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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

IVANI MARQUES DA COSTA GRANCE

PODE A COSTUREIRA FALAR?


ESTUDO ETNOGRÁFICO DE UM COLETIVO DE COSTUREIRAS EM CAMPO
GRANDE – MS

Campo Grande – MS, 2020.


Ivani Marques Da Costa Grance

PODE A COSTUREIRA FALAR?


Estudo etnográfico de um coletivo de costureiras em Campo Grande – MS.

Texto da dissertação a ser apresentado ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social –
PPGAS/UFMS da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS
como parte dos requisitos para a obtenção do título de
mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Cruz

Campo Grande – MS, 2020.

1
Ivani Marques Da Costa Grance

PODE A COSTUREIRA FALAR?


Estudo etnográfico de um coletivo de costureiras em Campo Grande – MS.

Texto da dissertação a ser apresentado ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social –
PPGAS/UFMS da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS
como parte dos requisitos para a obtenção do título de
mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Cruz

Banca examinadora

Prof. Dr. Ricardo Luiz Cruz (Presidente)


Instituição: UFMS

Prof. Dr. Wecisley Ribeiro do Espírito Santo (Integrante externo)


Instituição: UERJ

Profa. Dra. Flávia Freire Dalmaso (Integrante interno)


Instituição: UFMS
Eu me acho uma mulher corajosa, taí meus filho tudo casado, tem seu
trabalho, sua profissão, sua família. Mas tem que enfrentar, porque não é
fácil, não pode ser mole não. (Maria de Fátima).
AGRADECIMENTOS

Nestes anos de mestrado, período em que estive envolvida com esta pesquisa pude
experimentar a mais bela expressão de amor, carinho, companheirismo, comprometimento,
amizade, parceria, de pessoas que me acompanharam neste período de imersão nos estudos e
no desenvolvimento de minha jornada empreendedora. Pessoas pelas quais tenho a maior
admiração, amor e imensa gratidão. Foram contribuições que me deram energia para vencer
meus medos, fraquezas e prosseguir até a conclusão deste trabalho.
Minha gratidão imensa ao meu amigo e amor da minha vida, Gilson meu marido
companheiro de trinta e cinco anos de jornada. Que ao custo de seus próprios sonhos, me
incentiva e me apoia em cada fase da minha vida. A ele, dedico todo o meu amor. Agradeço a
minha filha Jenifer e meu filho Jonathan por compreenderem minha ausência presencial em
suas vidas nestes últimos tempos. Meu genro Júnior e minha nora Pattrycia – meus filhos por
extensão – vocês são maravilhosos. Meus amigos e familiares por todo o apoio e torcida de
vocês.
Agradeço à minhas amigas, Priscila e Maria de Fátima companheiras de trabalho e luta
na costura, por dedicarem horas preciosas de suas vidas na construção de um projeto tão
especial, sem vocês a República das Arteiras não existiria. Agradeço pelo crédito e confiança
que vocês depositaram nessa velha companheira de tantas lutas me permitindo registrar suas
histórias neste trabalho. À Priscila agradeço pela coragem de enfrentar um desafio tão
grandioso em não me deixar só no momento mais decisivo na criação do nosso coletivo de
costureiras (criamos um coletivo de duas costureiras). Agradeço à Maria de Fátima por tantos
anos de parceria, por sua generosidade em compartilhar tanto conhecimento e sabedoria
comigo e com a Priscila no desenvolvimento e consolidação da República das Arteiras. Por
me receber em sua vida como filha, compartilhando comigo o mesmo cuidado que devota aos
seus filhos.
Desejo agradecer em especial ao meu orientador Prof. Dr. Ricardo Luiz Cruz, por toda
paciência, dedicação e empenho ao me conduzir neste árduo processo de aprendizagem. Por
me fazer acreditar em meu potencial com tantas palavras de apoio e incentivo, por me ajudar a
ver o lado positivo e valoroso da minha profissão. Pela sua solicitude em me orientar via e-
mail, Google Meet, Whatsapp, pelos áudios de encorajamento que me levaram às lágrimas
tantas vezes, a sua fé em meu potencial me constrange a prosseguir, obrigada por tanto.
Também não posso deixar de agradecer aos meus colegas das turmas de 2017 e 2018,
todos que de alguma forma contribuíram para o meu desenvolvimento, nas aulas, nas leituras,
nos grupos de estudo, no café, nos eventos, tirando dúvidas, me acolhendo como igual. Não
vou citar todos os nomes, mas algumas pessoas destaco pelo carinho e empatia demonstrados
sejam de longe, seja de perto ao longo desta jornada. Andréa, Aline, Isabelle, Josy, Juliana,
Luana, vocês são queridas. E em especial a Ranielly por me incentivar tantas vezes e me fazer
sentir importante. Minha eterna gratidão a todas.
Agradeço aos coordenadores do PPGAS na pessoa do Prof. Dr. Álvaro Banducci e
posteriormente do Prof. Dr. Antônio Hilário Urquiza, por todo o apoio recebido nos
momentos em que tive dificuldades para conciliar meu trabalho como costureira e de
pesquisadora-aluna. Sinto-me honrada por fazer parte desta instituição sob a vossa condução.
Também estendo minha sincera gratidão ao Laércio por estar sempre disposto a me ajudar
com as questões burocráticas do programa.
E por fim, agradeço ao Criador por me permitir viver esta experiência tão intensa e
enriquecedora rodeada de pessoas tão generosas e inspiradoras, carrego a todos para sempre
em meu coração e em minhas orações.
RESUMO

O tema desta monografia é a questão da visibilidade e da invisibilidade das costureiras como


sujeitos de fala no campo da moda na cidade de Campo Grande – MS. Por sujeitos de fala
entendem-se aqui as pessoas cujos discursos ocupam um lugar de destaque, prestígio ou
reconhecimento num universo social. O foco da dissertação é na trajetória de três costureiras e
de um “coletivo de costura” criado por elas. A pesquisa reflete os desafios de uma
investigação conduzida por alguém que também é seu objeto de estudo, na medida em que
uma dessas trabalhadoras é a autora do presente texto. Outra questão que permeia a
dissertação é a da relação de suas trajetórias – individuais e coletivas – com as transformações
mais amplas no capitalismo, em especial com a emergência do que vem sendo chamado de
um “capitalismo artista”. Nessa relação parece estar à chave para entender o prestígio que
alcançaram no cenário da moda local.

Palavras-Chave: Costureira, trajetória, visibilidade, campo da moda.


RESUMEN

El tema de esta disertación es la visibilidad e invisibilidad de las costureras como sujetos de


habla en el campo de la moda en la ciudad de Campo Grande - MS. Sujetos de habla se
entienden aquí las personas cuyos discursos ocupan un lugar destacado, de prestigio o de
reconocimiento en un universo social. El foco de la disertación está en la trayectoria de tres
costureras y un “colectivo de costura” creado por ellas. La investigación refleja los desafíos
de una investigación realizada por alguien que también es objeto de estudio, ya que una de
estas trabajadoras es la autora de este texto. Otro tema que impregna la disertación es la
relación de sus trayectorias -individuales y colectivas- con las transformaciones más amplias
del capitalismo, especialmente con el surgimiento de lo que se ha denominado "capitalismo
artístico". Esta relación parece ser la clave para entender el prestigio que han alcanzado en el
panorama de la moda local.

Palabras clave: Modista, trayectoria, visibilidad, ámbito de la moda.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ENEM Exame Nacional do Ensino Médio


FATEC Faculdade de Tecnologia
IDE Instituto de Desenvolvimento Evangélico
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização
PROJOVEM Programa Nacional de Inclusão de Jovens
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
SESC Serviço Social do Comércio
SESI Serviço Social da Indústria
SISU Sistema de Seleção Unificada
UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

CAPÍTULO I – PODE A COSTUREIRA FALAR? TRAJETÓRIAS E


VISIBILIDADE/INVISIBILIDADE (RECONHECIMENTO) ENTRE TRÊS
COSTUREIRAS...........................................................................................................................18

1.1 A construção do sujeito de fala: perdendo o medo de falar “na


academia"............................................................................................................................18
1.2 A Trajetória de três costureiras em Campo Grande MS................................................21
1.2.1 Maria de Fátima – costura como ascensão social.............................................23
1.2.2 Ivani - costureira-antropóloga – uma autoetnografia.......................................31
1.2.3 Priscila – costurar para conquistar autonomia..................................................35
1.3 O mundo da costura em Campo Grande sob o olhar das costureiras...........................38

CAPÍTULO II - A TRAJETÓRIA SOCIAL DE UM COLETIVO DE COSTUREIRAS


NO CAMPO DA MODA DE CAMPO
GRANDE.................................................................................................................................50

2.1 Os campos da moda e da confecção de vestuário em Campo Grande: um diálogo com


Pierre Bourdieu.............................................................................................................50
2.2. Primeiro contato com um modelo de coletivo criativo de
moda...........................................................................................................................58
2.3 A criação do Coletivo de Costureiras..........................................................................66
2.4 Trajetórias do coletivo de costureiras República das Arteiras....................................74
2.5 O último grito da moda! – Construção do sujeito de fala coletiva............................79

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................96

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................98
INTRODUÇÃO

A antropologia nasceu do interesse de estudar o outro “distante”, o “exótico”, o


“diferente”, conhecer suas culturas, suas tradições e de certa forma demarcar pelas diferenças,
a superioridade da cultura ocidental. Tal conhecimento dependia majoritariamente de
informações, relatórios de viagem coletados a partir dos relatos e impressões de viajantes,
colonizadores, aventureiros, missionários e afins. Entretanto, essas análises não davam conta
de aprofundar o conhecimento sobre este “outro exótico” e “distante”, por ser uma produção
de dados desprovida do olhar previamente treinado pelas bases teórico-metodológicas.
As análises desses materiais eram feitas, posteriormente, por antropólogos de
“gabinete”, sem contato real com o campo. Nessas condições, essas análises não davam conta
de atingir um nível de autenticidade que conferisse à antropologia o status de ciência, de
acordo com uma geração posterior de antropólogos. Neste sentido, as contribuições
de Bronislaw Malinowski (1884 – 1942), com sua tentativa de descrever a visão de mundo do
nativo, utilizando-se da etnografia como método auxiliar da antropologia, foi decisivo para a
consolidação desta disciplina como científica. Com isso, tornou-se necessário aprender a
distanciar-se do familiar e aproximar-se do „exótico‟, no sentido de encontrar neste “outro”,
familiaridades com a cultura do pesquisador, possibilitando a este “pensar como o nativo”, de
tal maneira que não precisasse depender de intermediários para transitar, comunicar-se e obter
informações das mais diversas. (MALINOWSKI, 1984).
Malinowski (1984) defendeu uma metodologia inovadora para seu tempo, que
consistia na observação participante, em que o próprio antropólogo recolhia as informações in
loco e, posteriormente realizaria a análise, previamente orientado pelos pressupostos teóricos
da antropologia. Sua hipótese era de que quanto mais próximo e familiarizado com o objeto
da pesquisa, tanto mais eficaz seria o resultado. Seus métodos e técnicas de pesquisa
etnográfica foram decisivos para que a antropologia fosse reconhecida como ciência.
Apesar de Malinowski não ser o criador da antropologia, seus métodos inovadores de
sistematização através de sua pesquisa sobre o Kula, entre os trobriandeses, foram
fundamentais na tentativa de descrever os valores culturais do “exótico” a partir do olhar
cuidadoso e atento a esta mesma sociedade. Embora seu método tenha pontos divergentes que
dificultam o pleno entendimento destas culturas, suas contribuições são válidas até os dias
atuais, pois servem como norteador, no caminho em direção ao conhecimento dos sentidos do
“outro”.
O conhecimento das bases teóricas da disciplina é imprescindível para treinar o olhar e
funciona como uma lente, pela qual o pesquisador tem a possibilidade de observar a
realidade juntamente com o ouvir que, assim como o olhar, tem seu escopo
nas bases teóricas da antropologia. Estas duas etapas darão ao pesquisador, condições de
apreender o “modelo nativo”, proporcionando melhores condições de entendimento
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000), sem a qual, o pesquisador pode ter a escrita de sua
pesquisa seriamente comprometida.
Com o passar do tempo, a antropologia passou a voltar o seu olhar curioso também
para o familiar, com o pesquisador olhando para dentro de seu próprio espaço de convívio,
sendo este um exercício com suas dificuldades específicas (VELHO, KUSCHNIR, 2003).
Neste sentido há que se considerar que estar familiarizado não significa que se detenha o
conhecimento profundo de todos os pontos de vista. E ao assumir esta dificuldade, o
pesquisador deve estar disposto a relativizar o que julga ser familiar, com fins a obter o
conhecimento completo, tendo com isso o resultado de uma análise imparcial e exitosa
(VELHO, 1978).
Estudar o que é familiar não é uma novidade na antropologia brasileira, é necessário
encampar uma tarefa nada fácil que é o estranhamento do familiar. Este movimento do
estranhamento é crucial e tem como proposta desnaturalizar o que é aparentemente natural,
pois embora o campo seja parte do convívio do pesquisador, este não dá conta de assimilar
todos os pontos de vista dos atores a sua volta (ibid.1978). Há que se considerar também que,
quando o pesquisador volta seu interesse para o ambiente ao qual está familiarizado, já não o
faz com o mesmo olhar de outrora. Neste sentido o familiar é “um mundo social que conheço
sem conhecer, como sucede em quaisquer universos familiares” (Bourdieu, 2005, p. 89).
Esta monografia propõe um olhar para a construção social da visibilidade e da
invisibilidade1 do trabalho como costureira na cidade de Campo Grande – MS. Campo
Grande não tem polo industrial têxtil a exemplo de São Paulo e demais grande polos
industriais das regiões nordeste e sul2, em que existem diversas possibilidades de trabalho
com costura. Entretanto, possui uma cadeia produtiva de confecção de vestuário esportivo,
profissional e escolar em empresas de confecções formalizadas de pequeno e médio3 porte

1
No sentido da construção da fala da costureira como legítima nos espaços de luta em que transita.
2
Os maiores polos da indústria têxtil brasileira são o Vale do Itajaí na região sul do país; Agreste pernambucano
e polo do Ceará no nordeste e Polo Americana no sudeste, seguidos por Goiânia que vem demonstrando franco
crescimento na confecção de vestuário. Disponível em: https://fcem.com.br/noticias/quais-sao-os-principais-
polos-da-industria-textil-do-brasil/ e https://www.opopular.com.br/noticias/opiniao/editorial-1.145048/polo-
t%C3%AAxtil-de-goi%C3%A1s-1.1893585 Acesso em: 19/10/20.
3
Diz-se de pequeno porte, empresas ME (Micro Empresas) com até nove funcionários registrados para comércio
e serviços ou até dezenove empregados para a modalidade de indústria; EPP (Empresa de Pequeno Porte) de dez
a quarenta e nove para comércio e serviços ou de vinte a noventa e nove para indústria; Empresa de médio porte
que também foram afetadas pelas transformações ocorridas durante a reestruturação industrial
da década de 1990. Ainda que tardiamente, os reflexos dessas transformações ampliaram a
precariedade e exploração da força de trabalho de costureiras em nossa cidade, o que fez com
que estas empresas, por sua vez, mantivessem um quadro de funcionários restrito, utilizando
preferivelmente força de trabalho subcontratada de facções domiciliares distribuídas por toda
a cidade, conforme GRANCE (2016):

As profissionais que não possuíam condições de formar uma pequena


empresa prestadora de serviços terceirizados foram obrigadas, pela sua
própria necessidade de subsistência, a ingressar no grande contingente de
novas costureiras faccionistas autônomas, que passaram a trabalhar em seu
domicílio. (p. 30).

Estas novas costureiras faccionistas autônomas eram as trabalhadoras que perderam


seus empregos pela diminuição dos postos de trabalho na indústria causados pela
reestruturação, ou alunas egressas de cursos capacitação em costura industrial que não
conseguiram ser inseridas no mercado de trabalho formal. Esta característica permite a
exploração desta força de trabalho, bem como a competitividade acirrada pela concorrência
imposta por intermediários. Para ter acesso ao serviço com costura de facção em Campo
Grande, a costureira precisa fazer parte de uma vasta rede de distribuição controlada por
intermediários. Estes, por sua vez, negociam diretamente com o cliente (tomador de serviço)
e, posteriormente, distribuem o serviço entre cortadores e costureiras faccionalistas
domiciliares. Os requisitos para participar desta rede são: ter máquinas adequadas para cada
demanda de produção, trabalhar em domicílio, sem vínculo empregatício ou qualquer outro
tipo de controle ou regulação. Estas condições causam não só dependência e exploração, mas
também a invisibilidade que permite que estes intermediários ajam livremente no setor e até
sejam vistos como ajudadores4, tanto pelos seus clientes, quanto pelas próprias costureiras
revelando assim um sistema que opera mais efetivamente, dentro de um contexto de
invisibilidade das costureiras frente ao cliente final.
Portanto acompanharei a trajetória de três costureiras e do coletivo de costureiras
“República das Arteiras”, criado por elas em fevereiro de 2018. A pesquisa reflete os desafios

com cinquenta a noventa e nove para comércio e serviços e de cem à quatrocentos e noventa e nove para
indústria. Disponível em: SEBRAE-NA/ Dieese. Anuário do trabalho na micro e pequena empresa 2013, p. 17.
www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/Anuario%20do%20Trabalho%20Na%20Micro%20e%20P
equena%20Empresa_2013.pdf
4
Trata-se de uma expressão nativa que associa o intermediário à figura de alguém que é parceiro de trabalho das
costureiras, alguém que faz com que o trabalho e a renda cheguem até elas. Ainda que a costureira se sinta em
desvantagem ao aceitar os baixos valores pagos pelo serviço e os calotes tão comuns neste meio, o intermediário
ainda é em certa medida, a única possibilidade de esta conseguir trabalho.
de uma investigação conduzida por alguém que também é seu objeto de estudo, pois uma
dessas trabalhadoras é a autora do presente texto. Outra questão que permeia a dissertação é a
da relação de suas trajetórias – individuais e coletivas – com as transformações mais amplas
no capitalismo, em especial com a emergência do que vem sendo chamado de um
“capitalismo artista” por Lipovetsky e Serroy (2015), onde percebem que:

(...) o trabalho artístico é no mais das vezes coletivo, confiado a equipes com
uma autonomia criativa limitada, controlada por gestores e integrada no seio
de estruturas hierárquicas mais ou menos burocráticas. Não obstante, trata-se
de criar beleza e espetáculo, emoção e entertainment, para conquistar
mercados. Nesse sentido, é uma estética estratégica ou uma “engenharia do
encantamento” que caracterizam o capitalismo artista. (pg. 30)

É justamente nessa relação, que parece estar à chave para entender o prestígio que
alcançaram no cenário da moda local. Meu objetivo é mostrar como essas trajetórias
(individuais e coletivas), estão diretamente relacionadas com as transformações mais amplas
do capitalismo. Para melhor compreensão do que proponho, faz-se necessário primeiramente
esclarecer algumas questões de minha trajetória acadêmica, até o ponto em que me posiciono
como objeto de pesquisa e ao mesmo tempo pesquisadora dentro dos campos de confecções
de vestuário e do campo da moda em Campo Grande MS. Essas questões também envolvem o
problema da visibilidade e invisibilidade das profissionais da costura.
O que faz uma costureira na academia nas Ciências Sociais? Quais caminhos me
trouxeram até aqui? Onde pretendo chegar? Todas estas perguntas me foram dirigidas por um
professor,5 para o qual prestei serviços de costura na época da minha graduação em Ciências
Sociais, naquele momento foram respondidas sem maiores elaborações, dada a minha
condição de neófita na academia. No entanto, ao encampar esta pesquisa percebi ser
necessário dar maior atenção a estes questionamentos, problematizando-os, de modo a refletir
sobre esta fala, a fala de uma costureira na academia. É por eles que inicio a reflexão.
Nunca havia pisado em uma universidade, até o dia em que levei minha filha para
prestar o vestibular, meu tempo para isso já havia passado. No ano em que abriram o ENEM
para a aquisição da certificação do ensino médio, me inscrevi com o intuito de eliminar

5
Prof. Dr. Paulo Vieira da UNEMT em Cáceres. Ao oferecer meus serviços de costureira para a Profª. Drª.
Priscila Medeiros que era minha professora de Sociologia foi que o conheci, fiz a roupa do casamento deles e na
ocasião do atendimento para tirar medidas para as roupas, ele então me fez estes questionamentos em tom de
curiosidade, dados a peculiaridade de minha condição na academia. Não foi um questionamento pejorativo, mas
provocativo. Ele quis saber como acessei o curso e o que pretendia fazer com tal conhecimento. Suas questões,
no entanto ecoam ainda em meus ouvidos, como um convite a respondê-las.
algumas disciplinas e poder concluir o que faltasse no EJA.6 Estive fora da escola por duas
décadas – parei quando ainda se chamava de “Científico” em 1988 – retomei os estudos em
uma turma de EJA em 2007, mas interrompi novamente por mais três anos.
Meu objetivo com a certificação do ensino médio era me inscrever no Curso Técnico
de Costura Industrial da FATEC/SENAI,7 que iniciaria no segundo semestre de 2012, esse
sim era meu sonho de costureira, me qualificar em minha área profissional. Esta qualificação
significava minha oportunidade de ascensão dentro da categoria de costureira. Ter um
certificado de técnico em costura industrial permitiria obter o reconhecimento profissional
necessário para a expansão das possibilidades de trabalho.
Para total surpresa minha, de minha família e amigos, ao me submeter ao ENEM tive
uma pontuação surpreendente em redação que elevou o resultado final, de forma que, alcancei
muito mais que a conclusão da certificação do ensino médio. Entretanto, surpresa maior viria
no dia seguinte ao resultado, com a possibilidade de cursar faculdade tanto pública quanto
privada, divulgada pelo SISU.8 Em um único teste saltei da categoria de ensino médio
incompleto à candidata a uma vaga na academia. Com este resultado, fui incentivada pela
minha família a ingressar na universidade em algum curso com o qual me identificasse. Fui
atraída ao curso de Ciências Sociais pela grade curricular, havia a disciplina de Antropologia
que muito me interessou. Ingressei no curso em 2012, um pouco assustada e deslocada9, mas
ao final do primeiro semestre já estava inteiramente envolvida com as possibilidades que este
curso me proporcionava. A escolha foi assertiva, concluí a graduação com um trabalho de
conclusão de curso, que posteriormente, foi como uma ponte para minha entrada no mestrado
em Antropologia Social.
Ingressei no programa de mestrado após uma transição profissional, estava encerrando
um período de quatro anos trabalhando10 com gestão e capacitação para mulheres na ONG
Instituto de Desenvolvimento Evangélico – IDE e iniciando um projeto autônomo com seu

6
A Educação para Jovens e Adultos (EJA) é uma forma de ensino da rede pública no Brasil, com o objetivo de
desenvolver o ensino fundamental e médio com qualidade, para as pessoas que não possuem idade escolar e
oportunidade.
7
Faculdade de Tecnologia de Campo Grande, parte integrante do Sistema “S”.
8
O Sistema de Seleção Unificada (SISU) é o sistema informatizado, gerenciado pelo Ministério da Educação
(MEC), pelo qual instituições públicas de educação superior oferecem vagas a candidatos participantes do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). http://sisu.mec.gov.br
Acesso em 03/10/2019.
9
Uma série de fatores contribuiu para este deslocamento sendo que um dos principais foi a diferença de idade.
Estava voltando a estudar com quarenta e dois anos e pensava que seria uma “tia” em meio a jovens recém-
saídos do ensino médio. Tinha receio de não ser aceita inicialmente por isso. Outros fatores como classe social,
religião e situação econômica pesaram em meus sentidos e embora estivesse ali de forma legítima, não me sentia
parte daquele universo.
10
Sendo que os últimos dois anos deste período, exerci esta função como voluntária em um projeto piloto de
cooperativa para costureiras que não se consolidou devido a não nos enquadrarmos às regras de formalização
nesta modalidade.
apoio e de duas amigas costureiras. Em fevereiro de 2018 demos início no Coletivo de
costureiras República das Arteiras, nesse primeiro momento costurando em casa e
posteriormente entramos no programa de incubação de empresas das Incubadoras Municipais
de Campo Grande, nos instalando em uma das salas da Incubadora Municipal Mário Covas
localizado na região sul de nossa capital. Nos primeiros meses foi possível conciliar as aulas
com o trabalho na costura e os afazeres domésticos, haja vista termos uma quantidade menor
de clientes e consequentemente de serviço. Conseguia alternar ao longo da semana, os dias de
aula com os cuidados da casa e os dias de trabalho no coletivo, aproveitando o período
noturno para fazer as leituras. Em meados do segundo semestre já estávamos atendendo uma
quantidade maior de clientes, ocupando todo o tempo diurno. Iniciamos as atividades da nossa
jornada empreendedora em cursos, palestras e oficinas da Incubadora, SEBRAE e Livinglab-
MS que ocorriam no período noturno em duas ou três vezes na semana. Tornando a
madrugada o melhor horário para leituras e escrita deste trabalho.
Na medida em que as atividades do coletivo e o desenvolvimento da escrita da
pesquisa se intensificaram, ficava cada vez mais difícil participar de atividades
extracurriculares oferecidos pela universidade. Motivo pelo qual deixei de acompanhar minha
turma em congressos locais e externos, grupos de estudo, situação que deixou uma lacuna na
minha carreira acadêmica. Lacuna que demonstra perdas irrecuperáveis como as trocas de
saberes, de conhecimento e experiências que com certeza tornariam o processo de análise e
escrita menos árduo para mim. Por vezes sem fim me senti uma fraude11por não estar presente
como deveria – ou como gostaria – nas atividades da academia ou na minha casa para estar à
frente de compromissos relativos ao coletivo ou à produção deste trabalho. Entretanto, a
despeito de me sentir uma “fraude” ou do cansaço, desistir nunca foi uma opção. O mestrado
e o trabalho com costura estão interligados, um não faz sentido sem o outro, são ferramenta de
análise e objeto de estudo ao mesmo tempo. Ademais disto, o trabalho com costura é umas
fontes de renda da minha casa – não mais um projeto experimental, mas uma questão de

11
“Eu sou uma fraude” Incapazes de aceitar o próprio sucesso, pessoas com a síndrome do impostor podem se
sentir como fraudes porque acreditam que só ocupam a posição atual por terem enganado seus pares, fazendo-os
acreditar que são mais inteligentes ou competentes do que realmente são. Gilmar Fidelis, que também é
coordenador do Programa de Tutoria da Faculdade de Medicina e psicólogo do Núcleo de Apoio
Psicopedagógico aos Estudantes da Unidade (Napem), explica que atenção dos pesquisadores em saúde mental
tem se voltado para esse fenômeno nos últimos anos, mesmo a síndrome do impostor não sendo reconhecida
oficialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Gail Matthews também concluiu que um dos
ambientes mais propícios para a manifestação do fenômeno é o meio acadêmico, sobretudo entre os alunos de
mestrado e doutorado. Fidelis explica que a prevalência nesses ambientes se deve à alta competitividade, à
rigorosidade dos processos de seleção e ao nível exacerbado de competência demandado dos indivíduos.
Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/sera-que-sou-uma-fraude-conheca-a-sindrome-do-
impostor/#:~:text=%E2%80%9CEu%20sou%20uma%20fraude%E2%80%9D,competentes%20do%20que%20re
almente%20s%C3%A3o.
sobrevivência – me levando a intensificar minha atuação como empreendedora por um lado e
pesquisadora por outro, para que novas portas se abram à frente trazendo melhores condições
materiais de vida.
Reitero que, aqui é uma costureira que está se tornando antropóloga, falando na
tentativa de se libertar de certos constrangimentos, para poder entender melhor o que está
acontecendo à sua volta. Ressalto a relevância da utilização destes relatos como fonte de
dados, em que “a história pessoal deve se tornar o trampolim para uma compreensão maior”
contribuindo com o entendimento mais amplo do objeto em estudo, (FORTIN 2009, p. 83). E
é a partir da minha inserção no mundo acadêmico que inicio o primeiro capítulo,
relacionando-a em seguida com a questão da visibilidade e invisibilidade e da construção do
sujeito de fala na minha trajetória profissional e social e das outras duas costureiras, tanto
individual, quanto coletivamente.
Nesta primeira parte da monografia a questão da visibilidade e invisibilidade é
abordada sob diversos aspectos, tendo em vista diferentes estágios da trajetória social e
profissional destas costureiras e os recursos (capitais) que cada uma mobiliza –
individualmente – para transitar entre o universo em que desenvolve seu trabalho – campo da
confecção de vestuário – e o seu lar. No segundo capítulo esta questão é vista a partir da
trajetória coletiva destas costureiras na “República das Arteiras”. Em como suas disposições e
capital intelectual adquiridos nas suas trajetórias individuais são mobilizadas para a
construção de um sujeito de fala que permitisse atuarem não só no campo da confecção de
vestuário – onde já tinham acesso –, mas também no campo da moda que ressurgia após uma
década de inatividade e ao qual não tiveram acesso anteriormente.
Considerando neste contexto, a visibilidade como reconhecimento da legitimidade de
fala nestes espaços de luta tendo em vista, que “a comunicação em situação de autoridade
pedagógica supõe emissores legítimos, receptores legítimos, uma situação legítima, uma
linguagem legítima.” (BOURDIEU, 1983, pg. 8). Entretanto, dialeticamente a invisibilidade é
vista como a negação da legitimidade de fala, tanto em um espaço, quanto no outro. Neste
sentido, quem pode falar nestes espaços? No ambiente de trabalho com costura há espaço de
fala para a costureira? E no ambiente familiar, até que ponto sua fala é legítima? O quê esta
costureira quer falar? Para quem ela quer falar? Seu direito de fala é legítimo? A questão do
direito á fala, está presente em toda a discussão desenvolvida nos dois capítulos, sendo assim,
todas estas indagações se concentram em uma questão central: Pode a costureira falar?
CAPÍTULO I – Pode a costureira falar? Trajetórias e visibilidade/invisibilidade
(reconhecimento) entre três costureiras

1.1 A construção do sujeito de fala: perdendo o medo de falar “na academia".

É possível encontrar uma antropóloga que costure eventualmente como um hobby,


entretanto não é comum encontrar uma costureira na academia, sobretudo
uma costureira pesquisadora. Adianto que enquanto costureira carrego certos medos, certos
constrangimentos para falar, que não se dissipam facilmente. A academia não é um lugar-
comum para uma costureira de meia-idade, não é um lugar “natural”, assim como meu acesso
a ela também não o foi, e “embora eu procure destacar a precariedade da minha posição ao
longo deste texto, sei que esses gestos nunca serão o bastante” (SPIVAK, 2010).
Parafraseando Spivak, pode uma costureira falar? Ou pode a costureira falar na academia?
Apesar dos avanços – nas possibilidades de acesso como espaço de conhecimento às
mais variadas classes sociais – a academia ainda permanece sendo um espaço de poder, de
distinção e de reconhecimento (BOURDIEU, 1998). É um espaço em que, para falar, é
preciso atender a certas prerrogativas distintivas e definidas pela sociedade que “estabelece os
meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais
para os membros de cada uma dessas categorias” (GOFFMAN 1975, p. 12). Domínio da
linguagem em norma culta, familiaridade com literatura, escrita científica, erudição,
disponibilidade de tempo, são alguns dos atributos e requisitos desejáveis aos que adentram
neste espaço.
Estas prerrogativas agem normatizando o acesso aos seus recursos e aqueles que se
encaixam em suas expectativas são classificados como normais.12 Em contrapartida, as
categorias que não se encaixam nestes atributos ou prerrogativas, ainda que o adentrem pelos
meios legítimos e transitem no mesmo espaço, o faz sob a pressão do estigma, que age através
de estereótipos pré-definidos pelos “normais”. (GOFFMAN, 1975).
Estar em uma universidade nunca foi uma possibilidade em minha vida. Quando mais
nova a universidade era espaço destinado aos jovens de uma elite econômica superior à
minha, não era meu lugar. Nunca havia pisado em uma universidade, até o dia em que levei
minha filha para prestar o vestibular, meu tempo para isso já havia passado. Meu objetivo ao

12
Goffman utiliza este termo para definir os que estigmatizam.
prestar o ENEM13 era conseguir concluir o ensino médio que estava incompleto. Estive fora
da escola por duas décadas – parei quando ainda se chamava de “Científico” em 1988 –
retomei os estudos em uma turma de EJA em 2007, mas interrompi novamente por mais três
anos.
No ano em que abriram o ENEM para a aquisição da certificação do ensino médio, me
inscrevi com o intuito de eliminar algumas disciplinas e poder concluir o que faltasse no
EJA.14 Meu objetivo com a certificação do ensino médio era me inscrever no Curso Técnico
de Costura Industrial da FATEC/SENAI,15 que iniciaria no segundo semestre de 2012, esse
sim era meu sonho de costureira, me qualificar em minha área profissional. Esta qualificação
significava minha oportunidade de ascensão dentro da categoria de costureira. Ter um
certificado de técnico em costura industrial permitiria obter o reconhecimento profissional
necessário, para a expansão das possibilidades de trabalho naquele momento de
transformação observado por Jinkings (2003) desde a década anterior:

(...) em relação à qualificação dos trabalhadores, ocorreu no inicio de 2000


uma situação pouco usual. Com o movimento de recuperação do setor têxtil
já a partir de 1999, as indústrias passaram a encontrar dificuldades em
recrutar força de trabalho qualificada. (pg. 89).

