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CAMPUS FLORIANÓPOLIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Florianópolis
2020
Talita Sauer Medeiros
Florianópolis
2020
Talita Sauer Medeiros
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi
julgado adequado para obtenção do título de doutor em História Cultural.
____________________________________
Desde os anos 1970 algumas críticas de arte como Linda Nochlin já questionavam as
causas da aparente inexistência das mulheres artistas na história, concluindo que tal
ausência se deve mais a exclusão das mulheres das principais instâncias de formação de
carreiras artísticas nos séculos XVIII e XIX, do que a uma falta ―natural‖ de talentos
para as artes. Ainda nos dias de hoje, essa ausência forçada da mulher que lhes limita o
trabalho artístico não foi de toda resolvida. Isso fica muito claro, no que se refere à
esfera dos quadrinhos, na qual o fato de ser mulher ainda lhe rouba em grande medida a
atuação, impondo-lhes diversas dificuldades e limitações. Com esse trabalho
examinaremos a participação das mulheres na produção e consumo dessa mídia.
Pensando através de algumas obras como se dá a inserção das autoras nesse meio
majoritariamente masculino, e os espaços que elas ocupam. Perscrutaremos as
iniciativas (como os coletivos de mulheres quadrinistas) que foram e vêm sendo
tomadas para colaborar com a atuação das autoras. Observando a importância assumida
pela organização e a construção de redes de apoio que surgem como resposta às
limitações a que estão submetidas e acabam por ser responsáveis em grande parte, pela
viabilização da produção e pela inserção. Constatando um movimento cada vez maior
no sentido de criar espaços destinados a participação apenas de autoras mulheres e
produzidos por mulheres, analisaremos iniciativas que seguem essa linha. Discutiremos
ainda como o cenário vem se modificando nos últimos tempos, observando como num
meio ainda superado numericamente pelos homens, a produção das mulheres se
desenvolve e surpreende. Incutindo uma polifonia e ampliando consideravelmente as
possibilidades da arte sequencial. E, embora, por ora, os espaços exclusivos para as
autoras ainda sejam necessários, entendemos que há uma intenção e um movimento no
sentido da dissolução dessas separações. Já que, em última instância, ao que parece a
intenção das autoras e de seus trabalhos é transcender qualquer associação com gêneros,
na direção de serem apreciadas e reconhecidas pelas qualidades das obras.
1. INTRODUÇÃO......................................................................................................20
2. CAPÍTULO I – O Clube do Bolinha ....................................................................34
1 As histórias em quadrinhos ......................................................................................34
1.1 A era de ouro das HQs ............................................................................................47
1.2 Recessão (1946-1960) .............................................................................................50
1.3 A era de prata (1961-1980) ......................................................................................53
1.4 A partir dos anos 1980 - período de novas tendências ............................................53
2 As mulheres e a produção das histórias em quadrinhos............................................55
3 Os Clubes do Bolinha: espaços ―masculinos‖ ...........................................................63
3. CAPÍTULO II - Mulheres, artes e histórias em quadrinhos .............................. 75
1 A invisibilidade das mulheres nas artes .....................................................................75
1.1 A arte como um campo de poder ............................................................................91
1.2 As mulheres eclipsadas ..........................................................................................103
1.3 Autoria: reconhecimento e visibilidade .................................................................112
2 Ser uma artista mulher nos tempos atuais: as quadrinistas ....................................126
3 Os silenciamentos das mulheres ............................................................................146
4. CAPÍTULO III - “O pessoal é político!” - As primeiras incursões coletivas das
mulheres nos quadrinhos e a participação das autoras no comix underground....151
1 Os Coletivos de Mulheres Quadrinistas no underground ......................................161
1.1 It Aint Me Babe Journal ...................................................................................... 175
1.2 It Aint Me Babe Comix ........................................................................................ 179
2 Os coletivos como ferramentas de ação coletiva.....................................................190
3 O Wimmen’s Comix e as revistas underground de mulheres................................. 193
4 RESIST! - Quadrinhos, feminismo e a resistência no momento atual.....................215
5 A relevância dos coletivos underground para a posterior produção das mulheres nos
quadrinhos ....................................................................................................................225
5. CAPÍTULO IV - Subjetividades e polifonias: a diversidade nos quadrinhos 227
6. CAPÍTULO V - Mundo virtual, possibilidades reais: quadrinhos, arte e a
internet......................................................................................................................... 251
1 As novas tecnologias do século XX........................................................................252
1.1 As tecnologias e a arte ............................................................................................256
1.2 As possibilidades da arte na internet......................................................................260
1.3 A Net. Art..............................................................................................................264
1.4 Arquivos virtuais: possibilidades e fragilidades de arquivamento........................269
1.5 A internet e as questões relacionadas à autoria..................................................... 274
2 A internet na produção de HQ .............................................................................. 280
2.1 A diversidade dos quadrinhos digitais....................................................................283
2.2 A internet e as autoras de quadrinhos.....................................................................292
2.3 Quadrinhos, arte e internet – qual o futuro desse encontro?...................................308
7. CAPÍTULO VI - As mulheres nos quadrinhos do mainstream, as grandes
produtoras e suas representações do feminino ........................................................312
1 O apelo sexual como forma constitutiva das personagens femininas.....................314
2 A desnaturalização da erotização das personagens femininas................................323
3 Reação das editoras à maior presença das mulheres nos quadrinhos.....................334
4 Para além dos corpos hipersexuais..........................................................................338
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................344
9. REFERÊNCIAS ................................................................................................ ...348
10. ANEXO 1 - Charte des créatrices de bande dessinée contre le sexisme...........370
11. ANEXO 2 - Colaborações nas revistas analisadas no capítulo 3.......................373
12. ANEXO 3 - Dados das revistas analisadas no capítulo 3...................................381
20
1. INTRODUÇÃO
Foi com notável sabedoria que Charles Chaplin afirmou: ―o assunto mais
importante do mundo pode ser simplificado até ao ponto em que todos possam apreciá-
lo e compreendê-lo. Isso é –– ou deveria ser –– a mais elevada forma de arte‖. Assim, o
artista que produziu obras magistrais sem expressar uma sequer palavra, considera que o
valor artístico de uma obra está associado ao alcance e a retilineidade da transmissão de
suas ideias. As histórias em quadrinhos (HQ‘s) 1 são uma forma de expressão
contemporânea cuja simplificação faz parte de sua linguagem. Na qual, quadro a
quadro, cria-se uma sequência de ações que estruturam uma história com começo, meio
e fim, compostas de elementos, normativas e códigos próprios. As HQs constituem uma
―mídia autônoma que se gesta a partir de uma ideia sólida, geradora de uma narrativa
que conjuga elementos verbais e não verbais‖ (PESSOA, 2014, p. 20), e utiliza-se de
uma combinação entre imagem e texto, de um ritmo próprio e muitas vezes do humor
para propiciar uma ―fácil‖ apreensão, ou melhor, uma apreensão imediata.
Artistas e teóricos como Will Eisner (1989) e Scott McCloud (1995) nos
mostram que a linguagem própria das HQs é bastante rica e constituída por diversos
elementos como planos, temas e formas narrativas, recorrendo à linguagem visual para
simular tempo e ação. Todavia, por um bom tempo, as HQs estiveram cercadas por
preconceitos que lhes renderam uma desvalorização no campo das artes, fazendo com
que fossem vistas apenas como um produto juvenil e/ou entretenimento barato.
Derivando em uma trajetória bastante peculiar.
É importante considerarmos a assertiva de Kennedy Piau (2005), na qual o autor
ressalta que a ―arte‖ enquanto sistema de ideias cria as condições para a formulação de
juízos de valor sobre as obras, não sendo um conceito natural, nem universal, mas,
dependendo de uma valoração e dos critérios. Os parâmetros que possibilitam esses
julgamentos seriam construídos historicamente, tornando assim, variável o que pode ou
não ser considerado uma ―obra de arte‖2. Atualmente diversos autores como Waldomiro
1
Existem outras conceituações que definem gêneros próximos às histórias em quadrinhos, como o
cartum, a charge e a caricatura, dos quais a HQ se diferencia devido a necessidade de haver uma ação, de
onde deriva a alcunha ―arte sequencial‖ (Cf. RIANI, 2002, p. 31).
2
A obra de arte difere-se da arte enquanto sistema, sendo a primeira entendida como um produto do
trabalho humano, um ato, que pode ser percebido através de sua forma. Trata-se de representações,
contudo, num sentido em que se aproxima da dinâmica da performance, a qual nos remete a uma
realidade que se faz presente por meio da materialidade das palavras ou imagens (Cf. FLORES et. al.,
2016, p. 13).
21
Vergueiro (2015) e Santiago Garcia (2010), já naturalizaram a alcunha ―nona arte‖ para
falar dos quadrinhos, conferindo-lhes um reconhecimento e agregando- os à música, a
dança, a pintura, a escultura, a literatura, o teatro, o cinema e a fotografia, enquanto
categoria artística.
O interessante é que uma história em quadrinhos pode ser aparentemente simples
aos olhos do leitor, mas isso se deve a um pequeno porém: o fato de o leitor
contemporâneo já estar letrado neste tipo de mídia. Por ser um conhecedor dessa forma
de linguagem, ele está apto a entender o que a narrativa dos quadrinhos, composta por
dois tipos de linguagem: verbal e não verbal quer dizer. Ou seja, a apreciação deste
meio de comunicação está em confluência com o momento histórico em que se vive,
por estar familiarizado/ letrado neste tipo de mídia, o leitor é capaz de compreender as
intersecções entre o que é dito de forma verbal ou não, direta ou intrinsecamente. Com o
passar do tempo, novos meios de expressão vão surgindo e temos que lidar cada vez
mais, com uma infinidade de meios de comunicação e diversas transformações de
linguagens - cada qual exigindo uma forma própria de leitura e apreensão. Contudo,
como ressalta Jay Lemke (2010), os significados em outras mídias não são fixos e
aditivos (o significado da palavra mais o significado da imagem, por exemplo), mas
sim, multiplicativos (o significado da palavra se modifica através do contexto imagético
e o significado da imagem se modifica pelo contexto textual) fazendo do todo algo
muito maior do que a simples soma das partes. Assim, o leitor que já está familiarizado
com a linguagem do texto escrito e da imagem, ao lidar com os quadrinhos adquire uma
nova habilidade de ―leitura‖, um novo letramento para uma nova linguagem. A qual
integra as regências da arte (como a perspectiva, simetria, traço), e as regências da
literatura, tais como a gramática, o enredo e a sintaxe, que se superpõem mutuamente,
tornando a leitura da HQ um ato de percepção estética e de esforço intelectual (Cf.
EISNER, 1989, p.8).
Outra característica particular desta linguagem é o fato de se valer da experiência
comum do criador e do leitor, já que uma compreensão adequada depende de um
elemento importante por parte do leitor: a conclusão, ou seja, o processo mental de
observar as parte e perceber o todo. Assim, o espaço entre um quadro e outro é
preenchido pela imaginação do leitor, que num pacto entre produtor e receptor, presume
as intenções do primeiro. Isso se dá, pois, embora os quadros das histórias fragmentem
o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados e, ainda
que, nada seja visto entre dois quadros, a experiência indica que alguma coisa deve
22
haver lá (Cf. McCLOUD, 1995, p. 67). Assim, a ―conclusão nos permite conectar esses
momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada‖ (McCLOUD,
1995, p. 68). Esta conclusão não é involuntária, pois o autor tem a consciência de que
cada uma de suas escolhas é auxiliada e apoiada por seu cúmplice silencioso. Portanto,
os quadrinhos constituem-se num ―meio onde o público é um colaborador consciente e
voluntário, e a conclusão é um agente de mudança, tempo e movimento‖ (McCLOUD,
1995, p. 65).
Da mesma forma que a apreciação, o desenvolvimento das HQs também está
associada a seu contexto, estando seu público, num contexto cognitivo e temporal
favoráveis. A progressão da modernidade desencadeou, em especial a partir de meados
do século XX, através das novas concepções de mercado, de industrialização e
comunicação, um universo diferente do transcorrido até então. Momento no qual há um
distanciamento da crença no progresso da razão e na construção racional da sociedade,
da ética e da moral. Novos instrumentos de conhecimento geraram novos conteúdos,
que geraram novos posicionamentos sociais frente às mudanças culturais da pós-
modernidade (Cf. RAMOS, 2006, p. 25). E embora, como demonstra Andreas Huyssen
(1996), tenha havido estratégias de exclusão da cultura de massa em favor de uma
lógica que intenta estabelecer a ―alta‖ cultura como critério de valor, ―como uma
membrana elástica, o pop remodela e reconfigura a própria ideia de cultura popular ao
fazer propagar através da cultura midiática expressões culturais de ordem diversas como
filmes, seriados, músicas e quadrinhos‖ (FANOTTI JUNIOR, 2015, p. 45).
Apesar de sua grande difusão e popularização através de linguagens e estratégias
que atingem diretamente o público receptor, as expressões culturais da cultura pop,
possuem uma instigante contradição, pois habitam curiosamente um lugar entre o
produto de massa e a condição de um produto diferenciado, estando ―de um lado seu
aspecto serial, a produção massiva, e de outro, o modo como os produtos pop servem
para demarcar experiências diferenciadas através de produtos midiáticos, que nem por
isso deixam de ser ‗populares‘‖ (FANOTTI JUNIOR, 2015, p. 45). A partir de um gosto
comum por um produto midiático, se estabelece uma identidade e conjuga-se todo um
―universo‖ próprio pertencente aos que dela partilham. As HQs, por exemplo, se
inserem no universo geek, uma subcultura que se caracteriza pelos interesses comuns
relacionados a tecnologia, a eletrônica, jogos eletrônicos ou de tabuleiro, filmes,
seriados e quadrinhos. Gerando produtos, lugares e hábitos destinados aos que partilham
destes gostos comuns. Ainda que se aproxime do que outrora era conhecido
23
pejorativamente como nerds, os geeks gozam de uma aceitação social, já que com a
popularização da internet na década de 1990 - e tudo o que veio com ela - o termo
adquiriu uma conotação positiva, definindo um estilo de vida e uma identificação social.
A aceitação social das pessoas ligadas à tecnologia está interligada à importância
adquirida por esta atualmente, quando se fala da indústria cultural contemporânea, é
impossível desconsiderar sua relação com o que circula na internet, com as demandas e
as redes de recepção criadas pela rede mundial de computadores. Uma dinâmica própria
de nosso tempo, já que a ―comunicação instantânea, a fragmentação do sujeito e a
predominância da mídia na constituição do universo simbólico das grandes massas
produziram sensíveis mudanças no dinamismo institucional, na política, na economia,
ou seja, nas bases de reprodução de um sistema antes estável, agora em permanente
mutabilidade‖ (RAMOS, 2006, p. 25).
A partir dessas ponderações, podemos pensar como alguns elementos, como uma
história em quadrinhos, podem parecer ilusoriamente simples. Ledo engano, pois estão
inundados de toda sorte de questões. O mesmo se dá com as imagens, por tanto tempo,
ignoradas em seu potencial como fonte de pesquisa, embaraço, porém, em grande
medida superado. Atualmente autores como Georges Didi-Huberman (1998) situam as
imagens e o saber visual como um campo privilegiado de questionamentos. Porém, sem
a pretensão de se chegar a uma ―verdade‖, ou ―fala‖ definitiva das imagens, já que, o
autor compreende as imagens como pertencentes à ordem do inverificável, ou seja, das
quais nunca será possível ver tudo, pois algo sempre há de nos escapar. Ainda assim,
elas podem ser ricas fontes de pesquisa, pois, estão repletas, de ressonâncias, de
temporalidades, carregadas de memórias e de referências. Elas estão por toda a parte,
sejam ligadas aos mecanismos visuais, às associações imagéticas e simbólicas
produzidas pelas lógicas neurais, à imaginação individual ou social, aos rituais, à
memória, às imagens mentais resultantes das percepções, relacionadas ao mundo das
mercadorias ou à estetização da política.
As imagens estão imbricadas nas práticas culturais e no humano, ―intervêm entre
o mundo e nós. Mais que representar o mundo, elas o obstruem e nos levam a viver com
elas, frutos de nossa criação‖ (FLUSSER apud BELTING, 2006, p. 55). Nossa memória
e nossos referenciais estão encharcados de imagens, somos poços de imagens e uma vez
que as formamos, elas estão em constante ebulição. Como evidencia Didi-Huberman
(1998), é impossível ignorar a presença e o potencial das imagens, sobretudo no
momento atual, no qual nunca a imagem se impôs com tanta força, presentes nos mais
24
diversos atos cotidianos, seja nos momentos de lazer (nos filmes e outros recursos
audiovisuais), na comunicação interpessoal permeada por mensagens instantâneas e
emoticons, na publicidade (como recurso usado para influenciar nossos desejos), dentre
outras dimensões, a imagem é imperiosa. Tão presente e relevante social ou
individualmente, que não há como a ignorar.
Pessoalmente, me deparei mais fortemente com esse ―poder‖ da imagem, ao
realizar minha dissertação de mestrado, no cerne da pesquisa estava a autora inglesa de
graphic novels, Posy Simmonds3, entretanto, ao pesquisá-la me defrontei com outras
questões que por ora não pude desenvolver, mas que permaneceram latentes. Ao
investigar uma autora de quadrinhos, me surpreendi com a falta de dados sobre as
autoras deste tipo de material. E com o fato de me deparar com afirmativas como: ―- As
mulheres não fazem quadrinhos!‖, ―- As mulheres não se interessam por quadrinhos!‖,
ou quando muito, ―- Elas produzem apenas quadrinhos ‗de mulher‘, quadrinhos fofos!‖.
Todavia, ao seguir na pesquisa percebi que havia uma infinidade de mulheres,
envolvidas em todas as áreas da produção das HQs (ilustradoras, coloristas, roteiristas,
diretoras de arte, finalizadoras, etc.) e também como autoras dos mais diversos tipos de
quadrinhos. Mas então porque pouco se sabe acerca delas?
Como pondera Maria José Justino (2013), a ausência forçada da mulher na
história que lhes roubava a atuação artística, ainda não foi de todo resolvida. Isso fica
muito claro, no que se refere à esfera dos quadrinhos, na qual o fato de ser mulher ainda
lhe rouba em grande medida a atuação artística, impondo-lhes diversas dificuldades e
limitações. Fato que se dá devido à estruturação do meio como um segmento no qual
desde seu início a atuação masculina foi predominante. O fato dos homens constituírem
a maior parte dos artistas gráficos e escritores de sucesso, assim como, de seu público
consumidor, faz com que esta indústria acabe submetida a uma lógica de mercado
voltada para seu maior público, no caso, os homens, e dificulta em grande medida o
acesso das quadrinistas e leitoras a esse mundo. Incutindo-se um pensamento
dominante de que os quadrinhos são produzidos apenas por homens e para os homens.
3
O trabalho teve como foco os romances gráficos (graphic novels), em especial as obras da autora inglesa
Rosemary Elizabeth Simmonds (Posy Simmonds). O Romance Gráfico é um quadrinho adulto
contemporâneo, cujas suas primeiras obras importantes surgiram no fim da década de 1970, é também em
parte uma continuação e uma consequência de outras tradições anteriores. Além de ser fruto de um
fenômeno que ocorreu nos últimos trinta anos de conscientização do quadrinho como forma artística
adulta. As obras de Posy Simmonds são representativas de algumas das principais características desse
material, como a experimentação, a alta qualidade estética e a preocupação com temas e questões atuais.
25
4
A despeito desta declaração, seria injusto deixar de citar que existem muitas mulheres trabalhando na
produtora Maurício de Sousa, principalmente como ilustradoras e diretoras de arte.
26
independentes5, através dos quais as quadrinistas vêm, pouco a pouco mostrando que
existem sim, e que querem sair dos bastidores da indústria. Hoje há um grande número
de mulheres atuando no mercado de quadrinhos mainstream6 e também uma melhor
representação de personagens femininas nesses títulos. Porém, as dificuldades ainda
persistem, as informações sobre elas são de difícil acesso, sendo necessário buscar nas
entrelinhas. Já que nos bancos de dados sobre quadrinhos, constam pouquíssimas
autoras; assim como pudemos ver pelo caso do festival Angoulême, os prêmios
nacionais e internacionais ainda são excludentes; e na maior parte das livrarias é
possível contar nos dedos as obras de autoras, salvo alguns best sellers como os de
Marjane Satrapi e Alison Bechdel, e talvez, com muita sorte, Rutu Modan.
Mas embora, haja, nessas últimas décadas, este movimento crescente das
autoras, a situação das mulheres no meio ainda é desafiadora e a disparidade entre
autores e autoras é um fato. Mas porque isso acontece? Acreditando que as ausências
dizem muito, reflexiono acreca desse entrevero. Podemos partir do fato de que como
ressalta Jacques Leenhardt, uma suposta igualdade política, não implica
necessariamente numa igualdade no âmbito privado. Assim, mesmo que a igualdade
política homem/mulher, em seu princípio, tenha sido estabelecida durante a Revolução
Francesa, ―no entanto, não foi capaz de se insculpir de forma durável na lei, tampouco
de alterar as práticas na ordem política e menos ainda de fazer penetrar essa igualdade
teórica no cotidiano da privacidade do casal e da família‖ (LEENHARDT, 2013, p. 7).
Segundo o autor, entender a permanência da desigualdade de fato, ainda que a igualdade
de direito seja postulada, ou até mesmo disposta em lei, ―requer considerar a exclusão
como um mecanismo cujas engrenagens encontram-se aquém da lógica aparente dos
discursos‖ (LEENHARDT, 2013, p. 8). Pois, ―seja baseada na diferença natural em si,
na diferença dos sexos, e em suas consequências sociais: a maternidade e os papéis
sociais que daí resultam‖ (LEENHARDT, 2013, p. 8), as diferenças apresentam efeitos
na vida prática. Desta forma, Leenhardt esclarece que postular igualdade, ou fazer disso
uma demanda política, não permite ocultar, ou esquecer esse ponto de partida
diferenciado e suas consequências. Conclui, portanto, que o espaço de troca entre
homens e mulheres ainda é um espaço calcado em suas diferenças, ―e, portanto, uma
questão de poder‖ (LEENHARDT, 2013, p. 8).
5
Os meios alternativos, como os zines, foram caminhos encontrados para a publicação das autoras.
6
Corrente principal.
27
essência feminina, ou uma categoria fechada de mulher. O que se entende por ―mulher‖
é afinal, como apontam autoras como Carla Akotirene (2019) e Kimberlé Crenshaw
(2002), uma interseccionalidade de outras categorias, não sendo o gênero a única
intersecção, assim, poderíamos dizer que não existe uma ―mulher‖, mas sim, mulheres
interseccionadas.
Logo, ao invés de me apoiar em conceitos abstratos, acredito que o importante é
abordar as questões de um ângulo histórico. Partindo do particular (os quadrinhos) para
o geral (tudo que permeia a atuação das mulher(es) autora). Seguindo a linha da filósofa
e historiadora Geneviève Fraisse (1995), a qual para ―evitar qualquer debate abstrato
(...) começa substituindo a oposição binária ―homem vs. mulher‖ por um exame
cuidadoso das manifestações concretas dessa oposição no campo da criação artística 7‖
(LEENHARDT, 2013, p. 8). Desta forma, mais do que fazer um recorte temporal, faço
um exame de manifestações concretas que permitam desenvolver as questões a serem
debatidas ao longo dos capítulos.
O primeiro capítulo, se intitula O Clube do Bolinha, termo que ganhou força a
partir da HQ Little Lulu (Luluzinha, no Brasil) criada em 1935 pela quadrinista Marge
(Marjorie Henderson Buell), na qual, dois de seus personagens principais, Luluzinha e
Bolinha vivem situações de seu cotidiano. Contudo, na história, as personagens com
idades entre 8 e 10 anos estão vivendo o que na psicologia se define por ―fase latente‖,
na qual pertencer à um grupo com os mesmos interesses e gostos se torna o mais
importante, o que fica bastante evidente na história, como no fato de Bolinha ser
presidente do clube dos meninos, cujo lema é ―menina não entra‖. Uma atitude
representativa desta etapa de separação (natural e muito visível) entre os meninos e as
meninas em grupos do mesmo sexo, que acabou por popularizar as expressões ―Clube
do Bolinha‖ e ―Clube da Luluzinha‖, para se referir a grupos ou locais nos quais a
apenas um dos sexos é permitida a entrada. O meio dos quadrinhos pode ser pensado
como um desses redutos, um ―Clube do Bolinha‖, no qual a presença feminina é
limitada ao máximo, a discussão acerca dessa questão é trazida neste capítulo,
explorando como se constitui esse ―clube‖ masculino e as consequências que isso traz.
Assim, a disparidade entre autores/as é debatida. Traçando um panorama da
participação da mulher(es) como criadora de quadrinhos, e demonstrando como as
7
Fraisse observa que, após a Revolução Francesa e sua pretensa igualdade, aparece um novo tipo de
oposição, com base em um tipo de divisão sexual de papéis entre a ―musa‖ inspiradora (ainda que as
mulheres mereçam um lugar nas artes, o lugar destinado às mulheres era o de musa) e o ―gênio‖,
permanecendo o homem como o único pretendente ao desempenho criativo.
29
mulheres, bem ou mal, sempre estiveram presentes no mundo das HQs, desde seu início
no século XX. Tencionando a partir dessa discussão, expor que não se trata de uma
questão de falta de capacidade ou interesse, mas sim, um impedimento histórico e social
que há tempos limita e dificulta a atuação das quadrinistas.
No capítulo II, Mulheres, artes e histórias em quadrinhos um exame do que é ser
uma mulher que produz arte, refletindo acerca das possíveis limitações profissionais
encontradas por elas e o lugar atribuído às mulheres nas artes ao longo da história,
expondo algumas estratégias como o uso de nomes ambíguos ou pseudônimos para
conseguirem se inserir e produzir. Em especial, pensando através de algumas obras e
depoimentos, o que é ser uma mulher que produz quadrinhos.
Se mais acima já concluímos a não existência de um quadrinho por essência
―feminino‖, com certeza, é possível afirmar que existem quadrinhos feministas! No
capítulo III – “O pessoal é político!” - As primeiras incursões coletivas das mulheres
nos quadrinhos e a participação das autoras no comix underground, a reflexão sobre
algumas das principais iniciativas que as mulheres desenvolveram para forjar seu
espaço nesse segmento. Neste capítulo, proponho a observação de algumas de suas
primeiras estratégias de inserção. Em especial, quando no bojo da contracultura norte-
americana, surgem as primeiras articulações e coletivos de mulheres quadrinistas: as
obras It aint' me babe (1970) e Wimmens comix (1972-1992), Tits & Clits (1972-1987),
as quais serão analisadas e discutidas neste tópico. Essas iniciativas emergem a partir
das discussões geradas nas reuniões feministas e nos jornais underground em circulação
nas Universidades dos Estados Unidos da América. É um momento no qual, as autoras
percebem que as questões pessoais vividas pelas mulheres em seu cotidiano muito
tinham de político, estando entrelaçadas ao papel social e aos espaços a elas destinados
e utilizam-se dos quadrinhos para tratar destas questões. A partir disso, a explanação de
como a atual reação das mulheres na cena dos quadrinhos só se tornou possível depois
de muita luta feminista, porém, sem esquecer que batalha ainda está no começo.
Já no capítulo IV - Subjetividades e polifonias: a diversidade nos quadrinhos a
construção de um debate acerca de como quando outros agentes começam a fazer parte
do campo dos quadrinhos de maneira acentuada, o meio ganha polifonia e as
possibilidades da área são ampliadas. Analisando de que forma produtos culturais como
as histórias em quadrinho têm sido nos últimos anos, um instrumento para dar espaço a
agentes invisibilizados. Tornando-se uma ferramenta de discussão importante, por
exemplo, no que se refere ao gênero, têm aberto possibilidades para que autoras queers
30
8
Contudo, conscientes de que, embora esteja sendo um veículo muito importante, possibilitando com que
as mulheres construam sua dinâmica própria de atuação, por mais que traga possibilidades, não está ao
alcance de toda e qualquer autora, mas apenas daquelas que têm acesso à rede mundial de computadores.
31
produtos culturais criados com meios digitais. A autora enxerga a Net.art como um
exemplo de bens culturais que não só resistem à objetificação, mas que muitas vezes só
existem contextualmente. Portanto, é importante considerar que o contexto fatalmente
interfere na compreensão da obra, pois, como nos coloca Margot Lovejoy (2004), a
internet cria uma situação totalmente inédita em que a relação entre conteúdo e contexto
é de intercâmbio permanente:
Na internet o contexto está intimamente ligado ao conteúdo. A dinâmica da
web traz elementos informacionais por meio de diferentes fontes que são
combinadas apenas quando o participante ativa a tela. Os comandos do
monitor estão conectados ao código estruturado e programado do site, os
quais estão disponíveis por meio de um servidor local conectado a um
território globalmente acessível. (...) Por intermédio de meios de transferência
e transmissão, o contexto também pode se tornar conteúdo (LOVEJOY, 2004,
p. 223).
Afinal, a net art é bem mais do que arte criada para a internet. É arte que
depende da internet para se realizar, um tipo de criação que lida com
diferentes modos de conexão, de navegadores, de velocidade de tráfego, de
qualidade de monitor, resolução de tela e tantas variáveis que alteram as
formas de recepção. (...) Trata-se, portanto, de uma arte intrinsecamente
ligada a uma fruição do/em trânsito. Obras que só se dão a ler enquanto
estiverem em fluxo, transmitidas entre computadores e interfaces diversas
(BEIGUELMAN, 2014, p. 14).
Esse tipo de arte tem uma natureza efêmera e exige novos procedimentos de
preservação. Assim, discuto como a internet vem marcando as formas de arquivamento,
leitura e desenvolvimento artístico e tem sido muito importante para a construção de
uma dinâmica de atuação que tem trazido maiores possibilidades e visibilidade para as
quadrinistas.
No sexto e último capítulo, As mulheres nos quadrinhos do mainstream, as
grandes produtoras e suas representações do feminino a formulação de uma discussão
sobre as mulheres nos quadrinhos de nicho mercadológico. Perpassando pela
representação das mulheres nesse tipo de quadrinhos e as reações à estética
hipersexualizada recorrente no gênero. Observando como a maior presença atualmente
de autoras e personagens femininas não parte apenas de uma tentativa de tornar os
produtos mais diversificados, mas de uma necessidade mercadológica. A ênfase em
como, no meio editorial mais tradicional (mainstream), no qual a situação sempre foi
32
mais excludente, surgem selos de editoras como a Boitempo e Nemo que — ao notar a
tendência dos quadrinhos autorais independentes, e uma possível fatia de mercado não
alcançada — lançam linhas editoriais voltadas para as mulheres. Assim, a observação
sobre como o mercado tem reagido às articulações das autoras. Outra questão relevante,
é o fato de que, curiosamente está neste segmento uma das contradições que perpassam
a produção das autoras, já que são algumas obras desta natureza, os
quadrinhos mainstream, os responsáveis por alcançar um lugar de destaque nas vendas
entre as obras de autoras mulheres, mas é também neste segmento que se encontram as
maiores dificuldades para a grande maioria delas.
Assim, além de tantas outras questões, ao longo do trabalho perpasso pelos
principais nichos temáticos que foram sendo identificados ao longo da pesquisa,
presentes nas obras das quadrinistas, sendo eles três: o ativismo, a subjetividade e o
mercado. O primeiro deles, o ativismo dá origem a HQ's feministas, cujo ponto de
partida é uma motivação militante (capítulo III); o segundo nicho, se relaciona à
subjetividade de quem narra (capítulo IV), no qual as HQs tornam-se uma forma de lidar
com dramas pessoais, e de se expressar, não havendo aí, necessariamente uma
preocupação comercial, ou com uma grande circulação das obras; e por fim, o nicho
mercadológico (capítulo VI).
Através dessa pesquisa penso como se dá a inserção das mulheres nesse meio até
há pouco, um ―clube do bolinha‖, um espaço em que predominava a atuação masculina.
Fazendo isso através da investigação e análise do espaço ocupado por elas, das formas
utilizadas por elas para se inserir e das maneiras encontradas para produzir e distribuir
seus trabalhos. Ao longo dos capítulos pontuo as iniciativas articuladas por elas para
viabilizar sua atuação como autoras, as maneiras encontradas pelas artistas para forjar
seu espaço no segmento das histórias em quadrinhos. Para assim, discutir questões que
permeiam o cotidiano profissional das autoras através de uma análise de iniciativas e
articulações, ou seja, de suas estratégias de inserção, as formas que as mulheres se
utilizaram e se utilizam e o percurso construído por elas na busca por espaços
profissionais como quadrinistas. Porém, tendo em mente a importância de não olhar
para as questões numa dicotomia masculino/feminino. Lembrando ainda, que dentro da
categoria ―autoras de quadrinhos‖ existe uma grande diversidade a ser considerada.
Pretendo através desses debates, demonstrar que os quadrinhos feitos por
mulheres, não são um assunto nada simples, pelo contrário, há uma infinidade de
nuances. E se possível, com a tese, colaborar para uma maior visibilidade e
33
1 - As histórias em quadrinhos
As histórias em quadrinhos (HQs) são uma forma de expressão da cultura
moderna e contemporânea. Alguns elementos são característicos de sua linguagem, a
qual é formada por ―uma combinação de imagem e texto em balões, que obedecem a
9
Em finais do século XX, após o surgimento de um gênero de quadrinhos conhecidos como graphic
novels, e uma intensa discussão se os quadrinhos seriam ―arte‖, muitos autores passaram a utilizar a
alcunha de ―nona arte‖ para classifica-los. As histórias em quadrinhos somaram-se a música, a dança, a
pintura, a escultura, a literatura, o teatro, o cinema e a fotografia, e passaram a ser entendidos como um
gênero artístico independente, baseado em valores literários e artísticos próprios.
35
uma sequência narrativa estabelecida por quadros, em que se mesclam discursos diretos
dos interlocutores contidos na história, tais como personagens narradores‖ (PESSOA,
2014, p. 11). Porém, em última instância, a denominação ―histórias em quadrinhos‖ se
refere a um meio em si, não a um objeto físico específico como um ―gibi‖, isso porque,
as histórias em quadrinhos podem ser de diversos tipos e utilizar uma grande variedade
de suportes. Então, ao falamos desse tipo de arte torna-se necessário separar a forma de
seu conteúdo.
