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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GISELLE SAKAMOTO SOUZA VIANNA

SER E NÃO SER LIVRE: A MORFOLOGIA DO


TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO EM MATO
GROSSO

CAMPINAS
2019
GISELLE SAKAMOTO SOUZA VIANNA

Ser e não ser livre: a morfologia do trabalho escravo


contemporâneo em Mato Grosso

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para obtenção do título de Doutora
em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Sávio Machado


Cavalcante

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE
DEFENDIDA POR GISELLE
SAKAMOTO SOUZA VIANNA, E
ORIENTADA PELO PROF. DR. SÁVIO
MACHADO CAVALCANTE.

CAMPINAS
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Vianna, Giselle Sakamoto Souza, 1981-


V655s ViaSer e não ser livre : a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em
Mato Grosso / Giselle Sakamoto Souza Vianna. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

ViaOrientador: Sávio Machado Cavalcante.


ViaTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Via1. Escravidão. 2. Trabalho escravo - Brasil. 3. Trabalho - Mato Grosso. 4.


Trabalho escravo - Mato Grosso. I. Cavalcante, Sávio Machado, 1982-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: To be and not to be free : the morphology of contemporary slavery
in Mato Grosso - Brazil
Palavras-chave em inglês:
Slavery
Slave labor - Brazil
Labor - Mato Grosso
Slave labor - Mato Grosso
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Doutora em Sociologia
Banca examinadora:
Sávio Machado Cavalcante [Orientador]
Bárbara Geraldo de Castro
Ricardo Luiz Coltro Antunes
Marco Aurélio Silva de Santana
Ricardo Rezende Figueira
Data de defesa: 29-03-2019
Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-2479-4039
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8638076109523781

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores
Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29 de março de 2019, considerou a
candidata Giselle Sakamoto Souza Vianna aprovada.

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante (IFCH - orientador)

Profª. Drª Bárbara Geraldo de Castro (IFCH)

Profº. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes (IFCH)

Profº. Dr. Marco Aurélio Silva de Santana (UFRJ)

Profº. Dr. Ricardo Rezende Figueira (UFRJ)

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida
acadêmica do aluno.
À minha irmã Candice,
aos meus pais Midory e Bruno
e a todas as pessoas que tecem a igualdade
AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que contribuíram para que esta pesquisa se concretizasse e que
fizeram dela, acima de tudo, uma experiência encantadora de vida.
A todas as pessoas entrevistadas, que compartilharam comigo seu conhecimento, seu
tempo, sua história. O encontro dos melhores caminhos na pesquisa sempre nasceu do encontro
com as pessoas.
A meu querido orientador Sávio Cavalcante, que tanto me estimulou no
desenvolvimento deste trabalho, animando-me com seu apoio, inspirando-me com suas inteligentes
questões e ajudando-me com sua grande clareza. Sem sua admirável dedicação e companheirismo
na reta final esta tese não teria os mesmos resultados.
Ao Ministério do Trabalho, onde tive o prazer de trabalhar por 10 anos em nome de
algo em que acredito. Agradeço, especialmente, pela concessão da licença que me permitiu concluir
esta pesquisa.
Ao querido professor Fernando Lourenço, que me orientou nos primeiros anos do
doutorado, por todas as valiosas contribuições, incentivo e carinho. Foi através de suas aulas
inspiradoras, sua confiança e seu olhar atento que descobri, fora e dentro de mim, o universo
transformador da história oral.
Ao querido professor Márcio Naves, que me abriu o horizonte da vida acadêmica
através de sua obra e dedicação. Foram os aprendizados durante sua orientação no programa de
mestrado que permitiram, anos depois, que eu enxergasse no dia a dia da auditoria fiscal do trabalho,
os problemas e hipóteses que deram início a este trabalho.
Ao querido professor Fabio Perocco, que me acolheu com tanto zelo na Università Ca’
Foscari e muito me ensinou e emocionou com suas aulas de Sociologia da Desigualdade.
Aos professores Bárbara Geraldo de Castro, Ricardo Luiz Coltro Antunes, Marco
Aurélio Silva de Santana e Ricardo Rezende Figueira, pela dedicação com que leram esta tese e
pelas valiosas contribuições e reflexões que me ofereceram durante a defesa.
A todas as instituições parceiras nesta pesquisa e no enfrentamento do trabalho escravo,
em especial à Casa do Migrante – Cuiabá, Projeto Ação Integrada, Sindicato Nacional dos
Auditores Fiscais do Trabalho, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Defesa da Vida e dos
Direitos Humanos, Centro Burnier Fé e Justiça, Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública
de Mato Grosso e Missão Paz.
A Gabriela de Andrade Nogueira Gonçalves, Candice Sakamoto Souza Vianna, Patrícia
Villen, Xavier Plassat, Luís Fujiwara, Francco Antonio Neri de Souza e Lima, Samuele Vicil,
Mariana Faiad Alves, Antônio Rosa, Mônica Barros e aos professores Suely Kofes, Cesar Vaz de
Carvalho, Vitale Joanoni Neto, Wanderlei Pignati, Luís Leão, Walter Zanin, Nico Pizzolato, pela
generosidade com que me auxiliaram na trajetória do doutorado.
Aos meus amigos auditores-fiscais do trabalho, que fortalecem em mim a coragem de
lutar por justiça social independentemente das circunstâncias. Em especial, agradeço a Valdiney
Arruda e Amarildo Borges, que, além de me inspirarem com seu exemplo, apoiaram minha
pesquisa desde o início. À Larissa Wanderley dos Santos Moreira, que tanto me ensinou e segue
ensinando.
À UNICAMP, seus professores e funcionários, que forneceram as condições e estrutura
para a realização deste trabalho.
A todos os meus amigos, que compartilharam comigo a alegria e os desafios destes anos
transformadores de grande responsabilidade, mas de aprendizados de ação e leveza.
Às parcerias artísticas que me permitiram achar também palavras, melodia e harmonia
para o “sentimento do mundo” que acompanha e transcende uma tese como esta. Em especial,
agradeço aos meus queridos amigos Ana Moori, Wellington Souza, Sulaiman Damazio, Eduardo
Lacerda, Cibely Zenari Guadalupe, Tâmis Parron, Carlos Lopes e Rafael Castelhano. À música de
Antonio Vivaldi.
À minha família, origem de todo o amor que está nestas páginas.
Agradeço de coração.
“Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo:
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser”.

(Murilo Mendes, Pós-Poema, do livro


Poesia Liberdade)
RESUMO

A presente tese é um estudo das transformações na morfologia do trabalho escravo contemporâneo


em Mato Grosso no último quartel do século XX e início do XXI, no contexto da transição da
modernização conservadora da agropecuária para o agronegócio consolidado das últimas décadas.
Busco uma compreensão das especificidades do fenômeno, apontando as continuidades e
descontinuidades em relação à escravidão do período colonial. O ponto de partida da pesquisa é a
identificação das novas formas de coerção impostas aos trabalhadores no contexto da
universalização do status de sujeito de direito no Brasil pós-1888. Com base na premissa de que
trabalho livre e trabalho escravo não são formas opostas e que, pelo contrário, a nova escravização
utiliza-se dos mesmos mecanismos empregados no trabalho assalariado não escravo, a pesquisa
identifica o núcleo do trabalho escravo contemporâneo no amálgama entre vulnerabilidade social e
liberdade formal, que é mobilizado para explorar e degradar os trabalhadores a condições que
atentam contra sua vida e dignidade.
O estudo desenvolve-se a partir de pesquisa de campo e análise documental, combinando análise
quantitativa (construção de base de dados) e qualitativa nos relatórios de inspeções de trabalho
escravo ocorridas em Mato Grosso entre 1995 e 2013. A análise combinada dos dados e das
articulações teóricas levou-nos a constatar que, com a formação do mercado de trabalho, houve a
substituição de práticas como o recrutamento forçado e a discriminação de direito por novas
práticas de recrutamento por promessas enganosas e de discriminações de fato (com a permanência
de racismos). Além disso, dentro do próprio período estudado foi possível observar algumas
transformações importantes, como o exacerbamento de mecanismos de “exploração por
interpelação” e adoecimento nas relações de produção. Enquanto acirra a violência física nas
disputas pela terra (cada vez mais escassa), observa-se o declínio dos assassinatos de trabalhadores
rurais (frequentes na região até a década de 1990) e a emergência de novas formas de controle sobre
a força de trabalho (cada vez mais abundante e descartável).
Este novo cenário, aliado às transformações econômicas, inaugura novas formas de atentado contra
a vida humana (deixar morrer no lugar de matar), que se revelam mais invisíveis porque biológicas,
químicas, psíquicas: biopolíticas.

Palavras-chave: Escravidão contemporânea. Trabalho escravo. Mato Grosso.


ABSTRACT

The present thesis addresses the transformations in the morphology of contemporary coerced labor
in the state of Mato Grosso (Brazil) in the transition from the 20th to the 21st century. It
encompasses the conservative modernization of agriculture to the consolidation of agribusiness in
the recent decades. The objective of the research is understanding the specificities of the
phenomenon, tracing back continuities and discontinuities to colonial slavery. It departs from the
identification of new forms of coercion imposed on workers in the context of the universalization of
the “subject in law” in 1888, with slavery emancipation in Brazil. Based on the premise that free
labor and coerced labor are not opposed forms but, on the contrary, that new forms of slavery
employ the same mechanisms of free labor markets, the research identifies the core of
contemporary coerced labor in the combination of social vulnerability and formal liberty. This
complex is mobilized in order to exploit and degrade workers to conditions which attempt against
their lives and dignity.
The study builds on field and documental research. It combines qualitative analysis of coerced labor
inspections reports in Mato Grosso from 1995 to 2013 with quantitative analysis, by developing an
extensive database. The joint analysis of both data and theoretical frameworks led us to the
realization that, with the establishment of labor market, practices such as forced recruitment and
rights discrimination were replaced by new recruitment practices with false promises and de facto
discrimination, with the persistence of racism.
Moreover, it was possible to observe within the timeframe of the study some important
transformation, as the expansion of mechanisms of “exploitation by interpellation” and harms to
laborers’ health. While physical violence increases in land disputes (due to growing land scarcity),
we note a decline in the assassination rate of rural workers (which was high in the region until the
1990s) and the emergence of other types of control over the workforce (as workers become
increasingly plentiful and disposable).
This new setting, coupled with transformations of the new economic development model,
inaugurates new forms of attack against human life, which are more invisible due to their
biological, chemical and psychical nature. They are fundamentally biopolitical.

Keywords: Slavery. Coerced labor. Contract slavery.


LISTA DE TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS

TABELAS

Tabela 1 - Transformações da escravidão

Tabela 2 - Participação do Brasil no Comércio Mundial de Alimentos

Tabela 3 - Presença dos elementos caracterizadores nos casos de trabalho escravo em MT

Tabela 4 - Frequência das modalidades de trabalho escravo nos casos constatados pela fiscalização
– MT (1995-2013)

Tabela 5 – Frequência – Trabalho forçado em Mato Grosso (1995-2013)

Tabela 6 - Totais e Frequência - Trabalho forçado x Menção trabalho forçado

Tabela 7 - Brasil – Ocupação formal e informal

Tabela 8 – Origem da população de outras UF em Mato Grosso (2001-2009)

Tabela 9 - Número de casos constatados de trabalho escravo por ano – MT

Tabela 10 - Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – por tipologia de


vítima

Tabela 11 - Vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – unificações

Tabela 12 - Matriz produtiva e agravos à saúde dos trabalhadores MT

Tabela 13 - Migração standard x migração internacional

Tabela 14 – Tráfico de pessoas e trabalho escravo

GRÁFICOS

Gráfico 1- Uso da terra em Mato Grosso

Gráfico 2 – Consumo de agrotóxicos em Mato Grosso

Gráfico 3 - Funções desempenhadas pelos trabalhadores resgatados de trabalho escravo – MT


(1995-2013)

Gráfico 4 – Fornecimento de água para consumo dos trabalhadores


Gráfico 5 - Situação de alojamento e moradia

Gráfico 6 - Instalações sanitárias

Gráfico 7 - Áreas para preparo e consumo de alimentos

Gráfico 8 - Trabalho forçado e menção a termo “trabalho forçado” – variação no tempo

Gráfico 9 - Vigilância armada – variação no tempo

Gráfico 10 - Trabalho forçado

Gráfico 11 - Modalidades de trabalho escravo – variação no tempo

Gráfico 12 – Formalização dos vínculos de trabalho

Gráfico 13 - Formas pactuadas de remuneração

Gráfico 14 - Formas de recrutamento

Gráfico 15 - Recrutamento forçado x recrutamento contratual

Gráfico 16 - População de Mato Grosso (1940-2010)

Gráfico 17 - População nascida em outra UF na composição da população de MT (1996 e 2001-


2009)

Gráfico 18 - Trabalhadores submetidos a trabalho escravo no Brasil com residência em Mato


Grosso

Gráfico 19 – Trabalhadores escravizados em MT x trabalhadores escravizados no Brasil oriundos


de MT

Gráfico 20 – Violência física ou grave ameaça – variação no tempo

Gráfico 21 - Conflitos no campo em Mato Grosso – variação no tempo (1995-2013)

Gráfico 22 - Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – variação no tempo

Gráfico 23 - Vítimas de violência grave no campo MT – envolvidos diretos

Gráfico 24 - Vítimas de violência grave no campo MT – agentes de defesa de direitos

Gráfico 25 - Quantidade de estabelecimentos rurais por tipo – MT

Gráfico 26 - Área ocupada por tipo de estabelecimento rural – MT

Gráfico 27 – Bem jurídico violado


Gráfico 28 – “Escravidão Moderna” por sexo

Gráfico 29 – Vítimas de tráfico de pessoas por gênero – MT (2012-2018)

Gráfico 30 – Ocorrências de tráfico de pessoas – MT (2012-2018)

Gráfico 31 – Idade das vítimas de tráfico de pessoas – MT (2012-2018)

Gráfico 32 – Contratação direta ou indireta nos casos de trabalho escravo – MT (1995-2013)

FIGURAS

Figura 1 – Atestado de óbito


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AFESIP – Agir pour les Femmes en Situation Précaire


AFT – Auditor Fiscal do Trabalho
AI - Auto(s) de infração
ART – Artigo
CDVDH - Centro de Defesa da Vida e de Direitos Humanos
CEJIL - Centro pela Justiça e o Direito Internacional
CETRAP – Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Mato Grosso
CID – Classificação Internacional de Doenças
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNI – Confederação Nacional da Indústria
CNJ – Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
COETRAE – Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo
CONATRAE – Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo
CPT – Comissão Pastoral Terra
CTPS – Carteira de Trabalho e da Previdência Social
DETRAE – Divisão de Erradicação de Trabalho Escravo
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
EPI – Equipamento de Proteção Individual
GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel
GERTRAF –
HA – Hectare(s)
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ILO – International Labor Organization
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
KM – Quilômetro(s)
LER – Lesões por esforços repetitivos
LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros
MAPA – Ministério da Agricultura
MATOPIBA – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia
MP – Ministério Público
MPF – Ministério Público Federal
MPT – Ministério Público do Trabalho
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MT – Mato Grosso
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego
NR – Norma Regulamentadora
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização não governamental
OXFAM – Oxford Committee for Famine Relief
PEC – Projeto de Emenda Constitucional
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PNPS – Política Nacional de Participação Social
SDH – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
SEPLAN - Secretaria de Estado de Planejamento de Mato Grosso
SESP – Secretaria de Segurança Pública
SINAIT - Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
SIT – Secretaria de Inspeção do Trabalho
SNCR – Sistema Nacional de Cadastro Rural
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
TE – Trabalho escravo
TST – Tribunal Superior do Trabalho
UF – Unidade Federativa
SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................................................... 18

Nota Metodológica ........................................................................................................................... 24

Capítulo 1: A escravização do sujeito livre .................................................................................... 34


1.1. Escravidão como questão de desigualdade e exploração ............................................................ 34
1.2. Trabalho livre e trabalho escravo ................................................................................................ 38
1.2.1. Liberdade e servidão na formação do mercado de trabalho assalariado .................................. 43
1.2.2. Escravidão e liberdade em tempos de universalização do sujeito de direito ........................... 47
1.2.3. Biopolítica e a nova economia das desigualdades ................................................................... 51
1.3. Liberdade de contratação e vulnerabilidade social: os pilares da escravização neoliberal ......... 56
1.3.1. A liberdade de contratar ........................................................................................................... 60
1.3.2. A vulnerabilidade social........................................................................................................... 64
1.3.3. Pilares do trabalho escravo contemporâneo: algumas hipóteses ............................................. 70
1.4. O trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro ............................................................. 75
1.4.1. Norma jurídica, relação jurídica e relação social ..................................................................... 76
1.4.2. A luta por reconhecimento da existência de trabalho escravo no Brasil e a construção de
políticas voltadas à sua erradicação ................................................................................................... 79
1.4.3. Disputas em torno do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil ......... 85

Capítulo 2: A morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso ..................... 95


2.1. Da nova ocupação ao agronegócio: transformações de um território em conflito...................... 98
2.1.1. A reocupação recente de Mato Grosso .................................................................................... 98
2.1.2. Transformações na economia de Mato Grosso e contexto global ......................................... 111
2.1.3. As novas formas de escravização em Mato Grosso na virada para o século XXI ................. 126
2.2. Os dados sobre trabalho escravo em Mato Grosso entre o fim do século XX e o início do século
XXI................................................................................................................................................... 130
2.2.1. Elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo e os dados das fiscalizações
em Mato Grosso ............................................................................................................................... 132
2.2.1.1. O trabalho em condições degradantes ................................................................................. 137
2.2.1.1.1. Água potável .................................................................................................................... 142
2.2.1.1.2. Alojamento e moradia ...................................................................................................... 143
2.2.1.1.3. Instalações sanitárias ........................................................................................................ 144
2.2.1.1.4. Locais para preparo e consumo de alimentos .................................................................. 145
2.2.1.2. A servidão por dívida .......................................................................................................... 146
2.2.1.3. O trabalho forçado revisitado .............................................................................................. 153
2.2.1.3.1. A vigilância armada, o isolamento geográfico e o cerceamento da liberdade dos
trabalhadores .................................................................................................................................... 160
2.2.1.4. A jornada exaustiva............................................................................................................. 166
2.2.1.5. Tendências e composições das modalidades de trabalho escravo ...................................... 173
2.2.2. Outras nuances da morfologia do trabalho escravo ............................................................... 176
2.2.2.1. Informalidade ...................................................................................................................... 176
2.2.2.2. Formas de remuneração e mais-valia .................................................................................. 179
2.2.2.3. Formas de recrutamento ...................................................................................................... 188
2.3. Novas dinâmicas de exploração da terra e do trabalho ............................................................. 199
2.3.1. Violência e escravização em Mato Grosso ............................................................................ 199
2.3.2. Novas nuances do cativeiro da terra ...................................................................................... 215
2.3.3. Desemprego, reestruturação produtiva e novos cativeiros do trabalho ................................. 221

Capítulo 3: Novas violências e novas sobrevivências .................................................................. 224


3.1. Exaustão e degradação da vida ................................................................................................ 226
3.1.1. Trabalho escravo e bem jurídico tutelado .............................................................................. 228
3.1.2. Vulneráveis e descartáveis: os trabalhadores e os novos padrões de adoecimento ............... 236
3.1.3. Saúde, sofrimento e trabalho escravo: lutas em torno da vida ............................................... 241
3.1.4. Interpelação e exploração: os limites negociados do corpo ................................................... 249
3.2. Desigualdade e distância social................................................................................................. 250
3.2.1. Racismo e naturalização da indignidade ................................................................................ 251
3.2.2. Discriminação nas relações de trabalho ................................................................................. 258
3.2.2.1. Migração e discriminação ................................................................................................... 258
3.2.2.2. A discriminação entre sujeitos juridicamente iguais........................................................... 263
3.2.3. A invisibilização dos explorados: as vítimas fora dos dados oficiais .................................... 271
3.2.3.1. Onde estão as mulheres escravizadas? ................................................................................ 274
3.2.4. Subcontratação, intermediação e a erosão de responsabilidades patronais ........................... 283
3.3. Ser e não ser livre: dinâmicas de mobilização e imobilização dos trabalhadores..................... 290
3.3.1. Ambivalências do sujeito livre............................................................................................... 291
3.3.2. Livre para vir e para ir............................................................................................................ 295
3.3.3. Do fugir ao “não aguentar” .................................................................................................... 300
3.3.4. Liberdade, perigo e medo: sobrevivência calculada .............................................................. 307
3.4. Para além da liberdade formal .................................................................................................. 310

Conclusões....................................................................................................................................... 317

Bibliografia ..................................................................................................................................... 325


18

INTRODUÇÃO

O estudo da realidade brasileira tem integrado constantemente o debate


internacional sobre trabalho escravo contemporâneo. Nas décadas de 1970 a 1990,
importantes denúncias e pesquisas sobre a peonagem e os mecanismos de servidão por dívida
no Brasil, notadamente nas áreas de expansão agropecuária e desmatamento da Amazônia,
não só tiveram o mérito de compreender a realidade local, mas também puderam lançar luz
para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo na economia global (ESTERCI,
2008; FIGUEIRA, 2004; MARTINS, 2009).
O debate iniciado naquela época, para o que nos interessa nesta pesquisa, foi de
suma relevância por dois motivos principais. Primeiro, porque ajudou a consolidar o
entendimento de que a servidão por dívida, apesar de apresentar elementos de coerção não
necessariamente física, constitui modalidade de trabalho escravo. Em segundo lugar, porque
demonstrou que, no Brasil do fim do século XX, aquela era a principal forma de escravização
de trabalhadores, tanto que passou a integrar de forma taxativa a própria legislação brasileira
sobre a matéria a partir de 2003.
Além do debate acerca dos mecanismos contemporâneos de escravização, a
experiência brasileira também tem tido destaque nos debates acerca da conceituação legal do
trabalho escravo contemporâneo, recebendo atenção especial por parte da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), cuja atuação no combate do “trabalho forçado” inclui
recomendações para que os países, além de cumprirem os tratados sobre a matéria, também
ampliem suas legislações domésticas, de forma a contemplar as facetas locais desse fenômeno
complexo.
O objetivo desta pesquisa é atualizar, de forma articulada, esses dois debates: o
debate sobre a morfologia da escravidão contemporânea no Brasil e aquele em torno da
legislação brasileira que instrumentaliza o combate ao “trabalho análogo ao de escravo”.
Partimos da seguinte premissa: se num extremo temos as formas de exploração do
trabalho consideradas indiscutivelmente como escravidão nas sociedades capitalistas (trabalho
ao qual se é constrangido contra a vontade, mediante coação direta e cerceamento da
liberdade de locomoção) e, do outro lado, temos as formas de exploração do trabalho
socialmente aceitas pelo capitalismo (em que a extração da mais-valia é realizada dentro de
certos limites e com a garantia de direitos mínimos estabelecidos por lutas históricas), o
19

terreno entre essas duas realidades, atravessado por grandes disputas políticas de sentido e de
institucionalização, é precisamente o das formas de exploração do trabalho que se constituem
como escravização (por atentarem contra a liberdade, integridade física e/ou dignidade
humanas) apesar de se utilizarem de práticas típicas do mercado de trabalho livre, como a
liberdade de locomoção, o consentimento, o contrato.
De fato, apesar da reconhecida proliferação do trabalho escravo por contrato –
Kevin Bales (2004) o retrata como a modalidade que mais cresce em todo o globo – e dos
longos debates sobre o trabalho escravo contemporâneo como fenômeno inscrito no modo de
produção capitalista, pouco ainda se fez no sentido de articular essas duas análises para que se
possa discutir a especificidade capitalista da forma contratual e suas implicações para a
compreensão do fenômeno do trabalho escravo contemporâneo.
Para desenvolver o tema, optei por estudar o trabalho escravo em Mato Grosso,
estado em que atuei como auditora-fiscal do trabalho de 2007 a 2015 e que sempre se
manteve entre as regiões com maior incidência de trabalho escravo no Brasil das últimas
décadas.
Nossa hipótese central é que a escravidão contemporânea em Mato Grosso vale-se
de práticas e instrumentos típicos do mercado de trabalho capitalista, alicerçando-se na
combinação de dois elementos principais: a liberdade formal e a vulnerabilidade social. Nas
últimas décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de
imobilização violenta da força de trabalho, passando a caracterizar-se por novas tecnologias
fundadas na mobilidade dos trabalhadores e em coerções sistêmicas. Neste sentido, busco
captar as transformações na morfologia do trabalho escravo entre a década de 1990 e o início
do presente século em território mato-grossense.
A metodologia utilizada na pesquisa consistiu na combinação de pesquisa
quantitativa e qualitativa em diversas fontes documentais, bem como pesquisa de campo,
incluindo entrevistas não diretivas com diversos atores envolvidos no contexto da escravidão
contemporânea e seu enfrentamento.
Os principais documentos utilizados foram: 1) Dados de 1994-2017 veiculados
nos Cadernos de Conflito no Campo da Comissão Pastoral da Terra (notadamente os dados
sobre conflitos no campo, assassinatos, tentativas de assassinato e ameaças de morte); 2)
Relatórios da Fiscalização de combate ao trabalho escravo de todos os casos constatados pelo
Ministério do Trabalho em Mato Grosso entre 1995 e 2013, a partir dos quais foi construída
uma base de dados para análise de diversas variáveis (forma de arregimentação de
trabalhadores, informalidade, contratação direta x indireta, violência física contra
20

trabalhadores, caracterização do “trabalho escravo” constatado pelo grupo de fiscalização,


dentre outras).
As entrevistas foram realizadas entre 2013 e 2019, abrangendo: 1) trabalhadores
que haviam vivenciado a escravidão contemporânea; 2) auditores-fiscais do trabalho; 3)
agentes de entidades da sociedade civil comprometidas com a defesa dos trabalhadores; 4)
autoridades públicas ligadas ao enfrentamento do tráfico de pessoas e trabalho escravo; 5)
profissionais de entidades internacionais ligadas ao enfrentamento do trabalho escravo e
temas correlatos.
A pesquisa de campo percorreu regiões de Mato Grosso, bem como alguns outros
estados brasileiros (Bahia, Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, São Paulo) escolhidos por serem
regiões de recrutamento de mão de obra para o Mato Grosso ou por apresentarem
experiências complementares à pesquisa. Além disso, envolveu entrevistas e visitas a
comunidades e entidades estrangeiras, que contribuíram para a compreensão do contexto
global e das singularidades regionais do fenômeno estudado.
Assim, lastreando-se na pesquisa multimétodo, o presente estudo busca analisar a
nova morfologia do trabalho escravo em Mato Grosso na transição do século XX para o XXI,
no contexto da recente ocupação do estado e construção de uma nova ordem inscrita na
economia global: da expropriação de suas populações, devastação do meio-ambiente e
conversão da vegetação natural em pastos, até, num segundo momento, a consolidação do
agronegócio.
Esta transição inscreve-se num processo global de reestruturação produtiva que,
nos setores da agropecuária (que dão a tônica da economia mato-grossense), implicaram em
transformações na organização da produção, nas relações sociais de produção, nas tecnologias
de exploração dos meios de produção, na conformação das cadeias produtivas e na
composição de força de seus componentes, inserindo-se no contexto da degradação flexível
do trabalho.
Com o aporte dos estudos sobre biopolítica (FOUCAULT, 2005; AGAMBEN,
2007) e sobre a liberdade formal do sujeito de direito, analisamos a nova morfologia do
trabalho escravo a partir dos relatórios da fiscalização do trabalho, entrevistas e experiências
de campo. Assim, busca-se compreender como se transmutam as formas de escravizar a força
de trabalho em tempos de acumulação flexível (ANTUNES, 2013, p. 21), caracterizados pela
terceirização, informalidade, gestão pela descartabilidade, intensidade e extensão das jornadas
de trabalho e por novas formas de exploração através de consentimentos manipulatórios (o
21

que chamei de “exploração por interpelação”), dentre outras facetas da tendência de


precarização geral do trabalho.
A partir do estudo da bibliografia, bem como de pesquisa documental e história
oral, buscar-se-á discutir a noção de “trabalho análogo ao de escravo” – que constitui o
conceito jurídico basilar do combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil –
compreendendo como o direito capitalista, ao universalizar o status de sujeito de direito a
todos os seres humanos, torna-se mediador de novas formas de escravidão.
Partirei das continuidades e descontinuidades entre a chamada “escravidão
tradicional”1 e a “escravidão contemporânea” para analisar em profundidade o que, segundo
a hipótese desta pesquisa, constitui a fundamental especificidade do trabalho escravo pós-
abolição oficial: com a separação entre os trabalhadores e sua força de trabalho e com a
simultânea construção da liberdade formal capitalista, os trabalhadores de hoje são
simultaneamente objetos e sujeitos. Eles são a força de trabalho (objeto/mercadoria) e também
a parte contratual (sujeito de direito) que a vende. E é neste sentido que pretendo estudar as
formas contemporâneas de escravizar.
O primeiro capítulo da tese trata da relação entre direito moderno e modo de
produção capitalista, entre a forma jurídica e a mercadoria. A partir da obra de Pachukanis,
discuto a emergência histórica da figura do sujeito de direito, o contratualismo e a liberdade
formal, para tentar compreender como o direito capitalista, ao universalizar o status de sujeito
de direito a todos os seres humanos, possibilita novos mecanismos de escravização. Tomando
por base a experiência brasileira, adentro a temática da coerção e da liberdade nas relações
sociais de produção mediadas pelo direito capitalista, buscando apontar alguns possíveis
caminhos que vêm sendo abertos para se repensar o trabalho compulsório. Termino com uma
breve exposição sobre o trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro, que servirá de
base para os estudos dos capítulos seguintes.
O segundo capítulo analisa as novas nuances do trabalho escravo em Mato Grosso
na transição do século XX para o XXI. Nele apresento os principais resultados da pesquisa
quantitativa, que consistiu na construção de uma base de dados a partir de informações
coletadas em 180 relatórios de inspeção do trabalho que constataram situação de trabalho

1
Apesar da produtividade dos conceitos de “escravidão tradicional” e “escravidão contemporânea” utilizados
por muitos autores que estudam as singularidades do trabalho contemporâneo atual, é importante lembrar que o
que se chama de “escravidão tradicional” é muitas vezes um universo de relações sociais muito mais vasto e
heterogêneo, como mostrado pelos estudos historiográficos. A escravização de populações indígenas e mesmo a
escravização africana anterior ao século XIX são alguns pontos fundamentais que não podem ser dissolvidos
nestas categorias mais amplas.
22

escravo em Mato Grosso. A análise dos dados é realizada sobre o pano de fundo das
transformações da economia e dinâmicas sociais na região e seu contexto global.
A terceira parte discute a centralidade da vida dos trabalhadores e da reprodução
da força de trabalho para a compreensão da morfologia da escravidão na era do ser humano
descartável. Para tanto, analisaremos temas como as doenças ocupacionais, acidentes de
trabalho, violências e outros atentados à vida dos trabalhadores, com o fim de compreender as
novas formas de exploração, controle e descarte dessas populações. Algumas palavras serão
dedicadas também à problemática da invisibilização do fenômeno da escravidão
contemporânea, através de um enfoque em que se interseccionam questões de raça, classe e
gênero. Neste tópico serão também analisados os tipos de trabalho escravo que ainda
permanecem à margem da política de erradicação construída no país, algumas possíveis
razões desses limites e os desafios à sua visibilidade. Por fim, concluo o capítulo com uma
discussão sobre liberdade e a escravidão a partir das narrativas de resistência/agência2 dos
trabalhadores em situações de escravidão e de produção coletiva de novas realidades.
Saltaremos do sofrimento individual para o sofrimento social e encerraremos retomando a
centralidade da discussão sobre erosão e sedimentação de solidariedades como resposta aos
desafios de nosso tempo.
Ao longo da pesquisa, buscamos responder às seguintes questões: 1) quais os
principais mecanismos de escravização na contemporaneidade em Mato Grosso? 2) Quais as
principais transformações na morfologia do trabalho escravo entre os anos 1970 (primeiras
denúncias de escravidão de peões na abertura de pastos e canaviais), anos 1990 (primeiras
ações fiscalizatórias no Brasil) e a década atual? 3) Como esses processos se inscrevem no
contexto da economia global e regional e nas transformações mais amplas do mundo do
trabalho? 4) O que está por trás das recentes disputas sobre o conceito jurídico do “trabalho
análogo ao de escravo” na legislação brasileira?

2
A perda de força no conceito de “resistência” no debate sobre a escravidão colonial aplica-se também no
presente caso. Segundo Tiago de Melo Gomes, tal perda de força teria ocorrido na década de 1990 e: “Não que
isso tenha implicado a ausência de reconhecimento do fato de que grupos dominantes tentaram à exaustão
suprimir (ou ao menos ‘civilizar’) práticas culturais dos grupos subalternos. Mas significou uma tentativa de ver
nesses setores dominados algo mais do que uma vontade inabalável de manter inalteradas suas práticas. Parecia
simples demais, àquela altura, imaginar que tantas pessoas se dispusessem a correr riscos apenas em função de
manter inalteradas práticas supostamente centenárias, uma visão que enfatizava em demasia a intencionalidade
política dessas atitudes e reduzia a complexidade dos processos a uma dicotomia entre ação dominante e
resistência subalterna. Naquele contexto, parecia essencial notar que as ações desses sujeitos sociais (muitos dos
quais afro-brasileiros pertencentes às camadas mais pobres da população) incluíam também a negociação, a
afirmação e mesmo a reforma de suas práticas, caso se percebesse a possibilidade de serem menos incomodados
pela polícia. Significou também notar que mesmo as ações dos grupos subalternos estão longe de ter sentidos
únicos, e podem indicar modos muito distintos de compreensão no interior do mesmo grupo” (GOMES, T. 2016,
p. 383-4).
23
24

NOTA METODOLÓGICA

Esta tese amparou-se no emprego integrado de pesquisa documental e empírica,


com destaque para a história oral. Neste tópico, exponho brevemente os problemas
enfrentados durante a realização tanto da pesquisa documental quanto da pesquisa de campo,
bem como as escolhas metodológicas assumidas ao longo dessas trajetórias.
A pesquisa enfoca a escravidão como parte integrante do modo de produção
capitalista, mas objetiva compreender mais profundamente as especificidades das formas de
escravizar que se configuram sob o capitalismo globalizado, bem como suas diferenciações
em nível local.
Num contexto em que as determinações da economia política sobre a
conceituação legal de "trabalho escravo" se fazem mais claras do que nunca e em que as
argumentações tanto em prol da redução quanto da manutenção da amplitude deste conceito
expresso no Código Penal exibem suas raízes nas lutas sociais, a história oral me pareceu um
recurso extraordinário para a compreensão de como a tão debatida escravidão contemporânea
tem sido percebida e vivenciada de fato pelos trabalhadores. E não só isso, as narrativas de
diversos agentes contribuem também para o entendimento dos próprios mecanismos reais
através dos quais as pessoas escravizam, são escravizadas, resistem à escravidão e lutam pela
manutenção (muitas vezes silenciosa) ou pela exposição e erradicação do trabalho escravo.
Na realidade do encontro com os entrevistados, na realidade de minha
participação e visitas realizadas em instituições atuantes no enfrentamento do trabalho escravo
(pela prevenção, repressão e assistência às vítimas), na realidade de minha vivência nas
operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM3, na realidade dos casos
concretos de escravização vivenciados e presenciados pelos entrevistados em seus diferentes
papéis sociais: é no real, segundo Burawoy, que a teoria acadêmica e os saberes populares
interagem para atualizar o conhecimento científico (BURAWOY, 2014, p. 48).
Esta pesquisa está inserida, portanto, no campo da sociologia reflexiva, uma vez
que a ciência reflexiva

elege o diálogo como seu princípio definidor e a intersubjetividade entre


participantes e observadores como sua premissa central. Isso une o que a
ciência positiva separa: o participante e o observador, o conhecimento e o

3 O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, criado em 1995 pelo Estado Brasileiro, consiste num grupo coordenado pela
auditoria fiscal do trabalho, que reúne auditores fiscais do trabalho, policiais e procuradores do trabalho e que realizam as
operações de combate ao trabalho escravo.
25

contexto social, a situação e sua posição no campo, a teoria popular e a


acadêmica (BURAWOY, 2014, p. 63).

Metodologia na pesquisa documental

Os documentos analisados incluem relatórios de inspeção do trabalho da


Auditoria Fiscal do Trabalho, dados da Comissão Pastoral da Terra, algumas peças judiciais
referentes a casos de trabalho análogo a de escravo, documentos do Congresso Nacional
relacionados a projetos de leis e emendas à constituição afetas à matéria, votos e discursos de
congressistas, além de matérias de jornal que auxiliaram na composição do panorama
histórico em que se insere o tema pesquisado.
Dentre todo material analisado, destaco os relatórios de inspeção do trabalho das
operações de combate ao trabalho escravo realizadas por auditores-fiscais do trabalho no
estado de Mato Grosso, que serão objeto de análise sistemática, representando um ponto
fundamental desta pesquisa. Os relatórios aqui analisados compreendem a totalidade das
operações de fiscalização de trabalho escravo em Mato Grosso desde a primeira operação em
1995 até o ano de 2013, conforme material disponibilizado pela Divisão de Erradicação do
Trabalho Escravo (DETRAE) do extinto Ministério do Trabalho.
Num primeiro momento da pesquisa, dediquei-me a um contato preliminar com
esse volumoso material, de modo a elaborar e testar e indicadores a serem utilizados na
pesquisa quantitativa.
Dada a minha condição de ser auditora fiscal do trabalho e ter atuado em Mato
Grosso por oito anos, inclusive no combate ao trabalho escravo, e já conhecer grande parte
dos relatórios dos anos recentes, dediquei especial atenção à leitura dos relatórios mais
antigos, com o objetivo de iniciar o estudo das transformações nas formas de escravizar e de
fiscalizar ao longo dos anos.
Centrei os esforços iniciais na escolha, elaboração e reformulação das variáveis
que vieram a compor a pesquisa quantitativa nos relatórios de fiscalização do GEFM. Ao
todo, a análise quantitativa desse material compreendeu o desenvolvimento de 19 variáveis: a)
atividade dos trabalhadores resgatados; b) forma de recrutamento; c) informalidade; d)
terceirização, subcontratação e intermediação; e) fornecimento de água para consumo dos
trabalhadores; f) locais para preparo e consumo de alimentos; g) instalações sanitárias; h)
26

alojamento e moradia; i) modalidades de remuneração; j) trabalho forçado; k) condições


degradantes de trabalho; l) jornadas exaustivas; m) servidão por dívida; n) vigilância armada;
o) violência física ou grave ameaça contra trabalhadores; p) isolamento geográfico; q) menção
do termo “forçado” na caraterização de trabalho escravo no relatório; r) menção do termo
“degradante” na caracterização de trabalho escravo no relatório; s) bem jurídico violado. O
processo de elaboração de cada uma dessas variáveis foi compilado na construção de um
Livro de Códigos. Algumas outras variáveis inicialmente criadas acabaram sendo descartadas
em razão de missing data e outras inconsistências, não tendo integrado o corpo analítico da
tese.
No que concerne à identificação dos elementos caracterizadores do trabalho
escravo em cada caso analisado ao longo do período selecionado – um dos principais
objetivos da pesquisa com relatórios de inspeção –, o trabalho aqui desenvolvido apontou que,
nesta etapa, trabalhar apenas com categorias jurídicas poderia resultar em sérias
inconsistências. Isso por um motivo muito simples: os conceitos jurídicos são objetos de
interpretação pelos operadores do direito, pelos doutrinadores encarregados da elaboração das
teorias jurídicas. São objetos de interpretação e objetos de disputa, a qual se dá tanto na teoria
quanto na jurisprudência. A heterogeneidade dos entendimentos, portanto, é uma
característica deste, como de todo fazer jurídico. Alia-se à heterogeneidade das interpretações
também a heterogeneidade dos próprios fatos e a complexidade e pluralidade dos mecanismos
de escravização.
Cito um exemplo para tornar a discussão mais inteligível: relatórios de
fiscalizações que relatam um mesmo tipo de ocorrência, a violência física sofrida por
trabalhadores, tiveram conclusões distintas quanto aos elementos de caracterização da
“condição análoga a de escravo”. Em alguns casos, a agressão física a trabalhadores ensejou o
enquadramento da situação como “trabalho forçado”. Em outros casos, o mesmo tipo de
ocorrência (violência física) foi enquadrado como “trabalho em condição degradante”. E, de
fato, a violência física é um fator de coação e degradação, interagindo com outros elementos
de modo a desempenhar mais um ou outro papel nas engrenagens da escravização.
A complexidade desses dados, longe de inviabilizar a pesquisa, apenas tornou-a
mais rica e desafiadora. Assim, optei por trabalhar com indicadores “pré-jurídicos” ao lado
dos conceitos jurídicos. Trata-se das situações fáticas elementares presentes nas ocorrências
de trabalho escravo contemporâneo e que são interpretadas e agrupadas de maneiras diversas
pelos agentes, conforme a análise das circunstâncias de cada caso: vigilância armada,
violência física, retenção de salário, desconto salarial indevido referente a obrigações do
27

próprio empregador (fornecimento de ferramentas de trabalho, equipamentos de proteção


individual etc.), dívidas contraídas pelos trabalhadores previamente ao início dos trabalhos,
dívidas contraídas durante o trabalho, condições da água fornecida para consumo dos
trabalhadores, situação dos alojamentos, extensão da jornada, dentre outros.
Os conceitos jurídicos, contudo, não foram abandonados. Foi preciso afastá-los
por um momento para construir indicadores mais fortes que auxiliassem na compreensão da
morfologia do trabalho escravo contemporâneo e na sua transformação ao longo das últimas
duas décadas. Por outro lado, somente com o entrelaçamento entre elementos pré-jurídicos e
elementos jurídicos presentes nos relatórios de fiscalização é possível apreender um
componente crucial de meu objeto de estudo: as diversas interpretações de leis e fatos e as
construções teóricas que formaram, ao longo de anos, as conceituações atuais de trabalho em
“condição análoga a de escravo”. A história do trabalho escravo contemporâneo no Brasil não
é apenas a história dos fatos, mas é também a história das interpretações.
Concomitantemente ao processo descrito acima, dei início a uma pesquisa
qualitativa nesses mesmos documentos (relatórios de fiscalizações realizadas em Mato Grosso
pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel de 1995 a 2013). Assim, entremeadas às
entrevistas que realizei durante a pesquisa e às análises quantitativas, figuram trechos de
depoimentos, descrições e análises contidas nos próprios relatórios de inspeção, conferindo às
categorias analisadas maior concretude, contextualização e complexidade. Para as citações
dos relatórios foram criados códigos, assim como foram utilizados codinomes toda vez que o
nome de algum dos envolvidos aparecia nos trechos selecionados.
As informações sobre violência no campo foram coletadas na publicação
Conflitos no Campo Brasil, organizada anualmente pela Comissão Pastoral da Terra, e
posteriormente rearranjadas para análise.
Por fim, outras fontes foram utilizadas, a exemplo de trechos de peças judiciais,
matérias jornalísticas e documentos do Congresso Nacional, com o intuito de compor o debate
sobre o conceito de trabalho escravo contemporâneo também a partir de seus elementos
políticos e jurídicos.

Metodologia na pesquisa de campo

As narrativas de trabalhadores, auditores, lideranças sociais, autoridades públicas


e da população envolvida no contexto em que o trabalho escravo contemporâneo se
28

materializa no Mato Grosso trazem à luz o que Joanoni Neto chamou de "memórias
subterrâneas", que se oporiam à memória oficial dominante (JOANONI NETO, 2013, p. 187).
Em muitos momentos, as narrativas dos agentes funcionam como contranarrativa em relação
ao discurso oficial; em outros, a exemplo da interpretação dos Relatórios de Inspeção,
desnudam o próprio teor de documentos confeccionados nos limites de sua razão prática. Em
outros ainda, apenas escancaram as contradições dos sujeitos, dos pesquisadores e do próprio
objeto de investigação.
O mais fascinante é que a história oral opera algo mais sutil do que a
complementação ou a contraposição: ela vira a história do avesso. É no avesso que se
desnudam as complexidades da agência e resistência das pessoas, o peso real de estruturas,
culturas e símbolos no universo de uma vida; é no avesso que se enxergam as costuras a partir
das quais se descortinam novos significados.
Minha opção por entrevistas não diretivas, mais próximas da conversa,
fundamentou-se principalmente na intenção de evitar que os discursos dos trabalhadores
entrevistados fossem meras repetições de seus depoimentos à fiscalização, polícia e sistema
de justiça. Uma vez que atuo como auditora fiscal do trabalho e muitos dos contatos que me
abriram as portas para conversar com trabalhadores resgatados de trabalho escravo têm
relação com minha atividade profissional, principalmente minha passagem de 3 anos pela
coordenação de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho e
Emprego em Mato Grosso (SRTE/MT), concluí que as entrevistas não poderiam de modo
algum representar, para o trabalhador, mais uma "colheita de depoimento" por uma auditora
fiscal do trabalho. Em muitos casos, inclusive, eu já teria acesso ao seu "Termo de
Declarações" contido no Relatório de Inspeção e a maior contribuição da pesquisa era
justamente o oposto: buscar outras palavras, as palavras que não couberam nos procedimentos
administrativos e no discurso oficial.
A questão de eu representar uma dupla autoridade, pesquisadora e auditora,
mereceu um cuidado constante no campo. A partir de minhas percepções sobre as entrevistas
realizadas e de leituras em metodologia de pesquisa, tornei-me consciente também da
oportunidade e responsabilidade de minha intervenção no campo como agente com
atribuições relacionadas ao objeto de pesquisa e não apenas como entrevistadora adstrita a
objetivos acadêmicos.
29

A assimetria da escravidão e as formas de entrevistar

Num estudo cujo objeto - a escravidão - nada mais é do que a assimetria extrema
das relações sociais e seus componentes políticos, morais e ideológicos, pensar a entrevista
como situação social torna-se imprescindível.
A discriminação racial e contra os pobres está na origem das desigualdades e da
questão agrária brasileira (LOURENÇO, 2001, p. 196-198) e se faz presente não só nos fatos
relatados nos relatórios de inspeção estudados, como também no próprio discurso de muitos
dos trabalhadores entrevistados.
A escravização tem sempre um componente moral. Assim como um forte discurso
de discriminação racial do negro acompanhou a escravidão colonial, também hoje a
degradação dos trabalhadores pós-abolição é praticada costumeiramente sob alguma
justificativa ideológica socialmente construída.
Além disso, o rebaixamento moral de si - com a introjeção da exclusão e estigmas
sociais4 - é, sem dúvida, um dos principais elementos que vulnerabilizam o ser humano e o
tornam mais suscetível à escravidão. Conforme aponta Figueira em sua pesquisa sobre
trabalho escravo contemporâneo e peonagem no Pará e Mato Grosso, “Ser tratado como algo
impuro, uma planta indesejável ou um animal repelente desqualifica a pessoa, degrada-a
diante de si e do outro” (2004, p. 293).
Nas entrevistas que realizei entre 2014 e 2016, essa questão por vezes veio à tona,
confrontando-me com alguns questionamentos metodológicos não apenas sobre a
representação que as pessoas faziam de si, mas também sobre como, na situação da entrevista,
a autodepreciação do trabalhador tido como "braçal" e "sem formação" estava
necessariamente implicada no tipo de relação estabelecida com a minha figura acadêmica,
associada à ideia de pessoa não só "formada" mas que "dita a formação". Afinal, é justamente
nas relações assimétricas estabelecidas com diversas autoridades que se arrogam o monopólio
do poder-saber que se forjam subjetividades obedientes e dóceis, alienadas de seus saberes, do
valor técnico e político de tais saberes.
Muitos trabalhadores atribuem sua experiência de terem sido submetidos a
trabalho escravo ao fato de não terem uma formação profissional e acadêmica específica. A
indignidade das condições de trabalho é muitas vezes assim justificada, tanto por
empregadores quanto por empregados. A produção da crença na indignidade e inferioridade

4
Ver Figueira (2004), Lourenço (2001) e Martins (2009).
30

de certos serviços e de quem os executa acaba servindo de justificativa para o injustificável:


as condições indignas e inferiorizantes a que são submetidos esses trabalhadores no ambiente
laboral.
Na entrevista com Antônio5, um trabalhador que havia sido vítima de trabalho
escravo, essa problemática irrompeu de modo a provocar uma transformação em minha
conduta de entrevistadora, o que se deu intuitivamente de início, mas posteriormente passou a
uma opção metodológica conscientemente adotada para o restante da pesquisa de campo.
A conversa com Antônio ocorreu em 2015, na Casa do Migrante - Cuiabá, num
momento em que ele participava de curso de operador de máquina em programa para
qualificação de pessoas egressas do trabalho escravo (Projeto Ação Integrada). Ao longo de
toda a conversa, ele me contava que havia sido tão vulnerável ao trabalho escravo por "não ter
profissão certa". Antônio descrevia as condições degradantes em que havia laborado e
afirmava: "Tem que fazer é isso, não tem profissão certa, aí nós era arriscado a pegar esse
serviço".
Entremeavam-se dois dados da realidade: a constatação de que a baixa
escolaridade é um fator de vulnerabilidade social e um juízo depreciativo sobre os trabalhos
que não exigem qualificação formal. Num dos momentos do diálogo, a relação entre a
desvalorização de seu próprio saber e a legitimação da dominação ficou mais clara. O
trabalhador já havia descrito sua atividade: administrar o tempo e consumo de gasolina da
motosserra, buscar gasolina, carregá-la para junto do operador de motosserra e acompanhar a
derrubada das árvores, explicando que sabe quando deve realizar cada tarefa a partir dos
diferentes sons do ronco da motosserra, fato esse que me impressionou. Em seguida, ao
conversarmos sobre trabalho escravo, os assuntos se fundiram.

Antônio: Por isso que é difícil, eu considero isso tipo uma escravidão, que a
gente para de ter aquela classificação de serviço... estudei um pouco
né...estudei até a quarta série. Não tenho serviço certo, só a força mesmo.
Giselle: Mas esse serviço que vocês fazem tem muita coisa que (...) exige
um conhecimento bem específico, né.... Por exemplo se você me colocar pra
ouvir aquele ronco... eu não vou saber que hora é pra trazer a gasolina. Isso é
conhecimento.
Antônio: É, né?

5
O texto apresenta nomes fictícios para todos os trabalhadores vítimas de trabalho escravo que participaram da
pesquisa empírica ou que constam da documentação analisada. Os demais entrevistados também foram
identificados por nomes fictícios sempre que assim optassem ou que a identificação de sua identidade pudesse
acarretar riscos pessoais. Nos demais casos, quando os participantes expressamente optaram por serem
identificados na tese, foram utilizados seus nomes reais.
31

Mais adiante, ele retomou o assunto e me disse "E sobre a motosserra... você ficou
admirada disso né...". Em seguida, relatou com detalhes a técnica que utilizava para saber
quando buscar a gasolina e onde se posicionar na mata enquanto seu companheiro derrubava
algumas árvores e o cuidado mútuo entre ele e seu companheiro de trabalho para não se
acidentarem numa atividade tão perigosa, contando um episódio em que escapou da morte:

Só pelo barulho. Aí eu vou lá pro meu lado. Porque eu conheço. Eu fiz a


base pelos minuto. No máximo é 30, 25, é a base do tanque cheio. Quando
está dando 27. Eu marquei pelos minutos. Quando ele tá perto de mim eu
vou lá pra frente. Os pau caindo pra tudo quanto é lado. Ele tava longe,
muita bananeira brava. É igual essas bananeira comum, mas lá no mato é
brava, não dá cacho não. E aí ele gritou "morreu, neguinho", aí eu saí
correndo, senti só as folhas.

Perguntei a Antônio, muito descontraidamente, se ele achava que eu e o


coordenador do projeto de qualificação profissional conseguiríamos executar a derrubada de
árvores com motosserra. Ele, rindo muito, disse que não. Rimos os dois. Ao final da
entrevista, também agradecemos os dois. Quando eu lhe disse "obrigada" por sua contribuição
com a pesquisa, ele respondeu "Obrigado você por ter vindo aqui. Foi muito bom conversar
com você".
O que percebi naquele momento da pesquisa foi que, em determinados contextos,
meu silêncio poderia avalizar juízos de desprezo que aquelas pessoas - que estavam abrindo
suas vidas para mim – aprenderam a fazer de si mesmas. E, mais além, um reforço da
ideologia dominante do desprezo pelos pobres, pelos negros, pelas mulheres, pela população
LGBT+, pelos nordestinos, pelos trabalhadores temporários, pelos trabalhadores ditos
"braçais" reduzidos a apenas isso: braços. Foi quando passei a adotar assumidamente a
conduta de emitir minha opinião ou propor algum questionamento e escutar a reação do(a)
entrevistado(a) à minha intervenção toda vez que tais assuntos vinham à tona. As entrevistas
que se seguiram foram, sem dúvida, as mais transformadoras.
Uma vez assumido que o(a) pesquisador(a) inevitavelmente interfere no campo e
o transforma, não havendo neutralidade possível, restou-me a decisão sobre a melhor maneira
de realizar a inevitável interferência. À intuição seguiu-se o aprofundamento do estudo
metodológico, que se enraizou na sociologia reflexiva, segundo a qual a entrevista

não é simplesmente um estímulo destinado a revelar a verdadeira condição


ou situação do entrevistado, mas sim uma intervenção em sua vida. A
entrevista retira o entrevistado do seu próprio tempo e espaço e o sujeita ao
tempo e espaço do entrevistador. Na visão da ciência reflexiva, a intervenção
32

não somente é uma parte inevitável da pesquisa sociológica, mas uma


virtude a ser explorada. É por reação mútua que nós descobrimos as
propriedades da ordem social. Intervenções criam perturbações que não são
ruídos a serem expurgados, mas músicas a serem apreciadas, transmitindo os
segredos ocultos do mundo dos participantes (BURAWOY, 2014, p. 63).

Muitas vezes o silêncio da pretensa neutralidade apenas endossa os valores


dominantes e vigentes, inclusive a visão elitista que pode informar como as pessoas de classe
mais baixa me enxergam, de baixo para cima, com o agravante de que o autoritarismo nas
relações é justamente um dos assuntos das entrevistas. Infelizmente, no Brasil, a maior parte
das relações se estabelece na verticalidade (de que a escravização do ser humano por outro ser
humano é o caso extremo) a não ser que se faça justamente isso: uma intervenção.
Daí a importância da reflexividade que, "para James Clifford, entre outros, (...) é
não só um instrumento de conhecimento, mas também de compensação das assimetrias (...)
entre o pesquisador e os sujeitos que pesquisa" (GUBER, 2011, p. 134-135, tradução nossa).
Este tema é importantíssimo, principalmente quando lidamos com sujeitos
constantemente submetidos a autoritarismos. Além disso, no caso dos trabalhadores desta
pesquisa – pessoas cuja relação com as instituições públicas se dá, na maior parte das vezes,
no formato do depoimento, do interrogatório e da oitiva –, a primeira tarefa da pesquisadora
no encontro com estes sujeitos deve ser justamente quebrar sua expectativa. Falar de um novo
lugar ou de novos lugares – e, quando possível, até desmoralizar, através do humor e da
franqueza, o lugar da autoridade –, eis a ambição da metodologia empregada, com a
convicção de que sem essa desconstrução não há como questionar as estruturas escravizantes
do mundo do trabalho.
A entrevista mais estruturada teria sido insuficiente, no caso de relações
claramente assimétricas como as desta tese, para refundar a relação com o outro6. Algumas
vezes, até mesmo nas entrevistas semiestruturadas, as estradas vicinais e picadas percorridas
com certa liberdade e informalidade estão subordinadas à rodovia pavimentada pela tradição,
pela posição claramente determinada do entrevistador e do entrevistado, aquele senhor do
próprio saber e autor solitário do roteiro da interação com o entrevistado, que é reificado. A
entrevista, como toda interação social, produz o elemento revolucionário da surpresa, mas, ao

6
"Assim como a observação participante pode seguir princípios positivos, as entrevistas podem seguir preceitos
da ciência reflexiva - o que eu chamo de método clínico. A psicanálise é o protótipo aqui, especialmente quando
o psicanalista é visto como um antropólogo reflexivo (CHODOROW, 1999). A relação entre o analista e o
analisado é dialógica e intervencionista. Cada qual reconstitui o outro. [...] O processo é o leitmofit da
psicanálise" (BURAWOY, 2014, p. 89).
33

se reportar a uma estrutura previamente construída, a uma direção estabelecida, a um diretor,


é novamente subjugada pelo caminho do conhecido7.
A partir de tais reflexões, pratiquei uma entrevista menos estruturada, próxima da
conversa. E, mais adiante, percebi que a riqueza das interações desestruturadas estava,
primordialmente, no fato de elas serem também desestruturantes.
Afinal, "A entrevista é uma situação face a face onde se encontram distintas
reflexividades, mas, também, onde se produz uma nova reflexividade" (GUBER, 2011, p. 70,
tradução nossa). E, assim sendo, a não ser que se leve em consideração a própria estrutura das
interações sociais e se questione as estruturas das entrevistas realizadas na pesquisa, a
reflexividade produzida será uma reafirmação inconsciente de velhos autoritarismos que
instituem o outro como escravo, como força braçal destituída de conhecimento; e o
pesquisador, como detentor de todo saber válido, como único sujeito.
A estrutura mantida foi a dos procedimentos éticos: a exposição inicial feita por
mim sobre os objetivos da pesquisa, o convite e esclarecimentos sobre a participação, a
assinatura do termo de consentimento e a limitação de utilização do material ao permitido por
cada participante. No texto aqui apresentado, a identidade dos entrevistados foi protegida,
utilizando-se nomes fictícios nas citações de suas falas. Esta escolha, na versão da tese ora
apresentada, estendeu-se a todos os participantes, inclusive aqueles que me haviam concedido
permissão para divulgação de seus nomes.

7
Neste sentido, Portelli afirma que “entrevistas rigidamente estruturadas podem excluir elementos cuja
existência ou relevância fossem desconhecidas previamente para o entrevistador e não contempladas nas
questões inventariadas. Tais entrevistas tendem a confirmar a moldura de referência prévia do historiador”
(1997, p. 35).
34

CAPÍTULO 1: A ESCRAVIZAÇÃO DO SUJEITO LIVRE

“Fomos expulsos da fazenda, como que culpados pela


nossa vida, ou morte, não sei. Sem a menor direção de
qualquer raio de sol. Se não sabíamos onde estávamos
esse tempo todo, imagina agora saber para onde ir. E
fomos...” (Xico Cruz, Conto Escravidão)

1.1. Escravidão como questão de desigualdade e exploração

A incompreensão (ao menos parcial) do fenômeno da escravidão num país como o


Brasil, fundado em relações escravocratas e colonialistas, é um grave entrave não apenas para
as ciências sociais, como para o próprio desenvolvimento das instituições e relações humanas.
O objetivo deste capítulo é propor um ponto de partida teórico para o debate sobre
a escravidão contemporânea alicerçado na exploração e na desigualdade, e não na afronta à
liberdade. E, por conseguinte, abrir caminho para novos pontos de chegada em diversos temas
correlatos: a relação entre a escravidão do Brasil Colônia e Império e a escravidão
contemporânea, as especificidades da escravidão brasileira no contexto global e os pontos
cruciais da atual disputa em torno do conceito de “trabalho análogo a de escravo” no país.
Na introdução de seu livro A abolição, Emília Viotti da Costa escreve:

O Brasil era o último país do mundo ocidental a eliminar a escravidão. Para


a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a
questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados à sua própria
sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em
realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não
lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica
não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os
preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado8. A Lei
Áurea abolia a escravidão mas não seu legado. Trezentos anos de
opressão não se eliminam com uma penada. A abolição foi apenas o
primeiro passo na direção da emancipação do negro. Nem por isso deixou de
ser uma conquista, se bem que de efeito limitado” (COSTA, E., 2010a, p. 12,
grifo nosso).

8
“O fato é que, num momento em que o abolicionismo, mesmo que gradual, prometia a quimera da liberdade, já
o tema da igualdade estava outra vez em questão: não mais por causa do sistema escravocrata, mas agora em
nome da ciência e da biologia, que determinavam de maneira categórica que ‘os homens não nasciam iguais’”
(SCHWARTZ, L., 2018, p. 408).
35

A autora recupera também este interessante trecho de um dos discursos da Câmara


dos Deputados dirigidos à Princesa Isabel (resposta à Fala do Trono), no bojo da aprovação
da abolição da escravatura, em que os deputados afirmam:

Desfizemo-nos Senhora, do ominoso legado que apenas por constrangimento


da indústria agrícola havíamos mantido até hoje, restituímos à
personalidade humana os foros integrais de sua dignidade em face do
princípio de igualdade política; consagramos o da uniformidade da
condição civil e eliminamos assim da legislação a única exceção repugnante
com a base moral do direito pátrio, e com o espírito liberal das instituições
modernas (COSTA, E., 2010a, p. 11, grifo nosso).

Ao retomarmos essa lúcida leitura da abolição da escravidão no Brasil, queremos


apenas nos firmar sobre quatro pontos cruciais, a fim de que possamos em seguida alcançar,
sem distorções, nosso objeto de estudo propriamente dito, que é o trabalho escravo
contemporâneo.
O primeiro ponto é que o abolicionismo, em última análise, não é uma questão de
liberdade (apesar de também atingir a liberdade), mas fundamentalmente uma questão de
igualdade. O cativeiro dos negros pela empresa colonial foi, de fato, a forma pela qual se
praticou a escravidão à época, porém, não constitui a única forma possível de escravatura de
uma população. A escravidão nada mais é do que a submissão de uma população por outra a
uma condição de inferioridade que a obrigue a servir seus superiores. A forma como essa
dominação se torna estrutura, prática e crença é histórica: varia no tempo e no espaço em
consonância com as conformações sociais e as dinâmicas territoriais. Assim, cada modo de
produção cria seus modos de escravizar e cada territorialidade encontrará, também, ainda que
inscrita numa ordem global, suas especificidades, conforme estudaremos em seguida no caso
do estado de Mato Grosso. Por outro lado, o estudo mais aprofundado do local nos ajudará a
desvendar lógicas de exploração sistêmicas que transcendem as fronteiras do território
estudado e podem nos auxiliar a compreender fenômenos mais abrangentes do mundo do
trabalho.
O segundo ponto, que tem relação com o anterior, é que o racismo não é um
subproduto da colonização europeia que permaneceu entre nós como legado nefasto do
escravismo. O racismo é um sistema ideológico que se originou na Europa, simultaneamente e
em conexão com o colonialismo, que serviu de fundamento legitimador da conquista e
dominação de outros povos e territórios. A concepção da humanidade como subdivida em
raças desiguais por natureza é o verdadeiro fundamento da escravidão de um ser humano por
36

outro (biologicamente iguais, uma vez que as raças são um construto social de dominação,
mas não existem biologicamente).
O terceiro ponto é que a dignidade humana já era a fundamentação política e
jurídica do abolicionismo no século XIX, não havendo que se falar em mudança do paradigma
da “liberdade” para a “dignidade” no campo do combate ao trabalho escravo pelo direito
contemporâneo brasileiro. Que a escravidão colonial atuasse contra a liberdade das vítimas e
que a escravidão contemporânea opere cada vez mais através dessa liberdade, isso em nada
afeta o coração da escravidão, que é crença de que há populações mais dignas do que outras.
As formas pelas quais se expressa o desprezo pelas raças tidas como inferiores e os
mecanismos encontrados para subjuga-las de modo a que produzam para os dominantes (as
“raças senhoras”9) sofrem enormes variações ao longo da história. Por isso, a abolição da
escravidão em 1888 deve ser entendida como a abolição de uma escravidão, não de todas as
escravidões. Além disso, tratou-se de abolição formal que teve grande impacto, mas não
poderia impedir relações escravistas de se reproduzirem às margens da lei.
O quarto ponto é que a escravidão tal qual era praticada no Brasil a partir do
colonialismo (exercendo-se sobre os escravos todos os poderes do direito de propriedade) foi
perdendo a força e sentido nas novas relações sociais que se impunham externa e
internamente, encarnadas nos valores do liberalismo. A abolição em 1888 ocorria, portanto,
num contexto de luta política, mas também de transformações da economia política em que as
velhas formas de servidão e as novas necessidades de exploração entravam em choque.
Alguns paralelos importantes para a análise da escravidão contemporânea também
podem ser estabelecidos retomando a condição de trabalhadores livres e escravos que
coexistiam pouco antes da abolição. Emília Viotti da Costa (2010a) retrata o trabalhador
nacional livre em meados do século XIX, quando a escravidão perdurava a despeito da
proibição do tráfico e os preços dos escravos subiam:

O trabalhador nacional vivia na periferia dos latifúndios, em pequenas


propriedades, dedicando-se à economia de subsistência e só esporadicamente
se dispunha a trabalhar nas fazendas. Muitos eram moradores em fazendas,
onde, em troca do usufruto da terra, desempenhavam algumas tarefas que os
proprietários não consideravam adequadas a seus escravos, por exemplo, as
derrubadas de matas, que, por oferecerem risco de vida, eram em geral
entregues aos trabalhadores livres (COSTA, E, 2010a, p. 34, grifo nosso).

9
Conceito utilizado por Pietro Basso em seu livro Razze schiave e razze signore (“Raças escravas e raças
senhoras”).
37

Esta passagem é esclarecedora, porque nos remete diretamente à expansão


agropecuária na região amazônica na segunda metade do século XX, em que a mesma
atividade de derrubada de matas passa a ser, ao contrário, uma típica atividade dos novos
escravos. Os motivos, todavia, permanecem os mesmos: trabalhos que oferecem maior risco
de vida são entregues à “mão de obra considerada mais descartável”.
No Brasil do final do século XX e início do XXI, que é o período por nós
estudado, observa-se claramente a fusão desses dois tipos abstratos de trabalhadores: o
escravo vendido, comprado, utilizado e cuidado enquanto propriedade; e o trabalhador
nacional livre que respondia por seu próprio risco de vida, mas que tinha algum acesso à terra
poupando-o de explorações excessivas no mundo do trabalho heterônomo.
O escravo de hoje no Brasil, diferentemente do período colonial e imperial, é
aquele que desempenha as atividades que oferecem maiores riscos à vida, agravos à saúde
física e mental e remunerações que mal permitem sua sobrevivência, pois se trata, agora, de
uma população de “escravos livres”, cuja morte não representa prejuízo econômico para seu
empregador. Por outro lado, processos de expropriação de terra (dos camponeses, populações
tradicionais e pequenos produtores) e concentração fundiária também contribuíram para a
fusão destas duas figuras, eliminando o poder de resistência à exploração representado pelo
acesso à terra e possibilidade de produção para subsistência.
Os racismos e estigmas também são sobrepostos e recriados, de forma que nas
últimas décadas, quando ouvimos relatos sobre fazendeiros que afirmam que “direito de
maranhense é levar um tiro”10, no estudo da peonagem11 por exemplo, podemos perceber que
muitas discriminações sofridas pelos nordestinos em razão de sua origem combinam de forma
velada dominações de raça e de classe. A “ralé brasileira”, já presente na obra de Florestan
Fernandes e estudada por Jessé Souza, origina-se da reunião destas diferentes populações já
produzidas enquanto escórias da humanidade: a ralé europeia de “preguiçosos e
subversivos”12 combinada com a ralé das populações ameríndias e africanas consideradas
“primitivas”.

10
Aprisionados por promessas: a escravidão contemporânea no campo brasileiro (documentário). Brasil: Centro
pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Witness, 2006. Disponível
em: http://escravonempensar.org.br/biblioteca/aprisionados-por-promessas/ (acesso em 18/04/2017).
11
A peonagem em Mato Grosso, como detalharemos um pouco mais no próximo capítulo, compreendeu
predominantemente trabalhadores nordestinos migrantes explorados em áreas de expansão da fronteira
agropecuária.
12
Sobre os conflitos entre colonos e fazendeiros, Emília Viotti da Costa (2010, p. 35) expõe: “Queixavam-se de
que eram tratados como escravos, forçados a comprar mantimentos no armazém da fazenda onde tudo era mais
caro, que não recebiam o que lhes era devido, que as contas eram fraudadas e que os fazendeiros lhes
entregavam os cafezais em formação - os quais ainda não produziam ou cuja produção ainda era pequena -,
38

No contexto atual em que tantas escravidões, exclusões sociais e discriminações


se renovam dando origem a neocolonialismos e neorracismos de diversos matizes e
complexidades, a força da categoria “trabalho escravo” no Brasil é reveladora. Considerando
que o racismo enquanto sistema de dominação moderno classifica como populações escravas
(“raças escravas”, segundo Basso, 2000) os não-brancos, não-proprietários e não-homens,
observamos que no Brasil aspectos estritamente raciais e de gênero permanecem à margem no
debate sobre escravismo. Mulheres cis e transgênero ainda pouco aparecem nas estatísticas de
“trabalho análogo ao de escravo”13. Muitas vezes, as atividades remuneradas que exercem (e
nas quais são exploradas e escravizadas) mal são reconhecidas como “trabalho”. Além disso,
as discriminações raciais contra populações não-brancas (con)fundem-se com as
discriminações de classe, criando uma imprecisão compreensiva que, perversamente, viola-
nos política e socialmente e afirma ideologicamente o ideário falacioso do Brasil como
democracia racial.
Portanto, se no Brasil colônia a escravidão se fundamentava numa desigualdade
jurídica, após 1888, com a universalização do status de sujeito de direito em nosso
ordenamento jurídico, a escravidão continuará sendo uma questão de desigualdade. Uma
desigualdade que, agora, é realizada contra o direito, mas também através dele, no bojo das
novas dinâmicas entre formas de exploração e estruturas do Estado capitalista.

1.2. Trabalho livre e trabalho escravo

Esta pesquisa parte da premissa de que a dicotomia trabalho livre/trabalho escravo


não se sustenta em termos absolutos, pois toda escravização tem um componente de
“negociação” e de escolha do menor dos males (STEINFELD, 2001), assim como todo
trabalho inserido no livre mercado está, no mínimo, balizado pela pressão elementar da busca
por sobrevivência de uma classe que vive do trabalho e que raramente labora nas condições
que deseja.
Se a relação entre trabalho livre e trabalho escravo não é a de duas categorias
estanques e opostas, mas a de dois polos de um continuum que comporta vastas gradações, o
que é chamado de “trabalho livre” ou de “trabalho escravo” atualmente é estabelecido por lei.

reservando para seus escravos os cafezais mais produtivos. Os fazendeiros, por outro lado, acusavam os colonos
de não respeitarem os termos do contrato, de serem preguiçosos e desordeiros - a ralé da Europa”.
13
Porém, como veremos, aparecem nos dados de tráfico de pessoas, daí a importância de integração dessas bases
de dados.
39

São as normas internacionais e domésticas, fruto de longas e acirradas lutas populares por
direitos fundamentais, que determinam um padrão civilizatório mínimo a ser obedecido, sob
pena de se violar a dignidade humana, princípio norteador dos ordenamentos jurídicos
modernos. Nas palavras de Steinfeld (2001, p. 321): “Os direitos de cidadania pareciam exigir
que as leis proibissem a completa mercantilização do trabalho. Sob as políticas contratuais
restritivas do trabalho livre assalariado moderno, os trabalhadores só podem vender suas
energias pessoais dentro de certos parâmetros”14.
Neste sentido, qualquer conceito de escravidão alicerçado na ideia de
involuntariedade parece problemático. Afinal, até mesmo na escravidão colonial atlântica de
populações africanas, em que as pessoas escravizadas não eram consideradas seres humanos
“com alma” nem tinham status de sujeito de direito, mas eram tratadas apenas como
mercadorias, havia, na relação entre escravizado e senhor, inúmeras nuances de barganhas,
pressões, concessões e negociações que envolviam a manifestação e exercício
(limitadíssimos, é certo) da vontade do escravizado, sua resistência e protagonismo15.
O conceito de trabalho escravo como sendo aquele extraído de modo a neutralizar
totalmente a vontade e agência de um indivíduo é problemático por dois motivos principais.
Primeiramente, porque ele ignora os espaços de resistência, negociação e luta conquistados
pelos dominados. Em segundo lugar, porque permite, em última instância, que prosperem
argumentos questionáveis quando nos deparamos com situações em que abusos e violências
extremas são utilizados para dominar um indivíduo manipulando o pouco que lhe resta: sua
vontade de sobrevivência. É o caso da corrente escravagista que “retratava a escravidão como
completamente consensual, advinda de um acordo implícito em que o escravo
voluntariamente oferecia a seu senhor o controle absoluto sobre sua pessoa, em troca de poder
permanecer vivo”16 (STEINFELD, 2001, p. 15). Nos termos jurídicos, consolidados nos
institutos do direito civil moderno, a coação vicia o consentimento do indivíduo. Isto é,
alguém que consente em realizar um trabalho degradante sob ameaça de morte não está
manifestando livremente, com tal “anuência”, sua verdadeira vontade. Entretanto,
paralelamente à importância das construções jurídicas que atestam a invalidade de atos
produzidos com vícios de consentimento, é preciso compreender também que, no plano das

14
No original: “Rights of citizenship seemed to demand that the law prohibit the complete commodification of
labor. Under the restrictive contracts policies of modern free wages labor, workers can only sell their personal
energies on certain terms”.
15
Ver Azevedo, 2010.
16
No original: “portrayed slavery as completely consensual, arising out of an implicit agreement in which the
slave voluntarily granted to his master absolute control over his person in exchange for his life”.
40

relações de poder, é justamente essa anuência coagida (cada vez mais invisivelmente coagida)
que tem colocado a nova escravidão em movimento.
Além disso, o vínculo de trabalho (e, portanto, também o trabalho escravo) é uma
relação que se prolonga no tempo em circunstâncias cambiantes. A escravidão pode ter início
no consentimento de trabalhadores aliciados através de promessas que posteriormente se
revelarão fraudulentas. Neste caso, a voluntariedade inicial pode se converter em
involuntariedade num segundo momento, quando se apresentam as condições reais do
trabalho. Aqui, ainda, o direito pode considerar que a promessa enganosa vicia o
consentimento inicial do trabalhador, não gerando maiores problemas interpretativos.
Entretanto, há um leque crescente de práticas de trabalho escravo que não podem
ser apreendidas sob a ótica da ausência ou vício de consentimento. As condições extremas e
descumpridoras do patamar mínimo garantido em lei (nos tempos atuais, o respeito à
dignidade humana) podem ser insuficientes para que determinada pessoa queira retirar-se
daquela relação de trabalho. Infelizmente, há pessoas que migram em razão de violências e
misérias tão agudas que, ainda quando submetidas à escravidão, terão que avaliar qual é o
menor dos males. E podem, inclusive, chegar à conclusão de que a situação de trabalho
escravo é menos gravosa. É o caso dos bolivianos que trabalham exaustivamente e em
condições degradantes por salários ínfimos em oficinas de costura em São Paulo e dos
nordestinos que habitam cidades desoladas pela seca e pelo desemprego e se tornam peões de
trecho migrando para onde houver qualquer serviço. Em contextos internacionais, é também o
caso dos milhares de migrantes que saem da África em direção à Europa, correndo graves
riscos que, provavelmente, não superam os riscos que os impeliram para fora de seus países
de origem.
Nos dias de hoje, em que a escravização é muitas vezes mediada por uma pretensa
“autonomia de contratar” típica do mercado capitalista, não podemos esquecer que grande
parte das histórias das pessoas escravizadas se inicia com uma realidade extremamente nociva
vivida pelo indivíduo em seu local de origem, que o faz migrar ou buscar desesperadamente
qualquer outra oportunidade. Muitas das meninas traficadas e exploradas sexualmente na Ásia
tornam-se vítimas fáceis após o falecimento dos pais ou diante da violência doméstica sofrida,
que as fazem preferir sair de casa e buscar qualquer trabalho, momento em que podem ser
enganadas pelas poderosas redes do crime organizado.
Steinfeld (2001, p. 15, tradução nossa) cita uma argumentação elaborada em 1918
pelo magistrado Oliver Wendell Holmes no sentido de que
41

Interessa sempre a quem está sob coerção a escolha entre o menor de dois
males. Porém, o fato de que uma escolha tenha sido feita de acordo com o
interesse [que não subjuga a vontade] não elimina a coerção. Trata-se da
característica da coerção propriamente dita17.

Em nosso ordenamento jurídico, tem-se que o consentimento ou não da vítima de


trabalho escravo é irrelevante para a tipificação do crime:

A conduta de escravizar não se limita à violação da liberdade física e pode


existir mesmo havendo liberdade de locomoção. A vítima é livre do ponto de
vista físico para deixar o trabalho, mas não o deixa porque se sente escravo.
A escravidão se estabelece de forma sutil e complexa com a participação de
vários agentes e até com o consentimento da vítima (CASTILHO, 2000, p.
57).

O consentimento da vítima de trabalho escravo é irrelevante para a caracterização


da escravidão, dentre outros motivos, porque as violações e privações sofridas na vida
pregressa dos trabalhadores não podem jamais servir para autorizar sua escravização futura.
Esse é, em verdade, o mecanismo utilizado pelos escravizadores para abusar da
vulnerabilidade identificada em certos trabalhadores, mecanismo este que não poderia ser
reproduzido pelos operadores do sistema protetivo de direitos sociais18.
Brito Filho (2014b) discute a questão em termos de “anulação da vontade” para
dar conta das situações em que as circunstâncias e ações de que a pessoa escravizada é vítima
não lhes permite uma escolha efetivamente livre. Boa parte dos casos de trabalho compulsório
pode ser compreendida e enfrentada com este instrumental, de fato. Contudo, para
entendermos outras nuances da escravidão contemporânea, a exemplo da jornada exaustiva

17
No original: “it always is for the interest of a party under duress to choose the lesser of two evils. But the fact
that a choice was made according to interest [rather than the will being overborne] does not exclude duress. It is
the characteristic of duress properly so called”.
18
Aqui reside o motivo pelo qual o Protocolo de Palermo e o direito brasileiro acolhem a irrelevância do
consentimento das vítimas para a caracterização, respectivamente, do tráfico de pessoas e do trabalho análogo ao
de escravo. No caso do Protocolo de Palermo, tais conceitos são textualmente esclarecidos em seu art. 3º, que
dispõe: “Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou
a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade
ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição
de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, à servidão ou à remoção de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de
pessoas, tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo, será considerado
irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico
de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d) O termo
“criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos”.
42

em que o trabalhador se oferece a níveis insuportáveis de exploração para tentar receber um


salário digno, compelido por regimes remuneratórios abusivos, há também que se levar em
questão o oposto: a manipulação da vontade.
Portanto, apesar da figura jurídica de nosso ordenamento reportar-se a uma
“analogia à escravidão legalizada pré-1888” (o crime previsto no Código Penal brasileiro é o
de “reduzir alguém a condição análoga a de escravo”), enquanto fenômeno social não se trata
de trabalho análogo ao de escravo, mas sim de novas formas e nuances de escravidão19. Não
se trata, tampouco, de um ressurgimento do trabalho escravo no Brasil a partir das décadas de
1960 e 1970, mas sim da permanência da escravidão, sob variadas formas, mesmo após sua
abolição formal. A escravidão em relações tidas formalmente como “trabalho livre” se fez
presente em toda nossa história pós-abolição. Desde a exploração de libertos que não tinham
perspectivas de vida e tiveram que se submeter aos fazendeiros escravagistas logo em seguida
à abolição, até a presença de práticas de coerção, violências e imobilização da força de
trabalho no colonato (fazendas de café em São Paulo), na “morada” (plantation açucareira no
Nordeste) e, por fim o regime de endividamento e pistolagem a que eram submetidos os
seringueiros na Amazônia do início do século XX20 (ESTERCI, 2008, p. 62).
O depoimento de Daniela, uma auditora fiscal do trabalho que viveu no Acre e
Rondônia e teve grande atuação na fiscalização do trabalho escravo, esclarece esta passagem
histórica:

Em 70, estava na Amazônia, mas ainda em Rondônia. Na década de 70, fui


ao Acre, peguei toda a parte de desmatamento, da formação de fazenda, na
área de Xapuri, Brasileia, quando queimavam os seringais, o barraco do
pessoal, botavam para correr, matavam muita gente, na época da campanha
do Chico Mendes para não desmatarem. [...] Minha 1ª vivência de trabalho
escravo é de vida, porque nasci e me criei na Amazônia. Então, a
problemática dos seringais, que antecede essa da agropecuária na Amazônia,
tinha que ter esse sistema de escravização. Tinha o sistema de
endividamento, de eles não poderem sair. Nunca tinha um saldo. Uma
ressalva que faço: o seringueiro tinha direito de caçar e pescar, então ele não

19
Por esta razão, neste trabalho apenas utilizaremos a expressão “condição análoga a de escravo” para nos
referirmos ao enquadramento legal das situações de trabalho compulsório aqui pesquisadas. É sempre bom
lembrar que não há qualquer incompatibilidade entre os termos “trabalho ou condição análogos a de escravo” e
“trabalho escravo”, uma vez que o primeiro consiste em termo técnico jurídico (que, no sistema da justiça, deve
ser utilizado respeitando a boa técnica do campo) e o segundo consiste num termo cunhado através da lutas
sociais e elaboração intelectual externas ao campo do direito, que buscam compreender o fenômeno social e
contribuir para sua visibilidade e superação. O nome que o direito atribui aos fenômenos não altera a natureza
dos mesmos (apesar de alterar, sim, as possibilidades e formas em que se pode organizar a luta em torno dessas
realidades).
20
Segundo Esterci (2008, p. 62), “a imobilização dos trabalhadores nos seringais da Amazônia persistia, muito
localizada, alternando períodos de relaxamento e de recrudescimento, e chegou, embora debilitada, ao limiar dos
anos de 1990”.
43

passava tanta fome como os mais modernos, porque os seringais eram


instalados sempre com o ponto de partida de um rio. Tinham caça, pesca,
muitos não podiam plantar por não ser permitido, alguns seringais
permitiam, mas o sistema de escravização era esse, trabalhavam muito sem
conforto, sem segurança e sem liberdade para sair.

O que houve, sim, na segunda metade do século XX, foi a conformação de novas
formas de escravização, do que se convencionou chamar de “trabalho escravo
contemporâneo”, no momento em que se constata a proliferação de práticas escravistas e de
“imobilização da força de trabalho” no bojo do processo de “modernização” da agricultura a
partir da década de 1960, colocando uma questão para as ciências sociais: “Liquidada,
praticamente, nas áreas em que havia prevalecido por tanto tempo, por que a imobilização
ressurgiria exatamente nos anos marcados pela modernização?” (ESTERCI, 2008, p. 63).
Hoje, num momento diverso das dinâmicas estudadas por Esterci, cabe uma nova pergunta:
por que o trabalho escravo persiste após a consolidação do agronegócio em Mato Grosso?
É justamente esse momento histórico de transformação que é o objeto do presente
estudo. Aqui, pretendo examinar os casos de trabalho escravo constatados no estado de Mato
Grosso na transição do século XX para o XXI, buscando chaves que possam contribuir para a
compreensão da morfologia e da gramática destas novas formas de escravização e de luta por
igualdade, dignidade e liberdade substantiva.

1.2.1. Liberdade e servidão na formação do mercado de trabalho assalariado

Os estudos sobre a história do trabalho assalariado apontam a conformação


dúplice e contraditória do contrato de trabalho assalariado, detentor de uma face libertária e
outra escravizante:

Como relação de mercado, o trabalho assalariado toma da ordem mercantil


sua igualdade, sua liberdade. Como relação de ‘serviço’, o ‘trabalhador ou
obreiro [...] desempenha uma tarefa para outra pessoa’ e é, ‘não temamos
reconhecê-lo, um servo (HICKS, 1973, apud MOULIER-BOUTANG, 2006,
p. 152, tradução nossa).

Essa ambivalência, afirma Mouiler-Boutang (2006, p. 152-3), é constitutiva, isto


é, está presente nas origens do trabalho assalariado e segue reaparecendo sob novas formas,
sem que tenha sido jamais suprimida. Tal contradição central que caracteriza o contrato de
44

trabalho assalariado é desvendada no campo jurídico pela análise de Pachukanis (1989), como
veremos adiante.
Segundo Brass (2013, p. 571), a contribuição do marxismo para a compreensão da
ligação entre desenvolvimento capitalista e formas contemporâneas de escravização –
rompendo com o conceito chamado de “chicotes e correntes” (whips and chains) – foi de
grande importância, por demonstrar que o trabalho não-livre (unfree labour) não só é
compatível com a acumulação capitalista, mas que, em determinadas circunstâncias, ele é “a
relação escolhida” pelo capital21. O aprofundamento dos estudos sobre o tema tem
demonstrado que, além do papel fundamental desempenhado pela escravidão na acumulação
primitiva que impulsionou a consolidação do capitalismo22, também na atualidade o trabalho
escravo “não é resquício do processo de expansão do capital, mas um de seus instrumentos”
(SAKAMOTO, 2011, p. 32)23.
Porém, não basta defender que a escravidão constitui parte fundamental da
dinâmica do capitalismo na contemporaneidade. É preciso também entender a especificidade
capitalista da forma atual de escravizar. Se houve escravos “tanto na economia antiga como
na época medieval, no capitalismo comercial e na época industrial” e “ainda hoje, no nosso
mundo dito pós-industrial, existe escravidão” (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 38), fato
é que em cada sociedade e momento histórico a escravidão toma contornos singulares. No
nosso caso, trata-se de compreender a morfologia da escravidão numa sociedade fundada
sobre a ideia de universalização da liberdade formal.
A substituição do trabalho escravo, politicamente controlado, pelo trabalho
formalmente livre e mobilizado em fluxos migratórios (contando com grandes contingentes de
migrantes nacionais e internacionais), surgiu como uma necessidade no processo de

21
A partir da década de 1980, a teoria marxista sobre a desproletarização confrontou a tese então predominante
de que a substituição de trabalhadores não livres por trabalhadores livres caracterizaria a transformação
capitalista do setor agrário, ao mostrar que, ao contrário, as relações não livres eram reproduzidas, introduzidas
ou reintroduzidas tanto na Índia quanto na América Latina (BRASS, 2013, p. 571).
22
O sistema colonial, “como fonte de acumulação originária de capital, potenciou o desenvolvimento do
capitalismo comercial dos séculos XVII e XVIII, concentrando riqueza na Europa por intermédio do monopólio
do tráfico de escravos” (HIRANO, 2005, p. 39). Nos princípios do desenvolvimento industrial capitalista, do
sucesso ou fracasso do tráfico negreiro dependia o progresso ou a ruína de todos os demais comércios
(GASTON-MARTIN, apud WILLIAMS, 2012, p. 283). Assim: “O capitalismo mercantil do século XVIII
desenvolveu a riqueza da Europa por meio da escravidão e do monopólio. Mas, com isso, ajudou a criar o
capitalismo industrial do século XIX” (WILLIAMS, 2012, p. 284).
23
Assim, para Sakamoto, a erradicação do trabalho escravo contemporâneo não decorrerá de medidas
mitigadoras como a libertação de trabalhadores, exigindo, mais do que isso, a mudança da própria estrutura do
modo de produção, da forma de expansão do capital. Também Figueira e Freitas (2011, p. 292) pontuam que
“Enquanto houver homens e mulheres em situação de pobreza e desemprego, haverá gente disponível ao
aliciamento para uma atividade que vai além da exploração: as pessoas serão tratadas como se fossem objetos,
coisas, vítimas de comercialização e submetidas a tratamentos degradantes – por isso, tratadas como se fossem
escravas –, e não haverá Código Penal ou medidas curativas que erradicarão do Brasil sua prática”.
45

“desagregação dos monopólios mercantilistas e da substituição dos privilégios protecionistas


pela ideologia do ‘livre jogo do mercado’” (HIRANO, 2005, p. 8-9).

Nesse contexto, o conceito de trabalhador diuturno e incessante torna-se uma


necessidade para alimentar a acumulação capitalista. Para que se utilize
como elemento propulsor da produção da mais-valia absoluta e relativa, este
trabalhador precisa se revestir formalmente com o manto da liberdade, com a
regra da igualdade e com a ideologia da justiça social, o que o torna uma
mercadoria singular que fala e se expressa no coração do mercado
(HIRANO, 2005, p. 12).

Concomitantemente à gestação do liberalismo como prática econômica, ocorre


também a construção do liberalismo como doutrina política24 (HIRANO, 2005, p. 17), que
permeou as transformações sociais no Brasil ao longo do século XIX, desde a extinção do
estatuto colonial até a abolição da escravidão, com a “desagregação lenta e heterogênea, mas
progressiva, da própria ordem colonial (FERNANDES, 2006, p. 55).
As concepções filosóficas e morais – que se tornaram hegemônicas no ocidente
com a consolidação do poderio da burguesia na Europa no século XVIII e, posteriormente,
também na formação do capitalismo periférico brasileiro entre os séculos XIX e XX –,
caracterizam-se pelo individualismo e racionalismo, manifestos na ideia de contrato social25
firmado entre indivíduos racionais. Neste contexto é que se desenvolve o conceito de sujeito
nas teorias jurídicas, de que trataremos mais adiante.
Ora, o modo de produção capitalista requer que haja a valorização do capital
através da parte não paga do dispêndio de força de trabalho, o que só se verifica na presença
de condições históricas particulares: que os proprietários da força de trabalho não sejam
proprietários dos meios de produção e que não possam vir a sê-lo. Porém, como demonstrado
por Marx:

24
“Este processo de libertação e liquidação da dependência colonial e, portanto, dos monopólios comerciais,
transcorre durante a primeira metade do século XIX, e particulariza também o início de um processo redefinido
de dependência colonial: o estilo liberal concorrencial, contraposto ao estilo mercantil-monopolista no qual o
mercado é politicamente controlado; o estilo essencialmente capitalista emergente contrapõe-se ao estilo pré-
capitalista em fase de desagregação. Esta nova forma de dependência, que se realiza pela compensação de
interesses no mercado, inaugura uma forma de racionalidade na exploração e na apropriação das atividades
econômicas. Ela é modelada juridicamente, e tal molde impõe estatutos legais legítimos a uma nova ordem
social e econômica, em oposição à dependência compelida, colonial, politicamente orientada” (HIRANO, 2005,
p. 25-6).
25
Segundo Alysson Mascaro (2003), o contratualismo dispôs o Estado de um lado e uma multiplicidade de
indivíduos de outro. Na relação entre ambos, operou-se uma inversão: os indivíduos – sujeitos racionais – é que
teriam criado o Estado subscrevendo um pacto social, segundo o pensamento iluminista; porém, esse mesmo
Estado, por sua vez, é que constituía os próprios sujeitos – através de dispositivos disciplinares – e lhes conferia
racionalidade conforme os parâmetros da nova ordem social.
46

Foi preciso que decorressem séculos para o trabalhador ‘livre’, em


consequência do desenvolvimento do modo de produção capitalista,
consentir voluntariamente, isto é, ser socialmente compelido a vender todo o
tempo ativo de sua vida, sua própria capacidade de trabalho, pelo preço de
seus meios de subsistência habituais (2008, p. 312).

Para que tal consentimento seja produzido, é preciso que os trabalhadores “sejam
economicamente obrigados a vender a sua força de trabalho sem, no entanto, a isso serem
obrigados juridicamente. Esta situação precisa e original assume juridicamente a forma da
personalidade jurídica” (MIAILLE, 2005, p. 118).
Pachukanis26 mostrou que o circuito das trocas exige a mediação jurídica (acordo
de vontades equivalentes), que a forma do direito reproduz a forma da mercadoria e que a
ideia de equivalência jurídica (dos contratos) funda-se na ideia de equivalência das trocas
mercantis.
Assim, embora mercadoria e direito já existissem nas sociedades pré-capitalistas,
o valor de troca desempenhava um papel acessório até então, limitando-se o direito a aderir à
superfície mercantil (sem adentrar as relações de produção). Somente com a separação entre
produtor direto e meios de produção, com a divisão do trabalho e a consagração do trabalho
abstrato, é que a troca mercantil pôde se generalizar a tal ponto que não só praticamente todos
os produtos constituíssem mercadorias, mas a própria força de trabalho se tornasse uma
mercadoria especial: aquela que permitia a valorização do valor.
Portanto, é com a emergência do capitalismo que o direito se eleva a elemento
constituinte das próprias relações de produção. Assim, a despeito do princípio fundamental da
equivalência atuar nas formações sociais pré-capitalistas, a especificidade burguesa do direito
reside no papel que este assume enquanto mediador necessário na troca de força de trabalho
por salário, que se sustenta enquanto relação consensual e igualitária entre sujeitos livres, isto
é, enquanto relação jurídica entre sujeitos de direito.
Sabemos, com Marx, que a relação de capital vincula, em uma unidade
contraditória, o proprietário das condições da produção e o proprietário da força de trabalho (o
trabalhador expropriado dos meios de produção e capaz de dispor de si mesmo) por meio de
um ato de vontade e não por meio da violência direta. Contudo, é a mediação do direito que
permite que os homens levem ao mercado sua força de trabalho e que se submetam à

26
A análise pachukaniana da forma jurídica como uma forma histórica – tomando o direito enquanto fenômeno
real e não em seu idealismo abstrato, seguindo os passos de Marx – permitiu-nos compreender o direito na
ordem social capitalista. A questão da forma jurídica, estudada pioneiramente por Pachukanis, foi aprofundada
por autores como Bernard Edelman e Michel Miaille; na literatura nacional, foi introduzida por Márcio
Bilharinho Naves.
47

exploração, coagidos pelas condições da produção, mas em nome do exercício da liberdade e


da igualdade.

1.2.2. Escravidão e liberdade em tempos de universalização do sujeito de direito

A categoria universal do sujeito de direito, que surge com o capitalismo, é um


ponto central para a compreensão da natureza da liberdade e da escravidão nas relações
sociais de produção de nosso tempo.
No direito romano, o escravo era considerado coisa (res) e não pessoa jurídica
(persona); nas mesmas condições que os animais, os escravos eram objetos de propriedade
passíveis de compra e venda (VASCONCELOS, 2011, p. 180).
Também em Atenas, o escravo não possuía personalidade jurídica. Além disso,
era proibido de casar, de assistir a algumas práticas culturais e de ter outro nome que não o
conferido por seu “senhor”.
Na época moderna, houve o sistema escravagista ocidental (nos territórios
dominados pela Europa) e oriental (que abrangia África do Norte, Oriente Médio, uma parte
da Ásia e da África subsaariana) (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009). Nota-se, novamente,
que o escravo era considerado “coisa” (o Código Negro de 1685, que regia a escravidão nas
colônias francesas, considerava-o como “bem móvel”).
Porém, assim como já ocorria na escravidão antiga, a escravidão colonial moderna
era definida por uma contradição: apesar de serem considerados “coisas”, em determinadas
situações – que variaram de sociedade para sociedade – os escravos tinham sua humanidade
reconhecida e até gozavam de alguns direitos, o que conduziu Pétré-Grenouilleau (2009, p.
44-5) à conclusão de que o escravo era “uma espécie de homem na condicional”.
No capitalismo consolidado, as relações anteriormente fundadas na lógica do
privilégio, desigualdade de status, pessoalidade e sujeição direta dão lugar a novas relações
em que “a igualdade formal universal dos indivíduos se torna condição de toda a produção”
(KASHIURA JUNIOR, 2009, p. 53), ao lado das noções de autonomia individual e primazia
da vontade. Assim, é com o modo de produção capitalista que, pela primeira vez na história,
ocorre a universalização da categoria sujeito de direito.
A categoria sujeito de direito é, portanto – como demonstrou Pachukanis – uma
noção histórica. Porém, uma vez que a universalização da personalidade jurídica como algo
inerente a todo ser humano é uma construção recente do direito moderno, cabe a pergunta
48

fundamental levantada por Miaille (2005, p. 115): “Se, hoje, todos os indivíduos são sujeitos
de direito, que função desempenha esta forma jurídica?”.
Como vimos no item anterior, a partir dos estudos de Pachukanis, a exploração
capitalista só pode se sustentar enquanto acordo de vontades equivalentes pela construção da
categoria do sujeito de direito, concebido sobre o fetiche da liberdade individual, mas que, em
sua estrutura, é tão somente a expressão jurídica da comercialização do homem.
Para Edelman (1979, p. 69-70), a própria estrutura do sujeito de direito se assenta
sobre o conceito da livre disposição de si mesmo, isto é, sobre a necessidade que cada pessoa
tem, sob o capitalismo, de tomar a forma geral de mercadoria, de ser o representante de si
mesmo enquanto mercadoria27.
Temos, portanto, que os seres humanos sob o capitalismo convertem-se,
simultaneamente, em mercadorias (força de trabalho indiferenciada e intercambiável) e em
sujeitos de direito. Tornado, a um só tempo, sujeito e objeto, o indivíduo pode, por fim, dispor
livremente de si mesmo enquanto mercadoria, pois, “[...] se a mercadoria adquire o seu valor
independentemente da vontade do sujeito que a produz, a realização do valor, no processo de
troca, pressupõe, ao contrário, um ato voluntário, consciente, de parte do proprietário da
mercadoria” (PACHUKANIS, 1989, p. 84).
Estamos diante da contradição entre a “responsabilidade jurídica do sujeito de
direito, calcada na ideia de livre-arbítrio, e os processos de constituição da individualidade
moderna, calcados na produção de seres humanos obedientes (dóceis-úteis) e submetidos à
coação da necessidade” (VIANNA, 2011, p. 130). Pois é precisamente essa contradição (que é
a contradição por excelência do direito e do sujeito de direito, do ser humano feito
simultaneamente sujeito e objeto) que, segundo Edelman (1979), viabiliza a troca de
equivalentes (esfera da circulação) e, por conseguinte, a troca de não-equivalentes (esfera da
produção) sob o fetiche do igualitarismo.
O “acordo de vontades livres”, que é a forma como o contrato de trabalho aparece
na esfera da circulação, faz sombra sobre a exploração que, de fato, ocorre na esfera
produtiva, com a extração da mais-valia. Assim, tomando o processo produtivo enquanto
processo de um sujeito28 (dotado de livre-arbítrio), o direito viabiliza a exploração

27
Os sujeitos de direito se apresentam na circulação em detrimento da exploração produtiva, de modo que o
processo do valor de troca é o próprio processo do sujeito de direito e vice-versa (EDELMAN, 1979, p. 97; 106).
28
A criação de um novo sujeito, que deve se tornar protagonista de uma sociedade cada vez mais urbana,
manufatureira e racional, ocorre dentro de um amplo processo de disciplinamento e racionalização. A
subjetivação capitalista, portanto, implica a constituição de sujeitos que saibam ler, escrever, calcular, ser
pontuais, previsíveis e que pratiquem “uma ‘autonomia’ que se baseia na introjeção das normas de
comportamento mais do que na ameaça externa” (MELOSSI, 2006b, p 25). Tratou-se de criar sujeitos “livres”,
49

regulamentada: “Ao fixar a totalidade das relações sociais no modo como elas aparecem na
esfera da circulação, o direito ao mesmo tempo torna possível a produção” (EDELMAN,
1979, p. 91).
Podemos finalmente compreender melhor a natureza da liberdade aclamada com o
advento das sociedades capitalistas: trata-se de uma liberdade meramente formal, uma vez
que, conforme aponta Edelman, a liberdade do sujeito de direito é produzida apenas na
determinação da propriedade29.
Assim, se o sujeito de direito é, para a filosofia jurídica, o ser humano detentor de
uma vontade e da possibilidade de determinar-se, por outro lado, os processos sociais em
curso na formação do modo de produção capitalista caminham no sentido contrário, através
da configuração de novas relações de exploração e de dominação30. Com o desenvolvimento
do capitalismo,

(...) o termo crucial da “liberdade” sofre uma redução em seu cerne alienado,
saudado como conquista “do poder de vender-se livremente” por meio do
suposto “contrato entre iguais”, em oposição às restrições políticas da ordem
feudal, mas ignorando e até idealizando as graves restrições materiais e
sociais da nova ordem (MÉSZÁROS, 2007, p. 188).