Esta dificuldade da indústria observada por Jinkings motivou uma grande


disseminação de cursos profissionalizantes gratuitos e cursos técnicos, com um custo mais
acessível oferecido por alguns seguimentos do Sistema “S” (SENAI, SENAC, SEBRAE,
16
SESI, SESC) em parceria com o governo federal, estado e prefeituras, a fim de preparar a
força de trabalho necessária para cobrir esta lacuna. Neste sentido, era desejável a qualquer
costureira ter esta qualificação, tanto para ser contratada pela indústria como celetista (com
carteira assinada), quanto como autônoma. Naquele momento, esta capacitação técnica se

13
Exame Nacional do Ensino Médio e foi criado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) para testar o
nível de aprendizado dos alunos que concluíram o ensino médio no Brasil.
14
A Educação para Jovens e Adultos (EJA) é uma forma de ensino da rede pública no Brasil, com o objetivo de
desenvolver o ensino fundamental e médio com qualidade, para as pessoas que não possuem idade escolar e
oportunidade.
15
Faculdade de Tecnologia de Campo Grande, parte integrante do Sistema “S”.
16
Termo que define o conjunto de organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento
profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica, que além de terem seu nome iniciado
com a letra S, têm raízes comuns e características organizacionais similares. Fazem parte do sistema S: Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Social da Indústria
(SESI); e Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC). Existem ainda os seguintes: Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo
(SESCOOP); e Serviço Social de Transporte (SEST).
Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/sistema-s
Acesso em 21/09/2019.
constituía como um poder material e simbólico, na luta por reconhecimento e distinção dentro
do campo de confecções (BOURDIEU, 1988).
Para total surpresa minha, de minha família e amigos, ao me submeter ao ENEM
alcancei uma pontuação surpreendente em redação que elevou a nota do resultado final, de
forma que alcancei muito mais que a conclusão da certificação do ensino médio. Entretanto,
surpresa maior viria no dia seguinte ao resultado, com a possibilidade de cursar faculdade
tanto pública quanto privada, divulgada pelo SISU.17 Em um único teste saltei da categoria de
ensino médio incompleto à candidata a uma vaga na academia. Com isso, me vi envolvida em
um conflito de sentimentos, uma mistura de espanto, alegria, medo e tristeza tudo ao mesmo
tempo.
Espanto pela nota 900 em redação depois de tantos anos fora da escola, alegria pela
novidade, medo e tristeza, por ter alcançado um resultado tão surpreendente e poder ingressar
numa universidade pública aos quarenta e dois anos, enquanto minha filha aos vinte não havia
conseguido18. Não estava certo, não era normal, todo o trabalho e esforço dos pais são para
colocar os filhos na universidade, pois meu “trabalho tinha o objetivo único e perene, servir à
família.” (SENNET, 1999, p. 13). Conquanto tenha ensinado conhecimentos básicos de
costura à minha filha, preferia que ela tivesse melhores oportunidades de ascensão na vida
através da universidade (ibid. p.16), no entanto, quem entrou fui eu19.
Dentro deste contexto de conflitos e dilemas internos, adentrei na academia com
sentimento de demérito, de usurpação. Não era meu lugar, estava velha demais para estudar
com pessoas recém-saídas do ensino médio. Estes dilemas me seguiram por alguns meses até
meados do quarto semestre, quando um de nossos professores nos chamou a atenção dizendo
que os que estavam ali, entraram por mérito e que era necessário atentar-se para isso de forma
a não perder esta oportunidade. Foi uma repreensão que me levou a refletir sobre minha
trajetória até ali, fazendo com que aceitasse esta nova realidade e não perdesse uma
oportunidade que, embora naquele momento parecesse tardia, estava ali e eu não deveria
desperdiçar.

17
O Sistema de Seleção Unificada (SISU) é o sistema informatizado, gerenciado pelo Ministério da Educação
(MEC), pelo qual instituições públicas de educação superior oferecem vagas a candidatos participantes do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). http://sisu.mec.gov.br
Acesso em 03/10/2019.
18
Eu havia abandonado o EJA havia três anos e buscava apenas a certificação do ensino médio, não me preparei
para concorrer a uma vaga na universidade, essa possibilidade nem ao menos passara em meu imaginário. Em
contrapartida, havíamos concentrado esforços para que minha filha pudesse entrar na UFMS. Um ano de
cursinho, aulas particulares não foram suficientes para que ela conseguisse a vaga que tanto queria e para a qual
nos dedicamos tanto.
19
Assim como Enrico (SENNET, 1999), eu preferia que ela não precisasse ter que lançar mão da costura para
sobreviver. O sonho americano de ascensão social tinha mais sentido naquele momento. Ver minha filha se
formar e construir uma carreira profissional de sucesso, alcançar estabilidade financeira, realizaria o sonho não
só de pais suburbanos, era o sonho de uma família inteira de trabalhadores subalternos.
Faço estas reflexões a fim de situar minha condição dúbia de “pesquisadora-objeto” ou
“nativo-pesquisadora”, reconhecendo os limites desta exposição pessoal e sob o temor de dar
um tom jocoso ou mesmo presunçoso a este trabalho. Dessa forma, sinalizo, aqui é uma
costureira que está se tornando antropóloga, falando na tentativa de se libertar de certos
constrangimentos, para poder entender melhor o que está acontecendo à sua volta. Ressalto a
relevância da utilização destes relatos como fonte de dados, em que “a história pessoal deve
se tornar o trampolim para uma compreensão maior” contribuindo com o entendimento mais
amplo do objeto em estudo, (FORTIN 2009, p. 83).
Contudo, pontuo que, embora haja, em certa medida, a ação de alguns
constrangimentos encucados em meus sentidos, vivencio um paradoxo constante. A condição
de antropóloga-costureira me retrai na academia, pois neste espaço de poder, o capital
intelectual de que disponho ainda é insuficiente para dar som a minha fala. Paradoxalmente,
este mesmo capital intelectual insuficiente neste campo de poder é moeda de negociação em
outro campo. Nos campos de confecções e da moda, a condição de costureira-antropóloga
confere legitimidade não só na fala, mas na luta por reconhecimento e distinção, não só pelo
capital intelectual, mas também pelo capital social adquirido na vida acadêmica
(BOURDIEU, 1998). Deste modo, me pergunto, a fala que por vezes cala na academia, cala
fora dela?
Neste sentido, enquanto adquiro capital intelectual suficiente para desenvolver os
signos distintivos que me garantam o lugar de fala na academia, fora dela o mesmo capital,
ainda que aparentemente incompleto ou insuficiente, tem se mostrado eficiente no sentido de
permitir ocupar lugares de fala em diversos outros espaços de poder. No campo da Moda e
nos espaços de poder das instituições público-privadas, lugares tais como desfiles de moda,
eventos oficiais promovidos pela prefeitura municipal, instituições de fomento ao
empreendedorismo, câmara municipal, por exemplo, não são espaços ou lugar de fala de uma
costureira (RIBEIRO, 2017). Entretanto, quando a costureira se apresenta como mestranda em
antropologia social, esse capital intelectual é reconvertido e, quase como uma mágica20, há a
permissão para ocupar este lugar de fala. Todavia essa concessão é limitada a quem possui
signos distintivos e sem os quais jamais teria acesso a estes espaços, se não os tivesse
adquirido na academia.

1.2 A Trajetória de três costureiras em Campo Grande MS

20
No sentido em que Bourdieu (1983, p. 161) aborda a magia como o “poder que se exerce no campo”.
As mulheres com as quais trabalho no coletivo de costureiras – e objetos desta
pesquisa – são: Priscila, uma jovem campo-grandense de trinta e cinco anos e que costura há
pouco mais de seis anos e Maria de Fátima, uma senhora nordestina de sessenta e seis anos
cuja trajetória profissional de cinquenta e dois anos, foi marcada por vários momentos
históricos dentro do setor de confecções. Esses momentos foram marcados por
transformações sociais, econômicas, estruturais, geopolíticas entre outras. A riqueza de
informações contidas em seus relatos atravessam os relatos das demais costureiras deste
campo. As trajetórias destas profissionais nos servirão como ponto de partida às nossas
análises, para compreender os sentidos e significados das transformações neste campo
(enquanto um espaço de reconhecimento dessas trabalhadoras).
Cabe salientar que essas histórias de vida foram interligadas dentro de um período
marcado por transformações em diversos setores da economia, sobretudo no setor industrial
têxtil o que compreende principalmente o campo de confecções de vestuário. Neste interim o
capitalismo que vinha se reordenando desde 1970, toma novas formas e atinge um novo
patamar de acumulação de capital (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Estas transformações
prosseguiram nos anos seguintes nos países de capitalismo avançado e, com isso, trouxeram
mudanças no mundo do trabalho como um todo, causando uma profunda crise em todos os
aspectos que envolvem a vida da “classe-que-vive-do-trabalho”, como pontua (ANTUNES,
1995):
A década de 1980 presenciou, nos países de capitalismo avançado,
profundas transformações no mundo do trabalho, mas suas formas de
inserção na estrutura produtiva, nas formas de representação sindical e
política. Foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar
que a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século,
que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na
sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a
sua forma de ser. (pg. 15).

Dentro deste contexto, estas transformações poderão ser mais bem observadas através
das trajetórias acima mencionadas. Entretanto, ao mencionar estas histórias de vida, não as
farei como que apresentando uma versão biográfica dentro de um sistema cronológico e
linear, mas como “séries de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou
mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes
21
transformações” (BOUDIEU, 1996, p. 189) . Neste sentido, me interessa entender o

21
Ainda segundo o autor, “Os acontecimentos biográficos definem-se antes como alocações e como
deslocamentos no espaço social, isto e, mais precisamente, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da
distribuição dos diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo considerado”. (BOUDIEU, 1996, p. 74).
Assim, me interessa entender os esforços dessas pessoas em transformar diferentes tipos de capitais – sociais
(como redes de relações), econômicos (dinheiro, em especial) e culturais (escolares ou técnicos) – em um capital
empenho destas agentes, em transformar seus capitais acumulados (sociais, econômicos e
culturais) em capital simbólico, que junto ao habitus22 intermedia suas relações, isto é,
enquanto disposições que foram incorporadas por elas e que as guia e as motiva a obter uma
distinção dentro do campo em questão.
Inicio com Maria de Fátima que teve sua vida profissional atravessada por vários
períodos das transformações do campo de confecções nacional e local.

1.2.1 Maria de Fátima – costura como ascensão social

Maria de Fátima e sua família mudaram-se do interior do Ceará para o interior de


São Paulo em meados de 1950-1960, quando ela tinha apenas três anos de idade, fugindo da
seca e da fome que acometia sua cidade natal, Mombaça. Seus pais e irmãos mais velhos
vieram atraídos por oportunidades de trabalho nas lavouras de café e amendoim no Estado de
São Paulo. Maria de Fátima não se lembra da viagem – tinha em torno de três anos de idade –
mas conta como foi pelo relato de seus irmãos:

Minha irmã Maria conta que viajamos de pau-de-arara des do Ceará até
São Paulo, só parava de noite para comer, banha e dormi. O pai estendia as
rede na carroçaria e quando era cedinho pegava estrada de novo. Ela disse
que eu era uma malandra, dormia no colo delas tudo, a viagem toda e só
acordava para mamar na minha mãe (risos). Meu pai sofreu tanta fome e
necessidade naquele lugar, eu não passei isso, mas meus irmão mais véio
passaram com ele. Meu pai falava que o dia que ele morresse, se a alma
dele tivesse vergonha na cara, não passava nem por cima do Ceará. Dizia,
que terra ruim, de fome, de carênça, de precisão de tudo. (Maria de Fátima)

Ela só foi matriculada aos onze anos de idade, estudou somente até o terceiro ano do
ensino fundamental, pois sofria muito preconceito das outras crianças por ser mais velha que
todos da turma. Como era a caçula, foi poupada de ir para a roça junto do pai e demais irmãos
e irmãs mais velhos. Embora não tenha trabalhado desde cedo na roça, não estava alheia ao
trabalho doméstico.

simbólico (reconhecimento, prestígio ou legitimidade) dentro do campo em questão, que figura como um campo
de lutas e relações de poder.
22
"um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona
a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações [...]" (BOURDIEU, 1983, p. 65). O
habitus é um conhecimento adquirido nas relações sociais dos agentes ao longo da vida, “alcançando especial
relevância aquelas apreendidas na família no momento da primeira socialização, assim como as provenientes da
incursão no universo escolar” (PERERA, 2015 p. 8). Na costura, os meios de formação do habitus desse ofício
passa em certa medida pelas relações no âmbito familiar ou através de formação técnica adquirida no âmbito
educacional. Possibilitando ao portador deste habitus, condições de interagir dentro do campo da moda.
Os menino da escola me tirava sarro, porque eu era grandona no meio dos
pequeno do primeiro ano, eu ia a pulso. Só fiquei até o terceiro ano, não
gostava de estudar, mas conseguia fazer qualquer coisa, só não gostava de
ficar lá estudando. Se me mostrar como faz, eu faço igual. Hoje em dia eu
acho que se tivesse estudado, tinha me dado muito bem, mas faltou paciença
e peguei raiva dos moleque na época. Preferia ficar com minha mãe em
casa, eu ajudava com tudo o serviço e até cuidar dos sobrinhos e das irmãs
e cunhadas que ganhava neném. (Maria de Fátima)

O gosto de Maria de Fátima pela costura, veio da convivência com sua irmã Maria
que era a mais velha e que já costurava para a família e vizinhos nas horas vagas, assim que se
casou, Maria saiu da roça no interior de São Paulo e foi para a capital trabalhar em uma
fábrica de confecções. Ao final dos anos sessenta, Maria de Fátima que já tinha catorze anos,
foi ajudar sua irmã que era costureira industrial a fazer arremates, 23 foi através deste serviço
que Maria a ajudou a adquirir sua primeira máquina de costura e com a qual deu seus
primeiros pontos como costureira amadora, ainda não sabia traçar o molde das roupas no
papel antes de cortar no tecido. Acabou sendo aceita temporariamente na fábrica em que sua
irmã trabalhava e embora sua função na fábrica fosse subalterna, precária e irregular – pois
era menor de idade e não tinha carteira assinada – não a impediu de ver na profissão de
costureira um meio de ascensão social e autonomia financeira.
De volta ao interior onde morava com seus pais, Maria de Fátima passou a fazer
pequenos serviços de costura. Como seu pai não tinha condições de ajuda-la financeiramente,
aos dezoito anos viu no serviço da roça, a oportunidade de conseguir o dinheiro para pagar o
curso profissional de costura. Depois de muita insistência junto aos pais e irmãos, conseguiu a
permissão para trabalhar nas colheitas de algodão e de amendoim, a fim de conseguir recursos
suficientes para pagar o curso de modelagem e costura e o diploma e a credencial de
representante do Método VOGUE24.

Eu já tava cansada de esperar quando Maria vinha, para me ajudar a traçar


os moldo que eu queria, uma veiz um vizinho queria uma calça e eu não
sabia traçar. Desmanchei a calça dele, cortei a nova e costurei a calça dele
de novo, ele nem percebeu o que eu fiz (risos). Daí falei para meu pai: Já
que o senhor não tem dinheiro para me dar o curso, então me deixa trabaiá
mais vocês nas colheita para eu pagar meu curso. (Maria de Fátima)

23
O arremate é um procedimento de finalização da costura, compreende vários procedimentos como nó na linha
no final da costura, corte de fios soltos, pontos de reforço para que a costura não se desfaça.
24
Método de ensino de corte e costura. “(...) O Método Vogue de autoria de Antônio Campagnolli publicado
pela Escola de Corte e Costura São Paulo, ainda que um material de cunho pedagógico apresenta diversas
páginas de incentivo ao estudo do ofício de corte e costura e a sua autopromoção, que possibilita a análise da
imagem feminina nas décadas de 1950 e 1960” Disponíveis em: http://www.scielo.br/pdf/heduc/v21n53/2236-
3459-heduc-21-53-00267.pdf Acesso em: 23/02/2019.
Apesar de o trabalho na roça ser mais rentável naquele momento, costurar conferia
um capital simbólico extremamente relevante, dado o momento de crescimento da indústria
têxtil e a inserção da mulher no mundo do trabalho, tanto dentro, quanto fora de casa. Neste
sentido o Método Vogue de corte e costura exerceu um importante papel na formação social
de meninas e mulheres no pós-guerra, servindo como um potente difusor do modelo feminino
e de feminilidade ideal para as mulheres desta época. Este certificado conferia um capital
social que, por sua vez, atribuía à sua possuidora, em certa medida, legitimidade e
reconhecimento junto à família e comunidade em que estava inserida. Deste modo, Maria de
Fátima teve sua entrada no mundo da costura em um momento de mudanças sociais
significativas para as mulheres. Ainda que sua entrada neste mercado de trabalho fosse
permitida e incentivada dentro dos devidos limites concedidas às mulheres, conforme observa
SAFFIOTI (1976):

A tradição de submissão da mulher ao homem e a desigualdade de direitos


entre os sexos não podem, contudo, ser vistas isoladamente. (...), pois o
trabalho se desenvolvia no grupo familial e para ele. O mundo econômico
não era estranho à mulher. (pg. 33).

A capacitação feminina em costura era difundida pelo viés do cuidado com a família,
25
a casa, os filhos e no mercado de trabalho, como “ajudadora do marido” . Era um período
marcado pelos efeitos de um novo capitalismo, que tomava fôlego após um longo período de
depressão e inflação elevada, para então recomeçar totalmente transformado. O capitalismo –
após este período de arrefecimento do crescimento e perda na rentabilidade – se reorganizava
para se consolidar nas décadas seguintes, a fim de manter seu domínio global (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009). Este cenário de abertura de postos de trabalho para as mulheres atraiu
primeiramente a atenção de Maria, irmã mais velha de Maria de Fátima, que viu no trabalho
em fábrica a chance de sair da roça e melhorar de vida. Maria morava na capital de São Paulo
e trabalhava no Brás como costureira há vários anos, sendo parte dos primeiros contingentes
femininos das fábricas de confecção, durante o crescimento da industrialização paulistana
desde a década de 1950. Talvez seja este o motivo pelo qual Maria de Fátima se espelhou em
sua irmã, para buscar condições melhores de vida longe da roça também.

25
Novos tempos, novas exigências feitas às mulheres sobre como usar os conhecimentos de costura em benefício
próprio e da família. As relações das mulheres com o mercado de consumo e de produção de vestuário ganham
novos matizes. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-
34592017000300267&lng=en&nrm=iso , http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/60209. Acesso em 08 de agosto
de 2019
Dos anos de 1960 e início dos anos 1970 com o capitalismo em transição, a mulher já
começava a figurar como vendedora de sua força de trabalho nos principais centros urbanos
industrializados no país, principalmente na indústria têxtil em que se encontravam o maior
contingente feminino no chão de fábrica26, operando teares mecanizados, fiação, e costura em
maquinário industrial. Sua inserção neste mercado foi possível, dentre outros motivos, por ser
uma força de trabalho de baixo custo em relação aos homens (SAFIOTTI, 1976). Conforme
Maria de Fátima, ser costureira neste período era também um meio de ascender socialmente,
ter visibilidade e reconhecimento – enquanto uma distinção dentro do ambiente familiar e fora
dele – embora tivesse apenas o terceiro ano do ensino fundamental. Esta condição não
impediu o seu aprendizado do ofício e nem a obtenção do “diploma” e credencial do curso,
pois conforme os informes publicitários à época “Não necessita V. S. de nenhuma classe de
preparo especial para fazer o curso completo e conseguir logo um Diploma de Modista,
Contra-Mestre, ou de Professora, que são provas dos conhecimentos adquiridos”
27
(FRASQUETE & SIMILLI, 2017, p. 273 apud CAMPAGNOLLI, 1967, p. 17) as autoras
pontuam que o curso era direcionado para todo o público feminino, inclusive das cidades do
interior de todo o Brasil.28 Todavia, apesar de não exigir nível avançado de ensino para
ingressar no curso, as alunas que concluíam com sucesso tinham direito ao diploma formal29 e
cerimônia de formatura devidamente paramentada como formada, conforme registro abaixo:

26
Chão de fábrica é também uma expressão utilizada para designar o conjunto de funcionários que executam
tarefas produtivas na indústria, diferenciando-os daqueles cuja atividade é gerencial e administrativa no
processo. https://www.dicionarioinformal.com.br/ch%C3%A3o%20de%20f%C3%A1brica/ Acesso em
25/06/2019.
27
Houve a necessidade de utilizar o apud neste caso devido à raridade deste material, não há cópia digitalizada.
As autoras tiveram acesso aos arquivos físicos conforme devidamente referenciado em seu trabalho.
28
“Nesse sentido os cursos de corte e costura eram opção para grande parte das mulheres. Como é divulgado
pelo Método Vogue: “As senhoras de qualquer Estado do Brasil, que não possam vir às aulas fazer o curso
individual, poderão fazê-lo perfeitamente 273 Hist. Educ. (Online) Porto Alegre v. 21 n. 53 set./dez. 2017 p.
267-283 por CORRESPONDÊNCIA, a domicílio, bastando para isso que tenha instrução primária”
(CAMPAGNOLLI, 1967, p. 48)” (FRASQUETE & SIMILLI, 2017, p. 272-273 apud CAMPAGNOLLI, 1967,
p. 48) Disponível em:
file:///C:/Users/Admin/Documents/MESTRADO%202019/bibliografia/historia%20dos%20cursos%20de%20cor
te%20e%20costura%20no%20brasil%20-%20vogue.pdf
29
O diploma de Maria de Fátima foi extraviado quando foi de mudança para São Paulo, o que ela muito se
lamenta.
Figura 1 e 2 – Credencial VOGUE/ Termo de contrato

Foto: acervo pessoal da Maria de Fátima.

Estes documentos lhe garantiram, anos mais tarde, a possibilidade de ser


contemplada pelo projeto do PRONAV30 em convênio com a prefeitura da sua cidade, para
atuar como microempresária individual, recebendo apoio financeiro para implantação de seu
negócio, dando aulas em seu próprio salão de costura.
A década de 1970-1980 foi um período marcado pelo crescimento das lutas pelos
direitos das mulheres em todo o mundo, fortalecido pela declaração do Ano Internacional da
Mulher em 1975 pela ONU (SARTI, 2004). Além das conquistas advindas destas
manifestações, havia as conquistas pessoais de Maria de Fátima que tinha o apoio da família
para empreender no ramo da costura, haja vista a grande importância que era dada a quem
possuía um diploma profissional (como no seu caso). No Brasil, por sua vez, os movimentos
feministas também já faziam frente em busca de melhores condições de vida para as
mulheres, momento em que houve uma inserção mais acentuada destas, no mercado de
trabalho. Todavia a autonomia financeira conquistada por Maria de Fátima – pouco comum às
mulheres da sua época –, não lhe garantia total emancipação social, pois ainda vivia sob a
tutela de seu pai e, posteriormente, do marido. Conforme Saffioti (1976, p. 87) “a
emancipação feminina é, pois, problema complexo cuja solução não apresenta apenas uma

30
Não foi encontrado o significado da sigla PRONAV, tendo apenas o registro de que era projeto do Governo do
Estado de Mato Grosso do Sul, gestão Wilson Barbosa Martins; de 1987 a 1989 e que era presidida pela Sr.ª
Celina Martins Jallad (in memoriam) campo-grandense, professora e empresária, filha do ex-governador Wilson
Barbosa Martins e Nelly Martins. Disponível em: https://diarionline.com.br/?s=noticia&id=26679 acesso em
09/11/2019.
dimensão econômica. Mesmo a mulher economicamente independente sofre, na sua condição
de mulher, o impacto de certas injunções”.
Nesta mesma década, sua família mudou-se do interior de São Paulo, para o interior
do Mato grosso do Sul, mais precisamente na cidade de Deodápolis atraídos pela
possibilidade de conseguir alguns hectares de terra através do INCRA 31. Maria de Fátima
mudou-se com a família e nesta cidade além de prosseguir seu trabalho como costureira,
atendendo a comunidade e também atuou como professora representante credenciada da
Vogue. Aos vinte anos de idade já havia adquirido um terreno e se preparava para construir
um salão para dar aulas de costura, através do projeto de formação profissional MOBRAL32,
em parceria com a prefeitura desta cidade. Casou-se aos vinte e oito anos em meados de 1980
e continuou morando em Deodápolis, onde seguiu trabalhando com costura em domicílio,
mesmo durante as gestações de seus três filhos. A costura neste contexto cumpria o papel de
dar a ela, em certa medida, capital simbólico no sentido de ser uma dona de casa que além de
cuidar dos afazeres da casa, cuidar dos filhos, ainda ajudava o marido financeiramente.

Quando me casei eu já tinha meu terreno onde meu pai construiu um galpão
onde eu dava as aulas e depois ficou sendo minha casa. Não tinha nada
quase, era um fogão, a cama, e minhas coisa de costura. Como meu marido
tava desempregado, fiquei sustentando a casa de um tudo, até o enxoval,
panelas e os móveis fui eu que comprei. Foi muito bom por um tempo, ele
começou a trabalhar e as coisas se ajeitaram, mas nunca deixei de costurar
e ter meu dinheirinho. Depois ele arrumou emprego de motorista da
prefeitura e saía muito, isso prejudicou nossa vida. Eu não aguentava certas
coisas, me desgostei e tomei a atitude de sair de casa depois de doze anos
juntos. Deixei a casa que já era de material, móveis para buscar depois, saí
com meus filhos e só levei as roupas e minhas máquina. Fui para perto de
Maria, para poder sustentar meus fio costurando para as fábricas. (Maria
de Fátima)

Com os filhos ainda pequenos, prosseguiu costurando em casa com facção – era a
primeira vez que trabalhava com facção – tendo em mente que lá na cidade grande ela poderia
ganhar o suficiente para manterem-se. A costura nestas circunstâncias foi crucial para que ela
pudesse ao mesmo tempo, cuidar de seus filhos e trabalhar, pois, agora sua renda já não era
complementar, mas passou a ser a principal e única desta família que passou a integrar o
ranking de famílias cuja renda dependia unicamente da mulher.

31
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é uma autarquia federal, cuja missão
prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. Disponível em:
http://www.incra.gov.br/pt/o-incra.html
32
O Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) foi criado como fundação em dezembro de 1967, pela
Lei nº 5.379. Disponível em: http://querepublicaeessa.an.gov.br/temas/66-filme/191-mobral.html
Essa mudança ocorreu em meados de 1990, o Brasil passava pela reestruturação
industrial, tendo como uma de suas características a descentralização da produção no chão de
fábrica, para a casa de costureiras faccionalistas autônomas (ESPÍRITO SANTO, 2008).
Maria de Fátima precisou deixar a costura sob medida e dedicar-se à costura por facção33,
para poder garantir sua subsistência, de seus filhos e ainda manter-se perto deles. O status e
reconhecimento como costureira sob medida conquistados nas décadas de 1970 e 1980, e com
o qual garantiu uma vida financeira de respeito ante a família, foi aos poucos esmaecendo sob
os efeitos destas transformações. Somando-se a isso, passou a ter sobre si o estigma de ser
“mulher separada” aos olhos da sua família (GOFFAMAN. 1975), conforme a fala de alguns
parentes, ela teria problemas em criar seus filhos sem o pai, tendo em vista que “a mulher
sempre foi considerada menor e incapaz, necessitando da tutela de um homem, marido ou
não.” (SAFFIOTI, 1976).

