporariamente ‘solucionaria’ a questão da terra no Sul e
no Sudeste, deslocando os conflitos pela terra para as áreas da frente de expansão” (MENDONÇA; THOMAZ
JUNIOR, 2004, p. 9). Importante notar que, para Becker (1988) e Fernandes e Cavalcanti (2006), diferentemente
de autores como Mendonça e Thomaz Junior (2004) e Martins (2009), a demografia de Mato Grosso até a
segunda metade do século XX seria caracterizada não por frentes de expansão, mas já por frentes pioneiras (às
quais teria sobrevindo a frente também pioneira da “marcha para o Oeste”).
73
Sobre o tema, Yann Moulier-Boutang conclui que “Se [...] a fuga dos trabalhadores dependentes constituiu o
problema fundamental da acumulação de capital de 1500 a 1800, é preciso relativizar o alcance da
proletarização, que parece ter tido menor importância que o disciplinamento e a fixação, ou a fidelização dos
trabalhadores dependentes (capítulo 10). [...] Portanto, é preciso falar de um tremendo fracasso da primeira
proletarização sob o capital mercantil, o que explicaria seu deslocamento a novos mundos e o estabelecimento de
formas de trabalho não livres” (MOULIER-BOUTANG, 2006, p. 45, tradução nossa).
102
Assim, para Fausto (1977), foi a imigração subvencionada pelo Estado, iniciada em São
Paulo, em 1884, que realmente impulsionou a formação de um mercado de trabalho no Brasil,
rompendo-se com o ciclo precedente de imobilização dos trabalhadores74.
Na região de Mato Grosso, a formação de um mercado de trabalho – e sua
integração ao mercado nacional – só ocorreu substancialmente na segunda metade do século
XX, impulsionada por um processo violento de ocupação de seu território iniciado em 1930.
Entretanto, como veremos nos próximos itens deste capítulo, os estudos das novas
relações produtivas que se desenvolveram a partir de então revelam que o trabalho
compulsório se manteve presente, ainda que com novas incidências e roupagens.
Até a década de 1990, porém, a organização da produção e sua matriz tecnológica
requeriam um contingente imenso de trabalhadores em certos períodos das derrubadas e das
lavouras. Foi o que presenciei e me foi informado em várias experiências no campo da
pesquisa, inclusive na entrevista com Camilo, um padre que atuou ativamente em Mato
Grosso à época, junto à Pastoral do Migrante: “Era muita gente. Hoje, já deve ter diminuído
muito o número de trabalhadores braçais. Acho que eles trabalham muito com máquinas
agora”.
Na sequência da mesma entrevista, o padre traz a lume a complexidade da
peonagem. Contextualizo: a questão que a pesquisa me colocava naquele momento do campo
era se a utilização de mão de obra migrante se justificava pela escassez de trabalhadores em
Mato Grosso ou se o atrativo teria sido a possibilidade de explorar populações que fossem
mais vulneráveis e mantidas distantes de sua terra de origem. Como geralmente acontece, a
história oral acaba revelando sutilezas e complexidades do real onde a imaginação
74
Nas palavras de Fausto (1977, p. 17): “o momento decisivo em que se constituíram relações capitalistas de
produção na área de São Paulo ocorreu com a liquidação final do sistema escravista e a entrada das grandes levas
de imigrantes”.
103
Giselle: Na época em que você ficou lá [1996 a 2006], o que acha que trazia
tanta mão de obra de fora? Não tinha gente lá ou era por causa do tipo de
trabalhador, que era mais fácil de explorar, aceitando qualquer condição? O
que você acha que trazia os imigrantes?
Padre Camilo: Acho que são vários fatores. Um, é que de fato não tinha
muita mão de obra lá para alguns trabalhos, tipo na área da cana. Não
havia um contingente de trabalhadores que suprisse as demandas,
digamos, da empresa local. Também, muitos trabalhadores não eram
habituados a esse tipo de trabalho, então não aceitavam muito. Outro fator
que vem favorecer a usina é que é muito mais tranquilo trazer
trabalhadores de fora, que não têm conexões aqui no espaço que façam
o trabalho, que tenham espaço para viver, assim, que vão e que vêm,
tendo que fazer esse trabalho temporário, que a gente fala. Enfim, é uma
forma de você ter um controle maior. Digamos, se numa fazenda você tem
alguns núcleos de trabalhadores concentrados, você tem como dominar
melhor e controlar. Até, se precisar, fazer pressão. Um exemplo muito claro
é a usina de Poconé, que está distante do alojamento. Se você queria um
remédio, tinha que fazer de 20 a 30 quilômetros. [...] De certa forma, tinha
muita gente que mandava, os responsáveis do setor agrícola, um
coordenador de alojamento, tinha o gato. Então, quer dizer, os
trabalhadores estavam controlados de todos os lados, sem ter a quem
recorrer em alguma necessidade. Surge um conflito também. Num local
onde tem 200 trabalhadores, quem vai mediar isso daí, né? Fica difícil.
Eu vejo que essa forma, quando utilizada a mão de obra assim, eles tinham
um jeito mais tranquilo para dominar e controlar toda a produção, desde os
trabalhadores e todo mundo. Não sei, naquele tempo era assim. Hoje, acho
que as coisas devem ter mudado muito, mas o trabalhador era sempre
colocado em último na ordem das prioridades. Justamente, por causa
dessa mentalidade colonialista, que a empresa é dona de tudo, é dona da
cidade, muitas vezes, porque a empresa investe, faz uma doação, uma
quadra para a cidade. Sabe? Essas coisas todas. Nessa situação, os
trabalhadores sempre ficam relegados a sua própria sorte.
75
Casaldáliga relatou também, no mesmo documento, o caso do Capitão de Polícia de Barra do Garças que, ao
receber denúncia de peões contra a fazenda onde trabalhavam, reportou a denúncia ao gerente da fazenda. Este
então teria solicitado a presença da polícia de São Félix do Araguaia, que compareceu à fazenda armada de
metralhadoras e prendeu o líder dos peões (1971, p. 20).
105
76
O texto apresentado pela Comissão Pastoral da Terra continua: “O poder acumulado durante 20 anos de
favores e privilégios colhidos à sombra do regime militar, foi utilizado pelos latifundiários e especuladores de
terra contra contra o PNRA lançado pela Nova República a 27 de maio, durante o IV Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais. Utilizaram com toda a força os meios de comunicação mais reacionários do país e mesmo
aqueles que em questões mais amenas tentam fazer-se passar por liberais. Articularam a nível nacional seus
organismos de classe e combateram organizadamente a exigência da imensa maioria dos brasileiros de realizar
uma Reforma Agrária que democratize a propriedade da terra. Criaram novos organismos e realizaram
campanhas de finanças para promover a sustentação de forças paramilitares e milícias particulares, através dos
leilões de Goiânia, Presidente Prudente, etc... Aliaram-se aos militares e conseguiram a intervenção direta deles
na questão da Reforma Agrária, deixando claro que a concepção da Nova República a respeito da questão da
terra não difere substancial- mente do que pensaram os governos que a antecederam: a questão agrária é questão
de Segurança Nacional” (CPT, 1986, p. 20).
106
77
Nas palavras da mesma auditora: “Quando começamos em 1995 o trabalho degradante era muito feio. Com o
início das negociações, os sindicatos começaram a se fortalecer. [...] A gente fazia uma visita – Auditoria Fiscal
107
do Trabalho, Pastoral da Terra e do Migrante, Sindicato e Ministério Público do Trabalho –, levantava todas as
irregularidades, reunia com representante da empresa. Era um trabalho de acompanhamento, de negociação”.
78
A entrevistada aponta que as alterações legislativas recentes contribuem para um novo enfraquecimento do
poder sindical: “De dois anos para cá os sindicatos estão sentindo mais dificuldades, a partir da nova legislação,
que tirou completamente a contribuição. (...) As últimas medidas abateram muito os sindicatos. E as empresas se
aproveitam da situação. Ainda não estamos sentindo, porque os sindicatos estão tentando sobreviver”.
79
Um ponto importante no momento da implementação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel foi a
composição das equipes com servidores públicos lotados fora da unidade federativa onde seria realizada a
inspeção.
108
80
A conclusão do coordenador da CONATRAE foi que "Essa situação exige resposta firme do Poder Público
Federal para coibir o abuso e o desrespeito que foi demonstrado".
110
outro que tem visibilidade, aí eles acabam se precavendo. Não que eles
pensem no melhor para o trabalhador. Não. Mas é a forma de maquiar. Eles
maquiam de uma forma que fica muito mais difícil de dizer e comprovar que
de fato é trabalho escravo. Acho que outra forma também que eles mudaram
foi a forma de arregimentar os trabalhadores. Porque se antes era o gato que
fazia isso, hoje é o gerente da fazenda. O cara não é mais colocado como
gato, mas é o gerente da fazenda que vai lá, contrata, faz isso e aquilo.
De modo geral, podemos dizer que, na transição do século XX para o XXI, Mato
Grosso assiste a um fortalecimento da presença do Estado e à estruturação do mercado de
trabalho, fatores determinantes para as transmutações na forma pela qual o capital perfaz a
exploração da terra e da força de trabalho. Processo este que, no tocante o enfrentamento do
trabalho escravo, encontra seu amadurecimento entre 2006 e 2009.
No âmbito fundiário, observa-se uma crescente judicialização da “violência contra
a ocupação e a posse” (a violência nas contendas entre particulares, antes predominantemente
pessoal e direta, passa a ser em parte também oficialmente mediada pelo Estado). Esse
processo foi descrito em texto divulgado nos Cadernos Conflitos no Campo em 1997:
81
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/pdf/MT.pdf - Acesso em 07/01/2019
113
lavouras
matas plantadas;
permanentes; 0,2%
0,4%
lavouras
temporárias; 17,7%
matas naturais ;
37,7%
pastagens naturais;
7,4%
pastagens
plantadas; 34,6%
políticas neoliberais, este novo cenário mundial passa a ditar cada vez mais o tom da
produção nacional.
Entretanto, o modo como se estruturou a produção nacional e se integrou à nova
ordem mundial foi moldado por um imaginário nacional dominado por concepções
hegemônicas acerca do mundo rural brasileiro. Segundo Felipe Maia Guimarães da Silva
(2015, p. 93):
Heredia, Palmeira e Leite identificam que “foi, sobretudo a partir dos anos de
1970 – com a política de “modernização da agricultura” promovida pelo regime militar –, que
se começou a falar mais explicitamente da existência de uma ‘agricultura moderna’ ou de uma
‘agricultura capitalista’ no Brasil, de ‘empresas rurais’ (figura contraposta no Estatuto da
Terra ao “latifúndio”) e de ‘empresários rurais’” (2010, p. 159).
Foi este o caminho percorrido até a hoje disseminada ideia de “agronegócio”, que
tem como uma de suas principais implicações uma mudança de enfoque sobre as questões
sociais atreladas à propriedade rural: “Enquanto ‘o latifúndio efetua a exclusão pela
improdutividade, o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade’”
(FERNANDES, 2004, apud CANUTO, 2004, p. 2).
Ao analisarem as transformações da agricultura nacional, Heredia, Palmeira e
Leite também apontam que no período da chamada “modernização da agricultura” (a partir da
década de 1970 e, principalmente na de 1980), há “a intensificação das transações econômicas
e seus rebatimentos políticos e sociais” (HEREDIA; PALMEIRA e LEITE; 2010, p. 162). De
fato, segundo os mesmos autores, algumas das características que diferenciam o
“agronegócio” (termo em voga na atualidade e adotado paulatinamente a partir da década de
1990) da “agricultura moderna” (década de 1970) e do “complexo agroindustrial” (década de
1980) seria a sua vocação mais marcadamente exportadora e sua composição com capitais de
diferentes origens (além do “capital agrário”), inclusive, crescentemente, o capital estrangeiro
(2010, p. 159-160).
115
82
“O índice de Gini é um coeficiente de mensuração da desigualdade que varia entre 0 e 1, utilizado
principalmente em estudos sobre a distribuição de renda. No caso do estudo sobre a distribuição de terras, 0
corresponde à completa igualdade (a terra está igualmente dividida entre os imóveis), portanto quanto mais
próximo de 1 estiver o valor, mais desigual será a distribuição das terras” (Leite, A., 2018, p. 12).
83
Dentre as simulações de cálculos utilizando o índice de Gini realizadas pelo autor confrontadas com outros
dados de um município selecionado aleatoriamente, “contraditoriamente (...) as hipóteses I e II, embora
desconcentrem a posse da terra, aumentaram o índice de Gini para 0,575 e 0,586, respectivamente, e a hipótese
III concentrou a posse da terra e diminuiu o índice de Gini para 0,570” (Leite, A., 2018, p. 20).
84
A aferição da concentração fundiária unicamente através do índice GINI sugeriria um declínio da
concentração no estado de Mato Grosso, passando de 0,909 em 1985 para 0,870 em 1995 e 0,865 em 2006.
Entretanto (OXFAM, 2016, p. 9). Porém, estudos como o de Acácio Zuniga Leite (2018) indicam as
“insuficiências e desvios no uso do índice de Gini como instrumento de análise da estrutura fundiária brasileira”
com base em dados do IBGE e do INCRA. O autor conclui que “é um erro afirmar um movimento de
concentração ou desconcentração fundiária unicamente por meio do índice de Gini. Outros índices, como o de
Hirschman-Herfindahl já vem sendo utilizados em análises e merecem mais estudos” (LEITE, A, 2018, p. 25).
117
Estes processos, como vimos, estão inseridos num contexto mais amplo em que o
agronegócio como nova forma de organizar a economia no campo se espalha por todo o
globo. A crescente dependência externa e inserção do agronegócio brasileiro em cadeias
produtivas internacionais tem, como um de seus pilares, a adoção de um modelo químico-
118
dependente85. Conforme expõem Miranda et al (2007), tal modelo foi introduzido no país nos
anos 1960, ganhando força na década de 1970 com o lançamento do Plano Nacional de
Defensivos Agrícolas (PNDA) e continuando a intensificar-se nas décadas posteriores
(MIRANDA et al, 2007, p. 11).
85
O relatório da Canada’s National Farmer Union de novembro de 2005, cita a incorporação do uso de
agrotóxicos na cadeia produtiva dos alimentos como um dos mecanismos utilizados pelas grandes corporações
para aumentar a dependência dos pequenos produtores: “Until recently, farms supplied their own fertility from
manure, rotations, and residual nutrients. Following World War II, however, the world had surplus capacity for
producing nitrogen and phosphates—ingredients for both fertilizers and bombs— so farmers were convinced to
purchase fertility. Next came chemicals to control weeds and bugs. Then came round after round of more and
better tractors, fertilizers, and chemicals (2005, p. 10).
86
Nas palavras de Miranda et al (2007, p. 11): este quadro ainda é mais preocupante em países em
desenvolvimento, como o Brasil, em que a incorporação de tecnologias baseadas no uso intensivo de produtos
químicos é feita sem a implementação de políticas claramente definidas relacionadas à comercialização,
transporte, armazenagem, utilização, normas de segurança e conhecimentos dos riscos associados.
119
87
Entre os fatores que teriam contribuído para o aumento no consumo de agrotóxicos no Brasil, os autores
elencam: “A imposição da Política da Revolução Verde, dos cultivos transgênicos, o aumento de ‘pragas’ nas
lavouras, de créditos agrícolas subsidiados e isenção de tributos fiscais”, bem como as “fragilidades da vigilância
estatal sobre o seu uso e a ausência de políticas que reduzam o uso de agrotóxicos e incentivem a produção
agroecológica” (PIGNATI ET ALLI, 2017, p. 3282).
88
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/estabelecimentos.html (Acesso em
07/01/2019).
89
O sítio oficial de notícias do IBGE assim divulgou a notícia: “O Censo Agropecuário 2017 pesquisou se o
produtor utilizou agrotóxicos no período de referência. Os dados mostram que 1.681.001 produtores utilizaram
agrotóxicos e que 134.360 produtores utilizam, mas não houve necessidade de aplicação no período de
referência. Este número representa um crescimento de 20,4% em relação a 2006, quando 1.396.077 produtores
declararam ter utilizado agrotóxicos” (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
agencia-de-noticias/releases/21905-censo-agro-2017-resultados-preliminares-mostram-queda-de-2-0-no-numero-
de-estabelecimentos-e-alta-de-5-na-area-total - Acesso em 07/01/2019).
120
250.000.000
Consumo agrtóxicos (litros)
200.000.000
150.000.000
100.000.000
50.000.000
0
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
Gráfico 2 – Consumo de agrotóxicos em Mato Grosso
Fonte: Pignati et al, 2018 (elaborado por Francco Antonio Neri de Souza e Lima)
90
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/produtores.html (Acesso em
07/01/2019).
91
A demanda por um maior número de trabalhadores no modo como estava organizada a produção daquele
período é descrita neste trecho do Relatório de Inspeção de 2002: “No que tange à cotonicultura, a capina do
123
[...] que na data de hoje um colega de trabalho seu, que abastece o avião
com o veneno, sentiu um mal-estar, tendo náuseas, sendo imediatamente
conduzido ao serviço médico; (...) que o avião aplica veneno no campo,
pulveriza a cultura, fazendo-o sobre o corpo dos trabalhadores; que tem
que sair correndo para evitar ser contaminado; que a água que
consomem rapidamente perde a condição térmica adequada, perdendo o
frescor em razão da alta temperatura do meio ambiente; que enquanto
trabalham não bebem água em razão de a deixarem em local muito distante
do que trabalham, por causa da necessidade de aumentar a produção; que
somente a consomem na hora do almoço (Relatório de Inspeção, 2008, cód.
DF, p. 62, grifos nossos).
algodão é a tarefa mais rudimentar e que exige menos qualificação, o que leva os produtores a acharem
facilmente trabalhadores para fazê-la, uma vez que o Mato Grosso está vendendo uma imagem de grande balcão
de empregos na área agrícola, atraindo ao Estado inúmeros trabalhadores oriundos do Nordeste, Centro Oeste e
de Minas Gerais. Os sulistas geralmente ocupam as funções de operadores de máquina ou técnicos e não são
contratados através dos ‘gatos’, pois são trabalhadores que lidam diretamente com o empregador, sendo-lhes
confiadas as portentosas e caríssimas máquinas, tão abundantes no cenário agrícola do Mato Grosso” (Relatório
de Inspeção, 2002, cód. ED, p. 3). Em outra operação do GEFM, a equipe relata: “A fase da capina do algodão
demanda um grande contingente de trabalhadores, concentrando no Mato Grosso cerca de 15 mil roçadores,
conforme previsão dos fazendeiros” (Relatório de Inspeção, 2002, cód. EC, p. 4).
124
Por fim, outra faceta dramática desta nova ordem que dita a organização do
campo e os padrões alimentares, é o sofrimento dos pequenos produtores rurais e da
agricultura familiar. A conclusão do Canada’s National Farmers Union é cortante:
Raj Patel reporta que, em 2008, 18 dos 28 estados da Índia apresentaram índice
crescente de suicídio entre os agricultores. Foi registrado, naquele ano, o equivalente a um
suicídio de agricultor a cada meia hora: 17.638 ocorrências no total. Num dos casos, o
agricultor acabou com a própria vida ingerindo uma dose de um dos pesticidas mais tóxicos e
comuns nas fazendas indianas. Segundo o pesquisador, outro fenômeno que se tornou
difundido entre a categoria é a venda de rins, chegando-se ao paroxismo da inauguração de
um Centro de Venda de Rins em Shingnapur. A justificativa dada por um dos participantes é
dramática: “os rins são tudo o que nos resta para poder vender” (BUNSHA, 2006 apud
PATEL, 2013, 745; 748-9; 6937-8).
A situação dos agricultores na Índia, exposta por Patel, ilustra bem o desvalor
(exposição a insumos tóxicos no momento do trabalho heterônimo e também no momento do
suicídio) e o valor (mercantilização do corpo e da saúde) da vida dos trabalhadores rurais
(PATEL, 2013). Mostra, também, a extrema vulnerabilidade social mobilizando o sujeito para
a “exploração por interpelação” e até a autoeliminação. Entre o agrotóxico que adoenta o
trabalhador rural na exposição laboral e o agrotóxico ingerido pelo pequeno agricultor num
suicídio; entre o tráfico de pessoas para remoção de órgãos e o agricultor pauperizado que
vende seu próprio rim; entre esses dois polos há uma linha de coerções sistêmicas, subjetivas
e interpessoais (envolvendo outros agentes que exploram a pessoa vulnerável) e que cada vez
mais interpelam a própria pessoa a vender-se, explorar-se, eliminar-se: exaurir a si mesma.