10
Nas línguas ocidentais.
11
Os comic book são o que no Brasil chamamos de revistas em quadrinhos, ou gibis. A revista ―Gibi‖ foi
lançada no Brasil em 1939, uma publicação com aproximadamente 30 páginas em papel jornal. Em 1940
começou a ser publicada mensalmente, com estórias completas, iguais aos comics books norte-
americanos. Ganhou tamanha popularidade no país que o termo ―gibi‖ tornou-se sinônimo de revista em
quadrinhos.
37
uma ideia utilizando apenas uma imagem e sem possuir um suporte físico, sendo
produzida e veiculada nas redes sociais e outros meios digitais (figura 3).
Figura 3: Almanaque da Mônica n° 1, Editora Abril, 1981 - roteiro: Mauricio de Sousa, desenho: Emy
Acosta, arte final: Alice Takeda.
O que quero destacar é que as histórias em quadrinhos contam com uma forma
narrativa constituída por uma sequencia de quadros desenhados, e em geral com
diálogos inclusos na imagem, sendo ―um sistema narrativo formado por dois códigos de
signos gráficos: - a imagem, obtida pelo desenho; - a linguagem escrita‖ (CAGNIN,
1975, p. 25), mas esses signos e sua forma narrativa podem variar, sendo um meio
cheio de possibilidades.
Além do formato, a denominação pode variar dependendo do local, no Brasil
utilizamos o termo ―histórias em quadrinhos‖, porém, as denominações para identificar
essa forma de expressão variam bastante conforme o país, como demonstram Marco
Aurélio e Rubens Francisco Luchetti (1992-1993): nos Estados Unidos e na Inglaterra,
recebem o nome de comics ou funnies, devido às primeiras histórias terem sido de
caráter puramente cômico; komix, na Alemanha e nos Países Baixos, um equivalente do
termo comics, no idioma dessas nações, banda dessinée (numa tradução literal banda
desenhada) na França e na Bélgica; na Itália, recebe a designação de fumetti
(literalmente, fumacinhas), em referência aos balões nos quais de inserem as falas dos
personagens, cujo desenho assemelha-se a nuvens de fumo; na Espanha, é chamada de
tebeo, derivada de TBO, a primeira revista de histórias em quadrinhos daquele país; na
América de fala hispânica, é designado como historieta; já em Portugal, existem duas
expressões utilizadas, história aos quadradinhos e banda desenhada.
Figura 5: Quadrinho de Franziska Becker no qual dois caracóis conversam sobre o fato dos
humanos levarem o crédito do que seriam suas obras – as pinturas rupestres.
Figura 7: A Graphic Novel Sorge de Isabel Kreitz narra a história real do Espião Richard Sorge,
espião soviético.
12
Conforme destaca Camilo Riani (2002) há outras conceituações que definem gêneros próximos aos
quadrinhos, porém, mais vinculados ao humor como o cartum, as charges e a caricatura, dos quais a HQ
se diferenciaria devido a necessidade de que haja uma ação, sendo esta uma história sequencial narrada
em etapas e quadros.
40
Figura 9: Nesse fragmento de seu livro, Scottt McCloud (1995) traz imagens de um manuscrito
pré-colombiano de 1519 e questiona se seriam quadrinhos, ao que conclui: ―Claro, dá até pra ler!‖.
13
Em minha dissertação de mestrado, aprofundo as tradições e influências que antecederam as histórias
em quadrinhos modernas. MEDEIROS, Talita Sauer. Os romances gráficos: inspiração literária,
observações sociais e a estética de Posy Simmonds. Dissertação (Mestrado em História e Sociedade) -
Programa de Pós-Graduação em História, UNESP, Assis, 2013.
14
É o que se chamava protocomics: histórias nas quais ainda não se havia desenvolvido a utilização dos
balões de diálogos e outros símbolos visuais, apesar da presença do balão já ser constante desde o início
do século XX, sobretudo na imprensa norte-americana (Tradução minha).
42
ligadas ao contexto das culturas de massa15, sua origem estaria atrelada a maior
reprodução e disseminação como produto da comunicação de massa 16. Wellington
Srbek (1999) ressalta que embora seja possível identificar em obras anteriores alguns
dos elementos que formam a linguagem dos quadrinhos, como as pinturas rupestres, a
função que elas exerceram nas sociedades em que surgiram e sua própria existência
material afastam-nas das histórias em quadrinhos, cuja origem estaria ligada ao
aperfeiçoamento das técnicas de impressão no Ocidente e ao estabelecimento da
sociedade burguesa. Srbek pontua que manifestações narrativas visuais anteriores ao
desenvolvimento da imprensa não estariam diretamente ligadas ao seu surgimento, as
HQs pertenceriam, portanto, às formas de arte classificadas por Walter Benjamin (1987)
como da ―era da reprodutibilidade técnica‖. Teriam se desenvolvido para alcançar seu
público, afirmando-se como um produto da modernidade, assim como, o cinema e a
fotografia. As Histórias em Quadrinhos são, portanto, um gênero eminentemente do
final do século XIX e início do XX. Hiron Goidanich ressalta que o desenvolvimento
dos quadrinhos está atrelado a disputas comerciais de grandes jornais:
15
A ―cultura de massa‖ decorre das facilidades de reprodução consequentes do desenvolvimento das
técnicas de reprodução do início do século XX, desenvolvimento que resultou no fabrico de produtos em
série, e derivou numa crescente comercialização dos produtos destinados ao lazer e ao entretenimento.
16
Em meados do século XX, as relações com as novas tecnologias de reprodução derivam em novos
produtos culturais e maneiras de representação visual nas sociedades ocidentais. Com o surgimento no
século XX das chamadas ―culturas de massa‖, formas de expressão como o cinema, a fotografia e as
histórias em quadrinhos provocaram uma renovação no que se entendia até então como arte. Acalorados
debates envolvendo o que se inseria no conceito de arte e a classificação dessas novas maneiras de se
expressar fizeram com que os valores estéticos válidos até então fossem repensados e ampliados.
43
Figura 11: Dolly Dimples, de Grace G. Drayton , no suplemento dominical colorido, 1914
Figura 12: Cap Stubbs and Tippie de Edwina Dumm, trabalho produzido para o Adams
Syndication Service como uma tira diária em 1918 e posteriormente como uma página dominical em
1934.
17
Syndicates como o King Features, United Features, NEA Service, Chicago Tribune, News, dentre
outros. Cleide Furlan pontua que a palavra Syndicate, nos moldes norte-americanos não encontra similar
em nosso contexto. Não se trata de um sindicato e ultrapassa as atribuições de uma associação. Podemos
tratá-lo como agência especializada em fornecer matérias variadas, particularmente de entretenimento. Os
Syndicates, além de possuir direitos sobre os trabalhos dos desenhistas (direitos sobre a venda e a
distribuição), funcionam como agência de veiculação das histórias, preparando e emitindo milhares de
matrizes a serem vendidas não só nos EUA como também em outros países. Cf. FURLAN, Cleide. HQ e
os ―Syndicates‖ norte-americanos. In: LUYTEN, Sônia Bibe. Quadrinhos: uma leitura crítica. São
Paulo: Edições Paulinas, 1984.
45
Figura 13: Jennie and Jack, also the Little Dog Jap de Margaret G. Hays, 1908.
18
Essa seria uma das razões pela grande quantidade de HQs norte-americanas no Brasil e em diversos
outros países: ―elas chegam prontas e acabadas para a impressão e a um preço baixíssimo, o que, por
outros motivos, não ocorre com os artistas nacionais‖ (FURLAN; apud LUYTEN 1984, p. 34). Assim, as
HQs norte americanas tiveram grande circularidade no Brasil e influenciaram a produção de quadrinhos
no país.
46
Figura 16: Cartoonist's Confessional, 1918, tira autobiográfica de Fay Barbara King. Na qual a
autora narra momentos de sua vida, seu trabalho como cartunista e sua relação com o marido Nelson.
Os anos entre 1930 a 1945 são conhecidos como os anos mais prósperos dos
quadrinhos, uma ―era de ouro‖. Esse apogeu se deve pela grande popularidade
alcançada pelos quadrinhos de aventura e posteriormente os de super-heróis.
Com o quadrinho de aventura as histórias se distanciaram da realidade cotidiana,
da atualidade política e social, do costume e da família como tema e como público, e
passa a se orientar prioritariamente segundo o consumo juvenil.
Assim, paradoxalmente, a mudança formal para um estilo representativo
considerado de maior ―realismo‖ (as representações corpóreas passam a ser mais
distantes das caricaturas, podemos observar as diferenças nas imagens 16 e 17), quanto
aos temas, se conduziu para um maior grau de irrealidade que o que se podia encontrar
nos quadrinhos quando a caricatura era o paradigma de representação hegemônico. É a
partir desse momento, mais que nunca, que os quadrinhos começam a ser dirigidos
realmente para crianças.
Figura 18: Phanton Lady. Originalmente publicado pela Quality Comics. Posteriormente pelo Fox
Feature Syndicate. Na década de 1950, Ajax-Farrell adquiriu os direitos dos quadrinhos Phantom Lady e
continuou o título. As histórias publicadas pelas três empresas foram reimpressas durante as décadas de
1960 e 1970 pela Star Comics e I.W. Publications.
19
O desenvolvimento deste tipo de personagem, o super-herói estava vinculado com a própria conjuntura
do confronto militar na Europa e na Ásia e à possibilidade do conflito se expandir para o território norte-
americano. Neste momento os grandes inimigos (vilões) são os alemães nazistas, os fascistas italianos, e
mesmo os japoneses. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria serão substituídos
pelos comunistas.
50
20
O caso mais notório foi a cruzada contra as histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, deflagrada
pelo artigo Horror in The Nursey, publicado na revista Collier em 1948 e escrito pelo psicólogo Fredrick
Werthan. Ele acreditava que as HQs eram perniciosas e nocivas à formação do caráter das crianças. Com
o impacto de seu artigo, Werthan escreveu Sedução dos Inocentes.
51
Essa preocupação com a corrupção infantil que poderia ser gerada pelos
quadrinhos ocorreu, pois, embora, os super-heróis tenham sido muito importantes para
os quadrinhos, o seu declínio não diminuiu o seu suporte. Com o passar do tempo,
surgem comic books destinados a todos os públicos: quadrinhos adolescentes, de funny
animals (animais antropomórficos, imitando os da Disney), Western, policiais,
românticos, de crimes, de terror e bélicos. Outros diversos nichos temáticos se
desenvolveram e proliferaram. Assim, em meados dos anos 1950, a indústria do comic
book vendia centenas de milhões de exemplares por ano, experimentando novos
gêneros. Porém, em especial, a ascensão de comic books de crimes e terror foi o que
alarmou os críticos dos quadrinhos.
Esse material já possuía um elevado número de leitores maiores de idade e
dispunha de um forte potencial para desenvolver um campo adulto para os quadrinhos,
já que, muitos leitores que desenvolveram o gosto pelo comic books cresceram junto
com eles e o mesmo se deu com diversos profissionais que começaram nos anos 1930 e
alcançavam significativa maturidade após anos de atividade continua. Em meados da
década de 1950, o meio começava a dar frutos artísticos experimentais estimáveis, até a
campanha contra os quadrinhos que atinge uma escala nacional nos Estados Unidos e
que tem como resultado a autorregulamentação da indústria.
Em 1954 as editoras de histórias em quadrinhos se reuniram para criar o Comics
Code Authority21, um “Código de Ética dos Quadrinhos‖ (OLIVEIRA, 2007, p. 34). Até
então, os comic books trabalhavam com uma grande liberdade 22 em comparação a
outros meios de massa americanos, já que o cinema e o rádio já seguiam
regulamentações oficias.
Rogério de Campos (2010) salienta que o objetivo expresso do Comics Code era
que os quadrinhos se tornassem mais ingênuos, garantindo-se assim que fossem uma
leitura mais ―saudável‖ para as crianças. Impuseram-se padrões para serem seguidos
pelas editoras. O Comics Code vigorou por décadas, forçando que dezenas de
quadrinhos tivessem de ser refeitos de alguma maneira a fim de receber o selo de
aprovação e poder se inserir no sistema de distribuição. Campos destaca que o Comics
21
Em 1954, formou-se a Comics Magazine Association of América (CMAA), entidade formada pelas
grandes editoras de quadrinhos dos Estados Unidos, cujo um dos principais objetivos era redigir um
código de autocensura para as editoras. Surge assim o American Comics Code Authority, um código
regulador para a produção e distribuição de quadrinhos.
22
Algumas editoras já haviam aprovado códigos internos de controle desde começos da década de 1940 e
contavam com juntas de assessores que incluíam educadores e psicólogos. Mas em geral, a indústria não
soube se organizar para estabelecer uma autorregulação efetiva, apesar de existir uma pressão social e
legislativa nesse sentido.
52
Code perdeu força nos anos 1970, porém, o desenvolvimento dos comic books
americanos foram significativamente marcados por essa campanha reguladora.
Nem todas as editoras se submeteram a essa disciplina, entretanto, como
consequência seus produtos não levavam o selo de aprovação na capa e nem poderiam
ser distribuídos pelos Syndicates ou vendidos nas bancas tradicionais. Como resultado,
nos anos seguintes, a criação do Code e as tentativas de se fazer um quadrinho adulto
foram sufocadas por um sistema eficiente de censura por meio da rede de distribuição.
shops. Eram quadrinhos que falavam de sexo, drogas, cultura hippie, dentre outras
ideias do movimento contracultural norte americano de meados dos anos 1960 e década
de 1970.
Através das medidas autorreguladoras e controle da indústria das HQs o meio
dos quadrinhos comerciais repeliu os que não seguiam suas diretrizes e não deixou
nenhuma porta aberta para renovação (com exceção dos alternativos) 23. Como resultado,
no mainstream produções homogeneizadas, voltadas para o público juvenil e adequadas
a valores morais. Nesse momento, os super-heróis voltam a ser o principal produto e
tem o seu segundo grande momento na história dos quadrinhos.
23
Amy Kiste Nyberg (1998), contudo, considera que houve outros motivos que somados à autocensura
que provocaram o colapso dos comic books americanos na segunda metade dos anos de 1950. Também
teriam sido fatores de peso para a saturação de títulos e editoras, a competição crescente da televisão e a
perda do principal distribuidor nacional (American News Company). Seja como for, as consequências
para a indústria foram devastadoras com a quebra de muitas editoras.
54
de ―arte‖, já que não possuem uma ―aura‖ de autenticidade. Influenciados por fatores
econômicos esses materiais seriam apenas produtos a ser consumidos. Assim, o
reconhecimento desse material como um produto artístico só ocorreu muitos anos após
seu surgimento. Durante um longo tempo os quadrinhos foram vistos por muitos como
uma arte de massas, considerada vulgar, fruto de interesses comerciais ou parte do
universo de consumo infanto-juvenil. Contudo, desde as últimas décadas os quadrinhos
passaram a ser reconhecidos como uma forma artística, a ―Nona Arte‖, que nada tem de
ordinário ou infantil, pelo contrário.
Isso se deve principalmente ao desenvolvimento das graphic novels (romances
gráficos) a partir dos anos 1980, uma forma de quadrinho, que surge a partir da
exploração gradativa de novas possibilidades de temáticas, objetos e técnicas de
produção. Surge no mercado das histórias em quadrinhos um novo gênero, destinado ao
público adulto, que derivou numa reformulação de antigos personagens e da estrutura
narrativa das histórias24, iniciando uma nova fase de experimentação estética que
pretende tornar os quadrinhos um material adulto, valorizado artístico e literariamente.
Os romances gráficos têm como característica ser uma obra fechada (ainda que
possa ser composta por vários volumes), a experimentação, uma pretensa qualidade
estética, a preocupação com temas atuais e ―adultos‖, a valorização do autor, e o
reconhecimento do quadrinho como um produto ―sério‖. O formato se consolida e
surgem desde então, diversos romances gráficos importantes nos Estados Unidos e em
outras partes do mundo, um exemplo desse tipo de material pode ser observado na
24
Três importantes obras da década de 1980 foram responsáveis pelo primeiro ―boom‖ dos romances
gráficos nos Estados Unidos: Maus de Art Spiegelman, Watchmen de Alan Moore e David Gibbons e
Batman, o regresso do cavaleiro obscuro de Frank Miller e Klaus Janson. Para Garcia (2010), uma das
características que fazem com que as três obras fossem reconhecidas como romances gráficos é o fato de
desde o início terem sido concebidas como obras completas.
55
figura 21, na qual temos uma imagem do romance gráfico Persépolis de Marjane
Satrapi, concebido como uma obra fechada, inicialmente em quatro volumes, nos quais
narra sua autobiografia, a história de sua família no Irã e de uma maneira geral, do povo
persa. Todo desenhado em nanquim em preto e branco. Inúmeras obras foram
produzidas, entretanto, o movimento foi liderado e absorvido pelas grandes editoras de
quadrinhos convencionais. ―Os grandes editores intentaram capitalizar o prestígio que
rapidamente outorgava o termo romance gráfico com livros de produção luxuosa‖
(GARCIA, 2010, p. 206). Os romances gráficos atualmente são uma das principais
formas de quadrinhos, porém, como produto das grandes editoras de quadrinhos
derivam em produtos que se assemelham a livros literários (figura 22), seja em sua
dimensão, formato, preço ou na forma de distribuição nas livrarias 25 físicas ou online.
25
É importante pontuar que na França, Bélgica, Itália, Alemanha, Espanha e em outros países da Europa
desde o início do século XX também já se produzia quadrinhos, contudo, focamos na produção norte
americana por sua grande difusão e influência mundial. Segundo Hiron Goidanich (2010), foi apenas após
a segunda guerra que os quadrinhos europeus começaram a ir além de suas fronteiras. ―Na Bélgica, um
personagem criado por Hergé, Tintin virou uma revista famosa. Veio Spirou, outro personagem que se
transformou em revista. As publicações europeias apresentavam séries, diferentes das tiras ou historinhas
dos comic books norte-americanos. Em geral, eram narrativas que se completavam em 45 ou mais
páginas, para depois serem publicadas em álbuns. O modelo Belga logo foi adotado na França e em outras
nações europeias, dando um diferencial aos quadrinhos do Velho Mundo‖ (GOIDANICH, 2010, p. 11).
56
Figura 24: The Old Subscriber Calls – 1896 – de Rose O 'Neill. Publicado apenas um ano após
"The Yellow Kid" de R. F. Outcault, tido como primeira obra de gênero pelos que entendem a história em
quadrinhos como produto da cultura de massas.
Figura 25: Kewpies de Rose O'Neill. Tornaram-se um grande sucesso e foram explorados
comercialmente em uma infinidade de produtos.
58
Figura 26: Grace Drayton é mais conhecida por criar a Campbell Kids em 1905 e outras histórias com
crianças gorduchas como Toddles, Dolly Drake, Bobby Blake, Dolly Dingle, Dolly Dimples e Dotty
Darling.
27
Na Funnies Inc., as mulheres produziram consideravelmente. Grace Jacquet e Edith Ross foram
editoras, enquanto Nina Albright, Dolores Carroll, Lucy Feller, Tarpe Mills, Claire Moe e Ramona
Patenaude assinaram e desenharam quadrinhos. Patenaude e Albright foram particularmente prolíficas em
toda a década de 1940.
60
indústrias, as mulheres intervieram. Lily Renee, Fran Hopper, Jill Elgin, Nina Albright,
Barbara Hall, Janice Valeau estavam entre as mulheres quadrinistas no período que
criaram importantes personagens para os comic books. Nos jornais estavam em alta as
tiras de aventura e, das mulheres cartunistas daquele período que trabalhavam com esse
gênero, duas se destacam: Tarpé Mills e Dale Messick. A tira de aventura
nacionalmente bem-sucedida de Mills contou com uma heroína fantasiada chamada
Miss Fury.
Ao falar sobre o direito das mulheres, Michelle Perrot (2013, p. 143) ressalta que
alguns momentos podem abrir brechas no sistema de poder, favoráveis á reinvindicação
latente da igualdade dos sexos. Pontua que um exemplo disso são as guerras, a autora
destaca que à primeira vista a guerra reforça a ordem dos sexos, com o homem na frente
de batalha e as mulheres na retaguarda. Eles combatem; elas dão o suporte, os
substituem, cuidam deles, esperam e choram por eles. Mas ao mesmo tempo, elas se
imiscuem em lugares e tarefas masculinas nas quais se saem muito bem.
Trina Robbins faz um levantamento de autoras que trabalharam no período da
Segunda guerra na indústria de quadrinho norte americana, em seu livro Babes in Arms
(2017) nos traz além de autoras que trabalhavam com quadrinhos na época, trabalhos
que inseriam a temática da guerra em suas narrativas, é o caso da figura 27, com a
história Wanda the war girl, de Kath O‘Brien.
Contudo, Perrot (2013) ressalta que estas ―brechas‖ tem um prazo de validade,
pois, após a guerra, há uma vontade de restaurar a antiga ordem. ―Os homens quando
retornam tentam recuperar suas prerrogativas; no trabalho, onde muitas vezes as
mulheres devem ceder-lhes o lugar, no lar onde os reencontros se tornam difíceis para
os cônjuges que tinham ficado separados‖ (PERROT, 2013, p. 144). É o que ocorre com
as mulheres na década de 1950. Scott McCloud (figura 28) destaca que a história das
mulheres nos quadrinhos
Não é uma história sem altos e baixos, é claro. A escassez de mão de obra
durante a Segunda Guerra possibilitou algumas conquistas modestas, por
exemplo, mas essas oportunidades foram em grande parte revogadas no clima
da ‗volta à cozinha‘ dos anos 50 (MCCLOUD, 2006, p. 101).
61
Figura 29: Na capa Lulu joga melado na porta do clubinho que ostenta em sua porta os dizeres ―Menina
não entra‖
Pode-se dizer que o meio das histórias em quadrinhos por muito tempo foi um
―clube do Bolinha‖, no qual, predominou tanto a atuação masculina, quanto a crença de
que as mulheres não se interessavam por esse produto, fosse como consumidoras, ou
ainda menos, como produtoras.
Assim, pensaremos como se constituem os espaços tidos como pertencentes ao
masculino, as implicações que isso traz e as ações de outros agentes sociais para forjar
os seus espaços de atuação.
A história Little Lulu (no Brasil, Luluzinha) foi criada por Marge em 1935,
inicialmente suas histórias saíam na forma de cartuns semanais na revista americana na
revista Saturday Evening Post, até que, ―o sucesso fez com que a Wersen Publishing
64
Company obtivesse os direitos para comercializar Little Lulu em forma de comic book
(1945) também em tiras diárias (1955-1967)‖ (GOIDANICH; KLEINERT, 2011, p.
301).
O personagem Bolinha foi o único coadjuvante de Little Lulu concebido por sua
criadora Marge. Os demais foram acrescentados posteriormente por seus
28
colaboradores . Embora tenha sido uma criação de Marge, foi John Stanley que o
batizou de ―Bolinha‖ (―Tubby‖), pois nas poucas vezes em que apareceu nos cartuns de
Marge ele era chamado de ―Joe‖. Mais tarde, nas HQs, ficou estabelecido que o nome
verdadeiro dele é Thomas Tompkins (―Tomás França‖, na tradução brasileira), sendo
Bolinha um apelido por se tratar de um menino gorducho. A história de Marge e seus
personagens tornaram-se icônicos, ganhando versões animadas e seguindo sendo
veiculada até os dias atuais. Marcantes também foram às expressões que surgiram a
partir da dinâmica dos personagens, que embora amigos, por vezes, não partilham do
mesmo espaço. Assim, as expressões "clube do Bolinha‖ e ―'clube da Luluzinha‖ –
são ainda recorrentes ao nos referirmos a espaços onde o outro sexo ―não entra‖.
Daniel Welzer-Lang (2001) ao falar da socialização dos homens, pontua como
espaços masculinos, lugares monossexuados como clubes esportivos, pátios de escola,
dentre outros, são parte integrante da construção do masculino, relevantes para a
construção da identidade e consequentemente da dominação masculina. Ele nomeia
esses espaços/ lugares como ―casa dos homens‖ e diz que
28
Marge criou as histórias de Luluzinha por muito tempo, e ao longo do tempo contou com o auxilio de
vários colaboradores como John Stanley, Wood Kimbrell, Roger Armstrong, entre outros.
65
inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a
uma mulher e ser (mal) tratado como tal (WELZER-LANG, 2001, p. 465).
29
Pierre-Auguste Renoir e Edgar Degas pintores impressionista no século XIX, início do século XX.
67
Figura 20: Trecho do livro de Scott Mccloud, Reinventando os quadrinhos em que fala da situação das
mulheres na produção dos quadrinhos norte americanos.
Assim como Laerte, que relembra outras profissões nas quais o ―gênio‖, a
―criação‖ seria masculina, como a alta gastronomia ou a alta costura, Trina Robbins
(2015) relembra que outras áreas como os games, o cinema se somam aos quadrinhos
como esses espaços dos homens, socialmente construídos como inapropriados para
mulheres. A quadrinista destaca a inevitável insatisfação que ocorre quando as mulheres
adentram esses espaços, desencadeando uma reação à tomada de algo que não lhes
pertenceria.
Se como nos coloca Antoni Guiral ―a nadie se le escapa que la historieta ha sido
tradicionalmente una industria de hombres, editada por varones, realizada por señores y
destinada a lectores masculinos30‖ (GUIRAL, 2017, p. 9), de que maneira este pode se
tornar um terreno no qual as mulheres possam exercer suas potencialidades com
igualdade?
É importante considerar que como conclui Mary Beard, que ―não se pode, com
facilidade, inserir as mulheres numa estrutura que já está codificada como masculina; é
preciso mudar a estrutura‖ (BEARD, 2018, p. 632). E essa é a posição de centenas de
mulheres que trabalham para dar visibilidade à produção das autoras, criar espaços de
produção e diminuir a disparidade inerente a essa indústria.
Entre diversas outras ações podemos citar a exposição 31 Presentes. autoras de
tebeo de ayer e hoy, e o catálogo produzido a partir dela, uma ação na qual as
quadrinistas espanholas, membros do Colectivo de Autoras de Cómic32 se propuseram a
instigar a reflexão sobre as mulheres nos quadrinhos e ―su lugar en una profesión
marcada por una estructura sistémica creada por y para otros‖ (BERROCAL;
30
A ninguém escapa que os quadrinhos tem sido tradicionalmente uma indústria de homens, editada por
machos, realizada por senhores e destinada a leitores masculinos (Tradução minha).
31
―La muestra reúne obras de 52 autoras españolas que conversan con su arte sobre el pasado y presente
de la ficción y el cómic y el papel de las mujeres en el ámbito de la creación de historietas o tebeos‖
(Trecho do catálogo da exposição).
32
Página do coletivo na internet. Disponível em: http://asociacionautoras.blogspot.com/p/sobre-la-
asociacion.html Acessado em: 15 dez. 2019.
69
33
(...) tornar visíveis nossas irmãs nos quadrinhos - autores, coloristas, roteiristas, editores, fanzineras,
pintores, livreiros, acadêmicos, críticos, disseminadores, leitores - porque sabemos que, a partir da análise
das estruturas produtivas e de recepção, as mais óbvias e aqueles que nos cruzam de maneira mais sutil,
deriva a possibilidade de articular nossas estratégias de resposta (Tradução minha).
34
Que não reste dúvidas no quanto houve, há e haverá mulheres desenhando, lendo e pensando os
quadrinhos (Tradução minha).
70
Figura 32: Sophie Endamne, artista do Gabão, África. Ela contribuiu para Koulou chez les
Bantu, uma coleção de histórias em quadrinhos sobre a tribo africana do povo Bantu
Figura 33: webcomics da libanesa Maya Zankoul, seu foco está na vida cotidiana.
35
YOU KNOW WHAT IS EXHAUSTING?
…being at a convention, a busy convention, and having dozens, sometimes hundreds of women in my
signing line, not there because they are being dragged there but because they love comics—taking
pictures with them, admiring their amazing cosplay, listening to their ideas and hopes and favorite
stories, listening to their passion about the characters and the medium in general, talking with endless
female aspiring writers and so many ridiculously talented female colleagues…
73
Parte dessa responsabilidade pode ser atribuída aos editores que minimizam o
número de mulheres que eles têm. Parte disso se resume a uma crença profundamente
arraigada e essencialista de gênero de que as mulheres só leem certos tipos de histórias
em quadrinhos, certos tipos de histórias. E, em parte, cabe a uma mídia tradicional que
está irremediavelmente fora de sintonia com a cultura de quadrinhos como um todo.
É fato que as mulheres têm tido uma crescente participação nos quadrinhos nas
últimas décadas, porém, Scott McCloud (2006) pontua que isso não pode ser
considerado ―um movimento‖, tendo em vista que a atuação das mulheres já vem de
longa data. ―(...) o campo das mulheres cartunistas, em seu conjunto - embora ainda
constitua uma minoria - é numeroso demais, e sua obra é por demais variada, para que o
classifiquemos como uma espécie de ‗movimento‘‖(MCCLOUD, 2006, p. 102).
Ressalta que
Após anos acumulando obras vastas e consistentes em todos os gêneros,
desde a autobiografia, passando pela ficção científica e os paralelos urbanos,
até a alta fantasia, o mundo de cada uma dessas criadoras sobrepuja em muito
a novidade de seu sexo aos olhos de todos, exceto dos leitores mais míopes
(MCCLOUD, 2006, p. 102).
Figura 35: Para ilustrar Scott Mccloud traz imagens de obras de: Jessica Abel, Carol Swain, Carol Lay,
Linda Medley, Lea Hernandez, Colen Doran, Megan Kelso, Trina Robins, Leela Corman, Lynn Johnton,
Jill Thompson
(...) and then having to go to an interview or a panel and being asked why don‘t women read comics.
Disponível em: https://twitter.com/gailsimone Acesso em: 20 dez 2019.
74
Os quadrinhos não são a única produção artística que pode ser considerada como
um ―clube do Bolinha‖, a arte de uma maneira mais ampla pode ser vista sob este viés.
No sentido de que para as mulheres a atuação artística resvala em construções sociais
que tornam o ofício ainda mais desafiador. Neste capítulo discutiremos o que é ser uma
mulher que produz arte, refletindo acerca das possíveis limitações profissionais
encontradas por elas e o lugar atribuído às mulheres nas artes ao longo da história. Em
relação ao tipo de arte foco de nossa pesquisa (as histórias em quadrinhos) pensaremos
sobre o que é ser uma quadrinista no momento atual e as questões que permeiam tal
atividade.
1 - A invisibilidade das mulheres nas artes
Figura 37: Cores de Carol Rossetti
Segundo a teórica Toril Moi (2005) para que possamos fazer uso do termo
―mulher‖ é importante ter em mente que os critérios do discurso são relativos, ou seja,
dependem de quem está falando, para quem, sobre o que falam e em que situação.
Assim, ao falar de ―mulheres artistas‖, não estamos nos limitando a uma categorização
binária de gênero ou a uma unicidade. Considerando ainda que muito do que se entende
como feminino é uma construção social (tema problematizado no quadrinho da série
Cores de Carol Rossetti - figura 37). Porém, em concordância com o trecho do poema
A mulher é uma construção de Angélica Freitas, o qual pondera que ―a mulher
basicamente é pra ser um conjunto habitacional, tudo igual, tudo rebocado, só muda a
cor (...) a mulher é uma construção com buracos demais, vaza‖ (FREITAS, 2013, p. 36),
compreendemos que embora muito seja construído socialmente, não se pode falar em
―mulher‖, mas sim, em mulher (es), com toda sua pluralidade. Claudia de Lima Costa
ressalta que
Podemos reter noções como ―classe trabalhadora‖, ―homens‖, ―mulheres‖,
―negros‖ ou outros significantes que se referem a sujeitos coletivos. Não
obstante uma vez que tenha sido descartada a existência de uma essência
comum (COSTA, 2002, p. 73).
A noção de arte/ artista depende das diferentes épocas, assim como, a visão
acerca do lugar das mulheres na arte – é o que nos diz Maria Helena Bernardes (2014).
Procuraremos observar brevemente esse lugar ocupado por elas, ou atribuído a elas.
Há muito tempo se vem pensando acerca da participação das mulheres no campo
artístico. Com seu artigo Why there been no greatest women artists (Porque não houve
grandes mulheres artistas), Linda Nochlin, no início dos anos de 1970, questionava as
causas da aparente inexistência das mulheres artistas na história, concluindo que tal
ausência se deve mais a exclusão das mulheres das principais instâncias de formação de
carreiras artísticas nos séculos XVIII e XIX, do que a uma falta ―natural‖ de talentos
para as artes. Assim, podemos observar que as limitações encontradas pelas autoras de
quadrinhos são sentidas pelas mulheres artísticas há séculos.
Algumas questões e preconceitos permeiam as ideias acerca do fazer artístico e
as mulheres. Uma delas seria o mito da musa e do gênio, o qual delimita o papel que
cada um dos sexos teria nas artes. Nochlin salienta que ―por trás da pergunta sobre a
77
mulher como artista, encontramos o mito do Grande Artista‖ (NOCHLIN, 2016, p. 15).
Segundo ela, o ―Grande Artista‖ é concebido como ―aquele que detém a genialidade; a
genialidade, por sua vez, é pensada como um poder atemporal e misterioso, de alguma
maneira incorporado à pessoa do Grande Artista‖ (NOCHLIN, 2016, p. 14). Seria,
portanto, a ideia de que o ―Grande Artista‖ é genial, ―possui, em si, todas as condições
para o êxito próprio‖ (NOCHLIN, 2016, p. 19). Nas artes o gênio foi entendido por
muito tempo como uma qualidade do homem artista, já que o papel atribuído para as
mulheres e os homens nas artes, foi o de a musa e criador, respectivamente.