Eu fui a primeira da famia a se separar, esse tipo de coisa não tinha entre a
gente, mas eu não consegui continuar vivendo daquele jeito. Por ele a gente
não separava, ele dizia que eu era ciumenta demais. Ele era muito dado com
todo mundo, mas tem certas coisas difícil de aguentar né? Eu já tava até
tomando calmante, então antes de perder o juízo, eu preferi sair de perto e
deixar ele viver do jeito que queria. Daí uma parente comentou, ela falou:
“os filho da Maria de Fátima vão se perder tudo, ou vai se marginal ou vai
para as drogas, sem o pai por perto”, hum, criei meus filho perto de mim, na
beira da máquina, nunca me deram trabalho, nunca precisei pedir ajuda
para meu pai. Era de casa para escola e da escola para casa. (Maria de
Fátima)

Em São Paulo, deparou-se com um ambiente profissional em transição diferente de


quando trabalhou em fábrica pela primeira vez na década de 1960, assim, precisou se adaptar
às novas regras do mercado de compra e venda de força de trabalho (ANTUNES, 1995). Esta
experiência afetou profundamente o sentido de “ser” da costureira na mente de Maria de
Fátima, já que havia vivido anos de “ouro” desde sua profissionalização até o momento em
que retornou a São Paulo, deparando-se com um ambiente profissional profundamente afetado
pela reestruturação industrial recém-iniciada. Ela permaneceu lá por dois anos junto com seus
filhos, trabalhando em sua casa fazendo costura por facção para lojas do Brás, ganhando em
média R$0,05 (cinco centavos) por peça de vestuário (camisetas, camisas, blusas femininas),
com uma carga horária entre doze a quatorze horas diárias na máquina. Suas saídas resumiam-

33
É uma modalidade da costura em que se recebem peças cortadas em fardos, juntamente com uma peça piloto e
uma ficha técnica. Nesta modalidade a costureira deve reproduzir a sequência de montagem de peças inteiras,
apenas observando a montagem da peça piloto e seguindo os seus passos. https://blog.maximustecidos.com.br/6-
tipos-de-costureirao-conheca-quem-faz-a-moda-acontecer-de-verdade/ Acesso em 27/10/2019.
se a ir buscar e levar o serviço na fábrica, que não dispunha de intermediário que levasse o
serviço até ela. Além do trabalho de facção, fazia serviços de limpeza como diarista nos
finais de semana. Embora tenham sido tempos difíceis, como ela relata:

Eu sofri feito uma cachorra véia, levantava antes das cinco da manhã
mandava os menino para escola e ia para máquina, só levantava para fazer
comida e dar para eles. Daí fazia eles se deitá no chão da sala para assistir
a TV enquanto eu ia para máquina. Eles levantava e ia brincar no quintal
até a noitinha, daí eu botava para banhar, jantar e voltava costurar até
umas onze horas da noite depois que acabava tudo as novela. O serviço de
casa eu fazia enquanto tava cozinhando a comida, era corrido, mas dei
conta sem da trabalho a meu pai. Só Maria que sempre olhou por mim, essa
minha irmã, eu devo muito a ela, fazia limpeza na casa dela no fim de
semana com muito gosto, pelo tanto que ela me ajudava. Ela não me dava
dinheiro, mas nunca saí de lá sem uma comprinha para ajudar na semana.
Nunca faltou leite e bolacha para meus filho comer antes de ir para escola.
Devo muito a ela. (Maria de Fátima)

Não são poucas as questões sociais desfavoráveis e negativas que se pode observar
neste relato – principalmente a situação de exploração de sua força de trabalho, precariedade,
desregulamentação, ausência de políticas públicas de proteção e amparo à mulher mãe de
família34 entre outros. Porém Maria de Fátima não via as coisas neste ponto de vista, para ela,
sua coragem de enfrentar a situação a fazia diferente das demais, na sua fala ela ressalta:

Eu admiro essas mulher de hoje em dia, não aguenta nada, qualquer coisa
já abandona os filho nas casa dos outros, se perde na vida, se desespera. Eu
não, eu sempre tive coragem de enfrentar, minha mãe era assim, criou onze
filho sem moleza, nenhum se perdeu e ela nunca bateu na gente, meu pai era
mais bravo, mas minha mãe resolvia tudo conversando com a gente. Assim
foi com meus filho, repreendia, conversava, nunca escondi deles as
dificuldade da vida, também não deixei eles guarda mágoa do pai. Nunca
impedi meus filho de ver o pai, o que não deu certo foi nós dois os filho não
tem culpa né? Eu me acho uma mulher corajosa, taí meus filho tudo casado,
tem seu trabalho, sua profissão, sua família. Mas tem que enfrentar, porque
não é fácil, não pode ser mole não. (Maria de Fátima)

Nós nos conhecemos quando retornou de São Paulo, ela veio à cidade de Campo
Grande para finalizar os trâmites do divórcio e comprou uma casa em frente à minha em
meados da década de 2000. Nesta época, sua vida profissional havia entrado em um declínio
de proporções inesperadas, pois aqui não tinha clientela de costura sob medida e nem de

34
“Mãe de família” categoria nativa utilizada por Maria de Fátima, para descrever mulheres que criam seus
filhos e sustentam suas famílias sem amparo ou tutela masculina.
facção. Tentou por algumas vezes, trabalhar em oficinas de confecções, mas diversos fatores35
a impediram de acessar trabalho e se estabelecer como costureira na cidade. Seu capital
simbólico adquirido durante anos de trabalho não foi prontamente reconhecido aqui, dando
lugar à incerteza quanto a sua legitimidade como costureira profissional. Seu declínio
profissional foi tão intenso, que acabou vendendo sua máquina principal36, com a qual
trabalhara por mais de quinze anos, passando a realizar diversas atividades alheias à costura
(crochê, sabão caseiro, pão caseiro, etc.). Foi neste momento de declínio e invisibilidade que
nos conhecemos.
Para melhor entendimento e encadeamento das trajetórias e análises, sigo daqui, para
minha trajetória e retorno no momento em que nos conhecemos e nos reconhecemos como
colegas de profissão. Ao longo de nossas trajetórias de vida, íamos incorporando as
disposições através das quais reconheceríamos nossas afinidades.

1.2.2 Ivani - costureira-antropóloga – uma autoetnografia

Desde muito pequena a costura me atraía, aos sete anos ia brincar na casa de uma
prima e a mãe dela, minha tia era costureira sob medida, desde este tempo já brincava de
costurar fazendo roupinhas para as bonecas de minha prima que era bebê ainda. Aos treze
anos, trabalhei como diarista de uma costureira que era minha vizinha e embora meu trabalho
fosse lavar roupas e faxinar a casa, sempre dava um jeito de ir limpar o ateliê e ficar vendo-a
cortar e costurar as roupas para todo tipo de gente, rico ou pobre. Ser costureira nesta época
era o “Ultimo grito da moda”, como diria Clodovil em seu programa na TV Mulher 37, que
usava essa expressão sempre que tinha alguma novidade na moda. Sempre que era possível
eu o assistia, reforçando ainda mais o meu gosto pelo ofício. Embora a costura fosse uma
paixão de infância, o acesso ao aprendizado formal estava fora do meu alcance, haja vista que
na década de 1980 o curso Vogue já ter atingido um nível bem mais elevado de importância
35
Os fatores que desqualificavam uma candidata a emprego formal no setor de confecções são: ter idade acima
de quarenta anos, ter filhos menores de idade e baixa escolaridade, se enquadrar em um destes fatores já era
suficiente para desqualifica-la e ela se encaixava nos três.
36
Eu mesma comprei esta máquina dela e foi neste momento que nos aproximamos um pouco mais. Embora já
fôssemos vizinhas há alguns anos, não éramos muito próximas. Nossa aproximação foi acontecendo
gradativamente durante o período de pagamento das parcelas da máquina. Na época fiquei curiosa sobre o
porquê, de ela estar se desfazendo daquele equipamento tão difícil de adquirir. Ela então me relatou sua
dificuldade em conseguir trabalhar com costura aqui em Campo Grande, o que a desmotivou em prosseguir
costurando.
37
Desde a estreia do TV Mulher, o costureiro Clodovil Hernandes apresentava um quadro descontraído que
levava seu nome. Seu jeito direto, desinibido, sem papas na língua logo fez sucesso entre as telespectadoras do
horário da manhã. https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/auditorio-e-variedades/tv-mulher/quadros-e-
colunas/clodovil-hernandes/
no campo da moda, o que tornava o seu custo inviável para nossas condições, tendo em conta,
minha mãe ser a única provedora de casa.
Aos dezesseis anos e recém-casada, fui trabalhar como recepcionista em um escritório
imobiliário através de indicação de uma conhecida da família, deixando o sonho de ser
costureira para outro momento. Permaneci neste emprego trabalhando como recepcionista e
secretária por quatro anos até ganhar meu primeiro bebê. Após o término do período de
licença maternidade, solicitei acordo para desligamento da empresa para cuidar de minha
filha, era meu sonho ser mãe e não consegui deixa-la naquele momento. Enquanto cumpria o
seguro desemprego tive a oportunidade de recuperar o sonho de costurar, fazendo um curso
básico de costura por três meses em meu bairro com uma professora particular. O curso que
era concorrente do Vogue, se chamava Método Kaefer, embora fosse um curso básico, me
possibilitou produzir para consumo próprio, já que não aprendi o suficiente para atender às
encomendas de terceiros.
Após minha filha completar dois anos, retornei ao mercado de trabalho formal em um
hipermercado da cidade, pois ansiava dar à minha filha, oportunidades e condições de vida
que não tive em minha própria infância. Ainda que as condições financeiras não fossem tão
ruins, eu mesma queria oferecer o meu melhor por ela, então fui trabalhar e a matriculei em
uma escolinha particular no meu bairro. Como trabalhei desce cedo, não me senti à vontade
dependendo do meu marido para suprir todas as minhas necessidades e de nosso bebê, embora
ele não nos negasse nada eu queria muito mais para ela. Fui criada por uma mulher arrimo da
casa, então não me sentia tranquila dependendo de marido para tudo, este incômodo e a
vontade de oferecer um estilo de vida melhor à minha filha, me motivaram a deixa-la aos
cuidados da avó paterna e sair para trabalhar “fora”. Neste sentido o meu retorno ao trabalho
formal se deu no intuito de servir à minha família e não por desejo de crescer
profissionalmente.
Neste emprego entrei como operadora de caixa e ao longo de três anos, fui crescendo
dentro da empresa e embora não tivesse o ensino médio completo – que àquela época não era
critério primordial para contratação – cheguei a alcançar a função de gerente de um dos
departamentos. Apesar de exercer funções de chefia, sempre que podia, aceitava serviços de
costura de colegas do trabalho, devido à facilidade na logística. Fazia consertos, reparos,
reformas e algumas roupas menos elaboradas, permaneci por mais 18 meses nesta função,
chegando a ganhar mais que meu marido que era vendedor. Durante todo o período em que
estive neste emprego, não precisava pedir nada ao meu marido e isso significava muito para
mim. Arcar com as despesas das crianças como convênio médico, escola particular, roupas e
calçados de marca, fazia me sentir uma vencedora em relação a minha origem sócia
econômica e exemplo de luta de minha mãe.
Durante minha permanência como gerente, chagava a trabalhar até 16 horas seguidas,
passando até dois dias sem ver minha filha. Neste ínterim engravidei e acabei perdendo o
bebê, isso me levou a rever todo o contexto que eu estava vivendo. Após tratamento de
fertilidade, engravidei novamente e tive meu segundo filho, ainda permaneci neste emprego
até ele completar um ano e novamente pedi desligamento para tratar de tensões familiares,
que começavam a desestruturar minha família. Embora minha família se sentisse orgulhosa
pela função na empresa que me proporcionava visibilidade e reconhecimento profissional,
minha ausência em casa começava a ter um custo muito alto para todos.
Enquanto o capital simbólico adquirido com este trabalho me proporcionava
visibilidade, respeito e admiração do meu esposo da família e amigos, em casa minha
invisibilidade me distanciava e prejudicava meus filhos. Neste período, perdi todas as
apresentações de minha filha na escola, não conseguia ir a nenhuma reunião, perdi os
primeiros passos do meu filho entre outras perdas significativas para alguém que havia
almejado tanto ser mãe. Considerando o fato de sermos oriundos de um estrato social baixo,
transitar entre a elite profissional da cidade significava progresso, crescimento, ascensão
social, ao passo que abandonar tudo para ficar em casa, significava perda, regressão. Porém,
como mulher e movida pelas urgências de meus filhos, acabei desistindo desta carreira que a
época era tão promissora em favor de um bem maior, o bem-estar de meus filhos.
Não foi fácil tomar esta decisão, mas a meu ver, a urgência de organização e harmonia
em meu lar e família era maior que a necessidade de dinheiro naquele momento. Entretanto,
com duas crianças pequenas, não seria nada fácil para meu marido dar conta de cobrir a falta
dessa renda extra. Esta situação gerou algumas tensões e perdas, sobretudo do capital
econômico e social que fez parecer que eu havia andado para trás. Com minha saída desse
emprego, me vi na necessidade de buscar nova fonte de renda, que me permitisse trabalhar em
casa para cuidar melhor dos meus filhos. Em 1999 comecei a costurar em minha casa “para
fora”, no começo fazendo apenas reparos, consertos e reformas para as amigas, vizinhas e
família, o maior desafio foi me assumir costureira em um momento de desvalorização desta
profissão, devido às transformações ocorridas durante a reestruturação industrial. Daí em
diante eu passei a me ver e ser vista38 como uma dona de casa cuja função, era a manutenção

38
O trabalho externo como executiva era uma posição de muito valor para minha família, me dava poder de
decisão, pois tinha autonomia financeira. A vida doméstica e sem renda pessoal me tirou este poder, afetou mais
a mim do que a minha família. Na realidade eu me via diminuída naquele momento e achava que todos me viam
de igual maneira. Estes conflitos internos me afetaram por muitos anos, motivo pelo qual me esforcei para
e organização da casa e cuidar das crianças pequenas, os símbolos distintivos da mulher
executiva que outrora ostentava com salto alto, e roupas finas foi substituído por chinelos,
avental e uma aparência quase sempre descuidada pela correria do dia.
Esta nova condição poderia ser vista como perda e invisibilidade dentro do universo
econômico, tendo em vista que “as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico
foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a
atividade assalariada capitalista.” (Davis, 2016, p. 218). Neste ponto, fica evidente o meu
esforço de adaptação à nova circunstância, frente aos outros e frente a mim mesma, na
tentativa superar o estigma de desempregada e as consequências que viriam desta condição
(GOFFMAN, 1975). Entretanto, os efeitos deste estigma somaram-se a outros que foram
surgindo, como resultado das transformações no mundo do trabalho. Uma das transformações
que mais me afetaram, dificultando meu retorno ao mercado formal, foi à exigência de ter
ensino médio completo. A experiência já não era condição primordial para recolocação no
mercado formal, eram necessários o ensino médio completo e cursos de capacitação
específicos e isto eu não tinha. A única alternativa naquele momento era continuar costurando
“para fora”, em casa.
Na medida em que as transformações no mundo do trabalho atuam sobre o
trabalhador, cabe notar as influências que estas exerceram em minha nova carreira
profissional. Embora não fosse mais uma trabalhadora formalizada, permanecia na classe-
que-vive-do-trabalho ao atuar no setor de serviços. Neste sentido trabalhar “fora” ou,
39
trabalhar em casa, “para fora” não alterava minha condição de trabalhadora. Enquanto
Antunes (2013) considera que a classe-que-vive-do-trabalho engloba toda categoria de
trabalhador, seja industrial ou não, confirmando assim a permanência da centralidade do
trabalho apesar das novas formas desenvolvidas no bojo destas transformações, Offe (1989)
considera que houve perda desta centralidade, no que tange o setor de serviços, é dirigido por
uma racionalidade antagônica ao trabalho industrial. Ele também sustenta que as formas
inovadoras de gestão descentralizadas enfraquecem a centralidade do trabalho na vida
humana.
Nos anos que se seguiram, pude experimentar um crescimento razoável como
costureira sob medida, pois minha clientela não era alvo da indústria e nem das costureiras

aprender a costurar melhor e com isso ter de volta a autonomia financeira, que tanto me fazia falta naquela
época.
39
Categorias nativas para diferenciar o lugar de onde se oferece sua força de trabalho, trabalhar “fora” indica que
o trabalhador sai de casa para trabalhar em algum lugar que não o seu domicílio, com ou sem vínculo formal,
enquanto que trabalhar “para fora” indica flexibilidade de tempo e espaço, mais condizente com serviços
executados no ambiente domiciliar tais como: costureiras, doceiras, salgadeiras, lavadeiras e afins, em que se
utiliza do espaço domiciliar para prestar serviços a outrem.
mais experientes, estavam à margem, pois não consumiam o suficiente para fazer frente ao
que era possível ganhar como costureira faccionista ou costureira profissional. No início eram
apenas consertos e reformas, mas com o tempo, fui ganhando experiência e passei a costurar
roupas mais simples, para pessoas com poucas condições financeiras, outras que tinham
dificuldade em encontrar roupas prontas por causa de peso, estatura ou preferências por
modelos que não tinha disponível nas lojas. Neste período fui adaptando lugares dentro de
minha casa, para poder atender as clientes. Como não havia um cômodo livre em que pudesse
ocupar com meu pequeno ateliê, montei toda a estrutura na lavanderia. Era uma máquina de
costura doméstica, uma máquina overlock40 semi-industrial portátil e uma mesa de cozinha
pequena, junto á maquina de lavar, armário e tanque. Quando a peça de roupa era muito
grande, eu cortava em cima da cama de casal ou no chão.

Ademais disto, percebi que minha presença em casa era muito mais valiosa e
necessária na vida dos meus filhos do que qualquer brinquedo, escolinha particular ou roupas
caras. Até o convênio médico deixou de ser necessário, comigo por perto eles não adoeciam
com a mesma frequência de antes, estavam saudáveis, alegres e isso era o que importava para
mim. Ver meus filhos felizes e bem me ajudou a reconverter os pontos negativos do serviço
doméstico e o trabalho em domicílio em algo positivo, no sentido de que me possibilitava
exercer as duas funções no mesmo espaço. Neste sentido, a dialética da
visibilidade/invisibilidade era uma constante em minha relação profissional e familiar.
Enquanto estive invisível para o mercado formal de trabalho, me tornei visível e presente para
meus filhos, minha casa, minha vida em família.

Em grande medida, o cuidado com meus filhos e minha família norteou minha escolha
pela costura, no sentido de que embora o dinheiro ganho com o trabalho formal fosse muito
útil e necessário, minha presença no ambiente domiciliar tinha muito mais peso do que o fator
econômico. Assim como ocorreu comigo e com a Maria de Fátima, Priscila também lançou
mão da costura para estar mais presente na vida de seu filho, conforme seu relato a seguir.

1.2.3 Priscila – costurar para conquistar autonomia

40
A overlock – pode ser industrial ou semi industrial tem apenas uma agulha e trabalha com 3 fios, 2 linhas de
overlock que passam pelos looperes e 1 linha comum que passa pela agulha. Pode ser usado também a linha
tradicional no looper, a mesma que vai na agulha, contudo, apenas para tecido plano. Isso porque nas malhas é
necessário os “fios” ou linha para overlock passem nos looperss para que haja elasticidade. Senão quando a
malha for esticada os pontos se quebram. Disponível em: https://www.cearamaquinas.com.br Acesso em:
16/10/2020.
Priscila é a mais jovem das três costureiras mencionadas aqui e ao contrário de nós
outras, seu interesse pela costura não se deu no campo afetivo da profissão. Seus primeiros
empregos foram em serviços domésticos até se casar, após o nascimento de seu filho, deixou
de trabalhar neste seguimento e posteriormente conseguiu fazer um curso básico de costura
pelo projeto PROJOVEM41. Através deste curso ela conseguiu uma vaga de trabalho em uma
fábrica de confecção de lingeries, onde pôde aprender a operar maquinas de costura industrial
para malharia. Enquanto estava na fábrica, seu filho ficava aos cuidados do pai e da avó
paterna na loja de roupas da família. Depois deste emprego, foi trabalhar como ajudante de
costura, com uma das colegas que também havia saído da mesma fábrica. Elas faziam facção
de camisetas e depois de poucos meses juntas, Priscila saiu de lá, pois não ganhou conforme o
combinado.
Apesar de trabalhar “fora” desde solteira, ela nunca experimentara a autonomia
financeira necessária para realizar seus sonhos de juventude. Desejava ter uma profissão,
prosseguir nos estudos, já que era a única de sua família que havia concluído o ensino médio.
Mesmo depois de casada, a situação econômica não permitiu a realização dos sonhos de
quando ainda era solteira. Embora continuasse trabalhando, sua renda ajudava na manutenção
da casa, estas condições fizeram com que ela continuasse a trabalhar fora de casa mesmo com
seu filho ainda pequeno. Depois que saiu da facção de camisetas, a situação ficou
insustentável para ela, que já estava acostumada a ter seu “dinheirinho” e voltar a depender do
marido era desanimador. Contudo, mesmo que o trabalho fora de casa lhe permitisse acesso a
alguns bens de consumo pessoal, sua renda era inteiramente aplicada nas necessidades da casa
e do filho, reforçando que “A tradição de submissão da mulher ao homem e a desigualdade de
direitos entre os sexos não podem, contudo, ser vistas isoladamente. [...], pois o trabalho se
desenvolvia no grupo familial e para ele.” (SAFFIOTI, 1976, p.33)

41
Voltado para jovens brasileiros desempregados, o programa do governo federal ProJovem Trabalhador -
Juventude Cidadã oferece cursos de qualificação e formação profissional com o intuito de prepará-los para o
mercado de trabalho e para ocupações alternativas geradoras de renda.
Para participar do programa – além de estar desempregado e ter entre 18 e 29 anos – o jovem deve ser membro
de família cuja renda mensal per capta não ultrapasse um salário mínimo. O candidato pode estar cursando ou ter
concluído os Ensinos Fundamental ou Médio, porém não pode ter curso superior completo ou em andamento.
Durante seis meses os participantes recebem um auxílio financeiro mensal – válido somente para aqueles que
comprovarem frequência em pelo menos 75% das atividades desenvolvidas no mês.
O curso oferecido tem carga horária de 350 horas/aula, sendo 100 horas/aula de Qualificação Social – que abarca
inclusão digital, valores humanos, ética e cidadania, educação ambiental, higiene pessoal, promoção da
qualidade de vida, noções de direitos trabalhistas, formação de cooperativas, prevenção de acidentes de trabalho
e estímulo e apoio à elevação da escolaridade – e 250 horas/aula de Qualificação Profissional.
O programa foi criado em 2005 e reestruturado em 2008.
Saiba mais sobre o Programa ProJovem Trabalhador – Juventude Cidadã no sitewww.projovemtrabalhador.org/
Acesso em: 10/11/2019
Tendo em conta a desigualdade de direitos a que estava sujeita, procurou retornar ao
mercado formal, ocupando uma vaga como operadora de Call Center em uma empresa
multinacional de Telecomunicações onde ficou por quase um ano. Foi sua melhor fase
financeira, pois além do salário, tinha direito ao vale-alimentação que lhe assegurava fazer as
compras todo mês. Neste curto período pôde comprar os móveis da casa que ainda não tinham
adquirido, ou seja, todo o seu esforço era revertido no bem-estar dela e da família (SENNET,
2009). Tudo estava se encaminhando, até seu filho adoecer de uma tosse crônica e depois de
passar por vários especialistas, se descobriu que o distúrbio de tosse de que o menino sofria
não era alergia, mas sim, transtorno de ansiedade. Isso fez com que ela precisasse sair do
emprego imediatamente para poder acompanhar o menino no tratamento. Estas circunstâncias
a levaram a descobrir que havia um projeto social de geração de renda através da costura,
destinado às mulheres de sua região e que era oferecido gratuitamente na ONG Instituto
IDE42.

Eu estava no terminal de ônibus, retornando de uma sessão do tratamento


do meu filho, quando ouvi uma mulher falar que no IDE tinha curso de
costura. Ela contava para amiga dela que estava trabalhando em um grupo
de costureiras dentro do projeto, que lá ganhava pouco, mas trabalhava
sentada e tinha até ar condicionado, diferente do serviço na fábrica. Eu
cheguei bem perto dela para ouvir a conversa e depois pedi desculpa por
estar ouvindo a conversa dela, é que me chamou a atenção né, imagina
curso de costura no IDE? Eu sabia que atendia as crianças, mas não sabia
que dava curso de graça lá. Ela ficou desconfiada e mal me respondeu, eu
pensei, quer saber eu vou lá para saber direitinho como é isso. Já desci do
ônibus perto do IDE e fui ver se tinha vaga pro meu filho, porque se não
tivesse não ia adiantar para mim. Falei com o diretor e consegui a vaga,
depois fui orientada a falar com a professora para ver se tinha vaga para
mim na costura. A professora já foi falando logo que não dava muito
dinheiro não, mas que eu poderia aprender a costurar, que tinha material
disponível e eu podia ir no dia que pudesse, bastava ter interesse. Eu nem
tava pensando no dinheiro eu queria era aprender mesmo e poder ficar
perto do meu filho. (Priscila)

No IDE seu filho tinha atividades lúdicas e pedagógicas, acompanhadas por


profissionais no contra turno da escola regular e enquanto estava no anexo infantil, ela
participava das atividades de geração de renda destinado às mães dos alunos. Participar deste
projeto reacendeu seus antigos sonhos de profissionalização em costura e com isso poder
trabalhar e acompanhar o desenvolvimento do seu filho durante o tratamento. Priscila já tinha
afinidade com a profissão, mas não havia conseguido se desenvolver como costureira

42
Instituto de Desenvolvimento Evangélico - IDE, ONG destinada a atendimento gratuito para crianças de seis a
dezessete anos, oferecendo atividades lúdicas, reforço escolar e atendimento psicossocial, situado no Bairro
Portal Caiobá.
propriamente dita. Tanto na fábrica de lingeries, quanto na facção aprendera apenas a operar
máquinas industriais. No projeto de geração de renda, teria a oportunidade de aprender mais
do ofício junto à professora e demais alunas, gerar renda com este trabalho enquanto seu filho
participava das atividades no anexo ao lado da oficina de costura. Assim, ela se aproximou da
costura mediante as oportunidades que foram surgindo em sua vida, sobretudo agora em que
precisava cuidar do filho.
Podemos notar que a despeito das diferenças de idade, capacidade profissional,
escolaridade e recorte temporal que marcam a trajetória profissional destas três costureiras, há
um ponto convergente em que é possível identificar uma mesma motivação, para a escolha e
permanência na profissão de costureira. Poder gerar renda e cuidar pessoalmente dos filhos,
são estes os fatores primordiais que marcam a trajetória destas três mulheres, que mesmo em
condições sociais e financeiras diferentes, encontraram na profissão de costureira um meio de
acompanharem o desenvolvimento de seus filhos, no sentido de que “Seu trabalho tinha o
objetivo único e perene, servir à família.” (ibid., 2009).

1.3 O mundo da costura em Campo Grande sob o olhar das costureiras

Neste ponto da descrição de nossas trajetórias, se faz necessário explicitar com mais
elementos o que vem a ser a costura por facção e como este modo de trabalho tem relevância
em nosso campo profissional. Sendo assim, falarei a seguir, de como se desenvolve esta
modalidade de costura em Campo Grande em relação a outro polo industrial, para fazer um
paralelo das relações de trabalho dentro do campo de confecções de vestuário. Este referido
polo é o de Nova Friburgo no estado do Rio de Janeiro, em que foi feita a pesquisa de
Wecisley Espírito Santo (2009).

Campo Grande não tem polo industrial têxtil, a exemplo de São Paulo e demais grande
centros industriais mencionados anteriormente, em que existem diversas possibilidades de
trabalho com costura. Entretanto, possui cadeia produtiva de confecção de vestuário
esportivo, profissional e escolar em empresas de confecções formalizadas de pequeno e médio
porte, que também foram afetadas pelas transformações ocorridas durante a reestruturação
industrial da década de 1990.
Em sua pesquisa, Espírito Santo (2009) faz um levantamento de todo o
desenvolvimento da industrialização de Nova Friburgo, desde as primeiras tecelagens de
rendas, em que se empregavam força de trabalho artesanal e de manufatura, seguindo-se a
fusão das indústrias pioneiras, até a compra das mesmas pela Triumph Internacional, bem
como as características do modo de produção e das relações de trabalho com as costureiras
desde seu início, até os dias contemporâneos à sua pesquisa.

Conforme as investigações dele junto às costureiras mais antigas que já trabalhavam


antes da reestruturação da década de 1990, a organização da produção era análoga ao
fordismo, possibilitando obter uma remuneração maior, pois permitia que cada costureira
fizesse seu ganho a partir de seu próprio desempenho. Neste sistema de produção
individualizada por procedimento, ainda facilitava alcançar ou superar a meta diária, o que
além de garantir boa avaliação dos supervisores, proporcionava o ganho de premiação extra
por produtividade acima da meta para a costureira. Neste modelo produtivo, as costureiras
ficavam enfileiradas e iam passando as peças para a próxima costureira conforme terminavam
seu procedimento. Apesar da rapidez com que a produção era feita, havia um lapso de tempo
entre um procedimento e outro o que permitia a interação entre trabalhadoras no decorrer do
expediente.
A reestruturação teve como uma de suas principais características a mudança na forma
de produção, deixando o sistema de esteira pelo sistema de célula. No sistema de célula as
costureiras se organizam em equipes, onde todas sejam capazes de operar mais de um
equipamento dentro deste conjunto de maquinas. Neste formato de produção, cada célula é
responsável por um número “X” de peças ao longo do dia, e as costureiras devem dar conta
desta meta de forma interdependente e coletiva conforme apurado:

(...) há uma meta de produção diária para cada célula, suponhamos dez
caixas. Quando a costureira de Três Pontos chega às dez caixas em sua
máquina, ela para por aí e segue para a máquina de Travet para ajudar a
costureira desta máquina no fechamento da meta. Desta forma uma única
costureira pode, com frequência rodar em três ou quatro máquinas por dia
para complementar a produção coletiva de cem por cento. [...] Não há,
portanto, a menor possibilidade de uma costureira extrapolar
individualmente os cem por cento. (Ibid. 2009, p. 76-77).