92
No original: “The farm crisis didn’t just happen; it was caused. The family farm isn’t dying; it’s being killed.
And the perpetrations of this destruction are the agribusiness corporations who are using their market power to
extract profits that would otherwise end up on our farms. Farmers can’t make a living because agribusiness
giants insist on making a killing”.
126
2.1.3. As novas formas de escravização em Mato Grosso na virada para o século XXI
Muitos autores apontam que o trabalho escravo tem crescido nas décadas que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Laís Abramo (2011, p. 60), ex-diretora do escritório da
OIT no Brasil, atribui tal crescimento recente a “um processo de globalização inequitativo e
marcado pela desregulamentação dos mercados de trabalho e pelo debilitamento de suas
instituições”93.
As práticas de escravização contemporânea proliferam-se no Brasil na segunda
metade do século XX, no contexto da reestruturação produtiva, da nova divisão internacional
do trabalho, da mundialização e financeirização dos capitais. Segundo Martins (1999, p. 131),
é nesta nova realidade econômica de intensificação da exploração do trabalho e anulação de
conquistas trabalhistas “que a superexploração tende, em circunstâncias específicas, a se
tornar trabalho escravo”:
93
Renato Bignani, ao estudar a precarização contida no sweating system (modalidade de subcontratação de
serviços que se desenvolveu na industrialização do setor têxtil, em oposição ao sistema fabril), mostra que, após
um longo período de marginalização e quase desaparecimento, esse sistema retornou ao cenário internacional das
relações de trabalho a partir da onda neoliberal, que implicou “o aumento da concorrência entre as empresas, a
abertura dos mercados, a imigração irregular e a pressão por um capitalismo global flexível” com redução dos
custos de produção (BIGNANI, 2011, p. 88; 96). No Brasil, as denúncias de trabalho escravo de estrangeiros
(bolivianos, peruanos e paraguaios) no setor têxtil começaram a aparecer na década de 1990.
127
94
Esta Carta Pastoral, intitulada “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização
social”, foi o primeiro documento a denunciar publicamente a escravidão contemporânea no Brasil, tendo grande
repercussão à época. Foi escrita por Dom Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no ano
de 1971.
128
Sim, ouvi casos que não acompanhei, mas foram próximos. Porque eram
regiões muito distantes, remotas e, na verdade, os trabalhadores lá ficavam à
própria sorte. Tinha muito essa questão de serem vigiados. Se ameaçasse
fugir e fosse pego, era fuzilado. Nisso aí tivemos vários casos, relatos
assim...
Seu testemunho expõe uma realidade de violência ostensiva muito próxima das
descrições de 1971 constantes da Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga. Em sua fala,
como na de muitos entrevistados, emerge a temática da “terra sem lei”, da “terra de ninguém”:
Acho que, naquele tempo, essa coisa da terra sem lei era muito presente.
As pessoas, as próprias empresas, arriscavam mais, eles se achavam
donos da terra e dos que trabalhavam, se permitindo a estabelecer
algumas leis e regras segundo eles. Eles queriam a terra limpa. Hoje, creio
já ter mudado bastante, você não pode tratar as pessoas assim, como se
fossem coisas. Embora não se descarte, porque ainda existem regiões
distantes de alguns centros urbanos, e as pessoas ainda se permitem, acho...
estruturação. Naquele contexto, o autor caracteriza o trabalho escravo dos peões como
prolongamento de um momento de expropriação dos meios de vida (acumulação primitiva)
dos trabalhadores através da “superexploração da força de trabalho”:
95
No segundo capítulo, intitulado “A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão”, de seu livro
Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano, José de Souza Martins defende que a expansão agropecuária
brasileira baseia-se em subsídios governamentais, de um lado e, de outro, no uso não capitalista da mão de obra, concluindo
que “a reprodução ampliada do capital, nesses casos, inclui a produção não capitalista de capital” (2009, p. 83).
130
2.2. Os dados sobre trabalho escravo em Mato Grosso entre o fim do século XX e o início
do século XXI
Foram narrativas, experiências e olhares que nos auxiliaram no enfrentamento dos pontos
cegos tão recorrentes da análise documental96.
Neste tópico, exponho os resultados de minhas pesquisas quantitativa e
qualitativa.
O destino final deste capítulo é construir um entendimento sobre as
transformações nos tipos de coerção infligidas aos trabalhadores e sobre a relação entre
formas de violência, atentados à vida humana e a matriz produtiva da agropecuária mato-
grossense inscrita na nova ordem econômica global. Para tanto, iniciaremos pela análise das
variáveis referentes à caracterização do trabalho escravo nos casos constatados pela
fiscalização em Mato Grosso entre 1995 e 2013.
Em termos gerais, a análise alcançou um total de 180 casos de trabalho escravo,
envolvendo 6904 vítimas. Dentre os 180 casos de trabalho escravo constatados pela
fiscalização e incluídos na pesquisa97, 83 ocorreram na pecuária, 12 no setor da cana de
açúcar e 21 na cultura da soja. No que diz respeito ao tipo de atividade desempenhada pelos
trabalhadores encontrados em “condição análoga a de escravo”, contatou-se o predomínio da
atividade de limpeza de terreno rural, conforme se vê no gráfico98 abaixo.
96
A interpretação da história documental animada pela história oral, nos resultados da presente pesquisa, buscou
desafiar limitações da pesquisa sociológica e dos próprios códigos do sistema de justiça em que os discursos
presentes nos relatórios foram produzidos. Neste sentido, compartilho da crítica expressa por José de Souza
Martins na introdução do capítulo do livro Fronteira sobre a criança (filhos de famílias de agricultores) como
testemunha: "As Ciências Sociais têm, num certo sentido, uma concepção definida de quais são as fontes
aceitáveis e respeitáveis do dado sociológico. Do mesmo modo, entre a história oral e a história documental,
dificilmente um historiador considera a primeira tão importante e segura quanto a segunda. Entre o formulário
pré-codificado e o depoimento autobiográfico espontâneo, o sociólogo e o cientista político tenderão a considerar
o primeiro fonte mais objetiva que o segundo" (MARTINS, 2009, p. 102).
97
Importante ressaltar que os 180 casos analisados não coincidem com a totalidade dos casos exibidos nos dados
oficiais, uma vez que nos dados originais obtidos da DETRAE havia relatórios que continham dados de mais de
um empregador (que aqui consideramos separadamente), bem como outros relatórios que não apresentavam as
informações selecionadas para a pesquisa e que foram, portanto, descartados no momento de criação da base de
dados.
98
Muitos casos de trabalho escravo compreenderam vítimas em diferentes funções, portanto, o gráfico exibido
mostra em quantos casos tais funções figuravam entre as vítimas identificadas. Ainda sobre esta variável, notou-
se que as modalidades mais frequentes de “limpeza de terreno rural” foram: roço (35%), catação de raiz
(16,11%) e capina do algodão (4,44%).
132
Feita essa apresentação geral, passamos para o resultado obtido para cada variável
analisada.
A atual redação do citado dispositivo define o crime num tipo fechado, isto é,
indicando expressamente os seus modos de execução. Neste aspecto, representou uma grande
alteração em relação ao texto original, que defina de forma sintética o crime de “reduzir
alguém a condição análoga à de escravo”, sem especificar sua caracterização, que era deixada
apenas para a tarefa interpretativa.
Assim, hoje são sete os modos de execução do ilícito. Quatro deles, que Brito
Filho (2014a, p. 54) chama de “modos típicos”, são os previstos no caput do art. 149: 1)
trabalho forçado; 2) trabalho em jornada exaustiva; 3) trabalho em condição degradante; 4)
trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída com empregador ou
preposto (referida muitas vezes simplesmente como “servidão por dívida”). Os outros três
modos de execução da conduta criminosa estão previstos no parágrafo 2º, sendo considerados
como hipóteses de “trabalho escravo por equiparação”. São eles: 1) retenção no local de
trabalho através de cerceamento de uso de meios de transporte; 2) retenção no local de
trabalho através de vigilância ostensiva; 3) retenção no ambiente de trabalho através da
retenção de documentos ou objetos pessoais.
As condutas que caracterizam o trabalho escravo passaram a ser definidas pela lei
de forma exaustiva. Portanto, “não é qualquer ato, então, que poderá configurar o crime de
redução a condição análoga à de escravo, mas somente os que possam ser enquadrados nos
modos descritos na norma penal incriminadora”99 (BRITO FILHO, 2014a, p. 55).
99
O mesmo autor faz um balanço sobre a alteração legislativa de 2003 que “limitou” a caracterização do trabalho
escravo às hipóteses expressamente previstas no Código Penal: “[...] creio que essa limitação, que de fato existe
agora, é o preço a pagar por uma inovação, que veio com a lei que alterou o art. 149 do Código Penal, e que foi
importante, pois definiu de forma concreta os modos de execução, ou hipóteses em que ocorre o trabalho
escravo, permitindo o combate efetivo a uma prática antiga, mas que, por conta da imprecisão do dispositivo na
versão anterior, não era convenientemente reprimida” (BRITO FILHO, 2014a, p. 55).
134
PRESENÇA DOS ELEMENTOS CARACTERIZADORES NOS CASOS CONSTATADOS DE TRABALHO ESCRAVO PELA
FISCALIZAÇÃO EM MATO GROSSO (1995-2013)
O primeiro ponto a ser ressaltado é que, apesar de bastar a ocorrência de uma das
hipóteses do art. 149 para restar configurado o trabalho escravo, ele muitas vezes ocorre
através da combinação de dois ou mais elementos.
Além disso, as modalidades de trabalho escravo identificadas nos relatórios
analisados revelaram a presença contundente das “condições degradantes”. Mostrou, ainda,
em termos de frequência na base como um todo (desconsiderando-se a distribuição temporal,
que será abordada mais adiante), uma participação semelhante entre os elementos de
“trabalhos forçados”, “jornada exaustiva” e “restrição de locomoção através de dívidas”.
Tabela 4 – Frequência das modalidades de trabalho escravo nos casos constatados pela fiscalização – MT (1995-
2013)
Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)
Agora que já temos uma ideia geral sobre a presença de cada uma dessas
modalidades de trabalho escravo no universo da base de dados, será necessário examinar
melhor os conceitos, práticas e interpretações por trás de cada um desses termos.
Nos próximos subitens, portanto, passo a discorrer brevemente sobre cada uma
das principais modalidades de trabalho escravo, apresentando os componentes considerados
para sua aferição na base de dados, bem como as nuances mais significativas que a análise
qualitativa dos relatórios e as entrevistas revelaram sobre suas práticas e mecanismos.
137
100
O juiz concluiu que a “atitude da ré abala o sentimento de dignidade, [revela] falta de apreço e consideração,
tendo reflexos na coletividade, pois as normas que regem a matéria envolvendo a saúde, segurança, higiene e
meio ambiente do trabalho e do trabalhador são de ordem pública” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região
– 1ª Turma, Processo n. 5.309/2002, Rel. Juiz Convocado Luis José de Jesus Ribeiro, apud Lima, 2011, p. 204).
138
101
Essa problemática também aparece no debate atual de autores estrangeiros acerca dos elementos definidores
do trabalho compulsório. Para Phillips, condições de trabalho precárias não podem ser consideradas formas de
escravização per se, porém, “elas estão intrinsecamente e necessariamente presentes nas relações de trabalho
não-livre e são, pela contribuição que prestam para a desumanização e degradação do trabalhador, importantes
mecanismos através dos quais a escravidão é imposta e mantida” (PHILLIPS, 2013, p. 179, tradução nossa). Já
Craig et al. mencionam a importância de se poder diferenciar escravidão de outras situações de trabalho,
afirmando que a escravidão “precisa ser distinguida da situação de pessoas que são forçadas a realizar trabalhos
perigosos ou difíceis por circunstâncias econômicas ou outras forças impessoais” (CRAIG et al., 2007, p. 13,
apud DAVIDSON, 2010, p. 250, tradução nossa). Este último posicionamento é questionado por Davidson que,
citando exemplos de escravidão contemporânea que não envolvem nem violência nem ausência de remuneração,
pontua: “Ainda que concordássemos que essa fosse uma distinção importante a ser feita, será que os ingredientes
essenciais da ‘escravidão’ identificados por ativistas antiescravidão realmente nos permitiram fazê-la?”
(DAVIDSON, 2010, p. 250, tradução nossa). Neste debate, a jurisprudência e doutrina jurídica brasileiras
emergem como importantes objetos de estudo, uma vez que apresentam inovadoras argumentações jurídicas
sobre situações fáticas documentadas nos Relatórios de Inspeção do Trabalho, visando elucidar a relação entre
trabalho escravo, de um lado, e desumanização, degradação e exaustão do trabalhador, de outro.
140
Nenhuma sombra havia para aliviar o calor daqueles homens, pois ao redor
do local onde trabalhavam só havia devastação (foto fl. 49). Situação diversa
ocorria com o calcário e o fertilizante, que tinham a proteção garantida pelo
produtor contra as intempéries (Relatório de Fiscalização 2001, cód. I, p. 6).
A mesma equipe ainda observou: “O que nos surpreendeu foi a disparidade entre
o desenvolvimento da empresa e a situação animalesca na qual foram encontrados os
trabalhadores (particularmente os maranhenses), numa área oculta aos visitantes, em meio à
mata” (Relatório de Fiscalização 2001, cód I, p. 3).
Portanto, em contraste com a minha hipótese inicial, de que as condições
degradantes de trabalho passassem a ganhar preponderância na caracterização do trabalho
escravo contemporâneo na medida do declínio da presença de trabalho forçado, o que
observei foi o contrário: a ideia de “trabalho em condição degradante” está presente desde a
origem da luta contra a escravização contemporânea.
O testemunho de Dom Pedro Casaldáliga em sua Carta Pastoral de 1971 é mais do
que eloquente:
[...] QUE está vivendo em um barraco de lona, sem proteção lateral e com
piso de terra batida; QUE faz as necessidades fisiológicas no meio do mato;
QUE bebe agua proveniente de um carrego; QUE a agua tem gosto de barro;
QUE já viu várias cobras no meio do mato; QUE reza os dias para não ser
141
Em 2 casos sequer havia fornecimento de água aos obreiros, cuja única alternativa
era providenciar sua própria água, levá-la de casa ou pedir água na vizinhança. E, por fim, em
7 relatórios a informação sobre condição da água não pôde ser identificada com precisão.
3,89%
água não potável consumida
1,11% 3,33% em embalagem de produto
4,44%
tóxico
5,56%
água potável, fresca, em
condições adequadas e
quantidade suficiente
outros
81,67%
19,44%
ESTRUTURA NÃO PROTEGE
CONTRA INTEMPÉRIES
70,00%
BARRACOS IMPROVISADOS
COM LONA, GALHOS, FOLHAS,
POR INEXISTÊNCIA DE
ALOJAMENTO
OUTROS
102
A disponibilização de alojamento regular era, no caso, obrigatória, uma vez que se tratava de trabalhadores
vindos de outras unidades da federação.
145
INSTALAÇÕES SANITÁRIAS
4,44%
Instalações sanitárias precárias
14,44% com violações de normas
Instalações sanitárias
inexistentes (inclui-se
improviso em área externa
81,11% devassada sem encanamento)
Sem informação precisa
Como se pode ver, a grande maioria (81%) dos casos de trabalho escravo
constatados em Mato Grosso pelo GEFM (1995 – 2013) apresentava um cenário de ausência
de instalações sanitárias. Em número absolutos, foram identificados 146 casos de inexistência
de instalações sanitárias para os trabalhadores em situação de trabalho escravo; 26 casos em
que eram oferecidas instalações sanitárias irregulares (com violações das normas) e nenhum
caso de regularidade das instalações sanitárias.
Os locais para preparo e consumo de alimentos também têm forte presença nos
relatórios. Os dados coletados indicaram que em 154 dos 180 casos, não foram fornecidas
instalações nem para preparo nem para consumo de alimentos. Em 12 casos, constatou-se a
inexistência de instalações para consumo dos alimentos, porém, havia instalações para seu
preparo (neste grupo incluem-se os casos em que os alimentos eram preparados por
funcionário(a) na cozinha do estabelecimento ou de algum fornecedor externo). Apenas 4
casos registraram a existência de instalações (ainda sim apresentando algumas
irregularidades) tanto para preparo quanto para consumo dos alimentos pelos trabalhadores.
Finalmente, não houve nenhum caso de instalações regulares.
146
A complexidade que pode ser assumida pela servidão por dívida e seus inúmeros
elementos de dominação e controle sobre os trabalhadores pode ser constatada neste
interessante texto divulgado pela Comissão Pastoral da Terra, no Caderno Conflitos no
Campo Brasil de 1995:
[...] compram a comida na cantina que vende leite, doce, creme dental, arroz
e cada um faz sua comida. Que compra foice na cantina e também botina,
inclusive panela, que pega na cantina e só depois quando vai acertar que
sabe o preço, mas sabe que o preço é sempre aumentado (Relatório de
Inspeção cód. AE).
comum. A gente pensa que vai ganhar melhor, porque não tem uma profissão certa, aí a gente
se arrisca no serviço. Aí eles dão um dinheiro pra gente, abona, né. Aí quando chega lá é
diferente. A lei fica por conta deles".
Essa manipulação das cláusulas contratuais não escritas no jogo da servidão por
dívida ocorre muitas vezes através de formas de remuneração variáveis e em descumprimento
do piso salarial da categoria. Na avaliação da equipe de fiscais responsável pela constatação
de um caso de trabalho escravo ocorrido em 2005,
Na entrevista coletiva que fiz em Araci-BA com João, Arthur, Júlio e Alfeu,
quatro trabalhadores que haviam vivenciado o trabalho escravo no setor da construção civil,
eles descreveram o aliciamento e as promessas enganosas que os fizeram sair da cidade para
trabalhar numa obra em Minas Gerais, onde permaneceram até o resgate pelo GEFM. Nas
palavras de Alfeu, um dos trabalhadores, “Eles [os aliciadores] falavam que era uma coisa e
quando a gente chegava lá era outra. A gente na realidade foi pra lá tudo iludido”. Nesse
momento, Júlio complementou: “Nossos direitos foram todos ignorados. Teve um colega meu
que perseguiu um rato para comer”.
Esse grupo de trabalhadores relatou que, ao chegarem ao local de trabalho, já
estavam todos devendo trezentos reais para o empregador, o que, somado aos demais
descontos, obrigava-os a trabalhar de três a quatro meses para poder arcar com o custo da
alimentação e quitar a dívida inicial. Todos os trabalhadores que manifestavam sua intenção
de ir embora eram alertados pelo empregador de que não podiam sair antes de saldar as
dívidas.
Alfeu: O salário que a gente manda pra família, a gente manda, né? Mas
dinheiro a gente não fica.
Arthur: A gente fica trabalhando lá pra mandar pra família. Se você vim,
chega aqui a família já tá com fome.
Alfeu: Já está devendo
Júlio: Aí não tem condição.
Arthur: Tem que mandar o que arrumou pra sustentar aqui e ficar mais um
tempo lá, tentando juntar pra voltar.
Por fim, Alfeu conclui: “É um balaio de gato [...]. A gente manda o dinheiro pra
cá e nunca consegue se libertar”.
A servidão por dívida, portanto, deve ser compreendida num espectro muito mais
alargado, que abarque não só a contabilidade fraudulenta de custos do empregador que são
cobrados do trabalhador, mas também a condição de miséria das famílias desses mesmos
trabalhadores, o custo de entrada e de saída do posto de trabalho.
Um dos achados mais interessantes da pesquisa documental sobre esta modalidade
de trabalho escravo foi quanto à prática da promessa enganosa no aliciamento, fartamente
descrita como uma das facetas da servidão por dívida prevalecente no Brasil (MARTINS,
2009, FIGUEIRA, 2004 e ESTERCI, 2008).
De fato, grande parte dos casos de trabalho escravo analisados em que estava
presente o componente do endividamento fazia menção ao aliciamento de trabalhadores em
regiões geográficas distantes do local de serviço através de promessas enganosas quanto a
condições de trabalho e remuneração (geralmente as propostas são de boas condições de
alojamento e de salários maiores, sem desconto de alimentação). Observa-se, também, em
muitos desses casos, o endividamento prévio desses trabalhadores, devido ao custo de entrada
no trabalho imposto por sua condição de migrantes (pagamento pelo transporte e alimentação
no trajeto).