Jacques Leenhardt (2013) evidencia que a criação do mito romântico da musa e
do gênio acarretou uma distribuição tradicional de papéis. Estando o gênio que traz a
singularidade, a originalidade às obras mais proximo dos artistas masculinos. O autor
pondera que as artes não eram terreno para as mulheres, contudo, cita Genevière
Fraisse, filósofa que pontua que após a Revolução Francesa surge um novo tipo de
oposição, com base em um tipo de divisão sexual de papéis entre a ―musa‖ e o ―gênio‖.
Ela expõe que os filósofos do final do século XVII e início do XIX reconhecem que as
mulheres merecem um lugar no espaço de criação, o que por si só é uma afirmação nova
que decorre dos avanços de 1789. Mas esse lugar não podia ser outro que o da ―musa‖
inspiradora, permanecendo o homem como o único pretendente ao desempenho criativo
ao se conceder o papel do ―gênio‖. Para Leenhardt ―tratava-se de um ardil para que nada
mudasse‖ (LEENHARDT, 2013, p. 08).
A construção desses papéis socias está ligado a outra questão, outro preconceito
em relação as artistas, a pergunta: as mulheres podem criar ―obras primas‖? Michelle
Perrot reflexiona acerca dessa desta questão e destaca que para muitos a criação não
seria possível para as mulheres:
Mas as mulheres são suscetíveis de criar? Não, se diz frequente e
continuamente. Os gregos fazem do pneuma, o sopro criador, propriedade
exclusiva do homem. ―As mulheres jamais realizaram obras-primas‖, diz
Joseph de Maistre (PERROT, 2013, p. 96).
Para Linda Nochlin é preciso abandonar a ideia de gênio individual como inata e
imprescindível para a criação da arte, a autora pontua que existem outras questões
envolvidas no fazer de uma ―grande arte‖ que vão para além da inerência de uma
genialidade:
Quando forem feitas as perguntas certas sobre as condições da atividade
artística, sendo a produção da grande arte um subtopico, não haverá dúvida
de que a discussão se dará acerca das concomitantes situacionais de
78
A pergunta ―Por que não houve grandes mulheres artistas?‖ nos leva à
conclusão, até agora, de que a arte não é a atividade livre e autônoma de um
indivíduo dotado de qualidades, influenciado por artistas anteriores e mais
vagamente e superficial ainda por ―forças sociais‖, mas sim que a situação
total do fazer arte, tanto no desenvolvimento do artista como na natureza e
qualidade do trabalho como arte, acontece em um contexto social, são
elementos integrais dessa estrutura social e são mediados e determinados por
instituições sociais específicas e definidas, sejam elas academias de arte,
sistemas de mecenato, mitologias sobre o criador divino, artista como He-
man ou como párias sociais (NOCHLIN, 2016, p. 23-24).
A culpa não está nos astros, em nossos hormônios, nos nossos ciclos
menstruais ou em nosso vazio interior, mas sim em nossas instituições e em
nossa educação, entendida como tudo o que acontece no momento que
entramos nesse mundo cheio de significados, símbolos, signos e sinais
(NOCHLIN, 2016, p. 8-9).
terem contato com o nu masculino dos modelos vivos. Assim, como teoriza Nochlin, a
restrição de acesso ao modelo vivo, gerou a exclusão de várias aspirantes às carreiras
artísticas, ―impedidas de cursarem as aulas de modelo vivo desde as primeiras
academias e, como consequência, de não dominarem as principais habilidades exigidas
aos artistas acadêmicos‖ (SIMIONI, 2007, p. 91).
Segundo Nina Rahe (2013), um caso a ser citado seria o da pintora renascentista
italiana do século XVI, Sofonisba Anguissola, que embora fosse requisitada para
retratos e tivesse obtido certo reconhecimento, teve sua atuação prejudicada pela
ascendente valorização do nu feminino, um tipo de obra que não poderia ser realizada
por uma pintora sem incorrer em transgressões sociais.
Como pintoras mulheres na segunda metade do século XVI, por mais que
chegassem a se destacar em qualidade artística, elas tinham que se restringir a
alguns gêneros específicos como: pintura religiosa (que Sofonisba chegou a
realizar, mas cujas obras ainda não receberam nenhum estudo atento que
permita consolidar a atribuição), naturezas mortas (das quais uma grande
representante feminina um pouco posterior a Sofonisba é a pintora milanesa
Fede Galizia) ou a pintura de retratos. É neste último gênero que tanto
Sofonisba quanto suas irmãs se concentraram (HARGRAVE, 2010, p. 211).
36
Convidada para ser pintora oficial na corte de Filipe II, rei da Espanha.
80
Figura 38: Sofonisba Anguissola em um de seus autorretratos, 1560-1, óleo sobre tela.
Michelle Perrot destaca que sob o pretexto de que o nu não deveria ser exibido
às moças, se negava a elas uma verdadeira aprendizagem.
(...) o acesso à Escola de Belas Artes lhes era vedado, a qual só foi aberta, em
Paris, a partir de 1900, e sob as vaias dos estudantes. Antes dessa data, as
jovens deviam se conformar com escolas e academias particulares, sendo
que, em Paris, a mais célebre foi a academia Jullian. Mestres menores,
como Robert-Fleury, Bastien-Lepage, dispensavam um ensino acadêmico
baseado na arte antiga e no nu. As jovens que a frequentavam vinham de toda
a Europa (PERROT, 2013, p. 101).
37
―Os Salões, grandes exposições que surgem ligadas ao desenvolvimento das academias de belas-artes,
irão disseminar-se internacionalmente e expandir-se a partir do século XVIII, e de maneira
impressionante durante o século XIX‖ (ALVIM et. al., 2017, p. 484).
38
Com a ciência das críticas feitas a essa ideia de Woolf por pensadoras como Gloria Anzaldua (2000),
que ao se referir as mulheres mestizas e periféricas, relembra que estas tem deescrever de qualquer forma,
seja num cantinho da casa de outra pessoa ou à luz de uma vela, a ideia do ―quarto todo seu‖ seria uma
coisa de mulheres brancas de classe média, um lugar onde outros tipos de mulheres não se encaixam.
Woolf é precursora da crítica literária feminista ao colocar no centro da discussão o que significa para as
mulheres escrever e sob quais condições o fazem. Já Anzaldua chama as mulheres a esquecer da ideia do
quarto próprio, para que escrevam ainda que ―sentadas no vaso‖, em defesa de que mesmo com
dificuldades, escrevam. Contudo, acredito que o ponto de vista de Anzaldua não desmerece o
ponderamento de Woolf, pois ainda que as mulheres escrevam, e seja importante que o façam a despeito
de tudo, idealmente seria importante que todas pudessem ter condições para focar e desenvolver seus
talentos.
82
39
Tal é a representação tradicional da mulher como irracional, hipersensível, destinada a ser esposa e
mãe. A mulher como corpo, sexo e pecado. A mulher como ―distinta do‖ homem. (Tradução minha).
83
40
Esta representação constitui a negação da subjetividade das mulheres, e o resultado disso é a sua
exclusão da vida política e intelectual (Tradução minha).
84
estética que se tinha até então, com criações funcionais, simples, industriais de
designs inovadores. Com mestres do gabarito de Paul Klee e Kandisnky, a escola
tornou-se o ―centro de maior convergência entre arquitetura, design, artes visuais, teatro
e novos media expressivos‖ (FUSCO, 1988, p. 263). Contudo, por mais inovadora que
fosse, no que se refere as artistas mulheres, a inovação da Bauhaus é um caso a ser
observado. A matrícula de mulheres eram sim aceitas, e estima-se que nas primeiros
anos elas foram inclusive, maioria em seu quadro de alunos. Entretanto, às mulheres o
acesso não era livre a todas as oficinas disponibilizadas pela Bauhaus. A arquitetura, o
trabalho com metal, a pintura e a escultura eram de difícil acesso para as interessadas.
Às mulheres, mais uma vez, se relegou as ―artes femininas‖ como a cerâmica e a arte
da tecelagem, as quais eram exclusivas para as mulheres.
41
Quando Walter Gropius criousua famosa escola de desing e artes em 1919, a idealizou como um lugar
aberto a ―qualquer pessoa de boa reputação sem importar sua idade ou sexo‖. Um espaço onde não
haveria ―diferença entre o belo sexo e o sexo forte‖. A ideia foi de encontro a uma sociedade onde a
mulher pedia entrada naqueles campos que antes lhe haviam sido vetados. Se a educação artística que
recebiam as mulheres era ensinada dentro da intimidade de seu lar, na Bauhaus, a escola de Gropius, eram
bem vindas e suas inscrições eram aceitas. Tanto é que foram em sua maioria mais mulheres do que
homens que solicitaram sua inscrição. Porém, as própias palavras de Gropius já anunciavam que a
igualdade entre os sexos dentro da escola não seria tão real quanto se pretendia. Desta maneira, a
arquitetura, a pintura e a escultura ficaram reservadas para o ―sexo forte‖, e ao ―belo sexo‖ foi designado
outras disciplinas que não eram, na opinião do fundador, tão físicas. Por que? Porque segundo Walter
Gropius as mulheres não estavam capacitadas física e geneticamente para determinadas artes, já que
pensavam em duas dimensões, diferente de seus companheiros que podiam fazê-lo em três (Tradução
minha).
86
42 A origem desse fenômeno está na separação profissional entre artista e artesão e, mais tarde, no século
XIX, com a divisão entre artista e designer. A arte aplicada se diferencia da obra de arte por ser, a maioria
das vezes, a arte aplicada, um objeto cotidiano.
87
Nesse momento as mulheres ocupam uma posição subalterna, assim como, seu
campo análogo - o das ―artes femininas‖, Perrot (2013) coloca que as abstrações não são
tidas como qualidades próprias das mulheres, assim, as ciências matemáticas, por
exemplo, lhes seriam inacessíveis, da mesma forma a possibilidade de invenção e de
síntese. Por outro lado, são atribuídas a elas outras qualidades como a intuição, a
sensibilidades e a paciência. Dotadas desses atributos, ―elas são inspiradoras, e mesmo
mediadoras do além. Médiuns, musas, ajudantes preciosas, copistas, secretárias,
tradutoras, intérpretes. Nada mais‖ (PERROT, 2013, p. 97). Perrot ironiza essa condição
dizendo que ―Escrever, pensar, pintar, esculpir, compor música… nada disso existe para
essas imitadoras‖ (PERROT, 2013, p. 97). A criação, seja nas artes ou em outras áreas é
tida como própria do homem, assim, para as mulheres resta o uso doméstico da arte.
Escrever foi difícil. Pintar, esculpir, compor música, criar arte foi ainda mais
difícil. Isso por questões de princípio: a imagem e a música são formas de
criação do mundo. Principalmente a música, linguagem dos deuses. As
mulheres são impróprias para isso. Como poderiam participar dessa
colocação em forma, dessa orquestração do universo? As mulheres podem
apenas copiar, traduzir, interpretar. Ser cantora lírica, por exemplo. A cantora
lírica é uma grande figura feminina da arte (PERROT, 2013, p. 101).
mais à frente ao discutir a atuação das quadrinistas, na qual muito desses estigmas ainda
as acompanham.
Além da capacidade intelectual, é importante considerar outra dimensão, a
questão dos espaços das mulheres. As artes femininas também estão ligadas ao fato de
constituírem trabalhos passíveis de serem realizados no âmbito doméstico. Os
―trabalhos de decoração e de bordados eram concebidos como essencialmente humildes,
simples, femininos e, por fim, domésticos‖ (SIMIONI, 2007, p. 102).
43
Tiveram a ousadia de querer mostrar o seu valor em um momento histórico no qual os homens eram o
centro de tudo e as mulheres estavam relegadas ao lar e a família. As expulsaram da pintura e da
excultura, apesar de muitas delas demonstrarem ter grandes talentos para essas artes. Pensaram que se as
relegassem ao tear, de certa maneira aplacariam sua faceta artpistica e as ao lugar que a sociedade lhes
atribuía. Porém, elas se converteram em pioneiras de algo muito apreciado hoje como é o design, e
aprenderam a imprimir nesses objetos próprios do universo doméstico e feminino em que queriam
enterrá-las, todo o talento artístico que não lhes permitiram dedicar em telas, argila e metal. (Tradução
minha).
91
por planos e faces desfiguradas, sendo o Avignon do título da obra uma rua de
Barcelona famosa por seu bordel. Loponte expõe que a obras como estas, consideradas
marcos de seus períodos são ―representações de um determinado modo de ver muito
particular‖. O olhar masculino vai se constituindo como a ―arte universal‖, ―uma
história particular, que sistematicamente vem privilegiando um determinado modo de
ver como o único possível‖ (LOPONTE, 1999, p. 285- 286).
Figura 43: Luncheon on the Grass de Édouard Manet, 1863 e Les demoiselles d’Avignon de
Pablo Picasso, 1907.
(...) essa tela foi pintada para um colecionador de telas eróticas, Kalil Bey,
ex-embaixador turco, que a guardava secretamente sob uma cortina, como
um tesouro escandaloso; e escandalosa era ela, com efeito; nunca ninguém
ousara representar a vulva entreaberta de uma mulher. O quadro, mais tarde,
pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan (PERROT, 2013, p. 62).
Assim, curiosamente, embora por muito tempo as mulheres não pudessem pintar
o nu, estavam constantemente nuas nas telas.
John Berger pondera que esta é uma prerrogativa da arte europeia, o autor
ressalta que em outras tradições como as "artes indiana, persa, africana, pré
colombiana" quando se representa a nudez feminina e o amor sexual, a mulher é tão
ativa quanto o homem. Porém, na arte ocidental proliferaram obras com as
representações de Susana e os velhos. Essa história bíblica tornou-se tema recorrente na
pintura europeia a partir do Renascimento (principalmente na Itália no final do séc.
XVI). A cena ilustra uma história do Antigo Testamento sobre uma mulher que é
surpreendida no banho por dois homens velhos da sua comunidade, que exigem que ela
tenha relações sexuais com eles, a ameaçando caso se negue a tal ato. Na figura 44,
94
temos a representação de Rembrandt do episódio bíblico 44. Nessa obra Susana não
parece assustada com a ameaça ou investida dos velhos, ela ―olha para trás, para a
gente, que a olhamos‖ (BERGER, 1999, p. 58). Berger acentua que nesse tipo de
trabalho a mulher é pintada como um espetáculo ―Você pinta uma mulher nua porque
desfruta olhá-la‖ (BERGER, 1999, p. 58). E se a ideia é desfrutar a imagem, ela se
destina a alguém, pressupõe um expectador – a mulher é pintada para o homem. ―[...]
essa nudez não é expressão de seus próprios sentimentos; é um signo de submissão aos
sentimentos ou demandas do proprietário (o proprietário da mulher e do quadro)‖
(BERGER, 1999, p. 61). Berger enfatiza que o protagonista não é a mulher
representada, mas sim, o homem expectador. Assim, as mulheres, como Susana ―tem
que alimentar um apetite, não ter seus próprios apetites‖ (BERGER, 1999, p. 64).
Berger salienta que no momento da pintura a óleo europeia no qual as mulheres
foram o principal tema, em especial na pintura do nu, constituiu-se uma forma de ver as
mulheres. ―Nos nus europeus encontramos alguns dos critérios e convenções que tem
levado a ver e julgar as mulheres como visões‖ (BERGER, 1999, p. 55). Ressalta que ao
longo do tempo vários temas oferecem a possibilidade de pintar nu. ―Porém, em todos
eles se conserva a implicação de que o tema (a mulher) é consciente de que lhe
contempla um expectador‖ (BERGER, 1999, p. 57). ―Na pintura europeia a óleo, o nu é
apresentado usualmente como uma manifestação admirável do espírito humanista
europeu. Este espírito era inseparável do individualismo‖ (BERGER, 1999, p. 72). Para
Berger uma contradição - ―De um lado, o individualismo do artista, do pensador, do
mecenas, do proprietário; de outro, a pessoa objeto de suas atividades - a mulher -
tratada como uma coisa ou como uma abstração‖.
Como ressalta Loponte, a sexualidade feminina é colocada em discurso no
campo das artes visuais ―a partir de um determinado olhar masculino, tanto no que diz
respeito às representações de nus femininos, como às produções de mulheres artistas‖
(LOPONTE, 1999, p. 284).
44
História na bíblia cristã no Livro de Daniel, Capítulo 13: [Susana] Disse às jovens: «Trazei-me óleo e
unguentos e fechai as portas do jardim, para eu tomar banho». Fizeram o que ela tinha mandado e, tendo
fechado as portas do jardim, saíram pela porta traseira, para irem procurar o que lhes tinha sido pedido;
não sabiam que os anciãos estavam lá escondidos. Logo que elas saíram, os dois homens precipitaram-se
para junto de Susana e disseram-lhe: «As portas do jardim estão fechadas, ninguém nos vê. Nós ardemos
de desejo por ti. Aceita e entrega-te a nós. Se não quiseres, vamos denunciar-te. Diremos que um rapaz
estava contigo e que foi por isso mesmo que tu mandaste embora as criadas». Susana bradou angustiada:
«Estou sujeita a aflições de todos os lados! Se faço isso, é para mim a morte. Se não o faço, nem mesmo
assim vos escaparei. Mas é preferível para mim cair em vossas mãos sem ter feito nada, do que pecar aos
olhos do Senhor».
95
O discurso mais comum que chega até nós sobre a arte (...) ainda é a
interpretação pertencente a um sistema de significação muito particular, no
qual um certo modo de ver masculino é dominante. Através de
representações artísticas e da produção de sentidos em torno dessas
representações exerce-se o poder. Poder este que de uma forma não unitária,
estável ou fixa vem privilegiando e reforçando um determinado ‗olhar
masculino‘. Poder que, sem dúvida, produz efeitos nos nossos modos de ver e
entender questões de gênero e sexualidades (LOPONTE, 1999, p. 285).
Figura 45: Na imagem autobiográfica Chantal Montellier reflexiona se as condições de atuação da mulher
nas artes teriam se alterado desde o século XIX, momento no qual lhe destinavam o papel de musas em
contraposição ao papel de gênio criador do homem.
Perrot salienta que o ―nu, esse tabu absoluto, foi a conquista das mulheres no
século XX‖ (PERROT, 2013, p. 102), já que durante muito tempo o nu feminino esteve
relacionado ao homem e não à mulher. Segundo Nina Rare (2013, p. 21) Suzanne
Valadoni, teria sido uma pintora muito importante nessa conquista do nu, pois, além de
dedicar-se ao tema, transgride ao rejeitar a noção do corpo feminino como uma
superfície controlada pelo olhar masculino, retratando figuras femininas fortes, vestidas,
que fumavam e liam livros.
Porém, tendo em vista que ―política, poder e arte articulam-se nas imagens‖
(LOPONTE, 2002, p. 285), o olhar masculino pesa sobre a produção feminina. ―Quando
historiadores e críticos de arte referem-se às mulheres artistas, a alusão a sua
sexualidade parece algo inevitável, interferindo no julgamento das obras‖ (LOPONTE,
2002, p. 287). Ao falar da escultora Camille Claudel, Anne Higonnet relembra que aos
olhos dos homens que controlavam o mundo da arte, ―sua sexualidade eclipsava sua
obra porque era uma mulher e, portanto, de acordo com as expectativas aprendidas, era
um ser inatamente mais sexual que intelectual‖ (HIGONNET, 1994, p. 39). Sua
sexualidade era vista como objeto do desejo de seu amante Rodin, ―e por isso a história
dela só podia existir como parte da história do homem‖ (HIGONNET, 1994, p. 39).
Embora a sexualidade apareça nas obras de ambos, Higonnet enfatiza que enquanto para
Rodin o exercício da sexualidade através das obras apenas o legitimava como gênio
criativo, no que se refere ao trabalho de Camille fez com que a artista tivesse algumas
de suas obras rejeitadas, devido a ―seu violento acento de realidade‖ e sua
―surpreendente sensualidade na expressão‖ (HIGONNET, 1994, p. 39).
era chocante, enfrentei depósitos e subsolos e muita coisa foi e está sendo encontrada‖.
A organização atuante desde 2006 dedica-se a restaurar e expor obras negligenciadas
feitas por mulheres e estão nos depósitos. Na apresentação do site se lê ―Ao dar voz à
história artistas mulheres AWA resgata e recupera a "metade oculta" da arte de
Florença‖.
A AWA estima que 1500 trabalhos de mulheres estejam atualmente ―estocados‖
em vários depósitos de Florença, e que a maioria não seja visto pelo público há séculos.
Porém, quanto à relevância da iniciativa pode surgir o questionamento: todos esses
trabalhos são de alta qualidade artística? Jane Fortune afirma que não poderemos saber
se nunca os virmos! E que seria uma visão equivocada acreditar que apenas homens são
capazes da grandiosidade estética. Já que a questão pode estar relacionada às formas de
produção da arte. Tendo em vista que os pintores e escultores eram artesãos
trabalhavam em oficinas familiares, assim como o faziam os alfaiates, ferreiros,
joalheiros e marceneiros. Sendo assim, poucas pinturas eram de fato produzidas por
uma única mão, habitualmente apenas rostos e mãos eram trabalhados pelo ―mestre‖.
Fortune ressalta que a marca do artista masculino era uma ficção, pois eram comuns
casos como o de Marietta Tintoretto que trabalhava com o pai em Veneza ou Barbara
Longhi que trabalhava com o irmão em Ravena. Trabalhos esses vitais para a economia
familiar, mesmo que não fossem reconhecidos como tal no próprio atelier.
Fortune pontua que a invisibilidade das autoras está relacionada à crença na
impossibilidade da genialidade feminina. Pois, ainda que tenham sido produzidas por
artistas como a bolonhesa Elisabetta Sivani (1638 –1665) que produziu mais de 200
peças em 13 anos de carreira, sendo conhecida por sua arte “religiosa suave”. A artista
comandava a oficina da família com suas irmãs, sustentando o pai quando este já não
podia mais pintar, fundou uma escola de arte para jovens meninas. Uma mulher com
naturalidade de expressão, bem sucedida em sua arte, no entanto, assim como tantas
outras, acusada de não poderem criar sua arte sem um homem que a ajudasse.
98
Os autores nos trazem uma representação da maneira como isso ocorre (figura
51). O olhar masculino que conectado ao do ator, que por sua vez foi capturado pelas
câmeras e transmitido pela tela do cinema, permitindo que o expectador tenha a visão da
cena (ou mais precisamente da mulher) como se estivesse na posição do ator. A imagem
da mulher é capturada de maneira a satisfazer o público masculino/ heterossexual. ―A
personagem feminina é então duplamente passiva, objeto erótico para o personagem e
para o expectador‖ (HUSSON; MATHIEU, 2016, p. 68).
Embora a expressão male gaze tenha surgido para referir-se ao cinema, ela
apenas nomeia aquilo que já havia sido observado em produções artísticas de outras
épocas, como a pintura a óleo europeia. Vimos que ―na forma-arte do nu europeu, os
pintores e os espectadores-proprietários eram usualmente homens, e as pessoas tratadas
como objetos, usualmente mulheres‖ (BERGER, 1999, p. 73).
como vemos - produz efeitos sobre os sujeitos, produz relações de poder, muitas vezes
de forma sutil e sedutora‖ (LOPONTE, 2002, p. 290). Assim, como destaca Tomaz
Tadeu da Silva é ―pelo olhar que o homem transforma a mulher em objeto: imobilizada
e disponível para o seu desfrute e consumo‖ (SILVA, 1999, p. 62).
Contudo, é importante pensar que a arte, como diversos outros campos, é um
sim um local de exercício de poder, mas também de disputas e resistências. ―Se as
relações de poder pendem em determinados períodos históricos e culturais para um
determinado modo de ver, isso não quer dizer que assim o sejam indefinidamente. Não
há um discurso monolítico e inabalável sobre a arte, imune a fraturas, resistências,
deslocamentos‖ (LOPONTE, 2002, p. 290-291). E no que se refere aos quadrinhos, as
autoras e teóricas, em especial nas últimas décadas, tem trabalhado árdua e
conscientemente para romper com o male gaze nas HQs (falaremos mais profundamente
sobre isso no capítulo 6).
O questionamento do lugar atribuído às mulheres nas artes plásticas ou na
literatura de outrora, nos ajuda a desconstruir formas naturalizadas de olhar para essas
obras e nos permitem constatar que seja na ―arte universal‖ ou em manifestações da
cultura moderna e contemporânea como as histórias em quadrinhos, o poder permeia a
imagem que se constrói e veicula sobre as mulheres. Assim como, limita em grande
medida a atuação das mulheres como produtoras, impelindo-as a criar espaços próprios
e articulações a fim de viabilizar sua produção.
Maecoussis, Hannah Höch e Raul Hausmann, Frida Kahlo e Diego Rivera, Natalia
Goncharova e Mikhail Larionov, Dorothea Tanning e Marx Ernest, Valentine e Jean
Hugi, Vieira da Silva e Árpad Szenes, Joan Mitchell e Jean-Paul Riopellw, Helen
Frankenthaler e Robert Motherwell, dentre outras.
Cécile Debray (2013) pontua que o casamento oferecia independência da família
em uma época em que o celibato não era aceitável para as mulheres. ―Sônia Delaunay
arrumou um casamento de fachada com Wilhelm Uhde e Marie Laurecin se casou com
um homossexual‖ (DEBRAY, 2013, p. 17). Debray relata que estar num relacionamento
frequentemente facilitava a participação das mulheres na vida da vanguarda.
[...] Nas vanguardas, as mulheres eram muito poucas, exceto quando tinham
relações familiares com seus representantes. Foi o que aconteceu com Berthe
Morisot, cunhada de Édouard Manet, que a elegeu um dos seus modelos
favoritos, sem jamais representá-la como pintora. Berthe não tinha sequer um
ateliê próprio. (PERROT, 2013, p. 103).
Embora a relação com um pintor, seja marido, pai, amante, traga possibilidades
de participação no mundo das artes, ela traz também outras questões. Perrot cita uma
fala de Berthe crendo que esta sofria com sua marginalização artística: ―Não creio que
tenha jamais havido um homem que tratasse uma mulher de igual para igual, e isso é
tudo o que eu pediria, pois sei que valho tanto quanto eles‖ (PERROT, 2013, p. 103).
Alguns autores como Loponte argumentam que isso perpassa um controle das mulheres,
no sentido de que as mulheres precisam ser ―governadas‖, na acepção foulcaultiana do
termo. Como crianças que precisam ser conduzidas, as artistas e suas obras se justificam
a partir de um outro – um homem.
No caso das mulheres artistas elas são sempre apêndice de alguém: filha de,
esposa ou amante de, mãe de … Elas e suas realizações precisam ser
justificadas a partir da sua relação com outros. Como crianças que precisam
ser conduzidas, as mulheres artistas e suas produções são sempre colocadas à
prova, e a sua capacidade de criação além do limite da maternidade e
reprodução é regularmente questionada, legitimando a arte como produto da
criatividade e da genialidade masculina (LOPONTE, 2002, p. 288).
Ana Paula Simioni (2007) também debate o assunto e diz que essa associação
como esposas e filhas de homens artistas acarreta, em boa parte das vezes, um
desprestígio as artistas.
Na figura 53, uma imagem do blog Fotos de Comics, o qual se dedica a trazer
fotografias antigas de autores e de histórias em quadrinhos. Na postagem em questão,
feita de 2009, embora o título se refira as mulheres nos quadrinhos (Las mujeres em el
comic), a imagem seja uma foto da participação de três mulheres envolvidas na
produção de quadrinhos, integrando uma mesa em um evento em San Diego na década
de 1980, com a temática das mulheres nos quadrinhos, na identificação das figuras que
aparecem na imagem o destaque vai para uma figura masculina. O nome das artistas
vem acompanhado de sua atividade nos quadrinhos: Catherine Yronwode (escritora,
106
crítica e editora de cômicas), Carol Lay (cartunista) e Melinda Gebbie (cartunista e atual
mulher de Alan Moore).
―Atual mulher de Alan Moore‖... Seria realmente necessário acrescentar essa
―qualidade‖ na biografia de uma quadrinista atuante desde os anos 1970, a qual iniciou
sua carreira nos quadrinhos underground norte americanos e produz significativamente
até os dias atuais?
Contudo, ao se pesquisar sobre a autora, é comum que essa informação venha
adicionada. Será que não é mesmo possível falar de Melinda Gebbie sem fazer
referência a Alan Moore, ou de Aline Kominsky sem mencionar Robert Crumb?
Embora certamente estes sejam quadrinistas célebres e parte constituinte da vida das
autoras como seus maridos e como parceiros em algumas criações, ambas possuem
obras substanciais e merecem ser olhadas como sujeitos autônomos.
Outro exemplo no mundo dos quadrinhos é Lynn Varley. Quando falamos de
obras importantes como Batman: O Cavaleiro das Trevas, 300 de Esparta, Elektra
Vive, Big Guy e Rusty, Ronin, nos atemos ao nome de seu criador, o laureado Frank
Miller, sem observar que todas as obras contaram com o trabalho de colorização de
Varley (figura 54). O quadrinho tem inúmeras possibilidades gráficas de expressão,
sendo a cor uma delas. A colorização pode passar o sentimento desejado pelo artista em
um determinado momento ou dar a atmosfera certa pra uma cena.
Beatriz Calil, em seu livro Pequeno Guia de Incríveis Artistas Mulheres (2018),
além de um levantamento acerca de artistas que sempre foram consideradas menos
importantes que seus maridos (como diz o subtítulo do livro), traz também um trabalho
fotográfico no qual mantém as artistas das quais vai falar, e apaga digitalmente os
homens que estariam com elas nas fotos originais, deixando apenas suas silhueta. A
exemplo, nas figuras 55 e 56, inverte o que comumente ocorre e identifica as fotos
como Françoise Gilot e seu companheiro e Frida Kahlo e seu marido, apagando Picasso
e Diego Rivera, dando protagonismo às autoras das quais vai tratar e causando
estranhamento com a supressão dos homens.
108
Em uma das histórias trazidas por Calil, a pintora expressionista norte americana
Elaine de Kooning, em retrocesso relembra a participação na década de 1950 em uma
exposição focada em casais de artistas: a exposição Artists: Man and Wife foi realizada
em 1951 na Sidney Janis Gallery que incluiu trabalhos de outros casais como Jackson
Pollock e Lee Krasner. A pintora pondera que ―parecia uma boa ideia na época, mas
mais tarde eu considerei que significava rebaixar um pouco as mulheres. Havia algo
sobre mostrar as mulheres-artistas anexas aos artistas-verdadeiros‖ (KOONING apud
CALIL, 2018, p. 23).
Em 201645 Séverine Sófio publica o artigo How to succeed in the arts without
being a man? Handbook for women artists of the 19th century (Como ter sucesso nas
artes sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX). Nesse artigo
ela dá conselhos para artistas mulheres do passado para que sejam reconhecidas em vida
e organizem a preservação póstuma de seus nomes e suas obras, com vistas a inscrevê-
los na história.
Sófio (2018) usa a ironia para tratar a questão das mulheres na arte, e
desenvolve uma série de conselhos para as mulheres artistas para que estas alcancem o
sucesso. Seus conselhos são resultantes de um conjunto de dados e pesquisas que
evidenciam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres artistas do Oitocentos no que diz
respeito a terem seus nomes e obras reconhecidos pela história da arte46.
Entre os conselhos de Sófio 47 está a questão da importância do reconhecimento
da autoria para a posteridade. A autora utiliza o caso de Constance Mayer para
desenvolver um de seus argumentos:
45
Utilizo na tese a versão publicada no Brasil em 2018: SOFIO, Séverine. Como ter sucesso nas artes
sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX. In: Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros. n. 71, p. 28-50, dez. 2018.
46
A autora adverte em seu artigo: ―Não é necessário dizer que estas dicas devem ser tomadas com toda
a distância da ironia. Essa ironia, no entanto, é constituída de dados científicos confiáveis e baseia-se
na ideia de que o reconhecimento e o conhecimento cultural são socialmente construídos‖.
47
Agrupados em 5 categorias: 1. Partir com boas cartas na mão; 2. Fazer as boas escolhas; 3. Não perder
tempo em se fazer (re)conhecer; 4. Saber se vender; 5. Pensar na posteridade.
110
ter assinado vários de seus quadros; e sendo a sua assinatura feita de modo
original ―C. Mayer Pinxit.‖, seguida da data. Em 1931, um quadro atribuído a
David, retratando um garoto com ar zombeteiro, entrou na coleção do Museu
Nelson-Atkins, na cidade de Kansas. A assinatura havia sido parcialmente
rabiscada e refeita com o nome de David. Depois, um novo rabisco foi
inscrito, revivendo a assinatura primeira ―Pinxit./1799‖ (...). A tela se
apresenta, hoje em dia, com uma assinatura parcialmente apagada, e nós
devemos a Margaret Oppenheimer a sua reatribuição à jovem Constance
Mayer, numa época em que o estilo de sua pintura estava mais próximo ao de
David que ao de Greuze (SÓFIO, 2018, p. 43).
Sófio aconselha a partir do caso de Mayer ―às nossas futuras artistas que evitem
ficar muito próximas de um artista mais conhecido do que elas, em particular se essa
proximidade for também estilística‖ (SÓFIO, 2018, p. 44).
Isso porque não apenas elas serão colocadas sempre à sua sombra, mas,
quando forem evocadas, serão condenadas a aparecer eternamente como
―alunas de‖ tal artista célebre, mesmo quando não for absolutamente o caso.
Os exemplos são inúmeros na história da arte, e estão presentes mesmo
dentre as mais célebres de nossas artistas. Até hoje é surpreendente que se
veja Berthe Morisot ser qualificada como aluna de Manet (SOFIO, 2018, p.
44).
Referindo-se ao século XVI, Nina Rahe relembra que assim como Sofonisba
Anguissola, tivemos outra grande retratista – Marietta Robusti.
Rahe nos traz uma história significativa acerca de uma obra, O retrato de um
homem velho com garoto, de 1518, ―é o único quadro que a maioria dos estudiosos
atribuíram a Marietta. Durante muito tempo, a obra figurou entre os melhores trabalhos
de Tintoretto. Somente em 1920 as iniciais de sua filha foram descobertas‖ (RAHE,
2013, p. 19). Contudo, embora a autoria tenha sido reconhecida, outro ponto importante
precisa ser considerado. Rahe relembra que como acontece nos dias de hoje, quanto
maior a fama do autor, maior o preço atingido pelas obras de arte. ―Por esse motivo,
atribuíam-se a colegas homens mais conhecidos muitos trabalhos produzidos por
mulheres‖ (RAHE, 2013, p. 19).