A eficiência deste tipo de sistema produtivo se dá pelo fato de impossibilitar a


produção acima da meta de forma independente, ou seja, a costureira que termina um
procedimento deve imediatamente ocupar outra máquina a fim de dar continuidade ao ritmo
de produção, fazendo com que esta seja ininterrupta até que todo o montante seja terminado
por inteiro ou uma nova meta seja exigida. Enquanto no sistema de esteira era possível a
interação afetiva entre as costureiras durante o expediente, no novo sistema este
relacionamento se torna inviável, pois a distração pode fazer cair à produção, fazendo com
que toda a equipe seja prejudicada.
Se no sistema de esteira, todas eram monitoradas e cobradas individualmente por um
supervisor, no sistema de célula o trabalho deste é feito pelas próprias costureiras, acirrando
as tensões entre as integrantes da equipe. O autor também observou o fato de haver uma
hierarquia entre as costureiras de cada célula, conforme o tipo de máquina que cada uma
delas, era capaz de operar. Nesta escala de importância a operadora de overlock era menos
valorizada, por ser um equipamento de fácil manuseio e maior produtividade, enquanto a
operadora das máquinas colarete ou três pontos tinham uma importância maior não só no
grupo, mas para a empresa, pois somente as mais habilidosas conseguiam operá-las43:

A montagem da peça de lingerie é feita pela costureira de máquina de


overlock. Aos olhos de um observador externo este poderia ser considerado
um dos procedimentos mais importantes de todo o processo produtivo de
uma sala de costura. Porquanto é aqui que as partes soltas do tecido são
combinadas, formando a estrutura básica da peça que, em seguida, carece
apenas da aplicação de elástico e do acabamento. Entretanto, não é este o
caso; em primeiro lugar, de um modo subsidiário, pela simplicidade63 do
trabalho comparativamente às tarefas das demais costureiras de acabamento;
em segundo, e mais fundamentalmente ainda, em decorrência do fato de esta
ser uma tarefa ligada à montagem bruta do lingerie – que se opõe aos
processos de acabamento que agregam a beleza e o luxo da peça. Isso
confere um status social mais elevado às costureiras que trabalham nesta
última etapa da confecção do lingerie. (pg. 60-61)

Neste sentido, nota-se também a dificuldade das costureiras mais antigas, que
passaram pelo sistema de esteira, em se adaptar ao sistema de célula percebida na fala da
Coordenadora do Núcleo de Moda do SENAI44, entrevistada pelo autor. A fala da
coordenadora demonstra seu ideal romantizado a despeito dos efeitos da implantação de
novas tecnologias de trabalho no chão de fábrica, esperando que todas as costureiras adaptem-
se de acordo com este novo sistema, desconsiderando o efeito contrário causado pelas novas
estruturas de poder e controle produzido neste processo (SENNET, 1999, p. 54). O fato de as

43
O overlock é utilizado para fechamento e chuleio das peças (parte interna da peça), seu manuseio é mais
simples, permitindo maior produção. A colarete e a máquina três pontos são equipamentos de acabamento
(barras, elástico, pespontos da parte externa da peça), exigindo mais habilidade e precisão para que não precise
refazer, por isso mais lentas com baixo rendimento em relação à máquina overlock. Caso seja necessário
desmanchar a costura de acabamento, a peça ficará marcada o que é considerado defeito.
44
“(...) Então assim: umas adoram; outras detestam. Porque aquela que ganhava cento e vinte por cento de
produção, ela era acima da média, ela não gosta. Porque ela teve que diminuir o ritmo dela para ajudar a
companheira que não era tão boa quanto ela, né. Então existe uns atritos assim. Mas depende também de como
se implementa este processo né. É uma mudança muito grande na vida dessa costureira, né. Ela tem uma rotina e,
de uma hora para a outra, passa a trabalhar em grupo. Então depende de quem implanta isso, de fazer um
trabalho motivacional, que eu vou trabalhar com minha companheira, pensar no ideal da empresa, porque para eu
receber meu salário no final do mês essa empresa tem que estar bem financeiramente” (ibid. pag.15).
costureiras mais antigas não gostarem do sistema de célula, se explica tanto pelo capital
econômico, quanto pelo capital social que se perde nestas transformações. Na célula há o
aumento da produção, entretanto o salário permanece o mesmo, e ainda que alcance a meta do
dia, antes do final do expediente, esta é alterada para o maior montante produzido entre todas
as células, tornando quase impossível alcançar a gratificação. Este é um dos arranjos45
produtivos que o capitalismo encontrou para manter-se em atividade, cumprindo o seu papel
de acumulação pela obtenção do trabalho excedente, configurado na mais valia, preconizando
o aumento da produtividade com a redução máxima de custos com mão de obra.
Diferentemente de outros períodos de crescimento da economia, em que havia
aumento dos postos de empregos formais, na reestruturação, se não houve aumento da
produção, esta se manteve com custos menores aos industriais. Dentro deste contexto de
transformações, as costureiras de outrora experimentaram um sistema de produção no qual
sua agilidade lhe conferia distinção em relação às menos experientes, ou melhor, dentro da
hierarquia entre as costureiras, as mais ágeis se destacavam e com isso tinham melhor
remuneração em relação às menos produtivas. Entretanto, no sistema de célula, ainda que ela
se destaque individualmente, este destaque não lhe confere capitais de nenhuma ordem, ao
contrário, sua carga de trabalho aumenta no sentido de que, dentro de uma célula as mais
ágeis devem dar suporte às mais lentas, de modo a atingir a meta diária por equipe.
Destarte, esta costureira que outrora premiada por seu desempenho acima da média,
agora se torna responsável por si e pela equipe, assumindo inclusive o papel do supervisor,
trabalhando cada vez mais para atingir uma meta vista como injusta e que muda a depender
do desempenho de todas as células. No fim do mês o industrial tem sua produtividade mantida
ou aumentada, sem desembolsar mais por isso, tendo em vista que “Essa dinâmica cria uma
inquietação permanente e dá ao capitalista um poderoso motivo de auto conservação para
continuar infindavelmente o processo de acumulação”. (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009,
p. 35).
Todavia as transformações não pararam por aí, seguiram por outros caminhos, qual
seja o da terceirização como dispositivo de venda de sua força de trabalho. Este fenômeno foi
observado por Espírito Santo (2009), quando o maior complexo industrial de confecção de
45
“A adoção da multifuncionalidade significa um aumento no número de funções executadas por cada
trabalhador, embora não necessariamente com um aumento de salário correspondente. Rompe-se, assim, de
forma negativa, o princípio taylorista pelo qual o trabalho adicional deve receber remuneração adicional
compatível. Embora os postos de trabalho possam ser definidos de forma ampla, formalmente o trabalhador é
contratado para uma função especializada (exceto nos casos de “auxiliares de serviços gerais” ou denominações
afins, normalmente destinadas a trabalhadores sem qualificação). O objetivo é que o empregado desempenhe
tarefas adicionais, antes executadas separadamente por outros trabalhadores, o que representa, dessa forma,
muito mais uma intensificação do uso da mão-de-obra do que um aumento da polivalência dos trabalhadores, já
que as funções especializadas são bem definidas e não existe qualquer tendência evidente capaz de indicar uma
mudança substantiva nesse quadro.” BNDES (1998. pag. 32).
lingeries, a Triumph Internacional, avançou na reestruturação de sua produção. Tendo já
passado pelo sistema de células, esta iniciou sua redução das salas de costura do chão de
fábrica, momento este, em que incentivou as costureiras desligadas da empresa a compararem
os maquinários da fábrica, com parte de suas indenizações trabalhistas e assim permanecer
produzindo através de empresas terceirizadas. Iniciando aí uma nova modalidade de sistema
produtivo, o modo de produção por “facção” domiciliar como o autor pôde averiguar:

De um ponto de vista cronológico a primeira destas modalidades foi a


terceirização da produção das salas de costuras que, em meados da década de
1990, foram fechadas na Triumph Internacional. (...) esta medida se coaduna
com os novos dispositivos de acumulação flexível do capital, os quais são
orientados pela lógica da terceirização dos custos com a remuneração da
força de trabalho. Esta primeira forma assumida pela “facção” pode ser aqui
classificada como uma espécie de franquia. Importante aqui é registrar que
esta primeira modalidade de “facção” se estabelece entre duas pessoas
jurídicas. (pag.146/147).

Este dispositivo veio tornar-se um grande aliado da indústria, no seu intento de baixar
custos sem perder produção. O que desde então tem garantido que indústrias, outrora donas de
grandes plantas industriais com milhares de funcionários, permaneçam no mercado com uma
estrutura enxuta sem, no entanto, ter queda em sua produtividade. A modalidade de trabalho
por facção permite às costureiras autônomas a prestar serviços de costura aos antigos patrões,
em uma relação de terceirização para as costureiras formalizadas com CNPJ. Entretanto, o
desenvolvimento deste novo sistema não ficou preso à terceirização, seguiram-se a isso os
desdobramentos em novos arranjos e rearranjos das relações de trabalho da costureira com o
campo da confecção, dentre os quais está à subcontratação, ou seja, prestação de serviços a
terceiristas e sem vínculo formal de qualquer natureza GRANCE (2016).
Neste sentido, pode-se entender franquia como a uma “parceria” da indústria com
empresas de confecção de menor porte, possibilitando inclusive a aquisição do maquinário da
indústria franqueadora, por meio de empréstimo ou até mesmo a compara dos mesmos. Os
métodos desta reestruturação foram tão transformadores, que foram observados em vários
polos industriais pelo Brasil afora, como em Santa Catarina com a reestruturação da fábrica da
Lewis, em Cianorte, AMORIM (2003).
Assim como observado em Nova Friburgo-RJ por Espírito Santo (2009), Lima (2009)
também pôde acompanhar os mesmos arranjos e rearranjos em Cianorte – PR:

(...) o segmento do vestuário demanda flexibilidade produtiva para o ajuste


das empresas às novas tendências de moda e “essa flexibilidade, assim como
a simplicidade administrativa, é mais facilmente encontrada nas empresas de
pequeno porte” (IEL, CNA, SEBRAE, 2000: 127). (pag. 35).

As empresas de confecção contam com a força de trabalho das costureiras dispensadas


pela indústria, tanto através de contrato formal, como através de intermediários que
combinavam a produção, na modalidade de “facção domiciliar”. Estas modalidades de
relações de trabalho surgiram em meio à reestruturação industrial, tendo como principal
objetivo a redução de custos da produção sem, no entanto, interrompê-la ou reduzir sua
quantidade, conforme observado por Lima (2009):

Haveria o “Trabalho a Domicílio Distribuído - TDD” onde o trabalho seria


distribuído através de intermediários em residências próximas às fábricas.
Este trabalho é basicamente manual e utiliza os vários membros de uma
mesma família. Outra forma seria o trabalho a domicílio em pequenos
empreendimentos familiares. Nesta a distinção estaria na relação direta entre
as empresas contratantes e as subcontratadas, havendo operações
mecanizadas e inclusive subcontratação de trabalhadores eventuais estranhos
à família. Essa última caracterização é particularmente presente nas
faccionalistas de confecções que possuem ateliê em casa, mantendo relações
mais ou menos estáveis com seus fornecedores, que podem ser pequenas
confecções ou grandes indústrias RUAS (1993: 126). (pag.49).

As relações de trabalho dentro deste novo contexto trouxeram uma sensação de


liberdade às costureiras, autonomia que possibilitou às ex-trabalhadoras da indústria a
continuarem produzindo para a mesma, entretanto, no “conforto” de suas casas e com “total”
controle de seu tempo, produção e ganho. Isso levou esta categoria profissional a buscar
incrementos para permanecerem competitivas, tais como: maquinários e equipamentos
adquiridos com suas indenizações, tendo como objetivo principal o de acessar trabalho e
renda maiores do que ganhavam como contratadas. Tal como visto por Espírito Santo (2009)
em Nova Friburgo – RJ:

(...) foram, mormente as costureiras demitidas na reestruturação produtiva da


Triumph, aquelas que compararam, por meio do dinheiro das indenizações e
de financiamentos, as máquinas que ficaram ociosas com o fechamento de
uma larga parcela das salas de costura daquela empresa. [...] Diante do
desemprego e de posse de tal maquinário tais operárias deram início ao que,
com propriedade, pode ser chamado de “produção familiar”. Esta grande
produção familiar é o germe de todo o desenvolvimento industrial posterior
das centenas de “confecções” friburguenses que, com regular frequência,
ocupam salas construídas sobre as residências mesmas destas antigas
operárias. (pag. 148).
Estas possibilidades mostraram-se muito interessantes e lucrativas no início,
entretanto, no decorrer dos anos, a realidade tornou-se paradoxalmente desfavorável para a
costureira autônoma, fazendo com que esta liberdade fosse gradualmente se transformando
em uma rede de exploração sem precedentes. Espírito Santo (2009) observou que:

De costureiras exploradas pelo capital estas mulheres passaram a pequenas


capitalistas exploradoras de outras operárias. (pag. 149).

(...) O explorador deixa uma parcela irrisória de seu capital à disposição do


explorado, como meio de criar as condições de possibilidade da relação
mesma de exploração. E esta determinada a ininterrupta “pressão”
produtivista sobre o trabalhador por meio do evento fundador que instaura a
dívida – contrapartida da dádiva do capitalista. (pag. 152).

Tanto a pesquisa de Espírito Santo (2009) em Nova Friburgo – RJ, como Lima
(2009)46 em Cianorte/PR e Grance (2016) em Campo Grande /MS, demonstraram que a
facção de costura domiciliar é o grande responsável pela manutenção da produção a baixo
custo e acesso das costureiras autônomas47 ao trabalho e renda de forma precária e desigual
em relação às pequenas empresas de confecção, bem como a perpetuação dos modos de
acumulação do capital no campo de confecção de vestuário.
Diante das características observadas por Espírito Santo (2009) em Nova Friburgo,
podemos pontuar algumas semelhanças e diferenças não só na forma de estruturação da
produção, mas principalmente nas relações de trabalho geradas a partir daí. Em Nova
Friburgo, as costureiras autônomas tem acesso às empresas para as quais trabalhavam,
garantindo o contato direto ao serviço sem a ação de intermediário, e mesmo nos casos em
que este agente é acionado, o faz em concordância com a costureira num sistema de
“franquia”. Fazendo um contraponto com a pesquisa de Nova Friburgo em relação a Campo
Grande, notamos que aqui as condições de trabalho na modalidade de facção oferecem um
ambiente de competitividade extremamente acirrado justamente pela ação do intermediário.
Enquanto lá esta competitividade acontecia dentro do chão de fábrica, aqui acontece fora.
Considerando o campo de confecções de vestuário como espaço de poder, percebemos
que a rivalidade perpetrada sobre as costureiras campo-grandenses, é acionada por
46
“Essas costureiras a domicílio ganham pouco e recebem por produção. Quando contratam outras pessoas para
trabalhar nas oficinas, pagam-lhes menos ainda. Recebendo pela quantidade de peças produzidas, são obrigadas
a efetuar longas jornadas de trabalho. Por isso, vivenciam uma “liberdade profissional contraditória”, numa
condição que não lhes faculta, na maioria das vezes, ter reservas financeiras para manter os equipamentos
necessários para produzir, comparar a matéria prima, transportá-la a baixo custo e nem tão pouco investir em
tecnologia. Há ainda os riscos da sazonalidade da produção e da comercialização dos produtos do vestuário.” (p.
48)
47
Neste caso não se trata de ser “autônoma” com sentido de liberdade de escolher para quem trabalhar, mas
como subcontratação informal, ou seja, trabalha às suas próprias custas e sem direitos trabalhistas ou
previdenciários.
intermediários através dos capitais simbólicos, econômicos e sociais atuantes neste campo.
Tendo a produtividade da costureira como ferramenta de distinção, os intermediários
distribuem o serviço a depender da capacidade tanto produtiva, quanto o nível de dependência
que esta tem deste agente. Enquanto que em Nova Friburgo o intermediário é um agente
parceiro da costureira em um sistema de “franquia”, aqui ele é o grande causador da
rivalidade acirrada vigente entre estas profissionais. Não por acaso, em grande medida os
intermediários são homens e exercem o papel de dominante dentro do campo e a costureira
que não aceita as regras do jogo, fica de fora da seguinte maneira: se a costureira não se
dispuser a produzir a demanda dentro das regras impostas pelo intermediário, ele leva para
outra costureira. Com isso ele instala uma rivalidade entre elas, o que lhe permite subjuga-las
nas negociações, conseguindo baixar ainda mais o custo da produção e também dificultar a
mobilização desta categoria em favor de seus próprios interesses.
Neste sentido as regras do jogo não são acordadas por meio de contratos ou qualquer
outro meio formal de vinculação, está subentendido e quem quiser ter acesso ao serviço deve
aceitar as regras vigentes, quais sejam: ter maquinário adequado para a produção; trabalhar
em qualquer horário e dia; ter velocidade e disposição em trabalhar ininterruptamente se for
necessário. Neste sistema de trabalho, a costureira faccionalista participa sabendo que não tem
autonomia para escolher o como, o quanto e o quando deve entregar o serviço pronto. Não são
raras às vezes em que a costureira toma calote do intermediário e volta a “pegar serviço com o
mesmo”, ainda que não tenha recebido serviços anteriores, demonstrando com isso o nível de
dominação exercido pelo intermediário sobre a costureira, sobretudo valendo-se de sua
autoridade de homem sobre a mulher.
É neste contexto de trabalho, que Maria de Fátima não conseguiu se encaixar, ela por
não se adaptar as regras do jogo vigentes em nossa capital e eu por não ter os signos
distintivos48 para participar como vendedora da minha força de trabalho neste campo. Neste
sentido, nos restou prosseguir prestando serviços dentro do seguimento a que fomos formadas
inicialmente, ou seja, a costura sob medida.
Para sanar a lacuna do aprendizado especializado, busquei parceria com costureiras
mais experientes ao longo da minha trajetória profissional na costura. No momento em que a
demanda por este serviço cresceu e eu não tinha capacidade técnica suficiente para atender,
me aproximei de Maria de Fátima. Comentei com ela que queria compartilhar o serviço que
estava conseguindo, com alguém que soubesse costurar bem e que aceitasse trabalhar de
forma cooperativa, a quantidade de clientes estava aumentando e eu não estava dando conta

48
Habilidades próprias da costureira de facção: agilidade na produção em série e velocidade, também
maquinário adequado requerido pelo intermediário.
sozinha. Entretanto, não tinha condições de contratar e também preferia compartilhar o
trabalho e dividir as despesas e os lucros. Além de atender clientes individuais, já estava
atendendo empresas na capital, no interior do Estado em cidades pequenas que não
dispunham de costureiras para atender ao pedido de grandes demandas de roupas sob medida.
Neste sentido, observamos que para oferecermos nossa força de trabalho, seria
necessário nos engajarmos a uma nova ordem das coisas. Adaptando-nos aos espaços em que
havia a possibilidade de transitar, ou seja, espaços criados pelo capitalismo florescente
observado por Boltanski e Chiappelo (2009), em uma análise sociológica do panorama das
transformações causadas pelo novo espírito do capitalismo:

(...) Para valer a pena este engajamento, para que ele seja atraente, o
capitalismo precisa ser-lhes apresentado em atividades que, em comparação
com as oportunidades alternativas, possam ser qualificadas de
“estimulantes”, ou seja, de modo muito geral, capazes de oferecer, ainda que
de maneiras diferentes em diferentes épocas, possibilidades de
autorrealização e espaços de liberdade de ação. (pg.48).

Este engajamento permitiu que eu pudesse me desenvolver como costureira sob


medida e participar ativamente, dentro desta teia de adaptações e ressignificações ao qual o
campo da moda se insere, influenciada pelo capitalismo artista. Diante de um mercado
consumidor extremamente dinâmico, o que outrora era considerado marginal pela indústria do
fast fashion49 – como a força de trabalho de costureira sob medida e uma categoria de
consumidores mais heterogênea – neste novo momento de adaptação do capitalismo ganham
novos sentidos e significados, como pontua Lipovetsky & Serroy:

É uma hipercultura midiático-mercantil, que se constrói não apenas com as


indústrias do cinema, da música ou da televisão, mas também com a
publicidade, a moda, a arquitetura, o turismo. Uma cultura que tem como
característica implantar-se sob o signo hiperbólico da sedução, do
espetáculo, da diversão de massa (2015, p.236).

O campo da moda que, outrora, atendia preferencialmente um público consumidor


homogêneo formado por pessoas que se encaixassem em um determinado padrão, começa a
ser influenciado por este capitalismo estético, que incorpora o prazer como valor intrínseco de
consumo, endossando a afirmação de que “o consumismo moderno tem mais a ver com

49
Fast-fashion, traduzido como moda rápida, é o termo utilizado por marcas que possuem uma política de
produção rápida e contínua de suas peças, trocando as coleções semanalmente, ou até diariamente, levando ao
consumidor as últimas tendências da moda em tempo recorde e com preços acessíveis.
https://www.revide.com.br/editorias/moda/o-conceito-de-fast-fashion/ Acesso em: 27/05/2020
sentimentos e emoções (na forma de desejos) do que com razão e calculismo, na medida em
que é claramente individualista, em vez de público, em sua natureza” (BARBOSA E
CAMPBELL, 2006, p. 49).
Para fazer frente a esse novo modelo de consumo, baseado no prazer e na plena
satisfação do consumidor, o campo da moda passou a dar atenção ao público de outrora
preterido, oferecendo uma gama de produtos personalizados, garantindo assim mais uma fatia
do mercado consumidor. Como costureiras, não ficamos de fora dos efeitos que o capitalismo
artista passou a causar neste campo, estes efeitos têm reverberado sobre nosso ofício, no
sentido de que a força de trabalho de costura especializada voltou a ter uma procura
significativa nos últimos anos, propondo o resgate e valorização do mesmo. Existem
diferenças no funcionamento do campo da moda em relação ao funcionamento do campo da
confecção de vestuário. Para adentrar neste último, o que se espera da costureira é de que seja
capaz de operar maquinário e equipamento industrial, produzir em “maior escala” e em “alta
velocidade”, sem a necessidade de desenvolver as mesmas disposições da classe dominante,
já que sua relação de trabalho se restringe ao contato com o intermediário e execução pré-
definida por este. Diante disso o reconhecimento do seu trabalho depende em grande medida,
da satisfação dos interesses do intermediário, que é o agende que determina as condições de
prestação deste serviço.
No campo da moda o reconhecimento de quem costura envolve conhecimento mais
abrangente do ofício no que diz respeito às técnicas de modelagem, corte e costura específico
e de acordo com o tipo de vestuário que será produzido. Além do conhecimento técnico
básico, valoriza-se o domínio de termos50 e de técnica avançada em alfaiataria que permitam o
desenvolvimento de trabalhos mais elaborados.
Enquanto costureiras que querem transitar neste espaço de lutas, se faz necessário
saber mais do que a técnica de costura, é preciso ser reconhecida e legitimada como costureira
de moda, que domina os códigos de conduta dentro deste espaço. Neste sentido me desenvolvi
profissionalmente para atender a este público tão peculiar. Dentro deste novo contexto, minha
parceria com a Maria de Fátima tem se tornado profícua no sentido em que as nossas
capacidades se interligam. Nosso trabalho teve uma pausa após quase cinco anos juntas,
quando eu já cursava o quinto semestre de Ciências Sociais. A dificuldade de conciliar uma
agenda considerável de clientes com o aumento das atividades da faculdade me forçou
abandonar a costura e buscar outros meios de me manter até concluir o curso. Fui à busca de

50
Por “termos” compreendem-se os nomes técnicos dados a variados procedimentos utilizados pela alfaiataria e
alta costura como, por exemplo, o termo “decote degagê” que se refere a um modelo de decote utilizado em
blusas e vestidos. Além de saber à que se refere este termo é necessário saber executá-lo.
bolsa permanência, porém, nesse meio de tempo recebi o convite do Instituto de
Desenvolvimento Evangélico para trabalhar com um projeto de geração de renda, voltado
51
para mulheres em situação de vulnerabilidade na região do entorno do “lixão” . Neste
projeto fui contratada em regime de CLT52, com horário flexível para que não atrapalhasse
meu desempenho nos estudos.
A primeira sensação que me veio ao ser contratada como supervisora de geração de
renda, foi a de que havia feito a escolha certa ao abandonar o emprego de gerente tantos anos
atrás. Ia finalmente realizar um dos meus sonhos, o de compartilhar o pouco que já havia
aprendido e, melhor ainda, com reconhecimento através do registro na carteira. Foi um
momento de “divisor de águas” em várias áreas da minha vida, tudo passou a fazer muito
sentido, minha trajetória, as pessoas que contribuíram com meu aprendizado, as que me
provocaram a dar um passo além. Em casa, estava vivendo um momento singular de
realização que legitimou minhas escolhas ao longo do caminho até ali aos olhos do meu
53
marido, dos filhos e de minha mãe. Finalmente eu era “alguém” , o campo dos possíveis
estava se ampliando, não só para mim, mas para todos que estavam ao meu redor.
Quando deixei a Maria de Fátima para que continuasse sozinha, temi que ela sofresse
queda na entrada de serviços, já que ela se concentrava mais na produção e eu na captação e
atendimento dos clientes. Ela não só manteve todos os nossos clientes, como ampliou seu
atendimento tanto em Campo Grande, quanto por outras cidades do interior. Sua capacidade
de articulação em reconverter situações negativas em positivas, era seu grande trunfo. No
período em que trabalhamos juntas, ela conquistou a reforma parcial da sua casa e ajudou a
filha pagar curso técnico em radiologia. Enquanto eu terminava a faculdade ela terminou as
reformas, comprou móveis e eletrodomésticos mais modernos para toda a casa e por fim
investiu em um celular smartfone com Whatssap, para melhorar seu atendimento.
A despeito de todos os elementos negativos que cercam a nossa profissão54, pudemos
reconvertê-los em elementos positivos. Trabalhar “para fora” com costura sob medida nos
manteve em contato com o mundo externo à oficina de costura. Estávamos constantemente

51
Antigo depósito de lixo a céu aberto, para onde era levado todo o lixo da cidade de Campo Grande, e que
ficava situado no bairro Dom Antônio Barbosa. Foi desativado em 2015, após trinta anos de operação sem
tratamento ou qualquer regulamentação. Muitas famílias do entorno, sobreviviam da coleta de recicláveis e
demais rejeitos. Foi substituído por um aterro sanitário que opera parcialmente, tendo previsão de conclusão do
projeto para 2021. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/meio-ambiente/mpe-cobra-da-
prefeitura-e-solurb-vistoria-no-antigo-lixao-do-dom-antonio Acesso em: 19/02/2020.
52
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho.
53
Ser “alguém” é uma categoria nativa de distinção. Além de estar cursando faculdade na UFMS, estava sendo
contratada para uma função de liderança, para minha família e amigos, funcionava como uma “promoção”, após
abandonar a carreira de executiva, para ficar em casa e trabalhar como costureira. Embora não significasse
aumento de capital financeiro naquele momento, o ganho do capital social bastava para deixa-los orgulhosos
com meu “progresso”.
54
Precarização, exploração, insalubridade, desrespeito, calotes. (GRANCE, 2016)
em movimento adquirindo novos conhecimentos, pois dentro do nosso contexto a autonomia
fazia sentido. Éramos autônomas, decidíamos quem íamos atender, quando e como o faríamos
e principalmente quanto custaria nosso serviço. Esta mobilidade dentro destes campos em
Campo Grande me possibilitou entrar no projeto de geração de renda na IDE e posteriormente
criar conjuntamente o primeiro coletivo de costureiras da cidade, que atende prioritariamente
consumidores de costura sob medida, criadores autorais e produtores de moda.
Após encerrar os dois anos de contrato com a IDE, com o apoio da diretoria, eu pude
prosseguir com um projeto-piloto chamado “Incubadora das Arteiras”, onde algumas das
alunas poderiam continuar se desenvolvendo na costura, atendendo a demandas de clientes
externos. Foi nessa época que conheci a Priscila, diferente das demais integrantes do grupo,
ela só queria aprender, pois, não se sentia segura para costurar para terceiros. Como não
tínhamos muitos clientes pelo projeto, algumas integrantes foram saindo em busca de
melhores oportunidades de trabalho, inclusive em pequenas confecções de facção e nas
indústrias da nossa região. De um grupo de cerca de dezoito mulheres, acabamos ficando só
com quatro contando comigo, Priscila e mais duas costureiras profissionais, foi quando
recebemos um pedido de uma Grife55 para produzir duzentas peças de roupas em alfaiataria.
A confecção desta coleção foi o marco inicial do coletivo, pois na metade da
produção as outras duas costureiras saíram do projeto e ficamos eu e Priscila para finalizar
mais de cem peças em menos de quarenta dias. Foi então, neste momento de grande desafio
que Maria de Fátima volta à parceria, como uma força de trabalho temporária. Ela se dispôs a
nos ajudar a concluir o serviço e até então não imaginávamos os caminhos que nos abririam
pela frente. A necessidade de cuidar de nossos filhos e ter uma renda nos aproximou da
costura em tempos e de formas diferentes. Ademais, nos inseriu no campo da moda, nos
permitindo reconverter as características negativas em positivas, como ter autonomia sobre o
nosso próprio tempo. Esta predisposição adquirida nas experiências diárias da profissão com
consumidores e criadores de moda, tem funcionado como um capital simbólico que nos
permite negociar neste espaço social, a fim de adquirir legitimidade para nos estabelecermos
nele.
A luta por reconhecimento e legitimidade tem sido uma constante em nossa trajetória e
embora pertençamos a este campo, não é natural transitarmos por ele como o fazemos. Pois,
qual estilista chama suas costureiras para receber os aplausos junto com ele na passarela? Que
tipo de costureira promove desfiles de moda com as roupas que produz para a marca de seus
clientes? Quais os símbolos distintivos necessários para adquirir visibilidade e poder negociar

55
Categoria nativa para denominar uma marca de roupas autorais, ou seja, desenvolvida por estilista criador de
moda. Sigo mencionando apenas como “Grife” para designar este primeiro cliente sem, contudo, identifica-lo.
neste campo? O mais destas questões e os desdobramentos do desenvolvimento deste coletivo
de costureiras serão abordados mais detidamente no próximo capítulo.

CAPÍTULO II - A TRAJETÓRIA SOCIAL DE UM COLETIVO DE COSTUREIRAS


NO CAMPO DA MODA DE CAMPO GRANDE

O objetivo deste capítulo é compreender a trajetória social de um coletivo de


costureiras de Campo Grande. Essa trajetória é vista e analisada no contexto do que aqui é
definido como o campo da moda e o campo da confecção de vestuário nesta cidade. É
necessário primeiro entender a noção de campo, mais precisamente o campo da moda na ótica
de Bourdieu e posteriormente, o campo da moda em Campo Grande, sua estrutura, divisões e
subdivisões, considerando quem é quem em cada espaço. Sobretudo, quem ocupa e como
ocupa cada espaço dentro deste campo “caracterizado por um espaço de possíveis, que tende a
orientar a busca dos agentes, definindo um universo de problemas, de referências, de marcas
intelectuais – todo um sistema de coordenadas, relacionadas umas com as outras” (LIMA,
2010, p. 15).

2.1. Os campos da moda e da confecção de vestuário em Campo Grande: um diálogo


com Pierre Bourdieu

A questão do reconhecimento para Bourdieu tem a ver com a manutenção e a


conquista de posições sociais. Enquanto sujeito social, estamos participando do espaço social
de campos e quer queira, quer não queira, dentro de lutas para ocupar e manter posições.
Assim, o que interessa neste capítulo é a transformação de diferentes tipos de capitais, capital
social, redes de relações, por exemplo, capital econômico, dinheiro, recursos econômicos e
capital cultural, educacional e técnico. Pensar em como esses tipos de capitais são
transformados em capital simbólico, reconhecimento e legitimidade.

Conforme Bourdieu (1983) o campo social é um espaço de poder em que os agentes se


dividem entre dominantes e dominados, a depender do total de capitais que possuam. Estes
permanecem em um jogo constante, em que é necessário conhecer – e/ou incorporar – as
regras para manter-se no jogo e no campo. Campo, habitus e capital estão interligados no
processo de pesquisa, sendo que, campo substitui a sociedade na pesquisa. Dentro do espaço
social (macrocosmo), o campo é um microcosmo que funciona com relativa autonomia, tendo
sua própria lógica com suas regras específicas, através de um sistema de espaço estruturado
de posições.