Entretanto, encontramos outros casos em que os trabalhadores, nos depoimentos
ao GEFM, afirmavam terem ingressado no serviço porque estavam precisando de trabalho,
153
mas que não chegaram nem a combinar o valor da remuneração antes de serem transportados
para o local do serviço. Citamos aqui um exemplo descrito pela auditoria-fiscal do trabalho
em 2002:
Por fim, nos últimos anos, em que parte desta população acaba por se fixar no
estado de Mato Grosso, a permanecer em constante deslocamento (caso dos “peões de
trecho”) ou mesmo a se deslocar por conta própria para uma região específica em busca de
uma oportunidade de trabalho, as condições extremas que violam a dignidade humana
colocam em risco sua integridade física e limitam sua liberdade persistem sob velhas e novas
formas. Neste contexto, discutir o trabalho forçado por motivos alheios ao endividamento
readquire importância.
marcado” por ter “denunciado” um mau pagador. Neste caso não consegue
mais emprego na região. A terceira forma em que o elemento pecuniário que
caracteriza trabalho escravo surge, é mais comum; trata-se da retenção dos
salários. Nela o empregador adia o pagamento até que o serviço termine.
Este expediente é usado com a finalidade de obrigar os trabalhadores a
se submeterem a situações adversas, tais como salários aviltantes e
ambientes de trabalho prejudicial à saúde e à segurança dos
trabalhadores. O empregador teme que os trabalhadores, uma vez
recebendo seus salários, se desliguem do mau emprego. Enfim, a última
das quatro formas mais comuns em que o elemento pecuniário é usado como
traço de sujeição dos trabalhadores; trata-se da servidão por dívida. Sua
ocorrência é bastante comum e se dá mediante três fatos: salário ínfimo
combinado com a venda de mercadorias com preços normais, salário correto
combinado com mercadorias vendidas a preços acima do normal, salários
ínfimos combinados com a venda de mercadorias a preços altos. Isto
caracteriza a servidão por dívidas, pois em tais circunstâncias os
trabalhadores jamais conseguem pagar seus débitos e, de boa fé, ainda que a
contragosto, continuam trabalhando na vã esperança de pagar aquilo que
acreditam dever, para, no final, descobrirem que “contraíram” uma dívida
impagável. Os que se rebelam são forçados a cumprirem o “contrato”
(Relatório de Fiscalização, 2008, p. 15-6, grifos nossos).
Uma das hipóteses iniciais da pesquisa, que tomou por base minha experiência
como auditora-fiscal do trabalho, era de que o trabalho forçado teria predominado na década
de 90 e início dos anos 2000, dando lugar a outras formas de escravização da mão de obra na
última década, na qual sua ocorrência seria mínima ou mesmo reduzida a quase zero.
Os dados coletados da totalidade dos relatórios de fiscalização de trabalho escravo
em Mato Grosso no período de 1995 a 2013 revelaram que, se por um lado é verdade que os
elementos caracterizadores do “trabalho forçado” têm maior incidência nos anos mais remotos
(apenas em um ano, dentre os sete primeiros anos de atuação do GEFM, os casos que
apresentavam elementos de “trabalho forçado” representaram menos da metade do total de
casos com constatação de “trabalho escravo”), eles não apresentam tendência a desaparecer
em anos recentes.
157
T R A B A L H O F O R Ç A D O N O S R E L AT Ó R I O S D O
GEFM - MT
PRESENÇA DE ELEMENTOS DE TRABALHO FORÇADO
PRESENÇA DO TERMO "TRABALHO FORÇADO"
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
103
Observe-se que não existe um auto de infração específico para o crime de trabalho escravo.
160
para fins dos procedimentos administrativos a serem adotados. Assim, como a discussão
exaustiva do enquadramento legal e modo de execução do crime é realizada, posteriormente,
pelo Poder Judiciário, a adoção de uma abordagem mais descritiva das situações encontradas
ou a inclusão de arrazoados jurídicos ao lado das descrições fáticas dos relatórios de inspeção
acaba dependendo da estratégia, abordagem e estilo de cada equipe.
Ainda assim, a não obrigatoriedade de nomear textualmente todas as modalidades
observadas e descritas minuciosamente pela fiscalização no relatório não explicaria a
discrepância entre o uso dos termos “trabalho forçado” e “condições degradantes”. A
explicação teria que estar em outro lugar: provavelmente na carga polemizadora e
conservadora que foi se incorporando ao termo “trabalho forçado”. Ao longo de décadas de
lutas sociais em torno da morfologia e gramática da nova escravização, reduzir todo trabalho
escravo apenas à modalidade “trabalho forçado” (utilizando-se, não raro, de referências
tortuosas ao conceito de “forced labour” da OIT para tentar justificar tentativas de redução de
direitos sociais) tem sido uma das estratégias principais adotadas por setores conservadores,
notadamente pela bancada ruralista.
André: Nós mesmos, você sabe muito bem, nós fizemos resgate aqui, muito
próximo daqui de Cuiabá, mas não com aquela intensidade da década de 70,
80, e que ainda se encontra hoje mais nos extremos do estado de Mato
Grosso e no Pará.
161
Seu trabalho, aos 15 anos de idade, era desmatar uma área, na foice, para depois
plantar arroz e milho, com objetivo de formação de pasto, numa fazenda de aproximadamente
mil alqueires na Amazônia mato-grossense.
O isolamento geográfico e a vigilância armada, de fato, quase não aparecem nos
relatórios das operações de combate ao trabalho escravo dos últimos 5 anos. Entretanto, nos
anos iniciais do GEFM tais situações eram recorrentemente apontadas nos relatórios
analisados na pesquisa.
No que diz respeito à vigilância armada, os relatórios analisados contêm trechos
que detalham a prática nos casos de trabalho escravo. Num relatório do GEFM de 2004, por
exemplo, encontramos o seguinte relato da inspeção do trabalho sobre a presença de um
“gato-fiscal” que realizava a vigilância armada dos trabalhadores, ameaçando e controlando-
os:
Com o passar dos anos, a “garantia armada” foi se tornando mais rara nas relações
de exploração da força de trabalho em Mato Grosso. Os dados aqui analisados apontam uma
notável variação da frequência da vigilância armada nos casos de trabalho escravo entre 1995
e 2013:
FREQUÊNCIA DA OCORRÊNCIA DE
VIGILÂNCIA ARMADA
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
104
A variável “vigilância armada” foi construída para dar conta apenas da prática de vigilância e presença de
armas nos locais de trabalho, não se confundindo com a variável “vigilância ostensiva com a finalidade de reter
trabalhador”, que incluía um elemento finalístico em sua codificação. Justamente pela escassez de informações
que pudessem aclarar se a vigilância visava reter trabalhadores ou se o objetivo era exercer outros tipos de
controle, optamos por criar uma nova variável que não dependesse desse componente, mas apenas de dados que
os relatórios oferecessem. Assim, a “vigilância armada” nesta acepção não pode ser considerada, sozinha,
elemento suficiente para caracterizar “trabalho análogo a de escravo”, mas, considerada em conjunto com outros
elementos, pode integrar a caracterização de uma das hipóteses da prática previstas na legislação.
163
VIGILÂNCIA ARMADA
Informações inconclusivas
em local tão distante que muitos haviam sido transportados de avião (Relatório de Inspeção,
1996, cód. DV).
Como se vê, o chamado “isolamento geográfico” era um fator que contribuía para
impedir o livre deslocamento dos trabalhadores. E era, de fato, muito presente no tempo em
que ainda existiam muitas áreas de vegetação nativa e as cidades e estradas eram menos
numerosas e estruturadas.
Já nos relatórios mais recentes, aparecem situações que foram codificadas na base
de dados como intermediárias: casos em que não havia fácil acesso à cidade mais próxima
(disponibilidade de meio de transporte e curtas distâncias), porém, tampouco havia
cerceamento amplo deste acesso (como ocorreria nos casos de inexistência de linha de
transporte público, distâncias longas demais para serem percorridas a pé e recusa do
empregador em oferecer transporte até mesmo a trabalhadores machucados).
Com o povoamento de Mato Grosso, a expansão do agronegócio, dos centros
urbanos e das telecomunicações, os isolamentos foram transfigurados. Os depoimentos dos
trabalhadores e interpretações dos agentes fiscalizadores desenham novas situações em que a
dificuldade de acesso a um centro urbano já não representa um obstáculo intransponível para
um trabalhador que deseje ir embora do trabalho para nunca mais voltar. Não se trataria mais
do caso clássico de cerceamento da liberdade de locomoção, portanto. Porém, os relatórios
mostram que as distâncias dos centros urbanos e não disponibilização de transporte aos
trabalhadores (que passam a depender de caronas e da “boa vontade do patrão”), nos anos
mais recentes, impactam profundamente outro bem jurídico que não a liberdade: a integridade
física dos trabalhadores. Os relatos neste sentido são inúmeros.
No auto de infração lavrado em face de empregador que não disponibilizava
equipamento de primeiros socorros nem pessoa treinada para tal no ambiente de trabalho, os
auditores fiscais que constataram trabalhadores em situação de escravidão em 2004
escreveram:
[...] agrava-se a situação pelo fato de que a cidade mais próxima, com
condições de prestar socorro médico, está localizada a cerca de 60 (sessenta)
km da fazenda, por estradas/caminhos de péssima qualidade, e nas frentes de
serviço não fica nenhum veículo e também não há qualquer meio de
comunicação. Em caso de qualquer acidente os trabalhadores ficam à própria
sorte (Relatório de Inspeção, 2004, cód. FW, p. 19).
QUE não tinha como sair nos dias de folga pela distância da cidade, QUE
não existe na frente de trabalho ninguém treinado em primeiros socorros,
nem material de primeiros socorros, QUE se acontecesse algum acidente
com cobra o trabalhador morreria porque não tinha carro para socorro
(Relatório de Inspeção, 2009, cód. BV, p. 27).
Portanto, sua caracterização parece mais delicada e menos imediata do que a das
demais modalidades legais. Outrossim, sua complexidade detém grande importância, por
tangenciar a questão da mais-valia absoluta e relativa. O “trabalho exaustivo” como
modalidade de trabalho escravo reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro traz para o
centro da problemática da escravidão contemporânea a reprodução da força de trabalho e a
própria vida dos trabalhadores.
Os estudos na área da saúde têm contribuído enormemente para a vinculação dos
agravos à saúde dos trabalhadores à sua atividade laboral. Da mesma forma, a construção
doutrinária e jurisprudencial do conceito jurídico de “jornada exaustiva” é da maior
relevância. Entretanto, a análise dos relatórios de inspeção do GEFM e as entrevistas
realizadas mostram que, em sede administrativa, dado o tempo da fiscalização, que é o tempo
do flagrante (diferentemente da instrução probatória do Judiciário), muitas vezes a “jornada
exaustiva” (que nem sempre é de identificação imediata) não é incluída nos autos de infração,
apesar de haver indícios de sua existência nos elementos objetivos apresentados no
relatório105.
Ante toda essa problematização e especificidades do tratamento administrativo da
“jornada exaustiva”, pautamos sua aferição na base de dados do seguinte modo:
As principais questões que aparecem nos relatórios neste tópico estão reunidas
neste trecho de operação de combate ao trabalho escravo realizada em 2009 pelo GEFM em
Mato Grosso. Na ocasião, a equipe concluiu:
105
Neste sentido, em pesquisas futuras, seria interessante a realização de pesquisas nos processos judiciais que
pudessem apreender como e em que medida tem se dado a caracterização das jornadas exaustivas nos casos de
trabalho escravo.
168
106
“‘A primeira geração de trabalhadores fabris’, afirma Thompson, ‘foi ensinada por seus patrões sobre a
importância do tempo; a segunda geração formou seus comitês de jornada curta no movimento pelas dez horas; a
terceira geração fez greve por hora extra ou jornada e meia. Tinham aceito as categorias de seus empregadores e
aprendido a lutar com elas. Tinham aprendido bem demais a lição de que o tempo é dinheiro’” (THOMPSON,
1998, apud SILVA, J.,1996).
170
Adriano: Não!
Giselle: É sempre beirando o impossível...?
Adriano: É sempre.... aquele ditado, leva o ouro mas deixa o couro. É
sempre aquele jeito. Nunca fala “ah, foi facinho, foi bonzinho”.
Giselle: E às vezes nem leva o ouro né?
Adriano: Muitas vezes não.
Giselle: Porque fala que vai pagar e depois não paga...?
Adriano: Na hora surge mil e um defeitos... “ah, não foi assim, não tá
assim”...
Giselle: Muda as regras...
Adriano: Aí soma lá uma coisinha que você ganhou um salário mínimo, uma
coisinha passando.... tanto! Pronto, é aquilo. Não tem carteira assinada pra
comprovar. É você e ele. É a palavra dele contra a de 2, 3 que já é lá de
dentro. Nada resolvido.
Eu dou valor ao meu serviço. É dali que sai nosso pão de cada dia. Porque
hoje o desemprego é grande, então tem que agradecer a Deus o emprego que
tem. Vivi 5 dias na poeira aqui do mato mais os meninos, mas trabalho
contente. É ali que estou arrumando meu dinheiro bem suado e abençoado
por Deus. É tão bom ganhar o seu pão de cada dia derramando seu suor. Eu
acho que sim.
trabalho (e dos efeitos da mesma sobre o corpo humano) faz-se mais e mais presente nos
relatórios dos últimos 15 anos, evidenciando um novo olhar despertado por uma
possivelmente também nova composição entre mais-valia relativa e a mais-valia absoluta.
Esta construção se dá em conjunto com o estabelecimento do novo conceito jurídico de
“trabalho análogo ao de escravo” na legislação brasileira.
O uso do termo “trabalho extenuante” foi identificado em relatórios dos anos de
2004 (um caso de catação de raízes), 2006 (um caso na colheita de sementes de capim), 2008
(dois casos de roço de pasto e construção de cercas), 2010 (um caso de roço e pulverização de
agrotóxico; dois casos no garimpo), 2012 (um caso na produção de carvão) e 2013 (um caso
na extração e transporte de madeira; um caso de roço de pasto). Portanto, até o último ano
compreendido em nossa pesquisa.
Certamente, o marco temporal de 2004 não é aleatório, pois coincide com a
entrada em vigor do novo texto do art. 149 do Código Penal, que a partir de dezembro de
2003 passou a detalhar a conduta de “submeter alguém a trabalho análogo a de escravo”,
prevendo expressamente a hipótese de “jornada exaustiva” como elemento caracterizador do
crime em questão.
O interessante é que, tendo os membros do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
participado não só do processo de discussão e construção do novo texto legal, como também
do próprio processo de publicização das informações sobre a realidade do trabalho escravo no
Brasil (através dos resultados das ações fiscais veiculados na mídia), a jornada exaustiva
retratada nos relatórios das primeiras operações (qualificadas como jornadas excessivas, mas
sempre sobre o pano de fundo da saúde e segurança do trabalhador) alimentou a discussão
sobre o instituto da “jornada exaustiva” e, reflexamente, essa institucionalização também
impactou os usos futuros do ferramental jurídico pelos mesmos atores na identificação do
trabalho compulsório e “análogo ao de escravo” no país.
Da abordagem das jornadas excessivas à da jornada exaustiva e extenuante,
emerge com importância crescente, a problemática da intensidade e intensificação do
trabalho. O tema aparece em diversos relatórios, principalmente nas fiscalizações do setor
sucroalcooleiro. Em 2006, destaca-se um caso emblemático de trabalho escravo no corte de
cana (Relatório cód. DD) em que a auditoria concluiu que o sistema remuneratório por metro
corrido de cana cortado gerava intensificação do trabalho e acidentes de trabalho. De fato,
naquele caso, segundo dados do próprio relatório, o descanso semanal não era respeitado, pois
muitos trabalhavam no domingo induzidos por promessa de pagamento em dobro; porém, não
recebiam folga compensatória durante a semana. Tampouco eram cumpridas as normas
173
2.2.2.1. Informalidade
Presença de trabalhadores
16,67%
formais e informais
Presença de trabalhadores
informais e de trabalhadores
registrados com data posterior
à admissão
inclusive não ser o proprietário o seu patrão, mas um arrendatário, como foi
o presente caso, tornando mais difícil ainda para os trabalhadores desvendar
quem é que manda. Empregador, para eles, é o ‘gato’, não importando onde
estejam ou para quem produzem. Como os serviços nas fazendas são de
curto prazo, a vinculação à pessoa do ‘gato’ é que lhes dá a sensação de
estarem sempre empregados por ele. O registro, portanto, não é considerado
importante para nenhum dos integrantes desse triângulo laboral (Relatório de
Inspeção 2002, cód. ED, p. 7).
107
Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso
179
A análise das formas de remuneração num tipo de trabalho em que a regra é a não
remuneração (o não cumprimento dos prazos legais de pagamento salarial, a violação dos
180
Como vemos no gráfico acima, no que diz respeito à frequência das diversas
modalidades de remuneração aferidas na base de dados, uma linha de análise interessante à
primeira vista é a comparação entre a frequência da “remuneração mensal fixa” e as demais
modalidades remuneratórias praticadas, com ou sem respaldo da lei (que englobam
remuneração “por produção”, por diária, por hora e combinações entre elas ou entre alguma(s)
delas e parcelas remuneratórias fixas). Como podemos observar no gráfico acima, apenas 5%
dos casos de trabalho escravo constatados pela fiscalização em Mato Grosso de 1995 a 2013
reportava-se a relações de trabalho com (promessa de) remuneração mensal estritamente fixa.
Dando seguimento à análise, ao invés de buscar alguma correlação entre
determinado regime remuneratório e as jornadas exaustivas a partir dos resultados da pesquisa
quantitativa, o exame qualitativo dos documentos mostrou ser mais relevante empreender uma
análise sobre a luta entre capital e trabalho nas negociações, imposições e violações dos
padrões e acordos remuneratórios. Essa escolha se amparou no fato de termos constatado mais
convergências do que divergências entre as variadas práticas e lutas remuneratórias no
universo analisado.
182
108
Ver Marx, Karl, O Capital, v.1.
183
109
No Direito do Trabalho, a pessoalidade faz referência ao fato do trabalhador contratado não poder se fazer
substituir por outra pessoa na prestação dos serviços. Já a não eventualidade, diz respeito à continuidade das
relações de emprego, que se estendem no tempo. Ao lado da subordinação e da onerosidade, consistem nos
elementos caracterizadores do vínculo empregatício, que o diferem de outras relações de trabalho (inclusive em
termos de tutela jurídica).
186
110
Nos termos do Relatório de Inspeção: “O anúncio das horas extras encheu de esperanças o peito dos robustos
trabalhadores, transformando-os numa força motriz poderosa, capaz de realizar assombrosas produções. De
repente, a força e a motivação dos doutores da enxada assustaram o contratante, que resolveu acabar com as
horas extras e pagar-lhes um salário fixo de R$ 450,00” (p. 16).
187
informalidade sob condições escravizantes. Numa operação ocorrida em 2009, que encontrou
23 trabalhadores em condição análoga a de escravo na atividade de extração de látex, o valor
da remuneração verbalmente pactuado com os seringueiros havia sido de 25% sobre a
produção da borracha; porém, no momento em que a fiscalização exigiu o registro dos
trabalhadores, o empregador tentou formalizar contratos com valor fixo de um salário mínimo
(Relatório de Inspeção, 2009, cód. BW). Nota-se, em casos como esse, uma outra
intencionalidade no uso da forma “salário fixo”, qual seja: estabelecer um teto limitado para
os encargos trabalhistas e um valor ilimitado para a exploração da força de trabalho.
Por fim, tendo percorrido os mecanismos de exploração específicos de cada
modalidade de cálculo salarial, podemos compreender o porquê da forte presença de arranjos
mistos nestas relações de trabalho que são, dentro do espectro do mundo das precarizações, os
casos mais extremos de exploração e degradação, a ponto de serem classificados como
trabalho escravo.
Como exemplo, temos os pedreiros contratados para construção de aviários numa
fazenda em 2009, cuja remuneração contratada (e não cumprida) se compunha da seguinte
forma: R$ 600 de valor fixo, R$ 200 a título de horas extras, acrescidos de uma quantia em
dinheiro pelo término da tarefa de concretagem (que era de R$ 375, a serem divididos entre
todos os trabalhadores da turma).