Contudo, ser considerada a ―esposa de...‖, ser relegada ao lugar de uma ajudante,
ou não receber o devido valor por seu trabalho, não é o pior que pode ocorrer a uma
mulher artista e a sua obra no que concerne às relações de parcerias e afetivas. Muitas
111
Elaine de Kooning, Lee Krasner assinava as obras apenas com suas iniciais, para que
seu trabalho não fosse julgado a partir de sua fala de ‗esposa‘‖ (CALIL, 2018, p. 25). É
bastante crível, porém, é possível também que a questão estivesse ligada à
desvalorização das obras de autoria feminina. Nina Rahe cita um exemplo da menor
valoração dada às obras das mulheres:
Embora faça parte de uma conjuntura histórica e social, a não assinatura das
obras, com o passar do tempo, produz um apagamento das possíveis autoras. Entretanto,
mesmo na contemporaneidade, momento no qual o reconhecimento da autoria tem sido
valorizado e questões de copyright possuem legislações específicas algumas artistas
ainda não assinam suas obras. Como no caso de Jeanne-Claude Denat. A artista de
Land-Art produziu e participou de muitos projetos, grandes instalações nas quais
cobriam espaços como paisagens naturais, monumentos, prédios, etc., sempre em
parceria com seu marido Christo. Até pouco tempo apenas o nome de Christo constava
na autoria. Jeanne-Claude relatou que não assinava por razões práticas, preferindo usar
apenas o nome do marido. Só tempos depois é que seu nome foi incluído nas obras e os
dois passaram a assinar conjuntamente.
Outra questão que dificulta o reconhecimento de artistas mulheres são os
pseudônimos utilizados. O uso de pseudônimos e nomes ambíguos foram estratégias
bastante usadas pelas mulheres artistas, que lançavam suas obras com uma assinatura
diferente daquela que foi registrada em cartório, um nome ―artístico‖.
Dentre as autoras que recorreram a essa estratégia, podemos citar Nair de Teffé,
uma das primeiras caricaturistas brasileiras, Nair publicava seus trabalhos (caricaturas,
charges e ilustrações) nos periódicos brasileiros do início do século XX, a autora
assinava seus trabalhos com ―Rian‖ – a inversão de seu nome, que escrito de forma
contrária tornava-se um nome masculino (figura 57).
Fonte: Black Fury Newspaper Strip (April 6, 1941) Disponível em: http://theconversation.com/hidden-
women-of-history-tarpe-mills-1940s-comic-writer-and-her-feisty-superhero-miss-fury-110179 Acesso
em: 11 fev. 2020.
115
Outro caso é o de June Tarpé Mills, quadrinista norte -americana, que no final
dos anos 1930 fez a opção de publicar seus trabalhos assinando apenas com seu nome
do meio ―Tarpé Mills‖, Mills foi a criadora da primeira heroína dos quadrinhos nos
EUA – Miss Fury (figura 58). Assim como, sua contemporânea Dalia Messick (a autora
assinava como Dale Messick), criadora da personagem Brenda Star (figura 59), uma
glamourosa e aventureira repórter, tiveram uma atuação muito relevante como
quadrinistas, porém, ambas sob nomes ambíguos.
Jay V. Jay foi o pseudônimo conjunto das escritoras Virginia Vincent, Jeannette
Kiekintveld e da artista Laura Johnson, que co-criaram a tira de jornal Modish Mitzi na
década de 1920. A tira serviu como uma coluna de moda gráfica, aconselhando os
leitores das tendências contemporâneas. O personagem de Mitzi era baseado na própria
Johnson, e suas amigas Polly e Adelaide eram baseadas em Vincent e Kienkintveld,
respectivamente. Várias outras autoras não utilizavam seus nomes de registro em suas
obras, como Marjorie Buell - ‗Marge‘ ou Nini Marshall - anos 1930 - Argentina -
‗Mitzi‘. Diversas podem ser as razões para isso (publicar sem preconceito em círculos
dominados por homens; liberdade para tratar de certos temas; experimentar a liberdade
do anonimato; visando alcançar o público masculino ou simplesmente habitar outras
identidades, entre outras), porém, o uso de pseudônimos pode acabar gerando um
paradoxo na história das quadrinistas, pois, ao mesmo tempo em que aumentam a
possibilidade de popularidade das obras, colaboram para a invisibilidade e o
reconhecimento futuros. Caitlin McGurk é a curadora da Biblioteca Billy Ireland, a qual
116
abriga uma grande coleção de quadrinhos. Em entrevista ao jornal The Guardian, ela
sublinha que, embora as mulheres estejam atuando nos quadrinhos a mais de 100 anos.
Um dos problemas, segundo ela, é que durante a primeira metade do século XX, o uso
de pseudônimos masculinos ou andróginos para aumentar a popularidade de suas obras
dificulta a sua identificação na atualidade.
Desde longa data, as mulheres artistas lançam mão desse recurso, em especial
em contextos nos quais as mulheres eram socialmente condicionadas a deixar a vida
pública ao se casarem. Sandra Vasconcelos relembra que durante os séculos XVIII e
XIX cristalizou-se o papel da mulher como primordialmente mãe e esposa dentro da
família burguesa. ―A esposa era a responsável pelo mundo doméstico, da porta da casa
para dentro. Muitas delas não tinham sequer acesso à educação formal. E toda mulher
que tinha algum tipo de ambição para, além disso, era um ponto fora da curva"
(VASCONCELOS, 2018, n.p.).
A literatura é repleta de romancistas que usavam pseudônimos, ou publicavam
suas obras anonimamente. É o caso da francesa Amantine Dupin ou ―George Sand‖.
Para Michele Perrot (2013), Sand constitui o próprio exemplo da posição fronteiriça -
de uma ―mulher escritor‖. A prolífica escritora do século XIX ousava na junção de
contos de amor e críticas às normas sociais, além dela mesma provocar controvérsias
nos círculos sociais parisienses com o uso de roupas masculinas, com seu hábito de
fumar e com seus casos amorosos. Acerca da escolha do pseudônimo, Perrot pondera se
Contudo, é interessante observar que mesmo uma autora que publica e é aceita
nos círculos sociais nos quais circulavam os artistas da época, ainda é ―mulher‖. Perrot
diz que mesmo os homens que reconheciam o valor literário de Sand cultivavam uma
misoginia licenciosa, a autora cita os irmãos Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt,
escritores franceses do século XIX que para ―elogiar‖ Sand diziam coisas como: ―ela
devia ter um clitóris tão grosso quanto nossos pênis‖.
Dentre outras romancistas podemos citar Mary Ann Evans ou ―George Eliot‖, as
irmãs Charlotte, Emily, Anne Bronte e seus pseudônimos: ―Currer‖, ―Ellis‖ e ―Acton
Bell‖, respectivamente. Já Jane Austin publicava anonimamente, a capa de seu primeiro
romance, Orgulho e Preconceito, diz apenas: "Um romance. Em três partes. Escrito por
uma dama". Austen, não publicou nenhum romance assinado em vida. Os seus livros
seguintes eram creditados à "mesma autora" dos anteriores.
Figura 61: Folha de rosto da primeira edição de Sense and Sensibility (1811). Folha de rosto da
primeira edição de Pride and Prejudice (1813).
Sue Lanser (2018) enfatiza que no século XIX publicar anonimamente ficou
menos comum. Escrever se tornou profissão e os romances se tornaram mais
respeitados como gênero. A partir daí, ficou mais difícil para as mulheres terem
autoridade cultural para assinar livros de ficção. Destaca que quando os romances se
tornaram mais respeitados, no entanto, usar pseudônimos ficou mais comum. Ao expor
estratégias como o uso de nomes ambíguos e pseudônimos busco a reflexão acerca das
formas de inserção forjadas e do lugar ocupado pelas mulheres nas artes.
48
Realizada em Porto Alegre – RS, em 2018.
119
questão da visibilidade das mulheres na arte, seja na literatura, na poesia ou nas artes
plásticas. Na figura 63, uma das produções de Aline Daka, utilizando a imagem da
poeta beatnik Diane Di Prima e um de seus poemas da década de 1970. Acrescido da
frase: ―Nuca seremos artistas.... estamos ocupadas demais!‖
Figura 63: Imagem da poeta Beatnik – Diane Di Prima – poema da década de 1970.
49
A exposição foi trazida para o Brasil, com o nome Elles: Mulheres Artistas na Coleção do Centro
Georges Pompidou. Sediada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, a mostra contava com
120 trabalhos datados de 1907 a 2010, de 65 artistas.
121
Na figura 64, a história de Helo D‘angelo utiliza um trecho da obra Um teto todo seu de
Virgínia Woolf para problematizar algumas visões sobre as mulheres, como o fato de
Napoleão achar que elas seriam incapazes de aprender ou segundo Mussolini de criar.
Esse tipo de visão traz consequências para as atuações profissionais e vivências sociais
das mulheres. De acordo com Daniel Welzer-Lang ―o paradigma naturalista da
dominação masculina divide homens e mulheres em grupos hierárquicos, dá privilégios
aos homens à custa das mulheres‖ (WELZER-LANG, 2001, p. 465).
E para isso é importante que as mulheres tenham acesso aos meios de formação,
condições para criar e comercializar de seus trabalhos – o que por muito tempo não
aconteceu. Ainda que o cenário tenha melhorado em tempos atuais, não se pode falar
em total paridade de condições. Marie-Jo Bonnet (2009) ao ser questionada se considera
o mundo da arte sexista, cita o caso do Pompidou e pontua que
Não é o meio que é sexista, mas o poder artístico, as instituições que ditam os
gostos, os valores, a validade de um processo. E marginalizam mulheres
artistas que não estão no pote comum. O Centro Pompidou é dirigido por
homens que não correm riscos. A coleção conta com 16% de mulheres, das
50
quais 5% estão permanentemente expostas (Tradução minha) (BONNET,
2009, n.p.).
Contudo, é importante pensar que como pontuam Howard Becker (1982) e Ana
Paula Simioni (2007) embora o mundo da arte seja fruto de uma prática coletiva
conformada por regras construídas por meio das interações de agentes concretos. No
qual os sujeitos lidam com as determinações do contexto de um modo ativo e não
apenas se sujeitando docilmente as regras impostas. Segundo Simioni no caso das
mulheres, isso significa ―perceber que estas, por mais que enfrentassem obstáculos
concretos para se afirmarem como artistas, possuíam capacidade de intervir, modificar,
e mesmo recriar sua própria condição dentro de um contexto determinado‖ (SIMIONI,
2007, p. 92).
Figura 65: Cartaz produzido pelo coletivo Guerilla Girls
50
Ce n‘est pas le milieu qui est sexiste, mais le pouvoir artistique, les institutions qui dictent les goûts, les
valeurs, la validité d‘une démarche. et marginalisent les femmes artistes qui ne sont pas dans le pot
commun. Le Centre Pompidou est dirigé par des hommes qui ne prennent aucun risque. La collection
compte 16% de femmes, dont 5% sont exposées en permanence.
123
Entre os cartazes das Guerilla Girls que circularam em Nova York no início dos
anos 198052, havia um que apontava ―As Vantagens de Ser uma Artista Mulher‖.
Dentre essas vantagens estavam ―trabalhar sem a pressão do sucesso‖, ―não ter o
constrangimento de ser chamada de gênio‖, ou ainda, ―estar segura de que,
independente do tipo de arte que você faz, será rotulada de feminina‖. Ao final do cartaz
51
Lilian Maus (2006) pontua que desde a realização do cartaz até hoje, pouco dessa política tem mudado:
―Em 2011, segundo aponta o artigo Mulheres ainda são minoria na arte, um novo levantamento do grupo
foi realizado, no qual se constatou que diminuíram tanto a quantidade de mulheres nas seções de arte
moderna e contemporânea (de 5% para 4%), quanto a de nus femininos (de 85% para 76%)‖ (MAUS,
2014, p. 06).
52
O coletivo atua anonimamente utilizando máscaras de gorila e pseudônimos de grandes artistas
mulheres da história da arte. Seguem atuando, expondo através de dados estatísticos e citando
nominalmente quais galerias, museus e eventos não expõem um número significativo de obras feitas por
artistas não brancos e mulheres. Atualmente, seu trabalho migrou em grande parte para a internet, onde
exercem presença ativa pelas redes sociais.
124
As ativistas usam da ironia para perpassar por algumas situações com as quais as
mulheres artistas muitas vezes têm que lidar. Ao dizer, por exemplo, que uma vantagem
seria a de poder trabalhar sem a pressão do sucesso, as Guerrilla tocam no fato de que
não se espera grandes obras primas de artistas mulheres. Outras questões pontuadas
como saber que podem ser reconhecidas apenas aos oitenta anos, ou ver a suas ideias
serem tomadas por outros enfatizam o ingrato papel das mulheres nas artes.
Segundo Flávia Leme Almeida (2010) muitas foram as mulheres que nos séculos
XVIII e XIX lutaram, mesmo que de forma parcial, para que, somente a partir da
segunda metade do século XX, se começasse a colher os frutos plantados por essas
pioneiras. Destaca que além das resistências, alguns fenômenos se conjugam para
favorecer esta participação: as lutas feministas do final do século XIX, a evolução das
técnicas, o crescimento do público amador e o aumento dos tempos livres são fatores
que conduzem, a partir dos anos cinquenta, a uma difusão maciça das obras de arte.
125
Ressalta que as novas estruturas da produção cultural, ―que dão origem, em particular, a
um salário importante permitem às mulheres conquistar uma maior autonomia e
visibilidade social‖ (ALMEIDA, 2010, p. 59). Para a autora, o século XX é responsável
por uma participação sem precedentes das mulheres na vida cultural nas sociedades
ocidentais. Sendo as mulheres ―cada vez mais numerosas nas profissões intelectuais e
artísticas, com uma aceleração sensível na segunda metade do século‖ (ALMEIDA,
2010, p. 351). Michelle Perrot é mais cautelosa ao responder se no século XX, as coisas
mudaram.
Sim, mas sem sobressaltos. Por um lado, existem cada vez mais pintores,
homens e mulheres, com destaque para os ateliês da Europa central dos anos
1920-1930 no expressionismo alemão, com a Blaue Reiter, a Bauhaus. Como
Jean Arp e Sophie Taeuber-Arp, Robert e Sonia Delaunay. Por outro lado,
uma minoria de mulheres é independente, como Vieira da Silva, Frida Khalo,
Niki de Saint Phalle. Mas não deixa de ser uma minoria e os grandes nomes
são masculinos. Isso se acentua com relação à escultura, como na história
dramática de Camille Claudel e na de Louise Bourgeois, sendo esta mais
tranquila. A arquitetura, arte da planta e do canteiro de obras, afirma-se como
viril por excelência. Com exceção, a italiana, Gae Aulenti (PERROT, 2013,
p. 104).
Figura 68: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
53
Cris Camargo publica seus quadrinhos on-line na página: Disponível em:
https://www.facebook.com/sucodekaiju/ Acesso em: 23 dez. 2019.
127
Figura 69: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
Segundo Camargo (figura 68), ser quadrinista mulher é ter eu lidar com
situações como ser ignorada quando tem homens presentes. No quadrinho, relata alguns
momentos vividos nos eventos de quadrinhos, retratando cenas nas quais o leitor se
dirige apenas à figura masculina presente e não a ela, ainda que seja ela autora. Outro
ponto colocado pela artista é o fato de ter seu trabalho desacreditado (figura 69), na
cena, ainda que ela esteja sentada à mesa expondo seu trabalho, o homem indaga se
Cris, responsável pela autoria da publicação, seria o ―seu namorado‖. A autora ainda
ironiza ao dizer que ser artista mulher é ―ouvir perguntas diferentes sobre a sua arte‖
(figura 70). No quadrinho expõe a diferença de tratamento sentida nos eventos: se na
primeira cena tratando-se de dois homens, o leitor ao analisar o quadrinho e pergunta
interessado na constituição do trabalho ao artista qual o tipo de tinta ele teria usado:
guache ou nanquim. Já na segunda cena, no momento em que a interação se dá com ela,
a questão passa a ser: ―foi você mesma quem fez?‖.
128
Figura 70: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
Esse descrédito apontado por Cris se relaciona a área sobre a qual a personagem
dos quadrinhos (e a própria autora) está atuando. Mary Beard (2018) pontua que as
pessoas ouvem as mulheres quando falam sobre ―questões de mulheres‖ de uma forma
que não as ouvem quando falam de economia, por exemplo, pois esse não seria um
espaço para elas. Em seu livro Mulheres no poder utiliza-se de uma obra de Riana
Duncan acerca da atmosfera sexista das reuniões de trabalho em algumas empresas. A
imagem retratando uma reunião vem seguida da legenda com a fala do chefe dada em
resposta a ideia apresentada pela única mulher presente na mesa. Ele elogia a ideia e
sugere ―talvez algum homem aqui queira executá-la‖. Desacreditando de sua capacidade
em executar sua própria ideia.
129
O assédio também é uma questão levantada por Cris Camargo, ela demonstra
como os tabus sociais estão presentes no tratamento recebido pelas autoras. Na figura
72, mais uma vez ela traz um comparativo entre o tratamento dado ao artista homem e
às mulheres. No quadrinho, um autor de temas eróticos recebe elogios por sua obra. No
diálogo a atenção se volta para a história, para a técnica usada e deriva em comparações
com Guido Crepax, famoso por suas HQs do gênero. Porém, quando se trata de um
quadrinho erótico produzido por uma mulher, a questão descamba do lado artístico para
o pessoal, com frases como ―pelo jeito você manja muito do assunto‖, ―você se baseia
em suas experiências?‖, ―safadinha você hein?‖, dentre outras.
Natália Schiavon (figura 73) retrata outro tipo de assédio, o fato de muitos
homens utilizarem um pretenso interesse em seus quadrinhos para tentar uma
aproximação pessoal. Na história um homem se aproxima da mesa de uma autora em
um evento, elogia sua obra chamando-a de ―bonitinha‖ e com o olhar focado em seu
decote pede o contato da artista, a obra abandonada sobre a mesa evidencia que seu
interesse nada tinha a ver com o trabalho da autora.
130
Figura 72: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
Figura 74: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
Ser uma quadrinista é também conviver com o mansplaining. Termo que surgiu
inspirado no ensaio de Rebecca Solnit Os homens explicam tudo para mim. A definição
deriva do inglês: man = homem, e splaining = a forma informal do verbo explain, que
significa explicar, e se refere a um homem comentar ou explicar algo a uma mulher de
uma maneira condescendente, confiante, e, muitas vezes, imprecisa ou de forma
simplista. Sem levar em conta o fato de que a mulher pode já ter o conhecimento acerca
do assunto se baseia na suposição de que um homem provavelmente tem mais
conhecimento do que uma mulher. Na figura 74, a quadrinista recebe ―dicas‖ não
solicitadas de um leitor na internet acerca de temas que ela domina. Solnit pontua que
esse tipo de atitude parte de uma determinada visão sobre as mulheres, tidas como
esponjas ansiosas para aprenderem com os homens, estabelecem culturalmente esse
lugar como naturalmente feminino.
Mary Beard reflete sobre porque esse termo teve uma ampla difusão desde o seu
surgimento. Segundo a autora, ―Ele cala fundo em nós porque traduz exatamente o que
é não ser levado(a) a sério‖ (BEARD, 2018, n.p.). Esse tipo de comportamento não é
prerrogativa do mundo dos quadrinhos, mas é bastante presente nele, por este se
constituir como um espaço no qual predomina a atuação masculina. Como exemplo, uma
situação vivida pela roteirista Gail Simone. A autora compartilhou em seu twitter uma
situação na qual teve que lidar com o mansplaining. A escritora veterana, com um vasto
132
trabalho para DC e Marvel Comics, relata que na fila para ver o Deadpol, um filme onde
seu nome consta nos créditos, um cara começou explicar a ela quem era o Deadpol
(figura 75).
Figura 76: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
A ideia acerca do que seria um traço feminino (ou se ele existe) é uma questão
controversa. Scott McCloud, (2006) defende que as mulheres têm traços comuns, inatos
ou culturalmente influenciados (figura 77). O autor aponta que as características
próprias do feminino seriam importantes para revolucionar a dinâmica dos quadrinhos,
trazendo elementos como ―ênfase na caracterização e nas nuances emocionais‖ e uma
―maior ciência do plano pictórico, com um decréscimo no uso da profundidade de
campo ilusionista‖ (figura 78). Marie-Jo Bonnet julga que as perspectivas dos gêneros
são diferentes:
Já para autoras como Erica Awano ―Isso não faz sentido. Não é o sexo que
determina esse tipo de coisa. São as pessoas, com suas limitações e talentos, que
produzem obras convincentes, ou não, em suas propostas‖. Maria José Justino (2013)
explana que ―(...) buscar definir um ‗olhar‘ feminino creditado apenas às mulheres,
creio, seria expulsar a historicidade e nos ater à postura essencialista, abstraindo a
mulher, cristalizando-a, tornando-a uma substância‖ (JUSTINO, 2013, p. 15). Laerte
pondera que essa ―diferença‖ pode estar relacionada ao fato de que as mulheres estão na
produção de algo que anteriormente não faziam:
54
Na obra de 1966, o público adentra a obra pela vulva, podendo percorrer todo o seu interior.
55
L‘art est point de vue sur le monde et ce point de vue est forcément sexué. Un même thème ne sera pas
traité de la même façon par un homme et par une femme, comme je l‘ai montré dans « Les femmes dans
l‘art ». Quand Niki de Saint Phalle donne le « pouvoir aux nanas » en réalisant Hon/Elle, une statue de
femme monumentale, elle nous invite à entrer à l‘intérieur, dans l‘invisible. Courbet, en revanche avec
L’Origine du monde nous transforme en voyeur de l‘interdit. Les deux démarches sont intéressantes, mais
très différentes.
135
Obras como as da ilustradora Mariza Dias Costa (figura 79) tornam complexa a
defesa de um ―traço feminino‖, a autora colaborou por muitas décadas com publicações
como Pasquim, Folha de São Paulo, Revista MAD, dentre outros. Sempre com seu traço
forte, irônico e violento. Características distantes do que se atribui a um ―trabalho de
mulher‖.
Rose Braidotti (2004) enfatiza que a categoria mulher, considerando as
diferenças existentes entre as mulheres individuais, se identifica claramente como uma
categoria marcada por elementos comuns, culturalmente impostos. Assim, ideias pré
estabelecidas de mulher (ou de suas atuações artísticas) seriam construídas socialmente.
Dialoga com Virginia Woolf e sua fala que diz que para que qualquer mulher pudesse
converter seu interesse nas humanidades (literatura, artes) era preciso satisfazer algumas
pré-condições gerais. Relembra que para participar das artes as mulheres tinham que
aceitar certo lugares reservados a elas, como as artes aplicadas, por exemplo.
Expressando em sua arte a delicadeza esperada de uma mulher. Braidotti ressalta que
assim se constrói a ideia do ―traço feminino‖.
desenhos são de menina. Mas eu gosto‖. Enfatizando que embora seja um ―quadrinho
de menina‖, uma ―arte menor‖, ainda assim ele o aprecia. A autora possui um traço
delicado, porém, isso não é exclusividade das autoras, ou inerente a elas.
Julia França (figura 81) satiriza o fato de que quando as autoras têm traços
delicados, ou ―fofos‖, isso é atribuído ao fato de serem mulheres, porém, se um homem
137
opta por utilizar tal estética em seus desenhos pode ser tido inclusive como
―revolucionário‖. Seu traço compreendido como uma escolha magistral, pois, ao utilizar
um visual fofinho para contar coisas mais pesadas demonstraria sua sensibilidade. E
finaliza: ―Tudo é revolucionário quando não se é mulher‖.
Outra questão exposta por Cris Camargo é a reação aos quadrinhos da série Ser
artista mulher é (figura 82). A internet democratizou a publicação de quadrinhos e criou
uma via direta de comunicação entre autor e leitor, porém, ao fazer isso, "A web está se
democratizando e também a voz de pessoas (...). E essa voz pode ser punitiva"
(BEARD, 2018). No quadrinho Camargo expõe comentários e feedbacks recebidos em
suas redes sociais. Demonstrando que ao ―direito de falar‖ pressuposto pelos internautas
soma-se a misoginia de alguns leitores para derivar em comentários como: ―a culpa é
dessa sua arte fraca‖, ―vitimista‖, ―cala boca véia!‖.
Figura 82: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
Mas será mesmo tudo ―mimimi‖ como aponta um dos haters56 nas obras de Cris
Camargo? Os eventos especializados são sintomáticos da posição ocupada pelas
autoras. Na figura 83, a quadrinista observa com olhar irônico, sentada na plateia, um
56
Haters, ou ―odiadores‖ em português. O termo é usado na internet para classificar pessoas que postam
comentários de ódio ou crítica sem embasamento, praticando "cyber bullying".
138
Figura 83: HQ da série de quadrinhos Ser artista mulher é.... de Cris Camargo
São diversas as premiações e eventos dedicados aos quadrinhos, entre eles: Will
Eisner Comic Industry Awards (EUA); Ignatz Awards - North America's Premiere
Independent Cartooning and Comic Arts Festival – (EUA); FIQ - Festival Internacional
de Quadrinhos – (Brasil); Prêmio Angelo Agostini (Brasil) e Festival International de
la Bande Dessinée d'Angoulême – (França).
Citaremos um caso que ficou bastante conhecido no Brasil, ocorrido no prêmio
HQ MIX de 2015, quando este estava em sua 27ª edição. Na ocasião havia cerca de
82% de pré-indicações masculinas (121 obras feitas exclusivamente por homens) e 13%
de pré-indicações femininas (19 obras feitas exclusivamente por mulheres) – o restante
eram obras feitas a partir de parcerias entre homens e mulheres ou coletâneas nas quais
não foi possível identificar todos os autores envolvidos. Além dessa discrepância, uma
situação polêmica se deu com a repercussão negativa de um de seus cartazes de
divulgação (figura 85), no qual o símbolo do troféu que é constituído por uma bomba
acesa, vinha acompanhado da frase ―Venha bombar!‖ e a imagem de uma mulher de
biquíni. O evento foi acusado de machismo e após uma carta aberta das autoras e
autores a comissão organizadora retirou a campanha do ar. Na figura 86, o quadrinho de
139
Carol Ito, que simboliza a reação das autoras a esse cartaz, o qual cai como uma bomba
aos pés de uma imensidão de mulheres com expressões de insatisfação.
57
Página do coletivo na internet. Disponível em: http://bdegalite.org/english/ Acesso em: 11 nov. 2019.
58
.Notre travail étant perpétuellement l‘objet de questions sexuées auxquelles ne font pas face nos
collègues masculins, nous créatrices de bande dessinée avons décidé de nous rassembler pour dénoncer
les formes que prend le sexisme dans ce champ littéraire, tout en avançant des façons de le combattre.
59
Disponível em: http://www.revistakamandi.com/2018/03/08/manifiestos-del-comic-carta-de-autoras-
de-comic-contra-el-sexismo/ Acesso em: 28 out. 2019.
141
Esse tipo de circunstância ocorrida nos prêmios pode parecer sem muita
relevância, mas faz parte de questões profundas. A exclusão de eventos ou premiações
impede que as autoras participem desse meio, limita contatos profissionais e constrói a
ideia de que elas não fazem parte desse universo. São instâncias de reconhecimento nas
quais estão invisibilizadas, um apagamento que indica que ali não é o seu lugar.
O quadrinho de Dora Leroy (figura 87) representa uma diminuta figura feminina
que tenta mostrar o seu trabalho para criaturas gigantescas. Vozes lá do alto respondem:
―isso aí não é quadrinho‖, ―quando tiver no nosso nível talvez a gente leia‖. Na
sequencia uma das criaturas a come e verbaliza: ―gostosa‖. O quadrinho representa as
autoras ―devoradas‖ por uma estrutura que as repele.
Scott McCloud pontua que embora se caminhe na direção de uma maior atuação
das mulheres nos quadrinhos, ―ainda restam obstáculos limitadores‖ (MCCLOUD,
142
2006, p. 104), cita dentre eles o fato de que ―até hoje muitas lojas projetam uma imagem
hostil de clube do Bolinha... assim como algumas editoras e certas pessoas na
comunidade criativa...‖ (MCCLOUD, 2006, p. 104) (figura 88).
Essas são algumas razões que fizeram com que as autoras construíssem seus
próprios espaços. A construção de redes de apoio é uma resposta às limitações a que
estão submetidas. Iniciativas que têm viabilizado a produção/ inserção delas no meio.
Através delas as autoras têm assumido um posicionamento de solidariedade e inclusão.
Espaços destinados apenas às autoras e interessadas em quadrinhos são forjados.
Sendo possível observar um movimento crescente no sentido de criação desses espaços
destinados à participação apenas de autoras mulheres e produzidos por mulheres e
destinados a elas. Sejam eles coletivos, revistas, festivais, eventos ou prêmios.
O Prêmio Artemísia Gentisleschi criado em 2008 na França, tem a intenção de
chamar a atenção para a produção feminina. O prêmio possui um viés bastante
feminista, em sua página inicial na internet traz uma citação de Arthur Rimbaud que diz:
60
Carta de Rimbaud para Paul Demeny, Charleville, 15 de maio de 1871.
143
Figura 89: Artemísia Gentileschi - 1610 Figura 90: Guido Reni - 1620
comentada pela quadrinista inglesa Una (figura 91). Nas obras de Una uma temática
corrente é a violência contra a mulher e ela usa a história de Artemísia para tratar dos
próprios abusos que sofreu e de como é crescer em meio a uma cultura na qual a
violência masculina não é punida ou questionada.
61
A autora analisa o silenciamento histórico das mulheres desde a Antiguidade. Traz casos literários
como o contido no livro Metamorfoses de Ovídio, no qual Tereus estupra Philomela e depois corta a
língua para que ela não possa denunciá-lo. Dentre outros exemplos cita Io que é transformada pelo deus
Júpiter numa vaca e, assim, não pode falar, só mugir; enquanto a tagarela ninfa Eco é punida de modo que
a própria voz nunca mais seja dela mesma, e sim mero instrumento de repetição das palavras alheias.
Além da literatura, Beard trabalha com casos reais ocorridos desde a antiguidade, além de fatos
contemporâneos.
147
Beard relata que embora haja algo um tanto ridículo nesse menino recém-saído
das fraldas calando a experiente Penélope de meia idade, essa história ―é uma boa
demonstração de que, no ponto em que começam as provas escritas da cultura ocidental,
as vozes femininas não eram ouvidas em âmbito público‖ (BEARD, 2018, p. 8). Mais
que isso, seria uma evidência de que na visão de Homero, parte do amadurecimento do
homem, estaria em aprender a assumir o controle do pronunciamento público e silenciar
a fêmea da espécie. Assim, a questão seria a fala pública da mulher, Beard esmiúça a
importância das palavras escolhidas por Telêmaco.
Sobre a fala pública da mulher, Michele Perrot (2013) pontua que em muitas
sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas.
―É a garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo. Entre os
gregos, é a stasis, a desordem. Sua fala em público é indecente‖ (PERROT, 2013, p.
17).
[...] se quisermos compreender o fato - e fazer alguma coisa a esse respeito -
de que as mulheres, mesmo quando não são silenciadas, ainda pagam um
preço muito alto para ser ouvidas, precisamos reconhecer que as coisas são
um pouco mais complicadas e que há uma longa história por trás de
tudo (BEARD, 2018, p. 10).
62
Andrea Rita Dworkin foi uma feminista radical estadunidense e escritora conhecida por sua crítica à
pornografia, que ela argumentou estar ligada ao estupro e outras formas de violência contra mulheres.
149
63
Costuma-se datar a contracultura a partir da beat generation, com o recital de poesia da six gallery em
1955 ou a publicação de ―on the road” de Kerouac, 1957.
64
Termo usado tanto para descrever um grupo de norte-americanos, principalmente escritores e poetas
como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs que vieram a se tornar conhecidos no final da
década de 1950 e no começo da década de 1960, quanto ao fenômeno cultural que eles inspiraram, pois, a
geração beatnik foi um movimento cultural, artístico e social independente que se tornou símbolo de
resistência ao materialismo, à ordem e às convenções preestabelecidas.
153
Na imagem ao lado (figura 95) está a capa do primeiro Zap Comix, na qual
vemos um dos mais conhecidos personagens de Crumb, ―Mr. Natural‖, um sarcástico
guru, e sua mulher chegando a cidade. Segundo Garcia (2010), o que Crumb trazia de
novo eram os temas da geração hippie, ―o momento encarnado em seu personagem‖.
Crumb satirizava ainda as estruturas do quadrinho tradicional, como por exemplo, ao
imprimir no canto superior direito de seu comix um selo de aprovação, no qual se lê:
―aprovado por escritores fantasmas no céu‖. Isso se dá, pois, embora esteja vinculado a
contracultura, o comix underground é em grande medida, também uma reação ao
155
Comics Code, o qual regulamentava a indústria dos quadrinhos desde 195465. O Comics
Code vetava a circulação de obras que contivessem representações de violência, sexo e
drogas, assim como qualquer conteúdo socialmente progressivo. Este código vigorou
por décadas, forçando com que dezenas de quadrinhos tivessem de ser refeitos. Nem
todas as editoras se submeteram a essa disciplina, entretanto, como consequência seus
produtos não levavam o selo de aprovação na capa e ficavam impedidos de se inserir no
sistema de distribuição 66. A condição dos quadrinhos comerciais depois da
regulamentação ficou bastante complicada, muitas editoras fecharam as portas e houve
um êxodo massivo de profissionais do meio para outros campos; as poucas empresas
que sobreviveram conformaram-se em seguir produzindo produtos que não atraiam a
atenção dos censores. Com essas medidas autorreguladoras e o consequente controle da
indústria, o meio dos quadrinhos comerciais repeliu os que não seguiam suas diretrizes
e homogeneizou a produção. Como resultado, vigoram as produções voltadas para o
público juvenil e adequadas a valores morais.