Com efeito, no ordenamento jurídico como sistema que trabalha para sua própria
unidade tentando excluir contradições (MIAILLE, 2005, p. 179), a abolição legal da
escravidão, a um tempo libertária, também teve o condão de aprisionar as novas formas de
servidão na invisibilidade confeccionada pela crença na ideologia da liberdade universal.
Apenas reconhecendo-se que a coerção pode ser elemento constituinte das
relações jurídicas é que se pode apreender a verdadeira natureza da liberdade sob o direito
capitalista. Trata-se de aprofundar a discussão sobre os diferentes tipos de violência e de
cerceamento de liberdade para podermos pensar até que ponto o combate ao trabalho escravo

racionais, que, submetidos ao poder do panóptico (FOUCAULT, 1993), tivessem desenvolvido o autocontrole
individual e, com isso, a possibilidade do autogoverno coletivo, da democracia. Estes são, nas palavras de Dario
Melossi (2002, p. 28): “os indivíduos ‘livres’ do Iluminismo e os sujeitos dotados de ‘livre-arbítrio’ das teorias
penais iluministas”.
29
Com efeito, “os aspectos econômico-sociais que determinam as condições de vida do sujeito não estão
atrelados ao seu consentimento. [...] O sujeito não escolhe o preço pelo qual gostaria que seu trabalho fosse pago,
ao contrário, o pilar do modo de produção econômico capitalista é o da não remuneração da força de trabalho,
espaço este da geração da mais-valia”. (SILVA, A., 2008, p. 72).
30
Hannah Arendt (2005, p. 188-9) também escreve sobre tal contradição: segundo a autora, por um lado “nossa
consciência e nossos princípios morais [...] nos dizem que somos livres e responsáveis”; por outro, em “nossa
experiência cotidiana no mundo externo [...] nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade”.
Portanto, Arendt (2005, p. 208-9) defende que a noção de liberdade filosófica é inadequada para fins políticos,
uma vez que exige apenas o exercício da vontade, ignorando que a liberdade só se consuma quando são
superados os fatores internos e externos que condicionam a ação do indivíduo e o sujeitam à necessidade. Isto é,
quando podem coincidir o “querer” e o “poder”.
50

contemporâneo é operado hoje sob o ideal de combater-se o resquício de um regime


escravocrata anterior, celebrando-se o trabalho livre (liberdade formal) do capitalismo
consolidado e até que ponto a servidão da liberdade formal está na própria base do modo de
produção capitalista, em que os trabalhadores expropriados dos meios de produção estão
presos por “grilhões invisíveis” à venda de sua força de trabalho numa troca desigual, sob a
forma igualitária do contrato jurídico.
Parte considerável da doutrina jurídica, da teoria popular e do discurso de agentes
públicos e lideranças de movimentos sociais apoia-se na semelhança entre a escravidão de
hoje e a escravidão colonial para fortalecer o repúdio às práticas escravagistas atuais. É
salientada a condição dos trabalhadores escravizados atualmente, que “ainda são tratados
como coisa”, como forma de equipará-los aos escravos do período anterior a 1888, que eram,
sim, tratados como coisa, mas também tinham quase sempre o status jurídico de coisa, em
torno do qual muita luta foi travada inclusive através de processos judiciais31.
O que escapa a essa lógica é que a especificidade e a produtividade da forma
contemporânea de escravizar é justamente o fato dos trabalhadores escravizados, como toda a
classe-que-vive-do-trabalho, serem simultaneamente objetos (força de trabalho) e sujeitos
(indivíduos com capacidade jurídica de vender sua força de trabalho, de contratar).
Daí a importância de estudarmos a categoria sujeito de direito. Afinal, se antes os
escravos, considerados “coisas” (objetos), eram capturados em sua corporalidade e vendidos
por outrem (sujeito), o típico32 escravo do capitalismo contemporâneo, considerado sujeito de
direito, é capturado em sua subjetividade33 (através de promessas enganosas e de sua falta de

31
Cf. Chalhoub (2011).
32
Aqui discorremos sobre a forma predominante de exploração sob o capitalismo consolidado e dos novos
fenômenos de escravização que se originam de sua lógica. Evidentemente, como será objeto de discussão
posterior, em territórios, economias, culturas e setores específicos ainda há ocorrência (mesmo que minoritária)
de recrutamento forçado de mão de obra, compra e venda de seres humanos e outras modalidades de trabalho
forçado em sentido estrito que se diferenciam mais sutilmente da escravidão do antigo regime.
33
A ilusão, mais do que a coerção direta, passou a ser o principal instrumento de captura da mão de obra a partir
do momento em que o trabalhador, enquanto sujeito formalmente livre, passa a ser um dos pilares das relações
sociais de produção. Esse tema remete ao Discurso da servidão voluntária de La Boétie e à questão da
manutenção da tirania, que é explicada por Chauí (2014, p. 151): “Ainda que a fortuna possa explicar o advento
da tirania, não pode explicar sua manutenção, e retornamos assim a nosso enigma inicial: como a servidão
voluntária é possível? La Boétie parte, então, em busca de uma nova resposta. Se por natureza os homens são
livres e servem só a si mesmos, servindo à razão, a servidão só pode explicar-se pela coerção e pela ilusão. Por
coerção: os homens são forçados contra sua vontade a servir ao mais forte. Por ilusão: são enganados pelas
palavras e gestos de um outro que lhes promete bens e liberdade enquanto os submete e abusa deles. Mas, de
novo, a resposta não é satisfatória, pois a coerção e a ilusão podem explicar por que o tirano acede ao poder, mas
não podem explicar por que nele se mantém. La Boétie parece, então, encontrar a resposta correta: a tirania se
mantém pela força do costume. Este é uma segunda natureza, e os humanos, de início forçados ou enganados,
habituam-se a servir e criam seus filhos alimentando-os com o leite da servidão; é por isso que os que nascem
sob a tirania não a percebem como servidão e servem voluntariamente, pois, de fato, ignoram a liberdade”.
51

alternativa, de inúmeros constrangimentos, esperanças e medos), colocando-se ele mesmo à


venda, sujeito que é.
Como veremos mais detidamente no próximo capítulo, no capitalismo
consolidado a assimetria e exploração das relações produtivas não se realizam “apesar” das
noções de liberdade e igualdade jurídicas, mas sim através de atualizações destes valores e
obscurecimento do processo gerador de mais-valia.

1.2.3. Biopolítica e a nova economia das desigualdades

Se os trabalhos de Pachukanis e Edelman explicam a imaterialidade da igualdade


e da universalização dos direitos (a exemplo do direito de não ser escravizado); são os estudos
sobre a biopolítica – inaugurados por Foucault e desdobrados em novas direções por
Agamben – que nos aproximam de uma compreensão atual sobre a materialização da
desigualdade na era dos direitos humanos.
Ao desenvolver o tema da biopolítica – introduzido na conferência “O nascimento
da medicina social” e desenvolvido na obra A vontade de saber e nos cursos Em defesa da
sociedade, Segurança, território e população e O nascimento da biopolítica – Foucault
(1985, p. 136) mostra que, com o advento da biopolítica no século XVIII, “É a vida muito
mais que o direito que se tornou o verdadeiro campo das lutas políticas, mesmo se estas se
formulam através das afirmações do direito”.
Nas palavras de Pelbart (2009, p. 58): “Quando o biológico incide sobre o
político, o poder já não se exerce sobre sujeitos de direito, cujo limite é a morte, mas sobre
seres vivos, de cuja vida ele deve encarregar-se”. É nesse contexto que a organização do
trabalho e as relações de trabalho submetem-se a uma gestão da segurança e saúde dos
trabalhadores, imposta através de diplomas legais universalizantes, porém executada de
maneira diferencial pelas administrações particulares das empresas e controlada a partir de
estatísticas de mortes, acidentes e doenças da população de trabalhadores. Trata-se, portanto,
do “corpo atravessado pela mecânica do vivente, suporte de processos biológicos: a
proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a longevidade – é a biopolítica
da população” (PELBART, 2009, p. 57).
Assim, quando a vida natural do indivíduo e da população passam a ser o alvo dos
mecanismos e cálculos de poder, nasce a biopolítica e, com ela, “a simultânea possibilidade
de proteger a vida e de autorizar seu holocausto” (AGAMBEN, 2007, p. 11). Com efeito, o
52

que marca o nosso tempo é a emergência de duas peças fundamentais que passam a funcionar
como engrenagem única: de um lado, as declarações (e, logo, sistemas) universais de direitos
humanos (postulando a cidadania perfeita) e, de outro, as cisões operadas por mecanismos de
biopolítica (expondo a cidadania impossível) (AGAMBEN, 2007).
Numa passagem de Homo sacer: poder soberano e a vida nua I, Agamben (2007,
p 183-4) expõe este processo a partir da análise do termo “povo” que, nas línguas europeias
modernas, denomina “tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não
de direito, é excluída da política”; isto é, tanto “os cidadãos integrados e soberanos” quanto a
escória de miseráveis, oprimidos e vencidos.

[...] isto significa, também, que a constituição da espécie humana em um


corpo político passa por uma cisão fundamental, e que, no conceito ‘povo’,
podemos reconhecer sem dificuldades os pares categorias que vimos definir
a estrutura política original: vida nua (povo) e existência política (Povo),
exclusão e inclusão, zoé e bíos34.. O ‘povo’ carrega, assim, desde sempre, em
si, a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído
no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está
desde sempre incluído35 (AGAMBEN, 2007, p. 184).

O postulado de Agamben (2007, p. 185) é que o povo contenha, necessariamente,


em seu interior, a fratura biopolítica fundamental. E, neste sentido, para o autor (2007, p. 185)
a própria luta de classes seria essa “guerra civil incessante que divide [o povo] mais
radicalmente do que qualquer conflito e, ao mesmo tempo, o mantém unido e o constitui mais
solidamente do que qualquer identidade”.
Uma vez que a luta entre esses “dois povos”36 teria sempre estado em curso, o
filósofo mostra que a unificação num só povo destas instâncias em conflitos, a constituição
desse todo cindido, seria a especificidade de nosso tempo. Ele mostra que, no passado, a cisão

34
O conceito de vida nua desenvolvido por Agamben parte da cisão entre zoé e bíos, termos “semântica e
morfologicamente distintos” que, para os gregos, designavam aspectos distintos do que hoje chamamos
homogeneamente de vida. A zoé “exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais,
homens ou deuses)”, enquanto bíos “indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um
grupo” (2007, p. 9).
35
Agamben (2007, p. 184) prossegue escancarando a contradição encerrada no “povo”: “Daí as contradições e as
aporias às quais ele dá lugar toda vez que [o ‘povo’] é evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo que
já é desde sempre, e que deve, todavia, realizar-se; é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém,
continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território. Ou então, no
polo oposto, ele é aquilo que falta por essência a si mesmo e cuja realização coincide, portanto, com a própria
abolição; é aquilo que, para ser, deve negar, com o seu oposto, a si mesmo”.
36
No caso do Brasil, observamos a mesma ambivalência do termo “povo”, bem como usos de termos dele
derivados, muito presentes na fala coloquial, para designar a “escória” citada por Agamben (2007): o “povinho”
(em que o diminutivo aponta para uma população inferior) e o “povão” (em que o aumentativo aponta para uma
população excedente, que sobra, uma massa de indesejáveis que, como veremos a seguir, são também sob certos
aspectos necessários/desejados).
53

interna do povo era aberta, institucionalizada, juridicamente sancionada. Cita a divisão clara
entre populus e plebs (cada qual com instituições e magistrados próprios) em Roma e entre
popolo minuto e popolo grasso na Idade Média. No caso aqui estudado, também podemos
lembrar a cisão e o abismo jurídico entre senhores e escravos até o século XIX.
A transformação brutal que marca as origens das conformações de nosso tempo é
então explicada por Agamben (2007, p. 185):

[...] mas quando, a partir da Revolução Francesa, o Povo torna-se o


depositário único da soberania, o povo se transforma em uma presença
embaraçosa, e miséria e exclusão surgem pela primeira vez como um
escândalo em todos os sentidos intolerável. Na Idade Moderna, miséria e
exclusão não são somente conceitos econômicos ou sociais, mas são
categorias eminentemente políticas [...]. Nesta perspectiva, o nosso tempo
nada mais é do que a tentativa – implacável e metódica – de preencher a
fissura que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos.
[...] A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz, em nosso tempo, porque
coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura.

Quando Agamben defende que o “povo” contém uma cisão mais originária do que
a de amigo-inimigo, ele toca num ponto central que, no contexto de nossa pesquisa atinente à
escravidão e ao mundo do trabalho, pretendo mobilizar aproximando sua discussão da
compreensão das novas economias da desigualdade.
Em alguma medida fundamental, o capitalismo depende da desigualdade para se
reproduzir e para se reinventar a cada crise. A escravidão contemporânea, assim como toda
contemporânea exploração de populações marginalizadas, apresenta uma
dinâmica/tensão/regulação entre exclusão e eliminação, ora pendendo mais para um polo, ora
para o outro. Neste sentido, é importante questionarmos qual o interesse das populações
dominantes em não exterminar de imediato toda a “vida indigna de ser vivida” das populações
dominadas. A resposta parece estar justamente na exploração. E, em nosso tempo, numa
exploração que se faz a taxas crescentes.
A categoria do “escravo” não pode ser enquadrada nem como “amigo” e nem
como “inimigo”, justamente por conter em si uma ambivalência: o escravo é simultaneamente
necessário (como mão de obra disponível para trabalhar por remunerações e em condições
inferiores às estabelecidas por lei) e indesejável (como indivíduo político que pleiteia a
cidadania de exercer seus direitos). E ainda que cada vida dessa nova escória não apresente,
para o sistema, qualquer valor, de modo que não merece investimentos que prolonguem e
melhorem sua existência (portanto, a sociedade a “deixa morrer”), a manutenção de uma
escória, enquanto população, é essencial para a sobrevivência do sistema.
54

A realização do lucro sem a contrapartida da proteção social dos trabalhadores


envolvidos na produção de valor faz com que os excluídos sejam mantidos (incluídos) no
sistema como elo que absorve seus efeitos colaterais. É o trabalhador precário e,
principalmente, o trabalhador escravizado que arca com os maiores riscos envolvidos no
processo de produção. Riscos esses que são tão mais agudos justamente por pressuporem que,
em caso de agravos severos à saúde, suas vítimas não poderão contar com assistência médica
por não estarem formalmente inscritas nos sistemas de seguridade e por estarem sujeitas a
sistemas de produtividade e remuneração que não permitem o tempo da recuperação e o
pagamento de tratamentos médicos.
Para fazer um paralelo com a discussão de Agamben sobre os campos de
concentração, seria o caso de entender em que medida o nazismo buscou a eliminação das
raças ditas “impuras” da sociedade alemã (deportação, extermínio, solução final) e em que
medida se utilizou de mecanismos de exclusão em que os “impuros” permaneceram vivos
como vida nua colocada a serviço dos interesses do Reich (trabalhos forçados, utilização
como cobaias humanas para experimentos científicos). Trata-se de pensar sobre o componente
de inclusão contido nas tecnologias de exclusão: no que aparta a exclusão do puro extermínio.
E, neste aspecto, parece-me que a condição da pessoa socialmente vulnerável e escravizada
seja a do corpo disciplinado para o trabalho subordinado e assujeitamento político
(FOUCAULT, 1993), aliada ao componente de “cobaia humana” dos campos de
concentração. A nova escória é o dublê que suporta os maiores riscos (inclusive de morte) de
uma produção cinematográfica, mas cujo rosto não aparece nas telas de cinema. Nos
bastidores, ela precisa existir. No mundo oficial, ela não pode figurar.
Descartáveis como indivíduos, necessários como força de trabalho indiferenciada,
ameaçados como cidadãos. Desejáveis e indesejáveis de forma inextrincável. Desejados como
objetos a serem explorados e, agora, também como sujeitos que se oferecem mais e mais à
exploração. Ameaçados muitas vezes por simplesmente pedirem que sejam cumpridos seus
direitos.
Se a lei da competição do mercado “não é outra coisa senão a lei do indefinido
rebaixamento do valor da força de trabalho” (BASSO, 2018, p. 16), a particularidade do
momento histórico em que vivemos é a superabundância de força de trabalho inativa e
desocupada (mais vulnerável, portanto, à exploração) e, concomitantemente, a elevação das
taxas de exploração da força de trabalho ativa, que é cada vez mais reduzida. Como
demonstra Basso, a sociedade do desemprego é também a sociedade do excesso de trabalho,
55

de modo que essas duas facetas se retroalimentam e se impõem duramente aos trabalhadores37
(2018, p. 27).
É justamente este duplo processo que traz para o centro da questão social a
descartabilidade do ser humano nas sociedades contemporâneas. Hoje observamos a
exacerbação de velhas e novas práticas de exploração, porém, ao contrário do que ocorria no
século XIX, no momento atual temos cada vez menos “a intervenção mediadora dos Estados,
voltada a impedir um desgaste muito rápido da força de trabalho” (BASSO, 2018, p. 17).
Afinal, como esclarece Mészáros, na era da globalização avançada, o único modo de alargar
as margens que se encolhem de acumulação do capital é à custa do trabalho (2007, p. 153).
Eis, portanto, a novidade radical de nosso tempo: “o sistema do capital não está mais em
posição de conceder absolutamente nada ao trabalho, em contraste com as aquisições
reformistas do passado” (MÉSZÁROS, 2007, p. 157).
É neste contexto de ameaça à própria sobrevivência dos trabalhadores, de níveis
de exploração que põem em risco a própria reprodução da força de trabalho, que a vida e a
saúde humanas passam a ser um campo de embate entre trabalho e capital. Daí a contribuição
que a categoria da biopolítica oferece para integrar os estudos sobre exploração e mais-valia,
aprofundando os estudos não só sobre duração, intensidade, remuneração do trabalho, mas
também sobre as condições em que ele é realizado. É preciso estender o olhar para além do
trabalho e da energia despendida, para abarcar também as condições de descanso e de
reposição da energia dos trabalhadores. Alcançar, portanto, a saúde dos obreiros e também
seu adoecimento no trabalho e, por fim, o trabalho a que se submetem (por imposição ou
necessidade material) os próprios trabalhadores doentes.
A compreensão da morfologia e do regime das novas formas de trabalho
compulsório sob o primado da liberdade formal esbarram na questão fundamental levantada
por Agamben (2007, p. 14): “qual é o ponto em que a servidão voluntária dos indivíduos
comunica com o poder objetivo?”38.

37
No mesmo sentido, Mészáros afirma que “a selvageria real do sistema continua firme, não somente
expulsando cada vez mais pessoas do processo de trabalho, mas, com uma contradição característica, também
prolongando o tempo de trabalho, sempre que o capital consegue” (2007, p. 150).
38
Segundo Agamben (2007), o ponto de convergência entre as técnicas de individuação subjetivas e os
procedimentos de totalização objetivos teria permanecido como uma sombra na obra de Foucault, que estudou
ambos os processos.
56

1.3. Liberdade de contratação e vulnerabilidade social: os pilares das formas de


escravização neoliberal

O mundo do trabalho sofreu transformações profundas nas três últimas décadas do


século XX. Ao crescimento econômico observado no pós-guerra, seguiu-se a estagnação e
crise do padrão de acumulação taylorista e fordista da década de 1970 e, por fim, a
reestruturação produtiva implementada globalmente a partir dos anos 1980. O novo arranjo
assenta-se num número cada vez menor de corporações transnacionais fortemente enraizadas
no capital financeiro e na mobilidade internacional, impondo “à classe-que-vive-do-trabalho,
nos diferentes países do mundo, patamares salariais e condições de existência cada vez mais
rebaixados” (ANTUNES, 2018, p. 137).

[...] as novas formas vigentes de valorização do valor, ao mesmo tempo que


trazem embutidos novos mecanismos geradores de trabalho excedente,
precarizam, informalizam e expulsam da produção uma infinitude de
trabalhadores que se tornam sobrantes, descartáveis e desempregados
(ANTUNES, 2013, p. 13).

Conforme explica Antunes (2018, p. 120), no Brasil a reestruturação produtiva


limitou-se a alguns setores durante a década de 1980, intensificando-se nos anos 90, quando
teria havido uma profunda alteração da estruturação das classes dominantes com a associação
ao capital externo. Ainda sobre o contexto brasileiro, o autor pontua:

No Brasil, em particular na década de 1990, as transformações geradas pela


nova divisão internacional do trabalho foram de grande intensidade, já que
partiram de uma dinâmica interna, característica dos países de
industrialização dependente, fundada na superexploração da força de
trabalho. A imposição de baixos salários, associada a ritmos de produção
intensificados e jornadas de trabalho prolongadas, foi ainda acentuada pela
desorganização do movimento operário e sindical, imposta pela vigência,
entre 1964 e 1985, da ditadura civil-militar. Portanto, esse é o contexto no
qual, com a vitória do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990, se desenvolve
o processo de reestruturação produtiva. Um processo desencadeado em meio
a condições de exploração particulares e articuladoras de elementos
herdeiros do fordismo (ainda vigentes em vários ramos e setores produtivos)
com os novos mecanismos, próprios das formas de acumulação flexível
(ANTUNES, 2018, p. 138).
57

Estas transformações na morfologia da exploração da classe-que-vive-do-


trabalho39 no Brasil são o pano de fundo de nossa pesquisa, que cobre justamente o período da
reestruturação produtiva e se defronta com embates e mutações nos arranjos produtivos, nos
mecanismos de exploração, nas formas de luta social, nas leis e seus usos.
Os efeitos da reestruturação apontados por Antunes em O privilégio da servidão:
o novo proletariado de serviços na era digital, também foram constatados em nossa pesquisa
empírica. A terceirização que precariza as condições de trabalho e eleva os índices de
acidentes; o aumento vertiginoso de doenças ocupacionais, em especial as lesões
osteomusculares e transtornos mentais (a criação de uma sociedade do adoecimento); a
precarização do trabalho através da flexibilização e informalidades crescentes; a
ressignificação do assédio moral como estratégia de gestão; o rebaixamento dos salários e o
gerenciamento através de metas; o aumento da mais-valia relativa e absoluta, com a
intensificação das atividades laborais e, ainda, o prolongamento das jornadas e o processo de
individualização e solidão nos locais de trabalho quebrando laços de solidariedade.
Segundo Antunes (2018, p. 140), na nova divisão internacional do trabalho:

[...] por um lado, os trabalhadores pertencentes ao núcleo que atua com


maquinário mais avançado, dotado de maior tecnologia, encontram-se cada
vez mais expostos à flexibilização e à intensificação do ritmo de suas
atividades, expressas não só pela cadência imposta pela robotização do
processo produtivo, mas, sobretudo, pela instituição de práticas pautadas por
multifuncionalidade, polivalência, times de trabalho interdependentes, além
da submissão a uma série de mecanismos de gestão pautados na pressão
psicológica voltada ao aumento da produtividade. Por outro, uma parcela da
classe trabalhadora, numericamente superior, passa a experenciar, cada vez
mais, diferentes modalidades de vínculos e condições de trabalho em
ambientes que articulam menor desenvolvimento tecnológico a jornadas
mais extensas, maior insegurança e vulnerabilidade (grifo nosso).

Nos próximos capítulos, em que analisaremos mais detidamente os casos


concretos de trabalho escravo ocorridos em Mato Grosso nas últimas décadas, poderemos
chegar a conclusões mais precisas e significativas sobre a morfologia e mecanismos desse

39
A categoria classe-que-vive-do-trabalho é uma noção ampliada de classe trabalhadora utilizada por Antunes e
que, segundo o próprio autor, inclui “todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de
salário, incorporando, além do proletário industrial, dos assalariados do setor de serviços, também do
proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital. Essa noção incorpora o proletariado
precarizado, o subproletariado moderno, part time, o novo proletariado dos Mc Donalds, os trabalhadores
hifenizados de que falou Beynon, os trabalhadores terceirizados e precarizados das empresas liofilizadas de que
falou Juan José Castillo, os trabalhadores assalariados da chamada ‘economia informal’, que muitas vezes são
indiretamente subordinados ao capital, além dos trabalhadores desempregados, expulsos do processo produtivo e
do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e que hipertrofiam o exército industrial de reserva, na fase
de expansão do desemprego estrutural” (ANTUNES, 1999, p. 103-4).
58

fenômeno, analisando como as condições de trabalho, jornada e remuneração se articulam


com os níveis elevados de insegurança e vulnerabilidade vividos pelos trabalhadores.
Para tanto, o referencial teórico aqui proposto oferece um importantíssimo ponto
de partida: o trabalho escravo contemporâneo e o trabalho livre contemporâneo não são
formas opostas. Porém, mais do que confirmar a inexistência de uma dicotomia absoluta entre
trabalho totalmente livre e trabalho totalmente cativo, a pesquisa buscará compreensões de
como as tecnologias do trabalho livre são empregadas para escravizar.
Nos itens 1.3.1 e 1.3.2, analisaremos o amálgama entre contrato (formal ou
informal) de trabalho e vulnerabilidade social que estrutura a escravidão praticada no Brasil
atualmente e apresentaremos os principais pilares deste maquinário de exploração da
contemporaneidade segundo nossa visão, que será desenvolvida ponto por ponto nos
próximos capítulos da tese. A partir de questões trazidas pela pesquisa de campo, serão
expostas também algumas das hipóteses deste trabalho, que serão posteriormente investigadas
nos capítulos II e III.
Ao longo desta tese, algumas das tendências (precarizantes) da nova morfologia
do trabalho serão identificadas nos casos de escravidão contemporânea, retratando a passagem
de uma degradação típica da acumulação primitiva (no contexto das frentes pioneiras de
reocupação de Mato Grosso) para uma degradação típica do capitalismo consolidado que
conserva toda a força da espoliação. Este processo, que marcou a consolidação do
agronegócio e formação de um mercado de trabalho na região, coincide também com a
expansão global de um modelo produtivo que promove a degradação flexível do trabalho, em
que os traços da reificação são mais interiorizados através de “mecanismos de
‘envolvimento’, ‘parceria’, ‘colaboração’ e ‘individualização’, ‘metas’ e ‘competências’”
(ANTUNES, 2013, p. 21). E, como veremos, essa sobreposição de processos deu contornos
específicos à exploração do trabalho em Mato Grosso em sua modalidade mais extremada,
que é a escravidão
Dentre as diversas tendências apontadas nos estudos recentes de sociologia do
trabalho, abordaremos as seguintes no campo do trabalho escravo contemporâneo: a)
informalidade; b) gestão pela descartabilidade (o desemprego estrutural e superfluidade
crescente tornam os vínculos de trabalho instáveis e os trabalhadores descartáveis e
perenemente “sob ameaça” de desligamento, permitindo, como demonstra Antunes, que o
assédio moral se converta em ferramenta de gestão; c) novos e velhos mecanismos de
extração de sobretrabalho (intensificação e extensão da jornada de trabalho; rebaixamento e
não pagamento integral de salários); d) a proliferação de novos mecanismos de envolvimento,
59

manipulação e esgarçamento dos liames de responsabilidade social (que chamaremos de


dispositivos de “exploração por interpelação”).
Cabe uma palavra sobre este último conceito, que nomeei por enquanto como
“exploração por interpelação”. Trata-se de mecanismos de exploração da força de trabalho
que manipulam dispositivos contratuais de modo que a intensificação, extensão da jornada e a
severidade das condições de trabalho e reprodução social passam a ser de responsabilidade e
interesse do próprio trabalhador. Esse mecanismo, denominado por Alves como “captura da
subjetividade” e já apontado por Marx na análise do “salário por peça” (ALVES, 2011, p.
123), será tomado aqui sob o prisma da interpelação desenvolvido por Althusser (1999), que
expõe as contradições do sujeito de direito neste processo:

A interpelação constitui sujeitos, em duplo sentido, explicitando a


ambiguidade já encerrada no próprio termo sujeito: constitui o indivíduo
como sujeito de seus atos, como “livre”, “capaz” e “responsável” por seus
atos, e, ao mesmo tempo, constitui o indivíduo como assujeitado, como
submetido a uma estrutura social que se impõe independentemente de sua
escolha (KASHIURA JUNIOR, 2015, p. 61).

De fato, o consentimento do trabalhador à sua própria exploração não é uma


novidade. Ele é, precisamente, a forma como se dá a exploração no mercado livre, isto é,
interpelando-se o sujeito a vender sua força de trabalho. Esse ponto é amplamente esclarecido
no que se refere à entrada do trabalhador na relação de trabalho e seu “aceite” das condições
contratuais iniciais. O que a discussão sobre “o capitalismo manipulatório” propõe de
diferente é que, através de certos dispositivos e modelos de organização produtiva, o
trabalhador (que dificilmente teria interesse no aumento de sua jornada ou numa redução
salarial) é levado não só a aceitar a exploração, mas também a se interessar e advogar pelo
aumento da exploração de sua força de trabalho.
A questão é investigar a ampliação do uso de mecanismos de envolvimento,
manipulação e captura da subjetividade na exploração da força de trabalho. E, assim como
detectou Marx no estudo do salário por peça e tem sido debatido nos estudos sobre o trabalho
em diversos setores econômicos, buscar compreender a “exploração por interpelação” como
uma faceta da própria lógica do capital, mas que vem ganhando corpo e novos espaços na
atualidade. Trata-se, portanto, de descobrir nos casos concretos suas novas manifestações.
Espera-se, com a contundência de todo caso extremo, que este estudo sobre o trabalho escravo
ajude a desnudar alguns dos principais mecanismos de extração de sobretrabalho na
contemporaneidade.
60

1.3.1. A liberdade de contratar

Em sua obra New Slavery, Kevin Bales aponta a “escravidão por contrato” como
uma das principais modalidades de escravidão contemporânea, tomando por base a realidade
brasileira.

A escravidão por contrato mostra como relações de trabalho modernas são


usadas para esconder a escravidão. São oferecidos contratos que garantem
emprego, mas quando os trabalhadores são levados ao local de trabalho eles
se veem escravizados. Esse é a segunda maior forma de escravidão hoje, mas
também a que cresce mais rapidamente (BALES, 2004, p. 121, tradução
nossa).

O autor acrescenta que no Brasil a “escravidão por contrato” prevalecente ampara-


se na servidão por dívida que, num país com tanta pobreza, permite que populações
miseráveis sejam incitadas a aceitarem “contratos verbais com base em falsas promessas de
trabalho bem remunerado” (BALES, 2004, p. 121).
De fato, uma das modalidades de trabalho escravo mais recorrentes no Brasil é a
servidão por dívida, que se proliferou na formação das fazendas pecuaristas localizadas nos
estados do Pará e Mato Grosso (no arco do desmatamento e expansão agropecuária), com o
aliciamento de trabalhadores socialmente vulneráveis, geralmente oriundos do nordeste do
país. São casos em que recrutadores de mão de obra (“gatos”) aliciam trabalhadores mediante
promessas enganosas de boas condições de trabalho e remuneração, levando-os para trabalhar
em regiões remotas, criando, então, mecanismos de endividamento artificial e formas de
controle e repressão para prendê-los ao trabalho por meses até a conclusão das tarefas.
Nessas circunstâncias, como já foi relatado fartamente pela literatura40, aqueles
trabalhadores que tentam fugir ou resistir são tratados como se estivessem descumprindo o
contrato (a palavra empenhada no momento do recrutamento), sendo que o trabalhador nessas
condições muitas vezes “se considera subjetivamente devedor e, portanto, incapaz de violar o
princípio moral em que apoia sua relação de trabalho” (MARTINS, 1999, p. 162). De modo
geral,

[...] os fazendeiros utilizam ‘gatos’ ou recrutadores de mão de obra que


percorrem as regiões de ciclo agrícola diferente, como o Nordeste, e aí,
mediante promessas de bom trato e bom pagamento, aliciam trabalhadores
disponíveis e os levam para regiões remotas. Para prendê-los ao trabalho,

40
Cf. Martins (1999), Figueira (2004) e Costa, P. (2009).
61

criam mecanismos de endividamento artificial e formas de controle e


repressão [...] para assegurar que o trabalhador não escapará e se submeterá
ao trabalho até que a tarefa seja concluída. [...] Ao tentar fugir ou resistir
contra a exploração embutida nessa relação, o trabalhador é tratado como se
estivesse descumprindo o contrato, a palavra empenhada quando fora
recrutado pelo ‘gato’. [...] Essa é, seguramente, uma das razões pelas quais o
trabalhador teme e recusa sua libertação, pois se considera subjetivamente
devedor e, portanto, incapaz de violar o princípio moral em que apoia sua
relação de trabalho (MARTINS, 1999, p. 162).

No relato de um auditor fiscal que atuou em operações do Grupo Especial de


Fiscalização Móvel em diversos estados na última década, a questão do sentimento de dívida
do trabalhador também aparece nas experiências recentes de trabalho escravo:

A maioria não quer fugir, não acha que está sendo explorado, acha que é o
trabalho. [...] E eles acham que estão devendo e têm que pagar. Eu falava
‘você não está devendo mais, o Estado chegou...’ (...) e o pessoal falava
‘não, eu sou homem, eu sou sujeito homem, eu tenho honra: eu pedi, eu
comprei, eu tenho que pagar...

Ora, como vimos, um dos elementos que caracterizam as relações sociais de


produção no capitalismo é sua mediação pela forma jurídica do contrato. No trabalho escravo
do capitalismo consolidado aqui estudado não será diferente. O que se percebe, nos
emblemáticos casos acima citados, como na parcela majoritária dos casos recentes, é a
importância da mediação do contrato de trabalho para a efetividade das práticas
contemporâneas de escravização.
Portanto, ainda que se trate de um contrato não escrito e firmado para ser
descumprido (manipulado) pelo empregador, são muitas vezes as ideias de direitos e deveres
recíprocos, de equivalência e de responsabilidade contratual, do trabalhador na qualidade de
sujeito com capacidade jurídica (como se estivesse em pé de igualdade para negociar
livremente com o empregador), que funcionam como mecanismos de controle da força de
trabalho.
Nesse mesmo sentido, Ellman e Laacher também demonstram que a maior parte
dos migrantes escravizados em Israel ali se encontra em razão de contratos firmados
previamente em seu país de origem, o que definiria uma “relação normal entre empregado e
empregador”. Porém, ao iniciarem suas atividades laborais, deparam-se com o
descumprimento daquele contrato no que se refere a horas de descanso, salário, condições de
trabalho etc., sendo que em alguns casos a subordinação do trabalhador é tão extrema que
inclui proibição de sua saída do local de prestação dos serviços (2003, p. 22).
62

No que diz respeito à realidade brasileira, nossa hipótese é de que, nas últimas
décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de mera
imobilização da força de trabalho, para combiná-las com novas tecnologias neoliberais
alicerçadas na mobilidade dos trabalhadores. Altera-se a forma de dominar e também as
formas impostas de violência, que consistem cada vez menos em castigos físicos e
assassinatos, passando a predominar a violência psicológica e os agravos físicos e mortes
causados não por castigos, mas sim por doenças e acidentes de trabalho. Afasta-se, portanto,
do predomínio do universo dos pistoleiros, da vigilância armada, das agressões físicas, para o
predomínio do controle pela dívida, das condições degradantes de trabalho, das jornadas
extenuantes, de novos atentados à saúde e à vida dos trabalhadores. Transita-se da visibilidade
da violência direta para a invisibilidade da violência sistêmica e simbólica nos termos
estudados por Žižek (2009) 41.
Casos como os relatados no estudo Contemporary slavery in UK demonstram que,
também em outros contextos, as relações de escravização contemporânea muitas vezes não
envolvem violência física; porém, as formas de controle da mão de obra utilizadas (retenção
de documentos como passaporte, abuso de poder, condições extremas de alojamento e
trabalho) funcionam como uma ameaça real (CRAIG et al, 2007, p. 12).
Ora, o trabalho escravo contemporâneo, à semelhança da escravidão colonial,
também se utiliza de “ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e
até assassinatos” na “manutenção da ordem” (SCHWARTZ, R., 2008, p. 124). Porém, minha
hipótese é de que o emprego da violência direta, apesar de persistir, tende a ceder espaço para
o exercício de outras formas de violência na medida em que vão se consolidando novas
formas de dominação.
Assim, se, no início da formação do mercado de trabalho e na ocupação de
territórios por frentes pioneiras, a coação direta e a violência física eram invariavelmente
empregadas, tais métodos primários de subjugar a força de trabalho na formação do
capitalismo vão sendo substituídos por outras formas “politicamente mais viáveis e

41
Em seu livro Sobre la violencia, Slavoj Žižek mostra a visibilidade da violência subjetiva (aquela praticada
por um agente identificável), mas que tais arrebatos só podem ser compreendidos captando-se, por detrás deles,
outros tipos de violência menos visíveis: a violência simbólica (encarnada na linguagem) e a violência sistêmica
(violência inerente ao sistema e que abarca não só a violência física direta, mas também formas mais sutis de
coerção que impõem relações de dominação e exploração). Contrapondo a violência subjetiva às demais
modalidades de violência (aglutinadas no termo violência objetiva), Žižek demonstra por que elas não podem ser
percebidas simultaneamente, a partir de um único ponto de vista, uma vez que a "violência objetiva é
precisamente a violência inerente a este estado de coisas ‘normal’. A violência objetiva é invisível posto que
sustenta a normalidade de nível zero contra aquilo que percebemos como subjetivamente violento” (ŽIŽEK,
2009, p. 10).
63

economicamente mais rentáveis [...], baseadas na gestação de um excedente de mão de obra,


livre de débitos, mas também de propriedade e de instrumentos produtivos” (KOWARICK,
1987, p. 84). Trata-se dos indivíduos “soltos e solteiros” enunciados por Marx, “forçados a se
venderem voluntariamente”, isto é, do trabalhador “obrigado a ser livre” produzido pelo
capitalismo numa clara contradição: nega-se a liberdade individual em nome dessa mesma
liberdade (NAVES, 2005, p. 28). Afinal, o sujeito só se torna livre de fato quando proprietário
de mercadorias (e vendedor da mercadoria “força de trabalho”). Por isso, legiões de
trabalhadores, vistos pelo direito como sujeitos livres, só se oferecem à subordinação do
contrato de trabalho sob a coação do direito penal, da vulnerabilidade42 social e de noções de
obrigação moral43.
De fato, a figura do contrato exerce um papel central na exploração do trabalho na
atualidade. E não há como compreendermos o trabalho escravo contemporâneo sem
entendermos mais profundamente o teor coercitivo dos contratos44 e o papel da ideologia
jurídica fundada no voluntarismo45.
Arthur, um trabalhador retirado de situação de trabalho escravo na construção
civil pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, respondeu da seguinte forma quando lhe
perguntei sobre como se sentia naquela situação (preso ou livre):

A escravidão não é só de corrente, não é só o preso que tem que trabalhar.


Mesmo estando soltos estamos presos. Estamos presos no trabalho, porque
se a gente sair vai morrer de fome. A gente é obrigado a ficar lá mesmo
nessas condições para não deixar a família passar fome.

Vista sob este ângulo, a escravidão contemporânea predominante no Brasil parece


utilizar-se, crescentemente, dos próprios mecanismos empregados na exploração legal dos
trabalhadores no capitalismo contemporâneo. Para desenvolver esta linha de abordagem e
testar as hipóteses apresentadas, abordarei nos próximos capítulos a morfologia da escravidão
contemporânea no Brasil a partir da análise dos resultados de minha pesquisa qualitativa e
quantitativa.

42
"A pobreza por si mesma gera uma gama de vulnerabilidades que demanda a priorização da satisfação de
necessidades práticas de curto prazo, em detrimento de estratégias de mais longo prazo para a acumulação e a
obtenção de segurança” (WOOD, 2000, p. 19, apud PHILLIPS, 2013, p. 176, tradução nossa).
43
As disposições do direito só se amparam na repressão em última instância, sendo a norma interiorizada sob a
forma de ideologia moral (ALTHUSSER, 1999).
44
Ver Banaji (2003).
45
Segundo o que foi sedimentado pela filosofia do direito moderno, o contrato, célula elementar do direito
capitalista, pressupõe o consenso, que, por sua vez, pressupõe o livre arbítrio dos sujeitos de direito.
64

1.3.2. A Vulnerabilidade social

A partir do momento em que todos os indivíduos passam a ser formalmente iguais


perante a lei, as desigualdades, explorações, violências, discriminações passam a ser
praticadas por vias oblíquas.
As vítimas de escravidão não são mais determinadas por uma classificação
jurídica que separa a espécie humana em “livres” e “escravos”. O que torna uma pessoa hoje
suscetível de ser escravizada são diversos matizes de prévias exclusões sociais que se
materializam num certo grau de vulnerabilidade social. E trata-se de uma suscetibilidade,
como dito acima, e não mais de um mandamento jurídico, uma vez que, com a
universalização do status de sujeito de direito a quase toda a humanidade, formalmente somos
todos, em tese, não só iguais como também livres. Isto é, a ordem social que exclui o
indivíduo muitas vezes não o condena, de plano, à escravidão. Excetuando-se os casos
(minoritários no Brasil) de recrutamento forçado de mão de obra, as circunstâncias adversas
acima descritas apenas convidam o trabalhador a ser escravizado, cabendo a ele consentir, por
mais coagido que seja seu consentimento. À sua falta de alternativa de vida aliam-se
promessas de um salário justo, de reconhecimento social, de sobrevivência material e
psíquica. E a tais promessas de salvamento o indivíduo vulnerável, não raro, aquiesce.
Na nova escravidão mediada pelo mercado de trabalho, contrato e vulnerabilidade
são duas faces da mesma moeda.
Um dos principais pontos de partida desta pesquisa é justamente a centralidade da
categoria “vulnerabilidade social” para a compreensão da morfologia da escravidão
contemporânea. E digo “ponto de partida” e não “ponto de chegada”, porque se trata de um
conceito cuja importância é amplamente reconhecida tanto pelos acadêmicos de diversas áreas
(direito, ciências sociais, assistência social, saúde coletiva, psicologia, etc.) quanto pelos
operadores do direito e atores envolvidos no enfrentamento concreto da escravidão. O que
pretendo, portanto, é apenas frisar a centralidade deste conceito para que se possa extrair dele
todas as suas consequências.
Ao afirmar que a vulnerabilidade é o aspecto que caracteriza todas as novas
formas de escravidão, Casadei (2017, p. 3) explica que as vítimas da escravidão
contemporânea

[...] são prisioneiras da pobreza, sem instrução e vivem numa realidade


social e econômica extremamente difícil, muitas vezes trágica, em que todos
65

os direitos humanos fundamentais podem ser violados e são violados: é a


falta de alternativas concretas que empurra muitas pessoas (mais ou menos
voluntariamente) para a escravidão46 (tradução nossa).

É preciso, ainda, destrinchar um pouco mais o que vem a ser esta realidade “social
e econômica difícil e trágica”. Em alguns estudos brasileiros (e mesmo no meu primeiro olhar
enquanto auditora que já atuou na fiscalização de trabalho escravo) observa-se a tendência
compreensível para uma abordagem economicista da vulnerabilidade, ainda que existam
diversas exceções. O universo de documentos analisados nesta pesquisa, se não fosse
complementado pela realização de entrevistas e não fosse interpretado levando-se em conta
seus limites, reforçariam automaticamente tal economicismo. Foi a trajetória da pesquisa,
sobre a qual farei uma breve digressão abaixo, que desnudou outras facetas menos conhecidas
das vítimas de escravidão no Brasil.
Toda pesquisa empírica traz a justa preocupação em torno do “entrar no campo”,
da participação, de como fazer essa imersão com as escolhas metodológicas que permitam
uma maior compreensão do fenômeno a ser estudado e o respeito à ética. A importância desse
tema não é novidade. Porém, no caso desta tese, pelo fato de eu já estar inserida
profissionalmente no campo estudado, tive sempre uma preocupação também em “sair do
campo”, em sair e reentrar ou sair de seus limites provisórios para expandi-lo. Esta foi, sem
dúvida, a escolha metodológica que gerou os melhores frutos. Ao menos, os mais
transformadores. Era preciso ampliar meu olhar de auditora (que conhece o trabalho escravo a
partir dos casos em que a fiscalização atua), de brasileira residente sem sua terra natal, de
pesquisadora inserida num contexto em que a profusão do mesmo tipo de dado e ausência de
outros acaba por gerar inclinações inconscientes a conclusões nem sempre generalizáveis.
Ao constatar que o universo de casos de trabalho escravo com que eu estava
trabalhando (casos constatados pela fiscalização do GEFM em Mato Grosso de 1995 a 2013)
continha pouquíssimas vítimas mulheres, nenhum caso de trabalho doméstico, apenas um
caso de exploração sexual e ocorrências decrescentes de violência física e ameaças de morte,
optei por realizar uma incursão em outros territórios que não apresentassem tais ausências,
para depois retornar ao meu campo e buscar uma melhor compreensão das suas
singularidades. Ou, em outros casos, da sua oculta universalidade.

46
“Le vittime sono prigionere della povertà, non istruite e vivono in realtà social ed economiche extremamente
difficili, sovente tragiche, ove tutti i diritti umani fondamentali possono essere violati e sono violati: è la
mancanza di alternative concrete che spinge molte persone (più o meno volontariamente) verso la schiavitù”.
66

A experiência da AFESIP no Camboja mostrou-me algumas importantíssimas


facetas não econômicas da vulnerabilidade, que são o enfraquecimento dos vínculos
familiares e a violência doméstica. Grande parte das meninas traficadas para exploração
sexual no Camboja saem de casa para escapar de violências e abusos sofridos em casa, ou são
vendidas e aliciadas pelos próprios familiares quando se tornam órfãs47.
Trajetória semelhante ocorre com as travestis brasileiras que, ao serem expulsas
da casa de suas famílias em razão de discriminação, são acolhidas pelas cafetinas que passam
a explorá-las na atividade de prostituição. Nas palavras de Roger, membro do CETRAP – MT
e liderança de movimentos LGBT+:

Boa parte dos aliciadores das vítimas mulheres do tráfico de pessoas também
são mulheres já traficadas e vê que ali a economia é bastante lucrativa. Ela
então acolhe essas crianças expulsas de casa, dão lar, amor e carinho para
essa travesti. Só que em troca o corpo dela vai ser utilizado, porque é jovem,
chamativo e vai começar a trabalhar.

Neste ponto, o depoimento de Roger também é esclarecedor:

A questão LGBT é complexa, a questão do tráfico de pessoas também é


bastante complexa. Isso porque você está fazendo apenas um recorte, que é
do trabalho escravo, mesmo assim complexo, tendo que entender como se dá
essa relação de mercantilização desse corpo trabalhador, o ambiente em que
está inserido, o que motivou a ir por esse caminho e as condições nas quais
se está. Aí a gente volta ao determinismo: não são as condições sociais que
vão determinar se ele será traficado ou não, é mais subjetivo. Quando falo
em vulnerabilidade de uma vítima, não necessariamente me remeto somente
à condição econômica, mas também a estrutural, o tanto de capital cultural
que essa pessoa tem, a relação de família, de pertencimento àquele local.
Isso se dá de forma mais subjetiva que nós, gestores públicos,
principalmente, temos que objetificar, quantificar. Quando vou tratar de uma
política do tráfico de pessoas, eu me coloco como gestor, mas quantas são as
vítimas, onde estão, de que forma estamos trabalhando? O Estado não vê a
dimensão subjetiva da pessoa, mas a vê objetificada, quantificando o sujeito.
Você precisa cutucar o Estado. Então, tem essa hierarquia na relação do
trabalho escravo, entendendo até que ponto esse conceito de escravidão
moderna é capaz de analisar toda essa dimensão do trabalho escravo,
pensando na época da escravidão e o que é hoje. Isso é produzido de maneira
diferenciada, de acordo com as regiões geográficas, com as vítimas. É um
desafio...

Por fim, cabe uma reflexão sobre a reconhecida centralidade da vulnerabilidade


social na morfologia da escravidão contemporânea, por um lado, e sua exclusão da

47
Inúmeros casos podem ser encontrados em TRODD; BALES, 2008.
67

metodologia utilizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para identificar e


produzir estimativas sobre os casos de trabalho forçado no mundo.
Luiz Machado (2017) cita 11 indicadores de “forced labour” retirados do estudo
Hard to see, harder to count, que contém a metodologia desenvolvida e aplicada pela OIT em
suas estimativas: 1) abuso de vulnerabilidade; 2) engano; 3) restrição de movimento (ir e vir);
4) isolamento; 5) violência física e sexual; 6) intimidação e ameaças; 7) retenção de
documentos de identidade; 8) retenção de salários; 9) servidão por dívida; 10) condições de
trabalho e de vida abusivas; 11) excesso de horas extras.
Analisando diretamente o estudo da OIT citado por Machado, que explica a
metodologia desenvolvida para os surveys que produzem as estimativas mundiais sobre as
vítimas de “trabalho forçado” (forced labour), chegamos a algumas conclusões, que
resumiremos abaixo.
Primeiramente, a metodologia é construída sobre dois eixos, considerados como
elementos caracterizadores da noção de trabalho forçado contida na Convenção nº 29 da OIT:
coerção e involuntariedade48. A metodologia traz a especificação de indicadores que se
referem à coerção sofrida em diferentes momentos da relação de exploração: a) no momento
da entrada na relação de trabalho; b) durante o desenrolar das próprias atividades laborais; c) e
na saída do trabalho, com o fim do vínculo. Também há explicações sobre os critérios de
força dos indicadores (fraco, médio e forte) e o modo como foram interpretados (suficiência
ou não para configuração de trabalho forçado). Quanto ao questionário para adultos, é
composto por 4 segmentos de perguntas: 1) Questões relacionadas ao uso de engano para
recrutamento de adultos; 2) Questões relacionadas ao recrutamento forçado de adultos; 3)
Questões relacionadas a condições de trabalho de adultos; 4) Questões relacionadas a coerção,
ameaças e punições contra adultos.
O que podemos observar na metodologia desenvolvida pela OIT Hard to see
harder to count é que o abuso da vulnerabilidade econômica foi excluído como indicador de
trabalho compulsório. Afinal, em diversas questões exemplificadas no desenho do
questionário do survey, respostas com conteúdo de vulnerabilidade econômica e falta de
alternativas para exercer a liberdade de escolha são valoradas como “liberdade”. No tocante
às situações de impossibilidade de saída da relação de trabalho, o motivo econômico

48
Estes dois elementos que sustentam o conceito de “trabalho forçado” da OIT derivam do texto da Convenção
n. 29, que assim dispõe em seu art. 2.1: “Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou
obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e
para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (OIT, 2012)
68

(inexistência de oportunidades de trabalho na região, risco de ficar sem renda49, etc.) é


excluído como indicador de trabalho forçado. Já no atinente à entrada na relação de trabalho,
o recrutamento voluntário abusivo com base em vulnerabilidade socioeconômica não é
computado como elemento de trabalho forçado50, limitando-se a pesquisa a aferir os casos de
recrutamento forçado e recrutamento através de promessas enganosas (em que o “engano”
recaia sobre componente elementar da relação de trabalho, tal qual a identificação do
empregador, a natureza e o local do trabalho). De fato, trata-se de situações complexas e
delicadas, que um survey talvez não conseguisse dar conta (o que justifica sua exclusão para
não gerar maiores inconsistências), mas que no tempo mais estendido e com a abundância de
dados coletados nas ações de fiscalização como as do GEFM e nas ações judiciais podem ser
aferidas caso a caso.
Em sua metodologia Hard to see harder to count, a OIT optou por deixar de fora
toda essa gama de situações, provavelmente por entender que sua complexidade poderia
acarretar dificuldades e vieses na medição dos dados. Entretanto, os autores responsáveis pela
pesquisa fizeram questão de frisar que, a depender de outros elementos, a coerção econômica
pode, sim, implicar em trabalho forçado. Conforme se lê no próprio documento da OIT sobre
a metodologia do survey, no capítulo sobre o conceito operacional de forced labour:

a obrigação de permanecer em um trabalho devida a ausência de


oportunidades de emprego alternativas, considerada isoladamente, não é
identificada como situação de trabalho forçado; entretanto, se puder ser
provado que o empregador está deliberadamente explorando esse fato (e
a extrema vulnerabilidade que dela advém), para impor condições de
trabalho mais extremas do que seria possível em outras circunstâncias,
estaria configurado o trabalho forçado51 (OIT, 2012, p. 16, grifo nosso).

49
Na questão do survey “Can you leave your employer?”, a resposta “No, because there are no jobs available
locally” não é considerado elemento de “forced labour”, que se restringe à hipótese de impedimento direto e
pessoal por parte do empregador (“No, the employer would not let me go”) e que envolva um risco para a vítima
que seja diferente do risco econômico e material de não sobreviver. Na questão seguinte (“What do you risk if
you were to leave?”), a resposta “I would have no income” é invariavelmente desconsiderada como elemento de
trabalho forçado, que se concentra apenas nas demais respostas: “The employer would get other employers from
the area to boycott me or my family”; “Violence to myself by the employer or recruiter”; “Violence against my
family”; “Denunciation to authorities and possible deportation”; “ Other members of my family would be
dismissed”; “Loss of benefits for myself/members of my family” (OIT, 2012, p. 79-80).
50
Na questão “Were you free to refuse to work for this employer?”/ “If No, what would you have risked in the
case of refusal?”, dentre as respostas “No”, que assinalavam a falta de liberdade para deixar o trabalho, o motivo
econômico (“Nothing, but work opportunities are scarce”) não é considerado indicador de trabalho forçado. As
respostas que caracterizariam trabalho forçado para esta mesma questão, seriam apenas: “The employer would
have tried to prevent other employers in the area from hiring me”; “Other people from my family would lose
their job”; “My family would have lost access to land or other productive assets”; “Threats of violence against
myself or my family”; “Other, specify” (OIT, 2012, p. 77-8).
51
No original: “[…] the obligation to stay in a job due to the absence of alternative employment opportunities,
taken alone, does not equate to a forced labour situation; however, if it can be proven that the employer is
deliberately exploiting this fact (and the extreme vulnerability which arises from it), to impose more extreme
69

Este trecho é importante não só por mostrar o entendimento da OIT de que o


abuso da vulnerabilidade pode, sim, implicar em trabalho forçado (conforme exposto por
Machado, 2017); mas também por relacionar abuso de vulnerabilidade e condições extremas
de trabalho (mais severas do que seria possível caso não houvesse a vulnerabilidade).
Considerando com rigor os indicadores utilizados pela OIT (2012), talvez a
discrepância entre o conceito brasileiro de “trabalho escravo” e a categoria “forced labour”
utilizada pela OIT seja reduzida a pouquíssimos elementos residuais. Na publicação da OIT
Hard to see, harder to count, o que fica mais do que claro é que no conceito de “forced
labour” utilizado em suas pesquisas estão incluídos indicadores de todos os elementos
caracterizadores do “trabalho análogo a de escravo” do direito brasileiro: trabalho forçado,
servidão por dívida, jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho, bem como de
restrição da liberdade de ir e vir através da retenção de documentos e limitação de transporte.
Entender a posição e relação entre essas inclusões é que é a grande questão por ser mapeada
em pesquisas futuras.
A coerção econômica (quando combinada com conduta abusiva do empregador ou
preposto, mas nunca isoladamente) enquanto indicador de involuntariedade da vítima foi um
dos grandes avanços do direito e práxis fiscalizatória no Brasil. Trata-se do abuso da condição
de vulnerabilidade das vítimas, no campo fático, e que, na conceituação jurídica, é entendia
como vício de consentimento ou também como anulação da vontade. Aquilo que, à primeira
vista, poderia parecer voluntário, mas que se revela involuntário quando se examinam as
coerções sob as quais o consentimento foi obtido.
Porém, no debate nacional sobre a liberdade, o ponto fundamental de superação
do binômio coerção-involuntarismo adotado no conceito de trabalho forçado da OIT foi o
entendimento de que o crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo se perfaz
quando observada alguma das hipóteses descritas no art. 149 do Código Penal, ainda que
tenha havido consentimento da vítima.
Em nosso direito, o consentimento da vítima é, portanto, irrelevante para a
configuração do trabalho escravo. E, como veremos no estudo dos casos concretos, o
consentimento é também, muitas vezes, a própria fibra com que se trama, através de artifícios
manipulatórios e desesperados realismos, o tecido da nova escravidão.

working conditions than would otherwise be possible, then this would amount to forced labour” (OIT, p. 2012,
16).
70

1.3.3. Transformações do trabalho escravo contemporâneo: algumas hipóteses

As reflexões acima sobre a exploração da força de trabalho e a universalização do


status de sujeito de direito nas sociedades capitalistas conduziram-nos à identificação da
engrenagem primordial do trabalho escravo contemporâneo, o binômio contratualismo-
vulnerabilidade. O aprofundamento do estudo dos elementos contrato de trabalho e
vulnerabilidade social, aliado à pesquisa documental e empírica (cujos resultados mais
detalhados serão expostos no capítulo 2), desaguam, por sua vez, em algumas hipóteses de
trabalho que apresento aqui de forma sucinta.
O primeiro ponto diz respeito à (restrição da) liberdade de locomoção da classe-
que-vive-do-trabalho. Na época dos estudos pioneiros sobre trabalho escravo contemporâneo
no Brasil, a configuração das relações de escravização no trabalho se dava de tal maneira que
fazia sentido o uso de categorias como “imobilização de trabalhadores” (ESTERCI, 2008).
Trabalhadores eram, não raro, mantidos à força nos ambientes de trabalho, sofrendo
perseguição, punição e sendo até assassinados quando escapavam daquele ambiente de
opressão. “Estar preso” na fazenda sem ter como sair fazia parte da morfologia de grande
parte dos casos de trabalho escravo. Complementarmente, a palavra “fuga” fazia parte da
gramática das lutas e da resistência dos trabalhadores escravizados. Neste aspecto, a
peonagem dos anos 1960-1980 se assemelha à escravidão do Brasil pré-1888, em que os
cativos se diferenciavam das demais propriedades do senhor porque, diferentemente de meros
objetos, não eram perdidos, mas sim realizavam fugas, atos que escancaravam sua agência,
seu ser político (VASCONCELOS, 2011, p. 191).
Hoje, aparentemente, a escravidão não só imobiliza, mas também mobiliza os
trabalhadores. Ela barra e confina as pessoas, mas também as põe em marcha. Ela determina a
movimentação das populações, distribuindo os corpos nos territórios de forma a maximizar os
lucros de poucos, através de um único motor: a extrema vulnerabilidade de muitos. Essa
“otimização do uso dos recursos humanos” é feita à margem do direito, extorquindo-se a
saúde de populações inteiras sob o signo do voluntarismo e o imperativo do estado de
necessidade.
No processo de globalização recente, em que trabalhadores, plantas produtivas e
capitais financeiros atravessam mais e mais fronteiras geográficas, cada vez mais quem se
move é o trabalhador. É o que demonstra, na Europa, o recente fenômeno dos “posted
workers”, que são trabalhadores oriundos de países menos desenvolvidos (onde as
oportunidades de trabalho são mais escassas e os salários são menores) que migram para
71

países mais desenvolvidos, onde passam a trabalhar com contratos especiais que permitem
que eles recebam salário com valores referentes não ao território onde se encontram, mas sim
ao país de sua origem.
Este fenômeno inicia um discreto processo de erosão de um dos elementos
caracterizadores do Estado de Direito Moderno, que é a vigência territorial das leis. E, a
reboque, erode-se também a noção (ou ao menos o modo de aferição) da isonomia. No
fenômeno dos “posted workers”, que escancara o movimento também presente no mote da
“primazia do negociado sobre o legislado” de nossa recente reforma trabalhista, a vigência da
norma trabalhista é trans-espacial, virtual e, acima de tudo, personalizada. Ao invés de um
único limite social à exploração da mão de obra, calcula-se o limite individual de cada
trabalhador. O limite da exploração aceitável pode ser determinado de forma personalizada,
conforme a vulnerabilidade de cada população ou de cada indivíduo, aumentando a taxa de
exploração.
O recrutamento forçado (venda, sequestro e captura de seres humanos como ponto
de entrada para o trabalho escravo) diminui drasticamente no Brasil e se concentra em
situações específicas e gravíssimas, a exemplo do tráfico de mulheres para serem forçadas a
trabalhar em redes internacionais de prostituição. O mesmo ocorre com a compra e venda de
seres humanos, observada em raríssimos casos, porém com incidência muitíssimo menor do
que na escravidão do Brasil pré-1888, em que essa era a regra (também com exceções) no uso
da mão de obra africana e indígena em nosso país. Na escravidão contemporânea prevalece o
recrutamento e aliciamento através de promessas enganosas, isto é, através da fraude
contratual e não da violência direta. Ademais, em casos mais recentes, formas de
recrutamento consensuais começam a servir como novas portas de entrada para trabalhos
exaustivos e em condições degradantes.
Em suma, a forma de escravizar mudou. O capitalismo não inventou a escravidão,
mas a adaptou (e continua a readaptar). Muitos estudos comparam a escravidão
contemporânea com a escravidão dita “tradicional”, no que diz respeito a tempo de duração,
porte do investimento financeiro no escravo etc. (BALES, 2004, p. 9; SCHWARTZ, R., 2008,
p. 124). Esta pesquisa também persegue a especificidade da escravidão contemporânea no que
diz respeito à forma de dominação, aos próprios mecanismos de escravização.
Assim, derivadas de nossa hipótese principal sobre a transformação das formas de
escravizar causadas pelas transformações nas formas e dominação entre o século XX e XXI
em Mato Grosso, apresentamos aqui nossas principais hipóteses secundárias, que detalham
alguns aspectos da nova morfologia do trabalho escravo.
72

Em síntese, as principais transformações nas formas de escravizar identificadas no


período analisado seriam: a) o predomínio do abuso da vulnerabilidade em detrimento da
restrição da liberdade das vítimas; b) o atentado à vida dos trabalhadores cada vez mais
perpetrado como um “deixar morrer” e não como uma violência direta sobre os corpos ou um
“fazer morrer”; c) o tratamento do ser humano como coisa através de uma discriminação de
fato (e, portanto, velada) e não mais de direito. E, no coração de todas essas transformações,
encontramos d) a tecnologia neoliberal52 de dominação mobilizando e manipulando (e não
mais meramente contrariando e anulando) a vontade das vítimas.

ESCRAVIDÃO
ESCRAVIDÃO ESCRAVIDÃO
CONTEMPORÂNEA –
COLONIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA -
ECONOMIA
EUROPEIA NOVA FRONTEIRA
CONSOLIDADA
Abuso da vulnerabilidade –
TIPO PREDOMINANTE Abuso da vulnerabilidade –
Restrição da liberdade – prevalência do
DE COERÇÃO AO recrutamento por promessas
recrutamento forçado recrutamento por promessas
TRABALHO enganosas ou consentido
enganosas
TIPO PREDOMINANTE Controle extenso
DE (direito de
Deixar viver ou fazer
CONTROLE/VIOLÊNCIA propriedade). Deixar morrer
morrer
SOBRE O CORPO DO Tratamento dependendo
TRABALHADOR do preço do escravo
DIMENSÃO
PREDOMINANTE DA Tratar como coisa
Tratar como coisa Tratar como coisa
DESIGUALDADE (discriminação de
(discriminação de fato) (discriminação de fato)
IMPOSTA AO direito)
ESCRAVIZADO
Manipula (geralmente na
RELAÇÃO
entrada) e contraria
PREDOMINANTE
Contraria a vontade (geralmente durante o Manipula a vontade
ENTRE ESCRAVIDÃO E
trabalho e na saída) a
LIVRE ARBÍTRIO
vontade

Tabela 1 – TRANSFORMAÇÕES DA ESCRAVIDÃO


(Fonte: Elaborada pela autora)

Na tabela acima, sintetizamos nossas principais hipóteses anteriormente


mencionadas, acrescentando uma comparação ao regime escravagista legalizado do Brasil
pré-1888. Tomamos como referência essa forma de escravidão (e não outras formas
heterogêneas e ilegais que se proliferaram no período pós-abolição em diversas regiões do
país), por se tratar de um paradigma central no debate jurídico e acadêmico sobre escravidão
contemporânea, presente não só na própria letra da lei (através da “analogia” contida no art.

52
Neste mesmo sentido, Alves explica que “a elevação dos índices do desemprego aberto no decorrer da década
neoliberal contribuiu não apenas para fragilizar o poder de barganha dos trabalhadores assalariados e aumentar
as taxas de exploração, intimidando o sindicalismo combativo de luta de classes; mas possuiu uma função
sociorreprodutiva, ou seja, criou a sociabilidade adequada aos consentimentos espúrios, às renúncias de direitos
sociais e de conquistas trabalhistas históricas e aos envolvimentos estimulados pelo medo do desemprego. No
novo ambiente social da década neoliberal proliferam valores, expectativas e utopias de mercado, impregnados
de individualismo liberal que aparece como novo pragmatismo” (2011, p. 126).
73

149 do Código Penal, que define o crime a partir do referencial da escravidão colonial), como
na maioria das elaborações teóricas e pesquisas que perseguem a especificidade
contemporânea das formas de escravizar53.
O que designamos na tabela por “escravidão contemporânea da nova fronteira”
reporta-se ao trabalho escravo que se proliferou entre as décadas de 1960 e 1990, fundado na
lógica repressiva de “imobilização da força de trabalho”, no contexto de integração da
agricultura brasileira à economia global do país (GRAZIANO, 1981 apud ESTERCI, 2008, p.
62). Nesse contexto é que

a prática de repressão da mão-de-obra pode operar em processos de


reestruturação da economia, propiciando acumulação e modernização em
determinados setores, ao mesmo tempo que produz, reproduz ou torna ainda
mais acentuadas as tendências de diferenciação e as estruturas de
desigualdade social já existentes54 (ESTERCI, 2008, p. 59-60).

Por fim, antes de entrarmos na última parte do capítulo, que se concentrará sobre
questões jurídicas, aproveito para encerrar esta primeira parte teórica do trabalho fazendo
algumas considerações sobre a superexploração, um conceito que esta pesquisa não
mobilizará, apesar de manter com ele um horizonte comum de temas e questões.
Esclareço que essa escolha não prejudicará em nada o diálogo com os autores aqui
estudados e que discutem a questão da superexploração (MARTINS, 2009, ANTUNES,
2018). Além disso, a especificidade da exploração no capitalismo periférico estará presente no
capítulo II quando discutiremos a economia mato-grossense no contexto da nova ordem
mundial. Entretanto, no campo da discussão do fenômeno do trabalho escravo, em nossa
avaliação, uma abordagem ancorada no conceito de exploração mostrou-se mais apropriado,
uma vez que, não obstante corroborarmos com as teses da dependência e da mais valia

53
Os estudos sobre a “escravidão moderna” de Kevin Bales centram-se na comparação entre as novas e as
“velhas formas de escravidão”. Para o autor, as características da velha escravidão seriam: a) escravo legalmente
como propriedade; b) alto custo de aquisição de mão de obra; c) baixos lucros; d) escassez de mão de obra; e)
vínculos de longa duração; f) relevância das diferenças étnicas para a escravização. Em contraste, a “escravidão
moderna” se caracterizaria por: a) proibição da propriedade sobre os escravos; b) custo de aquisição de mão de
obra muito baixo; c) altos lucros; d) mão de obra descartável; e) vínculos de curta duração; f) diferenças étnicas
sem relevância para a escravidão (BALES, 2004). Já a manutenção da ordem, em ambos os contextos, seria
garantido por ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos” (BALES,
apud REPÓRTER BRASIL) por diversos autores, o que será problematizado em nossa pesquisa
(https://reporterbrasil.org.br/trabalho-escravo/comparacao-entre-a-nova-escravidao-e-o-antigo-sistema/).
54
Neide Esterci expõe os efeitos da prática em grande escala da imobilização da força de trabalho no Brasil a
partir dos anos 1960: “além de baixar o custo da mão-de-obra, (...) retardou a instauração do padrão contratual de
trabalho, diminuiu o poder de negociação dos trabalhadores e opôs obstáculos à consolidação da identidade de
assalariados dos trabalhadores, ao reconhecimento dos seus direitos e das suas entidades de representação”
(2008, p. 59).
74

extraordinária, nossa discussão enfatiza a tendência de aumento das taxas de exploração como
algo inerente à própria lógica do capital.
No contexto atual, em que se observam as jornadas “típicas da periferia” sendo
progressivamente replicadas no centro do sistema (BASSO, 2018), a presença da escravidão
contemporânea por todo o globo e, no caso das cadeias internacionais de produção de
alimentos (que estudaremos adiante), a pressão devastadora das grandes corporações sobre
trabalhadores e pequenos produtores de todo o mundo, a categoria da exploração mostrou-se
mais adequada à pesquisa. Evidentemente, as questões que animam os debates sobre a
superexploração estão presentes também neste trabalho. Principalmente no que tange à
exploração realizada a taxas tão altas de modo a negar ao trabalhador as condições necessárias
para repor o desgaste de sua força de trabalho (MARINI, 2000, apud AMARAL;
CARCANHOLO, 2009, p. 222), tema que, como se verá, receberá destaque neste estudo.
Entretanto, a categoria da superexploração apresenta algumas desvantagens para
uma pesquisa com a temática e enfoque aqui adotados. Um deles é que, apesar de todo
“trabalho escravo” poder ser considerado também um caso de superexploração, o inverso não
é verdadeiro. E a linha divisória entre a superexploração considerada trabalho escravo e
aquela que não pode ser assim compreendida passa por uma análise fenomênica das relações
de trabalho mas, principalmente, não pode prescindir, hoje, do crivo jurídico. É o direito, por
exemplo, que diz quando o trabalho que compromete a reprodução da força de trabalho pode
ser considerado juridicamente “degradante”.
Por outro lado, é papel das Ciências Sociais produzir conhecimento sobre a
morfologia destas novas e renovadas formas de exploração, contribuindo para que o aparato
jurídico não seja utilizado – sem resistências – para restringir a compreensão do fenômeno e o
alcance das lutas populares. Neste sentido, as questões levantadas nos debates sobre a
superexploração são imprescindíveis para o avanço na compreensão das dinâmicas e
implicações do que a legislação denominou “jornada exaustiva”.
Um outro ponto a ser observado é que, além da aproximação sem precauções
entre superexploração e escravidão apresentar problemas, o contrário – imprecisões derivadas
de uma acepção de superexploração e trabalho escravo como duas categorias totalmente
separadas – também se observa. Nos dados da Comissão Pastoral da Terra, uma das principais
fontes para pesquisas sobre o tema no Brasil, o indicador “superexploração” é utilizado em
oposição ao de “trabalho escravo”, para poder dar conta de aumentos nas taxas de exploração
que não possam ser medidas pelo indicador “trabalho escravo” (o que se mostrou relevante
principalmente nos anos em que os dados do trabalho escravo declinaram, ainda que o
75

declínio tenha sido muitas vezes motivado por questões burocráticas sem relação com o real
número de casos ocorridos).
Por esses motivos, entendemos que o debate sobre a superexploração é de extrema
relevância e pode contribuir para estudos de trabalho compulsório, notadamente quando
abarquem países distintos. No nosso caso, em que uma das questões centrais de análise – o
desemprego estrutural – atinge países tanto da periferia quanto do centro, pareceu-nos mais
vantajoso o debate através da categoria da exploração, tendo em vista que nela já está contida
a tendência do capital a aumentar a taxa de exploração ao nível mais elevado possível.
Feitos esses esclarecimentos, passamos ao debate sobre o conceito de trabalho
escravo na ordem jurídica, que nos servirá de subsídio para as análises elaboradas nos
capítulos II e III, quando a questão da exploração aqui mencionada será efetivamente
depreendida nos casos concretos e nas narrativas sobre o trabalho escravo contemporâneo.

1.4. O trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro

Neste item, proponho-me a fazer uma breve apresentação do conceito jurídico de


“trabalho escravo” no direito brasileiro, que servirá de base para a compreensão das análises e
discussões que se seguirão nos próximos capítulos.
Não se trata, aqui, de traçar uma historiografia completa da legislação brasileira
sobre o tema e muito menos de tecer teses jurídicas sobre tão complexo instituto. Nossa
pesquisa não é um estudo doutrinário e jurisprudencial em matéria de “trabalho análogo a de
escravo”, mas sim um estudo sobre a morfologia das práticas de trabalho escravo na
contemporaneidade.
Iniciarei por uma exposição sobre a relação entre norma jurídica, relação jurídica
e relação social, em que explicarei como o fenômeno jurídico é abordado nesta pesquisa. Em
seguida, apresento uma breve trajetória jurídica do conceito de “trabalho escravo” no Brasil.
E, por fim, apresento as disputas em torno desse conceito, que se acirraram nos últimos anos.
Exponho, assim, minha interpretação sobre o que está realmente em jogo neste debate e a
importância de estudos mais aprofundados que ajudem a desmistifica-lo.
76

1.4.1. Norma jurídica, relação jurídica e relação social

Nosso estudo sobre as formas do trabalho escravo contemporâneo tem como pano
de fundo as disputas políticas em torno da legislação que conceitua o que é “trabalho análogo
a escravo” no Brasil. O fenômeno jurídico, portanto, estará sempre implicado durante a
pesquisa.
Buscaremos um enfoque crítico do direito, que identifique as determinações das
relações sociais sobre o fenômeno jurídico sem, contudo, recair numa esterilidade mecanicista
e economicista. Parte-se do reconhecimento de que, apesar de não ter história própria (Marx),
o direito detém uma autonomia relativa55 que, tanto na promulgação, revogação, aplicação ou
ineficácia funcional das leis, é uma importante arena da luta de classes.
Deste modo, a análise da legislação sobre trabalho escravo aqui proposta tem
como premissa que as normas jurídicas são precedidas pelas relações jurídicas; e estas, por
sua vez, são precedidas pelas relações sociais propriamente ditas. Nas palavras de Kashiura
Júnior (2009, p. 77): “As relações sociais se instalam independentemente de normas nas quais
estejam previstas, são fruto da própria dinâmica social e não de uma criação jurídica
consciente”. Tanto é assim que, apesar da Constituição Brasileira de 1824 ter incluído, em um
de seus artigos, a transcrição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirmando
a liberdade como um direito inalienável de todo ser humano, a escravidão ainda foi mantida,
assolando quase metade da população brasileira à época (COSTA, E., 2010a, p. 16).
Assim, contrapondo-se à noção de prevalência do dever-ser sobre o ser,
encampada pelos normativistas, esta pesquisa buscará na realidade das relações sociais em
que a escravidão contemporânea se materializa, bem como nas lutas sociais em torno do
trabalho, os elementos fundamentais para a compreensão das idas e vindas na legislação sobre
o tema. Para tanto, é preciso compreender tanto o fetichismo quanto a materialidade do
direito:

As relações econômicas e sociais capitalistas existem realmente segundo o


tipo de organização que o capital implica mas, efectivamente também,
existem as relações jurídicas que as exprimem e, veremos, as reproduzem.
Neste sentido, as relações jurídicas não são pura imaginação: existem, têm
uma materialidade indiscutível, tão real como as instituições do aparelho do

55
Nas palavras de Michel Miaille, “A instância jurídica é autónoma na estrutura social de conjunto no sentido
em que que, se está submetida à determinação do nível econômico, é só em última instância. Ela possui, pois, um
modo de existência e de funcionamento próprios, traduzindo-se no facto de constituir um sistema de
comunicação expresso em termos de normas, tendo a sua própria lógica e compreendendo uma estrutura
complexa” (2005, p. 103).
77

Estado que lhe estão ligadas, tais como a justiça, a polícia, a administração.
Mas ao mesmo tempo, [...] as relações reais estão ocultas por todo um
imaginário jurídico: o direito designa e desloca ao mesmo tempo os
verdadeiros problemas. Este imaginário é o da pessoa sujeito de direito e o
da norma regra imperativa. Porque estou convencido de que o homem é a
fonte do direito, posso submeter-me ou resignar-me a obedecer a um sistema
de normas de que ele é o autor. Mais precisamente, estas normas parecem-
me lógicas e necessárias para organizar relações que eu não posso então
perceber que estão já organizadas “noutro lado”. Ao realizar-se, o direito não
diz pois o que deve ser, diz já “aquilo que é” (MIAILLE, 2005, p. 95)56.

É exatamente a dinâmica exposta por Miaille no trecho acima que buscarei


compreender no caso específico do trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro, com
o destaque de que os efeitos das lutas que o próprio instrumental jurídico possibilita também
serão considerados como parte integrante daquilo “que é”. O ser social, portanto, não como
repetição de uma dominação estática, mas como atualização constante da dinâmica histórica
das lutas sociais num determinado contexto.
Se, por um lado, não tomarei a lei como instância determinadora das relações
jurídicas, tampouco acredito que ela seja “apenas uma outra máscara do domínio de uma
classe”57 (THOMPSON, 1997, p. 350). Afinal, “O direito pode ser retórico, mas não
necessariamente uma retórica vazia” (THOMPSON, 1997, p. 350).
Assim como no caso da Lei Negra analisado por Thompson, a legislação sobre
trabalho escravo no Brasil atual tem sido menos um instrumento fixo de dominação de uma
classe do que um instrumento de poder em disputa – ainda que dentro de certos limites – cujo
conteúdo e extensão são objetos de conflitos contínuos:

Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar


nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição
prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que
mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser
justa (THOMPSON, 1997, p. 554).

56
O autor prossegue: “Mas esta realidade não pode surgir-me uma vez que, à semelhança da mercadora, a norma
me deixa crer que é fonte de valor, que ela é pois um imperativo primeiro e categórico. É aqui que entra a
fetichização: atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, a imperatividade),
justamente quando esta qualidade pertence não à norma mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta
norma é expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor mas o realiza no momento da troca, a
norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo é
tanto mais acentuado na sociedade capitalista quanto o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas
normativos, o que conquistou a hegemonia na função de ‘dizer’ o ‘valor dos actos sociais’” (MIAILLE, 2005, p.
95).
57
Em seu clássico livro Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra, Thompson conclui que algumas
passagens de seu estudo “confirmaram as funções classistas e mistificadoras da lei. Mas rejeitaria seu
reducionismo inconfesso e alteraria sua tipologia de estruturas superiores e inferiores (mas determinantes)”
(THOMPSON, 1997, p. 350).
78

O mesmo autor frisa que há uma enorme diferença entre o exercício do poder
através do arbítrio extralegal e através do domínio da lei, de modo que, ao se tornar um

magnífico instrumento pelo qual esses dominantes podiam impor novas


definições de propriedade, para proveito próprio [...], por outro lado, a lei
mediava essas relações de classe através de formas legais, que
continuamente impunham restrições às ações dos dominantes (THOMPSON,
1997, p. 356).

Neste mesmo sentido, almejo traçar o histórico de negação, afirmação,


construção, desconstrução e disputas em torno do conceito legal de trabalho escravo no Brasil,
com o foco nas “lutas que se escondem por detrás dos nomes” (ESTERCI, 2008, p. 5) e com o
duro desafio de não sucumbir ao economicismo e nem ao fetichismo da norma. À luz do
estudo de como se materializa a escravização contemporânea em Mato Grosso, pretendo, ao
final deste trabalho, ressignificar o conhecimento do instrumental jurídico brasileiro que rege
o tema. Tentarei compreender, tendo em conta a correlação de forças que anima os
argumentos divergentes acerca da definição de trabalho escravo no país, o que está em jogo
nas disputas em torno desses conceitos.
Trata-se de percorrer o perímetro sempre cambiante da autonomia relativa do
direito, com o estudo igualmente necessário de seus limites e aberturas expostos por
Pachukanis (apud NAVES, 2000, p. 64):

O método jurídico-formal que concerne apenas às normas e a isto que é


‘supostamente conforme ao direito’ só pode manter a sua autonomia dentro
de estreitos limites e exatamente apenas enquanto a tensão entre o fato e a
norma não ultrapassa um determinado grau máximo.

No caso dos institutos jurídicos sobre a questão do trabalho escravo, veremos


como em diferentes momentos históricos a autonomia relativa do direito se reduz a limites
cada vez mais confinados ou se expande num campo aberto (mas nunca irrestrito) às lutas
sociais. Esta dinâmica é ditada pela tensão permanente entre o fato e a norma, como revelou
Pachukanis, mas, como ele mesmo ressalvou, desde que essa tensão não ultrapasse “um
determinado grau máximo”.
À primeira vista, as desconstruções recentes do arcabouço jurídico de combate ao
trabalho escravo no Brasil nos fazem supor que talvez tenhamos chegado precisamente neste
ponto máximo. Mas para enfrentar tais questões, precisaremos resgatar um pouco da trajetória
destas normas jurídicas para, nos capítulos posteriores, buscarmos na realidade das relações
79

sociais e na mediação do direito as chaves de compreensão desse problema que, nos últimos
anos, tornou-se candente: quais são as especificidades, a forma e a força da escravidão
contemporânea?

1.4.2. A luta por reconhecimento da existência de trabalho escravo no Brasil e a


construção de políticas voltadas à sua erradicação

Na Carta Pastoral intitulada Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio


e a marginalização social, escrita pelo Bispo Pedro Casaldáliga em São Félix do Araguaia em
outubro de 1971, a escravização dos migrantes nordestinos no processo de derrubada da
floresta amazônica para formação de pastos em território mato-grossense é denunciada e
descrita em seu contexto de peonagem, de apoio da Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM) aos latifundiários, de usurpação das terras dos antigos moradores da
região e da violência praticada contra sertanejos e indígenas.
Nesse importante documento histórico58 estão registradas importantes facetas do
fenômeno do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso, tais como a peonagem, a
migração, a discriminação, a destituição de direitos, o caráter compulsório da migração e do
trabalho, a presença ameaçadora da morte: a ausência eloquente de igualdade e liberdade.
Era de escravidão que se tratava, de fato, e a denúncia de Casaldáliga ecoou em
mais um sem-número de denúncias semelhantes que atravessaram as décadas de setenta,
oitenta e noventa quando, finalmente, o governo brasileiro, premido por pressões
internacionais, reconheceu a existência de escravidão no país.
Apesar do Código Penal Brasileiro de 1940 prever o crime de “reduzir alguém à
condição análoga à de escravo”, na década de 1970 as autoridades públicas passavam ao largo
da questão: “a intervenção federal só se faz presente quando a opinião pública é mobilizada.

58
A Carta Pastoral de outubro de 1971 da Prelazia de São Félix do Araguaia é, também, um testemunho
emocionante de um bispo que, após 3 anos de trabalho naquela prelazia cuja população era formada pelos
sofridos peões flutuantes, questiona-se: “Como se faz ‘comunidade de base’ com um povo em constante
dispersão?”. Conclui ele: Com respeito aos fazendeiros – que normalmente não moram na região – e aos
gerentes e pessoal administrativo das companhias latifundiárias – que moram aqui com intermitência – a ação
pastoral é praticamente impossível, sempre que não se aceite o poder de opressão social que eles encarnam;
sempre que não se queira amancebar a Missa, esporádica, com a injustiça permanente, e a presença do padre – da
Igreja – na sede da Fazenda (com seus teco-tecos, nos seus refeitórios, nos seus escritórios paulistas ou gaúchos)
com a ausência do Evangelho e da Justiça no conflito dela com os posseiros e nos barracões, nas derrubadas e na
vida toda dos peões escravos (CASALDÁLIGA, 1971, p. 7). O texto continua: “Isso é o que a gente pensa
depois de três anos de vida e de luta. Ajudar a libertação dos oprimidos é o meio mais direto e eficaz de
contribuir para a libertação dos opressores. Nem todos poderão ‘entender’ esta atitude. É uma opção dolorosa, de
pobreza, de risco e de ‘escândalo’ evangélico...” (1971, p. 6).
80

Não há nenhuma fiscalização com relação ao trabalho nas fazendas” (CASALDÁLIGA, 1971,
p. 20).
As décadas de 1970 e 1980 terem sido marcadas por casos e denúncias de trabalho
escravo na Amazônia, mas foi apenas na década de 1990 que um ampliado aparato jurídico
foi sendo criado em torno do enfrentamento do trabalho escravo. Essa mudança foi
consequência da exposição internacional do Brasil pelo caso José Pereira59, levado em 1992 à
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 1999 responsabilizou o Brasil por sua
omissão ante as violações de direitos humanos cometidas (CAVALCANTI, 2016, p. 96).
A partir de 1995 vão sendo criados todos os instrumentos de enfrentamento do
trabalho escravo que temos até hoje no Brasil. A continuidade das políticas de combate ao
trabalho escravo observada entre os governos do PSDB e PT leva alguns atores a
classificarem-na como uma verdadeira “política de Estado” (GOMES, M., 2019). Um dos
auditores entrevistados ressalta que nas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio
Lula da Silva e Dilma Roussef sempre houve certa priorização do combate ao trabalho
escravo, com o aporte de recursos e infraestrutura para viabilizar as fiscalizações. O apoio à
pauta do combate ao trabalho escravo no poder executivo veio a ser claramente rompido a
partir do governo de Michel Temer, quando foram feitas investidas dentro do próprio
Ministério do Trabalho visando à suspensão da Lista Suja e à restrição do conceito de
“trabalho análogo ao de escravo”, bem como à limitação dos poderes dos auditores-fiscais do
trabalho.
A construção dos instrumentos de enfrentamento do trabalho escravo no Brasil
ocorreu num contexto político caracterizado por alguns fatores importantes: a) visibilidade da
existência de trabalho escravo no país em razão do “Caso José Pereira” e posteriormente,
através de campanhas oficiais; b) pressão da comunidade internacional para que o Brasil

59
“Em 1989, o adolescente de 17 anos de idade chamado José Pereira era escravizado na Fazenda Espírito
Santo, localizada em Sapucaia, no Estado do Pará. Ele e outros companheiros (sessenta trabalhadores,
posteriormente resgatados), que trabalhavam, sob vigilância armada, no preparo do solo e na formação da
pastagem para alimentação do gado, eram trancados no barracão na hora de dormir e possuíam dívidas
impagáveis decorrentes da compra de produtos inflacionados no armazém da fazenda. Juntamente com um
colega de trabalho conhecido por Paraná, José Pereira aproveitou um breve momento de folga durante a
madrugada para evadir-se do local. Na tentativa de fuga, no entanto, os dois foram perseguidos e emboscados
pelos capatazes, que logo abriram fogo contra os fugitivos. José Pereira levou um tiro no olho, fingiu-se de
morto para despistar os algozes, conseguiu sobreviver e pediu socorro à Fazenda Brasil Verde e à Comissão
Pastoral da Terra. Paraná, no entanto, não teve a mesma sorte do seu colega, falecendo no local. A Comissão
Pastoral da Terra, que já havia denunciado a Fazenda Espírito Santo pela prática de trabalho escravo desde 1987,
acompanhou o caso do adolescente. A demora na responsabilização criminal dos envolvidos e a ineficácia e o
desinteresse do aparato estatal na recomposição dos bens jurídicos lesados fizeram a CPT levar o caso a uma
ONG internacional denominada Center for Justice and International Law (CEJIL), responsável por denunciar o
Estado brasileiro perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos”
(CAVALCANTI, 2016, p. 96).
81

tomasse medidas contra o trabalho escravo e ampla atuação da Organização Internacional do


Trabalho no fortalecimento das instituições envolvidas nas ações de prevenção, repressão e
assistência às vítimas; c) alinhamento do governo federal em favor de políticas de erradicação
do trabalho escravo, permitindo a criação de instrumentos legais e implementação de políticas
sem solução de continuidade entre diferentes gestões; d) papel fundamental exercido pelas
entidades da sociedade civil na rede de enfrentamento do trabalho escravo, que conferiu à luta
contra a escravidão certa autonomia em relação ao jogo da política partidária.
Assim, no ano de 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel
(GEFM), através da Portaria nº 550 do Ministério do Trabalho, que atua até os dias de hoje na
fiscalização do trabalho escravo e cujos relatórios são as principais fontes desta pesquisa.
Já em 1998, foi promulgada a Lei n. 9777, que previu “o aumento das penas e a
previsão de modalidades assemelhadas dos crimes de frustração de direito assegurado por lei
trabalhista e de aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional”
(CAVALCANTI, 2016, p. 98), crimes conexos ao trabalho análogo a escravo.
Em 2002, através da Lei 10.608, foi instituído o seguro-desemprego para
trabalhadores que fossem encontrados em regime de trabalho escravo pela fiscalização do
trabalho.
Logo em seguida, no ano de 2003, criou-se a Comissão Nacional para Erradicação
do Trabalho Escravo (CONATRAE), órgão colegiado composto por representantes
governamentais, de entidades da sociedade civil e por observadores, responsável por
coordenar o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo.
Também em 2003 foi implementado o cadastro hoje conhecido por “Lista suja”
através da Portaria 1.234 do Ministério do Trabalho. Trata-se de um cadastro que exibe os
dados dos infratores pelo período de dois anos, após trânsito em julgado administrativo do
auto de infração que indique a prática de reduzir alguém a condição análoga a de escravo. Ao
lado da exposição pública dos infratores, o instrumento tem também efeitos econômicos,
sendo utilizada por bancos públicos para restringir créditos e financiamentos a escravagistas,
na esteira de recomendação contida em portaria do Ministério da Integração Nacional do
mesmo ano. Os infratores permanecem na lista por dois anos, sendo então excluídos caso
paguem as multas devidas e não haja reincidência.
Foi nesta sequência de medidas legislativas que, também em 2003, alterou-se o
próprio texto do art. 149 do Código Penal através da Lei nº 10.803, que conferiu maior
detalhamento à caracterização da prática de reduzir alguém a condição análoga a de escravo.
82

No ano de 2008 foi criado o Projeto Ação Integrada na Superintendência Regional


do Trabalho em Mato Grosso, que inspiraria o Movimento Ação Integrada60, de caráter
nacional, lançado em 2012. O projeto promove articulações com entidades públicas, privadas
e da sociedade civil com o objetivo de romper o ciclo vicioso da escravidão, a partir da
identificação dos fatores de vulnerabilidade dos indivíduos e suas famílias e da promoção de
ações coordenadas de atenção às vítimas de trabalho escravo e às populações vulneráveis,
oferecendo-lhes capacitação técnica e formação cidadã e buscando, por fim, inseri-las em
postos de trabalho decente.
Em outubro de 2011 foi publicada a Instrução Normativa nº 91 da Secretaria de
Inspeção do Trabalho, cristalizando em normas as rotinas de fiscalização do trabalho escravo.
Na esfera estadual, a política de erradicação do trabalho escravo teve também sua
história própria. Apesar do reconhecimento da existência de trabalho escravo no Brasil por
parte do governo federal em 1995 (no contexto da pressão internacional suscitada pelo caso
Zé Pereira), no estado de Mato Grosso o reconhecimento das autoridades públicas só viria
depois, também através de embates e pressões da sociedade civil.
Uma das mais atuantes lideranças nos movimentos de defesa dos trabalhadores de
Mato Grosso, que participou do momento inicial de articulação social e interinstitucional pela
erradicação do trabalho escravo, contou-me em entrevista que na esfera estadual o combate ao
trabalho escravo teve seu ponto de inflexão no ano de 2003. Seu depoimento permite o
resgate desse importante marco histórico:

foi naquela época que nós também construímos, em 2002 e 2003, o Fórum
Social de Erradicação do Trabalho Escravo, que (...) precedeu toda uma
estrutura de estado que desembocou então na COETRAE61.[...] Construímos

60
O Movimento Ação Integrada foi objeto de Termos de Cooperação Técnica, dentre os quais o firmado em
2015 no Supremo Tribunal Federal, por representantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Organização
Internacional do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF),
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH) e do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
(SINAIT) O objetivo do movimento é “conjugar esforços para promover a modificação social, educacional e
econômica dos resgatados do trabalho escravo e vulneráveis por meio do exemplo vindo de Mato Grosso e pela
replicação e adequação dessa iniciativa em estados e municípios que queiram aderir ao Movimento”
(http://www.acaointegrada.org/movimento-acao-integrada/)
61
O entrevistado refere-se à Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo – Mato Grosso. As
Comissões Estaduais para a Erradicação do Trabalho Escravo são integradas por agentes atuantes na erradicação
do trabalho escravo contemporâneo em cada estado federativo, reunindo membros do governo estadual, do
governo federal e da sociedade civil. O Decreto n. 985, de 07/12/2007, que criou a COETRAE em Mato Grosso,
conferiu-lhe as seguintes competências: I – elaborar e acompanhar o cumprimento das ações constantes do Plano
Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo, propondo as adaptações que se fizerem necessárias; II –
acompanhar e avaliar os projetos de cooperação técnica firmados entre o Governo do Estado e os organismos
nacionais e internacionais; III – propor a elaboração de estudos e pesquisas e incentivar a realização de
campanhas relacionadas à erradicação do trabalho escravo; IV – elaborar e aprovar seu regimento Interno”.
83

um fórum estadual de erradicação do trabalho escravo. [...] Então a partir


desse fórum a gente foi pressionando o governo, aí começaram aquelas
ações. Aí logo no governo Maggi62, quando o governo Maggi assumiu
falando que o Mato Grosso não tinha trabalho escravo, então chamando para
um evento junto com a OIT (...), [para] fazer uma grande encenação pra
dizer que Mato Grosso não tinha mais trabalho escravo (...). E naquele
momento tinha justamente trabalhadores que tinham vindo denunciar
trabalho escravo. [...] Então o quê que a gente fez? (...). Eles dizendo que
não tinha trabalho escravo e nós colocamos os trabalhadores para falar como
é que eles tinham conseguido fugir, o que estava acontecendo. Então no dia
seguinte, ao invés de sair que no Mato Grosso não tinha trabalho escravo, na
verdade então estava justamente mostrando que tinha trabalho escravo.[...] E
a partir daí seguiu que caiu um pouco a máscara, então... foi um ponto
crucial: que nós criamos um fórum, esse fórum fez esse contraponto, (...)
caiu a máscara (...) Tinha sido feito resgate na fazenda dele [de Blairo
Maggi], então ele fazendo todo aquele discurso sobre as imagens da fazenda
dele, as práticas que eles têm, restaurante, tudo para mostrar, para desmentir
que ele não tinha trabalho escravo. Aí então acho que foi um elemento, um
marco para Mato Grosso.

Outro episódio emblemático mencionado por muitos entrevistados foi a troca de


tiros entre a Polícia Federal e a Polícia Militar de Mato Grosso durante um resgate de
trabalhadores escravizados numa propriedade rural em 200663. Esse caso foi citado pela
mesma liderança entrevistada como outro momento crucial de escancaramento da realidade
do trabalho escravo em Mato Grosso no processo que conduziu à criação da Comissão
Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE):

o que fez, na sequência, o governo perceber foi a partir daquele incidente


daquela operação que teve em Nova Lacerda e que a Polícia Federal foi
chamada e que houve aquela troca de tiros entre a Polícia Federal e a
Estadual. [...] O fazendeiro disse que a fazenda estava sendo assaltada, então
os policiais federais foram considerados como assaltantes e a partir daí, a
partir de uma investigação, uma apuração de trabalho escravo, esse incidente
sim provocou o governo do estado a realmente dizer que no Mato Grosso
tinha trabalho escravo e a partir daí começou a construir oficialmente essa
perspectiva que em 2008 se afirma enquanto COETRAE (Entrevista, Cuiabá,
2014).