Muito recorrente também é a alteração da forma de remuneração unilateralmente
pelo empregador, quando do início das atividades ou mesmo no decorrer do serviço, com
vistas a reduzir seus custos às expensas dos trabalhadores. Reproduzimos abaixo um exemplo
que combinou alteração de forma de remuneração e alteração na natureza das tarefas com
vistas a aumentar o nível de exploração da força de trabalho:
mais o nível salarial através de alterações nas tarefas, modos de aferição e exigências quanto à
qualidade da peça ou unidade produzida; os salários fixos garantem a neutralização de
possíveis resistências políticas (e, no caso dos vínculos formalizados, buscam reduzir a base
de cálculo para outros direitos dos trabalhadores); por fim, a remuneração por diárias evita o
absenteísmo e diminui o tempo ocioso também fora da jornada de trabalho, fazendo coincidir
os dias de “folga” do trabalhador com os dias em que a produtividade não atingiria níveis tão
altos.
As lutas concentram-se não sobre a mais-valia, mas sim sobre o contratado. Por
outro lado, a resistência também se organiza sobre os dispositivos dos contratos, verbais ou
escritos. A luta dos trabalhadores, num contexto de erosão do poder sindical, ganha força em
diversos momentos em que se apropriam da própria máquina de gerar mais-valia: as fórmulas
da equivalência jurídica.
FORMAS DE RECRUTAMENTO
pode ser um dado precioso: nossas especificidades mais características, expressas, mais do
que nas variáveis, nos elementos constantes.
Feita esta observação, podemos concluir que, no que diz respeito às formas de
recrutamento da força de trabalho, nossos dados confirmam a hipótese principal da tese, de
que o trabalho escravo se utiliza de tecnologias e práticas típicas do mercado de trabalho livre
para se realizar. É o que verificamos no gráfico a seguir, em que fundimos as variáveis do
gráfico anterior em apenas três tipologias: a) recrutamento forçado (através de venda do
indivíduo ou de sequestro); b) recrutamento não forçado (através de contratos verbais ou
escritos, ainda que enganosos ou fraudulentos, desde que o engano não se refira a elemento
essencial111 da relação de trabalho, como identificação do empregador, natureza do trabalho
contratado e região onde será realizado o serviço); c) situações limítrofes112 (em que há
aliciamento através de informações falsas sobre elemento essencial da relação de trabalho).
Temos, então, o seguinte resultado:
111
Os “elementos essenciais” da relação de trabalho se opõem aos elementos considerados secundários, como
forma de remuneração, condições de alojamento e condições gerais de prestação do serviço. A distinção,
inspirada na metodologia da OIT, é importante por distinguir as falsas promessas sobre condições de trabalho e
remuneração, que geram inúmeros conflitos de situações mais graves ainda, em que o trabalhador é aliciado e
levado para prestar serviço em local omitido ou desconhecido, ou para empregador com quem não contrataria e
até sendo compelido a realizar um trabalho completamente diverso do acordado. No caso da fraude em relação a
elementos tão essenciais do contrato de trabalho, a situação pode tornar-se um recrutamento eminentemente
forçado, dependendo do caso concreto, o que motivou a OIT a inseri-lo como indicador de recrutamento forçado.
112
Esta tipologia foi inspirada nos parâmetros adotados pela OIT no estudo Hard to see, harder to count.
191
Recrutamento forçado
Situações limítrofes
Recrutamento não forçado
97%
113
No caso, trata-se de informações sobre condições de trabalho e remuneração e não a informações atinentes a
elementos essenciais da relação de trabalho.
192
2.500.000
2.027.231
2.000.000
1.500.000 1.138.691
1.000.000 599.764
192.531
500.000 319.248
211.858
0
1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010
114
Notas sobre os dados coletados da SEPLAN-MT: os dados de 1940 a 1950 referem-se à “população presente”
e os dados de 1960 a 1980 correspondem a “população recenseada”, em ambos os casos tendo sido excluída a
população do território hoje pertencente ao Mato Grosso do Sul (SEPLAN, 2006, p. 33).
194
115
Extraído do Estudo Técnico ET CAV/SP/SEPLAN nº 07/2013, intitulado “A população de mato grosso
poderá se estabilizar abaixo de 4 milhões de habitantes”, elaborado por Edmar Augusto Vieira, 2013.
116
A análise foi elaborada a partir do banco de dados contendo informações extraídas da totalidade das 34.177
guias de seguro-desemprego emitidas para trabalhadores encontrados em situação de trabalho escravo no Brasil
no período de 2003 a 2015.
117
Os motivos econômicos que geram estes fluxos migratórios são conhecidos. No Maranhão, o principal estado
de origem das vítimas de trabalho escravo em solo mato-grossense, a pesquisa de campo também mostrou o que
costumava atrair os trabalhadores maranhenses para o Mato Grosso. Segundo o trabalhador rural Cauê, os
arregimentadores levavam “muita gente daqui pro Mato Grosso, vaqueiro e outros tipos de serviço também”, que
gostavam de ir “porque lá ganhava muito dinheiro. Aqui, passava o mês todinho pra ganhar R$ 1.500, enquanto
lá, trabalhando, ganhava R$ 2.500. Era assim, dobrado. Por isso gostavam de lá”.
195
T R A B A L H A D O R E S S U B M E T I D O S A T R A B A L H O E S C R AV O
N O B R A S I L C O M R E S I D Ê N C I A E M M AT O G R O S S O
36%
34%
32%
30%
28%
26%
24%
22%
20%
18%
16%
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Gráfico 18 –Trabalhadores submetidos a trabalho escravo no Brasil com residência em Mato Grosso
Fonte: Banco de dados do Seguro Desemprego
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Na medida em que Mato Grosso passa a contar com uma participação cada vez
menor de imigrantes na composição de sua população, também no trabalho escravo cresce o
número de vítimas oriundas do próprio estado. Contudo, a quantificação exata de migrantes e
residentes submetidos à escravidão no território mato-grossense apresenta alguns desafios.
O banco de dados do seguro desemprego, por exemplo, apesar de informar o
endereço de residência (ou referência) do trabalhador, não oferece informação sobre o local
de resgate e aliciamento dos trabalhadores, dificultando a tarefa de cruzamento desses dados
para fins de compreensão dos fluxos migratórios envolvidos na escravidão contemporânea.
Entretanto, muitas pistas sobre o peso da migração no trabalho escravo em
território mato-grossense podem ser encontradas em outras pesquisas e bancos de dados. Uma
dessas fontes é o banco de dados do Projeto Ação Integrada que, ao realizar a busca ativa da
população vulnerável e vítima de trabalho escravo em Mato Grosso, dispõe de informações
mais detalhadas sobre o perfil e trajetória de cada indivíduo. Segundo esses dados, de um
universo de 683 trabalhadores resgatados de trabalho escravo e localizados (cadastrados) pelo
projeto entre 2009 e 2016118, 240 (35%) eram naturais de municípios mato-grossenses, contra
369 (54%) de outros estados, além de 74 (11%) casos sem informação sobre a naturalidade.
Pesquisa realizada no mesmo banco de dados por Patrícia Silva (2016), mostrou que, dentre
os atendidos pelo Ação Integrada (isto é, excluindo-se os cadastrados mas não atendidos) até
2015, 40% era nascido no próprio estado de Mato Grosso. Conforme ressalta a autora, as
pessoas muitas vezes permanecem no estado e “acabam migrando de uma cidade para outra
em busca de trabalho, o que conecta esta população a um fluxo migratório interno” (SILVA,
P., 2016, p. 128). O banco do Ação Integrada, entretanto, combina dados colhidos no
momento imediatamente posterior à ação fiscalizatória (nestes casos, abordando todos os
trabalhadores, migrantes e não migrantes) com dados obtidos através de busca ativa em
municípios do próprio estado de Mato Grosso e, neste segundo caso, trabalhadores de outros
estados que tenham sido escravizados naquele território e não fixado residência na região
acabam não sendo localizados. Desta forma, o percentual efetivo de migrantes vítimas de
escravização em Mato Grosso deve superar os 55%.
Portanto, se por um lado podemos dizer que os migrantes continuam compondo a
parcela majoritária da população escravizada em Mato Grosso, por outro também se observa
118
A data do cadastramento no Projeto Ação Integrada não necessariamente coincide com a data da ocorrência
do trabalho escravo, de modo que, na atividade de busca ativa nos municípios, as equipes do projeto muitas
vezes encontram indivíduos que foram vítimas de trabalho escravo em décadas anteriores.
197
Nos anos mais recentes, as contratações tornam-se cada vez mais consensuais
(passa a ser comum os trabalhadores procurarem os empregadores e não só o inverso) e as
redes tornam-se cada vez mais estabelecidas (muitos trabalhadores se deslocam em todas as
safras para a mesma região, onde já são conhecidos pelos intermediadores de mão de obra e
pelos fazendeiros). Foi o que relatou um dos trabalhadores que entrevistei no Maranhão:
Tinha uns gato aí, agora não, porque ninguém quer trabalhar mais com gato
não. Porque é o gato que escraviza mais. Porque quando o gato leva o cara
pro mato, na juquira, se estão pagando mil conto, aí o gato só quer pagar pro
cara 500 ou 400. Aí não dá uma bota, uma camisa... aí querem ganhar mais
que o trabalhador que vai trabalhar. Hoje, o cara não quer mais trabalhar
com gato não. Às vezes, faz um grupo, sabe que tem serviço, pega 3, 4
pessoas ou só 2, vai lá e pega serviço na mão do fazendeiro. [...] O cara vai
por conta. Antes, o gato levava.
[...] QUE esta safra iniciou no final de abril; QUE ‘os trabalhadores ligam lá
da terra deles perguntando quando vai iniciar a safra e se tem lugar para
eles’; QUE então é dito aos trabalhadores ‘que se eles estiverem aqui no
início da safra a gente contrata eles’, QUE os trabalhadores ligam para o
fiscal Zeca e que é feita ‘uma conta de acordo com as toneladas que a gente
tem que entregar’, porque cada trabalhador corta em média 7 toneladas por
dia; QUE a vinda para cá é custeada pelos próprios trabalhadores; QUE
muitos deles já estão na região porque vêm para o plantio, de meados de
janeiro em diante; QUE nessa safra a maioria dos trabalhadores são ‘de
fora’, especialmente da Bahia e do Maranhão (Relatório de Inspeção, 2008,
cód. DI, p. 104).
CASOS DE TE CONSTATADOS
ANO
PELA FISCALIZAÇÃO
1995 2
1996 6
1997 3
1998 1
1999 4
2000 3
2001 6
2002 8
2003 12
2004 12
2005 10
2006 8
2007 7
2008 31
2009 22
2010 17
2011/ 11
2012 9
2013 9
com este escopo específico de combate ao trabalho escravo, teriam sido priorizadas as
denúncias mais graves. Porém, o que explicaria a frequência tão reduzida de violência física
nos anos posteriores (quando, inclusive, a fiscalização contou com um maior contingente de
auditores, podendo dar conta de cobrir um maior número de denúncias e, naturalmente, em
especial as mais graves), a não ser a efetiva redução das práticas de violência física e grave
ameaça contra trabalhadores?
Enfim, as hipóteses são inúmeras e, aqui, as lacunas e dúvidas deixadas pelos
documentos analisados só podem ser reduzidas a partir da pesquisa em outros documentos
(como os mantidos nos acervos pessoais e de instituições de direitos humanos) e das
entrevistas com agentes que atuavam no combate ao trabalho escravo à época: membros da
CPT, auditores fiscais que coordenaram e participavam das operações de combate ao trabalho
escravo na década de 1990, lideranças de movimentos sociais, procuradores do trabalho,
procuradores da república, juízes e os próprios trabalhadores que vivenciaram situações de
escravidão à época.
As narrativas dos agentes entrevistados reforçam a tese de que a violência física e
grave ameaça contra trabalhadores eram práticas correntes nas décadas de 1970 a 1990 (ao
menos nas regiões da expansão da fronteira agropecuária que eram alvos frequentes de
denúncias de trabalho escravo), mas pouco encontradas nos dias atuais. Essa parece ser uma
tendência generalizada e não um particularismo de Mato Grosso. Até mesmo na região
conhecida como Bico do Papagaio, onde a violência no campo é dramática, violências e
ameaças não têm aparecido frequentemente nas denúncias de trabalho escravo colhidas pela
Comissão Pastoral da Terra. Segundo Xavier Plassat, os casos reportados nos dias de hoje são
geralmente “empreitas curtas, com trabalho degradante”, envolvendo grupos menores de
trabalhadores ou mesmo casos individuais (“um velhinho aqui e ali” explorados “como
caseiro ou faz-tudo”), geralmente “no contexto de criação de gado, reforma de cercas,
construção de curral, trato de pasto”.
Também se faz presente nessas narrativas uma percepção (ora mais convicta, ora
mais difusa) de que a violência persiste nas relações de trabalho atuais, ainda que sob novas
formas menos visíveis.
Daniela, uma das auditoras fiscais do trabalho que atuou nas primeiras operações
de combate a trabalho escravo do Ministério do Trabalho conta que “A narrativa de violência
era comum... que eles [os trabalhadores escravizados] sofriam violência. Era muito comum. E
você ver acidentes, cortes, mutilações também era comum. Como até hoje deve ter violências
por aí que a gente não sabe”.
203
119
A pesquisa de campo foi realizada nos municípios de Cuiabá e Várzea Grande, em bairros periféricos, bem
como em hotéis e pensões onde os peões se hospedavam.
204
[...] as cartas das vítimas enviadas aos seus familiares descrevem com
pormenor episódios deveras trágicos. Narram os obstáculos erigidos à livre
locomoção dos trabalhadores e as violências praticadas no contexto das
tentativas de fuga. As próprias vítimas se auto apresentam como escravos e,
além dos maus tratos constantes, relatam homicídios hediondos cometidos
por pistoleiros (BERNO, apud BARROZO, 1992, p. 126).
Barrozo (1992, p. 126) afirma que “de tempos em tempos aparecem manchetes
nos jornais de Cuiabá sobre a violência contra os peões”, citando algumas que fazem
referência a assassinatos e violências contra trabalhadores que fugiam das fazendas e eram
perseguidos por “capangas” (BARROZO, 1992, p, 127). Relata, ainda, haver casos de peões
que dizem terem sido obrigados a bater nos próprios colegas peões que haviam sido
recapturados (BARROZO, 1992, p. 128). Sobre as recapturas, cita o seguinte trecho de notícia
publicada em “O Estado de Mato Grosso” (01/04/1986): “[...] os pistoleiros ganhavam Cr$
500,00 por fugitivo que eles conseguiam recapturar. Caso persistissem as tentativas, eles
cortavam o tendão de Aquiles (músculo que sustenta o calcanhar)” (BARROZO, 1992, p.
129).
Em suas conclusões sobre o trabalho escravo no período analisado, Barrozo
(1992) aponta que o peão, através de inúmeros mecanismos de imobilização e controle, passa
a ser considerado propriedade do gato, o qual manifestaria seu sentimento de posse “na
vigilância armada, nas perseguições, com armas e cães, quando o peão tenta fugir. Para o
‘gato’ a fuga do trabalhador é um roubo, pois ele foge com algo que lhe pertence (ao gato), a
força de trabalho” (BARROZO, 1992, p. 147).
Nos relatórios aqui analisados, foram encontrados alguns casos de trabalho
escravo mais similares aos descritos por Barrozo, a exemplo de uma operação de 1996, em
que foi constatada, além da vigilância armada, a situação relatada a seguir:
120
Em entrevista à Televisão Centro América sobre assassinatos recentes no Mato Grosso, um funcionário da
CPT explica que muitas das pessoas assassinadas no campo são pessoas que já haviam sofrido prévias ameaças
de morte. http://g1.globo.com/mato-grosso/videos/v/mato-grosso-e-o-segundo-estado-em-mortes-por-conflitos-
no-campo/4107601/ (acesso em 12/02/2017).
206
160
140
120
100
80
60
40
20
0
121
O mesmo relatório aponta os momentos de pico da violência no campo: “em especial na década de 1980,
quando aumentaram as mobilizações sociais e as lutas por terra – década que também marcou a fundação do
MST. Um novo pico foi registrado durante o primeiro mandato do Governo Lula, de 2003 a 2006. Apenas em
2003, aconteceram 496 ocupações – comparativamente, em 2010 foram 180” (OXFAM, 2016, p. 7).
207
122
O Índice de Conflitividade apresentado nos Caderno Conflito no Campo medem o número de pessoas
envolvidas em conflitos no campo. A cenário da região Centro-Oeste em 2004 é detalhado neste trecho da
análise dos dados: “Em média, no Brasil, o equivalente a um em cada 29.4 habitantes de nossa área rural esteve
envolvido em conflitos rurais em 2004. Nos Estados da região Centro-Oeste, essa proporção atingiu níveis
elevadíssimos, sendo que no Mato Grosso do Sul, uma em cada cinco pessoas esteve envolvida em conflitos; no
Mato Grosso, uma em cada 7.3 e, em Goiás, uma em cada 7.4” (Gonçalves, C. 2004, p. 5)
208
25
20
15
10
0
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
Gráfico 22 – Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – variação no tempo
Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)
Com base nas narrativas dos entrevistados e nas pistas fornecidas pela pesquisa
documental (nos relatórios de inspeção e material da Comissão Pastoral da Terra), optamos
por analisar os dados sobre as vítimas de violência grave no campo sob o prisma da tipologia
das vítimas, o que trouxe uma luz interessante sobre as transformações nas formas de
exploração da força de trabalho e escravização aqui abordadas.
Somando-se o número de vítimas de assassinato, tentativa de assassinato e ameaça
de morte em Mato Grosso, ano a ano, chega-se aos totais de vítimas de violência grave no
campo mato-grossense, apresentados abaixo:
209
PEQUENO PROPRIETÁRIO
OUTROS OU EM BRANCO
FUNCIONÁRIO PÚBLICO
INTEGRANTE DE ONG
AGENTE AMBIENTAL
AGENTES PASTORAL
QUILOMBOLA
MISSIONÁRIO
SINDICALISTA
ASSENTADOS
GARIMPEIRO
ADVOGADO
SEM-TERRA
LIDERANÇA
POSSEIROS
PESCADOR
RETIREIRO
INDÍGENA
POLÍTICO
CRIANÇA
ALIADO
PADRE
ANO
1994 5 1 0 2 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1995 22 2 1 4 4 4 0 0 0 0 0 1 1 3 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1996 9 2 1 2 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1997 5 0 1 0 2 0 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1998 5 1 2 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1999 8 0 4 0 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2001 13 5 4 0 1 0 2 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2002 9 3 0 2 0 0 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2003 18 7 3 0 0 0 3 0 0 0 0 0 1 2 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2004 11 1 1 1 4 0 0 0 0 0 2 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
2005 11 1 0 0 5 1 0 0 0 0 0 0 2 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0
2006 17 0 1 1 1 3 0 0 0 0 0 0 0 5 0 0 0 0 1 0 0 0 0 5 0 0
2007 21 0 0 0 8 0 0 0 2 0 1 0 0 2 0 0 0 0 0 7 1 0 0 0 0 0
2008 2 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2009 19 0 2 3 2 0 0 0 2 0 5 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 1 3 0 0 0
2010 27 0 0 0 26 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2011 8 0 0 0 3 0 0 0 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0 0 0
2012 21 0 0 0 0 0 0 0 19 0 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2013 25 0 1 0 16 0 1 1 2 0 0 0 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 1 0
2014 5 0 3 0 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2015 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2016 2 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2017 9 0 0 0 0 9 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Tabela 10 – Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – por tipologia de vítima
Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)
CRIANÇA, QUILOMBOLA) OU
ARRENDATARIO, PESCADOR,
VÍTIMA LIGADA À POSSE DA
ASSENTADO OU POSSEIRO)
ADVOGADO, GARIMPEIRO,
EXCETO POLÍTICO (AGENTE
AMBIENTAL, MEMBRO DO
FUNCIONÁRIO PÚBLICO)
MISSIONÁRIO E AGENTE
AUTORIDADE PÚBLICA
TERRA (SEM-TERRA,
ALIADO, RETIREIRO,
RELIGIOSO (PADRE,
GRUPO MÓVEL,
OUTROS (PEQ
EM BRANCO
PASTORAL)
ANO
1994 0 0 2 0
1995 0 3 8 3
1996 0 0 4 0
1997 0 0 3 1
1998 0 0 0 1
1999 0 0 4 0
2000 0 0 0 0
2001 0 1 3 0
2002 0 0 4 0
2003 0 2 3 2
2004 1 1 4 0
2005 1 1 6 0
2006 5 6 4 0
2007 0 2 8 1
2008 0 0 0 0
2009 0 4 2 1
2010 0 1 26 0
2011 0 2 3 0
2012 0 1 0 0
2013 0 2 17 2
2014 0 0 2 0
2015 0 0 0 0
2016 0 0 1 0
2017 0 0 9 0
28
26
24
22
20
18
16
14
12
10
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1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
0
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
LIDERANÇA
SINDICALISTA
A análise do gráfico referente aos agentes que atuam na proteção dos direitos das
populações vulneráveis do campo aponta para conclusões parecidas às extraídas do gráfico
anterior.
Aqui, também, os agentes tipicamente ligados à proteção de direitos trabalhistas
deixam de ser alvos de violência grave a partir de 2010 até o último ano contabilizado (2017),
período em que não houve nenhum integrante do sindicato dos trabalhadores rurais e
214
123
Além da análise por tipos de vítimas, podemos observar picos de violência em determinados anos, a exemplo
de 2003 e 2006, que fogem aos propósitos desta tese. Ver Cadernos de Conflito no Campo 2003 e 2006, que
expõem o contexto destes dados e o fornecem material para sua interpretação à luz dos acontecimentos do
período e conjuntura política e econômica.
215
de uma lei que tornava a compra a única forma de alienar as terras públicas, e em uma política
que deliberadamente aumentou o preço de sua venda. Com esta finalidade foi promulgada a
lei de 1850”, proibindo que as terras fossem adquiridas por outro meio ou título que não a
compra (KOWARICK, 1987, p. 75).
Portanto, não foi mera coincidência que a Lei de Terras tenha sido promulgada
justamente na derrocada do tráfico negreiro. Tratava-se do intento de obstaculizar o acesso à
propriedade da terra, forçando o trabalhador livre a permanecer nas fazendas (KOWARICK,
1987). Como sintetiza Martins (1979, p. 32): “Num regime de terras livres, o trabalho tinha
que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”.
Concomitantemente, segundo alguns autores, verifica-se um processo de aumento
da extensão das propriedades rurais e concentração fundiária na passagem para o século XXI,
que se acentua nos estados de expansão do agronegócio. De 1992 a 2003, as áreas cadastradas
no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) tiveram um incremento de 89 milhões de
hectares. Para Fernandes e Cavalcante (2006, p. 110), essas mudanças estariam “ocorrendo
com maior intensidade nos estados onde a produção da soja124 está se territorializando, onde
terras até então semi-utilizadas ou não utilizadas estão se valorizando devido à dinamização
da economia e da infra-estrutura”. Os autores (2006, p. 113) destacam Mato Grosso, que foi o
estado onde se registrou o maior crescimento das áreas cadastradas e está num “estágio mais
avançado da capitalização e monopolização das terras para o desenvolvimento do
agronegócio”.
Em seus estudos, Fernandes dialoga com as pesquisas de José Eli Veiga (2003),
que mostra ter havido uma diminuição da participação relativa da unidade patronal no total
das propriedades rurais, com o ganho de participação relativa da unidade familiar
(FERNANDES, 2005 apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 111). As pesquisas de
Fernandes, entretanto, acrescentam uma outra faceta importante da questão fundiária: o
aumento no tamanho dos imóveis rurais. Analisando a lógica das mudanças na estrutura
fundiária mato-grossense, a partir do conceito de impacto socioterritorial125 (FERNANDES,
2005 apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 112).
124
Os pesquisadores relacionam o processo de capitalização de terras no avanço do agronegócio da soja ao
crescimento das áreas de imóveis rurais registrados, que foi maior justamente entre os estados em que a soja se
expande: Mato Grosso, Pará, Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Piauí
(FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 113).
125
Conforme explanam os autores, “Impacto socioterritorial é um conceito cunhado no NERA [Núcleo de
Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária] para a compreensão das mudanças ocasionadas por diferentes
políticas, projetos ou planos que resultam no reordenamento territorial e que modifica os sistemas de produção,
bem como as estruturas sociais e políticas.
217
100%
90%
80%
70%
60%
50% NÃO-FAMILIAR
40% FAMILIAR
30%
20%
10%
0%
MATO GROSSO BRASIL
126
Nas palavras de Bergamasco, Roboredo e Gervazio (2016, p. 11): “Na Amazônia norte mato-grossense
predomina a grande concentração de terra, pois grandes quantidades de terras foram e continuam sendo
compradas, griladas ou ocupadas por latifundiários, grileiros, fazendeiros e empresários. Os conflitos nessa
região ainda aparecem em forma de trabalho escravo, de problemas trabalhistas, de atingidos por barragens, de
mortes, conflitos por terra, acampamentos etc.”.
218
100%
90%
80%
70%
60%
50% NÃO-FAMILIAR
40% FAMILIAR
30%
20%
10%
0%
MATO GROSSO BRASIL
vem ocorrendo em nível mundial (MERLET, 2010, apud SAUER; LEITE, 2012). A disputa
por terra, portanto, torna-se um fenômeno contemporâneo global.
Este processo se agudiza nos anos 2000 e, marcadamente, em 2008, ano que
assiste a um boom no comércio de terras agricultáveis e cultivadas. Segundo estudo do Banco
Mundial127 (DEININGER; BYERLEE, 2011), entre outubro de 2008 e agosto de 2009 foram
comercializados mais de 45 milhões de hectares de terras cultiváveis em todo o mundo,
contrastando com a média anual anterior, que era de 4 milhões de hectares (SAUER; LEITE,
2012, p. 504).
No Brasil, visam-se as áreas de expansão das commodities, notadamente nas
regiões do Cerrado, com destaques para os territórios de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e
Bahia. Em Mato Grosso, como ressaltado por Sauer e Leite, a expansão do agronegócio e a
corrida estrangeira por terras contribuiu para a elevação dos preços128, gerando impactos na já
problemática questão social do acesso a terra:
127
O resultado do estudo promovido pelo Banco Mundial pode ser acessado em
https://siteresources.worldbank.org/DEC/Resources/Rising-Global-Interest-in-Farmland.pdf.
128
Sobre o caso específico de Mato Grosso, os autores citam estudo de Leite e Wesz Junior (2009), que aponta:
Além das fortes variações observadas no preço de compra e venda das áreas com lavouras, observamos
igualmente um acréscimo considerável nos preços das áreas com pastagens, que se transformam, na sequência,
em novas áreas abertas para o cultivo de soja e algodão (LEITE; WESZ JUNIOR, 2009).
220
129
A Global Witness atua contra abusos de direitos humanos e contra o meio-ambiente perpetrados na
exploração de recursos naturais e corrupção nos sistemas político e econômico globais (extraído do sítio oficial
da organização, tradução nossa).
130
Conforme notícias veiculadas na imprensa, “a suspeita é de que os autores do crime sejam capangas
contratados por fazendeiros. Homens encapuzados atacaram o assentamento onde vivem cem famílias. ‘Os
assassinos entraram de barraco em barraco matando as pessoas’, contou a policial” (Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,vitimas-de-massacre-no-mato-grosso-sao-assassinadas-com-golpes-
de-facao,70001748090).
221
131
No original: “These massacres sent the message that not only community leaders will be targeted: nobody is
safe. This has a huge impact, given that whole communities – or large parts of them – are often involved in
struggles to protect their land from being grabbed”.
222
trabalho livre e terra cativa que marcou a passagem do século XIX para o XX (tendo como
marcos principais, no Brasil, a Lei de Terras de 1850 e a abolição da escravidão em 1888). A
situação que observamos em seguida, na passagem do século XX para o XXI, é a culminação
de um processo contínuo de espoliação sobre vidas, tradições, culturas, territórios, os quais,
para o capital, representam “recursos” necessários à sua reprodução.
De um lado, os “recursos naturais” (cada vez mais escassos e concentrados após o
avanço intensivo sobre terras devolutas, biomas e territórios de comunidades tradicionais)
passam a ser cada vez mais disputados, acirrando a violência física direta em torno da questão
fundiária. De outro lado, os “recursos humanos” (cada vez mais sobressalentes e descartáveis,
com o desemprego estrutural derivado da explosão demográfica aliada à substituição da mão
de obra por máquinas e, mais recentemente, também por insumos químicos) passam a ser
consumidos mais do que exterminados, dando origem a novas formas de dominação,
exploração e atentados contra a vida humana, mais invisíveis porque biológicas, químicas,
psíquicas: biopolíticas.
A terra cativa (assim como a água, o subsolo e outros elementos naturais) fica
cada vez mais cativa. O “trabalhador livre” fica cada vez mais abandonado à própria sorte, a
ponto de fenômenos como “fugas de peões” começarem a perder incidência e sentido, sendo
substituídos pela lógica da “exploração por interpelação”. “Não aguentar” passa a ser a
ambivalente bandeira da nova rebeldia fragilizada dos oprimidos, como veremos no próximo
capítulo. Por outro lado, novas formas de resistência e alternativas de vida surgem da
consciência sobre as novas e renovadas formas de exploração.
A seguir, passaremos a analisar em mais profundidade a transmutação das formas
de violência e dominação da força de trabalho.
224
tipologias de doenças ocupacionais (a exemplo das LER e das doenças psíquicas) que
devastam silenciosamente a vida de mais e mais trabalhadores sem a visibilidade das “mortes
violentas” e amputações (que se tornam menos frequentes apesar de perdurarem em setores
produtivos específicos). Ao lado da morbidez material e dos acidentes de trabalho típicos,
surge, cada vez com mais força, a morbidez imaterial e pouco visível das relações sociais de
trabalho (RIBEIRO, 2015, p. 34) crescentemente flexíveis e precárias.
Desenvolvendo a tese de que a violência contra os trabalhadores não teria
desaparecido, mas sim mudado de roupagem, neste capítulo busco contribuir para a
compreensão dessas novas formas de violência através do esforço teórico e da pesquisa
empírica. A partir da noção de biopoder (FOUCAULT, 2005) e do diálogo com estudos em
Sociologia do Trabalho e Saúde Coletiva, darei continuidade ao debate iniciado no capítulo
anterior, buscando uma compreensão mais aprofundada sobre as violências dos novos
dispositivos de exploração da força de trabalho que agem sobre os corpos dos trabalhadores
escravizados e os distingue (por sua marcação de classe, raça, gênero) de outros estratos
sociais, criando hierarquias que desafiam sua própria condição de seres humanos, de modo a
justificar, para os infratores, seu tratamento indigno.
Nos itens 3.1 e 3.2., desdobro em dois eixos a análise do biopoder na exploração e
escravização dos trabalhadores. O primeiro deles é uma abordagem do trabalho escravo a
partir do corpo do trabalhador, isto é, a escravidão entendida em sua dimensão de atentado à
vida dos trabalhadores. Proponho, nesse primeiro tópico, que a saúde se torna, cada vez mais,
a seara das disputas entre capital e trabalho, a partir do momento em que o “deixar morrer”
substitui o poder de matar as populações dominadas.
O segundo eixo é um estudo sobre as discriminações que subjazem à escravidão
nas democracias modernas, em que as desigualdades passam a ser impostas por instrumentos
alheios ao direito. Nesse tópico, proponho uma abordagem ampla dos racismos (entrelaçando
raça, classe e gênero) que diferenciam a “vida digna” da “vida que não merece ser mantida”: a
vida do sujeito escravizado.
Após essas discussões, chegamos ao final de nosso estudo, que nada mais é do
que o retorno à hipótese central do trabalho à luz de todos os dados e reflexões aqui
produzidas: a relação entre liberdade formal e trabalho compulsório na contemporaneidade.
Retomando o tema dos indivíduos expropriados e livres para venderem sua força de trabalho,
que surgem com o advento das relações capitalistas, busco apontar as ambivalências da
escravização do sujeito livre de nossos tempos. A partir dos resultados da pesquisa empírica e
documental, será possível traçar algumas tendências atuais sobre as práticas de controle sobre
226
Para dar conta dessa transição entre a lógica de violência contida nos estudos de
Barrozo e um novo tipo de violência verificada nos anos mais recentes, utilizarei o conceito
de biopoder desenvolvido por Foucault. O biopoder é uma nova lógica de poder que,
diferentemente do regime da soberania (que o antecedeu), não consiste mais num “fazer
morrer e deixar viver” os súditos (que deviam a vida e a morte ao soberano), mas sim num
“fazer viver e deixa morrer” (FOUCAULT, 2005). Portanto, diferentemente do poder
negativo sobre a vida, que a limitava, restringia e dela se apropriava, o biopoder é destinado a
garantir a sobrevivência de uma população, a gerir a vida através da otimização de suas
forças. E, de maneira a deixar a população mais sadia, o biopoder vai estabelecer um corte
biológico entre o que deve viver e o que deve morrer, introduzindo o racismo nos mecanismos
de Estado (PELBART, 2009, p. 59).
Feitas essas considerações, proponho que entre o final do século XX e os
primeiros anos do século XXI, a violência do trabalho escravo em Mato Grosso transitou da
lógica do “matar” para a lógica do “deixar morrer”, fazendo com que a escravidão se tornasse
um problema cada vez mais afeto ao tema da saúde.
Além disso, no contexto da reestruturação produtiva, a descartabilidade, o abuso
da vulnerabilidade, a intensificação do trabalho e a flexibilização dos vínculos de
responsabilidade dão a tônica de uma nova forma de escravizar, que vai cada vez mais
interpelar o próprio trabalhador a vender parcelas crescentes de sua saúde nas negociações e
renegociações de cláusulas contratuais (escritas e não escritas).
De fato, no Brasil, notícias de mortes de trabalhadores por exaustão e por labor
em condições aviltantes, notadamente no corte de cana-de-açúcar, parecem indicar que o que
está em jogo no trabalho escravo por jornadas exaustivas e condições degradantes é a própria
vida dos trabalhadores. E, justamente, essas duas modalidades de trabalho escravo previstas
em nossa legislação, sobre as quais têm recaído as principais disputas conceituais recentes,
diferenciam-se das demais justamente por não dizerem respeito à liberdade de locomoção e
nem à imposição de um trabalho contra a vontade de quem o deve realizar.
As próximas páginas serão dedicadas a investigar a relação da saúde com o
trabalho escravo contemporâneo. Iniciamos com o estudo do discurso dos auditores-fiscais do
trabalho sobre o bem jurídico violado nos casos de trabalho escravo, para entender o lugar da
saúde, da liberdade e também da dignidade nesse universo. Em seguida, partiremos para uma
análise da implicação da saúde no trabalho escravo, através de entrevistas e da análise
qualitativa dos relatórios de fiscalização.
228
O desenrolar da pesquisa nos levou a repropor o debate, que ganha vigor entre os
operadores do direito, acerca de qual seria o bem jurídico tutelado pelo ordenamento ao
repudiar a prática de reduzir alguém a condição análoga a de escravo.
A liberdade é, inevitavelmente, o primeiro que nos vem à mente e, com efeito,
sobre a sua implicação no problema da escravidão não parece haver dúvidas no campo
jurídico. Porém, a liberdade foi recebendo abordagens diversas ao longo dos anos e o estudo
dessas mutações revela que sua acepção como mero “livre deslocamento” (a liberdade de ir e
vir) nunca foi suficiente para dar conta da escravidão contemporânea. Durante nossa pesquisa
documental, fomos nos deparando com discursos desenvolvidos pelos auditores-fiscais do
trabalho articulando outras acepções de liberdade, a exemplo da “liberdade de contratar” ou
do “direito do trabalhador de dispor livremente de seu próprio salário”.
Um dos primeiros casos de trabalho escravo encontrados em Mato Grosso já traz
uma dessas noções no texto de um dos autos de infração lavrados:
Esse entendimento de que a liberdade violada pelo trabalho escravo não se limita
à liberdade de ir e vir, abarcando a liberdade do próprio trabalhador de fazer escolhas
autodeterminadas (em razão de sua submissão a trabalho indigno) é também adotado pelo
STF. Nesse sentido, o órgão se posicionou em decisão de novembro de 2012, afirmando,
ainda, que o cerceamento da liberdade na contemporaneidade pode decorrer de
constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos:
132
Processo 00073-2002-811-10-00-6 RO, Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, 2ª Turma, julgado em
7.5.2003, Rel. Desembargador Ribamar Lima Júnior apud Lima, 2011, p. 205.
133
Neste julgado, a juíza faz a seguinte descrição do que ela chama de "trabalho escravo contemporâneo ou
neoescravidão": "[aquele trabalho] no qual o ser humano é levado ao extremo da exploração, tratado como bicho,
sem reconhecimento e concessão de direitos mínimos de sobrevivência digna e os que não aceitam são
simplesmente descartados, sabendo-se, inclusive, do descarte por assassinatos de crueldade inigualável"
(Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Processo n. 0061700-74.2008.5.15.0156, 2ª Turma, Rel. Juíza
Convocada Luciane Storel da Silva, publicado em 16.4.2010).
230
nesses casos, provavelmente o entendimento não manifesto da equipe também seria de que ao
menos um dos três bens jurídicos estaria sendo violado). Ou seja, por se tratar de uma
informação que não integra as exigências dos relatórios fiscais, o fato de nenhum bem jurídico
ser mencionado não apresenta relevância para o problema aqui colocado.
O que nos interessou foi entender, nos casos em que a equipe decidiu mencionar
os bens jurídicos violados no caso concreto, quais dos três (liberdade, dignidade e/ou
integridade) foram selecionados.
Para análise dos bens jurídicos mencionados na “fundamentação sobre a
constatação conclusiva de trabalho escravo”, foram consideradas as menções tanto no corpo e
conclusão do relatório quanto no auto de infração que descreve as condições análogas a de
escravo. A análise foi elaborada a partir de uma codificação minuciosa, que exibimos abaixo:
LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO, DE
CONTRATAR OU DE DISPOR DOS 31,11%
SALÁRIOS
134
Em 34 dos 180 relatórios estudados nesta tese, e equipe da fiscalização optou por não mencionar quais bens
jurídicos estavam sendo violados em suas conclusões e autos de infração.
233
135
Para a autora, em consonância com o posicionamento majoritário da doutrina jurídica brasileira estudada na
primeira parte do artigo, o “trabalho degradante” seria aquele "realizado em condições subumanas de labor,
ofensivas ao substrato mínimo dos Direitos Humanos: a dignidade da pessoa humana" (MIRAGLIA, 2011, p.
145).
235
Basta retomarmos aqui alguns dos resultados de nossa pesquisa quantitativa nos
relatórios de inspeção do trabalho, que apontaram que as vítimas de escravização encontradas
entre 1995 e 2013 em Mato Grosso: a) estavam sem nenhum acesso a água potável em
86,67% dos casos; b) não contavam com instalações sanitárias em 81,11% dos casos; c) não
tinham qualquer infraestrutura para tomar refeições em 93% dos casos; e d) estavam alojadas
em barracos improvisados ou casebres que não os protegiam nem das intempéries e animais
peçonhentos em 89,44% dos casos analisados.
Estes elementos mostram a centralidade da “integridade física” e da própria vida
na exploração do trabalho escravo nos dias de hoje. E, por conseguinte, a importância da
produção científica sobre trabalho escravo nas áreas da Saúde, bem como da inclusão do
enfoque da saúde, da vida e da integridade física nos debates jurídicos e sociológicos sobre a
exploração extrema que constitui o fenômeno da escravidão.
136
Em 2002, os transtornos mentais estavam atrás, em número absolutos, das neoplasias (1978 casos), doenças
do sistema nervoso (2169 casos), doenças dos olhos/anexos (5739 casos), doenças do ouvido e “apóf. Mast.”
(5437 casos), osteomusculares (42149 casos), lesões e envenenamento (311394 casos), causas externas (5354
casos), “fatores e contat.” (7548 casos), conforme dados apresentados por Pignati, Maciel e Rigoto (2013, p.
378).
238
(RIBEIRO, 2015, p. 35). No caso do agronegócio, devemos ainda apontar a importância dos
insumos químicos a partir do final do século XX.
Conforme explica Ribeiro, nesses enclaves produtivos mais mecânicos e
eletromecânicos, as doenças e acidentes típicos do trabalho continuam a ser banais.
No caso específico do agronegócio em território mato-grossense, Pignati e
Machado (2011) apontaram que há uma correlação positiva significativa entre os indicadores
de produtividade do agronegócio e os agravos à saúde dos trabalhadores e da população do
estado, a partir dos dados a seguir:
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
esforço produtivo
(ha/hab) 2,06 2,43 2,53 2,55 2,94 3,3 3,9 4,34 3,8 3,85 4,06 3,95 4,2
esforço produtivo 10,0 10,4 10,7 11,7 12,8 13,2 13,1 12,5 12,1 11,9 12,3 12,8
(gado/hab) 9,93 5 2 4 5 1 4 2 9 8 1 2 3
10,7 10,4 11,6 12,0
agrotóxicos (litros/ha) 9,61 9,48 9,14 9 8,84 8,76 8,5 8,2 9,62 1 5 6 6
23,0 23,1 22,9 25,9 28,8 33,1 35,6 36,5 41,2 42,4 46,0 50,6
agrotóxicos (litros/hab) 19,8 1 2 9 7 8 5 4 2 5 2 6 6
acidentes de 16,7 17,1 15,6 16,7 17,5 18,6 25,2 26,9 23,4
trabalho/1000 trab 5 16,6 9 2 5 9 18,8 1 19,1 7 28,2 6 2
intoxicações por
agrotóxico/10000 hab 0,38 0,34 0,4 0,64 0,71 0,82 0,86 0,66 0,35 0,32 0,65 0,62 0,71
acidentes animais
peçonhentos/10000 hab 0,36 0,6 0,8 1,19 2,59 3,34 2,99 3,24 2,84 7,24 7,47 8,16 8,41
internações 11,3 11,9 11,3 20,9 23,5 23,4 28,1 26,4 24,5 17,4 19,5
neoplasias/10000 hab 1 10,7 8 1 1 3 2 5 7 9 4 17,2 6
óbitos neoplasias/10000
hab 3,53 4,34 4,42 4,31 4,66 5,2 5,22 5,24 5,41 5,42 5,74 5,4 5,78
internações 19,9 19,3 15,1 13,1 14,6 11,5 13,3 14,3
malformações/1000 nasc 5,74 6,76 6,44 7,6 8 20,8 5 3 9 6 7 2 3
óbitos
malformações/1000 nasc 3,67 3,63 4,45 3,89 3,86 3,84 4,89 4,15 3,83 3,84 3,48 3,65 3,83
Tabela 12 – Matriz produtiva e agravos à saúde dos trabalhadores MT
Fonte: Pignati e Machado (2011)
fizeram nada por mim. Eu corri uma vez, não sou muito de correr. Chego
uma vez na sua casa, duas, três e você não atende... Não fui mais, larguei
mão. Graças a Deus que hoje estou viva, sem intriga nem rixa com eles.
A gente não sabe do dia de amanhã, ninguém diz ‘dessa água não bebo’,
porque tem gente que sai (...) e diz ‘não venho mais’. Eu igualmente, quando
saí daqui, falei que não voltava mais. Não dava 15 dias, estava de volta e,
hoje, moro [aqui]. Por isso eu digo: a gente não suja em cima o que bebe
embaixo, porque sempre precisa. É verdade.
O sindicalista Joaquim, que atua no estado de Mato Grosso há 20 anos, relata que
os trabalhadores fazem cada vez menos denúncias e que muitos acabam se sujeitando a
condições extremas de trabalho por não terem alternativas ou por ficarem iludidos de que irão
receber um bom salário. Joaquim conta que em sua região há um uso elevadíssimo de
agrotóxicos adoentando os trabalhadores, além de persistirem más condições de alojamento,
vivência e trabalho. Citou, ainda, as jornadas exaustivas e o fato de várias empresas estarem
criando banco de horas sem acordo coletivo. Em suas palavras: “A jornada é exaustiva e os
trabalhadores ficam iludidos pensando ‘ah, eu vou ganhar mais’, mas estão exaustos, parecem
noiados”.
O depoimento de Joaquim aponta, ainda, a tendência de agravamento das
situações descritas a partir das recentes flexibilizações na legislação trabalhista num cenário
de desemprego crescente:
E a auditora prossegue sua fala sobre a liberdade: “nós não libertamos ninguém, a
liberdade que damos é provisória, porque só é livre quando tem aquele saldo de salários para
gastar. Acabou, volta para o ciclo. Então, o que liberta? Cidadania, essas coisas”.
O mesmo trabalhador esclarece: “Não é o caso de todos, mas tem muito patrão
que não quer saber do funcionário, quer saber do trabalho do funcionário, do serviço que ele
faz. Se no dia de amanhã não fizer aquele serviço, já não me serve”.
Num dos relatórios analisados nesta pesquisa há inclusive o caso de um
trabalhador que sofreu agressão do empregador em razão de ter contraído catapora (Relatório
de Fiscalização 2003, cód. W). Apesar de casos de agressão física serem hoje minoritários, a
tônica permanece a mesma: se o trabalhador não estiver mais sadio, é descartado ou
penalizado. Entretanto, é no próprio ambiente de trabalho que, muitas vezes, os trabalhadores
adoecem.
À exploração que causa acidentes e doenças, sobrepõe-se outra exploração: a
negação do atendimento médico. Nos relatórios de trabalho escravo em Mato Grosso, são
comuns situações como a do seguinte depoimento:
Eu já fui enrolado não uma vez não, eu sou vítima de fazenda. Estou
cansado. A gente que não tem no bolso, a gente só vive angustiado, a gente
não tem nem prazer de conversar com as pessoas. Só vive com aquela coisa
ruim na cabeça, de tanto preocupado, de tanto que a gente trabalha, de tanto
que a gente sofre e não tem nada. [...] Então por isso que vim procurar
autoridade, porque já estou cansado. Quero voltar pra minha casa. Não quero
nem saber dessas fazendas. Não vou mais trabalhar em fazendas, só trabalho
perto da minha casa, ganhando mais pouco mas tenho conforto, não vivo
perturbado igual eu vivo, desse jeito, parecendo um mendigo, minha família
lá e eu igual a um mendigo, trabalhando todo dia (Relatório de Inspeção,
2001, cód. ED, p. 8).
que veio para o Mato Grosso porque no Maranhão não tem serviço; que os
trabalhadores sempre acharam que estavam sofrendo na Fazenda (...), mas
não queriam voltar ao Maranhão porque lá não tem trabalho (Relatório de
Inspeção 2009, cód. EL, p. 75).
termos do relatório, “um dos mais produtivos cortadores, cuja filha de dezesseis anos parou há
quatro meses de falar. Há suspeitas de que a situação de penúria, produto da falta de
pagamento, tenha afetado a adolescente psicologicamente” (Relatório de Inspeção 2009, cód.
GB, p. 60).
Uma das queixas mais frequentes é a falta de condições mínimas que possibilitem
o repouso entre uma jornada e outra. É o que se lê em passagens como as abaixo:
que dentro do barraco de dia era muito quente e de noite muito frio; que
quando ventava muito os trabalhadores não conseguiam dormir por causa do
barulho da lona batendo no barraco; que quando chovia a água corria por
dentro dos barracos (Relatório de Inspeção 2009, cód. EL, p. 27).
QUE o lugar onde mora foi disponibilizado pelo Sr. Marco [gerente dos
seringueiros]; QUE não consegue dormir em razão do ataque de morcegos;
QUE as paredes são abertas (Relatório de Inspeção 2009, cód. BW, p. 13).
era impossível dormir com o barulho do gerador ligado a partir das 3 horas
da manhã (Relatório de Inspeção 2003, cód. CL, p. 18).
Já em outra ação fiscal, as noites mal dormidas revelam seu duplo aspecto:
ambiental e psicológico.
137
Ver Foucault (2005) e Agamben (2007).
249
Conforme explica Pietro Basso, “a interpretação racial das relações entre homens
e entre povos é coisa moderna. Da Europa moderna e burguesa. Mas os elementos dos quais
se compõe são em certa medida herdados do mundo antigo e da Idade Média” (2000, p. 23).
Assim, o racismo tal qual o conhecemos origina-se na modernidade da Europa com seu
projeto colonizador. O que eram até então discriminações esparsas com base em atributos
físicos, erige-se pela primeira vez como lógica de todo um sistema social. É o racismo como
ideologia totalizante que fornece a justificativa a sustentar por séculos o colonialismo, o
tráfico de escravos, o trabalho forçado e, mais adiante, também o “trabalho livre e
constrangido” do proletariado (BASSO, 2000, p. 66).
Trata-se de uma relação de dominação e de legitimação dessa mesma dominação:
que definia os escravos negros como máquinas animais com aparência humana e os
trabalhadores rurais e urbanos de seu país como “animais bípedes”, “máquinas de trabalho”
(2000, p. 66).
O século XIX, que foi o século da abolição dos regimes escravistas nas colônias
da América, foi também o século em que se consolidou a construção do discurso racista (em
curso desde o século XVIII) que legitimou escravidões e genocídios durante e depois do
colonialismo até os dias de hoje. Foi o período em que, ao lado do racismo institucional,
desenvolveu-se de forma mais completa o racismo doutrinário (a exemplo da antropologia de
Lombroso) e reforçou-se mais ostensivamente o racismo popular (os zoológicos humanos139
proliferam-se na Europa como fenômeno de massa) (PEROCCO, 2018).
Simultaneamente à construção dos ideários iluministas que, calcados num forte
antropocentrismo, concebem a dignidade humana ao estabelecer a superioridade da
humanidade em relação ao restante dos seres vivos, constroem-se discursos cada vez mais
cientificizados que classificam as populações em superiores e inferiores, em humanas e não
humanas (ou menos humanas), detentoras ou não de espírito, de alma, de civilidade
(civilizadas ou primitivas) e estabelecem entre elas hierarquias, justificando, assim, o domínio
e escravização de uns sobre outros140.
Neste sentido é que o racismo como sistema de crença que anima os mecanismos
de dominação operantes com o nascimento da biopolítica é apresentado por Michel Foucault.
Na última aula do curso Em defesa da sociedade, ele levanta a seguinte questão a respeito do
biopoder: “Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar
morrer?” (2005, p. 304). A resposta encontrada pelo autor é que há um novo funcionamento
do racismo, o qual teria sido inserido nos mecanismos de Estado justamente pela emergência
138
“Nel corso dell’Ottocento questa inferiorizzazioine dei lavoratori salariati si acresce ulteriormente di tinte
biológico-genetiche, con l’accento che cade per solito sulla naturale inferiorità intelletctuale degli appartenenti
alla classe operaia”.
139
Os zoológicos humanos proliferaram-se a partir da década de 1870 até aproximadamente 1930, quando
passam a ser substituídos por outros meios de pedagogia e comunicação de massa, a exemplo dos filmes western
de caça aos índios (Perocco, 2018).
140
A coexistência de sentimentos humanitários e racistas na história da escravidão foi apontada por Bush: “the
sugar industry liberated itself from bonded labour, allowing imperial and colonial governments, under pressure
from humanitarian and racist sentiments, the opportunity to abolish indentured service without causing too much
economic harm” (BUSH, 2000, p. 208).
254
Na acepção dada por Foucault, o racismo ganha contornos amplos, dando conta da
discriminação contra diversos grupos populacionais baseada em diferentes categorizações,
como gênero, classe, território, idade e raça propriamente dita – como presente nos estudos de
Pietro Basso e Fabio Perocco –, mas também de todas as populações que ele abrange nos
estudos sobre “os anormais”. Jessé Souza, por sua vez, ao utilizar o termo racismo “não
apenas no seu sentido mais restrito de preconceito fenotípico ou racial”, explica que o racismo
abrange
O estudo acima mostra que o sertanejo era considerado um ser humano inferior
pelas classes dominantes e até pela própria igreja, que não o acolhia: “A Igreja parece ter
adotado a atitude da classe dominante, que considera o sertanejo um sub-homem, sem
direitos. Por analogia, um cristão de segunda classe” (REIS, 1970, apud CASALDÁLIGA,
1971, p. 6).
O racismo do trabalho escravo contemporâneo se dá através da submissão de
certos trabalhadores (não todos) a condições degradantes e, por fim, através da naturalização
dessa mesma degradação. Um juiz entrevistado aponta que a “naturalização do trabalho
escravo” é uma das principais teses jurisprudenciais utilizadas em conflitos que têm
desterritorializado populações tradicionais com o avanço do agronegócio sobre a Amazônia,
expondo estes novos trabalhadores a uma exacerbada exploração e ao risco de não
sobreviverem nas entressafras. Segundo ele, um grande percentual dos magistrados adota a
tese da “naturalização” (que, ao lado da tese da “ausência de provas”, seria a principal linha
argumentativa empregada no Judiciário para descaracterizar situações de escravidão
contemporânea na região). Em suas palavras:
O “ser gente” hoje também passa pelo consumo. Muitas vítimas de trabalho
escravo tornam-se vulneráveis não só por correrem risco de vida em termos materiais mais
básicos que comprometem sua sobrevida, mas porque o que está em risco é sua vida social,
seu pertencimento, “ser alguém” aceito e valorizado pela comunidade. A miséria material
aliada à exclusão social em termos mais amplos (reconhecimento) produzem as vítimas
perfeitas para as engrenagens de exploração contemporâneas, em que são apresentadas ofertas
de trabalho que poderiam, em tese, prover a remuneração num valor e tempo compatíveis a
uma promessa de inclusão (via consumo) que nunca lhe fora feita.
Numa sociedade extremamente desigual em que a inclusão do excluído é uma
possibilidade remota, o sonho de obtenção de reconhecimento social através do consumo de
certos bens valorizados e cobiçados ganha força. E até a propensão a se acreditar num
aliciador que promete uma aventura de “ganho fácil”, para quem todo o ganho não fora só
difícil, mas sim impossível.
O racismo atual, que tem facetas culturais sem abandonar o reino do biológico
(BASSO, 2000, PEROCCO, 2018) é o dispositivo que opera (e legitima no plano das
práticas) a desigualdade extremada do trabalho escravo contemporâneo. Os estudos apontam
258
141
O testemunho de Adauta assim descreve os sertanejos: “Acostumados com a aspereza da vida agreste,
desprezados pela esfera dos altos poderes, ludibriados na sua boa fé de gente simples, eles veem os seus dias, à
semelhança das nuvens negras, sempre anunciando um mau tempo” (CASALDÁLIGA, 1971, p. 4).
259
Indiferentes a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só
existem dois direitos: o de nascer e o de morrer. [...] Desfaz as suas
profundas mágoas entre um e outro copo de cachaça, ou num cigarro de
palha, cujas baforadas se encarregam de levar bem longe a infelicidade que
ele tem bem perto (REIS, 1970, apud CASALDÁLIGA, 1971, p. 4).
* igualdade formal a quem oferece seu trabalho com a mesma * discriminação (civil, social, política)
curva de oferta
internacionais, fator também muito presente nas relações dos trabalhadores submetidos a
trabalho escravo de que trata minha pesquisa.
As diferenciações entre trabalho standard e trabalho dos migrantes internacionais
são geralmente explicadas pela diferença basilar entre trabalhador nacional e trabalhador
estrangeiro, perpassando o próprio alcance do direito do trabalho. A dificuldade apontada por
Moulier-Boutang na oposição trabalho externo/trabalho interno é justamente que
feitas de plástico preto, algumas sem proteção lateral e outras sem nenhuma ventilação”
(Relatório de Inspeção 2003, cód. FP, p. 9).
Já em inspeção realizada em 2004, a equipe pontuou: “Diferentemente dos
‘peões’, os empregados mais ‘graduados’ são tratados como ‘gente’” (Relatório de Inspeção
2004, cód. FY, p. 33).
Em caso constatado em 2005 numa madeireira, o GEFM relatou que "somente os
funcionários ligados a exportação e à compra de madeira tinham seus salários pagos"
(Relatório de Inspeção 2005, cód. AI, p. 8).
Já em outra ação fiscal, verificou-se discriminação entre trabalhadores fixos, que
podiam usar banheiro de alvenaria, e os do roço, que não podiam (Relatório de Inspeção
2007, cód. CF, p. 21).
Em 2008, foi constatada discriminação no tratamento entre os empregados da
tomadora e os contratados através de empreiteiro (Relatório de Inspeção 2008, cód. AP, p.
12).
Em outra operação no mesmo ano de 2008, a equipe de fiscalização relatou a
seguinte situação discriminatória no tocante ao local das refeições:
142
Os dados estão disponíveis no endereço https://observatorioescravo.mpt.mp.br/ Conforme informações
extraídas do próprio sítio, o Observatório Digital do Trabalho Escravo “foi desenvolvido e é mantido pelo
Ministério Público do Trabalho (MPT) em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no
âmbito do fórum Smartlab de Trabalho Decente. Foram utilizados bancos de dados governamentais de várias
fontes, incluindo registros administrativos, dados censitários, dados domiciliares e dados do Sistema de
Indicadores Municipais de Trabalho Decente da OIT”.
143
Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf.
144
Os dados utilizados no estudo provêm do Sistema de Informações de Mortalidade.
145
No referido estudo, a categoria “negra” é a somatória das subcategorias “preta” e “parda”.
146
A “Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de Classificação de
Cor ou Raça” (PCERP) foi realizada em 2008 pelo IBGE, com amostra de cerca de 15 mil domicílios, no
Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal.
267
Trabalho escravo é você ser forçado pra trabalhar, né, pelos patrões, e...
humilhado, porque nós somos pobre, humilhado por isso, isso pra mim é
trabalho escravo.... A gente não tem aquela hora, aquele limite, tem que
passar da hora.... Pra mim é isso.
Essas reflexões nos aproximam do tema da formação da “ralé”, tratado por Jessé
Souza em seu livro A construção social da subcidadania. Segundo o autor, a “ralé” é um tipo
de ser humano que se espalhou por todo território nacional, representando 2/3 da população
no século XIX. São seres humanos considerados dispensáveis e que sobrevivem nos
interstícios e ocupações marginais da ordem produtiva exercendo funções não essenciais
(SOUZA, 2003, p. 122). O não reconhecimento social da ralé assemelha-se ao que sofria o
escravo tradicional, segundo Jessé Souza (2003, p. 122):
relatórios analisados), pelo mínimo necessário à reprodução da força de trabalho, limite esse
que é ultrapassado diversas vezes em nome da máxima economia de recursos financeiros,
ocasionando o adoecimento dos trabalhadores e, mais além, a continuidade da exploração do
trabalhador, ainda que enfermo.
dados oficiais e construir novos parâmetros analíticos com base em dados de suas próprias
pesquisas empíricas quantitativas e qualitativas.
O mesmo ocorre com o trabalho escravo, dado o grande fosso que separa o
volume de casos de escravidão contemporânea e o volume de casos denunciados, flagrados e
encaminhados pelas instituições públicas. Neste campo, a pesquisa empírica também vem
auxiliando na identificação das discrepâncias entre as estatísticas e a realidade, o que é
fundamental na interpretação dos dados oficiais.
Assim, a ausência eloquente dos trabalhadores acidentados e doentes nos números
oficiais escancara a ineficácia dos direitos sociais, a falta de responsabilização jurídica dos
empregadores pelas doenças e acidentes do trabalho, a fragilidade dos instrumentos de gestão
da saúde e segurança do trabalho e demonstra, por fim, a própria invisibilização dos
trabalhadores como engrenagem necessária de um sistema que os consome, descarta e
extermina.
Neste aspecto, analisar os Relatórios de Inspeção do GEFM, fonte dos dados que
compõem a estatística oficial do Ministério do Trabalho sobre trabalho escravo, é revelador.
De fato, na documentação da fiscalização do trabalho podemos identificar todos os
trabalhadores contabilizados nos números oficiais sobre trabalho escravo. Porém, a análise
documental confronta-nos, para além dessa presença, com significativas ausências. É o caso
das mulheres, que figuram nas estatísticas brasileiras como aproximadamente 5% das vítimas
de trabalho escravo em Mato Grosso e no Brasil de 1998 a 2013. É o caso das pessoas que são
escravizadas e traficadas para exploração sexual, que não integram as estatísticas nacionais. É
o caso de trabalhadores que morreram de acidentes e doenças do trabalho sem aparecer nos
dados oficiais e sem que se documentasse sua identidade e a causa de sua morte. E, como
esses casos, há tantos outros.
A descartabilidade e invisibilidade dessas trabalhadoras e trabalhadores chama a
atenção na análise dos Relatórios de Inspeção do Trabalho. Um caso emblemático ocorreu
durante operação de fiscalização de trabalho escravo de 1999, em que a equipe de auditores
do Ministério do Trabalho resgatou 140 trabalhadores sob condição análoga à de escravos na
atividade de desmatamento, com salário retido havia 5 meses e submetidos ao truck system.
Segundo esse relatório, durante a fiscalização, os auditores constataram a morte no trabalho
como uma realidade. Assim, em seu relatório, a equipe de fiscalização consignou a denúncia
dos trabalhadores de que “durante a atividade de desmatamento, ocorreram dois acidentes
fatais e diversos outros de menor gravidade” (Relatório de Fiscalização, 1999, p. 6).
273
condição de mera força de trabalho descartável –, mas ignorou seu nome, sua origem, suas
relações de parentesco, o motivo real de sua morte, sua história de explorações e resistências,
sua humanidade.
São populações ignoradas, exterminadas, pessoas mortas sem causa declarada
onde ninguém costuma morrer por acaso.
Figueira também relata em sua pesquisa o caso dos tantos trabalhadores
desaparecidos, por terem perdido o contato de suas famílias, ou por terem morrido de doença,
acidente ou mesmo assassinados.
Alguns morrem e os que encontram seu corpo, presenciam sua morte ou são
informados dela podem não saber sobre seu nome, ou sabem apenas o
prenome, ou nada além de um apelido. A família, não sendo informada da
morte, persistirá com a dúvida sobre a razão de sua ausência. De alguns
existe a foto e a história da fuga e do assassinato. De outros, nem sequer a
foto, só o testemunho de um dos sobreviventes. São homens que não só
foram mortos fisicamente, mas tiveram uma outra morte, a simbólica,
expressa na ocultação de suas identidades, quando não, dos próprios corpos
(FIGUEIRA, 2004, p. 289).
147
“[...] em primeiro lugar, em todas as sociedades escravistas o escravo era considerado uma pessoa degradada;
em segundo, a honra do senhor era ressaltada pela sujeição de seu escravo; em terceiro, onde quer que a
escravidão tenha se tornado muito importante estruturalmente, o tom de toda a cultura dos donos de escravos
tendeu a tornar-se altamente honorífico” (PATTERSON, 1982, p. 79)
275
apresentam outra realidade. Segundo o estudo, 55% das vítimas de trabalho escravo no mundo
são mulheres, isto é, 11,4 milhões em contraposição a 9,5 milhões de homens escravizados.
Interessante notar que, segundo o mesmo estudo, a escravização atinge primordialmente as
mulheres no campo da exploração sexual, em que elas representam 98% das vítimas, sendo
que 74% das pessoas escravizadas para fins sexuais são de país estrangeiro. Já na exploração
laboral na economia privada, 40% das vítimas seriam mulheres e 60%, homens.
As estimativas publicadas pela OIT em 2016 apontam uma participação ainda
maior das mulheres, que representariam 71% do total estimado de vítimas de escravidão no
mundo. A distribuição por gênero das vítimas de diferentes modalidades de escravidão pode
ser visualizada no quadro abaixo, que foi extraído do referido estudo:
do alcance das autoridades públicas ou mesmo que têm a percepção de que não merecem
qualquer tipo de cuidado.
Durante fiscalização trabalhista numa casa de prostituição, uma prostituta me
disse que considerava importante a fiscalização entrar lá, porque o dono do estabelecimento
iria ver que não pode fazer o que quiser com as prostitutas. Segundo ela, nunca qualquer
órgão público havia visitado o local e isso lhes dava uma sensação de insegurança.
Hoje, o “isolamento geográfico” das fazendas nos rincões do Brasil vai
diminuindo com novas estradas e principalmente com o avanço tecnológico dos meios de
comunicação. Os trabalhadores resgatados numa madeireira no ano 2012 não precisaram fugir
da fazenda para denunciá-la ao Ministério do Trabalho: da própria mata, eles fizeram ligações
escondidas para a Divisão de Erradicação de Trabalho Escravo - DETRAE, através de um
telefone celular e relataram onde estavam e a que situações estavam submetidos.
Porém, há outros rincões e isolamentos mais sutis a serem descobertos pelos
pesquisadores e pelas autoridades públicas que atuam no enfrentamento do trabalho escravo
contemporâneo.
Uma das mais importantes facetas do trabalho escravo contemporâneo no Brasil é
o isolamento das mulheres em lugares de exploração (como na exploração sexual e no
trabalho doméstico) aos quais foram submetidas ao longo da história e onde, até hoje, não
conseguem ser vistas.
Enquanto a exploração sexual representa 22% do total de pessoas escravizadas em
todo o globo, segundo estudo da OIT (2012, p. 13-4), a escravização para exploração sexual é
praticamente ausente nas estatísticas brasileiras. No estado de Mato Grosso, entre 2003 e 2013
apenas 3,7% das vítimas de trabalho escravo constatadas pelo GEFM eram de sexo feminino.
Além disso, de 1995 até 2013, houve apenas um caso de resgate de trabalhadoras escravizadas
na indústria do sexo no estado, num universo de 180 operações aqui analisadas.
A situação é similar no tocante à escravização de trabalhadores domésticos, que
quase não integram as estatísticas de trabalho escravo do Brasil.
Em seu livro New Slavery: a reference handbook, Kevin Bales reúne documentos
e testemunhos sobre as diferentes modalidades de escravidão praticadas na atualidade. A
escravização de trabalhadores que executam serviços domésticos é mencionada como
principal modalidade de escravização debelada nos Estados Unidos e uma das formas de
escravidão mais comuns em todo o globo (BALES, 2004, p. 152).
Bales apresenta, no capítulo sobre escravidão doméstica, o depoimento de Louis,
um ativista que atua na libertação de escravos, sobre Deborah, uma menina levada de
278
Camarões para os EUA com promessas enganosas de estudo e que na prática foi submetida a
trabalho forçado, sofrendo violência física e psíquica e não recebendo salário ou acesso à
educação. O pesquisador mostra que Deborah não tinha acesso a qualquer ajuda, pois
apanhava da família que a escravizava se tentasse usar o telefone e tudo o que tentava
escrever lhe era retirado. Como aponta Bales, ela estava “num país estranho, trancada numa
casa estranha, longe de casa”. O isolamento da menina em plena zona urbana de uma cidade
dos EUA foi descrito de forma emblemática no testemunho de Louis: “Era como se ela
estivesse perdida no meio de uma floresta [...], ela estava completamente isolada” (BALES,
2004, p. 154, tradução nossa).
Num mundo em que é possível um trabalhador fazer uma denúncia para a
DETRAE através de um celular nos rincões de uma fazenda em Mato Grosso, ao descobrir
um local escondido dos patrões e com sinal telefônico no meio do mato, também é possível
uma menina ser escravizada numa cidade repleta de pessoas, instituições e meios de
comunicação, mas permanecer completamente isolada, tamanho o controle e a violência
sofridos.
Além dos componentes de gênero da exploração da mão de obra, o número baixo
de mulheres nas estatísticas também reflete a exclusão das mulheres do próprio mercado de
trabalho, outra faceta da dominação sofrida pelas mulheres.
Para dar conta dessas importantes questões, uma mera ressalva metodológica
sobre os dados analisados não nos pareceu suficiente. Assim, procurei dados de outras fontes
e recortes analíticos para a base de dados da própria Inspeção do Trabalho que pudessem me
dar pistas sobre essa aparente lacuna. A minha hipótese era a seguinte: a frequência das
vítimas mulheres nos dados oficiais da Inspeção do Trabalho está abaixo de sua
representatividade efetiva no total dos casos de escravidão contemporânea no Brasil, pelos
seguintes motivos: a) alta incidência de vítimas mulheres escravizadas em atividades como o
trabalho doméstico e o serviço sexual, em que outras instituições (a exemplo das polícias)
atuam, sem necessariamente incluir ciência e intervenção da inspeção do trabalho; b) as
práticas de exploração sexual nem sempre são tipificadas como trabalho escravo (neste caso,
investigar os crimes de tráfico de pessoas nos daria alguma pista); c) maior dificuldade de
279
denunciar as vítimas isoladas no trabalho escravo doméstico do que dos trabalhadores que
trabalham em estabelecimentos não residenciais e normalmente em grupos; d) discriminação
contra as mulheres, tanto nos ambientes em que predomina a mão de obra masculina, quanto
perante as próprias instituições públicas; e) o trabalho escravo atrelado à exploração sexual
muitas vezes está inserido numa rede internacional de tráfico, de modo que muitas vítimas
residentes no Brasil são traficadas para serem exploradas no exterior, dificultando seu
atendimento pelos órgãos nacionais.
Com base nesta linha de análise, coletei dados junto à Secretaria Estadual de
Segurança Pública de Mato Grosso e realizei entrevistas com membros do CETRAP.
Os dados obtidos sobre o tráfico de pessoas apresentam um limite temporal de
2012 a 2018148 e, ainda que não coincidam com o período aqui analisado, oferecem um
contraponto importante para situarmos o âmbito de nossa pesquisa. Afinal, o objetivo deste
levantamento de informações não foi observar variações no tempo das ocorrências de tráfico
de pessoas, mas sim entender, dentro do universo de tais ocorrências, qual tem sido a
representatividade das vítimas de sexo não-masculino. Os gráficos abaixo apresentam os
dados da SESP-MT:
sexo feminino
sexo masculino
não informado
92%
148
Os dados de 2018 abrangem o período de 1/01/2018 a 25/10/2018.
280
29%
Tráfico interno de pessoas
4%
4% 8% 16%
Menor de 11 anos
De 12 a 17 anos
28%
De 18 a 24 anos
40% De 25 a 29 anos
De 30 a 34 anos
Não informado
ilustrar a necessidade de tomarmos a base de dados da Inspeção do Trabalho pelo que ela
realmente é.
Assim, tomando os únicos dois anos comuns a ambas as bases (2012 e 2013),
temos:
QUE é seringueira na fazenda [...]; QUE veio junto com seu esposo; QUE
corta e colhe a seringa; QUE trabalha de 6h às 10h30 e das 13h30 até 17h
[...]; QUE trabalha tanto quanto o marido; [...] QUE não é registrada; QUE
não foi registrada mesmo após a ação da fiscalização; QUE não sabe dizer
porque não foi registrada; QUE não recebe nada pelo seu trabalho; QUE
apenas o marido recebe (Depoimento - trechos selecionados pelo GEFM,
Relatório de Fiscalização 2009, cód. BW, Anexo XV).
da década de 1990 vai nesse sentido: “O trabalho das mulheres era só de cozinheira e elas não
recebiam nada, era embutido no trabalho deles [trabalhadores homens]. A partir da Móvel que
começamos a registrar as empregadas, as cozinheiras”.
Em ação mais recente, de 2010, os auditores-fiscais do trabalho relataram que a
cozinheira não recebia salário do empregador: os próprios trabalhadores é que pagavam 30
reais a ela cada um, a cada quinze dias (Relatório de Inspeção 2010, cód. AV).
Assim como na especificidade da exploração da mulher escravizada nos Estados
Unidos do século XIX, tão bem identificada por Angela Davis, a discriminação de gênero na
escravização contemporânea também obedece à conveniência que sobrepõe gênero, raça e
classe:
Em sua pesquisa realizada no Pará e Mato Grosso, Figueira (2004, p. 303) conclui
que:
149
Apesar do enfoque aqui adotado em razão dos objetivos específicos desta pesquisa, as distinções jurídicas
entre os institutos consistem num importante debate social e que ganha fôlego nos estudos do direito. Conforme
ressaltam Marcelino e Cavalcante: “Evidentemente, do ponto de vista jurídico crítico, faz todo o sentido lutar
contra as formas mais abjetas e precárias de terceirização, nas quais nem um vestígio sequer de especialização
pode ser encontrado. Porém não há processo de busca de especialização nessa fase atual do capitalismo que
também não se paute pela redução de custos, isto é, que também não resulte numa tendência de precarização e
quebra de resistência dos trabalhadores. Daí a necessidade teórica, mas também política, de se problematizar o
que se chama de intermediação de mão de obra e encarar a terceirização de forma ampla” (2012, p. 339-340).
286
o liame jurídico que os une deve ser regido pelo direito do trabalho, a
começar pela Consolidação das Leis do Trabalho. Entretanto, para não
cumprir suas obrigações trabalhistas em relação aos trabalhadores, o
empregador, ardilosamente, induz os obreiros a acreditarem – pessoas
simples, crédulas, sem instrução e ingênuas – que não são empregados; que
são empreiteiros. Com este ardil o empregador “transfere” a regência legal
dos contratos para o Direito Civil que, no caso, nenhuma proteção oferece ao
trabalhador. Desta forma o mau patrão mal paga os salários, e quando o faz é
sob a forma de “empreitas” e ainda desencoraja os trabalhadores de
reivindicarem seus direitos judicialmente, pois acreditam que não são
empregados.
287
O declarante informou que seu grupo foi avisado pelo “gato” de que não
adiantava reclamar nem procurar a Justiça, porque a fazenda mantinha um
pessoal de frente para combater a Justiça e ela não ir pro fundo da Fazenda e
que se alguém encontrar um fiscal tem que dizer [que] é registrado. Esse
aviso claro atesta a coação exercida sobre os trabalhadores, que não têm
acesso à sede, evitando com isso, encontrar o proprietário, estratégia
utilizada pelos produtores para não ser reconhecido em juízo e firmar a
impressão de que desconhece a exploração praticada nos seus domínios
(Relatório de Inspeção, 2001, cód. ED, p. 8).
7% INFORMAÇÕES
67% INCONCLUSIVAS
SUBCONTRATAÇÃO E/OU
INTERMEDIAÇÃO
Toda vez que uma empresa resolve terceirizar, o que ela faz é transferir para
outra os riscos e parte dos custos com a contratação da força de trabalho (os
trabalhadores, os terceiros). Isso porque o seu próprio contrato deixa de ser
trabalhista (empresa versus trabalhador) e passa a ser comercial ou civil
(empresa versus empresa). Tal acontece se a empresa subcontratada é ou não
especialista na função, se o contrato dela com seus trabalhadores é ou não
por tempo indeterminado e se a relação entre contratante (ou tomadora) e
subcontratada (ou terceira) é ou não duradoura (MARCELINO;
CAVALCANTE, 2012).
da empresa (refeitórios, vestiários etc.), são submetidos jornadas de trabalho mais extensas e
intensivas, muitas vezes são revistados na entrada e saída da empresa, enfrentam um grau de
rotatividade maior em seus postos de trabalho, recebem salários mais rebaixados e são mais
expostos a fatores de risco a sua saúde no ambiente de trabalho.
Em seu estudo sobre a precarização e terceirização do trabalho na indústria da
Honda instalada no Brasil, no contexto da reestruturação produtiva, Paula Marcelino (2006, p.
103) também aponta a discriminação como uma aliada do capital na divisão entre os
trabalhadores. Segundo a pesquisadora, “Perdas sucessivas de direitos e divisão entre os
trabalhadores são processos que se alimentam um do outro”150.
Por outro lado, as estratégias que as instituições públicas responsáveis pela
política de erradicação do trabalho escravo no Brasil vêm adotando, em casos cada vez mais
frequentes, o enfoque das cadeias produtivas, na responsabilização pelo ilícito de submeter
trabalhadores a trabalho análogo a de escravo.
A responsabilidade da empresa tomadora pela gestão da saúde e segurança de
todos os trabalhadores que atuem em seu ambiente de trabalho também tem servido de
amparo para o GEFM identificar o responsável pelo ilícito, levando-se em conta a
inidoneidade financeira de pessoas jurídicas utilizadas para reduzir custos de produção às
expensas dos direitos dos trabalhadores através de terceirizações fraudulentas.
Trata-se de tentativas de lançar mão da responsabilidade jurídica para compensar
a erosão da responsabilidade moral produzida pelo que Bauman (1998) chamou de produção
social da distância. Em Modernidade e holocausto, o autor demonstra justamente que:
150
No estudo de Paula Marcelino na Honda, a quase totalidade dos trabalhadores terceirizados da logística que
foram entrevistados identificou a discriminação como o efeito mais perverso da terceirização do setor. Desta
forma, “o que a Honda consegue com a terceirização de atividades não se restringe, contudo, à redução de
custos. Os trabalhadores que já estavam isolados pela forma de produção e cooptação nas indústrias se dividem
ainda mais com a terceirização. Um jogo intrincado de gratificações e punições busca tornar o trabalhador um
agente cooperativo com os interesses da empresa. Assim, o capital combina, ofensivamente, coerção, força e
consentimento (Gramsci, 1989). Nesse processo, a discriminação joga um papel essencial” (2006, p. 103).
290
3.3. Ser e não ser livre: dinâmicas de mobilização e imobilização dos trabalhadores
Um dos maiores achados empíricos desta pesquisa tem sido o resgate, no discurso
dos trabalhadores que viveram situações de escravidão, da contradição inerente à exploração
da força de trabalho sob o contratualismo fundado na extração da mais-valia. A contradição,
que a relação contratual esconde, é revelada com clareza pela história oral.
Segundo Miaille (2005, p. 186), a lógica dialética, utilizada em lugar da lógica
formal própria do mundo jurídico, pode produzir o efeito corrosivo de mostrar “a
contingência do direito e o conteúdo real das suas disposições”.
“Você se sente livre e não é livre”. Foi com essas palavras que Luís, um
trabalhador que já havia passado por duas situações de trabalho escravo, descreveu-me a
ambiguidade das situações que tinha vivido. E explicou: Porque se você sai daqui, você tá
saindo daquele sofrimento, de tudo... corre o risco de morrer na porta da sede, entendeu?”.
No caso dele, a liberdade de ir e vir era restrita, pois sua vida estaria sob ameaça caso
decidisse contrariar o patrão e abandonar a fazenda.
No relato já citado de Arthur, outro trabalhador que vivenciou situação de
servidão por dívida e condições extenuantes e degradantes de trabalho, mas sem ter sofrido
ameaças de morte ou violência física direta, a contradição de ser e não ser livre também
apareceu no aspecto econômico da coerção:
A escravidão não é só de corrente, não é só 'se você não trabalhar você vai
morrer hoje', não é só o preso que tem que trabalhar. Mesmo estando soltos
estamos presos, estamos presos no trabalho, porque se a gente sair vai
morrer de fome. A gente é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições para
não deixar a família passar fome.
Lidar com o trabalho escravo é lidar com uma cultura patronal de quinhentos
anos no Brasil. Até hoje eles lidam com o trabalhador como algo
descartável, como um objeto, um mero insumo no processo produtivo, não
como sujeitos de direito.
151
Foucault (2008, p. 61) aponta que, diferentemente do sistema legal (soberania) e dos mecanismos
disciplinares, os dispositivos de segurança não estabelecem proibições e obrigatoriedades. Para o autor, “a lei
proíbe, a disciplina prescreve”, mas a segurança nem proíbe nem prescreve: ela responde a uma realidade de
forma a anular, limitar, frear, a regular essa mesma realidade.
294
melhores chances de garantir o não perecimento de sua vida e de seus entes queridos. Tanto
que não é raro encontrar trabalhadores submetidos a relações escravizantes dizendo que
trabalhariam para o mesmo empregador de novo pois não têm planos de futuro (Relatório de
Inspeção 2006, cód. CZ, p. 31-2).
Kelly, cortadora de cana que entrevistei, disse que as pessoas que faziam horas
extras na usina o faziam porque queriam. Segundo ela, “o escravo quem faz é a gente”:
É que nem eu falei, o escravo quem faz é a gente. Sabia? Assim, se estou
trabalhando e aqui encerrou minha parte, mas se tem aquele pedacinho ali e
você chega: Kelly, aqui foi 10 centavos, vou pagar 30 para você tirar aquele
arroio de cana. Eu vou. Aquele estava de 10 e esse a 30 centavos, vou ganhar
20 centavos acima. Então, quem faz escravo da gente é a gente mesmo. Não
é dizer: você vai tirar! Comigo nunca aconteceu. Eles chegavam assim:
Kelly, você quer trabalhar? Eu falava: ah, hoje não quero trabalhar mais não.
Chega, já estou cansada! Eles não vão brigar. Nos outros dias, eu ia e
pegava, tirava cana e ganhava dinheiro.
situação. Porque quando ele ficava mais atento e não se enjeitava a essas
coisas, a gente tinha um poder de atuação muito maior. Hoje é contado o
número de trabalhadores que vai com a gente fazer denúncia. Às vezes
está quase debaixo de chicote e não quer se comprometer, colocar a
família em exposição, não quer aparecer, fica olhando para os lados.
152
“O Estado lava as mãos à vulnerabilidade e à incerteza provenientes da lógica (ou da ilogicidade) do mercado
livre, agora redefinida como assunto privado, questão que os indivíduos devem tratar e enfrentar com os recursos
de suas posses particulares. Como sustenta Ulrich Beck, agora se espera dos indivíduos que procurem soluções
biográficas para contradições sistêmicas” (BAUMAN, 2005, p. 67).
153
Fazer ressalva quanto aos casos de recrutamento prometendo levar trabalhador para certa localidade e depois
leva-lo para outra, que se aproxima de um caráter mais forçado nos moldes da metodologia adotada pela OIT.
296
Comprei das mãos dele [o gato] uma motosserra, pelo valor de 850,00 reais e
trabalhei num time de 5 homens por um mês e 4 dias. Fizemos 42 alqueires
de derrubada. Durante este tempo peguei alguma coisa na cantina que não
deveria custar mais que 20,00 reais. Quando fomos acertar, ele me disse que
não tinha saldo, que o que trabalhei não foi suficiente para comprar a
motosserra e não me pagou nada. Um companheiro de time (...) tinha saldo
de 500,00 reais, de um outro serviço que tinha feito, mais 5 diárias a 30,00
reais para receber, mas o fiscal [da fazenda] (...), apontou o revólver nele e
ameaçou de matá-lo. Eles não pagaram ninguém no nosso time. Os outros
ficaram na fazenda, mas eu saí, fugido, com o J., porque estava com medo
que eles iam matá-lo. Saímos a pé, escondendo cada vez que passava um
carro, com medo de ser eles, atrás de nós. Na estrada, paramos o ônibus da
linha, contamos o nosso caso, e eles nos trouxeram, sem nós pagarmos
passagem, porque não tínhamos recebido (Relatório de Fiscalização, 1998,
cód B, p. 25).
que nunca recebeu e nunca presenciou ameaças (...); que vários outros
trabalhadores já abandonaram os serviços no local em razão das más
condições para o trabalho e o preço pago pela madeira que é pouco
(Relatório de Inspeção 2013, cód. BD, p. 32).
que tem que fazer o serviço completo antes de ir embora, que se quiser ir
embora tem que pagar a própria passagem, mas que não tem dinheiro e quer
receber pelo salário (Relatório de Inspeção 2012, cód ES, p. 9-13).
299
que não teria dinheiro para pagar a passagem se quisesse voltar para casa
(Relatório de Inspeção 2012, cód. ES, p. 9-13).
A transição para uma nova forma de coerção é percebida pelos agentes que atuam
no enfrentamento do trabalho escravo. Numa operação que retirou 87 trabalhadores de
condição “análoga a de escravo” em 2006, a equipe de fiscalização teceu as seguintes
considerações sobre a coerção exercida sobre os trabalhadores:
A fuga como ação política pressupõe que o fugitivo tenha para onde ir ou, pelo
menos, que ele perceba o “dentro” como mais perigoso que o “fora”. A ubiquidade do perigo
do desemprego estrutural e da concentração fundiária, aliada à transição da lógica do
extermínio para a do “deixar morrer” nas violências das relações de trabalho, acabam por
neutralizar, em grande medida, a fuga como ferramenta de luta.
Priscila, uma trabalhadora que vive desde pequena em Mato Grosso e já passou
pela escravidão contemporânea, assim descreveu como é viver uma situação de trabalho
degradante:
Na minha opinião, assim, pra te falar a verdade, eu nem sei responder isso
(risos). Porque quando a pessoa tá nessa situação é, simplesmente,
porque não tem saída né? Não tem pra onde ir. Fica ali se sujeitando.
Pensa assim: pra onde que eu vou? Se for pai de família, não vê os filhos, e
fala: eu tenho que dar o de comer pros meus filhos. Muitos, naquela época
[2005], naquela região [de Santa Terezinha, Vila Rica e Confresa], o povo
trabalhava muito, mas diminuiu bastante. As pessoas não tinha nada, nada
pra oferecer aos filhos. Então, trabalhava ali, muitas vezes, até mesmo só
pela comida. Pra não ver os filhos passar fome. Entendeu?
Giselle: Quando você sente que é obrigado a se sujeitar a uma situação ruim,
porque não tem saída, isso vai causando uma coisa ruim na pessoa?
Priscila: Vai. É claro que causa né?
Giselle: O quê?
Priscila: Causa aquela sensação de desprezo, de tristeza né: ah, se eu tivesse
numa situação melhor, não tava aqui, eu ia procurar um lugar melhor. Claro
que a pessoa pensa isso. Mas muitas vezes a pessoa não tem alternativa,
vai aguentando
301
Sebastião: O pagamento era 2 mil, que eles falavam. 2 mil na soja e, quem
aguentasse o contrato até o final, ganhava salário por fora de bônus.
Giselle: E eles falavam assim “se aguentar” mesmo?
Sebastião: Sim. Eu consegui.
302
Na competição por esses postos de trabalho, vence quem tem maior resistência
física e psíquica aos abusos das novas relações de trabalho, vence quem tem maior
disponibilidade de alienar parcelas crescentes de sua saúde (nem sempre recuperáveis) em
troca de remunerações rebaixadas154.
A fala de Rogério, um trabalhador que atuou em diversas usinas sucroalcooleiras
do estado mostra as novas facetas das relações de trabalho:
154
Conclusão similar é exposta por Ribeiro, Santos Filho, Lourenço e Almeida (2015, p. 142) em sua análise
sobre a indústria do frango: “A contratação baseia-se em duas condições: saúde e capacidade para suportar as
condições do ambiente e a intensa rotina de trabalho, com produção mínima obrigatória. O que não percebe o
trabalhador é que entregar-se tanto estabelece de cara a produtividade mínima que terá de manter e que aumenta
de acordo com as demandas da empresa. Desta forma as ‘qualificações’ necessárias resumem-se a habilidades e
destrezas manuais que são apreendidas e aprimoradas no desempenho das tarefas, num processo constante de
captura da subjetividade. Assim, nesse ramo industrial a saúde física, mais do que muitos outros, aparece como
elemento importante da força de trabalho”.
303
escravo era valorizado, ele não, que foi mandado embora porque não
aguentou.
155
Provavelmente trata-se de “juquira”.
305
Giselle: Vocês recebiam menos que os homens? Como era para as mulheres?
Muito difícil? Lembra da diferença?
Vitória: Era, mas não lembro. Só sei que era pouquinho o nosso. Quando foi
um dia, não aguentei mais, falei ao meu chefe: a partir de hoje, não vou
trabalhar aqui mais nem um minuto. Dê baixa na minha carteira, que estou
indo embora. Ele chamou o motorista, que também gostava muito de mim, e
disse: leve a Dona Vitória na casa dela, enquanto pego a carteira para dar
baixa. Não queria mais. A escola estava me esperando, porque lá já trabalhei
como monitora, ajudando. Também, era pouco o salário, mas era maior um
pouquinho, aí resolvi ir.
O “não aguentar” revela, nestas narrativas, também seu significado dúplice. Por
um lado, assume uma conotação frustrante e incapacitante, quando entendido como sinônimo
de “não conseguir sustentar o peso do trabalho” ou “não conseguir resistir às pressões do
ambiente de trabalho”. Por outro lado, o “não aguentar” também toma, em muitos momentos,
307
acepção de “não tolerar” e, neste sentido, “não aguentar” é o novo gesto político para se dizer
“basta”.
Tanto o “fugir” como o “não aguentar” são ações centrífugas em relação ao
trabalho que oprime. O que muda é o componente volitivo, que é capturado na exploração
alarmante da acumulação flexível. Quem foge cumpre o ato desejado de escapar. Quem “não
aguenta” descumpre seu intento forçoso de suportar.
Marco: Às vezes, a gente acha que na cidade é ruim, que o patrão fala tanta
coisa, mas quando chega no mato, devendo, nos empregos de roçado a
maioria explora a gente, a cobra pode picar. Tinha um lugar que uma cobra
mordeu um rapaz, longe da cidade, a gente teve que carregar ele 3km nas
costas. A perna dele inchou, estava desmaiando. Jogamos nas costas até que
chegou na beira da estrada e achamos um carro. O rapaz que era branco
ficou roxo. A cobra tava na folha de bananeira, mas ele conseguiu
sobreviver. Cortou, chupou, tirou sangue, botou específico e conseguiu
salvar ele. Acontece muita coisa porque muitos deles ficam calados, com
medo.
Giselle: Medo do quê?
Marco: Medo dos patrões. Não falam o que têm de falar por medo deles.
Giselle: Se você tivesse de falar, o que falaria?
Marco: Que se aproveitam da humildade das pessoas, da bondade, porque é
pobre acha que pode fazer isso e isso. Tem medo, pensa que vão fazer
alguma coisa com a gente. Tem uma pressão.
Giselle: Não pode se expressar?
Marco: É. Acontece isso muitas vezes com as pessoas.
O medo sistêmico também comprime o trabalhador por todos os lados: via relação
de trabalho e via situação de desemprego. O medo que faz calar, que faz aceitar condições
precárias ou até degradantes. No caso acima, o medo das armas de fogo e de um acidente fatal
no trabalho.
Numa outra entrevista, o tema do medo também foi trazido pela trabalhadora
Priscila:
[...] o pessoal fica com medo né [...] De querer falar. Por acaso, eu sei mais
ou menos dos meus direitos, porque já tive envolvimento com essas coisas.
[...] Tem gente aí que pensa assim: essa pessoa pode me dar problema,
porque ela sabe os direitos que tem. Aqui mesmo na cidade eu trabalhei pra
gente assim. Trabalhei mais de 10 mês sem carteira assinada. E aí
simplesmente ele [...] começa a inventar alguma coisa pra você pedir e sair.
Porque ele sabe que eu sei mais ou menos os meus direitos e eles pensam
que vou causar problema, porque posso procurar meus direitos e vão ter que
acertar direitinho. [...] Começa a colocar defeito no seu trabalho. Às vezes,
você serve a pessoa lá por um ano, faz tudo o que ela quer: nossa, “gosto do
seu trabalho”, e tudo mais. Aí de repente chega e começa a reclamar, tipo
assim: “ah, isso que você fez não ficou bem”, “essa comida que você fez não
tá boa!”
Priscila: Aqui é.
Giselle: Pra não ficar queimada...?
Priscila: Tem que se calar né?
Giselle: Aí tem que aceitar do jeito que for?
Priscila: Do jeito que for tem que aceitar. A nossa região, nossa cidade, tem
muito pouco serviço.
nós trabalhava lá pra comer. E ele [patrão] ganhava o dinheiro do que nós
fazia, o dinheiro que ganhava só pra pagar a feira que nós trabalhava em
cima. Pelo que deu a entender, foi. Porque nós não saiu com nada. Nós
acabou os 10 alqueire, nós saímos com 150 reais cada um...
muitos tava com malária, outros tava doente. Aí tinha um que tava com a
perna quebrada, dizem que ele ia perder a perna, mas acho que não perdeu,
eu não cheguei mais de ver ele. [...] Ô, tinha muita gente que tava... que se
brincasse, ia morrer lá dentro. [...] Lá foi um trabalho de escravo mais
sofrido que eu já vi.
Luís: a benção de Deus como que é grande... quando nós teve a ideia... O
homem chamava Ratinho. [...] Ele falou “o que vocês acham de nós
conversar com os rapaz, nós formar um grupo de 10?”. Aí os outro teve a
ideia de formar um grupo de 20, chegou nos outro ali, a uns 6 quilômetros e
já concordaram. Aí nós falemo “vamos fazer o seguinte”, aí falou assim, aí
os de cá tava tudo... nós era unido... “então nós vamos fazer o de vocês, que
vocês estão desanimado, pra vocês fazer o nosso”, entendeu?
Giselle: Nossa!
Luís: Então nós estava arriscando de eles não vim, nós fazer o deles. Aí nós
foi fazer o deles primeiro. Nossa área era 40 e a deles também.
Giselle: A confiança, né...
Luís: Aí nós confiamo neles, acabemo o deles.
Giselle: Que bonito isso!
313
Luís: Nós acabou o deles, nós era um grupo de 10 e eles lá também. Aí nós
fizemos o deles, e nós fez o nosso. Aí nós fizemos no nosso 30 alqueire,
quando foi pra inteirar os 40 do meu grupo, que eram quatro, chegou a
Federal.
Quando lhe perguntei qual foi seu sentimento ao fazer o mutirão, sua animação foi
visível: “Ô, foi muito bom! Eu me senti livre. [...] Quando nós se uniu a gente se sentiu mais
livre. Ixe, o que é isso!!”.
Luís chamou o arranjo de “união de trabalhar”. E essa união, para ele, significava
liberdade porque era a revalorização de suas vidas.
Aí eu me senti assim como meu amigo é minha frente, ele por trás de mim,
você entendeu? Ele tava ali me olhando, me cuidando. Muitas vezes foi
prova disso. Eu tava roçando... eu ganhei um cupim, não vi, um galho
triscando em mim, eu parei pra beber água, não sei o que eu fui fazer...
Tinha uns 10 formigão nas minhas costas, que eu não tava sentindo. Então
ali já ia me parar. Então, meu amigo chegou, mais o outro já chegou com
uma moita de mato, outro chegou batendo, batendo, tirou das minhas costas.
Aí já me senti livre, tu entendeu? Tipo assim, se Deus o livre chegasse, e
nós... me livre assim, eu morreria livre, que se nós juntasse aí tava todo
mundo unido, morria todo mundo junto, se cara enfrentasse, vamos todo
mundo embora. Nós morria, mas não morri ali, tipo assim, não morri no
sentido preso, ali dentro. Eu morria, eu me sentia livre, porque eu morria
com meus amigos, meus amigo tava ali comigo, tava unido ali pra tudo,
então eu me sentia livre.
descritos por La Boétie (2001, p. 26): “cada um pelo bem comum, cada um por si; todos
esperam ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória”156.
É a resistência dos trabalhadores “ao processo de apropriação do afeto, dos
valores, da interioridade do ser” identificada por Maria Aparecida de Moraes Silva também
no ato das trabalhadoras que migram junto com seus filhos. Para tais trabalhadoras, nas
palavras da pesquisadora (2014, p. 283), trata-se “de uma forma de não se reduzir ao processo
de trabalho abstrato, mantendo, ainda que a duras penas, a particularidade que os distingue
dos demais fatores de produção”.
No mutirão, Luís conheceu 5 pessoas do Tocantins e, através dessas amizades, foi
a Palmas procurar serviço, onde acabou encontrando um irmão por parte de pai: “Aí, em
Palmas, 3 irmãos eu conheci em Palmas. Aí vim pra Santana, eu e meu irmão corremos atrás,
aí nós tinha mais 6 irmãos lá com ele. Se não fosse através da união lá dentro eu não tinha
conhecido”.
No caso de Luís, como em muitos outros, a união implicou uma consciência da
raiz social de sofrimentos individuais, a reconfortante perspectiva de manter relações de
reciprocidade num contexto de espoliação completa em que sua própria integridade física e
psíquica era ameaçada pelo empregador. A união era a resistência coletiva que suplantava as
fragilidades de cada trabalhador isolado, era a reconexão dos trabalhadores com sua história e
sua humanidade através do fortalecimento dos afetos. Nas palavras do entrevistado:
Não foi só o mutirão que nós fez, que todos ficamos animado. Mas nós
vencemos. Foi uma oportunidade pra todos se conhecer. Quando tava
desanimado, o cara falava, se você pensar bem, a união vale tudo na vida.
Tem um carro quebrado, vamos esperar quem tirar o carro? Se juntar nós
tudo, vamos embora.
156
Em oposição à “gente livre”, La Boétie (2001, p. 26) descreve a “gente subjugada”: “A gente subjugada não
tem júbilo nem furor no combate: parte para o perigo quase como que amarrada, toda por demais embotada, e
não sente ferver em seu coração o ardor da liberdade que faz desprezar o perigo e dá vontade de ganhar a honra e
a glória numa bela morte entre seus companheiros. [...] [a gente subjugada] também perde a vivacidade em todas
as outras coisas e tem o coração baixo e mole, incapaz de todas as grandes coisas. Disso muito bem sabem os
tiranos, e ao vê-la tomando essa feição, ainda a ajudam para que afrouxe mais”.
315
arregimentadores para trabalhar em lugares distantes: “Teve muito trabalhador que passou o
que passei, amigo meu. Converso com ele e ele diz: ‘rapaz, não vou mais não, hoje tenho meu
paradeiro’. Não quer sair mais, tem aquele trauma”. Entre o trauma e o paradeiro, mais uma
vez, um processo coletivo de conscientização sobre a exploração e uma reorganização, através
do estreitamento dos vínculos sociais, de suas vidas produtivas pela autogestão. Quando lhe
perguntei se seus amigos eram mais felizes agora, Cauê respondeu:
Demais! Eles mexem com horta de macaxeira e ficam vivendo daquilo dali,
mas não quer estar no trecho, ganha mais lá e está no meio da família todo
dia. Fora da família, o cara fica muito sozinho, sente saudade, passa de 8
meses a 1 ano sem ver a família. Não é bom não. Quando minha mãe
morreu, eu não estava em casa, saíram me caçando em todo canto, não
sabiam onde eu estava. Quando cheguei em casa que soube que a mãe
morreu tinha 18 dias. Eu estava trabalhando na fazenda dos outro. O cara
fica revoltado também: trabalhando e os cara não são legal com a gente, tô
pra receber um dinheiro que nem sei se recebo. Roçando na nossa terra é
melhor do que na dos outros, porque aumenta, é pra gente. Não ganha
dinheiro, mas trabalha pra gente. Todo mundo perto da gente.
CONCLUSÕES
sofrimento, que colocam a integridade física, a saúde e a vida no centro da discussão sobre o
trabalho escravo contemporâneo.
A partir dos estudos na área da saúde coletiva, pudemos constatar que os
atentados à saúde psicofísica e à própria sobrevivência dos trabalhadores escravizados –
atestados nos documentos e narrativas – inserem-se num contexto de agravamento geral da
saúde dos trabalhadores na virada do século XX para o XXI, inaugurando um novo padrão de
morbidade e adoecimentos imateriais decorrente da reestruturação produtiva.
Pesquisas recentes indicam, ademais, que a economia de Mato Grosso tem gerado
significativo crescimento dos agravos à saúde dos trabalhadores. Entre 1998 e 2005,
observou-se, no estado, um aumento da incidência de intoxicações agudas por agrotóxico
agrícola, acidentes de trabalho, acidentes com animais peçonhentos, neoplasias e
malformações congênitas (PIGNATI; MACHADO, 2011). Os estudos demonstraram, por
fim, que há uma correlação positiva significante entre agravos à saúde dos trabalhadores e os
indicadores de produção (esforços produtivos agropecuários e demanda de agrotóxicos) no
interior mato-grossense.
A hipótese central da tese – de que a escravização contemporânea em Mato
Grosso se utiliza de instrumentos típicos do trabalho livre capitalista – foi confirmada a partir
da pesquisa documental e da história oral. O que interessa, sobretudo, é o caminho percorrido
para apreender o lugar da liberdade na prática da escravidão, que nos conduziu a diversos
desdobramentos de nossa tese primária. Pudemos concluir, portanto, que a liberdade está cada
vez mais implicada em diversos elementos e instrumentos da escravização recente em Mato
Grosso.
Se entre as décadas de 1960 e 1990, no contexto da modernização conservadora, a
forma típica de trabalho escravo que se alastrou na agricultura brasileira, por sua composição
mista (aliciamento através de contratos fraudulentos e imobilização através de violência física
e endividamentos fabricados), dificultava o entendimento sobre o papel (e importância)
exercido pela forma contratual e outros elementos típicos do trabalho livre capitalista na
prática da escravização contemporânea, na última década a situação se inverte.
Hoje temos um cenário em que não só a entrada para a relação de trabalho escravo
ampara-se no instrumental da livre contratação, mas também a manutenção e controle da
força de trabalho no espaço da produção e também o seu descarte são realizados através de
dispositivos do mercado de trabalho capitalista: através de contratações, recontratações,
negociações e contendas em torno de equivalências jurídicas (que legitimam a assimetria
321
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