Rogério Campos (2010) destaca que o Comics Code perdeu força nos anos 1970,
porém, o desenvolvimento dos quadrinhos norte americanos foram significativamente
marcados. Em decorrência, nos anos que se seguiram à criação do Code, as tentativas de
se fazer um quadrinho adulto foram sufocadas por esse sistema eficiente de censura por
65
Com citamos no capítulo 1, neste ano, formou-se a Comics Magazine Association of America (CMAA),
entidade constituída pelas grandes editoras de quadrinhos dos Estados Unidos, cujo um dos principais
objetivos era redigir um código de autocensura para as editoras. Cria-se o Code Authority of Comics, com
intenção de autorregular e com frequência higienizar os quadrinhos.
66
A ideia difundida pelo Comic Code de que os quadrinhos deveriam ser ―ingênuos‖ influenciou a
produção de quadrinhos em todo o Ocidente. No Brasil, por exemplo, a versão do Comics Code chamou-
se Código de Ética, além de uma das medidas da ditadura militar, em 1965 ter sido a criação de uma lei
de censura específica para os quadrinhos.
156
meio da rede de distribuição. Assim, como pontua Garcia (2010), sem espaço para
renovação nas editoras comerciais, esta acabou surgindo de um lugar totalmente
diferente – os comix underground. A partir desse momento pode-se falar de um
quadrinho verdadeiramente adulto. Pois, pela primeira vez, existiam não só quadrinhos
para adultos, mas exclusivamente para adultos.
A quebra da indústria do quadrinho convencional e o ―terreno baldio‖ criativo
provocado pelas imposições do Comic Code obrigou os autores a inventar não só seus
próprios suportes, como também os meios de circulação. ―Esta marginalidade não
afetava unicamente os processos de produção, mas também os de distribuição‖
(GARCIA, 2010, p. 147). A liberdade de produzir quadrinhos adultos, e burlar a
vigilância do Comic Code, estava justamente no esquema de vendas. Já que não
contavam com o selo de aprovação do Comics Code, não era possível encontrar esses
quadrinhos em bancas, supermercados, lojas de guloseimas e demais pontos de venda
habituais dos quadrinhos para crianças. Com um sistema de distribuição diferenciado,
os comix eram vendidos em head shops. Ou seja, ―lojas de vendas de parafernália
hippie‖ (GARCIA, 2010, p. 147). Os comix contavam com um público reduzido, mas
fiel e influenciaram a maneira como são comercializados os quadrinhos atualmente,
inaugurando o ―mercado direto‖. Mostrando que era possível obter benefícios com um
sistema alternativo, através da distribuição das publicações através de lojas
especializadas, com baixo pedido e sem devolução. Até hoje as grandes editoras
mantêm esse duplo circuito, que inclui bancas e livrarias especializadas, mercado
massivo e ―mercado direto‖.
Outra consequência importante deflagrada pelos comix underground, refere-se à
questão da autoria. ―Quando uma editora convencional pagava a um quadrinista pelo
trabalho que lhe havia encomendado, passava a ser proprietária eterna dos materiais,
tanto das páginas originais como dos direitos de reprodução e a exploração dos
personagens‖ (GARCIA, 2010, p. 144). Contudo, no comix underground, os autores
conservavam os direitos sobre suas histórias e cobravam royalties por elas, no lugar da
tarifa fixa por página que haviam cobrado e que seguiam cobrando os profissionais do
quadrinho comercial. Embora, não passassem de alguns trocados, os royalties
trouxeram importantes consequências. Os comix undergrounds romperam pela primeira
vez com a serialização periódica da produção de quadrinhos, enquanto nos quadrinhos
tradicionais eram produzidos com verdadeiras linhas de produção, nas quais um
profissional se ocupava dos roteiros, outro dos desenhos, outro das cores, e assim por
157
diante, nos comix, em sua maioria, apenas uma pessoa ocupava todos os aspectos de
criação. Isso era possível, pois a economia underground não se baseava em manter em
movimento uma enorme maquinaria industrial de produção e distribuição de papel
impresso que se renova toda semana, diferentemente, pretendia obter seu rendimento de
maneira mais moderada e em longo prazo. Os títulos de maior sucesso se reeditavam e
se mantinham em venda durante anos, coisa que nunca havia ocorrido no quadrinho
convencional. A partir desse momento inicia-se uma valorização do ―quadrinho de
autor‖, pois, segundo Denis Kitchen ―os royalties tratavam os quadrinhistas como
autores literários‖. (KITCHEN, apud GARCIA, 2010, p.146).
Tratando ainda das inovações trazidas pelo comix, destaca-se o fato desse tipo de
quadrinho se dedicar a refletir sobre o próprio meio, na medida em que se rebela contra
as imposições do sistema de autorregulamentação. ―Em grande medida, quadrinistas
como Crumb ou Griffith aplicavam no comix os mesmos mecanismos que havia
aplicado Lichtenstein ou Warhol nas artes plásticas, porém sem mudar de meio para
fazê-lo. O Comic book refletiu sobre o comic book a partir de si mesmo‖ (GARCIA,
2010, p. 151). Tratava-se de uma resistência intencional e consciente, que pode ser vista
na fala do autor underground Spain Rodriguez: ―Me sinto bem porque conseguimos dar
alguns golpes na guerra cultural. Conseguimos refletir nossos tempos‖ (SPAIN apud
ROSENKRANZ, 2009, p. 24).
A transgressão de qualquer imposição reguladora era gritante também nos temas
recorrentes nos comix, dentre os quais estava a contestação do american way of life. ―Os
valores mais tradicionais e mais ciosamente defendidos pelos conservadores estavam ali
impiedosamente satirizados e anarquizados.‖ (PATATI; BRAGA, 2006, p. 100). Há
também uma retomada de temas que já não se via mais nos quadrinhos tradicionais,
como o horror e a ficção científica, misturados claro, com muito erotismo. O cotidiano é
levado aos comix com histórias autobiográficas e histórias do mundo hippie, que
expunham experiências de vida comunitária, amor livre, espiritualidade e viagens
psicodélicas. Recorrentes também eram os assuntos sociais como, por exemplo, política
e protestos contra a guerra. Todos eles tratados quase sempre com um pouco de humor.
Como procuramos demonstrar, os comix undergrounds eram um material
diferenciado, ―sucesso e fenômeno artístico e cultural, reflexo de uma era‖, (MOYA,
1993, p. 188). No momento em que o espírito libertário chega aos quadrinhos,
desencadeia-se uma verdadeira revolução, cuja liberdade está em seu cerne. Claro que,
ao não se submeter a aprovação do Comics Code, os comix tiveram ―vários conflitos
158
com a lei e denúncias de obscenidade‖ (GARCIA, 2010, p. 144), porém, estavam livres
de qualquer censura editorial. O fato de que eram auto editados, ou editados por editoras
underground67 (administradas por companheiros geracionais dos autores que
compartilhavam as mesmas ideias, princípios e objetivos), fez com que os autores não
precisassem responder a nenhuma diretriz editorial, nem se adequar a linhas
homogêneas de interesses comerciais, ou ainda a questão de serem produzidos e
distribuídos à margem da indústria, sem expectativas comerciais. Foram fatores que
somados, levaram a uma enorme liberdade criativa.
Mas o que esta liberdade nova e sem precedentes significou para um grupo de
talentosos e rebeldes artistas composto apenas por homens? Bem, dentre outras coisas,
resultou em uma grande vazão de fantasias. O sexo era temática recorrente nos
quadrinhos underground. Eram comuns histórias cheias de fetiches masculinos, nas
quais, não raro, as mulheres apareciam em situações de submissão e de exploração
sexual. ―O sexo, a violência, a paródia ou a homenagem a gêneros do passado como o
horror e a ficção científica, ou ainda, a mistura de todos esses elementos, haviam
dominado a maioria dos comix underground, quase sempre com a justificativa do humor
como último horizonte‖ (GARCIA, 2010, p. 154).
Na figura 97 temos a capa da revista Bizarre Sex, ilustrada por Robert Crumb.
Acima do título lê-se as palavras Depravity! Perversity! Licentiousness!, antecipando o
que o leitor iria encontrar ao aventurar-se em suas histórias. Em seu desenho, elementos
recorrentes do trabalho de Crumb: um auto retrato como uma figura franzina,
sobrepujando uma figura feminina corpulenta, com pernas e glúteos exageradamente
grandes. Embora, sexo e violência, frequentemente combinados e resultando em
fantasias que vitimizam a mulher apareça em muitas obras de do autor, ―uma das
especialidades que fez Crumb ser mais conhecido, de fato‖ (GARCIA, 2010, p. 151),
esse tipo de representação era habitual nos comix.
67
Surgiram ―editoras‖ underground, algumas importantes (Last Gasp, Rip-off Press, Print Mint, Kitchen
Sink, Renegate Press).
159
68
Trina Robbins tem um papel muito importante, tanto por ser uma das primeiras quadrinistas
underground, por sua atuação nos comix e, sobretudo por sua capacidade aglutinadora, responsável direta
por unir e tornar possível as primeiras publicações de quadrinistas mulheres. Robbins nasceu e foi criada
no Queens, bairro de Nova York. Seus primeiros quadrinhos foram publicados no jornal underground
novaiorquino East Village Other. Contudo, apesar do seu trabalho como quadrinista ter se originado nos
quadrinhos undergrounds, Robbins também trabalhou para o mercado quadrinhos mainstream. Em 1980
ela criou uma minissérie com cinco edições chamada Misty, a revista fazia parte da linha infantojuvenil da
Marvel e tinha como protagonista ―Misty‖ uma jovem que queria trabalhar no ramo da moda. Em 1986
ela desenhou a Mulher Maravilha para uma série limitada chamada The Legend of Wonder Woman,
escrita por Kurt Busiek. Ganhou o prêmio Will Eisner (The Will Eisner Comic Industry Awards) em 2013.
Mora em São Francisco, na Califórnia, desde os anos 1970. Outra vertente importante de Robbins é sua
atuação como pesquisadora de quadrinhos. A autora é uma colecionadora de trabalhos feitos por
quadrinistas e publicou diversos livros sobre as quadrinistas norte americanas (Women and the Comics
(1985), A Century of Women Cartoonists(1993), The Great Women Superheroes(1996), From Girls to
Grrrlz: A History of Comics from Teens to Zines (1999), The Great Women Cartoonists (2001), Pretty In
Ink (2013).
160
quadrinhos underground, não foi nada animador. Além de ser um ambiente masculino,
os autores ―incluíam violência gráfica contra as mulheres em seus comix, retratando
essa violência com humor‖ (ROBBINS, 2013, s/p),
(...) na maioria dos círculos de São Francisco era quase regra para os
cartunistas homens do underground incluir a violência contra a mulher em
seus comix, e retratar essa violência com humor. Para esses caras, e para
muitos de seus leitores do sexo masculino, cenas de estupro gráfico eram o
máximo, cabeças decapitadas de mulheres rolando nos corredores
(ROBBINS, 2013, s/p).
Para ela um contexto irritante, no qual cenas de violência contra a mulher eram
retratadas como algo chistoso e ―as mulheres que consideravam que as cenas de estupro,
tortura e assassinatos não eram engraçadas, eram tidas como sem senso de humor‖ (...)
―Eles diziam, ‗Ah, você não tem senso de humor‘‖ (ROBBINS, 2013, n.p.).
Neste contexto, quando algumas mulheres tentam produzir quadrinhos
underground, mais do que enfrentar os ―caretas‖ da sociedade, se depararam também
com embates com os homens quadrinistas underground que já gozavam de um certo
sucesso em meados dos anos 1970, momento no qual as mulheres procuravam abrir
espaço nesse universo. Trina Robbins já envolvida com as artes visuais desde há muito
tempo, pontua que seu interesse por quadrinhos despertou ao ver um comix no jornal
underground The East Village Other, que se distanciava agudamente dos quadrinhos
comerciais, ―eram sobre hippies e não super heróis‖ (ROBBINS, 2016, n.p.), então
instigada pela diferente produção dos comix underground, decidiu que queria fazê-los.
Contudo, ao aproximar-se da cena de produção do comix, percebeu que se tratava de um
grupo bastante fechado. Melinda Gebbie, também uma destacada quadrinista
underground diz que era uma espécie de Clube do Bolinha. ―Nós tivemos que montar
nosso pequeno acampamento perto do clube dos meninos, mas não muito perto ou eles
viriam bater na nossa porta e atirar papel higiênico em chamas pela janela. Era essa
mentalidade‖ (GEBBIE, 2010, n.p.).
Embora tenham encontrado espaço de publicação nos jornais underground,
segundo as autoras havia um posicionamento de exclusão por parte dos quadrinistas, na
medida em que não eram chamadas para colaborar nas revistas em circulação, ou
antologias produzidas pelos autores do underground da Califórnia dos anos de 1970.
Acerca da primeira exposição de comix underground na livraria Peace Eye Bookstore,
organizada por Ed Sanders, Robbins comenta: ―ele incluiu todos os caras e eu fiquei de
fora‖. Revela ainda outro posicionamento, o de ignorar a presença de mulheres no meio.
161
falar de seu contexto como mulher Africana, pontua que o feminismo não corresponde a
um programa universalmente global, mas assume características distintas, nas suas
manifestações locais, apesar das interdependências entre os dois planos. Assim, o
feminismo passa por diferentes momentos e suas ações precisam ser entendidas dentro
dos diferentes contextos sociais e processos históricos. O feminismo organizado da
segunda metade do século XX está relacionado com as lutas por direitos trazidas pelos
novos movimentos sociais da época. ―Tínhamos um senso de momento. Sabe? O senso
de momento que veio dos anos 60. Era como se toda essa energia tivesse ficado
guardada nas mulheres durante anos e simplesmente explodido‖ (BURNHAM, 2014, 11
min), pontua Linda Burnham.
As articulações feministas da década de 1960 começam com pequenas reuniões,
pequenos grupos de fala e de trocas de experiências entre mulheres. Logo, surgem
grupos de conscientização que crescem espontaneamente em muitas regiões dos Estados
Unidos, relacionados a vontade de discutir as ideias do movimento de mulheres que se
formava. Para pensarmos esse início do movimento, utilizarei as imagens do livro La
petite Bédéthèque des Savoirs. Tome 11 - Le féminisme. En 7 slogans et citations,
escrito por Anne Charlotte Husson e ilustrado por Thomas Mathieu, publicado na
Bélgica em 2016, o qual se propõe a contar a trajetória do feminismo através dos
quadrinhos. É uma obra bastante interessante, pois os autores desenvolvem seus
capítulos partindo de sete marcos e conceitos-chave do feminismo 69 e assim perpassam
os principais pontos da trajetória do movimento num panorama bastante geral, não se
atendo apenas ao feminismo da segunda metade do século XX, ou apenas ao contexto
norte americano. Com desenhos e falas aparentemente simples, os autores tocam em
pontos nevrálgicos e traçam um amplo panorama do movimento feminista.
69
1 - ―Ne me liberè pas, je m’en charge‖(Não me liberte, eu me encarrego); 2- ―La femme a le droit de
monter sur l’echafaud, elle doit avoir également celui de monter à la tribune‖ (A mulher tem o direito de
subir no cadafalso, ela também deve ter de ir para a tribuna) - Olympe de Gouges, Déclaration des droits
de la femme et de la citoyenne, article X (Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, artigo X); 3- ―Le
privé est Politique‖ (O privado é político); 4-―On ne nâit pas femme, on le devient‖ (Não se nasce mulher,
se torna) - Simone de Beauvoir, O segundo sexo, tomo II; 5-―White Woman Listen‖ (Mulheres brancas
ouçam); 6-―Nos desirs font désordre‖ (Nossos desejos fazem desordem); 7-―Le féminisme n’a jamais tué
personne, le machisme tue tous les jours” (O feminismo nunca matou ninguém, o machismo mata todos
os dias) - Beinoîte Groult.
163
70
Cubo de Rubik, também conhecido como cubo mágico, é um quebra-cabeça tridimensional, inventado
pelo húngaro Ernő Rubik em 1974.
166
vemos essa mescla do político com o privado, numa faixa na qual as ativistas pleiteiam
tanto o fim da guerra no Vietnam, quanto da crise social no lar.
Figura 102: Faixa com a dupla reinvindicação: o fim da guerra no Vietnam e da crise social em casa.
Figura 103
71
Autoras como Clare Hemmings (2009) tem um olhar crítico em relação a essa metáfora das várias
ondas feministas. No sentido que ao se fazer esse balizamento pode surgir a impressão de que nada
acontece entre as ditas ondas. E também de que há um centro emanador de pensamentos e ações. Com a
devida ressalva, para esse trabalho utilizarei a ideia das ondas, contudo, compreendendo que os
feminismos não se circunscrevem a elas.
169
pela segunda onda feminista: ―O feminismo não se ocupa mais apenas da esfera pública,
MAS DE TODOS OS ASPECTOS DA VIDA‖.
Figura 105: Reinvindicação por equidade de oportunidades para s mulheres no trabalho e nos
estudos.
Fonte: Imagem retirada do Documentário: She’s Beautiful When She’s Angry. Diretora: Mary Dore.
Produtores: Mary Dore & Nancy Kennedy, 2014.
Fonte: Imagem retirada do Documentário: She‘s Beautiful When She‘s Angry. Diretora: Mary Dore.
Produtores: Mary Dore & Nancy Kennedy, 2014. 01:14min.
172
Posters com o slogan: ―Dont Iron While the Strike is hot‖, ―Não passe a ferro
enquanto a greve está quente‖ foram distribuídos por toda Nova York. E ações como a
colocação de faixas na Estátua da Liberdade com o chamado: ―Women of the World
Unite!‖ (Mulheres de todo o mundo, uní-vos!), convocando as mulheres do mundo a se
unirem, procuravam mobilizar o maior número possível de mulheres. A greve, tratada
como piada na mídia antes de se realizar, teve grande repercussão, e levou mais de
cinquenta mil participantes à marcha de Nova York. Foto da marcha na Fifth Avenue
(figura 107).
Figura 107: Women Strike for Equality, NovaYork., 29 de Augusto de 1970
Fonte: Independent Voices. Na Open Acces Collection of an Alternatie Press. Disponível em:
https://voices.revealdigital.org/Acesso 11 fev. 2020.
72
Trecho retirado do documentário: She’s Beautiful When She’s Angry. Diretora: Mary Dore. Produtores:
Mary Dore & Nancy Kennedy, 2014.
176
A quadrinista Trina Robbins, diz que ao ver a primeira edição do jornal, pensou
―eu não podia acreditar! Um jornal underground feminista!‖ (ROBBINS, 2013, n.p.). A
autora que já havia colaborado com alguns jornais underground, ligou então para a
equipe do It Ain’t Me Babe dizendo ser uma artista interessada em colaborar com o
projeto. E assim, entrou na segunda edição, participando de todas as subsequentes.
Desenhando capas, capas traseiras e quadrinhos para o seu interior.
Os trabalhos de Robbins para o jornal tratavam as questões feministas com
humor, mas também com um viés bastante político. É o caso de uma de suas capas, a
qual traz um desenho da ativista Angela Davis (figura 110). Envolvida com o
movimento dos Panteras Negras, Angela estava foragida por ser acusada pelo então
governador da Califórnia, Ronald Reagen, ―de três crimes puníveis com a sentença de
morte - assassinato, sequestro e conspiração‖ (DAVIS, 2017, p. 145). Davis foi a
primeira mulher a entrar para a lista dos dez criminosos mais procurados pelo FBI. Na
capa de Trina, a frase ―Sister: you are welcome in this house‖, ―Irmã: você é bem vinda
nessa casa‖, foi pensada para que as mulheres feministas a colocassem em suas janelas,
sinalizando assim, locais em que Angela poderia se esconder. A capa de Robbins
desencadeou um pequeno movimento, logo as pessoas estavam fazendo cartazes com a
imagem, e pendurando em suas janelas.
Figura 110: Cartaz Sister: you are welcome in this house de Trina Robbins
em seus quadrinhos no jornal era Belinda Berkeley (figura 111), uma mulher que
enfrentava desafios ao trabalhar em um péssimo escritório para apoiar seu marido, o
qual esperava escrever um grande romance: Great American Porn Novel. Baseado em
suas próprias experiências com o marido, na época Kim Deitch, ―não eram uma
propaganda muito sutil‖ (ROBBINS, 2013, n.p.). Por ocasião do nascimento de sua
filha, Trina fez uma capa de uma mulher e um bebê com as palavras ―esta criança nasce
livre‖.
Fonte: Imagem retirada do Documentário: She‘s Beautiful When She‘s Angry. Diretora: Mary Dore.
Produtores: Mary Dore & Nancy Kennedy, 2014. 34min.
Embora, as mulheres, tanto quanto os homens, tenham sido bastante atuantes nos
novos movimentos sociais dos anos 1960/ 70, a relação entre os diferentes gêneros
dentro das organizações nem sempre transcorreu sem atritos. Susan Griffin (2014)
pontua que as mulheres embora fossem bastante ativas dentro das organizações da nova
esquerda, eram ―os homens, seus nomes estavam nas coisas, eles se tornaram os porta-
vozes‖, mas ―muitas vezes fizemos o trabalho real de organização‖ (GRIFFIN, 2014).
Outra ativista, Heather Booth (2014) revela que por vezes, as mulheres vivenciavam
momentos de desdém dentro dos movimentos da nova esquerda. Ao relembrar sua
participação na organização do Students for democratic society (SDS) e um caso
específico ocorrido em uma das reuniões do grupo, pontua: ―eu era uma líder na
organização, e um dos rapazes do grupo disse, ‗sente-se e cale a boca‘, para mim‖
(BOOTH, 2014. Destaca que a partir de situações como esta, ela e outras ativistas como
Marilyn Webb, começaram a conversar sobre seu papel como mulheres dentro da SDS.
―Daí meio que despertou em todas a sensação de querer ser reconhecidas‖ (WEBB,
2014) e fundar suas próprias organizações. Partindo destes fatos, podemos ponderar
que, assim como, o feminismo, os outros movimentos e organizações sociais não são
homogêneos ou isento de contradições. Embora os novos movimentos sociais dos anos
178
Figura 113: Convocação feita no Jornal It Aint Me Babe para a publicação de um comic book de mulheres
Fonte: Imagem retirada do Documentário: She‘s Beautiful When She‘s Angry. Diretora: Mary Dore.
Produtores: Mary Dore & Nancy Kennedy, 2014. 32min.
Terre Barrett (2014) destaca que até o final da década de 1960, a maioria das
artistas buscava ―apagar o gênero‖ de sua arte a fim de competir em um mercado
dominado pelos homens. Mas que nos anos 1960, a contracultura já não considera que a
arte pudesse ser ideologicamente neutra, através do reconhecimento das feministas de
que ―o sistema da arte e a história da arte haviam institucionalizado o sexismo‖
(BARRETT, 2014, p. 48). A crítica de arte, Linda Nochlin (1973), no início dos anos de
1970, questionou as causas da aparente inexistência das mulheres artistas na história,
concluindo que tal ausência se deve mais a exclusão das mulheres das principais
instâncias de formação de carreiras artísticas nos séculos XVIII e XIX, do que a uma
falta ―natural‖ de talentos para as artes. Levando a uma reflexão sobre o lugar das
mulheres na arte.
Desenvolve-se uma crítica feminista da arte e uma arte deliberadamente
feminista, baseadas na concepção de que o gênero estava sendo subestimado pelos que
acreditavam ser possível abordar e experimentar a arte com neutralidade. A teoria
feminista é construída com base nas distinções de gênero, entendendo o feminismo
como um ―comprometimento político em busca de transformação de um momento
histórico específico e do atendimento às necessidades especiais determinadas pela vida
das mulheres‖ (GARBER apud BARRETT, 2008, p. 50). Assim, como pontua
Elizabeth Garber (1991), a teoria feminista é um instrumento, ela luta para mudar as
coisas. ―Os críticos feministas rejeitam a ideia de que a estética e a política possam ser
independentes uma da outra‖ (BARRETT, 2014, p. 50). Assim, a arte feminista se
propunha a aumentar a consciência, convidar ao diálogo e transformar a cultura.
181
combate estético. ―A insistência feminista de que o pessoal (e, portanto, a arte em si) é
político, como uma séria inundação, interrompeu o fluxo do mainstream, enviando-o
para centenas de afluentes‖ (LIPPARD, 1980, p. 362). Como Lippard destaca, o
objetivo do feminismo é mudar o caráter da arte. Indo muito além de uma contribuição
de acréscimos de novos elementos (tradições femininas de artesanato, autobiografia,
narrativa, colagem - ou qualquer outra inovação técnica e estilística). ―A contribuição
do feminismo para a evolução da arte revela-se não em formas, mas em estruturas.
Somente novas estruturas têm a possibilidade de mudar o próprio veículo, o significado
da arte na sociedade‖ (LIPPARD, 1980, p. 363). Arte e política estão entremeados neste
contexto, e ―talvez, o aspecto único da arte feminista que a torna mais estranha à noção
dominante de arte, é que é impossível discuti-la sem se refletir as estruturas sociais que
a apoiam e muitas vezes inspiram‖ (LIPPARD, 1980, p. 363).
A quinta edição do jornal It Ain’t Me Babe, trazia um artigo intitulado
“Women… Towards a New Culture‖, que estimulava a criação de uma cultura das
mulheres como mais um instrumento da revolução feminista:
que me levou a concluir que não se trata de uma quadrinista, mas de uma colaboradora/
apoiadora da equipe do It Aint Me Babe Journal.
Funnies de Michele Brand e uma história sem título de Meredith Kurtzman. Os temas
são os mais variados, abordando assuntos como traição masculina, feminismo,
machismo, a situação das mulheres no trabalho, psicodelia, amor, desigualdade social e
assédio sexual. E as mulheres desenhadas de forma hipersexualizada ou como
ornamento de cena estão conscientemente ausentes das histórias.
A capa desenhada por Robbins ecoava o tema women’s liberation, trazendo
algumas das principais personagens de quadrinhos mainstream: Olivia Palito, Mulher
Maravilha, Luluzinha, Sheena Rainha da selva e Elsie the Borden Cow marchando
juntas com punhos levantados e expressões de luta. Na contracapa uma provocação
humorada: ―Qualquer semelhança com personagens cômicos chauvinistas vivos ou
mortos é estritamente admitida‖ (figura 117).
E por fim, as mulheres libertas e conscientes formam seu próprio clube, no qual
homens não são permitidos, invertendo a lógica da história original (figura 124).
desejo de provocar ou explicar uma causa, insere-se na busca feminista por ―uma arte
que reflita a consciência política do que significa ser uma mulher na cultura patriarcal‖
(HAMMOND, 1980). Além de inaugurar todo o movimento do comix underground
feminino.
73
Disponível em: http://www.mamu.net.br/ Acesso em: 30 de out. de 2017.
191
Figura 126: Quadrinho de Rachel Wilson e Ally Shwed sobre o Jane Collective
Fonte: http://comicsforchoice.com/preview/the-jane-collective-by-rachel-wilson-and-ally-shwed
Disponível em: Acesso em: 11 fev. 2020.
74
Para esta discussão a autora utiliza os grupos brasileiros de hip hop.
193
anos (de 1972 a 1992), sendo uma das primeiras e a mais longa antologia de quadrinhos
de mulheres.
Trina Robbins optou por não encabeçar o projeto, assim, a função de cooptar
artistas interessadas para participar do comix passou então para Patrícia Moodian, a
autora que já a havia publicado alguns de seus trabalhos pela Last Gasp, ficou com a
editoração do primeiro volume de Wimmen’s Comix. Formando, somada a Robbins e
mais oito quadrinistas (Michelle Brand, Lee Marrs, Lora Fontain, Sharon Rudall,
Shelby Shampson, Aline Kominsky, Karen Mare Haskell, Janet Wolfe Stanley), o grupo
que depois viria a ser conhecido como as ―mães fundadoras‖ do Wimmen’s comix75. A
seguir (figura 127) o autorretrato das ―mães fundadoras‖ em uma de suas reuniões,
veiculado na contracapa da primeira edição:
De acordo com Robbins (2013), foram necessárias três reuniões para decidir que
nome viria a ter a publicação. ―Enquanto chegavam sugestões tão bizarras como Queen
Kong, continuávamos repetindo: ‗Como vamos chamar esse quadrinho de mulher?‘/
‗What shall we call this women's comic?‘‖(ROBBINS, 2013, n.p.). ―Finalmente
75
Destas autoras apenas Trina Robbins e Michele Brand foram colaboradoras também da edição do It
Aint Me Babe Comix (1970), Cf. Anexo II.
195
percebemos que tínhamos sabido o nome o tempo todo, e assim, com uma pequena
mudança na ortografia (de Women‘s para Wimmen‘s), nasceu o Wimmen‘s Comix‖
(ROBBINS, 2013, n.p.). Algumas colaboradoras, porém, desejavam uma mudança
ainda maior, que retirasse qualquer menção a palavra men (homens), de seu título.
Mudança que só viria acontecer em sua última edição, em 1992, a qual leva na capa o
título: ―Wimmin’s Comix”.
O grupo do Wimmen’s Comix era composto por muitas mulheres envolvidas no
movimento feminista, o que levou a um modo de organização muito próxima das do
Women's Liberation Movement. ―Talvez por causa de nossos antecedentes políticos ou
talvez porque éramos mulheres, o coletivo Wimmen’s Comix tinha métodos diferentes
dos undergrounds masculinos desde o início‖ (ROBBINS, 2013, n.p.). Em declaração
de 1979, para o jornal Cultural Correspondence, a quadrinista Terre Richards afirma:
―Nós decidimos que nós funcionamos como um coletivo, um termo usado de maneira
bastante frouxa nesses dias para significar que não haveria líder ou editor, mas sim uma
redação rotativa, com todoas contribuindo com sua energia no papel e suporte geral
como grupo‖ (RICHARDS, 1979, n.p.). Assim, o Wimmen’s manteve um esquema de
produção coletiva não hierárquica, lançando mão de uma editoria rotativa e por vezes
co-editado por duas mulheres. Como pontua Dominique Fougeyrollas-Schwebel (2009),
na maioria dos grupos feministas havia uma valorização dos ―grupos de fala‖. A autora
realça ainda que ―o movimento feminista participa dos movimentos anti autoritários e
privilegia as formas mais espontâneas de manifestação, recusando toda organização
hierárquica‖ (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009, p. 146). A rejeição a qualquer
tipo de hierarquia está presente também na fala da ativista Jo Freeman: ―Parte da reação
da Nova Esquerda se espalhou pelas outras mulheres, até a autoridade dominante
masculina, era não apenas ver a estrutura como má, mas os líderes como maus‖
(FREEMAN, 2014,). Seguindo essa linha, além de optar por uma editoração rotativa,
para que nenhuma mulher pudesse se impor sobre as outras, todas as colaboradoras
olhavam todos os trabalhos submetidos e davam seu feedback.
Devido também a sua experiência e dificuldades na cena do comix underground
mais ampla, as mulheres procuravam ser o mais inclusivas possível, abrindo as
submissões para todo tipo de trabalho, ainda que fosse de uma autora sem experiência
alguma. Já que havia tão poucas mulheres na arte dos quadrinhos na época, uma das
intenções do coletivo Wimmen’s Comix era incentivar novas artistas a se envolverem.
―Muitas mulheres que enviavam o material para nós nunca tinham desenhado um
196
quadrinho antes e era evidente‖ (ROBBINS, 2015, p. 9). ―Mas nós estávamos mais
interessadas em dar às mulheres uma voz do que em como elas poderiam usar o lápis e a
tinta profissionalmente‖ (ROBBINS, 2015, p. 9). Robbins (2015) ressalta que algumas
das imagens iniciais eram brutas ou toscas, mas, com o tempo, a curva de aprendizado
era bem acentuada e as artistas melhoraram rapidamente.
Apesar do otimismo de Robbins o que se vê, nas edições é que são bastante
assimétricas, com obras rebuscadas plasticamente e com roteiros bem trabalhados e
outras que revelam a falta de experiência artística de suas autoras. Aline Kominsky-
Crumb, dona de traços bastante característicos - como vemos na figura 128, uma cena
de Goldie, a neurotic woman, publicada na primeira edição do Wimmen’s em 1972 -
pontua que ―era algo nada profissional, mas tinha muita energia ali‖ (KOMINSKY-
CRUMB, 2010: s/p). Entretanto, um ponto importante visto pela autora acerca do
comix, era o fato de ser uma forma de expressão, desvinculada de qualquer regra ou
academicismo. ―Nos anos 1960, quando entrei na escola de arte, se fazia e estudava um
trabalho muito abstrato, expressionista. [...] E quando vi os quadrinhos underground
naquela época, eu vi um caminho por onde poderia contar minhas histórias‖
(KOMINSKY-CRUMB, 2010, n.p.).
Figura 129: Ilustração ―O privado é político‖ de Anne Charlotte Husson e Thomas Mathieu
Simone Pereira Schmidt (2015) enfatiza o quanto esse olhar lançado para o que
acontecia dentro das casas dilui fronteiras e dá visibilidade para sujeitos até então
ignorados.
A casa cujas paredes foram (e ainda estão) pouco a pouco se rompendo foi,
tradicionalmente, como sabemos, um espaço feminino. Portanto, segundo a
mesma hierarquia que pautava as desigualdades de gênero nos demais
espaços da sociedade patriarcal, a dimensão íntima e privada da existência, a
vida doméstica que acontecia entre quatro paredes, era considerada a menos
importante, a menos nobre parte da vida, aquela que se revestia de
considerável invisibilidade, e que não carecia de investimentos de qualquer
ordem. O rompimento com essa divisão tradicional entre público/privado
trouxe também a consequência de fazer valer para o mundo público aquilo
que não tinha valor algum para a ordem pública, política, econômica, jurídica.
Abriu-se, portanto, uma fenda nessa ordem, e dela emergiram novos sujeitos,
até então considerados irrelevantes (SCHMIDT, 2015, p. 294).
(Essa abertura para novas colaboradoras e as autoras participantes pode ser observada
no Anexo III).