Em Mato Grosso, a COETRAE foi criada pelo Decreto nº 985, de 07/12/2007. Em


agosto de 2008 foi aprovado o primeiro “Plano de Ações para Erradicação do Trabalho
Escravo para o Estado de Mato Grosso” através do Decreto nº 1545. Desde então, a comissão

62
Blairo Borges Maggi foi governador do estado de Mato Grosso de 01/01/2003 a 31/03/2010. Conhecido como
“rei da soja” e como o braço político do poderoso grupo André Maggi, recebeu em 2006 o troféu “motosserra de
ouro” do Greenpeace, que o considerou responsável por metade da devastação ambiental brasileira entre 2003 e
2004.
63
Este caso será retomado com mais detalhes no próximo capítulo.
84

obteve destaque dentre as demais comissões estaduais, recebendo menções e apoio técnico da
OIT. Segundo Aurora, que foi uma das primeiras e mais atuantes integrantes da COETRAE
em Mato Grosso,

diante de todas as propostas que vinham surgindo, das reuniões, da dinâmica


que [a COETRAE-MT] tinha, ela passou a ser referência para a ONU
também. E aí, em 2008, nós recebemos a visita da relatora da ONU, que veio
ao Brasil, a Mato Grosso, para conversar com a COETRAE.

Em Mato Grosso, o envolvimento efetivo da Secretaria de Segurança Pública na


pauta do combate ao trabalho escravo teria desempenhado um importante papel, segundo a
servidora Aurora:

Mato Grosso está no topo da lista dos estados que mais têm profissionais na
segurança pública capacitados nessa área dos cursos online. Mato Grosso
desponta. Nós temos hoje, no último relatório da EAD – EAD é o Ensino à
Distância da Justiça - tinha quase 8 mil servidores capacitados nos cursos de
Direitos Humanos. Na atual grade curricular das academias de polícia militar
e civil, toda a formação de soldado, pra quem tá entrando, e oficiais, também
tem essa disciplina presencial de 60 horas e 120 horas tratando dessa questão
também. [...] Temos relatos de soldado no interior que foi atender uma
diligência numa fazenda e percebeu que tinha alguma coisa lá, denunciando.
Aí os auditores fiscais do trabalho foram lá e verificaram que realmente era
questão do trabalho escravo. Foi o primeiro caso no Brasil de prisão por
trabalho escravo, uma pessoa foi presa por cometer esse crime.

Importante lembrar que, em duas ocasiões, a COETRAE-MT foi abandonada em


massa por diversas entidades da sociedade civil e do poder público federal em razão de
descontentamentos com os andamentos do trabalho e oposição das entidades participantes em
relação a medidas do governo estadual. Ainda assim, a coesão do trabalho desenvolvido
permitiu, em boa medida, a continuidade dos projetos. Em 2012, por exemplo, a retirada das
entidades da sociedade civil e do poder público federal da COETRAE foi acompanhada pela
criação do Grupo de Articulação para Erradicação do Trabalho Escravo (GAETE), esfera em
que os trabalhos tiveram prosseguimento até a reconstituição da COETRAE.
Por fim, tanto em Mato Grosso como nacionalmente, o que se observa é que as
políticas, leis e instrumentos de enfrentamento do trabalho escravo sobreviveram a momentos
de ameaça principalmente em razão da mobilização da sociedade a partir das instituições que
atuam diretamente sobre o problema. Por um lado, observa-se a institucionalização crescente
da atuação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público, de quadros da Segurança Pública
85

e de outros órgãos públicos no enfrentamento do trabalho escravo em Mato Grosso. Por outro,
o compromisso e seriedade da constante atuação das entidades não governamentais, o impacto
da ação de organismos internacionais e a força da mobilização social no país foram e
continuam sendo alicerces fundamentais nos avanços e manutenção do instrumental de
combate ao trabalho escravo no Brasil.

1.4.3. Disputas em torno do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” no


Brasil

A expressão “trabalho escravo”, que tomou corpo no Brasil para designar


modalidades extremas de exploração do ser humano, foi uma construção crucial nas lutas
sociais do fim do século XX no país, as quais conferiram visibilidade ao fenômeno da
escravidão contemporânea e culminaram no reconhecimento das violações por parte do
Estado e na construção de instrumentos jurídicos e políticos de enfrentamento de tais práticas.
O Código Penal Brasileiro, em seu texto original datado de 1940, já tipificava
como crime a conduta de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo”. A vagueza da
redação original dificultava o reconhecimento do crime pelas autoridades, ao não permitir
uma diferenciação entre a conduta criminosa e outras irregularidades trabalhistas menos
graves (NEVES, 2012, p. 42). Além disso, a redação ressoava ideias tradicionais de
escravidão, evocando imagens de trabalhadores africanos do século XIX, acorrentados,
açoitados e realizando atividades agrícolas desgastantes (LIMA, 2011, p. 199).
Portanto, a partir de 2003, para que se configurasse o crime de “reduzir alguém à
condição análoga à de escravo”, tornou-se necessária a presença de uma das quatro condutas
seguintes: 1) sujeitar alguém a trabalhos forçados; 2) sujeitar alguém a jornada exaustiva; 3)
sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho; 4) restringir, por qualquer meio, a sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Foram criadas, no mesmo diploma, três hipóteses do crime por assimilação para
as seguintes condutas (desde que realizadas com o fim de reter o trabalhador no local de
trabalho): 1) cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte dos trabalhadores; 2)
manter vigilância ostensiva do local de trabalho; 3) apoderar-se de documentos ou objetos do
trabalhador.
A nova redação foi uma importante conquista na luta de diversos atores sociais
que perceberam que o combate e prevenção do trabalho escravo requeria a desvinculação
86

entre o conceito de “trabalho escravo contemporâneo” e a concepção tradicional de


escravidão do Brasil colonial. Tal avanço ocorreu num contexto favorável às conquistas
sociais, que combinava “cobrança da comunidade internacional, assunção do compromisso
em âmbito externo, pressão dos movimentos populares e aumento do número de resgates
pelos órgãos fiscalizadores, exigindo pronta resposta por parte do Estado” (CAVALCANTI,
2016, p. 101).
Entretanto, como veremos adiante, o instrumental jurídico criado com a nova
redação do art. 149 do Código Penal abriu um espaço de luta de alcance muito maior,
desafiando a própria conceituação da OIT, cuja Convenção n. 29 define “trabalho forçado”
como “Todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual
não se tenha oferecido voluntariamente”.
Para muitos juristas brasileiros, o conceito de “trabalho forçado” adotado pela
OIT seria insuficiente para compreender as características recentes desse crime no país,
cabendo à nossa legislação o papel de complementá-lo com outros institutos jurídicos mais
abrangentes, atuais e adequados à nossa realidade (NEVES, 2012, p. 43-4).
E, de fato, o objetivo das Convenções n. 29 e 105 da OIT foi traçar conceitos
amplos, mínimos denominadores comuns que vinculassem os países, de forma que cada qual
deveria adaptar a sua legislação doméstica para abarcar as modalidades de trabalho forçado
praticados em suas realidades específicas, ampliando e detalhando seu próprio conceito. Na
publicação da OIT Combatendo o Trabalho Escravo Contemporâneo: o exemplo do Brasil,
menciona-se justamente o grande desafio de se adaptar um conceito universal a circunstâncias
nacionais diferenciadas, uma vez que “as vítimas e as formas usuais de coerção estão em
constante mudança” (COSTA, P., 2009, p. 39-40). Um exemplo claro citado na referida
publicação é a dívida, que se tornou um aspecto fundamental da coerção atrelada às práticas
de trabalho forçado no Brasil, sendo, por essa razão, incorporada pela legislação nacional.
O Relatório Global da Organização Internacional do Trabalho de 2001 apontava
dois elementos fundamentais caracterizadores do trabalho forçado contemporâneo: a coação e
a negação da liberdade (SCHWARTZ, R., 2008). E, ainda hoje, o posicionamento da OIT é de
que o involuntarismo e a coerção são os elementos nucleares na definição de “trabalho
forçado”, que não se configuraria no caso de más condições de trabalho tais quais salários
baixos, jornadas extensas, a não ser que tais circunstâncias fossem acompanhadas de um
elemento coercitivo, como a manipulação de uma dívida, retenção de salário ou documentos,
ameaças, violência ou confinamento de trabalhadores (COSTA, P., 2009, p. 10).
87

Entretanto, as construções doutrinárias e jurisprudenciais brasileiras apontam em


outro sentido e, ao longo dos anos, foram consagrando uma definição de “trabalho em
condições análogas à de escravo” que superou as limitações da conceituação antiga,
adequando “a caracterização do trabalho escravo a novas formas de exploração do trabalho
humano” (LIMA, 2011, p. 215), quer ampliando sua acepção do elemento coercitivo, quer
avançando para além dele.
No cerne dos debates acerca da conceituação jurídica da escravidão
contemporânea encontram-se intrincadas disputas políticas. Essa contraposição de
posicionamentos pautou as discussões em torno da votação da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 57A, apresentada em 1999 e aprovada definitivamente em junho de
2013 no país.
A PEC 57A/1999, popularmente conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, foi
uma proposta de alteração do artigo 243 da Constituição Federal, para incluir entre o rol de
propriedades passíveis de expropriação (para serem destinadas a reforma agrária e programas
de habitação popular), sem indenização, aquelas em que fosse flagrado trabalho análogo ao de
escravo.
Os pronunciamentos dos deputados na sessão ordinária da Câmara dos Deputados
ocorrida em 07/02/2012, na qual se debateu a importância da votação da PEC, apagam as
especificidades do trabalho escravo contemporâneo, traçando uma linha contínua homogênea
entre a escravidão colonial e os “resíduos pré-capitalistas” que, segundo esse discurso,
consubstanciaria o trabalho análogo ao de escravo do Brasil atual. O clamor pela importância
da PEC foi assim justificado pelo deputado Arnaldo Jordy, que iniciou sua fala reportando a
notícia de resgate de 52 trabalhadores em condição análoga a de escravos no município de
Tailândia, no Pará:

Estamos há 124 anos da abolição da escravatura no Brasil, há 69 anos da


instituição da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, e lamentavelmente,
em pleno século XXI, ainda assistimos a relações pré-capitalistas de
submissão humana a às mais dramáticas condições de vida e de trabalho.
Portanto, renovo o apelo, que é de várias lideranças, para que, neste
semestre, o mais breve possível, votemos a PEC do Trabalho Escravo, que
agora, em abril, completa 11 anos aguardando a votação em segundo turno
(Pronunciamentos – PEC do Trabalho Escravo, 2012, p. 10).

Na aprovação final da Emenda Constitucional no Senado Federal em 27/05/2013,


que acompanhei durante a pesquisa de campo, os discursos dos senadores apenas
contemplaram o trabalho escravo nas modalidades de “trabalho forçado” e “servidão por
88

dívida”. Se, hoje em dia, ninguém mais ousaria discursar em favor da escravidão, por outro
lado, praticamente nenhum senador ousou defender que jornada exaustiva e trabalho
degradante configuram modalidades de trabalho escravo observadas no Brasil.
Com efeito, durante o período da pesquisa esteve em trâmite o Projeto de Lei n.
432/2013, de autoria de Romero Jucá, propondo a restrição do conceito jurídico de “trabalho
análogo ao de escravo”. Visava-se eliminar de seu conceito as modalidades “jornada
exaustiva” e “trabalho degradante”. E, nas próprias falas de uma parcela dos senadores no dia
27 de maio daquele ano, estava explícito que o voto em favor da PEC, para muitos deles,
estava condicionado à sua regulamentação, com o objetivo de alterar a definição legal de
trabalho análogo ao de escravo.
Nos dias que se seguiram à aprovação da Emenda Constitucional, constatou-se um
temor generalizado de que a regulamentação da Emenda Constitucional jamais ocorresse ou
que fosse executada de forma a trazer um retrocesso para a luta contra o trabalho escravo.
Movimentos sociais, Auditores Fiscais do Trabalho, Procuradores do Trabalho e Juízes do
Trabalho têm advertido que a Emenda Constitucional será esvaziada caso a bancada ruralista
no Congresso consiga aprovar um conceito mais brando de trabalho análogo ao de escravo.
E, de fato, a articulação da bancada ruralista para o abrandamento do conceito
legal de trabalho escravo já vem acompanhando há muito tempo as discussões parlamentares
sobre o tema. A defesa da restrição do conceito de trabalho escravo faz-se sob a alegação de
que a atual definição legal seria vaga, gerando insegurança jurídica.
Durante a tramitação da PEC 438/2001, Katia Abreu fez o seguinte
pronunciamento em sessão da Câmara dos Deputados (INATOMI, 2016, p. 99):

Está havendo uma confusão entre infração trabalhista, trabalho degradante e


trabalho forçado e escravo...são três situações completamente diferentes,
embora as três estejam erradas. [Trabalho escravo] é obrigar alguém a estar
onde não quer (Transcrição do Pronunciamento da Deputada Federal Kátia
Abreu na Câmara dos Deputados, 26/05/2004).

No documento Cento e uma propostas para modernizar as relações trabalhistas,


a Confederação Nacional da Indústria (CNI) também ataca as categorias “trabalho
degradante” e “jornada exaustiva”:

Devido à ausência de critérios objetivos legais para caracterizar o


trabalho escravo, associados a outros conceitos subjetivos de trabalho
degradante e jornada exaustiva, empresas sérias têm sido injustamente
punidas e expostas publicamente, com impactos relevantes na sua
89

imagem e sobrevivência (CNI, 2012, p. 84, apud FILGUEIRAS,


2015, p. 134).

Já os partidários da manutenção do conceito atual, acreditam que há outros


interesses por trás do discurso da “insegurança jurídica”. Nas palavras de um integrante do
Movimento Humanos Direitos:

A verdade é que quem afirma que não há clareza sobre o conceito de


trabalho escravo é porque não concorda com o conceito. Se a grande maioria
de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho
escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa? A quem interessa
proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando
custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de
seres humanos? [...] Por isso, exigimos, como cidadãos brasileiros, uma
regulamentação que considere condições degradantes, jornada exaustiva,
trabalho forçado ou servidão por dívida como elementos que definem
trabalho análogo ao de escravo. Como está na Lei.

Xavier Plassat, liderança da Comissão Pastoral da Terra, sintetiza o que está em


jogo: “abolir o trabalho escravo ou o conceito de trabalho escravo?”.
No prefácio da publicação da OIT Combatendo o Trabalho Escravo
Contemporâneo: o exemplo do Brasil, Laís Abramo e Roger Plant (à época, respectivamente
diretora da OIT-Brasil e chefe do Programa de Ação Especial para Combate de Trabalho
Forçado da OIT) elogiam o vanguardismo brasileiro em dedicar a devida atenção a formas
mais abrangentes de exploração do trabalho, através da inclusão, na concepção de “trabalho
escravo”, da noção de “trabalho degradante”. Ressaltam o intuito de utilizar a experiência
brasileira para contribuir com a proposição de soluções globais para o problema.
Ironicamente, enquanto na Conferência da OIT, em Genebra, a experiência
brasileira no combate ao trabalho escravo era tida como referência, comemorando-se a notícia
da aprovação da Emenda Constitucional no Brasil, simultaneamente a bancada ruralista
brasileira trilhava, no Congresso Nacional, o caminho oposto, utilizando-se de uma
interpretação restritiva do conceito da OIT para tentar limitar a definição legal brasileira de
trabalho escravo, sob o argumento de que sua amplitude estaria em desacordo com as normas
internacionais.
Um dos intentos de alteração do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de
escravo” materializou-se no texto do projeto de lei n. 432/2013, que propunha a exclusão das
“jornadas exaustivas” e “condições degradantes de trabalho” da definição do crime. Durante a
relatoria do senador Romero Jucá (também autor do projeto), foram apresentadas 10 emendas
90

propondo a reinclusão das jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho no


conceito apresentado no projeto, as quais foram rejeitadas pelo relator com o seguinte
fundamento: “ante a fluidez daquilo que se possa considerar como sendo jornada exaustiva ou
condições degradantes de trabalho, não se recomenda a [sua] cristalização na lei” (Romero
Jucá, Parecer da Relatoria, p. 2; 5).
Desde então, o Projeto de Lei entrou e saiu de regime de urgência, foi incluído e
excluído da ordem do dia, sem ter sido objeto de votação pelo Plenário. Ao retornar à
Comissão de Constituição e Justiça, na relatoria do senador Paulo Paim, houve novo parecer
no sentido de reincorporar as hipóteses de jornadas exaustivas e de condições degradantes de
trabalho ao conceito de trabalho análogo de escravo. Em seu parecer, Paim afirma que

[...] a restrição da liberdade de locomoção não se revela o único, nem o mais


essencial, atributo para caracterização do trabalho em condições análogas à
de escravo, porque não esgota o rol de comportamentos passíveis de retirar a
dignidade inerente ao trabalho e à condição humana (Parecer do Relator, p.
6-7).

A votação do projeto foi adiada inúmeras vezes por pressão popular e


mobilizações em torno de audiências públicas na Comissão de Direitos Humanos do Senado
Federal, culminando em seu arquivamento no final de 2018.
Os últimos anos foram marcados pela realização de inúmeras audiências públicas,
mobilizações de diversos movimentos sociais e instituições públicas em torno dos perigos de
retrocesso da conceituação do trabalho análogo a de escravo e da importância de se fortalecer
a política nacional de erradicação do trabalho escravo, bem como a diversas tentativas de se
desarticular os instrumentos utilizados em seu combate.
O momento de realização deste trabalho, que teve início no ano de 2013, também
acabou por imprimir sua influência sobre os rumos da pesquisa, uma vez que foi justamente
entre 2013 e 2014 que as disputas acerca da conceituação legal de trabalho escravo se
acirraram no Congresso Nacional, com enorme pressão da bancada ruralista e outros setores
conservadores permeando os arranjos entre partidos na votação do projeto de emenda
constitucional que ficou conhecido como "PEC do trabalho escravo".
O ano de 2013 também marca uma virada importante, pois foi a primeira vez no
Brasil em que os trabalhadores resgatados de trabalho escravo no meio urbano (53% do total
91

de resgatados naquele ano) superaram, numericamente, os resgatados em atividades rurais


(47% do total)64.
Foi justamente no curso dessa quebra de paradigma que as grandes construtoras
passaram a ser alvos frequentes de flagrantes de trabalho escravo. Não demorou muito e, em
dezembro de 2014, o setor da construção civil conseguiu que fosse suspensa a publicação da
Lista Suja65 através de Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada no STF. A suspensão
perdurou por aproximadamente um ano e, conforme decisão do próprio Supremo, teria fim em
maio de 2016, mas a força político-econômica do setor da construção civil, cujas conexões
com a máquina pública foram expostas especialmente neste mesmo período, fez-se sentir na
própria estrutura do Poder Executivo, criando-se entraves à concretização dessa medida
aparentemente tão simples. Portanto, entre maio de 2016 e março de 2017, a publicação da
lista foi interrompida, sendo retomada somente após derrota judicial do Ministério do
Trabalho em ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho.
Como se vê, apesar de posicionamento favorável ao combate ao trabalho escravo
adotado pelo governo federal entre 1995 e 2016, ocorreram no período algumas tentativas de
desarticular e desmoralizar as políticas públicas existentes através de canais externos ao Poder
Executivo. Segundo relato dos auditores fiscais entrevistados, as duas principais investidas
contra as políticas de enfrentamento do trabalho escravo até hoje teriam sido: a) em 2007,
visita de comissão mista de senadores e deputados federais a usina onde haviam sido
resgatados trabalhadores, com o objetivo de questionar os procedimentos adotados pela
auditoria fiscal do trabalho; b) entre 2013 e 2016, suspensão da publicação da Lista Suja
através de medidas judiciais.
Em ambos os casos, os ataques foram revertidos através de embates e pressão
ampliada da sociedade brasileira e comunidade internacional. Nas palavras do auditor-fiscal
Nelson:

A gente sempre teve momentos em que políticos tentaram desqualificar o


trabalho do grupo móvel. Mas toda vez os fatos falaram mais alto. A
realidade encontrada é tão vil que não conseguiram desqualificar. [...] Graças
a todo esse processo histórico, há ainda hoje uma convicção de que o
trabalho escravo existe, precisa ser combatido e tem o repúdio da sociedade

64
Dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra. Ver
http://reporterbrasil.org.br/2014/02/escravidao-urbana-passa-a-rural-pela-primeira-vez/.
65
O Cadastro dos Empregadores Infratores, popularmente conhecido por “Lista Suja”, é um instrumento de
combate ao trabalho escravo criado no Brasil em 2004, que consiste na divulgação da relação de pessoas físicas e
jurídicas flagradas explorando trabalho escravo pela Fiscalização do Trabalho, após o trânsito em julgado
administrativo de todos os processos na Secretaria de Inspeção do Trabalho. Esse tema será tratado mais
detalhadamente no capítulo V do texto.
92

na sua maioria. O não retrocesso está ligado ao diálogo com a sociedade


promovido pelas instituições de combate ao trabalho escravo. Os
instrumentos precisam ser mantidos. E para um instrumento cair é necessário
que toda essa cultura de repúdio ao trabalho escravo caia em descrédito.
Alguns fizeram inclusive reportagem dizendo que o trabalho escravo é
criação de auditor, tentando sensibilizar a sociedade contra esses atores e
contra a publicação da “lista suja”. Isso não prosperou.

Também no tocante à comissão mista de parlamentares que visitaram a usina em


2007, o mesmo auditor conta que a senadora Kátia Abreu “levou os deputados e senadores e
quando veio de lá ela ficou sozinha, porque todos acabaram ficando do lado da gente, do lado
da realidade”.
A posse de Michel Temer como presidente do Brasil, em 2016, marca um novo
período político em que os instrumentos de combate ao trabalho escravo passam a ser alvos de
ataque aberto por parte do próprio Poder Executivo Federal e do próprio ministro do trabalho.
A partir de então, intensificou-se um processo de desmonte dos direitos trabalhistas através de
alterações legislativas promovidas pelo congresso nacional, alinhado à política do novo
governo federal. A ampliação da terceirização, o primado do "negociado sobre o legislado",
pautas que colocam em risco a própria sobrevida do direito do trabalho, foram efetivadas,
culminando na reforma trabalhista de 2017 com a promulgação da Lei n. 13.467/17.
Em 16 de outubro de 2017, respondendo a pressões de setores econômicos e
políticos, o então ministro do trabalho Ronaldo Nogueira tentou restringir o conceito de
“trabalho escravo” através da Portaria nº 1.129. A norma foi alvo de fortíssimas críticas
quanto a sua ilegalidade e ao retrocesso que representava para os direitos fundamentais,
sofrendo suspensão por liminar do STF e terminando por ser substituída pela Portaria n. 1293
de 29 de dezembro de 2017, que reincorporou a seu texto o conceito de “trabalho em
condições análogas a de escravo” vigente desde 2003.
Conforme noticiado pela Repórter Brasil:

A tentativa de dificultar a libertação de trabalhadores foi vista como moeda


de troca entre o governo federal e a bancada ruralista para barrar a denúncia
por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer na
Câmara dos Deputados. Apresentada pela Procuradoria-Geral da República
ao Supremo Tribunal Federal, ela foi rejeitada pelos parlamentares no dia 25
de outubro. Segundo fontes no Ministério do Planejamento, o texto da
polêmica portaria atendeu também a demandas de empresas da construção
civil. Por conta disso, o governo sofreu pesadas críticas da sociedade civil,
da imprensa, de especialistas e agências das Nações Unidas, de organizações
internacionais, de grandes empresas nacionais e estrangeiras, de políticos,
procuradores, magistrados, entre outros. Investidores estrangeiros chegaram
a afirmar que o país poderia sofrer sanções, uma vez que o enfraquecimento
93

no combate ao trabalho escravo reduziria a credibilidade sobre a qualidade


social de produtos brasileiros. Ronaldo Nogueira pediu exoneração do cargo.
Ele, que quer se preparar para tentar à reeleição como deputado federal pelo
PTB no Rio Grande do Sul, sai com a imagem chamuscada pelo episódio da
portaria do trabalho escravo e da engajada defesa pública que fez do texto
(https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/12/29/governo-volta-
atras-e-muda-portaria-que-dificultava-libertacao-de-escravos/).

Assim, apesar de terem sofrido tantos ataques nos anos recentes, os principais
instrumentos de nossa política de erradicação do trabalho escravo ainda sobrevivem,
amparados por grandes mobilizações nacionais e internacionais, que mostraram a força das
redes construídas em torno dos planos de erradicação do trabalho escravo, a penetração das
campanhas informativas, educacionais e preventivas no nível de conscientização popular
sobre o fenômeno, bem como o amadurecimento de legislações e estudos sobre a escravidão
contemporânea internacionalmente, sedimentando entendimentos sobre sua caracterização e a
necessidade de seu efetivo enfrentamento.
Em abril de 2016 o escritório da ONU no Brasil posicionou-se oficialmente em
defesa da manutenção de nosso conceito jurídico de “trabalho análogo a de escravo”,
ressaltando o papel de nosso país como referência mundial em matéria de boas práticas de
combate a escravidão. No documento, “a ONU reconhece e enaltece as boas práticas
construídas pelo Brasil nesses últimos 20 anos, e em especial sua legislação, que sem dúvida
servirão de base para a atuação de diversos outros países que desejarem combater mais
efetivamente o crime” (ONU-BRASIL, 2016, p. 5).
A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
no caso de trabalho escravo envolvendo a fazenda Brasil Verde, ocorrida em dezembro de
2016, também fortaleceu as possibilidades de enfrentamento da escravidão contemporânea.

A sentença é histórica e emblemática porque é a primeira vez que a


proibição da escravidão e da servidão reconhece que tal violação se dá em
um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados,
principalmente em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica
(AFFONSO, 2017, p. 91, grifos nossos).

Foi a primeira vez que a corte se debruçou sobre o tema e condenou um Estado
em matéria de trabalho escravo, elaborando seu entendimento sobre os elementos
constitutivos do fenômeno, que foram muito além do trabalho forçado e da servidão por
dívida, conforme esclarece Beatriz Affonso66:

66
Beatriz Affonso é a diretora do programa CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) para o Brasil.
94

Assim se configurou, para ser levada em consideração no âmbito


interamericano, uma definição da escravidão que inclui vários elementos
constitutivos tais como: a violação à integridade e à liberdade pessoais
(violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos
trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos
indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de trabalho); a
limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de
dívidas e do trabalho forçado exigido); a existência de trabalho exaustivo e a
imposição de condições degradantes de vida; a falsificação de documentos; a
exploração de menores de idade. Por meio dessas características, citadas na
sentença, está definido com maior clareza o conceito de trabalho análogo ao
de escravo, por sinal refletindo os mesmos elementos constitutivos já
incorporados na jurisprudência e no âmbito interno (já considerada avançada
e progressista), ficando a mesma doravante validada, com sua abrangência
conceitual, para o âmbito de toda a região (AFFONSO, 2017, 91-92).

No âmbito do Judiciário nacional, a pesquisa jurisprudencial realizada por


Filgueiras (2015, p. 150) nos julgados do STF e STJ constatou que, apesar das disputas
políticas, prevalece atualmente “o conceito literal do artigo 149 nos tribunais superiores do
Brasil (TST, STJ e STF), imputando à degradância o caráter de condição suficiente para
caracterização do crime”. Ainda assim, os embates prosseguem.
É neste contexto de disputa sobre o conceito de trabalho escravo e sobre os
próprios instrumentos de efetivação dos direitos dos trabalhadores e das medidas legais de
responsabilização daqueles que os escravizam que a pesquisa se desenvolveu, buscando tornar
visível a escravização muitas vezes naturalizada e trazer a debate alguns aspectos da
escravidão contemporânea ainda não enfrentados plenamente pelas políticas públicas e pelo
sistema de justiça em nosso país.
Nos próximos capítulos, faremos um estudo sobre a morfologia do trabalho
escravo contemporâneo, buscando mostrar suas especificidades e o que está em jogo na
disputa em torno de seus conceitos.
95

CAPÍTULO 2: A MORFOLOGIA DO TRABALHO ESCRAVO


CONTEMPORÂNEO EM MATO GROSSO

“Chuva. ‘Meu Senhor! Chuva de ventos!’ gritava louca


com as mãos que empurravam escombros. Os
barrancos vieram! Estavam famintos, mais do que nós.
Devoraram a casa. Comeram tudo de uma só vez.
Sobrevivi! Eu, meu marido e dois, dos oito.
Desesperada, batia na porta da Casa Grande. A Casa
estava inteira, olhei pela brecha da porta, foi então que
pela primeira vez percebi que não chovia lá dentro, a
chuva devia ter receio de entrar lá, assim como eu.
Gritei nervosamente sobre a fome dos barrancos, a
casa e os filhos sem respirar. Em vão. Devia estar
dormindo e por essa razão não nos prestou socorro.”
(Xico Cruz, Conto Escravidão)

Neste capítulo, apresento um panorama sobre a expansão agropecuária em Mato


Grosso nas últimas décadas e, em seguida, exponho os principais resultados da minha
pesquisa empírica e documental sobre as características do trabalho escravo em seu território.
Os dados quantitativos apresentados a seguir são o resultado da criação de uma
base de dados com os dados coletados de relatórios de inspeção do Grupo Especial de
Fiscalização Móvel (GEFM), responsável pela inspeção do trabalho referente às denúncias de
trabalho escravo.
Desde a implantação da política pública de enfrentamento do trabalho escravo em
1995 até o final de 2018, foram constatados pela fiscalização do GEFM 45.028 casos em todo
o país, envolvendo um total de 53.607 vítimas. No mesmo período, o estado de Mato Grosso
apresentou 4.394 dos 45.028 resgates nacionais.
Antes de iniciarmos a discussão, fazem-se necessárias algumas considerações
sobre a pesquisa documental.
Um dos principais entraves a qualquer pesquisa quantitativa sobre trabalho
escravo no Brasil é que carecemos de uma base de dados unificada sobre o tema, tanto em
matéria de denúncias, como de casos constatados pelas autoridades competentes ou mesmo de
vítimas assistidas.
De um lado, temos os dados oficiais sobre tráfico de pessoas da Secretaria de
Segurança Pública, que apenas recentemente passaram a ser trabalhados através do Núcleos
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. No caso de Mato Grosso, os dados disponíveis são
de duas fontes, Secretaria de Segurança Pública do estado e Tribunal de Justiça, compilados
num dossiê pelo Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do
96

Estado de Mato Grosso - CETRAP/MT. Esses dados apresentam alguns problemas, dentre os
quais se destaca a limitação temporal.
De outro lado, temos os dados oficiais sobre trabalho escravo do Ministério do
Trabalho, que contêm informações mais completas, desde o início da atuação dos Grupos
Especiais de Fiscalização Móvel, em 1995. São estes os dados oficiais brasileiros sobre
trabalho escravo que alimentam diversos estudos e relatórios publicados não só pelo governo,
mas também por organizações da sociedade civil, organismos internacionais e movimentos
populares.
Os dados do Ministério do Trabalho apresentam também algumas limitações, que
nos fizeram adaptar nosso método de análise para evitar vieses na interpretação. Um exemplo
de análise enviesada, que às vezes é empreendida a partir desses dados, é sobre a variação no
tempo do número de casos de trabalho escravo. A aferição do número total de ocorrências de
trabalho escravo requer a utilização de outras fontes de dados e metodologias mais
complexas, de maneira que apenas com a fonte dos relatórios de inspeção seria virtualmente
impossível empreender algum estudo sério sobre o problema. Afinal, como o universo dos
casos flagrados é extremamente reduzido em relação ao dos casos denunciados que, por sua
vez, também é limitado frente à totalidade dos casos praticados, não podemos tirar conclusões
sobre a amplitude do fenômeno a partir dos dados aqui estudados.
Além disso, é importante verificar a existência de importantes “confundidores não
observados” (hidden bias) e “variáveis omitidas”, que impactam o número de constatações de
trabalho escravo a cada ano, a exemplo do número de auditores-fiscais na carreira, na UF
analisada e mesmo no projeto de fiscalização específico (Grupos Móveis ou Coordenações de
Fiscalização de Trabalho Escravo ou de Trabalho Rural, dependendo da superintendência).
Em Mato Grosso, o ano de 2008 foi marcado pelo incremento de 81 auditores em atividade, o
que explica em grande parte o aumento expressivo de números de casos de trabalho escravo
constatados entre os anos anteriores (10 casos em 2005, 8 em 2006 e 6 em 2007) e os anos de
2008, 2009 e 2010 (respectivamente, 31, 22 e 17 casos), principalmente, até que os servidores
fossem gradualmente removidos para outras gerências e superintendências,
Nesta pesquisa, utilizei dados dos Cadernos Conflitos no Campo Brasil,
documentos consultados (online e presencialmente) nos arquivos da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) 67 e informações cedidas pelo Frei Xavier Plassat.

67
A visão da Comissão Pastoral da Terra que, muito antes da década de 1990, combatia o trabalho escravo no
Brasil enquanto o governo negava sua existência, foi crucial para a constituição de um centro de documentação
importantíssimo sobre conflitos no campo, incluindo a problemática do trabalho escravo. As inúmeras denúncias
97

Portanto, a intenção da pesquisa nos relatórios de inspeção não foi produzir dados
estatísticos que pudessem representar a totalidade dos casos de escravidão ocorridos em Mato
Grosso no período e muito menos no Brasil. Por meio da análise qualitativa e quantitativa
desse material, o objetivo consistiu em identificar linhas, ainda que borradas, de
transformação das formas de escravizar, que acompanham o processo de modernização
conservadora em Mato Grosso.
Para extrairmos conclusões mais consistentes desses dados (que, como quaisquer
dados, possuem suas lacunas e limitações), optei por realizar uma pesquisa integrativa68,
combinando análise quantitativa de dados de duas fontes (relatórios de casos de trabalho
escravo da Inspeção do Trabalho e dados de conflitos no campo da Comissão Pastoral da
Terra), análise qualitativa dos mesmos relatórios (que foi utilizada para elucidar as relações e
processos estudados, além de oferecer subsídios importantes para construção da base de dados
e modelagem da pesquisa quantitativa) e entrevistas com diversos atores envolvidos (que
contribuíram para revelar questões ausentes da base de dados criada, aclarar relações entre
variáveis, entender motivações de ações descritas ou não nos documentos, bem como
esclarecer contextos dos fatos estudados – principalmente em relação aos anos anteriores à
minha estadia em Mato Grosso).
Por fim, antes de adentrarmos os resultados da análise dos relatórios propriamente
dita, recuperaremos um pouco da história econômica e demográfica de Mato Grosso entre os
séculos XX e XXI, com enfoque no meio rural, com destaque para a agropecuária, por
concentrar a quase totalidade dos casos de nossa base de dados. Dos 18069 casos de trabalho

recebiam firmes encaminhamentos e, simultaneamente, eram arquivadas compondo uma base de dados sobre
conflitos no campo, anualmente compilados nos Cadernos Conflitos no Campo Brasil com textos analíticos,
pesquisas e relatos sobre a situação no campo brasileiro a cada ano.
68
As vantagens do enfoque integrativo em relação ao enfoque da “triangulação” nas pesquisas multimétodo são
defendidas por Jason Seawright: enquanto na triangulação trabalha-se com dois métodos separadamente sobre o
mesmo tema, produzindo-se resultados de tipos diferentes que, ao final, não podem ser combinados, mas tão
somente justapostos (não raro, dando origem a conclusões divergentes ou cujas inferências não podem ser
explicadas), na pesquisa integrativa são combinados dois ou mais métodos de maneira cuidadosa, de modo a
sustentar uma mesma inferência de causalidade. Na pesquisa multimétodo integrativa, as inferências podem ser
testadas e reelaboradas através do uso combinado de métodos, que são utilizados de forma casada, produzindo
inferências causais mais precisas e resultados mais consistentes (SEAWRIGHT, 2016, p. 45-47).
69
Dos 193 casos de trabalho escravo acessados através dos relatórios de inspeção fornecidos pela DETRAE,
após a coleta, processamento e limpeza dos dados, foram excluídos 13 pelos seguintes motivos: a) relatórios
sobre fiscalização de empresas não localizadas em Mato Grosso, apesar da inspeção ter sido realizada em
operação de fiscalização que incluía outros empregadores em solo mato-grossense; b) relatórios que não
concluíram pela existência de condição “análoga a de escravo”; c) relatório com informação incompleta por se
tratar de fazenda arrendatária de outra fazenda com relatório próprio e completo; d) relatório de operação
frustrada porque trabalhadores teriam prestado informações falsas à auditoria fiscal do trabalho; e) relatório com
informações inconsistentes por conter dados de diferentes operações sem possibilidade de distinção. Os
relatórios referentes a empresas que terceirizaram a mesma atividade de uma mesma tomadora não foram
unificados porque em muitos casos cada terceirizada apresentava dados muito diversos (um caso em que havia
98

escravo aqui analisados, apenas 6 ocorreram em setor alheio à agropecuária e indústria


extrativista: 1 na exploração sexual, 1 na indústria da reciclagem, 1 em estabelecimento
hoteleiro e 3 na construção civil70 (pavimentação, terraplanagem e construção de casas
populares). Em outros 5 casos, tratou-se também de autuação de empresas do ramo da
construção civil, porém, por estarem executando obras de infraestrutura em fazendas,
consideramos para efeito da análise como atividades ligadas ao agronegócio. Os casos que
envolveram atividades tipicamente rurais contratadas em empreendimentos de outros setores
(por exemplo, atividade de desmate que antecedia a construção de uma usina hidrelétrica,
atividades de extração de pedra, areia e argila, dentre outras) também foram considerados
dentre as atividades rurais.
Os setores com maior representatividade neste universo de casos de trabalho
escravo constatados pelo GEFM são: a) pecuária; b) cultivo de soja; c) setor sucroalcooleiro;
d) cultivo de algodão; e) indústria da madeira; f) produção de carvão; g) extração de minérios
de metais preciosos.
Como se observa, apenas 3,35% dos casos ocorreu em setores e atividades
urbanas e externas à cadeia produtiva do agronegócio e da indústria extrativista. Em razão
dessa particularidade do território mato-grossense, as análises sobre a economia e a violência
desenvolvidas neste capítulo (em paralelo à apresentação dos dados da pesquisa), atêm-se ao
trabalho e dinâmicas sociais do mundo rural.

2.1. Da nova ocupação ao agronegócio: transformações de um território em conflito

2.1.1. A reocupação recente de Mato Grosso

O estado de Mato Grosso, que era uma das regiões menos povoadas do país,
passou a ter um grande impulso demográfico a partir de 1930 e, sobretudo, a partir da
intensificação do incentivo à colonização privada do estado na década de 1960.

homogeneidade entre as terceirizadas também foi mantido como dois casos separados para preservar a unidade
de critério em toda a base). Os relatórios com informações parciais, mas cujo restante dos dados pôde ser
coletado em outros relatórios da mesma operação ou por outras fontes foram mantidos na base de dados para
análise.
70
2 dentre os 3 casos de trabalho escravo constatados no ramo da construção civil sem qualquer relação com a
economia rural e agropecuária ocorreram no ano de 2013, no contexto das obras de infraestrutura que se
espalharam pelo país. Foi justamente o ano de 2013 que registrou, pela primeira vez, a predominância do
trabalho escravo urbano sobre o rural no Brasil, tendência esta que se manifestou também em Mato Grosso, que,
além de tudo, recebeu diversas obras como sede da Copa Mundial de Futebol.
99

Todo o processo de reocupação de Mato Grosso consistiu na transferência de


terras devolutas públicas para particulares (MORENO, 1993, apud FERNANDES;
CAVALCANTE, 2006, p. 115), através de ações do governo federal e estadual, resultando
num processo de monopolização da propriedade privada da terra por latifundiários,
capitalistas particulares e grupos econômicos71 (FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p.
115).

No governo militar, com as transformações da conjuntura política e


econômica do Brasil, às políticas de “ocupação” e desenvolvimento do
Estado de Mato Grosso passaram abranger três âmbitos: o geopolítico,
voltado para a distribuição de terras para efetivar a “ocupação”; o âmbito
econômico, para fortalecer a economia nacional através da produção e
consumo de bens; e o âmbito social, no sentido de transferir o “excedente”
populacional do Sul, Sudeste e Nordeste brasileiro para aquela região. Nesse
contexto, os diversos governos federais e estaduais estimularam a migração
de sul-rio-grandenses, catarinenses, paranaenses, paulistas, mineiros,
capixabas e nordestinos para as regiões “desocupadas” do Estado do Mato
Grosso (FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 114).

O objetivo dessas políticas, conhecidas como “terras sem homens para homens
sem terra” teria sido o de transferir a população expropriada para novas áreas, fornecendo
“força de trabalho, até então inexistente, para os projetos agrominerais e agropecuários
dirigidos por grandes empresas” (FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 115).
A adoção da política agrária do governo militar sem que se alterasse a política
fundiária (FERNANDES, 2000, apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 115), teria
não só garantido a manutenção dos latifúndios já existentes em Mato Grosso, mas também a
formação de novos latifúndios onde se desenvolveram as monoculturas. A expansão das

71
“Nessa região, grandes quantidades de terras foram compradas, griladas ou ocupadas por latifundiários,
grileiros, fazendeiros e empresários, predominando a grande concentração de terra (PICOLI, 2006). A grilagem
(apropriação privada irregular ou ilegal de terras públicas), tem sido uma regra na formação da propriedade
privada rural no Brasil e não diferente na Amazônia em diferentes momentos históricos (IPAM, 2006). Dessa
forma “toda parte norte de Mato Grosso se constituiu no ‘paraíso’ das empresas colonizadoras” (GUIMARÃES
NETO, 2002, p. 24). Sendo assim, a abertura da fronteira agrícola no norte do estado de Mato Grosso (MT), com
absoluto controle sobre o território, através da colonização privada, desencadeou uma “corrida desenfreada” de
milhares de trabalhadores e suas famílias influenciadas pelos instrumentos de propagandas a migrarem para
buscarem um pedaço de chão (VIEIRA, 2005), a conquistarem a “terra prometida”. Num processo de
desterritorialização (COSTA, 1995), aconteceu a transferência do camponês do sul do Brasil para a Amazônia
(ZART, 2005). Esse processo de (re)ocupação, com recursos públicos, executado de forma predatória, provocou
uma transformação social e ambiental radical na Amazônia norte mato-grossense (SOUZA, 2012). Atualmente,
essa terra em grande parte, está ocupada por pastagens e por enormes extensões cultivadas com soja, milho e
algodão (BARROZO, 2010). Ou seja, o grande mosaico Amazônia foi e está sendo substituído pela
agropecuária, pelas cidades através do êxodo rural, pela especulação imobiliária e pela construção de usinas
hidrelétricas” (BERGAMASCO; ROBOREDO e GERVAZIO, 2016, p. 2).
100

lavouras e a desapropriação camponesa, portanto, caminharam juntas (FERNANDES;


CAVALCANTE, 2006, p. 115).
Nas palavras de Taffner Junior (2015, p. 60): “As ditaduras, de Vargas e a militar,
moldaram a atual estrutura agrária de Mato Grosso”, sob o ideário de integração do mercado
nacional, que teria se materializado no seguinte contexto:

A fronteira agropecuária ia avançando de fato. Os camponeses que


habitavam as novas terras não conseguiam resistir ao avanço do capital. O
Mato Grosso passava a ser a nova fronteira agropecuária do país,
assimilando o excedente populacional de outras regiões, aliviando possíveis
tensões nas terras de origem e criando novas tensões na fronteira. Estes
imigrantes já na década de 1950, passaram a ser consumidores de produtos
industrializados no centro e fornecedores de matérias-primas para as mesmas
indústrias fabricantes desses produtos (TAFFNER JUNIOR, 2015, p. 61).

Segundo Ianni (1981, p. 132), a política da ditadura militar teria sido uma
combinação de expansionismo militar e desenvolvimento capitalista:

Talvez se possas dizer, em forma breve, que a ditadura instalada no Brasil


adotou principalmente duas políticas na Amazônia. Uma, de inspiração
geopolítica, destinada a refazer e reforçar os laços da região com o conjunto
do País, em especial o Centro-Sul, econômica, política, militar e
culturalmente dominante. Outra, de inspiração econômica, destinada a
reabrir a Amazônia ao desenvolvimento extensivo do capitalismo. Sob
vários aspectos, essas duas políticas adotadas conjugaram-se, confundiram-
se, complementaram-se. Tanto assim que as grandes rodovias construídas na
região, por exemplo, foram propostas e realizadas por razões de ‘segurança
nacional’ e para favorecer ‘o desenvolvimento econômico’. É óbvio, para os
governantes, que ‘segurança e desenvolvimento’ são as duas faces da mesma
moeda. Isto é, as razões da geopolítica e as razões do capital mesclam-se,
confundem-se. E esse é um traço fundamental da fisionomia e do
desempenho da ditadura militar.

Neste prisma, a história da exploração da força de trabalho em território mato-


grossense é indissociável da história da expropriação de populações de outras regiões que, na
ausência de perspectiva de sobrevida em seus locais de origem, partiram para outras terras.

Os proprietários de terra garantiram a dominação política em troca da


aceitação da modernização agrícola. No que tange aos expropriados, além
das possibilidades de serem ‘boias-frias’, restou-lhes aquela de ‘queimarem
chão’ em busca de trabalho ou da ilusão de outras terras, por meio da
implantação de colônias oficiais, ou do deslocamento da fronteira agrícola
para as regiões Centro-Oeste e Norte do país (SILVA, M.A., 1999, p. 67).
101

Os migrantes que participaram da ocupação do Mato Grosso eram,


principalmente, camponeses em busca de perspectivas para suas famílias, uma vez que em sua
região de origem, o “tamanho das propriedades impossibilitava sua reprodução enquanto
camponês e o avanço da mecanização exercia uma pressão imobiliária sobre a terra”
(JOANONI NETO, 2014, p. 193). A promessa do governo e das empresas de colonização
referentes a lotes maiores em Mato Grosso e ao reagrupamento das propriedades rurais no sul
do país com o deslocamento populacional, contudo, não se concretizaram72 (JOANONI
NETO, 2014).
Foi um período de severos conflitos envolvendo disputas por terras, muitas das
quais se estendem até os dias de hoje. No fundo, o saque característico da "acumulação por
espoliação" capitalista (HARVEY, 2013), que desconsiderou a posse e a propriedade já
existentes sobre as terras entregues aos recém-chegados, deu a tônica do problema da
ocupação do território mato-grossense na segunda metade do século XX:

O fato de esse espaço ter sido considerado vazio, o que significou que toda a
ocupação pré-existente de diferentes grupos indígenas, garimpeiros,
posseiros, comunidades extrativistas e quilombolas foi ignorada para
qualquer fim, tornou o avanço dessa nova fronteira do capital muito violento
(JOANONI NETO, 2014, p. 187).

Assim, para entendermos o território de violências que é palco desta pesquisa, é


preciso incutir na carga semântica das “colonizadoras” que povoaram o Mato Grosso em
meados do século passado todo o significado (confesso) de uma verdadeira colonização.
A escravidão do período colonial foi abolida no continente americano ao longo do
século XIX, mas a transição para o trabalho livre encontrou muitos entraves em nosso país,
recorrendo-se à mão de obra de imigrantes, contratados para trabalhar mediante salário num
regime de grande exploração e com a persistência de formas compulsórias e trabalho73.

72
“A opção política em não implementar a reforma agrária, implicava numa necessidade crescente de ampliação
da fronteira agrícola (Centro-Oeste e Amazônia) que temporariamente ‘solucionaria’ a questão da terra no Sul e
no Sudeste, deslocando os conflitos pela terra para as áreas da frente de expansão” (MENDONÇA; THOMAZ
JUNIOR, 2004, p. 9). Importante notar que, para Becker (1988) e Fernandes e Cavalcanti (2006), diferentemente
de autores como Mendonça e Thomaz Junior (2004) e Martins (2009), a demografia de Mato Grosso até a
segunda metade do século XX seria caracterizada não por frentes de expansão, mas já por frentes pioneiras (às
quais teria sobrevindo a frente também pioneira da “marcha para o Oeste”).
73
Sobre o tema, Yann Moulier-Boutang conclui que “Se [...] a fuga dos trabalhadores dependentes constituiu o
problema fundamental da acumulação de capital de 1500 a 1800, é preciso relativizar o alcance da
proletarização, que parece ter tido menor importância que o disciplinamento e a fixação, ou a fidelização dos
trabalhadores dependentes (capítulo 10). [...] Portanto, é preciso falar de um tremendo fracasso da primeira
proletarização sob o capital mercantil, o que explicaria seu deslocamento a novos mundos e o estabelecimento de
formas de trabalho não livres” (MOULIER-BOUTANG, 2006, p. 45, tradução nossa).
102

Assim, para Fausto (1977), foi a imigração subvencionada pelo Estado, iniciada em São
Paulo, em 1884, que realmente impulsionou a formação de um mercado de trabalho no Brasil,
rompendo-se com o ciclo precedente de imobilização dos trabalhadores74.
Na região de Mato Grosso, a formação de um mercado de trabalho – e sua
integração ao mercado nacional – só ocorreu substancialmente na segunda metade do século
XX, impulsionada por um processo violento de ocupação de seu território iniciado em 1930.

Após 1930 a Amazônia passou a sofrer mudanças significativas em sua


paisagem. A nova política de integração do mercado tinha a intenção de
consolidar o desenvolvimento do sistema capitalista, atendendo aos
interesses da burguesia do Centro-Sul, principalmente de São Paulo, que
comandava a economia do país. Isso viria por meio da expansão da indústria
nacional formada pela acumulação do capital cafeeiro exportador e pela
indústria internacional, que era atraída por esse poder de investimento que
foi formado na Marcha Pioneira. Dessa forma, o governo federal iria acabar
com os “vazios demográficos” do Oeste brasileiro, incorporando-os na
economia nacional, formando um importante mercado consumidor,
fornecedor de matéria-prima e servindo de reserva de mão de obra. Nascia
assim a “Marcha para o Oeste” (TAFFNER JUNIOR, 2015, p. 60).

Entretanto, como veremos nos próximos itens deste capítulo, os estudos das novas
relações produtivas que se desenvolveram a partir de então revelam que o trabalho
compulsório se manteve presente, ainda que com novas incidências e roupagens.
Até a década de 1990, porém, a organização da produção e sua matriz tecnológica
requeriam um contingente imenso de trabalhadores em certos períodos das derrubadas e das
lavouras. Foi o que presenciei e me foi informado em várias experiências no campo da
pesquisa, inclusive na entrevista com Camilo, um padre que atuou ativamente em Mato
Grosso à época, junto à Pastoral do Migrante: “Era muita gente. Hoje, já deve ter diminuído
muito o número de trabalhadores braçais. Acho que eles trabalham muito com máquinas
agora”.
Na sequência da mesma entrevista, o padre traz a lume a complexidade da
peonagem. Contextualizo: a questão que a pesquisa me colocava naquele momento do campo
era se a utilização de mão de obra migrante se justificava pela escassez de trabalhadores em
Mato Grosso ou se o atrativo teria sido a possibilidade de explorar populações que fossem
mais vulneráveis e mantidas distantes de sua terra de origem. Como geralmente acontece, a
história oral acaba revelando sutilezas e complexidades do real onde a imaginação

74
Nas palavras de Fausto (1977, p. 17): “o momento decisivo em que se constituíram relações capitalistas de
produção na área de São Paulo ocorreu com a liquidação final do sistema escravista e a entrada das grandes levas
de imigrantes”.
103

investigativa dificilmente penetra. De fato, segundo o entrevistado, ambos os fatores


(formação do mercado de trabalho em Mato Grosso e táticas de controle de mão de obra)
haviam influenciado, de maneiras bem peculiares, o panorama da época.

Giselle: Na época em que você ficou lá [1996 a 2006], o que acha que trazia
tanta mão de obra de fora? Não tinha gente lá ou era por causa do tipo de
trabalhador, que era mais fácil de explorar, aceitando qualquer condição? O
que você acha que trazia os imigrantes?
Padre Camilo: Acho que são vários fatores. Um, é que de fato não tinha
muita mão de obra lá para alguns trabalhos, tipo na área da cana. Não
havia um contingente de trabalhadores que suprisse as demandas,
digamos, da empresa local. Também, muitos trabalhadores não eram
habituados a esse tipo de trabalho, então não aceitavam muito. Outro fator
que vem favorecer a usina é que é muito mais tranquilo trazer
trabalhadores de fora, que não têm conexões aqui no espaço que façam
o trabalho, que tenham espaço para viver, assim, que vão e que vêm,
tendo que fazer esse trabalho temporário, que a gente fala. Enfim, é uma
forma de você ter um controle maior. Digamos, se numa fazenda você tem
alguns núcleos de trabalhadores concentrados, você tem como dominar
melhor e controlar. Até, se precisar, fazer pressão. Um exemplo muito claro
é a usina de Poconé, que está distante do alojamento. Se você queria um
remédio, tinha que fazer de 20 a 30 quilômetros. [...] De certa forma, tinha
muita gente que mandava, os responsáveis do setor agrícola, um
coordenador de alojamento, tinha o gato. Então, quer dizer, os
trabalhadores estavam controlados de todos os lados, sem ter a quem
recorrer em alguma necessidade. Surge um conflito também. Num local
onde tem 200 trabalhadores, quem vai mediar isso daí, né? Fica difícil.
Eu vejo que essa forma, quando utilizada a mão de obra assim, eles tinham
um jeito mais tranquilo para dominar e controlar toda a produção, desde os
trabalhadores e todo mundo. Não sei, naquele tempo era assim. Hoje, acho
que as coisas devem ter mudado muito, mas o trabalhador era sempre
colocado em último na ordem das prioridades. Justamente, por causa
dessa mentalidade colonialista, que a empresa é dona de tudo, é dona da
cidade, muitas vezes, porque a empresa investe, faz uma doação, uma
quadra para a cidade. Sabe? Essas coisas todas. Nessa situação, os
trabalhadores sempre ficam relegados a sua própria sorte.

O poder político dos grandes proprietários de terra, então considerados como


verdadeiros “donos” da cidade e dos trabalhadores, foi sofrendo transformações nos anos
recentes. Nesse sentido, o estudo das transmutações do trabalho escravo em Mato Grosso na
transição do século XX para o XXI evidencia mudanças na relação das elites locais com o
aparelho estatal.
Se retomarmos a descrição analítica do trabalho escravo contida na Carta Pastoral
de Casaldáliga de 1971, encontraremos ali os elementos nucleares que caracterizam a
escravidão até os dias de hoje (condições degradantes, desrespeito ao direito à vida, violação
104

de direitos trabalhistas) ao lado de elementos típicos à época (repressão a fuga de


trabalhadores, assassinato de trabalhadores, utilização aberta da polícia local para defesa de
interesses privados), mas que, hoje, tornam-se exceção a novas regras. Dentre eles, um ponto
que chama a atenção é o controle dos trabalhadores através da conjugação de violência
privada (através de pistoleiros contratados) e do uso privado do aparato público (polícia):

Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usa-


se o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo o
trabalho realizado, para poder reter os peões, já que a mão de obra é escassa.
[...] Outros muitos, doentes, sentindo-se sem forças e temendo morrer
naquelas condições, não conseguindo receber o que de direito, fogem para
sobreviver. Outros ainda fogem por se verem cada vez mais endividados. E
nestas fugas são barrados por pistoleiros pagos para tanto. [...] Além
disso, a própria polícia local é utilizada com frequência para manter
ainda mais escravizados os peões75 (1971, p. 15-16, grifo nosso).

Examinando os documentos da Comissão Pastoral da Terra, também pude


identificar diversos casos de violência no campo em que policiais militares eram acionados
por latifundiários para defenderem seus interesses privados. Dentre eles, destaca-se um caso
de massacre ocorrido em Mato Grosso no ano de 1986, sintetizado no Caderno Conflitos no
Campo da seguinte forma:

Fortes tensões entre fazendeiros, colonos e índios – interesse em colocar


índios contra colonos. Os acontecimentos chegam a verdadeiras chacinas
com a cobertura das autoridades e a presença da PM em áreas de garimpo,
massacrando até mesmo policiais que não quiseram se sujeitar à ordem de
matança. Forte campanha contra religiosos – 1 espancado. 3 conflitos
terminados pela entrega de títulos aos posseiros pelo MIRAD. Trabalho
escravo, torturas e violências. 32 assassinados (CPT, 1987, p. 18).

No ano anterior, 1985, os conflitos no campo em Mato Grosso foram assim


caracterizados na mesma publicação: “Grilagem e despejos. Violência de pistoleiros e
policial” (CPT, 1986, p. 27). Já no texto analítico de abertura da referida edição do Caderno
Conflitos no Campo, o secretariado nacional da CPT propõe uma interpretação dessas
dinâmicas, ressaltando a “ambiguidade da política de descentralização da Nova República”.
Segundo o texto,

75
Casaldáliga relatou também, no mesmo documento, o caso do Capitão de Polícia de Barra do Garças que, ao
receber denúncia de peões contra a fazenda onde trabalhavam, reportou a denúncia ao gerente da fazenda. Este
então teria solicitado a presença da polícia de São Félix do Araguaia, que compareceu à fazenda armada de
metralhadoras e prendeu o líder dos peões (1971, p. 20).
105

Quando se fala em descentralização, se fala em partilha, em democratização


do poder. Ocorre que quando falamos em descentralização em São Paulo,
Rio, Belo Horizonte, nos grandes centros políticos do país onde a sociedade
civil demarca sua autonomia com relação ao Estado, isso pode ocorrer. No
entanto, esta mesma política, quando aplicada às áreas periféricas do país, às
pequenas cidades do interior, resulta exatamente no oposto. Quem passa a
ser o poder nesses pequenos lugares, quem passa a controlar o poder nos
Estados mais atrasados com a retirada dos militares e a chegada da Nova
República? Em uma só palavra: O Latifúndio.
Na medida em que a Nova República vai promovendo a ''descentralização''
ela transfere força ao poder local. Ocorre que a Nova República se revelou
incapaz de tomar medidas contra o monopólio da terra que é precisamente a
fonte deste poder local oligárquico.
[...] a Nova República, na medida em que recuou da sua proposta de
Reforma Agrária, reforçou com sua política de ''descentralização'' o poder do
latifúndio e estimulou a violência contra os trabalhadores rurais (CPT, 1986,
p. 19-20).

A defesa dos latifúndios desmobilizava a possibilidade de uma reforma agrária,


valendo-se de instrumentos como a violência privada dos pistoleiros e o uso privado das
forças policiais76.
Assim, a presença crescente das inspeções do Grupo Especial de Fiscalização
Móvel nos rincões do estado de Mato Grosso marcou também um importante contraponto e
ameaça ao arbítrio das oligarquias locais, que ainda na década de 1990 concentravam o poder
político e se utilizavam abertamente do aparato público local para a defesa de seus interesses
privados.
O caráter “pedagógico” das fiscalizações de combate ao trabalho escravo foi
ressaltado por diversos entrevistados em minha pesquisa de campo. De um lado, os
trabalhadores indignados com a exploração que sofriam passaram a identificar alguns agentes
do Estado que não eram coniventes com seus patrões, o que os encorajava a fazer mais
denúncias. De outro, os trabalhadores escravizados que anteriormente não percebiam a
ilegalidade e inaceitabilidade da exploração por eles sofrida, vão tomando mais conhecimento
e consciência de seus direitos a partir do momento em que agentes do Estado passam a

76
O texto apresentado pela Comissão Pastoral da Terra continua: “O poder acumulado durante 20 anos de
favores e privilégios colhidos à sombra do regime militar, foi utilizado pelos latifundiários e especuladores de
terra contra contra o PNRA lançado pela Nova República a 27 de maio, durante o IV Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais. Utilizaram com toda a força os meios de comunicação mais reacionários do país e mesmo
aqueles que em questões mais amenas tentam fazer-se passar por liberais. Articularam a nível nacional seus
organismos de classe e combateram organizadamente a exigência da imensa maioria dos brasileiros de realizar
uma Reforma Agrária que democratize a propriedade da terra. Criaram novos organismos e realizaram
campanhas de finanças para promover a sustentação de forças paramilitares e milícias particulares, através dos
leilões de Goiânia, Presidente Prudente, etc... Aliaram-se aos militares e conseguiram a intervenção direta deles
na questão da Reforma Agrária, deixando claro que a concepção da Nova República a respeito da questão da
terra não difere substancial- mente do que pensaram os governos que a antecederam: a questão agrária é questão
de Segurança Nacional” (CPT, 1986, p. 20).
106

intervir em sua defesa e impor sanções a empregadores poderosíssimos pelas violações


cometidas.
As orientações e avaliações emitidas pelos auditores no curso das ações fiscais
difundiam as informações sobre o conceito e implicações jurídicas do trabalho escravo
contemporâneo entre os trabalhadores, que foram mobilizando cada vez mais esse
instrumental em suas lutas. O auditor Nelson relatou, em entrevista, o caso de uma usina em
que havia trabalho escravo: “no começo das ações os trabalhadores achavam aquele trabalho
normal. Depois que teve uma clareza de explicações feitas pela fiscalização, passaram a fazer
greve, porque sabiam que aquilo era ilegal e havia uma instituição para acudi-los”.
A conscientização e mobilização dos trabalhadores e sindicatos ganham um outro
contorno quando passam a ter um respaldo no poder público, que servia muitas vezes como
um contraponto ao poder dos grandes proprietários de terra. Já em outros momentos, dava-se
justamente o contrário: pressões externas e internas para que a Fiscalização do Trabalho não
apontasse as infrações dos poderosos. As contradições sociais atravessam inevitavelmente os
braços do Estado e os relatos dos auditores revelaram ocorrências de vazamento de
informações, ameaças e até pressões para que alterassem o teor de seus relatórios em casos
que envolviam infratores de grande projeção. Num dos episódios relatados, a equipe de
fiscais optou por registrar seu relatório no cartório local antes de se dirigir a Brasília, já ciente
da pressão que sofreria por ter constatado trabalho escravo na fazenda de um congressista.
Com o tempo, foi então sendo consolidado um importante canal para as demandas
dos trabalhadores e de seus sindicatos. As denúncias paulatinamente deixaram de se dirigir
apenas a organizações não governamentais e passaram a ser encaminhadas também ao
Ministério do Trabalho e, mais recentemente, inclusive ao Ministério Público do Trabalho.
A maior efetividade das respostas oferecidas pelo poder público caminhava lado a lado com o
fortalecimento dos sindicatos dos trabalhadores. A auditora Lis, que atuou por muitos anos na
mediação entre usinas sucroalcooleiras e os trabalhadores, relata que em 1995 tiveram início
as fiscalizações no setor, através de denúncia encaminhada por um sindicato. Segundo ela, os
sindicatos dos trabalhadores rurais em Mato Grosso eram muito fracos naquela época,
passando por um longo período de fortalecimento (com ampliação de sua presença e atuação
não só mediando conflitos, mas também promovendo treinamentos e desenvolvendo um
trabalho de base77) até seu recente declínio78.

77
Nas palavras da mesma auditora: “Quando começamos em 1995 o trabalho degradante era muito feio. Com o
início das negociações, os sindicatos começaram a se fortalecer. [...] A gente fazia uma visita – Auditoria Fiscal
107

Por outro lado, o alcance pedagógico estendeu-se também para os empregadores.


A autoridade estatal exercida pelo GEFM colocava em xeque a legitimidade do poder dos
grandes proprietários de terra que se utilizavam de trabalho escravo, expondo-os perante os
olhos de todos. Nas palavras do auditor-fiscal do trabalho Nelson:

as ações passaram a encontrar trabalho escravo em fazenda de políticos e


pessoas fortes na região. Essa realidade foi didática, porque se alcançou
nomes e se levou para a mídia nomes de pessoas poderosas. E por mais que
o poder político tenha tentado desqualificar as fiscalizações, (...) não
conseguiu. Essa ação foi importante também para que os vizinhos menos
poderosos refletissem.

Além disso, segundo alguns entrevistados, as exportações também contribuíram


para as transformações nas relações de trabalho. O líder sindical Joaquim explica que:

Quando um município começa a exportar, de 6 em 6 meses tem missão que


vem visitar toda a região. Eles querem saber sobre acidentes de trabalho,
intoxicação, tem um relatório que eles deixam que tem que ser cumprido. O
cara andar armado para controlar os trabalhadores seria mal visto.

As palavras do auditor-fiscal do trabalho Nelson ressaltam o mesmo ponto: “o


mundo hoje do comércio repele [o trabalho escravo]. Alguns colocam até barreiras quando
identificam essa prática. Então isso também é importante. Não é só mais a questão social; é a
questão comercial também”.
Portanto, já num segundo momento, com a proliferação das operações do Grupo
Móvel, ainda que perdurasse o poder do latifúndio com sua ordem de injustiças e privilégios,
a impunidade já não era total, a terra já não era totalmente “sem lei”79. Um caso emblemático,
ocorrido em Mato Grosso no ano de 2006 e lembrado por muitos entrevistados, retratou bem
o confronto entre essas duas ordens sociais. Tratou-se de uma fiscalização de combate ao
trabalho escravo em que houve tiroteio entre a polícia federal (que compunha o GEFM) e a
polícia militar (acionada pelo fazendeiro fiscalizado). A situação foi descrita pela auditoria
fiscal do trabalho em seu relatório:

do Trabalho, Pastoral da Terra e do Migrante, Sindicato e Ministério Público do Trabalho –, levantava todas as
irregularidades, reunia com representante da empresa. Era um trabalho de acompanhamento, de negociação”.
78
A entrevistada aponta que as alterações legislativas recentes contribuem para um novo enfraquecimento do
poder sindical: “De dois anos para cá os sindicatos estão sentindo mais dificuldades, a partir da nova legislação,
que tirou completamente a contribuição. (...) As últimas medidas abateram muito os sindicatos. E as empresas se
aproveitam da situação. Ainda não estamos sentindo, porque os sindicatos estão tentando sobreviver”.
79
Um ponto importante no momento da implementação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel foi a
composição das equipes com servidores públicos lotados fora da unidade federativa onde seria realizada a
inspeção.
108

Diante da determinação do Delegado, o capataz, por volta das 11:30 hs,


manteve contato com a sede da fazenda, sendo certo que falou diretamente
com um dos proprietários e o avisou da presença da Polícia Federal e que
estaria sendo levado para a cidade. Nesse instante, o proprietário da fazenda
perguntou, arrogantemente, "o que a Polícia Federal tá fazendo aí?!". Ao
ouvir o tom da voz do proprietário falando pelo rádio determinei que o
capataz o avisasse para aguardar na sede da fazenda e que chamasse o
Rogerinho (pessoa citada na denúncia), pois nós nos deslocaríamos até lá.
Quando, por volta das 16:00hs, estávamos preparando o início do
deslocamento para a sede da Fazenda (...) os Policiais perceberam a
aproximação de uma pessoa armada, a qual vinha em nossa direção,
escondendo-se no mato e atrás das árvores. Tal pessoa foi identificada
como sendo um Policial Militar (...):
Imediatamente, os Policiais, advertindo várias vezes e em alta voz que se
tratava da Polícia Federal, determinaram que a referida pessoa abaixasse a
arma. Nesse instante, ouvimos um disparo de arma fogo em nossa direção,
sendo certo que um dos Agentes de Polícia Federal, com a arma voltada para
o alto, efetuou alguns disparos de advertência, repetindo várias vezes e em
alta voz que se tratava da Polícia Federal. Logo em seguida ouviram-se
vários disparos. Os Auditores, o motorista e o Procurador do Trabalho foram
todos orientados a entrar na casa do capataz e lá permanecer até que tudo se
resolvesse.
O tiroteio durou, aproximadamente, cinco minutos e diversos disparos
atingiram a casa onde nos encontrávamos:
Ao perceber que os tiros vinham de diversas direções, os Policiais recuaram
para dentro da casa. Durante o tiroteio, o Delegado manteve contato, via
rádio, com os proprietários da Fazenda, (...) identificando-se como
Delegado de Polícia Federal (...) e solicitando aos mesmos que se
identificassem, sendo certo que a resposta era a seguinte: "aqui quem
fala é quem pode!!!". Por mais de três vezes os Policiais se identificaram e
solicitaram que a pessoa no rádio se identificasse e em todas as vezes
receberam a mesma resposta: "aqui fala quem pode...é quem pode!!!''. O
tom arrogante da resposta causou-nos espanto, uma vez que
demonstrava descaso com a presença da Polícia Federal. Chamado para
falar com seus patrões pelo rádio, capataz novamente afirmou que se
tratava da Policia Federal e que era para cessar fogo, ao que os
proprietários responderam: "ah é!, a Polícia Federal tá aí? Nós estamos
aqui com a Polícia Militar e se é guerra que eles querem é guerra que
eles vão ter''.
Como exigência para o cessar fogo, os proprietários exigiram que um dos
Policiais Federais descesse desarmado para falar com eles. Após alguns
minutos, um dos Agentes de Polícia Federal prontificou-se a descer
desarmado, juntamente com o capataz, a fim de negociar o cessar fogo. Em
seguida, os Policiais Militares baixaram as armas e se aproximaram da casa
onde nos encontrávamos (...).
Os proprietários da Fazenda foram presos em flagrante, por tentativa de
homicídios, porte ilegal de armas (arma de uso restrito) e por comunicação
falsa de crime, uma vez que os mesmos alegaram que acreditam estar
ocorrendo um “assalto com reféns” (Relatório de Fiscalização, p. 6-8).

À época, o Coordenador Nacional de Combate à Exploração do Trabalho Escravo


do Ministério Público do Trabalho (MPT), Luís Antônio Camargo, ao anunciar que faria a
109

denúncia do ocorrido à Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo


(CONATRAE), declarou: "´É um absurdo que situações como essa ainda aconteçam e não é a
primeira vez que a equipe do Grupo Móvel sofre enfrentamento de polícias locais, mostrando
que em determinadas regiões do país o poder público local não está a serviço da sociedade"80
(http://www.afitepe.org.br/noticias/headline.php?n_id=98&u=1%5C, acesso em 14/08/2018).
Em seu paroxismo, o caso revela o conflito entre o poder oligárquico e uma nova
institucionalidade estatal em Mato Grosso no início deste século.
Os embates em torno das políticas de erradicação do trabalho escravo esbarram
muitas vezes na questão da privatização do público, não sendo raro, até hoje, os casos de
políticos que utilizam mão de obra escravizada e se valem do poder para minar as ações e
instrumentos de combate a esse crime. Hoje, porém, na maior parte de Mato Grosso a situação
é bem distinta dos registros da segunda metade do século XX, de forma semelhante ao que
observou Pereira em seu estudo sobre o sul e sudeste do Pará:

Já não vivemos em meio à repressão do período autoritário, de 1964 a 1984,


as relações estabelecidas com os aparelhos de Estado, sobretudo, são outras e
os trabalhadores rurais podem contar com o apoio de diversas entidades. Nos
anos de 1970 a 1980, como retratado por Antônio Gomes [ex-presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá], não restava a não ser a
solidariedade entre os próprios posseiros e o apoio externo da Igreja Católica
(PEREIRA, A., 2015, p. 309).

Os anos de 2006 a 2009, que marcaram a institucionalização do combate ao


trabalho escravo através da criação da COETRAE-MT, do lançamento do Plano Estadual para
Erradicação do Trabalho Escravo e da posse de 80 auditores-fiscais do trabalho no estado
(com o objetivo de reforçar o combate ao trabalho escravo) acarretaram uma diminuição do
sentimento de impunidade em Mato Grosso, segundo relataram vários entrevistados.
Segundo Iara, uma das lideranças da Comissão Pastoral da Terra em Mato Grosso,
os empregadores que se utilizam de mão de obra escravizada tiveram que mudar e disfarçar
suas práticas a partir do momento em que o trabalho escravo passou a ganhar mais
visibilidade e respostas do poder público.

A visibilidade aqui da prevenção e o combate ao trabalho escravo nos


últimos anos impactou de alguma forma. Antes, não tinham com o que se
preocupar, porque era normal. Agora, a partir do momento em que começa a
ter campanhas nacionais, divulgação, a mídia começa a tratar de um caso e

80
A conclusão do coordenador da CONATRAE foi que "Essa situação exige resposta firme do Poder Público
Federal para coibir o abuso e o desrespeito que foi demonstrado".
110

outro que tem visibilidade, aí eles acabam se precavendo. Não que eles
pensem no melhor para o trabalhador. Não. Mas é a forma de maquiar. Eles
maquiam de uma forma que fica muito mais difícil de dizer e comprovar que
de fato é trabalho escravo. Acho que outra forma também que eles mudaram
foi a forma de arregimentar os trabalhadores. Porque se antes era o gato que
fazia isso, hoje é o gerente da fazenda. O cara não é mais colocado como
gato, mas é o gerente da fazenda que vai lá, contrata, faz isso e aquilo.

O relato do sindicalista Joaquim também retrata a mesma transformação,


atentando para o perigo atual de retrocesso:

Quando eu entrei aqui existia pensamento de impunidade, que podia fazer as


coisas que não tinha problema, por volta de 2009... denuncia hoje e depois
passa muitos anos e não acontece nada, caduca. Com o passar do tempo foi
mudando. Agora, com a mudança da legislação e a flexibilização, está
voltando a ideia de que pode tudo.

De modo geral, podemos dizer que, na transição do século XX para o XXI, Mato
Grosso assiste a um fortalecimento da presença do Estado e à estruturação do mercado de
trabalho, fatores determinantes para as transmutações na forma pela qual o capital perfaz a
exploração da terra e da força de trabalho. Processo este que, no tocante o enfrentamento do
trabalho escravo, encontra seu amadurecimento entre 2006 e 2009.
No âmbito fundiário, observa-se uma crescente judicialização da “violência contra
a ocupação e a posse” (a violência nas contendas entre particulares, antes predominantemente
pessoal e direta, passa a ser em parte também oficialmente mediada pelo Estado). Esse
processo foi descrito em texto divulgado nos Cadernos Conflitos no Campo em 1997:

A crescente organização dos trabalhadores, articulada com a


reinstitucionalização do País tem contribuído para reduzir lentamente
algumas formas de violência, como a tortura e as tentativas de assassinato.
Por outro lado, há crimes como a agressão física, as prisões ilegais e lesões
corporais que continuam flutuando na mesma intensidade que os conflitos.
Ao mesmo tempo, há formas conflitivas que foram sendo substituídas
durante esses anos, em virtude da judicialização dos conflitos, como é o caso
das expulsões e ameaças de expulsões, gradualmente substituídas pelas
ameaças de despejo judicial e pelo despejo judicial propriamente. Isso
mostra, portanto, um franco crescimento das formas de violência legitimadas
pela ordem jurídica (MOREIRA, 1998, p. 1).

Já na seara das relações sociais de produção, como analisaremos adiante, vê-se a


crescente exploração através de consentimentos produzidos através do abuso da
vulnerabilidade das populações miseráveis. A violência direta, neste caso, vai perdendo
espaço para a violência mediada pelo mercado.
111

2.1.2. Transformações na economia de Mato Grosso e contexto global

O final do século XX marcou uma reconfiguração internacional da economia e,


por conseguinte, o reposicionamento da agricultura sul-americana, que ampliou sua
participação no mercado de commodities, tornando-se, inclusive, líder mundial na produção e
exportação da soja (LEITE; SILVA, 2015, p. 1).
Neste cenário, o Brasil figura entre os maiores exportadores de produtos
agropecuários do mundo. Em 2017, o país exportou US$ 81,45 bilhões em produtos
agropecuários, valor que só foi superado pela União Europeia (US$ 162,46 bilhões) e pelos
Estados Unidos (US$ 153,49 bilhões).
Segundo o documento Brasil Projeções do Agronegócio 2010/2011 a 2020/2021,
divulgado pela Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura Pecuária e
Abastecimento (MAPA) em junho de 2011: “Deverão continuar expressivas e com tendência
de elevação as participações do Brasil no comércio mundial de soja, carne bovina e carne de
frango” (2011, p. 43). No momento de elaboração do estudo, a participação do Brasil no
comércio mundial de alimentos em 2010/2011 e as projeções para os anos seguintes foram
assim exibidos:

PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NO COMÉRCIO MUNDIAL DE ALIMENTOS (%)


Realizado em 2010-2011 Projeção para 2014-2015 Projeção para 2020-2021
Açúcar 54,80 54,80 54,80
Café verde / grão 36,10 36,10 36,10
Soja / grão 30,80 31,80 33,20
Farelo de soja 23,30 23,00 21,90
Óleo de soja 15,20 14,90 14,10
Milho 9,60 10,60 12,00
Carne bovina 28,00 29,70 30,10
Carne suína 10,10 10,70 11,60
Carne de frango 44,00 46,50 49,00
Tabela 2 – Participação do Brasil no Comércio Mundial de Alimentos
Fonte: USDA, 2011, AGE-MAPA e SGE-EMBRAPA

O documento também faz as seguintes previsões, tendo em consideração a


realidade territorial de Mato Grosso:
112

Mato Grosso deve continuar liderando a produção de soja no país devendo


responder por quase 30,0% da produção. A região denominada MATOPIBA,
por estar situada nos estados brasileiros de Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia, deverá apresentar aumento elevado da produção de grãos assim como
sua área deve apresentar também aumento expressivo. Atribui-se a expansão
dessa nova região aos preços de terras, que embora tenham se elevado
acentuadamente nos últimos anos, ainda são inferiores a estados como Mato
Grosso que ainda é uma região de expansão de fronteira (MAPA, 2011, p.
44).

Atualmente, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017 (resultados


preliminares por estado81), o Mato Grosso apresenta 118,7 mil estabelecimentos
agropecuários, que ocupam uma área de 54,8 milhões de hectares e envolvem o trabalho de
424 mil pessoas.
Dentre todos os estabelecimentos agropecuários do estado, 7 mil cultivam soja em
grão (cuja produção somada foi de 29 milhões de toneladas em 2017) e 10,5 mil produzem
milho em grão (produção de 28,5 milhões de toneladas em 2017).
Ainda segundo o último censo agropecuário (2017), o número de cabeças de
bovinos no estado de Mato Grosso é de 24 milhões, contra 58 milhões de cabeças de aves
(galinhas, galos, frangas e frangos).
Nos resultados preliminares do Censo Agropecuário 2017 referentes a Mato
Grosso, são apresentados os seguintes números sobre o uso da terra:

81
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/pdf/MT.pdf - Acesso em 07/01/2019
113

lavouras
matas plantadas;
permanentes; 0,2%
0,4%

lavouras
temporárias; 17,7%

matas naturais ;
37,7%

pastagens naturais;
7,4%

pastagens
plantadas; 34,6%

Gráfico 1 - Uso da terra em Mato Grosso


Fonte: IBGE (https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/pdf/MT.pdf)

Mato Grosso possui o maior rebanho de bovinos dentre os estados federativos


brasileiros, somando 24.118.840 cabeças em 30/09/2017. Além disso, foi o estado brasileiro
com maior produção nas seguintes lavouras no ano de 2017: algodão herbáceo (2.373.008,775
toneladas produzidas por 248 estabelecimentos), semente de girassol (38.172,578 toneladas,
46 estabelecimentos), soja em grão (29.281.387,255 toneladas, 7.061 estabelecimentos),
milho em grão (28.506.976,312 toneladas). Apresentou também a sexta maior produção de
cana-de-açúcar (16.449.643,346 toneladas), ficando atrás de São Paulo, Goiás, Minas Gerais,
Mato Grosso do Sul e Paraná (Censo Agropecuário 2017).
A economia que hoje se estrutura em Mato Grosso, como vimos, remonta à
recente colonização do estado. Inscreve-se num processo de “modernização conservadora” do
campo brasileiro que se descortinou entre as décadas 1960 e 1980. Faz parte, ainda, de um
contexto mais amplo de transformações na economia e dinâmicas de produção e comércio
internacionais de produtos agropecuários. A partir dos anos 1990, com a adesão do Brasil às
114

políticas neoliberais, este novo cenário mundial passa a ditar cada vez mais o tom da
produção nacional.
Entretanto, o modo como se estruturou a produção nacional e se integrou à nova
ordem mundial foi moldado por um imaginário nacional dominado por concepções
hegemônicas acerca do mundo rural brasileiro. Segundo Felipe Maia Guimarães da Silva
(2015, p. 93):

Embora comporte certa heterogeneidade, as práticas e políticas que


interferiram nas transformações no mundo rural brasileiro entre as décadas
de 1960 e 1980 estiveram relacionadas à hegemonia de uma economia
imaginada, que interpretou a questão agrária como um problema de
modernização da base técnica da agricultura e identificou a grande
propriedade como espaço ideal para a realização de um ideal industrial de
produção agrícola.

Heredia, Palmeira e Leite identificam que “foi, sobretudo a partir dos anos de
1970 – com a política de “modernização da agricultura” promovida pelo regime militar –, que
se começou a falar mais explicitamente da existência de uma ‘agricultura moderna’ ou de uma
‘agricultura capitalista’ no Brasil, de ‘empresas rurais’ (figura contraposta no Estatuto da
Terra ao “latifúndio”) e de ‘empresários rurais’” (2010, p. 159).
Foi este o caminho percorrido até a hoje disseminada ideia de “agronegócio”, que
tem como uma de suas principais implicações uma mudança de enfoque sobre as questões
sociais atreladas à propriedade rural: “Enquanto ‘o latifúndio efetua a exclusão pela
improdutividade, o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade’”
(FERNANDES, 2004, apud CANUTO, 2004, p. 2).
Ao analisarem as transformações da agricultura nacional, Heredia, Palmeira e
Leite também apontam que no período da chamada “modernização da agricultura” (a partir da
década de 1970 e, principalmente na de 1980), há “a intensificação das transações econômicas
e seus rebatimentos políticos e sociais” (HEREDIA; PALMEIRA e LEITE; 2010, p. 162). De
fato, segundo os mesmos autores, algumas das características que diferenciam o
“agronegócio” (termo em voga na atualidade e adotado paulatinamente a partir da década de
1990) da “agricultura moderna” (década de 1970) e do “complexo agroindustrial” (década de
1980) seria a sua vocação mais marcadamente exportadora e sua composição com capitais de
diferentes origens (além do “capital agrário”), inclusive, crescentemente, o capital estrangeiro
(2010, p. 159-160).
115

Tais transformações ocorridas na estrutura produtiva no campo são bem


delineadas pelos autores, ao apontar que, a partir da década de 1970, teria havido uma
transição de um discurso de “defesa da propriedade”, com fundamento no valor das tradições,
para um discurso de “defesa da atividade empresarial no campo” e de suas grandes
propriedades produtivas, apontadas como “responsáveis pelo desenvolvimento nacional”
(2010, p. 160).
O acirramento deste processo é que produz o agronegócio brasileiro:

A ideia do agronegócio será uma espécie de radicalização dessa visão, em


que o lado “agrícola” perde importância e o lado “industrial” é abordado
tendo como referência não a unidade industrial local, mas o conjunto de
atividades do grupo que a controla e suas formas de gerenciamento
(HEREDIA; PALMEIRA e LEITE, 2010, p. 160).

Em termos mundiais, algumas das principais transformações ocasionadas pela


reestruturação da produção agrícola em escala global são apontadas pelo estudo do Canada’s
National Farmers Union de 2005 (Canada’s National Farmers Union, 2005).
O impactante estudo canadense mostra o abismo entre os prejuízos sem
precedentes dos pequenos produtores rurais e os lucros exponenciais de todos os demais elos
da atual cadeia produtiva de alimentos, que obtiverem lucros históricos em 2004, ano em que
os pequenos produtores rurais sofreram um de seus maiores prejuízos.
Estamos diante de “novos processos de acumulação de capitais na agricultura
global”. É neste contexto que são moldadas as características nacionais da atual “grande
agricultura capitalista”, que “aprofundou as transformações produtivas oriundas do período de
industrialização da agricultura e de formação dos complexos agroindustriais” (LEITE;
SILVA, 2015, p. 1).
Quanto à base técnica, LEITE e SILVA apontam que ela combina elementos de
mecanização com a intensificação do uso de insumos químicos e de engenharia genética. No
que diz respeito à relação da agricultura com Estado e sociedade, afirmam que, paralelamente
aos processos de liberalização e desregulamentação alavancados pela globalização dos
mercados agrícolas, “a grande agricultura continua mobilizando recursos políticos para
engajar o Estado em investimentos de infraestrutura, para oferta de crédito ou para a conquista
de mercados internacionais” (2015, p. 1). No aspecto organizacional, os pesquisadores
apontam a financeirização do setor e a coordenação de diversos elos da cadeia de produção,
aliadas ao uso crescente da microeletrônica (LEITE; SILVA, 2015, p. 1).
116

Na década dos anos 2000, observou-se um grande incentivo ao agronegócio e seu


modelo, inclusive com a liberação dos transgênicos. A estrutura agrária, por sua vez,
permaneceu concentrada (ANTUNES, 2018, p. 121). De fato, conforme os dados do Sistema
Nacional de Cadastro Rural – INCRA organizados e divulgados em Relatório da OXFAM em
2016: “Embora o número de estabelecimentos rurais tenha crescido entre os anos de 2003 e
2010, [...] esse crescimento foi impulsionado por grandes propriedades” (OXFAM, 2016, p.
6).
A extrema concentração agrária brasileira é histórica e notória, entretanto, a
aferição de suas variações no período recente ainda é tarefa espinhosa e sujeita a significativas
inconsistências. Conforme demonstrou Acácio Zuniga Leite (2018), o índice de Gini82, que
tem sido utilizado sem as devidas precauções no cálculo da concentração fundiária, conduz a
equívocos analíticos83.
No caso de Mato Grosso, apesar dos debates metodológicos84 e dificuldades
interpretativas que seus dados fundiários ensejam, pode-se afirmar que os conflitos sociais no
campo se acirraram nas últimas décadas. Isto é, independentemente do índice de concentração
fundiária ter se elevado e decrescido e mesmo com a existência de algumas políticas para
inibir o trabalho escravo, os crimes ambientais e para incentivar a agricultura familiar e os
assentamentos, o que se observa é a agudização (e não a equação) dos conflitos no campo: a
devastação do meio ambiente e de vidas humanas, que detalharemos na parte final deste
capítulo).
Heredia, Palmeira e Leite destacam também o forte processo de concentração
econômica e desnacionalização do setor agroindustrial de esmagamento de grãos entre 1995 e
2005, período em que a participação do capital internacional no setor passa de 16% para 57%.
O chamado “grupo A B C D” (ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus) domina as primeiras posições
da participação internacional cada vez mais marcada. Os autores mostram também a

82
“O índice de Gini é um coeficiente de mensuração da desigualdade que varia entre 0 e 1, utilizado
principalmente em estudos sobre a distribuição de renda. No caso do estudo sobre a distribuição de terras, 0
corresponde à completa igualdade (a terra está igualmente dividida entre os imóveis), portanto quanto mais
próximo de 1 estiver o valor, mais desigual será a distribuição das terras” (Leite, A., 2018, p. 12).
83
Dentre as simulações de cálculos utilizando o índice de Gini realizadas pelo autor confrontadas com outros
dados de um município selecionado aleatoriamente, “contraditoriamente (...) as hipóteses I e II, embora
desconcentrem a posse da terra, aumentaram o índice de Gini para 0,575 e 0,586, respectivamente, e a hipótese
III concentrou a posse da terra e diminuiu o índice de Gini para 0,570” (Leite, A., 2018, p. 20).
84
A aferição da concentração fundiária unicamente através do índice GINI sugeriria um declínio da
concentração no estado de Mato Grosso, passando de 0,909 em 1985 para 0,870 em 1995 e 0,865 em 2006.
Entretanto (OXFAM, 2016, p. 9). Porém, estudos como o de Acácio Zuniga Leite (2018) indicam as
“insuficiências e desvios no uso do índice de Gini como instrumento de análise da estrutura fundiária brasileira”
com base em dados do IBGE e do INCRA. O autor conclui que “é um erro afirmar um movimento de
concentração ou desconcentração fundiária unicamente por meio do índice de Gini. Outros índices, como o de
Hirschman-Herfindahl já vem sendo utilizados em análises e merecem mais estudos” (LEITE, A, 2018, p. 25).
117

localização das empresas do grupo Maggi (Amaggi), “ligadas à família do [ex-]governador do


estado do Mato Grosso, Blairo Maggi, que atua igualmente na produção da soja propriamente
dita”, que se deslocam para as áreas de cerrado, onde são construídas as novas plantas,
alterando a estratégia de período anterior, que compreendeu a compra de “antigas unidades de
grupos empresariais nacionais, situadas na região Centro-Sul até o final dos anos de 1990”
(HEREDIA; PALMEIRA e LEITE, 2010, p. 162).
Conforme demonstra o estudo de Pignati et al (2017, p. 3290):

As extensas áreas de monoculturas de alto consumo de agrotóxicos


encontram-se principalmente no bioma cerrado. Pelo código florestal
brasileiro (lei nº 12.651/2012), é destinado a este bioma a preservação de
35% de reserva legal com vegetação nativa e consequentemente, libera-se
65% da área para o desmatamento. Isto torna o cerrado um dos biomas mais
desmatados do país e com grande probabilidade de contaminação de
agrotóxicos em suas bacias hidrográficas e aquíferos. As porções restantes
do Cerrado também já estão direcionadas para a expansão da fronteira
agrícola pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) em um projeto
para estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (acrônimo
MATOPIBA).

Ao lado da devastação da vegetação, o processo de transformações no campo na


entrada do século XXI é também marcado pela devastação humana, conforme relata Carlos
Gonçalves em sua análise dos dados da Comissão Pastoral da Terra sobre os conflitos no
campo ocorridos em 2005:

A análise simples destes dados confirma o que desde 2003 vimos


denunciando. A violência é mais intensa nos Estados onde a dinâmica
sociogeográfica está fortemente marcada pela influência da expansão dos
modernos latifúndios monocultores (autodenominados agronegócio). O
Centro-Oeste, paraíso do agronegócio, no seu conjunto se destaca neste
campo. O Pará, primeiro em números absolutos, sofre também as
consequências do avanço do agronegócio, da exploração madeireira e da
grilagem das terras públicas. É no Centro-Oeste e no Norte que as últimas
fronteiras agrícolas são conquistadas às custas do sofrimento e do sangue dos
trabalhadores e dos que os apoiam (GONÇALVES, C., 2006, p.3-4).

Estes processos, como vimos, estão inseridos num contexto mais amplo em que o
agronegócio como nova forma de organizar a economia no campo se espalha por todo o
globo. A crescente dependência externa e inserção do agronegócio brasileiro em cadeias
produtivas internacionais tem, como um de seus pilares, a adoção de um modelo químico-
118

dependente85. Conforme expõem Miranda et al (2007), tal modelo foi introduzido no país nos
anos 1960, ganhando força na década de 1970 com o lançamento do Plano Nacional de
Defensivos Agrícolas (PNDA) e continuando a intensificar-se nas décadas posteriores
(MIRANDA et al, 2007, p. 11).

Entre 1964 e 1991, o consumo de agrotóxicos no país aumentou 276,2%,


frente a um aumento de 76% na área plantada. Já no período entre 1991 e
2000, observou-se um aumento de quase 400% no consumo destes agentes
químicos, frente a um aumento de 7,5% na área plantada (MIRANDA et al,
2007, p. 11).

A utilização de insumos químicos é uma das características marcantes da nova


agricultura financeirizada, internacionalizada e dominada pelas grandes corporações.
Enquanto em 1983 o gasto mundial com agrotóxicos era da ordem de 20 bilhões de
dólares/ano, em 1997 já havia atingido 34 bilhões de dólares/ano (MIRANDA et al, 2007, p.
11).
O padrão químico-dependente de produção também trouxe tendências
devastadoras que se generalizaram no campo ambiental e da saúde pública. Segundo
informações da OMS, entre três e cinco milhões de pessoas são contaminadas por insumos
químicos a cada ano, situação que se torna ainda mais grave nos países em
desenvolvimento86, responsáveis por 20% do consumo mundial de agrotóxicos, mas
concentrando em seus territórios 70% das vítimas de intoxicação (MIRANDA et al, 2007, p.
11).
Neste cenário, a América Latina destaca-se como região com maior ampliação do
uso de agrotóxicos. Merece menção o peso do Brasil, que responde por aproximadamente
metade de todo o consumo latino-americano (MIRANDA et al, 2007, p. 11).

Somente em 1989, o país gastou US$ 28,4 milhões na importação de


agrotóxicos, aproximadamente cinco vezes mais do que em 1964 (US$5,12
milhões), época em que estes produtos começaram a surgir no mercado

85
O relatório da Canada’s National Farmer Union de novembro de 2005, cita a incorporação do uso de
agrotóxicos na cadeia produtiva dos alimentos como um dos mecanismos utilizados pelas grandes corporações
para aumentar a dependência dos pequenos produtores: “Until recently, farms supplied their own fertility from
manure, rotations, and residual nutrients. Following World War II, however, the world had surplus capacity for
producing nitrogen and phosphates—ingredients for both fertilizers and bombs— so farmers were convinced to
purchase fertility. Next came chemicals to control weeds and bugs. Then came round after round of more and
better tractors, fertilizers, and chemicals (2005, p. 10).
86
Nas palavras de Miranda et al (2007, p. 11): este quadro ainda é mais preocupante em países em
desenvolvimento, como o Brasil, em que a incorporação de tecnologias baseadas no uso intensivo de produtos
químicos é feita sem a implementação de políticas claramente definidas relacionadas à comercialização,
transporte, armazenagem, utilização, normas de segurança e conhecimentos dos riscos associados.
119

nacional. No período de 1990 a 2000, os gastos com a importação de


agrotóxicos aumentaram em 638%, de US$ 41,6 milhões para US$ 265,8
milhões, equivalente à metade do gasto de toda a América Latina
(MIRANDA et al, 2007, p. 11).

Com efeito, para manter-se como um dos líderes na exportação de produtos


agropecuários, o agronegócio brasileiro “utiliza intensivamente sementes transgênicas e
insumos químicos, como fertilizantes e agrotóxico” (PIGNATI et al, 2017, p. 3282). Esse
arranjo, combinado à extensa área de nosso país, converteu-o no maior consumidor de
agrotóxicos do mundo87.
Os dados nacionais do Censo Agropecuário divulgados pelo IBGE indicam que
33%88 dos estabelecimentos agropecuários no Brasil utilizaram agrotóxico em 2017 e 20%
realizou adubação química. O incremento na utilização de agrotóxicos é atestado pela
comparação com o Censo Agropecuário anterior, de 2006, registrando-se um aumento de
20,4%89.
O aumento do volume de agrotóxicos consumidos em Mato Grosso nos últimos
anos pode ser visualizado no gráfico abaixo:

87
Entre os fatores que teriam contribuído para o aumento no consumo de agrotóxicos no Brasil, os autores
elencam: “A imposição da Política da Revolução Verde, dos cultivos transgênicos, o aumento de ‘pragas’ nas
lavouras, de créditos agrícolas subsidiados e isenção de tributos fiscais”, bem como as “fragilidades da vigilância
estatal sobre o seu uso e a ausência de políticas que reduzam o uso de agrotóxicos e incentivem a produção
agroecológica” (PIGNATI ET ALLI, 2017, p. 3282).
88
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/estabelecimentos.html (Acesso em
07/01/2019).
89
O sítio oficial de notícias do IBGE assim divulgou a notícia: “O Censo Agropecuário 2017 pesquisou se o
produtor utilizou agrotóxicos no período de referência. Os dados mostram que 1.681.001 produtores utilizaram
agrotóxicos e que 134.360 produtores utilizam, mas não houve necessidade de aplicação no período de
referência. Este número representa um crescimento de 20,4% em relação a 2006, quando 1.396.077 produtores
declararam ter utilizado agrotóxicos” (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
agencia-de-noticias/releases/21905-censo-agro-2017-resultados-preliminares-mostram-queda-de-2-0-no-numero-
de-estabelecimentos-e-alta-de-5-na-area-total - Acesso em 07/01/2019).
120

Consumo de agrotóxicos em Mato Grosso

250.000.000
Consumo agrtóxicos (litros)

200.000.000

150.000.000

100.000.000

50.000.000

0
2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017
Gráfico 2 – Consumo de agrotóxicos em Mato Grosso
Fonte: Pignati et al, 2018 (elaborado por Francco Antonio Neri de Souza e Lima)

O estudo de Joseph et al, revela que:

[...] as vantagens competitivas do Estado de Mato Grosso no comércio


internacional estão intimamente ligadas aos resultados obtidos pela
exportação de commodities. Nesse sentido, há que se destacar a importância
dos incentivos governamentais destinados à exportação desses produtos, tais
como a Lei Kandir (1996), que isenta de ICMS a comercialização no exterior
de produtos primários e semi-elaborados [sic]. Outro fator que tem garantido
o expressivo aumento no volume de exportação dos produtos da economia
mato-grossense é representado pelos ganhos de produtividade que as
unidades produtivas do Estado vêm obtendo nos últimos anos, em
particular, na agropecuária, decorrentes de inovações físico-químicas,
mecânicas, biológicas e organizacionais (2009, p. 57, grifo nosso).

Os impactos que o aumento vertiginoso no uso de agrotóxicos tem sobre a saúde


das populações (trabalhadores, comunidades do entorno das áreas produtivas e consumidores)
e sobre o meio-ambiente são colossais e, não obstante o campo esteja ainda aberto para muitas
descobertas, importantes pesquisas já mostraram a relação entre o uso de agrotóxicos e
diversos agravos à saúde humana.
121

A exposição prolongada aos produtos agrotóxicos e ciclos de intoxicação


aguda pode ocasionar uma intoxicação subaguda e crônica, com danos
irreversíveis. Alguns agrotóxicos podem causar efeitos no desenvolvimento
humano, como malformações fetais. Literaturas apontam que a exposição
ambiental materna aos agrotóxicos foi associada a maior ocorrência de
malformação fetal nos municípios com grande utilização de agrotóxicos, em
todos os trimestres da gestação em Mato Grosso. Estudos associam a
exposição ocupacional aos agrotóxicos do pai ou da mãe na ocorrência de
malformação fetal (PIGNATI et al, 2017, p. 3290).

Num estudo publicado em 2017, Pignati et al demonstraram haver uma correlação


positiva entre o consumo de agrotóxicos e alguns indicadores de saúde: intoxicações agudas,
incidência de malformação fetal e mortalidade por câncer infanto-juvenil), a partir da análise
de dados referentes a Mato Grosso do ano de 2015 (2017, p. 3291). Portanto, discutir o
trabalho escravo hoje requer, necessariamente, aprofundar o diálogo com outras áreas do
conhecimento, em especial a Saúde Coletiva, sob pena de passar-se ao largo de um dos
principais fatores que atentam contra a vida dos trabalhadores rurais na atualidade.
Ao lado da temática (para nós, central) dos agrotóxicos, o último Censo
Agropecuário também apontou um crescimento de 52% da área irrigada nos estabelecimentos
agropecuários entre 2006 e 2017 e um aumento de 49,7% do número de tratores utilizados.
Concomitantemente, houve um declínio de aproximadamente 9,24% no número de
trabalhadores ocupados na produção agropecuária. Conforme divulgado pelo IBGE:

Em 2017, havia 15.036.978 pessoas ocupadas nos estabelecimentos


agropecuários no dia 30/09, uma média de 3 pessoas por estabelecimento,
entre produtores e pessoas com laços de parentesco com eles, além de
trabalhadores temporários e permanentes. Do total de pessoas ocupadas
nesta data, os produtores e trabalhadores com laços de parentesco com eles
representaram 73% (10.958.787). Na comparação com o Censo
Agropecuário 2006, houve redução de 1.530.566 pessoas no total de
ocupados, que era de 16.567.544 no dia 31/12 daquele ano. A média de
ocupados por estabelecimento também caiu, de 3,2 pessoas, em 2006, para 3,
em 2017, assim como o percentual e o total de produtores e trabalhadores
com laços de parentesco com eles, que foi de 77% (12.801.179 pessoas), em
2006, para 73% (10.958.787) em 2017. Em contraponto com a queda no
pessoal ocupado, o número de tratores aumentou 49,7% (407.916 unidades a
mais) na comparação com o Censo Agropecuário de 2006, chegando a
1.228.634 unidades em 30 de setembro de 2017. Já o número de
estabelecimentos que utilizavam este tipo de máquina aumentou em mais de
200 mil, alcançando um total de 733.997 produtores em 2017”
(https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
agencia-de-noticias/releases/21905-censo-agro-2017-resultados-
preliminares-mostram-queda-de-2-0-no-numero-de-estabelecimentos-e-alta-
de-5-na-area-total - Acesso em 07/01/2019).
122

No que diz respeito à mão de obra, 73% do total de trabalhadores contabilizados


nos estabelecimentos de todo o país são parentes do produtor. Dentre os trabalhadores sem
laço de parentesco com o produtor (que representam 27% do total), 47% dos trabalhadores
contabilizados eram permanentes, 47% eram temporários e 6% eram parceiros90.
O novo modelo produtivo que estrutura o agronegócio mato-grossense no século
XXI tem repercussões diretas sobre os direitos dos trabalhadores, impondo-lhes novas formas
de exploração e de riscos à saúde e à vida.
Um caso emblemático em Mato Grosso é o setor do algodão, que entre 2000 e
2003 esteve envolvido em vários flagrantes de trabalho escravo e, num segundo momento de
sua expansão no estado, passou a adotar programas de “área limpa”, causando danos
gravíssimos ao meio ambiente e à saúde das populações através do aumento da utilização de
agrotóxicos. Em notícia intitulada “Empresário quer demissões em massa”, veiculada pelo
jornal A Gazeta em 2002 na ocasião de uma ação fiscal que constatou mais de cem
trabalhadores em situação análoga a de escravos na cotonicultura, podemos visualizar várias
facetas desta questão:

A maior pressão do Grupo Bial contra a ação do Ministério do Trabalho e


Emprego não se dará no campo judicial, mas no plano político. “Estamos
negociando com outros agricultores a demissão em massa de todos os
trabalhadores das lavouras de algodão. Da forma como o governo vem
procedendo, é preferível não empregar mais ninguém”, ameaça o presidente
do Grupo Bial, Carlos Bonfim Júnior. Segundo ele, a intenção das empresas
é associar-se a multinacionais para implantar programas conhecidos como
“Área Limpa”, que dispensam a mão de obra em favor de tratamento
químico para as colheitas. “Se todos os agricultores cansados das ações
arbitrárias do MTE comprarem a briga, vamos demitir de 10 mil a 15 mil
safristas no sul de Mato Grosso”, calcula. Júnior admite que a implantação
do programa Área Limpa custa até 40% mais caro para o empresário do que
a simples contratação de safristas. “Mas se é para ter sossego, vale o
investimento. O que não dá neste país é para você gerar emprego e ainda ser
tratado como ladrão. Precisamos acionar a bancada ruralista para mudar as
leis trabalhistas” (A Gazeta, Cuiabá, 30 de abril de 2002, grifos nossos).

De fato, os 10 casos de trabalho escravo constatados pelo GEFM no setor da


cotonicultura em Mato Grosso entre 1995 e 2013 concentraram-se nos entre os anos de 2000 e
2003 (9 casos no período), caracterizando-se por um contingente grande de trabalhadores
atuando nas atividades de capina e catação de raízes91.

90
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/produtores.html (Acesso em
07/01/2019).
91
A demanda por um maior número de trabalhadores no modo como estava organizada a produção daquele
período é descrita neste trecho do Relatório de Inspeção de 2002: “No que tange à cotonicultura, a capina do
123

Já o único caso recente de trabalho escravo na cultura do algodão até o ano de


2013 configurou-se por um grupo de trabalhadores realizando primordialmente a atividade de
pulverização de agrotóxicos, durante o mês de janeiro. Sabe-se que a cultura do algodão é a
que utiliza o maior volume de agrotóxicos por área em Mato Grosso, o que tem impacto direto
sobre a saúde dos trabalhadores e populações do entorno (além dos consumidores dos
produtos e do meio ambiente).
Assim, a exploração, degradação e escravização adquirem nova fisionomia. Os
depoimentos dos trabalhadores do único caso recente de trabalho escravo no setor
(considerando o período analisado de 1995 a 2013), ocorrido em 2008, ilustram bem essas
novas dinâmicas. Fábio, um dos aplicadores de agrotóxico encontrados em situação
degradante, declarou no momento da fiscalização:

[...] que na data de hoje um colega de trabalho seu, que abastece o avião
com o veneno, sentiu um mal-estar, tendo náuseas, sendo imediatamente
conduzido ao serviço médico; (...) que o avião aplica veneno no campo,
pulveriza a cultura, fazendo-o sobre o corpo dos trabalhadores; que tem
que sair correndo para evitar ser contaminado; que a água que
consomem rapidamente perde a condição térmica adequada, perdendo o
frescor em razão da alta temperatura do meio ambiente; que enquanto
trabalham não bebem água em razão de a deixarem em local muito distante
do que trabalham, por causa da necessidade de aumentar a produção; que
somente a consomem na hora do almoço (Relatório de Inspeção, 2008, cód.
DF, p. 62, grifos nossos).

Como a fiscalização já havia encontrado trabalho escravo em 2001 na mesma


fazenda, isso nos permite fazer uma breve comparação entre as duas situações. Da leitura do
relatório de 2001, percebe-se que, à época, os trabalhadores retirados de situação análoga a de
escravo desempenhavam atividade de catação de raízes no mês de novembro, recebendo por
diárias. Haviam sido contratados através de gatos que os mantinham endividados, anotando
seus gastos em cadernos e cobrando inclusive os valores referentes ao transporte até o local de
trabalho (ônibus de turismo). Nos termos do relatório:

algodão é a tarefa mais rudimentar e que exige menos qualificação, o que leva os produtores a acharem
facilmente trabalhadores para fazê-la, uma vez que o Mato Grosso está vendendo uma imagem de grande balcão
de empregos na área agrícola, atraindo ao Estado inúmeros trabalhadores oriundos do Nordeste, Centro Oeste e
de Minas Gerais. Os sulistas geralmente ocupam as funções de operadores de máquina ou técnicos e não são
contratados através dos ‘gatos’, pois são trabalhadores que lidam diretamente com o empregador, sendo-lhes
confiadas as portentosas e caríssimas máquinas, tão abundantes no cenário agrícola do Mato Grosso” (Relatório
de Inspeção, 2002, cód. ED, p. 3). Em outra operação do GEFM, a equipe relata: “A fase da capina do algodão
demanda um grande contingente de trabalhadores, concentrando no Mato Grosso cerca de 15 mil roçadores,
conforme previsão dos fazendeiros” (Relatório de Inspeção, 2002, cód. EC, p. 4).
124

A função do catador é considerada a mais abjeta de todas, sendo reservada


aos trabalhadores que não têm nenhuma qualificação, principalmente os
nordestinos oriundos do Maranhão, especificamente de cidades sem
alternativa de trabalho, nas quais campeiam a fome e a desesperança. Mais
de 90% dos trabalhadores que encontramos catando raízes eram
maranhenses das cidades de Governador Eugênio Barros, Senador Alexandre
Costa, Gonçalves Dias, Lima Campos e Cajueiro. Perguntados se conheciam
o dono do empreendimento, [...] todos afirmaram jamais tê-lo visto, assim
como nenhum dos seus sócios, apesar de que o mesmo visitava a fazenda,
mas o fazia no seu avião, descendo na pista de pouso da sede e nenhum
‘peão’ tinha liberdade nem autorização para se dirigir à sede (Relatório de
Inspeção, 2001, CM, p.3).

O setor algodoeiro, de fato, após grande exposição pública com os flagrantes de


trabalho escravo, articulou-se em torno do Instituto Algodão Social, com o objetivo de
eliminar o trabalho escravo da cadeia produtiva. A entidade é uma das signatárias do Pacto
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne empresas que se comprometem em
apoiar as medidas de erradicação do trabalho escravo.
Apesar da importância e dos pontos positivos de pactos como esse, as
transformações na forma de produção do algodão geraram transformações na forma de
explorar a força de trabalho e de agravar a saúde das populações, que passam ao largo de
pactos e das vistas da sociedade.
Durante a apresentação dos resultados do estudo “Profits and poverty: the
economics of forced labour” (OIT, 2014) realizada em 20 de maio de 2014, em Brasília, o
representante do Instituto Algodão Social explicou que, anos atrás, a capina do algodão
costumava ser realizada por grupos numerosos de trabalhadores (podendo envolver até
aproximadamente 700 pessoas numa só propriedade rural), em sua maioria, migrantes
nordestinos. Segundo ele, no contexto daquela época havia trabalho escravo no setor da
cotonicultura; já nos dias de hoje, não haveria mais trabalho escravo na cultura do algodão,
“porque se usam herbicidas, o que solucionou o problema... mas é uma lástima para o meio
ambiente”.
A questão do agrotóxico, portanto, permanece não equacionada. E, junto com ela,
a própria degradação e ameaça à vida que elevados riscos químicos podem representar para os
trabalhadores (principalmente conjugadas com as jornadas alongadas e as irregularidades
referentes a equipamentos e procedimentos de segurança e de higienização, que aumentam o
tempo de exposição das vítimas ao fator de risco), gerando situações inclusive de “trabalho
análogo ao de escravo” como a reportada pela fiscalização do trabalho em 2008.
125

Por fim, outra faceta dramática desta nova ordem que dita a organização do
campo e os padrões alimentares, é o sofrimento dos pequenos produtores rurais e da
agricultura familiar. A conclusão do Canada’s National Farmers Union é cortante:

A crise da agricultura não aconteceu do nada; ela foi causada. A agricultura


familiar não está morrendo; ela está sendo assassinada. E os perpetradores
dessa destruição são as corporações do agronegócio que estão usando seu
poder de mercado para extrair lucros que ficariam para as nossas fazendas.
Agricultores não podem levar suas vidas porque os gigantes do agronegócio
insistem em levá-los à morte92 (2005, p. 16, tradução nossa).

Raj Patel reporta que, em 2008, 18 dos 28 estados da Índia apresentaram índice
crescente de suicídio entre os agricultores. Foi registrado, naquele ano, o equivalente a um
suicídio de agricultor a cada meia hora: 17.638 ocorrências no total. Num dos casos, o
agricultor acabou com a própria vida ingerindo uma dose de um dos pesticidas mais tóxicos e
comuns nas fazendas indianas. Segundo o pesquisador, outro fenômeno que se tornou
difundido entre a categoria é a venda de rins, chegando-se ao paroxismo da inauguração de
um Centro de Venda de Rins em Shingnapur. A justificativa dada por um dos participantes é
dramática: “os rins são tudo o que nos resta para poder vender” (BUNSHA, 2006 apud
PATEL, 2013, 745; 748-9; 6937-8).
A situação dos agricultores na Índia, exposta por Patel, ilustra bem o desvalor
(exposição a insumos tóxicos no momento do trabalho heterônimo e também no momento do
suicídio) e o valor (mercantilização do corpo e da saúde) da vida dos trabalhadores rurais
(PATEL, 2013). Mostra, também, a extrema vulnerabilidade social mobilizando o sujeito para
a “exploração por interpelação” e até a autoeliminação. Entre o agrotóxico que adoenta o
trabalhador rural na exposição laboral e o agrotóxico ingerido pelo pequeno agricultor num
suicídio; entre o tráfico de pessoas para remoção de órgãos e o agricultor pauperizado que
vende seu próprio rim; entre esses dois polos há uma linha de coerções sistêmicas, subjetivas
e interpessoais (envolvendo outros agentes que exploram a pessoa vulnerável) e que cada vez
mais interpelam a própria pessoa a vender-se, explorar-se, eliminar-se: exaurir a si mesma.

92
No original: “The farm crisis didn’t just happen; it was caused. The family farm isn’t dying; it’s being killed.
And the perpetrations of this destruction are the agribusiness corporations who are using their market power to
extract profits that would otherwise end up on our farms. Farmers can’t make a living because agribusiness
giants insist on making a killing”.
126

2.1.3. As novas formas de escravização em Mato Grosso na virada para o século XXI

Muitos autores apontam que o trabalho escravo tem crescido nas décadas que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Laís Abramo (2011, p. 60), ex-diretora do escritório da
OIT no Brasil, atribui tal crescimento recente a “um processo de globalização inequitativo e
marcado pela desregulamentação dos mercados de trabalho e pelo debilitamento de suas
instituições”93.
As práticas de escravização contemporânea proliferam-se no Brasil na segunda
metade do século XX, no contexto da reestruturação produtiva, da nova divisão internacional
do trabalho, da mundialização e financeirização dos capitais. Segundo Martins (1999, p. 131),
é nesta nova realidade econômica de intensificação da exploração do trabalho e anulação de
conquistas trabalhistas “que a superexploração tende, em circunstâncias específicas, a se
tornar trabalho escravo”:

Estamos, na verdade, em face de uma situação de superexploração. O capital


pode extrair mais-valia além do limite determinado pela reprodução da força
de trabalho, pagando aos trabalhadores salários insuficientes para a
recomposição de suas forças físicas após a jornada de trabalho, ou após o
pagamento do salário. Nesse caso, o salário pago, sendo insuficiente,
compromete a sobrevivência do trabalhador e/ou dos membros de sua
família, comprometendo a reprodução da mão de obra. Isso é possível,
evidentemente, quando o excesso relativo de mão de obra torna o
trabalhador substituível e descartável (MARTINS, 2009, p. 86).

No campo, a escravidão contemporânea inscreve-se, portanto, no contexto do


processo de “modernização sem modernidade” (LOURENÇO, 2001) que inseriu o Brasil na
ordem mundial globalizada e marcou a industrialização da agricultura brasileira.

Assim como toda formação social brasileira, a história da agricultura no


Brasil tem-se caracterizado por um estilo de desenvolvimento que instaura
uma modernização sem modernidade, isto é, um incremento das forças
produtivas sem a realização do tão prometido ingresso dos trabalhadores
rurais na cidadania. Alguns legados coloniais e escravistas persistiram,
renovados. A cultura extenuativa dos campos, as diversas formas de trabalho
compulsório, a dominação pessoal, o favor, a violência, o privatismo e a
ausência de uma profunda reforma agrária (LOURENÇO, 2001, p. 194-5).

93
Renato Bignani, ao estudar a precarização contida no sweating system (modalidade de subcontratação de
serviços que se desenvolveu na industrialização do setor têxtil, em oposição ao sistema fabril), mostra que, após
um longo período de marginalização e quase desaparecimento, esse sistema retornou ao cenário internacional das
relações de trabalho a partir da onda neoliberal, que implicou “o aumento da concorrência entre as empresas, a
abertura dos mercados, a imigração irregular e a pressão por um capitalismo global flexível” com redução dos
custos de produção (BIGNANI, 2011, p. 88; 96). No Brasil, as denúncias de trabalho escravo de estrangeiros
(bolivianos, peruanos e paraguaios) no setor têxtil começaram a aparecer na década de 1990.
127

De fato, segundo Pochmann (2004, p. 55), a forma pela qual se efetivou a


transição da economia agrário-exportadora para uma economia de base industrial no Brasil
não promoveu a superação do antigo sistema, mas sim uma conciliação entre o velho e o
novo. Em suas palavras:
[...] em um país de industrialização tardia como o Brasil, o processo
conciliatório entre o velho, representado pelo latifúndio e pelo passado
colonial escravagista, e o novo, expresso pela modernização capitalista,
tendeu a resultar na sua atual forma concentradora, autoritária e excludente.

É neste contexto que a persistência renovada de legados coloniais e escravistas,


enunciada por Lourenço, é visível também nas novas relações de trabalho escravo em Mato
Grosso na transição entre os séculos XX e XXI.
A história da escravidão contemporânea no território do que hoje é o estado de
Mato Grosso remonta, portanto, à modernização conservadora da agricultura brasileira, às
políticas do governo federal de “integrar para não entregar” e à expansão da fronteira agrícola
sobre a floresta amazônica, que se deram na segunda metade do século XX. Esse processo
apoiou-se na venda de terras a migrantes do sul e na exploração da força de trabalho composta
majoritariamente por migrantes do nordeste do país, no que ficou conhecido como peonagem.
A década de 1970 marcou um período dramático em que a escravidão se
transmutava em meio a um cenário de violência aberta, nos territórios “sem leis” do arco de
expansão agropecuária. Nas palavras da auditora fiscal do trabalho Daniela:

Quando vem a ocupação da Amazônia, da década de 70, foi quando teve o


primeiro documento de denúncia, a carta [Carta Pastoral de Dom Pedro
Casaldáliga94]. Porque foi na época em que o trabalho escravo ficou mais
violento e ninguém falava nisso, nos desmatamentos, das formações de
pastos, fazendas, tudo. Eu conversei com um gato no Pará e perguntei qual o
máximo de trabalhadores que teve sob sua responsabilidade, sem registrar:
mil. Era um gato famoso, que aliciava no Pará. No Sul do PA, tinha umas
fazendas cinematográficas, de bancos, seguradoras, áreas que foram
abandonadas. Então foi muita gente.

Este panorama se estende até o fim do século XX, alterando-se significativamente


no século XXI.

94
Esta Carta Pastoral, intitulada “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização
social”, foi o primeiro documento a denunciar publicamente a escravidão contemporânea no Brasil, tendo grande
repercussão à época. Foi escrita por Dom Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no ano
de 1971.
128

Na década de 1990, como poderemos constatar nos dados colhidos de relatórios


da Fiscalização do Trabalho e nos arquivos da Comissão Pastoral da Terra, as situações
vividas pelos trabalhadores explorados e escravizados em Mato Grosso não diferia muito, em
sua natureza (talvez variando apenas em quantidade), das apresentadas na década de 1970.
Na fala do Padre Camilo, que acompanhou de perto a realidade mato-grossense
entre os anos 1990 e 2000, eis as características principais do trabalho escravo encontrado à
época no estado: a) atividades econômicas com maior incidência de trabalho escravo eram o
“corte da mata” para abertura de pastos e o corte da cana-de-açúcar; b) presença de mão de
obra proveniente do nordeste (predominantemente), mas havia também a presença de
mineiros (principalmente na região de Jaciara); c) trabalhadores levados para Mato Grosso
para a atividade de derrubada da mata eram contratados nos estados nordestinos ou em
regiões de Espírito Santo e Goiás. Segundo o entrevistado, “eram grupos assim que os gatos
levavam para lá e depois dava no que dava. Eles vinham chorando, reclamando da situação de
abandono total”.
Quando lhe perguntei sobre ocorrências de mortes, assassinatos, doenças graves e
acidentes fatais naquele período, a resposta do padre foi a seguinte:

Sim, ouvi casos que não acompanhei, mas foram próximos. Porque eram
regiões muito distantes, remotas e, na verdade, os trabalhadores lá ficavam à
própria sorte. Tinha muito essa questão de serem vigiados. Se ameaçasse
fugir e fosse pego, era fuzilado. Nisso aí tivemos vários casos, relatos
assim...

Seu testemunho expõe uma realidade de violência ostensiva muito próxima das
descrições de 1971 constantes da Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga. Em sua fala,
como na de muitos entrevistados, emerge a temática da “terra sem lei”, da “terra de ninguém”:

Acho que, naquele tempo, essa coisa da terra sem lei era muito presente.
As pessoas, as próprias empresas, arriscavam mais, eles se achavam
donos da terra e dos que trabalhavam, se permitindo a estabelecer
algumas leis e regras segundo eles. Eles queriam a terra limpa. Hoje, creio
já ter mudado bastante, você não pode tratar as pessoas assim, como se
fossem coisas. Embora não se descarte, porque ainda existem regiões
distantes de alguns centros urbanos, e as pessoas ainda se permitem, acho...

Em certa medida, o presente estudo busca complementar as pesquisas de Martins


sobre a peonagem na expansão da fronteira agropecuária, isto é, sobre a escravização de
trabalhadores no período em que se produziam pastos para um agronegócio ainda em vias de
129

estruturação. Naquele contexto, o autor caracteriza o trabalho escravo dos peões como
prolongamento de um momento de expropriação dos meios de vida (acumulação primitiva)
dos trabalhadores através da “superexploração da força de trabalho”:

Ou seja, quando o trabalhador compromete a sua própria sobrevivência, ou a


de sua família, quando é expropriado da possibilidade de viver, trabalhando
mais do que a jornada normal de trabalho, acima do trabalho excedente
extorquido sob a máscara do salário e da contratualidade da relação entre
patrão e empregado. Isso fica claro quando, ao final de meses de trabalho,
nada tem a receber; ao contrário, ainda tem que pagar algo a quem o
empregou. É, no fundo, procedimento que faz parte do mesmo quadro
confiscatório em que o trabalhador se vê privado dos meios de produção que
ainda possui, como terra e ferramentas, pois a superexploração introduz em
sua vida dificuldades (como doenças e endividamentos, ou mesmo sua
morte) que lentamente o incorporarão e/ou sua família ao chamado exército
industrial de reserva, a força de trabalho à disposição do capital. Quando se
pensa a acumulação primitiva como processo e não como rótulo, pode-se
entender que [...], além de ser um requisito histórico da acumulação
capitalista [...], a acumulação primitiva pode se mesclar e se confundir com a
reprodução do capital (MARTINS, 2009, p. 82).

Busco mostrar que, na fase seguinte, com o agronegócio em plena atividade, a


escravização de trabalhadores apresentada pelos estudos de Martins95 persistiu, utilizando-se
de práticas em parte novas em parte pré-existentes (que esmiuçaremos na segunda parte deste
capítulo), porém, conservando a mesma matriz de exploração a taxas crescentes e de atentado
à vida dos trabalhadores, comprometendo a reprodução da força de trabalho.
É emblemático que, depois de tantas denúncias de trabalhadores escravizados no
desmate da floresta para criação de pastos, o setor da pecuária (que produz carne nestes
mesmos pastos) figure como setor econômico com o maior número de casos de trabalho
escravo contemporâneo constatados pelo Ministério do Trabalho desde 1995 até a presente
data. Entre 1995 e 2013, os flagrantes de trabalho escravo no setor da pecuária representaram
46% do total de casos de todo o estado.
Harvey (2013, p. 121) aponta que as características da acumulação primitiva
mencionadas por Marx se mantêm presentes até os dias atuais: a expulsão de populações
camponesas e formação de um proletariado sem terra, a privatização de recursos antes
partilhados, a supressão de formas alternativas e autóctones de produção e consumo, a
substituição da agricultura familiar pelo agronegócio e a persistência da escravidão.

95
No segundo capítulo, intitulado “A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão”, de seu livro
Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano, José de Souza Martins defende que a expansão agropecuária
brasileira baseia-se em subsídios governamentais, de um lado e, de outro, no uso não capitalista da mão de obra, concluindo
que “a reprodução ampliada do capital, nesses casos, inclui a produção não capitalista de capital” (2009, p. 83).
130

A acumulação baseada na violência e em atividades fraudulentas e predatórias,


designada por Harvey de “acumulação por espoliação”, não se restringe à fase pré-capitalista
da acumulação “primitiva” ou “original”, mas tem caráter persistente no capitalismo. Assim,
se o capitalismo requer continuamente algo externo a si para espoliar, para acumular
(HARVEY, 2013. p. 118), o autor mostra que a regressão dos estatutos regulatórios de
proteção ao trabalho e a devolução de direitos conquistados com anos de luta de classes ao
domínio privado “tem sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em
nome da ortodoxia neoliberal” (HARVEY, 2013, p. 123).
É exatamente a situação que vivemos hoje. Precisamente neste cenário global é
que podemos apreender o fenômeno da escravidão contemporânea no Brasil e em Mato
Grosso, em sua dimensão local.

2.2. Os dados sobre trabalho escravo em Mato Grosso entre o fim do século XX e o início
do século XXI

A hipótese central desta pesquisa é de que as formas contemporâneas de


escravizar, em tempos de liberdade formal, mais-valia e biopolítica, consistem muito mais
num controle sobre as forças vitais do indivíduo (e não na violência física direta) atrelada à
coerção econômica e às condições de trabalho e vida a que são submetidos os trabalhadores,
do que no mero cerceamento de seu deslocamento geográfico.
Meu objetivo foi buscar uma compreensão mais aprofundada das práticas
coercitivas de controle da força de trabalho empregadas no período de 1995 a 2013 em Mato
Grosso, amparando-me na pesquisa documental e na história oral.
Um dos pilares da pesquisa é a análise dos Relatórios de Fiscalização elaborados
pela auditoria fiscal do trabalho acerca dos casos de trabalho escravo constatados pelo
Ministério do Trabalho no estado de Mato Grosso no período de 1995 a 2013.
As entrevistas realizadas, que também abordaram as percepções de diferentes
agentes sobre a escravidão contemporânea e a discussão de suas próprias vivências, são o fio
condutor da pesquisa como um todo. Com base nas facetas do trabalho escravo reveladas pelo
campo, a análise quantitativa dos relatórios de fiscalização pôde ser direcionada em termos de
codificação, processamento dos dados e, principalmente, dos horizontes e problemas de
pesquisa. A história oral muitas vezes forneceu as pistas para respostas e renovadas perguntas.
131

Foram narrativas, experiências e olhares que nos auxiliaram no enfrentamento dos pontos
cegos tão recorrentes da análise documental96.
Neste tópico, exponho os resultados de minhas pesquisas quantitativa e
qualitativa.
O destino final deste capítulo é construir um entendimento sobre as
transformações nos tipos de coerção infligidas aos trabalhadores e sobre a relação entre
formas de violência, atentados à vida humana e a matriz produtiva da agropecuária mato-
grossense inscrita na nova ordem econômica global. Para tanto, iniciaremos pela análise das
variáveis referentes à caracterização do trabalho escravo nos casos constatados pela
fiscalização em Mato Grosso entre 1995 e 2013.
Em termos gerais, a análise alcançou um total de 180 casos de trabalho escravo,
envolvendo 6904 vítimas. Dentre os 180 casos de trabalho escravo constatados pela
fiscalização e incluídos na pesquisa97, 83 ocorreram na pecuária, 12 no setor da cana de
açúcar e 21 na cultura da soja. No que diz respeito ao tipo de atividade desempenhada pelos
trabalhadores encontrados em “condição análoga a de escravo”, contatou-se o predomínio da
atividade de limpeza de terreno rural, conforme se vê no gráfico98 abaixo.

96
A interpretação da história documental animada pela história oral, nos resultados da presente pesquisa, buscou
desafiar limitações da pesquisa sociológica e dos próprios códigos do sistema de justiça em que os discursos
presentes nos relatórios foram produzidos. Neste sentido, compartilho da crítica expressa por José de Souza
Martins na introdução do capítulo do livro Fronteira sobre a criança (filhos de famílias de agricultores) como
testemunha: "As Ciências Sociais têm, num certo sentido, uma concepção definida de quais são as fontes
aceitáveis e respeitáveis do dado sociológico. Do mesmo modo, entre a história oral e a história documental,
dificilmente um historiador considera a primeira tão importante e segura quanto a segunda. Entre o formulário
pré-codificado e o depoimento autobiográfico espontâneo, o sociólogo e o cientista político tenderão a considerar
o primeiro fonte mais objetiva que o segundo" (MARTINS, 2009, p. 102).
97
Importante ressaltar que os 180 casos analisados não coincidem com a totalidade dos casos exibidos nos dados
oficiais, uma vez que nos dados originais obtidos da DETRAE havia relatórios que continham dados de mais de
um empregador (que aqui consideramos separadamente), bem como outros relatórios que não apresentavam as
informações selecionadas para a pesquisa e que foram, portanto, descartados no momento de criação da base de
dados.
98
Muitos casos de trabalho escravo compreenderam vítimas em diferentes funções, portanto, o gráfico exibido
mostra em quantos casos tais funções figuravam entre as vítimas identificadas. Ainda sobre esta variável, notou-
se que as modalidades mais frequentes de “limpeza de terreno rural” foram: roço (35%), catação de raiz
(16,11%) e capina do algodão (4,44%).
132

FUNÇÕES DESEMPENHADAS PELOS TRABALHADORES EM


SITUAÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVOS

DERRUBADA DE ÁRVORES 17,22%


LIMPEZA DE TERRENO RURAL 56,11%
ATIVIDADES DE PLANTIO 10,00%
EXTRAÇÃO DE LÁTEX 2,22%
OPERAÇÃO DE MÁQUINA 3,89%
CONSTRUÇÃO CIVIL 7,22%
MANEJO DE GADO 6,67%
COZINHA 15,56%
GARIMPO 2,22%
CARREGAMENTO 2,22%
PRODUÇÃO DE CARVÃO 3,33%
CORTE DE CANA 6,11%
AGROTÓXICO 13,33%
CERCAS 18,89%

Gráfico 3 – Funções desempenhadas pelos trabalhadores resgatados de trabalho escravo – MT (1995-2013)


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)

Feita essa apresentação geral, passamos para o resultado obtido para cada variável
analisada.

2.2.1. Elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo e os dados das


fiscalizações em Mato Grosso

Para iniciarmos a discussão sobre a morfologia do trabalho escravo, é preciso


retomar, em nosso marco legal, os elementos que o definem e caracterizam.
No ordenamento jurídico brasileiro atual, a caracterização e definição do que se
convenciona chamar de “trabalho escravo” reside no art. 149 do Código Penal, que a partir de
12 de dezembro de 2003 vigora com a seguinte redação:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer


submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio,
sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à


violência.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:


133

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,


com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de


documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho.

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

A atual redação do citado dispositivo define o crime num tipo fechado, isto é,
indicando expressamente os seus modos de execução. Neste aspecto, representou uma grande
alteração em relação ao texto original, que defina de forma sintética o crime de “reduzir
alguém a condição análoga à de escravo”, sem especificar sua caracterização, que era deixada
apenas para a tarefa interpretativa.
Assim, hoje são sete os modos de execução do ilícito. Quatro deles, que Brito
Filho (2014a, p. 54) chama de “modos típicos”, são os previstos no caput do art. 149: 1)
trabalho forçado; 2) trabalho em jornada exaustiva; 3) trabalho em condição degradante; 4)
trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída com empregador ou
preposto (referida muitas vezes simplesmente como “servidão por dívida”). Os outros três
modos de execução da conduta criminosa estão previstos no parágrafo 2º, sendo considerados
como hipóteses de “trabalho escravo por equiparação”. São eles: 1) retenção no local de
trabalho através de cerceamento de uso de meios de transporte; 2) retenção no local de
trabalho através de vigilância ostensiva; 3) retenção no ambiente de trabalho através da
retenção de documentos ou objetos pessoais.
As condutas que caracterizam o trabalho escravo passaram a ser definidas pela lei
de forma exaustiva. Portanto, “não é qualquer ato, então, que poderá configurar o crime de
redução a condição análoga à de escravo, mas somente os que possam ser enquadrados nos
modos descritos na norma penal incriminadora”99 (BRITO FILHO, 2014a, p. 55).

99
O mesmo autor faz um balanço sobre a alteração legislativa de 2003 que “limitou” a caracterização do trabalho
escravo às hipóteses expressamente previstas no Código Penal: “[...] creio que essa limitação, que de fato existe
agora, é o preço a pagar por uma inovação, que veio com a lei que alterou o art. 149 do Código Penal, e que foi
importante, pois definiu de forma concreta os modos de execução, ou hipóteses em que ocorre o trabalho
escravo, permitindo o combate efetivo a uma prática antiga, mas que, por conta da imprecisão do dispositivo na
versão anterior, não era convenientemente reprimida” (BRITO FILHO, 2014a, p. 55).
134

Ainda assim, a definição do que seja “forçado”, “exaustivo”, “degradante”,


“restrição da locomoção” ou mesmo a identificação do que comprove a “finalidade de reter o
trabalhador no local de trabalho” são questões passíveis de divergências na doutrina jurídica.
A análise quantitativa da presença dos elementos caracterizadores nos relatórios
de fiscalização foi uma tarefa que exigiu um grande esforço de codificação, cujo resultado foi
fruto de inúmeras revisões em toda a base de dados.
Um dos desafios da etapa quantitativa desta pesquisa foi encontrar uma
metodologia de análise que pudesse dar conta, ao mesmo tempo, dos fatos reportados nos
relatórios e do modo como foram interpretados por seus autores.
Os relatórios de inspeção costumam apresentar amplas e detalhadas descrições
sobre as condições de trabalho encontradas (incluindo o relato de todas as infrações
trabalhistas e de normas de saúde e segurança do trabalho constatadas pela equipe), além de
registros fotográficos, cópias dos autos de infração lavrados, dos depoimentos colhidos e
outros anexos. Os relatórios não obedecem a um padrão obrigatório, porém, a praxe é que, na
parte final, a título de conclusão, a equipe se posicione quanto à constatação ou não de
situação de trabalho escravo e à rescisão indireta dos contratos de trabalho em questão.
Portanto, além da leitura e análise qualitativa de todos os relatórios, para fins da
construção das variáveis referentes a “caracterização do trabalho escravo” da base de dados,
considerei o conteúdo das conclusões dos relatórios, combinado com a fundamentação
utilizada no auto de infração que centralizou a descrição do trabalho escravo (elementos
fáticos e fundamentos jurídicos endossados pela equipe).
Paralelamente, coletei dados referentes a diversas situações fáticas objetivas, que
foram também consideradas na etapa de medição dos valores, desde que prescindissem de
informações e interpretações da equipe de inspeção.
Por exemplo: um relatório que constate trabalho escravo, embasando sua
conclusão nas condições degradantes e na servidão por dívida e não na jornada exaustiva,
porém, em seu próprio conteúdo, traz informações sobre jornadas habituais de 11 horas.
Nestes casos, o elemento “jornada exaustiva” foi também considerado em nossa análise, com
base na proibição legal de extrapolação injustificada do limite de 2 horas extraordinárias por
dia, seguindo a doutrina majoritária. Por outro lado, como a avaliação sobre a intensidade do
trabalho não tem como ser feita pela pesquisadora sem informações suplementares, não foi
possível aferir eventual exaustividade de uma jornada de 9 horas em atividade penosa e
intensa, de modo que as jornadas exaustivas de duração de até 10 horas só foram valoradas
como “exaustivas” caso o próprio relatório já apresentasse esta constatação.
135

Inicialmente, sobre este tema, criei 7 variáveis na base de dados, contemplando


cada um dos modos de execução do tipo penal. Entretanto, a análise se concentrará nos 4
“modos típicos”: “trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “trabalho em condições
degradantes” e “servidão por dívida”.
As informações sobre as modalidades de trabalho escravo por equiparação, de
fato, revelaram-se pouco significativas. Por consistirem em elementos secundários do debate
conceitual sobre escravidão contemporânea e muitas vezes estarem imbricados e contidos nas
práticas enquadradas nas demais condutas, pude perceber que a aferição dos mesmos nas
fiscalizações não é uma constante. Além disso, ainda que sejam constatados indícios das
condutas do parágrafo 2º do art. 149, muitas vezes as provas coligidas durante a ação fiscal
não são conclusivas sobre o dolo específico (exigido para estas hipóteses), isto é, se o intuito
da retenção de documentos, vigilância e não oferecimento de transporte era, inequivocamente,
reter os trabalhadores no ambiente de trabalho. Assim, como se nota na tabela abaixo, a
frequência destas últimas variáveis na base é baixa e apresentou muitos dados inconclusivos,
merecendo ser desconsiderada.

PRESENÇA DOS ELEMENTOS CARACTERIZADORES NOS CASOS CONSTATADOS DE TRABALHO ESCRAVO PELA
FISCALIZAÇÃO EM MATO GROSSO (1995-2013)

MODO DE EXECUÇÃO TOTAL PERCENTUAL


CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO 178 98,89%
RESTRINGIR LOCOMOÇÃO DOS TRABALHADORES ATRAVÉS DE DÍVIDA 63 35,00%
TRABALHOS FORÇADOS 61 33,89%
JORNADA EXAUSTIVA 51 28,33%
RESTRIÇÃO DE TRANSPORTE PARA RETER TRABALHADORES 29 16,11%
VIGILÂNCIA OSTENSIVA PARA RETER TRABALHADORES 21 11,67%
APODERAR-SE DE DOCUMENTOS OU OBJETOS PESSOAIS PARA RETER TRABALHADORES 9 5,00%

Tabela 3 – Presença dos elementos caracterizadores nos casos de trabalho escravo em MT


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)

A questão da vigilância armada, entretanto, por constituir, muitas vezes,


componente caracterizador do próprio trabalho forçado e, além disso, auxiliar na compreensão
das práticas de violência presentes nas relações de trabalho escravo, foi analisada em
separado. Neste caso, foi criada uma nova variável, que desconsiderou a ocorrência ou não do
dolo eventual (que, por não ser aventado nos relatórios, traria um viés para os nossos
resultados), como será exposto no item 2.2.1.3.1.
136

O primeiro ponto a ser ressaltado é que, apesar de bastar a ocorrência de uma das
hipóteses do art. 149 para restar configurado o trabalho escravo, ele muitas vezes ocorre
através da combinação de dois ou mais elementos.
Além disso, as modalidades de trabalho escravo identificadas nos relatórios
analisados revelaram a presença contundente das “condições degradantes”. Mostrou, ainda,
em termos de frequência na base como um todo (desconsiderando-se a distribuição temporal,
que será abordada mais adiante), uma participação semelhante entre os elementos de
“trabalhos forçados”, “jornada exaustiva” e “restrição de locomoção através de dívidas”.

FREQUÊNCIA DAS MODALIDADES DE TRABALHO ESCRAVO MT


(1995-2013)

JORNADA EXAUSTIVA 28,33%

TRABALHOS FORÇADOS 33,89%

RESTRINGIR LOCOMOÇÃO DOS


35,00%
TRABALHADORES ATRAVÉS DE DÍVIDA

CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO 98,89%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Tabela 4 – Frequência das modalidades de trabalho escravo nos casos constatados pela fiscalização – MT (1995-
2013)
Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)

Agora que já temos uma ideia geral sobre a presença de cada uma dessas
modalidades de trabalho escravo no universo da base de dados, será necessário examinar
melhor os conceitos, práticas e interpretações por trás de cada um desses termos.
Nos próximos subitens, portanto, passo a discorrer brevemente sobre cada uma
das principais modalidades de trabalho escravo, apresentando os componentes considerados
para sua aferição na base de dados, bem como as nuances mais significativas que a análise
qualitativa dos relatórios e as entrevistas revelaram sobre suas práticas e mecanismos.
137

2.2.1.1. O trabalho em condições degradantes

O trabalho em condições degradantes pode ser definido, em linhas gerais, como


“aquele realizado em condições subumanas de labor, ofensivas ao substrato mínimo dos
Direitos Humanos: a dignidade da pessoa humana” (MIRAGLIA, 2011, p. 145).
Independentemente das variações que sempre apresentam as definições no campo
de disputas da doutrina jurídica, Miraglia (2011, p. 140) aponta que um ponto de
convergência entre os juristas seria a noção de que, diferentemente do trabalho forçado, o
trabalho degradante não caracterizaria uma ofensa ao direito de liberdade do trabalhador.
Quanto ao substrato mínimo de condições laborais que atendam à dignidade humana, diversos
autores fazem referência ao conceito de “trabalho digno”, a um patamar mínimo necessário a
uma “existência digna”.
Neste sentido, com algumas variações, os juristas brasileiros têm entendido que as
condições degradantes se apresentam quando há violação de condições básicas de trabalho,
como limitação à alimentação, moradia, higiene e segurança; quando se verifica um trabalho
em condições humilhantes, que não respeita o trabalhador como ser humano, que o expõe a
riscos de saúde comprometendo sua integridade física, que não respeite uma jornada razoável,
negando ao trabalhador o descanso e o convívio social (BRITO FILHO, 2014a, p. 78-79).
Na jurisprudência brasileira, , a pesquisa de Lima revelou que, ainda antes da
redação atual do art. 149 do Código Penal, houve decisão judicial pioneira condenando uma
empresa agropecuária a pagar danos morais coletivos pela prática de trabalho em condições
degradantes, consubstanciada no exercício de atividade profissional em condições
consideradas sub-humanas e extremamente insalubres, na ausência de instalações higiênicas,
equipamentos de proteção e de água potável100.
A análise realizada pela Procuradora do Trabalho Elaine Noronha Nassif (2014)
de julgamentos dos Tribunais do Trabalho brasileiros sobre o tema do "trabalho degradante"
ocorridos nos últimos dez anos concluiu, por sua vez, que a configuração de "trabalho
degradante" costuma ser fundamentada pelos juízes sobre "o sentimento de repulsa social
decorrente de situação de indignidade relatada nas ações judiciais propostas". Ou seja, é a
violação do princípio da dignidade humana, "de um mínimo essencial de civilidade para

100
O juiz concluiu que a “atitude da ré abala o sentimento de dignidade, [revela] falta de apreço e consideração,
tendo reflexos na coletividade, pois as normas que regem a matéria envolvendo a saúde, segurança, higiene e
meio ambiente do trabalho e do trabalhador são de ordem pública” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região
– 1ª Turma, Processo n. 5.309/2002, Rel. Juiz Convocado Luis José de Jesus Ribeiro, apud Lima, 2011, p. 204).
138

admissão da prestação de serviços" que diferenciaria o "trabalho análogo ao de escravo" do


mero descumprimento das normas de saúde e segurança no ambiente de trabalho.
Para fins da construção e análise de nossa base de dados, consideramos presente o
elemento “condições degradantes de trabalho” nos casos definidos em nosso Livro de
Códigos:

Marcar SIM se for mencionada condição degradante (ou “degradância”).


Ainda que não citado o termo “degradante” (às vezes é utilizado termos
como “precaríssima”, “humilhante”, “indigna”), também marcar “SIM” nos
casos do auto de infração que se fundamenta nas violações de condições
básicas de saúde e segurança do trabalho para fazer o enquadramento dos
fatos como trabalho análogo ao de escravo.

A questão das “condições degradantes de trabalho” ganhou força com a alteração


legislativa de 2003, determinante para que o crime de submeter alguém a trabalho análogo a
de escravo passasse definitivamente a prescindir de elementos de violência, coerção direta,
cerceamento físico e geográfico da liberdade de ir e vir, transitando da lógica da liberdade
para a lógica da dignidade.
Entretanto, a análise dos relatórios de inspeção de 1995 a 2013 evidencia que a
“condição degradante de trabalho” foi, desde o início da construção das ferramentas de
combate ao trabalho escravo (e não apenas a partir de 2003), um dos pontos centrais da
caracterização da escravidão contemporânea no Brasil.
As narrativas dos auditores fiscais e agentes de movimentos sociais também
revelam que as temáticas do “trabalho degradante” e do “trabalho escravo” aparecem uma
ligada à outra nas denúncias anteriores à década de 1990, bem como nas primeiras ações
fiscais realizadas pelo Ministério do Trabalho. Porém, entre a década de 1970 e a década de
2000, o lugar da categoria “trabalho degradante” como instrumental jurídico de luta por
direitos e por dignidade ainda permanecia incerto, mantendo-se, portanto, como alvo de
proposições e disputas.
Minha pesquisa junto à Comissão Pastoral da Terra mostrou que a própria prática
institucional da CPT incorporou tais diferenciações em seu procedimento de coleta e
armazenamento de denúncias, que eram inicialmente subdivididas em três tipos: 1) denúncias
que eram inquestionavelmente “trabalho escravo”; 2) denúncias de situações limítrofes, que
poderiam ser consideradas “trabalho escravo” se configurada a degradância; 3) denúncias de
irregularidades trabalhistas que não eram consideradas “trabalho escravo”. Essa tipologia foi
sendo modificada e até parcialmente abandonada com o tempo, a partir do momento em que a
139

legislação detalhou o conceito de trabalho análogo a de escravo em 2003 e com o declínio do


número de denúncias trabalhistas recebidas pela CPT frente ao paulatino fortalecimento da
atuação e credibilidade junto aos trabalhadores de instituições como o Ministério do Trabalho
e o Ministério Público do Trabalho, que hoje concentram a maior parte das denúncias de
violações trabalhistas.
Ainda assim, a questão do trabalho degradante permanece candente no debate
sobre o trabalho escravo no Brasil101.
Um dos argumentos mais comuns nas defesas de empregadores que compõem a
“Lista suja” e de parlamentares que defendem a retirada das “condições degradantes de
trabalho” do tipo penal que conceitua o “trabalho análogo a de escravo” é de que a
fiscalização do trabalho estaria sendo arbitrária quando considera que o empregador que não
oferece condições mínimas de trabalho, alojamento, saúde, segurança, higiene aos
trabalhadores os estão submetendo a trabalho escravo. As diversas entidades que combatem
esse tipo de exploração utilizam o argumento inverso: de que não oferecer condições mínimas
que possam garantir um ambiente de trabalho decente aos trabalhadores avilta a dignidade
humana.
Com a leitura dos relatórios vim a entender as condições degradantes de outra
forma: submeter trabalhadores a condições aviltantes degrada a dignidade do outro e inclusive
o expõe a riscos de acidentes, doenças e inclusive de morte. Em suma, é reduzir o outro a
quase nada, a algo que, independentemente do status jurídico de coisa ou de sujeito, não passa
de uma vida que vale menos ou que não vale nada, pois não vale os recursos necessários para
sustentá-la.

101
Essa problemática também aparece no debate atual de autores estrangeiros acerca dos elementos definidores
do trabalho compulsório. Para Phillips, condições de trabalho precárias não podem ser consideradas formas de
escravização per se, porém, “elas estão intrinsecamente e necessariamente presentes nas relações de trabalho
não-livre e são, pela contribuição que prestam para a desumanização e degradação do trabalhador, importantes
mecanismos através dos quais a escravidão é imposta e mantida” (PHILLIPS, 2013, p. 179, tradução nossa). Já
Craig et al. mencionam a importância de se poder diferenciar escravidão de outras situações de trabalho,
afirmando que a escravidão “precisa ser distinguida da situação de pessoas que são forçadas a realizar trabalhos
perigosos ou difíceis por circunstâncias econômicas ou outras forças impessoais” (CRAIG et al., 2007, p. 13,
apud DAVIDSON, 2010, p. 250, tradução nossa). Este último posicionamento é questionado por Davidson que,
citando exemplos de escravidão contemporânea que não envolvem nem violência nem ausência de remuneração,
pontua: “Ainda que concordássemos que essa fosse uma distinção importante a ser feita, será que os ingredientes
essenciais da ‘escravidão’ identificados por ativistas antiescravidão realmente nos permitiram fazê-la?”
(DAVIDSON, 2010, p. 250, tradução nossa). Neste debate, a jurisprudência e doutrina jurídica brasileiras
emergem como importantes objetos de estudo, uma vez que apresentam inovadoras argumentações jurídicas
sobre situações fáticas documentadas nos Relatórios de Inspeção do Trabalho, visando elucidar a relação entre
trabalho escravo, de um lado, e desumanização, degradação e exaustão do trabalhador, de outro.
140

A fala de Daniela, uma das auditoras fiscais trabalho entrevistadas é emblemática:


“Eles [trabalhadores escravizados] vivem em total exposição. Os animais que eles tratam têm
um tratamento digno e eles não”.
No relatório de uma fiscalização de combate ao trabalho escravo realizada em
2001, a equipe de auditores fez a seguinte observação:

Nenhuma sombra havia para aliviar o calor daqueles homens, pois ao redor
do local onde trabalhavam só havia devastação (foto fl. 49). Situação diversa
ocorria com o calcário e o fertilizante, que tinham a proteção garantida pelo
produtor contra as intempéries (Relatório de Fiscalização 2001, cód. I, p. 6).

A mesma equipe ainda observou: “O que nos surpreendeu foi a disparidade entre
o desenvolvimento da empresa e a situação animalesca na qual foram encontrados os
trabalhadores (particularmente os maranhenses), numa área oculta aos visitantes, em meio à
mata” (Relatório de Fiscalização 2001, cód I, p. 3).
Portanto, em contraste com a minha hipótese inicial, de que as condições
degradantes de trabalho passassem a ganhar preponderância na caracterização do trabalho
escravo contemporâneo na medida do declínio da presença de trabalho forçado, o que
observei foi o contrário: a ideia de “trabalho em condição degradante” está presente desde a
origem da luta contra a escravização contemporânea.
O testemunho de Dom Pedro Casaldáliga em sua Carta Pastoral de 1971 é mais do
que eloquente:

[O peão] vive, sem sentir que está em condições infra-humanas. ‘Peão’ já


ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo
pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmos
consideram o peão como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os
‘desbravadores’. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão
não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada (1971, p.
20).

Alguns trechos extraídos dos Relatórios de Inspeção analisados ilustram as


situações de trabalho degradante comumente encontradas. Num relatório de 2009, lê-se o
seguinte depoimento de um dos trabalhadores:

[...] QUE está vivendo em um barraco de lona, sem proteção lateral e com
piso de terra batida; QUE faz as necessidades fisiológicas no meio do mato;
QUE bebe agua proveniente de um carrego; QUE a agua tem gosto de barro;
QUE já viu várias cobras no meio do mato; QUE reza os dias para não ser
141

picado ou mordido por nenhum animal; QUE o barraco a muito abafado;


QUE se sente muito cansado (Relatório de Inspeção 2009, cód AS, p. 8).

Um interessante trecho de outro relatório também se mostra revelador não só da


caracterização das “condições degradantes de trabalho”, como também de sua conexão ao
princípio da dignidade humana e sobreposição a outras práticas características da escravização
contemporânea:
Há, sem dúvidas, um claro cerceamento da liberdade destes trabalhadores
seringueiros em relação a sua liberdade de ir e vir, ou, ao menos, em relação
a sua liberdade contratual. Estes seringueiros, ou por uma pressão
psicológica, ou moral, ou por simples medo de sofrerem uma penalização
maior, não poderiam, uma vez iniciado o ciclo vicioso de endividamento,
rescindir, por conta própria, os seus contratos de trabalho e dar outro destino
às suas vidas se não tinham, sequer, dinheiro para pagarem as suas dívidas,
quanto mais para fazerem as suas mudanças e se retirarem com as suas
famílias de dentro da fazenda. Restava-lhes, enfim, acreditar que, um dia,
conseguiriam sair daquele ciclo vicioso e dar um destino melhor pra si e aos
seus familiares. Se já não bastasse a redução da dignidade destes
trabalhadores pela servidão por dívida, estes ainda trabalhavam em
condições degradantes, sem as mínimas proteções coletivas de saúde e
segurança, sem qualquer equipamento de proteção individual para extraírem
o látex das seringueiras, sem banheiros nas frentes de trabalho, sem água em
condições higiênicas e fresca, aplicando agrotóxicos sem luvas, sem
máscaras, sem vestimentas adequadas, sem treinamento para esta atividade
de grave e iminente risco, ou seja, trabalhavam expostos a todos os riscos e
sem qualquer cuidado que lhes fizessem lembrar a sua condição de seres
humanos, de seres detentores de direitos e garantias mínimas fundamentais.
[...] Os seringueiros da Fazenda [...] eram, enfim, tratados, verdadeiramente,
como coisas, com total descaso por parte do empregador que, neles, só
visualizava um objetivo: a possibilidade de maximizar os seus lucros em
detrimento da liberdade, da saúde, da honra, da privacidade, da intimidade,
da dignidade, em suma, da própria vida destes trabalhadores (Relatório de
Inspeção 2009, cód. BW, p. 39).

Em outro relatório, encontramos a seguinte passagem, que mostra a distinção


efetuada nas fiscalizações entre condições degradantes e outras irregularidades sanáveis no
ambiente de trabalho:

Além dos 03 (três) trabalhadores encontrados submetidos à condição


degradante, responsáveis pelo “aproveitamento da madeira”, conforme já
relatado, constatou-se a existência de mais 05 (cinco) obreiros laborando na
propriedade, sendo que 04 (quatro) destes seriam os responsáveis pela
limpeza do pasto e 1 (um) pela operação de trator. Apurou-se que estes
trabalhadores, foram contratados diretamente pelo Sr. Amauri, sem registros,
anotação na CTPS, e sem exames admissionais de saúde, e que estavam
acomodados num barracão de madeira próximo à sede da fazenda. Para estes
obreiros em especial a equipe de fiscalização desconsiderou a condição de
degradância, por entender que os mesmos estavam submetidos a
142

irregularidades trabalhistas sanáveis, ou seja, passíveis de regularização.


Para tanto impôs-se ao proprietário à interdição do barracão onde os mesmos
encontravam-se alojados, para readequação conforme prescrições de norma
regulamentadora (NR-31), bem como a regularização da contratação dos
trabalhadores conforme prescreve a legislação trabalhista vigente. Para
possibilitar tais regularizações foi concedido prazo ao empregador (Relatório
de Inspeção 2009, cód. BQ, p. 11).

A partir dos subsídios da análise qualitativa dos documentos, construí algumas


variáveis a partir de elementos mais fortemente atrelados à materialização do aspecto
degradante nas condições físicas de trabalho. São elas: a) fornecimento de água potável; b)
alojamentos e moradias; c) instalações sanitárias; d) locais e condições para preparo e
consumo de alimentos. Importante apontar que estes itens se referem às instalações oferecidas
especificamente aos trabalhadores que foram considerados “em situação de trabalho escravo”
pelo GEFM, mesmo porque, como veremos no próximo capítulo, uma das facetas perversas
do trabalho escravo é justamente a coexistência, num mesmo local de trabalho, de grupos de
trabalhadores recebendo, do mesmo empregador, condições totalmente contrastantes de
saúde, segurança, higiene, formalidade dos vínculos laborais, jornada, pagamento de salários
etc..
Feito esse esclarecimento, apresento, a seguir, os resultados obtidos para cada
variável.

2.2.1.1.1. Água potável

Os dados coletados dos relatórios de fiscalização mostram que, no universo de


180 casos de trabalho escravo constatado entre 1995 e 2013, apenas 6 apresentavam
fornecimento de água potável, fresca, em condições adequadas e em quantidade suficiente
para consumo dos trabalhadores. Em outros 5 casos, verificou-se fornecimento de água
potável em quantidade insuficiente ou não fresca. Houve também 5 casos de fornecimento de
água potável em recipientes irregulares (mas não tóxicos).
Na maioria esmagadora dos casos, os trabalhadores eram obrigados a beber água
não potável. Tais situações somam 155 ocorrências na base, dentre as quais foram
identificados 7 casos em que a situação era agravada pelo consumo da água não potável em
recipiente aproveitado de agrotóxicos.
143

Em 2 casos sequer havia fornecimento de água aos obreiros, cuja única alternativa
era providenciar sua própria água, levá-la de casa ou pedir água na vizinhança. E, por fim, em
7 relatórios a informação sobre condição da água não pôde ser identificada com precisão.

FORNECIMENTO DE ÁGUA PARA CONSUMO DOS TRABALHADORES


não havia água

3,89%
água não potável consumida
1,11% 3,33% em embalagem de produto
4,44%
tóxico
5,56%
água potável, fresca, em
condições adequadas e
quantidade suficiente
outros
81,67%

água potável insuficiente,


não fresca ou em recipientes
irregulares (não tóxicos)
água não potável consumida
em recipiente não tóxico

Gráfico 4 – Fornecimento de água para consumo dos trabalhadores


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)

2.2.1.1.2. Alojamento e moradia

Em matéria de alojamento e moradia, chamam atenção as condições extremas que


têm caracterizado a escravidão contemporânea. Dos 180 casos aqui analisados, nenhum
apresentava alojamento totalmente regular e apenas 15 contavam com alojamento com
estrutura adequada, ainda que com irregularidades (com paredes, piso e cobertura inteiriças
que protegessem os trabalhadores contra as intempéries). Em 35 casos, foram relatadas e
registradas (através de fotos) pelo GEFM condições precaríssimas de alojamento, que não
protegiam trabalhadores das intempéries, não ofereciam o mínimo de conforto, higiene,
privacidade, segurança e condições de repouso (a exemplo de galpões sem paredes, casebres
feitos com tábuas de madeira sem vedação, estruturas improvisadas com tapumes etc.). Por
fim, foram identificados 126 casos em que não foi oferecido qualquer alojamento,
144

permanecendo os trabalhadores em barracos improvisados com tocos de madeira, lona


plástica, folhas de árvores, em total insegurança. Houve também um caso de não
fornecimento de alojamentos aos trabalhadores102, que viviam em casas fora do ambiente de
trabalho. Além disso, em 5 relatórios a informação exata sobre as condições de alojamento
não puderam ser identificadas.

SITUAÇÃO DE ALOJAMENTO E MORADIA

ESTRUTURA PROTEGE CONTRA


2,22% 8,33% AS INTEMPÉRIES, MAS
APRESENTA IRREGULARIDADES

19,44%
ESTRUTURA NÃO PROTEGE
CONTRA INTEMPÉRIES

70,00%
BARRACOS IMPROVISADOS
COM LONA, GALHOS, FOLHAS,
POR INEXISTÊNCIA DE
ALOJAMENTO
OUTROS

Gráfico 5 – Situação de alojamento e moradia


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho (elaborado pela autora)

2.2.1.1.3. Instalações sanitárias

Quanto às instalações sanitárias, o resultado da análise dos dados obteve os


seguintes resultados:

102
A disponibilização de alojamento regular era, no caso, obrigatória, uma vez que se tratava de trabalhadores
vindos de outras unidades da federação.
145

INSTALAÇÕES SANITÁRIAS

4,44%
Instalações sanitárias precárias
14,44% com violações de normas

Instalações sanitárias
inexistentes (inclui-se
improviso em área externa
81,11% devassada sem encanamento)
Sem informação precisa

Gráfico 6 – Instalações sanitárias


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Como se pode ver, a grande maioria (81%) dos casos de trabalho escravo
constatados em Mato Grosso pelo GEFM (1995 – 2013) apresentava um cenário de ausência
de instalações sanitárias. Em número absolutos, foram identificados 146 casos de inexistência
de instalações sanitárias para os trabalhadores em situação de trabalho escravo; 26 casos em
que eram oferecidas instalações sanitárias irregulares (com violações das normas) e nenhum
caso de regularidade das instalações sanitárias.

2.2.1.1.4. Locais para preparo e consumo de alimentos

Os locais para preparo e consumo de alimentos também têm forte presença nos
relatórios. Os dados coletados indicaram que em 154 dos 180 casos, não foram fornecidas
instalações nem para preparo nem para consumo de alimentos. Em 12 casos, constatou-se a
inexistência de instalações para consumo dos alimentos, porém, havia instalações para seu
preparo (neste grupo incluem-se os casos em que os alimentos eram preparados por
funcionário(a) na cozinha do estabelecimento ou de algum fornecedor externo). Apenas 4
casos registraram a existência de instalações (ainda sim apresentando algumas
irregularidades) tanto para preparo quanto para consumo dos alimentos pelos trabalhadores.
Finalmente, não houve nenhum caso de instalações regulares.
146

ÁREAS PARA E PREPARO E CONSUMO DE ALIMENTOS

Inexistência de instalações para


preparo e consumo de
2% 0% alimentos
5%
7% Inexistência de instalações para
consumo de alimentos, mas
havia local para preparo

Havia instalações para preparo


86% e consumo de alimentos mas
apresentam algumas
irregularidades
Trabalhadores imigrantes não
receberam alojamento e
alugavam casa

Gráfico 7 – Áreas para preparo e consumo de alimentos


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

2.2.1.2. A servidão por dívida

A servidão por dívida talvez seja a modalidade de trabalho escravo mais


profundamente debatida no contexto brasileiro. Trata-se de uma prática já presente na
Amazônia durante o Ciclo da Borracha e, segundo vários autores, também em períodos
anteriores, tanto antes como depois de abolida a escravidão (BRITO FILHO, 2014a;
ESTERCI, 2008, FIGUEIRA; FREITAS, 2011).
Brito Filho (2014a) define essa modalidade de trabalho escravo em nosso direito
atual da seguinte forma: “retirada do direito do trabalhador de cessar o trabalho e deixar o
local em que o serviço é prestado, somente pelo fato de ter contraído dívida com o tomador
dos serviços” ou intermediários, acrescentando que tal dívida pode ou não ser artificialmente
criada.
A criação de “dívida artificial” ocorre tanto pela cobrança de valores muito acima
do preço usual por produtos consumidos pelos trabalhadores, quanto pela transferência de
parte do risco da atividade do tomador para os trabalhadores (BRITO FILHO, 2014a, p. 91),
que são obrigados a custear as próprias ferramentas de trabalho, equipamentos de proteção
147

individual, material para construção de barraco, colchões, transporte de suas cidades de


origem até o local de prestação dos serviços etc.
Muitas vezes, os trabalhadores arregimentados em outros estados já estão
endividados quando iniciam suas atividades laborais, sendo informados de que os custos do
transporte (irregular) e da alimentação consumida na viagem serão (ilegalmente) descontados
de seus salários. Outras vezes, além do transporte, também lhes são ilegalmente cobrados
valores referentes à “intermediação de mão de obra” e a eventuais adiantamentos que são
feitos para custear alimentos deixados para sua família antes de sair de casa. Em outros casos
de aliciamento de trabalhadores em pensões já mais próximas do local de trabalho, há o
endividamento prévio quando o aliciador quita a dívida do trabalhador com a pensão, para
depois descontar dos salários.
Como se percebe, as nuances da servidão por dívida são vastíssimas. Aqui, a sua
aferição nos relatórios de inspeção seguiu os seguintes parâmetros:

Marcar SIM se houver menção expressa à servidão por dívida ou se for


constatado processo de endividamento (prévio ou durante relação de
trabalho) através de descontos ilegais e/ou “sistema de barracão” (induzir ou
coagir trabalhadores a comprarem mercadorias exclusivamente no armazém
mantido pelo empregador, intermediário ou preposto, em face da
impossibilidade geográfica ou financeira de adquirirem em outro local).

A complexidade que pode ser assumida pela servidão por dívida e seus inúmeros
elementos de dominação e controle sobre os trabalhadores pode ser constatada neste
interessante texto divulgado pela Comissão Pastoral da Terra, no Caderno Conflitos no
Campo Brasil de 1995:

O elemento essencial e central [da caracterização de trabalho escravo] é a


sujeição do trabalhador. Esta sujeição tanto pode ser física como psicológica.
Meios de atingir a sujeição: a dívida crescente e impagável tem sido um dos
meios mais utilizados para tornar o trabalhador cativo. Ela começa com a
contratação pelo ‘gato’, que paga a dívida do trabalhador na pensão e deixa
um adiantamento para a sua família. A dívida aumenta durante a travessia
até o local de trabalho uma vez que o ‘gato’ paga a condução e a alimentação
durante os dias de viagem. Ao chegar, o peão é obrigado a comprar seus
instrumentos de trabalho. No estabelecimento, quase sempre, vigora o
‘sistema de barracão’: obrigatoriamente o peão tem que comprar alimentos e
objetos no armazém da empresa, onde vigoram preços exorbitantes. Não
recebe em espécie, mas em vales a serem descontados no armazém. A
quebra da palavra com referência ao valor da remuneração e das condições
de trabalho combinados no ato da contratação (quase sempre verbal) eleva
consideravelmente a dívida inicial em termos de horas a trabalhar (CPT,
1995, p. 46).
148

O documento acima compila as diversas facetas da servidão por dívida.


Evidentemente, para sua constatação no caso concreto, basta a verificação de que, “por
qualquer meio”, o trabalhador está sendo retido em razão de dívida. Portanto, dependendo do
caso analisado, encontraremos uma combinação diferente de engrenagens compondo o
mecanismo da servidão por dívida.
O expediente do armazém (conhecido como “sistema de barracão” ou “truck
system”) descrito pelo documento da é frequentemente utilizado para gerar as dívidas fictícias
no ambiente de trabalho. A equipe de fiscalização descreve uma situação típica no relatório de
ação conduzida em 1999:

Foi constatado que o empregador mantém armazém para fornecimento de


gêneros alimentícios, ferramentas, vestuário, calçados, remédios e outros
materiais de trabalho e consumo para venda aos trabalhadores. Referidos
trabalhadores são induzidos a utilizar o armazém uma vez que o empregador
não fornece meio de transporte à cidade nem efetua o pagamento dos
salários devidos, no prazo legal (Relatório de Inspeção 1999, cód. CR).

Em fiscalização do GEFM realizada no ano de 1999, encontramos vários


depoimentos sobre o tema. No termo de declarações de Wellington, que trabalhou roçando
juquira na fazenda em questão, consta que os trabalhadores

[...] compram a comida na cantina que vende leite, doce, creme dental, arroz
e cada um faz sua comida. Que compra foice na cantina e também botina,
inclusive panela, que pega na cantina e só depois quando vai acertar que
sabe o preço, mas sabe que o preço é sempre aumentado (Relatório de
Inspeção cód. AE).

Luís, que trabalhava na mesma fazenda na atividade de derrubada desde abril,


declarou em junho que comprava “várias mercadorias na cantina (comida, botina, panela),
mas não sabe o preço e nem quanto está devendo”. Teria informado os auditores fiscais,
também, de que até aquele momento ainda não havia recebido qualquer pagamento: “nem
adiantamento nem salário”.
Sulaiman (mencionado como alguém que convidou outros para o trabalho)
declarou que sua turma

é composta por 06 pessoas, das quais apenas 04 estão trabalhando. Em [...]


maio, o trabalhador Cícero faleceu vítima de acidente de trabalho. Não
recebeu socorro. O declarante foi quem providenciou o enterro e pagou as
149

contas. Está devendo na praça em decorrência destes gastos. Que o IBAMA


apreendeu as motosserras embora a fazenda tivesse garantido que a
derrubada estava legalizada. O falecido tinha 26 anos de idade. Não recebeu
qualquer quantia da fazenda, seja com relação ao trabalho feito ou com
ressarcimento das despesas do enterro (caixão, roupas etc.) (Relatório de
Inspeção 1999, cód. AE).

O relatório da equipe de auditores fiscais do trabalho que inspecionou uma


fazenda em Mato Grosso em 2006 nos auxilia a desnudar as articulações complexas da
servidão por dívida:

O depoimento prestado pelo trabalhador V. R. confirma a prática da servidão


por dívida. Ivo, por exemplo, afirmou o seguinte:
(...) que ficou devendo ao sr. Leonardo. a quantia de R$ 404,00 relativos às
compras que foram feitas para a família do depoente, no início do período
em que começou a trabalhar na fazenda (...); Que o sr. Leonardo dizia aos
trabalhadores que estes não poderiam ir embora antes que pagassem a dívida
referente às compras efetuadas para suas famílias; Que segundo o depoente
todos os trabalhadores do acampamento fizeram compras para suas famílias
antes de efetivamente começarem a trabalhar na fazenda, sendo que por este
motivo todos os trabalhadores já começaram a trabalhar na fazenda (...)
devendo alguma quantia em dinheiro ao sr. Leonardo.; Que o depoente
afirma que caso não tivesse devendo ao sr. Leonardo já teria abandonado o
trabalho na fazenda (...)” (termo de declarações do trabalhador)
A estratégia adotada pelo aliciador de mão-de-obra, Leonardo, com a
anuência de Carlos [empregador], para o prévio endividamento dos
trabalhadores recrutados para realizar o desmatamento e o roço na fazenda
(...) consistia em realizar, no início da prestação do serviço, a aquisição de
alimentos para a família dos empregados.
Uma conduta que a princípio seria louvável, não fosse a real motivação por
detrás do endividamento daqueles empregados. De fato, a situação
econômica destes trabalhadores, pais de família, habitando região onde
quase não existe oferta de trabalho, é por demais delicada; por esta razão, se
submetem a humilhações, tratamentos desumanos, coações morais e a maus
tratos.
E mais, por se tratar de cidadãos simples, o único bem de que podem dispor
é a própria honradez, que temem ser arranhada, com prejuízo considerável
para suas vidas e de seus familiares, acaso colecionem a fama de saírem
“devendo” aos patrões. Sabem que sob estas circunstâncias as já diminutas
oportunidades de trabalho na região, simplesmente desapareceriam.
Vale destacar que, depoimentos colhidos no curso da operação, demonstram
a crença entalhada na consciência de cada um daqueles trabalhadores
de que eram devedores e que não poderiam deixar o serviço, ainda que
se lhes tornasse insuportável o trabalho naquelas condições, sem que
antes pagassem, com a sua força laborativa, a compra inicialmente
colocada em seus lares para o sustento de suas famílias (Relatório de
Fiscalização 2006, cód. DE, p. 18).

Nas palavras de Antônio, um trabalhador nascido em Tocantins e que migrara


com a família para tentar a vida em Vila Rica-MT, com quem conversei em Cuiabá: "É
150

comum. A gente pensa que vai ganhar melhor, porque não tem uma profissão certa, aí a gente
se arrisca no serviço. Aí eles dão um dinheiro pra gente, abona, né. Aí quando chega lá é
diferente. A lei fica por conta deles".
Essa manipulação das cláusulas contratuais não escritas no jogo da servidão por
dívida ocorre muitas vezes através de formas de remuneração variáveis e em descumprimento
do piso salarial da categoria. Na avaliação da equipe de fiscais responsável pela constatação
de um caso de trabalho escravo ocorrido em 2005,

O processo de endividamento é alimentado em razão de que a remuneração,


que era variável, quase nunca era suficiente para fazer face ao valor cobrado
com alimentação e outras necessidades dos empregados, inclusive as
despesas com hospedagem (Relatório de Inspeção 2005, cód. AH, p. 18).

Adriano, outro trabalhador entrevistado na Casa do Migrante descreveu os


descontos indevidos efetuados pelo empregador e que reduziam seu salário a quase nada:

Adriano: Normalmente ele passava, ele ia no mercado, comprava aquela


compra e eles pagava a compra e descontava de nós. Ou eles mesmo fazia e
levava, só entregava pra nós lá.
Giselle: Entendi...
Adriano: Aí descontava, abatia aquilo, abatia alguma outra coisa de dívida e
sobrava uma mixaria de dinheiro
Giselle: Essas dívidas, você tinha mais alguma coisa que você lembra que
eles cobravam vocês? Chegaram a cobrar por calçado...?
Adriano: A botina...
Giselle: Eles cobravam?
Adriano: Botina, chapéu, se tiver uma roupa cobravam também...
Giselle: Porque tudo isso é obrigação deles fornecer, né...
Adriano: As ferramenta, tudo nós comprava
Giselle: Ferramenta também?
Adriano: Ferramenta também.
Giselle: Que tipo de ferramenta vocês compravam?
Adriano: Tipo foice, lima pra amolar... Ele comprava mas descontava do
nosso dinheiro

A conclusão sobre os descontos indevidos contida num relatório do GEFM de


1996 é contundente: “Todo e qualquer objeto fornecido ao trabalhador é cobrado, desde a lona
preta para o alojamento, passando pela iluminação, óleo para iluminação, EPI, ferramentas
etc. Só não pagam o ar e a água porque são naturais” (Relatório de Inspeção 1996, cód. G, p.
17).
A venda de produtos aos trabalhadores a preços muito acima do preço praticado
no mercado também aparece com frequência nos relatórios do GEFM como mecanismo de
produção de dívidas ilícitas que prendem os trabalhadores ao trabalho. A cobrança de valores
151

referentes a equipamentos de proteção individual utilizados pelos trabalhadores, cujo


fornecimento é obrigação legal do empregador, exibe a dramaticidade do descaso com a vida
dessas pessoas, como se lê no relatório abaixo:

[...] o empregador vende as botas aos trabalhadores através dos 'gatos',


também a preços superfaturados, pois, comprou por R$ 9,90 (nove reais e
noventa centavos) e vendeu por R$ 12,90 (doze reais e noventa centavos),
além de não fornecer qualquer outro tipo de Equipamento de Proteção
Individual, sendo que, além do óbito do trabalhador J., havia um trabalhador
acidentado onde nenhuma providência havia sido adotada relativa à
comunicação do acidente (Relatório de Fiscalização, 1999, cód. CV, p. 7).

Na entrevista coletiva que fiz em Araci-BA com João, Arthur, Júlio e Alfeu,
quatro trabalhadores que haviam vivenciado o trabalho escravo no setor da construção civil,
eles descreveram o aliciamento e as promessas enganosas que os fizeram sair da cidade para
trabalhar numa obra em Minas Gerais, onde permaneceram até o resgate pelo GEFM. Nas
palavras de Alfeu, um dos trabalhadores, “Eles [os aliciadores] falavam que era uma coisa e
quando a gente chegava lá era outra. A gente na realidade foi pra lá tudo iludido”. Nesse
momento, Júlio complementou: “Nossos direitos foram todos ignorados. Teve um colega meu
que perseguiu um rato para comer”.
Esse grupo de trabalhadores relatou que, ao chegarem ao local de trabalho, já
estavam todos devendo trezentos reais para o empregador, o que, somado aos demais
descontos, obrigava-os a trabalhar de três a quatro meses para poder arcar com o custo da
alimentação e quitar a dívida inicial. Todos os trabalhadores que manifestavam sua intenção
de ir embora eram alertados pelo empregador de que não podiam sair antes de saldar as
dívidas.

Arthur: Lá não, não tem condição disso [de ir embora] não...


Giselle: Por que?
Arthur: Porque é longe demais, pra ir embora de lá sem passagem, sem nada
Júlio: Sem conhecimento de ninguém
Arthur: A gente chorava lá pra ir embora...
Giselle: Vocês queriam ir embora?
Arthur: Queria ir embora, mas tinha que pagar...
Júlio: Não tinha condições.
Arthur: Já chegava lá devendo
Giselle: Devendo o que?
Júlio: A passagem...
Arthur: A passagem, as despesas do caminho tudo.
152

Mesmo passado o período de pagamento da dívida inicial, os custos de saída do


local de trabalho e a miséria das famílias que os trabalhadores sustentavam com o parco
salário continuavam funcionando como mecanismo de imobilização. Um dos entrevistados
descreveu a situação sem saída em que se viu: “Eu passei 6 meses lá. Porque com a família
aqui né... Aí eu não podia vir... o dinheiro de eu vir eu mandava pra cá. Eu ia chegar aqui sem
nada...O que eu ia fazer, né? Aí eu mandava e ficava lá”. A situação descrita era comum a
todos os trabalhadores entrevistados, que foram se complementando num relato coletivo:

Alfeu: O salário que a gente manda pra família, a gente manda, né? Mas
dinheiro a gente não fica.
Arthur: A gente fica trabalhando lá pra mandar pra família. Se você vim,
chega aqui a família já tá com fome.
Alfeu: Já está devendo
Júlio: Aí não tem condição.
Arthur: Tem que mandar o que arrumou pra sustentar aqui e ficar mais um
tempo lá, tentando juntar pra voltar.

Por fim, Alfeu conclui: “É um balaio de gato [...]. A gente manda o dinheiro pra
cá e nunca consegue se libertar”.
A servidão por dívida, portanto, deve ser compreendida num espectro muito mais
alargado, que abarque não só a contabilidade fraudulenta de custos do empregador que são
cobrados do trabalhador, mas também a condição de miséria das famílias desses mesmos
trabalhadores, o custo de entrada e de saída do posto de trabalho.
Um dos achados mais interessantes da pesquisa documental sobre esta modalidade
de trabalho escravo foi quanto à prática da promessa enganosa no aliciamento, fartamente
descrita como uma das facetas da servidão por dívida prevalecente no Brasil (MARTINS,
2009, FIGUEIRA, 2004 e ESTERCI, 2008).
De fato, grande parte dos casos de trabalho escravo analisados em que estava
presente o componente do endividamento fazia menção ao aliciamento de trabalhadores em
regiões geográficas distantes do local de serviço através de promessas enganosas quanto a
condições de trabalho e remuneração (geralmente as propostas são de boas condições de
alojamento e de salários maiores, sem desconto de alimentação). Observa-se, também, em
muitos desses casos, o endividamento prévio desses trabalhadores, devido ao custo de entrada
no trabalho imposto por sua condição de migrantes (pagamento pelo transporte e alimentação
no trajeto).
Entretanto, encontramos outros casos em que os trabalhadores, nos depoimentos
ao GEFM, afirmavam terem ingressado no serviço porque estavam precisando de trabalho,
153

mas que não chegaram nem a combinar o valor da remuneração antes de serem transportados
para o local do serviço. Citamos aqui um exemplo descrito pela auditoria-fiscal do trabalho
em 2002:

Logo na chegada ao alojamento encontramos um grupo de alagoanos ainda


amolando as ferramentas (...) no primeiro dia de trabalho. Já chegaram com
dívida das passagens, da compra de instrumentos de trabalho e outros
débitos, sem saber sequer quanto iriam ganhar de remuneração. Perguntados
como iriam pagar as despesas, disseram que pagariam trabalhando. Sabiam
apenas que pagariam R$ 60,00 por mês pela alimentação (Relatório de
Inspeção, 2002, cód. AC, p. 4).

Por fim, nos últimos anos, em que parte desta população acaba por se fixar no
estado de Mato Grosso, a permanecer em constante deslocamento (caso dos “peões de
trecho”) ou mesmo a se deslocar por conta própria para uma região específica em busca de
uma oportunidade de trabalho, as condições extremas que violam a dignidade humana
colocam em risco sua integridade física e limitam sua liberdade persistem sob velhas e novas
formas. Neste contexto, discutir o trabalho forçado por motivos alheios ao endividamento
readquire importância.

2.2.1.3. O trabalho forçado revisitado

Um dos pontos mais significativos da análise do enquadramento legal dos casos


de trabalho escravo em Mato Grosso foi a própria problematização do conceito de “trabalho
forçado”.
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, não é a violência e coação física no
ambiente de trabalho o único divisor de águas desta intrincada questão.
De modo geral e pacificada no direito brasileiro, pode ser considerado “trabalho
forçado” aquele a que a pessoa é submetida contra sua própria vontade. Alguns juristas
especificam os meios através dos quais o trabalhador é forçado a tal condição: emprego de
violência, ameaça ou fraude (CAPEZ, 2009 apud BRITO FILHO, 2014a, p. 70); coação física
ou moral (PIERANGELI, 2007 apud BRITO FILHO, 2014a, p. 70); dentre outros.
Na construção da base de dados, o elemento “trabalho forçado” foi assim
identificado:
154

Marcar SIM se houver menção textual a “trabalho forçado” ou diante da


presença dos seguintes elementos: retenção dolosa de salários, não
pagamento de salário em dinheiro, retenção dos trabalhadores por meio de
coação moral (constrangimento para que ele permaneça e/ou salde dívida),
psicológica (ameaças a ele ou entes próximos) ou física (violência), por
vigilância ostensiva ou prendendo-os de outra forma, por meio de engano
sobre natureza ou local do trabalho e sequestro. Caso o único elemento
presente seja o endividamento, marcar “não” e considerar apenas como
“servidão por dívida”.

Antes de apresentar os dados sobre o “trabalho forçado”, é preciso dizer sua


constatação no caso concreto exige uma análise complexa de múltiplas circunstâncias. Além
disso, trata-se de uma modalidade de trabalho escravo que raramente ocorre de forma isolada:
a pesquisa realizada por Brito Filho (2014a) em decisões judiciais revelou que o trabalho
forçado geralmente está combinado a condições degradantes de trabalho e a restrição de
locomoção por dívida contraída pelo trabalhador.
Nossa análise dos dados revelou que o isolamento geográfico é muito presente nos
relatos dos auditores fiscais no período inicial da atuação do Grupo Móvel. Também mostrou
que a “retenção dolosa de salários” aparece com frequência nos relatórios como fator de
cerceamento de liberdade.
São extremamente recorrentes nos relatórios do GEFM depoimentos de
trabalhadores similares a este que reproduzimos aqui, extraído de relatório de 2008: “Que não
pode sair do serviço, pois Seu Samuel disse que não ia pagar enquanto o serviço não estivesse
completo” (Relatório de Inspeção 2009, cód. CD, p. 14).
Em depoimento colhido durante operação conduzida pelo GEFM em 2000, um
dos trabalhadores afirmou que não tinha liberdade de sair do local, porque caso saísse ficaria
sem receber nenhum salário e teria que percorrer 140 quilômetros a pé até a cidade mais
próxima (Relatório de Inspeção 2000, cód. CQ, p. 24).
Em relatório de 2005, há depoimento similar de um trabalhador, afirmando “(...)
que não estava proibido de deixar o trabalho, mas também não tinha condições de deixá-lo,
porque não tinha dinheiro para este fim, até porque a fazenda fica muito distante da cidade
(...)” (Relatório de Inspeção 2005, cód. AH, p. 17). Dois casos muito semelhantes que foram
interpretados como “falta de liberdade” e “ausência de proibição aliada a falta de condições”,
evidenciando o caráter ambivalente da liberdade no contexto da nova escravidão.
Em outro caso de trabalho escravo recente, o GEFM relatou que "com o reiterado
atraso de salários, o empregador retinha os obreiros no ambiente de trabalho" (Relatório de
Inspeção 2009, cód. GB, p. 130).
155

Em outro relatório, há depoimento do próprio “gato” admitindo que, se pagasse os


trabalhadores, estes iriam embora (Relatório de Inspeção 2006, DC, p. 25).
Além disso, a diversidade de mecanismos de imobilização e controle dos
trabalhadores através do não pagamento dos salários a eles devidos revela que o
enquadramento de cada situação na modalidade “servidão por dívida” ou “trabalho forçado”
pode ser muito sutil. De certo modo, a servidão por dívida pode ser considerada uma espécie
do gênero “trabalho forçado”. No debate jurídico há, inclusive, autores que defendem que o
conceito de trabalho forçado abarca a restrição de locomoção por dívida e as três hipóteses do
parágrafo 1º do art. 149 (que também descrevem condutas que visam a retenção do
trabalhador no local de trabalho, seja pela vigilância ostensiva, seja pelo cerceamento de
transporte ou mesmo pela retenção de documento ou objeto pessoal). Por outro lado, a
compulsoriedade do trabalho pode derivar das mais diversas (e imprevistas) situações,
mecanismos e práticas.
Um exemplo dessa complexidade foi a operação realizada no ano de 1996, em que
foram encontrados 24 trabalhadores sem alimentação nem recebimento de salários, pedindo
esmolas nas cercanias da fazenda onde haviam trabalhado no desmate, após fuga do “gato”:

A fazenda deixou de fornecer alimentos há cerca de 1 mês, mandou parar o


serviço. Faltavam 8 alqueires. O gerente novato [...] veio ao alojamento e
ordenou que se retirassem, senão ele tomaria as “providências”, mas não
quis falar quais seriam. Os empregados não querem sair porque nunca
receberam nada e não têm como retornar para suas casas. O dono da Fazenda
está em Goiânia. Os empregados estão pescando no córrego pequenos peixes
para se alimentarem. [...] Conforme impressões de outros empregados, as
tais providências seriam trazer pistoleiros e matá-los (Relatório de Inspeção
1996, cód. CT, p. 27).

O trecho de um relatório do Grupo Especial de Fiscalização Móvel que resgatou


41 trabalhadores no município de Tapurah em 2008 é esclarecedor:

Os elementos pecuniários surgem de quatro formas: ausência ostensiva de


salário, que normalmente ocorre junto com a escravidão clássica, acima
referida; ausência fraudulenta de salários, que ocorre quando o empregador
contrata com salários definidos, mas não paga. Neste caso o patrão não
chega a negar o débito, mas sempre adia o pagamento, até que os
trabalhadores desistem. Alguns desses batem às portas da Justiça, mas lá eles
encontram uma triste realidade: a dos acordos que sempre beneficiam os
patrões maus pagadores. E ainda é obrigado a ouvir dos sabichões que “é
melhor um mau acordo do que uma boa demanda”. Neste caso ele sai
humilhado, frustrado e desamparado e, como se não bastasse, passa a ser
perseguido pelo empregador e por seus colegas, pois é comum “ficar
156

marcado” por ter “denunciado” um mau pagador. Neste caso não consegue
mais emprego na região. A terceira forma em que o elemento pecuniário que
caracteriza trabalho escravo surge, é mais comum; trata-se da retenção dos
salários. Nela o empregador adia o pagamento até que o serviço termine.
Este expediente é usado com a finalidade de obrigar os trabalhadores a
se submeterem a situações adversas, tais como salários aviltantes e
ambientes de trabalho prejudicial à saúde e à segurança dos
trabalhadores. O empregador teme que os trabalhadores, uma vez
recebendo seus salários, se desliguem do mau emprego. Enfim, a última
das quatro formas mais comuns em que o elemento pecuniário é usado como
traço de sujeição dos trabalhadores; trata-se da servidão por dívida. Sua
ocorrência é bastante comum e se dá mediante três fatos: salário ínfimo
combinado com a venda de mercadorias com preços normais, salário correto
combinado com mercadorias vendidas a preços acima do normal, salários
ínfimos combinados com a venda de mercadorias a preços altos. Isto
caracteriza a servidão por dívidas, pois em tais circunstâncias os
trabalhadores jamais conseguem pagar seus débitos e, de boa fé, ainda que a
contragosto, continuam trabalhando na vã esperança de pagar aquilo que
acreditam dever, para, no final, descobrirem que “contraíram” uma dívida
impagável. Os que se rebelam são forçados a cumprirem o “contrato”
(Relatório de Fiscalização, 2008, p. 15-6, grifos nossos).

Uma das hipóteses iniciais da pesquisa, que tomou por base minha experiência
como auditora-fiscal do trabalho, era de que o trabalho forçado teria predominado na década
de 90 e início dos anos 2000, dando lugar a outras formas de escravização da mão de obra na
última década, na qual sua ocorrência seria mínima ou mesmo reduzida a quase zero.
Os dados coletados da totalidade dos relatórios de fiscalização de trabalho escravo
em Mato Grosso no período de 1995 a 2013 revelaram que, se por um lado é verdade que os
elementos caracterizadores do “trabalho forçado” têm maior incidência nos anos mais remotos
(apenas em um ano, dentre os sete primeiros anos de atuação do GEFM, os casos que
apresentavam elementos de “trabalho forçado” representaram menos da metade do total de
casos com constatação de “trabalho escravo”), eles não apresentam tendência a desaparecer
em anos recentes.
157

Trabalho forçado - GEFM/MT


1995 100%
1996 60%
1997 33%
1998 100%
1999 50%
2000 67%
2001 83%
2002 11%
2003 31%
2004 50%
2005 80%
2006 63%
2007 0%
2008 23%
2009 5%
2010 0%
2011 0%
2012 33%
2013 33%
média 43%
Tabela 5 – Frequência - Trabalho forçado em Mato Grosso (1995-2013)
Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Interessante notar que a partir de 2007 o percentual de casos de trabalho forçado


manteve-se sempre abaixo da média do período 1995-2013.
Entretanto, por se tratarem de dados com inúmeras limitações em termos de
interpretações estatísticas, como já pontuado anteriormente, neste caso a análise quantitativa
tomada isoladamente apenas foi capaz de provar falsa a hipótese de que o trabalho forçado
estaria desaparecendo nos anos mais recentes. Afinal, apesar do GEFM não ter encontrado
nenhum caso de trabalho forçado em anos como 2010 e 2011, por outro lado, nos anos mais
recentes da série (2012 e 2013) o trabalho forçado teve frequência de 33%.
No mais, tais dados não foram considerados suficientes para comprovar ou refutar
qualquer outra hipótese mais complexa, mas sim, ao contrário, conduziram a pesquisa a novas
questões, ao sugerirem certas tendências que, em termos metodológicos, teriam que ser
comprovadas através de outras ferramentas de pesquisa, como as entrevistas e pesquisas em
outras fontes documentais (a exemplo do arquivo da Comissão Pastoral da Terra).
Neste sentido, uma das provocações mais interessantes que os dados suscitaram
em mim foi justamente questionar o motivo que me teria conduzido a formular uma hipótese
158

incorreta e tão radical: a da tendência ao desaparecimento do trabalho forçado. A explicação


era clara: em dez anos de vivência no dia-a-dia da fiscalização do trabalho, raramente o termo
“trabalho forçado” era mencionado nas conversas, reuniões ou relatórios de fiscalização a que
tive acesso. Essa constatação levantava uma questão muito mais interessante, que não era uma
ausência suposta, tímida ou estatisticamente não significativa do trabalho forçado
propriamente dito. Agora tratava-se de investigar também sua ausência, talvez muito mais
significativa, no campo do discurso. A questão, portanto, atravessava a morfologia do
trabalho escravo para atingir a própria história das interpretações da legislação por parte dos
operadores do direito responsáveis por combater o trabalho escravo em todas as suas
modalidades.
O teste foi realizado examinando-se o corpo de cada um dos relatórios das
operações conduzidas pelos GEFM em Mato Grosso entre 1995 e 2013 (o mesmo universo de
relatórios analisados para a variável “trabalho forçado”), criando-se uma nova variável:
utilização do termo “trabalho forçado”. O resultado está exposto abaixo:

ANO QUANT. QUANT. FREQUENCIA DE QUANT FREQUÊNCIA DE


RELATÓRIOS RELATÓRIOS COM TRABALHO RELATÓRIOS RELATÓRIOS
ANALISADOS OCORRÊNCIA DE FORÇADO NOS CONTENDO CONTENDO
TRABALHO RELATÓRIOS TERMO TERMO
FORÇADO "FORÇADO" "FORÇADO"
1995 2 2 100% 0 0%
1996 6 3 50% 0 0%
1997 3 1 33% 1 33%
1998 1 1 100% 0 0%
1999 4 3 75% 0 0%
2000 3 2 67% 0 0%
2001 6 5 83% 0 0%
2002 8 1 13% 0 0%
2003 12 5 42% 2 17%
2004 12 8 67% 0 0%
2005 10 8 80% 0 0%
2006 8 5 63% 2 25%
2007 6 0 0% 0 0%
2008 31 8 26% 0 0%
2009 22 2 9% 0 0%
2010 17 0 0% 0 0%
2011 11 0 0% 0 0%
2012 9 3 33% 0 0%
2013 9 4 44% 0 0%

Tabela 6 – Totais e Frequência - Trabalho forçado x Menção trabalho forçado


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)
159

Em números absolutos, de um total de 180 relatórios analisados, apenas 5


apresentaram em seu texto o termo “trabalho forçado”, apesar de 61 terem apresentado
elementos caracterizadores de “trabalho forçado”.

T R A B A L H O F O R Ç A D O N O S R E L AT Ó R I O S D O
GEFM - MT
PRESENÇA DE ELEMENTOS DE TRABALHO FORÇADO
PRESENÇA DO TERMO "TRABALHO FORÇADO"

100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

Gráfico 8 – Trabalho forçado e menção a termo “trabalho forçado” – variação no tempo


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Por outro lado, as “condições degradantes” de trabalho (ou “de trabalho e de


vida”, como redigido em muitos relatórios) foram mencionadas expressamente em parcela
majoritária das conclusões dos relatórios.
Dos 61 casos da base que contêm elementos de trabalho forçado, apenas 8,2%
trazem em seu texto a utilização do termo “forçado”. Já a utilização do termo “degradante”,
foi observada em 147 relatórios, dentre os 178 que reuniam elementos de “condições
degradantes” na caracterização do trabalho escravo, perfazendo um percentual de 82,6%.
É preciso esclarecer que, em termos de dever e atribuição legal, a menção textual
do termo “trabalho forçado” (ou a nomeação exata de todas as modalidades de trabalho
escravo constatadas) não é obrigação dos membros do Grupo Móvel, cuja função principal é
constatar in loco a situação de fato vivenciada pelos trabalhadores, descrevendo os fatos e
enquadrando juridicamente nas ementas que podem gerar autos de infração103 , posicionando-
se apenas sobre a existência ou não de trabalho análogo ao de escravo em sentido mais amplo

103
Observe-se que não existe um auto de infração específico para o crime de trabalho escravo.
160

para fins dos procedimentos administrativos a serem adotados. Assim, como a discussão
exaustiva do enquadramento legal e modo de execução do crime é realizada, posteriormente,
pelo Poder Judiciário, a adoção de uma abordagem mais descritiva das situações encontradas
ou a inclusão de arrazoados jurídicos ao lado das descrições fáticas dos relatórios de inspeção
acaba dependendo da estratégia, abordagem e estilo de cada equipe.
Ainda assim, a não obrigatoriedade de nomear textualmente todas as modalidades
observadas e descritas minuciosamente pela fiscalização no relatório não explicaria a
discrepância entre o uso dos termos “trabalho forçado” e “condições degradantes”. A
explicação teria que estar em outro lugar: provavelmente na carga polemizadora e
conservadora que foi se incorporando ao termo “trabalho forçado”. Ao longo de décadas de
lutas sociais em torno da morfologia e gramática da nova escravização, reduzir todo trabalho
escravo apenas à modalidade “trabalho forçado” (utilizando-se, não raro, de referências
tortuosas ao conceito de “forced labour” da OIT para tentar justificar tentativas de redução de
direitos sociais) tem sido uma das estratégias principais adotadas por setores conservadores,
notadamente pela bancada ruralista.

2.2.1.3.1. A vigilância armada, o isolamento geográfico e o cerceamento da liberdade dos


trabalhadores

Uma transformação importante na morfologia do trabalho forçado da última


década é a baixa incidência da vigilância armada e do isolamento geográfico como,
respectivamente, dispositivo e circunstância que contribuem para o cerceamento da liberdade
dos trabalhadores.
André, um dos auditores fiscais do trabalho entrevistados, que foi vítima de
trabalho escravo em sua adolescência e participou de várias operações de combate ao trabalho
escravo em sua atual carreira, relatou a diferença da situação vivida por sua família na década
de 70 (quando chegaram de Goiás a Mato Grosso com seus familiares e outras 4 famílias
escondidos num pau de arara) e os trabalhadores que ele mesmo resgatou de situações de
trabalho escravo nos anos 2000:

André: Nós mesmos, você sabe muito bem, nós fizemos resgate aqui, muito
próximo daqui de Cuiabá, mas não com aquela intensidade da década de 70,
80, e que ainda se encontra hoje mais nos extremos do estado de Mato
Grosso e no Pará.
161

Giselle: Intensidade? O que você quer dizer, assim... o que teria de


diferente?
André: Assim... O isolamento geográfico. Não havia transporte. Para você
ter uma ideia, nenhum tipo de transporte. Na década de 70, no local onde a
gente morava, pra sair da fazenda era só de trator, porque não tinha estrada.
Caminhonete traçada às vezes encravava e não conseguia sair. Era muito
difícil. E porque as fazendas não disponibilizavam nenhum tipo de
transporte. Então era impossível um trabalhador naquela época sair de uma
localidade daquela se o fazendeiro realmente não quisesse. Era impossível.
Só se ele se embrenhasse na mata e ainda assim mesmo com risco de ser
atacado. Era floresta mesmo, muito animal...
Giselle: Eu nunca tinha parado para pensar nisso. Não só o isolamento, mas
era mais perigoso, né...
André: Muito mais perigoso. E naquela época era muito mais comum
jagunço. Na fazenda onde a gente estava não tinha o chamado jagunço, o
capataz que ficava vigiando.
Giselle: Armado?
André: É. Mas no entorno, nas fazendas ao lado, a gente conhecia os
jagunços. As pessoas que ficavam armadas vigiando. Não tinha na fazenda
onde nós trabalhávamos. Mas nas fazendas próximas tinha e era aberto,
comum o pistoleiro, o jagunço lá vigiando o trabalhador para que ele
trabalhasse praticamente pela comida, pela...entendeu? A diferença, eu acho,
hoje, é que naquela época ninguém se indignava com aquilo, aquilo era uma
coisa que a sociedade via como normal, como natural. Na cidade era assim,
as pessoas andavam armadas em Pontes e Lacerda, era comum você ver as
pessoas armadas. Era uma terra de ninguém mesmo. Naquela época a
situação era mais extrema nesse sentido.

Seu trabalho, aos 15 anos de idade, era desmatar uma área, na foice, para depois
plantar arroz e milho, com objetivo de formação de pasto, numa fazenda de aproximadamente
mil alqueires na Amazônia mato-grossense.
O isolamento geográfico e a vigilância armada, de fato, quase não aparecem nos
relatórios das operações de combate ao trabalho escravo dos últimos 5 anos. Entretanto, nos
anos iniciais do GEFM tais situações eram recorrentemente apontadas nos relatórios
analisados na pesquisa.
No que diz respeito à vigilância armada, os relatórios analisados contêm trechos
que detalham a prática nos casos de trabalho escravo. Num relatório do GEFM de 2004, por
exemplo, encontramos o seguinte relato da inspeção do trabalho sobre a presença de um
“gato-fiscal” que realizava a vigilância armada dos trabalhadores, ameaçando e controlando-
os:

Conforme constatamos em entrevistas com os empregados, o “Prego”


andava “fiscalizando” ostensiva e acintosamente armado com uma pistola
380 espalhando ameaças e exigindo respeito, principalmente de quem
tentava se queixar das condições de trabalho e dos valores pagos. [...]
162

Certamente por esta “vigilância”, durante os acertos, muitos não recebiam os


valores integrais, pois nada podiam reclamar. Com esta manobra o
empregador retinha grande parte dos salários. [...] Durante a operação ficou
claro que todos os prejuízos causados aos empregados tinham uma garantia
armada, a mão do “Prego”, que lhes impedia de exigirem o que lhes era
devido. Sobre este “gato fiscal” Prego, notamos um considerável temor por
parte dos trabalhadores quando nos referíamos a ele. Todos evitavam
comentar qualquer coisa a respeito dele (Relatório de Inspeção, 2004, cód.
WO, p. 25).

Com o passar dos anos, a “garantia armada” foi se tornando mais rara nas relações
de exploração da força de trabalho em Mato Grosso. Os dados aqui analisados apontam uma
notável variação da frequência da vigilância armada nos casos de trabalho escravo entre 1995
e 2013:

FREQUÊNCIA DA OCORRÊNCIA DE
VIGILÂNCIA ARMADA
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

Gráfico 9 – Vigilância armada – variação no tempo


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Analisando o gráfico acima, podem ser identificados três patamares distintos do


nível de vigilância armada104 ao longo do período 1995-2013.

104
A variável “vigilância armada” foi construída para dar conta apenas da prática de vigilância e presença de
armas nos locais de trabalho, não se confundindo com a variável “vigilância ostensiva com a finalidade de reter
trabalhador”, que incluía um elemento finalístico em sua codificação. Justamente pela escassez de informações
que pudessem aclarar se a vigilância visava reter trabalhadores ou se o objetivo era exercer outros tipos de
controle, optamos por criar uma nova variável que não dependesse desse componente, mas apenas de dados que
os relatórios oferecessem. Assim, a “vigilância armada” nesta acepção não pode ser considerada, sozinha,
elemento suficiente para caracterizar “trabalho análogo a de escravo”, mas, considerada em conjunto com outros
elementos, pode integrar a caracterização de uma das hipóteses da prática previstas na legislação.
163

A média da frequência da vigilância armada nos casos de trabalho escravo


constatados pela fiscalização era de 63% entre 1995 e 1999, caindo para 13% no período de
2000 a 2007 e, finalmente, reduzindo-se a 1% nos anos mais recentes (2008 a 2013).
Em números gerais, a vigilância armada foi constatada em 11% dos casos de toda
a base. Em 7% dos casos, houve apreensão de arma(s) do empregador, intermediário ou
preposto, mas não foi relatada prática de vigilância armada. Já na grande maioria dos casos
analisados (80%) no período de 1995-2013, não foi constatada vigilância armada nem relatada
apreensão de arma.

VIGILÂNCIA ARMADA

Não há relato de vigilância,


mas houve apreensão de
2% arma(s) de empregador,
intermediário ou preposto
7%
11% Constatação de vigilância
armada

Não houve arma apreendida


80% nem constatação de vigilância
armada

Informações inconclusivas

Gráfico 10 –Trabalho forçado


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Já no que se refere ao isolamento geográfico, os dados de nossa base também


indicam uma transição ao longo das últimas décadas.
A situação típica encontrada pela fiscalização nos anos 1990 e início dos anos
2000 é o isolamento geográfico como fator de cerceamento de liberdade de locomoção. Em
fiscalização realizada em 1999, um trabalhador declarou que, apesar de não trabalhar aos
domingos, não tinha como sair do local de trabalho devido à distância (Relatório de Inspeção,
1999, cód. CV, p. 45).
Em outro relatório, há situação descrita como isolamento geográfico com impacto
no cerceamento da liberdade dos trabalhadores, que estavam incomunicáveis a suas famílias,
164

em local tão distante que muitos haviam sido transportados de avião (Relatório de Inspeção,
1996, cód. DV).
Como se vê, o chamado “isolamento geográfico” era um fator que contribuía para
impedir o livre deslocamento dos trabalhadores. E era, de fato, muito presente no tempo em
que ainda existiam muitas áreas de vegetação nativa e as cidades e estradas eram menos
numerosas e estruturadas.
Já nos relatórios mais recentes, aparecem situações que foram codificadas na base
de dados como intermediárias: casos em que não havia fácil acesso à cidade mais próxima
(disponibilidade de meio de transporte e curtas distâncias), porém, tampouco havia
cerceamento amplo deste acesso (como ocorreria nos casos de inexistência de linha de
transporte público, distâncias longas demais para serem percorridas a pé e recusa do
empregador em oferecer transporte até mesmo a trabalhadores machucados).
Com o povoamento de Mato Grosso, a expansão do agronegócio, dos centros
urbanos e das telecomunicações, os isolamentos foram transfigurados. Os depoimentos dos
trabalhadores e interpretações dos agentes fiscalizadores desenham novas situações em que a
dificuldade de acesso a um centro urbano já não representa um obstáculo intransponível para
um trabalhador que deseje ir embora do trabalho para nunca mais voltar. Não se trataria mais
do caso clássico de cerceamento da liberdade de locomoção, portanto. Porém, os relatórios
mostram que as distâncias dos centros urbanos e não disponibilização de transporte aos
trabalhadores (que passam a depender de caronas e da “boa vontade do patrão”), nos anos
mais recentes, impactam profundamente outro bem jurídico que não a liberdade: a integridade
física dos trabalhadores. Os relatos neste sentido são inúmeros.
No auto de infração lavrado em face de empregador que não disponibilizava
equipamento de primeiros socorros nem pessoa treinada para tal no ambiente de trabalho, os
auditores fiscais que constataram trabalhadores em situação de escravidão em 2004
escreveram:

[...] agrava-se a situação pelo fato de que a cidade mais próxima, com
condições de prestar socorro médico, está localizada a cerca de 60 (sessenta)
km da fazenda, por estradas/caminhos de péssima qualidade, e nas frentes de
serviço não fica nenhum veículo e também não há qualquer meio de
comunicação. Em caso de qualquer acidente os trabalhadores ficam à própria
sorte (Relatório de Inspeção, 2004, cód. FW, p. 19).

Em outro relatório, lê-se raciocínio semelhante:


165

Os trabalhadores encontravam-se sujeitos ao risco de acidentes com os


animais de grande porte, exposição à radiação ultravioleta, riscos
ergonômicos, riscos de cortes e perfurações, além de ataques de animais
silvestres e peçonhentos, e outros. A ausência desse material [de primeiros
socorros] impossibilita que haja a prestação de socorro inicial mínimo em
caso de ocorrência de acidente no local das atividades do trabalhador, o que
combinado com o isolamento geográfico (distante cerca de cem quilômetros
da cidade mais próxima) e as dificuldades para remoção do acidentado na
região, aumenta o risco de agravos à saúde dos obreiros (Auto de infração,
Relatório de Inspeção, 2009, cód. GC, p. 62).

Também diversos depoimentos de trabalhadores em inúmeros relatórios


analisados trazem conteúdos muito parecidos com o que reproduzimos abaixo:

QUE não tinha como sair nos dias de folga pela distância da cidade, QUE
não existe na frente de trabalho ninguém treinado em primeiros socorros,
nem material de primeiros socorros, QUE se acontecesse algum acidente
com cobra o trabalhador morreria porque não tinha carro para socorro
(Relatório de Inspeção, 2009, cód. BV, p. 27).

Num relatório de 2010, a equipe de fiscalização faz a seguinte observação: “a


liberdade de ir e vir existia, mas para isso teriam que ir a pé, de carona ou no ônibus que
passava na estrada (distante aproximadamente três quilômetros) às 6h00min” (Relatório de
Inspeção BL, p. 8).
O depoimento de Padre Camilo, da Pastoral do Migrante, também foi no sentido
de atestar a forte presença da vigilância armada nas denúncias de trabalho escravo entre 1996
e 2006 em Mato Grosso. Esse tipo de prática se dava principalmente na atividade de
desmatamento (e bem menos na área da cana): os trabalhadores que abriam os pastos “eram
colocados no meio de um mato, assim, muito distante de tudo, e eram controlados”. Até o
final do século XX, isolamento geográfico e vigilância armada estavam implicados entre si e
presentes maciçamente nas práticas de escravização na expansão da agropecuária mato-
grossense.
Neste tópico, a história oral foi de fundamental importância para dar conta de uma
grande transformação ocorrida nas formas de controlar e explorar os trabalhadores que nem
sempre consta dos relatórios de inspeção. Em nossa base de dados, o número de casos em que
foi localizada menção a isolamento geográfico não é expressivo. Entretanto, as entrevistas
realizadas e a pesquisa sobre as transformações da paisagem, economia e população no estado
não deixam dúvidas de que esse fator sofreu grande alteração entre a década de 1990 e os dias
de hoje.
166

Tendo em vista o número reduzido de relatórios com menção direta ao aspecto do


isolamento geográfico, optamos por fazer uma análise, por faixas temporais, da relação entre
“isolamento geográfico restringindo a locomoção do trabalhadores” e “isolamento geográfico
atrelado a outras violações que não a o cerceamento de locomoção”. Os resultados se
harmonizam com as narrativas dos entrevistados: no período de 1995 a 2001, a relação entre a
frequência do isolamento por outras violações e a dos casos de isolamento com restrição da
locomoção se dava na razão de 1 para 4. Já nos períodos seguintes (2002-2007 e 2008-2013),
a situação se inverteu e a razão passou para 13,5 para 8 aproximadamente.
Um aspecto muito interessante foi a identificação de outra linha de argumentação
em torno do isolamento geográfico que ganhou força nos últimos anos analisados: o
isolamento como fator que aumenta a dependência do trabalhador em relação ao empregador
e seus intermediários.

2.2.1.4. A jornada exaustiva

O trabalho com “jornadas exaustivas” é aquele que esgota as forças do


trabalhador, “minando sua saúde física e mental” (GRECO, 2008 apud BRITO FILHO,
2014a, p. 72) e expondo-o também a maiores riscos à saúde e segurança (PEREIRA, C., 2007
apud BRITO FILHO, 2014a, p. 72). As jornadas exaustivas compreendem a extensão das
jornadas (jornadas excessivas), mas não se limitam a ela: uma jornada é considerada exaustiva
“porque, independentemente do tempo de jornada, ela é capaz de exaurir o trabalhador,
causando prejuízos à sua saúde, podendo levá-lo até à morte” (BRITO FILHO, 2014a, p. 72).
Assim, o conceito jurídico de “trabalho com jornada exaustiva” combina diversos
fatores: a quantidade de horas trabalhadas, a existência ou não de pausas ou descansos e suas
durações, bem como a natureza, intensidade e condições em que são realizadas as atividades
laborais. Tangenciam também a estrutura das instalações das áreas de vivência e qualidade e
regularidade de água e alimentos consumidos pelos trabalhadores, isto é, todos os fatores que
influenciam não só no gasto, mas também na reposição necessária de sua energia. Daí sua
aproximação às condições degradantes de trabalho.
Num relatório de inspeção de 2004, ao apresentar as fotos dos alojamentos, a
equipe de fiscalização escreve: “Ou o chão de barro batido, ou o beliche sem colchão. Qual a
melhor alternativa para descansar durante a noite, após uma jornada excessiva de trabalho?”
(Relatório de Inspeção, 2004, cód. FX).
167

Portanto, sua caracterização parece mais delicada e menos imediata do que a das
demais modalidades legais. Outrossim, sua complexidade detém grande importância, por
tangenciar a questão da mais-valia absoluta e relativa. O “trabalho exaustivo” como
modalidade de trabalho escravo reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro traz para o
centro da problemática da escravidão contemporânea a reprodução da força de trabalho e a
própria vida dos trabalhadores.
Os estudos na área da saúde têm contribuído enormemente para a vinculação dos
agravos à saúde dos trabalhadores à sua atividade laboral. Da mesma forma, a construção
doutrinária e jurisprudencial do conceito jurídico de “jornada exaustiva” é da maior
relevância. Entretanto, a análise dos relatórios de inspeção do GEFM e as entrevistas
realizadas mostram que, em sede administrativa, dado o tempo da fiscalização, que é o tempo
do flagrante (diferentemente da instrução probatória do Judiciário), muitas vezes a “jornada
exaustiva” (que nem sempre é de identificação imediata) não é incluída nos autos de infração,
apesar de haver indícios de sua existência nos elementos objetivos apresentados no
relatório105.
Ante toda essa problematização e especificidades do tratamento administrativo da
“jornada exaustiva”, pautamos sua aferição na base de dados do seguinte modo:

Marcar SIM se for constatada menção textual a jornada “exaustiva”,


“excessiva” ou “extenuante” ou se infrações referentes a não concessão de
descansos ou de extrapolação de jornada integrarem conclusão do relatório
de inspeção e/ou motivação do auto de infração principal em que se
caracteriza o trabalho análogo ao de escravo. Considerar “SIM” também
para os casos em que a jornada habitual de trabalho ultrapassar 10 horas
diárias.

As principais questões que aparecem nos relatórios neste tópico estão reunidas
neste trecho de operação de combate ao trabalho escravo realizada em 2009 pelo GEFM em
Mato Grosso. Na ocasião, a equipe concluiu:

Constatamos que a empresa em questão imprime elevada carga de


sobrejornada aos empregados, fazendo com que costumeiramente laborem
muito além dos limites constitucionais. Ainda que autorizados a trabalhar a
título de compensação ou mesmo praticando horas extras acima das 44
horas, por força de acordo individual de trabalho ou existência de
instrumento coletivo, o volume de labor ultrapassa a décima hora, o que o
Diploma Celetista repudia, só abrindo exceção em casos especiais, com

105
Neste sentido, em pesquisas futuras, seria interessante a realização de pesquisas nos processos judiciais que
pudessem apreender como e em que medida tem se dado a caracterização das jornadas exaustivas nos casos de
trabalho escravo.
168

arrimo no Art. 58 e parágrafos. A empresa em questão deixa de conceder a


diversos empregados o descanso semanal do 24h consecutivas, o que
repercute na manutenção da higidez biológica e psíquica dos trabalhadores,
pois obsta o convívio gregário e a reparação fisiológica (Relatório de
Fiscalização 2009, cód. GB, p. 19).

No caso dessa fazenda, o empregador acordava com os trabalhadores o pagamento


por diária, porém, as diárias tinham valores variados (40 a 80 reais). Os trabalhadores não
gozavam de descanso semanal, porém, havia certa heterogeneidade na concessão eventual de
do descanso. Já os dias de chuva, eram descontados da remuneração de todos. Na prática, os
trabalhadores laboravam 10 horas por dia ou até mais e estavam sem receber salários por 4
meses (Relatório de Inspeção 2009, cód. GB, p. 17).
Não obstante sua não centralidade na atuação pontual dos auditores fiscais do
trabalho, a centralidade da “jornada exaustiva” para o conceito de trabalho escravo
contemporâneo me foi desvendada por Nelson, um auditor fiscal do trabalho que atua no
combate ao trabalho escravo em Mato Grosso desde a década de 1990 até hoje, que entrevistei
em 2014. Nossa conversa modificou minha visão sobre a questão da jornada exaustiva em
definitivo.
Nas palavras do auditor entrevistado, o que a Inspeção do Trabalho encontra nos
flagrantes de pessoas laborando em “condição análoga à de escravos”

nada mais é do que a exploração da sua força de trabalho de forma muito


superior à sua capacidade, que se configura [...] através da jornada exaustiva.
É um tema muito próprio para isso. É exaustão. Que pode vir associada ao
cerceamento de liberdade também e, se vier, será agravada. Mas a jornada
exaustiva é o que melhor representa a condição vil de uma pessoa colocada
no trabalho escravo contemporâneo [...]. Porque se você, de tudo, disser que
uma jornada exaustiva não é uma forma de submissão da pessoa a uma
modalidade de escravidão, então não adianta nada você dizer que ele [o
trabalhador] tem cerceamento de liberdade, que ele tem seus documentos
apreendidos, tem dívida. Por quê? Porque nada disso satisfaz a quem está
explorando, porque o que o explorador precisa é da mão de obra dele usada
exaustivamente. Porque ninguém vai chamar um trabalhador para ficar na
fazenda sentado, dormindo e devendo. De nada adianta! Se ele estiver
dormindo, parado, ele pode estar devendo, ele pode ter documento
apreendido, ele pode até de vez em quando receber um castigo ou outro,
violência, mas o trabalho escravo está ligado à sua exaustão no trabalho.
.

A jornada exaustiva como modalidade de trabalho escravo ganha ainda maior


relevância no contexto da acumulação flexível.
169

No capitalismo industrial disciplinado, a luta em torno da duração da jornada de


trabalho, e não contra ela, “mostrava que os trabalhadores haviam assimilado essa nova
economia do tempo”106 (SILVA, J., 1996). Na atualidade, o que se observa é a intensificação
do trabalho e o emprego de mecanismos que compelem os trabalhadores a estender
“voluntariamente” sua jornada de trabalho.
Neste sentido, os “sistemas de barracão”, das feiras, da fabricação de dívidas e
retenção de salários, não raro, vêm aliados a outros mecanismos de controle sobre os
trabalhadores que os interpelam (ALTHUSSER, 1999) como sujeitos compelindo-os à
exploração sob consensos manipulatórios: é a “exploração por interpelação”.
A remuneração “por produção” (por peça) é um modelo frequentemente
encontrado nas situações de escravidão contemporânea que, combinada com o rebaixamento
extremo do salário, permite a exploração máxima da força de trabalho beirando seu
aniquilamento e com a responsabilização da vítima sobre seu próprio sofrimento. Aqui, mais
uma vez, escraviza-se em nome da liberdade, pois os trabalhadores que fazem jornadas
exaustivas o fazem “por livre e espontânea vontade”.
O aspecto coercitivo desse modelo de gestão aparece quando se consideram os
níveis baixíssimos de remuneração acordados, os níveis altíssimos das metas, o não
cumprimento do contratado, a retenção de salários e os mecanismos de endividamento
implicados nessas relações.
A conversa com Adriano, um trabalhador que havia sido resgatado pelo GEFM,
desnudou com clareza o mecanismo que entrelaça remuneração por produção e exaustão no
trabalho:
Adriano: Porque a meta é assim: normalmente todo proprietário tem seu
gerente, tem seu encarregado... que são pessoas que nasceu ali dentro do
trabalho, cresceu, passa de pai pra filho, de filho pra filho e assim por diante.
Ele sabe qual que é a meta do trabalhar tranquilo e ganhar seu dinheiro, mas
ele sabe também qual que é a meta dele explorar o último suor dele. E ele
joga aquela que o funcionário tem que... [pausa]
Giselle: Ele sabe muito bem né?
Adriano: Ele sabe como passar. Não adianta. Não adianta eu achar que ele
vai passar uma que eu vou poder trabalhar mais tranquilo... Não, ele põe uma
pra te arrebentar e põe um preço pequenininho.
Giselle: Pra você ter que também...
Adriano: Trabalhar muito e não levar...
Giselle: E você... já teve algum lugar que você foi que a meta era tranquila?

106
“‘A primeira geração de trabalhadores fabris’, afirma Thompson, ‘foi ensinada por seus patrões sobre a
importância do tempo; a segunda geração formou seus comitês de jornada curta no movimento pelas dez horas; a
terceira geração fez greve por hora extra ou jornada e meia. Tinham aceito as categorias de seus empregadores e
aprendido a lutar com elas. Tinham aprendido bem demais a lição de que o tempo é dinheiro’” (THOMPSON,
1998, apud SILVA, J.,1996).
170

Adriano: Não!
Giselle: É sempre beirando o impossível...?
Adriano: É sempre.... aquele ditado, leva o ouro mas deixa o couro. É
sempre aquele jeito. Nunca fala “ah, foi facinho, foi bonzinho”.
Giselle: E às vezes nem leva o ouro né?
Adriano: Muitas vezes não.
Giselle: Porque fala que vai pagar e depois não paga...?
Adriano: Na hora surge mil e um defeitos... “ah, não foi assim, não tá
assim”...
Giselle: Muda as regras...
Adriano: Aí soma lá uma coisinha que você ganhou um salário mínimo, uma
coisinha passando.... tanto! Pronto, é aquilo. Não tem carteira assinada pra
comprovar. É você e ele. É a palavra dele contra a de 2, 3 que já é lá de
dentro. Nada resolvido.

Os relatos de auditores fiscais do trabalho também retratam a manutenção de


patamares elevados de exploração através do trabalho por produção. Um dos auditores
entrevistados contou que participou do resgate de trabalhadores que realizavam roçado de
pasto e eram mantidos endividados e em condições degradantes. Quando perguntei se os
trabalhadores recebiam salário, ele respondeu que sim, mas que trabalhavam por produção e
as metas eram tão altas que, apesar de cumprirem jornadas longuíssimas (nas palavras dele,
naquela fazenda jornada de “doze horas era normal”), recebiam valores sempre inferiores ao
salário mínimo.
Prefere-se a exaustão no trabalho ao perecimento fora dele. A relação com o
trabalho sob as sombras do desemprego é exposta por uma das trabalhadoras entrevistadas:

Eu dou valor ao meu serviço. É dali que sai nosso pão de cada dia. Porque
hoje o desemprego é grande, então tem que agradecer a Deus o emprego que
tem. Vivi 5 dias na poeira aqui do mato mais os meninos, mas trabalho
contente. É ali que estou arrumando meu dinheiro bem suado e abençoado
por Deus. É tão bom ganhar o seu pão de cada dia derramando seu suor. Eu
acho que sim.

Na análise dos dados coletados dos relatórios da Inspeção do Trabalho, verifica-se


a presença da “jornada exaustiva” ao longo de todo o período pesquisado.
No campo das interpretações, que são cambiantes tanto quanto os atores e os
próprios fatos e circunstâncias analisadas, pode-se notar, entretanto, uma tendência clara: o
declínio do uso da expressão “jornada excessiva”, muito frequente nos anos 1990, e a adoção
progressiva do termo “jornada exaustiva” para referimento a situações similares (extrapolação
de jornada, não concessão de descansos e intervalos obrigatórios por lei, notadamente o
171

semanal de 24 horas, o intrajornada de 1 a 2 horas à época e o interjornada de no mínimo 11


horas).
O termo “jornada excessiva” foi identificado em relatórios de 1996 (corte de cana
e desmatamento/roço - cód AF e DV)), 1997 (corte de cana – cód DZ), 2001 (plantio e corte
de cana – cód. CO; capina e colheita de algodão – cód. U), 2003 (catação de raízes e aplicação
de agrotóxicos – cód. CG), 2004 (catação de raízes – cód FV; catação de raízes e
desmatamento – cód. FM); 2005 (catação de raízes – cód Q), 2005 (roço de pasto, construção
de cerca e plantio de capim – cód. FK), 2007 (atividade de trato de gado e cozinha – cód. FH).
A última observação na base em que se encontrou o termo “jornada excessiva” foi
um relatório de 2008 (roço de pasto e construção de cercas – cód. CD). Esse documento
marca o final de uma transição linguística, interpretativa (e possivelmente fenomênica) da
questão das jornadas no trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso Nele aparecem,
sucessivamente, as expressões “jornada excessiva” e “jornada extenuante”.

[...] submete os trabalhadores a condições degradantes de trabalho, alojando-


os em ambientes totalmente impróprios ao ser humano, não assinando suas
carteiras de trabalho, mantendo-os fora do sistema previdenciário, não os
remunerando de forma adequada, submetendo-os a uma jornada de trabalho
extenuante e sem o devido descanso, alimentando-os com uma comida
pobre em proteínas e calorias. Submetendo, ainda, esses trabalhadores ao
Sistema de Armazém (Truck System), que acaba por reduzir ainda mais os
custos com a contratação de mão-de-obra, além induzi-los a permanecer na
fazenda, pois retém seus salários até que terminem os serviços para qual
foram contratados (Relatório de Inspeção, 2008, cód. CD, p. 28, grifos
nossos).

[...] o citado empregador, além de manter os trabalhadores laborando em


jornada excessiva de trabalho e não pagar horas-extras, também não
concedia a seus empregados um descanso semanal de 24 (vinte e quatro)
horas consecutivas, que trabalhavam em todos os dias da semana, inclusive
sábados e domingos, apenas não trabalhando quando saíam da fazenda, uma
vez por mês (Relatório de Inspeção, 2008, cód. CD, p. 125).

Nos anos posteriores a 2008, apenas o termo “jornada extenuante” continuará a


ser utilizado ao lado de “jornada exaustiva”.
Foi no ano de 2004 que surgiu, pela primeira vez nos relatórios analisados, esta
nova figura: a jornada que, independentemente de ser ou não excessiva em termos de duração,
é extenuante para o trabalhador. Surge, assim, uma nova dimensão nos relatórios, que
transcende a auditoria da extrapolação de certo número de horas trabalhadas (e lavratura dos
autos de infração correspondentes) e começa também a considerar a extrapolação da própria
capacidade físico-mental do trabalhador nas jornadas laborais. O tema da intensidade do
172

trabalho (e dos efeitos da mesma sobre o corpo humano) faz-se mais e mais presente nos
relatórios dos últimos 15 anos, evidenciando um novo olhar despertado por uma
possivelmente também nova composição entre mais-valia relativa e a mais-valia absoluta.
Esta construção se dá em conjunto com o estabelecimento do novo conceito jurídico de
“trabalho análogo ao de escravo” na legislação brasileira.
O uso do termo “trabalho extenuante” foi identificado em relatórios dos anos de
2004 (um caso de catação de raízes), 2006 (um caso na colheita de sementes de capim), 2008
(dois casos de roço de pasto e construção de cercas), 2010 (um caso de roço e pulverização de
agrotóxico; dois casos no garimpo), 2012 (um caso na produção de carvão) e 2013 (um caso
na extração e transporte de madeira; um caso de roço de pasto). Portanto, até o último ano
compreendido em nossa pesquisa.
Certamente, o marco temporal de 2004 não é aleatório, pois coincide com a
entrada em vigor do novo texto do art. 149 do Código Penal, que a partir de dezembro de
2003 passou a detalhar a conduta de “submeter alguém a trabalho análogo a de escravo”,
prevendo expressamente a hipótese de “jornada exaustiva” como elemento caracterizador do
crime em questão.
O interessante é que, tendo os membros do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
participado não só do processo de discussão e construção do novo texto legal, como também
do próprio processo de publicização das informações sobre a realidade do trabalho escravo no
Brasil (através dos resultados das ações fiscais veiculados na mídia), a jornada exaustiva
retratada nos relatórios das primeiras operações (qualificadas como jornadas excessivas, mas
sempre sobre o pano de fundo da saúde e segurança do trabalhador) alimentou a discussão
sobre o instituto da “jornada exaustiva” e, reflexamente, essa institucionalização também
impactou os usos futuros do ferramental jurídico pelos mesmos atores na identificação do
trabalho compulsório e “análogo ao de escravo” no país.
Da abordagem das jornadas excessivas à da jornada exaustiva e extenuante,
emerge com importância crescente, a problemática da intensidade e intensificação do
trabalho. O tema aparece em diversos relatórios, principalmente nas fiscalizações do setor
sucroalcooleiro. Em 2006, destaca-se um caso emblemático de trabalho escravo no corte de
cana (Relatório cód. DD) em que a auditoria concluiu que o sistema remuneratório por metro
corrido de cana cortado gerava intensificação do trabalho e acidentes de trabalho. De fato,
naquele caso, segundo dados do próprio relatório, o descanso semanal não era respeitado, pois
muitos trabalhavam no domingo induzidos por promessa de pagamento em dobro; porém, não
recebiam folga compensatória durante a semana. Tampouco eram cumpridas as normas
173

referentes ao intervalo intrajornada, que, devido às promessas de pagamento por produção,


eram reduzidas a 15 minutos por deliberação dos próprios cortadores de cana. Pelo mesmo
motivo, eles realizavam uma jornada média de aproximadamente 12 horas e 45 minutos por
dia. Tal situação causava danos à saúde dos trabalhadores; entretanto, suas faltas ao serviço,
inclusive motivadas por doenças, geravam descontos de R$10 sobre a remuneração.
Em 2012, outra operação de combate ao trabalho escravo apontou expressamente
a intensificação das jornadas de trabalho no mesmo setor. Além da intensidade da atividade
laboral, também foram identificadas infrações a normas trabalhistas que regem os descansos e
intervalos na jornada de trabalho. Neste caso mais recente, as jornadas também eram
superiores a 10 horas, chegando a 17 horas em dias extremos. Os intervalos intrajornada, por
sua vez, eram de no máximo 40 minutos, o que, naquele contexto, foi considerado pela
auditoria como insuficiente para repor a energia dos obreiros (Relatório cód. BE).

2.2.1.5. Tendências e composições das modalidades de trabalho escravo

Quando observamos as variações no tempo destes indicadores, percebemos o


rearranjo de morfologias de exploração da força de trabalho e linhas de interpretação jurídica
em torno das categorias: “servidão por dívida”, “trabalho forçado” e “jornada exaustiva”.
Estas trajetórias e recomposições se dão sobre o pano de fundo das “condições degradantes”,
um elemento constitutivo que tem caracterizado consistentemente o trabalho escravo em Mato
Grosso por todo o período analisado, desde o início das operações fiscalizatórias em 1995 até
os nossos dias.
174

FREQUÊNCIA DOS ELEMENTOS CARACTERIZADORES DO TRABALHO ESCRAVO


NAS FISCALIZAÇÕES EM MATO GROSSO - VARIAÇÕES NO TEMPO
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

CONDIÇÕES DEGRADANTES JORNADA EXAUSTIVA


SERVIDÃO POR DÍVIDA TRABALHO FORÇADO

Gráfico 11 –Modalidades de trabalho escravo – variação no tempo


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Como se observa no gráfico acima, a partir de 2007 parece haver uma


reconfiguração nas formas de exploração do trabalho. A servidão por dívida que, por tanto
tempo, representou a típica forma de escravizar no Brasil contemporâneo, passou a ter uma
presença mais discreta nos casos constatados pela fiscalização. O trabalho forçado e as
jornadas exaustivas também sofrem queda na mesma época. Porém, nos últimos dois anos
analisados, as três modalidades ganham mais expressividade, sem, contudo, aproximarem-se
das condições degradantes de trabalho, que foi identificada em 100% dos casos de todos os
anos, exceto 1995 e 2004. Nos próximos itens da pesquisa investigaremos justamente este
conjunto de transformações recentes.
A análise dos dados coletados nesta pesquisa revela, também, que a maioria dos
casos de trabalho escravo envolve o uso de uma pluralidade de mecanismos de coerção e
intimidação. Essa mesma tendência é observada em termos mundiais pelo relatório Global
Estimates of Modern Slavery, publicado pela OIT em 2017, referindo-se ao período analisado
de 2016.
A fala de Luís, um trabalhador entrevistado na Casa do Migrante, revela um
emaranhado de mecanismos que imobilizam as pessoas no local em que seu trabalho é
superexplorado. Revela, ainda, a ligação íntima entre trabalho escravo e desrespeito à própria
vida humana. Quem corre risco de vida já não é livre. Não por acaso, foi quando lhe perguntei
sobre o pensamento de morte que ele descreveu sua condição de escravizado.
175

Giselle: Por que você pensou que ia morrer?


Luís: Porque nós ia ficar devendo! Não tava aguentando mais, entendeu?
Nós tava sentindo fraco, a cabeça doendo. Não tinha remédio para dor de
cabeça. Então era muito difícil! Eu mesmo fui de pé umas três vez atrás de
óleo. Ó que cê andar 15 quilômetro... Eu saía de lá quatro e tanto da
manhã…tinha onça demais. “vocês pode escolher, mas não garanto que
vocês saem da sede", só falou assim. Então a gente pensa, prefere trabalhar...
Então tava sempre... A gente sempre pensa assim: é melhor nós viver,
morrer trabalhando, do que morrer ali... entendeu?
Giselle: Morrer aí onde?
Luís: Lá... matado pelos outro. É melhor morrer de fome, ou morrer
trabalhando ou morrer com malária do que você morrer por um tiro, né, é
muito doído.

No caso de Luís, assim como no de muitos outros trabalhadores, era uma


combinação de fatores que o prendia ao trabalho escravo.
Por um lado, havia o mecanismo da dívida, que o gato mantinha através dos
adiantamentos para a "feira" (comida a ser consumida por semanas, já que a propriedade rural
era distante do centro urbano e propositadamente só eram feitas compras de tempo em
tempo). Por outro, as ameaças de morte do gato àqueles que tentassem fugir da fazenda. E,
além de tudo, as condições extremas e degradantes de trabalho e de vida.
A possibilidade de fuga noturna era dificultada pela presença de onças e outros
animais perigosos na mata. A saúde cada vez mais débil, a exigência de produtividade e o
sofrimento psicológico também minavam os planos de fuga.
Por fim, ante a certeza já da morte, o trabalhador se via diante de sua liberdade
derradeira: a escolha de uma morte mais digna. É melhor morrer de fome, doença ou exaustão
do que morrer "matado pelo outro", assassinado, morrer de morte violenta, morrer sem honra.
Entregar ao patrão o controle sobre o tempo e a forma de sua morte seria desfazer-se do que
lhe restava de dignidade. A ironia da ameaça sofrida sintetiza o drama do trabalhador: ele
podia escolher sair, mas nada garantia que sairia com vida.
176

2.2.2. Outras nuances da morfologia do trabalho escravo

2.2.2.1. Informalidade

A análise dos relatórios de fiscalização de trabalho escravo em Mato Grosso


evidenciou a ligação estreita entre informalidade e trabalho escravo.
Apenas em 8 de 180 casos de trabalho escravo analisados no período de 1995 a
2013, as vítimas eram, em sua totalidade, trabalhadores com vínculo formalizado. Em 136
casos, a totalidade dos trabalhadores submetidos a condições “análogas a de escravo” estava
sem registro formal. Houve, ainda, 36 ocorrências de situações mistas, em que parte dos
trabalhadores era mantida na informalidade e parte tinha o vínculo formalizado.

FORMALIZAÇÃO DOS VÍNCULOS DE TRABALHO

Todos os trabalhadores sem


2,22% registro durante todo o período
4,44% 1,11% laborado

Presença de trabalhadores
16,67%
formais e informais

75,56% Todos os trabalhadores com


vínculo formalizado por todo
período laborado

Presença de trabalhadores
informais e de trabalhadores
registrados com data posterior
à admissão

Gráfico 12 – Formalização dos vínculos de trabalho


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Comparando estes percentuais aos dados nacionais sobre a informalidade no


período analisado (1995-2013), notamos que, conforme o esperado, a informalidade é mais
acentuada no trabalho escravo do que no não escravo.
177

Tabela 7 – Brasil – Ocupação formal e informal


Fonte: Microdados da PNAD (Targino; Vasconcelos, 2015)

A correlação entre informalidade, exploração e precarização prescinde de grandes


reflexões, por se tratar de uma das principais práticas de “desoneração da folha de
pagamento”, uma vez que desvincula o trabalhador de todo o sistema de garantias sociais.
Nada mais lógico, portanto, do que os trabalhadores submetidos a condições “análogas a de
escravo” serem mais frequentemente alvos de práticas como esta, uma vez que, no conjunto
da classe-que-vive-do-trabalho, eles são os mais explorados e aqueles que vivem a
precarização no extremo: onde ela se converte em degradação.
Aqui, trataremos apenas de pontuar alguns aspectos da informalidade observados
na documentação consultada que possam servir de subsídio para a análise da morfologia da
escravidão e da exploração do trabalho.
O primeiro ponto é a maior incidência das práticas de informalidade na
contratação de trabalhadores para determinado tipo de serviço. Em relatório de fiscalização de
trabalho escravo do ano de 2007, a equipe aponta que o empregador adotava como prática
sistemática não reconhecer vínculo empregatício com trabalhadores que realizavam atividade
de roço (Relatório de Inspeção 2007, cód. O, p. 7).
O segundo ponto é o papel da informalidade no sentido de mascarar a
responsabilidade do empregador, que passa a exercer um controle remoto, distante, invisível
e, muitas vezes intermediado, sobre a força de trabalho. Num relatório do GEFM de 2002,
encontramos uma descrição esclarecedora sobre a informalidade no trabalho rural em Mato
Grosso:

Os produtores acham mais prático a contratação irregular do que o contrato


de safra, que os deixaria tranquilos e livres dos problemas trazidos pelo
aliciador, que é uma figura tipicamente criminosa. Apostam na sorte de não
sofrerem fiscalização e no fato dos trabalhadores não saberem identificar
nem a propriedade nem o produtor, de tanto que mudam de lugar, podendo
178

inclusive não ser o proprietário o seu patrão, mas um arrendatário, como foi
o presente caso, tornando mais difícil ainda para os trabalhadores desvendar
quem é que manda. Empregador, para eles, é o ‘gato’, não importando onde
estejam ou para quem produzem. Como os serviços nas fazendas são de
curto prazo, a vinculação à pessoa do ‘gato’ é que lhes dá a sensação de
estarem sempre empregados por ele. O registro, portanto, não é considerado
importante para nenhum dos integrantes desse triângulo laboral (Relatório de
Inspeção 2002, cód. ED, p. 7).

O terceiro ponto reside na relação entre informalidade e vulnerabilidade social.


Uma observação fundamental presente em muitos relatórios da inspeção do trabalho diz
respeito à relação entre informalidade, precarização do trabalho e uma cadeia de violações a
direitos básicos que ameaçam inclusive a sobrevida dos trabalhadores:

É bom lembrar que, com a falta de anotação na Carteira de Trabalho e


Previdência Social, o trabalhador perde outros direitos, alguns até mesmo
essenciais à sua sobrevivência, tais como: participação no PIS, auxílios
enfermidade e acidentário, seguro desemprego e aposentadoria (Relatório de
Fiscalização 2006, p. 31).

Desvinculado não só de garantias de um contrato formalizado, mas também do


próprio sistema público de proteção social, o trabalhador encontra-se vulnerabilizado ao
máximo, com poder de barganha cada vez menor ante as imposições do empregador.
Por fim, no campo político, cabe lembrar que, no caso do trabalho rural em Mato
Grosso, ao diminuto poder de barganha individual costuma corresponder um também
diminuto poder de barganha coletivo. Conforme salientou Lis, auditora fiscal do trabalho que
atuava nas negociações e fiscalizações no setor sucroalcooleiro na década de 1990, as
instituições

nunca conseguiram fechar convenção coletiva no Mato Grosso porque a


FAMATO107 nunca se interessou. Só acordo direto entre sindicato e empresa
grande. [...] Onde tem as empresas maiores os sindicatos conseguem ter uma
penetração maior e fazem reuniões, visitas. Nas informais eles só aguardam
denúncia. [...]. Por conta dessa situação, o piso salarial dos trabalhadores dos
empreendimentos rurais menores acaba ficando sempre em torno do salário
mínimo.

Conforme relata a mesma auditora, as dificuldades dos sindicatos rurais são


gritantes em relação aos urbanos, ainda mais num estado de grandes dimensões como o Mato
Grosso, uma vez que o próprio distanciamento geográfico entre as empresas e o reduzido

107
Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso
179

número de trabalhadores em cada fazenda inviabiliza muitas vezes a realização de


assembleias e reuniões da categoria.
É por isso que nos conflitos retratados nesta pesquisa os sindicatos têm uma
presença mais concentrada nas denúncias do que nas negociações propriamente ditas. O
cenário é diferente no caso das grandes empresas sucroalcooleiras, em que se percebe um
acompanhamento mais regular dos sindicatos possibilitado pela própria formalização dos
vínculos e concentração espacial dos trabalhadores, que geralmente têm contato com o
respectivo sindicato já no início do contrato de trabalho. Nos demais casos, as mobilizações
coletivas e o embate político em torno da exploração se dá no próprio ambiente de trabalho,
através da articulação e organização dos próprios trabalhadores entre si. Eventualmente,
quando os conflitos não solucionados desembocam em denúncia, há o acionamento de
autoridades públicas, sindicatos e diversas organizações da sociedade civil.

2.2.2.2. Formas de remuneração e mais-valia

Neste tópico, discutiremos alguns dados sobre formas de remuneração e suas


implicações na exploração da força de trabalho. Buscaremos compreender como se dá, nos
casos estudados, e interação entre a equivalência dos contratos e o processo de geração de
mais-valia.

Nesse âmbito [o processo da produção] se dá a operação social que é o


fundamento da sociedade do capital, a apropriação do tempo de trabalho
não remunerado. Como é possível uma operação social desse tipo, que tanto
contrasta com o princípio (jurídico) da igualdade? É possível porque, na
realidade das relações materiais vigentes, a troca entre capital e trabalho não
é uma troca entre seres ‘livres e iguais’. É uma troca socialmente desigual,
porque se dá entre uma classe que monopolizou os meios e as condições de
produção social e uma outra classe despossuída desses meios e condições;
entre uma classe que pode comprar todo o tempo de trabalho e de vida que
lhe sirva para aumentar o seu capital e uma outra classe que, para viver, é
obrigada a vender, em troca de um salário, o seu próprio tempo de trabalho e
de vida; entre a classe proprietária do tempo social, do tempo ‘de todos’, do
tempo, e a classe dos expropriados do próprio tempo, dos ‘sem tempo’. Esse
é o núcleo de todo o problema do tempo e do tempo de trabalho na sociedade
atual: o tempo é uma mercadoria, objeto de compra e venda em dinheiro
(BASSO, 2018, p. 333).

A análise das formas de remuneração num tipo de trabalho em que a regra é a não
remuneração (o não cumprimento dos prazos legais de pagamento salarial, a violação dos
180

valores contratados, a fabricação de dívidas fictícias e outros mecanismos que elidam os


pagamentos devidos, incluindo até mesmo a mera retenção de salarial) apresenta um
questionamento elementar: afinal, qual a relevância de se analisar a forma remuneratória
acordada entre as partes se, na maior parte dos casos, ela não foi cumprida?
A resposta a esta indagação está justamente em nossa hipótese de que a “liberdade
de contratar e de ir e vir” é cada vez mais mobilizada na exploração manipulatória dos
trabalhadores no trabalho escravo flexível. Isto é, mesmo que em praticamente todos os casos
aqui analisados tenha havido algum tipo de não pagamento referente ao que, em teoria,
constituiria a “fração paga” do trabalho (tempo de trabalho necessário), entender as formas
em que estes contratos (geralmente vagos e verbais) foram estabelecidos, negociados, aceitos
ou refutados nos dá pistas para compreender os novos mecanismos de extração do “trabalho
não pago”.
Afinal, a relação contratual de trabalho (tanto a pactuação inicial, como também
suas renegociações ao longo do vínculo laboral) não é a equivalência efetiva entre trabalho e
salário (pois existe a mais-valia), mas também não é uma desigualdade abertamente imposta.
O contrato é equivalência jurídica que viabiliza a não-equivalência da esfera produtiva. É
através da aparência de igualdade entre prestação e contraprestação que o consentimento é
manufaturado para o trabalho pago e, por tabela, para o trabalho não pago. E é nos momentos
em que a desigualdade entre trabalho e remuneração do trabalho se escancara e o acordo se
desfaz, que podemos enxergar a luta silenciosa que habita o consenso contratual.
Primeiramente, apresentamos as principais formas remuneratórias identificadas
nos casos de trabalho escravo estudados (inclusive arranjos mistos) e suas frequências na base
de dados. Em seguida, através da análise qualitativa de alguns desses dados, apresentaremos
os principais instrumentos de ampliação da mais-valia atrelados a acordos remuneratórios,
utilizados pelos tomadores dos serviços realizados em regime de neoescravidão na realidade
mato-grossense dos últimos anos.
181

FORMAS PACTUADAS DE REMUNERAÇÃO

Remuneração totalmente por


produção

2% Misto de produção e diária


1%
10%
5% Recebem por diária apesar de
36%
trabalho ser "não eventual"
7%
Informações inconclusivas
17%
Salário mensal fixo
22%

Não há promessa de remuneração

Remuneração mista (por diária,


produção e salário fixo ou outras
formas)
Outros

Gráfico 13 – Formas pactuadas de remuneração


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Como vemos no gráfico acima, no que diz respeito à frequência das diversas
modalidades de remuneração aferidas na base de dados, uma linha de análise interessante à
primeira vista é a comparação entre a frequência da “remuneração mensal fixa” e as demais
modalidades remuneratórias praticadas, com ou sem respaldo da lei (que englobam
remuneração “por produção”, por diária, por hora e combinações entre elas ou entre alguma(s)
delas e parcelas remuneratórias fixas). Como podemos observar no gráfico acima, apenas 5%
dos casos de trabalho escravo constatados pela fiscalização em Mato Grosso de 1995 a 2013
reportava-se a relações de trabalho com (promessa de) remuneração mensal estritamente fixa.
Dando seguimento à análise, ao invés de buscar alguma correlação entre
determinado regime remuneratório e as jornadas exaustivas a partir dos resultados da pesquisa
quantitativa, o exame qualitativo dos documentos mostrou ser mais relevante empreender uma
análise sobre a luta entre capital e trabalho nas negociações, imposições e violações dos
padrões e acordos remuneratórios. Essa escolha se amparou no fato de termos constatado mais
convergências do que divergências entre as variadas práticas e lutas remuneratórias no
universo analisado.
182

Assim, indicamos aqui os principais instrumentos de ampliação da mais-valia


extraída, atrelados às principais modalidades remuneratórias identificadas na base: a)
remuneração “por produção” (por peça ou por um quantum de produtos108); b) remuneração
“por diária”; c) salário mensal fixo.
Iniciando pela remuneração por produção, é significativa sua presença dominante
nos casos analisados (remuneração “por hectare roçado”, “por metro de cana cortado”, “por
unidade entregue na construção de pocilgas”, “por metro construído de cerca”, “por metro
cúbico de lenha extraída”, “por rua capinada”, “por milheiro de pedra cortada”, etc.).
Se somarmos a frequência dos arranjos estritamente “por produção” aos arranjos
mistos (que incluem fração calculada em função da produção), temos que 68% do trabalho
escravo analisado foi realizado sob sistemas remuneratórios calculados parcial ou
integralmente com base num quantum produzido por cada trabalhador.
Inúmeras pesquisas têm apontado a íntima relação entre sistemas remuneratórios
similares ao “trabalho por peça”, a intensificação do trabalho, as sobrejornadas e os agravos à
saúde dos trabalhadores. O resultado da presente pesquisa corrobora com as conclusões desses
estudos de que a remuneração por peça tende a reduzir o tempo de trabalho socialmente
necessário e simultaneamente alongar a duração das jornadas, ampliando a extração de mais-
valia relativa e absoluta.
Eis o depoimento de um cortador de cana entrevistado pelo GEFM em ação fiscal
de 2006 (já citada no item 2.2.1.4) que constatou jornada exaustiva com duração de 12 horas e
45 minutos e alta intensidade:

QUE o declarante e a maioria dos trabalhadores não levava sequer quinze


minutos para fazer a refeição, pois queriam aumentar a produção, a fim de
aumentar os seus pagamentos; QUE os trabalhadores que quisessem
poderiam trabalhar no domingo, mediante a promessa dos administradores
da fazenda de que receberiam o pagamento em dobro, não havendo folga
durante a semana para compensar o trabalho dominical (Relatório de
Inspeção, 2006, cód. DD).

O relatório de uma fiscalização que encontrou 129 pessoas trabalhando em


condições análogas a de escravo na capina do algodão em 2002 traz também um retrato
interessante sobre a questão:

Encontramos um grande grupo de trabalhadores que portavam suas CTPS


sem nenhuma assinatura [...]. Vários trabalhadores que estavam nessa

108
Ver Marx, Karl, O Capital, v.1.
183

situação eram do MT, arregimentados pelo “gato” Heitor. Algumas foram


assinadas com o salário mínimo, porém essa anotação era somente “pro-
forma”, pois os trabalhadores foram avisados pelo Heitor que só receberiam
a produção, que dava no máximo R$ 100,00 mensais, inferior ao salário
mínimo da CTPS. Os trabalhadores disseram que apesar de parecerem ser
pouco produtivos, eles produziam bastante, porém, os preços dados às
tarefas eram insuportáveis e ninguém conseguiria produzir tanto por serem
metas acima da capacidade humana. Essa seria uma forma de burlar os
direitos dos trabalhadores e toda a Organização do Trabalho (Relatório de
Inspeção, 2002, cód. AC, p. 5).

A remuneração por produção conjugada ao “assédio moral como ferramenta de


gestão” (ANTUNES, 2018) aparece em diversos trechos dos relatórios do GEFM, a exemplo
do depoimento de um dos seringueiros retirados de situação de escravidão contemporânea em
2006. Na ocasião, ele afirmou aos auditores:

QUE os trabalhadores que não atingem a produtividade considerada normal


pelos fiscais da fazenda são mandados embora da fazenda pelo gerente, sem
quitar os pagamentos em atraso; QUE aos trabalhadores demitidos não é
fornecido sequer transporte para a cidade (Relatório de Inspeção 2006, cód.
FJ, p. 10).

Na mesma fiscalização, a equipe relatou ter constatado que a falta de pagamentos


regulares levava os trabalhadores a passarem fome, situação amenizada apenas por ter
coincidido com a safra de mangas, conforme depoimento de um dos trabalhadores: “QUE já
ficaram sem alimentos e chegaram a pedir arroz emprestado para outros trabalhadores e só
não passaram fome, porque comiam mangas [...]” (Relatório de Inspeção 2006, cód. FJ, p.
10).
Outro aspecto fundamental, já levantado por Marx, é que o salário por peça dá
margem a inúmeras fraudes com base em exigências arbitrárias de como deve se apresentar o
produto (especificações e qualidade) e nas formas de sua avaliação. Nos documentos aqui
analisados, esta faceta consiste, de fato, num dos pontos de maior conflito nas relações entre
trabalhador e tomador do serviço. Observa-se não só a problemática da qualidade do produto
e de sua aferição, como também os métodos arbitrários de medição do quantum produzido, as
alterações unilaterais de cláusulas contratuais (a exemplo do valor pago por cada unidade
produzida ou a meta estabelecida) e as informações enganosas sobre as características e
dificuldades do serviço, que impactam diretamente as projeções de ganho que os
trabalhadores haviam feito no início da relação, quando decidiram aceitar o trabalho.
184

Ilustro com o caso dos trabalhadores retirados de situação de escravidão


contemporânea em atividade roço, em 1996. Eles relataram à equipe de inspeção “que haviam
contratado determinado valor por um alqueire de mata derrubada, mas estavam sendo
obrigados a limpar um ‘alqueirão’, exatamente o dobro daquele contratado” (Relatório de
Inspeção, 1996, cód. X, p. 5). Similares a esse, há inúmeros casos na base de dados
pesquisada.
Em outro relatório, já no setor da cana, em 2000, encontramos a seguinte situação:
“Outro fator que concorre para os baixos salários é a forma injusta de aferição da produção de
cada empregado, não há balança para pesagem e a medição é feita por cada apontador o qual
‘fabrica’ um compasso a olho nu, ou seja, sem nenhuma medida oficial” (Relatório de
Inspeção, 2000, cód. CW).
O preço a ser pago por cada unidade ou a forma de mensurar o número de
unidades efetivamente produzidas são objetos de disputas e reinvindicações em nome de uma
“justiça”, de uma justa medida.
Outro ponto das observações de Marx que encontra grande ressonância na
exploração da força de trabalho contemporânea é a resistência individual ou de grupos de
trabalhadores no próprio ambiente de trabalho quando está em jogo um trabalho remunerado
por peça ou por qualquer sistema variável em que os cálculos de equivalência podem ser
feitos e conferidos por ambas as partes (ao contrário do valor fixo do salário que se impõe
como justiça ou arbitrariedade e, seja de um jeito seja de outro, não admite argumentos em
contrário a não ser que se questione a própria mais-valia). Como observou Marx (2008):
“Onde, porém, determinado salário à peça se tenha tradicionalmente consolidado e a sua
diminuição ofereça por isso particulares dificuldades, os patrões recorreram,
excepcionalmente, também à sua transformação violenta em salário por tempo”.
Estas disputas são identificadas não só nos casos de remuneração por peça, mas
também nas relações com outros arranjos remuneratórios que incluam alguma parcela variável
(que varie conforme critérios aplicados com fins de exploração da força de trabalho, mas que
podem ser utilizados como resistência à exploração). É o caso recorrente das horas
extraordinárias (geralmente praticadas diariamente, configurando as chamadas ‘horas extras
habituais’, contra os ditames do direito e da lógica) acopladas aos salários fixos e, em alguns
casos, também às diárias.
Passamos agora a algumas observações sobre as demais modalidades de
remuneração. No pagamento do trabalhador “por diária”, o principal artifício de ampliação da
mais-valia é que o empregador mantém, de forma disfarçada, os trabalhadores à sua
185

disposição todos os dias (com a não eventualidade e pessoalidade109 que caracterizam


juridicamente os vínculos de emprego) e só remuneram alguns deles. Neste caso, vê-se
claramente a redução do “tempo ocioso” adotado no modelo produtivo toyotista, porém, essa
“otimização” não é feita apenas dentro da jornada laboral, mas também fora dela,
considerando-se como “dia não trabalhado” todos os dias em que a produção (por motivo de
chuvas ou doenças dos trabalhadores, inclusive laborais, bem como por outras circunstâncias
a que o trabalhador não deu causa) apresentaria nível abaixo do desejado. Portanto, durante a
jornada de trabalho, todo tempo é tempo produtivo; fora dela, todo tempo é tempo vivido em
função da produção.
Já nas configurações que envolvem remuneração por salário mensal fixo, as
disputas em torno do valor fixo do salário são mais raras (geralmente envolvem a presença
dos sindicatos e se realizam antes do início das atividades laborais). Mesmo em casos em que
é oferecido um valor abaixo do salário mínimo como contraprestação do serviço mensal, em
acintoso abuso da vulnerabilidade do trabalhador e violação das leis, a revolta não costuma
aparecer nos relatos desses sujeitos que têm plena consciência de que aceitaram as condições
injustas porque precisavam realmente de qualquer trabalho. É o cumprimento do combinado –
e não a justiça (ou mesmo a legalidade) do contrato o principal – o verdadeiro objeto de
reivindicação política.
As investidas dos empregadores com o fim de alterar os termos do contrato e
diminuir a remuneração do trabalho, nos regimes de salário mensal fixo, não encontram os
recursos oferecidos pelo trabalho “por peça” para tentar ludibriar os trabalhadores e disfarçar
as injustiças. Além disso, por se tratar de valores fixos, não manipulam as subjetividades dos
trabalhadores com a ilusão de que teriam uma margem de ação para auferirem um salário
suficiente, fazendo mais diárias, horas extras, trabalhando aos domingos ou aumentando a
intensidade do trabalho para produzir mais unidades na remuneração por peça. Sem o sistema
de amortecimento destas formas flexíveis de remuneração, o sistema do salário fixo esbarra
numa resistência mais clara dos trabalhadores, muitas vezes inviabilizando a relação de
produção.
Foi o caso dos trabalhadores aliciados em Sergipe para trabalhar numa obra na
cidade de Cuiabá, em 2013. A construtora tomadora terceirizou o serviço para outra

109
No Direito do Trabalho, a pessoalidade faz referência ao fato do trabalhador contratado não poder se fazer
substituir por outra pessoa na prestação dos serviços. Já a não eventualidade, diz respeito à continuidade das
relações de emprego, que se estendem no tempo. Ao lado da subordinação e da onerosidade, consistem nos
elementos caracterizadores do vínculo empregatício, que o diferem de outras relações de trabalho (inclusive em
termos de tutela jurídica).
186

construtora que, através de ‘gatos’, trouxe os trabalhadores de forma irregular (falsas


promessas e cobrança do preço do transporte e “serviço de agenciamento”, gerando dívida
prévia ao ingresso no serviço). Ao chegarem em Cuiabá, foram informados de que os valores
dos salários sofreriam rebaixamento: as funções a que foram prometidos R$ 1866 passariam a
receber 1486; os profissionais que tinham aceitado trabalhar por um salário de R$ 1200
receberiam apenas R$ 1062. Assim que souberam que as condições prometidas não seriam
cumpridas, os trabalhadores manifestaram vontade de ir embora, mas o empregador se negou
a providenciar transporte e não lhes devolveu as carteiras de trabalho. Neste caso, o desacordo
era tão aberto que a nem foi dado início aos serviços. Prontamente foi feita a denúncia e o
conflito foi equacionado em conjunto com a chegada da inspeção do GEFM (Relatório de
Inspeção, 2013, cód. BF).
Entretanto, o que verificamos no universo estudado é que as lutas dos
trabalhadores que trabalham por salário mensal se aproximam muito do que já descrevemos
sobre os outros arranjos contratuais. As reivindicações concentram-se, portanto, sobre a parte
variável da remuneração (no caso das horas extraordinárias, trabalho aos domingos, trabalho
noturno, insalubre, etc.). Sobre o cálculo dessas frações e também sobre o direito de realizar
mais trabalho para “fazer valer a pena” um contrato que, claramente, foi firmado em seu total
desfavor.
Um caso revelador registrado pela inspeção do trabalho ocorreu em 2002,
envolvendo trabalhadores aliciados por “telegatos” para a capina do algodão. Havia sido
acordado previamente um salário de “R$ 200,00 e mais horas extras” (apesar de as carteiras
de trabalho terem sido anotadas com o salário mínimo). Porém, “como a produção dos
trabalhadores extrapolou as expectativas, o produtor, através dos seus prepostos, tratou de
alterar o ajustado”: estabeleceu-se a partir de então um valor de salário fixo mensal de R$
450,00, sendo eliminadas as horas extras110 (Relatório de Inspeção, 2002, cód. T, p. 19).
Além disso, a modalidade do salário mensal fixo é muito utilizada na
formalização fraudulenta dos contratos e registros dos trabalhadores, para excluir quaisquer
parcelas remuneratórias da base de cálculo de outros direitos (como férias, décimo terceiro,
rescisão contratual, etc.). Podemos verificar a utilização dessa prática em diversos casos,
incluindo até mesmo as negociações entre empregadores e auditores-fiscais do trabalho no
momento de formalizar e rescindir os contratos com os empregados que trabalhavam na

110
Nos termos do Relatório de Inspeção: “O anúncio das horas extras encheu de esperanças o peito dos robustos
trabalhadores, transformando-os numa força motriz poderosa, capaz de realizar assombrosas produções. De
repente, a força e a motivação dos doutores da enxada assustaram o contratante, que resolveu acabar com as
horas extras e pagar-lhes um salário fixo de R$ 450,00” (p. 16).
187

informalidade sob condições escravizantes. Numa operação ocorrida em 2009, que encontrou
23 trabalhadores em condição análoga a de escravo na atividade de extração de látex, o valor
da remuneração verbalmente pactuado com os seringueiros havia sido de 25% sobre a
produção da borracha; porém, no momento em que a fiscalização exigiu o registro dos
trabalhadores, o empregador tentou formalizar contratos com valor fixo de um salário mínimo
(Relatório de Inspeção, 2009, cód. BW). Nota-se, em casos como esse, uma outra
intencionalidade no uso da forma “salário fixo”, qual seja: estabelecer um teto limitado para
os encargos trabalhistas e um valor ilimitado para a exploração da força de trabalho.
Por fim, tendo percorrido os mecanismos de exploração específicos de cada
modalidade de cálculo salarial, podemos compreender o porquê da forte presença de arranjos
mistos nestas relações de trabalho que são, dentro do espectro do mundo das precarizações, os
casos mais extremos de exploração e degradação, a ponto de serem classificados como
trabalho escravo.
Como exemplo, temos os pedreiros contratados para construção de aviários numa
fazenda em 2009, cuja remuneração contratada (e não cumprida) se compunha da seguinte
forma: R$ 600 de valor fixo, R$ 200 a título de horas extras, acrescidos de uma quantia em
dinheiro pelo término da tarefa de concretagem (que era de R$ 375, a serem divididos entre
todos os trabalhadores da turma).
Muito recorrente também é a alteração da forma de remuneração unilateralmente
pelo empregador, quando do início das atividades ou mesmo no decorrer do serviço, com
vistas a reduzir seus custos às expensas dos trabalhadores. Reproduzimos abaixo um exemplo
que combinou alteração de forma de remuneração e alteração na natureza das tarefas com
vistas a aumentar o nível de exploração da força de trabalho:

A diária ajustada era de R$37,00 a R$40,00 e foram levados para trabalhar


na fazenda [...] por uma van, sendo-lhes cobrada a quantia de R$70,00
(setenta reais) pelo transporte. Chegando lá, a diária ajustada não lhes foi
paga, sendo diminuída para R$23,00 a R$24,00 por hectare, mas as
condições exigidas faziam com que não ganhassem mais do que R$3 a R$4
por dia. Isto porque, após catarem pau preto, o gato exigia que catassem pau
fino (Relatório de Inspeção, 2004, cód. FL, p. 2).

Em linhas gerais, as horas extraordinárias (que são acompanhadas de uma


promessa legal implícita ou contratual explícita de valerem mais do que a hora ordinária)
garantem a extensão das jornadas de trabalho; a remuneração por produção garante não só a
sobrejornada, mas também a intensificação do trabalho e a possibilidade de abaixar ainda
188

mais o nível salarial através de alterações nas tarefas, modos de aferição e exigências quanto à
qualidade da peça ou unidade produzida; os salários fixos garantem a neutralização de
possíveis resistências políticas (e, no caso dos vínculos formalizados, buscam reduzir a base
de cálculo para outros direitos dos trabalhadores); por fim, a remuneração por diárias evita o
absenteísmo e diminui o tempo ocioso também fora da jornada de trabalho, fazendo coincidir
os dias de “folga” do trabalhador com os dias em que a produtividade não atingiria níveis tão
altos.
As lutas concentram-se não sobre a mais-valia, mas sim sobre o contratado. Por
outro lado, a resistência também se organiza sobre os dispositivos dos contratos, verbais ou
escritos. A luta dos trabalhadores, num contexto de erosão do poder sindical, ganha força em
diversos momentos em que se apropriam da própria máquina de gerar mais-valia: as fórmulas
da equivalência jurídica.

2.2.2.3. Formas de recrutamento

Um dos pontos centrais da pesquisa é o estudo do aspecto contratual das relações


de trabalho escravo na contemporaneidade.
189

FORMAS DE RECRUTAMENTO

Contrato de trabalho prévio verbal


0%

1% Contrato de trabalho prévio escrito


2% 3% 3% 1%

Contrato verbal com informações


enganosas sobre aspecto elementar do
trabalho
Contratos de trabalho verbais e escritos

90% Trabalhador vendido ou sequestrado

Fraude ao direito trabalhista através de


contrato de parceria ou de prestação de
serviços
Obtenção do consentimento da família
para levar trabalhador com incapacidade
civil através de promessas enganosas

Gráfico 14 – Formas de recrutamento


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Antes de discutirmos alguns pontos de interesse sobre arregimentação de


trabalhadores, detenho-me em um dado do gráfico apresentado: a ausência, em toda a base, de
casos de trabalhadores vendidos ou sequestrados. Esta constatação, que parece óbvia e sem
importância a quem tem familiaridade com os dados da fiscalização do GEFM (que
praticamente não apresentam casos de arregimentação forçada), também pode parecer absurda
e igualmente sem importância para os agentes que atuam no combate ao tráfico de pessoas
(que se defrontam com casos de transporte forçado das vítimas).
De certa forma, uma tipologia que jamais foi encontrada num caso concreto do
universo pesquisado possivelmente nem seria codificada. Ocorre que a questão do elemento
forçado x elemento volitivo é um dos pontos fundamentais de todo o desenvolvimento da
pesquisa. Por isso a codificação foi feita não só a partir dos casos de trabalho escravo
analisados, mas também com o subsídio de leituras e entrevistas com atores que lidam com o
fenômeno do trabalho escravo em outros países e regiões do Brasil, com características
diferentes das aqui apresentadas. Buscou-se, assim, criar tipologias que pudessem ser mais
úteis em estudos comparativos e, ao mesmo tempo, que não omitissem dos resultados, o que
190

pode ser um dado precioso: nossas especificidades mais características, expressas, mais do
que nas variáveis, nos elementos constantes.
Feita esta observação, podemos concluir que, no que diz respeito às formas de
recrutamento da força de trabalho, nossos dados confirmam a hipótese principal da tese, de
que o trabalho escravo se utiliza de tecnologias e práticas típicas do mercado de trabalho livre
para se realizar. É o que verificamos no gráfico a seguir, em que fundimos as variáveis do
gráfico anterior em apenas três tipologias: a) recrutamento forçado (através de venda do
indivíduo ou de sequestro); b) recrutamento não forçado (através de contratos verbais ou
escritos, ainda que enganosos ou fraudulentos, desde que o engano não se refira a elemento
essencial111 da relação de trabalho, como identificação do empregador, natureza do trabalho
contratado e região onde será realizado o serviço); c) situações limítrofes112 (em que há
aliciamento através de informações falsas sobre elemento essencial da relação de trabalho).
Temos, então, o seguinte resultado:

111
Os “elementos essenciais” da relação de trabalho se opõem aos elementos considerados secundários, como
forma de remuneração, condições de alojamento e condições gerais de prestação do serviço. A distinção,
inspirada na metodologia da OIT, é importante por distinguir as falsas promessas sobre condições de trabalho e
remuneração, que geram inúmeros conflitos de situações mais graves ainda, em que o trabalhador é aliciado e
levado para prestar serviço em local omitido ou desconhecido, ou para empregador com quem não contrataria e
até sendo compelido a realizar um trabalho completamente diverso do acordado. No caso da fraude em relação a
elementos tão essenciais do contrato de trabalho, a situação pode tornar-se um recrutamento eminentemente
forçado, dependendo do caso concreto, o que motivou a OIT a inseri-lo como indicador de recrutamento forçado.
112
Esta tipologia foi inspirada nos parâmetros adotados pela OIT no estudo Hard to see, harder to count.
191

RECRUTAMENTO E VONTADE DO TRABALHADOR


3%

Recrutamento forçado
Situações limítrofes
Recrutamento não forçado

97%

Gráfico 15 – Recrutamento forçado x recrutamento contratual


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso, 1995-2013 (elaborado pela autora)

Isso posto, passamos a detalhar um pouco mais os artifícios utilizados no


“recrutamento não forçado”, isto é, aquele que não se utiliza de violência e constrangimentos,
mas sim de uma mescla de fraude, negociação e abuso, manipulando a vontade (ditada, em
grande medida, pela necessidade) de pessoas que se encontram em situação de grande
vulnerabilidade social.
Com base na análise qualitativa e quantitativa dos documentos da fiscalização,
bem como na pesquisa empírica, podemos dizer que a forma mais usual de arregimentação de
trabalhadores no universo analisado é a descrita neste relatório de 2009:

Ressalte-se que a pratica comum, na região, responsáveis por fazendas


fazerem uso de "gatos" como arregimentadores de mão de obra para
trabalhar nas suas propriedades. Os trabalhadores são arregimentados através
de falsas promessas a omissão de informações da relação trabalhista113
(Relatório de Fiscalização 2009, cód. FC, p. 16).

Reproduzimos também uma passagem do relatório de ação fiscalizatória realizada


em 2011, que explica com mais minúcias o tipo de informação trabalhista geralmente
enredada nestes aliciamentos:

113
No caso, trata-se de informações sobre condições de trabalho e remuneração e não a informações atinentes a
elementos essenciais da relação de trabalho.
192

No caso presente, conforme apurado em depoimento realizado pela equipe


[...], eles foram contratados mediante falsas promessas, conforme se infere
do trecho abaixo. [...] ‘QUE o senhor X combinou na cidade Y [de outro
estado] que a fazenda iria disponibilizar alojamentos, transportes,
alimentação. QUE quando chegaram na FAZENDA constataram que a
fazenda não dispunha de alojamento apropriado, não possuía colchões
adequados e QUE se não cumprissem o contrato de 60 dias, cada empregado
teria que retornar para cidade Y por sua conta, vez que a fazenda não iria
fornecer transporte para translado dos empregados’. É cediço que é uma
prática comum de aliciadores de mão de obra: em outros estados realizar
falsas promessas e omitir informações trabalhistas, - em casos que envolvem
trabalho análogo a escravo, fato evidenciado pelo depoimento dos
empregados da equipe do senhor X, o qual está acostado neste relatório.
Restou consignado em depoimento e constatado por esta equipe
fiscalizatória que a fazenda é de difícil acesso, situada aproximadamente a
70 km - da cidade mais próxima. Considerando a hipossuficiência dos
obreiros, fica claro que mesmo sem ter vigilância armada e ostensiva no
local, mas pelo fato de serem arregimentados em outro estado para trabalhar
na fazenda, em local de difícil acesso e com limitação de transporte, a
liberdade de ir e vir deixa de ser absoluta e passa a ser condicionada pela boa
vontade do empregador. Consideramos que o empregador contribuiu para
restringir a liberdade dos obreiros, pois, este tinha pleno conhecimento da
situação em que estavam (Relatório de Inspeção 2011 n. DO, p. 25).

Numa das primeiras operações de combate ao trabalho escravo realizados em


Mato Grosso, a equipe de fiscalização relatou:

Apuramos [...] através de ações desenvolvidas junto às pensões locais, que o


aliciamento de mão de obra em toda região inicia-se na descida do ônibus na
Rodoviária da Cidade, onde o trabalhador é convidado por parte do
proprietário da mesma, até que o gato aparece para pagar a conta e levar o
peão para a frente de trabalho, de onde jamais conseguirá saldar a dívida
gerada, acrescida com a alimentação fornecida em regime de barracão e
outras despesas já mencionadas (Relatório de Inspeção 1995, cód. J, p 9).

Quanto à origem dos trabalhadores, em nosso estudo acabamos por descartar


qualquer relação entre uma maior fixação de imigrantes em Mato Grosso e as transformações
na morfologia do trabalho escravo. Esse posicionamento foi motivado pela análise de
informações do banco de dados do Seguro Desemprego e de algumas tendências
demográficas do estado de Mato Grosso. Passo a explicar.
O período abarcado pelo conjunto de relatórios de inspeção estudados (1995-
2013) caracterizou-se pelo crescimento populacional de Mato Grosso numa taxa superior à
nacional. Em números absolutos, temos a seguinte evolução da população no estado:
193

PO PULAÇ ÃO D E MATO G RO SSO


3.500.000
3.033.991
3.000.000
2.504.353

2.500.000
2.027.231
2.000.000

1.500.000 1.138.691

1.000.000 599.764
192.531
500.000 319.248
211.858

0
1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010

Gráfico 16 – População de Mato Grosso (1940-2010)


Fonte: IBGE e SEPLAN-MT (Superintendência de Informações)114

A participação da população nascida em outras unidades da federação na


composição da população mato-grossense, por outro lado, sofre declínio entre 1996 e 2009.

PERCENTUAL DA POPULAÇÃO NASCIDA EM OUTRA UF NA COMPOSIÇÃO DA


POPULAÇÃO DE MATO GROSSO (1996 e 2001-2009)

Gráfico 17 –População nascida em outra UF na composição da população de MT (1996 e 2001-2009)


Fonte:: ET CAV/SP/SEPLAN nº 07/2013 (Microdados da PNAD) 115

114
Notas sobre os dados coletados da SEPLAN-MT: os dados de 1940 a 1950 referem-se à “população presente”
e os dados de 1960 a 1980 correspondem a “população recenseada”, em ambos os casos tendo sido excluída a
população do território hoje pertencente ao Mato Grosso do Sul (SEPLAN, 2006, p. 33).
194

Entretanto, como apresentado no Estudo Técnico da Secretaria de Estado de


Planejamento de Mato Grosso – SEPLAN (2013, p. 3), “Enquanto nas décadas de 70 a 90
predominaram os grupos originados do Sul e do Sudeste, em anos mais recentes têm
predominado populações originadas do Nordeste e do Norte”, as quais, conforme os dados
apresentados no referido estudo (tabela abaixo), teriam sido as únicas regiões a manterem sua
participação relativa na população mato-grossense entre 2001 e 2009.

Tabela 8 – Origem da população de outras UF em Mato Grosso (2001-2009)


FONTE: ET CAV/SP/SEPLAN nº 07/2013 (Microdados da PNAD)

As informações da base de dados do Seguro Desemprego116 mostram, por sua vez,


que os imigrantes117 já não são as maiores vítimas do trabalho escravo em Mato Grosso. Entre
2003 e 2013, o percentual dos trabalhadores residentes em Mato Grosso no total de
trabalhadores encontrados em condição análoga a de escravo em todo o território nacional
variou entre 3,62% no ano mais baixo (2010) e 13,07%, segundo ano mais alto (2004),
apresentando apenas um ano atípico em que os residentes em Mato Grosso representaram
32,85% de todos os trabalhadores retirados do trabalho escravo pela fiscalização (2007).

115
Extraído do Estudo Técnico ET CAV/SP/SEPLAN nº 07/2013, intitulado “A população de mato grosso
poderá se estabilizar abaixo de 4 milhões de habitantes”, elaborado por Edmar Augusto Vieira, 2013.
116
A análise foi elaborada a partir do banco de dados contendo informações extraídas da totalidade das 34.177
guias de seguro-desemprego emitidas para trabalhadores encontrados em situação de trabalho escravo no Brasil
no período de 2003 a 2015.
117
Os motivos econômicos que geram estes fluxos migratórios são conhecidos. No Maranhão, o principal estado
de origem das vítimas de trabalho escravo em solo mato-grossense, a pesquisa de campo também mostrou o que
costumava atrair os trabalhadores maranhenses para o Mato Grosso. Segundo o trabalhador rural Cauê, os
arregimentadores levavam “muita gente daqui pro Mato Grosso, vaqueiro e outros tipos de serviço também”, que
gostavam de ir “porque lá ganhava muito dinheiro. Aqui, passava o mês todinho pra ganhar R$ 1.500, enquanto
lá, trabalhando, ganhava R$ 2.500. Era assim, dobrado. Por isso gostavam de lá”.
195

T R A B A L H A D O R E S S U B M E T I D O S A T R A B A L H O E S C R AV O
N O B R A S I L C O M R E S I D Ê N C I A E M M AT O G R O S S O
36%
34%
32%
30%
28%
26%
24%
22%
20%
18%
16%
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Gráfico 18 –Trabalhadores submetidos a trabalho escravo no Brasil com residência em Mato Grosso
Fonte: Banco de dados do Seguro Desemprego

Trabalhadores escravizados em MT x trabalhadores escravizados no


Brasil oriundos do MT
1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

total de trabalhadores resgatados em MT


trabalhadores residentes em Mato Grosso resgatados em todo Brasil

Gráfico 19 –Trabalhadores escravizados em MT x trabalhadores escravizados no Brasil oriundos de MT


Fonte: Banco de dados do Seguro Desemprego
196

Na medida em que Mato Grosso passa a contar com uma participação cada vez
menor de imigrantes na composição de sua população, também no trabalho escravo cresce o
número de vítimas oriundas do próprio estado. Contudo, a quantificação exata de migrantes e
residentes submetidos à escravidão no território mato-grossense apresenta alguns desafios.
O banco de dados do seguro desemprego, por exemplo, apesar de informar o
endereço de residência (ou referência) do trabalhador, não oferece informação sobre o local
de resgate e aliciamento dos trabalhadores, dificultando a tarefa de cruzamento desses dados
para fins de compreensão dos fluxos migratórios envolvidos na escravidão contemporânea.
Entretanto, muitas pistas sobre o peso da migração no trabalho escravo em
território mato-grossense podem ser encontradas em outras pesquisas e bancos de dados. Uma
dessas fontes é o banco de dados do Projeto Ação Integrada que, ao realizar a busca ativa da
população vulnerável e vítima de trabalho escravo em Mato Grosso, dispõe de informações
mais detalhadas sobre o perfil e trajetória de cada indivíduo. Segundo esses dados, de um
universo de 683 trabalhadores resgatados de trabalho escravo e localizados (cadastrados) pelo
projeto entre 2009 e 2016118, 240 (35%) eram naturais de municípios mato-grossenses, contra
369 (54%) de outros estados, além de 74 (11%) casos sem informação sobre a naturalidade.
Pesquisa realizada no mesmo banco de dados por Patrícia Silva (2016), mostrou que, dentre
os atendidos pelo Ação Integrada (isto é, excluindo-se os cadastrados mas não atendidos) até
2015, 40% era nascido no próprio estado de Mato Grosso. Conforme ressalta a autora, as
pessoas muitas vezes permanecem no estado e “acabam migrando de uma cidade para outra
em busca de trabalho, o que conecta esta população a um fluxo migratório interno” (SILVA,
P., 2016, p. 128). O banco do Ação Integrada, entretanto, combina dados colhidos no
momento imediatamente posterior à ação fiscalizatória (nestes casos, abordando todos os
trabalhadores, migrantes e não migrantes) com dados obtidos através de busca ativa em
municípios do próprio estado de Mato Grosso e, neste segundo caso, trabalhadores de outros
estados que tenham sido escravizados naquele território e não fixado residência na região
acabam não sendo localizados. Desta forma, o percentual efetivo de migrantes vítimas de
escravização em Mato Grosso deve superar os 55%.
Portanto, se por um lado podemos dizer que os migrantes continuam compondo a
parcela majoritária da população escravizada em Mato Grosso, por outro também se observa

118
A data do cadastramento no Projeto Ação Integrada não necessariamente coincide com a data da ocorrência
do trabalho escravo, de modo que, na atividade de busca ativa nos municípios, as equipes do projeto muitas
vezes encontram indivíduos que foram vítimas de trabalho escravo em décadas anteriores.
197

uma nova dinâmica populacional no estado. Paralelamente, também as formas de


recrutamento de indivíduos em outros estados assistem a transformações no período.
A análise dos dados permite-nos visualizar a recomposição das formas de
exploração da força de trabalho e, neste cenário, as formas de arregimentação também vão se
sofisticando.
Assiste-se ao surgimento de novas figuras no aliciamento de trabalhadores, a
exemplo do que foi constatado 2002 por uma equipe de fiscalização. Na referida ação fiscal,
que encontrou 124 pessoas submetidas a trabalho escravo na capina do algodão em Mato
Grosso, a equipe do GEFM relatou uma “versão mais atualizada” de aliciamento de
trabalhadores, através de “gatos com controle remoto”:

EMPREITEIROS. Não foi detectado um ‘gato’ na sua forma usual, mas, o


papel exercido pelo Sr. Claudemir pode ser considerado a versão mais
atualizada do aliciador de mão de obra. Podemos dizer que se trata de um
‘gato com controle remoto’ pois não precisa ir até a fonte para aliciar
trabalhadores. Usa os recursos da telefonia e da radiodifusão, precisando
apenas de um ‘homem de confiança’ que transmita na rádio local o
chamamento aos trabalhadores, fazendo um ‘contrato verbal e irradiado’, o
qual é fechado no momento em que o interessado [agiota] comparece ao
local indicado, com o dinheiro para pagar o frete do ônibus, sob a promessa
de ter esse montante ressarcido quando do primeiro pagamento. Segundo os
equivocados cálculos dos aliciados, o salário prometido daria para pagar os
juros do agiota que lhes forneceu a quantia e ainda trazer dinheiro para a sua
família (Relatório de Inspeção, 2002, cód. T, p. 15-16).

Nos anos mais recentes, as contratações tornam-se cada vez mais consensuais
(passa a ser comum os trabalhadores procurarem os empregadores e não só o inverso) e as
redes tornam-se cada vez mais estabelecidas (muitos trabalhadores se deslocam em todas as
safras para a mesma região, onde já são conhecidos pelos intermediadores de mão de obra e
pelos fazendeiros). Foi o que relatou um dos trabalhadores que entrevistei no Maranhão:

Tinha uns gato aí, agora não, porque ninguém quer trabalhar mais com gato
não. Porque é o gato que escraviza mais. Porque quando o gato leva o cara
pro mato, na juquira, se estão pagando mil conto, aí o gato só quer pagar pro
cara 500 ou 400. Aí não dá uma bota, uma camisa... aí querem ganhar mais
que o trabalhador que vai trabalhar. Hoje, o cara não quer mais trabalhar
com gato não. Às vezes, faz um grupo, sabe que tem serviço, pega 3, 4
pessoas ou só 2, vai lá e pega serviço na mão do fazendeiro. [...] O cara vai
por conta. Antes, o gato levava.

Neste mesmo sentido, citamos o relatório de inspeção realizada em 2008 que


constatou trabalho escravo no setor da cana de açúcar, em que se lê a seguinte passagem:
198

[...] QUE esta safra iniciou no final de abril; QUE ‘os trabalhadores ligam lá
da terra deles perguntando quando vai iniciar a safra e se tem lugar para
eles’; QUE então é dito aos trabalhadores ‘que se eles estiverem aqui no
início da safra a gente contrata eles’, QUE os trabalhadores ligam para o
fiscal Zeca e que é feita ‘uma conta de acordo com as toneladas que a gente
tem que entregar’, porque cada trabalhador corta em média 7 toneladas por
dia; QUE a vinda para cá é custeada pelos próprios trabalhadores; QUE
muitos deles já estão na região porque vêm para o plantio, de meados de
janeiro em diante; QUE nessa safra a maioria dos trabalhadores são ‘de
fora’, especialmente da Bahia e do Maranhão (Relatório de Inspeção, 2008,
cód. DI, p. 104).

Desenha-se, portanto, uma progressiva transformação da forma de entrada nestas


relações abusivas. Cada vez mais é o trabalhador que, sem alternativas de sobrevivência,
move-se em busca de qualquer trabalho, arcando com todo o custo do deslocamento e o risco
de não ser contratado. É neste contexto de exacerbação da vulnerabilidade, em que as
empresas vão cortando custos e responsabilizando o trabalhador por obrigações patronais que,
muitas vezes, configura-se o novo trabalho escravo.
A centralidade da vulnerabilidade social nas engrenagens do trabalho escravo é
mais patente do que nunca. Um dos relatórios de 2002, em que a figura do gato estava
presente, revela outra faceta interessante no abuso da vulnerabilidade e criação de situações
de dependência entre os trabalhadores e os aliciadores: "O gato 'Zezé' cujo alvo preferencial
eram maranhenses, também arregimentava grupos de sem-terra e pessoas que estavam
recebendo seguro-desemprego, pelo interesse desses trabalhadores de se manterem ocultos da
fiscalização, o que o deixava com maior margem de segurança para continuar na ilegalidade"
(Relatório de Inspeção 2002, cód. AC, p. 8).
As táticas e nuances vão se sofisticando, mas o trabalho escravo contemporâneo
em Mato Grosso mantém-se como um fenômeno que se utiliza da extrema vulnerabilidade
social causada pelas expropriações e desigualdades capitalistas e da condição de sujeito de
direito (que contrata, se desloca e se responsabiliza) dos trabalhadores sob esse modo de
produção para, através de contratações que se aproximam da “chantagem”, impor, sem a
violência física, relações que permitem a exploração além de qualquer limite, violando a
liberdade, a dignidade e a integridade física do ser humano.
199

2.3. Novas dinâmicas de exploração da terra e do trabalho

2.3.1. Violência e escravização em Mato Grosso

Iniciei este capítulo com o estudo da nova escravidão em Mato Grosso no


contexto da atual matriz de desenvolvimento da região e de nosso país no contexto da
reestruturação produtiva. Em seguida, passei à apresentação dos resultados de minha pesquisa
multimétodo, articulando análise documental quantitativa e qualitativa com pesquisa de
campo, no intuito de buscar responder às perguntas da pesquisa e, por vezes, reformulá-las.
Neste item final, encerro o capítulo articulando os dois itens anteriores numa
proposta de interpretação dos dados, buscando contribuir para uma maior compreensão do
fenômeno da escravidão contemporânea a partir do caso de Mato Grosso. Indiretamente,
espero também oferecer algumas pistas para pensarmos transformações mais amplas nas
formas de violência, dominação e exploração da força de trabalho e dos meios de produção no
contexto global do século em que vivemos.
Uma das hipóteses iniciais deste estudo, baseada em minha experiência como
auditora fiscal do trabalho, era de que os primeiros resgates de trabalhadores em situação de
escravidão contemporânea, na década de 1990, teriam se fundamentado mais no trabalho
forçado e na servidão por dívida, enquanto as operações mais recentes encontrariam situações
com predominância de condições degradantes de trabalho e de jornadas exaustivas. A
complexidade do real revelada pela leitura dos relatórios das operações de combate ao
trabalho escravo do Grupo Especial de Fiscalização Móvel demonstrou que minhas
impressões iniciais estavam corretas apenas em parte. Como vimos, as condições degradantes
de trabalho têm uma presença marcante desde o início das operações de combate ao trabalho
escravo (presente em 100% dos casos de 17 dos 19 anos pesquisados); já o trabalho forçado,
apesar de diminuir nos últimos anos do século passado, ainda mantém presença significativa
no universo estudado, atingindo a frequência de 33% e 44%, respectivamente, nos dois
últimos anos da série (2012 e 2013).
Por outro lado, a hipótese de que eu encontraria menos casos de violência física
dos empregadores e seus prepostos contra os trabalhadores nos relatórios de anos mais
recentes foi confirmada.
200

VIOLÊNCIA FÍSICA OU GRAVE AMEAÇA


100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

Gráfico 20 – Violência física ou grave ameaça – variação no tempo


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso 1995-2013 (elaborado pela autora)

Nos primeiros anos analisados (1995-1999) eram muito mais frequentes as


ocorrências de facadas, socos, tiros (tanto alvejando trabalhadores quanto próximo a eles com
o intuito de intimidá-los), ameaças abertas e veladas inclusive de morte, vigilância armada.
Há, ainda, casos esporádicos de castigos corporais como afogamentos e queimadura com ferro
quente (São Félix do Araguaia, 2004) ou mesmo de utilização de policiais militares para
ameaçar trabalhadores em nome de interesses de fazendeiros.
Nas operações mais recentes, a violência física dá lugar a outros tipos de
violência, vinculada, segundo boa parte dos relatórios do GEFM do período, à questão da
violação da dignidade humana. Na conclusão de um dos Relatórios de Inspeção, lê-se: "a
violência aos trabalhadores decorre de um conjunto de ações e omissões do empregador que
ferem os mais básicos direitos da pessoa humana" (Relatório de Fiscalização, 2006, cód WO,
p. 24).
As operações de combate a trabalho escravo conduzidas pela auditoria fiscal do
Ministério do Trabalho tiveram início no ano de 1995, quando foram realizadas operações em
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rondônia e Alagoas. Naquele ano, de todas
as fiscalizações executadas, três redundaram em resgate de trabalhadores em situação de
escravidão, sendo que dois desses resgates ocorreram em Mato Grosso.
201

CASOS DE TE CONSTATADOS
ANO
PELA FISCALIZAÇÃO
1995 2
1996 6
1997 3
1998 1
1999 4
2000 3
2001 6
2002 8
2003 12
2004 12
2005 10
2006 8
2007 7
2008 31
2009 22
2010 17
2011/ 11
2012 9
2013 9

Tabela 9 – Número de casos constatados de trabalho escravo por ano - MT


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso 1995-2013 (elaborado pela autora)

Os 2 casos de resgate no Mato Grosso em 1995 envolviam tiros, acidentes graves


e até fatais sem socorro, ameaças, agressões físicas, tentativas inúmeras de fugas de
trabalhadores e pagamentos praticamente nulos de salários. Já nos últimos anos analisados, de
2011 a 2013, não foi registrado nenhum caso de violência física ou grave ameaça aos
trabalhadores.
Interessante notar que, no primeiro ano de fiscalização do GEFM, 100% dos casos
de flagrante de trabalho escravo apresentavam situações de violência e/ou grave ameaça
contra trabalhadores. Já no último ano sob análise (2013), não houve, dentre os casos de
trabalho escravo constatados, qualquer ocorrência de violência física ou grave ameaça.
Nos dados aqui analisados, o fato isolado da totalidade dos casos de 1995
apresentarem trabalho forçado e violência física, não demonstra, de plano, que a violência
física, a ameaça e o cerceamento da liberdade de locomoção tenham constituído uma prática
dominante na região naquele período. Há de se considerar o papel da interpretação dos
agentes sobre o que vinha a ser trabalho escravo. Esses dados iniciais poderiam sugerir, por
exemplo, que na época outras formas de escravização ocorriam, mas não eram denunciadas
como trabalho escravo e, portanto, não entravam nas estatísticas. Ou mesmo poderiam indicar
que, devido ao número reduzido de ações fiscais que o Ministério do Trabalho organizava
202

com este escopo específico de combate ao trabalho escravo, teriam sido priorizadas as
denúncias mais graves. Porém, o que explicaria a frequência tão reduzida de violência física
nos anos posteriores (quando, inclusive, a fiscalização contou com um maior contingente de
auditores, podendo dar conta de cobrir um maior número de denúncias e, naturalmente, em
especial as mais graves), a não ser a efetiva redução das práticas de violência física e grave
ameaça contra trabalhadores?
Enfim, as hipóteses são inúmeras e, aqui, as lacunas e dúvidas deixadas pelos
documentos analisados só podem ser reduzidas a partir da pesquisa em outros documentos
(como os mantidos nos acervos pessoais e de instituições de direitos humanos) e das
entrevistas com agentes que atuavam no combate ao trabalho escravo à época: membros da
CPT, auditores fiscais que coordenaram e participavam das operações de combate ao trabalho
escravo na década de 1990, lideranças de movimentos sociais, procuradores do trabalho,
procuradores da república, juízes e os próprios trabalhadores que vivenciaram situações de
escravidão à época.
As narrativas dos agentes entrevistados reforçam a tese de que a violência física e
grave ameaça contra trabalhadores eram práticas correntes nas décadas de 1970 a 1990 (ao
menos nas regiões da expansão da fronteira agropecuária que eram alvos frequentes de
denúncias de trabalho escravo), mas pouco encontradas nos dias atuais. Essa parece ser uma
tendência generalizada e não um particularismo de Mato Grosso. Até mesmo na região
conhecida como Bico do Papagaio, onde a violência no campo é dramática, violências e
ameaças não têm aparecido frequentemente nas denúncias de trabalho escravo colhidas pela
Comissão Pastoral da Terra. Segundo Xavier Plassat, os casos reportados nos dias de hoje são
geralmente “empreitas curtas, com trabalho degradante”, envolvendo grupos menores de
trabalhadores ou mesmo casos individuais (“um velhinho aqui e ali” explorados “como
caseiro ou faz-tudo”), geralmente “no contexto de criação de gado, reforma de cercas,
construção de curral, trato de pasto”.
Também se faz presente nessas narrativas uma percepção (ora mais convicta, ora
mais difusa) de que a violência persiste nas relações de trabalho atuais, ainda que sob novas
formas menos visíveis.
Daniela, uma das auditoras fiscais do trabalho que atuou nas primeiras operações
de combate a trabalho escravo do Ministério do Trabalho conta que “A narrativa de violência
era comum... que eles [os trabalhadores escravizados] sofriam violência. Era muito comum. E
você ver acidentes, cortes, mutilações também era comum. Como até hoje deve ter violências
por aí que a gente não sabe”.
203

A entrevista com outro auditor também mostrou as transformações na violência


física contra os trabalhadores rurais em Mato Grosso. Segundo ele, “o patamar civilizatório
está um pouco mais avançado. No MT, se comparar com a década de 70-80, era muito pior”.
Ele relata que na década de 1970 a situação era mais extrema em termos da atuação de
pistoleiros, da vigilância armada e do isolamento geográfico nas fazendas da região (até
mesmo nas imediações da capital do estado). Em suas palavras, Mato Grosso era uma “terra
de ninguém”. Por outro lado, hoje em dia, situações semelhantes somente seriam encontradas
em regiões mais remotas do estado, principalmente ao norte, na divisa com o Pará.
A tese “Exploração e escravidão nas agropecuárias da Amazônia Mato
Grossense”, elaborada por João Carlos Barrozo a partir de depoimentos de trabalhadores em
notícias de jornal do final da década de 1970 até o início da década de 1980 e de pesquisa de
campo realizada119 entre 1982 e 1987 em Mato Grosso, retrata um cenário de exploração da
força de trabalho semelhante ao que encontramos hoje, porém, uma exploração acompanhada
de práticas de violência muito parecidas às encontradas nos relatórios dos primeiros anos de
fiscalização e distintas das que vemos predominar na atualidade.
A degradação do trabalho retratada no capítulo IV da referida tese descreve
mecanismos de exploração dos trabalhadores que povoam a maior parte dos relatórios de
fiscalização de trabalho e escravo e dos relatos de trabalhadores entrevistadas em minha
pesquisa (servidão por dívida, retenção dolosa de salários, pagamento por produção levando à
exaustão dos trabalhadores, condições degradantes, etc.).
Já o capítulo V da tese de Barrozo, denominado A degradação da vida, traz uma
importante contribuição para entendermos as transmutações da violência e dominação
praticadas nas décadas de 1970, 1980 e até 1990 para uma nova matriz de poder que, nas
últimas décadas, continua promovendo atentados à vida da classe-que-vive-do-trabalho sob
novas formas.
Barrozo abre o capítulo sobre a degradação da vida citando uma notícia publicada
no jornal “Diário de Cuiabá” em 1989:

Paulista e Fuscão contraíram malária e ficaram muitos dias sem trabalhar.


Mesmo doentes, os gatos [...] obrigavam os peões a trabalhar na derrubada
de árvores. Quando já estavam sem condições de se locomover, os gatos
decidiram matá-los e enterrá-los na fazenda (BARROZO, 1992, p. 121).

119
A pesquisa de campo foi realizada nos municípios de Cuiabá e Várzea Grande, em bairros periféricos, bem
como em hotéis e pensões onde os peões se hospedavam.
204

A prática de bater com vara de cipó em trabalhadores que “não trabalhassem


direito” consta de outra notícia de jornal do ano de 1986. Segundo Barrozo e Berno, também
nas cartas enviadas por peões a seus familiares os relatos sobre violência física e assassinatos
eram comuns na região amazônica:

[...] as cartas das vítimas enviadas aos seus familiares descrevem com
pormenor episódios deveras trágicos. Narram os obstáculos erigidos à livre
locomoção dos trabalhadores e as violências praticadas no contexto das
tentativas de fuga. As próprias vítimas se auto apresentam como escravos e,
além dos maus tratos constantes, relatam homicídios hediondos cometidos
por pistoleiros (BERNO, apud BARROZO, 1992, p. 126).

Barrozo (1992, p. 126) afirma que “de tempos em tempos aparecem manchetes
nos jornais de Cuiabá sobre a violência contra os peões”, citando algumas que fazem
referência a assassinatos e violências contra trabalhadores que fugiam das fazendas e eram
perseguidos por “capangas” (BARROZO, 1992, p, 127). Relata, ainda, haver casos de peões
que dizem terem sido obrigados a bater nos próprios colegas peões que haviam sido
recapturados (BARROZO, 1992, p. 128). Sobre as recapturas, cita o seguinte trecho de notícia
publicada em “O Estado de Mato Grosso” (01/04/1986): “[...] os pistoleiros ganhavam Cr$
500,00 por fugitivo que eles conseguiam recapturar. Caso persistissem as tentativas, eles
cortavam o tendão de Aquiles (músculo que sustenta o calcanhar)” (BARROZO, 1992, p.
129).
Em suas conclusões sobre o trabalho escravo no período analisado, Barrozo
(1992) aponta que o peão, através de inúmeros mecanismos de imobilização e controle, passa
a ser considerado propriedade do gato, o qual manifestaria seu sentimento de posse “na
vigilância armada, nas perseguições, com armas e cães, quando o peão tenta fugir. Para o
‘gato’ a fuga do trabalhador é um roubo, pois ele foge com algo que lhe pertence (ao gato), a
força de trabalho” (BARROZO, 1992, p. 147).
Nos relatórios aqui analisados, foram encontrados alguns casos de trabalho
escravo mais similares aos descritos por Barrozo, a exemplo de uma operação de 1996, em
que foi constatada, além da vigilância armada, a situação relatada a seguir:

As informações obtidas durante as entrevistas são de maus tratos físicos,


cerceamento de liberdade, tanto pelo isolamento da zona de trabalho, tanto
quanto pelo endividamento. Os empregados declararam ter muito medo dos
senhores Xavier (prefeito, aliciador e temido por crimes contra
trabalhadores) e Wagner, administrador da fazenda respondendo por
205

homicídio e de difícil relacionamento com os empregados (Relatório de


Inspeção 1996, cód. DW, p. 86).

Segundo os trabalhadores da operação acima, o empregador “é pessoa violenta e


costuma mandar que os empregados desapareçam quando cobram algum de seus direitos,
inclusive salários” (Relatório de Inspeção 1996, cód. DW, p. 234).
A análise sobre as variações no tempo da violência praticada contra trabalhadores
em Mato Grosso deverá necessariamente passar pelo estudo mais detido dos conflitos no
campo e na cidade nas últimas décadas, perpassando a questão das disputas por terra e da
repressão dos movimentos populares.
Na zona rural, o estado de Mato Grosso tem sido palco de muitos conflitos,
muitos dos quais resultando em mortes120. Os números sobre conflitos no campo no estado
são apresentados pela Comissão Pastoral da Terra em sua publicação anual “Cadernos
Conflitos no Campo Brasil”.
Com base nos dados extraídos das publicações da CPT, chega-se à conclusão de
que, ao contrário dos níveis de violência contra trabalhadores escravizados, os conflitos no
campo em Mato Grosso não apresentam tendência declinante. Observando-se os dados sobre
número de conflitos no gráfico abaixo, percebe-se inclusive que nos anos mais recentes (2002
a 2013) o número de conflitos manteve-se bem acima ou no mínimo igual aos anos iniciais do
período aqui analisado (1995 a 2001).

120
Em entrevista à Televisão Centro América sobre assassinatos recentes no Mato Grosso, um funcionário da
CPT explica que muitas das pessoas assassinadas no campo são pessoas que já haviam sofrido prévias ameaças
de morte. http://g1.globo.com/mato-grosso/videos/v/mato-grosso-e-o-segundo-estado-em-mortes-por-conflitos-
no-campo/4107601/ (acesso em 12/02/2017).
206

TOTAL DE CONFLITOS NO CAMPO - MT

160
140
120
100
80
60
40
20
0

Gráfico 21 – Conflitos no campo em Mato Grosso – variação no tempo (1995-2013)


Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)

Os dados acima sugerem que o declínio da violência física nas relações de


trabalho teve causas próprias, não sendo reflexo de uma hipotética tendência geral de redução
dos conflitos no campo em Mato Grosso.
Com efeito, o acirramento dos conflitos caracteriza o campo mato-grossense,
retratando as contradições que caracterizam a agricultura brasileira, que “é considerada
moderna dentro do sistema global de produção de commodities”, mas não equaciona o alto
índice de violência no campo que marca toda a formação do setor agrícola (OXFAM, 2016, p.
7). Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), 2.262 pessoas foram assassinadas no campo entre 1964 e 2010 em
todo o país121 (OXFAM, 2016, p. 7).
Se a violência no campo persiste no país, na região Centro-Oeste e,
particularmente, em Mato Grosso, ela toma contornos mais alarmantes. É o que demonstram
os dados da Comissão Pastoral da Terra compilados no Caderno Conflitos no Campo, que
trouxe a seguinte análise sobre os índices avaliados no ano de 2004:

121
O mesmo relatório aponta os momentos de pico da violência no campo: “em especial na década de 1980,
quando aumentaram as mobilizações sociais e as lutas por terra – década que também marcou a fundação do
MST. Um novo pico foi registrado durante o primeiro mandato do Governo Lula, de 2003 a 2006. Apenas em
2003, aconteceram 496 ocupações – comparativamente, em 2010 foram 180” (OXFAM, 2016, p. 7).
207

A região Norte só supera a região Centro-Oeste quanto à violência do Poder


Privado, 2.9 contra 1.3. Nos demais índices, o de Conflititividade122 e o de
Violência do Poder Público, a região Centro-Oeste supera de longe a região
Norte, sendo no caso da violência do Poder Público com índice de 5.7
(Altíssimo), contra 1.0 da região Norte e, no caso do Índice de
Conflitividade, 3.6 (Muito Alto), contra 1.5 daquela região.
Como a região Centro-Oeste é onde vem se dando, nos últimos anos, a
expansão dos tradicionais grandes grupos empresariais moderno-coloniais de
monocultivos, o chamado agronegócio, os dados nos autorizam a afirmar
que nessa região é onde está a maior tensão e violência entre todas as regiões
do País, muito embora as atenções se voltem para a Amazônia, quem sabe,
pelo interesse internacional que envolve tudo que acontece nessa região
(GONÇALVES, C., 2004, p. 3).

A partir dessa constatação, passei a analisar os dados anuais da Comissão Pastoral


da Terra sobre violência contra pessoa. Os Cadernos de Conflitos no Campo trazem, ano a
ano, a listagem completa das pessoas assassinadas, ameaçadas de morte e que foram vítimas
de tentativa de homicídio, apresentando o município da ocorrência e o nome da vítima, bem
como a classificação destas mesmas vítimas segundo uma tipologia. Na codificação
estabelecida pela CPT, as vítimas variavam entre: trabalhador rural, canavieiro, peão,
lideranças, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais, membro do sindicato dos
trabalhadores rurais, sem-terra, posseiros, assentados, pequeno arrendatário, pequeno
proprietário, pescador, indígenas, advogado, político, padre, garimpeiro, quilombola, agente
ambiental, missionário, integrante de ONG, aliado, criança, agentes pastoral, membro do
grupo móvel, retireiro, funcionário público, outros ou em branco.
Como exibido na tabela abaixo, sob o ponto de vista do número de vítimas de
“violência grave” (tipologia que adotamos agrupando as vítimas de assassinato, ameaça de
morte e tentativa de homicídio apresentados nos dados da CPT) não houve declínio da
violência no campo em Mato Grosso entre 1995 e 2013.

122
O Índice de Conflitividade apresentado nos Caderno Conflito no Campo medem o número de pessoas
envolvidas em conflitos no campo. A cenário da região Centro-Oeste em 2004 é detalhado neste trecho da
análise dos dados: “Em média, no Brasil, o equivalente a um em cada 29.4 habitantes de nossa área rural esteve
envolvido em conflitos rurais em 2004. Nos Estados da região Centro-Oeste, essa proporção atingiu níveis
elevadíssimos, sendo que no Mato Grosso do Sul, uma em cada cinco pessoas esteve envolvida em conflitos; no
Mato Grosso, uma em cada 7.3 e, em Goiás, uma em cada 7.4” (Gonçalves, C. 2004, p. 5)
208

Nº TOTAL DE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA GRAVE -


MT
30

25

20

15

10

0
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
Gráfico 22 – Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – variação no tempo
Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)

Com base nas narrativas dos entrevistados e nas pistas fornecidas pela pesquisa
documental (nos relatórios de inspeção e material da Comissão Pastoral da Terra), optamos
por analisar os dados sobre as vítimas de violência grave no campo sob o prisma da tipologia
das vítimas, o que trouxe uma luz interessante sobre as transformações nas formas de
exploração da força de trabalho e escravização aqui abordadas.
Somando-se o número de vítimas de assassinato, tentativa de assassinato e ameaça
de morte em Mato Grosso, ano a ano, chega-se aos totais de vítimas de violência grave no
campo mato-grossense, apresentados abaixo:
209

Nº TOTAL DE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA GRAVE - MT

TRABALHADOR RURAL, CANAVIEIRO OU PEÃO

MEMBRO DO GRUPO MÓVEL


PEQUENO ARRENDATÁRIO

PEQUENO PROPRIETÁRIO

OUTROS OU EM BRANCO

FUNCIONÁRIO PÚBLICO
INTEGRANTE DE ONG
AGENTE AMBIENTAL

AGENTES PASTORAL
QUILOMBOLA

MISSIONÁRIO
SINDICALISTA

ASSENTADOS

GARIMPEIRO
ADVOGADO
SEM-TERRA
LIDERANÇA

POSSEIROS

PESCADOR

RETIREIRO
INDÍGENA

POLÍTICO

CRIANÇA
ALIADO
PADRE
ANO

1994 5 1 0 2 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1995 22 2 1 4 4 4 0 0 0 0 0 1 1 3 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1996 9 2 1 2 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1997 5 0 1 0 2 0 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1998 5 1 2 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
1999 8 0 4 0 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2001 13 5 4 0 1 0 2 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2002 9 3 0 2 0 0 4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2003 18 7 3 0 0 0 3 0 0 0 0 0 1 2 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2004 11 1 1 1 4 0 0 0 0 0 2 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
2005 11 1 0 0 5 1 0 0 0 0 0 0 2 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0
2006 17 0 1 1 1 3 0 0 0 0 0 0 0 5 0 0 0 0 1 0 0 0 0 5 0 0
2007 21 0 0 0 8 0 0 0 2 0 1 0 0 2 0 0 0 0 0 7 1 0 0 0 0 0
2008 2 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2009 19 0 2 3 2 0 0 0 2 0 5 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 1 3 0 0 0
2010 27 0 0 0 26 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2011 8 0 0 0 3 0 0 0 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0 0 0
2012 21 0 0 0 0 0 0 0 19 0 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2013 25 0 1 0 16 0 1 1 2 0 0 0 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 1 0
2014 5 0 3 0 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2015 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2016 2 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
2017 9 0 0 0 0 9 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Tabela 10 – Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – por tipologia de vítima
Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)

Na tabela acima, agrupei “trabalhador rural”, “peão” e “canavieiro” (considerados


pela CPT como categorias diversas), num só tipo, por se tratarem dos únicos tipos mais
contundentemente referenciados a trabalhadores subordinados. Os garimpeiros e pescadores,
por terem pouca representatividade na base de dados e remeterem a atividades produtivas que
muitas vezes são desempenhadas de forma autônoma, não foram incluídos como
trabalhadores rurais em sentido lato.
Para melhor compreensão e visualização dos dados, procedi a outras fusões na
base acima. Aglutinei sob o nome de “autoridade pública exceto políticos” as seguintes
categorias: “agente ambiental”, “membro do grupo móvel” e “funcionário público”. Sob o
título de “religioso” unifiquei as categorias “padre”, “missionário” e “agente pastoral”. Por
fim, aglutinei “sem-terra”, “assentado” e “posseiro” sob a categoria de “vítima ligada à posse
da terra”. Estas novas unificações estão apresentadas na tabela abaixo:
210

CRIANÇA, QUILOMBOLA) OU
ARRENDATARIO, PESCADOR,
VÍTIMA LIGADA À POSSE DA

ASSENTADO OU POSSEIRO)

ADVOGADO, GARIMPEIRO,
EXCETO POLÍTICO (AGENTE
AMBIENTAL, MEMBRO DO

FUNCIONÁRIO PÚBLICO)

MISSIONÁRIO E AGENTE
AUTORIDADE PÚBLICA

TERRA (SEM-TERRA,

ALIADO, RETIREIRO,
RELIGIOSO (PADRE,
GRUPO MÓVEL,

OUTROS (PEQ

EM BRANCO
PASTORAL)
ANO
1994 0 0 2 0
1995 0 3 8 3
1996 0 0 4 0
1997 0 0 3 1
1998 0 0 0 1
1999 0 0 4 0
2000 0 0 0 0
2001 0 1 3 0
2002 0 0 4 0
2003 0 2 3 2
2004 1 1 4 0
2005 1 1 6 0
2006 5 6 4 0
2007 0 2 8 1
2008 0 0 0 0
2009 0 4 2 1
2010 0 1 26 0
2011 0 2 3 0
2012 0 1 0 0
2013 0 2 17 2
2014 0 0 2 0
2015 0 0 0 0
2016 0 0 1 0
2017 0 0 9 0

Tabela 11 – Vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – unificações


Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)

A partir destas categorias unificadas e descartando-se, no momento, os tipos de


vítimas que só apareceram em um ano da série e/ou que tiveram baixíssima participação no
total (incorporados ao “outros ou em branco”), gerei dois eixos de análise expostos em
gráficos distintos: a) indivíduos envolvidos diretamente nos conflitos (as vítimas cujos
direitos, relacionados à terra ou ao trabalho, estavam em disputa); b) indivíduos envolvidos
indiretamente nos conflitos/ou agentes de proteção de direitos (as vítimas que atuavam na
defesa dos direitos de terceiros).
211

Vítimas de violência grave no campo por ano em Mato


Grosso - indivíduos envolvidos diretamente nos conflitos

28

26

24

22

20

18

16

14

12

10

0
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017

TRABALHADOR RURAL, CANAVIEIRO OU PEÃO


PEQUENO PROPRIETÁRIO
PESCADOR
INDÍGENA
SEM-TERRA, ASSENTADO OU POSSEIRO

Gráfico 23 – Vítimas de violência grave no campo MT – envolvidos diretos


Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)
212

Como se nota no gráfico, os casos de violência grave contra trabalhadores rurais


(incluindo peões e canavieiros) concentram-se nos anos mais distantes, escasseando nos anos
mais recentes e desaparecendo a partir de 2009. Por outro lado, a violência relacionada a
conflitos por terra predomina nos últimos anos do período analisado.
A violência contra indígenas concentra-se principalmente entre 2004 e 2015 e a
contra os pequenos proprietários, entre 2007 e 2013. Por outro lado, a violência contra
trabalhadores rurais está presente entre 1994 até 2008, reduzindo-se a zero a partir de 2009 até
o final da série (2017).
Já a violência contra sem-terras, posseiros e assentados está presente de forma
expressiva, não obstante apresente oscilações, em todo o período analisado (1994 a 2017).
Se analisamos os dados mais antigos, de 1985 a 1994, podemos tirar outras
interessantes conclusões.
Primeiramente, o próprio enfoque adotado na edição do Caderno Conflitos no
Campo nesse período já é diferente. A única tabela com dados sobre violência contra pessoas
na edição de 1985, por exemplo, é intitulada “Trabalhadores Assassinados em 1985”. A
edição de 1986 registra, em Mato Grosso, 2 casos de grilagem, 3 invasões de terra indígena e
2 casos de maquiagem ou desaparecimento de documentos. Também há uma tabela específica
para conflitos em garimpos, em que consta 1 caso de repressão, 7 feridos e 11 mortos (além
de outras ossadas).
No Caderno de 1988 há menção a 300 peões escravizados em Tangará da Serra.
O Caderno de 1990 menciona 1048 vítimas e trabalho escravo em Mato Grosso.
Em 1993, a CPT registrou 3 casos de trabalho escravo em Mato Grosso, sendo que cada qual
abarcava um número muito grande de vítimas: 1087 (em Jaciara), 70 (Alta Floresta) e 321
(Porto Alegre do Norte/Confresa). Em 1994, foram 5 casos apontados pela CPT em Mato
Grosso, somando mais de 3000 vítimas (2600 apenas em uma das usinas).
213

Vítimas de violência grave no campo por ano - agentes


de proteção de direitos

0
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
LIDERANÇA

SINDICALISTA

AUTORIDADE PÚBLICA EXCETO POLÍTICO (AGENTE AMBIENTAL, MEMBRO DO GRUPO


MÓVEL, FUNCIONÁRIO PÚBLICO)
RELIGIOSO (PADRE, MISSIONÁRIO E AGENTE PASTORAL)

Gráfico 24 – Vítimas de violência grave no campo MT – agentes de defesa de direitos


Fonte: Cadernos de Conflito no Campo – Brasil, Comissão Pastoral da Terra (elaborado pela autora)

A análise do gráfico referente aos agentes que atuam na proteção dos direitos das
populações vulneráveis do campo aponta para conclusões parecidas às extraídas do gráfico
anterior.
Aqui, também, os agentes tipicamente ligados à proteção de direitos trabalhistas
deixam de ser alvos de violência grave a partir de 2010 até o último ano contabilizado (2017),
período em que não houve nenhum integrante do sindicato dos trabalhadores rurais e
214

nenhuma autoridade pública (agente ambiental, membro do GEFM e funcionário público em


geral) vítima de violência grave no estado de Mato Grosso.
Por outro lado, as lideranças camponesas, que defendem direitos mais ligados à
terra do que ao trabalho, foram alvo de violências graves em todo o período. Também se
verifica uma maior distribuição no tempo das violências sofridas por religiosos, categoria que
defende uma gama maior de direitos das populações rurais, englobando direitos trabalhistas,
mas principalmente direitos fundiários. Os anos da série que registram violência grave contra
religiosos no estado de Mato Grosso são: 1994, 1995, 2001, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007,
2009, 2010, 2011, 2012 e 2013123.
Por fim, atravessando diversas nuances e particularidades dos dados apresentados,
é possível ver desenhar-se uma transformação estrutural nas relações sociais em Mato Grosso
no período analisado.
Com o entrecruzamento de dados de fontes diversas, interpretados em conjunto
com o resultado de uma pesquisa empírica que envolveu entrevista com diferentes atores e a
própria vivência no campo como auditora fiscal do trabalho em Mato Grosso,
complementados pelos resultados de pesquisas empíricas realizadas por outros autores no
mesmo território na década de 1980 e estudos sobre a violência do campo elaborados por
ativistas e cientistas com inserção nas problemáticas agrárias em questão, foi possível concluir
que a última década consolidou um novo momento das relações de exploração da força de
trabalho na agropecuária mato-grossense.
A crescente presença do Estado e estruturação do mercado de trabalho em Mato
Grosso se fazem acompanhar por um processo de transformação das formas diretamente
violentas de controle sobre a força de trabalho. O próprio incremento da fiscalização de
agentes do governo, naquelas regiões antes remotas, parece ter contribuído para que os
empregadores passassem a utilizar instrumentos mais discretos de exploração e controle dos
trabalhadores, evitando, assim, denúncias mais frequentes e punições mais severas.
A pistolagem generalizada num período inicial, em que se abriram os pastos
derrubando a mata, foi seguida por um uso privado impróprio (extraoficial) da polícia e, com
o tempo e o fortalecimento das instituições públicas na região, a violência também se
institucionalizou.

123
Além da análise por tipos de vítimas, podemos observar picos de violência em determinados anos, a exemplo
de 2003 e 2006, que fogem aos propósitos desta tese. Ver Cadernos de Conflito no Campo 2003 e 2006, que
expõem o contexto destes dados e o fornecem material para sua interpretação à luz dos acontecimentos do
período e conjuntura política e econômica.
215

Nas tensões em torno da força de trabalho, esse processo se manifesta através da


mobilização da miséria para compor o consenso coagido dos contratos, simultaneamente ao
agravamento silencioso da saúde dos trabalhadores. A exploração é cada vez mais mediada
pelo contrato.
Já nas tensões sobre a terra, observa-se a judicialização dos despejos (que
paulatinamente vão superando em números as ocorrências de expulsão das populações das
terras) (CPT, 2008). Porém, ainda assim, a violência física direta persiste e até cresce o
número de assassinatos.
Na transição para o século XXI – e é isso que investigaremos a seguir – a
violência física direta sobre a população do campo em Mato Grosso parece concentrar-se
sobre a questão da terra.
A crescente presença do Estado e estruturação do mercado de trabalho em Mato
Grosso se fazem acompanhar por um processo de transformação das formas violentas de
controle sobre as terras e a população no campo. A pistolagem generalizada num período
inicial, em que se abriram os pastos derrubando a mata, foi seguida por um uso privado
impróprio (extraoficial) da polícia e, com o tempo e o fortalecimento das instituições públicas
na região, a violência também se institucionalizou. Nas tensões sobre a terra, isso se dá
através da judicialização dos despejos (que paulatinamente vão superando em números as
ocorrências de expulsão das populações das terras) (CPT, 2008); nas tensões em torno da
força de trabalho, através da mobilização da miséria para compor o consenso coagido dos
contratos, simultaneamente ao agravamento silencioso da saúde dos trabalhadores.

2.3.2. Novas nuances do cativeiro da terra

A íntima relação entre exploração da força de trabalho e restrição do acesso a


terras na formação história do mercado de trabalho livre brasileiro já foi demonstrada por
vários autores.
Segundo Kowarick (1987), ao passo que na Europa a acumulação originária do
capital se deu com intensa expropriação camponesa, no Brasil não houve necessidade dessa
expropriação, pois a população já era de trabalhadores cativos e trabalhadores livres que
produziam para subsistência, de forma que a ordem escravocrata impossibilitava a produção
de excedentes por aqueles que não tinham estoque de cativos. Portanto, no Brasil, o principal
mecanismo que alavancou o capitalismo foi “restringir o acesso a áreas devolutas, por meio
216

de uma lei que tornava a compra a única forma de alienar as terras públicas, e em uma política
que deliberadamente aumentou o preço de sua venda. Com esta finalidade foi promulgada a
lei de 1850”, proibindo que as terras fossem adquiridas por outro meio ou título que não a
compra (KOWARICK, 1987, p. 75).
Portanto, não foi mera coincidência que a Lei de Terras tenha sido promulgada
justamente na derrocada do tráfico negreiro. Tratava-se do intento de obstaculizar o acesso à
propriedade da terra, forçando o trabalhador livre a permanecer nas fazendas (KOWARICK,
1987). Como sintetiza Martins (1979, p. 32): “Num regime de terras livres, o trabalho tinha
que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”.
Concomitantemente, segundo alguns autores, verifica-se um processo de aumento
da extensão das propriedades rurais e concentração fundiária na passagem para o século XXI,
que se acentua nos estados de expansão do agronegócio. De 1992 a 2003, as áreas cadastradas
no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) tiveram um incremento de 89 milhões de
hectares. Para Fernandes e Cavalcante (2006, p. 110), essas mudanças estariam “ocorrendo
com maior intensidade nos estados onde a produção da soja124 está se territorializando, onde
terras até então semi-utilizadas ou não utilizadas estão se valorizando devido à dinamização
da economia e da infra-estrutura”. Os autores (2006, p. 113) destacam Mato Grosso, que foi o
estado onde se registrou o maior crescimento das áreas cadastradas e está num “estágio mais
avançado da capitalização e monopolização das terras para o desenvolvimento do
agronegócio”.
Em seus estudos, Fernandes dialoga com as pesquisas de José Eli Veiga (2003),
que mostra ter havido uma diminuição da participação relativa da unidade patronal no total
das propriedades rurais, com o ganho de participação relativa da unidade familiar
(FERNANDES, 2005 apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 111). As pesquisas de
Fernandes, entretanto, acrescentam uma outra faceta importante da questão fundiária: o
aumento no tamanho dos imóveis rurais. Analisando a lógica das mudanças na estrutura
fundiária mato-grossense, a partir do conceito de impacto socioterritorial125 (FERNANDES,
2005 apud FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 112).

124
Os pesquisadores relacionam o processo de capitalização de terras no avanço do agronegócio da soja ao
crescimento das áreas de imóveis rurais registrados, que foi maior justamente entre os estados em que a soja se
expande: Mato Grosso, Pará, Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Piauí
(FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 113).
125
Conforme explanam os autores, “Impacto socioterritorial é um conceito cunhado no NERA [Núcleo de
Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária] para a compreensão das mudanças ocasionadas por diferentes
políticas, projetos ou planos que resultam no reordenamento territorial e que modifica os sistemas de produção,
bem como as estruturas sociais e políticas.
217

Os dados do INCRA e do SNCR utilizados no citado estudo mostram que, entre


1992 e 2003, as áreas de propriedades rurais registradas no Brasil subiram de 310.030.752,20
para 418.483.332,30 (aumento de 108.452.580,10). O Mato Grosso, estado federativo que
apresentou maior aumento de área registrada no mesmo período (variação de 24.699.465,20),
saiu de 45.688.719,00 hectares com registro até 1992, chegando a 70.388.184,20 hectares de
imóveis rurais registrados em 2003 (FERNANDES; CAVALCANTE, 2006, p. 112).
Assim, conforme esses autores, a manutenção da concentração fundiária e a
transferência de terras públicas para proprietários particulares no processo de reocupação
territorial de Mato Grosso e de industrialização e mundialização de sua produção
agropecuária preservaram velhas desigualdades e geraram novos processos de exclusão social
e desterritorialização126.
Interessante notar a especificidade de Mato Grosso como um dos estados em que
se deu a expansão do agronegócio, que se traduz nos dados quantitativos analisados. Como
mostram os dados do Censo Agropecuário 2006, no território mato-grossense, o percentual da
área ocupada por estabelecimentos rurais não-familiares é consideravelmente maior do que a
realidade nacional. A participação dos estabelecimentos rurais não-familiares no número total
de estabelecimentos rurais do estado (somando-se os familiares e não-familiares) também é
superior ao patamar geral do Brasil (CENSO AGROPECUÁRIO, 2006).

QUANTIDADE DE ESTABELECIMENTOS RURAIS POR TIPO 2006

100%
90%
80%
70%
60%
50% NÃO-FAMILIAR
40% FAMILIAR
30%
20%
10%
0%
MATO GROSSO BRASIL

Gráfico 25 – Quantidade de estabelecimentos rurais por tipo – MT


Fonte: Censo Agropecuário 2006 (elaborado pela autora)

126
Nas palavras de Bergamasco, Roboredo e Gervazio (2016, p. 11): “Na Amazônia norte mato-grossense
predomina a grande concentração de terra, pois grandes quantidades de terras foram e continuam sendo
compradas, griladas ou ocupadas por latifundiários, grileiros, fazendeiros e empresários. Os conflitos nessa
região ainda aparecem em forma de trabalho escravo, de problemas trabalhistas, de atingidos por barragens, de
mortes, conflitos por terra, acampamentos etc.”.
218

ÁREA OCUPADA POR TIPO DE ESTABELECIMENTO RURAL

100%
90%
80%
70%
60%
50% NÃO-FAMILIAR
40% FAMILIAR
30%
20%
10%
0%
MATO GROSSO BRASIL

Gráfico 26– Área ocupada por tipo de estabelecimento rural – MT


Fonte: Censo Agropecuário 2006 (elaborado pela autora)

Ainda segundo os dados do Censo Agropecuário de 2006, “Dos 2.516.572 ha da


área total dos estabelecimentos não familiares, 98, 7% possui estabelecimentos acima de 100
ha. Para os 702.922 ha da área total dos estabelecimentos familiares, 55,91% possui 100 ha a
mais. A maioria dos estabelecimentos familiares da região possui como principal atividade a
pecuária, seja de cria-recria, engorda ou de leite” (BERGAMASCO; ROBOREDO e
GERVAZIO, 2016, p. 9).
Mais recentemente, com a redução da área de terras disponíveis e aumento dos
preços, acirraram-se os conflitos sociais em torno da terra em Mato Grosso e o crescimento da
produção passa a realizar-se fundamentalmente “com base na produtividade”. As projeções
traçadas em 2011 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento vão exatamente
nesse sentido:

O crescimento da produção agrícola no Brasil deve continuar acontecendo


com base na produtividade. Deverá ser mantido forte crescimento da
produtividade total dos fatores, conforme trabalhos recentes têm mostrado.
Os resultados revelam maior acréscimo da produção agropecuária que os
acréscimos de área. As projeções indicam que entre 2011 e 2021 a produção
de grãos (arroz, feijão, soja, milho e trigo) deve aumentar em 23,0%,
enquanto a área deverá expandir-se em 9,5%. Essa projeção mostra um
exemplo típico de crescimento com base na produtividade (MAPA, 2011, p.
42).

O cenário apresentado faz parte de um movimento de apropriação e concentração


de terras e recursos naturais em larga escala (land grabbing e acaparamiento de tierras) que
219

vem ocorrendo em nível mundial (MERLET, 2010, apud SAUER; LEITE, 2012). A disputa
por terra, portanto, torna-se um fenômeno contemporâneo global.
Este processo se agudiza nos anos 2000 e, marcadamente, em 2008, ano que
assiste a um boom no comércio de terras agricultáveis e cultivadas. Segundo estudo do Banco
Mundial127 (DEININGER; BYERLEE, 2011), entre outubro de 2008 e agosto de 2009 foram
comercializados mais de 45 milhões de hectares de terras cultiváveis em todo o mundo,
contrastando com a média anual anterior, que era de 4 milhões de hectares (SAUER; LEITE,
2012, p. 504).
No Brasil, visam-se as áreas de expansão das commodities, notadamente nas
regiões do Cerrado, com destaques para os territórios de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e
Bahia. Em Mato Grosso, como ressaltado por Sauer e Leite, a expansão do agronegócio e a
corrida estrangeira por terras contribuiu para a elevação dos preços128, gerando impactos na já
problemática questão social do acesso a terra:

[...] a expansão das atividades do agronegócio nas fronteiras agrícolas,


associadas ao incremento de investimentos estrangeiros, tiveram como
resultado um forte processo de valorização dos preços das terras. Esse
incremento compromete a situação de diversos segmentos que, diante desse
quadro, viram-se forçados a realizar deslocamentos em direção a áreas mais
distantes, tornando a questão do acesso à terra e ao território bem mais
complexa (SAUER; LEITE, 2012, p. 519).

De fato, como assinalam os mesmos autores, estes processos em torno da disputa


mundial por terras trazem inúmeras consequências, que assumem complexidades e
perversidades ímpares ante as desigualdades já existentes em países como o Brasil:

Apesar de ser entendida por alguns como uma oportunidade de negócios, a


terra não pode ser reduzida a um ativo e um meio de produção. Além disso, a
demanda mundial por terras está em confronto direto com a demanda
histórica por reforma agrária, tanto no sentido de disputar um bem finito
quanto provocando a alta do preço e o encarecimento das políticas públicas
de acesso à terra. Além disso, os investimentos crescentes em ativos
fundiários ameaçam a segurança e a soberania alimentar, pois os mesmos
concentram ainda mais a produção agropecuária em poucas commodities,
favorecendo os monopólios na produção de alimentos e agroenergias
(SAUER; LEITE, 2012, p. 522).

127
O resultado do estudo promovido pelo Banco Mundial pode ser acessado em
https://siteresources.worldbank.org/DEC/Resources/Rising-Global-Interest-in-Farmland.pdf.
128
Sobre o caso específico de Mato Grosso, os autores citam estudo de Leite e Wesz Junior (2009), que aponta:
Além das fortes variações observadas no preço de compra e venda das áreas com lavouras, observamos
igualmente um acréscimo considerável nos preços das áreas com pastagens, que se transformam, na sequência,
em novas áreas abertas para o cultivo de soja e algodão (LEITE; WESZ JUNIOR, 2009).
220

Neste contexto, a tendência de acirramento da violência física e assassinatos


perpetrados contra populações de pequenos produtores e ativistas que defendem seu direito de
acesso à terra também é um fenômeno mundial de nosso tempo.
O Relatório da Global Witness129 para o ano de 2017 expõe algumas destas novas
tendências, bem como a gravidade da situação brasileira. Dentre os principais resultados
destacados pela pesquisa, o relatório aponta que: a) 2017 foi o ano com maior registro de
assassinatos de defensores de direitos relacionados à terra e ao meio-ambiente (desde 2004);
b) em 2017 o agronegócio despontou como setor mais perigoso, ultrapassando pela primeira
vez a mineração; c) 2017 foi o ano com o maior número de massacres (casos em que mais de
4 ativistas foram mortas na mesma ocasião); d) quase 60% dos assassinatos registrados em
2017 ocorreram na América Latina; e) o Brasil foi o país que registrou o maior número de
assassinatos de ativistas em todo o mundo (GLOBAL WITNESS, 2017, p. 8).
Dentre os 7 massacres ocorridos por todo o mundo em 2017, o relatório aponta
que 3 tiveram lugar em território brasileiro, tirando a vida de 25 ativistas. Um deles ocorreu
no estado de Mato Grosso, na cidade de Colniza (distrito de Taquaruçu do Norte), em que 9
pessoas foram brutalmente assassinadas por “matadores de aluguel” em um assentamento, em
disputa por terra130. Um dos aspectos do crime (homicídio triplamente qualificado, por ter
sido perpetrado mediante pagamento, emboscada e tortura) que mais chocou a comunidade foi
a crueldade empregada pelos seus autores:

De acordo com o MP [Ministério Público], a crueldade empregada pelos


assassinos pode ser constatada na forma como cada vítima foi encontrada.
Enquanto Francisco e Edson foram mortos a tiros, a vítima Valmir tinha
vários cortes causados por golpes de arma branca e foi encontrado degolado
e com as mãos amarradas para trás (Notícia G1, MT, 15/05/2017).

Na chacina de 10 posseiros por policiais, ocorrida no mesmo ano de 2017 em Pau


d’Arco (Pará), os requintes de crueldade também foram fartamente constatados.

129
A Global Witness atua contra abusos de direitos humanos e contra o meio-ambiente perpetrados na
exploração de recursos naturais e corrupção nos sistemas político e econômico globais (extraído do sítio oficial
da organização, tradução nossa).
130
Conforme notícias veiculadas na imprensa, “a suspeita é de que os autores do crime sejam capangas
contratados por fazendeiros. Homens encapuzados atacaram o assentamento onde vivem cem famílias. ‘Os
assassinos entraram de barraco em barraco matando as pessoas’, contou a policial” (Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,vitimas-de-massacre-no-mato-grosso-sao-assassinadas-com-golpes-
de-facao,70001748090).
221

O relatório da Global Witness (2017, p. 9), ao apresentar os dados sobre o


aumento dos massacres em escala mundial, conclui que “Estes massacres passaram a
mensagem de que não só líderes comunitários podem virar alvos: ninguém está seguro. Isto
tem um impacto enorme, uma vez que comunidades inteiras – ou partes substanciais delas –
estão geralmente envolvidas em lutas para proteger sua terra de ser tomada”131.
A análise da entidade sobre o teor de tais massacres se assemelha muito à fala de
vários entrevistados nesta pesquisa, que destacaram a intimidação e a “punição exemplar”
praticadas nas recentes chacinas, em que os assassinatos são combinados com o suplício e
exposição dos corpos das vítimas.

2.3.3. Desemprego, reestruturação produtiva e novos cativeiros do trabalho

Agora que já entendemos o contexto ampliado do recente aumento dos


assassinatos e outras formas de violências físicas diretas nas disputas por terra (que dialogam
com os dados da CPT), resta-nos entender o que está por trás do declínio dos números de
assassinatos e violência física direta nas relações de exploração da força de trabalho.
A nova violência e os novos mecanismos de dominação utilizados para submeter
indivíduos livres a trabalhos compulsórios são destrinchados neste trecho do Relatório de
Inspeção do Trabalho realizada em 2005:

A lógica do esquema de dominação não consiste em restringir a mobilidade


do trabalhador ou de forçar sua permanência na e propriedade; não se tratava
de violência física. Trata-se, isso sim, da conjugação de fatores sócio-
econômicos, estruturais e geográficos (falta de trabalho na região, baixa
escolaridade dos e trabalhadores, mão-de-obra farta e desqualificada,
distância das frentes de trabalho aos aglomerados urbanos, local não servido
por transporte regular), dos quais ardilosamente se prevalecia o e
proprietário rural. No caso sob lume, não é o poder das armas e sim a força
das circunstâncias que sujeita estes trabalhadores à humilhação de
permanecerem sob condições indignas. A falta de perspectivas, de emprego,
de oportunidades, conjugada com o oportunismo de quem vislumbra a
vantagem de enriquecer e lucrar a qualquer custo são os ingredientes que
promovem a escravização moderna, de resto constatada na fazenda
(Relatório de Fiscalização 2005, cód. AH, p. 19).

131
No original: “These massacres sent the message that not only community leaders will be targeted: nobody is
safe. This has a huge impact, given that whole communities – or large parts of them – are often involved in
struggles to protect their land from being grabbed”.
222

Na opinião de Henderson, um juiz entrevistado, as formas de escravizar têm se


sofisticado:

Você teve um histórico de atuação mais ostensiva do tomador da escravidão


e hoje isso está se sofisticando. Você não sabe quem é.... [...] O processo se
tornou mais plástico, mais sofisticado. Você não tem a ostensividade da
presença de pessoas controlando o trabalho, tanto direcionando quanto
impedindo a fuga, como exercendo vigilância, exercendo violência. A
violência que se exerce agora é uma violência simbólica de Bourdieu. [...] O
capital percebeu que não precisa mais de erguer cercas, ter capangas, reter
documentos. Basta ele usar a força e a violência simbólica do dinheiro.

Dentro das transformações das dinâmicas de exploração na virada do século XX


para o XXI que aqui estudamos, devemos destacar a importância da emergência do
desemprego estrutural como fenômeno mundial, trazendo importantes transformações para as
dinâmicas do mundo do trabalho. No Brasil, o aumento sem precedentes do desemprego a
partir da década de 1990 também se faz sentir profundamente na nova configuração das
relações sociais. A generalização do “trabalhador descartável” se dá neste contexto:

Até o final da década de 1980, conforme as estatísticas oficiais, o


desemprego era relativamente baixo no Brasil. A partir de 1990, a
quantidade de pessoas sem emprego e procurando por um posto de trabalho
ganhou forte relevância, sem paralelo com qualquer período de tempo
anterior (POCHMANN, 2006, p. 61).

A descartabilidade da força de trabalho vai se firmando como fator determinante


da precarização no mundo do trabalho, trazendo importantes transformações para a
morfologia do trabalho compulsório. Portanto, se a vulnerabilidade social e os dispositivos do
liberalismo contratualista constituem a engrenagem fundamental que põe em movimento a
nova escravidão, a descartabilidade da força de trabalho, a seu turno, constitui o elemento
central que dita a reconformação das tecnologias e táticas de dominação que passam a animar
as novas formas desse velho fenômeno.
Conclui-se, portanto, do conjunto de dados aqui analisados, que os assassinatos no
campo vão se concentrando em disputas pela terra, recurso finito e cada vez mais escasso. Já
o domínio sobre a força de trabalho, que se torna cada vez mais abundante, passou a sofrer
grandes transformações.
Com efeito, a relação entre acessibilidade da terra e cativeiro do trabalho e entre
trabalho livre e cativeiro da terra, desvendada por Martins (1979), continua mais presente do
que nunca. Nosso momento histórico apresenta um aprofundamento deste amálgama entre
223

trabalho livre e terra cativa que marcou a passagem do século XIX para o XX (tendo como
marcos principais, no Brasil, a Lei de Terras de 1850 e a abolição da escravidão em 1888). A
situação que observamos em seguida, na passagem do século XX para o XXI, é a culminação
de um processo contínuo de espoliação sobre vidas, tradições, culturas, territórios, os quais,
para o capital, representam “recursos” necessários à sua reprodução.
De um lado, os “recursos naturais” (cada vez mais escassos e concentrados após o
avanço intensivo sobre terras devolutas, biomas e territórios de comunidades tradicionais)
passam a ser cada vez mais disputados, acirrando a violência física direta em torno da questão
fundiária. De outro lado, os “recursos humanos” (cada vez mais sobressalentes e descartáveis,
com o desemprego estrutural derivado da explosão demográfica aliada à substituição da mão
de obra por máquinas e, mais recentemente, também por insumos químicos) passam a ser
consumidos mais do que exterminados, dando origem a novas formas de dominação,
exploração e atentados contra a vida humana, mais invisíveis porque biológicas, químicas,
psíquicas: biopolíticas.
A terra cativa (assim como a água, o subsolo e outros elementos naturais) fica
cada vez mais cativa. O “trabalhador livre” fica cada vez mais abandonado à própria sorte, a
ponto de fenômenos como “fugas de peões” começarem a perder incidência e sentido, sendo
substituídos pela lógica da “exploração por interpelação”. “Não aguentar” passa a ser a
ambivalente bandeira da nova rebeldia fragilizada dos oprimidos, como veremos no próximo
capítulo. Por outro lado, novas formas de resistência e alternativas de vida surgem da
consciência sobre as novas e renovadas formas de exploração.
A seguir, passaremos a analisar em mais profundidade a transmutação das formas
de violência e dominação da força de trabalho.
224

CAPÍTULO 3: NOVAS VIOLÊNCIAS E NOVAS SOBREVIVÊNCIAS

“Enferma e por essa razão sem condições para o


trabalho que exigia, considerou desobediência estar
acamada no fundo de uma rede” (Xico Cruz, Conto
Escravidão.

Os documentos analisados e as entrevistas conduzidas indicam que, na passagem


do século XX para o XXI, houve um declínio da prática de violência física direta e dos
assassinatos contra trabalhadores em Mato Grosso. Por outro lado, o sentimento de
intimidação, medo e proximidade da morte permanece presente nas narrativas.
Com a consolidação e integração da economia e mercado de trabalho mato-
grossenses à ordem capitalista nacional e internacional, a dominação dos trabalhadores passa
a ser cada vez menos exercida pelo “poder de vida e morte” do grande proprietário rural, que
Martins (2009, p. 76) havia identificado nas regiões de fronteira entre as décadas de 1970 a
1990.
Conforme atestam os resultados de nossa pesquisa quantitativa e qualitativa, a
vida do trabalhador continua sendo ameaçada e, sua dignidade, violada. Porém, na passagem
para o século XXI, observamos uma alteração substancial nas formas de controlar e explorar
os trabalhadores escravizados, o que parece indicar uma transição para novas formas de
violência na exploração do trabalho.
A consolidação da economia agropecuária moderna – com a produção de
mercadorias substituindo a “produção de fazendas” (Martins, 2009) – e a efetivação da
presença do Estado na região de Mato Grosso ocorrem simultaneamente a um processo mais
amplo de reestruturação produtiva, que trouxe repercussões para toda a classe-que-vive-do-
trabalho e acrescentou novas nuances também à morfologia do trabalho escravo.
É neste cenário complexo que as formas de escravizar transfiguram-se: há práticas
que persistem quase inalteradas (a exemplo das condições degradantes de alojamento e da
água consumida pelos trabalhadores); outras que sofrem declínio (castigos corporais e
assassinatos de trabalhadores por pistoleiros e capatazes); e, por fim, também a emergência de
novas formas de controle e violência (como é o caso das ameaças de demissão e dos danos
causados por agrotóxico).
Os estudos na área da Saúde Coletiva caminham no mesmo sentido, mostrando
que a reestruturação produtiva impulsionou a transição para um novo regime de morbidade e
de adoecimento. Os próprios dados oficiais revelam um aumento vertiginoso de algumas
225

tipologias de doenças ocupacionais (a exemplo das LER e das doenças psíquicas) que
devastam silenciosamente a vida de mais e mais trabalhadores sem a visibilidade das “mortes
violentas” e amputações (que se tornam menos frequentes apesar de perdurarem em setores
produtivos específicos). Ao lado da morbidez material e dos acidentes de trabalho típicos,
surge, cada vez com mais força, a morbidez imaterial e pouco visível das relações sociais de
trabalho (RIBEIRO, 2015, p. 34) crescentemente flexíveis e precárias.
Desenvolvendo a tese de que a violência contra os trabalhadores não teria
desaparecido, mas sim mudado de roupagem, neste capítulo busco contribuir para a
compreensão dessas novas formas de violência através do esforço teórico e da pesquisa
empírica. A partir da noção de biopoder (FOUCAULT, 2005) e do diálogo com estudos em
Sociologia do Trabalho e Saúde Coletiva, darei continuidade ao debate iniciado no capítulo
anterior, buscando uma compreensão mais aprofundada sobre as violências dos novos
dispositivos de exploração da força de trabalho que agem sobre os corpos dos trabalhadores
escravizados e os distingue (por sua marcação de classe, raça, gênero) de outros estratos
sociais, criando hierarquias que desafiam sua própria condição de seres humanos, de modo a
justificar, para os infratores, seu tratamento indigno.
Nos itens 3.1 e 3.2., desdobro em dois eixos a análise do biopoder na exploração e
escravização dos trabalhadores. O primeiro deles é uma abordagem do trabalho escravo a
partir do corpo do trabalhador, isto é, a escravidão entendida em sua dimensão de atentado à
vida dos trabalhadores. Proponho, nesse primeiro tópico, que a saúde se torna, cada vez mais,
a seara das disputas entre capital e trabalho, a partir do momento em que o “deixar morrer”
substitui o poder de matar as populações dominadas.
O segundo eixo é um estudo sobre as discriminações que subjazem à escravidão
nas democracias modernas, em que as desigualdades passam a ser impostas por instrumentos
alheios ao direito. Nesse tópico, proponho uma abordagem ampla dos racismos (entrelaçando
raça, classe e gênero) que diferenciam a “vida digna” da “vida que não merece ser mantida”: a
vida do sujeito escravizado.
Após essas discussões, chegamos ao final de nosso estudo, que nada mais é do
que o retorno à hipótese central do trabalho à luz de todos os dados e reflexões aqui
produzidas: a relação entre liberdade formal e trabalho compulsório na contemporaneidade.
Retomando o tema dos indivíduos expropriados e livres para venderem sua força de trabalho,
que surgem com o advento das relações capitalistas, busco apontar as ambivalências da
escravização do sujeito livre de nossos tempos. A partir dos resultados da pesquisa empírica e
documental, será possível traçar algumas tendências atuais sobre as práticas de controle sobre
226

os trabalhadores, perpassando os mecanismos de “exploração por interpelação” típicos do


capitalismo manipulatório. Apresento, através de dados produzidos na pesquisa, o cenário de
uma escravidão que não só imobiliza, mas passa também a atuar pela mobilização das
populações exploradas. Por fim, proponho uma visão para além da liberdade formal,
contrapondo a fragilização dos vínculos interpessoais do individualismo competitivo de nossa
era a experiências de união de trabalhadores e emancipação política frente à exploração.
Nesse ponto, abordo o sofrimento social e a organização coletiva, no contexto do
enfrentamento das novas formas de dominação.

3.1. Exaustão e degradação da vida

A pesquisa sobre escravização de trabalhadores em Mato Grosso conduzida em


1980 por Barrozo (1992) dava conta da “degradação da vida” dos peões. Nas palavras do
autor (1992, p. 125): “As muitas denúncias levadas a entidades, órgãos governamentais,
algumas publicadas na imprensa, revelam a insegurança e o grau de violência a que estão
expostos estes trabalhadores. A vida do peão não vale nada para o gato e seus prepostos”.
Nosso entendimento é que, até hoje, o descaso pela vida dos trabalhadores é um dos principais
elementos que têm caracterizado a escravidão contemporânea.
No caso de nosso estudo que cobriu as últimas três décadas em Mato Grosso, o
tema da “vida que não vale nada” é recorrente nas narrativas e documentação analisada.
Porém, como veremos, as formas de atentar contra a vida dos trabalhadores sofreram
profundas transformações entre os anos 1990 e os dias de hoje.
Em 1997, um dos primeiros anos de combate ao trabalho escravo, o GEFM
concluiu em uma das operações: “No relatório circunstanciado há algumas referências ao
desrespeito da empregadora para com a vida humana” (Relatório de Inspeção, 1997, cód. CS).
Tratava-se de uma empresa em que foram constatadas, em diferentes fiscalizações, práticas de
ameaça de homens armados aos trabalhadores, incluindo relatos de assassinato.
Já em caso ocorrido em 2008, quando se constatou trabalho em condição
degradante, servidão por dívida e cerceamento de transporte a seringueiros, os relatos de
agravos à saúde eram tantos (ataques de animais, intoxicação por agrotóxico, machucados
devidos a acidentes e sintomas devido ao uso de estimulante para conseguirem trabalhar
mais), que um dos trabalhadores afirmou à fiscalização: "que lá sobreviviam por Deus, que
era a única proteção que a gente tinha por lá" (Relatório do Inspeção, 2008, cód. NA, p. 31).
227

Para dar conta dessa transição entre a lógica de violência contida nos estudos de
Barrozo e um novo tipo de violência verificada nos anos mais recentes, utilizarei o conceito
de biopoder desenvolvido por Foucault. O biopoder é uma nova lógica de poder que,
diferentemente do regime da soberania (que o antecedeu), não consiste mais num “fazer
morrer e deixar viver” os súditos (que deviam a vida e a morte ao soberano), mas sim num
“fazer viver e deixa morrer” (FOUCAULT, 2005). Portanto, diferentemente do poder
negativo sobre a vida, que a limitava, restringia e dela se apropriava, o biopoder é destinado a
garantir a sobrevivência de uma população, a gerir a vida através da otimização de suas
forças. E, de maneira a deixar a população mais sadia, o biopoder vai estabelecer um corte
biológico entre o que deve viver e o que deve morrer, introduzindo o racismo nos mecanismos
de Estado (PELBART, 2009, p. 59).
Feitas essas considerações, proponho que entre o final do século XX e os
primeiros anos do século XXI, a violência do trabalho escravo em Mato Grosso transitou da
lógica do “matar” para a lógica do “deixar morrer”, fazendo com que a escravidão se tornasse
um problema cada vez mais afeto ao tema da saúde.
Além disso, no contexto da reestruturação produtiva, a descartabilidade, o abuso
da vulnerabilidade, a intensificação do trabalho e a flexibilização dos vínculos de
responsabilidade dão a tônica de uma nova forma de escravizar, que vai cada vez mais
interpelar o próprio trabalhador a vender parcelas crescentes de sua saúde nas negociações e
renegociações de cláusulas contratuais (escritas e não escritas).
De fato, no Brasil, notícias de mortes de trabalhadores por exaustão e por labor
em condições aviltantes, notadamente no corte de cana-de-açúcar, parecem indicar que o que
está em jogo no trabalho escravo por jornadas exaustivas e condições degradantes é a própria
vida dos trabalhadores. E, justamente, essas duas modalidades de trabalho escravo previstas
em nossa legislação, sobre as quais têm recaído as principais disputas conceituais recentes,
diferenciam-se das demais justamente por não dizerem respeito à liberdade de locomoção e
nem à imposição de um trabalho contra a vontade de quem o deve realizar.
As próximas páginas serão dedicadas a investigar a relação da saúde com o
trabalho escravo contemporâneo. Iniciamos com o estudo do discurso dos auditores-fiscais do
trabalho sobre o bem jurídico violado nos casos de trabalho escravo, para entender o lugar da
saúde, da liberdade e também da dignidade nesse universo. Em seguida, partiremos para uma
análise da implicação da saúde no trabalho escravo, através de entrevistas e da análise
qualitativa dos relatórios de fiscalização.
228

3.1.1. Trabalho escravo e bem jurídico tutelado

O desenrolar da pesquisa nos levou a repropor o debate, que ganha vigor entre os
operadores do direito, acerca de qual seria o bem jurídico tutelado pelo ordenamento ao
repudiar a prática de reduzir alguém a condição análoga a de escravo.
A liberdade é, inevitavelmente, o primeiro que nos vem à mente e, com efeito,
sobre a sua implicação no problema da escravidão não parece haver dúvidas no campo
jurídico. Porém, a liberdade foi recebendo abordagens diversas ao longo dos anos e o estudo
dessas mutações revela que sua acepção como mero “livre deslocamento” (a liberdade de ir e
vir) nunca foi suficiente para dar conta da escravidão contemporânea. Durante nossa pesquisa
documental, fomos nos deparando com discursos desenvolvidos pelos auditores-fiscais do
trabalho articulando outras acepções de liberdade, a exemplo da “liberdade de contratar” ou
do “direito do trabalhador de dispor livremente de seu próprio salário”.
Um dos primeiros casos de trabalho escravo encontrados em Mato Grosso já traz
uma dessas noções no texto de um dos autos de infração lavrados:

O empregador acima (...) limitava a liberdade dos empregados (...) de dispor


de seus salários como desejavam, uma vez que eram obrigados a adquirir
toda a mercadoria para a alimentação, material de trabalho, equipamentos de
proteção, inclusive medicamentos na cantina situada na frente de trabalho
(Relatório de Inspeção, 1996, cód. X, p. 26).

Esse entendimento de que a liberdade violada pelo trabalho escravo não se limita
à liberdade de ir e vir, abarcando a liberdade do próprio trabalhador de fazer escolhas
autodeterminadas (em razão de sua submissão a trabalho indigno) é também adotado pelo
STF. Nesse sentido, o órgão se posicionou em decisão de novembro de 2012, afirmando,
ainda, que o cerceamento da liberdade na contemporaneidade pode decorrer de
constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos:

Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário


que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento
da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho,
condutas alternativas previstas no tipo penal. A escravidão moderna é mais
sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de
diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-
se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não
como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas
também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive
do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta
229

a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre


determinação. Isso também significa reduzir alguém a condição análoga à de
escravo. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura
trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e
persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a
trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de
trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do
Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao
de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade (Supremo
Tribunal Federal, Inquérito 3412 AL, relatora Ministra Rosa Webber,
publicado em 12/11/2012).

Nessa importante decisão, observa-se também o entendimento cada vez mais


consolidado de que a dignidade humana e a liberdade, conjuntamente, são os bens jurídicos
violados pelas práticas escravistas. Assim, ao lado da liberdade, também a dignidade humana
é tutelada pelos dispositivos legais que coíbem o trabalho escravo.
Ainda que o campo do direito seja um campo de disputas conceituais, a
controvérsia sobre este ponto tende a se dissolver na medida em que, atualmente, a dignidade
humana é o valor primordial que anima a ordem jurídica brasileira e o sistema internacional
de direitos humanos. E por esse motivo a tutela jurídica da dignidade humana vai assumindo a
centralidade no enfrentamento do trabalho escravo.
Em sua pesquisa sobre a jurisprudência em matéria de trabalho escravo, Lima
identificou, em diversas decisões judicias, o entendimento de que a inexistência de vigilância
ostensiva armada e de trabalhadores acorrentados ou endividados não afasta a existência de
trabalho em condições análogas à de escravo132 e que "A escravidão, o trabalho forçado e a
servidão por dívida possuem características próprias, mas todas essas figuras constituem
violação dos direitos humanos fundamentais, especialmente o da dignidade humana"133
(LIMA, 2011).
A conclusão da equipe de fiscalização que constatou trabalho escravo de 8
garimpeiros em 2013 no estado de Mato Grosso, registra uma síntese completa da forma
como a escravidão contemporânea é materializada e interpretada:

132
Processo 00073-2002-811-10-00-6 RO, Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, 2ª Turma, julgado em
7.5.2003, Rel. Desembargador Ribamar Lima Júnior apud Lima, 2011, p. 205.
133
Neste julgado, a juíza faz a seguinte descrição do que ela chama de "trabalho escravo contemporâneo ou
neoescravidão": "[aquele trabalho] no qual o ser humano é levado ao extremo da exploração, tratado como bicho,
sem reconhecimento e concessão de direitos mínimos de sobrevivência digna e os que não aceitam são
simplesmente descartados, sabendo-se, inclusive, do descarte por assassinatos de crueldade inigualável"
(Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Processo n. 0061700-74.2008.5.15.0156, 2ª Turma, Rel. Juíza
Convocada Luciane Storel da Silva, publicado em 16.4.2010).
230

“apesar de não constatarmos cerceamento de liberdade, apesar de ter sido


ajustado livremente a sua prestação, todavia, fora realizado sem a devida
contraprestação financeira por parte do verdadeiro beneficiário dos serviços
executados (...) e sem a observância das normas mais elementares de
segurança e saúde no trabalho, expondo os obreiros a riscos a saúde e a
integridade física, consubstanciando em uma prestação laboral inaceitável,
haja vista o porte econômico do demandado, impondo com esta conduta a
submissão destes obreiros a uma situação desumana, aviltante, violando o
princípio da dignidade humana” (Relatório de Inspeção, 2013, cód DU, p.
22).

Verifica-se, no caso citado, como em muitos outros similares identificados em


nossa pesquisa documental, a violação ao princípio da dignidade humana como fundamento
de se coibir o trabalho escravo. Ao lado da tutela da dignidade humana, aparece aqui (como
em inúmeros relatórios e autos de infração do GEFM) a tutela da saúde e da integridade física
dos trabalhadores, com base no entendimento de que o nível do risco a que era submetida sua
saúde tornava as relações laborais inaceitáveis.
No ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal reconheceu “a construção
jurisprudencial no sentido de que as condições análogas à de escravo não somente atentam
contra a liberdade, mas contra a integridade e a dignidade do trabalhador" (LIMA, 2011, p.
212).
Assim, uma terceira dimensão protetiva, bem menos desenvolvida até o momento
pela doutrina jurídica, mas com uma presença considerável na prática fiscalizatória, consiste
na integridade física dos trabalhadores.
Um exemplo dessa dimensão do trabalho escravo apareceu em ação fiscal
realizada em 2011, na qual a equipe firmou sua convicção “de que os trabalhadores deveriam
ser resgatados daquele local por se tratar de risco grave e iminente de vida e de submissão dos
mesmos a condições degradantes de trabalho e moradia” (Relatório de Inspeção, 2011, cód.
BI, p. 10).
A análise dos relatórios de fiscalização sob a ótica do “bem jurídico violado”
pareceu-nos um interessante método de apreender o lugar da liberdade e da saúde no
enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo, que tem se estruturado na figura central da
dignidade humana. Evidentemente, a questão do “bem jurídico tutelado” é um tema discutido
pela doutrina jurídica e não necessariamente deve ser incluído nos arrazoados da ação
fiscalizatória.
Entretanto, ao percebermos que, na maior parte dos casos, a equipe do GEFM
fazia menção a esse tema no bojo de suas conclusões, optamos por analisar esses dados,
desconsiderando os casos em que nenhum dos bens jurídicos era mencionado (mesmo porque,
231

nesses casos, provavelmente o entendimento não manifesto da equipe também seria de que ao
menos um dos três bens jurídicos estaria sendo violado). Ou seja, por se tratar de uma
informação que não integra as exigências dos relatórios fiscais, o fato de nenhum bem jurídico
ser mencionado não apresenta relevância para o problema aqui colocado.
O que nos interessou foi entender, nos casos em que a equipe decidiu mencionar
os bens jurídicos violados no caso concreto, quais dos três (liberdade, dignidade e/ou
integridade) foram selecionados.
Para análise dos bens jurídicos mencionados na “fundamentação sobre a
constatação conclusiva de trabalho escravo”, foram consideradas as menções tanto no corpo e
conclusão do relatório quanto no auto de infração que descreve as condições análogas a de
escravo. A análise foi elaborada a partir de uma codificação minuciosa, que exibimos abaixo:

MENÇÃO A "CERCEAMENTO DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO, DE CONTRATAÇÃO E/OU DE DISPOR DO


SALÁRIO” NO RELATORIO: Embasamento da configuração do trabalho escravo em expressões iguais ou
equivalentes às seguintes: “liberdade deixou de ser absoluta”, “empregador retinha os obreiros no ambiente
de trabalho”, “atentado contra a liberdade de trabalho”, “coagir trabalhador a permanecer no ambiente de
trabalho”, “limitação da liberdade de dispor do salário”, “compulsória manutenção dos empregados nas
frentes de trabalho”, “sem condições de sair do local (por retenção de salários)”, “não havia liberdade de sair
da fazenda”, “cerceamento do direito de ir e vir”, “trabalhadores não conseguiam sair (falta de
transporte/salário)”, “privados da liberdade de escolher trabalhar ou não para seu empregador”, “violação da
liberdade de contratação”, “negar direito de ir e vir”, “agressões/ameaças com objetivo de manter empregados
na fazenda”, “impossibilidade de trabalhadores saírem da fazenda devendo aos gatos”, “cerceamento de
liberdade de forma disfarçada” (não pagamento de salários/ dívidas), “restrição da liberdade”, “impedimento
de deslocamento”, “trabalhadores não podiam se deslocar para a localidade mais próxima, quer pela distância
e condições das vias, como pela falta de assistência”, “cerceamento econômico da liberdade”, “ficar ‘preso’ na
fazenda por estar sem dinheiro e endividado”, “permanência no local de trabalho por coação moral/psicológica
e não pagamento dos salários devidos”, “impossibilidade de sair do local de trabalho pelo isolamento
geográfico aliado ao cerceamento de transporte”, “retenção de CTPS impedindo trabalhadores de irem
embora”, “indício de cerceamento de liberdade dos trabalhadores”, “restrição ao direito do trabalhador de
dispor de seu salário”, “supressão do livre arbítrio e liberdade de escolha”, “restrição da liberdade contratual e
de locomoção através de dívidas”, “malferir a liberdade de trabalho”.

MENÇÃO A "VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA" NO RELATORIO: Embasamento da configuração do


trabalho escravo em expressões iguais ou equivalentes às seguintes: “tratamento subumano”, “desrespeito à
dignidade”, “total desrespeito à condição de ser humano e cidadão”, “situação animalesca”, “situação indigna”,
“condições humilhantes”, “situações degradantes e indignas de seres humanos”, “de forma desumana”,
“condições incompatíveis para seres humanos”, “não adequado para um ser humano”, “afronta a dignidade
humana”, “não condizentes com a dignidade humana”, “inadmissível para um ser humano”, “humilhação e
falta de dignidade”, “condições infra-humanas”, “degradar da condição de cidadão à condição de escravo”,
“contrária à promoção humana da pessoa”, “não eram condignos”, “não contavam com os mínimos requisitos
para a subsistência digna”, “avilta a dignidade humana”, “supressão da condição de ser humano”, “redução da
dignidade, sem cuidado que atentasse para sua condição de ser humano”, “tratamento desumano”, “não
dispunham de água em condições de consumo humano”.
232

MENÇÃO A "RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA OU À VIDA” NA CARACTERIZAÇÃO DE TE DO RELATORIO:


Embasamento da configuração do trabalho escravo em expressões iguais ou equivalentes às seguintes: “revolta
sentida pelos trabalhadores diante da falta de proteção à própria vida”, “trabalhadores estavam sem as
mínimas condições de segurança, higiene e saúde”, "desrespeito da empregadora para com a vida humana",
“as condições básicas de segurança e saúde não são observadas”, “trabalhadores estavam sujeitos a acidentes,
além das precaríssimas condições em que se encontravam”, "estavam em situação de grave risco de vida",
"expondo a saúde e integridade física dos trabalhadores", "negligência grave em relação à saúde", "grave e
iminente risco à segurança e saúde dos trabalhadores", “desrespeito à vida, saúde e dignidade humana”,
“exposição a substâncias letais”; "expos saúde dos trabalhadores a perigo direto e iminente", “omissão de
socorro e descaso pela vida e saúde dos trabalhadores”, "grave e iminente risco a sua integridade física", “risco
à saúde e segurança”, “vida em situação de perigo”, “expor vida ou saúde a perigo iminente”, "saúde e
integridade dos trabalhadores estavam, sem dúvida alguma, correndo sérios riscos", “trabalho que oprime,
machuca física e moralmente e não agrega bem estar à vida do operário”, “põem em risco a integridade física,
mental e a própria vida dos trabalhadores”, "expõem a saúde e segurança dos trabalhadores sem qualquer
pudor”, "total descaso para com a vida alheia", “situação de risco e perigo manifesto”, “trabalhavam expostos
a todos os riscos e sem qualquer cuidado que lhes fizessem lembrar a sua condição de seres humanos”,
“colocando em risco suas vidas”, "poderão sofrer danos físicos e terem comprometimento à sua saúde uma vez
que estavam submetidos a condição degradante de vida e saúde", “exposição da vida e saúde a perigo”, dentre
outras. Foram considerados também os casos em que a caracterização do trabalho análogo ao de escravo (na
conclusão do relatório e/ou no auto de infração da caracterização do trabalho escravo) baseou-se na omissão
de socorro e riscos de vida e à saúde em igual ou maior medida do que a fundamentação na dignidade
humana.

Os dados coletados e processados apresentaram o seguinte resultado para um


universo de 146 relatórios (em que havia menção a bens jurídicos tutelados)134:

BEM JURÍDICO VIOLADO

LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO, DE
CONTRATAR OU DE DISPOR DOS 31,11%
SALÁRIOS

VIDA E INTEGRIDADE FÍSICA 52,22%

DIGNIDADE HUMANA 68,89%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Gráfico 27 – Bem jurídico violado


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso 1995-2013 (elaborado pela autora)

134
Em 34 dos 180 relatórios estudados nesta tese, e equipe da fiscalização optou por não mencionar quais bens
jurídicos estavam sendo violados em suas conclusões e autos de infração.
233

Como se vê, a dignidade humana mantém-se como principal fundamentação na


luta contra a escravidão. Até mesmo as questões de saúde que, em maior ou menor medida,
estão presentes em todos os relatórios, muitas vezes são vinculadas pelo discurso
fiscalizatório a uma violação da dignidade e não a uma violação da integridade física ou da
vida como bens jurídicos independentes a serem também tutelados.
Ainda assim, os dados também mostram que a violação da integridade física dos
trabalhadores representa uma dimensão significativa do que se compreende por escravidão
hoje, suplantando a liberdade em número de aparições no conjunto total dos relatórios.
Já as liberdades de contratação e de ir e vir, apesar de permanecerem, no senso
comum e mesmo em debates técnicos, representados como principal bem jurídico tutelado na
luta abolicionista, foi a dimensão com menos representatividade na base de dados estudada.
Por fim, como veremos em seguida, a liberdade capitalista de locomoção e de
contratar passa a ser cada vez menos diretamente violada para ser cada vez mais
incisivamente manipulada, esgarçada e, de fato, mobilizada para escravizar os sujeitos da
classe-que-vive-do-trabalho.
A percepção dos atores envolvidos também fornece importantes elementos para
reflexão. Em pesquisa coordenada por Maria Antonieta da Costa Vieira (2011, p. 28) em
colaboração com a OIT, os 121 trabalhadores rurais entrevistados entre outubro de 2006 e
julho de 2007, ao definir o que para eles seria trabalho escravo, mencionaram os seguintes
elementos: ausência ou insuficiência de remuneração (citada por 38,8% dos entrevistados),
jornada exaustiva (36,3%), maus tratos e humilhação (36,3%), condições degradantes de
trabalho (28,9%), privação de liberdade (24,7%) e ausência de formalização do vínculo
(4,1%).
Percebe-se que a privação da liberdade, pura e simples, não é o principal elemento
definidor do fenômeno da escravidão de hoje em dia na percepção dos envolvidos. Por outro
lado, cabe a pergunta que transcende a aplicação de questionários aos entrevistados: em que
medida a ausência de remuneração, o trabalho exaustivo, os maus tratos, as humilhações e as
condições degradantes de trabalho são violações à liberdade e/ou à dignidade desses
trabalhadores?
Para Miraglia, uma caracterização do trabalho escravo adstrita às hipóteses de
cerceamento do direito de locomoção mostra-se insatisfatória, pois “o direito de ‘ir e vir’ é
apenas uma das facetas do direito de liberdade do obreiro. Um dos problemas estaria,
certamente, em se restringir a noção de liberdade a uma mera “liberdade de locomoção”. A
inadequação dessa acepção de liberdade para se compreender o fenômeno do trabalho escravo
234

contemporâneo fica patente na análise dos relatórios de inspeção do trabalho, que, ao


constatarem a violação à liberdade, por diversas vezes tiveram que demonstrar que o que
estava em jogo não era a liberdade de locomoção, mas algum outro aspecto da liberdade. Um
exemplo é o obreiro impedido de “dispor livremente de seu salário” por estar com os salários
retidos e, destarte, ver-se obrigado a consumir todos os produtos de que precise na cantina da
fazenda onde labora.
Outro ponto importante desenvolvido por Miraglia é a relação entre condições
degradantes de trabalho e violação da liberdade. A autora defende que "não há que se falar em
existência de liberdade no contexto de uma relação trabalhista degradante", pois apenas quem
não é, de fato, livre (para eleger seu labor e para rescindir seu contrato de trabalho quando lhe
aprouver, sem o temor de padecer de fome) se submete a situações tão humilhantes e
vexatórias135 (MIRAGLIA, 2011, p. 148).
Para Brito Filho, a liberdade numa acepção mais ampla (entendida como domínio
extremado sobre o trabalhador) continuaria sendo violada sistematicamente na escravidão
contemporânea e em todas as modalidades do crime previsto no art. 149 CPB:

a falta de liberdade continua a existir em todos os modos de execução [do


trabalho escravo], desde que entendida sob a forma de um domínio
extremado do tomador de serviços em relação ao trabalhador, em todos os
casos motivada (a falta de liberdade) pela situação de miséria, de extrema
necessidade, do último (2014a, p. 70).

Entretanto, cada vez mais, a doutrina e jurisprudência têm mostrado como a


degradação do ser humano (e não o cerceamento da liberdade de locomoção) são o mínimo
denominador comum da escravidão ao longo do tempo. Além disso, a noção jurídica de
“liberdade” revela-se cada vez mais opaca para dar conta das novas formas de coerção.
Neste contexto, o princípio da dignidade humana assume fundamental
importância na luta conta a escravidão. Sob a lente da dignidade, coerções e violências
recobram a visibilidade que foi se perdendo no campo da liberdade (que é ao mesmo tempo
violada e manipulada/estimulada nas novas formas de dominação).
Em relatório de fiscalização ocorrida em 2006, os auditores fiscais frisam que o
atentado contra a dignidade humana é uma das novas formas de violência contra os
trabalhadores:

135
Para a autora, em consonância com o posicionamento majoritário da doutrina jurídica brasileira estudada na
primeira parte do artigo, o “trabalho degradante” seria aquele "realizado em condições subumanas de labor,
ofensivas ao substrato mínimo dos Direitos Humanos: a dignidade da pessoa humana" (MIRAGLIA, 2011, p.
145).
235

A violência, neste caso, foi perpetrada contra a dignidade da pessoa humana.


Sob esta ótica houve muita violência, consubstanciada pelas péssimas e
repugnantes condições de trabalho a que foram submetidos, com a agravante
da falta de pagamento de salário para aqueles que haviam sido admitidos nos
meses anteriores ao mês da inspeção (Relatório de Fiscalização, 2006, p. 31).

Portanto, observa-se a consolidação do entendimento de que a dignidade humana


é o principal bem jurídico violado nos casos de trabalho escravo atuais. Paralelamente, a
“integridade física” dos trabalhadores também ganha importância na tutela dos direitos dos
trabalhadores, na medida em que, somadas às disputas sobre duração e intensidade de
jornadas e sobre valores e efetividade das remunerações, a exploração (e a resistência a ela)
extremada em patamares inferiores ao mínimo necessário para a reprodução da força de
trabalho se coloca também sob novas formas (condições de repouso, alimentação, tratamento
de doenças) mais ligadas à saúde e à vida dos trabalhadores.
Trata-se de trabalhadores que muitas vezes têm direito às 11 horas de descanso
entre duas jornadas, preconizadas por lei, mas que não conseguem dormir em razão das
condições precaríssimas e degradantes dos alojamentos (barracos de lona que não os
protegem de chuva, do ataque de animais ou de temperaturas extremas) e das relações de
trabalho (insônia por medo de ameaças, por medo da morte, do desemprego ou de não
conseguir prover o sustento da família etc.).
Trata-se também de trabalhadores cuja reprodução social não é ameaçada apenas
pelas características da jornada (que são geralmente intensivas e extensas) e de salário
(geralmente baixos e não pagos na integralidade), mas também pelas próprias condições em
que laboram e em que vivem no ambiente laboral. Ou seja, ainda que realizem uma jornada de
trabalho parecida com a de outros trabalhadores precarizados da contemporaneidade – com a
combinação de mais-valia relativa e absoluta –, as suas condições de repor a energia
consumida no trabalho é muito menor, pois sua alimentação é nutricionalmente inferior à
oferecida a outros funcionários da mesma empresa, não têm água potável (parte considerável
dos trabalhadores entrevistados pelo GEFM relata doenças causadas pela água ingerida), não
há instalações para as refeições (que muitas vezes são feitas no chão, no próprio local de
trabalho, a altas temperaturas e, no caso dos aplicadores de agrotóxico, sem possibilidade de
higienização que garanta sua segurança), não há proteção nenhuma ante os riscos do ambiente
de trabalho e nem acesso a tratamentos médicos, de forma que sua saúde é afetada
dramaticamente.
236

Basta retomarmos aqui alguns dos resultados de nossa pesquisa quantitativa nos
relatórios de inspeção do trabalho, que apontaram que as vítimas de escravização encontradas
entre 1995 e 2013 em Mato Grosso: a) estavam sem nenhum acesso a água potável em
86,67% dos casos; b) não contavam com instalações sanitárias em 81,11% dos casos; c) não
tinham qualquer infraestrutura para tomar refeições em 93% dos casos; e d) estavam alojadas
em barracos improvisados ou casebres que não os protegiam nem das intempéries e animais
peçonhentos em 89,44% dos casos analisados.
Estes elementos mostram a centralidade da “integridade física” e da própria vida
na exploração do trabalho escravo nos dias de hoje. E, por conseguinte, a importância da
produção científica sobre trabalho escravo nas áreas da Saúde, bem como da inclusão do
enfoque da saúde, da vida e da integridade física nos debates jurídicos e sociológicos sobre a
exploração extrema que constitui o fenômeno da escravidão.

3.1.2. Vulneráveis e descartáveis: os trabalhadores e os novos padrões de adoecimento

No epílogo de Visões da liberdade, Chalhoub afirma que a abolição da escravidão


como data de liberdade e redenção do trabalho encontra-se cada vez mais desmoralizada
“numa sociedade que, em termos alarmantes, substituiu os açoites pelos acidentes de trabalho
como uma das formas cruciais de disciplinarização e mutilação dos corpos dos trabalhadores”
(2011, p. 317). De fato, a formação de um mercado de trabalho capitalista implica na
substituição da violência física direta sobre a força de trabalho por coações sistêmicas,
econômicas. E, ao lado da disciplinarização, a incidência de acidentes e adoecimentos no
trabalho marcam as relações de escravização de sujeitos livres que, diferentemente de objetos
legalmente comprados e vendidos, não acarretam qualquer perda ou lucros cessantes ao patrão
em caso de adoecimento.
Num momento mais recente, a reestruturação produtiva deu azo a uma transição
epidemiológica das próprias doenças do trabalho. O típico acidente de trabalho e doença
ocupacional vão progressivamente abrindo espaço para o predomínio de outra matriz de
adoecimentos caracterizada pelas doenças atípicas e imateriais, de que as LER e as doenças
psíquicas são expressão (RIBEIRO, 2015, p. 78).
Para Ribeiro, as marcas no corpo e na mente dos trabalhadores contemporâneos
traduzem-se em “estados de saúde flexíveis de populações tornadas vulneráveis, porque
submetidas a relações de trabalho demasiadamente assimétricas” (2015, p. 41). O autor
237

descreve, no trecho abaixo, como se manifestam as violências e autoritarismos que


caracterizam a morbidez imaterial do trabalho contemporâneo:

A nova estruturação produtiva e do trabalho e esse autoritarismo acarretaram


uma morbidade e mortalidade da classe trabalhadora material e
sensorialmente menos perceptível, não tipicamente acidentária, passando a
imperar a cobrança do trabalhador para consigo, a competição com os
companheiros e o medo do desemprego, que constituem os elementos
cruciais da morbidez da organização do trabalho contemporâneo. Trata-
se de uma morbidez menos objetiva e mais difícil de mensurar, cuja
evidência é dada por sua coletivização em populações de trabalhadores
tornados vulneráveis pelo trabalho degradado (RIBEIRO, 2015, p. 40).

Nas palavras de Mascaro, “Com a transição de um regime de acumulação para


outro, temos também a transição de um regime de morbidade e de adoecimento para outro,
das amputações à LER e, sobretudo, às doenças psíquicas, depressão e suicídio” (2015, p.
107).
Dentre os diagnósticos da Classificação Internacional de Doenças (CID), os
transtornos mentais foram o diagnóstico com crescimento mais expressivo no total de
acidentes de trabalho registrados no Brasil entre 2002 e 2010.
Analisando os dados do Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho, Pignati,
Maciel e Rigoto (2013, p. 378) mostram que 2002 registrou 1.970 casos de transtornos
mentais, enquanto 2010 apresentou 15.525, o que perfaz um aumento de 788% no período.
Portanto, se em 2002 os transtornos mentais ainda apresentavam pouca
expressividade no total de diagnósticos de agravos à saúde dos trabalhadores, figurando em
nono lugar dentre os diagnósticos com maior número de casos136, em 2010 já despontava
como quarto diagnóstico em números absolutos, atrás apenas de: lesões e envenenamento
(503.936 casos), osteomuscular (112.786 casos) e causas externas (18.569 casos).
Em termos de mudanças na matriz tecnológica e rotinas de trabalho relacionadas a
este fenômeno, os autores apontam a automação microeletrônica (introduzida no Brasil na
década de 1970 e intensificada a partir das décadas seguintes), que permitiu a flexibilização
global da produção e do trabalho. Por outro lado, a automação eletromecânica, pré-existente,
mantém forte presença e até prevalência em setores como o calçadista e ao menos três dos
setores incluídos nesta pesquisa: produção de grãos, cana-de-açúcar e indústria frigorífica

136
Em 2002, os transtornos mentais estavam atrás, em número absolutos, das neoplasias (1978 casos), doenças
do sistema nervoso (2169 casos), doenças dos olhos/anexos (5739 casos), doenças do ouvido e “apóf. Mast.”
(5437 casos), osteomusculares (42149 casos), lesões e envenenamento (311394 casos), causas externas (5354
casos), “fatores e contat.” (7548 casos), conforme dados apresentados por Pignati, Maciel e Rigoto (2013, p.
378).
238

(RIBEIRO, 2015, p. 35). No caso do agronegócio, devemos ainda apontar a importância dos
insumos químicos a partir do final do século XX.
Conforme explica Ribeiro, nesses enclaves produtivos mais mecânicos e
eletromecânicos, as doenças e acidentes típicos do trabalho continuam a ser banais.
No caso específico do agronegócio em território mato-grossense, Pignati e
Machado (2011) apontaram que há uma correlação positiva significativa entre os indicadores
de produtividade do agronegócio e os agravos à saúde dos trabalhadores e da população do
estado, a partir dos dados a seguir:

INDICADORES DE PRODUÇÃO E AGRAVOS À SAÚDE DOS TRABALHADORES E DA POPULAÇÃO DO


ESTADO DE MATO GROSSO NO PERÍODO DE 1998 A 2010

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
esforço produtivo
(ha/hab) 2,06 2,43 2,53 2,55 2,94 3,3 3,9 4,34 3,8 3,85 4,06 3,95 4,2
esforço produtivo 10,0 10,4 10,7 11,7 12,8 13,2 13,1 12,5 12,1 11,9 12,3 12,8
(gado/hab) 9,93 5 2 4 5 1 4 2 9 8 1 2 3
10,7 10,4 11,6 12,0
agrotóxicos (litros/ha) 9,61 9,48 9,14 9 8,84 8,76 8,5 8,2 9,62 1 5 6 6
23,0 23,1 22,9 25,9 28,8 33,1 35,6 36,5 41,2 42,4 46,0 50,6
agrotóxicos (litros/hab) 19,8 1 2 9 7 8 5 4 2 5 2 6 6
acidentes de 16,7 17,1 15,6 16,7 17,5 18,6 25,2 26,9 23,4
trabalho/1000 trab 5 16,6 9 2 5 9 18,8 1 19,1 7 28,2 6 2
intoxicações por
agrotóxico/10000 hab 0,38 0,34 0,4 0,64 0,71 0,82 0,86 0,66 0,35 0,32 0,65 0,62 0,71
acidentes animais
peçonhentos/10000 hab 0,36 0,6 0,8 1,19 2,59 3,34 2,99 3,24 2,84 7,24 7,47 8,16 8,41
internações 11,3 11,9 11,3 20,9 23,5 23,4 28,1 26,4 24,5 17,4 19,5
neoplasias/10000 hab 1 10,7 8 1 1 3 2 5 7 9 4 17,2 6
óbitos neoplasias/10000
hab 3,53 4,34 4,42 4,31 4,66 5,2 5,22 5,24 5,41 5,42 5,74 5,4 5,78
internações 19,9 19,3 15,1 13,1 14,6 11,5 13,3 14,3
malformações/1000 nasc 5,74 6,76 6,44 7,6 8 20,8 5 3 9 6 7 2 3
óbitos
malformações/1000 nasc 3,67 3,63 4,45 3,89 3,86 3,84 4,89 4,15 3,83 3,84 3,48 3,65 3,83
Tabela 12 – Matriz produtiva e agravos à saúde dos trabalhadores MT
Fonte: Pignati e Machado (2011)

O estudo revela um aumento dos acidentes de trabalho, intoxicações, internações


e óbitos por neoplasias, acidentes com animais peçonhentos e internações por malformações
entre 1998 e 2010, acompanhando a produtividade no agronegócio. Tanto o esforço
produtivo, quanto o consumo de agrotóxicos e os agravos à saúde apresentam um crescimento
significativo entre 1998 e 2010.
A gestão do tempo produtivo também apresenta grande impacto sobre a saúde dos
trabalhadores na acumulação flexível. Como esclarece Antunes:
239

A pressão pela capacidade imediata de resposta dos trabalhadores às


demandas do mercado, cujas atividades passaram a ser ainda mais
controladas e calculadas em frações de segundos, assim como a obsessão dos
gestores do capital por eliminar completamente os tempos mortos dos
processos de trabalho, tem convertido, paulatinamente, o ambiente de
trabalho em espaço de adoecimento (2018, p. 142).

Enquanto, nos centros do capitalismo, o controle minucioso de cada fração do


tempo de trabalho é amparado pelas inovações tecnológicas e de gestão, na periferia das
cadeias produtivas (como é o caso dos setores estudados nesta pesquisa), o que se vê é o
contrário: a eliminação do tempo morto do processo de trabalho é operada através da
imposição de variados sistemas remuneratórios que ampliam a extração de mais-valia
(conforme discutido no capítulo II), conjugados com o rebaixamento dos valores de referência
(valor do salário base, da diária ou da peça), pressionando o trabalho a uma maior
produtividade.
Muitas vezes, esses mecanismos são colocados em ação via terceirizações de
fachada ou através da subcontratação de uma parte do serviço a um “empreiteiro” sem
idoneidade financeira, através do qual se explora a níveis ainda maiores os trabalhadores
subcontratados, aos quais não é oferecida nenhuma estrutura (equipamentos de proteção,
alojamento, gestão da saúde e segurança no ambiente de trabalho, pagamento salarial no prazo
legal etc.). Os empregadores tentam negar os vínculos de responsabilidade com os
trabalhadores, ao mesmo tempo em que reduzem custos com o rebaixamento das condições de
saúde, segurança e conforto a eles oferecida em seu estabelecimento (como veremos mais
adiante).
Além disso, a “exploração por interpelação” motivada pelo imperativo da
sobrevivência é a tecnologia mais eficaz de controle tenaz sobre o tempo integral da vida dos
trabalhadores. Uma das facetas da “exploração por interpelação” é o cálculo que a pessoa
vulnerável vê-se obrigada a fazer sobre suas condições de vida e sobrevivência, chegando à
conclusão de que reclamar seus direitos lhe causaria mais prejuízo do que vê-los
desrespeitados. A situação de extrema vulnerabilidade e dependência que impossibilita que os
trabalhadores exijam seus direitos é destrinchada no perspicaz relato da trabalhadora Kelly:

Giselle: Que problemas de saúde você teve no acidente?


Trabalhadora: Deu problema de saúde, porque procurei a empresa (...)
quando estava funcionando, mas fizeram de conta que não aconteceu nada.
Giselle: Quando você caiu?
Trabalhadora: É. Eu falei ao médico, (...) que mora em Cuiabá. Deram
assim: “Kelly está na sua mão, cuide dela, porque estou pedindo”. E não
240

fizeram nada por mim. Eu corri uma vez, não sou muito de correr. Chego
uma vez na sua casa, duas, três e você não atende... Não fui mais, larguei
mão. Graças a Deus que hoje estou viva, sem intriga nem rixa com eles.
A gente não sabe do dia de amanhã, ninguém diz ‘dessa água não bebo’,
porque tem gente que sai (...) e diz ‘não venho mais’. Eu igualmente, quando
saí daqui, falei que não voltava mais. Não dava 15 dias, estava de volta e,
hoje, moro [aqui]. Por isso eu digo: a gente não suja em cima o que bebe
embaixo, porque sempre precisa. É verdade.

O sindicalista Joaquim, que atua no estado de Mato Grosso há 20 anos, relata que
os trabalhadores fazem cada vez menos denúncias e que muitos acabam se sujeitando a
condições extremas de trabalho por não terem alternativas ou por ficarem iludidos de que irão
receber um bom salário. Joaquim conta que em sua região há um uso elevadíssimo de
agrotóxicos adoentando os trabalhadores, além de persistirem más condições de alojamento,
vivência e trabalho. Citou, ainda, as jornadas exaustivas e o fato de várias empresas estarem
criando banco de horas sem acordo coletivo. Em suas palavras: “A jornada é exaustiva e os
trabalhadores ficam iludidos pensando ‘ah, eu vou ganhar mais’, mas estão exaustos, parecem
noiados”.
O depoimento de Joaquim aponta, ainda, a tendência de agravamento das
situações descritas a partir das recentes flexibilizações na legislação trabalhista num cenário
de desemprego crescente:

Em alguns setores, no rural e também no urbano, tem trabalhador que sai 4


da manhã, pega ônibus para trabalhar às 7 e chega em casa às 20h... E agora
perdemos as horas in itinere. Uma pessoa dessas com 50 anos já está
detonada. Porque se ele tem meia-hora, uma hora, tem todo esse stress e não
ganha nada sobre isso... isso é uma escravidão moderna. E, ainda, quando
chega atrasado no serviço é descontado. Tudo é descontado. No final tem
gente que ganha uns 400 por mês... Isso é uma escravidão. Com o
desemprego crescente, cada vez mais a tendência é isso aumentar. E a pessoa
se sujeitar a esse tipo de coisa.

No mundo contemporâneo, a escravização se dá cada vez menos pela restrição


direta da liberdade de locomoção das vítimas e cada vez mais através do abuso de sua
vulnerabilidade. Vulnerabilidade esta que cresce a partir do momento em que, com o
neoliberalismo, os problemas e riscos sociais são privatizados enquanto questões de “self-
care” e o indivíduo passa a ser responsabilizado pelas mazelas sociais. O desprezo pela
condição humana e pela vida do ser escravizado traduz-se cada vez menos no “fazer morrer”
do assassinato por pistolagem e cada vez mais no “deixar morrer” das condições degradantes
e exaustivas a que são submetidos.
241

Só porque os trabalhadores rurais ao invés de morrerem assassinados a bala, de se


machucarem pelo açoite, de se imobilizarem por dívidas, são agora controlados, machucados
e mortos por doenças, pela exaustão e pelo sofrimento, oriundos de suas condições extremas
de trabalho, isso não quer dizer que sejam mais livres, nem que suas vidas estejam menos em
perigo.
Trata-se, agora, de uma vida que não se extermina, mas que se exaure. Atenta-se
contra a vida não a partir da sua exterioridade, mas a partir de seu interior. Já não se aplica a
força da violência física sobre o corpo dos trabalhadores: atua-se sobre a própria força vital
desses mesmos trabalhadores para minar a vida em sua fonte, através da seleção do nível
nutricional, quantidade e frequência da alimentação oferecida a eles, da possibilidade ou não
de descanso, do dispêndio de energia exigido na jornada de trabalho e do nível de saúde
mental proporcionado pela organização do trabalho e pelo grau de violência, amparo,
hostilidade e respeito presentes dentro do ambiente laboral.
Nas palavras de uma auditora fiscal do trabalho entrevistada:

Hoje, eles queriam tirar a degradância do código penal, porque é muito


cômodo para o empregador. Onde mais pecam é nas condições de trabalho.
Salário se paga, se assina carteira. E a saúde, a segurança do trabalhador,
sua cidadania, seu psicológico? Só quem estuda mesmo e aprofunda
nisso vai saber o dano total do trabalhador. Na realidade, ele não se
sente gente. Essa foi minha grande motivação.

E a auditora prossegue sua fala sobre a liberdade: “nós não libertamos ninguém, a
liberdade que damos é provisória, porque só é livre quando tem aquele saldo de salários para
gastar. Acabou, volta para o ciclo. Então, o que liberta? Cidadania, essas coisas”.

3.1.3. Saúde, sofrimento e trabalho escravo: lutas em torno da vida

Um relato comum de trabalhadores submetidos à servidão por dívida é de que,


apesar das condições insuportáveis, ainda assim continuam trabalhando porque não podem
voltar para sua terra sem dinheiro. A situação perdura até que suas forças se extinguem e a
falta de perspectiva chega ao extremo de se temer a morte. “Mesmo sem dinheiro, sem nada,
era melhor vir com a vida”, contou um trabalhador sobre o momento em que decidiu ir
embora do trabalho que o escravizava e retornar à sua cidade no interior da Bahia.
242

Em relatório de 2002, o GEFM conclui que o empregador não economiza


“quando se trata de maquinaria e agrotóxico, mas fazendo extrema economia às custas da
saúde dos trabalhadores" (Relatório de Inspeção 2002, cód. AB, p. 11).
Nesse mesmo sentido, muitas falas de trabalhadores resgatados de trabalho
escravo mostram que as ameaças a sua integridade física no ambiente de trabalho e muitas
vezes uma certeza de proximidade da morte nas condições enfrentadas no trabalho são
elementos muito presentes na realidade da escravidão contemporânea. É essa realidade de
violência à saúde dos trabalhadores presente nos relatos da fiscalização e nas narrativas dos
trabalhadores que apresentamos neste item.
É também no corpo vivo e descartável de tantas pessoas exploradas a níveis
inimagináveis que hoje se dá o embate entre trabalho e capital.
Nos relatórios de fiscalização de trabalho escravo, são inúmeros os depoimentos
dando conta de acidentes e adoecimentos ocorridos no ambiente laboral, a exemplo dos
trechos reproduzidos abaixo:

vários trabalhadores foram acidentados em serviço, cerca de 24% do total,


sendo que alguns foram socorridos pelo gato, encaminhados aos hospitais
cujas despesas foram descontadas dos próprios salários, outros, nenhum
atendimento receberam, foram socorridos pelos próprios colegas, recebendo
medicação extraída da própria floresta, e, obrigados a trabalhar, embora
acidentados. Constatamos também que são descontados dos salários dos
trabalhadores os seguintes materiais: 1) lonas plásticas que cobrem os
alojamentos; 2) combustíveis e peças de manutenção e reposição das
motosserras; 3) ferramentas de trabalho; 4) medicamentos, quando
fornecidos (Relatório de Inspeção 1995, cód. J, p. 4).

(...) Que os outros trabalhadores que com o declarante vieram de Alagoas


para lá já retornaram e que não voltou pois estava acidentado. Que afirma
receber muito pouco e que só vive devendo, mas que pretende voltar para
sua terra (Depoimento de trabalhador, Relatório de Inspeção 2000, cód. CW,
p. 27).

Evidentemente que o descaso à saúde dos trabalhadores é parte da lógica do modo


de produção capitalista. Porém, a violação da saúde toma novos contornos quando a força de
trabalho se torna descartável. Este componente novo, que marca a exploração nas relações
produtivas da contemporaneidade, engendra novos dispositivos importantes de controle e
exploração dos trabalhadores: cresce a prática de assédio moral com ameaças de demissão,
cresce a submissão voluntária do trabalhador a situações hostis motivada pelo medo do
243

desemprego, aumenta a cobrança por produtividade e os cortes de tempo morto e de postos de


trabalho, intensificando-se o trabalho e a submissão da vida dos indivíduos como um todo ao
tempo do trabalho. A descartabilidade como ferramenta de gestão também gera maior
competitividade entre os trabalhadores, fragilizando a organização coletiva de resistências à
exploração, além de atentar contra a saúde dos trabalhadores num novo nível, na medida em
que eles se tornam facilmente substituíveis.
Durante a dominação pessoal dos grandes proprietários de terra dos anos 1970-
1990, coexistia a lógica do descaso (verificada em alguns relatos de acidentes graves e
omissão de socorro) com a lógica da dependência reverencial (há relatos de fazendeiros que
providenciavam o atendimento médico aos trabalhadores sentindo-se seus verdadeiros
provedores). Nas décadas que se seguiram, prevalece uma nova lógica de descaso com a
saúde dos trabalhadores, agora descartáveis. O trabalhador Sebastião, que entrevistei durante
visita à Casa do Migrante, em Cuiabá, relata:

Sebastião: Se ficasse velho, eles não queriam nós.


Giselle: Porque a pessoa fica com a saúde comprometida?
Sebastião: É. Aí pega outro e põe no lugar.
Giselle: Você já viu isso acontecer bastante?
Sebastião: Já. Eles falam que o pessoal não aguentou.
Giselle: Põe a culpa no trabalhador?
Sebastião: É.

O mesmo trabalhador esclarece: “Não é o caso de todos, mas tem muito patrão
que não quer saber do funcionário, quer saber do trabalho do funcionário, do serviço que ele
faz. Se no dia de amanhã não fizer aquele serviço, já não me serve”.
Num dos relatórios analisados nesta pesquisa há inclusive o caso de um
trabalhador que sofreu agressão do empregador em razão de ter contraído catapora (Relatório
de Fiscalização 2003, cód. W). Apesar de casos de agressão física serem hoje minoritários, a
tônica permanece a mesma: se o trabalhador não estiver mais sadio, é descartado ou
penalizado. Entretanto, é no próprio ambiente de trabalho que, muitas vezes, os trabalhadores
adoecem.
À exploração que causa acidentes e doenças, sobrepõe-se outra exploração: a
negação do atendimento médico. Nos relatórios de trabalho escravo em Mato Grosso, são
comuns situações como a do seguinte depoimento:

QUE caso sofresse acidente não havia nenhum material de primeiros


socorros disponível; QUE não havia nenhum transporte disponível para o
244

caso de acidentes (Depoimento de trabalhador, Relatório de Inspeção 2009,


cód. C, p. 11).

Quando há isolamento geográfico, a privação do atendimento médico se dá pelo


não fornecimento de transporte. Porém, cada vez mais, verifica-se a prática do assédio moral.
Já não são frequentes as ameaças de morte, mas se tornam cada vez mais usuais as ameaças
de demissão e de descontos na remuneração, que acabam desencorajando até os cuidados com
a saúde.
Andrew Wileman (2018) compara alguns ambientes de trabalho a “campos de
batalha da Primeira Guerra Mundial”, em que se vêm pessoas com diversos ferimentos (em
um dos casos em que atuou pela The Salvation Army, cita inclusive fraturas e outros
machucados graves) que se mantêm laborando para evitar punições como a demissão.
Neste sentido, foram encontrados inúmeros casos de trabalho escravo em Mato
Grosso com relatos similares aos abaixo:

Outra reclamação constante dos trabalhadores diz respeito a não concessão


de licença médica ao empregado doente. Segundo eles, o médico da empresa
só concede licença nos casos gravíssimos, o que leva os empregados a
trabalharem doentes ou faltar ao serviço (Relatório de Inspeção 2000, cód.
CW, p. 3).

Que quando alguém se machuca os empregadores não pagam os dias parados


e os dias de atestado médico; que também os empregadores não pagam os 03
dias de repouso quando vai para a cidade receber o salário (Depoimento de
trabalhador, Relatório de Inspeção 2014, cód. BD, p. 30-31).

Quando os trabalhadores buscam tratamento, com frequência são vítimas de


desconto salarial indevido, represálias, ou seja, de diversos dispositivos coercitivos que os
assediam para que se forcem a trabalhar ainda que sem condições, passando por cima da
própria saúde. Essa ambivalência das relações contemporâneas de exploração apareceu na
conversa com Tiago, um trabalhador que me contava sobre as inúmeras pessoas doentes no
ambiente laboral de um frigorífico:

Giselle: Eles [os empregadores] aceitavam atestado médico?


Tiago: Eles aceitavam o atestado, mas no final do mês já vem descontado

Como aparece na fala dos cortadores de cana entrevistados no documentário


“Migrantes”, nestes ambientes os trabalhadores não podem estar bem em alguns dias e mal
em outros, como todo ser humano: lá “é um humor só” (MIGRANTES, 2007). A carga, ritmo
245

e intensidade de trabalho impostos pelos empregadores obrigam os trabalhadores a passarem


por cima de seu próprio metabolismo físico e psíquico.
Nos casos aqui analisados, nota-se que os trabalhadores escravizados não têm
direito à saúde e, além de tudo, tampouco têm direito à doença. Seus limites físicos e mentais
não são respeitados no trabalho que lhes é exigido, o que acarreta diversos danos à sua saúde,
como acidentes, doenças e um sofrimento desmedido. E quando advêm as doenças ou
sequelas que trazem limitações para a execução das tarefas laborais, é muito comum os
patrões não oferecerem socorro médico, ou sequer permitirem que eles se ausentem do
trabalho para serem tratados.
A exploração desses trabalhadores desafia os limites de sua saúde e não se detém
ante a possibilidade de adoecimento e morte. Usa-se a força de trabalho do indivíduo até sua
exaustão, quando será substituído por outro trabalhador. Até lá, dele será extraída toda a sua
saúde, até mesmo sua míngua de saúde em tempos de doença.
A demissão de quem não aceita as condições extremas de trabalho transforma-se
numa ferramenta de gestão que visa conter as reivindicações e manter os custos reduzidos
oferecendo condições de trabalho muito abaixo do mínimo exigido:

Qualquer um que fala ou vai diretamente ao gerente é mandado embora.


Onze trabalhadores do alojamento da sede fizeram uma espécie de comissão
e foram pedir à gerência que intercedesse junto ao ‘gato’ para melhorar a
comida. Esses onze roçadores foram mandados embora. Por essa razão,
muitos têm medo de falar o que passam, porque precisam. Por isso a gente se
humilha e não se entrega (Depoimento de trabalhador, Relatório de Inspeção
2002, cód. EC, p. 7).

A pesquisa empírica também mostrou diversas faces do sofrimento desses


trabalhadores.

Giselle: Tem mais alguma coisa que você queira falar?


Sebastião: Tá bom aqui. Tô feliz. Na fazenda não tinha tempo, não sabia
nem o que era televisão mais.
Giselle: Nem família, nem televisão, nem sono, nem comida [situações
relatadas anteriormente pelo entrevistado]. Porque comer andando não é
comer. Acha que mudou muito?
Sebastião: Mudei o comportamento. Estava ficando depressivo, nervoso, em
casa alterado, com sono demais. Só dormia quando chegava em casa,
passava o dia dormindo.
Giselle: E agora?
Sebastião: Agora é bem melhor.
Giselle: Essa experiência te faz hoje uma pessoa diferente?
246

Sebastião: Diferente. Não ando mais com sono, agressivo.


Giselle: Não consigo imaginar você nervoso.
Sebastião: Trabalhava na carreira. Todo tempo era correndo, não tinha como
trabalhar caminhando. Ia se acostumando àquele ritmo o corpo né.
Giselle: Não ficou doente, fraco, nada?
Sebastião: Não. Comprava remédio fortificante, Apevitin, vitamina.
Giselle: Todo mundo tomava?
Sebastião: Não, só eu.
Giselle: O que faziam para aguentar?
Sebastião: Tinha que ficar lavando o rosto direto pra não dormir.
Giselle: Que mais?
Sebastião: Uns tinham vontade de ir ao barraco, mas não podiam. 7 ou 8
horas da noite dava um sono...

Como se verifica no diálogo acima, o sofrimento e os danos à saúde psíquica


também têm presença marcante nas situações de escravidão contemporânea. O depoimento de
um dos trabalhadores encontrados pela fiscalização em 2001 é eloquente:

Eu já fui enrolado não uma vez não, eu sou vítima de fazenda. Estou
cansado. A gente que não tem no bolso, a gente só vive angustiado, a gente
não tem nem prazer de conversar com as pessoas. Só vive com aquela coisa
ruim na cabeça, de tanto preocupado, de tanto que a gente trabalha, de tanto
que a gente sofre e não tem nada. [...] Então por isso que vim procurar
autoridade, porque já estou cansado. Quero voltar pra minha casa. Não quero
nem saber dessas fazendas. Não vou mais trabalhar em fazendas, só trabalho
perto da minha casa, ganhando mais pouco mas tenho conforto, não vivo
perturbado igual eu vivo, desse jeito, parecendo um mendigo, minha família
lá e eu igual a um mendigo, trabalhando todo dia (Relatório de Inspeção,
2001, cód. ED, p. 8).

No depoimento de outro trabalhador, durante ação fiscal ocorrida em 2009,


também aparece a questão do sofrimento e da falta de alternativas:

que veio para o Mato Grosso porque no Maranhão não tem serviço; que os
trabalhadores sempre acharam que estavam sofrendo na Fazenda (...), mas
não queriam voltar ao Maranhão porque lá não tem trabalho (Relatório de
Inspeção 2009, cód. EL, p. 75).

Num caso de trabalho escravo constatado pelo GEFM em usina sucroalcooleira


em Mato Grosso, evidenciou-se o sofrimento de inteiras famílias em razão da situação de
penúria dos trabalhadores que estavam sem receber salários por mais de 3 meses (alguns até
há 6 meses), sofrendo despejos das moradias alugadas, endividados com os mercados locais e
podendo contar apenas com empréstimos de dinheiro de conhecidos para sobreviver. Nos
247

termos do relatório, “um dos mais produtivos cortadores, cuja filha de dezesseis anos parou há
quatro meses de falar. Há suspeitas de que a situação de penúria, produto da falta de
pagamento, tenha afetado a adolescente psicologicamente” (Relatório de Inspeção 2009, cód.
GB, p. 60).
Uma das queixas mais frequentes é a falta de condições mínimas que possibilitem
o repouso entre uma jornada e outra. É o que se lê em passagens como as abaixo:

que dentro do barraco de dia era muito quente e de noite muito frio; que
quando ventava muito os trabalhadores não conseguiam dormir por causa do
barulho da lona batendo no barraco; que quando chovia a água corria por
dentro dos barracos (Relatório de Inspeção 2009, cód. EL, p. 27).

QUE o lugar onde mora foi disponibilizado pelo Sr. Marco [gerente dos
seringueiros]; QUE não consegue dormir em razão do ataque de morcegos;
QUE as paredes são abertas (Relatório de Inspeção 2009, cód. BW, p. 13).

Sujeitos às intempéries, os trabalhadores ficavam sem dormir quando chovia,


porque não havia nenhum lugar que não sofresse a ação da chuva. Num dos
barracos, os maranhenses, que mais sofriam a ação das chuvas, usavam os
garrafões que lhes eram vendidos pelo 'gato' como assento, vez que para
descansarem os corpos após o trabalho, só contavam com o chão de terra e
suas redes (Relatório de Inspeção 2001, cód. I, p. 4).

era impossível dormir com o barulho do gerador ligado a partir das 3 horas
da manhã (Relatório de Inspeção 2003, cód. CL, p. 18).

Ressalte-se que as jornadas e energia despendida pelos trabalhadores só podem


ser realmente compreendidas pensando-se também nos repousos, conforme explica o trecho
do relatório abaixo:
Essa casa de máquinas [ao lado do alojamento] abrigava um enorme gerador
de força, que era ligado à noite, fazendo um barulho e uma fumaça infernais,
intoleráveis para o ser humano, principalmente no momento em que esse ser
humano precisava de paz, quietude e ar de qualidade para descansar o corpo
e a mente do penoso trabalho realizado com a enxada sob o sol a pino, sem
proteção, com jornada superextrapolada, comendo rapidamente e de pé em
meio à plantação, sob o bombardeamento de pesticidas (Relatório de
Inspeção 2002, cód. T, p. 13).

Já em outra ação fiscal, as noites mal dormidas revelam seu duplo aspecto:
ambiental e psicológico.

De forma unânime falaram da existência de onças e sucuris na área, fato que


os fragilizavam emocionalmente, tendo alguns informado que ao ouvirem o
barulho de tais animais ficavam sem dormir. Que também na ocorrência de
248

chuvas ficavam molhados e acordados até estiar, embora tivessem que


levantar muito cedo para a labuta diária (Relatório de Inspeção, 2004, cód.
CI, p. 6).

O que se verifica no trabalho escravo da atualidade é, portanto, o poder extremo


do patrão sobre a vida do trabalhador. O poder de matá-lo, mas também o poder de deixá-lo
morrer137, o poder de exaurir suas forças, seu tempo, sua humanidade, de explorá-lo, mas
também de descartá-lo quando o serviço acabe ou a sua saúde mesmo é que chegue ao fim:

As pessoas enriquecem com o uso de escravos. E quando elas encerram com


seus escravos, elas simplesmente os descartam. Eis a nova escravidão,
centrada em grandes lucros e vidas baratas. Não se trata do exercício da
propriedade sobre as pessoas no sentido tradicional da escravidão antiga,
mas de controlá-las completamente. As pessoas tornam-se instrumentos
completamente descartáveis utilizados na geração de dinheiro" (BALES,
2012, p. 7, tradução nossa).

Verificam-se, portanto, as condições degradantes do escravo contemporâneo, que


é descartável e facilmente substituível, quando comparado ao escravo tradicional, cuja morte
ou doença significava perda de capital para o senhor (VASCONCELOS, 2011, p. 182):

Em Roma, qualquer dano ao escravo significava igualmente um dano ao


senhor. A morte do escravo, tal como a morte de um boi, de um cavalo,
significava prejuízo de capital para o senhor. Assim, não interessava ao
proprietário submeter seu escravo a condições de vida e trabalho que
danificassem tal patrimônio ou o pusessem a perder: nesse caso, seria melhor
usar mão de obra não escrava. [...] Do mesmo modo, havia a preocupação
com manter os escravos bem alimentados, saudáveis e em condições básicas
de higiene e conforto (alojamentos apropriados, roupas, remédios), além de
respeitar-lhes os dias de descanso, a fim de mantê-los produtivos por mais
tempo (VASCONCELOS, 2011, p. 182-183).

Nas palavras de Alexandre, funcionário da Organização Internacional do


Trabalho: “a escravidão em si é uma chaga, mas tinha muita gente que tratava escravo como
propriedade valiosa. Tinha valor e era caro. Hoje em dia não. Como não é mercadoria mais,
não tem valor nenhum. Então, ele vivo ou morto não faz tanta diferença”.
O descaso à integridade física desponta, portanto, como uma especificidade brutal
da escravidão possibilitada pela formação do mercado capitalista de “sujeitos livres” e
expropriados cuja vida “vale menos que a vida do escravo antigo” (VASCONCELOS, 2011,
p. 183).

137
Ver Foucault (2005) e Agamben (2007).
249

3.1.4. Interpelação e exploração: os limites negociados do corpo

A passagem da ênfase disciplinar para a biopolítica, a partir do século XVIII, é


marcada no campo do Direito do Trabalho pela emergência das disciplinas de Segurança e
Saúde do Trabalho e sua inserção destacada nos ordenamentos jurídicos e nas diretrizes
governamentais, que passam a produzir estatísticas sobre trabalhadores empregados,
desempregados, mas também sobre os doentes, acidentados e mortos no trabalho.
A partir de então, “tanto na prevenção quanto na indenização, surge um novo
poder, um novo lugar de resolução de conflito e, por sua vez, um lugar de possível conflito é
construído: seu símbolo é o padrão” (DWYER, 2006, p. 60). A conformidade com um padrão
tecnicamente definido passa a ser a medida da eficiência inclusive no que diz respeito a
redução de índices de acidentes:

Na área da indenização, a vida humana, os braços e as pernas são reduzidos


a quantias calculadas que têm como referência as tabelas legalmente
padronizadas ou determinadas pelo segurador. Cálculos atuariais induzem
muitos empregadores a considerar os acidentes e sua indenização como parte
normal dos negócios (DWYER, 2006, p. 60).

Nesse contexto, o direito enquanto ficção de equivalência entre prestação (força


de trabalho) e contraprestação (salário) desiguais, e, simultaneamente, enquanto ficção basilar
do consentimento que funda todo e qualquer contrato (através da figura do sujeito de direito, o
indivíduo despossuído e em estado de necessidade permanente é responsabilizado enquanto
sujeito livre), é esgarçado para abarcar uma nova disputa em torno da vida.
Diferentemente da tese de Gorz, de que uma suposta crise da medição do valor
(gerada pela crise da medição do tempo de trabalho) estaria colocando em crise as noções de
“sobretrabalho”, “sobrevalor” e o sistema de equivalências regulador das trocas comerciais
(GORZ, 2005), acreditamos que estaria ocorrendo justamente o oposto: a exacerbação e
remodelagem desses elementos.
Se a equivalência das relações de produção capitalistas se descolou da unidade de
tempo, não foi porque o trabalho perdeu importância como força produtiva, e sim porque o
capital encontrou novas formas de extrair mais-valia e de validá-la com falsos equivalentes. A
intensificação do trabalho e a remuneração por produção/por peça nada mais fazem do que
atrelar a medição do valor, agora sem rodeios, à própria quantidade de força vital, de energia
pura e simples (de vida) que é explorada no trabalhador.
250

E não só isso: essas novas tecnologias de exploração da força de trabalho criam o


trabalhador vulnerável que é o mercador de sua própria energia vital, que negocia sua saúde e
empenha sua vida. A passagem do fordismo para o toyotismo e do welfare state para o
neoliberalismo não sustam o sistema de equivalências da esfera da circulação. No que diz
respeito à mercadoria mais emblemática do modo de produção, que é a força de trabalho, o
capitalismo flexível apresenta uma sobreposição de equivalências novas, cada vez mais
voláteis e personalizadas.
Portanto, não se trata de declínio e sim de hipertrofia do sistema de equivalências,
que ganha tanta força exatamente porque vai sendo afastada a mediação das normas jurídicas
de ordem pública. Na medida em que o direito do trabalho vai sendo desconstruído e a
regulação das relações produtivas vai se aproximando do direito civil (conforme preconizado
pela reforma trabalhista), sobram justamente as equivalências já despidas de balizas
normativas que tinham o condão de estabelecer algum limite à exploração. Um exemplo é o
trabalhador informal que trabalha “na diária” e sem inclusão no sistema de seguridade: a
remuneração corresponde a seu dia de trabalho e, quando ele fica doente (mesmo que se trate
de doenças ocupacionais), por equivalência, também não recebe nada. Porém, como mercador
de sua própria saúde, ele pode optar por trabalhar mesmo estando doente em troca da
remuneração correspondente ao que conseguir produzir em tais condições.
Onde não há mais limitações de ordem pública (ou onde se burlam as balizas
normativas ainda vigentes), o limite à exploração é o limite do próprio corpo. Consome-se
uma vida que já não parece valer nada, mas sem que sejam comprovados nexo causal e
autoria dessa violência. Em suma, não é mais necessária a autoria do “matar”: anonimamente,
deixa-se morrer.

3.2. Desigualdade e distância social

Ao lado do status de sujeito de direito que se universaliza e do disciplinamento


para o trabalho que se expande, a biopolítica faz viver e deixa morrer diferentes populações
através de uma gestão diferencial dos riscos à saúde e à própria vida a que cada um é exposto.
Os achados empíricos desta pesquisa desnudam alguns dos mecanismos pelos
quais as novas tecnologias de dominação e exploração operam na contemporaneidade. Trata-
se de servidões e discriminações produzidas sob o manto, respectivamente, da liberdade e
igualdade jurídicas.
251

3.2.1. Racismo e naturalização da indignidade

Se, no campo da tutela jurídica, é possível identificar a dignidade humana como


fundamento principal da luta contra a escravidão, resta a pergunta: como se produz a
indignidade humana?
Sobre os novos sentidos da escravidão, Neide Esterci afirma que “Determinadas
relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou a denunciar a
desigualdade no limite da desumanização; espécie de metáfora do inaceitável, expressão de
um sentimento de indignação (...)” (2008 p. 31). A desumanização como elemento
fundamental da escravidão contemporânea faz-se presente na narrativa de trabalhadores,
auditores, ativistas, estudiosos, no discurso jurídico e na produção acadêmica sobre o tema.
Nos relatórios de fiscalização aqui analisados, conforme apresentado no início deste capítulo,
encontramos diversas expressões usadas para caracterizar o trabalho escravo que aludiam à
escravização como violação da própria “condição de seres humanos” das vítimas. Citamos
algumas: “tratamento subumano”, “total desrespeito à condição de ser humano e cidadão”,
“situação animalesca”, “situações degradantes e indignas de seres humanos”, “de forma
desumana”, “condições incompatíveis para seres humanos”, “não adequado para um ser
humano”, “inadmissível para um ser humano”, “condições infra-humanas”, “supressão da
condição de ser humano”, “redução da dignidade, sem cuidado que atentasse para sua
condição de ser humano”, “tratamento desumano”, “não dispunham de água em condições de
consumo humano”.
O tema da desumanização e do tratamento indigno aparece muitas vezes ligado à
equiparação entre as pessoas escravizadas e animais irracionais, como se lê no seguinte
relatório do GEFM:

a empresa (...) sonega milhares à Previdência Social e ao FGTS, além de


agredir ao meio ambiente e violar direitos humanos, discriminando
trabalhadores pobres e sem instrução, como se fossem assemelhados a
animais irracionais (Relatório de Inspeção, 2001, cód. ED, p. 22).

Este item é dedicado a resgatar a ligação fundamental entre a desumanização da


escravidão, o racismo e a descartabilidade da vida (discutida no item 3.1 deste capítulo), que
será o pano de fundo da discussão que faremos em seguida sobre as discriminações
identificadas nos casos de trabalho escravo analisados em nossa pesquisa documental e
empírica.
252

Conforme explica Pietro Basso, “a interpretação racial das relações entre homens
e entre povos é coisa moderna. Da Europa moderna e burguesa. Mas os elementos dos quais
se compõe são em certa medida herdados do mundo antigo e da Idade Média” (2000, p. 23).
Assim, o racismo tal qual o conhecemos origina-se na modernidade da Europa com seu
projeto colonizador. O que eram até então discriminações esparsas com base em atributos
físicos, erige-se pela primeira vez como lógica de todo um sistema social. É o racismo como
ideologia totalizante que fornece a justificativa a sustentar por séculos o colonialismo, o
tráfico de escravos, o trabalho forçado e, mais adiante, também o “trabalho livre e
constrangido” do proletariado (BASSO, 2000, p. 66).
Trata-se de uma relação de dominação e de legitimação dessa mesma dominação:

(...) o racismo é tanto um produto e um elemento que produz desigualdades


sociais, [o que] implica conceber o racismo como uma relação social: uma
relação social de opressão abarcando um substrato ideológico com o objetivo
de legitimar relações desiguais e justificar a sujeição de um grupo social a
outro. Isso significa conceber o racismo como a síntese entre uma relação
material de inferiorização e a ideologia que a naturaliza (Basso 2000; Fanon
1971; Gliozzi 1995; Gregoire 2002; Guillamin 1995; Mosse 1978; Stannard
1992) (PEROCCO, 2014, p. 292).

A ideologia do racismo, tomada enquanto unidade (que inclui em si diversas


variantes de racismos), é definida por Pietro Basso como ideologia da exploração e da
opressão das raças consideradas “escravas por natureza”: as populações não-brancas, o
proletariado e as mulheres (2000, p. 14).
A bestialização das populações a serem dominadas (“raças escravas”, na
terminologia utilizada por Pietro Basso) está na base da ordem social moderna e produção de
suas desigualdades: os ameríndios exterminados/escravizados, os africanos traficados e
escravizados, as mulheres subjugadas e violentadas e os proletários explorados e
exterminados na indústria nascente são reputados como populações sub-humanas, o que
justificaria seu tratamento escravizante pela “raça senhora”, isto é, o homem branco
proprietário (BASSO, 2000; PEROCCO, 2018).
Portanto, Basso mostra que a divisão capitalista do trabalho estabelece uma
profunda desigualdade entre duas “raças sociais”: “a classe livre dos verdadeiros seres
humanos, os proprietários capitalistas, e a classe subumana, não-livre dos proletários” (2000,
p. 67). Segundo ele, a bestialização dessa “raça social operária” vai sendo legitimada através
de doutrinas como a de Locke, que diferenciava os “homens autênticos” dos trabalhadores
manuais, considerados por ele como seres capazes apenas de vida vegetativa; ou a de Sieyes,
253

que definia os escravos negros como máquinas animais com aparência humana e os
trabalhadores rurais e urbanos de seu país como “animais bípedes”, “máquinas de trabalho”
(2000, p. 66).

No curso do século XIX esta inferiorização dos trabalhadores assalariados


passa posteriormente a ser acrescida de tintas biológico-genéticas, com o
acento que recai sobre a natural inferioridade intelectual dos pertencentes à
classe operária138 (BASSO, 2000, p. 67).

O século XIX, que foi o século da abolição dos regimes escravistas nas colônias
da América, foi também o século em que se consolidou a construção do discurso racista (em
curso desde o século XVIII) que legitimou escravidões e genocídios durante e depois do
colonialismo até os dias de hoje. Foi o período em que, ao lado do racismo institucional,
desenvolveu-se de forma mais completa o racismo doutrinário (a exemplo da antropologia de
Lombroso) e reforçou-se mais ostensivamente o racismo popular (os zoológicos humanos139
proliferam-se na Europa como fenômeno de massa) (PEROCCO, 2018).
Simultaneamente à construção dos ideários iluministas que, calcados num forte
antropocentrismo, concebem a dignidade humana ao estabelecer a superioridade da
humanidade em relação ao restante dos seres vivos, constroem-se discursos cada vez mais
cientificizados que classificam as populações em superiores e inferiores, em humanas e não
humanas (ou menos humanas), detentoras ou não de espírito, de alma, de civilidade
(civilizadas ou primitivas) e estabelecem entre elas hierarquias, justificando, assim, o domínio
e escravização de uns sobre outros140.
Neste sentido é que o racismo como sistema de crença que anima os mecanismos
de dominação operantes com o nascimento da biopolítica é apresentado por Michel Foucault.
Na última aula do curso Em defesa da sociedade, ele levanta a seguinte questão a respeito do
biopoder: “Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar
morrer?” (2005, p. 304). A resposta encontrada pelo autor é que há um novo funcionamento
do racismo, o qual teria sido inserido nos mecanismos de Estado justamente pela emergência

138
“Nel corso dell’Ottocento questa inferiorizzazioine dei lavoratori salariati si acresce ulteriormente di tinte
biológico-genetiche, con l’accento che cade per solito sulla naturale inferiorità intelletctuale degli appartenenti
alla classe operaia”.
139
Os zoológicos humanos proliferaram-se a partir da década de 1870 até aproximadamente 1930, quando
passam a ser substituídos por outros meios de pedagogia e comunicação de massa, a exemplo dos filmes western
de caça aos índios (Perocco, 2018).
140
A coexistência de sentimentos humanitários e racistas na história da escravidão foi apontada por Bush: “the
sugar industry liberated itself from bonded labour, allowing imperial and colonial governments, under pressure
from humanitarian and racist sentiments, the opportunity to abolish indentured service without causing too much
economic harm” (BUSH, 2000, p. 208).
254

do biopoder. Na extensa, mas emblemática passagem abaixo, o papel do racismo na sociedade


atual é destrinchado:

Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal,


nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte
entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da
espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia
das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário,
como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do
biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior
da população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer
uma cesura que será do tipo biológico no interior de um domínio
considerado como sendo precisamente um domínio biológico. Isso vai
permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais
exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em
subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do
racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que
se dirige o biopoder.
De outro lado, o racismo terá sua segunda função: [...] o racismo faz
justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro – “se você
quer viver, é preciso que o outro morra” – de uma maneira que é
inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do
biopoder. De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a
minha vida e a morte do outro, uma relação que não é uma relação militar e
guerreira de enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico: “quanto
mais as espécies inferiores tenderam a desaparecer, quanto mais os
indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie –
viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”
(FOUCAULT, 2005, p. 305).

Na acepção dada por Foucault, o racismo ganha contornos amplos, dando conta da
discriminação contra diversos grupos populacionais baseada em diferentes categorizações,
como gênero, classe, território, idade e raça propriamente dita – como presente nos estudos de
Pietro Basso e Fabio Perocco –, mas também de todas as populações que ele abrange nos
estudos sobre “os anormais”. Jessé Souza, por sua vez, ao utilizar o termo racismo “não
apenas no seu sentido mais restrito de preconceito fenotípico ou racial”, explica que o racismo
abrange

outras formas de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o


mesmo procedimento e a mesma função de legitimação de uma distinção
ontológica entre seres humanos sejam aplicados. Afinal, essas hierarquias
existem para servir de equivalente funcional do racismo fenotípico,
realizando o mesmo trabalho de legitimar pré-reflexivamente a suposta
superioridade inata de uns e a suposta inferioridade inata de outros (SOUZA,
2017, p. 18).
255

Segundo Jessé Souza, o pressuposto do racismo, que é reproduzido


irrefletidamente pela sociedade, é “a separação da raça humana entre aqueles que possuem
espírito e aqueles que não o possuem, sendo, portanto, animalizados e percebidos como
corpo” (2017, p. 20). O principal aspecto de todo racismo, segundo o autor, seria
precisamente operar “a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres
humanos de segunda classe” (2017, p. 18).
O racismo colocado em prática (discriminação) pelos neoescravagistas no Brasil
tem essas raízes fundas. Por isso quando se encontra um trabalhador bebendo água no mesmo
recipiente que as vacas, não se trata apenas de violação de normas de saúde no ambiente de
trabalho. Por isso nas pesquisas de Florestan Fernandes e até hoje, como em nossa pesquisa, o
pleito da população brasileira marginalizada continua sendo o mesmo: ser gente, ser tratado
como gente e não como um ser de segunda categoria.
Robert Slenes aponta que entre 1830 e 1840 houve a entrada no Brasil das ideias
europeias da época, incluindo doutrinas racistas. Em seguida, o autor cita que em 1848 o
cônsul britânico no Rio de Janeiro, num documento dirigido ao governo brasileiro para se
opor ao fim do tráfico, referiu-se ao escravo africano da seguinte forma: “um pequeno bárbaro
falando uma espécie de dialeto de macaco” (SLENES, 1992, p. 66).
No que diz respeito ao objeto desta pesquisa, especificamente o trabalho escravo
contemporâneo em Mato Grosso, a materialidade do racismo na conformação das relações
sociais e da organização do mercado de trabalho já aparece na Carta Pastoral de Pedro
Casaldáliga, de 1971, quando ele cita o seguinte trecho de estudo realizado por Reis na região
do Araguaia:

Há uma série de degraus na consideração racista das pessoas: sulista-


sertanejo (nordestino); branco-preto; “cristão”-índio. O sulista fala em ‘essa
gente’, ‘esse povo’, ‘aqui nunca viram, não sabem nem...’, ‘são índios
mesmo’, etc.... O índio não é considerado gente pelo sertanejo. Ninguém
confia em índio. Expressões sintomáticas: ‘O governo nos trata como
carajá’. Quando um índio atua, reage, se comporta ‘normalmante’, o
comentário é: ‘...que nem gente’, ‘feito gente’... ‘Fulano tem cabelo bom,
sicrano tem cabelo ruim’: ...o branco é considerado superior e tem cabelo
liso, logo o cabelo liso é bom, superior; e o cabelo pixaim é ruim, inferior,
por ser negro, considerado raça inferior...’ (REIS, 1970, apud
CASALDÁLIGA, 1971, p. 5).
256

O estudo acima mostra que o sertanejo era considerado um ser humano inferior
pelas classes dominantes e até pela própria igreja, que não o acolhia: “A Igreja parece ter
adotado a atitude da classe dominante, que considera o sertanejo um sub-homem, sem
direitos. Por analogia, um cristão de segunda classe” (REIS, 1970, apud CASALDÁLIGA,
1971, p. 6).
O racismo do trabalho escravo contemporâneo se dá através da submissão de
certos trabalhadores (não todos) a condições degradantes e, por fim, através da naturalização
dessa mesma degradação. Um juiz entrevistado aponta que a “naturalização do trabalho
escravo” é uma das principais teses jurisprudenciais utilizadas em conflitos que têm
desterritorializado populações tradicionais com o avanço do agronegócio sobre a Amazônia,
expondo estes novos trabalhadores a uma exacerbada exploração e ao risco de não
sobreviverem nas entressafras. Segundo ele, um grande percentual dos magistrados adota a
tese da “naturalização” (que, ao lado da tese da “ausência de provas”, seria a principal linha
argumentativa empregada no Judiciário para descaracterizar situações de escravidão
contemporânea na região). Em suas palavras:

O argumento da naturalização, e esse é o mais forte na nossa região, é


porque nós estamos numa área de uma fronteira de expansão econômica,
onde as coisas foram produzidas e conduzidas pelo braço do trabalhador, na
marra, sem as mínimas condições. Braço e vidas, né. Então, “trabalhar nos
rincões aí da Amazônia sem acesso a água potável é algo natural, toma água
junto com os bichos, né. Condições sanitárias... na casa dele é pior”. Então
isso é que é naturalizar. Porque (...) há a alegação de que aquilo é natural
para o trabalhador, não há ofensa nenhuma à sua dignidade. Esse é um
processo forte aqui.

Em seguida, o mesmo entrevistado expõe com detalhes o que seria o equívoco da


tese da “naturalização”:

Só que a jurisprudência nesse sentido se equivoca porque nosso projeto de


nação é um projeto programático. Ele tem degraus que devem ser galgados,
(...) senão nós nunca vamos ser uma nação melhor, (...), se a gente não
vencer essa luta emancipatória dos trabalhadores. Assim como acontece com
a luta emancipatória das mulheres, que é a mais antiga do mundo.
Recentemente o Estado teve que entrar dentro do ambiente doméstico para
impedir a violência contra a mulher. E não adianta dizer que ‘ah, eu perdoo’,
né. É pra proteger a mulher dela mesma. Assim como o trabalhador tem que
ser protegido dele mesmo. Porque, você conhece muito bem essa realidade,
tem trabalhador que não se reconhece como escravo: ‘Não. Aqui eu tenho o
que comer pelo menos, em casa eu não tenho’. Como se isso fosse condição
de legitimidade para você explorar o trabalhado de outrem. Então essa
posição é equivocada justamente por isso, porque você não só estaciona
257

como você quer regredir. Tanto do ponto de vista jurisprudencial nosso,


quanto do ponto de vista legislativo que você tem acompanhado: se quer
regredir. Isso é filosófico, ontológico, porque nós, o nosso estágio
civilizatório. [...]esse fio condutor que nos trouxe até aqui permitindo a
existência de 7 bilhões de seres é uma ética do dever para o outro, do
respeitar o outro, do dever para com o outro. Antes essa ética não existia. A
gente raciocina como se isso fosse algo que existiu sempre. Não! A ética
anterior é uma ética voltada para o transcendente, alcançar o seu lugar numa
unidade cósmica, harmônica, pouco importando o que o outro é, tanto que
existiam outros que, por não terem dons (essa é a ética estoica) não eram
considerados sequer humanos. Os escravos, os servos... Então essa ética que
se inaugura é uma ética do trabalho por exemplo... hoje todos nós
trabalhamos com a maior naturalidade. Mas o trabalho era algo abominável
na idade média. Era algo destinado aos seres que não eram reconhecidos
como humanos. Aí nasce a ética do dever, a ética do humanismo, o conceito
de humanidade, o conceito de dignidade, apoiado inclusive no produto
científico que é a antropologia de Rousseau. [...] ele teoriza que o único ser
capaz de mudar a realidade e produzir soluções é o próprio ser humano,
inclusive o escravo [...], então ele não podia ser considerado como um ser
não humano, uma mercadoria, uma coisa. Essa ética que nós construímos até
aqui. E quando você começa a regredir, você começa a retroceder para
aquele tempo, de igualar o homem ao animal, o homem a uma coisa (...) A
minha compreensão sobre o que é trabalho escravo ou não, ela se clareou
melhor a partir desse histórico, dessa arqueologia cultural sobre a nossa
ética. [...] Toda vez que você começa a reduzir o homem, aproximar ele da
condição de animal, da condição de coisa, você está inserindo aí a
escravidão, que era como se consubstanciava a ausência de dignidade, a
ausência de liberdade.

O “ser gente” hoje também passa pelo consumo. Muitas vítimas de trabalho
escravo tornam-se vulneráveis não só por correrem risco de vida em termos materiais mais
básicos que comprometem sua sobrevida, mas porque o que está em risco é sua vida social,
seu pertencimento, “ser alguém” aceito e valorizado pela comunidade. A miséria material
aliada à exclusão social em termos mais amplos (reconhecimento) produzem as vítimas
perfeitas para as engrenagens de exploração contemporâneas, em que são apresentadas ofertas
de trabalho que poderiam, em tese, prover a remuneração num valor e tempo compatíveis a
uma promessa de inclusão (via consumo) que nunca lhe fora feita.
Numa sociedade extremamente desigual em que a inclusão do excluído é uma
possibilidade remota, o sonho de obtenção de reconhecimento social através do consumo de
certos bens valorizados e cobiçados ganha força. E até a propensão a se acreditar num
aliciador que promete uma aventura de “ganho fácil”, para quem todo o ganho não fora só
difícil, mas sim impossível.
O racismo atual, que tem facetas culturais sem abandonar o reino do biológico
(BASSO, 2000, PEROCCO, 2018) é o dispositivo que opera (e legitima no plano das
práticas) a desigualdade extremada do trabalho escravo contemporâneo. Os estudos apontam
258

o crescimento recente do racismo na Europa, no contexto das novas imigrações e da


reestruturação produtiva que se seguiu à crise economia da década de 1970.

Pode-se concordar com Wallerstein, que considera o racismo a fórmula


mágica que permite que o capitalismo minimize os custos de produção, a
partir do custo do trabalho, minimizando, ao mesmo tempo, “os custos da
desordem política” (...) através das divisões raciais e da estratificação da
força de trabalho (BASSO, 2000, p. 14).

Como veremos adiante, o trabalho escravo contemporâneo no Brasil é produzido


por inúmeras discriminações, fundamentando-se em racismos de diversos matizes. Portanto,
se acreditamos que a vida descartável de determinados segmentos da população está no centro
da escravidão contemporânea, torna-se fundamental entender como a desigualdade corta o
tecido social, dividindo as populações em superiores (humanas) e inferiores (subumanas). É
essa divisão que fundamenta a degradação e a exaustão de vidas consideradas menos
humanas, menos dignas.

3.2.2. Discriminação nas relações de trabalho

3.2.2.1. Migração e discriminação

A relação entre migração e trabalho escravo na história de Mato Grosso está


registrada já na Carta de Dom Pedro Casaldáliga, que mostra que na década de 1970, no
Araguaia, a maior parte da população era formada pelos “sertanejos”, que ele assim descreve:

[...] camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do


Ceará, do Piauí..., passando por Goiás. Desbravadores da região,
“posseiros”. Povo simples e duro, retirando como por destino numa forçada
e desorientada migração anterior, com a rede de dormir nas costas, os muitos
filhos, algum cavalo magro, e os quatro ‘trens’ de cozinha carregados numa
sacola (CASALDÁLIGA, 1971, p. 4)141.

No mesmo emblemático texto, o bispo cita o testemunho de Adauta Luz Batista,


uma “filha da região e protagonista da história local”, contido em estudo de Helio de Souza
Reis, a respeito da condição dos sertanejos:

141
O testemunho de Adauta assim descreve os sertanejos: “Acostumados com a aspereza da vida agreste,
desprezados pela esfera dos altos poderes, ludibriados na sua boa fé de gente simples, eles veem os seus dias, à
semelhança das nuvens negras, sempre anunciando um mau tempo” (CASALDÁLIGA, 1971, p. 4).
259

Indiferentes a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só
existem dois direitos: o de nascer e o de morrer. [...] Desfaz as suas
profundas mágoas entre um e outro copo de cachaça, ou num cigarro de
palha, cujas baforadas se encarregam de levar bem longe a infelicidade que
ele tem bem perto (REIS, 1970, apud CASALDÁLIGA, 1971, p. 4).

No início do Livro II ("El trabajo asalariado embridado o la economía de la


excepción: la desviación del trabajo dependiente) da obra De la esclavitud al trabajo
asalariado, de Moulier-Boutang, o autor empreende a sistematização das diferenças de
regime entre o "trabalho assalariado normal e normativo" e o trabalho dos migrantes
internacionais, sintetizadas pelo próprio autor no quadro abaixo (MOULIER-BOUTANG,
2006, p. 140-1):
260

ESPECIFICIDADE DO MERCADO DE TRABALHO ESTRANGEIRO

mercado de trabalho standard mercado de trabalho da imigração

* contratação individual * contratação anônima


* homogeneidade do espaço de referência * externalização e duplicação inicial e
amplamente mantida dos parâmetros de
referência

* liberdade de acesso * acesso limitado e regulado


* inexistência de preço de acesso * custo de acesso específico, distinto do custo de
migração interna
* inexistência de preço de saída * irregularidade da permanência

* contrato indefinido * estabelecimento de um limite mínimo que


impede o empregado de abandonar seu posto de
trabalho
* limitação do horizonte do contrato mediante
limitação do visto de residência (birds of
passage ou "golondrinas")

* trabalho contínuo e socialização do salário * discontinuidade, não acumulação dos


benefícios do salário indireto (em parte ou em
sua totalidade)

* liberdade civil e política * liberdade civil e política restringidas

* liberdade econômica de vender-se a quem ofereça mais * liberdade restringida

* igualdade formal a quem oferece seu trabalho com a mesma * discriminação (civil, social, política)
curva de oferta

* desigualdade formal em relação a quem


oferece seu trabalho com a mesma curva de
oferta individual, devido às diferenças de
duração dos vistos de residência e trabalho

* discriminação econômica de fato na divisão do


trabalho (setores menos qualificados, trabalhos
penosos)

Tabela 13 – Migração standard x migração internacional


Fonte: Moulier Boutang (2006)

Examinando a questão dos imigrantes internacionais, Moulier-Boutang aponta a


discriminação civil, social e política que caracterizam o mercado de trabalho da imigração
internacional, que contrasta com a “igualdade formal de quem oferece seu trabalho com a
mesma curva de oferta” no mercado de trabalho standard. Esse tipo de discriminação é
evidente nos casos de estrangeiros escravizados, a exemplo da escravização de populações
bolivianas em oficinas de costura em São Paulo.
O autor aponta, ainda, a discriminação econômica de fato na divisão do trabalho
(setores menos qualificados, trabalhos penosos) a que estão sujeitos os migrantes
261

internacionais, fator também muito presente nas relações dos trabalhadores submetidos a
trabalho escravo de que trata minha pesquisa.
As diferenciações entre trabalho standard e trabalho dos migrantes internacionais
são geralmente explicadas pela diferença basilar entre trabalhador nacional e trabalhador
estrangeiro, perpassando o próprio alcance do direito do trabalho. A dificuldade apontada por
Moulier-Boutang na oposição trabalho externo/trabalho interno é justamente que

do ponto de vista do direito positivo, o mercado de trabalho externo dos


economistas se revela sobretudo como um limite abstrato, como a zona na
qual o direito do trabalho não penetrou (historicamente) ainda ou não
conseguiu fazer-se respeitar (ponto de vista normativo) (MOULIER-
BOUTANG, 2006, p. 139, tradução nossa).

A proposição de Moulier-Boutang para a análise do estatuto do trabalho dos


migrantes internacionais - e que tomamos emprestada para estudar o regime de trabalho dos
migrantes em território nacional - é que tais regimes de trabalho não se diferenciam do
trabalho assalariado meramente pela não aplicação das leis vigentes, mas que têm dinâmica e
construtos próprios, que podem incluir até a aplicação de outras categorias de normas. Estas
considerações são extremamente relevantes, uma vez que aproximam o regime de trabalho do
migrante internacional, que tem estatuto jurídico diferenciado, do migrante nacional, que tem
estatuto jurídico idêntico aos trabalhadores locais.
No sentido dessa aproximação, um dos pontos que saltam aos olhos é a
“contratação anônima” no mercado de trabalho da imigração, citada por Moulier-Boutang, em
contraposição à “contratação individual” do mercado de trabalho standard. Outro ponto
comum aos regimes de trabalho de muitos migrantes nacionais e dos migrantes internacionais
é a aposição de preços de acesso e de saída do posto de trabalho, diferentemente da liberdade
de entrada e saída do contrato de trabalho assalariado.
Uma das questões mais emblemáticas é a regulação sobre o tempo de duração
(mais do que sobre o deslocamento espacial) dos trabalhos dos migrantes. No quadro
elaborado por Moulier-Boutang, em oposição ao “contrato indefinido” do mercado de
trabalho standard, o mercado de trabalho da imigração exibe um limite mínimo e máximo
para a duração do contrato de trabalho. O limite mínimo seria estabelecido para impedir o
empregado de abandonar seu posto de trabalho; já o limite máximo, consistiria na própria
validade do visto de residência do estrangeiro.
Os mecanismos de rolagem de dívida da “feira” descritos por vários trabalhadores
entrevistados estabelecem um limite mínimo de permanência da mão de obra para realização
262

dos serviços acordados. A distância do posto de trabalho de centros comerciais e a ausência


de transporte público ou particular dos trabalhadores sujeitam-nos ao mecanismo (que está
longe de ser uma fatalidade) de compras de mantimentos em grande volume para durarem
pelo período de várias semanas de trabalho.
Por outro lado, a natureza temporária de grande parte dos serviços estabelece um
limite de tempo máximo ao vínculo desses trabalhadores com o empregador. E, ainda, em
muitos casos, o silêncio do empregador sobre o preço dos produtos (alimentos, EPI,
ferramentas de trabalho, itens para alojamento, dentre outros) vendidos aos trabalhadores na
cantina da empresa, faz com que, ao final do serviço, sob a justificativa de que o salário
apenas cobriu suas dívidas, eles nada recebam (e muitas vezes não consigam nem sair do local
de trabalho). Como relatado em muitos casos, há a troca de trabalho por comida.
Num dos relatórios de Grupos Especial de Fiscalização Móvel, de operação
ocorrida em 1999 em Mato Grosso, a equipe de auditores fiscais descreve a situação
encontrada na fazenda inspecionada:

Esclarecemos que a Polícia Federal não encontrou armas em poder dos


‘gatos’ ou gerente, bem como não houve prisão de 'gatos' durante a
fiscalização, entretanto, no que diz respeito a liberdade dos trabalhadores de
sair da fazenda quando desejassem isso não ocorria porquanto os salários a
que faziam jus estavam retidos há quase dois meses, tendo ainda como
agravante a falta de meios de transporte para o deslocamento, considerando
estarem as fazendas localizadas em área de difícil acesso, não servida de
linha regular de transporte coletivo. Vale observar que em algumas regiões
do Mato Grosso, a exemplo do município de Juara, a presença do Estado é
quase inexistente, impedindo que trabalhadores encontrados na situação
descrita no presente relatório possam reclamar seus direitos na justiça.
Durante as fiscalizações efetuadas constatamos que os trabalhadores
desempenham as suas atividades sem o recebimento de salários e ao final do
serviço quando é apresentada a conta da cantina não há nada a receber,
trocando assim trabalho por comida, o que caracteriza o desrespeito às leis
do país e aos direitos humanos, assim entendemos que somente a presença
constante do MTE na área rural poderá coibir tais práticas (Relatório de
Fiscalização GEFM, 1999, p. 9).

A proximidade entre as restrições sofridas pelos trabalhadores estrangeiros no


estudo de Moulier-Boutang e aquelas sofridas pelos migrantes internos escravizados nas
últimas décadas no Brasil demonstra que as discriminações entre os regimes de trabalho mais
ou menos precarizados (que culminam na escravidão contemporânea) operam em outros
níveis mais complexos, não se amparando necessariamente sobre uma diferença de status
jurídico.
263

3.2.2.2 A discriminação entre sujeitos juridicamente iguais

Como comprova a farta documentação e bibliografia analisadas, as condições de


trabalho “análogas à escravidão” não são impostas homogeneamente a toda a classe que vive
do trabalho, mas distribuídas diferencialmente em função de fatores de discriminação e
reconhecimento social. Se o escravo, de modo geral, é um “estranho”, quase sempre
desumanizado, sob o poder/que é posse de um senhor (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009),
fato é que homens e mulheres têm sua humanidade reconhecida em diferentes medidas
conforme sua raça, gênero, classe, origem etc. Nas palavras de Figueira (2004, p. 302-3): “Ser
do próprio país e gozar teoricamente de um estatuto jurídico definido pelo Estado pode nada
significar para os trabalhadores e a liberdade ser apenas uma abstração, dependendo do nível
de coerção recebido”.
Portanto, assim como a pesquisa de Lourenço (2001) originou-se numa
inquietação com narrativas depreciativas de trabalhadores sobre os “criadores de égua”, sobre
“os baianos”, reproduções de uma discriminação de classe e de raça introjetadas nos próprios
indivíduos e disseminadas enquanto ideologia integrante do “processo de modernização sem
modernidade”, também minha pesquisa empírica inicial reforçou em mim a indignação diante
do mesmo tema.
Ora, por um lado, o estudo do fenômeno do trabalho escravo contemporâneo
revela que é o rebaixamento moral do outro que motiva e legitima ideologicamente a prática
de escravizar; por outro, no marco regulatório de um direito fundado no ideário da igualdade
de todos perante a lei e na universalização a todos os seres humanos do status de sujeito de
direito, o rebaixamento moral do outro passa pela questão central da discriminação
extrajurídica.
Sob o direito capitalista e seus universalismos formais, é preciso compreender não
só a discriminação entre as pessoas livres e as escravizadas, entre os nacionais e os
estrangeiros, isto é, entre pessoas de status jurídico distintos, mas a discriminação entre iguais
perante a mesma lei.
Neste sentido, o que explica que, numa mesma fazenda, alguns trabalhadores
recebam salário em dia, equipamentos de proteção individual, alojamentos adequados e água
potável, enquanto outros têm seus salários retidos, são obrigados a comprar equipamentos de
proteção contraindo dívidas com o empregador, bebem água imprópria e dormem em barracos
de lona sem instalações sanitárias, proteção contra animais perigosos e intempéries?
264

Num dos relatórios de fiscalização de trabalho escravo ocorrida em 1996 em Mato


Grosso, a equipe de auditores fez a seguinte anotação sobre as condições de higiene no
checklist do relatório de inspeção: “Para os trabalhadores residentes as condições são boas,
satisfatórias. Para os acampados/alojados inexiste estrutura”. A situação se repete no item
“descrever as condições de fornecimento de água”, em que foram feitas as seguintes
observações pela equipe do GEFM: “Mal acondicionada e sem condições de potabilidade, no
acampamento da construção de cercas” (Relatório de Inspeção, 1996, cód. DY, p 139). O
retrato da discriminação chega ao paroxismo em vários itens em que a equipe, ao invés de
escolher “sim” ou “não”, acaba por assinar ambos: sim e não. No relatório mencionado, foram
marcados sim e não concomitantemente para os seguintes itens: água potável, água próxima
ao local de trabalho, presença de instalações sanitárias, existência de casas, existência de
alojamento, condição de higiene adequada, habitação no local de trabalho com a família. Ao
final de seu relatório, a auditora responsável pela equipe conclui:

Como nas demais empresas rurais, há dois tipos de trabalhadores, os que


trabalham na sede têm melhores condições de trabalho e aos demais o
tratamento é da pior qualidade. Não há respeito pelos preceitos legais que
regem as relações de trabalho. Em relação às normas de saúde e segurança
no trabalho ocorre o mesmo (Relatório de Inspeção, 1996, cód. DY, p. 143).

Em relatório de fiscalização de 2003, encontramos outra faceta da discriminação:


“Os trabalhadores braçais eram tratados como pessoas inferiores aos trabalhadores fixos e de
maior preparo intelectual, cujos alojamentos e condições de trabalho eram exibidos logo à
entrada da fazenda, como se fosse padronizado aquele tratamento” (Relatório de Inspeção
2003, cód. D, p. 8). E, mais adiante, a equipe de fiscais descreve com mais detalhes o
tratamento desigual observado no ambiente de trabalho:

Os salários dos trabalhadores da sede não atrasavam, mas, os dos


trabalhadores arregimentados pela pessoa interposta (o “gato”) eram retidos
e pagos “in natura”, desrespeitando o dever mais importante do empregador,
que é a contraprestação laboral: o salário. Havia trabalhadores que não só
deixaram de receber qualquer centavo, como havia registro de pessoas que
pagavam por dívidas assumidas em serviços anteriores [...], trabalhando em
troca do abatimento na sua dívida assumida junto ao “gato” (Relatório de
Inspeção 2003, p. 10).

Em outra fiscalização realizada no mesmo ano de 2003, foi observada situação


semelhante: “Os trabalhadores que faziam o desmatamento eram tratados como pessoas
inferiores, em face da sua pobreza e analfabetismo ou pouca instrução, morando em tendas
265

feitas de plástico preto, algumas sem proteção lateral e outras sem nenhuma ventilação”
(Relatório de Inspeção 2003, cód. FP, p. 9).
Já em inspeção realizada em 2004, a equipe pontuou: “Diferentemente dos
‘peões’, os empregados mais ‘graduados’ são tratados como ‘gente’” (Relatório de Inspeção
2004, cód. FY, p. 33).
Em caso constatado em 2005 numa madeireira, o GEFM relatou que "somente os
funcionários ligados a exportação e à compra de madeira tinham seus salários pagos"
(Relatório de Inspeção 2005, cód. AI, p. 8).
Já em outra ação fiscal, verificou-se discriminação entre trabalhadores fixos, que
podiam usar banheiro de alvenaria, e os do roço, que não podiam (Relatório de Inspeção
2007, cód. CF, p. 21).
Em 2008, foi constatada discriminação no tratamento entre os empregados da
tomadora e os contratados através de empreiteiro (Relatório de Inspeção 2008, cód. AP, p.
12).
Em outra operação no mesmo ano de 2008, a equipe de fiscalização relatou a
seguinte situação discriminatória no tocante ao local das refeições:

Ficou evidente a discriminação entre os trabalhadores braçais, que faziam


suas refeições na lavoura (dentre estes encontravam-se todos os resgatados),
e os demais trabalhadores. Os primeiros tomavam suas refeições sentados no
chão, em pé ou em objetos improvisados, expostos às intempéries, sem o
suprimento de água para se lavarem e reposição de água potável, sendo que
as refeições eram trazidas da cozinha para o campo em “quentinhas”
acondicionadas em caixa aberta inapropriada, enquanto os demais
trabalhadores tomavam suas refeições em refeitório em boas condições.
Verificou-se também que os aplicadores de agrotóxico tomam suas refeições
nas mesmas condições dos trabalhadores braçais (Relatório de Inspeção
2008, cód. DF, p. 8).

Tais situações de discriminação são recorrentes até os dias de hoje. Em Relatório


de Inspeção de 2010 em outra cidade de Mato Grosso, a equipe de fiscais fez o seguinte
apontamento:

Além dos dois barracos e da sede da fazenda a equipe inspecionou a


construção de um curral e de um barracão, onde também se encontravam
alojados trabalhadores da construção civil, mas em melhores condições do
que as vividas pelos trabalhadores do roço de pasto. Apesar do local não
atender integralmente os ditames de moradia contidos na Norma
Regulamentadora 31, as irregularidades apresentadas eram passíveis de
regularização, o que não ocorria com os trabalhadores do roço de pasto, onde
266

as condições eram flagrantemente degradantes (Relatório de Inspeção 2010,


código AT, p. 6).

Em outro relatório, a equipe de fiscalização aponta que os operadores de máquina


recebiam tratamento ostensivamente melhor do que os catadores de raízes (Relatório de
Inspeção 2002, cód. AA, p. 3).
Os dados do Observatório Digital de Trabalho Escravo no Brasil142 mostram que,
enquanto os “brancos” formavam 37,47% da população de Mato Grosso em 2014 (e 47,73%
da população nacional), a representatividade da população branca entre as vítimas de trabalho
escravo é consideravelmente mais baixa. Das pessoas naturais de Mato Grosso que foram
vítimas de trabalho escravo entre 2003 e 2016, aproximadamente 20,9% era branca. Para os
residentes em Mato Grosso que figuraram entre as vítimas das mesmas práticas, o percentual
não se altera muito: foi de aproximadamente 21,9% no mesmo período.
O estudo Mapa da Violência: a cor dos homicídios no Brasil143, que realizou uma
análise cruzada de dados de homicídio144 e raça/cor no Brasil partindo do ano de 2002,
apontou a tendência geral de “queda do número absoluto de homicídios na população branca e
de aumento nos números da população negra145” (WAISELFISZ, 2012, p. 10). Segundo o
estudo, entre 2002 e 2010, o número de vítimas brancas teria tido um decréscimo de 25,5%,
enquanto as vítimas negras teriam aumentado 29,8% em todo o país. No caso dos homicídios
da população de Mato Grosso, teria havido um declínio de 24,9% do número de vítimas
brancas e um aumento de 18,3% no total de vítimas negras, conforme as mesmas fontes
(WAISELFISZ, 2012, p.11). A taxa juvenil de homicídio em Mato Grosso era de 107,3 por
100 mil entre a população negra e 33 por 100 mil habitantes na população branca
(WAISELFISZ, 2012, p.33).
Em pesquisa realizada pelo IBGE146 em 2008 no Brasil, 63,7% dos entrevistados
declarou que a “raça” influencia na vida, sendo o “trabalho” o aspecto mais citado.

142
Os dados estão disponíveis no endereço https://observatorioescravo.mpt.mp.br/ Conforme informações
extraídas do próprio sítio, o Observatório Digital do Trabalho Escravo “foi desenvolvido e é mantido pelo
Ministério Público do Trabalho (MPT) em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no
âmbito do fórum Smartlab de Trabalho Decente. Foram utilizados bancos de dados governamentais de várias
fontes, incluindo registros administrativos, dados censitários, dados domiciliares e dados do Sistema de
Indicadores Municipais de Trabalho Decente da OIT”.
143
Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf.
144
Os dados utilizados no estudo provêm do Sistema de Informações de Mortalidade.
145
No referido estudo, a categoria “negra” é a somatória das subcategorias “preta” e “parda”.
146
A “Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de Classificação de
Cor ou Raça” (PCERP) foi realizada em 2008 pelo IBGE, com amostra de cerca de 15 mil domicílios, no
Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal.
267

As pesquisas que associam as práticas de escravização aos fluxos migratórios e os


inúmeros casos que envolvem trabalho escravo e tráfico de pessoas já nos permitiram avançar
no tratamento dessa questão que é, sem dúvida, um ponto central da violação da dignidade de
trabalhadoras e trabalhadores. Estamos diante de uma temática abordada por diversos estudos
sob as categorias de depreciação, desqualificação moral, discriminação, construção social da
ralé, dentre outras.
Figueira (2004, p. 290), ao relacionar o processo de depreciação ou
desqualificação das vítimas da escravidão contemporânea com as implicações da migração,
pontua:

Através da migração e de tudo que ela implica, a pessoa sofre um processo


de depreciação. Isso atinge tanto os submetidos à relação de escravidão por
dívida no Brasil e a outros tipos de escravidão como pessoas submetidas a
diversos sistemas coercitivos, mesmo se em intensidade e forma diferentes.
Na escravidão africana, houve um duro processo de desqualificação moral
dos capturados.

A depreciação não raro é a base da prática cotidiana de eleger, num mesmo


estabelecimento, quais trabalhadores terão seus direitos assegurados e quais terão seus direitos
sumamente violados. Nesse sentido, a indignidade das condições de trabalho encontradas pelo
GEFM é um sintoma da indignidade que empregadores, prepostos, gerentes, capatazes e
diversos atores da sociedade enxergam nesses trabalhadores que, por lei, teriam os mesmos
direitos que qualquer outro. As condições degradantes de trabalho retratariam a escravidão
contemporânea não apenas por representarem uma modalidade de escravizar, mas também um
sintoma loquaz daquilo que é a base mesma da escravidão: a degradação social, política e
moral do Outro.
Assim, a desqualificação moral dos escravizados acompanha sua "captura", mas
também a antecede, envolvendo não só a depreciação de migrantes enquanto “deslocados”,
mas compreendendo também vieses de raça, origem, gênero, classe social etc.
O estudo sobre o perfil dos atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil,
publicado pela OIT, revela aspectos interessantes das representações dos empregadores sobre
o trabalhador rural. O resultado do estudo apontou que “os depoimentos dos empregadores
sobre os trabalhadores rurais estavam permeados por argumentos que ressaltavam os direitos
e os deveres dos trabalhadores”. Mostrou ainda a existência de visões positivas de alguns
empresários acerca da dedicação ao trabalho e aos valores familiares dos trabalhadores rurais,
ressaltando também a centralidade da propriedade privada: “São honestos, tomam conta do
268

patrimônio da gente”. Há o empregador que se vê como benfeitor dos trabalhadores rurais:


“Eles gostam de mim, como eu gosto deles. Não sou manso pra eles, sabe? Sou que nem
médico pra eles, tudo que eu posso fazer para eles eu faço” (OIT, 2011, p. 144-145). Houve
também depoimentos que, segundo os pesquisadores, enquadravam os trabalhadores como
portadores das mesmas oportunidades dos empregadores, atrelando a pobreza à incapacidade
administrativa e de iniciativa dos próprios trabalhadores. É o caso de um dos empregadores
entrevistados no referido estudo, que declarou: “Trabalhador trabalha para comer e não para
evoluir. Não tem uma cultura de fazer poupança, o que ganha gasta tudo. Outro relato similar
foi registrado: “Trabalhador é debochado, se contenta com pouco e não querem acumular”.
Houve ainda depoimentos que estamparam uma visão meramente negativa sobre os obreiros:
“Trabalhador rural é tudo tosco. Não adianta... é tosco” ou “Pior possível. Tudo o que é de
ruim. Pense em uma coisa muito ruim. É o trabalhador rural” (OIT, 2011, p. 145-146).
Um exemplo de discriminação que envolveu diversas camadas de estigmas
sociais, incluindo não só a condição de migrantes dos trabalhadores, mas também, dentre os
diversos grupos de migrantes, uma discriminação sistemática em função da origem territorial
(no caso, também atravessada pela questão de raça e classe) de cada subgrupo, foi apontada
no Relatório de Fiscalização de operação realizada pelo GEFM numa grande usina de álcool
em 1997:

Ressaltamos aqui o tratamento desigual que a empregadora oferece aos


maranhenses, fato percebido na fiscalização anterior (1996). À época, havia
uma turma de trabalhadores pernambucanos, alojados nas melhores
instalações e os maranhenses nas piores (Relatório de Fiscalização GEFM,
cód. CS, 1997, p. 5).

A discriminação de populações vistas como “destituídas de direitos” aparece


também no documentário Aprisionados por promessas (2006), quando o trabalhador rural
Valdemir relata que, certa vez, por não estar recebendo o salário combinado, foi exigir seus
direitos ao patrão e obteve a seguinte resposta: “Direito de maranhense aqui é um tiro de uma
espingarda calibre 36 que eu tenho lá no meu barraco. Aqui pode faltar feijão para o
trabalhador, mas o cartucho pra matar um aqui não falta”.
A humilhação e rebaixamento do outro são inseparáveis da ideia de escravização.
Numa das visitas à Casa do Migrante de Cuiabá, perguntei a um trabalhador que havia sido
resgatado de trabalho escravo na atividade de derrubada de árvores o que era trabalho escravo
para ele. A resposta, emblemática, mostra o amálgama entre coerção, humilhação e exaustão
que conforma as realidades da exploração humana na contemporaneidade:
269

Trabalho escravo é você ser forçado pra trabalhar, né, pelos patrões, e...
humilhado, porque nós somos pobre, humilhado por isso, isso pra mim é
trabalho escravo.... A gente não tem aquela hora, aquele limite, tem que
passar da hora.... Pra mim é isso.

Essas reflexões nos aproximam do tema da formação da “ralé”, tratado por Jessé
Souza em seu livro A construção social da subcidadania. Segundo o autor, a “ralé” é um tipo
de ser humano que se espalhou por todo território nacional, representando 2/3 da população
no século XIX. São seres humanos considerados dispensáveis e que sobrevivem nos
interstícios e ocupações marginais da ordem produtiva exercendo funções não essenciais
(SOUZA, 2003, p. 122). O não reconhecimento social da ralé assemelha-se ao que sofria o
escravo tradicional, segundo Jessé Souza (2003, p. 122):

[...] a relativa ‘dispensabilidade’ econômica do dependente, que irá [...]


marcar também toda a sua existência moral e política, é condicionada pelo
que Carvalho Franco chama de ‘presença ausente’ da escravidão. Esta
sombra da escravidão não será apenas evidente no sentido da vida destinada
a uma existência economicamente marginal, mas também, e mais importante
[...] para a definição de um padrão de (não) reconhecimento social muito
semelhante àquele do qual o próprio escravo é vítima, embora oculto sob
formas aparentemente voluntárias e consensuais que dispensam grilhões e
algemas.

Os resultados de nossa análise documental demonstram claramente a ideologia do


desprezo pela população pobre, negra, nordestina, feminina e pelas trabalhadoras e
trabalhadores ditos “braçais”. A migração confere uma nova camada de vulnerabilidade aos
trabalhadores que, sozinhos num local desconhecido e distante, não contam com uma rede de
solidariedade e de mobilização política. Entretanto, não é o fato de serem migrantes que, em
primeira instância, marca essas populações como alvos de discriminação. Em nenhuma
entrevista ou relatório aparece a relação entre “ser migrante” e ser tratado como um
trabalhador e ser humano de segunda categoria. As referências feitas ao deslocamento
geográfico como fator que influi no tratamento diferenciado recebido do empregador
limitaram-se sempre à desmoralização de trabalhadores em função de seus locais específicos
de origem, como Maranhão, Bahia, Alagoas, nordeste. A degradação da escravidão
contemporânea mostra-se muito mais como um repositório dos racismos históricos de nossa
sociedade do que um simples fenômeno de vulnerabilidade dos migrantes. Segundo
Alexandre, integrante dos quadros da Organização Internacional do Trabalho, tais
discriminações tendem a crescer no contexto político-econômico atual:
270

E se você olhar para a situação atual econômica do Brasil, com o aumento da


taxa de desemprego e diminuição da oferta de emprego formal, todo esse
processo de aumento da desigualdade, de radicalização política e ódio entre
as classes, a tendência de voltar indicadores muito claros de trabalho
forçado, com ameaças, vai ser muito maior. Porque você nota que realmente
apareceu um processo de preconceito muito mais forte no Brasil. Hoje a
coisa está escancarada, muito latente.

Num contexto global de refluxo dos direitos sociais, há a intensificação da


reposição de desigualdades nos vãos do direito. Dispositivos e práticas negam a igualdade
afirmada pelo direito no plano formal. Paralelamente, também a própria legislação vai sendo
flexibilizada para esgarçar a noção de equidade e fazer coincidir cada vez mais o conceito de
igualdade com o de igualdade formal, através da promoção do ideário da meritocracia
combinado à exclusão social.
A tendência atual é não só a negação dos preceitos de igualdade jurídica no plano
da eficácia (em países como o Brasil), mas também, no plano da vigência, a legalização da
desigualdade. É o que vem acontecendo no caso dos “posted workers” da União Europeia, em
que trabalhadores de países mais pobres são contratados para trabalharem em países centrais,
recebendo salário cujo valor obedece não aos padrões da sociedade onde passa a habitar (e
onde tem que arcar com os altos custos de vida), mas sim aos de sua nação de origem.
O fenômeno dos “posted workers” é emblemático porque manifesta o sonho (não
mais) secreto do capitalismo neoliberal. O direito que passa não mais a balizar, mas sim a
avalizar as assimetrias impostas pelo mercado: o salário do trabalhador calculado não
conforme uma lei geral, mas conforme sua vulnerabilidade particular.
A noção de equivalência entre prestação e contraprestação contratuais que
estrutura as relações de trabalho modernas oculta a discriminação, a não-equivalência e o
racismo concretos que, se ausentes do direito formal, fazem-se eloquentemente presentes no
momento de realização do direito, no momento efetivo da troca. É nesse momento que, sob
um mesmo ordenamento e ideologia jurídica da liberdade e da igualdade universais, os seres
humanos considerados superiores recebem seus salários, condições dignas em troca de menos
horas de trabalho, enquanto as populações consideradas inferiores recebem remuneração
rebaixada, condições degradantes em troca de jornadas exaustivas de labuta. Ou, no limite,
não recebem praticamente nada: os salários são retidos, não há alimentação adequada,
alojamento, água potável nem tempo que não seja tempo de exploração de sua força de
trabalho. Troca-se trabalho por comida (recebem apenas “foice e carne”, como num dos
271

relatórios analisados), pelo mínimo necessário à reprodução da força de trabalho, limite esse
que é ultrapassado diversas vezes em nome da máxima economia de recursos financeiros,
ocasionando o adoecimento dos trabalhadores e, mais além, a continuidade da exploração do
trabalhador, ainda que enfermo.

3.2.3. A invisibilização dos explorados: as vítimas fora dos dados oficiais

As subnotificações são um fato inconteste quando falamos de acidentes do


trabalho e doenças ocupacionais. Muitas vezes a própria precarização do trabalho e a
informalidade dos vínculos já excluem, de plano, os trabalhadores do sistema de seguridade
social. Ainda quando se trata de vínculos formais, há muitas ocorrências de empresas que
burlam as normas e não realizam as devidas comunicações de acidente de trabalho, buscando
esquivar-se da responsabilidade sobre a saúde dos trabalhadores. Há casos, ainda, em que a
empresa encaminha a situação como se fosse um acidente ocorrido fora do trabalho ou uma
doença sem nexo causal com as atividades laborais do trabalhador, também para eximir-se de
qualquer responsabilidade.
Mais do que identificar nesse padrão a ineficácia de uma técnica pretensamente
neutra, é preciso analisar sua eficácia no contexto do processo de transformação dos acidentes
fabris – que em meados do século XIX, suscitavam conflitos na arena política para além do
local de trabalho – em questões administrativas sujeitas ao controle do Estado (DWYER,
2006, p. 45; 50). Como já apontou Dwyer (2006, p. 61):

Instituições que surgiram para tratar da prevenção e da indenização foram


formadas no espaço criado entre a produção do lucro capitalista e a produção
da morte em uma cultura que cada vez valorizava mais a vida. Não deveria
ser de espantar que esforços para canalizar a prevenção e a indenização
fossem dirigidos a ocultar os acidentes da vista do público. [...] A morte
industrial deve ser produzida de maneira invisível. Os conflitos
nascentes devem ser resolvidos institucionalmente.

Esta realidade das notificações é apontada por diversos estudiosos na área de


Saúde Coletiva como um importante entrave ao avanço das pesquisas que buscam
compreender os reais agravos sobre a saúde dos trabalhadores causados pelos ambientes e
condições de trabalho, e tem motivado diversos pesquisadores a relativizar a confiança nos
272

dados oficiais e construir novos parâmetros analíticos com base em dados de suas próprias
pesquisas empíricas quantitativas e qualitativas.
O mesmo ocorre com o trabalho escravo, dado o grande fosso que separa o
volume de casos de escravidão contemporânea e o volume de casos denunciados, flagrados e
encaminhados pelas instituições públicas. Neste campo, a pesquisa empírica também vem
auxiliando na identificação das discrepâncias entre as estatísticas e a realidade, o que é
fundamental na interpretação dos dados oficiais.
Assim, a ausência eloquente dos trabalhadores acidentados e doentes nos números
oficiais escancara a ineficácia dos direitos sociais, a falta de responsabilização jurídica dos
empregadores pelas doenças e acidentes do trabalho, a fragilidade dos instrumentos de gestão
da saúde e segurança do trabalho e demonstra, por fim, a própria invisibilização dos
trabalhadores como engrenagem necessária de um sistema que os consome, descarta e
extermina.
Neste aspecto, analisar os Relatórios de Inspeção do GEFM, fonte dos dados que
compõem a estatística oficial do Ministério do Trabalho sobre trabalho escravo, é revelador.
De fato, na documentação da fiscalização do trabalho podemos identificar todos os
trabalhadores contabilizados nos números oficiais sobre trabalho escravo. Porém, a análise
documental confronta-nos, para além dessa presença, com significativas ausências. É o caso
das mulheres, que figuram nas estatísticas brasileiras como aproximadamente 5% das vítimas
de trabalho escravo em Mato Grosso e no Brasil de 1998 a 2013. É o caso das pessoas que são
escravizadas e traficadas para exploração sexual, que não integram as estatísticas nacionais. É
o caso de trabalhadores que morreram de acidentes e doenças do trabalho sem aparecer nos
dados oficiais e sem que se documentasse sua identidade e a causa de sua morte. E, como
esses casos, há tantos outros.
A descartabilidade e invisibilidade dessas trabalhadoras e trabalhadores chama a
atenção na análise dos Relatórios de Inspeção do Trabalho. Um caso emblemático ocorreu
durante operação de fiscalização de trabalho escravo de 1999, em que a equipe de auditores
do Ministério do Trabalho resgatou 140 trabalhadores sob condição análoga à de escravos na
atividade de desmatamento, com salário retido havia 5 meses e submetidos ao truck system.
Segundo esse relatório, durante a fiscalização, os auditores constataram a morte no trabalho
como uma realidade. Assim, em seu relatório, a equipe de fiscalização consignou a denúncia
dos trabalhadores de que “durante a atividade de desmatamento, ocorreram dois acidentes
fatais e diversos outros de menor gravidade” (Relatório de Fiscalização, 1999, p. 6).
273

Através do cartório local, a equipe obteve a segunda via da certidão de óbito de


um dos trabalhadores mencionados, que era conhecido pelo apelido de “Falcão”.

Figura 1 – Atestado de óbito


Fonte: Relatório de Inspeção do Trabalho

O documento retrata a triste realidade do ser humano escravizado. Do “cidadão


conhecido pela alcunha de Falcão”, a história oficial só registrou a profissão, o local e a data
de morte (ocorrida no trabalho), sua corporalidade (estatura e roupa que trajava) – sua
274

condição de mera força de trabalho descartável –, mas ignorou seu nome, sua origem, suas
relações de parentesco, o motivo real de sua morte, sua história de explorações e resistências,
sua humanidade.
São populações ignoradas, exterminadas, pessoas mortas sem causa declarada
onde ninguém costuma morrer por acaso.
Figueira também relata em sua pesquisa o caso dos tantos trabalhadores
desaparecidos, por terem perdido o contato de suas famílias, ou por terem morrido de doença,
acidente ou mesmo assassinados.

Alguns morrem e os que encontram seu corpo, presenciam sua morte ou são
informados dela podem não saber sobre seu nome, ou sabem apenas o
prenome, ou nada além de um apelido. A família, não sendo informada da
morte, persistirá com a dúvida sobre a razão de sua ausência. De alguns
existe a foto e a história da fuga e do assassinato. De outros, nem sequer a
foto, só o testemunho de um dos sobreviventes. São homens que não só
foram mortos fisicamente, mas tiveram uma outra morte, a simbólica,
expressa na ocultação de suas identidades, quando não, dos próprios corpos
(FIGUEIRA, 2004, p. 289).

A morte física como faceta de um processo mais alargado de mortificação


simbólica e até social é um tema inseparável do estudo da escravidão histórica. Afinal, como
salienta Patterson, a desonra147 é uma condição generalizada presente em toda escravidão
(1982, p. 78).

3.2.3.1. Onde estão as mulheres escravizadas?

Desde que comecei a trabalhar na coordenação de fiscalização de trabalho


escravo, chamou minha atenção a baixa representatividade das mulheres nas estatísticas sobre
as vítimas de escravização. Tanto os números do estado de Mato Grosso quanto os nacionais
apresentavam o mesmo cenário, em que predominam maciçamente os homens, de modo que
as mulheres representam aproximadamente 5% das pessoas resgatadas de trabalho
considerado “análogo a escravo” no período estudado, tanto em nível estadual quanto
nacional. Os números divulgados no ILO Global Estimate of Forced Labour (2012, p. 14)

147
“[...] em primeiro lugar, em todas as sociedades escravistas o escravo era considerado uma pessoa degradada;
em segundo, a honra do senhor era ressaltada pela sujeição de seu escravo; em terceiro, onde quer que a
escravidão tenha se tornado muito importante estruturalmente, o tom de toda a cultura dos donos de escravos
tendeu a tornar-se altamente honorífico” (PATTERSON, 1982, p. 79)
275

apresentam outra realidade. Segundo o estudo, 55% das vítimas de trabalho escravo no mundo
são mulheres, isto é, 11,4 milhões em contraposição a 9,5 milhões de homens escravizados.
Interessante notar que, segundo o mesmo estudo, a escravização atinge primordialmente as
mulheres no campo da exploração sexual, em que elas representam 98% das vítimas, sendo
que 74% das pessoas escravizadas para fins sexuais são de país estrangeiro. Já na exploração
laboral na economia privada, 40% das vítimas seriam mulheres e 60%, homens.
As estimativas publicadas pela OIT em 2016 apontam uma participação ainda
maior das mulheres, que representariam 71% do total estimado de vítimas de escravidão no
mundo. A distribuição por gênero das vítimas de diferentes modalidades de escravidão pode
ser visualizada no quadro abaixo, que foi extraído do referido estudo:

Gráfico 28 – “ESCRAVIDÃO MODERNA” POR SEXO


Fonte: Organização Internacional do Trabalho

Devido à escassez de documentos oficiais das instituições responsáveis pelo


combate ao trabalho escravo sobre a escravização de mulheres no Brasil, a pesquisa, neste
tópico, percorreu caminhos um pouco distintos dos expostos até aqui. Por um lado, busquei
compreender, através da análise dos trechos dos relatórios de inspeção que digam respeito a
mulheres escravizadas, as particularidades da exploração sofrida por elas. Também busquei
informações sobre essa modalidade de escravização através de entrevistas em comunidades
vulneráveis e com ativistas atuantes no Brasil e em outros países.
276

Como já dito, a produção de estatísticas sobre trabalho escravo no Brasil encontra


como primeiro entrave a inexistência de uma base de dados unificada. Na seara dos dados
oficiais, temos, de um lado, os dados mais consolidados do Ministério do Trabalho sobre
trabalho escravo (que, em alguns casos, também envolvem tráfico de pessoas) e, de outro, os
dados recentes das Secretarias de Segurança Pública sobre tráfico de pessoas (que, em alguns
casos, também envolvem trabalho escravo). Há, ainda, importantíssimos dados produzidos
por fontes não governamentais, como é o caso da CPT e outras entidades de defesa dos
direitos humanos.
A questão da representatividade das mulheres no contingente de vítimas de
trabalho escravo no Brasil é um dado hoje desconhecido.
Obviamente, não chegaríamos a uma resposta para isso com a mera justaposição
de dados de fontes diversas, gerados de formas completamente diferentes e frutos de
contextos operacionais (procedimentos, duração das operações, volume de demanda reprimida
e subnotificação) tão distintos. Entretanto, colocar estes dados lado a lado já é um passo tão
importante quanto simples: relembrar o caráter não absoluto de cada uma destas fontes. O
passo seguinte é criar mais canais de comunicação entre eles.
Para nos aproximarmos, ainda que de modo tímido, da distribuição das vítimas de
trabalho escravo no Brasil por gênero, ante aos escassos e fragmentados dados de que
dispomos nos dias de hoje, provavelmente o mais prudente seja nos ampararmos em estudos
como as estimativas globais de escravidão moderna produzidas pela OIT, que aferem, numa
só pesquisa e com uma única e rigorosa metodologia, a escravidão atual em suas variadas
formas.
Nos últimos anos, levantei algumas hipóteses iniciais para tentar explicar essa
discrepância entre os gêneros e, de fato, minha primeira hipótese foi que a proporção entre
homens escravizados e mulheres escravizadas não era tão discrepante no campo dos fatos
quanto no campo dos dados oficiais. Comparando o panorama brasileiro ao de outros países,
fica evidente que, no Brasil, o combate à escravidão contemporânea avançou de forma
desigual em diferentes espaços. E, se o combate ao trabalho escravo se faz justamente
tornando visível formas de escravização que foram invisibilizadas, grupos da população que
já sofrem outras camadas de marginalização e invisibilização continuam negligenciados pelo
Estado.
O mais dramático é que a discriminação entre o que é visto e o que não é visto
aumenta a violência e a sensação de insegurança sofrida por essas pessoas que se sentem fora
277

do alcance das autoridades públicas ou mesmo que têm a percepção de que não merecem
qualquer tipo de cuidado.
Durante fiscalização trabalhista numa casa de prostituição, uma prostituta me
disse que considerava importante a fiscalização entrar lá, porque o dono do estabelecimento
iria ver que não pode fazer o que quiser com as prostitutas. Segundo ela, nunca qualquer
órgão público havia visitado o local e isso lhes dava uma sensação de insegurança.
Hoje, o “isolamento geográfico” das fazendas nos rincões do Brasil vai
diminuindo com novas estradas e principalmente com o avanço tecnológico dos meios de
comunicação. Os trabalhadores resgatados numa madeireira no ano 2012 não precisaram fugir
da fazenda para denunciá-la ao Ministério do Trabalho: da própria mata, eles fizeram ligações
escondidas para a Divisão de Erradicação de Trabalho Escravo - DETRAE, através de um
telefone celular e relataram onde estavam e a que situações estavam submetidos.
Porém, há outros rincões e isolamentos mais sutis a serem descobertos pelos
pesquisadores e pelas autoridades públicas que atuam no enfrentamento do trabalho escravo
contemporâneo.
Uma das mais importantes facetas do trabalho escravo contemporâneo no Brasil é
o isolamento das mulheres em lugares de exploração (como na exploração sexual e no
trabalho doméstico) aos quais foram submetidas ao longo da história e onde, até hoje, não
conseguem ser vistas.
Enquanto a exploração sexual representa 22% do total de pessoas escravizadas em
todo o globo, segundo estudo da OIT (2012, p. 13-4), a escravização para exploração sexual é
praticamente ausente nas estatísticas brasileiras. No estado de Mato Grosso, entre 2003 e 2013
apenas 3,7% das vítimas de trabalho escravo constatadas pelo GEFM eram de sexo feminino.
Além disso, de 1995 até 2013, houve apenas um caso de resgate de trabalhadoras escravizadas
na indústria do sexo no estado, num universo de 180 operações aqui analisadas.
A situação é similar no tocante à escravização de trabalhadores domésticos, que
quase não integram as estatísticas de trabalho escravo do Brasil.
Em seu livro New Slavery: a reference handbook, Kevin Bales reúne documentos
e testemunhos sobre as diferentes modalidades de escravidão praticadas na atualidade. A
escravização de trabalhadores que executam serviços domésticos é mencionada como
principal modalidade de escravização debelada nos Estados Unidos e uma das formas de
escravidão mais comuns em todo o globo (BALES, 2004, p. 152).
Bales apresenta, no capítulo sobre escravidão doméstica, o depoimento de Louis,
um ativista que atua na libertação de escravos, sobre Deborah, uma menina levada de
278

Camarões para os EUA com promessas enganosas de estudo e que na prática foi submetida a
trabalho forçado, sofrendo violência física e psíquica e não recebendo salário ou acesso à
educação. O pesquisador mostra que Deborah não tinha acesso a qualquer ajuda, pois
apanhava da família que a escravizava se tentasse usar o telefone e tudo o que tentava
escrever lhe era retirado. Como aponta Bales, ela estava “num país estranho, trancada numa
casa estranha, longe de casa”. O isolamento da menina em plena zona urbana de uma cidade
dos EUA foi descrito de forma emblemática no testemunho de Louis: “Era como se ela
estivesse perdida no meio de uma floresta [...], ela estava completamente isolada” (BALES,
2004, p. 154, tradução nossa).
Num mundo em que é possível um trabalhador fazer uma denúncia para a
DETRAE através de um celular nos rincões de uma fazenda em Mato Grosso, ao descobrir
um local escondido dos patrões e com sinal telefônico no meio do mato, também é possível
uma menina ser escravizada numa cidade repleta de pessoas, instituições e meios de
comunicação, mas permanecer completamente isolada, tamanho o controle e a violência
sofridos.
Além dos componentes de gênero da exploração da mão de obra, o número baixo
de mulheres nas estatísticas também reflete a exclusão das mulheres do próprio mercado de
trabalho, outra faceta da dominação sofrida pelas mulheres.

Desde a década de 1990, as mulheres estão sendo alijadas do corte manual


da cana. Em razão do aumento vertiginoso da imposição de médias
(produtividade acima de dez toneladas de cana cortada por dia) e do número
de máquinas colhedeiras, as empresas intensificaram a busca de mão de obra
masculina e migrante (SILVA, M. A., 2014, p. 292).

Para dar conta dessas importantes questões, uma mera ressalva metodológica
sobre os dados analisados não nos pareceu suficiente. Assim, procurei dados de outras fontes
e recortes analíticos para a base de dados da própria Inspeção do Trabalho que pudessem me
dar pistas sobre essa aparente lacuna. A minha hipótese era a seguinte: a frequência das
vítimas mulheres nos dados oficiais da Inspeção do Trabalho está abaixo de sua
representatividade efetiva no total dos casos de escravidão contemporânea no Brasil, pelos
seguintes motivos: a) alta incidência de vítimas mulheres escravizadas em atividades como o
trabalho doméstico e o serviço sexual, em que outras instituições (a exemplo das polícias)
atuam, sem necessariamente incluir ciência e intervenção da inspeção do trabalho; b) as
práticas de exploração sexual nem sempre são tipificadas como trabalho escravo (neste caso,
investigar os crimes de tráfico de pessoas nos daria alguma pista); c) maior dificuldade de
279

denunciar as vítimas isoladas no trabalho escravo doméstico do que dos trabalhadores que
trabalham em estabelecimentos não residenciais e normalmente em grupos; d) discriminação
contra as mulheres, tanto nos ambientes em que predomina a mão de obra masculina, quanto
perante as próprias instituições públicas; e) o trabalho escravo atrelado à exploração sexual
muitas vezes está inserido numa rede internacional de tráfico, de modo que muitas vítimas
residentes no Brasil são traficadas para serem exploradas no exterior, dificultando seu
atendimento pelos órgãos nacionais.
Com base nesta linha de análise, coletei dados junto à Secretaria Estadual de
Segurança Pública de Mato Grosso e realizei entrevistas com membros do CETRAP.
Os dados obtidos sobre o tráfico de pessoas apresentam um limite temporal de
2012 a 2018148 e, ainda que não coincidam com o período aqui analisado, oferecem um
contraponto importante para situarmos o âmbito de nossa pesquisa. Afinal, o objetivo deste
levantamento de informações não foi observar variações no tempo das ocorrências de tráfico
de pessoas, mas sim entender, dentro do universo de tais ocorrências, qual tem sido a
representatividade das vítimas de sexo não-masculino. Os gráficos abaixo apresentam os
dados da SESP-MT:

VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS POR GÊNERO


2012-2018 - MT
4%
4%

sexo feminino
sexo masculino
não informado
92%

Gráfico 29 – Vítimas de tráfico de pessoas por gênero – MT (2012-2018)


Fonte: Secretaria Estadual de Segurança Pública de Mato Grosso – SESP

148
Os dados de 2018 abrangem o período de 1/01/2018 a 25/10/2018.
280

OCORRÊNCIAS DE TRÁFICO DE PESSOAS 2012-2018 - MT

29%
Tráfico interno de pessoas

71% Tráfico internacional de


pessoas

Gráfico 30 – Ocorrências de tráfico de pessoas – MT (2012-2018)


Fonte: Secretaria Estadual de Segurança Pública de Mato Grosso – SESP

IDADE DAS VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS 2012-


2018 - MT

4%
4% 8% 16%
Menor de 11 anos
De 12 a 17 anos
28%
De 18 a 24 anos
40% De 25 a 29 anos
De 30 a 34 anos
Não informado

Gráfico 31 – Idade das vítimas de tráfico de pessoas – MT (2012-2018)


Fonte: Secretaria Estadual de Segurança Pública de Mato Grosso - SESP

Como podemos observar, as mulheres são as principais vítimas de tráfico de


pessoas em Mato Grosso. Ainda que trabalho escravo e tráfico de pessoas não sejam
categorias inteiramente coincidentes, elas estão fortemente entrelaçadas em termos não só de
conceituação jurídica, como também de prática criminosa e, cada vez mais, de políticas de
enfrentamento. Enquanto a tendência de unificação das bases de dados não se concretiza (e,
de fato, por se tratarem de dados de fontes de diversas, analisa-los em conjunto aqui restaria
problemático), parece interessante fazer um simples exercício de justaposição de dados para
281

ilustrar a necessidade de tomarmos a base de dados da Inspeção do Trabalho pelo que ela
realmente é.
Assim, tomando os únicos dois anos comuns a ambas as bases (2012 e 2013),
temos:

TRÁFICO DE PESSOAS (DADOS DA SESP) TRABALHO ESCRAVO (DADOS DA SIT)


ANO NÚMERO
NÚMERO DE PERCENTUAL DE NÚMERO NÚMERO PERCENTUAL DE
DE CASOS VÍTIMAS VÍTIMAS MULHERES DE CASOS DE VÍTIMAS VÍTIMAS MULHERES
2012 5 5 100% 9 83 4,82%
2013 10 10 100% 9 86 3,49%
Tabela 14 – Tráfico de pessoas e trabalho escravo
Fontes: Secretaria Estadual de Segurança Pública de Mato Grosso (SESP) e Secretaria de Inspeção do Trabalho
(DETRAE/SIT)

As mulheres constantes da tabela acima, em sua grande maioria, exerciam a


função de cozinheiras nas frentes de trabalho. E um dos resultados interessantes da análise dos
relatórios de inspeção foi justamente a descoberta de que em 15,56% dos casos de trabalho
escravo constatados pelo GEFM de 1995 a 2013 em Mato Grosso houve vítimas na atividade
de cozinha. Trata-se da quarta atividade com presença em maior número de casos de trabalho
escravo, ficando atrás apenas das atividades de limpeza de terreno rural (56,11%), construção
e manutenção de cercas (18,89%) e derrubada de árvores (17,22%).
Por fim, as mulheres também sofrem discriminação dentro do ambiente de
trabalho. Em relatório de 2009, a equipe de fiscais reporta a situação de seringueiras que não
foram registradas pelo empregador por serem consideradas “apenas ajudantes” de seus
maridos, sendo que desempenhavam todos o mesmo serviço. O tratamento inferior se estendia
ainda a outras dimensões. Consta do relatório que “Foram entregues garrafas térmicas para
alguns seringueiros, ficando, novamente, as 6 (seis) mulheres – seringueiras – que o
empregador se negava a registrar sem água nas frentes de trabalho” (cód BW, p. 13). Como se
vê, em muitos casos, as atividades das mulheres não são consideradas como “trabalho” e não
encontram uma remuneração equivalente à que recebem os homens.
No caso acima, a conclusão do GEFM foi pela existência do vínculo
empregatício:

Em relação à falta de registro das seringueiras, o empregador [...] justificava


que, como estas eram apenas “ajudantes” dos seus maridos – seringueiros –,
estas não seriam empregadas, “pois não havia um contrato escrito
autorizando-as a trabalhar”, conforme nos relatou. Pois se não havia contrato
de trabalho escrito sequer com os maridos seringueiros, por que exigi-lo das
282

seringueiras esposas? Incabível essa alegação patronal e, até, discriminatória


com as mulheres, seringueiras, que trabalhavam diariamente, ou, em alguns
casos, até mais que os seus próprios maridos. Por entender que se
encontravam presentes todos os elementos fático-jurídicos da relação de
emprego – como onerosidade, subordinação, serviço prestado por pessoa
física com pessoalidade e não-eventualidade – o GEFM lavrou novo auto de
infração em relação à falta de registro das seis mulheres seringueiras.

O referido relatório apresenta o depoimento do próprio gerente dos seringueiros,


confirmando

QUE os casais, tanto os homens quanto as mulheres trabalham na extração


de látex; QUE as mulheres não foram registradas; QUE o [empregador] disse
que, por enquanto, registraria apenas os que foram recrutados como
funcionários da fazenda; QUE as mulheres são consideradas como ajudantes
e, por essa razão, não foram registradas; QUE a produção da ajudante sai no
nome do marido; QUE as ajudantes trabalham tanto quanto seus maridos
(Relatório de Inspeção 2009, cód. BW).

As declarações das trabalhadoras prestadas ao Ministério Público do Trabalho vão


todas no mesmo sentido:

QUE é seringueira na fazenda [...]; QUE veio junto com seu esposo; QUE
corta e colhe a seringa; QUE trabalha de 6h às 10h30 e das 13h30 até 17h
[...]; QUE trabalha tanto quanto o marido; [...] QUE não é registrada; QUE
não foi registrada mesmo após a ação da fiscalização; QUE não sabe dizer
porque não foi registrada; QUE não recebe nada pelo seu trabalho; QUE
apenas o marido recebe (Depoimento - trechos selecionados pelo GEFM,
Relatório de Fiscalização 2009, cód. BW, Anexo XV).

QUE trabalha na fazenda [...] desde 01/11/2005; QUE veio acompanhando o


marido [...]; QUE na fazenda falaram com o gerente, Sr. Marco; QUE desde
o início ficou certo que a depoente e seu marido iriam trabalhar na coleta do
látex; QUE nunca foi registrada; QUE há um ano o ‘quarto’ da depoente dói;
QUE o ‘quarto’ é a região próxima à bacia da depoente; QUE a dor aparece
quando a depoente trabalha no painel de baixo da árvore; QUE mesmo com
dor trabalha todos os dias; QUE a depoente chegou a produzir 3000 Kg de
látex por mês; QUE recebe em média R$ 600,00 por mês; QUE presenciou
duas fiscalizações do Ministério do Trabalho; QUE mesmo após as
fiscalizações não foi registrada; QUE a depoente exigiu o registro e ameaçou
ir a Brasília denunciar o caso; QUE o Sr. Eduardo Luís disse que não a
registraria e que a mandaria embora junto com o “povo dela” se ela fosse a
Brasília; QUE o “povo dela” são seus filho [...], além do esposo; QUE além
da depoente, outras mulheres não foram registradas por serem consideradas
ajudantes [...]; QUE quer se tratar (Depoimento - trechos selecionados pelo
GEFM, Relatório de Fiscalização 2009, cód. BW, Anexo XV).

Situação semelhante era encontrada em outros setores econômicos. O relato da


auditora fiscal do trabalho Daniela sobre as primeiras ações de combate ao trabalho escravo
283

da década de 1990 vai nesse sentido: “O trabalho das mulheres era só de cozinheira e elas não
recebiam nada, era embutido no trabalho deles [trabalhadores homens]. A partir da Móvel que
começamos a registrar as empregadas, as cozinheiras”.
Em ação mais recente, de 2010, os auditores-fiscais do trabalho relataram que a
cozinheira não recebia salário do empregador: os próprios trabalhadores é que pagavam 30
reais a ela cada um, a cada quinze dias (Relatório de Inspeção 2010, cód. AV).
Assim como na especificidade da exploração da mulher escravizada nos Estados
Unidos do século XIX, tão bem identificada por Angela Davis, a discriminação de gênero na
escravização contemporânea também obedece à conveniência que sobrepõe gênero, raça e
classe:

A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência:


quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como
desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e
reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas
exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 19).

3.2.4. Subcontratação, intermediação e a erosão de responsabilidades patronais

A temática da “intermediação de mão de obra” através de aliciadores (os


chamados “gatos”) e do artifício das “empreitas”, sempre esteve vinculada à morfologia e ao
debate sobre o trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
A seguinte passagem, extraída de relatório de fiscalização realizado em 2001
descreve um padrão muito encontrado pelo GEFM em todo o período analisado:

Apesar de manter algumas empresas contratadas, o produtor ainda assim


praticava a peonagem, como é conhecido o aliciamento de trabalhadores por
um intermediador de mão de obra conhecido como “gato”, que adota
oficialmente o nome de empreiteiro, para dar a falsa impressão de que se
trata de um contrato de empreitada, com tarefas e períodos de vigência certos
(...), tentando com isso camuflar um contrato de trabalho.
O “gato” contrata a tarefa, diz ao patrão quanto vai custar, recebe o
adiantamento para comprar o plástico das barracas, as passagens dos
trabalhadores que vêm de outras cidades ou regiões, a alimentação, EPI,
utensílios, etc. A partir daí, o “gato” vai tentar tornar seu custo com os
“peões” o mais barato possível, fornecendo-lhes comida de péssima
qualidade, vendendo-lhe equipamentos, ferramentas que são de distribuição
obrigatoriamente gratuita, explorando os vícios do álcool, tabaco, jogos, etc.,
retendo seus salários, induzindo-os a comprarem tudo no seu armazém.
284

Ao término do serviço ajustado, todo o dinheiro que recebe do produtor vem


líquido para o seu bolso, pois na sua matemática, o trabalhador estará com
saldo negativo, nada tendo que lhes pagar (Relatório de Inspeção, 2001, cód.
I, p. 8).

Em sua pesquisa realizada no Pará e Mato Grosso, Figueira (2004, p. 303) conclui
que:

A relação que se instala entre o proprietário do imóvel, o gato, o fiscal e o


trabalhador é mesclada de “estranhamentos” e “alheamentos”. Um
estranhamento perigoso, porque construído numa dessemelhança que
justifica o desprezo, o ódio ou uma atitude permeada de indiferença quanto à
sorte do outro. Enquanto a relação próxima e pessoal entre os prepostos e o
trabalhador pode degenerar até em violência física, a relação entre o
proprietário (ou a direção da empresa que, normalmente, tem sede em outra
região) e o trabalhador pode ficar na esfera do “alheamento”. O dono se
interessa apenas pelo resultado da empreita, não lhe interessam os “detalhes”
das relações com os peões, não presencia os mecanismos de controle, não
assiste às sessões de violência física e não determina que matem os fugitivos.
Se seus prepostos o fazem, nada sabe nem gostaria de saber.

Nas palavras de Bauman (1998, p. 222): “com o aumento da distância, a


responsabilidade pelo outro encolhe e as dimensões morais do objeto se embaçam, até que
ambas atingem um ponto de desaparecimento e somem de vista”.
Neste mesmo sentido, Maria Aparecida de Moraes Silva pontua: "Cria-se um
verdadeiro deslocamento nas relações de exploração, em que o patrão se esconde sob o
envelope do 'gato'. É ele quem aparece como explorador, o responsável pelos salários vis dos
'boias-frias'" (1999, p. 108). Segundo a autora, a consequência contundente desse
deslocamento é o obscurecimento da dominação e da violência de classe:

Além do mais-valor, as relações de dominação engendram necessariamente a


domesticação dos envolvidos. Em se tratando de trabalhadores livres, torna-
se necessário coagi-los ao trabalho, mediante métodos escamoteadores e não
por meio da violência aberta. O papel do 'gato' é uma das formas de se
conseguir esta coerção. Sem a máscara, ele é um indivíduo integrante da
massa de trabalhadores, possuidor da mesma origem de classe e da mesma
condição social. [...] De origem humilde, no entanto, por meio da
identificação ao pólo dominante, estas figuras não se situam nem num pólo,
nem no outro (SILVA, M.A., 1999, p. 126-7).
285

Portanto, nesta pesquisa não viso discutir as definições jurídicas destas


categorias149 (sua licitude, ilicitude ou seus usos fraudulentos), mas sim abordar seus impactos
nas relações sociais. Deste ponto de vista, a terceirização, bem como outras formas de
subcontratação e intermediação de mão de obra, designa práticas que objetivam desonerar o
empresário de custos e riscos da produção, através da transferência ou erosão de
responsabilidades do empresário sobre os direitos dos trabalhadores.
Adotando como ponto central da análise a questão da responsabilidade, podemos
entender que as práticas que envolvem sua transferência e erosão acompanharam toda a
história do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso, compreendendo inclusive
outras facetas de distanciamento (geográfico, jurídico, social) que extrapolam a discussão em
torno da terceirização, subcontratação e intermediação de mão de obra.
Desde a denúncia de Dom Pedro Casaldáliga, a questão do distanciamento
geográfico entre o escravizado e quem o escraviza já havia sido evidenciada como fator que
torna menos visível a própria relação de exploração e dificulta a responsabilização pelas
violações praticadas.
O trecho abaixo explicita a questão do distanciamento que, para o Casaldáliga, era
também “de espírito”:

O restante da população está formado por fazendeiros, gerentes e pessoal


administrativo das fazendas latifundiárias, quase sempre sulistas distantes,
como estrangeiros de espírito, um pouco super-homens, exploradores da
terra, do homem, e da política (CASALDÁLIGA, 1971, p. 3).

Em sua Carta Pastoral de outubro de 1971, o bispo mostra que os fazendeiros da


região do Araguaia geralmente não moravam na região e que os funcionários das fazendas
viviam lá “com intermitência”. E conclui (1971, p. 16) que: “Quando alguma denúncia chega
a mobilizar a opinião pública, os proprietários lavam-se as mãos dizendo desconhecer o que
se passa, colocando toda a responsabilidade sobre gerentes e empreiteiros”.
No relatório de uma fiscalização ocorrida em 1996, os auditores-fiscais relatam
que o proprietário da fazenda

149
Apesar do enfoque aqui adotado em razão dos objetivos específicos desta pesquisa, as distinções jurídicas
entre os institutos consistem num importante debate social e que ganha fôlego nos estudos do direito. Conforme
ressaltam Marcelino e Cavalcante: “Evidentemente, do ponto de vista jurídico crítico, faz todo o sentido lutar
contra as formas mais abjetas e precárias de terceirização, nas quais nem um vestígio sequer de especialização
pode ser encontrado. Porém não há processo de busca de especialização nessa fase atual do capitalismo que
também não se paute pela redução de custos, isto é, que também não resulte numa tendência de precarização e
quebra de resistência dos trabalhadores. Daí a necessidade teórica, mas também política, de se problematizar o
que se chama de intermediação de mão de obra e encarar a terceirização de forma ampla” (2012, p. 339-340).
286

dizia todo o tempo não ter nenhuma responsabilidade sobre os trabalhadores,


já que havia contratado com regime de empreitada com a empresa de
Ernesto, a derrubada em andamento, mas naquele momento não dispunha de
nenhuma via do contrato, que estaria em seu escritório em São Paulo
(Relatório de Inspeção, 1996, cód. X, p. 4-5).

A conclusão da auditoria-fiscal do trabalho, nesse caso, revela a centralidade de


tais dispositivos de elisão de responsabilidades na prática da escravidão:

De todos os fatos expostos, constamos que o Sr. Lauro Andrade, proprietário


da fazenda W (...) descumpre inúmeros dispositivos legais referentes à
relação de emprego e das condições de segurança, higiene e saúde no
trabalho, fere os dispositivos constitucionais [art. 7º CF] e frauda a
legislação, utilizando-se da figura do “gato” para desobrigar-se das relações
trabalhistas e suas consequências (Relatório de Inspeção, 1996, cód. X, p.
13).

No mesmo sentido, podemos citar inúmeros casos, a exemplo da passagem


abaixo, extraída de relatório de 2002:

Os trabalhadores eram recrutados nos Estados de Alagoas, Bahia e


Maranhão, havendo também um grupo de mato-grossenses, de
Rondonópolis, Jaciara, Pedra Preta e Poconé. A sua vinculação aos
aliciadores de mão de obra sem o necessário registro como empregados da
empresa os deixava sem nenhuma garantia trabalhista, inclusive a de serem
recambiados às suas cidades de origem, quando findas as tarefas (Relatório
de Inspeção, 2002, cód. AC, p. 4).

A mesma prática é observada em casos mais recentes, como o constante do


relatório de ação de 2008, que identificou trabalhadores com vínculo empregatício, mas que,
através da fachada da “empreita”, eram levados a acreditar que eram autônomos:

o liame jurídico que os une deve ser regido pelo direito do trabalho, a
começar pela Consolidação das Leis do Trabalho. Entretanto, para não
cumprir suas obrigações trabalhistas em relação aos trabalhadores, o
empregador, ardilosamente, induz os obreiros a acreditarem – pessoas
simples, crédulas, sem instrução e ingênuas – que não são empregados; que
são empreiteiros. Com este ardil o empregador “transfere” a regência legal
dos contratos para o Direito Civil que, no caso, nenhuma proteção oferece ao
trabalhador. Desta forma o mau patrão mal paga os salários, e quando o faz é
sob a forma de “empreitas” e ainda desencoraja os trabalhadores de
reivindicarem seus direitos judicialmente, pois acreditam que não são
empregados.
287

Com esta conduta fraudulenta o empregador consegue degradar os


trabalhadores para um status de não-cidadania (Relatório de Inspeção, 2008,
cód. CB, p. 17).

Como se vê, os empregadores que se utilizam de trabalho escravo têm encontrado,


nas diversas modalidades de intermediação de mão de obra e subcontratação, uma ferramenta
para tentar burlar o direito do trabalho, transferindo suas responsabilidades para uma outra
empresa, para um empreiteiro ou para os próprios trabalhadores, que são tidos por
“autônomos”. Além disso, o intermediário acaba desempenhando um papel de amortecimento
das reivindicações dos trabalhadores, que não têm acesso à pessoa responsável pelo
pagamento de seus salários e cumprimento de seus direitos. É o que se depreende de relatórios
de inspeção como o citado abaixo:

O declarante informou que seu grupo foi avisado pelo “gato” de que não
adiantava reclamar nem procurar a Justiça, porque a fazenda mantinha um
pessoal de frente para combater a Justiça e ela não ir pro fundo da Fazenda e
que se alguém encontrar um fiscal tem que dizer [que] é registrado. Esse
aviso claro atesta a coação exercida sobre os trabalhadores, que não têm
acesso à sede, evitando com isso, encontrar o proprietário, estratégia
utilizada pelos produtores para não ser reconhecido em juízo e firmar a
impressão de que desconhece a exploração praticada nos seus domínios
(Relatório de Inspeção, 2001, cód. ED, p. 8).

Em nossa base de dados, verificou-se que a contratação indireta dos trabalhadores,


através de intermediários, caracteriza a maioria das situações de escravidão contemporânea.

CONTRATAÇÃO DIRETA OU INDIRETA

26% CONTRATO DIRETO

7% INFORMAÇÕES
67% INCONCLUSIVAS
SUBCONTRATAÇÃO E/OU
INTERMEDIAÇÃO

Gráfico 32 – Contratação direta ou indireta nos casos de trabalho escravo – MT (1995-2013)


Fonte: Relatórios de Inspeção do Trabalho – Mato Grosso 1995-2013 (elaborado pela autora)
288

Se quisermos tecer uma comparação, em 2015, a contratação por meio de


intermediários foi observada em 5,1% das relações de trabalho agrícola e em 20% das não
agrícolas, segundo a PNAD. Ao contrário da construção civil, que apresentou a maior
incidência (28,3% dos empregados), o grupamento agrícola apresentou o menor contingente
de trabalhadores (187 mil) contratados por intermediários (PNAD, 2015). Verifica-se,
portanto, que a tendência à contratação indireta não se distribui homogeneamente pelos
diversos tipos de ocupação, tendo alta incidência nos casos de exploração mais extremada da
força de trabalho.
A relação entre as contratações por intermediários e o agravamento das condições
de trabalho tem merecido importantes estudos no tema da “terceirização”. Afinal, como
apontam Paula Marcelino e Sávio Cavalcante, no Brasil a terceirização “tem um lugar preciso
na estrutura do mercado de trabalho: nos últimos vinte anos de nossa história, ela se tornou o
mais importante recurso estratégico das empresas para gestão e redução dos custos com a
força de trabalho” (MARCELINO; CAVALCANTE, 2012, p. 338). A lógica da terceirização,
explicada pelos autores, é a mesma dos diversos arranjos de “contratação indireta”
identificados em nossa pesquisa documental:

Toda vez que uma empresa resolve terceirizar, o que ela faz é transferir para
outra os riscos e parte dos custos com a contratação da força de trabalho (os
trabalhadores, os terceiros). Isso porque o seu próprio contrato deixa de ser
trabalhista (empresa versus trabalhador) e passa a ser comercial ou civil
(empresa versus empresa). Tal acontece se a empresa subcontratada é ou não
especialista na função, se o contrato dela com seus trabalhadores é ou não
por tempo indeterminado e se a relação entre contratante (ou tomadora) e
subcontratada (ou terceira) é ou não duradoura (MARCELINO;
CAVALCANTE, 2012).

Ao analisarem a epidemia de terceirização das duas últimas décadas no Brasil,


Druck e Antunes pontuam:

evidencia-se, através da terceirização, condições de trabalho e salário que


definem trabalhadores de primeira e segunda categorias, com porta para o
trabalho análogo ao escravo, e a discriminação se dá não apenas por parte da
empresa contratante, mas também entre os próprios trabalhadores
contratados diretamente e os chamados ‘terceiros’, cuja denominação já
revela a distinção ou a condição à parte, de fora, externa (2014, p. 17).

No referido estudo, as diferenças apontadas entre os trabalhadores diretos e


terceirizados seriam que estes recebem treinamentos piores, têm acesso reduzido a instalações
289

da empresa (refeitórios, vestiários etc.), são submetidos jornadas de trabalho mais extensas e
intensivas, muitas vezes são revistados na entrada e saída da empresa, enfrentam um grau de
rotatividade maior em seus postos de trabalho, recebem salários mais rebaixados e são mais
expostos a fatores de risco a sua saúde no ambiente de trabalho.
Em seu estudo sobre a precarização e terceirização do trabalho na indústria da
Honda instalada no Brasil, no contexto da reestruturação produtiva, Paula Marcelino (2006, p.
103) também aponta a discriminação como uma aliada do capital na divisão entre os
trabalhadores. Segundo a pesquisadora, “Perdas sucessivas de direitos e divisão entre os
trabalhadores são processos que se alimentam um do outro”150.
Por outro lado, as estratégias que as instituições públicas responsáveis pela
política de erradicação do trabalho escravo no Brasil vêm adotando, em casos cada vez mais
frequentes, o enfoque das cadeias produtivas, na responsabilização pelo ilícito de submeter
trabalhadores a trabalho análogo a de escravo.
A responsabilidade da empresa tomadora pela gestão da saúde e segurança de
todos os trabalhadores que atuem em seu ambiente de trabalho também tem servido de
amparo para o GEFM identificar o responsável pelo ilícito, levando-se em conta a
inidoneidade financeira de pessoas jurídicas utilizadas para reduzir custos de produção às
expensas dos direitos dos trabalhadores através de terceirizações fraudulentas.
Trata-se de tentativas de lançar mão da responsabilidade jurídica para compensar
a erosão da responsabilidade moral produzida pelo que Bauman (1998) chamou de produção
social da distância. Em Modernidade e holocausto, o autor demonstra justamente que:

Entre as conquistas societárias na esfera da administração da moralidade é


preciso mencionar: a produção social da distância, que ou anula ou
enfraquece a pressão da responsabilidade moral; a substituição da
responsabilidade moral por responsabilidade técnica, o que efetivamente
encobre a importância moral da ação; e a tecnologia da segregação e
separação, que promove a indiferença pela provação do Outro, a qual de
outra forma seria submetida a avaliação moral e a uma resposta moralmente
motivada (BAUMAN, 1998, p. 229).

150
No estudo de Paula Marcelino na Honda, a quase totalidade dos trabalhadores terceirizados da logística que
foram entrevistados identificou a discriminação como o efeito mais perverso da terceirização do setor. Desta
forma, “o que a Honda consegue com a terceirização de atividades não se restringe, contudo, à redução de
custos. Os trabalhadores que já estavam isolados pela forma de produção e cooptação nas indústrias se dividem
ainda mais com a terceirização. Um jogo intrincado de gratificações e punições busca tornar o trabalhador um
agente cooperativo com os interesses da empresa. Assim, o capital combina, ofensivamente, coerção, força e
consentimento (Gramsci, 1989). Nesse processo, a discriminação joga um papel essencial” (2006, p. 103).
290

As recentes alterações legislativas no sentido de alargar as hipóteses de


terceirização legal do trabalho reforçam a tendência de tornar cada vez mais distantes e cada
vez menos acessíveis e identificáveis os responsáveis pelas decisões que afetam as
coletividades. E, nas palavras de Bauman, “com o aumento da distância, a responsabilidade
pelo outro encolhe e as dimensões morais do objeto se embaçam, até que ambas atingem um
ponto de desaparecimento e somem de vista” (1998, p. 222).
.

3.3. Ser e não ser livre: dinâmicas de mobilização e imobilização dos trabalhadores

Um dos maiores achados empíricos desta pesquisa tem sido o resgate, no discurso
dos trabalhadores que viveram situações de escravidão, da contradição inerente à exploração
da força de trabalho sob o contratualismo fundado na extração da mais-valia. A contradição,
que a relação contratual esconde, é revelada com clareza pela história oral.
Segundo Miaille (2005, p. 186), a lógica dialética, utilizada em lugar da lógica
formal própria do mundo jurídico, pode produzir o efeito corrosivo de mostrar “a
contingência do direito e o conteúdo real das suas disposições”.

A partir do momento em que a lógica dialéctica serve de quadro a uma


reflexão jurídica, os conceitos jurídicos deixam de ser categorias universais e
imutáveis (o Estado, o sujeito de direito, o contrato), passam a ser conceitos
concretos, com um conteúdo rico de múltiplas determinações nascidas de
certas estruturas históricas (MIAILLE, 2005, p. 183).

Portanto, umas das principais tarefas desta pesquisa residiu em buscar a


concretude das relações de trabalho para reanimar os problemas enfrentados pelo debate
jurídico com as contradições do real.
Neste item, faço um estudo das contradições da liberdade capitalista a partir das
narrativas de trabalhadores que vivenciaram a escravidão contemporânea. A condição de
sujeito e objeto, livre e não-livre destes sujeitos (e de toda a classe-que-vive-do-trabalho) é o
fio condutor através do qual buscamos compreender como as novas relações de trabalho
escravo imobilizam e mobilizam os indivíduos, para que permaneçam na exploração.
291

3.3.1. Ambivalências do sujeito livre

“Você se sente livre e não é livre”. Foi com essas palavras que Luís, um
trabalhador que já havia passado por duas situações de trabalho escravo, descreveu-me a
ambiguidade das situações que tinha vivido. E explicou: Porque se você sai daqui, você tá
saindo daquele sofrimento, de tudo... corre o risco de morrer na porta da sede, entendeu?”.
No caso dele, a liberdade de ir e vir era restrita, pois sua vida estaria sob ameaça caso
decidisse contrariar o patrão e abandonar a fazenda.
No relato já citado de Arthur, outro trabalhador que vivenciou situação de
servidão por dívida e condições extenuantes e degradantes de trabalho, mas sem ter sofrido
ameaças de morte ou violência física direta, a contradição de ser e não ser livre também
apareceu no aspecto econômico da coerção:

A escravidão não é só de corrente, não é só 'se você não trabalhar você vai
morrer hoje', não é só o preso que tem que trabalhar. Mesmo estando soltos
estamos presos, estamos presos no trabalho, porque se a gente sair vai
morrer de fome. A gente é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições para
não deixar a família passar fome.

O caráter coercitivo da permanência no trabalho já está presente no momento


inicial de contratação de muitos migrantes que deixam suas famílias em busca de qualquer
trabalho para poderem sustenta-las. É o que mostra o depoimento de um trabalhador rural
entrevistado no documentário Aprisionados por promessas: “A gente sente muito de sair de
casa e deixar a família da gente sofrendo. A gente sai obrigado, não sai porque quer sair. É
ruim sair de casa”.
O consentimento desses trabalhadores vulneráveis às propostas de trabalho dos
aliciadores é um ponto central da forma contemporânea da escravizar. O ser humano dotado
de liberdade de locomoção que “sai obrigado” de sua casa, premido por sua miséria e
incentivado pela fraude. Trabalhadores são escravizados através de um contrato consensual
que esconde as coerções econômicas da miséria vivida por suas famílias e das relações reais
de produção em que se inserem. Quem “sai obrigado” para um trabalho e, uma vez
trabalhando sob a forte exploração, ainda “é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições”,
decerto não é obrigado pelo direito. E nesta contradição reside a força da escravidão
contemporânea: ser juridicamente livre e economicamente escravo.
292

Nas palavras de um trabalhador entrevistado pelo GEFM em 2007, em seu caso


“não há impedimento para ir embora, [...] não vai embora porque ainda não recebeu e porque
precisa do emprego” (Relatório de Inspeção 2007, cód. CF, p. 52).
O dado revelado por sua fala é poucas vezes lembrado, mas se fez presente em
nossa pesquisa empírica e documental: para o trabalhador informal, indocumentado,
permanecer no trabalho escravo é, muitas vezes, a única esperança de poder confrontá-lo
exigindo seus direitos, uma vez que, ao deixar o posto de trabalho, torna-se mais difícil
constituir provas de seu vínculo empregatício e praticamente remota a chance de reaver os
valores dos salários atrasados que lhe são devidos.
Também a proximidade da morte é revelada no discurso dos trabalhadores que
viveram situações de escravidão contemporânea:

Giselle: Você se sentiu escravizado?


Luís: Vixe! Deus me livre. Só de eu querer sair de lá e não poder sair...
Giselle: O que você sentiu que te prendia lá? Por que você não podia sair?
Luís: Uai, porque se eu saísse, a maioria tinha que sair de noite, né, e de
noite não podia porque tinha que passar na sede. Foi o único lugar que nós
passou vendo, né….
Giselle: Não tinha como sair....
Luís: Não tinha. E na sede tinha 6 fiscal, só na sede tinha 6.
Giselle: Tinha os fiscais armados... [o trabalhador já havia relatado sobre os
fiscais armados]
Luís: Fiscalizando!
Giselle: Tinha a feira que vocês ficavam sempre devendo.... [o trabalhador já
havia explicado sobre o mecanismo de endividamento através das “feiras”]
Luís: É. E se não conseguiram descobrir a arma deles, se eles não pegou, nós
de ver nós viu. Só sei que foi muito difícil. Escravidão pra mim é muito
horrível. Nós não chegou a ter como era no século XX que eles falam…ser
amarrado, ser batido, chicoteado no tronco. Só do que eu passei foi muito
horrível, ainda mais o que eles passaram...
Giselle: Qual o sentimento assim que você tinha, você lembra?
Luís: Se lembro muito bem.
Giselle: Você se sentia como?
Luís: Eu me sentia... prisioneiro!
Giselle: Você se sentia prisioneiro.
Luís: Eu me sentia prisioneiro! Nós mesmo tava com um pensamento muito
horrível, que ia acabar acabando a nossa vida.

No discurso dos trabalhadores entrevistados, a permanência no local de trabalho


apesar das dívidas, da exaustão e da falta de perspectiva aparece frequentemente como única
alternativa à morte iminente: é melhor “ficar ali trabalhando do que sair dali e morrer antes”, é
melhor exaurir a própria vida num trabalho extenuante do que ter a vida tirada por outra
pessoa.
293

A fala de um auditor fiscal entrevistado no documentário “Aprisionados por


promessas” revela as contradições da escravidão contemporânea:

Lidar com o trabalho escravo é lidar com uma cultura patronal de quinhentos
anos no Brasil. Até hoje eles lidam com o trabalhador como algo
descartável, como um objeto, um mero insumo no processo produtivo, não
como sujeitos de direito.

Por um lado, a discrepância entre a liberdade do status jurídico dos trabalhadores


e sua servidão de fato é percebida com indignação pelos atores que combatem o trabalho
escravo contemporâneo e por uma parcela considerável da sociedade; por outro lado, muitas
vezes esta contradição é entendida como um anacronismo, um atraso cultural, um
conservadorismo das elites nacionais, ofuscando que a verdadeira força da escravidão
contemporânea reside justamente no amálgama entre o formalismo jurídico da liberdade e as
estruturas e práticas de servidão. Nas palavras de Pavarini (2006, p. 264): “Se o contrato de
trabalho pressupõe formalmente ‘empregador’ e ‘prestador’, enquanto ‘sujeitos livres’ num
plano de paridade, a relação de trabalho determina, ao contrário, a necessária subordinação do
proletário ao empresário”.
Estamos diante da íntima relação entre a economia capitalista, os dispositivos de
segurança e o liberalismo, o qual, nas palavras de Foucault151 (2008, p. 64), consiste em “um
poder que se pensa como regulação que só pode se efetuar através de e apoiando-se na
liberdade de cada um”.
Esse ponto fundamental, que é a própria forma de escravizar da
contemporaneidade, não pode ser enfrentado em sua integralidade através do debate jurídico.
Daí a importância das fontes orais, que revelam os significados mais profundos destas
relações sociais, evidenciando a realidade da contradição sobre a qual a exploração se
estrutura, se atualiza e se mantém.
A manipulação da vontade de sobrevivência, através do abuso da vulnerabilidade
social das pessoas é a engrenagem que opera na nova escravidão, desde o momento da
arregimentação dos trabalhadores, passando por todas as disputas, violências e negociações
durante a relação de trabalho e fazendo-se presente até no próprio momento de saída do
trabalho e nos inúmeros cálculos que informam as decisões desses indivíduos sobre suas

151
Foucault (2008, p. 61) aponta que, diferentemente do sistema legal (soberania) e dos mecanismos
disciplinares, os dispositivos de segurança não estabelecem proibições e obrigatoriedades. Para o autor, “a lei
proíbe, a disciplina prescreve”, mas a segurança nem proíbe nem prescreve: ela responde a uma realidade de
forma a anular, limitar, frear, a regular essa mesma realidade.
294

melhores chances de garantir o não perecimento de sua vida e de seus entes queridos. Tanto
que não é raro encontrar trabalhadores submetidos a relações escravizantes dizendo que
trabalhariam para o mesmo empregador de novo pois não têm planos de futuro (Relatório de
Inspeção 2006, cód. CZ, p. 31-2).
Kelly, cortadora de cana que entrevistei, disse que as pessoas que faziam horas
extras na usina o faziam porque queriam. Segundo ela, “o escravo quem faz é a gente”:

É que nem eu falei, o escravo quem faz é a gente. Sabia? Assim, se estou
trabalhando e aqui encerrou minha parte, mas se tem aquele pedacinho ali e
você chega: Kelly, aqui foi 10 centavos, vou pagar 30 para você tirar aquele
arroio de cana. Eu vou. Aquele estava de 10 e esse a 30 centavos, vou ganhar
20 centavos acima. Então, quem faz escravo da gente é a gente mesmo. Não
é dizer: você vai tirar! Comigo nunca aconteceu. Eles chegavam assim:
Kelly, você quer trabalhar? Eu falava: ah, hoje não quero trabalhar mais não.
Chega, já estou cansada! Eles não vão brigar. Nos outros dias, eu ia e
pegava, tirava cana e ganhava dinheiro.

As novas formas de violência e exploração dos trabalhadores, como toda forma de


dominação, vêm também acompanhadas de seus discursos legitimadores, que responsabilizam
os explorados por sua própria exploração, enaltecendo o papel social dos empregadores e uma
ilusória liberdade da classe-que-vive-do-trabalho. Esses discursos acentuam-se nos anos mais
recentes, em que a tônica não só do setor patronal mas também do próprio governo federal
passa a ser “reduzir custos cortando direitos sociais”. Foi o que relatou Joaquim, um
sindicalista que atua em Mato Grosso há vinte anos e trabalhou como educador sindical,
percorrendo todo o estado. Para ele, a conscientização dos trabalhadores sobre a exploração
piorou a partir de 2015, o que acaba também por restringir o poder de atuação dos sindicatos:

Atualmente a gente vê que tem uma maquiagem. Porque quando você


começa a ver a forma de tratar o trabalhador como “colaborador” e não
“trabalhador”, é um afago para o trabalhador começar a se sentir uma coisa
que ele não é. Ali já começa a aliciar o trabalhador a achar que ele é uma
coisa que ele não é: um amiguinho. E aí começa a entrar com outras coisas.
Hoje estive numa palestra sobre um aplicativo e o cara começou a falar “a
gente é que constrói o nosso salário”... Ele coloca responsabilidade de
empresa na conta do trabalhador, que ele tem que pensar que se o patrão
crescer, ele está bem, quando o patrão está bem ele tem salário. E o pessoal
fica encantado com isso. [...] Aí quando a gente vê uma situação de trabalho
escravo ele nem percebe. Ele esqueceu a situação para onde ele está
caminhando. Antes a gente via a mídia partindo para cima. Hoje o que se
pensa é “vamos desconstruir essa história, essa coisa que parecia um bicho
papão, vamos colocar o que era perigoso como algo sem problema,
flexibilização em nome de aumentar vaga de emprego”... E isso foi
dando uma flexibilidade também aos olhos da própria sociedade, do
trabalhador, e ele foi ficando mais manso, mais brando em relação a essa
295

situação. Porque quando ele ficava mais atento e não se enjeitava a essas
coisas, a gente tinha um poder de atuação muito maior. Hoje é contado o
número de trabalhadores que vai com a gente fazer denúncia. Às vezes
está quase debaixo de chicote e não quer se comprometer, colocar a
família em exposição, não quer aparecer, fica olhando para os lados.

Com o neoliberalismo, a vulnerabilidade social deixa de ter um equacionamento


público e coletivo, passando ao encargo privado de cada indivíduo152. E é neste contexto que
o trabalhador vai sendo responsabilizado não só pela sua miséria, mas também pela própria
exploração a que é submetido. No caso limite, os trabalhadores se sentem responsáveis
inclusive pela própria escravização.

3.3.2. Livre para vir e para ir

Na lógica do trabalho escravo disciplinado do capitalismo consolidado, o


aliciamento ou a livre contratação substituem a captura e o sequestro na entrada para o
trabalho escravo. Em nossa base de dados, como vimos, 97% dos casos de trabalho escravo
constatado pelo GEFM em Mato Grosso entre 1995 e 2013 apresentaram “recrutamento não
forçado” (através de contratos com certo grau de consentimento e variados graus de
promessas enganosas), não havendo nenhum caso de recrutamento forçado153 na base de
dados da inspeção do trabalho em Mato Grosso. Portanto, até mesmo os casos de maior
violência direta da década de 1990 foram caracterizados pela forma não violenta de “entrada
no trabalho”.
Já as formas de “saída do trabalho”, estas sim, apresentavam elementos de
coerção e violência física e direta até a década de 1990. Porém, vão assumindo dinâmicas
novas nos anos recentes.
Assim, transforma-se a forma predominante com que os trabalhadores se retiram
da relação que os escraviza: a desistência (abrir mão de seus direitos para poder sair do
trabalho degradante) substitui a fuga (sair do trabalho sob o risco de ser assassinado ou
capturado e punido).

152
“O Estado lava as mãos à vulnerabilidade e à incerteza provenientes da lógica (ou da ilogicidade) do mercado
livre, agora redefinida como assunto privado, questão que os indivíduos devem tratar e enfrentar com os recursos
de suas posses particulares. Como sustenta Ulrich Beck, agora se espera dos indivíduos que procurem soluções
biográficas para contradições sistêmicas” (BAUMAN, 2005, p. 67).
153
Fazer ressalva quanto aos casos de recrutamento prometendo levar trabalhador para certa localidade e depois
leva-lo para outra, que se aproxima de um caráter mais forçado nos moldes da metodologia adotada pela OIT.
296

De forma semelhante, transmuta-se a forma pela qual a exploração se realiza na


duração do vínculo. Não mais de forma impositiva e até à revelia do trabalhador, mas agora
mobilizando sua vontade através de uma espécie de “chantagem da miséria”. A interpelação
do sujeito torna-se essencial na morfologia do trabalho escravo da atualidade.
No primeiro ano de atuação do Grupo Móvel no Brasil, em 1995, o relatório dos
auditores fiscais do trabalho relata, num dos casos de trabalho escravo constatados, que o
empregador ameaçava de morte os trabalhadores que fugiam da fazenda e prometia
recompensa para quem encontrasse os fugitivos (Relatório de Fiscalização, 1995, cód. J).
O depoimento de um trabalhador resgatado pelo Grupo Móvel em Mato Groso em
1998 expõe o contexto de uma fuga:

Comprei das mãos dele [o gato] uma motosserra, pelo valor de 850,00 reais e
trabalhei num time de 5 homens por um mês e 4 dias. Fizemos 42 alqueires
de derrubada. Durante este tempo peguei alguma coisa na cantina que não
deveria custar mais que 20,00 reais. Quando fomos acertar, ele me disse que
não tinha saldo, que o que trabalhei não foi suficiente para comprar a
motosserra e não me pagou nada. Um companheiro de time (...) tinha saldo
de 500,00 reais, de um outro serviço que tinha feito, mais 5 diárias a 30,00
reais para receber, mas o fiscal [da fazenda] (...), apontou o revólver nele e
ameaçou de matá-lo. Eles não pagaram ninguém no nosso time. Os outros
ficaram na fazenda, mas eu saí, fugido, com o J., porque estava com medo
que eles iam matá-lo. Saímos a pé, escondendo cada vez que passava um
carro, com medo de ser eles, atrás de nós. Na estrada, paramos o ônibus da
linha, contamos o nosso caso, e eles nos trouxeram, sem nós pagarmos
passagem, porque não tínhamos recebido (Relatório de Fiscalização, 1998,
cód B, p. 25).

Em ação fiscal realizada no ano de 2001 em Mato Grosso, os auditores também


relatam situação de fuga:

Todos os trabalhadores contraíram dívidas no barracão do ‘gato’, inclusive


comprando Equipamento de Proteção Individual - EPI, como botas e
ferramentas de trabalho (foice, esmeril e lima). Nas entrevistas, declararam
não ter liberdade de romper o contrato de trabalho pois eram impedidos
diante das ameaças feitas pelos ‘gatos’. Segundo o depoimento dos próprios
trabalhadores, os mesmos eram ameaçados de espancamento caso saíssem da
fazenda, que isto só poderia ocorrer ao término do serviço, com previsão
para encerramento em 75 (setenta e cinco) dias. Porém, após alguns dias de
trabalho, em meados de fevereiro de 2000, dois traba1hadores (...) fugiram
da fazenda em direção â Cidade Nova Xavantina-MT para pedir ajuda à
Polícia local. Os gatos (...) encontraram os dois trabalhadores já na cidade e
os conduziram de volta para o acampamento, em uma camioneta branca,
onde foram espancados e chutados na região torácica (Termo de Declaração
anexo) (Relatório de Fiscalização 2001, cód. A, p. 5-6).
297

Outro relatório, do ano de 2002, relata o caso de 46 trabalhadores que fugiram da


fazenda para fazer a denúncia após o espancamento de um dos trabalhadores. Eles haviam
cobrado o pagamento dos salários atrasados e, desde então, passaram a sofrer ameaças graves,
inclusive de que seus barracos seriam incendiados (Relatório de Fiscalização 2002, cód. G).
Em 2003, houve caso de trabalho escravo em que se constatou agressão a
trabalhadores que manifestavam vontade de ir embora da fazenda e ameaça de agressão a
quem quisesse sair antes de completar o serviço (Relatório de Fiscalização 2003, cód. W).
Ainda em 2003, houve fiscalização que constatou o assassinato de um trabalhador que queria
fugir da fazenda:

A impossibilidade de qualquer trabalhador sair da fazenda devendo aos gatos


ficou evidenciada através das declarações de vários trabalhadores. O
assassinato de um que ousou fugir sem honrar a dívida ilegal comprova que
nenhum trabalhador contratado através da figura ilegal do ‘gato’ era livre
para coisa nenhuma (Relatório de Inspeção 2003, cód. D, p. 7).

Já nos relatórios de anos mais recentes, escasseiam os relatos de fugas tentadas,


realizadas, punidas ou mesmo evitadas mediante ameaça.
Vão se delineando novas dinâmicas. O caso de trabalhadores que foram embora
do trabalho apesar de não terem recebido o salário dos últimos três meses é contado em
relatório de 2009. Nas palavras dos auditores fiscais responsáveis: “Restou incontroversa (...)
a constatação de que os salários dos trabalhadores estão atrasados (...) há mais de três meses,
o que levou a maior parte dos trabalhadores a deixarem as Fazendas” (Relatório de
Fiscalização C). O gerente do referido empreendimento, em seu depoimento prestado à equipe
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, confirmou que todos os trabalhadores estavam sem
receber salários por três meses e, ainda, que “o preparo dos alimentos era feito por uma
cozinheira, mas ela deixou o serviço por falta de pagamento” (Relatório C, p. 13-14).
O contrário também ocorre: a falta de pagamento das verbas devidas fazendo com
que os trabalhadores não possam sair do local de trabalho. Em ação fiscal realizada em 2009,
a equipe do GEFM pontuou que “os trabalhadores continuavam na fazenda, mesmo em
condições ruins, porque não tinham para onde ir e mantinham a esperança de receber o
pagamento” (Relatório de Inspeção 2009, cód. F, p. 89). Em seu depoimento, um dos
trabalhadores informou:
298

que há 3 semanas havia uns 20 trabalhadores na obra passando necessidade


de comida; que o depoente não largou o serviço com medo de não receber
pelo trabalho já feito (Relatório de Inspeção 2009, cód. F, p. 84).

Já em outra operação do mesmo ano de 2009, a equipe de fiscalização relatou:


“Os trabalhadores reclamavam que o empregador já queria que eles tivessem saído da
propriedade mesmo sem receber nada” (Relatório de Fiscalização DM, p. 11).
Num dos casos de trabalho escravo constatados em 2010, há relato sobre
trabalhador que “foi embora” da fazenda por ter passado mal com o manuseio de agrotóxicos
(Relatório de Fiscalização, 2010, cód. K).
Os anos recentes continuaram apresentando vários casos em que trabalhadores
quiseram sair da relação de trabalho, mas não puderam ir embora do local do serviço, seja por
não provimento de meio de transporte, recursos financeiros insuficientes para custeio da
viagem (muitas vezes em razão de salários retidos pelo empregador) ou por mecanismos
fraudulentos de endividamento. Além disso, há diversos relatos de trabalhadores que
abandonaram o trabalho em razão das más condições oferecidas, não sendo raro eles terem
que arcar com alto e ilegal “custo de saída” do trabalho (consistindo no transporte até cidade
de origem, na maior parte dos casos, mas abarcando também situações em que a empresa
cobrava um valor em dinheiro para autorizar a saída do trabalhador ou para “liberar” seus
documentos da rescisão).
Num relatório de 2013 encontramos os seguintes depoimentos:

que nunca recebeu e nunca presenciou ameaças (...); que vários outros
trabalhadores já abandonaram os serviços no local em razão das más
condições para o trabalho e o preço pago pela madeira que é pouco
(Relatório de Inspeção 2013, cód. BD, p. 32).

que vários outros trabalhadores já abandonaram os serviços; muitos por


causa dos alojamentos; que tem trabalhadores que chegam e vão embora no
mesmo dia, por conta das más condições de alojamento e trabalho (Relatório
de Inspeção 2013, cód. BD, p. 35).

Os depoimentos de trabalhadores resgatados em 2012 também apresentam


situações muito recorrentes:

que tem que fazer o serviço completo antes de ir embora, que se quiser ir
embora tem que pagar a própria passagem, mas que não tem dinheiro e quer
receber pelo salário (Relatório de Inspeção 2012, cód ES, p. 9-13).
299

que não teria dinheiro para pagar a passagem se quisesse voltar para casa
(Relatório de Inspeção 2012, cód. ES, p. 9-13).

Os mecanismos de mobilização do consentimento e da “liberdade de


deslocamento” dos trabalhadores nas novas práticas escravização se dão tanto nas fraudes e
abusos realizados no aliciamento (em que recrutadores se aproveitam da vulnerabilidade
social dos trabalhadores para os convencerem a ingressar no trabalho, lançando mão inclusive
de falsas promessas) quanto nas duras condições e metas de trabalho impostas (quando os
trabalhadores são instados a escolher se saem do trabalho e caem no desemprego ou se
aceitam condições degradantes, intensificação do trabalho, riscos à saúde, rebaixamento de
salários e agravamento geral das condições laborais).
Em lugar da figura do pistoleiro que “caça peão fujão”, temos hoje situações de
opressão com roupagem de liberdade, conforme demonstra o depoimento de um cortador de
cana retirado de situação de escravidão pelo GEFM em 2005:

QUE no primeiro sábado do mês de junho o Cleber [fiscal de turma] reuniu


os trabalhadores no campo (...), que achava que os peões estavam fingindo
de doente para não trabalhar, e que se continuassem a fazer isso seriam
demitidos; QUE se houver três reclamações de um trabalhador num dia, este
trabalhador (...) é colocado de castigo no carreador (estrada de escoamento
da cana) e (...) perde a produção daquele dia, além da maior diária que
conseguir no mês a título de pagamento de multa; QUE na última semana
de maio este fiscal Cleber reuniu os trabalhadores no campo, no final do
corte da cana, dizendo que estava para dizer uma palavra e que queria ser
ouvido por todos. Todos ficaram em silêncio ouvindo o fiscal Cleber dizer
que a cana deveria ser cortada rente com a terra e que as folhas (palhas) da
cana deveria ser tirada duas vezes e que ficassem bem afastadas dos montes
de cana e que ele estava notando que os trabalhadores estavam aborrecidos
com suas exigências, mas que as exigências dos fiscais [de turma] eram as
exigências do gerente e que ele, Cleber, trabalhava há muito tempo na
fazenda e não queria perder o emprego, e que quem quisesse ir podia ir,
pois ele tinha ordem para buscar no Maranhão quantos trabalhadores
quisesse, e que o declarante e seus companheiros não faziam falta; QUE
se sente tão humilhado (...) que por muitas vezes sentiu vontade de
chorar (Relatório de Inspeção, 2005, cód. P, p. 258).

A transição para uma nova forma de coerção é percebida pelos agentes que atuam
no enfrentamento do trabalho escravo. Numa operação que retirou 87 trabalhadores de
condição “análoga a de escravo” em 2006, a equipe de fiscalização teceu as seguintes
considerações sobre a coerção exercida sobre os trabalhadores:

Na fazenda (...), a coerção é causada pela falta de pagamentos mensais, que


ocasionavam a dívida no comercio da cidade (...). A coerção moral age no
300

ânimo do trabalhador, desencorajando-o de por fim à relação de emprego


que lhe é prejudicial. A coerção moral é tão virulenta quanto a outra, pois
consegue, usando outro viés, o mesmo objetivo, isto é, manter o trabalhador
subjugado; porém, com uma agravante: por mascarar a violência, convence
não poucos que “ali estão porque querem” e que, se “desejarem”, poderão
sair quando “bem entenderem” (Relatório de Inspeção, 2006, cód. FJ, p. 9-
10).

A pesquisa mostrou diversas formas de coerção eficazes no intento de “manter o


trabalhador subjugado”, nos termos colocados pela equipe de fiscalização no relatório acima.

3.3.3. Do fugir ao “não aguentar”

A fuga como ação política pressupõe que o fugitivo tenha para onde ir ou, pelo
menos, que ele perceba o “dentro” como mais perigoso que o “fora”. A ubiquidade do perigo
do desemprego estrutural e da concentração fundiária, aliada à transição da lógica do
extermínio para a do “deixar morrer” nas violências das relações de trabalho, acabam por
neutralizar, em grande medida, a fuga como ferramenta de luta.
Priscila, uma trabalhadora que vive desde pequena em Mato Grosso e já passou
pela escravidão contemporânea, assim descreveu como é viver uma situação de trabalho
degradante:

Na minha opinião, assim, pra te falar a verdade, eu nem sei responder isso
(risos). Porque quando a pessoa tá nessa situação é, simplesmente,
porque não tem saída né? Não tem pra onde ir. Fica ali se sujeitando.
Pensa assim: pra onde que eu vou? Se for pai de família, não vê os filhos, e
fala: eu tenho que dar o de comer pros meus filhos. Muitos, naquela época
[2005], naquela região [de Santa Terezinha, Vila Rica e Confresa], o povo
trabalhava muito, mas diminuiu bastante. As pessoas não tinha nada, nada
pra oferecer aos filhos. Então, trabalhava ali, muitas vezes, até mesmo só
pela comida. Pra não ver os filhos passar fome. Entendeu?

Na continuação da conversa, Priscila explica:

Giselle: Quando você sente que é obrigado a se sujeitar a uma situação ruim,
porque não tem saída, isso vai causando uma coisa ruim na pessoa?
Priscila: Vai. É claro que causa né?
Giselle: O quê?
Priscila: Causa aquela sensação de desprezo, de tristeza né: ah, se eu tivesse
numa situação melhor, não tava aqui, eu ia procurar um lugar melhor. Claro
que a pessoa pensa isso. Mas muitas vezes a pessoa não tem alternativa,
vai aguentando
301

A temática do “ir aguentando” as condições degradantes está muito presente nas


narrativas dos trabalhadores que vivenciaram o trabalho escravo contemporâneo.
Inevitavelmente, as mutações nas formas de dominação se perfazem nos dois
lados da relação de trabalho. Num contexto em que a regra é a pistolagem e o assassinato de
trabalhadores desobedientes, fugir é uma tática comum na busca pela autopreservação. Já no
contexto do consumo (e não do extermínio) da vida dos trabalhadores explorados, a tática
corrente é “ir aguentando” enquanto for possível. Calcular permanentemente os danos
sofridos naquela relação laboral (doenças, sequelas, sofrimentos, desagregação familiar,
abusos, etc.) e os danos que se sofreria fora dela (fome, doenças, desagregação familiar,
abusos, etc.) passa a fazer parte do metabolismo do indivíduo na relação laboral.
Um trabalhador entrevistado pela equipe de fiscalização em 2002 revelou que na
fazenda em que estavam laborando (capina do algodão), quem reclamava os direitos ou
expressa opinião era demitido. E completou: “por isso a gente se humilha e não se entrega”
(Relatório de Inspeção 2002, cód. EC).
Aguentar as piores condições de trabalho e vida, aguentar os agravos à saúde e o
sofrimento, aguentar a violação dos direitos, aguentar calado as injustiças. “Aguentar” é, na
verdade, o maior dos imperativos:

Giselle: Já viu o pessoal ficar muito doente mesmo, de não conseguir ir


trabalhar?
Adriano: Olha, muito assim de não trabalhar, não. Porque, na verdade, o
trabalhador rural, mesmo sentindo dentro dele que não aguenta mais
trabalhar, ele precisa. Na época, ninguém tinha a carteira assinada, com a
garantia de receber um benefício do governo. Então, mesmo que seja na
marra, sabendo que tem mulher e filho, ele tinha que ir. Isso eu já vi.
Pessoal chegar: nossa, trabalho na marra, só para sobreviver. Você via
no semblante quando a pessoa não tem mesmo condição, sem aguentar
trabalhar. Ia porque tinha que ir.

“Aguentar” passar por cima da própria saúde, sobrevivendo condições extremas,


passou a ser um atributo valorizado nos trabalhadores, que são incentivados a se
autoexplorarem e “aguentarem” o insuportável mais do que os seus colegas, através de
cláusulas não escritas.

Sebastião: O pagamento era 2 mil, que eles falavam. 2 mil na soja e, quem
aguentasse o contrato até o final, ganhava salário por fora de bônus.
Giselle: E eles falavam assim “se aguentar” mesmo?
Sebastião: Sim. Eu consegui.
302

Giselle: Quantos conseguiram?


Sebastião: A maioria, 36, não conseguiram, foram embora. 4 ficaram até o
final. Lá passava motorista, operador, tudo foi embora. Não aguentava. Era
puxado, mas eu não queria sair.
Giselle: Como você aguentava?
Sebastião: Passaram mal 36, pessoal não aguentava.
Giselle: Estavam há quanto tempo?
Sebastião: O pessoal que foi embora? Passava uma semana e não
aguentava, de tão puxadas as horas.
Giselle: O que eles falavam, você lembra?
Sebastião: Eles falavam que era pra vir embora. Pararam de comer,
ficavam com sono.
Giselle: Devia ficar muito mal a pessoa, doente, trabalhando muitas horas.
Sebastião: Era mais sono. Não conseguiam dormir. Sono, direto. 4:30 da
manhã até 1 hora da manhã trabalhando direto. Almoçava, não tinha
descanso. Terminava de almoçar, jogava a marmita e trabalhava de novo
descarregando carreta do boi. Trabalhava com tudo. Era um negócio puxado.

Na competição por esses postos de trabalho, vence quem tem maior resistência
física e psíquica aos abusos das novas relações de trabalho, vence quem tem maior
disponibilidade de alienar parcelas crescentes de sua saúde (nem sempre recuperáveis) em
troca de remunerações rebaixadas154.
A fala de Rogério, um trabalhador que atuou em diversas usinas sucroalcooleiras
do estado mostra as novas facetas das relações de trabalho:

As usinas em que trabalhei estão mudando, porque selecionam os cortadores.


Você não pode falar na empresa, se funcionário fala, é: rapaz, isso aí é peão,
cortador de cana igual a eu. Lá tem que ter uma meta. É 4 de 300 metros ou
400 para você ficar. Quem fizesse de 200 metros abaixo a empresa não
ficava. Se precisasse, colocava em outro setor do serviço, senão, ia mandado
embora. Fazia um contrato de 90 dias para ficar dentro da lei e olhava sua
produção. Se não atingir a meta da empresa, ela acha que está tendo
prejuízo. Não é fácil. Sai caro para fichar e manter um funcionário agora,
com alojamento e tudo. Falei isso a um funcionário, que estava sendo
escravo: ‘Meu organismo não é igual ao seu, posso ser mais forte, não dá
para competir e trabalhar igual’. Hoje, você trabalha no seu jeito, o quanto
você aguenta. Posso trabalhar o dia todo sem comer, já outro não. Não é
só em corte de cana, mas em vários tipos de serviço aí, metalurgia, empresa
de entrega, tem que cumprir a meta. Se não aguenta, é descartado.
Analisando, essa pessoa foi discriminada por quê? É pior que antigamente. O

154
Conclusão similar é exposta por Ribeiro, Santos Filho, Lourenço e Almeida (2015, p. 142) em sua análise
sobre a indústria do frango: “A contratação baseia-se em duas condições: saúde e capacidade para suportar as
condições do ambiente e a intensa rotina de trabalho, com produção mínima obrigatória. O que não percebe o
trabalhador é que entregar-se tanto estabelece de cara a produtividade mínima que terá de manter e que aumenta
de acordo com as demandas da empresa. Desta forma as ‘qualificações’ necessárias resumem-se a habilidades e
destrezas manuais que são apreendidas e aprimoradas no desempenho das tarefas, num processo constante de
captura da subjetividade. Assim, nesse ramo industrial a saúde física, mais do que muitos outros, aparece como
elemento importante da força de trabalho”.
303

escravo era valorizado, ele não, que foi mandado embora porque não
aguentou.

O “aguentar” tem significado dúplice: ao mesmo tempo sofrimento e capacidade.


É o martírio de quem é obrigado a passar por situações abomináveis por falta de alternativas.
É também a resistência e força de quem consegue enfrentar tais situações sem “se deixar
abater”. É, acima de tudo, uma superação. Porém, o que se supera é o limite da própria saúde
humana.

Giselle: Foi parar no hospital de tanto trabalhar? [...]


Carlos: Já fui parar no hospital várias vezes. Porque batia muito na cana
e dava canguru, câimbra em todo canto. Desmaiava, aí botava dentro do
carro. Era direto no braço, na perna, em todo canto. Quando a câimbra
pega, fica tudo duro. Aí eu forçava. Todo cortador tem gana, quanto
mais ganha, mais ele quer. Aí não para. Aqui morreu um em cima duma
carregadeira.
Giselle: Quando?
DC: Foi em 98. Morreu em cima do motor. O outro foi lá no barraco, já
entrou no carro meio triste, morreu embiritado.
Giselle: Forçou demais?
Carlos: É. Cana é serviço bom, ganha muito dinheiro. É pesado, só que
se o cabra souber trabalhar, ganha bem. Só não pode puxar muito,
senão não aguenta, o coração também para né?
[...]
Giselle: Ameaça ou violência você já presenciou na vida, por aí rodando
ou aqui na região?
Carlos: Aqui, presenciei um bocado, uns 5 ou 6. Briga deles. Mataram um ali
e acolá.
Giselle: Qual o motivo?
Carlos: Droga.
Giselle: Mas no trabalho?
Carlos: No trabalho não. Morreram de morte morrida mesmo.
Giselle: Morreu de exaustão, de tanto trabalhar?
Carlos: É. Não aguentou.
Giselle: Mas ameaça de gerente e capataz não teve?
Carlos: Não. Aqui não.
Giselle: Em outros lugares que você trabalhou teve? No Mato Grosso?
Carlos: Só teve uma em Rondônia. O cabra botou nós pra fazer um
serviço lá, grilo, terra grilada, e o cabra botou nós pra ir embora. Nu
voltei mais não.
Giselle: Expulsaram vocês com arma e tudo?
Carlos: Foi com arma. Tudo armado.
Giselle: Como era?
Carlos: Eles chegaram tudo armado e nós dentro do barraco, tudo
desarmado. Disseram: pode ir embora todo mundo! As compras que a gente
fez ficaram tudo lá. Estávamos em 8.
Giselle: E eles, eram quantos?
Carlos: Bem uns 30. Depois a polícia foi lá, vazaram.
304

Mais uma vez, os assassinatos a mão armada aparecem ligados às disputas


fundiárias e não ao controle da força de trabalho. Ainda assim, os trabalhadores continuam
morrendo em razão do trabalho. Entretanto, ao serem impelidos, através das novas tecnologias
de produção e gestão, a se oferecerem à exploração a níveis altíssimos de intensidade, morrer
de tanto trabalhar é considerada “morte morrida” e não “morte matada”.
A questão aparece também em entrevista do Museu da Pessoa com trabalhador
que havia sido escravizado na cidade de Açailândia, que também fez parte de minha pesquisa
de campo:

P1 – José, eles prometeram carteira assinada? O que é isso?


R – Não. Ele dizia que assinava carteira, ele dizia que, depois de dois meses,
assinava a carteira. Quando passou de dois meses, passou três meses, passou
um ano, quando ele disse: “Rapaz, não vou assinar mais não.” Nunca
assinaram a carteira. E agora também estava apagando um fogo por esses
dias lá, por esse mês, por essas semanas. Eu sei que eu estava apagando o
fogo, e meu documento foi e caiu. Eu desci na ladeira rolando. Quando eu
segurei assim num tição, a modo de eu parar na descida, queimei meu dedo e
foi quando eu saí apagando o fogo, rodando comigo mesmo assim na
descida, que é alta assim a descida. Eu desci rodando. Quando eu cheguei lá
embaixo, eu falei que não aguentava mais apagar fogo assim, não. E, na
hora que lava assim. O vaporzão ardia aqui. Eu não aguentava, e ele
dizia: “Rapaz, que nada.” Ficava só ameaçando a gente, e o jeito é a
pessoa aguentar. E aguentei só com uma mão alternada, para apagar o
fogo. E fui dormir fraquinho, baqueado. A mulher também nunca... Tendo
carne lá, nunca bota carne para a gente comer. Só quem come, só o ‘gato’
mais a mulher dele. Não quer tratar a gente bem, não.
P1 - José, mas qual era o seu trabalho na fazenda? Apagar o fogo era uma
das coisas? Por que nessa época tem muito.
R – Mas o meu serviço mesmo lá é fazendo cerca. Assim que eu cheguei,
fiquei carregando estaca. Comecei a carregar estaca nas costas, duas, três, e
eu fui sentindo dores no peito. Eu falava para ele: “Rapaz, eu não aguento
mais, não.” Ele dizia: “Rapaz, tu é um cabra novo, que tem muita força.” Ele
vinha assim, e eu pensava que tinha muita força mesmo e o jeito era
aguentar. E eu aguentei ainda um bocado de dia lá mais ele, botando estaca.
Aí, eu disse para ele: “Rapaz, se for desse jeito, eu não aguento, não. Você
vai me matar. O senhor não tem nenhum comprimido?” Ele disse que não
tem, não. Eu fui para o mato, tem uma ladeirinha, e achei um pé de mastruz.
Pedi um leite para um vaqueiro e fiz um mastruz. Aí, ele me colocou para
roçar “junqueira"155.
[...]
P2 – Conta aquela história de quando você estava cortando o mato e a cobra
apareceu.
R – Eu estava cortando a bola de capim no brejo, porque lá ele tem um brejo
que ele mandou roçar. Eu estava cortando um capim, quando eu abaixei. No
que eu levei a foice, uma jararacuçu foi e pulou em cima da foice. Quando
ela pulou, eu afastei para trás e gritei. Aí, ele disse: “Rapaz, tu é frouxo.” Eu
digo: “Acabou?” Ele disse: “Rapaz, se você não aumentar o serviço não

155
Provavelmente trata-se de “juquira”.
305

vai ganhar a diária de hoje, não. E é arriscado tu nem jantar.” Mesmo


assim, a pessoa tem de aguentar o que for, que a cobra morda, ou que
um bicho pegue o cabra. Mesmo assim, a pessoa tem que aguentar. Só
não aguenta quando ele vê que o cabra já está nas últimas mesmo. Ele
joga o cabra na rede e deixa morrer.
P1 – Deixa morrer?
R – Deixa morrer.
P1 – Você viu isso? Você viu acontecer isso com alguém?
R – Não vi acontecer, morrer gente assim, não. Mas ele não dá remédio para
ninguém, não. Ele manda o cabra se virar. O cabra que tiver uma dor, ele não
cuida para levar para a rua, não traz remédio, não. Até um sabão que a gente
pede para banhar é pago.
P1 – Você ia fazendo dívida lá? É isso?
R – É.
P2 – Como é que era a situação do resto do pessoal que estava lá? Quantas
pessoas eram?
R – Eram oito, tem oito pessoas lá. A situação dos outros, a maioria é
comprada por ele. Porque tem deles que são comprados, tem outros que não
são. Porque também ele é um homem de muito dinheiro. Se a pessoa chamar
outra para ir embora e o cabra não concordar, ele vai e fala para o “gato” e
ele mata o cabra logo.
P1 – Aí, você resolveu fugir e não contou para ninguém.
R – Eu resolvi fugir e não contar para ninguém.
P2 – E aquele seu amigo que ficou lá, como será que ele ficou?
R – O meu amigo?
P2 – Aquele que você falou que não sabia contar dinheiro, como é a história
dele?
R – Rapaz, tem um lá que é analfabeto. Ele é conhecido como o Curulebs,
que é o sapo cururu. Ele é um rapaz doido. Se ele ganha 500 reais, o patrão
troca dez reais ou cinco reais em nota de um, e ele sai alegre, gritando. Diz
que está com dinheiro. Mas ele não sabe o que é dinheiro, não. Os cabras
também, que têm 400, ele dá 100, dá 50. Não quer que os cabras vão
embora, não.
P1 – José, conta para a gente a história que você me contou sobre um dos
trabalhadores que tentou fugir.
R – Rapaz, lá tem muitos deles que saem recebendo coronhada na cabeça,
mas saem. Quando os caras não matam, deixam o cara doente de tanta
coronhada na cabeça. O cabra sai doente.
P2 – E os outros queriam fugir?
R – Os outros lá, eles não abrem para ninguém, porque têm medo que
contem para o “gato”. Mas tem gente que tem vontade de sair, sim. Tem
velhinho que não aguenta mais trabalhar, tem menino. Eu também sou
menino, mas tem menino lá que não consegue nem arribar uma foice e vai
trabalhar também. É um sofrimento sinistro lá.
P1 – José, me fala uma coisa. Hoje, estamos no Centro de Defesa, mas você
tinha noção, quando você estava na fazenda, de que aquilo era trabalho
escravo, trabalho ilegal? O que você pensava que era aquilo?
R – Eu acho que aquilo era um serviço escravo, acho que não tem um
ser humano para aguentar aquilo ali, não. O cabra aguenta porque é
rodado mesmo. Mas ali não é serviço para o cabra dizer que está
satisfeito, não. É um serviço escravo, o cabra trabalhando é humilhado
sem poder fazer nada.
P1 – Você já tinha ouvido falar de escravo?
R – Eu já tinha ouvido falar de escravo, porque dizem que escravo era o
bicho que apanhava. Ainda, graças a Deus, que não chegaram a bater,
306

não. Só chegaram a ameaçar. Dizia que ia cortar a cabeça do cara de


foice, dizia que iam abrir um periquito na cabeça do cara de foice. Eu
fiquei com medo também. Muitas vezes, eu não dormia, ficava
pensando. Muitas vezes, eu ficava pensando em fazer coisa ruim, mas,
graças a Deus, nunca deu certo, não. E nunca tentei fazer. E, graças a
Deus, a única coisa que eu tentei botar na cabeça foi sair. E eu consegui
sair e, graças a Deus, eu estou aqui no Centro de Defesa e estou mostrando
para outros cidadãos. Mais à frente, algum dos meus amigos que estiverem
me ouvindo, prestem atenção e vejam que todo cidadão tem o seu direito.
Vamos trabalhar, mas não vamos trabalhar para morrer e nem como
escravo.
E que nós vamos tudo para a frente, para que meus amigos que estão no
meio de uma fazenda, numa carvoeira, o que deve fazer para denunciar,
para não ficar com medo de morrer. Porque, se tiver medo de morrer, o
cara tem medo de morrer mesmo, mas, se ficar com medo, é cada vez
pior o cara ficar aguentando.

A pessoa é sempre estimulada a aguentar o insuportável e isso é produzido por


uma gestão intimidatória: a gestão pelo medo que, em última instância, mobiliza o próprio
medo da morte. Seja no caso das ameaças de morte e de castigos, seja nas ameaças de
demissão num cenário de desemprego estrutural e falta de oportunidades para os mais
vulneráveis, seja nas ameaças de padecimento por doenças e acidentes de trabalho a que estes
trabalhadores, mais precários e discriminados, estão expostos. É sempre uma questão de vida
ou morte que está em jogo.
O que faz uma pessoa não aguentar mais é, por vezes, o adoecimento e o risco de
morte que se torna mais iminente. Em muitos casos, é a indignação que se torna maior do que
o medo. Conseguir um novo trabalho também lhe dá permissão para “não aguentar”, ou
melhor, sair de uma situação que, em verdade, não se aguentava há um bom tempo.

Giselle: Vocês recebiam menos que os homens? Como era para as mulheres?
Muito difícil? Lembra da diferença?
Vitória: Era, mas não lembro. Só sei que era pouquinho o nosso. Quando foi
um dia, não aguentei mais, falei ao meu chefe: a partir de hoje, não vou
trabalhar aqui mais nem um minuto. Dê baixa na minha carteira, que estou
indo embora. Ele chamou o motorista, que também gostava muito de mim, e
disse: leve a Dona Vitória na casa dela, enquanto pego a carteira para dar
baixa. Não queria mais. A escola estava me esperando, porque lá já trabalhei
como monitora, ajudando. Também, era pouco o salário, mas era maior um
pouquinho, aí resolvi ir.

O “não aguentar” revela, nestas narrativas, também seu significado dúplice. Por
um lado, assume uma conotação frustrante e incapacitante, quando entendido como sinônimo
de “não conseguir sustentar o peso do trabalho” ou “não conseguir resistir às pressões do
ambiente de trabalho”. Por outro lado, o “não aguentar” também toma, em muitos momentos,
307

acepção de “não tolerar” e, neste sentido, “não aguentar” é o novo gesto político para se dizer
“basta”.
Tanto o “fugir” como o “não aguentar” são ações centrífugas em relação ao
trabalho que oprime. O que muda é o componente volitivo, que é capturado na exploração
alarmante da acumulação flexível. Quem foge cumpre o ato desejado de escapar. Quem “não
aguenta” descumpre seu intento forçoso de suportar.

3.3.4. Liberdade, perigo e medo: sobrevivência calculada

A “liberdade liberal” (formal) é muito mais do que ser, simultaneamente, livre e


escravo, sujeito e objeto. Ela é, mais do que tudo, a liberdade que se tem, como sujeito de
direito vulnerável materialmente, de vender sua força de trabalho a qualquer preço, de vender
sua saúde e até sua vida a quem abusa de seu estado de necessidade.
Como explica Lemke (2017, p. 67), com base na obra de Foucault:

[...] a relação liberal entre liberdade e segurança é ainda mais complexa. O


liberalismo não produz apenas liberdades, que são permanentemente
ameaçadas (pelas suas próprias condições de produção) e requerem
mecanismos de segurança. Perigo e insegurança (a ameaça de desemprego,
pobreza, degradação social etc.) não são somente consequências indesejadas
ou efeitos colaterais negativos, mas sim condições essenciais e elementos
positivos da liberdade liberal. Nesse sentido, o liberalismo cultiva o perigo,
ele sujeita o perigo a um cálculo econômico, pesando suas desvantagens
contra seus custos. O governo liberal nunca deve fixar a segurança, uma vez
que o empenho pela segurança e o perigo da insegurança são aspectos
complementares da governamentalidade liberal: ‘por toda parte vocês veem
esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o
correlato psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo
sem cultura do perigo.

Marco, um trabalhador que entrevistei em 2013, mencionou a presença de


prepostos armados no trabalho de derrubada da mata.

Giselle: Nunca viu ninguém matar trabalhador, algo assim?


Marco: Matar não. Acho que eles usam isso pra intimidar, sei lá.
Giselle: Você se sentia intimidado?
Marco: É isso, a gente cria medo né.
Giselle: Obedecia tudo o que falavam por causa disso?
Marco: É. Tem que fazer pra se livrar né.
308

Na mesma conversa, ele ainda me contou:

Marco: Às vezes, a gente acha que na cidade é ruim, que o patrão fala tanta
coisa, mas quando chega no mato, devendo, nos empregos de roçado a
maioria explora a gente, a cobra pode picar. Tinha um lugar que uma cobra
mordeu um rapaz, longe da cidade, a gente teve que carregar ele 3km nas
costas. A perna dele inchou, estava desmaiando. Jogamos nas costas até que
chegou na beira da estrada e achamos um carro. O rapaz que era branco
ficou roxo. A cobra tava na folha de bananeira, mas ele conseguiu
sobreviver. Cortou, chupou, tirou sangue, botou específico e conseguiu
salvar ele. Acontece muita coisa porque muitos deles ficam calados, com
medo.
Giselle: Medo do quê?
Marco: Medo dos patrões. Não falam o que têm de falar por medo deles.
Giselle: Se você tivesse de falar, o que falaria?
Marco: Que se aproveitam da humildade das pessoas, da bondade, porque é
pobre acha que pode fazer isso e isso. Tem medo, pensa que vão fazer
alguma coisa com a gente. Tem uma pressão.
Giselle: Não pode se expressar?
Marco: É. Acontece isso muitas vezes com as pessoas.

O medo, a insegurança e, mais ainda, a administração do medo e da insegurança,


o cálculo dos riscos de vida que se corre no trabalho e fora dele, eis o motor que explora o
trabalhador de dentro para fora sob a sombra da opressão real de uma relação produtiva que
explora sua força de trabalho e sua saúde na medida exata de seu drama.
A nova tecnologia de exploração de mão de obra não é mais aquela que usa do
medo e da violência desmedidos para reter o trabalhador no serviço, despertando nele, ao
mesmo tempo, a vontade de evasão. Na escravidão contemporânea, ao contrário, o medo e a
violência empregados são “sob medida”. A escolha entre o menor dos males recai sobre o
trabalhador. E, neste ponto, não só se explicita a faceta neoliberal da responsabilização das
vítimas pelos problemas sociais, mas também as implicações severas em termos de
sofrimento social (como veremos no próximo item) de um constante calcular de medos, riscos
e males.
O “menor dos males” muitas vezes é simplesmente não morrer. Seja no
pagamento por produção a remunerações baixíssimas que pressionam o trabalhador a fazer
mais horas e sacrificar sua saúde, seja num trabalho controlado por vigias armados (dentre
outros mecanismos) com exigência de ritmos acelerados em atividade de alto risco; é a vida
que está em jogo no cálculo que o trabalhador aprende tão habilmente a executar. E a morte
está nos dois lados da balança.
O mesmo trabalhador me contou:
309

Giselle: Como é trabalhar com alguém armado vigiando?


Marco: Fica com medo, não sabe o que vai acontecer a qualquer momento.
Giselle: Tudo pode acontecer né. Ele exigia o que de vocês?
Marco: O serviço tinha que ser bem feito e rápido.
Giselle: Acha que ia rápido?
Marco: Derrubada é o seguinte, é muito arriscada, por isso sempre tem que ir
devagar.

O medo sistêmico também comprime o trabalhador por todos os lados: via relação
de trabalho e via situação de desemprego. O medo que faz calar, que faz aceitar condições
precárias ou até degradantes. No caso acima, o medo das armas de fogo e de um acidente fatal
no trabalho.
Numa outra entrevista, o tema do medo também foi trazido pela trabalhadora
Priscila:

[...] o pessoal fica com medo né [...] De querer falar. Por acaso, eu sei mais
ou menos dos meus direitos, porque já tive envolvimento com essas coisas.
[...] Tem gente aí que pensa assim: essa pessoa pode me dar problema,
porque ela sabe os direitos que tem. Aqui mesmo na cidade eu trabalhei pra
gente assim. Trabalhei mais de 10 mês sem carteira assinada. E aí
simplesmente ele [...] começa a inventar alguma coisa pra você pedir e sair.
Porque ele sabe que eu sei mais ou menos os meus direitos e eles pensam
que vou causar problema, porque posso procurar meus direitos e vão ter que
acertar direitinho. [...] Começa a colocar defeito no seu trabalho. Às vezes,
você serve a pessoa lá por um ano, faz tudo o que ela quer: nossa, “gosto do
seu trabalho”, e tudo mais. Aí de repente chega e começa a reclamar, tipo
assim: “ah, isso que você fez não ficou bem”, “essa comida que você fez não
tá boa!”

Em seguida, ela revelou, na sua experiência, os mecanismos que a mantiveram


calada:

Giselle: E fizeram isso com você?


Priscila: Claro.
Giselle: O que você fez?
Priscila: Eu simplesmente saí. Assim, como não tenho planos de ir embora
da região, da cidade né, então não posso criar problema. Porque nossa cidade
é muito pequena. Tipo assim, se eu moro aqui e crio problema de trabalho
com você, todo mundo da região vai ficar sabendo. Aí eu fico queimada, não
arrumo mais serviço na região. Então, esse problema aí arrisca a ficar na
boca do povo. E as pessoas são prejudicadas. É assim, trabalhei com essa
pessoa 10 meses, aí simplesmente começou a me desagradar, aí falei: “não,
vou sair”. Peguei e saí do serviço, sem documento, do jeito que ela quis. Aí
fiquei quieta. Porque se eu fosse procurar meus direitos, não fui, porque fico
queimada na cidade. Depois, eu vou querer trabalhar, porque eu preciso
trabalhar e ninguém vai me dar serviço. Só isso.
Giselle: É comum as pessoas agirem assim aqui?
310

Priscila: Aqui é.
Giselle: Pra não ficar queimada...?
Priscila: Tem que se calar né?
Giselle: Aí tem que aceitar do jeito que for?
Priscila: Do jeito que for tem que aceitar. A nossa região, nossa cidade, tem
muito pouco serviço.

Das ameaças de morte às ameaças de demissão, da intimidação da vigilância


armada à pressão de metas irreais, a dominação pelo medo e pela insegurança aparece como
uma constante no trabalho escravo. No caso de Priscila, o medo a obrigava a abrir mão de
seus direitos. Na situação de Marco, o medo o fazia abrir mão de sua segurança, arriscando-se
a um acidente no trabalho. Em ambos os casos, a gestão pelo medo e pela insegurança fazia
com que os trabalhadores aceitassem incondicionalmente as condições a eles impostas.

3.4. Para além da liberdade formal

Onde há escravidão há resistência à escravidão e a luta por uma liberdade material


e efetiva que rompa os limites do formalismo jurídico passa, inevitavelmente, pela subversão
do individualismo e da alienação que desafiam a tomada de consciência e a organização dos
próprios explorados.
De fato, o capitalismo industrial fundado no individualismo “provocou o colapso
dos padrões de proteção propiciados pelas redes comunitárias, pela família, pelos vínculos
com a terra e pelo sistema de guildas” (DWYER, 2006, p. 50).
Trata-se da corrosão das lealdades basilares, apontada na pesquisa de Martins
como elemento central na deterioração das relações de trabalho no campo. A partir do
depoimento de Darli, uma criança do segundo ano primário e filho de agricultores, que afirma
“falta união neste lugar” ao relatar o episódio de um “trambiqueiro de terra” que havia
ludibriado seus pais, o sociólogo aponta o que, para ele, é o núcleo problemático do processo
em curso:

[...] a falta de união, a pobreza transformada em carência moral. Isto é, o fim


das lealdades basilares, o próprio pobre tentando lesar o pobre em nome de
uma mediação estranha e marginal à vida tradicional do camponês -
dinheiro, instrumento de trapaça, que deixa de ser assim expressão do
trabalho (e do valor por ele criado) para se constituir em negação do trabalho
(MARTINS, 2009, p. 117).
311

Nesta pesquisa, buscamos incorporar o aspecto do esfacelamento ou


fortalecimento de vínculos interpessoais e redes coletivas de proteção na própria abordagem
da escravidão contemporânea, por entender que esses fatores engendram diferentes modos de
experenciar a escravidão.
Para tanto, valemo-nos da categoria do sofrimento social, que é o sofrimento
correlacionado a processos sociais específicos (RENAULT, 2008, apud BOUYER, 2015), a
exemplo do trabalho, compreendendo tanto “os entraves exercidos sobre os corpos e mentes”
quanto “o enfraquecimento dos recursos sociais que permitem enfrentar as dificuldades da
existência” (RENAULT, 2008, apud BOUYER, 2015, p. 110). Isto é:

[...] a noção de Sofrimento Social se entende pela produção social de


entraves ou constrangimentos (reveses, obstáculos, empecilhos) que atacam
o complexo corpo-mente e, simultaneamente, por um dilaceramento dos
recursos (meios) sociais necessários para a resistência, o enfrentamento e a
luta contra esses ataques, num frente à frente com o capital flexível que
mantém o trabalhador como máquina de metas ou objeto descartável
(BOUYER, 2015, p. 110).

Bouyer (2015, p. 113) aponta que a elevação do sofrimento social a níveis


inéditos na história dos processos produtivos constitui o traço epidemiológico marcante
atrelado aos novos dispositivos flexíveis do capital sobre o trabalho (desregulamentação,
flexibilização, reestruturação). Segundo o autor (2015, p. 113), essa elevação se dá

[...] pela imposição social de entraves - impedimentos, constrangimentos ou


“contraintes” - específicos sobre a livre atividade, paralelamente à demolição
dos vínculos sociais (que nutrem a vida subjetiva, intersubjetiva e intra-
subjetiva) necessários ao enfrentamento destes entraves e conservação da
saúde.

O sofrimento social mostra-se como categoria analítica importante para o estudo


da escravização contemporânea, uma vez que é o elo entre a experiência individual da
escravidão e a estrutura social. Além disso, na perspectiva da biopolítica da escravidão e das
políticas públicas de assistência às vítimas, o momento do sofrimento é decisivo: é o
momento que antecede o possível adoecimento e, por outro lado, o momento em que,
ganhando consciência sobre a dor e suas causas (sociais), o corpo individual e coletivo podem
se reorganizar frente ao capital.
Na análise dos relatórios de fiscalização do GEFM, depara-se com diversas
descrições de situações claras de sofrimento social de que são vítimas os trabalhadores
312

explorados em regime de escravidão, como vimos ao longo deste trabalho. Sentir-se


desapropriado do tempo da própria vida, da vivência dos vínculos interpessoais, da saúde
corporal e mental é um quadro aviltante e, no entanto, comum, na escravização
contemporânea.
O outro lado me foi contado pelo trabalhador Luís, durante entrevista na Casa do
Migrante, em Cuiabá. Ele relatou um episódio em que vários grupos de cortadores de cana
que trabalhavam na mesma fazenda resolveram fazer um mutirão para tentar sair da situação
de endividamento e desalento em que se encontravam.
O trabalho, além de extenuante e executado em condições precaríssimas,
praticamente não era remunerado. Em suas palavras:

nós trabalhava lá pra comer. E ele [patrão] ganhava o dinheiro do que nós
fazia, o dinheiro que ganhava só pra pagar a feira que nós trabalhava em
cima. Pelo que deu a entender, foi. Porque nós não saiu com nada. Nós
acabou os 10 alqueire, nós saímos com 150 reais cada um...

A resistência de cada indivíduo ia se quebrando ante as condições extremas de


trabalho:

muitos tava com malária, outros tava doente. Aí tinha um que tava com a
perna quebrada, dizem que ele ia perder a perna, mas acho que não perdeu,
eu não cheguei mais de ver ele. [...] Ô, tinha muita gente que tava... que se
brincasse, ia morrer lá dentro. [...] Lá foi um trabalho de escravo mais
sofrido que eu já vi.

Ao lembrar-se do momento em que já vislumbrava a própria morte no canavial, o


trabalhador recobrou o ânimo ao se lembrar da ideia do mutirão, que envolvia o risco, mas
também novos elos de confiança:

Luís: a benção de Deus como que é grande... quando nós teve a ideia... O
homem chamava Ratinho. [...] Ele falou “o que vocês acham de nós
conversar com os rapaz, nós formar um grupo de 10?”. Aí os outro teve a
ideia de formar um grupo de 20, chegou nos outro ali, a uns 6 quilômetros e
já concordaram. Aí nós falemo “vamos fazer o seguinte”, aí falou assim, aí
os de cá tava tudo... nós era unido... “então nós vamos fazer o de vocês, que
vocês estão desanimado, pra vocês fazer o nosso”, entendeu?
Giselle: Nossa!
Luís: Então nós estava arriscando de eles não vim, nós fazer o deles. Aí nós
foi fazer o deles primeiro. Nossa área era 40 e a deles também.
Giselle: A confiança, né...
Luís: Aí nós confiamo neles, acabemo o deles.
Giselle: Que bonito isso!
313

Luís: Nós acabou o deles, nós era um grupo de 10 e eles lá também. Aí nós
fizemos o deles, e nós fez o nosso. Aí nós fizemos no nosso 30 alqueire,
quando foi pra inteirar os 40 do meu grupo, que eram quatro, chegou a
Federal.

Quando lhe perguntei qual foi seu sentimento ao fazer o mutirão, sua animação foi
visível: “Ô, foi muito bom! Eu me senti livre. [...] Quando nós se uniu a gente se sentiu mais
livre. Ixe, o que é isso!!”.
Luís chamou o arranjo de “união de trabalhar”. E essa união, para ele, significava
liberdade porque era a revalorização de suas vidas.

Aí eu me senti assim como meu amigo é minha frente, ele por trás de mim,
você entendeu? Ele tava ali me olhando, me cuidando. Muitas vezes foi
prova disso. Eu tava roçando... eu ganhei um cupim, não vi, um galho
triscando em mim, eu parei pra beber água, não sei o que eu fui fazer...
Tinha uns 10 formigão nas minhas costas, que eu não tava sentindo. Então
ali já ia me parar. Então, meu amigo chegou, mais o outro já chegou com
uma moita de mato, outro chegou batendo, batendo, tirou das minhas costas.
Aí já me senti livre, tu entendeu? Tipo assim, se Deus o livre chegasse, e
nós... me livre assim, eu morreria livre, que se nós juntasse aí tava todo
mundo unido, morria todo mundo junto, se cara enfrentasse, vamos todo
mundo embora. Nós morria, mas não morri ali, tipo assim, não morri no
sentido preso, ali dentro. Eu morria, eu me sentia livre, porque eu morria
com meus amigos, meus amigo tava ali comigo, tava unido ali pra tudo,
então eu me sentia livre.

Na “união de trabalhar”, os cortadores de cana passaram a organizar seu próprio


trabalho. Motivados e respeitosos aos limites do corpo, iniciavam e encerravam o trabalho
mais cedo porque era o horário em que conseguiam produzir mais. Cientes dos perigos e
condições precárias do trabalho, confeccionavam os próprios equipamentos de proteção
improvisados. Segundo Luís: “amarrava camisa no braço, mó de perigoso cobra, nas perna
nós botava coisa de coqueiro, nós fazia uma capa botava ali na botina, correr de cobra, que
nós saía de madrugada!”.
A liberdade, para eles, era a mobilização coletiva, a lealdade, o cuidado de si e do
outro. Era subverter uma organização do trabalho que não lhes deixava esperança nem saída e
minava seus ânimos com o desprezo por suas vidas, para substituí-la pela “união de
trabalhar”, pela solidariedade com um outro em quem se podia confiar, criando uma rede de
proteção mútua para enfrentarem as constantes ameaças. Eram “gente livre”, nos termos
314

descritos por La Boétie (2001, p. 26): “cada um pelo bem comum, cada um por si; todos
esperam ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória”156.
É a resistência dos trabalhadores “ao processo de apropriação do afeto, dos
valores, da interioridade do ser” identificada por Maria Aparecida de Moraes Silva também
no ato das trabalhadoras que migram junto com seus filhos. Para tais trabalhadoras, nas
palavras da pesquisadora (2014, p. 283), trata-se “de uma forma de não se reduzir ao processo
de trabalho abstrato, mantendo, ainda que a duras penas, a particularidade que os distingue
dos demais fatores de produção”.
No mutirão, Luís conheceu 5 pessoas do Tocantins e, através dessas amizades, foi
a Palmas procurar serviço, onde acabou encontrando um irmão por parte de pai: “Aí, em
Palmas, 3 irmãos eu conheci em Palmas. Aí vim pra Santana, eu e meu irmão corremos atrás,
aí nós tinha mais 6 irmãos lá com ele. Se não fosse através da união lá dentro eu não tinha
conhecido”.
No caso de Luís, como em muitos outros, a união implicou uma consciência da
raiz social de sofrimentos individuais, a reconfortante perspectiva de manter relações de
reciprocidade num contexto de espoliação completa em que sua própria integridade física e
psíquica era ameaçada pelo empregador. A união era a resistência coletiva que suplantava as
fragilidades de cada trabalhador isolado, era a reconexão dos trabalhadores com sua história e
sua humanidade através do fortalecimento dos afetos. Nas palavras do entrevistado:

Não foi só o mutirão que nós fez, que todos ficamos animado. Mas nós
vencemos. Foi uma oportunidade pra todos se conhecer. Quando tava
desanimado, o cara falava, se você pensar bem, a união vale tudo na vida.
Tem um carro quebrado, vamos esperar quem tirar o carro? Se juntar nós
tudo, vamos embora.

Questões semelhante surgiram na fala de Cauê, um trabalhador que entrevistei no


Maranhão. Ele havia migrado incessantemente para trabalhar em diversos estados e havia
sofrido também com a exploração extrema do trabalho escravo. Porém, no momento em que o
conheci, no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, em Açailândia, ele havia
decidido permanecer em sua cidade de origem e trabalhar na pequena terra de sua família.
Explicou-me que vários de seus amigos haviam deixado de aceitar propostas de

156
Em oposição à “gente livre”, La Boétie (2001, p. 26) descreve a “gente subjugada”: “A gente subjugada não
tem júbilo nem furor no combate: parte para o perigo quase como que amarrada, toda por demais embotada, e
não sente ferver em seu coração o ardor da liberdade que faz desprezar o perigo e dá vontade de ganhar a honra e
a glória numa bela morte entre seus companheiros. [...] [a gente subjugada] também perde a vivacidade em todas
as outras coisas e tem o coração baixo e mole, incapaz de todas as grandes coisas. Disso muito bem sabem os
tiranos, e ao vê-la tomando essa feição, ainda a ajudam para que afrouxe mais”.
315

arregimentadores para trabalhar em lugares distantes: “Teve muito trabalhador que passou o
que passei, amigo meu. Converso com ele e ele diz: ‘rapaz, não vou mais não, hoje tenho meu
paradeiro’. Não quer sair mais, tem aquele trauma”. Entre o trauma e o paradeiro, mais uma
vez, um processo coletivo de conscientização sobre a exploração e uma reorganização, através
do estreitamento dos vínculos sociais, de suas vidas produtivas pela autogestão. Quando lhe
perguntei se seus amigos eram mais felizes agora, Cauê respondeu:

Demais! Eles mexem com horta de macaxeira e ficam vivendo daquilo dali,
mas não quer estar no trecho, ganha mais lá e está no meio da família todo
dia. Fora da família, o cara fica muito sozinho, sente saudade, passa de 8
meses a 1 ano sem ver a família. Não é bom não. Quando minha mãe
morreu, eu não estava em casa, saíram me caçando em todo canto, não
sabiam onde eu estava. Quando cheguei em casa que soube que a mãe
morreu tinha 18 dias. Eu estava trabalhando na fazenda dos outro. O cara
fica revoltado também: trabalhando e os cara não são legal com a gente, tô
pra receber um dinheiro que nem sei se recebo. Roçando na nossa terra é
melhor do que na dos outros, porque aumenta, é pra gente. Não ganha
dinheiro, mas trabalha pra gente. Todo mundo perto da gente.

A questão da escravidão e do processo coletivo de conscientização política na luta


pela liberdade também se fez presente na fala dos trabalhadores que entrevistei em Araci/BA,
atingindo um simbolismo tão eloquente e revelador que suplantou qualquer conceito jurídico
ou sociológico. Foi uma entrevista coletiva com quatro trabalhadores que haviam sido
resgatados de trabalho escravo em Minas Gerais e estavam se preparando para ingressar num
projeto de capacitação profissional em Mato Grosso:

Giselle: Vocês se sentiam livres? Se sentiam realmente presos? Como vocês


se sentiam lá?
Arthur: Preso
Alfeu: Preso
Aristides: Preso
Giselle: Preso mesmo?
Júlio: Olha, eu vou lhe explicar como eu acho, o que eu penso. Eu criava
muito passarinho, preso na gaiola. Depois de sair soltei tudo. [...] Depois que
eu fui pra lá, assim que eu voltei, cheguei aqui e soltei tudo. Queimei gaiola,
dei uns.
[...]
Giselle: E eles foram tudo embora?
Júlio: Foram tudo embora! A mesma coisa que eu acho que a gente tá
sentindo, né?
Arthur: Mesma coisa
Aristides: A mesma coisa, cara
Alfeu: Falou a verdade também.
Aristides: Essas coisas que acontece muda muito o pensamento do ser
humano, sabia?
316

O meu pensamento realmente mudou depois desse encontro. Se no mutirão dos


cortadores de cana era a união que libertava, neste episódio a liberdade unia. Ao voltarem
para sua cidade de origem, os quatro trabalhadores passaram a alertar as outras pessoas para
que não caíssem na mesma rede de aliciamento ainda atuante na região. Pássaros presos em
gaiolas já eram inaceitáveis para eles.
Pude vislumbrar na história desses trabalhadores uma experiência de libertação,
ainda que pontual, mas certamente transformadora. Uma vivência de liberdade real, para além
da liberdade formal do direito e de noções homogeneizantes e deterministas da exploração. A
liberdade real como uma porta que não se contenta apenas em se abrir; uma porta que precisa
abrir mais e mais portas. Uma porta de consciências, uma porta coletiva. Uma porta que, mais
do que se abrir, desabrocha.
317

CONCLUSÕES

“Entraram no barraco, viram os porcos, a água


barrenta e a comida estragada, depois saíram atrás do
‘gato’. Ouvi-os falando uma coisa estranha, trabalho
escravo, mas não somos escravos, somos livres, nós e os
porcos” (Xico Cruz, Conto Escravidão)

Este trabalho nasceu de inquietações provocadas pela minha atuação como


auditora fiscal do trabalho e pelas disputas que se movimentaram em torno do conceito de
trabalho escravo nos últimos anos. Seu problema fundamental foi buscar uma compreensão da
morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso e suas transformações entre
o último quartel do século XX e o início do século XXI.
O objetivo da pesquisa e da metodologia empregada foi o de fornecer uma
contribuição original aos estudos sobre escravidão contemporânea, de modo a auxiliar na
compreensão e na expansão de seus marcos conceituais e metodológicos. Para tanto, busquei
aliar várias áreas do conhecimento (sociologia, direito, saúde coletiva e demais ciências
sociais) em torno dos problemas de pesquisa, trabalhando-as a partir de uma metodologia
integrativa, que combinou história oral, pesquisa documental e construção de banco de dados
que permitiu análises quantitativas. Procurou-se, especialmente, ultrapassar a dimensão
ilustrativa e descritiva dos relatórios de inspeção do trabalho – que já foram utilizados como
fonte de inúmeras pesquisas acadêmicas – ao tomá-los em sua complexidade e, assim,
encontrar sua força explicativa do fenômeno estudado.
Além disso, o desafio era desfazer alguns equívocos – muitos deles, oportunos a
interesses econômicos e políticos dos escravagistas – sobre o trabalho escravo
contemporâneo, que têm obstaculizado sua erradicação e embasado tentativas de
desconstrução dos instrumentos legais com que se opera seu enfrentamento no Brasil. Os
principais deles são: a crença de que o trabalho escravo se resuma à violação da liberdade
individual; a associação entre escravidão e violência física direta; as argumentações de que
haveria certa indistinção entre o que é considerado “condição degradante de trabalho” pelas
autoridades públicas e meras irregularidades trabalhistas.
Um dos caminhos que trilhamos para executar essa proposta foi a construção de
uma base de dados completa, a partir de informações selecionadas e coletadas diretamente dos
relatórios das operações de combate ao trabalho escravo em Mato Grosso. Optamos também
por analisar a totalidade dos relatórios que constataram trabalho escravo, dentro do recorte
espacial e temporal estabelecidos. E, como o tema abordado requeria a análise das
318

transformações na exploração do trabalho e sua relação com outras dinâmicas sociais, a


escolha foi por trabalhar com todos os relatórios desde o ano de instituição dos Grupos
Móveis (1995) até a data de início da pesquisa (2013).
Apesar do tempo que se despende no processo de construção de uma base de
dados como essa, as vantagens dessa escolha para os resultados da pesquisa foram inúmeras.
A principal delas foi poder construir (e reconstruir) as variáveis mais apropriadas para testar
minhas hipóteses, codificando-as de forma coerente ao referencial teórico e às evidências
empíricas. Além disso, foi possível também criar novas variáveis não previstas inicialmente
para tentar responder questões surgidas ao longo da pesquisa.
A escolha das variáveis trabalhadas pautou-se por três eixos de interesse: 1)
oferecer um retrato dos casos de trabalho escravo efetivamente constatados, produzindo dados
que possam inclusive servir de ferramenta no enfrentamento dessas práticas; 2) mostrar as
modalidades de trabalho escravo, suas caracterizações, interpretações e bens jurídicos
tutelados, com vistas a auxiliar no entendimento (e na disputa) sobre seu conceito; 3) produzir
dados sobre nuances das relações de trabalho escravo que pudessem dialogar com outros
estudos da sociologia do trabalho (informalidade, subcontratação/terceirização, formas de
remuneração).
Os principais resultados obtidos a partir da pesquisa quantitativa e qualitativa nos
relatórios de inspeção do GEFM (1995-2013) consistiram na identificação da caracterização e
frequência das diferentes modalidades de trabalho escravo, na compreensão das
transformações sofridas por essas práticas e suas variações no tempo. Destacamos, aqui,
alguns desses pontos.
No que diz respeito às modalidades de trabalho escravo observadas em Mato
Grosso, destacou-se a presença constante das condições degradantes de trabalho ao longo de
todo o período analisado (98,89% dos casos). Verificou-se, ainda, que as condições
degradantes têm sido caracterizadas não por meras violações sanáveis de normas de segurança
e saúde do trabalho, mas sim por condições extremas de trabalho e vida: a ausência absoluta
de água potável (86,67% dos casos), instalações sanitárias (81,11%) e instalações para
refeições (93%) e alojamentos que ofereça proteção contra intempéries (89,44%). Observou-
se, ainda, que o trabalho forçado, assim como a servidão por dívida e as jornadas exaustivas,
permanece presente, ainda que com incidências menores, nos anos recentes.
De modo geral, os dados indicam que preponderam formas de recrutamento
contratuais (97%), relações de emprego informais (que atingiam a totalidade dos
trabalhadores resgatados em 75,56% dos casos) e contratadas indiretamente, seja através de
319

terceirização ou outras formas de subcontratação e intermediação (67%). A análise qualitativa


dos relatórios também mostrou que a discriminação é um aspecto fundamental da escravidão
contemporânea.
Além disso, os resultados mostram uma queda significativa da vigilância armada e
das práticas de violência física ou grave ameaça contra os trabalhadores a partir da primeira
década do século XXI, notadamente a partir dos anos 2007-2009. Essa tendência foi
confirmada por outra fonte, os dados da Comissão Pastoral da Terra, que indicam o declínio
do número de assassinatos, tentativas de assassinato e ameaças de morte a trabalhadores rurais
e agentes de proteção de seus direitos no mesmo período, contrastando com o aumento da
violência no campo relacionada à posse da terra.
De fato, o período 2007-2009 representou um ponto de inflexão nas formas de
coerção utilizadas no trabalho escravo em Mato Grosso. A violência física direta,
prevalecente na década de 1990 e em declínio até os anos 2000, pela primeira vez tende a
desaparecer nestes anos que, não por acaso, marcaram a consolidação da COETRAE-MT e o
fortalecimento da Inspeção do Trabalho com o aumento do contingente de auditores-fiscais
em Mato Grosso. Portanto, ao lado dos processos da estruturação do mercado de trabalho e do
aumento da presença de instâncias do poder público na região (antes considerada uma “terra
sem lei”), a pesquisa indica que alguns dos fatores decisivos para a brusca diminuição dos
casos de violência física e assassinatos de trabalhadores em Mato Grosso foram a
consolidação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, as campanhas contra o trabalho
escravo e o fortalecimento da legislação e das comissões de enfrentamento do trabalho
escravo tanto no estado quanto nacionalmente.
Entretanto, os anos mais recentes também apresentam outras formas de violência,
que acompanham mutações mais amplas da reestruturação produtiva. Assim, apesar dos
dados de nossa base não terem sido suficientes para avaliarmos as transformações nas
jornadas de trabalho (duração e intensidade) e nas práticas de assédio moral (questões
fundamentais para futuras pesquisas), passamos a investigar as novas formas de violência e
coerção envolvidas no trabalho escravo contemporâneo do século XXI a partir de outras
fontes, como os dados da saúde e as entrevistas com trabalhadores, que foram
complementados pela análise qualitativa dos documentos de fiscalização.
As entrevistas com trabalhadores, ativistas e autoridades públicas que atuam no
enfrentamento do trabalho escravo revelaram novas práticas de controle e exploração dos
trabalhadores, como as ameaças de demissão, as pressões por atingimento de metas quase
inalcançáveis, além de terem evidenciado a presença marcante de situações de adoecimento,
320

sofrimento, que colocam a integridade física, a saúde e a vida no centro da discussão sobre o
trabalho escravo contemporâneo.
A partir dos estudos na área da saúde coletiva, pudemos constatar que os
atentados à saúde psicofísica e à própria sobrevivência dos trabalhadores escravizados –
atestados nos documentos e narrativas – inserem-se num contexto de agravamento geral da
saúde dos trabalhadores na virada do século XX para o XXI, inaugurando um novo padrão de
morbidade e adoecimentos imateriais decorrente da reestruturação produtiva.
Pesquisas recentes indicam, ademais, que a economia de Mato Grosso tem gerado
significativo crescimento dos agravos à saúde dos trabalhadores. Entre 1998 e 2005,
observou-se, no estado, um aumento da incidência de intoxicações agudas por agrotóxico
agrícola, acidentes de trabalho, acidentes com animais peçonhentos, neoplasias e
malformações congênitas (PIGNATI; MACHADO, 2011). Os estudos demonstraram, por
fim, que há uma correlação positiva significante entre agravos à saúde dos trabalhadores e os
indicadores de produção (esforços produtivos agropecuários e demanda de agrotóxicos) no
interior mato-grossense.
A hipótese central da tese – de que a escravização contemporânea em Mato
Grosso se utiliza de instrumentos típicos do trabalho livre capitalista – foi confirmada a partir
da pesquisa documental e da história oral. O que interessa, sobretudo, é o caminho percorrido
para apreender o lugar da liberdade na prática da escravidão, que nos conduziu a diversos
desdobramentos de nossa tese primária. Pudemos concluir, portanto, que a liberdade está cada
vez mais implicada em diversos elementos e instrumentos da escravização recente em Mato
Grosso.
Se entre as décadas de 1960 e 1990, no contexto da modernização conservadora, a
forma típica de trabalho escravo que se alastrou na agricultura brasileira, por sua composição
mista (aliciamento através de contratos fraudulentos e imobilização através de violência física
e endividamentos fabricados), dificultava o entendimento sobre o papel (e importância)
exercido pela forma contratual e outros elementos típicos do trabalho livre capitalista na
prática da escravização contemporânea, na última década a situação se inverte.
Hoje temos um cenário em que não só a entrada para a relação de trabalho escravo
ampara-se no instrumental da livre contratação, mas também a manutenção e controle da
força de trabalho no espaço da produção e também o seu descarte são realizados através de
dispositivos do mercado de trabalho capitalista: através de contratações, recontratações,
negociações e contendas em torno de equivalências jurídicas (que legitimam a assimetria
321

elementar da exploração capitalista) e da interpelação do trabalhador como sujeito de direito a


oferecer mais energia e saúde à exploração. Em termos esquemáticos, verificamos:
1) “Entrada” (recrutamento da força de trabalho): em todo o período analisado
(1995-2013), caracterizou-se por formas contratuais (ainda que fraudulentas) e não forçadas
(violentas), tendendo a tornar-se cada vez mais consensual (nos anos mais recentes, nem todos
os trabalhadores são aliciados em estados longínquos: muitos se deslocam por conta própria
para procurar trabalho em redes já conhecidas);
2) “Permanência” (duração da relação de trabalho propriamente dita): até o início
do século XXI, o controle sobre a força de trabalho para mantê-la sob exploração era
garantido por uma combinação de mecanismos remuneratórios (endividamento, retenção de
salários, formas de remuneração) e uso da força (vigilância armada, ameaças de morte,
assassinatos e punições físicas a quem fugisse). Já na última década, passou a ser realizado
através do fortalecimento de instrumentos de gestão, imposição de metas, formas de
remuneração que maximizam a “exploração por interpelação”, ameaças de descontos salariais
e ameaças de demissão;
3) “Saída” (rompimento do vínculo): até o início dos anos 2000, caracterizou-se
pela fuga (que podia ser punida com a morte), sendo substituída recentemente por uma nova
lógica: o “não aguentar”. A ameaça de morte é substituída pela ameaça de demissão. E a luta
do trabalhador por sobrevivência já não é fugir dos pistoleiros da fazenda, mas sim
permanecer no trabalho, suportando quaisquer condições, para poder manter seu sustento.
Sobrevêm estratégias de gestão que convidam os trabalhadores a irem embora caso não
aceitem as condições indignas de trabalho, afinal, “são facilmente substituíveis”.
Essas transformações acompanham a transição de formas de domínio direto
típicas da frente pioneira (imobilização dos trabalhadores através do uso da força) por uma
dominação típica do capitalismo consolidado (mobilização do interesse do trabalhador através
do abuso de sua vulnerabilidade).
Após o violento processo da disciplinarização dos corpos, a etapa sucessiva de
controle sobre a população de trabalhadores é cada vez mais uma gestão da saúde
(biopolítica), que elege as vidas que merecem ser mantidas e as que serão abandonadas sem
condições mínimas à reprodução social. O “deixar morrer” passa a ser a lógica através da qual
se explora a força de trabalho escravizada na nova era dos adoecimentos flexíveis. É neste
contexto de busca desenfreada por “reduzir custos” (reduzindo o valor do trabalho) próprio da
reestruturação produtiva e também sob a desconstrução neoliberal dos direitos sociais, que os
processos de extração de mais-valia extravasam velhos limites (como a necessidade de
322

preservação da força de trabalho, que permitiu as primeiras conquistas de direitos no século


XIX) para ameaçar a própria vida humana.
Esse novo retrato da escravidão do capitalismo consolidado e flexível encontra
ressonância nas “jornadas exaustivas” e nas “condições degradantes de trabalho”, as quais,
não por acaso, têm sua validade questionada nas discussões sobre a definição legal da
escravidão. São essas, por excelência, as duas figuras jurídicas no nosso direito que carregam
em si – tal como procuramos demonstrar ao longo de toda a tese – o substrato singular do
trabalho escravo contemporâneo (a violação da integridade física e da dignidade humana) e os
elementos de toda escravidão (exploração extrema através da mais extrema desigualdade).
Sobretudo, as condições degradantes de trabalho e as jornadas exaustivas exprimem o
amálgama entre liberdade formal, ampliação da mais-valia e violência biopolítica, que criam
um novo padrão de explorar e escravizar na contemporaneidade, quando o capital passa a ter à
disposição uma força de trabalho que, em termos de vida, é considerada descartável (porque
abundante) e consumível até seu fim (porque indigna).
O trabalho em condições degradantes exibe o efeito prático (e perverso) das
crenças e doutrinas racistas que permitem estabelecer quem é menos do que humano. Num
sistema todo construído sobre a questão antropocêntrica da dignidade humana, a comparação
de situações de escravidão a relatos sobre animais irracionais não é apenas metáfora: expõe o
próprio corte entre vida humana e vida sub-humana que, desde a antiguidade, fundamenta a
escravidão.
As jornadas exaustivas nada mais são do que a materialização dos processos
atuais de ampliação da mais-valia relativa e absoluta, apontados fartamente pela sociologia do
trabalho, levados às últimas consequências. Assim, estudar a morfologia do trabalho escravo
contemporâneo é importantíssimo para que possamos compreender não só as novas formas de
escravizar, mas também as novas armadilhas de exploração contidas no trabalho que é
considerado “livre”. As alarmantes coerções da escravidão contemporânea ajudam-nos a
enxergar com mais clareza as coerções mais sutis presentes também nas relações de “trabalho
livre”. Isto é, expõe o componente de servidão de toda relação fundada na mais-valia e na
liberdade formal de uma classe-que-vive-do-trabalho sob a coerção econômica da
sobrevivência.
Sob esta ótica, a permanência da escravidão tanto tempo após a sua abolição
formal deixa de surpreender. Como vimos neste estudo, da mesma forma como a proliferação
do trabalho escravo no bojo da modernização da agricultura brasileira mostrou que a
escravidão não era questão de “atraso” ou “arcaísmo”, a perpetuação do trabalho escravo
323

contemporâneo em Mato Grosso após o período de acumulação de capital da indústria


agrícola nascente, em plena consolidação do estado como potência do agronegócio, atesta
definitivamente que o trabalho escravo integra a reprodução do capital.
E não só a escravidão integra o sistema capitalista, como passa a assumir formas
cada vez mais características da exploração do trabalho no mercado formalmente livre. Hoje,
o insight de Bales (2004) sobre o aspecto contratual da escravidão contemporânea brasileira já
não pode ser ignorado, uma vez que a lógica do contrato passou a regular o controle sobre o
trabalhador do início ao término das relações com quem o escraviza. E, como demonstrado
neste estudo, o aspecto contratual das modalidades atuais de escravização no Brasil vai muito
além do aliciamento e da servidão por dívida.
Num modo de produção que se consolida pela disciplinarização dos sujeitos e por
sua interpelação através da ideologia jurídica e da ética do trabalho, pela substituição
progressiva da violência direta pela coação surda da necessidade, alicerçar o conceito de
trabalho escravo numa noção individualista e física de coação é restringir seu alcance a tal
ponto de torná-lo inoperante. Da mesma forma, condicionar a caracterização do trabalho
escravo à ausência total de consentimento, sem problematizar a questão do consenso sob a
força coercitiva da vulnerabilidade social e dos contratos, parece equivocado. Afinal, a crença
na interioridade e na consciência (do sujeito a priori) são os suplementos da servidão: “A
imposição da servidão humana através da força e da fraude não é suficiente; ela deve produzir
suas origens retroativamente (na época moderna, pelo menos) na vontade de cada e todo
sujeito” (MONTAG, 1995, p. 70).
Hoje, mais do que nunca, promover um debate sério sobre liberdade,
consentimento e vulnerabilidade constitui tarefa urgente. Num contexto político de
desconstrução dos direitos sociais, as instituições, agentes, normas e instrumentos ligados ao
enfrentamento do trabalho escravo têm sofrido ataques de diversos matizes em nosso país. E
uma das principais disputas políticas envolvendo o tema é, sem dúvida, o embate em torno do
conceito jurídico de “trabalho análogo a de escravo”, exposto no primeiro capítulo desta tese.
Após percorrermos toda a análise acerca da morfologia do trabalho escravo atual em Mato
Grosso, podemos compreender que a escravidão mais característica de nossos tempos não é
aquela que imobiliza trabalhadores, mas sim aquela que mobiliza corpos e consentimentos. E,
nesse diapasão, o argumento de que escravidão contemporânea se resuma apenas a “coagir
alguém a trabalhar contra a vontade, restringindo sua liberdade de locomoção” afigura-se oco
de qualquer sentido a não ser este: a tentativa de legalizar, por vias oblíquas, algumas
324

modalidades de escravidão no Brasil. E, não por coincidência, as modalidades com maior


incidência nos anos recentes.
Por fim, retornamos à história oral, que foi um dos principais alicerces desta
pesquisa. As narrativas de trabalhadores, auditores, lideranças sociais, agentes públicos e da
população envolvida no contexto em que o trabalho escravo contemporâneo se materializa
puderam trazer à luz as motivações, contextos e complexidades envolvidas nas relações
sociais aqui estudadas. Foi na consciência dos trabalhadores Arthur e Luís que a contradição
fundamental do trabalho escravo contemporâneo – em que se corre risco de vida sem ameaças
declaradas de morte – se expôs de maneira definitiva: escravidão contemporânea é se sentir
livre e, ao mesmo tempo, não ser livre: é, mesmo solto, estar preso.
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