Embora haja uma autonomia relativa dentro de um campo e que suas lutas internas
tenham uma lógica ímpar, sua estrutura, no entanto é influenciada pelos resultados das lutas
externas ao campo como lutas econômicas, sociais ou políticas. Estas características incidem
fortemente nas relações de forças internas. O capital acumulado na trajetória social, o habitus
– conjunto de disposições adquiridos – é o que define a posição dos agentes como dominante
ou dominado. Conforme Lima (2010):

O processo de autonomização do campo é resultado de um lento trabalho de


“alquimia” histórica; através da análise da história do campo é que se obtém
a análise de sua legítima existência [...] somente a partir do processo de
autonomização do campo de produção [...] se refere ao seu desenvolvimento
histórico, com suas dissidências, rupturas, enfim, lutas concorrenciais,
oposição de forças, jogos de poder. (pg. 17).

Tendo isso em conta, cabe explicitar qual a relação do campo da moda com o campo
da confecção de vestuário em uma visão mais geral e posteriormente como se dá em Campo
Grande.

A indústria têxtil brasileira se concentra majoritariamente em três polos regionais, a


saber: região sul, sudeste e nordeste56. Nestas localidades, a confecção de vestuário e a moda
estão intrinsecamente ligadas formando um único campo, em que cada um tem seu papel na
cadeia produtiva. Temas relacionados à tendência de moda como design, cor, matéria prima
dos insumos, modelagem e tendências de consumo, são as diretrizes do campo da moda que
orientam a produção nas mais diversas áreas, seja vestuário, decoração, artigos de cama, mesa
e banho e afins. Neste sentido a moda funciona como um subcampo dentro de um campo mais
geral que compreende toda a cadeia produtiva industrial.

Em Campo Grande a moda e a confecção de vestuário funcionam como campos


individuais e enquanto espaço microssocial contêm suas próprias divisões em subcampos, se
organizando conforme suas próprias regras e normas de funcionamento. A confecção de

56
Ainda que a indústria têxtil faça movimentar bilhões de reais na economia brasileira, ela ainda representa uma
pequena porcentagem quando comparada com outros setores em desenvolvimento no Brasil, como o alimentício,
automobilístico ou aqueles relacionados aos recursos naturais, como o petrolífero e extrativista.
Por essa razão, boa parte das indústrias de vestuário estão concentradas em poucas regiões do território nacional,
como sudeste, sul e parte do nordeste. Nessas áreas, é possível encontrar o desenvolvimento de produtos que
abastecem uma grande quantidade de lojas nacionais e, inclusive, internacionais.
https://www.nelsonleite.com.br/assuntos/representantes-de-vendas/moda-confeccao-os-principais-polos-
industriais-brasileiros/ Acesso em: 11/09/2020.
vestuário se ocupa majoritariamente da fabricação de uniformes escolares 57, esportivos,
profissionais58 e promocionais, se mostrando autônomo em relação ao campo da moda local.
Seus empreendimentos utilizam a força de trabalho de costureiras faccionistas – através de
intermediários – devido as suas disposições para a produção industrial em maior escala e
baixo custo de força de trabalho. Neste espaço de lutas destacam-se as costureiras com maior
habilidade em operar os mais diversos tipos de maquinários, equipamentos e agilidade em
produção de grandes quantidades de peças por hora, ou seja, o capital simbólico da costureira
neste campo é a habilidade de confeccionar mais peças por hora e saber operar o maior
número de máquinas possível, rapidez e alta produtividade, não sendo necessário conhecer
todo o ofício da costura de vestuário e nem ter noções de moda.

Neste sentido, a relação entre os campos da confecção de vestuário e do campo de


moda alterna períodos de autonomia e dependência de um campo pelo outro, se mostrando
complexas a depender das circunstâncias do mercado vigente. Não obstante a isso, o campo
da confecção de vestuário está há mais tempo em atividade, desde seu início há mais de três
décadas, não deixou de ter visibilidade diante do poder público. Também conta com uma
estrutura institucional mais bem organizada através do SINDIVEST (Sindicato das Indústrias
do Vestuário, Tecelagem e Fiação de Mato Grosso do Sul), que é diretamente ligado ao
Sistema FIEMS59. Com isso, este campo tem acesso permanente às políticas públicas de
fomento e projetos de expansão ao longo de sua formação, independente de qual momento
político o estado esteja atravessando. Isto se deve em grande medida à capacidade de geração
de emprego e renda nos níveis de interesse dos poderes tanto público quanto privado. Neste

57
Os uniformes escolares são refeitos todos os anos, sua fabricação se concentra no segundo semestre de cada
ano, para utilização no próximo ano letivo.
58
Os uniformes profissionais dependem da demanda de cada empresa a depender do seguimento a qual pertença.
Por exemplo, grandes empresas do setor de comércio, hotelaria, transporte, postos de gasolina, indústrias,
concessionárias, saúde, telecomunicações, etc., produzem uma quantidade maior com uma frequência menor,
levando em média de dois a três anos para a total substituição do modelo antigo, por um modelo novo. Empresas
de pequeno e médio porte costumam fazer substituição anual em quantidades menores, eventualmente, a
confecção de novos modelos ou a reposição novas peças a depender da entrada de novos funcionários. Ressalto
que estas características, foram percebidas no exercício da minha profissão ao longo de trinta anos de
experiência.
59
O Sistema FIEMS é composto de um conselho de representantes dos Sindicatos Patronais da Indústria e de sua
Diretoria.
Ele foi constituído reunindo quatro unidades de negócios e ações de atendimento ao setor industrial de todo o
Estado: a própria FIEMS (Federação das Indústrias do Estado de Mato Grosso do Sul), o SESI (Serviço Social
da Indústria), o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e o IEL (Instituto Euvaldo Lodi).
O Sistema FIEMS promove atividades diversas como serviços técnicos e tecnológicos, educação básica e
profissional, lazer, esporte, cultura, estágio e capacitação empresarial. O trabalho é realizado diretamente nos
municípios, oferecendo os instrumentos essenciais para fazer avançar a atividade industrial e, ao mesmo tempo,
proporcionar melhor qualidade de vida aos homens e mulheres que integram a força de trabalho do setor em
Mato Grosso do Sul. Disponível em: http://www.FIEMS.com.br/quem-somos/institucional Acesso em:
25/09/2020.
ponto o campo da moda depende em certa medida de apoio do campo da confecção de
vestuário para acessar as políticas públicas de fomento, sobretudo no que diz respeito ao
empreendedorismo formalizado e meio de divulgação e comercialização de sua produção. Isto
se dá devido ao campo da moda não ter uma estrutura institucional independente e organizada
através de associação, colegiado60, etc.

O campo como parte de um espaço macrossocial e que, portanto, absorve suas


características, dispõe seus agentes conforme o total dos capitais que estes detêm, alocando-os
em posições dominantes e dominadas, considerando que os dominantes são os possuidores do
maior volume de capital acumulado, ou seja, o conjunto de diversos capitais. No campo da
moda quanto mais capital o estilista possui, tanto maior será o seu reconhecimento e a
legitimidade de suas afirmações, desta forma, transfere parte deste capital simbólico aos
profissionais que o servem. Costureiras e costureiros que trabalham para estilistas de renome
podem ser reconhecidos e legitimados, ou rechaçados a depender do resultado de seu trabalho,
ou seja, se o estilista aprova o serviço deste profissional, logo seu capital simbólico é elevado
pelo reconhecimento de sua competência – que atua como mana61 – ao passo que, se não tiver
o serviço aprovado o reconhecimento não acontece mantendo este profissional na
invisibilidade. Ou seja, é o reconhecimento do estilista que dá visibilidade, legitimando o
trabalho de suas costureiras e/ou prestadores de serviço, ou que os mantém no anonimato
(BOURDIEU, 1983).

As costureiras que trabalham com moda, têm que desenvolver capacidades para além
do conhecimento avançado de seu ofício, ou seja, além do capital técnico, o capital intelectual

60
Em meados de agosto de 2020, tivemos a criação do Movimento do Design e Moda de MS com fins a
organização de um colegiado voltado para o campo da moda – do qual sou integrante do seguimento de ateliês
de costura – que possa fazer frente ao poder público no sentido de buscar reconhecimento desta categoria, no
intuito de reivindicar direito à Lei Aldir Blanc (destinada à auxilio emergencial aos trabalhadores do setor
cultural). O movimento busca este benefício para todos os agentes que fazem parte da cadeia produtiva do design
e moda, bem como aqueles que prestam serviços especializados para os seguimentos de arte e cultura. Nestes
estão inclusos ateliês de costura, artesanato, bordados e afins. Devido à necessidade de distanciamento social,
todas as reuniões do movimento e do colegiado são feitas pelo Whatsapp, Google Meet e Zoom.
A Lei Aldir Blanc (Lei federal nº 14.017 de 29 de junho de 2020), tem como objetivo central estabelecer ajuda
emergencial para artistas, coletivos e empresas que atuam no setor cultural e atravessam dificuldades financeiras
durante a pandemia.
Em homenagem ao compositor e escritor Aldir Blanc, que morreu em maio, vítima da Covid-19, o projeto vem
para socorrer profissionais e espaços da área que foram obrigados a suspender seus trabalhos.
Caberá aos estados, ao DF e aos municípios o pagamento dos benefícios, a organização de editais, a distribuição
dos recursos e o cadastramento dos beneficiados. Nesse sentido, a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul
(FCMS) será a responsável pela alocação do montante destinado pela União ao estado. Disponível em:
https://www.fundacaodecultura.ms.gov.br/lei-aldir-blanc/ Acesso em: 04/10/2020.
61
Ter seu trabalho reconhecido pelo criador de moda autoral (estilista) dá à costureira, em certa medida, a
mesma distinção de sua grife, tendo em vista o seu produto carregar o mana do criador, conforme BOURDIEU
(1974) “A griffe é a marca que muda não a natureza material, mas a natureza social do objeto”. Neste caso, a
grife muda a natureza social da costureira (foi o que aconteceu com o coletivo de costureiras).
e a capacidade de interlocução com estilistas são muito apreciados neste campo. Na
distribuição dos agentes, além do capital simbólico é necessário adaptar-se as mesmas
disposições e gostos da classe dominante, para que se obtenha o reconhecimento que
possibilitará negociar sua força de trabalho neste meio. Além do habitus, no campo da moda é
onde se observa uma das características mais marcantes da divisão de classes: o poder
econômico que, mormente, são mais claramente notadas na classe dominante como observa
Bourdieu (2004):

Entre todos os campos de produção de bens de luxo, a alta costura é aquele


que deixa transparecer mais claramente um dos princípios de divisão da
classe dirigente – ou seja, o que estabelece oposição entre diferentes faixas
etárias, indissociavelmente caracterizadas como classes endinheiradas e
detentoras de poder –, além de introduzir no campo da moda certas divisões
secundárias. (pg. 10).

Considerando estas divisões e aplicando ao campo da moda em Campo Grande,


podemos perceber que dentro deste sistema de classificação, a classe dominante ou dirigente é
composta por agentes como, estilistas, criadores de moda autoral (empresários,
microempresários, micro empreendedores individuais), produtores de moda, produtores
culturais, artistas, etc. Estes têm o reconhecimento e legitimidade como tal, dotados de gostos,
afinidades e disposições ligadas à arte, estética, cultura e moda – além de capitais como:
capital econômico, social, intelectual, etc. Estas disposições são também denominadas de
habitus “é ao mesmo tempo um „ofício‟, um capital de técnicas, de referências, um conjunto
de “crenças”” (BOURDIEU, 2003, p. 120), como características relacionadas às preferências,
gostos, afeições desenvolvidas ao longo de experiências ulteriores do agente. Deste modo, se
o campo da moda está intimamente relacionado com a arte, a cultura, a estética e a beleza,
logo, seus agentes precisam ter afinidade com as disposições prementes neste espaço.

Sintetizando a questão do campo de moda em Campo Grande, podemos dizer que, no


topo se encontram os dominantes que são os que detêm maior capital acumulado, tendo os
capitais econômico, social e cultural, além das disposições que formam ao longo do tempo, o
habitus relacionado à trajetória social de seus agentes. Já os dominados, ainda que disponham
de capital intelectual ou cultural, disposições relacionadas ao campo, não dispõe de capital
econômico ou social, tal como os dominantes e isso os distingue como “pretendentes”. A
ausência de demais capitais, tais como o econômico ou social, os inclui em um extrato social
abaixo da classe dos dominantes. Dentro do grupo dos dominados ou “pretendentes” estão os
estilistas recém-formados em Design de Moda, artistas, designers, criadores de moda autoral
(microempreendedores ou informais), que embora manifestem algumas das disposições do
campo, não dispõem de capital acumulado suficiente para ombrear com os dominantes.

Dentro desta estrutura existem subcampos e dentre eles, o subcampo dos prestadores
de serviços dentro do qual se encontram as costureiras, neste espaço também tem dominantes
e dominados que por sua vez, dependem de serem reconhecidos e legitimados pelos agentes
da categoria acima, sejam eles dominantes ou pretendentes. Por conseguinte, (BOURDIEU,
2001, p. 20) pontua que “o controle da utilização do capital específico cabe aos próprios
mecanismos que asseguram sua produção e reprodução, além de tenderem a determinar sua
distribuição entre os diferentes agentes que estão em concorrência para se apropriarem deles”.
Neste sentido, nós do coletivo utilizamos a soma dos capitais de que dispúnhamos – capital
intelectual, técnico e social – para fazer frente à necessidade de reconhecimento neste campo.
Este reconhecimento é o que garante a visibilidade, valorização de sua força de trabalho, bem
como o acesso a geração de trabalho e renda, ao passo que costureiras (os) que não tem este
reconhecimento têm mais dificuldade de acesso permanecendo em grande medida, na
invisibilidade ou dependendo de interlocutores.

O campo da moda em Campo Grande está em fase de estruturação, haja vista não ser
devidamente institucionalizado como o campo da confecção de vestuário. Além das lutas
internas dos seus agentes por reconhecimento, existe a luta externa, seja no âmbito local, seja
no âmbito nacional. Se no âmbito local existe a luta por legitimar sua importância para a
economia através da geração de trabalho e renda, no âmbito nacional a luta é pelo
reconhecimento de sua relevância como um espaço criativo de moda. Em julho de 2018,
aconteceu um evento do SEBRAE em parceria com o IN-MOD (Instituto Nacional de Moda e
Design), que trouxe a equipe do SPFW (São Paulo Fashion Week) voltado para pequenos
negócios de moda da nossa região. Conforme divulgado pela ASN-MS (Agência SEBRAE de
Notícias-Mato Grosso do Sul):
O Sebrae realiza em parceria com o Instituto Nacional de Moda e Design
(IN-MOD), a 4ª edição do SPFW Day, que acontecerá nos dias 31 de julho e
1° de agosto em Campo Grande. O evento apresentará a um grupo de
empresários que não puderam comparecer ao São Paulo Fashion Week os
principais destaques da maior semana de moda da América Latina. O evento
é voltado para micro e pequenas empresas de moda e design. O intuito é
promover a reflexão sobre a produção local e criar visibilidade para as
marcas. No primeiro dia de evento, o público participa de uma palestra de
Paulo Borges, que falará sobre a temporada N45 do SPFW, que aconteceu
em abril deste ano e dará um panorama da moda no país. Já no segundo dia,
duas palestras técnicas servem de apoio para os participantes. Uma
apresentada por um estilista do SPFW e a outra focada no futuro do varejo
com Iza Dezon, da Peclers Paris. Além disso, uma exposição vai apresentar
os melhores momentos da SPFWN45 para os visitantes.
“Levar a experiência do SPFW para perto dos pequenos negócios que atuam
com moda em outros estados é promover ampliação de mercado e inovação
para as empresas desse macrossegmento, que tem uma expectativa de
crescimento de 2,6% por ano, em média, até 2021, no Brasil”, assinala a
diretora técnica no exercício da presidência do Sebrae, Heloisa Menezes.
Além das palestras, cinco empresas receberão o selo „SPFW Ama‟, que
reconhece criações de micro e pequenas marcas de moda e design brasileiras
que se destacam pela identidade, originalidade, design, qualidade e inovação
na proposta criativa e desenvolvimento de materiais. Em 2017, cerca de 20
produtos foram reconhecidos nos estados do Pará, Rio Grande do Norte e
Santa Catarina. Os curadores devem escolher, no mínimo, cinco produtos
para receber o selo, podendo extrapolar a quantidade de acordo com a
avaliação da equipe. As peças que recebem a tag „SPFW Ama‟ ampliam a
visão do consumidor para a marca. Além das etiquetas nos produtos
escolhidos, o selo poderá ser aplicado nas vitrines das lojas físicas e virtuais
das marcas, bem como em suas redes sociais. Galerias destacando os
produtos selecionados serão publicadas no portal de moda e lifestyle
ffw.com.br e também nas redes sociais oficiais do São Paulo Fashion
Week.” (Redação ASN-MS, 12/07/2018
http://www.ms.agenciasebrae.com.br/).

Neste evento, cinco marcas autorais foram contempladas com o selo “SPFW AMA”,
dentre as quais, duas eram nossos clientes. Sendo que uma marca fez parte da exposição das
marcas locais no MARCO (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul), e a outra
marca além de ter seus produtos expostos, ganhou o selo, ambas com peças de vestuário
produzidas na República das Arteiras, conforme a figura 3, a seguir:

Figura 3

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora


Este evento marcou o início de um período de pouco mais de um ano, em que o tema
“moda” foi abordado com maior ênfase por instituições público-privadas, como parte de ações
de fomento à economia criativa, atendendo diversos seguimentos, seja alimentícios, móveis,
decoração, brinquedos, roupas e acessórios. Tendo como características distintivas serem
criações produzidas de forma artesanal e ou autoral. Foram aproximadamente dezoito meses
em que o campo da moda de Campo Grande, foi assunto nas mais diversas mídias e tema de
projetos direcionados ao empreendedorismo e vendas através do SEBRAE, SENAI, SENAC,
SEDESC, SECTUR (Secretaria de Turismo Municipal), FCMS (Fundação de Cultura do
62
Mato Grosso do Sul), FMIC (Fundo Municipal de Investimentos Culturais) . Foi neste
contexto de transformações no campo da moda de Campo Grande que nosso coletivo de
costureiras foi se formando. Desde então, passamos a nos adaptar às suas demandas a fim de
adquirir reconhecimento e visibilidade neste espaço.

Observando as condições gerais apresentadas acima, percebemos que nossa presença


enquanto costureira no campo da moda não estava dada, não era natural. Talvez no campo da
confecção de vestuário o fosse – como empreendedoras formalizadas – tendo em vista que
estamos inseridas na mesma classe social e laboral que as costureiras faccionalistas, com
nossos respectivos empreendimentos localizados na periferia. Neste sentido, o primeiro
embate foi vencer a distância geográfica que separa nossa classe social da classe social de
parte de nossos clientes, a maioria deles mora da área central ou nos bairros nobres. Em
alguns momentos esta distância afastou possíveis clientes, ou fez com que outros preferissem
atendimento via Whatsapp e moto entregador, evitando assim a necessidade de deslocamento.

Entretanto em dado momento nossas trajetórias e entrecruzaram, unindo nossas


disposições e capital intelectual – sobretudo no que concerne ao conhecimento integral do
ofício de costura e conhecimento acadêmico – permitindo com isso adentrarmos neste espaço
de luta do campo da moda.

62
Eventos de moda, de moda e beleza, moda e sustentabilidade como talk shows, workshops, oficinas de
empreendedorismo específico para este público, eventos culturais com espaços para vendas, direcionado para a
economia criativa nos festivais de Bonito, Corumbá e visita ao maior evento de moda do Brasil, o SPFW que
acontece anualmente em São Paulo. Disponíveis em: https://sebrae.ms/empreendedorismo/beleza-e-moda-
quando-o-conteudo-vira-negocio/#
https://www.acritica.net/editorias/entretenimento/senac-realiza-palestras-sobre-tendencias-de-beleza-e-
moda-no-sebrae/326633/ https://www.fundacaodecultura.ms.gov.br/Geral/moda/
https://www.campograndenews.com.br/lado-b/artes-23-08-2011-08/fundos-de-investimentos-em-cultura-
recebem-inscricoes-ate-esta-quinta
http://www.campogrande.ms.gov.br/sedesc/canais/2a-feira-mulheres-empreendedoras/
http://www.fiems.com.br/noticias/no-moda-campo-grande-senai-empresa-apresenta-solucoes-para-industria-
do-vestuario/30116. Acesso em: 11/10/2020.
2.2. Primeiro contato com um modelo de coletivo criativo de moda

Saliento que, assim como no primeiro capítulo, sigo utilizando minhas experiências
sociais de costureira neste campo, como “recursos analíticos insubstituíveis e que a
mobilização do passado social através da auto-análise social pode e produz benefícios
epistêmicos e existenciais.” (BOURDIEU, 2017 p. 73). Reconheço, no entanto, a dificuldade
e os riscos desta escolha, tendo em conta a condição de dubiedade em que me encontro, sendo
o agente que vive e analisa estas mesmas experiências. Ao mobilizar estas experiências, busco
explorar as condições de possibilidade, seus efeitos e limites, submetendo-os a um exame
científico rigoroso (BOURDIEU, 2017).
Antes, porém, de falar da criação do coletivo de costureiras, será necessário explicitar
com mais ênfase de onde surgiu a ideia e como nos desenvolvemos neste novo modelo de
associação para compartilhar conhecimento, trabalho, renda e clientes. Para analisar as
experiências vividas neste campo, utilizaremos Gilles Lipovetsky e Jean Serroy sobre o
capitalismo artista, a fim de compreender as mudanças e transformações nas relações de
trabalho neste campo, bem como Bourdieu para compreender as questões de reconhecimento
legitimidade que geram visibilidade ou não dentro do campo da moda.
Abordarei este tema a partir do projeto-piloto “Incubadora das Arteiras” iniciado no
IDE do bairro Portal Caiobá em meados de 2016, onde se deu o primeiro contato deste grupo
de costureiras com uma grife que fazia parte de um coletivo criativo63 de moda, em que
criadores de moda autoral64 e demais profissionais da área trabalham em sistema de rede
colaborativa, conforme Castells (1999):

Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão


da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados
dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. Embora a forma
de organização social em redes tenha existido em outros tempos e espaços, o
novo paradigma da tecnologia da informação fornece a base material para
sua expansão penetrante em toda a estrutura social. Além disso, eu afirmaria
que essa lógica de redes gera uma determinação social em nível mais alto
que a dos interesses sociais específicos expressos por meio das redes: o
poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder. A presença na
rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são

63
Em seu Boletim de Economia Criativa de 2014, o SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas, apontou que os coletivos criativos podem ser classificados como associações entre pessoas
de profissões similares, ou diferentes, dentro da economia criativa (músicos, fotógrafos, designers, entre tantos
outros profissionais). http://www.sebraemercados.com.br/boletim-a-forca-dos-coletivos-criativos/ Acesso em:
10/07/2018.
64
O site Estilistas Brasileiros conceitua que, moda autoral pode ser interpretada como todo produto feito por
criadores que estão bastante próximos de suas criações, seja no que diz respeito ao processo de criação e/ou de
confecção do produto até a venda do mesmo. https://estilistasbrasileiros.com.br/afinal-o-que-e-moda-autoral/
Acesso em: 13/07/2018.
fontes cruciais de denominação e transformação de nossa sociedade: uma
sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em
rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social
(pg. 497).

Conforme relato da dona da grife, o coletivo se formou com o intuito de possibilitar o


acesso e a interação dos profissionais ligados a arte, cultura e moda, tais como: produtores,
estilistas, modelos, designers, criadores de moda e afins. Também facilitar o acesso aos
fornecedores de matéria-prima e a cadeia produtiva de prestadores de serviços de corte e
costura modelagem industrial, sublimação em prensa ou calandra65, serigrafia entre outros
serviços necessários à criação de moda autoral.
Minhas inquietações quanto ao funcionamento deste coletivo, se originaram de minha
participação como prestadora de serviços de confecção de vestuário, a criadores de moda
autoral que se encontravam diretamente ligados ao universo da moda campo-grandense. Neste
período atendi algumas marcas locais de moda autoral e que se encontravam inseridos dentro
de um espaço físico, situado nas imediações da Explanada Ferroviária, a Plataforma
colaborativa BRAVA. Nesta plataforma, se encontravam instalados vários empreendimentos
individuais, compartilhando o espaço de forma colaborativa, e conforme a fala do idealizador
do espaço, a um site de notícias local:

Somos uma plataforma colaborativa. Temos um escritório de arquitetura, um


escritório de design, tem uma loja, um ambiente de moda com três araras
colaborativas de marcas regionais e também temos um ambiente que é um
bar e outro que é uma hamburgueria. Somos várias pessoas juntas para
viabilizar o espaço. É um trabalho de equipe. (MIDIAMAX, 2016).

Além de plataforma colaborativa, promovia eventos culturais, saraus, shows,


exposições, feiras, etc. Nestes eventos havia um considerável trânsito de pessoas interessadas
em moda, design, cultura, e com isso uma vasta rede de network se formava a cada evento,
viabilizando a interação e fortalecimento dos projetos inseridos lá. A Brava funcionava em
uma casa da antiga vila ferroviária de Campo Grande, tombada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), onde na sala principal ficavam os expositores com
vários produtos, roupas de algumas marcas autorais, em outra sala, dentre as quais ficava a

65
Segundo o site Vale Transfer, sublimação em prensa térmica: O processo consiste em imprimir em papel
especial de forma que o material absorva a tinta sublimática e assim, consegue liberar e transferir quando fica
exposta à alta temperatura das prensas térmicas;
Sublimação em calandra: é um processo que estampa de forma contínua. Este tipo de técnico utiliza prensagem
térmica onde as estampas de sublimação são transferidas para o tecido de forma contínua, ou seja, através de
rolos de tecido. Ela permite estampar tecidos com folha contínua ou corrida, oferecendo precisão, bom
acabamento e claro, altíssima qualidade. http://www.valetransfer.com.br/artigos/sublimacao-em-prensa-ou-
calandra-entenda-a-diferenca/ Acesso em: 13/07/2018.
marca para a qual produzimos. Cada produto possuía sua identificação para pagamento e
posterior acerto no final do movimento comercial. Um detalhe perceptível é que tudo o que
estava exposto para venda eram produtos autorais e únicos, com forte apelo artístico e estético
impresso em cada criação, especificado em suas tags (etiqueta descritiva do produto). Durante
três anos, passou por várias mudanças em seu funcionamento, saída e chagada de parceiros de
negócios, mantendo principalmente os shows e eventos culturais66.
Estes produtos têm em si características marcantes das transformações e adaptações
pelas quais o capitalismo vem passando desde a década de 1970 e acirrado a partir da
reestruturação industrial em meados de 1990. O mercado do “exclusivo”, do “personalizado”
ou do “único” vem ganhando força e espaço desde então, reforçando as constatações de
Lipovetsky (2015):
(...) A atividade estética do capitalismo era reduzida ou periférica: ela se
tornou estrutural e exponencial. É essa incorporação sistêmica da dimensão
criativa e imaginária aos setores do consumo mercantil, bem como a
formidável dilatação econômica dos domínios estéticos, que autoriza a falar
de um regime artista do capitalismo. (pg. 26).

Neste mesmo local, também ocorriam eventos variados da cultura Pop67, música,
performances, saraus e rodas de discussão de temas variados. Periodicamente ocorriam
eventos de venda, com a presença de vários expositores de produtos autorais de diversos
seguimentos para além do vestuário, tais como, produtos artesanais alimentícios, brechó de
luxo, turbantes, brinquedos artesanais, produtos de reuso (upcycling), bijuterias, bolsas e
66
Neste ano de 2020 encerrou suas atividades em meados de maio, em função das dificuldades ocasionadas pela
pandemia de Covid-19, tendo em vista que shows ou qualquer outro evento que cause aglomeração estão
suspensos por tempo indeterminado em nossa capital.
67
Tem origem na chamada Pop Art dos anos 60", diz Martin Cézar Feijó, professor do Programa de Pós-
Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, da Universidade Mackenzie. Ele explica que esse
movimento surgiu diretamente das artes plásticas, mais especificamente ligado ao pintor e cineasta americano
Andy Warhol, autor de pinturas de rostos de figuras famosas como as atrizes Marilyn Monroe e Elizabeth
Taylor. "Trata-se de um tipo de arte que tenta reproduzir ícones dos meios de comunicação, em uma época que
coincide com o auge do cinema e da televisão e com a explosão de certas bandas e artistas, como os Beatles".
Segundo o professor, a cultura pop foi emanada dos meios de comunicação em uma tentativa de dialogar com a
arte erudita, desde a pintura e a escultura até a música, a dança e a literatura. "É uma representação artística que
tem grande difusão na mídia e que aspira atingir um público cada vez maior", afirma o especialista. Apesar
disso, ela não deve ser confundida com a cultura de massa. "É um estágio posterior. A pop já faz parte do
universo das mídias individuais ou em rede. Essa individualidade, que tem um cunho massivo - e não de massa -,
se refaz por meio de diferentes combinações que cada indivíduo ou consumidor é capaz de criar como
novidade", explica Gelson Santana Penha, professor do curso de Mestrado em Comunicação da Universidade
Anhembi-Morumbi.
Gelson esclarece que a cultura pop nasce em meio à explosão do consumo individual "e apaga as diferenças
entre imagem e realidade, reprodução e original". É por essa razão, por exemplo, que o cantor Michael Jackson
pode ser considerado um ícone da cultura pop. "Ele não é um exemplo para ninguém, isto é, ele tinha um tipo de
existência que estava mesmo na 'Terra do Nunca', no plano da imaginação, da fantasia. E o pop é exatamente
isso: ele é muito mais consumido do que vivido; é a arte dialogando com o consumo sem pudor", afirma Martin
Feijó. Dentro desse contexto, outra importante característica da cultura pop é a de que ela alimenta produtos
voltados para um público essencialmente jovem, exercendo influência sobre ele, principalmente na moda e no
estilo.
https://novaescola.org.br/conteudo/1528/o-que-e-cultura-pop
carteiras. Estes produtos são destinados a um público formado por uma classe social que
procura por itens diferenciados, originais e exclusivos, sujeitando-se a pagar por isso valores
maiores do que o preço de seus similares nas lojas populares e de departamentos, como frisou
SOARES (2017):
(...) moda adotada por aqueles mais altamente situados na hierarquia social –
e também capaz de consumir de maneira individualizada, crítica e até
mesmo criativa aquilo que lhe é ofertado. Seriam pessoas que valorizam sua
singularidade e, como ferramenta de diferenciação, estão interessadas não
apenas em consumir produtos de grandes marcas (mainstream), mas
também “achados” – aqueles artigos especiais encontrados em locais pouco
conhecidos ou comuns. (pg. 5)

Nosso contato com a Brava ocorreu no lançamento de uma grife, onde a criadora de
moda autoral68 dona da marca, nos apresentou como suas costureiras na abertura do seu
desfile. Este foi nosso69 primeiro contato direto com o campo da moda de Campo Grande e
alguns coletivos criativos de moda autoral. Até então, as movimentações deste campo nos
estavam ocultas70, não fazia parte do mundo ao qual estávamos habituadas.
Neste primeiro momento, a Brava ainda estava em formação e pude acompanhar isso
pelas redes sociais e noticiários em uma coluna social de um jornal eletrônico de nossa
cidade. No referido jornal, era dito que neste local funcionavam várias atividades relacionadas
entre si ou não, e que o gerenciamento era coletivo, sem um chefe ou responsável geral, ou
seja, cada participante do coletivo era responsável por todos os custos do local, arrumação,
manutenção, etc. Ali funcionava um escritório e oficina de arquitetura e designer de
interiores, uma hamburgueria gourmet, uma cafeteria, exposição de artes, e móveis estilizados

68
No significado etimológico da palavra autoral: a mesma é derivada da palavra autor, e significa tudo que é
relativo à ou próprio do autor de obra literária, artística e/ou científica, ou seja, significam todas as criações e
obras do autor.
Na moda, o termo autoral – além de abraçar o significado acima – aparece intrinsecamente relacionado ao
movimento slow fashion. Em uma clara oposição ao padrão das marcas de fast fashion e seus produtos
massificados, a chamada moda autoral vai além e, por convenção social, abrange também aspectos relacionados
às marcas de slow fashion. Sendo assim, moda autoral pode ser interpretada como todo produto feito por
criadores que estão bastante próximos de suas criações, seja no que diz respeito ao processo de criação e/ou de
confecção do produto até a venda do mesmo.
Devido a essa proximidade, o produto autoral vem repleto de impressões e influências de seu criador. E, ao
contrário do que muitos pensam, o produto autoral não é aquele onde identificamos uma criação inusitada, mas
sim aquele produto com valor afetivo muito presente.
Dentro dos aspectos acima citados encontramos os pequenos produtores que produzem localmente e em pequena
escala, de forma bastante artesanal e estando totalmente envolvidos em todas as etapas por onde passa o produto
até chegar ao cliente final. Além disso, esses pequenos produtores, na maioria das vezes, também apoiam e
abraçam questões como sustentabilidade, ética e responsabilidade social em seus negócios.
https://estilistasbrasileiros.com.br/afinal-o-que-e-moda-autoral/
69
“Nosso” em referência ao fato de que tanto eu, quanto Priscila e Maria de Fátima jamais tínhamos trabalhado
diretamente com o campo da moda. A invisibilidade neste ponto era bilateral.
70
Neste momento as atividades deste campo, eram visíveis apenas à classe alta da sociedade, tanto de criadores
de moda autoral, quanto de clientes. Com a divulgação de que a grife utilizou produção local, outros criadores
passaram a buscar mais informações sobre a cadeia produtiva, tendo em vista desconhecerem o processo de
produção.
e peças decorativas com materiais recicláveis, dentro do conceito de upcycling71. A primeira
impressão do local foi de surpresa, pois seu tipo de gestão era inovador, aparentemente sem
um chefe ou patrão definido, com uma relativa liberdade de atividade para quem fazia parte
do coletivo. Durante um período de quase 12 meses pude acompanhar algumas atividades lá,
não só com a grife que atendíamos, mas em reuniões de outro coletivo criativo de moda, uma
revista eletrônica. Durante estas reuniões pude me aproximar melhor das pessoas que
utilizavam aquele local, apreender melhor sobre o seu funcionamento.
A visibilidade alcançada no desfile da grife chamou à atenção da diretoria executiva da
Plataforma digital de uma revista eletrônica de moda – que também era um tipo de coletivo
criativo de moda72 – este encontro resultou em um convite para participar como representante
(voz) do setor produtivo, nas rodas de debates sobre o campo da moda de Campo Grande
realizadas periodicamente pela revista. Durante estas reuniões, foi possível conhecer outros
criadores de moda autoral e demais profissionais que compunham este campo em nossa
cidade, ampliando nossa rede de network e possibilidades de trabalho. Meus questionamentos
se iniciam a partir das relações, que ocorriam dentro do contexto de trabalho colaborativo,
fomentado nos coletivos criativos de moda ao qual tive acesso. Relações estas totalmente
diferentes das que observamos no sistema de produção e confecção de vestuário
anteriormente estudado73. Este novo modelo de gestão aparentou as mesmas características
observadas por Sennet (1975) em que:

(...) Em vez das organizações tipo pirâmide a administração quer agora


pensar nas organizações como redes. “As arrumações tipo rede pesam menos
sobre os pés” do que as hierarquias piramidais declara o sociólogo Walter
Powell; podem ser mais facilmente decompostas ou redefinidas que as
vantagens fixas das hierarquias. (pg. 23).

71
Surgido em meados da década de 1990, o conceito upcycling trouxe à tona o estilo de vida sustentável, em que
o principal alicerce é a reutilização de objetos que seriam descartados. https://mudatudo.com.br/como-o-
conceito-upcycling-impacta-moda/
72
Revista Morenah: Coletivo Criativo de moda, arte e Comportamento foi destaque do programa “Na Cadeira do
DJ”. Conectar pessoas e ressignificar o cenário da moda local, é o que promete a „Morenah,‟ primeira revista
digital de moda que chega a Campo Grande, foi o destaque de hoje (23) do programa Na Cadeira do DJ, na
Rádio Educativa FM 104,7. Thallyson Perez e Marcia Marinho, diretores da Revista Morenah, foram os
entrevistados do programa. Os diretores da revista prometem além de inovar, movimentar o cenário local da
moda.

Com lançamento para o dia 25 de agosto de 2017, a Revista Morenah é um passo a frente no mercado de moda
do estado de Mato Grosso do Sul. Criada para impulsionar o mundo fashion através da plataforma online,
complementando assim o cenário de moda nacional e internacional. Disponível em:
http://www.portaldaeducativa.ms.gov.br/revista-morenah-coletivo-criativo-de-moda-arte-e-comportamento-foi-
destaque-do-programa-na-cadeira-do-dj/ Acesso em: 19/09/2020.
73
Confecção De Vestuário Em Campo Grande E A Exploração Da Força De Trabalho De Costureiras
Faccionistas Autônomas (2000-2015) (GRANCE, 2016).
A questão financeira, de gestão do espaço, do tempo de permanência de cada
empreendimento, dos recursos disponíveis pode gerar conflitos de entendimento se mostrando
um tanto paradoxal, pois a ideia era de ser, flexível, acessível e justo. Entretanto, “questões
estruturais como a distribuição de lucros entre colaboradores, ou questionamentos sobre o
sistema não se definiam como tópicos éticos nesta nova tomada de consciência, refletindo a
mentalidade da época.” (LUCZINSKI, 2016, p.76), colocar todas estas práticas em
funcionamento e em comum acordo com todos exige longo tempo de experimentação e
ajustes até que atinja um modelo minimamente efetivo.

O conceito de Economia Criativa74 era manifesto pelos integrantes, assim como o


ideal de produzir artigos com consciência social e ambiental, dentro dos conceitos de
75 76
“comércio justo” ou “etiqueta aberta” . Estes modelos de produção, reprodução e venda

74
Economia criativa é o conjunto de negócios baseados no capital intelectual e cultural e na criatividade que gera
valor econômico.
A indústria criativa estimula a geração de renda, cria empregos e produz receitas de exportação, enquanto
promove a diversidade cultural e o desenvolvimento humano.
A Economia Criativa abrange os ciclos de criação, produção e distribuição de bens e serviços que usam
criatividade, cultura e capital intelectual como insumos primários.
Concretamente, a área criativa gerou uma riqueza de R$ 155,6 bilhões para a economia brasileira em 2015,
segundo “Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil” (em PDF), publicado pela Firjan em dezembro de 2016.
Na ocasião, a participação do PIB Criativo estimado no PIB brasileiro foi de 2,64% em 2015, quando a Indústria
Criativa era composta por 851,2 mil profissionais formais.
https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/segmentos/economia_criativa/como-o-sebrae-atua-no-segmento-de-
economia-criativa,47e0523726a3c510VgnVCM1000004c00210aRCRD
O conceito de Economia Criativa é relativamente novo, portanto, não há uma definição “pronta” e única sobre o
termo. O que podemos afirmar é que a ideia da Economia Criativa, como o próprio nome diz, é unir economia
com criatividade, possuindo como matéria-prima o capital intelectual, isto é, carregado por valores simbólicos.
Assim, de um lado temos a Economia, que diz respeito à ciência que regula a produção, a distribuição e o
consumo de bens e serviços. E, de outro lado, temos a criatividade, que significa ser capaz de criar algo novo ou
transformar algo que já existe.
O pesquisador britânico e especialista na área, John Howkins, sustenta que é justamente a relação que se dá entre
a economia, a criatividade e o campo simbólico que constitui a Economia Criativa.
Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) a economia criativa
é: “[…] um conjunto de atividades econômicas baseadas no conhecimento com uma dimensão de
desenvolvimento e ligações transversais a níveis macro e micro à economia global.” (UNCTAD, 2010, p.10,
tradução nossa).
Antes mesmo de surgir o termo Economia Criativa, já havia a noção de indústrias criativas, criado por volta da
década de 1990 na Austrália e muitas vezes esses conceitos são usados como sinônimos, mesmo que não sejam.
Nesse período ocorreu a publicação do relatório chamado Creative nation: commonwealth cultural policy, que
trouxe a importância de se levar em consideração o potencial econômico das mais variadas atividades culturais.
Outro evento importante, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que
aconteceu em 2012 no Brasil também trouxe essa discussão sobre a Economia Criativa por meio da cultura, a
colocando como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável. Por outro lado, este é um processo gradual de
reconhecimento da cultura e da criatividade, que depende dos objetivos de cada nação em firmar ou não este
compromisso. https://www.politize.com.br/economia-criativa/
75
O Comércio Justo (CJ) é um movimento internacional, criado nos anos 1960 na Holanda (com experiências
antecessoras nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1940), baseado na promoção de uma aliança entre
todos os atores da cadeia comercial, dos produtores/as aos consumidores/es, excluindo os intermediários não
necessários, visando denunciar as injustiças do comércio e construir princípios e práticas comerciais cada vez
mais justos e coerentes. https://www.cidac.pt/index.php/o-que-fazemos/comercio-e-desenvolvimento/comercio-
justo/
de produtos artesanais e semi artesanais, pautados na originalidade e exclusividade, foram
influenciados por uma das adaptações do capitalismo tendo como base a disseminação do
consumo de arte e beleza, como observou Lipovetsky (2015):

(...) Os imperativos do estilo, da beleza, do espetáculo adquiriram tamanha


importância nos mercados de consumo, transformaram a tal ponto a
elaboração dos objetos e dos serviços, as formas da comunicação, da
distribuição e do consumo, que se torna difícil não reconhecer o advento de
um verdadeiro “modo de produção estético” que hoje alcançou a maioridade.
Chamamos esse novo estado da economia mercantil liberal de capitalismo
artista ou capitalismo criativo, transestético. (pg. 25).

O surgimento da Brava em 2016 marcou o início de um movimento coletivo e


colaborativo no campo da moda em Campo Grande, por parte dos agentes a ele ligado e que
há muito atuavam individualmente. O pontapé inicial desta mobilização idealizada pela
revista eletrônica ocorreu durante as reuniões do grupo de debate realizados neste espaço, em
que criadores de moda cultural, produtores de cultura e moda, modelos, fotógrafos, editores,
publicitários, representantes do setor público e afins, discutiam temas relacionados à
produção, divulgação e venda de seus produtos/serviços. Embora eu não fizesse parte da
mesma classe social do grupo, fui inserida como costureira e representante do setor produtivo
pela diretoria da revista, como dito anteriormente. Conquanto não fosse comum a presença de
uma costureira em um evento desse tipo77, esse acesso foi fundamental para o
acompanhamento desde o início desta mobilização, me dando a possibilidade de observar78 de
dentro, um campo que até então conhecia de forma superficial através das revistas de moda
nacionais.
A partir dos relatos de insatisfação com o setor produtivo compartilhados nas rodas de
debate, foi possível adaptar nosso coletivo de costureiras para prestar um serviço direcionado
a este nicho, bem como oferecer uma relação de trabalho o mais próxima possível com o
cliente. Uma característica comum entre os criadores de moda autoral é o fato de produzirem
poucas unidades por modelo, em coleções entre 15 a no máximo 200 peças (de modelos, cores
e tamanhos diferentes). Este tipo de mercado encontra dificuldades para conseguir força de
76
Categoria nativa largamente mencionada por criadores de moda, como uma proposta de mostrar para o
consumidor quanto custa cada fase do processo na produção da peça, desde a matéria prima até o produto final.
77
Neste primeiro momento de aproximação minha presença foi percebida por alguns como uma surpresa, pois
não fui apresentada como empresária do setor de confecções, mas como costureira. Ainda que houvesse sido
inserida não estava plenamente incluída no contexto. Primeiro por não fazer parte da classe social à qual o grupo
pertencia, pois vinha de uma ONG instalada na periferia do entorno do “lixão” e não de áreas nobres da cidade
como a maioria. Segundo, não possuía laços de amizade naquele círculo, apenas relações de trabalho com alguns
componentes.
78
Inicialmente não tive oportunidade de fala a não ser para breve apresentação vez ou outra, por isso disse que
estava inserida, mas não incluída. Tive acesso ao grupo, mas não “lugar de fala”, notadamente aquele não era
meu lugar.
trabalho adequada para a confecção de seu produto, pois a modalidade de costura mais
conhecida e praticada em Campo Grande é a de costura por facção. Esta tem como principais
características o preço baixo por unidade por produzir grandes quantidades do mesmo modelo
em escala, trabalham modelagens padrão que podem ser utilizados tanto em uniformes
escolares, quanto em uniformes profissionais.
Diante disso, a cadeia produtiva de facção não atende a algumas das especificidades
do campo da moda autoral79 – que utiliza em grande medida a técnica de alfaiataria –
deixando uma lacuna a ser preenchida por costureiras que trabalham nesta modalidade.
Entretanto esta modalidade tem um custo de produção mais elevado do que a facção, devido a
possuir características artesanais – corte, costura e acabamento feitos à mão de forma
individualizada – elevando o tempo de execução, diferente da facção que opera todos os
processos de confecção no modo industrial o que torna todo o processo mais rápido. Outra
dificuldade para o criador de moda autoral é encontrar costureiras com esse conhecimento,
que estivessem dispostas a fazer um preço mais acessível e atender aos detalhes de cada
modelo individualmente. O acesso a esta informação possibilitou a que nosso coletivo
oferecesse neste espaço nossa força de trabalho especializada. Neste sentido “a informação é
ao mesmo tempo resultado e condição para multiplicação de conexões [...] ”O grande” da
cidade dos projetos deve distribuir com sua equipe os bens raros aos quais têm acesso, e o
bem mais importante é a informação” (OLIVEIRA & MEIRA, 2013).
No campo da moda, o valor simbólico é o que proporciona maior distinção e
legitimidade a grife. Isso também é levado em conta na produção deste bem de luxo através
da confecção do mesmo, ou seja, uma peça Chanel, é conhecida e reconhecida para muito
além de suas técnicas de confecção, “um costureiro não veste clientes, mas subjetividades: as
inquietações, ternuras, ansiedades de uma massa de homens e mulheres.” (BOURDIEU, 2001,
pg. 18). Deste modo, beleza artística e capacidade de envolver e encantar também é levado
em conta quando se produz moda. Uma das características distintivas de um artigo de
vestuário Chanel é a criatividade de seu estilista, somada a técnica de alfaiataria de alto
padrão na sua confecção, reforçando a singularidade da grife para manutenção de sua
legitimidade frente a demais marcas ao longo dos anos.

79
Não que o trabalho do costureiro de facção seja menos especializado ou menos trabalhoso que o da costura sob
medida, de igual modo, ambas as modalidades tem seus prós e contras. Não se pode exigir que se confeccione
peças de alfaiataria na mesma velocidade da facção, e nem exigir a precisão de detalhes da alfaiataria na facção.
São modalidades diferentes, para necessidades e mercados diferentes, não menos importantes uma em relação à
outra.
Um dos temas abordados pelos criadores de moda autoral foi à dificuldade de
80
encontrar “mão de obra” especializada em alfaiataria, sobretudo para marcas desse
seguimento. Apesar de existirem algumas profissionais, a tabela de preços praticada é
incompatível para produção destinada à venda, pois onera o preço final tornando sua
produção inviável economicamente. Somando o custo da matéria prima em tecido de seda
com estampa autoral, custos fixos da marca, mais a costura que custa em média de R$ 30,00
por peça, o preço final de uma blusa pode chegar à R$ 280,00 a unidade, sem aplicar margem
de lucro. Este valor de costura é o que praticávamos em demandas individuais com o tecido
do cliente, porém, para a produção das duzentas peças da grife cobramos um valor muito
aquém da nossa tabela. Se para a grife a tabela de alfaiataria é inviável, para nós a tabela da
facção é totalmente impraticável, pois mal cobre os custos de produção. Neste sentido,
concordo com Bourdieu (2001) quando diz que:

A imposição da legitimidade é a forma acabada da violência simbólica,


violência atenuada, que só pode ser exercida com a cumplicidade de suas
vítimas e que, assim, pode dar à imposição arbitrária de necessidades
arbitrárias a aparência de uma ação libertadora, invocada a partir do mais
íntimo daqueles que a sofrem. (pg. 64)

Mesmo que o valor recebido não fosse o ideal, nos submetemos a recebê-lo com vistas
a acessar este campo e de nos tornar visíveis e legitimar nosso trabalho nele. Desta forma
podemos dizer que, nossa inserção neste campo nos custou e ainda nos custa esforço,
investimentos e muito trabalho.

2.3 A criação do Coletivo de Costureiras

Falar da aproximação, inserção e visibilidade de um grupo de costureiras no campo da


moda, do ponto de vista de uma costureira, soaria um tanto idílico se considerarmos que este
espaço não lhe é natural, embora o seja para o produto do seu ofício. Estar neste campo e
oferecer sua força de trabalho como costureira não é incomum, no entanto, ter
reconhecimento público seria o ápice de minha carreira como costureira. Foi isso que senti ao
ouvir o meu nome mencionado no desfile de lançamento de uma grife autoral, como a
costureira responsável pela confecção daquelas peças que lindamente eram expostas na

80
Categoria nativa para designar força de trabalho do prestador de serviço em questão.
passarela. Este evento81 foi o apogeu do meu sonho como costureira e coordenadora de um
grupo de costureiras da periferia de nossa cidade. Minha família estava presente, Maria de
Fátima e a Priscila também, testemunhando algo que jamais imagináramos. Naquele
momento, embevecida pelo turbilhão de emoções e o sentimento de conquista, não dei conta
de compreender toda a trajetória que fizemos até chegar ali. Tampouco avaliar o preço pago
por aquele momento, tendo em vista a afirmativa de (MILLS, 1969) em que:

O indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu


próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas
possibilidades na vida tornando-se cônscio das possibilidades de todas as
pessoas nas mesmas circunstâncias que ele. Sob muitos aspectos é uma lição
terrível; sob muitos outros, magnífica (MILLS, 1969, p.12).

O desencantamento ocorreu somente algum tempo depois, ao submeter esta


experiência a uma análise mais profunda e perceber o quanto nos custou tal envolvimento. Foi
uma “lição terrível” perceber que cobramos preço de tabela de facção – valor 75% menor que
a tabela de alfaiataria – por um serviço caro do ponto de vista dos custos e aborrecimentos que
a produção gerou. Eu não pretendia voltar para detrás da máquina, era preferível ficar na
captação e atendimento ao cliente, no entanto, o valor recebido pelo serviço causou a
desistência de parte fundamental da equipe, me obrigando a voltar para a máquina a fim de
concluir o serviço.82 Em outro aspecto foi uma “lição magnífica” no sentido da nossa ousadia
– minha, da Priscila e posteriormente da Maria de Fátima – em concluir tamanho
empreendimento em troca de visibilidade. De qualquer maneira, era uma estratégia de
inserção no campo. Ou seja, acumular capital simbólico à custa do acúmulo de capital
econômico. Bourdieu fala de estratégias dos outsiders, de quem vem de fora e entra no campo
da moda.
Observar a complexidade das relações que envolveram este feito exigiu um “duplo
movimento em que um sujeito científico foi progressivamente construído e que é de modo
simultâneo, um olhar antropológico capaz de compreender relacionamentos invisíveis, e um
domínio (prático) do self” (BOURDIEU, 2017, p. 81). Diante disso, reitero que, de um lado, é

81
O evento ocorreu nas proximidades da Explanada Ferroviária, localizado no centro de Campo Grande e onde
ocorrem diversos eventos culturais ao longo do ano. O público presente era formado por agentes ligados ao
campo da moda, jornalistas, colunistas sociais, artistas locais notadamente oriundos das regiões nobres da
cidade. Como representantes da periferia, estávamos nós, costureiras e alguns entes de nossas famílias,
testemunhando nosso “sucesso” e inserção naquele universo que outrora, víamos apenas em revistas e televisão.
Em certa medida, nos sentíamos autoras da nossa própria trajetória, embora de classe social “inferior”, estar ali,
ter nosso nome mencionado como executoras, nos deu certo senso de respeito próprio (SENNET, 1999, p. 14).
82
Este foi um dos momentos mais duros da minha trajetória, já estava formada e havia voltado para a máquina,
no mesmo lugar de onde saí e não pretendia voltar. A ideia de escalada social ainda impregnava minhas
aspirações e de minha família. Ninguém entendeu a me ver de volta com a máquina em casa, uma cientista social
costurando até tarde da noite para não atrasar a entrega. Cheguei a ouvir de alguém “O que você está fazendo da
sua vida?”, chorei muito, por muitas vezes sobre as roupas do desfile.
uma costureira falando de sua trajetória social individual e coletiva, e de outro, uma
pesquisadora quase antropóloga, submetendo cuidadosamente estes relatos, ao rigor da análise
teórica para que ao final, não venha a incorrer na “síndrome do diário de campo” (Id. 2017).
Seguindo a mesma linha do primeiro capítulo, em que utilizei a autoetnografia como
metodologia de pesquisa, “compreendendo que a experiência deve ser uma forma de
potencializar a pesquisa apresentando outras perspectivas sobre um tema.” (DOS SANTOS &
BIANCALANA, 2017, P. 87), prossigo neste segundo capítulo, mobilizando nossas
experiências vividas, enquanto agente coletivo no campo da moda em Campo Grande.
Com o intuito de “explorar não a experiência vivida do sujeito consciente, mas as
condições sociais de possibilidade – e, portanto os efeitos e os limites – dessa experiência e,
mais precisamente do próprio ato de objetivação.” (BOURDIEU, 2017, p. 75), lanço mão da
objetivação participante tendo em vista que me possibilita deslindar estas experiências, na
medida em que as mesmas se tornam o próprio objeto a ser observado, não só do ponto de
vista da costureira – sendo eu mesma uma delas – mas do ponto de vista antropológico.
Este olhar antropológico se mostrou muito útil para a criação do coletivo, no sentido
de que estávamos criando um empreendimento a partir da observação mais acurada e menos
romântica do campo ao qual estávamos adentrando. Permitindo visualizar o surgimento de um
novo seguimento de clientes, consumidores de costura artesanal, sob medida: os criadores de
moda autoral, que por sua vez, buscavam uma força de trabalho específica83. Além da
capacidade de interpretar e compreender termos técnicos próprios do ofício, o capital cultural
e intelectual adquirido na academia contribuíram em grande medida, para com meu
desempenho enquanto empreendedora no ramo de prestação de serviços de costura de
vestuário para o campo da moda. Em muitos momentos, foi-me necessário lançar mão deste
capital para deixar clara a minha capacidade de comunicação, sem a necessidade de
interlocutores ou intermediários que falassem por nós.
Por vezes mantinha-me calada a espera de uma oportunidade, que quando ocorria,
ficava evidente o estranhamento quanto à minha desenvoltura. Momentos em que
participávamos de entrevistas, editoriais de jornal e revista eletrônica, eram propícios para me
posicionar e buscar legitimar minha presença ali. Lembro-me de um episódio em que estava
em uma reunião entre os criadores e produtores de moda, e uma agente estatal para a eleição
de um representante da sociedade civil e de um suplente para uma pasta direcionada aos
interesses deste grupo. Durante as tratativas, foi eleito o representante principal, que era

83
Específica no sentido de possuir conhecimento integral do ofício de costura (da modelagem à costura), tendo
capacidade de interpretação de ficha técnica e dominar os termos técnicos próprios relacionados à confecção de
uma peça de vestuário. Disponível em: http://textileindustry.ning.com/forum/topics/gloss-rio-elementos-de-
alfaiataria. Acesso em 28/07/2020.
diretor executivo de uma revista eletrônica e em seguida, me indicaram como suplente dele.
Neste momento a representante estatal, com todo o cuidado e polidez possível, sugeriu que
seria melhor alguém “intelectualizada” para a função, dada a necessidade de interlocução
clara entre as partes (deixando subentendido que uma costureira não seria adequada à função).
Neste dia me calei – na verdade emudeci – estarrecida com a situação. Em meu favor se
levantou uma das diretoras da revista e deixou bem claro que eu possuía todas as condições
para a função, pois, era formada em Ciências Sociais na UFMS. Desconcertada, a agente me
pediu desculpas, no entanto o constrangimento na sala foi geral e a reunião seguiu sem mais
avanços.
Situações como esta tem feito parte do meu cotidiano, a cada atendimento, a cada
evento ou exposição, preciso defender minha presença ou permanência acionando o capital
intelectual adquirido na academia, já que não disponho do capital cultural, próprio da classe
alta, “tido como um recurso de poder que equivale e se destaca – no duplo sentido de se
separar e de ter uma relevância especial – de outros recursos, especialmente, e tendo como
referência básica, os recursos econômicos.” (SILVA, 1995. p. 24). Entretanto a luta por
reconhecimento no campo da moda não é só nossa – enquanto costureiras – é do criador de
moda autoral84 também, são muitos os que buscam ascender dentro deste campo e para isso,
lutam de todas as formas para se distinguirem neste jogo e com isso legitimar sua
permanência e ascensão nele. Conforme Bourdieu (1987):

(...) principais fatores de diferenciação que são responsáveis por diferenças


observadas num dado universo social ou, em outras palavras, pela descoberta
dos poderes ou formas de capital que podem vir a atuar, como azes num jogo
de cartas neste universo específico que é a luta (ou competição) pela
apropriação de bens escassos [...] o capital cultural, ou melhor, o capital
84
Bem, para explicarmos tal termo, vamos voltar um pouco no significado etimológico da palavra autoral: a
mesma é derivada da palavra autor, e significa tudo que é relativo à ou próprio do autor de obra literária, artística
e/ou científica, ou seja, significam todas as criações e obras do autor.
Na moda, o termo autoral – além de abraçar o significado acima – aparece intrinsecamente relacionado ao
movimento slow fashion. Em uma clara oposição ao padrão das marcas de fast fashion e seus produtos
massificados, a chamada moda autoral vai além e, por convenção social, abrange também aspectos relacionados
às marcas de slow fashion.
Sendo assim, moda autoral pode ser interpretada como todo produto feito por criadores que estão bastante
próximos de suas criações, seja no que diz respeito ao processo de criação e/ou de confecção do produto até a
venda do mesmo.
Devido a essa proximidade, o produto autoral vem repleto de impressões e influências de seu criador. E, ao
contrário do que muitos pensam, o produto autoral não é aquele onde identificamos uma criação inusitada, mas
sim aquele produto com valor afetivo muito presente.
Dentro dos aspectos acima citados encontramos os pequenos produtores que produzem localmente e em pequena
escala, de forma bastante artesanal e estando muito envolvidos em todas as etapas por onde passa o produto,
desde sua criação até chegar ao cliente final. Além disso, esses pequenos produtores, na maioria das vezes,
também apoiam e abraçam questões como sustentabilidade, ética e responsabilidade social em seus negócios.
Disponível em: https://estilistasbrasileiros.com.br/afinal-o-que-e-moda-autoral/
Acesso em: 29/06/2020.
informacional [...] o capital social, que consiste de recursos baseados em
contatos e participação em grupos e o capital simbólico que é a forma que os
diferentes tipos de capital toma uma vez percebidos e reconhecidos como
legítimos (pg. 4)

Nesta luta por reconhecimento, visibilidade e distinção, o estilo de vida é um


importante elemento de diferenciação dentro deste espaço, é ele que demonstra através dos
gostos a que classe cada agente pertence, tendo em vista que, “nas práticas em que se
manifesta sua distinção – esportes, jogos, distrações culturais – porque estão na unidade
originariamente sintética do habitus, princípio unificador e gerador de todas as práticas.”
(BOURDIEU, 1983, p.2). Logo, as classes inferiores necessitam de um conjunto bem maior
de elementos para alcançar distinção e reconhecimento neste campo. Embora estejamos no
mesmo espaço de luta, nós o ocupamos em posições sociais liminares aos demais lutadores.
Exigindo um esforço maior de adaptação em acompanhá-los em seus espaços, aprender seus
gostos, preferências e características para oferecer a força de trabalho que buscam.
Dentre as características observadas nos criadores de moda autoral, se destacou a
preferência pelo modo de produção preconizado pelo movimento Slow Fashion 85, que
pressupõe a produção em menor escala, baixo impacto ambiental e utilização da força de
trabalho de cooperativas e coletivos de trabalhadores, em oposição ao fast fashion que é a
produção industrial de larga escala. Em meados de 2013, o movimento Fashion Revolution86

85
Em contraposição ao fast fashion - sistema de produção de moda atual que prioriza a fabricação em massa, a
globalização, o apelo visual, o novo, a dependência, a ocultação dos impactos ambientais do ciclo de vida do
produto, o custo baseado em mão de obra e materiais baratos sem levar em conta aspectos sociais da produção -,
o slow fashion surgiu como uma alternativa socioambiental mais sustentável no mundo da moda. A prática
do slow fashion preza pela diversidade; prioriza o local em relação ao global; promove consciência
socioambiental; contribui para a confiança entre produtores e consumidores; paratica preços reais que
incorporam custos sociais e ecológicos; e mantém sua produção entre pequena e média escalas. Disponível em:
https://www.ecycle.com.br/5950-slow-
fashion.html#:~:text=%22Slow%20fashion%22%20%C3%A9%20um%20termo,not%C3%ADcias%20on%2Dli
ne%20Georgia%20Straight.&text=Inspirado%20no%20conceito%20de%20%E2%80%9Cslow,para%20o%20%
C3%A2mbito%20da%20moda. Acesso em: 29/06/2020.
86
O movimento foi criado após um conselho global de profissionais da moda se sensibilizar com o desabamento
do edifício Rana Plaza em Bangladesh, que causou a morte de 1.134 trabalhadores da indústria de confecção e
deixou mais de 2.500 feridos. A tragédia aconteceu no dia 24 de abril de 2013, e as vítimas trabalhavam para
marcas globais, em condições análogas à escravidão.
A campanha #QuemFezMinhasRoupas surgiu para aumentar a conscientização sobre o verdadeiro custo da moda
e seu impacto no mundo, em todas as fases do processo de produção e consumo. Realizado inicialmente no dia
24 de abril, o Fashion Revolution Day ganhou força e tornou-se a Semana Fashion Revolution, que conta com
atividades promovidas por núcleos voluntários, em mais de 100 países.
Queremos tornar a moda uma força para o bem!
No Brasil, o movimento atua desde 2014 promovendo a Semana Fashion Revolution – um acontecimento
organizado em rede nacional que envolve conversas, aulas, e exibição de filmes que sustentam mudanças de
mentalidade e comportamento em consumidores, empresas e profissionais da moda. O movimento, que hoje está
estabelecido como Instituto Fashion Revolution Brasil, trabalha em parceria com diversos atores do setor na
realização de outras atividades, como o Fórum Fashion Revolution, o Índice de Transparência da Moda e
o Projeto Jovens Revolucionários.
deu início aos questionamentos em torno da produção industrial de larga escala e seus
impactos. Estes movimentos chegaram à nossa cidade em meados de 2016, com o início de
um programa de fomento à economia criativa no Estado, promovido pelo SEBRAE/MS e
demais parceiros87. Criadores de moda autoral tiveram a oportunidade de expor seus produtos,
em um primeiro momento relacionado ao artesanato e à Economia Criativa de modo geral.
Entretanto, foi a partir do final de 2017 que estes criadores começaram a se reunir em espaços
coletivos, eventos culturais e feiras para divulgação e venda de seus produtos.
Ao longo de 2018, as ações em torno da moda autoral ganhou força, com a
intensificação das ações do SEBRAE/MS voltadas especificamente para este público, haja
vista, o aumento na demanda por formalização como MEI, de algumas marcas que buscavam
se fortalecer visando o mercado nacional de produção e consumo de moda autoral. Neste
momento, as discussões levantadas pelo movimento do Fashion Revolution, que já
avançavam por todo o Brasil, chegaram até aqui, questionando “Quem faz suas roupas?” e
propondo a valorização do processo de confecção do vestuário como um todo, da obtenção da
matéria prima ao tipo de força de trabalho empregada. Estas questões passaram a fazer parte
do interesse dos criadores daqui, pois tal tema remetia à prática de produção e consumo
consciente de moda o que agrega valor ao produto, diferentemente ao sistema industrial de
produção segundo a ótica de Lipovetsky & Serroy (2015):

(...) Diferentemente da regulação fordiana anterior, o complexo econômico-


estético é menos centrado na produção em massa de produtos padronizados
do que nas estratégias inovadoras, quais sejam, a diferenciação dos produtos
e serviços, a proliferação da variedade, a aceleração do ritmo de lançamento
de novos produtos, a exploração das expectativas emocionais dos
consumidores um capitalismo centrado na produção foi substituído por um
capitalismo de sedução focalizado nos prazeres dos consumidores por meio
das imagens e dos sonhos, das formas e dos relatos.” (pg. 27)

Disponível em: https://www.fashionrevolution.org/south-


america/brazil/#:~:text=No%20Brasil%2C%20o%20movimento%20atua,empresas%20e%20profissionais%20da
%20moda. Acesso em: 02/07/2020.
87
Desde 2016 o setor de moda de Campo Grande vinha recebendo incentivos por parte do SENAI, SINDIVEST,
SEBRAE em conjunto com a prefeitura e governo do estado. Iniciou com o setor de moda a nível industrial,
compreendendo indústrias de confecção de vestuário. Nos anos seguintes o Sebrae passou a acompanhar
pequenos empreendedores do setor de moda autoral através da Economia Criativa. Em parceria com a Fundação
de Cultura do Estado e SECTUR, criadores de moda autoral de diversos seguimentos, tiveram apoio para
participação no Festival de Bonito de 2018 e 2019, no Espaço da Economia Criativa. Disponível em
http://www.festivaldeinvernodebonito.ms.gov.br/pavilhao-de-economia-criativa-alia-criatividade-e-
diversidade-cultural-a-sustentabilidade/
http://www.portaldaeducativa.ms.gov.br/festival-de-inverno-de-bonito-estimula-a-economia-
criativa/ Acesso em: 30/07/2020.
Estamos falando da emergência de um campo da moda em Campo Grande, que
outrora ocupava um espaço exíguo, no qual poucos atores transitavam e que foi reconvertido
para a moda autoral em algum momento, utilizando algumas das práticas do slow fashion,
como forma de se aproximar do desenvolvimento do campo da moda no âmbito nacional.
Apesar de nossa cidade não ter um histórico de participação no campo da moda nacional, já
teve seus tempos dourados, entre as décadas de 1970 e 1990, tendo a Maison de Irany
Caovilla88, predominando nas décadas de 1970 e 1980 com alta costura sob medida e na
década de 1990 a Maison Sidney Volpe89 com sua marca de roupas de festa em alta costura.
Durante este período, havia eventos, desfiles para a mais alta camada da classe rica não só de
Campo Grande, mas de todo o estado do MS. Essa “moda” não era acessível à classe média e
baixa da sociedade e se concentravam nas regiões nobre e central da cidade. Após esse
período de “ouro” e um lapso de quase dez anos com poucas atividades, um novo movimento
começou a se desenvolver na nossa capital.

Em meados da década de 2010, o curso de Designer de moda90 de uma faculdade


particular começou a formar suas primeiras turmas e com isso o campo da moda começou a
ser ressignificado, voltando seus interesses para a formação de estilistas, produtores de moda,
designer e afins, tendo como parte fundamental para conclusão do curso, a apresentação de
uma coleção diante da banca e posteriormente um desfile. Após a formação dos primeiros
designers de moda, observamos os primeiros movimentos, chamando a atenção para as
possibilidades de trabalho que surgiriam a partir de então. Estas ações iniciaram ainda de
forma tímida, porém, foram ganhando força a cada turma formada. Com isso, surge um novo
cenário marcado por uma moda exclusiva e autoral, que passou a ser acompanhada pela mídia
local. Abrangendo uma grande diversidade de gostos e públicos, acompanhando a tendência
de um retorno à autenticidade que a moda vem fazendo na ultima década. O surgimento de
marcas autorais produzidas por designers de moda, estilistas, artistas locais é um reflexo da
capacidade do capitalismo se adaptar às demandas da crítica à inautenticidade,
mercantilizando a arte através de bens de luxo, reafirmando Boltanski e Chiapello (2009) ao
sugerirem que:

88
Tive a oportunidade de falar com a estilista no evento do Moda CG, ocorrido em outubro de 2019 em que ela
esteve presente. Importante estilista e modelista nas décadas de 1970 e 1980, período em que sua Maison esteve
em plena atividade, atendendo a alta sociedade campo-grandense. Deixou de atuar diretamente há mais de 20
anos por motivos de saúde, entretanto a antiga Maison se tornou em uma loja de roupas de festa administrada por
familiares. A estilista está atualmente com quase noventa anos.
89
A socialite permanece em atividade com uma loja de roupas femininas e atualmente tornou-se digital
influencer com mais de 120 mil seguidores no Instagram. https://www.campograndenews.com.br/lado-
b/comportamento-23-08-2011-08/de-collant-nas-redes-sociais-sidney-volpe-diz-que-instagram-e-liberdade
Acesso em:02/08/2020.
90
https://www.uniderp.com.br/curso/design-de-moda/ Acesso em: 02/08/2020.
(...) procuram criar produtos e serviços que a satisfaçam e possam ser
vendidos [...] com a invenção de produtos e serviços que supostamente teria
virtudes “libertadoras”. Ele também funcionou amplamente para fazer face
às reivindicações de autenticidade: passar-se-ia a oferecer aos consumidores
produtos “autênticos” e tão “diferenciados”, que a impressão de
massificação se reduziria. (pg. 444)

Fomos inseridas neste cenário de transformações ao final de 2016, produzindo bolsas e


acessórios com os retalhos, para uma grife de moda autoral que estava em formação. Suas
criadoras começaram produzindo pequenas coleções de vestuário e acessórios personalizados,
com as estampas exclusivas, alusivas à fauna, flora e história de Mato Grosso do Sul. A
escolha por este seguimento de produto exclusivo, carregado de valores ideológicos pelas
donas dessa grife, revela a influência do capitalismo artista na formulação de seu
empreendimento, tendo em vista que “o capitalismo artista tem de característico o fato de que
cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como um
sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações de encantamento.”
(LIPOVETSKY & SERROY, 2015, p. 29).
Parte do encantamento da produção de moda autoral deve-se as estratégias de
adaptação do capitalismo frente às críticas de inautenticidade pela massificação da produção,
do consumo e consequentemente do consumidor. Estas adaptações foram sendo realizadas ao
longo das décadas de 1970 a 1990, através da reestruturação industrial, novas formas de
relações de trabalho e de produção surgiram com fins a que o capitalismo recuperasse sua
capacidade de acumulação. Dentre as adaptações, destacam-se a flexibilização do trabalho e a
mercantilização de bens imateriais conforme observou Boltanski e Chiapello, (2009):

A oferta de bens e de relações humanas autênticas na forma de mercadorias


era a única possibilidade de atender à demanda de autenticidade compatível
com a exigência de acumulação [...] para merecer o rótulo “autêntico”, esses
bens precisam ser buscados fora da esfera da mercadoria, naquilo que
poderia ser chamado de “filões de autenticidade”. A mercantilização do
autêntico supõe, portanto, referência a um original que não seja um bem
comercial, e sim puro valor de uso definido numa relação singular com o
utilizador. (pg.445)

Nesse contexto, um fator imprescindível que agrega valor a uma grife autoral slow
fashion além da autenticidade é a utilização de força de trabalho legalizada e principalmente
quando se priorizam negócios ou projetos dirigidos por mulheres da periferia. A nossa
participação na produção de bolsas e acessórios a partir de retalhos, utilizando a técnica de
costura criativa e artesanal, agregou valor imaterial, no sentido de que seus produtos, além de
serem exclusivos e estarem no movimento de produção de moda consciente por produzirem
pequena quantidade, também demonstravam responsabilidade social, ao levarem trabalho e
renda a um grupo costureiras da periferia apoiadas por uma IDE. Todo este conjunto de
características foi utilizado em seu marketing, para apresentar a um mercado consumidor
exigente, que aprecia produtos exclusivos e personalizados e para tanto não se importa de
pagar um preço mais elevado. Este cliente é atraído por valores que transcendem a matéria em
si, confirmando Lipovetsky & Serroy (2005):

(...) No tempo do capitalismo transestético, não se vende apenas um produto,


mas estilo, elegância, beleza, cool, emoções, imaginário, personalidade. O
mundo mercantil se tornou ao mesmo tempo valor de uso, valor de troca e
valor estético: o capitalismo artista é esse sistema no qual indústria e arte,
mercado e criação, utilidade e moda, marca e estilo não são mais disjuntos. (,
pg. 32)

Este contexto de transformações, arranjos e rearranjos proporcionados tanto pelo


capitalismo artista de Lipovetsky & Serroy (2015), ou pelo novo espírito do capitalismo de
Boltanski e Chiapello (2009), no mundo do trabalho, foi à base em que o nosso coletivo de
costureiras iniciou sua primeira formação e luta por visibilidade, reconhecimento e
legitimidade nos campos da moda e da confecção de vestuário em Campo Grande – MS.

2.4 Trajetórias do coletivo de costureiras República das Arteiras

Após o desfile – na Brava – da primeira grife que atendemos e onde fomos


apresentadas como as suas costureiras oficiais91, passamos a atender outros criadores de moda
autoral que demonstraram interesse em nosso trabalho dado as características de costura
artesanal e possibilidade de produção em menor escala. Nosso ateliê ainda estava nas
instalações do IDE, que nos apoiava com o espaço e toda a estrutura física e equipamentos,
até que pudéssemos continuar com nossos próprios recursos. Ainda permanecemos neste local
por quase oito meses e ao final de 2017 concorremos a uma vaga na Incubadora Municipal

91
Embora não tivéssemos planejado desta forma, esta ação se tornou uma eficiente estratégia de marketing que
interessava tanto à marca, quanto a nós. Sermos anunciadas como costureiras oficiais agregava valor à marca, ao
mesmo tempo em que divulgava nosso coletivo a um público que não acessaríamos facilmente de outra forma.
Ter esse entendimento foi fundamental para evitar encantamentos com a aparente “conquista”, como se
estivéssemos sendo privilegiadas. Não houve privilégio, o custo daquela produção foi alto para nós – o preço
cobrado pela costura era muito abaixo do preço ideal e mal cobriu as despesas da produção – mas o aceitamos
para conseguir a visibilidade que necessitávamos naquele momento. Reitero, não houve privilégio e nem
conquista, era apenas uma negociação comercial em que ambas as partes, tinha seus interesses nesta associação e
que iam muito além do ganho econômico. Em certa medida estávamos lutando por visibilidade, em um campo
que estava retomando suas movimentações após anos de ostracismo.
Mário Covas92 que se destina a acompanhamento de empresas do setor têxtil93 e de confecção,
onde nosso coletivo poderia ser acompanhado por 24 meses. Além de apresentar um Plano de
Negócios para a banca julgadora composta por representantes do SINDIVIEST (Sindicato das
Indústrias do Vestuário, Tecelagem e Fiação de Mato Grosso do Sul), SEDESC (Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Econômico e da Ciência e Tecnologia), SENAI (Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial) e SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas), nós deveríamos possuir certificado de participação nos cursos do
programa Nascer Bem94 e ser um empreendimento inovador. Esta banca foi um segundo
grande desafio, pois nos apresentamos como um Negócio Social95 que tinha por objetivo
causar impacto social, através do coletivo de costureiras e não como uma empresa privada.

Neste ponto, retomo SPIVAK (2010) para novamente parafrasear sua fala: “pode a
costureira falar?”. Apresentei-me como costureira, gestora de um coletivo de costureiras e
diante disso fui sabatinada pelos componentes da banca, sobre ter conhecimento do que estava
propondo a eles. Fui questionada sobre este mercado consumidor, se tinha conhecimento do
que representava o setor têxtil para nossa cidade. Este foi um momento crucial no início da
nossa luta por reconhecimento e legitimação, como costureiras sob medida dentro deste
campo dominado em grande medida por empreendimentos da costura industrial. Diante do
desconhecimento desta banca a respeito do criador de moda autoral como um agente do
campo da moda, foi possível observar a linha tênue que separa ambos os campos. Apesar do
92
As Incubadoras são instituições que auxiliam microempresas nascentes, com caráter de oferecer produtos e
serviços no mercado com expressivo grau de inovação.
Oferecemos apoio técnico, gerencial e informação complementar ao microempreendedor.
A Incubadora de confecção têxtil tem o objetivo de atender a demanda empresarial com suporte as empresas
nascentes, ajudando a superar as barreiras gerenciais e mercadológicas, em especial os empreendimentos
dispostos a inovação e produção na área de confecção. Disponível em:
http://www.campogrande.ms.gov.br/sedesc/artigos/incubadora-municipal-mario-covas/ Acesso em: 04/05/2020.
93
Setor têxtil é categoria nativa para denominar toda a cadeia produtiva industrial de confecções de vestuário.
94
As palestras Buscando Recursos Financeiros e Planejando a Abertura de sua Empresa, que serão realizadas
nos próximos dias 17 e 24, pretendem orientar o empreendedor sobre as necessidades legais do empreendimento,
capitalização do negócio e mostrar os requisitos básicos para acesso ao crédito. Já nos dias 18 e 25 acontece a
palestra Entendendo a Lei do Micro Empreendedor Individual. A Oficina “Contabilidade para o Empreendedor
Individual” tem como objetivo ensinar o participante a ter controle dos gastos e despesas de sua empresa e vai
ocorrer nos dias 12, 19 e 26.
O ciclo de palestras é uma das etapas da primeira fase do projeto, que será concluída com treinamento para
elaboração de Plano de Negócios. Na etapa seguinte do Nascer Bem.
Disponível em: http://www.ms.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/MS/projeto-nascer-bem-orienta-quem-deseja-
abrir-negocio,7a6c0101df816410VgnVCM1000003b74010aRCRD Acesso em: 04/08/2020.
95
Negócios Sociais são empresas que têm a única missão de solucionar um problema social, são
autossustentáveis financeiramente e não distribuem dividendos.
Como uma ONG, tem uma missão social, mas como um negócio tradicional, geram receitas suficientes para
cobrir seus custos. É uma empresa na qual o investidor recupera seu investimento inicial, mas o lucro gerado é
reinvestido na própria empresa para ampliação do impacto social.
O sucesso do negócio não é medido pelo total de lucro gerado em um determinado período, mas sim pelo
impacto criado para as pessoas ou para o meio ambiente. Disponível em:
https://www.yunusnegociossociais.com/o-que-so-negcios-sociais Acesso em 07/08/2020
campo da confecção de vestuário depender do que o campo da moda sugere como tendência a
cada ano, não há entre estes campos uma comunicação fluída que permita andarem em plena
sintonia.
O campo da confecção de vestuário em Campo Grande é predominantemente
industrial de médio e pequeno porte, reconhecendo em grande medida os profissionais que
atuem com esta modalidade de produção na confecção de uniformes escolares, profissionais e
esportivos. A moda neste sentido tem sua influencia nas tendências de cores, modelagens e
tecidos para estes fins. Ao apresentar a moda autoral como um nicho de grande potencial de
geração de trabalho e renda, eu fui interpelada por uma das representantes que fez os
seguintes questionamentos:

O que é moda autoral? nunca ouvi falar disso. Onde estão as lojas desse
seguimento? O que é costura sob medida? Qual a diferença entre seu
empreendimento e as outras confecções? Onde está a inovação do seu
negócio? (representante do setor público).

Talvez, como costureira não conseguisse responder às questões com propriedade, mas
ali estava uma cientista social formada, capacitada pela academia a argumentar em favor de
nosso coletivo, apresentando-o como uma tecnologia social de trabalho inovadora e capaz de
contribuir com o campo de confecções de vestuário. Minha fala diante da banca resultou na
concessão da vaga, que ocupamos alguns meses após a tramitação dos documentos de
incubação. Ter conseguido aquela vaga depois de uma avaliação tão difícil, me fez refletir
sobre minha trajetória até ali. Se não tivesse passado pela academia, teria conseguido tal
resultado? De certa forma, “sou uma espécie de “milagre social” (o primeiro em minha
família a ter chegado à universidade). [...] Queria compreender também o que havia me
conduzido a um caminho tão incomum.” (PERES, 2013, pg. 28) 96.
Desde que foi inaugurada em 2004, a incubadora além de assessorar empresas em
desenvolvimento, oferecia cursos de costura industrial para a comunidade. Estes cursos
compreendiam uma tríade de capacitação em operação de máquinas, modelagem industrial

96
Conquanto tivesse entre minhas disposições, a habilidade de me comunicar com pessoas de diversas classes
sociais sem grandes dificuldades – capacidade adquirida durante o período em que trabalhei como gerente em
uma multinacional – há que se considerar que, para minha argumentação diante da banca avaliadora não bastava
ter comunicação fluída, precisei lançar mão do capital intelectual adquirido na academia. Assim como o capital
econômico se materializa no dinheiro e posse de bens materiais, o capital intelectual se materializa por meio de
produção de conhecimento. Lancei mão de minha pesquisa de TCC que versava sobre as características do
campo de confecções de vestuário de Campo Grande, atuação do SENAI na capacitação de força de trabalho e a
relação destes com costureiras faccionistas. Falar com segurança sobre estes temas foi crucial para a concessão
da vaga que buscávamos.
plana e corte industrial97. Em 2007 tentei uma vaga para o curso e não consegui, os cursos
foram encerrados e onze anos após eu estava lá dentro, com o ateliê da República das Arteiras
instalado. O caminho que me levou até ali não passou pelos cursos oferecidos pelo SENAI
naquele local, passou pela academia. Já instaladas no novo endereço, passamos a atender mais
criadores autorais que vinham indicados pelos clientes que atendíamos desde o início quando
ainda estávamos no IDE. Iniciamos com três marcas autorais e em três meses, promovemos o
primeiro desfile da República das Arteiras, com a presença de oito marcas autorais na
passarela, conforme a figura 4.

Figura. 4

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora

Este desfile foi realizado em ocasião da inauguração de um espaço de atendimento aos


empreendedores da comunidade. Além dos responsáveis pela administração da incubadora,
alguns dos integrantes da banca de seleção, também estavam presentes o prefeito e toda sua
comitiva como visto na figura 5. O desfile foi uma ação estratégica elaborada em conjunto
com os nossos clientes, para apresentar à comitiva da prefeitura e demais convidados, além
das roupas idealizadas por criadores de moda autoral e confeccionadas pelo nosso coletivo, a
força das relações entre os agentes existentes neste campo. Tendo em vista que, conforme
Bourdieu (1996):

97
Costureiro eclético era o curso que capacitava a operar máquinas de costura reta, overlock e galoneiras;
modelagem industrial plana que capacita a modelar qualquer peça de vestuário no papel antes de ser levado ao
corte e corte industrial que capacita a operar máquinas de corte de pequeno e grande porte, operar mesa de corte
com a distribuição do tecido e montar plano de corte com os moldes sobre o tecido.
É no horizonte particular dessas relações de força específicas, e de lutas que
tem por objetivo conservá-las ou transformá-las, que se engendram as
estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem, as alianças que
estabelecem, as escolas que fundam e isso por meio dos interesses
específicos que aí são determinados. (pg. 61)

A estratégia consistia em aproveitar a presença do poder público e da mídia para


mostrar que o campo da moda de nossa cidade estava em movimento, gerando trabalho e
renda através de várias conexões entre os seus agentes. O desfile foi organizado por nós do
coletivo de forma colaborativa tendo o apoio de modelos profissionais, Dj, equipamento de
som, maquiadora, decoração, cerimonialista, criadores de moda autoral e fotógrafos que
fizeram toda a cobertura do evento sem nenhum custo financeiro para nós. Todos que
contribuíram tinham algum interesse na participação deste evento, pois era uma oportunidade
de divulgação seja de seu trabalho, seja de seus produtos visando o acesso a outros espaços de
exposição e às politicas públicas de fomento ao empreendedorismo. Um exemplo desse tipo
de acesso foi à inserção como incubado de um dos colaboradores do desfile e a contratação de
uma das modelos profissionais para desfilar no evento “Reviva Campo Grande”, por ocasião
da inauguração de um trecho do centro da cidade realizada pela Prefeitura Municipal de
Campo Grande.
Neste sentido “o campo da moda é esse conjunto de relações entre os grupos em que a
roupa assume o papel da intermediação simbólica. Ela expressa, reproduz e nutre a série de
relações existentes.” (BERGAMO, 1998, p.139). A repercussão do evento na mídia chamou a
atenção da coordenação geral das incubadoras e da SEDESC, com isso fomos aos poucos
construindo, conforme Ribeiro (2017), um “lugar de fala” dentro deste espaço de lutas,
dominado por empreendimentos ligados à indústria.
Figura. 5 – Prefeito, vice e coordenação da SEDESC

Acervo pessoal da pesquisadora

Conquanto este evento tenha sido de pequeno porte, um fato que vale salientar foi à
ampliação do nosso capital social, resultante das articulações feitas através de uma rede
colaborativa que se mobilizou para a realização desse desfile, “isso quer dizer que a
informação é ao mesmo tempo resultado e condição para multiplicação de conexões”
(OLIVEIRA, 2013, p. 150). A ampla divulgação nas mídias sociais atraiu novos clientes e
também alguns veículos de informação interessados nos temas ligados a costura criativa,
sustentável e moda autoral. Nos meses que se seguiram, tivemos uma sequencia de
participação em reportagens para o Bom Dia MS, MS TV 1ª Edição, “Como Será” da Rede
Globo nacional apresentado pela jornalista Sandra Annenberg98, Campo Grande News.

2.5 O último grito da moda! – Construção do sujeito de fala coletiva

Nossa entrada na incubadora também marcou o início de nossa trajetória como um


negócio social, tendo como objetivo causar impacto social através do ofício da costura99, tanto
no campo da moda, quanto no campo da confecção de vestuário. Nosso próximo desafio foi
conquistar uma vaga na Primeira Maratona de Negócios Sociais 100, promovido pelo

98
https://globoplay.globo.com/v/7971846/
99
O objetivo era estruturar o coletivo como um negócio social, em que buscávamos facilitar a produção de moda
autoral através de uma rede de conexões, ligando o nosso cliente com fornecedores de matéria prima, insumos,
estamparia e afins. Com isso o criador de moda autoral, reduzia o tempo e custos de desenvolvimento e produção
de sua coleção.
100
A maratona de Negócios Sociais foi um evento realizado pelo SEBRAE com duração de três dias, com o
objetivo de apoiar indivíduos e organizações que queiram fazer decolar suas ideias de negócios sociais ou
ambientais, neste ano o tema da Maratona é Cidades Humanas e Inteligentes.
LivingLab-MS101 em novembro de 2018. Para conseguir a vaga, precisamos concorrer com
vários outros projetos dos mais diversos seguimentos como: turismo, saúde, agronegócio,
educação, alimentação, sendo o nosso projeto o único relacionado à confecção de vestuário e
moda. Um dos requisitos para a seleção era o potencial de impacto social e inovação do
empreendimento, entretanto, apesar de demonstrarmos compatibilidade com os requisitos, o
fato de sermos costureiras da periferia tornou o nosso acesso à maratona mais desafiador. O
grande desafio neste sentido era transpassar os marcadores sociais, que até então nos manteve
fora daquele ambiente. Além de explicar por escrito e por vídeo, o impacto social que nosso
coletivo de costureiras poderia promover na comunidade em que estávamos inseridas,
contamos com o apoio de agentes de nossa rede de relacionamentos, construída desde a nossa
passagem pelo IDE. Por fim, conseguimos a vaga e pudemos participar do evento que teve
duração de três dias, conforme a figura 6.

Figura. 6 – Participação na 1ª Maratona de Negócios Sociais do MS

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora

Os participantes irão trabalhar em soluções para tornar uma cidade mais humana e inteligente, utilizando os
seguintes fatores: conectividade, acessibilidade, sustentabilidade, inovação, tecnologia, integração, mobilidade,
criatividade, eficiência, qualidade de vida, interatividade, inteligência, economia, gestão, planejamento entre
outros temas. A Maratona promete contribuir para a criação da próxima geração de negócios sociais. Disponível
em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ms/sebraeaz/maratona-de-negocios-
sociais,604d728b7e936610VgnVCM1000004c00210aRCRD#:~:text=A%20maratona%20de%20Neg%C3%B3c
ios%20Sociais,%C3%A9%20Cidades%20Humanas%20e%20Inteligentes. Acesso em 07/08/2020.
101
Um projeto colaborativo iniciado pelo Sebrae MS, em parceria com 42 instituições públicas e privadas que
têm como objetivo desenvolver ideias inovadoras e startups no Mato Grosso do Sul.
Inaugurado no dia 03 de junho de 2016 com o propósito de falar sobre empreendedorismo e inovação de uma
forma disruptiva, somos um laboratório de inovação onde a comunidade traz ideias, nós discutimos através de
mentorias que promovem conexões e entramos com a aceleração, para que os negócios possam ser repetíveis e
escaláveis. Disponível em: https://www.livinglabms.com.br/ Acesso em: 07/08/2020.
Alguns meses após o evento da maratona houve uma nova seleção de projetos, para
102
serem acompanhados por um período de “mentorias” e “aceleração” , com o objetivo de
apresenta-los aos investidores parceiros da instituição. No início de 2019 fomos selecionadas
e iniciamos um período de oito meses de acompanhamento para o desenvolvimento de um
projeto inovador103, voltado para os campos de confecções e moda. O Livinglab está
localizado na área central da cidade e que têm como objetivo desenvolver ideias inovadoras e
startups no Mato Grosso do Sul104. Ao longo do período em que participamos do programa, a
sensação que tínhamos era de que destoávamos do público que transitava por lá. Embora
eventualmente houvesse pessoas mais maduras, a presença de pessoas entre 20 e 35 anos era
maior.
Nossa presença foi por várias vezes motivo de questionamento por parte tanto de
funcionários, quanto de demais usuários do espaço. Os principais questionamentos eram: “O
que vocês estão fazendo aqui?” Ou “Vocês são costureiras né, o que vieram fazer aqui?”.
Embora os questionamentos “aparentemente” não tivessem tom agressivo ou preconceituoso,
era evidente a surpresa e curiosidade em cada fala. O que costureiras de meia idade,
moradoras da periferia poderiam fazer naquele lugar? Aquele não era um espaço natural para

102
Mentoria: Mentoria ou mentoring tem sido uma expressão muito empregada no meio empresarial e
reconhecida mundialmente como um dos melhores métodos para promover o desenvolvimento do
indivíduo em diversas dimensões da vida e do trabalho.
Em sua forma básica, refere-se a um relacionamento transformacional pelo qual uma pessoa (mentor) contribui
para o crescimento de outra pessoa (mentorado) em diferentes áreas da dimensão humana (cognitiva, afetiva,
operacional), a partir do compartilhamento de conhecimentos e experiências.
Disponível em: https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/sebraeaz/mentoria-sebrae-conte-com-a-expertise-dos-
nossos-especialistas,24e1f03426c5d510VgnVCM1000004c00210aRCRD Acesso em 28/08/2020.
Aceleração: Aceleração de empresa: Acelerar uma empresa para que ela se torne lucrativa mais rápido. Ou para
que ela cresça em um curto espaço de tempo. Ou, ainda, para que uma boa ideia se torne uma empresa antes de
outras empresas aparecerem. Disponível em: https://andremedina.com.br/2016/12/26/o-que-e-aceleracao-de-
empresa/ Acesso em 28/08/2020.
103
Cada grupo selecionado para receber mentoria, deveria desenvolver um projeto de produto ou serviço
inovador relacionado ao seu seguimento. No nosso caso, desenvolvemos o projeto da Plataforma Tecer, um
marketplace de conexões entre agentes dos campos da moda e campo da confecção de vestuário. A Plataforma
Tecer seria um modelo digital de interação comercial a partir da experiência de trabalho em rede da República
das Arteiras.
104
O Living Lab MS é um projeto colaborativo iniciado pelo Sebrae MS, em parceria com 42 instituições
públicas e privadas que têm como objetivo desenvolver ideias inovadoras e startups no Mato Grosso do Sul.
Inaugurado no dia 03 de junho de 2016 com o propósito de falar sobre empreendedorismo e inovação de uma
forma disruptiva, somos um laboratório de inovação onde a comunidade traz ideias, nós discutimos através de
mentorias que promovem conexões e entramos com a aceleração, para que os negócios possam ser repetíveis e
escaláveis.
Nosso trabalho é voltado para o engajamento de parceiros e empreendedores afim de consolidar a comunidade e
fomentar o ecossistema de inovação e empreendedorismo no estado de Mato Grosso do Sul.
Universidade + Iniciativa Privada + Iniciativa Pública
Conectamos ideias e pessoas com vontade de transformar e realizar negócios através da tecnologia e inovação
para impactar a vida das pessoas.
Promovemos a conexão entre empreendedores, mentores, investidores, universidades e empresas nacionais e
internacionais para que negócios, ideias e iniciativas possam surgir e prosperar, além de revelar uma nova
geração de empreendedores e startups. Disponível em: https://www.livinglabms.com.br/living-lab-ms Acesso
em: 28/08/2020.
nós, sobretudo por que saíamos do trabalho e íamos direto para as reuniões, ainda de
uniforme, muitas vezes com sinais visíveis de cansaço pela lida de um dia inteiro no ateliê,
levando em muitas das vezes o filho da Priscila junto, conforme figura 7.

Fig. 7

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora

No início era inegável o nosso constrangimento, com isso nosso comportamento e


aparência denotava a classe social a qual nós pertencíamos. Conforme observou BOURDIEU
(1979):
(...) a classe trabalhadora e a pequena burguesia tendem à humildade, à
aquiescência, ao sentimento de incompetência e à aceitação inconteste da
autoridade que decorrem de um “conformismo lógico”, um “sentimento do
seu lugar” que representam um ajuste da personalidade às condições
objetivas e às chances reais desses grupos sociais. (pg. 549).

Ao longo do período de mentoria, fomos nos adaptando ao espaço de maneira que o


sentimento de deslocamento cedeu lugar ao sentimento de conquista. Este sentimento era
evidente na fala de Maria de Fátima que não escondia sua satisfação por estar ali, fazendo
parte do desenvolvimento de um projeto que ia além da costura que ela tanto conhecia.

Quem diria que eu com sessenta e seis ano ia tá num lugar desse heim, e tô
aqui de empresária! A Maria não vai nem acreditar quando eu falar para ela.
(Maria de Fátima)

Conquanto fosse ou não legítima nossa presença neste espaço de luta, havia muita
coisa em jogo e nós precisávamos passar por ele, como estratégia para aumentar as
possibilidades de ampliar nossa rede de relacionamentos, para além do campo da moda, com
fins a reconvertê-lo em reconhecimento enquanto um negócio social criado e gerido por
mulheres em um coletivo de costureiras da periferia. Neste campo, buscávamos o
reconhecimento como empresa de negócio social e como tal, conseguir apoio para
desenvolvimento de projetos de impacto social através do campo da moda. Não obstante a
isso, percebermos que, nas palavras de Bourdieu (2003):

(...) em qualquer campo descobriremos uma luta, cujas formas específicas


terão de ser investigadas em cada caso, entre o novo que entra e tenta
arrombar os ferrolhos do direito de entrada e o dominante que tenta defender
o monopólio e excluir a concorrência. (pg. 119-120).

Nossa trajetória de lutas por visibilidade e reconhecimento extrapolou os campos da


moda e da confecção de vestuário, para o campo das instituições público-privadas de fomento
ao empreendedorismo. Porém, não obstante a isso prosseguíamos nossas atividades com a
costura, pois esse era nosso meio de subsistência e o que financiava os custos de nossa
participação nestes espaços.

Com o passar dos meses, notamos que a sazonalidade de produção de moda seguia um
calendário totalmente diverso ao do campo de confecções de vestuário. No campo da
confecção de vestuário o movimento de produção é constante e volumoso, dado as suas
características ligadas à produção industrial, possibilitando manter um fluxo contínuo de
trabalho ao longo de todo o ano. Já a produção de moda autoral é influenciada por diversos
fatores como: lançamento de tendências das semanas da moda internacional e nacional, poder
econômico da marca, disposição de matéria prima e insumos no mercado local, entre outros
fatores que dificultam a organização de um calendário fixo de produção, tornando mais difícil
a organização de um cronograma de produção ao longo do ano. Outra característica é que o
período com maior volume de produção está ligado à agenda de eventos culturais, feiras de
economia criativa, feiras colaborativas e afins, pois são nestes espaços que as marcas se
reúnem para expor e vender seus produtos. Após o natal a produção de moda autoral é
suspensa e só retoma as atividades em meados de março, com o retorno das atividades das
semanas de moda internacional/nacional105, de onde buscam inspiração para novas coleções.

Contudo, só percebemos estas características ao passo que iam ocorrendo, não havia
essa informação em nenhuma esfera de conhecimento que pudéssemos acessar.
Experimentamos no nosso dia a dia os dissabores do trabalho de produção para o campo da
moda e a causa de existirem poucos profissionais que se interessem em trabalhar com este

105
As semanas de moda ocorrem nessa ordem, primeiro a internacional e posteriormente nacional.
nicho. Após o natal de 2018 tivemos uma pausa nas encomendas para as marcas que
atendíamos, não conseguimos fechar nenhum orçamento com novos criadores autorais, de
dezembro de 2018 a meados de março de 2019. Foi um período difícil que nos levou a aceitar
costurar para facção106, a fim de manter as despesas fixas do ateliê pagas em dias, e uma
retirada mínima do pró labore107 reduzida em trinta do cento sobre o valor costumeiro. Em
algumas semanas deste período de costura para facção, chegávamos a trabalhar dez horas
diárias, horas extenuantes na mesma posição, fazendo o mesmo movimento repetidas vezes.
Ao pesquisar a costura por facção para minha monografia na graduação, pude notar
que, embora o ganho por unidade fosse muito menor em relação à costura sob medida, ainda
assim as costureiras se submetiam a estas condições, motivadas em grande medida, por sua
necessidade de sobrevivência (GRANCE, 2016, p. 35). Esta descoberta me fez nunca querer
trabalhar com esta modalidade, e nem submeter qualquer costureira a esta condição, devido ao
seu sistema perverso de exploração de força de trabalho. Entretanto, esta foi a visão de uma
pesquisadora neófita, no exercício da observação participante que em certa forma, limita o
campo de visão, de um ponto de vista de quem não vive a experiência, mas apenas a observa.
Agora eu era ao mesmo tempo a pesquisadora e o objeto, vivenciando na objetivação
participante, sentindo na pele a dura experiência de me submeter e também às minhas amigas
à costura por fação – da qual me esquivei por tanto tempo – movidas pela necessidade de
recursos financeiros. Adaptando-nos a estas transformações no mundo do trabalho, sob o
questionamento: “Haverá limites para até onde as pessoas são obrigadas a dobrar-se? [...] para
que os indivíduos não se partam sob a força da mudança?” (SENNET, 1999, pg. 61).
Antes dessa experiência havia a meu ver uma clara dissensão entre as modalidades de
costura sob medida e faccionalista, era como se – em meu imaginário – operasse uma
classificação em que a faccionalista ocupava um degrau abaixo da costura sob medida. Tal foi
o meu engano, ao perceber quanta técnica é necessária para ser uma faccionalista, embora eu
tivesse o conhecimento integral do ofício de costura, me faltava habilidade, agilidade,
coordenação motora. Dentro desta modalidade, conseguimos apenas manter o funcionamento

106
Embora a Maria de Fátima tivesse experiência com produção de facção, o trabalho exige tempo menor de
execução para uma quantidade maior de unidades, em troca de remuneração exponencialmente menor em
relação ao que recebíamos da produção de moda autoral. Para exemplificar melhor, a produção de uma camiseta
para moda autoral – modelagem, corte, costura e controle de qualidade – custava em média R$ 8,00 a mão de
obra por unidade, em uma produção que levava em média três dias para produzir sessenta unidades. Na facção, a
unidade não ultrapassou R$ 2,50 para executar o mesmo esquema de produção, porém em um tempo menor, em
média quinhentas unidades em três ou quatro dias, enquanto que costureiras faccionistas experientes produzem
este quantitativo em dois dias ou menos, a depender da urgência do intermediário.
107
A expressão “pró-labore” vem do latim e significa “pelo trabalho”. O pró-labore é a remuneração que um
administrador recebe pelo trabalho desempenhado em sua empresa. Todos os sócios que desempenham
atividades administrativas têm direito ao pró-labore. Para tanto, é preciso estar especificado no contrato social da
empresa a figura do administrador, que pode ser constituído de uma ou mais pessoas. Disponível em:
https://blog.sage.com.br/o-que-e-pro-labore-diferenca-salario/ Acesso em: 30/08/2020.
do ateliê por um curto período, ainda que não faltasse serviço para nós nesta área, não
possuíamos agilidade suficiente para monetizar neste seguimento.
Ademais disso, percebemos que de nada nos aproveita o reconhecimento como
costureiras no campo da moda se este não tem acesso a políticas públicas que contemplem os
criadores de moda autoral ligados à Economia Criativa. Ao contrário do que pensávamos a
luta por visibilidade e reconhecimento não era só nossa, era também a luta do próprio campo
da moda e, portanto necessitava do comprometimento de todos os envolvidos. Assim como
buscávamos espaço para divulgação do nosso trabalho, o campo da moda também se
mobilizava para conseguir o reconhecimento de sua importância econômica e cultural e com
isso obter o apoio das instituições público-privadas108. Apoio esse frequentemente
oportunizado ao campo da confecção de vestuário, cujo reconhecimento se estabeleceu há
mais de quatro décadas, desde os primeiros projetos do polo industrial de Campo Grande.
Com o desfile de 2018, pudemos apresentar além do nosso ofício, a moda que é
produzida por criadores autorais em nossa cidade e que embora tenham uma produção menor,
movimentam a economia local, comprando e contratando serviços dentro da cidade gerando
trabalho e renda através dos mais diversos seguimentos do campo da moda, para além do
vestuário. Como dito anteriormente, este desfile atraiu o interesse das mídias jornalísticas que
estavam com pautas nos temas ligados à economia criativa, moda e sustentabilidade.
Participamos de uma série de reportagens ao longo de 2019 em conjunto com alguns dos
nossos clientes e ao passo que cada reportagem ia ao ar, alcançávamos visibilidade rompendo
assim as barreiras da invisibilidade, no sentido de que não havia necessidade de que terceiros
falassem por nós, podíamos falar por nós mesmas. Como resultado dessa exposição passamos
a receber contato de outros criadores autorais interessados em produzir conosco. Saltamos dos
oito clientes do primeiro desfile para mais de trinta, produzindo sequencialmente, de forma
que passamos a trabalhar somente com este público ao longo de todo o ano de 2019, deixando
a costura por facção, para os períodos de baixa temporada no campo da moda.
Concomitante ao nosso trabalho no ateliê, prosseguíamos participando da capacitação
no LivingLab MS – onde desenvolvemos um protótipo conceitual de um marcketplace de
serviços, que conectem costureiras e demais prestadores de serviço com os clientes dos
campos da moda e confecções de vestuário109, figura 8.

108
Coletivo criativo Brava, Revista Morenah, Moda CG, Talento da Gente, Feira Cria (@feira.cria),
SEBRAE/INSPIRA www.sebraeinspira.com.br. Estes foram os principais aos quais tivemos contato.
109
O protótipo conceitual “Plataforma Tecer”, foi submetido no Programa Centelha, um programa nacional de
fomento a negócios inovadores e após passar em todas as fases, seguiu como 3º suplente. Em julho de 2020 foi
chamado para efetivar a contratação e continuidade do seu desenvolvimento.
Figura. 8 – Encerramento das mentorias

Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura. 9 – Curso de gestão e finanças SEDESC

Acervo pessoal da pesquisadora

Como parte do nosso contrato com a incubadora, deveríamos participar dos cursos de
capacitação empresarial para incubados da SEDESC (Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Econômico e da Ciência e Tecnologia.) e, portanto não poderíamos faltar,
figura 9. Além deste período de mentorias e treinamento empresarial, também participamos
de vários eventos relacionados ao empreendedorismo feminino na capital, promovidos pelo
SEBRAE/Inspira, Rede Mulher Empreendedora110, Feira Expo 2019 – Amigas de

110
Idealizada em 2010 por Ana Fontes, a Rede Mulher Empreendedora promove eventos de networking, cursos,
mentorias, inspiração e realiza parcerias com empresas que acreditam na causa do empreendedorismo
feminino. É signatária dos princípios de empoderamento da ONU Mulheres e foi vencedora do edital Goldman
Sachs & Fortune Global Women Leaders Mentoring Award, em 2017; e recebeu Menção Honrosa no WEP‟s,
em 2016. Conta com mais de 300 mil empreendedoras cadastradas.
Negócios111. A cada evento nossa rede de contatos ia se ampliando, possibilitando converte-
los em capital social, que posteriormente usamos para ampliar nosso leque de ação, tanto
dentro do campo da moda, quanto diante das instituições público-privadas às quais tínhamos
acesso, chegando inclusive a receber moção de congratulação na Câmara Municipal de
Campo Grande por serviços prestados à comunidade, conforme registro abaixo:

Figura. 10 Homenagem na Câmara Municipal de Campo Grande

Acervo pessoal da pesquisadora

Neste mesmo ano fomos convidadas a participar de um projeto de popularização da


moda chamado ModaCG, organizado pela diretoria da Revista Morenah em parceria com o
IDE onde trabalhei112. Este projeto pretendia levar o conhecimento de quatro eixos de
profissionalização no campo da moda – make up, customização, marketing digital e
desenvolvimento de coleção – para meninas da periferia sul, que eram assistidas pelo Projeto

Este trecho é parte de conteúdo que pode ser compartilhado utilizando o link:
https://www.acritica.net/editorias/entretenimento/expo-amigas-de-negocios-acontece-neste-sabado-na-
capital/366324/ Acesso em: 06/09/2020.
111
O objetivo da Feira Expo Amigas de Negócios é a divulgação do empreendedorismo feminino em diversas
áreas de atuação, com a participação de profissionais da área e realização de workshop de palestrantes neste
setor.
A mesma deverá ser realizada na Capital do Estado, Campo Grande, onde já faz parte do Calendário de Eventos,
anualmente.
De acordo com dados obtidos pela organização do evento, esta Feira vem mostrando sua força em suas edições
já realizadas, onde na primeira contou com a participação de cerca de 500 mulheres, na segunda,
aproximadamente 1500 mulheres, e na terceira reuniu cerca de 3.000 mulheres. Disponível em:
https://www.enfoquems.com.br/projeto-que-inclui-feira-expo-amigas-de-negocios-em-calendario-de-ms/ Acesso
em: 06/09/2020.
112
Conforme o edital ao qual foi feito a proposta, a revista só poderia executar o projeto via Organização Não
Governamental e mediante nossa aproximação com a diretoria do IDE, pudemos promover esta parceria, além de
atuar como ministrantes do curso de customização.
Princesas113 em um período de seis meses. Nossa função neste projeto era de ensinar às
meninas “Princesas” e suas mães, as técnicas de customização, upcycling e produzir looks
para a marca de upcycling RENOVE114 que seria lançada no desfile de encerramento do
projeto MODACG. Na Figura 11 está a peça publicitária de divulgação do evento, na figura
12 estamos eu e o Thallyson ao centro, no canto à direita está o professor e organizador do
Projeto Princesas Jessé Fragoso e ao fundo e entorno as princesas e suas respectivas mães e na
figura 13 o desfile da RENOVE na abertura do evento ModaCG.

113
Projeto Princesas desenvolve anualmente desde 2013, criado com o objetivo de desenvolver ações voltadas
para a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, contribuindo com valores e princípios e atendendo a
meninas entre 10 e 17 anos, membros de famílias em situação de vulnerabilidade social no entorno do lixão da
capital.
Uma vez por semana, as meninas têm um “Dia da Princesa” e assistem a aulas, oficinas e palestras e participam
de dinâmicas e passeios que abordam temas como identidade, autovalorização e sonhos, confrontando as
adolescentes a serem protagonistas, críticas, pensadoras e tomadoras de decisões. O projeto propõe ainda
discussões sobre gravidez precoce, violência contra a mulher, drogas, higiene pessoal e outros assuntos
penitentes à realidade dessas meninas que também sugerem os assuntos a serem trabalhados. No final do ano, os
pais são convidados a acompanhar a cerimônia de formatura das princesas.
https://www.facebook.com/institutoide/posts/818553591572003/
114
O projeto foca no “upcycling”: reaproveitamento de roupas usadas e resíduos considerados “lixo” e também
na valorização da mão de obra local.
Inspirando jovens no processo criativo de uma coleção e conscientização sobre meio ambiente e futuro da moda.
Com a reutilização de um material que se tornaria lixo, sem a necessidade de intervenções químicas, além de ter
um custo mais baixo. É a nova roupa, sem
consumir energia, poluir o ar e a água, sem emitir gases de efeito estufa resultantes da indústria.
Novas formas de produção e consumo que só beneficiam os consumidores e o planeta e que vieram para ficar.
O conceito de reaproveitamento e da continuidade do ciclo de vida do produto ganha cada vez mais força e é
uma nova forma de tornar o planeta mais
sustentável. (trecho da apresentação do projeto ModaCG).
Figura. 11

https://www.instagram.com/p/B3DOxb8hpn9

Figura. 12

Acervo pessoal da pesquisadora


Figura. 13

Acervo pessoal da pesquisadora

Todas as oficinas foram ministradas em uma escola estadual no bairro Dom Antônio
Barbosa, região próxima ao meu bairro e onde já havia atuado como voluntária anteriormente
em um curso de costura em 2015. A familiaridade com aquela comunidade facilitou a nossa
interação com as alunas e suas mães. No entanto, para os demais ministrantes e organizadores
o deslocamento até a periferia era em certa medida dificultosa tendo em conta a distância que
tinham que percorrer até o local do curso, devido a morarem em bairros distantes da periferia.
Além das diferenças geográficas, havia também as diferenças sociais que não escapavam ao
olhar. Enquanto Maria de Fátima, Priscila e eu nos fundíamos facilmente ao grupo, nossos
colegas eram de longe identificados como pessoas de fora daquela comunidade.
Para o nosso coletivo o ano de 2019 foi marcado por muitas atividades, tanto pela
quantidade de marcas que passamos a atender no ateliê quanto, pelos eventos, cursos,
mentorias, projetos em que estivemos envolvidas. Ao passo em que estas atividades iam
sendo compartilhadas em nossas redes sociais e de nossos parceiros de campo, foram
surgindo convites para falar sobre o projeto ModaCG, sobre o upcycling em um minicurso na
Semana da Moda e Beleza do curso de Design e Moda da Uniderp, figura 14 ,
sustentabilidade, empreendedorismo e assuntos afins em reportagens e entrevistas ao SBT/MS
na figura 15 com a participação de outras duas integrantes do projeto e na figura 16,
reportagem sobre sustentabilidade ao Bom dia MS.

Figura. 14 – Minicurso Uniderp

Fonte: Instagram @moda.uniderp

Figura. 15

Fonte: Instagram @tudodebomsbtms


Figura 16

Fonte: g1.globo.com

Esta exposição no período do desenvolvimento e de divulgação do projeto atraiu a


atenção da coordenação geral das incubadoras da prefeitura, que por ocasião do aniversário da
cidade nos designou como representantes dos negócios residentes da incubadora de
confecções, para apresentar um desfile com roupas dos nossos clientes no Museu de Arte
Contemporânea – no evento “Talento da Gente” realizado pela coordenação das incubadoras
municipais, figuras 17 a 19. Um evento deste porte tem um custo elevado e jamais
conseguiríamos promove-lo com recursos próprios. Conquanto não dispuséssemos de capital
econômico para cumprir com os custos desse compromisso, o capital social adquirido durante
o desenvolvimento do ModaCG e nas instituições ao qual estávamos ligadas, foi suficiente
para a realização do segundo desfile da República das Arteiras, desta vez em um local situado
em área nobre.
Nosso desfile contou com dezesseis marcas autorais, apoio de uma agência de
modelos profissionais, make up, cabelereira, backstage115, projeção de imagens, equipamentos
e Dj, fotógrafos, alimentação e transporte. Assim como no nosso primeiro desfile, a
participação de todos estes agentes se deu novamente pela necessidade de reafirmar sua
importância dentro do campo da moda e diante do poder público. Se nós necessitávamos de
visibilidade que pudesse abranger toda nossa categoria a agencia de modelos também

115
O backstage é comandado por um coordenador de backstage, que indica para onde as modelos devem se
dirigir. Além de cuidar do fluxo de modelos que chegam. Onde farão a maquiagem, ensaio, prova de roupa e, por
fim, a fila final, momentos antes de entrar na passarela
necessitava de um espaço para divulgar seu casting116, os profissionais de som e imagem,
makep up, DJ, cabelereira, marcas autorais, todos, víamos neste evento uma oportunidade de
mostrar para o gestor da cidade, sua equipe e o público que a moda em Campo Grande estava
em pleno desenvolvimento. Ademais disto, já deixamos caminho aberto para a divulgação do
nosso próximo desfile que ocorreria dois meses depois no encerramento do ModaCG.

Figura. 17 Figura. 18

Fonte: Instagram @republicadasarteirascg

Figura. 19

Fonte: Fonte: Instagram @republicadasarteirascg

116
Casting: Tem dois significados, sendo um deles o grupo de modelos que temos na agência. Apresentados
através dos materiais do agenciado (Dados, medidas, fotos). E também, o processo seletivo feito presencialmente
para que os modelos sejam vistos pessoalmente para aprovação direta ao cliente, posterior a verificação feita por
fotos/composites. . Disponível em: https://www.foruminsider.com.br/como-funciona-um-backstage-de-um-
desfile Acesso em: 08/09/20.
Todas as atividades no LivingLab, SEDESC, Talento da gente e ModaCG, foram
desenvolvidas em meio as atividades de atendimento aos nossos clientes, marcando um
período de nove meses de intenso trabalho externo, para além das atividades em confecção de
vestuário para o campo da moda. No cronograma abaixo é possível observar que algumas
atividades se desenvolviam ao mesmo tempo em que outras.

Cronograma de atividades externas -2019


Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro
Livinglab X X X X X X X
Consultoria X X X X
SEDESC
Talento da X X
Gente
ModaCG X X X X X X X
Rede Mulher X
Empreendedo
ra
Expo – X
amigas de
negócios
Accelerate117 X
2030 BRASIL
ImpactHub
Brasília

Ao longo dessa trajetória de vários meses de embates, lutas e desafios, percebi que já
não se tratava de luta pela visibilidade, reconhecimento e legitimidade do trabalho das
costureiras, mas era também do campo da moda, que de certa se mobilizavam neste mesmo
intuito. A partir desta compreensão, passei a aproveitar as oportunidades de fala para divulgar
não só o nosso trabalho, mas o de todos os agentes que fazem parte do campo da moda
fossem eles nossos clientes ou não. Cada desfile, cada entrevista, cada oportunidade de
exposição de nosso trabalho representava e ainda representa um grito, “O último grito da
moda!”.
Ouvia esta expressão na minha adolescência, falada pelo estilista Clodovil na década
de 1980 na TV Mulher. Alguns episódios que assisti, ele apresentava seus croquis de moda e

117
Accelerate2030 é um programa global, co-iniciado pelo Impact Hub e pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), com o objetivo de escalar globalmente negócios que estejam em fase de
crescimento e alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O Accelerate2030 Brasil 2019 é liderado pelo Impact Hub e pelo PNUD Brasil em parceria com a Agência
Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Fundação Grupo Boticário, Pfizer e International Trade
Centre. Disponível em: https://brazil.accelerate2030.net/ Acesso em: 13/11/2020.
Fui à este evento para participar de um workshop sobre negócios de impacto social em que apenas dois projetos
de nossa região foram contemplados para participar, a República das Arteiras e a Digna Engenharia.
quando trazia uma novidade, já dizia: Isso é o último grito da moda! Em minha mente juvenil
àquela época, achava que esta frase estava ligada a ideia de algo novo, recente e que vai virar
moda. Durante as pesquisas para este trabalho, perguntei sobre a aplicação desta frase no
campo da moda atualmente, a um dos estilistas mais conhecidos no país nos últimos anos, o
Arlindo Grund118 (um dos apresentadores do Esquadrão da Moda do SBT), que me respondeu
o seguinte:
Realmente é curiosa a frase. Na minha opinião é um dito “popular” usado
por pessoas que trabalhavam ou querem estar por dentro da moda.
Engraçado é que eu nunca usei essa frase. E não gosto muito porque o que é
o grito da moda para alguns pode ser o silêncio para outros. (Arlindo
Grund, via e-mail em 18 de jun. de 2018).

Apesar de não ter dado uma informação conclusiva sobre a da frase, sua resposta me
levou a refletir sobre seu significado em nosso contexto de luta. Trata-se da luta por
visibilidade e reconhecimento do campo da moda local e todos os agentes que o compõe, seja
dominante ou dominado, dentro de um espaço há muito controlado pelo campo da confecção
de vestuário. Dessa forma, em nosso contexto local o “Último grito da moda” fala das ações
conjuntas de um coletivo de costureiras e os mais diversos agentes do campo da moda, em
119
torno de um interesse comum que é a construção de um sujeito “coletivo” de fala,
mediante suas “condições sociais de possibilidade” no sentido de ter sua fala legitimada e
autorizada no mesmo espaço de luta em que o campo de confecção de vestuário é dominante,
tendo em vista que:
(...) há todo um conjunto de signos institucionais de importância e
especialmente a linguagem de importância (a linguagem de importância
possui uma retórica particular, cuja função é dizer o quanto aquilo que é dito
é importante). Esta linguagem de importância se porta de forma muito
melhor numa situação eminente, num estrado, num lugar consagrado, etc.
entre as estratégias de manipulação de um grupo, há a manipulação das
estruturas do espaço e dos signos institucionais de importância.
(BOURDIEU, 1983, pg. 8-9)

118
É graduado em Comunicação pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduado em Marketing pela
Faculdade Getúlio Vargas e possui mestrado na Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Arlindo, que se mudou para São Paulo em 2003, ministrou aulas de Produção para catálogo comercial de moda e
Produção para editorial de moda no Istituto Europeo di Design (IED), além de ser palestrante em moda.
Assina capas e editoriais nas principais publicações nacionais, além de conceber figurinos e styling de
campanhas publicitárias, desfiles e catálogos.
Formado em Publicidade, é responsável pelos editoriais e as capas das revistas Marie Claire, Estilo, Boa
Forma e Playboy. Assina ainda os figurinos de diversas campanhas publicitárias clicadas por J.R. Duran e
Fernando Louza.[1]
Atualmente apresenta o programa Esquadrão da Moda ao lado de Mariala Fiorentino no SBT. O programa é
uma versão brasileira de What Not to Wear dos canais Discovery Home & Health e BBC, e tem como principal
assunto o "duvidoso" estilo das participantes. https://pt.wikipedia.org/wiki/Arlindo_Grund
119
Sujeito “Coletivo” neste contexto, tem o sentido de que a fala de um agente é uma fala que representa o
interesse de todos integram o mesmo campo.
Sendo assim, este “sujeito coletivo” se fortaleceu ao longo do ano de 2019, na medida
em que as ações conjuntas se tornam uma só voz, um “último grito da moda” quebrando o
silêncio e mostrando que a moda que se produz em Campo é tão legítima quanto a que se
produz no Jet-set da moda em nosso país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa demonstrou que a questão da construção social do sujeito de fala é o


ponto central nas trajetórias individuais e coletivas destas costureiras no campo da moda de
Campo Grande. Tendo em vista que no âmbito individual, cada uma destas mulheres – sendo
eu mesma uma delas – buscava em certa medida, o direito de falarem por si. Esta
pesquisadora, em busca do fortalecimento de sua voz (enquanto costureira) através do capital
intelectual adquirido na academia. Maria de Fátima em busca de sua autonomia através da
ascensão social promovida por um curso de costura de renome nacional e Priscila em busca de
crescimento pessoal e autonomia financeira através da aprendizagem em costura. Todas de
certa forma invisibilizadas pelas próprias condições do ofício de costureira, buscávamos a
visibilidade com fins a melhores condições materiais de vida para nós e nossas famílias. O
reconhecimento de nossas falas no campo da moda envolvia transformar as condições de
nossos trabalhos a partir da expressão de nossas opiniões, desejos e questionamentos.
Neste sentido a visibilidade e invisibilidade diz respeito não só a presença ou ausência
em espaços que anteriormente não nos eram natural, mas também ao direito de fala legitimada
e autorizada através de “condições sociais de possibilidade de comunicação”. Na medida em
que cada um destes espaços de fala ia sendo ocupado por nós, nossa reputação ia crescendo e
estas condições foram se ampliando a espaços inimagináveis, tais como: instituições público-
privadas, desfiles de marcas autorais, lançamento de revista de moda, eventos oficiais das
incubadoras municipais, etc. Todos eles, espaços que uma costureira não ocuparia com
naturalidade, tampouco teria oportunidade para falar, apesar da forma como esses espaços
estarem socialmente organizados influir diretamente em nossos trabalhos.
Há que se considerar a influência que as transformações mais gerais do capitalismo –
sobretudo o capitalismo artista ou transestético – exerceu nos campos da moda e da confecção
de vestuário, tendo em vista que estes campos foram sensivelmente afetados por estas
transformações. A mercantilização da arte, da beleza, da estética reflete sobre a produção dos
bens de consumo transformando-os em bens de luxo, consequentemente o campo da moda foi
afetado em toda sua constituição. Neste contexto, podemos considerar que o ofício da costura
sob medida – diretamente ligado ao campo da moda – também foi influenciado, o que explica
o êxito do coletivo de costureiras República das Arteiras, haja vista suas disposições e
afinidades com este campo. Em contrapartida, não tivemos este mesmo êxito no campo da
confecção de vestuário por não demonstrarmos as disposições para transitar neste espaço.
Seguimos, portanto, sem lugar de fala neste espaço de luta que decidimos não entrar por não
termos afinidade com este campo.
Contudo, o que se pode depreender após dois anos de criação do nosso coletivo de
costureiras, o êxito que alcançamos se explica pela soma de nossos capitais individuais,
nossas disposições e afinidades em relação ao campo. Ressalto que, não foram disposições e
afinidades herdadas, mas desenvolvidas em nossa trajetória profissional e social somada e
reconvertida em prestígio que nos possibilita estar com eles no mesmo espaço de luta. E
embora não tenhamos capital econômico e nem façamos parte classe social de nossos clientes,
prosseguimos juntos, ora ao lado, ora na vanguarda, ora na retaguarda, entre dominantes e
dominados na luta por reconhecimento e legitimidade deste campo no âmbito nacional. O
reconhecimento de nossas falas, no campo da moda, expressa nossa luta em nos apresentar
como sujeitos de desejos, de sonhos e de transformação. Enfim, o nome República das
Arteiras sintetiza nossas trajetórias: um grupo de mulheres que ousou/buscou desafiar o papel
de coadjuvante que lhe era imposto e esperado no universo do trabalho.
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