Os volumes seguiam o modelo formal dos outros comix underground. A
primeira edição do Tits era uma brochura de 32 páginas de conteúdo preto e branco e
uma capa frontal e traseira em cores. A grande diferença era o fato de que Tits tratava-se
de um comix auto- editado. Isso se deu, pois Chevely e Farmer acabaram montando sua
editora, a Nanny Goat Productions, para viabilizar as edições. A Nanny Goat conseguiu
colocar seu trabalho em circulação através das conexões da livraria de Chevely, a qual
conhecia autores do comix underground em Los Angeles. A partir da segunda edição
fizeram uma parceria com Ron Turner de Last Gasp para melhorar a distribuição da
revista (Anexo III). No entanto, outras editoras, como a Print Mint - ainda que
underground - inicialmente hesitaram em participar de Tits & Clits, por considerá-lo
muito obsceno. Para Farmer e Chevely, publicar um livro que era tão censurável era um
ato radical de desafio contra o que as mulheres deveriam estar fazendo na época.
Todavia, investindo seu próprio dinheiro na produção e considerando que cada cópia era
vendida por US $ 0,75 a US $ 1,50 (Anexo III), as autoras nunca tiveram retorno
financeiro.
Contudo, a intenção das autoras era discutir a sexualidade feminina. Tits & Clits,
como um quadrinho de sexo produzido por mulheres, causou ―um grande alvoroço
dentro e além da comunidade comix. De acordo com a Farmer, Tits & Clits causou
desconforto às pessoas e, portanto, não foram amplamente lidas ou distribuídas‖
(MEIER, 2017, n.p.). Até mesmo o nome da antologia era frequentemente considerado
obsceno. Na figura 133, uma cena de A Spring Story, que seguindo a linha de Tits, tem o
sexo como principal temática. na qual a personagem feminina encontra uma plantação
de pênis e exclama: ―- Diferentes alimentos para diferentes pessoas!‖. E ao prová-lo
reage com: ―-nummm, gostoso!!‖.
Figura 133: Imagem de Tits & Clits
Joyce Farmer acredita que ―era controverso porque era sexo do ponto de vista de
uma mulher, o corpo de uma mulher do ponto de vista de uma mulher‖ (FARMER apud
MEIER, 2014, n.p.). Tits & Clits rompe significativamente a fronteira privado/público,
mergulhando profundamente no domínio do pessoal (MEIER, 2017, n.p.).
Outras obras surgiram com esse viés, contudo, curiosamente, embora um dos
motes da contracultura fosse a liberdade sexual, a sexualidade feminina e suas fantasias
não foram assim tão bem recebidas. Numa resposta à sua maneira à autores como
Robert Crumb, que não raro colocavam mulheres em situações submissas em suas
histórias, Melinda Gebbie relata que criou para a revista Wet Satin (1976) uma história
em que a personagem principal era uma mulher que mantinha os homens escravos em
seu porão. ―Foi um troco irritado ao tipo de misoginia impensada que existia nos
quadrinhos masculinos‖, e que era minimizada pelos quadrinistas underground dizendo:
―Esse é só o tipo de quadrinhos que os homens estão fazendo‖ (GEBBIE, 2010, n.p.). E,
quando uma mulher fez igual, disseram: ‗Ó, meu Deus, a cultura está se
despedaçando!'‖, ironiza. (GEBBIE, 2010, n.p.).
204
Na figura 134, a revista Wet Satin, com o subtítulo: Womens Erotic Fantasies.
Publicada pela Last Gasp em 1976. A capa é de Trina Robbins, na qual uma mulher
usando botas de salto, num skate, com uma banana na boca e lendo ―Um bonde
chamado desejo‖76, se aproxima de uma figura masculina encostada no batente de uma
porta de bebidas.
Figura 135: Detalhe da Capa do primeiro volume do Wimmens Comix de 1972.
Carol Hanisch (1969) aponta que o próprio termo, ―O pessoal é político‖, surgiu
de uma expressão usada por algumas feministas para descrever os grupos de conversa
de outras tendências do movimento, reuniões que foram chamadas de grupos ―pessoais‖
e de ―terapia‖ por mulheres que se consideravam ―mais políticas‖ (HANISCH, 1969,
n.p.). Hanish destaca que este era ―um aspecto comumente discutido do debate de
Esquerda – a saber, ―terapia‖ vs. ―terapia e política‖ (HANISCH, 1969, n.p.)‖. Ao que
sintetizou como um ―pessoal‖ vs. ―político‖.
Da mesma forma, embora tivessem objetivos comuns, a equipe do Wimmen’s
também não era um grupo homogêneo. Como pontua Marilyn Webb (2014), sobre os
movimentos feministas: ―O que as mulheres procuravam fazer era não ter uma liderança
que fosse uma hierarquia, mas ter uma liderança que fosse também coletiva‖. ―De certa
forma foi modelado em ideias utópicas‖, pois, ―algumas pessoas apareceram,
invariavelmente a quem se dava mais ouvidos que as outras, é a única maneira de dizer‖
(WEBB, 2014:s/p). Assim, também no Wimmen’s, algumas vozes se sobressaíam e
ditavam o tom da publicação. Ao que me parece, a Wimmen’s estava mais alinhada às
ideias das feministas mais radicais, ―as quais sublinham que as lutas são conduzidas,
antes de tudo, contra o sistema patriarcal e as formas diretas e indiretas do poder
falocrático‖ (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009: 147). A Capa a seguir (figura
136), da edição número quatro da Wimmen’s, desenhado por Shelby Sampson em 1974,
expõe uma princesa recolhendo sapos para usá-los em seu restaurante, enquanto o aflito
sapo que ela tem em suas mãos pensa: ―Me beije!‖ Ela pensa no desperdício que seria
tal ato: ―- Não consigo ver transformar um sapo perfeitamente bom em um príncipe‖.
206
A autora relata que o grupo que ela define como ―as feministas que gostavam de
homens‖ acabaram rompendo com as demais e formando um grupo chamado ―Twisted
Sisters” que derivou na produção de um comix de mesmo nome em 1976 77.
A dissonância de opiniões não foi o único desafio pelo qual o Wimmen’s passou.
Como documento de um movimento dinâmico, olhando em retrocesso, podemos
vislumbrar pontos delicados do movimento de mulheres. O Wimmen’s, assim como,
ocorreu com o Womens Liberation, foi acusado de falta de diversidade, pois de fato, era
um grupo de mulheres brancas. Dominique Fougeyrollas-Schwebel (2009) observa que
―pertencer ao movimento representa a realização de uma nova ideologia, a pesquisa de
sentido e de valores comuns. A essa nova ideologia denominou-se ―sororidade‖:
Sisterhood is Powerfull‖ (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009, p. 146). Mas, ainda
que a ideia da ―irmandade é poderosa‖, seja muito importante para o feminismo
77
Depois desta publicação em volume único em 1976, a revista Twisted Sisters volta a ser produzida em
1991, como uma série que conta com seis volumes.
208
Outra acusação que recaiu sobre o grupo foi a questão de serem heterosexistas.
Mesma queixa que recaiu em certo ponto sobre o Womens Liberation. ―O movimento
das mulheres criou o lema: o pessoal é político. Mas quando você é lésbica e quer falar
sobre relacionamentos lésbicos em oposição a relacionamentos heterossexuais, ninguém
quer ouvir‖ (JAY, 2014), pontua Karla Jay. Contudo, neste sentido, houve um esforço
consciente de Robbins, que produziu, logo na primeira edição do Wimmen’s, a história
“Sandy Comes Out‖ (figura 138), acerca de sua colega de quarto e sua ―saída do
armário‖. Contudo, apesar de ser o primeiro quadrinho a tocar neste assunto, teve uma
repercussão negativa. A quadrinista Mary Wings a considerou ultrajante, por se tratar de
uma história sobre uma lésbica obviamente escrita por uma mulher heterossexual, o que
a impeliu a produzir o primeiro comix completo sobre a vida como lésbica, o “Come
Out Comix”, de 1973 (figura 139).
78
Neste período surgem diversos títulos de comix gays, com seus mais variados enfoques e público alvo.
―Dyke Shorts‖ (1978), continha histórias de personagens lésbicas e era destinado a mulheres
homossexuais; ―Gay Heart throbs‖ (1976), continha histórias e era destinada ao público de homens
homossexuais ; “Gay Comic‖ (1980), abarcava os dois grupos, continha histórias e contava com a
colaboração tanto de homens, quanto de mulheres gays, sendo este também o seu público alvo.
211
Figura 140: Tabela de Revistas em circulação no ano de 1976 nos EUA, produzidas pelas “most
talented women in the cowtry”
Entre elas, porém, o Wimmen’s Comix é a revista mais significativa, por abrir
caminhos, por sua extensão e por dar voz a autoras que viriam posteriormente a atingir
grande destaque como quadrinistas mulheres, é o caso de Alison Bechdel, Phoebe
Gloeckner, Julie Doucet (Anexo II). Roberta Gregory relembra que ―eram os anos pré
internet, então o lugar para ser vista era na Wimmens Comix” (GREGORY, 2016, n.p.).
O Wimmen’s é uma publicação cujo nascimento está vinculado ao movimento feminista,
como ressalta a quadrinista Terre Richards, em entrevista ao ―Cultural
212
vitalidade, como quase todos os movimentos contestatórios juvenis dos anos 1960. Os
comix eram trabalhos que contavam com uma estética alternativa que representava uma
ética alternativa; outro ponto relevante levantado por Santiago Garcia (2010) seria o fato
de que em meados da década de 1970, ainda que a necessidade tenha impulsionado os
principais expoentes do comix underground para a auto edição ou para editoras
marginais, logo seu sucesso atraiu as grandes empresas (revistas de informação em
geral, editoras literárias e produtores de Hollywood). O ―underground já não estava à
sombra, nas margens, nem na clandestinidade, estava exposto aos olhos do público
consumidor junto com os demais produtos‖ (GARCIA, 2010, p. 167). Foi assimilado e
começava a ser publicado pelas editoras tradicionais como a Marvel, que decidiu
ampliar a oferta para além dos super heróis, publicando quadrinhos de artes marciais,
fantasia heróica, terror e underground – como um gênero. Essa tendência anunciava a
chegada de uma nova época na publicação não infantil, quadrinhos que rompiam com as
limitações do Comic Code, porém, não com as dos gêneros tradicionais. O underground
derivou então em um estilo que apenas sobrevivia nas páginas de poucos veteranos que
seguiam ativos para título individual. Porém, nascia outro produto: o quadrinho
alternativo.
Na figura 141, a imagem da capa da última edição do Wimmen’s (1992), a qual
traz uma sátira do personagem símbolo da revista MAD, Alfred E. Newman e seu
slogan. Uma figura irreverente e sarcástica que ilustrou muitas capas e histórias da
revista, agora ressurge travestido, maquiado e usando brincos no formato de seios e do
sistema reprodutivo feminino.
214
Figura 142: The Complete Wimmen's Comix. Compilação de todas as edições da revista,
publicado em 2016.
É o que se vê no quadrinho de Anne Van der Linden (figura 145), no qual uma
figura feminina com as pernas abertas e os pés apoiados, como num exame
ginecológico, tem um muro construído de forma a bloquear seus órgão genitais. No
pescoço de uma das construtoras pesa um enorme crucifixo.
219
79
Quando se pensa em interseccionalidade é a ―abordagem que afirma que os sistemas de raça, classe
social, gênero,sexualidade, etnia, nação e idade são características mutuamente construtivas de
organização social que moldam as experiências das mulheres negras e, por sua vez, são formadas
por elas‖(COLLINS, 2019, p. 460).
80
Disponível em: http://www.resistsubmission.com/ Acesso em: 29 nov. 2019.
221
Trata-se de uma referência ao áudio de 2005 que foi vazado durante a campanha
eleitoral e no qual, em conversa com o apresentador de TV Billy Bush, Trump afirma
que, ―When you’re a star they let you do it. You can do anything. Grab them by the
pussy. You can do anything” ("quando você é uma estrela, [as mulheres] deixam você
fazer o que quiser. Você pode agarrá-las pela pussy. Você pode fazer o que quiser‖).
223
feministas, estes estão longe de ser permanentes. Como alerta Virginia Bulkley
Whitehill, ativista feminista desde longa data e filha da sufragista Myrtle Bulkley,
embora muitos avanços tenham sido alcançados, as mulheres contemporâneas ―não têm
permissão de se retirar das questões das mulheres. Você ainda tem que prestar atenção,
porque alguém vai tentar tirar o tapete embaixo de você‖ (WHITEHILL, 2014).
Os caminhos abertos pelas quadrinistas dos anos 1970 foram fundamentais para
as quadrinistas contemporâneas. Tanto na abertura de espaços, quanto no encorajamento
226
para a produção das mulheres artistas. Mas se nos anos 1970 um coletivo de mulheres
quadrinistas foi uma atitude sem precedentes, atualmente eles são bastante recorrentes
na produção das autoras.
As ações coletivas têm sido um recurso utilizado pelas quadrinistas, sendo
bastante comum a organização em coletivos de mulheres quadrinistas. É o caso da
Revista Inverna (2016), um projeto de publicação de quadrinhos de autoras mulheres,
que tem como objetivo incentivar mulheres brasileiras a produzir seus próprios
quadrinhos. Em seu primeiro volume, a revista reuniu autoras profissionais e iniciantes
com estilos bastante diversos que produziram suas narrativas baseadas no tema
‗Mulheres Brasileiras‘. Em outros países também vem sendo realizados projetos
semelhantes, é o caso das revistas Springs (Alemanha), Caniculadas (Espanha),
Presentes (Espanha), Clitoris (Argentina), entre outras, demonstrativas de como a
organização das mulheres em coletivos surge como uma eficaz resposta às limitações a
que elas estão submetidas em uma profissão na qual ainda estão em menor número,
assim como, da importância da construção de uma rede de apoio para as autoras, tanto
no fomento da produção, quanto na visibilidade do que vem sendo produzido pelas
quadrinistas.
No que se refere à produção das autoras de histórias em quadrinhos, é notório a
importância das redes de apoio construídas por elas como resposta às limitações a que
estão submetidas. Essas redes viabilizaram a produção e a inserção das autoras no meio
dos quadrinhos e são representativas do posicionamento de solidariedade e inclusão
assumido em grande parte por elas. Nos quadrinhos underground os coletivos (uma
reunião de indivíduos com interesses comuns, em busca de uma ação coletiva) foram a
maneira de as mulheres se organizarem e conseguirem publicar seus trabalhos, e
tornaram-se fundamentais para que tivessem espaço de atuação. Esses coletivos de
mulheres quadrinistas que se iniciaram na década de 1970 nos Estados Unidos, ou seja,
as iniciativas de autoras e produtoras de quadrinhos que e se unem para desenvolver ou
publicar uma obra, ou uma revista seriada, foram muito importantes para a inserção das
autoras nesse campo artístico. A produção coletiva de obras como It Ain’t Me Babe
(1970), Tits & Clits (1972-1987) e Wimmens Comix (1972-1992), mostram a força da
ação coletiva e a importância de um grupo como instrumento catalisador. Através da
construção de redes de apoio, as mulheres puderam se organizar enquanto quadrinistas,
abrir espaços, produzir e publicar seus próprios quadrinhos.
227
expressar, sem que haja necessariamente uma preocupação comercial, ou com uma
grande circulação das obras. Narrativas não ficcionais, ou não totalmente ficcionais, que
diversos passam a fazer parte mais assiduamente do campo dos quadrinhos, o meio
Produtos culturais como as histórias em quadrinho têm sido nos últimos anos,
com a ideia binária de gênero, para que as mulheres discutam questões relacionadas a
temas como sexualidade ou padrões corporais, assim como, para autoras negras e
Hollywood: ―Obrigada a estas autoras/es que ajudaram a redefinir o que significa ser
bonito, ser sexy, ser uma mulher protagonista, ser negra. Então obrigada a todos os
escritores e o pessoal maravilhoso da indústria da televisão que permitiu que isso
acontecesse‖.
Figura 154: Trecho de Transistorizada na qual a personagem relembra como era antes de seu
processo de transição.
Figura 155: Transistorizada. Problematizando a confusão entre identidade degênero e sexo biológico.
82
Uma leitura importante para um melhor entendimento acerca das várias dimensões que compõem a
identidade de gênero é a obra de Judith Butler (2003), na qual a autora discute os limites do gênero e suas
performances esmiuçando as relações entre sexo, gênero e desejo. Recorrendo a teorias psicanalíticas,
feministas e pós-estruturalistas Butler formula suas teorias sobre a questão da identidade, questionando as
determinações do gênero e seu conceito calcado num pensamento binário e heterossexual.
232
Luiza, assim como sua personagem no quadrinho é uma dessas pessoas que
reivindicam o reconhecimento social e legal como mulher, a despeito da classificação
biológica masculina que lhes foi atribuída (baseada em características orgânicas como
cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais) (Cf. JESUS, 2012, p.
27).
Na figura 155 uma cena na qual Luiza no momento em que vai usar o banheiro
feminino é interpelada pelo segurança que diz: ―Senhor... o banheiro masculino é esse
aqui!‖, apontando para o outro lado. Ao que Luiza responde; ―E o banheiro masculino é
pra senhoras?‖, ―Então com licença‖, entrando no banheiro feminino. Através dessa
história desenvolve uma crítica social, expondo a dificuldade e o desconcerto de parte
da população em lidar com identidades diversas. Ao falar da situação dos banheiros
levanta a questão de que as pessoas são muito mais do que apenas suas genitálias.
Em Transistorizada busca também colaborar dando informações, esclarecendo
o leitor que venha a ter contato com a obra de questões como o que é ser uma pessoa
transgênero e como é viver como uma pessoa trans no Brasil. Apresenta temas
complexos de forma bem humorada, a personagem lida sempre com as dificuldades de
forma positiva. Mas é uma representação positiva que não esquece a violência sofrida
por essas minorias, contudo, também não relaciona a imagem das pessoas trans apenas à
marginalização ou à violência.
Na figura 156, um quadrinho no qual problematiza a concepção binária de
gênero, com um diálogo no qual o rapaz confunde identidade de gênero com orientação
sexual. O interlocutor de Luiza questiona como ela pode ser mulher e não gostar
sexualmente de homens. Luiza então esclarece e diz: ―vou te contar um segredinho que
vai mudar a sua vida! Existem espalhadas pelo mundo um tipo de mulher que ... não
sente atração sexual por homens, e sim por utras mulheres, elas se intitulam...‖ e diz ao
pé do ouvido do moço: ―lésbicas!‖.
233
Figura 157: As diferentes dimensões que compõem a identidade de gênero e suas articulações
Diversas autoras e autores têm levado esse tema para os quadrinhos, expondo
suas histórias e buscando visibilidade, representatividade social e também como uma
ferramenta de empatia. Na figura 158, um quadrinho da Laerte, no qual uma voz
pergunta à personagem seu nome, ela responde que seria Meire, nesse momento um
braço segurando um espelho faz com que ela veja uma figura masculina e a voz diz:
―nada disso, você é João Ricardo Celso Claudio Felipe Riubens Alexandre‖. A
235
Figura 159: Quadrinho da série Trans Girl Next Door de Kylie Wu, no qual a autora brinca com
a expectativa e a realidade na forma como verifica em público como está ajeitado o pênis: ―Como acho
que verifico meu ‗tuck‘ em público‖, ―Como realmente verifico‖.
A autora Kylie Wu conclui que não importa de onde venham essas iniciativas,
contanto que elas aconteçam. A autora ―tem a impressão que a presença de artistas trans
nos quadrinhos norte-americanos não é popular ou pouco se fala deles no mainstream,
―é uma coisa mais cult‖, ―Eu honestamente, não me importo por meio de qual mídia a
mudança acontece, desde que aconteça‖ (COAN, 2015: 14).
Figura 161: Antologia de quadrinhos queer. No Straight Lines: 4 Decades of Queer Comics
As empoderadas também tem esse viés, o título publicado em 2016 tem roteiro,
arte e cores de Germana Viana e a capa do número 1 a cargo de Erica Awano (figura
163). Calçado na comédia, mas com muita ação, se passa na cidade de São Paulo, onde
três mulheres normais acabam ganhando poderes. A editora Ana Recalde responsável
pelo projeto argumenta que é uma iniciativa que intenta fomentar a representatividade
nos quadrinhos.
Criar heroínas que fogem dos padrões estéticos que mais vemos pode dizer
para uma garota parecida com ela que é possível! Que existem pessoas como
aquela personagem no mundo que podem fazer a diferença. Começar a
valorizar os nossos corpos é um primeiro passo para sermos seres humanos
mais felizes (RECALDE, 2016, n.p.)
Christian Arnold Leite (2007) afirma que é difícil determinar uma data específica para
as primeiras aparições de personagens negros nos quadrinhos, mas ressalta que estes
personagens surgiram como coadjuvantes de personagens de outras etnias.
Nós temos Mandrake, de Lee Falk e Phil Davis, de 1934, e seu eterno
companheiro, assistente, guarda-costas, Lothar, rei de uma distante tribo
africana. Temos, na primeira década do século XX, Mutt & Jeff, de Bud
Fisher, personagens homens, brancos, adultos, cômicos, desenhados em tiras
de suplementos dominicais. Álvaro de Moya, na sua obra clássica História da
História em Quadrinhos, de 1986, apresenta uma cena em que os dois
personagens estão perdidos e gritam ―ÁGUA!‖. No segundo quadrinhos da
tira, aparecem cinco negros seminus, armados de lanças, ―selvagens‖, rindo e
gritando juntos ―COMIDA!‖. O ―negro africano selvagem‖ apareceu muitas
vezes, mas em diferentes publicações, como nas Edições Disney. Um
exemplo são as edições do Tio Patinhas e sua família de sobrinhos e netos em
divertidas aventuras pelo mundo, sendo muitas delas ambientadas no
continente africano povoado por selvagens, canibais, comandados por
241
Os quadrinhos têm sido também uma ferramenta dos novos feminismos. Se não
existe um quadrinho propriamente feminino, o mesmo não podemos dizer de um
quadrinho feminista. Esse existe sim e tem sido uma das possibilidades para os
trabalhos das autoras. É o caso da figura 169 quadrinho de Crocomila, nele a
personagem Super-Amélia é uma vingadora feminista e questiona um homem que
olhava de maneira condenatória para um menino e sua boneca. O homem defende-se
dizendo ―tenho medo que ele vire... você sabe... vire um...‖ e a vingadora desafia os
preconceitos do homem com o complemento: ―um pai?‖.
identidade pessoal e sexual e todas as questões que permeiam esse caminho. Como o
movimento de avanço e retrocesso dos acontecimentos e dos relatos é constante, alguns
fatos relevantes nos são dados desde o começo da história. É o caso da
homossexualidade, tanto a de Alison Bechdel quanto a de seu pai. Esta informação é
importante, pois um dos fios condutores da narrativa é a maneira como cada um deles
lida com sua sexualidade. Os dois seguem caminhos inversos e entrecruzados: ela, em
direção ao autodescobrimento, envolvida nas teorias feministas e queer; ele, enrustido,
casado com uma mulher, mas mantendo casos secretos com homens mais jovens.
Figura 170: Dykes to watch out for, História que originou o ―Teste Bechdel‖
83
Embora pareça simplório, grande parte da produção cinematográfica norte-americana não passa no teste
de Bechdel. O teste foi originalmente criado para avaliar filmes, mas é também aplicado para outras
mídias. Em 2013, quatro cinemas suecos e o canal de TV a cabo escandinavo Viasat Film incorporaram o
teste de Bechdel em algumas de suas avaliações, uma ação que recebeu o apoio do Instituto de Cinema da
Suécia. Diversas variações do teste têm sido propostas – por exemplo, a necessidade de que as
personagens tenham nomes ou que a conversa entre elas dure pelo menos 60 segundos.
84
Bechdel creditou a ideia do teste a sua amiga Liz Wallace, julgando que a ideia tenha sido inspirada
pelo ensaio ―Um Teto Todo Seu‖ de Woolf.
247
Citamos apenas algumas obras para demonstrar a diversidade que vem sendo
produzida nos quadrinhos e algumas questões que eles podem estimular que sejam
debatidas ou simplesmente conhecidas pelo público leitor. Outras iniciativas podem ser
vistas no site comicosity85 (figura 172), dedicado à diversidade nos produtos cultural
modernos.
Figura 172: Página inicial do site Comicosity
85
Disponível em: http://www.comicosity.com/ Acesso: 20 out. 2019.
86
Disponível em: http://www.fiq.pbh.gov.br/ Acesso em: 02 out. 2016.
248
87
O termo cisgênero, ou cis é usado para denominar pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi
atribuído ao nascer.
249
Quadrinhos produzidos digitalmente, os quais têm no meio virtual sua parte constituinte
implicam na necessidade de se pensar acerca da preservação e armazenamento dessas
obras, que por ora dependem de seu contexto para existirem. Procuro então, pensar
sobre a arte na internet (a arte veiculada digitalmente), assim como, sobre a net.art (uma
arte realizada para/ no meio virtual) – que tem sido bastante popular entre as autoras de
quadrinhos. Considerando a net.art como uma arte nova, fluida e efêmera, que abre
possibilidades, mas também suscita questões relativas a autoria e preservação.
Neste capítulo a discussão da importância da internet como um espaço de
veiculação, compartilhamento, financiamento e articulação entre as autoras, assim como
uma via direta de contato com o público leitor, que tem sido muito relevante para as
quadrinistas.
O e-book não matará o livro – como Gutemberg e sua genial invenção não
suprimiram de um dia para o outro os códices, nem este, o comércio dos rolos
de papiros ou volumina. Os usos e os costumes coexistem e nada nos apetece
mais do que alargar o leque dos possíveis. O filme matou o quadro? A
televisão, o cinema? Boas vindas então as pranchetas e periféricos de leitura
que nos dão acesso, através de uma única tela, à biblioteca universal
doravante digitalizada (ECO; CARRIÈRE, 2010, p. 8).
254
A favor dos livros pesa ainda as fragilidades dos suportes modernos. ―O século
XX é o primeiro século a deixar imagens em movimento de si mesmo, de sua própria
história, e sons gravados – mas em suportes ainda mal consolidados‖ (CARRIÈRE,
2010, p. 30). O desconforto de ler durante um longo período de tempo na tela de um
aparelho eletrônico, assim como, a dependência de uma fonte de energia para seu
funcionamento faz parte do calcanhar de Aquiles de qualquer projeto de digitalização
completa dos impressos. ―Em todo caso, se a memória visual e sonora do século XX se
apaga durante um blecaute, ou de outra maneira qualquer, sempre nos restará os livros‖
(CARRIÈRE, 2010, p. 32).
As novas tecnologias contemporâneas estão longe de desqualificar os livros,
somam-se a eles e tornam-se espaços de contribuição em diversos sentidos para a
pesquisa de materiais culturais como as histórias em quadrinhos, abre espaço tanto para
a busca e disponibilização de obras raras, para a obtenção da versão digitalizada desse
material, sua ordenação em arquivos digitais, assim como, para a troca de informações.
Outra questão a se pensar seria o fato de como afirma Vicente Gosciola (2003, p.
199) quando uma nova forma de expressão surge, é comum que antes de desenvolver
sua própria linguagem, apareçam conceitos que a vinculem a outras formas de
expressão já consolidadas. Contudo, ao se consolidar ela acaba por delimitar sua
linguagem autônoma, foi o que ocorreu com os quadrinhos. Por um bom tempo se
discutiu se um quadrinho seria literatura ou se estaria se apropriando da linguagem de
outras mídias como o cinema – e hoje é entendido como uma forma de expressão
autônoma dotada de sua própria linguagem e forma narrativa.
No que concerne à produção dos quadrinhos, mídias modernas e a internet,
servem como um profícuo espaço de auto edição e circulação de obras. Todavia, ainda
demandam cuidados e atenção. Considerando que esses novos veículos são sintoma e
produto de nossa ordenação do tempo, como aponta François Hartog (2013):
Você dedicava alguns meses de sua vida para aprender a andar de bicicleta,
mas essa bagagem uma vez adquirida era válida para sempre. Agora, você
dedica duas semanas a compreender alguma coisa de um novo software e,
quando arduamente o domina, um novo é proposto e imposto. Logo, não é
um problema de memória coletiva que se perderia. Seria antes, para mim, o
da labilidade do presente. Não vivemos mais um presente plácido, estamos
sempre buscando nos preparar para o futuro (ECO, 2010, p. 57).
Outro ponto relevante levantado por Clay Shirky em relação as mídias modernas
é o fato de que ―não é apenas algo que consumimos, é algo que usamos‖ (SHIRKY,
2011, p. 50-51). A democratização e a globalização de instrumentos como a rede
mundial de computadores permitiu uma conexão generalizada em escala global e a
produção e veiculação de produtos a baixo custo. Para Tarcízio Silva (2014) a
possibilidade de indivíduos influenciarem-se uns aos outros é um grande atrativo em um
cenário onde se pode não apenas ler, mas publicar e replicar - e está ao alcance de todos.
Shirky ressalta que na internet há mais amadores do que profissionais produzindo e
emitindo conteúdo, e eles a utilizam das mais diversas formas, o que pode gerar certa
desconfiança do material veiculado e alguns usos controversos do meio. A internet
possui várias facetas, assim como o sujeito comum tem acesso a ela, as instituições
legitimadoras também têm, e esses novos recursos tecnológicos ―não são neutros, nem
tampouco onipotentes. Sua simples inovação formal implica mudanças culturais, mas o
significado final depende dos usos que lhes atribuem diversos agentes‖ (CANCLINI,
1997, p. 307). Ou seja, abre um leque de possibilidades, mas é necessário que se tenha
um olhar crítico.
90
Ao observar o contexto da sociedade camponesa italiana na Europa pré- Industrial do século XVI e os
diálogos entre culturas dominantes e subalternas, Ginzburg observa que uma não se sobrepõe sobre a
outra, havendo uma circularidade entre elas, através de adaptações e resignificações.
91
―Se há hoje uma concepção dominante, é o que se chamou às vezes definição institucional da arte,
segundo a qual é obra de arte o que é socialmente reconhecido como tal, pelo menos no interior de um
meio especializado, independentemente das pretensas qualidades intrínsecas do objeto-suporte‖
(AUMONT, 2013, p. 313).
258
Kennedy Piau (2005) ressalta que há uma diferença entre uma ―obra de arte‖ e
―arte‖, a primeira entendida como uma coisa, produto do trabalho humano que pode ser
percebido através de sua forma, enquanto ―arte‖ seria um sistema de ideias que cria as
condições para a formulação de juízos de valor sobre as obras. O conceito de arte não é
natural, nem universal, depende de uma valoração e os critérios e parâmetros que
possibilitam esses julgamentos são construídos historicamente, dessa forma objetos
considerados ou não arte variam culturalmente. Na percepção da arte contemporânea o
interesse antropológico suplantou as preocupações puramente estéticas, passando a ser
entendida também como um sistema de representação do mundo.
Cada arte envolve técnicas e materiais, como exemplo, podemos pensar a vídeo
arte surgida na década de 1960. Com a arte contemporânea, a ideia que se tinha de uma
obra de arte – única, autentica, irreprodutível – cai por terra, o conceito por traz da obra
passa a ser mais importante que o objeto artístico e não só mais as obras como a pintura,
mas outros tipos de linguagem passam a ser consideradas como arte.
Raymond Moulin (2007) reflete sobre o mercado e a arte contemporânea,
ressalta que o desenvolvimento das novas tecnologias faz saltar aos olhos a contradição
entre unicidade e multiplicidade, raridade e abundância, arte e indústria cultural. As
estratégias de valorização passam pela recriação permanente de novas raridades. Elas
fazem com que os novos suportes sejam utilizados ao inverso de suas possibilidades
tecnológicas e que as ―peças‖, as instalações, as fotografias, as fitas de vídeo não sejam
produzidas além de um certo limite numérico. É uma das razões pelas quais os
mercados e os mundos da arte mantêm a assinatura do artista, ao mesmo tempo em que
reclamam uma redefinição jurídica da originalidade e dos direitos do autor. A
declaração célebre de Marcel Duchamp: ‗É a raridade que confere o certificado
artístico‘ ainda não perdeu sua atualidade (Cf. MOULIN, 2007, p. 103, 104).
Em tempos recentes novos tipos de imagem surgem a partir das novas
tecnologias criadas, modificando a relação e a fruição dos homens com as obras
artísticas. ―A arte do passado não mais existe como antes existiu‖, é o que nos diz John
Berger (1999, p. 35), em um de seus ensaios contidos no livro Modos de ver (1999). Se
até o século XIX a arte está permeada por conceitos de beleza, gênio, civilização, forma,
status, gosto, que norteiam uma separação entre arte e cultura de massas. Quando
chegamos ao século XX torna-se aceitável e desejável que um produto agregue as
funções de divertir e ao mesmo tempo propiciar uma experiência estética. O contexto
mundial industrial permitiu que as coisas se multiplicassem e surge uma arte atrelada a
259
esse contexto. Para Berger (1999) ―o que importa agora é quem usa essa linguagem e
com que objetivo‖ (BERGER, 1999, p. 35).
O autor pontua outras questões as quais precisamos levar em conta quando
pensamos nas artes da contemporaneidade: de quem seriam os direitos de copyright para
reprodução (dos editores e impressoras de arte, da política geral das galerias e museus
de arte públicos). A arte contemporânea 92 possibilita levantar outras questões: quem é
mais autor: quem produz ou quem experimenta a obra? O que é mais importante. O
pensamento ou o resultado do pensamento? A arte pode tudo? Precisa ser preservada?
Como preservá-la?
Para Florencia Garramuño, a arte contemporânea é uma arte inespecífica. A
autora dialoga com Jacques Rancière o qual argumenta que:
Assim, nessa arte inespecífica, um entremeio entre o que é arte e o que não o é,
na intersecção de arte com tecnologias, surgem manifestações artísticas originais. Gisele
Beiguelman faz uma analogia com a ideia do filósofo francês Georges Didi-Huberman
(1998), segundo a qual ―O que nos vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que
nos olha‖ (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 33) para dizer que ―hoje, seja seguindo a trilha
dos emaranhados quânticos ou a do repertório das ciências humanas contemporâneas,
que os sistemas não são independentes, mas que influem um nos outros‖
(BEIGUELMAN, 2018: s/p) também o observador externo, fora do quadro, só existe de
forma idealizada, ou ―o que vemos, nos olha‖ (BEIGUELMAN, 2018, n.p.). Pontua que
o entretenimento de massa funciona ainda sob princípios clássicos, sugerindo um
mundo regido por uma subjetividade introspectiva, que contempla imagens como se
delas estivéssemos separadas por uma linha divisória. Mas ressalta que ―os regimes de
interação contemporâneos permitem compreender experiências de outra ordem, porque
92
As definições de arte contemporânea não se referem a um critério estritamente cronológico e, em sua
versão internacional e sua existência de mercado, a arte dita contemporânea não se confunde com a
produção dos artistas vivos. Os especialistas –historiadores contemporaneistas, críticos de arte e
conservadores – não dissociam a periodização da caracterização estética das obras (MOULIN, 2007, p.
25).
260
O artista, que faz uso constante das novas tecnologias de comunicação em suas
obras ressalta que o desenvolvimento dos computadores e posteriormente da internet,
trouxe grandes possibilidades para os artistas, o que poderia fazer inclusive com que as
instituições de formação como a Escola Superior de Belas-Artes se tornassem obsoletas.
Para ele, ―a arte não terá um futuro muito longo, nem muito importante se não conseguir
se conectar com os estilos de vida e as tecnologias atuais‖ (AI WEIWEI, apud OBRIST,
2013).
Considerando a assertiva de Ernest Gombrich de que ―a palavra ‗arte‘ tem
significado diferentes coisas em diferentes épocas‖ (GOMBRICH, 1989, p. 602), e
considerando a posição radical de Ai Weiwei, podemos fazer algumas ponderações
sobre a arte nos tempos atuais. Assim como as invenções tecnológicas, todo artista tenta
trazer coisas novas, ‗superar‘ seus antecessores, inovar. Porém, como ressalta Gombrich
(1989), é errôneo e ingênuo interpretar a constante mudança na arte como um progresso
contínuo.
(...) é verdade que todo artista sente ter superado a geração que o precedeu e,
do seu ponto de vista, ter feito progressos em relação a tudo o que se
conhecia antes. Não podemos alimentar a esperança de entender uma obra
sem antes compartilhar desse sentimento de libertação e triunfo que o artista
experimenta quando avalia as próprias realizações. Mas devemos
compreender que cada ganho ou avanço numa direção acarreta uma perda em
outra, e que esse avanço subjetivo, apesar de sua importância, não
corresponde a um incremento objetivo em valor artístico (GOMBRICH,
1989, p. 11).
261
Oliver Grau em seu livro Arte Virtual (2007) defende que as novas artes surgidas
a partir do avanço nas tecnologias de comunicação não tornam as anteriores obsoletas.
São artes situadas em um contexto histórico, novas formas de arte que podem ser
relativizadas, descritas e criticadas em sua fenomenologia, estética e origem. Podendo
inclusive, nos ajudar numa melhor compreensão de manifestações artísticas de outras
épocas e contextos históricos, afetando a nossa percepção do ―velho‖, colaborando para
que possamos entender a história mais recente. ―(...) os meios mais antigos (afrescos,
pinturas, panoramas, filmes) e a arte que carregam não parecem ultrapassados; em vez
disso, são definidos, categorizados e interpretados em uma nova forma‖ (GRAU, 2007,
p. 23). Para o autor, as artes midiáticas não tornam as anteriores obsoletas, mas sim,
dão a elas novos lugares no sistema das artes.
Scott McCloud (2006) pontua que os computadores foram utilizados para fazer
arte desde longa data – para ele a arte feita através desse suporte seria ―tão velha quanto
os próprios computadores‖, usando ferramentas para imitar, relembrar e processar a
aparência do mundo físico (figura 178), ou produzindo imagens que apenas o
computador seria capaz de gerar no momento (figura 179 e 180). Porém, ressalta que
nos primórdios dessa tecnologia, os computadores ainda se tratavam de grandes e caros
equipamentos e ainda que nos anos 1970 e início dos anos 1980 já não fossem mais tão
caros, ainda ―eram, sobretudo calculadoras e não cinzéis‖ (MCCLOUD, 2006:138).
Ressalta que embora alguns tenham se aventurado, naquele momento para a arte os
262
Figura 179
Figura 180
Nunca o mundo das imagens a nosso redor mudou tão rapidamente como nos
últimos anos, nunca fomos expostos a tantos mundos de imagens diferentes, e
nunca o modo como as imagens são produzidas mudou de forma tão
essencial. [...] A invasão recente e atual da mídia e da tecnologia no local de
trabalho e nos processos de trabalho é uma revolução muito maior que
qualquer outra já presenciada e, obviamente, também afetou muitas áreas da
arte. A arte midiática, isto é, o vídeo, a animação e a computação gráfica, a
―arte na rede‖ (Net-art), a arte interativa em sua forma mais avançada de arte
virtual, com seus subgêneros de arte de telepresença e arte genética, está
começando a dominar as teorias da imagem e da arte. Estamos vivenciando a
ascensão da imagem gerada por computador, da imagem espacial virtual
como imagem per se, imagens capazes de mudanças autônomas e de
formulação de uma esfera sensorial e visual envolvente e semelhante à vida.
263
Oliver Grau (2007, 23) pontua que é necessário explorar e analisar o novo
potencial estético que a tecnologia tornou possível. Quais seriam as possibilidades de
expressão abertas ao artista que trabalha com imagens assistidas por computador,
interativas e em tempo real? Que limitações a tecnologia impõe aos conceitos artísticos?
Que potencial para a criatividade encontra-se disponível ao artista e ao observador?
Como pode o novo relacionamento entre artista e observador ser caracterizado e quais
estratégias artísticas resultam dessa situação? Como a interação e o design da interface
afetam a recepção da obra? E, ainda, com base na história da arte, como deveriam ser
264
Afinal, a net art é bem mais do que arte criada para a internet. É arte que
depende da internet para se realizar, um tipo de criação que lida com
diferentes modos de conexão, de navegadores, de velocidade de tráfego, de
qualidade de monitor, resolução de tela e tantas variáveis que alteram as
formas de recepção. (...) Trata-se, portanto, de uma arte intrinsecamente
ligada a uma fruição do/em transito. Obras que só se dão a ler enquanto
265
A autora nos chama a atenção para as possibilidades desse tipo de arte, mas
também para as suas limitações. Ressalta que a Net.art foi desde sempre um problema
no espaço, por não se enquadrar nas tradições expositivas. Tornou-se um problema para
o tempo, desaparecendo com os sites que linkava, os servidores que a abrigaram e as
tecnologias que consolidaram a obra. Na figura 181 temos um quadrinho de Clara
Gomes, em sua série ―Bichinhos de Jardim‖, nessa história a autora explora a aceleração
e o caráter perene, a dinâmica do transitório inerente à internet e as consequências para
os seus usuários.
naturalmente, dependentes do futuro, do que está por vir, do que terá vindo
(DERRIDA, 2001, p. 46).
93
Alguns bancos de dados possuem um recorte específico, como no caso dos brasileiros citados, nos
quais a intenção é fazer levantamento das produtoras no Brasil especificamente.
268
Figura 182: interface do banco de dados do Women in comics wiki. Contém um grande acervo
das mulheres envolvidas nos quadrinhos, traz também links nos quais se pode acessar a historia dos
quadrinhos e acessar artigos sobre o tema.
94
Disponível em: https://womenincomics.fandom.com/wiki/Wimmen%27s_Comix Acesso em: 20 nov.
2019.
269
material arquivado têm que ser asseguradas de forma a garantir as suas propriedades
básicas ao longo do tempo: integridade, fiabilidade e autenticidade.
Oliver Grau (2007) e Gisele Beiguelman (2018) são alguns teóricos que se
preocupam com as formas e a eficácia do arquivamento da arte digital. Ressaltam que o
descompasso entre o momento do arquivamento e o avanço nos programas utilizados
para leitura e armazenamento podem por ao chão todo o trabalho do artista ou do
arquivamento realizado.
Beiguelman pontua que ao mesmo tempo em que a internet não esquece - tudo
fica registrado e pode ser multiplicada à exaustão - a obsolescência programada e a
arquitetura de informação das redes, não nos deixam lembrar. Por um lado programas e
linguagens deixam de funcionar. Por outro lado, algorítimos como os do google, do
facebook decidem o que vamos ver, prevendo nossas buscas e organizando nossa linha
do tempo. Entre problemas que vão de falências empresariais, a novos padrões de
segurança, cada vez mais rígidos. O fato é que é cada vez mais difícil acessar sites mais
antigos. Especialmente quando se tratam de sites artísticos, muitos marcados por
procedimentos experimentais. Por esse motivo, para a autora, a história da Net.art, um
tipo de arte criada para a internet e talvez a mais jovem das artes, está sendo apagada
antes mesmo de estar sendo escrita.
Ela pontua, entretanto, que importantes museus como o MOMA de Nova York,
o Tate da Inglaterra, e no Brasil, o MAC/USP, vêm discutindo essa questão. Relata que
centros de pesquisa internacionais começam a desenvolver recursos para recuperar a
memória, não só da arte online, mas da internet como um todo. Para ela entre os
projetos mais bem sucedidos estão o Wayback Machine95 (figura 184) e o
Webrecorder96 (figura 183). O primeiro trata-se de um programa de busca que permite
navegar em versões antigas de um site - desde que os arquivos não tenham sido
95
Disponível em: https://archive.org/web/ Acesso em: 20 nov. 2019.
96
Disponível em: https://webrecorder.io/ Acesso em: 20 nov. 2019.
271
apagados dos servidores. Já o segundo consiste em um gravador, ele não recupera nada,
porém, ajuda que os arquivos não sejam perdidos. Foi desenvolvido para evitar a perda
futura, permitindo salvar a estrutura dinâmica das páginas e os seus metadados. Embora
ambos possam tornar-se proveitosos recursos, Beiguelman enfatiza que esses
instrumentos não recuperam o acesso à imensa quantidade de sites bloqueados, perdidos
em servidores falidos, ou que simplesmente usam tecnologias que pararam de funcionar.
Essa seria uma ideia, mas como armazená-la? Em outro contexto futuro, como
seria a fruição da arte feita para/na internet? Ana Pato (2010), Gisele Beiguelman
(2014) e Ana Gonçalvez Magalhães (2014) observam que ainda não se sabe ao certo
como lidar com as obras efêmeras criadas a partir de processos digitais. Pato aponta
para uma necessidade de revisão bibliográfica das metodologias de gestão documental
para catalogação de obras de arte contemporâneas; ―não possuímos ainda ferramentas
suficientes para compreender e organizar esses trabalhos de transcrição e tradução dos
273
Com relação a arte na internet, Oliver Grau (2007) debate que nesse tipo de
material há uma relação diferente entre o autor e o espectador. ―A interatividade e a
virtualidade põem em questão a distinção entre autor e observador‖ (GRAU, 2007, p.
23). Dessa interatividade e da livre circulação das obras, surgem questões ligadas à
autenticidade e a autoria, já que muitas vezes obras que circulam no meio digital
acabam sendo modificadas, sofrendo modificações ou as imagens são compartilhadas
sem levar o nome do autor (deixando sem informações o próximo espectador a ter
contato com ela).
A questão da autenticidade dos materiais arquivados na internet tem sido foco do
trabalho de alguns pesquisadores (CESAR, 2013); (SOUSA; OLIVEIRA; SOUSA,
n.p.). Um dos maiores desafios que se coloca aos profissionais da informação,
designadamente aqueles que desempenham funções em arquivos, consiste na criação,
manutenção e preservação em longo prazo de documentos de arquivo electrónicos
autênticos (FREITAS, 2010, p. 5).
(...) noção de autoria, tal como a experimentamos hoje, vem mais ou menos
sincronizada com a ascensão do individualismo e da economia de mercado
pós Revolução Francesa. É nesse momento que surgem as primeiras leis
reguladoras da propriedade intelectual, como a inglesa ―copyright‖ e a
francesa ―droit d‘auteur‖. Ainda que com pequenas distinções, ambas
geraram um debate forte que já naquela época reforçava os dois eixos do
problema: o direito do indivíduo vs. o interesse público. O direito do autor –
bem como a importância da autoria– é, portanto, um direito relativamente
novo, que surge gerando polêmicas e cuja origem sinaliza conflitos de base
(HOLLANDA, 2018, p. 188).
A autora ressalta que por volta dos anos 1960/70, o debate cultural coloca em
pauta outra questão não menos polêmica, também fruto dos novos paradigmas
modelados pela revolução burguesa: a questão da centralidade do ―sujeito‖. Pontua que
nesse momento em todas as áreas da cultura, as noções de sujeito e subjetividade são
discutidas, testadas, experimentadas. O momento do cinema de autor, da volta do
figurativismo, a filosofia pós-estruturalista.
A autora observa que desde esse período, a História parece ter se acelerado,
―Novos modelos políticos e culturais associados ao rápido desenvolvimento das
tecnologias digitais emergem a cada dia, marcando o final do século XX como um
momento de mudança paradigmática radical‖ (HOLLANDA, 2018, p. 188). Dentre essas
mudanças Hollanda aponta para a criação de equipamentos leves e de baixo custo, que
oferece a todos a possibilidade de tornarem-se produtores culturais e divulgadores de
conteúdo; e para o surgimento da internet, que inaugura a comunicação e a divulgação
descentralizada e rápida, introduzindo formas inéditas de comunicação entre pessoas e
comunidades. Além da popularização dos celulares, que segundo ela definem inovações
decisivas na criação e no consumo cultural. Com essas ferramentas, amplia-se a
facilidade na produção e difusão digitais, e essa passa a ter um valor em si.
277
permitidas por vários novos programas, como por exemplo o Second Life, o
My Space, com seus avatares e simulações, ou os grupos de comunidades
virtuais, como Facebook, blogs e similares. Nesse campo, fica evidente a
relativização das práticas autorais tradicionais. Os exemplos são infinitos e as
audácias são favorecidas ao lado de uma legislação razoavelmente limitada,
denunciando a complexidade de regulação que o universo ―www‖ oferece.
Entretanto, no mundo off-line as coisas também começam a sinalizar
mudanças (HOLLANDA, 2015, p. 189).
Para a autora essa seria uma tendência em relação à autoria, ela pontua que na
web, a evidência da experimentação da criação cultural compartilhada ou não-autoral é
múltipla e quase a norma e que fora dela, pode-se observar como praticamente todas as
áreas da criação vêm desenvolvendo alguma forma de fragilização da autoria como
princípio criativo. ―Nesse quadro, identidade, autoria, ‗raiz‘ e até mesmo subjetividade
são noções que hoje se afirmam mais como fatores de negociação do que de
essencialidades ou verdades‖ (HOLLANDA, 2015, p. 189).
Porém, há quem não veja essa flexibilização da autoria como algo positivo, as
autoras de quadrinhos, por exemplo, as quais dependem do reconhecimento da autoria
para fixar-se como profissionais na área e conseguir novos trabalhos. Laura Athayde
publicou em 2016 um Pequeno guia de direitos autorais para artistas independentes 97,
alegando que:
Eu, como ilustradora e quadrinista, sempre tive muitas dúvidas sobre direitos
autorais, especialmente depois de ter trabalhos meus plagiados e
reproduzidos sem assinatura pela Internet afora mais de uma vez. Sei que
esse é um cenário comum pra artistas em geral, especialmente aqueles que
trabalham de forma independente, sem um departamento jurídico pra
assessorá-los ou o peso moral do nome de uma empresa pra intimidar
eventuais plagiadores. Por isso, decidi pesquisar e compilar aqui, de forma
simples e prática, as respostas pras minhas principais dúvidas! Espero que
esse guia seja útil pra outros artistas e também para público em geral que
quiser saber mais sobre como utilizar, ou não, determinada arte.
97
Disponível em: http://minasnerds.com.br/2016/03/22/pequeno-guia-de-direitos-autorais-para-artistas-
independentes/?utm_content=buffere5e6b&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_camp
aign=buffer Acessado em: 20 nov. 2019.
280
2 - A internet na produção de HQ
Edgar Franco (2004) discute como os artistas das histórias em quadrinhos
passaram a experimentar com o computador a partir da segunda metade dos anos 1980,
transformando-o em um novo instrumento de criação de quadrinhos, propiciando
gradativamente o surgimento de uma nova linguagem híbrida de HQ e Hipermídia. O
autor identifica três grandes momentos nesse processo: nos anos 1980 o
desenvolvimento dos primeiros softwares de desenho de interface amigável; o inicio dos
anos 1990 com a criação e adaptação de quadrinhos para o CD_ROM, onde começa a
ruptura gradativa dos processos tradicionais deflagrada pela incorporação de multimídia
e momento e um terceiro momento marcado pela popularização da internet, com isso,
centenas de quadrinhos puderam desenvolver seus próprios websites e o surgimento
gradativo de novos programas de fácil operação propiciou o avanço da experimentação
hipermidiática.
Clay Shirky destaca que ―o acesso a ferramentas baratas e flexíveis remove a
maioria das barreiras para tentar coisas novas‖ (SHIRKY: 2012 p. 21), contribuindo
para uma realidade onde o sujeito pode se encontrar imóvel em sua casa e, ao mesmo
tempo, circular pelos vários territórios da internet, em contato com outras pessoas e
culturas. A internet se torna revolucionária ao conferir ao sujeito comum à possibilidade
não apenas de falar, mas de responder e ser ouvido, descentralizando os meios de
produção e emissão de conteúdo. Para Will Eisner (2013) ―O método de transmissão
sempre teve uma influência crítica na criação de comunicação de arte. O quadrinho é
uma mídia especialmente ligada ao seu método de publicação. Enquanto os veículos de
comunicação modernos estão em constante evolução para atender às necessidades
sociais acelerando a rapidez da entrega e a qualidade da imagem, eles afetam o estilo, a
técnica e o ritmo da leitura das histórias contadas graficamente‖.
Scott McCloud aponta três importantes revoluções nos quadrinhos envolvendo
tecnologias digitais: a produção digital, onde histórias em quadrinhos são criadas co m
ferramentas digitais, a difusão digital, onde quadrinhos são distribuídos de forma digital
e, por fim, histórias digitais, referente à evolução dos quadrinhos em um ambiente
digital.
281
Will Eisner (2013) ressalta que nas novas formas de produção e de leitura de
quadrinhos a tecnologia digital compete com a impressa conquistando atenção dos
criadores de quadrinhos. No que se refere aos quadrinhos, existem diferentes maneiras
de adaptá-los às novas mídias, sendo a mais comum a digitalização de uma história
produzida da forma convencional (com desenho a lápis e finalizadas com tinta), que
pode ser enviada pelo autor por e-mail ou postada em um site ou blog. Mas há, também,
artistas que elaboram seus quadrinhos com ferramentas digitais e as veiculam na
internet. Para Santos et al (2014, p. 35), o caminho irreversível dos produtos culturais
midiáticos (quadrinhos inclusive), é o do ciberespaço. Os quadrinhos veiculados
digitalmente tem sido chamados por diversas nomenclaturas: HQtrônicas, webcomics,
cybercomics, netcomics, e-comics, BD Interative ou narrativa gráfica on-line.
Will Eisner pontua que hoje em dia ―Softwares, scanners de mesa e as mesas
digitalizadoras são hoje ferramentas tão essenciais quanto lápis, pincéis, canetas e
nanquim‖ (ESINER, 2013, p. 165) para quem faz quadrinhos. Na figura 190, um
autorretrato da quadrinista Sarah Andersen, produzindo a partir dessas ferramentas
tecnológicas.
284
Porém, embora muitos autores estejam fazendo uso desses recursos, para fazer
uso dessas ferramentas é necessário que se tenha conhecimento técnico para isso. Outro
caso é que a qualidade técnica das obras está atrelada às possibilidades do equipamento
College Roomies from Hell!!!.é um webcomic98 de Maritza Campos cujo início da
publicação data de 1999. Nas imagens da figura 191 temos o processo criativo da
autora, a qual recorria inicialmente aos desenhos em papel, para depois fazer a
colorização digital. Os trabalhos de Campos na época, assim como outras webcomics
publicados na década de 1990, deixam evidentes as dificuldades de se trabalhar com a
internet naquele período. Na medida em que os recursos técnicos avançam, os trabalhos
da autora ganham mais tratamento e sofisticação.
98
Disponível em: http://www.crfh.net/ Acesso em: 20 nov.2019.
285
Eisner (2013) destaca que quem quer produzir webcomics deve conhecer e saber
fazer uso de computadores, softwares de design gráfico e como ―publicar‖ seu trabalho
on-line. Contudo, pontua que e mbora a maioria dos criadores possa fazer isso por conta
própria, também há comunidades on-line e profissionais da área que podem ajudar em diversas
etapas do trabalho.
O autor enfatiza ainda a diversidade de formas através das quais se pode produzir:
medida em que todo esse processo (concepção, produção e distribuição) podem ser
feitas pelo próprio autor, sem precisar nem ao menos sair de sua casa.
O avanço das tecnologias propiciou que alguns autores ousassem explorar outras
possibilidades de composição que englobassem (quase) todas as oportunidades
oferecidas pelo ambiente cibernético: gifs animados, vídeos, animações em flash ou
html. Em casos mais extremos, a narrativa se estende para além das fronteiras do quadro
e da página de internet. Em sua composição, seriam hipertextuais – ou seja, um texto
que se ramifica e permite escolhas ao leitor, não sendo necessário que siga,
necessariamente, uma linearidade.
Figura 193: Alguns recursos utilizados nos quadrinhos digitais: interatividade, animação, produções com
som ou movimento.
Embora tenhamos aqui várias imagens (figura 195), foi um recurso usado por
mim para que possamos ver esse desenvolvimento da história, mas elas não passam de
prints da tela.
Na história veiculada na internet temos apenas dois quadros (figura 196). O
movimento é dado digitalmente, podemos ver o ícone carregando sob sua cabeça. Um
recurso da internet inserido nos quadrinhos, mas o fundo da imagem permanece
estático. Assim, o efeito que demoraria vários quadros para comunicar sua ideia se fosse
apenas desenhado é dinamizado e adaptado a mídia na qual foi produzido e está em
circulação.
99
O autor utiliza o termo HQtrônicas.
291
que estas não vieram para competir com suas contrapartes impressas, mas sim, para
abrir novos espaços, possibilitando o convívio das linguagens.
Os quadrinhos na internet são muito variados e permitem muita exploração,
embora o quadrinho impresso continue circulando e possua um público cativo. Ainda
desconhecido o total impacto dessas inovações, e interpõem-se desafios para lidar com
esses materiais, como sua materialidade, ou mais precisamente – com a falta dela. Will
Eisner pondera que a produção de quadrinhos especificamente para a internet tem um
impacto no meio dos quadrinhos:
A internet é onde você precisa estar se quer estar nas HQs, especialmente se
você não vai a convenções. Tem de se colocar. Precisa encontrar pessoas,
saber quem é quem na indústria e, mais importante, fazer amigos na
comunidade dos comics. Assim pode mostrar a sua arte on line com
facilidade, encontrar editores, publishers, roteiristas e conselhos (DE LIZ,
2011, n.p.).
100
Publicação sobre quadrinho digital produzida na Espanha. Disponível em: Cócómic digital hoy
https://www.tebeosfera.com/numeros/comic_digital_hoy_2016_acdcomic.html Acesso em: 20 nov. 2019.
293
Podemos utilizar o quadrinho da figura 198 para pensar sobre essa questão,
Frequência da quadrinista Carolina Ito. Na história o personagem aparece criando sua
história, com suas ideias fervilhando. Quando a apresenta ao que seria provavelmente
um editor de quadrinhos impressos, este ao lê-la julga que ―isso não faz sentido!‖,
dispensando o artista. Chateado com o resultado, o autor acaba por concluir que ―talvez
seja um problema de frequência...‖. Recorre então a um outro modo de publicação: a
internet. Sua história então ganha circulação global. Nos últimos quadros vemos a
recepção da obra por uma internauta em algum lugar do mundo. Carolina Ito utiliza a
cor amarela e os mesmos desenhos gráficos tanto nas ideias que saem da cabeça do
autor, quanto no efeito ocorrido na leitora, uma sintonia de emoções, ao que podemos
concluir que o problema de frequência foi resolvido.
294
Figura 204:
O ônibus da madrugada - Campanha de arrecadação
101
Disponível em: https://benfeitoria.com/aliensofcamila1Acesso em: 15 nov. 2019.
297
Heloísa D‘Angelo produziu uma tirinha (figura 206) que é quase um guia com
indicações para quem se interessa em ajudar as autoras independentes. Para ela é
importante que se acompanhe e incentive o trabalho das artistas em suas redes,
compartilhando os trabalhos devidamente creditados, divulgando os trabalhos, e
apoiando através da adesão a campanhas de financiamento coletivo. A internet elimina
muito da intermediação entre autor e leitor, permitindo um contato direto propiciando
que este acompanhe todo o desenvolvimento de um projeto e inclusive faça parte dele
através da colaboração financeira. As distâncias diminuem na era virtual, neste tipo de
quadrinho não são os grandes editores que decidem qual projeto irá para frente ou terá
uma segunda edição, nesse modelo o público tem grande relevância, likes e
compartilhamentos funcionam como um ―termômetro‖, e as páginas das redes sociais
como portfólios, vitrines capazes de atrair leitores, e futuros trabalhos.
Os quadrinhos também têm seguido uma tendência atual dos produtos culturais,
o consumo on demand de produtos culturais. Nesse consumo ―sob demanda‖, o
consumidor pode acessar o conteúdo disponível a qualquer momento, sem depender da
programação de um canal de Televisão ou, no caso de músicas, de uma emissora de
rádio. O consumidor atual só precisa acessar a Netflix, o Spotify ou outra plataforma de
streaming102 para assistir séries, filmes ou ouvir suas músicas preferidas. Os quadrinhos
seguem essa tendência e também já são ofertados dessa forma. O Social Comics103 é
uma plataforma brasileira de streaming de HQs. E tem como intenção fomentar o
mercado de quadrinhos no Brasil. Assim como, levar os quadrinhos para todo o
território nacional, estimulando o crescimento do mercado. Da mesma forma que outras
102
Streaming: uma forma de transmissão de som e imagem (áudio e vídeo) através de uma rede qualquer
de computadores sem a necessidade de efetuar downloads do que esta sendo visto ou ouvido, pois neste
método a máquina receberá as informações ao mesmo tempo em que as repassa ao usuário.
103
Disponível em: https://www.socialcomics.com.br/ Acesso em: 13 nov. 2019.
301
plataformas, funciona a partir de uma assinatura mensal, através da qual o leitor fica
livre para acessar todo o acervo quando quiser. Quanto aos produtores que desejem ter
suas obras veiculadas dessa maneira no que se refere às quadrinistas (editoras e autoras
independentes) estas podem realizar um cadastro para integrar a plataforma, a
compensação financeira é dada por visualização de páginas – ou seja, cada página lida
gera um valor para os criadores.
104
Disponível em: https://www.comixology.com/ Acesso em: 13 nov. 2019.
302
perca-se no mundo dos quadrinhos, graphic novels e mangás‖. Assim como no Social
Comics, o acesso pode ser feito tanto pelo computador, quanto por aplicativos para
celular. Outro ponto comum é que ambas as plataformas disponibilizam alguns
quadrinhos gratuitamente, a diferença entre as duas é que no Comixology existe a opção
de comprar os quadrinhos na forma de livros digitais, já que esta é vinculada a livraria
online Amazon.
Seguindo no diálogo acerca das possibilidades para as autoras nos meios
digitais. É notório também que estes venham sendo utilizados para a visibilidade das
autoras. Centenas de sites oferecem hoje informações sobre quadrinistas e suas obras,
amostras de desenhos, vendas online. Porém, algumas autoras utilizam as redes para
autopromoção e divulgação pessoalmente. Na figura 209 o autorretrato de Beatriz Bravo
seguido de um anúncio demonstrando suas especialidades com a intenção de arrebatar
novas oportunidades de trabalho.
Uma via direta de diálogo com o público e uma maneira de compor sua própria
exposição, independente de museus ou galerias de arte e suas convenções.
Fazendo uso das ferramentas digitais, fora do cenário das grandes editoras, no
mundo independente, as mulheres tem sido bastante presentes nos quadrinhos. Seja em
páginas da internet, blogs, no Facebook, Tumblr ou em feiras dedicadas a fanzines e
quadrinhos, o segmento autoral e independente das quadrinistas tem se feito enxergar.
Os espaços da internet têm sido muito importantes para as iniciativas das quadrinistas,
tanto pela democratização de seu espaço, quanto porque neles elas encontram um
ambiente propício ao diálogo.
A articulação conjunta das autoras e interessadas no trabalho artístico de
mulheres na rede é bastante notória, hoje em dia existem diversas articulação nesse
sentido, como exemplo podemos citar o site brasileiro Minas de HQ o qual se propõe a
dar visibilidade às mulheres quadrinistas, ás pessoas trans e não-binárias. A iniciativa
foi lançada em 2015 e segue compartilhando obras de artistas de diversos países do
mundo em posts diários nas redes sociais. Segundo Gabriela Borges (2018), fundadora
do site, a articulação é importante, pois com as mudanças trazidas pela internet, o
mercado de quadrinhos já não é o mesmo, hoje as artistas criam seus próprios meios de
publicação. Contudo, ressalta que no mainstream, onde está o dinheiro e o
304
A quarta onda me parece marcada por dois vetores fundamentais. O primeiro foi a
nova linguagem política das manifestações de junho de 2013, que se constituiu
rejeitando abertamente qualquer tipo de liderança, apostando na horizontalidade,
nas redes de afeto e na autonomia, ou seja, a recusa da mediação de suas
demandas nos canais partidários da representação política formal. O segundo fator
decisivo foi a presença das redes e mídias sociais, inaugurando um novo campo
para o feminismo. Essa geração traz as mesmas demandas do feminismo clássico
num ethos totalmente novo. Se para a geração das mulheres dos anos 1960 a
descoberta de que o "pessoal é político" marcou um novo universo de atuação
política, hoje as minas descobrem que o "político é que é pessoal" e agem como
sujeito, descrevendo e postando suas experiências, demandas e causas que,
potencializadas pelas redes, tornam-se rapidamente comuns a todas as minas. O
mesmo ocorre nas marchas feministas jovens onde o corpo e a experiência vivida
são plataformas políticas importantes (HOLLANDA, 2018, n.p.).
105
Ebay, Amazon, Mercado livre, permitem que se comercialize quadrinhos de forma direita. Nessas
plataformas quadrinhos considerados raros podem alcançar valores monetários consideráveis.
309
artísticas produzidas com meios digitais. Gisele Beiguelman aponta para um vazio
metodológico no trato dos produtos culturais criados com meios digitais. Felizmente,
alguns pesquisadores vêm se debruçando sobre a questão, é o caso do livro Futuros
Possíveis (2014) organizado por Gisele Beiguelman e Ana Magalhães, o qual reúne
pesquisadores dedicados a refletir sobre as maneiras possíveis de se conservar a arte
digital em acervos. Partindo da constatação de que a crescente produção artística
realizada com meios digitais e eletrônicos demanda a elaboração de procedimentos
específicos de preservação da memória de bens culturais que, além de efêmeros,
implicam novas tipologias e formas de processamento, diferentes dos modelos de
catalogação das coleções museológicas existentes.
Beiguelman ressalta que os procedimentos de preservação digital têm apontado
para a necessidade de uma prática contínua de atualizações, a qual pode implicar em
algum momento numa perversão da obra incialmente criada pelo artista em determinado
contexto histórico. Mesma constatação de Annet Dekker que ao citar alguns modelos e
formas já aplicadas de preservação, diz que ―muitos refletem a transição ocorrida na
forma da arte: de objeto a processo e contexto, mas reconhecendo a variabilidade ao
longo do tempo como um elemento essencial do trabalho‖ (DEKKER, 2014, n.p.). Para
Dekker essas questões podem sugerir a reinterpretação como um modo de conservação.
Um caso a se pensar, já que se distancia bastante das maneiras tradicionais de
conservação.
106
3°Simpósio Internacional da ABHR. Associação Brasileira de História das Religiões, 2018, UFSC/
Florianópolis.
107
Ainda assim a comunicação ―Salvando o mundo com a força das Orixás: representatividade,
empoderamento e diversidade religiosa na história em quadrinhos D.A.D.A.‖ foi possível a partir da
memória que eu tinha sobre a leitura da obra.
311
que passamos a nos envolver de maneira mais profunda com atos de aquisição do que
com o que estamos adquirindo, ou a preferir as garrafas ao vinho‖ (GOLDSMITH Apud
BEIGUELMAN, 2014, p. 29).
Os meios digitais tem sido um instrumento muito importante para as autoras,
pois permite estreitar as distâncias, seja entre seus pares para articulações, trocas de
materiais ou publicações, quanto com o público, com o qual podem interagir e fazer
com que suas obras cheguem sem o intermédio de editoras, porém, ainda não se têm
uma regulamentação dessa atividade e dessa forma, o retorno financeiro e o controle da
veiculação de suas obras se torna frágil. Uma faca de dois gumes, pois através da
internet se têm uma grande possibilidade de visualição de suas obras, de forma quase
imediata, contudo, resvala na preservação e perenidade dos trabalhos que circulam na
net. É maravilhoso que as autoras estejam se apropriando e usando esse espaço para
produzir, articular e viabilizar seus quadrinhos, porém, é relevante que se comece a
pensar mais seriamente na conservação e acesso dessas obras para que pesquisadores e
leitores possam acessá-los sem problemas e para que as autoras tenham controle de seus
trabalhos e consigam extrair desse recurso cada vez mais possibilidades profissionais.
312
Figura 215: Guia desenvolvido pela ESA- Escola Studio Artes. Nele estão presentes instruções
para se desenhar personagens femininas
Assim como nos EUA, a Europa também produzia suas musas, Jane (1932)
desenhada por Norman Pett para o Daily Miror é marcada pela sensualidade e se
configurou numa tira inglesa de muito sucesso. Jane vivia se desnudando em suas
aventuras e tornou-se uma das primeiras heroínas sexys dos quadrinhos. A personagem
bela e patriótica teria sido esteticamente inspirada na esposa de Pett e ―uma das primeiras
a introduzir a nudez feminina [...] e a malícia do sexo na página de quadrinhos do jornal‖
(MOYA, 1993, p. 76). No Brasil foi a tira foi distribuída com o nome de ―Jane pouca
roupa‖.
Figura 216: Norman Pett desenhando a partir de Christabel Leighton-Porter, modelo para os quadrinhos e
atriz que representou Jane no filme The Adventures of Jane de 1949.
Uma loira burra, misto visual de Marilyn Monroe e Brigitte Bardot, Litle
Annie Fanny era usada a torto e a direito pelos machistas do sistema. Com
uma impressão que destacava o belo trabalho visual, Litle Annie era um tipo
de Pollyana do sexo, uma sátira sexual aguçada à sociedade norte-americana.
(MOYA, 1993, p. 171)
316
Mas de volta a década de 1930, nos Estados Unidos esse é o período em que se
destacam as histórias de aventura e de super-heróis, destinadas sobretudo ao público
jovem masculino, que poderiam se projetar na figura dos heróis. Em geral, nas tramas
de aventura a ação girava em torno do herói e de sua luta contra seu antagonista, o vilão
que simboliza as transgressões e os desvios das normas vigentes de conduta. Quanto às
personagens femininas, dois elementos são recorrentes: a vilã e a namorada do herói. O
herói que reúne a maior quantidade possível de qualidades positivas é levado a
confrontar dois tipos distintos de mulher.
Seja heroína, vilã ou a donzela a ser salva pelo herói, uma coisa as mulheres dos
quadrinhos de aventura tem em comum: a beleza e a sensualidade. Suas representações
focadas na sexualidade e elaboradas para agradar o leitor preferencial: homens jovens e
heterossexuais. A erotização do corpo das personagens vai se acentuando ao longo das
décadas, é o que podemos ver nas capas a seguir (figura 218), onde estão contrapostas
obras da década de 1960 e dos anos 2000, podemos observar como a imagem sensual já
vigorava nas primeiras imagens, porém, ao longo do tempo vai se cunhando uma
imagem hipersexualizada das personagens. Tornou-se corrente desenhar corpos
femininos com longas pernas, seios fartos, cintura de ampulheta, collants e biquínis
diminutos, pequenos pés calçando botas de salto alto, sempre em posições que
enfatizam seus corpos. Esse gênero seguiu fazendo sucesso por um longo período e foi
responsável por diversos preconceitos no que concerne à relação das mulheres com os
quadrinhos. Já que não eram elas o público alvo e para quem as imagens eram pensadas,
fomentou-se o senso comum de que elas não liam, ou não gostavam de quadrinhos. Mas
o fato é que era um produto produzido e destinado a um outro público, o que talvez
tenha diminuído em parte o número de leitoras, mas acreditamos que isso esteja mais
relacionado ao conteúdo do que a forma em si, no caso, os quadrinhos.
318
Figura 218: Em cima: Green Lantern v2 #16 (1962) e #41 (1965); abaixo: Green Lantern v4 #18 e #20
(2007)
A representação das mulheres nos quadrinhos embora não seja uma unanimidade
está repleta de estereótipos e fantasias masculinas. Quella-Guyot salienta que através da
imagem das mulheres nesse meio podemos vislumbrar injustiças com as mulheres,
―mas, no tocante a isso, ela não é a única forma artística a fazê-lo‖ (QUELLA-GUYOT,
1994. p. 105) Questiona: ―A quem cabe a culpa? Ao público essencialmente masculino?
Aos autores, essencialmente masculinos? À moral, aos editores, à censura? Para o autor
a história em quadrinhos ―em todo caso revela, de visu, o que parece melhor escondido
alhures: sua misoginia‖ (QUELLA-GUYOT, 1994, p. 105).
No Brasil talvez o maior representante das fantasias masculinas transpostas para
os desenhos sequenciais sejam os catecismos de Carlos Zéfiro.108 No final dos anos
1950 e durante praticamente toda a década de 1960, circularam clandestinamente por
todo o Brasil os chamados ―catecismos‖, inspirados nas ―Bíblias 109‖ norte-americanas
das décadas de 1930 e 1940. As publicações se tratavam de pequenas revistas artesanais
de 32 páginas em formato aproximado de 10x14cm de conteúdo erótico,
108
Muitas obras de Carlos Zéfiro podem ser visualizadas na rede mundial de computadores: Disponível
em:<www.carloszefiro.com> Acessado em: 22 jan. 2013.
109
Na década de 30, autores anônimos, em desenhos canhestos, lançaram revistas clandestinas
pornográficas em ―8 páginas‖, a 40 centavos, com sexo explícito e exposição de órgãos sexuais. Eram os
―gibis sujos‖, as ―bíblias‖. (MOYA, 1993, p. 73) Os quadrinhos sujos misturavam sexo e humor, sem
censuras ou cortes. De autoria anônima, não se sabia ao certo onde eram impressos. As ―Bíblias‖
desapareceram no final da década de 1930, e influenciaram significativamente a revista Mad nos anos
1950 e os quadrinhos underground nos anos 1960.
323
comercializadas através de uma rede clandestina que cobria todo o Brasil. O principal
autor desse gênero, e também o melhor, assinava como Carlos Zéfiro, pseudônimo que
resguardou a verdadeira identidade de seu autor (o funcionário público Alcides Aguiar
Caminha) por muitos anos. Carlos Zéfiro criou uma obra que moldou o imaginário
sexual do brasileiro por anos e se tornou uma referência da arte erótica mundial.
(MENEZEZ, 2011, p. 7).
Como ressalta o autor, ainda hoje ―As atitudes e os valores que informa essa
tradição se expressam hoje através de outros meios de difusão mais amplos:
publicidade, imprensa televisão‖ (BERGER, 1999, p. 74). A esses exemplos podemos
acrescentar os quadrinhos. Nessas mídias o modo essencial de ver as mulheres, e o uso
essencial ao que se destinam suas imagens, não mudou. As mulheres são representadas
324
Mais uma vez as mulheres não são protagonistas, o protagonista continua sendo
este o expectador masculino para o qual se destina:
(...) seja na mão de King Kong, caída aos pés do bárbaro inimigo, no harém
do usurpador do trono, desmaiada ou carregada, sempre a pose era
325
Na história ―plop‖ de Kate Beaton (figura 228) Dagger ampara Clock quando
esse está ferido de morte e diz: ―- Cloak! Você pode me ouvir?‖ Quando este começa a
responder, um dos seios de Dagger, plop! Escapa de sua roupa. Ela fica desconsertada
com o momento inapropriado, ao que Cloak irritado responde: ―- Can you keep your
shit together. OMG‖, algo como ―você pode manter suas merdas juntas. Meu Deus!‖.
Beaton satiriza assim, os uniformes usados pelas heroínas e sua falta de praticidade,
pois a qualquer momento um seio pode lhe escapar.
Na figura 230, Beaton satiriza o que acontece com as heroínas nos dias frios, já
que seus uniformes são tão reveladores. Na história Cloak sugere a Dagger que peça a
Marvel que lhe envie um suéter.
O pedido é atendido e realmente a empresa lhe envia um suéter, porém com um
enorme e revelador recorte na parte da frente.
329
Erica Henderson, uma quadrinista norte americana, interage com a crítica feita
por Kate Beaton e finalmente dá a Dagger um suéter apropriado. A roupa mantém as
características do uniforme usado pela heroína, porém, ela já não precisa mais combater
o crime com os seios de fora nos dias de inverno.
O que podemos pensar a partir desses quadrinhos, é que atualmente, a estética
das musas dos quadrinhos de ação já não é vista com tanta naturalidade. A estética
baseada na sexualização de heroínas e vilãs vem sendo questionada e o padrão de
representação nesse gênero de quadrinhos está sendo rompido e a imagem da mulher
tem ganhado diversidade. Trina Robbins ressalta que fica ―muito feliz em ver tantas
mulheres na internet criticando a hipersexualização nas HQs, porque suas vozes estão
sendo ouvidas e os editores estão prestando atenção‖ (ROBBINS, 2015, n.p.).
330
110
Disponível em: https://thehawkeyeinitiative.tumblr.com/ Acessado em: 29 nov. 2019.
331
Outra iniciativa foi lançada pelo site buzzfeed111 em 2015, o experimento (figura
235) se constituiu em fotografar mulheres e seus corpos naturais em posições nas quais
aparecerem às personagens de quadrinhos de heróis, e depois transformar digitalmente
as imagens originais em corpos similares aos dos quadrinhos. Através desse
comparativo podemos ver o quão distante e inalcançável é a imagem que se perpetuou
como padrão corporal das personagens.
111
Disponível em:
https://www.buzzfeed.com/kristinchirico/superheroes?utm_term=.earzkG5EwG#.qwkodzegWz Acesso:
20 nov. 2019.
333
Esse olhar atento tem gerado discussões, um caso a ser citado é a polêmica
gerada pela uma capa criada em 2014 por Milo Manara. O trabalho (figura 236)
provocou controvérsia e chamou a atenção popular. A capa mostrava a Mulher-Aranha
com as nádegas em forma de maçã erguida ao alto.
112
Nous encourageons les libraires et les bibliothécaires à ne pas séparer les livres faits par des femmes
ou soi-disant adressés aux filles lorsqu‘ils organisent leurs étalages. Le fait que des héroïnes soient plus
présentes et actives que les personnages masculins ne veut pas dire que les garçons et les hommes ne
peuvent pas s‘y identifier et en aimer le récit.
113
COLLECTIF DES CRÉATRICES DE BANDE DESSINÉE CONTRE LE SEXISME. Disponível em:
http://bdegalite.org/ Acessado em: 12 jan. 2020.
334
114
―sexualiser des personnages féminins à la moindre occasion, sans le faire avec le masculin, c‘est
sexiste. C‘est de l‘objectivation. Érotiser un personnage féminin dans un contexte absolument pas
érotique, c‘est de l‘objectivation‖.Disponível em: http://bdegalite.org/objectivation-
invisibilisation/Acesso: 12 nov. 2019.
115
Il ne faut absolument pas confondre la demande de prise de conscience, de réflexion et de débat sur ce
sujet et une demande de censure prude. La lassitude à voir ce genre de représentation dominer depuis des
décennies n‘inclut pas le fait de prétendre les interdire.
116
COLLECTIF DES CRÉATRICES DE BANDE DESSINÉE CONTRE LE SEXISME. Disponível em:
http://bdegalite.org/ Acessado em: 12 jan. 2020.
335
117
Young women are a good audience to have, and several major publishers are making the slow
adjustment towards releasing books aimed at this audience. It's in Marvel's best interests to have more
books for young women than DC. It's in DC's best interests to have more books for young women than
Marvel. Both publishers ought to keep count.
336
Nesse sentido podemos citar Ms. Marvel (figura 238), uma heroína adolescente de
origem paquistanesa, bastante distante das heroínas hipersexuais de outrora.
Figura 239: Lanterna Verde #54. A personagem Alex Dewitt, morta pelo Major Force e colocada
na geladeira. A morte de Alex serviu apenas para desenvolver todo um novo arco para o Lanterna Verde.
A roteirista de quadrinhos Gail Simone foi uma das responsáveis por disseminar
o debate sobre a maneira como as personagens femininas eram construídas nas
narrativas. Ela foi responsável pela criação do termo Women in refrigerators (Mulheres
na geladeira), criado em 1999, momento no qual percebeu a frequência com que as
personagens femininas nos quadrinhos perdiam seus poderes, eram assassinadas,
violentadas ou sofriam qualquer tipo de agressão sem que isso fosse necessário para o
337
mulheres que não são comodities ou objetos sexuais, mas seres humanos
completas com seus próprios desejos, vontades e amor (NOVGORODOFF,
2014, n.p.).
Figura 241: Desenho de Renae de Liz que analisa os traços clichês de personagens femininas e
aponta outros caminhos
118
1 - (Left) A common expression in comics. Eyes are lidded, mouth is pouty. It‘s look to promote a
sense of sexiness & lessens personality. (Right) Personality and uniqueness first. Think of distinct facial
features outside the usual. Promote thought in eyes. What‘s she thinking of? 2 -(Left) Commonly taught
way to draw breasts (OR fully separated/circles/sticking out). The intent is to highlight sex appeal. It‘s not
realistic for a hero. (Right) What‘s REALISTIC for your hero? Athletes need major support (i.e sports
bra) which have a different look. Consider not ALL heroes have DD‘s. 3- Arms are closer to supermodel
size on the left. What best fits your hero? If she‘s strong, she‘ll likely very built. Give her muscles! 4-
Hands on left are set in a way to promote the sense of softness, it lessens her power. Be sure hands are set
in a way to promote strength 5- (Left) It‘s common to see ―the arch n‘ twist‖ in comics. A female arched
and twisted to show both cheeks AND both boobs.(Right) Twists in the body are a powerful art tool but
stick to what can realistically be done, and use arches w/o intent for ―boob/butt perk.‖ 6 - One on left
feels like she‘s posing. The right feels like she‘s standing heroically. Make her overall pose functional vs.
sexually appealing. 7 -Heels! Modern heels are generally used to amplify stance & increase visual appeal.
I like them, but if I were a hero, not too realistic. Most important is what would your character choose?
It‘s very difficult to hero around in stilettos. Perhaps consider low/no heels.
341
as nádegas. ―Torções no corpo são uma ferramenta poderosa da arte, mas é melhor focar
naquilo que pode ser feito realisticamente e use esses arcos sem a intenção de oferecer
‗dois por um'‖, peitos e bundas.
Número 6 - Enquanto na esquerda a heroína parece estar posando, na direita ela
se posiciona heroicamente. A ideia é pensar no que o desenho quer dizer (ao invés de
focar em traçar linhas sexualmente atraentes).
Número 7 - ―Saltos são geralmente usados para destacar a postura e aumentar o
apelo visual. Eu gosto deles, mas, se eu fosse uma heroína, usá-los não seria muito
realista‖, afirma. O mais importante é: ―o que seu personagem escolheria?‖ Ressalta que
possivelmente para um super herói sapatos baixos seriam mais eficazes que saltos altos.
A autora que trabalha na indústria do quadrinho mainstream pontua que
Meghan Hetrick publica uma imagem com a mesma intenção de De Liz, porém,
foca em apenas uma parte do corpo. Trazendo várias posições e formas de se desenhar
os seios, de forma mais natural (figura 242). Ressalta que seios não são redondos como
quando se tem implantes de silicone, formato que se perpetuou nos quadrinhos. Sofrem
a ação da gravidade como um ―balão cheio de gelatina‖. Se movimentam quando o
corpo adota diferentes posições, não permanecendo como bolas estáticas atadas ao
corpo. A autora ressalta que os tecidos esticam e se moldam ao vestir corpo, o que
significa que o decote não pode ser visto através da roupa. Enfatiza que os seios podem
ser de várias formas e tamanhos, e, portanto, pode haver diferentes representações desse
mesmo elemento.
Talvez as representações masculinas não sejam necessariamente (ou apenas) um
ato de misoginia, mas um caminho a vazão do imaginário masculino, tanto dos autores
quanto do público consumidor, no qual mulheres idealizadas, lindas e loucas por sexo
podem ser levadas para dentro de suas casas através das revistas em quadrinhos. Para
uma representação diferente e com a qual o público feminino se identificasse mais
profundamente, far-se-ia necessária o olhar da mulher no meio dos quadrinhos,
apresentando a sua visão sobre si, sobre as mulheres em geral e de um modo mais
amplo, imprimindo também sua perspectiva no mundo dos quadrinhos. Françoise
Thèbaud pontua que no século XX a publicidade faz da mulher um objeto sexual a ser
possuído, ressalta também a pornografia, revistas e vídeos, dentre outras mídias.
Contudo, destaca também que ―o século XX é igualmente o século em que as mulheres
tomam a palavra e o controle das suas identidades visuais; sublinhando o desafio
político da representação, elas tentam quebrar os estereótipos e propõem múltiplas vias
de realização pessoal‖ (THÉBAUD, 1995, p. 11).
É importante que as mulheres produzam suas representações de si e dos
quadrinhos, para que tenhamos uma variedade de produções, corpos e temáticas
representados. Acredito que não há necessidade de banir os corpos hipersexualidades,
mas sim os desnaturalizar e que não seja esta a única forma na qual as mulheres figurem
nas HQs.
344
8. Considerações Finais
A arte sempre esteve presente na vida das mulheres, por longa data o lugar
destinado a elas foi o de musa, contudo, as mulheres transbordam esses limites e
encontram maneiras de desenvolver suas artes, a custas de romper e contestar normas e
papéis sociais. O século XX traz consigo maior liberdade de criação para as mulheres
artistas e maior protagonismo sob a imagem representada delas. Porém ainda as artes
modernas e contemporâneas como as histórias em quadrinhos, são carregadas de
preconceitos e limitações às mulheres, outsiders numa profissão marcada por uma
maioria de profissionais e leitores masculinos os quais imprimem sua perspectiva no
segmento, elas precisam forjar os seus lugares como artistas e o fazem bravamente.
Ao observar a atuação das mulheres nos quadrinhos foi possível constatar
algumas características interessantes, como o posicionamento de solidariedade e
inclusão adotado por boa parte delas. Em especial isso se dá para a construção de
espaços e para viabilizar seus trabalhos, o apoio mútuo entre mulheres fortalece o
surgimento de novas publicações impressas e digitais. Embora haja homens sensíveis ao
assunto e que colaboram para a maior atuação de mulheres nos quadrinhos, é notório
que as articulações partem delas e têm dado bons frutos. Atualmente já se pode
conhecer muito do trabalho das quadrinistas, seja em revistas, premiações, webcomics,
sites ou exposições. Articulações que surgem em resposta às limitações encontradas
para produzir suas histórias em quadrinhos. É muito interessante a forma como as
mulheres se organizam e constroem seus espaços. A relação das mulheres nos
quadrinhos mulheres na arte é marcada, desde longa data, por uma busca de autonomia,
pela auto-organização e agência das mulheres.
Ao identificar, interpretar e compreender como se dão as diferenças, assimetrias
e desigualdades existentes entre os gêneros na produção dos quadrinhos, não busco
apenas comparar autores e autoras, mas expor como a relação entre esses gêneros nos
quadrinhos (e consequentemente sua produção) é atravessada por relações desiguais de
poder e distintos eixos de diferenciação. Ao examinar a relação das mulheres com a
produção de quadrinhos, é possível afirmar que a menor quantidade de autoras, em
relação aos produtores homens, não tem nada a ver com a quantidade (ou com a
qualidade) do trabalho das artistas. Sendo de grande relevância desconstruir esse tipo de
senso comum que apenas reforça a invisibilidade das quadrinistas, perpetuando a ideia
345
de que as elas não têm uma carreira artística tão boa ou tão consistente quanto a dos
homens. As mulheres ainda produzem menos quadrinhos que os homens, porém, não se
trata de uma questão de qualidade ou desinteresse, mas das limitações encontradas por
elas para desenvolver essa prática.
Durante a pesquisa observei que a produção feminina é extremamente
diversificada, não se limitando a determinados temas ou formatos. Tão diversas quanto
a quantidade de mulheres existentes. Considerando que as mulheres quadrinistas
possuem diferenças culturais, políticas e sociais, e as experiências subjetivas de cada
uma delas, mas que também perpassam por experiências comuns, como ser uma mulher
artista.
Vivemos um momento em que o debate sobre a representação feminina no
mundo do entretenimento alcança destaque e propicia que as mulheres tenham maiores
possibilidades de se fazer ouvir. Observamos como as autoras desenvolvem ações
coletivas, dentre elas publicações que valorizam os trabalhos de quadrinistas mulheres,
premiações que dão visibilidade e reconhecimento a esses trabalhos, redes de apoio e
discussão que propiciam a troca de informações e a viabilidade da produção, revistas e
sites dedicados ao tema que colaboram para a naturalização de que as mulheres estão
presentes, produzindo e consumindo quadrinhos. O trabalho das autoras traz polifonia e
novas formas de representação nas HQs, como a menor sexualização das personagens,
algo recorrente em publicações até os anos 1990 e o questionamento de práticas sexistas
no segmento.
Contudo, e felizmente, as autoras, quadrinhos e iniciativas expostas aqui são
apenas a ponta do iceberg, há ainda muito que se explorar e conhecer acerca da
produção das mulheres quadrinistas. Há ainda um desconhecimento do quanto as
mulheres estão presentes nos quadrinhos. Algumas iniciativas podem ser tomadas para
que isso ocorra, como a colaboração com a produção das autoras, a valorização ao
adquirir seus trabalhos, abrindo espaço para a exposição e a venda das publicações
femininas, compartilhando esses materiais online ou escrevendo sobre o assunto. É
nesse sentido que foi pensada essa pesquisa, visando expor o quanto as mulheres são
relevantes na história dos quadrinhos e colaboraram para que se tenha diversas
perspectivas nesse produto cultural.
Penso que a questão das mulheres nos quadrinhos está permeada por
silenciamentos e limitações que dificultaram seu fazer artístico, porém, ainda assim, elas
desenvolveram uma vasta e diversificada produção, mas em certa medida ainda
346
desconhecida da maioria dos leitores. Nesse sentido procurei articular a trajetória das
mulheres nesse produto cultural a fim de demonstrar que existem muitas mulheres
desenvolvendo quadrinhos, embora ainda sejam menos que os homens, e que elas
sempre estiveram presentes e colaboraram para o desenvolvimento desse produto.
Atualmente as quadrinistas e suas produções estão mais visíveis, em especial pelas
articulações desenvolvidas por elas, através das quais as mulheres forjaram espaços para
si e demarcaram o caminho trilhado por elas. Trabalho que ainda vem sendo feito na
intenção de que os quadrinhos sejam por fim apreciados e reconhecidos pelas
qualidades que venha a ter e não pelo gênero de seu autor.
347
―Nos recusamos ao silêncio ou a resignação! Nós temos voz e vamos lutar juntas‖
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TITS & CLITS. n.2. Long Beach, Califórnia: Nanny Goat Productions, 1976.
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TITS & CLITS. n.4. Berkeley, Califórnia: Last Gasp, 1977.
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contra-trump-em-todo-o-mundo Acesso em: 05 ago 2017.
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The Female Audience. 25 agosto 2014. Disponível em:
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creators/ Acesso em: 20 novembro 2019.
WET SATIN: Women's Erotic Fantasies, nº1, Berkeley, Califórnia: Last Gasp, 1976.
10. ANEXO I
◾ Puisque « la bande dessinée masculine » n‘a jamais été attestée ni délimitée, il est
rabaissant pour les femmes auteures d‘être particularisées comme créant une « bande
dessinée féminine ». Si cette appellation appose certaines caractéristiques stéréotypées
sur notre travail et notre manière de penser, alors nous, créatrices de bande dessinée, ne
nous y reconnaissons pas. En effet, autant nos confrères ne font pas appel à leur «
masculinité » pour leur création, autant nous ne faisons pas appel à notre « féminité ».¹
◾ Définir les goûts et aptitudes des gens selon leur sexe biologique ou leur genre est un
préjugé qui ne repose sur aucune réalité. Les études en neurobiologie et psychologie
expérimentale démontrent que le développement cognitif se fait de manière égale chez
les deux sexes.²
◾ L‘appellation « girly » ne fait que renforcer les clichés sexistes. Nous refusons l‘idée
que parler des soldes ou de cuisiner des cupcakes soit étiqueté comme « féminin ».
Aimer le shopping et/ou le football ne sont pas des caractéristiques sexuées. « Girly »
étant un terme généralement défini selon la futilité et/ou « sentimentalité » des sujets
traités, décider que ces caractéristiques soient de l‘ordre du féminin est misogyne.
◾ Publier des collections « féminines » est misogyne. Cela crée une différenciation et
une hiérarchisation avec le reste de la littérature, avec l‘universalité des lectures qui
s‘adresseraient donc – par opposition – au sexe masculin. Pourquoi le féminin devrait-il
être hors de l‘universel ? Différencier de la sorte, sur base de stéréotypes seulement, n‘a
que des effets négatifs sur la perception qu‘ont les femmes d‘elles-mêmes, sur leur
confiance en elles et leurs performances. Il en va de même pour les hommes, surtout
s‘ils se sentent attirés vers ce qu‘une autorité fantôme a catalogué de « féminin ». Tant
qu‘on continuera à faire du masculin la norme et du féminin une particularité inférieure,
les enfants persisteront à s‘insulter de « fille » et « d‘homosexuel » dans les cours
d‘école.
◾ « Féministe » n‘est pas une insulte. Le féminisme est la lutte pour l‘égalité
homme/femme dans nos sociétés, soit l‘anti-sexisme, et nous voulons promouvoir une
littérature plus égalitaire.
◾ Nous encourageons les libraires et les bibliothécaires à ne pas séparer les livres faits
par des femmes ou soi-disant adressés aux filles lorsqu‘ils organisent leurs étalages. Le
fait que des héroïnes soient plus présentes et actives que les personnages masculins ne
veut pas dire que les garçons et les hommes ne peuvent pas s‘y identifier et en aimer le
récit.
1. Étant donné que le féminin et le masculin sont des constructions socio-culturelles, nous
n’aurons pas la prétention d’en donner ici une définition cloisonnée.
Como "o quadrinho masculino" nunca foi definido ou limitado, qualificar mulheres criativas
como autoras de "quadrinhos femininos" é desacreditá-las. Se esta denominação atribui certas
características estereotipadas ao nosso trabalho e à nossa maneira de pensar, então nós, autoras de
quadrinhos, não nos reconhecemos nela. Assim como nossos colegas que não se atêm à sua
"masculinidade" para sua criação, não nos apegamos à nossa "feminilidade".
"O quadrinho feminino" não é uma categoria narrativa. A aventura, a ficção científica, o
romance policial, o romantismo, a autobiografia, o humor, a narrativa histórica, a tragédia são gêneros
narrativos que as mulheres autoras dominam sem restrições imputáveis ao seu sexo.
Definir os gostos e aptidões das pessoas com base em seu sexo biológico é um preconceito que
não se baseia em nenhuma realidade. Estudos em neurobiologia e psicologia experimental mostram que o
desenvolvimento cognitivo se desenvolve da mesma maneira em ambos os sexos.
A qualificação como literatura "feminina" / "de meninas" apenas reforça os tópicos sexistas.
Rejeitamos a ideia de que falar de temas como receitas seja rotulado de "feminino". Desfrutar de compras
e / ou futebol não são características sexuadas. "De meninas" é um termo geralmente aplicável de acordo
com a futilidade e / ou "sentimentalismo" dos sujeitos tratados, decidir que essas características definem o
feminino é misoginia.
A publicação de coleções "femininas" é misógina. Isso cria diferenciação e hierarquização com o
resto da literatura, com a universalidade das leituras que seriam direcionadas - pela oposição - ao sexo
masculino. Por que o feminino deveria estar fora do universal? Estabelecer essas diferenças, baseadas em
estereótipos, só gera efeitos negativos na percepção que as mulheres têm de si mesmas, na confiança em
sua capacidade e em seus resultados. O mesmo acontece com os homens, especialmente se são atraídos
por uma estranha autoridade chamada "feminina". Enquanto a norma for masculina e o feminino
continuar a ser inferiores, as crianças persistirão em usar insultos como "mulherzinha" ou "bicha" nos
ambientes escolares.
COLABORADORAS:
Carole
Lisa Lyons
Meredith Kurtzman
Trina Robbins
WIMMEN’S COMIX
COLABORADORA EDIÇÃO:
*:
# # # # # # # # # # # # # # # # #
1 2 3 4 5 6 7 8 9 1 1 12 13 14 15 16 17
0 1
Ann Hagler x 1
Andrea Natalie x 1
Aline Kominsky x x x x x x x 7
Alison Bechdel x x 2
Angela Bocage x xx xx xx xx xx x 13
x
Barbara ―Willy‖ x 1
Mendes
Barb Brown x x 2
Barb Rausch x x x 3
Bugs Herbert x 1
Carel Moiseiwitsch x x x 3
Carol Clement x 1
Carol Lay x xx 3
374
Carol Tyler x x x x 4
Carole Tyrrell x 1
Caryn Leschen x x x x x x x x xx 10
Cathy Millet xx 3
x
Cecily Lang x x 2
Cheela Smith x 1
Christine Powers x x 2
Cynthia Martin x 1
Dalison Darrow x x 2
Debbie Holland xx 2
Debra Rooney x 1
Deni Loubert x x 2
Diane Noomin x x x x x x x x x x x 12
x
Donna Barr x 1
Dori Seda x x x x x 6
x
Dot Bucher x x x x x 6
x
Edna Jundis x x 2
Heather Green x 1
Jackie Urbanovic x x 2
Janet Wolfe x 1
Stanley
Jennifer Camper x x 2
375
Jennifer x 1
Daydreamer
Joan Hilty x 1
Joyce Farmer x x x x x 7
x x
Joey Epstein x x x 3
Judy Becker x x 2
Julie Doucet xx 3
x
Julie Hollings x x 2
Kay Rudin x 1
Karen Marie x 1
Haskell
Kate Worley x 1
Kathryn LeMieux xx x x x x 7
x
Krystine Kryttre x x x 3
Lee Binswanger xx x x x xx x x x x x 14
xx
Lee Marrs xx xx x x x x xx 12
x x
Leslie Ewing x x x x x x x 7
Leslie Sternbergh x x 2
Linda Crothes x 1
Lynda Barry x 1
Lora Fountain x x 2
376
Lucie Kalouskova x 1
Margery Peters x x x x 4
Mary Fleener x x x x 4
Mary Wilshire x x 2
Mary Severin x 1
Mary Skrener x 1
Melinda Gebbie x x x x x x x 8
x
Melinda Wentzell xx 2
Michele Jurras x 1
Michelle Brand x x x 3
(Wrightson)
Myra Hancock x 1
Moria Wright x x 2
M.K. Brown x x x 3
Nancy Husari x 1
Nina Paley x 1
Olívia Clavel x 1
Pat Daley xx 2
Patricia Moodian xx x 4
x
Pauline Murray x 1
Peti Buchel x 1
Phoebe Adams x 1
377
Phoebe Gloeckner x x x x x x 6
Rebecka Wright x x x 3
Roberta Gregory x x x x x x 6
Rebecca Wilson x x 2
Rosemary Dinegar x 1
Salina x 1
Shary Flenniken x 1
Sharon Banks x 1
Sharon Farber xx 2
Sharon Rudahl x x xx x x x x x x x x x x 14
Shelby Sampson x x x x x x x 8
x
Shophie Crumb x 1
Simone Bressler x 1
Susan Catherine x 1
Susan E. Mills x 1
Suzy Varty x x 2
Terry Boyce x 1
Terry Richards x x xx x x xx 9
x
Trina Robbins x x x x xx x xx x x x x x x x x 17
Virginia Lombard x 1
Virginia L. Small x 1
COLABORADORA*: EDIÇÃO:
Beverly Hilliard x x 2
Carla Abbotts x 1
Carel Moiseiwitsch x x 2
Chris Powers x x x 3
Comicazie x 1
Cory x 1
Dennis Worden x 1
Dori Seda x 1
Dot Bucher x x x 3
Jennifer Malik x 1
Joey Epstein x 1
Joyce Brabner x 1
Joyce Farmer x x x x x x x 7
Julie Hollings x 1
Karen Feinberg x x x 3
Krystine Kryttre x 1
Lee Marrs x x 2
Leslie Sternberg x 1
Luna Ticks x 1
Mary Fleener x x 2
Melinda Gebbie x 1
Miriam Flambe x 1
Michelle Jurris x 1
Paula Gray x 1
Roberta Gregory x x 2
379
Rocky Trout x x 2
Ruth Lynn x x x x 4
Sharon Rudahl x 1
Shelby Sampson x 1
Terry Richards x 1
Trina Robbins x 1
* Nas revistas do Tits & Clits foi quantificada a atuação nas edições, não a quantidade de trabalhos.
DYNAMITE DAMSELS
COLABORADORA: Roberta Gregory
WET SATIN #1
Becky Wilson
Cathy Miller
Joey Epstein
Joyce Farmer
John Peck
Margery Peters
Melinda Gebbie
Lee Marrs
Shelby Sampson
Terry Richards
Trina Robbins
WET SATIN # 2
Joey Epstein
Joyce Farmer
Lee Marrs
Margery Peters
Mary Wilshire
Sharon Rudahl
Shelby Sampson
380
Trina Robbins
RESIST! VOL. 1
Alison Bechdel
Ellen Weinstein
Dame Darcy
Ghazaleh Rastgar
Jazmine Boatman
Julie Wilson
Kate Berube
Laura Murray
Lynda Barry
Roz Chast
RESIST! VOL. 2
Ana Juan
Anika Sabree
Kayla E.
Katherine Baldocchi
Kim Warp
Jaime Anderson
Jenny Kroik
Julie Wilson
Jolanda Obleser
LeighAnn Croft
Louisa Bertman
Madelon Cushman
Miriam Katin
381
Título:WIMMEN‘S COMIX
Subtítulo: International
Número: 5
Ano de Publicação: 1975
Páginas: ?
Editora: Last Gasp
Editoração: Trina Robbins e Terre Richards
Encadernação: Brochura
Cores: capa frontal e traseira colorida/ interior preto e branco
Capa Flexível
Idioma: Inglês
Preço de capa: $0,75
Tipo de publicação: Revista
Formato de publicação: Série
Título: RESIST!
Subtítulo: A woman‘s place is in the revolution!
Número: 1
Ano de Publicação: janeiro 2017
Páginas: 40
Editoração: Françoise Mouly; Nadja Spiegelman
Editora: RAW Books & Graphics
Local: New York
Encadernação: jornal/ tablóide
Cores: colorido
Capa Flexível
Idioma: Inglês
Preço de capa: distribuição gratuita
Tipo de publicação: jornal
Formato de publicação: série
Título: RESIST!
Subtítulo: Grab back
Número: 2
Ano de Publicação: julho 2017
Páginas: 96
Editoração: Françoise Mouly; Nadja Spiegelman
Editora: RAW Books & Graphics
Local: New York
Encadernação: Brochura
Cores: colorido
Capa Flexível
Idioma: Inglês
Preço de capa: distribuição gratuita
Tipo de publicação: revista
Formato de publicação: série
390
Lista de personagens: