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Cuiabá
2009
1
Cuiabá-MT
Junho de 2009.
2
CDU 94:331-058.243.4(817.2)
3
Banca Examinadora
Cuiabá-MT
Junho de 2009.
4
Dedicatória
Aos vários Peões, que com sua coragem, denunciaram o trabalho escravo
fazendas.
Amazônia. “Minhas causas valem mais que minha vida”. (D. Pedro Casaldáliga).
5
Agradecimentos
As amigas Leuter Inês de Carvalho, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti e o amigo Pe.
Félix Valenzuela, com vocês aprendi a querer sempre mais e a trilhar novos caminhos, sem
esquecer o próximo.
Aos amigos Egidio Clair Quinhões e Maria Bonfim Souza Torres, que sempre me
incentivaram e acreditaram que seria possível desenvolver a pesquisa.
A amiga Analucia Ribeiro de Sousa, sempre atenciosa, suas palavras sempre foram
animadoras.
A amiga Rosimeire Santos Souza, que mesmo distante está sempre presente na minha
vida.
As amigas Francielme Mendes e Noemi Ruthi Wong Goméz, com quem compartilhei
momentos de angústias, aflições e alegrias no período em que estive em Cuiabá.
Ao D. Pedro Casaldáliga, sempre disposto a falar, denunciar, lutar e enfrentar o
problema do trabalho escravo contemporâneo no Brasil e no mundo.
A amiga Regina Beatriz Guimarães Neto, que aceitou fazer parte da minha banca,
trazendo uma contribuição impar para este trabalho, e que tem um carinho especial pelas
pesquisas e as pessoas do Araguaia.
A professora Drª. Ângela Maria de Castro Gomes, suas contribuições foram importantes
para o meu trabalho.
Aos vários peões que me concederam entrevistas e conversas, sem a colaboração de
vocês seria impossível desenvolver este trabalho.
À Universidade do Estado de Mato Grosso- Campus de Luciara- Núcleo Pedagógico de
Confresa.
À CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior que me
concedeu a bolsa que possibilitou a realização do mestrado.
À Prelazia de São Félix do Araguaia que possibilitou a pesquisa em seus arquivos.
Ao meu orientador João Carlos Barrozo, que com suas preciosas orientações e amizade
foi possível desenvolver este trabalho.
Por várias razões o resultado dessa pesquisa é um esforço coletivo de pessoas que fazem
parte da minha vida.
Sou grata a todos vocês...
7
Sumário
Introdução----------------------------------------------------------------------------------------------13
discussões----------------------------------------------------------------------------------------------83
Referencias bibliográfica---------------------------------------------------------------------------151
Anexos------------------------------------------------------------------------------------------------162
8
Lista de abreviaturas
CP – Código Penal
PF – Policia Federal
Norte e Nordeste
9
TL – Teologia da libertação
Lista de figuras
Resumo
Abstract
This dissertation shows the life trajectory of workers, men and womem who move from one
place to another seeking a work and a better life. Though, many have found a violent scenario
and human degradation in this new place. These people make up an important part of the History
of Araguaia, in the Northeast of Mato Grosso. During the development of this narrative, we
analysed various sources that recorded memoirs, representations, social and political practises
experinced by the different groups during the settlement of Araguaya territory. This dissertation
is based on oral and written reports, maps, photographies, and e video camera.The settlement of
the Northeast of Mato Grosso, by big companies, and encouraged by the federal goverment since
the 70's in the twentieth century have revealed multiple conflicts, clashes and disputes due to the
use and possession of land. The research which was carried out for this dissertation shows the
complexity and uniqueness of the relationship in the world of business. The precariousness or
lack of work, new ways of exploitation, in which some are more subtle, others aren´t, which leads
to the exploitation and degradation of the worker. The approach of life trajectories for walkers
showed different strategies to escape from the imprisonment, of overexploitation, of various ways
of violence in the world of work.
Introdução
contemporâneo de seu objeto e, portanto partilha com aqueles cuja história narra, as mesmas
de homens e mulheres que se deslocam no território amazônico, que aqui serão apresentadas,
narrativa entrecruzando uma diversidade de fontes orais e escritas documentos escritos com a
A escrita da história ao ser considerada por Certeau (1982, p. 66) como uma
operação, ele destaca que “[...] a operação histórica se refere à combinação de um lugar social,
de práticas “cientificas” e de uma escrita”. Como também essa escrita segue regras, e controles
que nos possibilitam criar uma narrativa com efeitos de “verdades”. É como montar uma
mulheres que se deslocam de um lugar a outro em busca de trabalho e melhoria de vida, mas que,
estamos nos referindo apenas à parte situada em Mato Grosso (Baixo e Médio Araguaia), na
divisa com o sul do Pará. São quinze municípios que compõem a micro-região Araguaia/Xingu,
com uma população de aproximadamente 100.000 habitantes (IBGE, 2007). Esse espaço
corresponde à área da Prelazia de São Félix do Araguaia. Ao longo da dissertação nos referimos a
Araguaia”. Por esta razão optamos por manter essa terminologia, que para aquele grupo social
1
A denominação Araguaia utilizada nesse trabalho compreende o Nordeste do Estado de Mato Grosso, do qual
fazem parte os seguintes municípios: Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia, Confresa, Canabrava do Norte,
Luciara, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Querência, Ribeirão Cascalheira, São Félix do Araguaia, São
José do Xingu, Santa Cruz do Xingu, Santa Terezinha e Vila Rica. Essa denominação acrescida do município de
Cerra Nova Dourada, constitui a micro-região do norte do Araguaia (com exceção do município de Querência esse
na micro região da Canarana ( segundo dados do IBGE) , sendo ainda a área de jurisdição da Prelazia de São Felix
do Araguaia, Prelazia criada em 13 de março de 1970, através do Decreto Papal “Quo Commodius” assinado por
Paulo VI. São 14 municípios da micro região norte do Araguaia e um, Querência, da micro região de Canarana.
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AM AZONAS
PARÁ
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0 70Km
Escala
M ATO GROSSO DO SUL
SC Ribeirão
Cascalheira
RS
século XX, estendendo-se até os primeiros anos do século XXI (1970 a 2005). A partir da
momento em que, no Araguaia2, está no auge a abertura das fazendas; é nesse período que vieram
localizados nas agropecuárias. Deve-se ressaltar o papel de destaque que teve a Prelazia de São
Félix do Araguaia, criada na década de 1970, bem como o seu enfrentamento com os grandes
Araguaia. Esta dissertação baseou-se em relatos orais, em fontes escritas, mapas, fotografias e
Ressaltamos a importância do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia que possui uma rica
conversando prioritariamente com agentes sociais envolvidos 4 como estratégia para compreender
as trajetórias de vida dessas populações pobres, os peões5, que migram à procura de trabalho,
2
Se levarmos em conta a localização geográfica do Rio Araguaia situada no estado de Mato Grosso, podemos
considerar que este território esta no Baixo Araguaia.
3
O Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia possui uma importante documentação sobre a luta pela terra no
território do Araguaia. Neste arquivo, a documentação encontra-se digitalizada e disponibilizada para consulta. Foi
um das principais fontes documentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Ver site da Prelazia,
www.alternex.com.br/~prelazia
4
Agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, agentes da CPT – Comissão Pastoral da Terra,
presidentes de Sindicato dos Trabalhadores Rurais e os peões.
5
Peões - definido no dicionário Aurélio (2005) como: individuo recrutado em geral em outro Estado como mão-de-
obra para as grandes empresas radicadas na Amazônia; ajudante de boiadeiro; trabalhador rural; amansador de
cavalos, burros e bestas; condutor de tropa. Contudo, essas de
nominações necessitam ser significadas no curso das ações dos trabalhadores pobres e mais, nas especificidades de
suas experiências. Neide Esterci (1987), ressalta que este termo carrega noções de inferioridade, impregnadas de
negatividade que desqualificam os trabalhadores. Optamos nesta dissertação pelo termo peão para designar os
trabalhadores. Durante as entrevistas eles mesmos se alto designavam como peão.
17
melhoria de vida, em busca de um sonho, objeto de nosso estudo. Como destacou Ana Maria de
tempo presente, porque se trata de estudar acontecimentos históricos, “[...] à luz de depoimentos
relatarem suas histórias revisitam a memória trazendo fragmentos do que foi vivido, em que
muitas vezes o passado e presente entrecruzam-se em suas falas. A história dessas pessoas como
diversos”. São histórias entrelaçadas na luta pela terra, pela sobrevivência, em busca de sonhos na
maioria das vezes inalcançáveis. Nesse entrelaçar de histórias muitos desses trabalhadores
relatam suas histórias como se tivessem vivenciado duas vidas; uma a que sonhou e a outra a
realidade encontrada nas fazendas, povoados e pensões em que chegavam. Foram aventuras que
peão, “[...] a aventura vai ficando velha, a cabeça vai ficando branca, quando a gente sai do
serviço sai pobre”6. Ao envelhecerem os peões continuam pobres, longe das famílias e já não
6
Entrevista realizada com I. S. em São José do Xingu, maio de 2008.
18
servem mais como mão-de-obra nas fazendas, perambulando nas periferias das cidades. Muitos já
No procedimento de análise das fontes orais recorremos a vários autores 8, que através
da história oral. Nessa perspectiva, a história será reconstruída atribuindo-lhe significados, visto
que “[...] a memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, que há tantas memórias
quantos grupos existentes, que ela é por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada”. (Nora, 1993, p. 9). Sob este aspecto, este trabalho apresenta parte da história da
decorrer da pesquisa, em parte fragmentados, porém ricos. Entendemos que “[...] a memória não
nos perante o desafio de dialogar com as memórias do trabalho que os peões constroem e suas
dimensões no processo de degradação e violência vivenciado por eles. No entanto precisamos ser
cautelosos com os afazeres da memória como (re) significação do mundo do trabalho. Essas
pessoas se referem ao trabalho nos relatos, atribuindo-lhe um significado que vai além de uma
7
Em São José do Xingu-MT, existe um casa que abriga peões velhos, que não encontram mais trabalhos nas
fazendas. Nesta casa há alguns que moram lá a mais de 6 anos, estive neste local e conversei com vários deles,
muitos não sabem mais da família, ou tem vergonha de procurá-los, pois estão velhos e pobres. Este local foi
organizado por um peão que conseguiu juntar um pouco de dinheiro e criou uma Associação com vários outros
moradores de São José do Xingu. Hoje é mantida pela prefeitura municipal.
8
Montenegro (2003, 2005) Guimarães Neto (2006, 2008), Nora (1993), Alberti ( 1990), Maria Isaura P. de Queiroz
(1983, 1988),
19
simples ocupação ou apenas um salário para garantir a sobrevivência cotidiana. Denota a busca
representa as suas frustrações, angústias e sonhos não realizados. Como destacou Montenegro
(2003, p. 22), “[...] no momento em que os entrevistados narram acontecimentos que transcendem
o fazer mais imediato de suas vidas, são sempre os elementos que têm aspectos comuns com as
Nessa perspectiva, podemos destacar nas falas como a violência física ou psicológica
a que foram submetidos os peões, a saudade das famílias, a vergonha de não poder voltar porque
não conseguiram melhorar de vida, as distâncias percorridas, são acontecimentos que marcam de
maneira profunda suas vidas. Foram vidas que se esfacelaram, em busca de um sonho, ou pelo
menos de uma vida não tão sofrida. Essas falas também são reveladoras do universo da
perceber o quanto, através de pequenos gestos, falas e ações, essas pessoas reivindicam a sua
condição de pessoa humana, sua dignidade; “[...] dona eu não sou vagabundo, olha as minhas
mãos, eu trabalhei, quero só o que tenho direito” 9. Mostrar as mãos com cicatrizes produzidas
pelo trabalho pesado, exaustivo durante entrevistas e conversas com eles, era um gesto constante.
Com este gesto eles estavam denunciando a violência e humilhações que haviam sofrido.
Verena Alberti (1989, p 07), contribui com essa discussão chamando a atenção do
9
Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
20
Nos depoimentos dos peões podemos considerar que há particularidades que podem
relacionamentos, são como uma marca particular de cada um, que os diferenciam. Nos relatos,
eles realizam mentalmente uma cartografia dos espaços percorridos como no relato a seguir: “[...]
estive lá naquela fazenda, que fica do outro lado do rio Xingu; [...] quando saímos do Piauí,
trabalhei no Goiás, depois vim para Mato Grosso, cheguei e fui trabalhar lá na Codeara, lá perto
do Rio Araguaia”. 10
transformação se dá através de suas práticas. Os peões dão um novo sentido ao lugar, passando
do mundo sonhado ao inferno vivido no interior das fazendas. “[...] Eu fui para a fazenda
enganado. Chegando lá era obrigado a trabalhar das 5 da manhã às 7 da noite, se não eu apanhava
Há uma constante transformação do espaço social. Para eles cada lugar tem um significado
diferente, pois foram experiências que marcaram parte de suas vidas que passaram nesses lugares.
Eles vivem deslocando-se de um lugar a outro, mas quase sempre sem encontrar o seu próprio
lugar, se sentem como estrangeiros dentro da própria pátria. Como considerou Certeau ( 1994, p.
10
Entrevista realizada com I .S. em maio de 2008, em São José do Xingu/MT.
11
Entrevista com C. P. S. realizada em julho de 2006 em Confresa-MT.
21
183) “[...]um universo de locações freqüentada por um não-lugar ou por lugares sonhados”. No
Desse modo, os relatos de memória desses homens e mulheres que narram suas
experiências sobre a abertura das fazendas no Araguaia, trazem múltiplas leituras da (re)
ocupação desse espaço. Assim, as experiências vivenciadas nesse período podem ser entendidas
como leituras múltiplas, plurais de cada narrador que viveu o cotidiano do trabalho nessas áreas
de ocupação recente.
variáveis e heterogêneos, o que nos possibilita diferentes análises. Guimarães Neto (2002), tem
profícuo. É importante se destacar que existem grupos distintos que mesmo estando no mesmo
território amazônico possuem singularidades e práticas próprias. Como destacou Guimarães Neto
(2008, p. 18) referindo-se aos relatos de trabalhadores que circulam pelo território Amazônico,
pelo governo federal, a partir da década de 70 do século XX tem revelado múltiplos conflitos,
embates e disputas pelos usos e posse da terra. A partir de 1964, os governos militares,
materializado pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/64). A política de integração nacional, parte do
22
projeto civil-militar para o Brasil iniciada na década de 70 do século XX, deveria segundo seus
desses novos espaços (Guimarães Neto, 2002). Mas o que ocorreu foi à concentração de grandes
conflitos de duração prolongada, principalmente porque essas terras consideradas “vazias” eram
ocupadas, há muito tempo, por índios, pequenos agricultores e posseiros. De acordo com Ianni
Segundo José de Souza Martins (1997), este território desde o início da sua conquista
na busca e coleta das plantas conhecidas como “drogas do sertão‟, e também, na coleta do látex e
da castanha. Mas, “[...] a partir de 1964, a Amazônia transformou-se num grande cenário de
ocupação territorial violenta e rápida” (1997, p. 47). Outros autores que também tem estudado o
tema da ocupação da Amazônia podem ser mencionados no que diz respeito ao movimento de
expansão, apropriação e reconfiguração das suas terras. Entre esses autores que se dedicam a
estudar essa questão podemos destacar: José de Souza Martins (1973; 1975; 1997); Alcir Lenharo
23
(1985); José Vicente Tavares dos Santos (1994); Regina Beatriz Guimarães Neto (2003; 2005;
2007; 2008) Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1989; 1997), Octávio Ianni (1978; 1979), João
Carlos Barrozo (1992; 2008) Carlos Walter Porto Gonçalves (2005), entre outros.
diversos autores que desenvolveram pesquisa sobre o tema na Amazônia como: Neide Esterci12,
Ricardo Resende Figueira13 (2004), Binca Le Brenton14 (2002), João Carlos Barrozo15 (1992),
Pedro Casaldáliga16 (1971), José de Souza Martins17 e Ângela de Castro Gomes (2007).
agropecuários financiados pelo Governo Federal, através da SUDAM 18. Para a instalação das
para abrir a mata, fazer cercas, plantar pasto. Estes trabalhadores foram aliciados por fazendeiros
e gatos19, sobretudo nos estados do Nordeste e de Goiás, com promessas de ganhar dinheiro fácil
e o sonho de uma vida melhor, um futuro promissor para eles e seus familiares. Esses
12
Antropóloga que morou e desenvolveu pesquisa na área de Prelazia de São Félix do Araguaia no final da década
de 1970 e inicio de 1980.
13
Padre que trabalha na CPT no sul do Pará e desenvolveu pesquisa no Araguaia também, fez mestrado e doutorado
em antropologia sobre a temática do trabalho escravo contemporâneo.
14
Jornalista inglesa que mora em Minas Gerais e escreveu um livro (Vidas Roubadas) sobre o tema, abrangendo
áreas do sul do Pará e o Baixo Araguaia.
15
Sociólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso desenvolveu, uma pesquisa para dissertação de
mestrado sobre o trabalho escravo contemporâneo nas agropecuárias de Mato Grosso.
16
Bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, uma das primeiras pessoas a fazer denúncias da prática do
trabalho escravo contemporâneo na Amazônia.
17
Sociólogo e professor da USP possui, pesquisa sobre a Amazônia.
18
A criação do Banco de Crédito da Amazônia (atual BASA Banco da Amazônia), e da SUDAM, ambas em 1966,
tinha por objetivo estimular os projetos de ocupação da região Amazônica. Em 1970 foi lançado o Programa de
Integração Nacional (PIN), marco de uma ação mais ostensiva do Governo Federal sobre toda a região, criado
através do decreto lei nº 1.106, de 16/06/70. O primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-1974), elaborado
sob a orientação do ministro do Planejamento Reis Velloso, esteve mais voltado para grandes projetos de integração
nacional (transportes, inclusive corredores de exportação, telecomunicações).
19
Agentes contratados por fazendeiros/latifundiários para aliciar os peões e vigiá-los nas fazendas para onde foram
enviados. Segundo Corrêia (199, p. 77) “em alguns casos, o gato pretende-se investido da qualidade de empreiteiro,
dotado de relativa autonomia; em outros, mais se aproxima de mero líder de turma, sofrendo espoliações similares à
experimentada pelos demais trabalhadores, com os quais usualmente presta serviço. Em ambos os casos, porém,
resulta clara a intermediação fraudulenta de mão-de-obra, aplicada em atividades essenciais ao tomador dos serviços
e em seu manifesto proveito, o que caracteriza sua responsabilidade final pela relação de trabalho”.
24
interior das fazendas; outros foram mortos ou submetidos ao trabalho escravo contemporâneo.
utilização do trabalho escravo contemporâneo, porque além da riqueza concentrar-se nas mãos de
e renda para os pequenos agricultores, pois não há como estes concorrerem com a grande
produção. Esses agricultores sem a terra e sem financiamentos são forçados a migrar,
abandonando seus locais de origem em busca de melhores oportunidades. Não suportando mais a
pobreza em seus estados de origem, saem à procura de trabalho em outros estados, onde são
aliciados por empreiteiros e gatos. São esses trabalhadores que estão mais expostas à prática do
Embora houvesse uma população carente na Amazônia, que poderia ter ocupado as
terras, a opção foi pela distribuição de extensas áreas, com incentivos fiscais e empréstimos
milionários para as grandes empresas, inclusive multinacionais. A Volkswagem foi uma das
empresas que ocupou uma grande área no sul do Pará, posteriormente envolvida em denúncias de
trabalho escravo. As áreas que localizam-se fora das rodovias dificulta o acesso do grupo de
estabeleceram-se no Araguaia: Codeara, Suiá Missu, Tamakavi, Bordon, Frenova, entre outras.
Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o que demonstra que
este fenômeno não está vinculado apenas à abertura de novas áreas, mas a outros elementos que
como forma de obtenção de mão-de-obra para as grandes fazendas. Geralmente estas estão
instaladas em locais distantes de onde saíram os trabalhadores. Estes, atraídos com promessas de
um trabalho decente e bem remunerados, se constituem em uma presa fácil para os aliciadores. A
composição da dívida com o gato se inicia pela cobrança do transporte dos trabalhadores, pelo
possuem um período de duração curta, o que dificulta a fiscalização, pois em grande parte quando
os fiscais chegam já não há mais trabalhadores (Figueira, 2004). Portanto, esta prática de
exploração do trabalhador pode estar apontando para novas formas de exploração no mundo do
supressão de direitos sociais. Nas últimas décadas do século XX, as denúncias sobre a escravidão
passou a adotar uma série de medidas para coibir essa prática. Entre elas podemos destacar o
Plano Nacional para a erradicação do trabalho escravo, lançado pelo governo federal em 200320.
No cenário internacional, a O.I.T. elaborou novas recomendações para que os países signatários
legal do escravo. Era muito mais caro comprar e manter um escravo do que hoje. O negro
africano era um investimento dispendioso que poucas pessoas podiam ter. Hoje, o custo do
trabalhador explorado nas fazendas é muito baixo. Paga-se apenas o transporte e, no máximo, a
dívida que a pessoa possui em algum comércio ou pensão. O valor desta dívida será descontado
condições em troca de um trabalho que lhe permita o sustento próprio e de sua família. Como
assinalou Bourdieu (1997, p. 164) “[...] os que não têm capital são mantidos à distância, seja
física ou simbólica, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou
dos bens mais indesejáveis e menos raros”. No caso dos peões desprovidos da posse de qualquer
20
Este plano encontra-se disponível no site do Ministério do Trabalho e emprego www.mte.br.
21
A ONG Repórter Brasil possui, no seu site www.reportebrasil.com.br , vários tipos de informações dobre a
temática do trabalho escravo contemporâneo, como também vários artigos e reportagens, constituindo-se em uma
importante fonte de pesquisa.
27
bem, a não ser sua força de trabalho, são empurrados para as fazendas onde possivelmente serão
coordenação dos grupos de Fiscalização Móvel, que combatem o trabalho escravo no Brasil
desde 1995, a auditora Ruth Vilela, secretária de Inspeção do Trabalho do governo federal,
violência, são pessoas pobres que por diversas razões, vivem em constantes deslocamentos.
Chegam às novas áreas de abertura de fazendas a procura de trabalho e, na sua grande maioria
sem qualificação, sem documentos, são considerados como um incomodo nas cidades e vilas.
algumas mais sutis, outras escancaradas, mas ambas levam à exploração e degradação do
trabalhador.
Assim, a abordagem das trajetórias de vida dos peões revelou estratégias diversas
mundo do trabalho. São essas pessoas que também construíram a história do Araguaia, que se
22
Entrevista cedida ao Jornal O Globo disponível em www.globo.com/oglobo , acessado em janeiro de 2008.
28
No arranjo dos capítulos que integram esta dissertação procuramos articular as fontes
compreender o espaço em que desenvolvemos a pesquisa. Faz-se uma análise das políticas
públicas que contribuíram para a reconfiguração daquele espaço, dentro do projeto de ocupação e
escravo contemporâneo e em defesa dos posseiros, índios e peões. O bispo, D. Pedro Casaldáliga,
juntamente com os padres e agentes de Pastoral, enfrentaram o regime militar na década de 1970,
No terceiro capítulo procuramos realizar uma discussão sobre o uso do termo trabalho
escravo contemporâneo, considerando que, ao utilizarmos o termo “trabalho escravo”, este foi re-
significado, chamando a atenção para um novo fenômeno que surge no mundo do trabalho na
contemporaneidade. Este possui especificidades próprias nas novas formas das relações de
trabalho.
através das memórias de homens e mulheres, e a trajetória de vida dos peões, através de
sobre os peões que se deslocaram para o Araguaia, indicam um intenso movimento de homens e
história desses trabalhadores no Araguaia está cercada de imagens que são amálgamas de sonhos,
realidades e irrealidades. As experiências vivenciadas por essas pessoas são reconstruídas com as
memórias dos tempos das aberturas das fazendas, das festas nos cabarés, e do afastamento das
Os relatos de memória desses homens e mulheres que narram suas experiências sobre
a abertura das fazendas no Araguaia trazem múltiplas leituras dessa (re) ocupação. As
experiências vivenciadas nesse período pelos trabalhadores podem ser entendidas como leituras
23
Os documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, encontram-se digitalizados, sendo permitido
pesquisas nos arquivos. Neste arquivo as pastas estão divididas por temática e por Municípios que fazem parte da
Prelazia. No site da prelazia www.alternex.com.br/~prelazia é possível encontrar várias informações.
30
Capitulo I
áreas de abertura de grandes fazendas, no nordeste de Mato Grosso, Baixo Araguaia. Esses
Ainda que o início do século XX não esteja inserido no recorte temporal selecionado
para este trabalho, consideramos importante voltar a esse período para compreender a
procedência das pessoas que ocupam o espaço estudado. Pois é através de suas histórias que
iremos construir nossa narrativa, trabalhando com as complexas relações sociais, econômicas,
políticas, culturais e espaciais que estão constituindo-se entre, o posseiro, o fazendeiro, o peão, o
possibilidade de construir uma vida com menos sofrimento. Na Amazônia, no inicio do século
Nordeste do país. De acordo com Guimarães Neto (2007, p. 89): “[...] famílias inteiras, com a sua
24
A Amazônia Legal possui uma extensão de 5.109.812 km², que corresponde a cerca de 60% do território nacional.
Por ser a maior parte dessa área coberta por florestas, com grande dificuldade de acesso, ficou por vários anos sem
ter sua ocupação e exploração como prioridades dos governos. Essa situação, contudo, começou a se modificar
quando foi verificada a possibilidade de exploração dos valiosos recursos naturais descobertos na região. Pode-se
dizer que o marco inicial dessa fase foi a exploração do látex para a produção da borracha no final do século XIX.
Essa exploração proporcionou grande desenvolvimento econômico para a Amazônia, possibilitando a geração de
divisas para o país. Ao mesmo tempo, atraiu uma população miserável que buscava uma oportunidade de sustento,
mas que acabou sendo explorada como escravo. Essa história de exploração econômica da Amazônia foi
acompanhada de violência e exploração do homem, situação que perdura até os dias de hoje. Informação disponível
em: <http://www.ada.gov.br/amazonia.asp>. Acesso em 28 de maio de 2007.
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história de vida e morte, abandonaram sua terra, procurando fugir à miséria, à seca. Lutando
Num primeiro momento com o ciclo da borracha e, a partir da década de 1940 com a
que foram levados, sobretudo, dos estados do Nordeste para os seringais na Amazônia. Durante a
segunda guerra mundial, o governo brasileiro firmou acordos com o governo norte-americano
para suprir aquele país com a matéria prima para a fabricação da borracha (Hevea brasiliensis e
Castilloa elástica). O governo brasileiro organizou uma campanha nacional para incentivar a
migração dos nordestinos para a Amazônia, no que foi denominado pelo governo como “a
trabalhar na abertura das fazendas e a colonização privada ou pública com os colonos da Região
Podem-se distinguir no país três grandes correntes migratórias, duas das quais
orientadas para a região amazônica. Uma delas é a já antiga e conhecida
corrente que leva trabalhadores do Nordeste para o Sul, particularmente para o
25
Ver o trabalho de GUILLEM, Izabel Cristina Martins. Errantes da Selva História da Migração Nordestina para a
Amazônia. Recife, Ed. Universitária UFPE, 2006, IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social da terra e da luta
pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1978 e Guimarães Neto, Regina Beatriz – Cidades da Mineração:
memória e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá Carlini & Caniato; EDUFMT,
2006.
26
Ver sobre a Ocupação recente de Mato Grosso os trabalhos de Guimarães Neto (2002), Oliveira (1989) Santos (
1993) Souza ( 2004), Barrozo ( 2000), entre outros.
33
São Paulo, Rio e Paraná. [...] um outro fluxo migratório do Nordeste em direção
ao Norte e ao Centro-Oeste, o que basicamente quer dizer Amazônia Legal.
Uma outra grande corrente migratória, mais recente, é a que se dirige do Rio
Grande do Sul e do Paraná para Mato Grosso e Rondônia (Martins, 1980, p.
82).
regiões do país, que foram ocupar esse território No primeiro momento chegaram famílias que
formam pequenos povoados às margens do rio Araguaia (inicio do século XX), constituído por
uma migração espontânea. Os primeiros povoados foram Furo de Pedra (Santa Terezinha), Mato
Verde (Luciara) e São Félix do Araguaia. Nesse primeiro momento chegam famílias do
Maranhão, Goiás e Pará (Soares, 2004). Essa migração dá-se através de uma rede de parentesco e
compadrio que procuram melhores condições de vida e novas terras. Segundo Soares (2004, p.
Muitas dessas pessoas chegam para o Araguaia no inicio do século XX, algumas
vezes vinham alguns membros (mais especificamente o pai e algum dos irmãos mais velhos) para
olhar as terras e depois voltavam para buscar os outros integrantes do grupo familiar. Em alguns
casos estavam de passagem para os garimpos do leste mato-grossense e constituíam família nesse
lugar. Como também alguns grupos foram para o Araguaia seguindo a representação mítica das
“bandeiras verdes” 27. Essas pessoas como observou Guimarães (2007, p. 90):
27
Profecia de Padre Cícero, de que os nordestinos deveriam seguir para o Oeste onde havia matas e rios que não
secavam, ver os trabalhos de Martins ( 1992) Lima (2002) Capelete (2002).
34
Essa população que ocupou as margens do Araguaia, até inicio da década de 1950,
vivia principalmente da caça, pesca, extrativismo e venda de pele de animais para barcos que
navegavam pelo rio Araguaia. Os caçadores/coletores trocavam as peles de animais por sal, café,
tecido e açúcar.
Antes da ocupação desse território por migrantes de vários estados, esse espaço era
ocupado por povos indígenas das etnias: Xavante, Karajá, Tapirapé e Kaiapó. Os Karajá habitam
às margens do Araguaia há mais de três séculos, convivendo sem grandes conflitos com as
populações que chegaram no inicio do século XX. O Kaiapó, um povo guerreiro, aparece nos
relatos como um povo que vivia em constantes conflitos com os não índios e índios de outras
28
etnias, como os Tapirapé que foram quase dizimados por eles. Como destacou Soares (2004,
p. 52)
28
Sobre a sobrevivência e reorganização desse povo ver o “Diário das Irmãzinhas de Jesus”, lançado em 2004, em
comemoração aos 50 anos de convivência dessas irmãzinhas com o Povo Tapirapé e BALDUS, Herbert.
TAPIRAPÉ: Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo, Companhia Editorial Nacional, 1970.
35
nordeste do país e do sul do Pará, juntamente com as etnias que já habitavam esse espaço
importante núcleo urbano do sul do Pará (Ianni, 1978), tornando-se para as pessoas que vinham
do nordeste do país para os garimpos do leste de Mato Grosso um importante lugar de passagem.
a Santa Terezinha, Luciara e São Félix do Araguaia vindos, sobretudo do Maranhão, essas
economia dos povoados do sul do Pará, que se constituíram em função da expansão da borracha.
Com a crise da borracha31, os garimpos do leste de Mato Grosso, atraíram grande parte dessa
população que subiu o Rio Araguaia em direção às áreas de garimpos (Soares, 2004).
29
Sobre esses conflitos e contatos inter-étnicos ver o trabalho de WANGLEY, Charles. Lágrimas de boas-
vindas:índios Tapirapé do Brasil Central. São Paulo, Edusp, 1988, BALDUS Op. cit.
30
Octávio Ianni desenvolveu um importante trabalho sobre Conceição do Araguaia. IANNI, Octávio. A luta pela
terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1978.
31
Sobre a expansão e a crise da borracha consultar o trabalho de WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia:
expansão e decadência (1850- 1920). São Paulo, UCITEC, 1993 e Ianni, op. cit.
36
de animais. Foi o caso da família do senhor Cecílio Carlos Pereira. Seu pai, Martiniano Carlos
Pereira, chegou no inicio da década de 1920, no povoado Furo de Pedra (hoje Santa Terezinha),
vindo do Maranhão, perfazendo o caminho a pé, a cavalo e em alguns trechos de canoa, levando
consigo toda a família. Cecílio casou-se e constituiu família. Mais tarde na década de 1940,
deixou sua família no povoado e partiu para garimpo no leste de Mato Grosso, retornando anos
mais tarde. No princípio conseguiu um pouco de dinheiro, o que proporcionou melhorias para a
família. O senhor Cecílio teve nove filhos, sendo quatro deles homens que mais tarde, já na
Muitos dos que migraram para o Araguaia, antes de estabelecerem-se nos povoados,
moraram e trabalharam na Ilha do Bananal34. A maioria dessas pessoas não tinha um lugar
definido para se fixar, pois vinham seguindo informações verbais de outras pessoas que já
Essas pessoas migraram para escapar da extrema pobreza nos locais de origem
(Nordeste e Goiás) e à procura de terras férteis para plantar (Soares, 2004). Para esses migrantes
a Ilha do Bananal se apresentava como a concretização de melhoria de vida, como destaca em seu
depoimento, um ex-morador:
Nós viemos para a Ilha do Bananal em 1968, por causa da criação de gado.
Quando casei com Jú eu era pobrezinho, e o meu sonho era ser fazendeiro, e eu
tinha uma terra e um pouco de gado, mas aquele lugar (Maranhão) era tão
32
Sobre as migrações para os garimpos em Mato Grosso ver os trabalhos de Guimarães Neto, Regina Beatriz –
Cidades da Mineração: memória e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá
Carlini & Caniato; EDUFMT, 2006 e BARROZO, João Carlos, Em busca da pedra que brilha como estrela: garimpo
e garimpeiros do Alto Paraguai. Cuiabá, Carlini & Carniato EDUFMT, 2007, entre outros.
33
Informações obtidas a partir de entrevistas com Maria de Lourdes Carlos, filha de Cecílio Carlos Pereira.
34
Sendo a maior ilha fluvial do mundo, este espaço foi ocupado, desde o final do século XVII, por populações
indígenas de várias etnias. Somente a partir do final do sec. XIX é que passou a ser ocupada por não índios.
37
pobre, cheio de erva, o gadinho que tinha, que nós arrumamos, o gado secava e
morria na saída das águas, ( depoimento de J. A. G. C. apud, Cardoso, p. 6).
fatores que levam as pessoas a migrarem; fome, seca, procura por terras livres, melhores
fácil, como considerou Barrozo (2007, p. 130) em sua pesquisa sobre garimpo e garimpeiros do
retraem-se de acordo com os ciclos econômico”. E Aragon (apud, Barrozo, 2007, p. 131) assinala
que: “[...] as pessoas que migram muitas vezes vão à procura de uma retribuição pessoal, mas
como integrante de uma estratégia grupal, cujo objetivo é melhorar as condições de vida ao nível
Trabalhando também com migrações para a Amazônia, Guimarães Neto (2006, p. 97-
momentos da história do país, agindo conforme seus interesses sem levar em conta as
necessidades dos pequenos agricultores, trabalhadores sem terra, pessoas que se deslocaram de
seus locais de origens. O Estado deixou os trabalhadores e pequenos agricultores à própria sorte
quando estes já não atendiam aos interesses dos governantes, como sucedeu com os “soldados da
borracha”, abandonados nos rincões da Amazônia, de onde muitos nunca mais conseguiram
voltar ao seu lugar de origem (Guillem, 2007). De forma análoga aconteceu com os colonos do
Sul, que foram atraídos pela colonização, pública ou privada. Ao chegarem às terras de Mato
Grosso, de Rondônia e outras áreas do território amazônico, não puderam contar com o apoio do
chegada das empresas agropecuárias subsidiadas pelo governo federal. As terras antes comunais35
passam a ser propriedade privada, gerando vários conflitos pela posse da terra36. Até inicio da
Até então, no Araguaia existiam quatro povoados: Santa Terezinha, São Félix,
Luciara e Porto Alegre do Norte. Todos faziam parte do Município de Barra do Garças que
abrangia mais de 200.000 km². Essa população praticamente não conhecia o trabalho assalariado.
Se matava que fosse um porco, todo mundo da rua comia. Quando era gado ia
mais de um quilo para os vizinhos. Aqueles vizinhos que agradava mais,
mandava duas vezes. O que agradava menos recebia uma vez só, mas todos
35
As terras comunais no Araguaia constituíam as várzeas, varjões, aguadas, que eram utilizadas por todos
dependendo da necessidade de cada um, essas pessoas não possuíam titulo dessas terras.
36
O território Araguaia nas décadas de 60,70,80 do século XX, ficou conhecida pelos vários conflitos e luta pela
terra, ver Souza ( 2002), Pereira (2002), Martins (1994), Esterci (1987) , Canuto (1972) e Casaldáliga (1971).
39
ganhavam nem que fosse gordura.....E não comprava não, tudo isso era trocado
(Luiza moradora de Santa Terezinha, apud Esterci, Neide, 1987, p. 101).
assalariado, sobretudo nas empresas agropecuárias. Essas empresas utilizam o trabalho do peão
levado de outros estados. Quando há posseiros na área ele é expropriado e expulso ou então passa
Havia barcos que percorriam o Araguaia – armazéns flutuantes - trocando sal, café e tecidos com
os moradores das margens do Araguaia. No entanto, com a chegada das empresas agropecuárias
há uma transformação no modo de vida dos moradores. Dona Joselita relata como eram
realizadas as trocas:
As coisas eram muito difícil, quase não tinha dinheiro, ai se eu tenho uma coisa
para vender, mas não tem quem comprar, eu troco, você fica com o meu, eu
fico com o seu, é assim. Com o serviço no roçado era também assim, quando
meu marido colocava a roça ou ia colher, ele trocava dia de serviço com o
compadre ou outro vizinho mais próximo, ninguém pagava para o outro e todo
mundo trabalhava assim37.
Pedra (atual Santa Terezinha). Na década de 1950, o comércio era muito precário ou
praticamente inexistente. O que acontecia era a troca de produtos e serviços entre os moradores.
Com a abertura das fazendas a procura por mão-de-obra intensifica-se ao longo das
décadas de 1970 e 1980. Na abertura destas fazendas, foram contratados centenas de peões para
37
Entrevista realizada com Joselita Filomena Costa, em 10 de novembro de 2000, em Goiânia.
40
Houve assim, uma segunda corrente migratória para o Araguaia, constituída pelos
peões que chegam para trabalhar nas fazendas que estão sendo formadas no Baixo Araguaia.
Quando terminava a “empreitada” eles permaneciam nesse território, muitas vezes perambulando
tendo mulher e filhos no lugar de procedência. Eles vem principalmente do Nordeste e de Goiás.
São homens à procura de melhores condições de vida, fugindo das adversidades vividas no seu
lugar de origem.
aproximadamente 140 famílias (que não chegava a 500 pessoas). Muitas vezes os “chegantes”
são mais numerosos que a população local, provocando rupturas na organização social,
econômica e cultural desse espaço social, uma desestabilização e fragmentação dos povoados.
da década de 1970. Para as pessoas do lugar era um grande constrangimento ver suas filhas junto
com os peões, forasteiros como eram denominados pelos habitantes do lugar. Estes estavam
Norbert Elias e John Scotson (2000) estudaram uma pequena cidade do interior da
Inglaterra, Winston Parva, no início da década de sessenta do século XX. Os autores centraram
suas análises em torno das relações estabelecidas na vida social desta cidadezinha da Inglaterra.
considerar como o mítico, o lugar promissor que passa a ser o inferno vivido pelos peões do
Araguaia.
que na maioria das vezes nunca são aceitos na comunidade. Para Elias e Scotson, os outsiders
mesmo vivendo por vários anos na comunidade não conseguem integrar-se à mesma, sendo a
Em Winston Parva, havia uma distinção entre os grupos que viviam em áreas
diferentes da cidade. Em situação análoga, os peões nas cidades do Araguaia têm os lugares
determinados onde podem circular, ou seja, são tratados como estrangeiros no lugar em que
chegam. Isso gera tensões múltiplas entre os habitantes do lugar e os que chegam depois. Os
peões são indesejados, e a população os quer longe das cidades e fora dos lugares que são
Segundo Norbert Elias e John Scotson (2000, p. 26) “[...] não é fácil entender a
mecânica da estigmatização sem um exame mais rigoroso do papel desempenhado pela imagem
que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros, e, por conseguinte de seu próprio status
como membro desse grupo”. Portanto, essa população está olhando, analisando e julgando os
chegam para trabalhar, como mão-de-obra não qualificada nas agropecuárias, vieram também em
42
busca de terras para trabalhar como agricultores. Estas pessoas são agricultores pobres que
fugiram das mais diversas e complexas situações no Nordeste: concentração de terra, seca, fome,
entre outras. Essa corrente migratória intensificou-se a partir da década de 1960. O Governo,
também estimulou a migração como estratégia para resolver as pressões que os movimentos
sociais do Nordeste faziam sobre ao Governo Federal. Naquele momento, lutavam por acesso à
destacar a segunda metade do século XX, quando chegaram os migrantes vindos do Sul, através
dos projetos de colonização privada. Estes projetos contavam com incentivos e subsídios do
Governo Federal. Favorecendo esse fluxo migratório houve uma intensa propaganda por parte
das colonizadoras privadas. Os agricultores que possuíam uma pequena propriedade no Sul do
Brasil migraram para Mato Grosso por várias razões. Naquele momento estava em andamento
propriedades. A solução proposta pelo Governo Federal para não fazer uma reforma agrária e
evitar os conflitos sociais na região sul, foi a transferência desses agricultores para projetos de
colonização na Amazônia. Segundo Ianni (1979) o governo faz uma “contra reforma agrária”.
Querência, Santa Cruz do Xingu, Água Boa, Canarana e Confresa, gerenciados pelas
Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, as colonizadoras não cumprindo com os acordos firmados com
os colonos, sobretudo no que se refere à questão da mecanização das terras que não foi realizado
por parte das colonizadoras. Algumas nem mesmo possuíam maquinários. Os colonos
43
reclamavam da falta de escola para os seus filhos, assim como da inexistência ou precariedade
das estradas que davam acesso aos lotes. Os colonos foram abandonados à própria sorte, longe
dos centros urbanos e sem dinheiro para retornar ao lugar de origem. Dinheiro público que serviu
para enriquecer os donos das colonizadoras e empobrecer os trabalhadores, que saíram de seu
“sazonal39”. Este trabalhador irá ocupar espaços mais definidos, como o da destilaria Gameleira
que se instala no Município de Confresa a partir de 1980. Esses migrantes que vão trabalhar no
alguns casos os migrantes não retornam para o lugar de onde saíram, constituindo família no
novo lugar. Na cidade de Confresa há bairros onde um percentual alto dos moradores é
constituído por migrantes do Nordeste, que vieram para trabalhar na destilaria Gameleira40.
do país no Araguaia, assim como o avanço do capital através das empresas agropecuárias e
38
Sobre essas áreas de colonização no Araguaia ver os trabalhos; Martini, Ângela Maria. Reféns da Esperança-
Artífices da Cidade em construção: relatos da colonização em Vila Rica/MT (anos 1980). Monografia de
especialização, Confresa, UNEMAT, 2007; RECH, Marinez Irene Folador. Mulheres na Colonização de Vila
Rica/MT – 1970 a 1980. Monografia de especialização, Confresa, UNEMAT, 2007 (ambas sobre a colonização de
Vila Rica); Ribeiro, Carla Soraya Nunes. A mulher na colonização de Confresa (1970 a 1980). Monografia de
conclusão de curso, UNEMAT, 2007. Silva, Aureci Barros da. A formação da cidade de Confresa a partir da
memória década de 1970 a 1980 (sobre Confresa); Fedrigo, Elsedir Maria. Terra, Sonho e Saga: Construção
histórica sobre Santa Cruz do Xingu. Monografia de conclusão de curso, UNEMAT, 2007 ( sobre Santa Cruz do
Xingu) .
39
Estamos nos referindo especificamente aos cortadores de cana, que vêm dos estados do nordeste (Maranhão, Piauí
e Pernambuco) para trabalhar na Destilaria Gameleira.
40
Ver o Trabalho de SANTOS, Francisco José dos. Contaminação das águas dos poços na Rua Wilson Saivá por
fossas em Confresa-MT. Monografia, Luciara, UNEMAT, 2007.
44
amazônica
Na década de 1930, Getúlio Vargas assume o poder no país, cria o Estado Novo em
integração do país, promovendo a ocupação dos “espaços vazios”. Getúlio Vargas propõe uma
política de integração nacional, como projeto de desenvolvimento do país que ficou conhecida
como “Marcha para o Oeste”. Em seu governo foram colocados em ação programas para que essas
políticas se concretizassem. Vejamos um trecho do Discurso de Getúlio Vargas sobre o seu projeto
De acordo com Lenharo (1980, p. 59): “[...] O Estado inventou novos dispositivos de
apoio à sua obra civilizadora. Dentre eles a Fundação Brasil Central é a sua realização mais
importante dessa arrancada para o Oeste, mais precisamente no Leste e Nordeste de Mato Grosso.
Foi com esse discurso de integração e exploração dos “espaços vazios” que
criada em 1943 com objetivo de desbravar e colonizar as áreas do Araguaia e Xingu. A primeira
dimensões territoriais e políticas, chegando a abarcar a parte norte e nordeste do estado de Mato
Grosso. Atendia ao interesse da colonização dos “espaços vazios”, demonstrando que era possível
ocupar esse território “imensamente desocupado”. Porém, essa área não era “desocupada”. Havia
povoados (como Barra do Garças e os garimpos) com milhares de pessoas, como também não
consideravam as populações indígenas que neste momento ocupava esse espaço expressivamente.
Como considerou Lenharo (1980, p. 74) “[...] também nessa parte do estado, a imagem da
Garças, rumo ao Rio das Mortes e posteriormente até o Rio Xingu. Essa área era entendida como
um imenso território a ser conquistado, como mostra o relato dos irmãos Villas Boas:
A “Marcha para o Oeste” foi uma das primeiras políticas de colonização e exploração
da Amazônia constituída pelo Governo no século XX. Esta política pública será retomada mais
governos militares, após o golpe de 1964. Com o lema “é preciso integrar para não entregar”,
este programa, o governo construiu uma rede de estradas, ao longo das quais foram implantados
projetos de colonização pública e privada, onde seriam assentados os colonos deslocados de outros
Estados. O processo concebido pelos governos militares para integrar, ocupar e explorar a
Amazônia foi organizado a partir de programas, tais como o PIN (Programa de Integração
42
Nacional) e o PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agropecuária
do Norte e Nordeste). Além disso, foram criados os “pólos” de desenvolvimento, entre os quais o
41
Os programas criados pelo governo federal para viabilizar a política de integração nacional da Amazônia foram
discutidos em Cardoso e Müller (1977), Soares (2004), Moreno (1993), Oliveira (1997), Barrozo (2000), Souza
(2004) e Guimarães Neto (2002). Sobre a política de ocupação de terras no Centro-Oeste brasileiro, sobretudo em
Mato Grosso ver. Lenharo (1986). O autor discute pontos importantes sobre a especulação com a terra no Oeste
brasileiro desde o Estado Novo até (com maior ênfase) a década de 1950. O autor aponta os critérios políticos que
favoreceram a atribuição de terras aos detentores de capital, em detrimento de trabalhadores pobres.
42
PIN – Plano de Integração Nacional, previa a localização dos projetos de colonização oficial numa faixa de 100
quilômetros de cada lado das rodovias federais na Amazônia e Centro-Oeste. Criado durante o governo do presidente
Médici (1969-74) pelo decreto lei nº 1.106 de junho de 1970, o PIN tinha entre outras finalidades, financiar o plano
de obras de infra-estrutura nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE e promover sua mais rápida integração à
economia nacional. Além do plano de irrigação do Nordeste, a primeira etapa do PIN compreendia a construção de
rodovias na Amazônia. Entre elas, a Transamazônica e a BR 163, ligando Cuiabá, em Mato Grosso à cidade de
Santarém, no Pará. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares 2004).
43
O POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – foi criado no governo do general Geisel
através do Decreto nº 75.320 de 29/01/1975 para transformar os cerrados em áreas de expansão de frentes comerciais
a partir do Centro-Oeste e Oeste de Minas Gerais. Como meta, deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de hectares
47
foi a construção das rodovias Transamazônica, Cuiabá – Santarém, Cuiabá – Porto Velho, Porto
Velho – Manaus, Manaus – Boa Vista. No Araguaia foi construída a BR 158, ligando Barra do
Garças a Marabá e Belém. Com o mesmo objetivo, foram criados a SUDAM (Superintendência do
O governo militar após 1964, monta um grande aparato para atender ao grande capital
nacional e estrangeiro, pois a ocupação da Amazônia era considerada uma questão de segurança
nacional. Sem incentivos e uma infra-estrutura mínima, os empresários não investiriam nem
A partir de 1968 ocorreram conflitos violentos pela posse da terra no nordeste de Mato
Grosso46. Visando “solucionar” esses conflitos e ao mesmo tempo controlar a ocupação dessas
terras, o governo volta os olhos para esse território, até então pouco habitado, intensificando a
com o sul do Pará, foi uma importante via de comunicação e acesso a este território. Até a abertura
da rodovia (1975) a principal via de transporte era o rio Araguaia, que na época da seca ficava
ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam apoio à infra-estrutura
(armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica, preocupando-se ainda com pesquisas de
sementes visando promover o plantio de soja no cerrado). ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997
Souza 2005 e Soares 2004).
44
A Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), foi criada no governo de Castelo Branco, em
1966, mantida através de incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e
internacionais. A SUDAM substituiu uma outra autarquia denominada Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (SPVEA), criada por Getúlio Vargas, em 1953, com objetivos semelhantes aos da
SUDAM. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares, 2004).
45
O BASA – Banco de Desenvolvimento da Amazônia - foi criado em 1966, em substituição ao Banco de Crédito
da Borracha, fundado em 1942, com o objetivo de garantir o suprimento de borracha natural aos aliados, durante a
Segunda Guerra Mundial. ( Ianni, 1979,Cardoso e Miller, 1997, Barrozo, 1997 Souza 2005 e Soares 2004).
46
Em Santa Terezinha ( posseiros X Codeara), São Félix do Araguaia (posseiros e índios X Suiá Missú), Serra Nova
Dourada ( posseiros X Bordon), Porto Alegre do Norte (posseiros X Fazenda Frenova) Novo Santo Antônio (
posseiros X o grupo Abdalla Zarzu).
48
A SUDAM era o órgão responsável pela aprovação dos grandes projetos empresariais
da SUDAM eram:
Para por em prática os seus objetivos a SUDAM não respeitou as populações que
com projetos aprovados pela SUDAM e com incentivos fiscais, colocaram em prática uma política
SUDAM: “[...] Maldito seja o latifúndio, exceto os olhos da vaca. Maldita para sempre a SUDAM,
47
Sobre os conflitos de terra no Araguaia, especificamente sobre o conflito entre posseiros e a empresa CODEARA ver
ESTECI ( 1986), SOUZA (2002), entre outros.
49
a sua amante ilícita. Maldita para sempre, a CODEARA!” (Casaldáliga, apud, Escribano, 2000, p.
67) 48.
colonizadoras com capital nacional e estrangeiro. Com base neste conjunto de políticas, o governo
federal concretizou uma aliança com o capital privado, numa clara preferência pelo grande capital,
deixando de fora dessas políticas uma grande parcela da população que vivia na Amazônia,
para que outros sejam re-territorializados. Este processo instituiu uma prática de
48
Companhia do Desenvolvimento do Araguaia, na época um latifúndio com mais de 190.000 hectares de terra, esteve
em conflito com os posseiros de Santa Terezinha de 1968 a 1975. Sobre este Conflito ver o trabalho de ESTERCI,
Neide. Conflitos no Araguaia: Peões e Posseiros Contra a Grande Empresa. Petrópolis, Vozes, 1987, SOUZA, Maria
Aparecida Martins, A Luta pela permanência na terra: Resistência dos posseiros de Santa Terezinha ( década de 1970).
Monografia de graduação, Luciara- UNEMAT, 2002. Relatórios, e documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do
Araguaia.
50
No que se refere ao Estado de Mato Grosso, convém destacar que o Estado foi
privilegiado com recursos de quase todos os programas do Governo Federal para a Amazônia
atraídas pelas terras baratas e pelos vantajosos incentivos fiscais. Esta política modificou as práticas
sociais dos grupos que ocupavam esse território. Como indica Soares (2004, p. 100), “[...] Essas
desencadeando uma série de conflitos nestes antigos povoados. As ações para expulsar os posseiros
empresas, aprovando 549 projetos de empresas agropecuárias. A maior parte dos incentivos
concedidos foi destinada às agropecuárias. Um total de 335 projetos que tiveram incentivos
liberados, dos quais foram aprovados 205 projetos no estado de Mato Grosso. Essas empresas são
empresas há uma reordenação do espaço, onde eclodiram conflitos pela posse da terra.
abrigados por governos estaduais que não tomaram nenhuma atitude, no sentido de coibir ou
sobretudo, em/nas terras tradicionalmente ocupadas por índios e posseiros (Oliveira, 1997).
49
Os grileiros ocupam uma área com o objetivo de vender para ganhar dinheiro. Normalmente não moram nela. Alguns
põem um morador na terra ocupada para dar a impressão de que é uma posse. Os grileiros também são identificados
como falsificadores de documentos de terra.
52
por grandes empresas e latifundiários, os quais deflagraram uma verdadeira corrida para ocupar
indispensável para entendermos a existência das atuais grandes propriedades no Araguaia. Trata-se
com os peões.
compras por procuração ou em nome de diferentes membros da mesma família. Estas práticas
2007).
era o responsável pela emissão de escrituras das terras. Muitas dessas fazendas estavam a mais de
700 quilômetros de distância do cartório, facilitando a corrupção na titulação das terras. Como os
cartórios estavam distantes dos locais onde as terras eram negociadas, ficava praticamente
impossível saber se a área que estava sendo vendida era a área descrita na escritura. Foi o que
parece ter ocorrido com a Fazenda CODEARA, localizada no município de Santa Terezinha, na
divisa com o Pará. O Estado foi conivente com a ilegalidade e os interesses do grande capital.
53
O Governo de Mato Grosso emitiu os títulos definitivos de áreas sem que estas
fossem localizadas, medidas e demarcadas contrariando todas as normas legais. Muitos desses
proprietários nem sabiam onde se localizavam as terras, das quais receberam o título. A
corrupção fragilizou da Lei de Alienação de Terras Públicas de Mato Grosso (Lei 3.922/77). O
agrimensor ou engenheiro que fazia a demarcação e medição da área deveriam ser pagos pelo
superior à comprada. Segundo Moreno (2007), a corrupção e o abuso de poder eram constantes.
práticas fraudulentas eram frequentes, sendo denunciadas por vários governadores e diretores do
Departamento de Terras e Colonização (DTC), como uma das causas da grande desordem que se
instalou nos cadastros de terras do Estado, mas nenhum deles agiu no sentido de coibir essa
prática.
agropecuários financiados pelo Governo Federal. Foi neste período que um grande contingente de
trabalhadores foram aliciados pelos gatos e fazendeiros para trabalharem na abertura das
Araguaia) estão localizadas no nordeste de Mato Grosso no Baixo Araguaia: a CODEARA, a Suiá
Missú50 e outras, que são constantemente denunciadas pelos peões à Prelazia de São Félix do
Araguaia pela exploração e violência a que submetiam os trabalhadores (peões). Estas denúncias
CODEARA, que na década de 1970, levou centenas de trabalhadores para a derrubada da floresta,
produção nesse território. Era objetivo do governo e dos empresários, ocupar e produzir nessas
escravo”, (a exploração dos trabalhadores será discutida no IV capítulo). Ainda hoje, dezenas de
50
A Suiá Missú foi uma grande fazenda (695.843ha.), que pertencia na década de 1970 ao Grupo Ometto e Ariosto
da Riva. Na sua expansão expropriou e entrou em conflito com posseiros e índios da etnia Xavante. Pois esta
fazenda foi instalada dentro de terras do povo Xavante que foram deportados para o Parque do Xingu. Nesta fazenda
foram feitas várias denúncias de trabalho escravo. Na década de 1990, esta entrou em decadência e inicia-se um
processo junto ao Governo Federal para devolução de parte das terras indígenas dos Xavantes, o que está esperando
uma decisão judicial para a desocupação da área e retornos dos xavantes. Sobre instalação e os conflitos com os
Xavantes ver o trabalho de Lima, Terezinha Gomes. Suiá Missú X Sociedade Xavante: a deportação dos Xavantes
da aldeia Marâiwatsede – Baixo Araguaia. Monografia de conclusão do Curso de História, UNEMAT, 2002.
55
salários, ou empreita. Para os que estão em situação de pobreza, as propostas parecem melhores do
um ambiente desconhecido, sempre sob o controle armado dos gatos e seus auxiliares, sendo
proibidos de sair do acampamento. Vivem em barracos (de lona plástica ou de folhas de palmeira)
sem pagamento, mal alimentados, sem assistência médica e submetidos ao trabalho duro, do nascer
“escravidão branca”, para se diferenciar da escravização dos africanos, embora grande parte do
contingente de peões fosse formada por negros e mestiços. Atualmente, esta forma de trabalho é
chamada de escravidão temporária, porque dura enquanto durar a empreitada na mata. Entretanto,
em muitos casos, a situação se prolonga, porque o peão é retido pelo gato, por conta de supostas
dívidas. Por isso, perde-se também a ilusão do retorno à terra natal. Mesmo aqueles que conseguem
fazer o caminho de volta estão com a saúde debilitada e sem dinheiro. Sem contar que muitos
desses peões chegam a perder a própria vida nos ambientes violentos em que são isolados. (Ver
Capítulo IV).
estabelece-se no interior destas fazendas um tipo de relação social de produção, onde o trabalhador,
peão, não vende a sua força de trabalho, mas ele mesmo que é “comprado”, tornando-se uma
56
mercadoria (Esterci, 1996). Estas pessoas são aliciadas nas regiões pobres, rurais e urbanas, nas
Companhia Matte Laranjeira, foi denunciada por manter centenas de trabalhadores, em regime de
elemento da dívida para manter os ervateiros atrelados a ela, e em vários momentos contava com o
apoio do poder público para exercer seu domínio sobre essa população51.
Assim, embora em alguns casos assinem a “carteira” do trabalhador e lhe ofereçam alojamento,
como determina a Lei, valem-se do antigo expediente da dívida para manterem os peões no
mais acumulada nos barracões das fazendas, sendo transferida para os supermercados da cidade,
que mantêm acordo com os fazendeiros, praticamente aprisionando o trabalhador até que ele
51
Sobre a atuação dessa empresa e a organização dos trabalhadores no processo de trabalho na extração da erva
mate, ver o trabalho de ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Laranjeira. Londrina, Ed. Da
UEL, 1997.
57
Capítulo II
A Prelazia de São Félix do Araguaia foi criada em 197052, abrangendo uma área de
aproximadamente 150.000 km². Está localizada no nordeste do estado de Mato Grosso. Na época
de sua criação apenas existiam dois municípios no Nordeste de Mato Grosso, Luciara e Barra do
Garças. Atualmente fazem parte da Prelazia os seguintes municípios: Alto da Boa Vista, Bom
Jesus do Araguaia, Confresa, Canabrava do Norte, Luciara, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do
Norte, Querência, Ribeirão Cascalheira, São Félix do Araguaia, São José do Xingu, Santa Cruz
assistência básica à saúde, educação e acesso à justiça. Como destacou Casaldáliga (1971, p.31):
52
Através do decreto “Quo commodius”, assinado por Paulo VI, aos 13 de março de 1970.
59
A Igreja Católica sediada em São Félix do Araguaia, tendo à frente o bispo D. Pedro
aos índios, posseiros e peões que estavam sendo expropriados de suas terras e explorados pelas
Santa Terezinha, construindo um ambulatório que atendia gratuitamente a população. Para juntar-
se a esta equipe veio uma enfermeira da França, Srª. Suzane Robin, que trabalhou por vários anos
Félix do Araguaia o GEA – Ginásio Estadual do Araguaia. Esta Instituição foi construída com
recursos da Prelazia. Alguns anos depois a Escola foi repassada para a Secretaria de Educação do
Estado de Mato Grosso. Dessa forma a Igreja Católica passa a assumir ações que o Estado não
assumia junto à população. Nesse mesmo período, D. Pedro passa a defender os peões que estão
chegando de diversos estados contra a exploração e violência que sofriam nas fazendas do
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia – jornal Alvorada nº. 01/1970
criação da Prelazia de São Félix do Araguaia, para organizar as bases da Igreja de São Félix. O
Padre Francisco Jentel53, um francês que veio em dezembro de 1954 para trabalhar com o povo
Tapirapé juntamente com as irmãzinhas da Congregação de Charles de Foucaud 54, que haviam
Araguaia, o país passava por um regime ditatorial, com um controle rigoroso pelos militares,
mesmo nas mais longínquas áreas do país. A Prelazia nos anos de 1972 a 75 passou por um
controle e vigilância sistemática promovida pelos militares, que muitas vezes ocuparam a casa do
bispo e dos agentes de pastoral. Assim como invadia qualquer instituição ou reunião que fosse
suspeita.
Quando Casaldáliga foi sagrado bispo, em 1971 ele organizou as equipes com base
das funções e responsabilidades entre os componentes das equipes. Essas equipes eram formadas
por pessoas de diversas regiões do país e do exterior, sendo constituídas por professores,
uma opção de estar ao lado dos pobres, pondo a Igreja da Prelazia de São Félix do Araguaia na
53
Sobre Pe. Francisco Jentel ver: DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro; BALDUINO, Tomás. Francisco
Jentel defensor do povo do Araguaia. São Paulo. Edições Paulinas, 1986, REIS, Ana Amélia Teixeira. O Pe. Jentel
narrado nas vozes da lembrança: história resistência pela memória. Monografia de conclusão de curso – UNEMAT,
2007.
54
Sobre as Irmãzinhas de Jesus e o povo Tapirapé ver o trabalho de conclusão de curso de NOGUEIRA, Margarete.
Uma luz para o povo Tapirapé: a história de vida das Irmãzinhas de Jesus que vivem com o povo Tapirapé desde
1952. UNEMAT, 2007 e O Renascer do Povo Tapirapé: Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucaud. São
Paulo, Ed. Salesiana, 2002.
55
Casaldáliga renuncia a toda pompa eclesiástica. Demonstrando, que seria um bispo diferente. Decidiu não utilizar
nem mitra, nem báculo, nem anel. Dizia em seu diário: “não quero dar lição a ninguém”. Simplesmente quero ser
consequente.
62
luta pelos direitos dos pobres daquele território, como relata no trecho da carta Pastoral que
Olhamos com bastante amor a terra e os homens da Prelazia. Nada dessa terra
ou desses homens nos é indiferente. Denunciamos fatos vividos e
documentados. Quem achar infantil, distorcida, imprudente, agressiva,
dramatizante, publicitária, a nossa atitude, entre na sua consciência e leia com
responsabilidade o Evangelho; venha morar aqui, neste sertão, três anos, com
um mínimo de sensibilidade humana e de responsabilidade pastoral.
(Casaldáliga 1971, p. 42).
definiu Casaldáliga. Ao redigir este documento Casaldáliga demonstrava sua opção pastoral:
Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo, o sol e o luar, a chuva e o sereno,
o olhar dos pobres com quem caminhas e olhar glorioso de Cristo, o senhor.
Teu báculo será a verdade do evangelho e a confiança de teu povo em ti. Teu
anel será a fidelidade da Nova Aliança do Deus libertador e a fidelidade ao
povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da Esperança e a Liberdade
dos filhos de Deus, nem calçarás outras luvas, a originalidade do convite, que o
serviço do amor. 57
Gomes dos Santos. Este bispo havia protegido muitas vezes os religiosos mais progressistas da
outros bispos, como Tomás Balduíno, da diocese de Goiás, um dos idealizadores da criação e
56
Esta é uma expressão amplamente utilizada por Casaldáliga em documentos e entrevistas.
57
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, 1971.
63
Latifúndio e a Marginalização Social”, D. Tomás Balduíno destacou58 que era a primeira vez que
alguém se atrevia a fazer uma denúncia pública e documentada contra a situação de exploração e
violência na Amazônia. E apesar da censura imposta pelo regime militar, o documento chegou a
D. Pedro Casaldáliga foi uma das primeiras pessoas que organizou uma denúncia
brasileiro na Amazônia. Este documento distribuído no ato de sua sagração ganhou repercussão
mundial59. Tornar púbica suas ações foi uma estratégia que a Prelazia de São Félix do Araguaia
utilizou para enfrentar o regime militar e os grandes proprietários de terras que se instalaram no
Araguaia mantém desde 1970. Este jornal circula dentro da Prelazia, mas também circula em
58
Cf. de documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia
59
Cf. de documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia
60
Sobre o Jornal Alvorada ver a pesquisa que Marluce Scaloppe esta desenvolvendo para a Dissertação de mestrado,
no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Mato Grosso.
64
Fonte – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia - Jornal Alvorada Agosto de 1976, p. 3.
viviam nas mais precárias condições naquele sertão, entra em choque com os grandes
proprietários que vêem nessa ação de defender os pobres uma ameaça aos seus planos de
ocupação e exploração de vastas áreas no Araguaia. Pois diante da violência com que era tratado
o ser humano como dizia ele: “nessa terra é fácil nascer e morrer, difícil é viver”. Nesse quadro,
ele teve que escolher entre os dois lados (de um lado peões, posseiros e índios e de outro o grande
município de Barra do Garças e Luciara ( Casaldáliga, 1970) 62. Na época a fazenda Suiá Missú,
um dos maiores latifúndios do país com 695.843 ha. A fazenda estava no município de Barra do
Garças, porém a sua a sede estava localizada nas proximidades de São Félix do Araguaia. Na
Suiá Missú chegaram a trabalhar centenas de peões como relatam os trabalhadores nos
depoimentos.
Ao ser convidado para uma festa na fazenda Suiá Missú, Casaldáliga constatou a
situação de degradação em que se encontravam centenas de peões nessa fazenda. Esse episódio
aconteceu em 1969. Essa foi uma das poucas vezes que Casaldáliga esteve com os grandes
proprietários de terra do Araguaia. Ele relata em vários documentos e entrevistas trecho desse
episódio:
61
Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007.
www.diariodecuiaba.com.br.
62
Ver os trabalhos sobre a ocupação da região do Araguaia de ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: Peões e
posseiros contra o grande latifúndio. Petrópolis, Vozes, 1987. SOARES, Luis Antônio Barbosa Soares. Trilhas e
Caminhos: Povoamento não- indígena no Vale do Araguaia – parte nordeste do estado de Mato Grosso, na primeira
metade do séc. XX Dissertação de Mestrado, UFMT, 2004.
66
terrível, que violentava nosso temperamento, a vontade natural de estar bem com todo mundo, a
formação de mansidão evangélica recebida, a velha norma pastoral de não apagar a mexa que
A decisão de ficar do lado dos pobres deu origem a muitos problemas, conflitos e lhe
criou inimigos considerados “poderosos”, mas também o ajudou a encontrar amigos para toda a
Temos dito muitas vezes que, aqui, ou você está de um lado, ou do outro.
Tenho dito muitas vezes que o missionário que uma vez por semana vai tomar
café na casa de um rico não pode fazer opção pelos pobres, [...] não é que eu
não possa ir um dia tomar café na casa de um rico, mas, se vou lá toda semana
e não acontece nada, não digo nada, não dou uma sacudida naquela casa,
naquela consciência, já me vendi já neguei minha opção pelos pobres. (Idem,
p. 19).
Viver nesse mundo de injustiças, longe de tudo e de todos como destaca Casaldáliga,
é como se a vida das pessoas não tivesse valor. “[...] aqui se morre e se mata mais do que se vive.
Morrer ou matar é mais fácil aqui, e está mais ao alcance de todos, do que viver. “Aqui manda o
38”63.
proprietários de terras começou a ganhar a confiança dos peões, dos camponeses e dos índios.
Então os representantes do governo militar da época, que estavam em geral, do lado de quem
detinha o poder econômico, começaram a vigiar mais proximamente as ações da Prelazia de São
63
Cf. documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
67
a que eram submetidos os peões foram diversas, como: denunciar as autoridades, esconder os
peões, protegendo esses dos gatos nas casas das equipes e do bispo, quando doentes
encaminhando-os ao único hospital público nesse território do Araguaia, que ficava na Ilha do
Bananal64. Ações como estas foram realizadas dezenas de vezes, havendo registros das mesmas
um peão:
A Prelazia de São Félix do Araguaia, por meio do bispo ou de seus agentes de pastoral
envolveu-se na defesa das pessoas pobres que estavam no Araguaia e os que iam chegando entre
64
Um hospital construído na década de 1950 para atender a população indígena que moravam na Ilha do Bananal
ficava localizado na aldeia Santa Izabel, a poucos quilômetros de São Félix do Araguaia na outra margem do Rio
Araguaia.
68
eles os peões. Estes sofreram exploração e violência, pelos fazendeiros e gatos. Casaldáliga toma
discursos. D. Pedro utiliza os meios de comunicação para denunciar a prática de trabalho escravo
no Araguaia.
Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia – Jornal Alvorada ano 25 nº. 187, Julho/Agosto- 1995.
extensão, porém com poucos habitantes, com baixa densidade demográfica, se comparada a
outras áreas do país. No território da Prelazia de São Félix do Araguaia encontram-se os povos
69
indígenas: Karajá, Tapirapé, Xavante, Kayapó e outras etnias no Parque Nacional do Xingu 65.
Neste território também se instalaram vários dos maiores latifúndios do estado de Mato Grosso
que passaram a ocupar a área no final da década de 1960 e inicio de 1970. Entre estes se
destacam a Suiá Missú (695,843 ha.), e a CODEARA (196,947 ha.) e outras empresas 66.
Igreja Católica no Brasil, atendendo aos pobres, agindo contra os interesses do grande capital.
Uma Igreja que, segundo Fernandez (1994) nasce na “periferia”, mas que é revolucionária e
profética:
leigos, jovens, que eram universitários ou estavam terminando o colegial, quase todos originários
do sul e sudeste do país. Alguns haviam participado de movimentos contrários ao regime militar e queriam
de alguma forma combatê-lo. Uma Igreja na Amazônia e com um espírito revolucionário seria o
“cenário” ideal para a atuação, sobretudo de jovens que não aceitavam as imposições do regime militar.
Entre os muitos jovens que foram para a Prelazia de São Felix na década de 1970,
estava Dagmar Aparecida Teodoro Gatti. Era uma jovem que se casou com um jovem italiano,
que havia trabalhado na construção da transamazônica. O casal saiu de São Paulo em 1976
65
O Parque Nacional do foi criado em 1961, através do Decreto nº. 50.455, com uma área de aproximadamente 22.000
quilômetros quadrados. Sobre o processo de construção desse parque ver o trabalho de SOARES, Lima. Luiz Antônio.
Trilhas e Caminhos: Povoamento não- indígena no Vale do Araguaia – parte nordeste do estado de Mato Grosso, na
primeira metade do séc. XX. PPG-História , Instituto de Ciências Humanas e Sociais, UFMT, 2004.
66
Anexo segue uma lista com as agropecuárias que se instalaram no Araguaia com financiamento/incentivos fiscais do
Governo Federal.
70
(Franca) para trabalhar na Prelazia. Ela trabalhou como professora, e auxiliar da Irmã Irene
Franceschini na organização do Arquivo dessa instituição. A Srª. Dagmar permanece até hoje no
Araguaia. Atualmente ela ainda participa das atividades desenvolvidas pela Prelazia. Ela também
se engajou na política partidária no município de Santa Terezinha, como sucedeu com vários
outros jovens que foram trabalhar na Prelazia, os quais tiveram uma atuação importante no
A Prelazia de São Félix do Araguaia propunha uma forma diferente de ser Igreja
Católica naquele momento, vivenciando as causas do povo. Como diz Casaldáliga “minhas
causas valem mais do que a minha vida”. Esta postura era assumida, no inicio, por todos os
membros das equipes de pastoral. Procurando, cada qual, entregar-se ao desafio em cada atitude.
Este tipo de Igreja Católica foi alicerçada nas diretrizes da Conferência Episcopal de
Medellín ( 1968) e Puebla (1979), dentro de uma nova configuração de Igreja Católica na
América Latina. Um marco de ruptura com a Igreja tradicional. No Brasil parte dessa Igreja
renovada institui uma pastoral voltada para a Amazônia67, a partir das orientações da Conferência
Episcopal de Medellín.
importantes reuniões da Igreja Católica na America Latina, membros dessa Instituição foram
convocados a colocar em prática o conceito de Povo de Deus discutido no Concilio Vaticano II 68.
Nessas conferências a Igreja Católica fez uma opção pelos pobres como um modo de intervir na
sociedade para superar os problemas sociais em que viviam grande parte da população na
67
Cf. Estudo realizado pelo CEAS ( Centro de Estudos e Ação Social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do
Araguaia – Pasta B- 7-1-23.
68
O Concílio Vaticano II foi convocado pelo Papa João XXIII, em 1962 e foi concluído no pontificado do Papa
Paulo VI em 1965. Foi idealizado por João XXIII para realizar o que ele chamou de aggiornamento (atualização) da
Igreja Católica no mundo. Para mais informação sobre esse assunto ver: BRAÚNA, Guilherme (org). A Igreja do
Vaticano II. Petrópolis, Vozes, 1965.
71
America Latina. A Prelazia de São Félix do Araguaia nasce dentro de uma nova orientação da
Igreja Católica. Como também o bispo da Prelazia vem da Europa no “[...] ano (1968)
Escribano, 2000, p. 20). Ele mesmo passara pela experiência de ter vivido na Espanha durante
guerra civil. A Prelazia de São Félix do Araguaia nasceu com o espírito revolucionário em seus
Casaldáliga procura manter a Prelazia de São Félix do Araguaia a serviço dos pobres. Neste
estruturação das práticas dos agentes de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. A
Teologia da Libertação era uma nova forma de fazer teologia, articulando fé e transformação
social. Nesse sentido, parte da Igreja Católica orientada por essa nova postura da Igreja Católica,
sobretudo na América Latina, se envolve na luta em defesa dos direitos humanos, como afirma
Casaldáliga:
com diversos tipos de violações, a Prelazia de São Félix do Araguaia assumiu a nova orientação
social e política de Puebla e Melellin, passando a defender os direitos de índios, peões e posseiros
frente da Prelazia, assumiu essa causa, e em consequência desta postura alguns dos membros
foram perseguidos, torturados e expulsos do país. Entres os membros da Prelazia de São Félix do
Araguaia que foram perseguidos podemos citar o Padre Francisco Jentel, que foi preso em 1972,
enviado para Campo Grande-MT e processado. Ele foi julgado por um tribunal militar e
69
Para uma compreensão mais detalhada sobre a Teologia da Libertação ver trabalhos de Leonardo Boff (1981 e
1998), Frei Beto (1986), Clodovis Boff (1985) Carlos Meister (1982) que são alguns nomes de destaque que
escreveram sobre a Teologia da Libertação.
73
condenado a dez anos de prisão. Depois de cumprir dois anos da pena na prisão ele foi expulso do
Brasil. 70
Comunidades de Base nasce uma Igreja Católica com dois princípios orientadores na Amazônia:
por um lado - o princípio de encarnação que faz descobrir as bases da Igreja nas situações reais e
dinâmicas em que vive o homem comum; e de outro - o princípio de libertação que alerta,
difícil sociologia do Pai Nosso” que, nas palavras do cardeal D. Avelar Brandão Vilela era:
70
Sobre Pe. Francisco Jentel ver o trabalho de, REIS, Ana Amélia Teixeira. O Pe. Jentel narrado nas vozes da
lembrança: história resistência pele memória. Monografia de conclusão de curso – UNEMAT, 2007. DUTERTRE,
Alain; CASALDÁLIGA, Pedro; BALDUINO, Tomás. Francisco Jentel defensor do povo do Araguaia. São Paulo.
Edições Paulinas, 1986 e Esterci, op. Cit.
71
As CBs como ficou conhecida teve o ponto de partida a base popular, que constitui grupo que participa de
qualquer programação e se orienta pelos próprios interesses do grupo. A solidariedade e co-responsabilidade se
apóiam e desenvolvem na distribuição de funções entre os componentes do grupo, diversificando-se de tais funções
progressivamente, na medida do crescimento quantitativo e qualitativo do grupo, até abrange a vizinhança, aldeia,
etc. O dinamismo fundamental da comunidade vem de suas lideranças, suficientemente treinadas, a partir das quais
se processa a animação, estruturação, planejamento de atividades de vida dos grupos comunitários. A condição de
sobrevivência da comunidade é a sua abertura, que implica a sua colaboração com organismo, oficiais ou particulares
atuantes na área no sentido do desenvolvimento social. A inspiração religiosa fundamental do grupo se mantém
graças ao dialogo continuo entre a fé e a vida, sendo possível partir, tanto desta como daquela. Nos casos em que a
formação da fé tem prioridade, os agentes de pastoral passam a ser liderança também prioritária.
72
Estudo realizado pelo CEAS (Centro de Estudos e Ação Social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia,
p. 8, 1973, Pasta– B- 7-1-23.
74
A Igreja Católica na Amazônia passou a ter uma orientação voltada para o homem,
que vive sob as diversas formas de dominação; econômica, cultural e política. A Prelazia de São
Félix do Araguaia seguiu esses princípios. A organização das equipes das CEBs da Igreja
Católica na Amazônia e no Araguaia, que seguem essa linha de Igreja, foram influenciadas pela
A Igreja Católica do Araguaia adquire, assim uma significação própria, de uma luta
por dignidade e direitos humanos. Uma Igreja que nasce pobre no meio dos pobres:
para defender os pobres; peões, índios e posseiros, o que lhe custou caro, como perseguição e
difamação dos padres, irmãs, leigos e o próprio bispo, que foi ameaçado e sofreu vários processos
de expulsão do país74. Em uma das ameaças de morte em 1971, entre tantas que sofreu o
73
Trecho da entrevista de D. Avelar Brandão, “A Igreja na Amazônia”, Veja, 22 de agosto de 1973, p. 5. apud
estudo realizado pelo CEAS ( Centro de Estudos e Ação social) – Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 3
e 4, 1973, – Pasta B- 7-1-23.
.
74
O bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga nasceu em Balsareny, pequena cidade da
província catalã de Barcelona, a 16 de fevereiro de 1928, chegou ao Brasil em 1968. Cresceu no ambiente de pós-
guerra civil da Espanha, e estudou em vários seminários em pleno regime franquista.
75
relata tudo a outro padre que estava na equipe, que o orientou a denunciar à policia. Segue o
depoimento:
Além das ameaças e sofrimentos os dirigentes dessa Igreja convivem com outros
problemas. D. Pedro Casaldáliga também é referência para várias pessoas quando procuram a
solução para os mais diversos problemas; seja em caso de doença, violência, exploração, questões
A única pessoa que nós podíamos contá era com o bispo D. Pedro Casaldáliga
que enfrentava os grandes, os donos das fazendas de peito aberto. (...) Ele
assumia a postura de líder mesmo sendo ameaçado de morte todos os dias. O
bispo D. Pedro foi ameaçado várias vezes mas nunca deixou se intimidar,
sempre falava que suas causas valiam mais que sua vida. E que ele estava aqui
para defender os fracos e oprimidos. 75
os desrespeitos aos direitos humanos sofre críticas de setores da própria Igreja Católica e,
grandes proprietários de terras que sentiam seus interesses prejudicados. As constantes denúncias
75
Entrevista realizada com um morador de Confresa em 2006, por Carla Soraya Ribeiro Nunes, para a monografia de
conclusão do curso de história.
76
formuladas de trabalho escravo por Casaldáliga descortinam uma prática que já existia no país.
Juntamente com outros setores da Igreja Católica, organizou a CPT (Comissão Pastoral da Terra)
em 1975. Esta entidade, ligada à CNBB, foi criada com o objetivo de assessorar os trabalhadores
rurais, denunciar a violência a que eram submetidos, e defender na justiça estes trabalhadores 76.
A Prelazia de São Felix do Araguaia, tornou-se um referencial da luta contra o trabalho escravo
no Brasil.
partir da década de 1990, no Baixo Araguaia surgem novos atores nesse cenário, como os
Sindicatos de Trabalhadores Rurais, já um pouco mais estruturados, a própria CPT, que tem uma
Fiscalização77.
76
A CPT é uma entidade de caráter ecumênico que possui ligação com a Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB, e presta serviços a camponeses e trabalhadores rurais. Pela tradição já de vários anos de ajuda aos
trabalhadores egressos da escravidão contemporânea e, por estar localizada em várias pequenas cidades nas regiões
Norte e Nordeste, a CPT é reconhecida pelo seu trabalho no combate às relações neo-escravocratas, seja recebendo e
organizando as denúncias, seja alojando temporariamente os trabalhadores fugidos ( Rezende, 2004, Casaldáliga,
2002).
77
O Grupo Móvel de Fiscalização criado em 1996, é constituído, por membros da Polícia Federal – Delegados
Federais e Agentes – e Ministério Público do Trabalho – Procuradores do Trabalho, e tem desempenhado um
importante trabalhos de combate as práticas de trabalho escravo contemporâneo.
77
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 03 - . Arquivo
A.47.4.01.
Araguaia é importante, pois agora não é mais só a Igreja Católica, mas também as instituições
públicas que participam deste trabalho. A criação e posterior ação destes órgãos e instituições
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 01 - . Arquivo
A.47.4.01.
Hoje a Prelazia de São Félix do Araguaia conta com o balcão de direitos humanos, um
atende as reclamações da população carente. Como também tem ações junto à população
78
As ações do Grupo Móvel de fiscalização, se intensificaram a partir do final da década de 1990.
78
que o Estado organizou as instituições públicas de educação, saúde e assistência social, mesmo
que estas não sejam de boa qualidade, elas estão atendendo a população. Por outro lado no que
diz respeito aos direitos humanos e às questões de terra, ainda há muito a ser feito, surgindo
novos e diferentes desafios. A violência com que são tratados os trabalhadores e as condições de
ações da Prelazia de São Félix do Araguaia visam atender a essa demanda, que ainda não é
suprida pelas instituições públicas. Como podemos perceber nas perspectivada da Prelazia para o
Trabalho) no Araguaia têm algumas vezes (quando solicitada) atendido às necessidades dos
São Félix do Araguaia tem formulado denúncias de trabalho escravo no país, tornando públicas
essas ações, seja através da imprensa ou através de cartas aos “amigos“, registrando e
documentado essas ações. Exemplarmente foram encaminhadas denúncias à ONU. Ao tomar essa
79
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 05 - . Arquivo
A.47.4.01
80
Podemos citar as sentenças do juiz da Vara Trabalho de São Félix do Araguaia que tem condenado gatos,
empreiteiros e fazendeiros a pagar direitos trabalhistas e indenizações à trabalhadores que foram submetidos ao
trabalho análogo ao de escravo.
81
Fonte: Relatório de 2007 do núcleo de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia, p. 05 - . Arquivo
A.47.4.01
80
atitude, a Prelazia tem chamando a atenção do mundo para a exploração dos trabalhadores. Os
dirigentes pastorais consideram que muitas vezes só denunciar as autoridades brasileiras não tem
resolvido o problema. Segundo Casaldáliga (2007) “[...] só levando fatos assim ao conhecimento
das Nações Unidas é que se chama a atenção do mundo para a existência de trabalho escravo em
Mato Grosso. O que convenhamos é um sinal de atraso! Reclamar à ONU é a única opção que
resta”.
resolução, a prelazia de São Félix do Araguaia nos últimos anos tem organizado ações juntamente
81
importante porque divulga informações sobre o que é o trabalho escravo, bem como a formação
As ações dos agentes da CPT e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, através dos
Prelazia mantém uma advogada para encaminhar e orientar os trabalhadores nas causas
Capítulo III
denominações para essa prática, discutiremos neste capítulo a utilização do termo trabalho
fenômeno que produz novos deslocamentos. Segundo Gomes (2007, p. 01) “[...] um fato novo da
história recente do país que, se de um lado, tem relações com práticas seculares de exploração do
Este fenômeno tem sido pouco trabalhado pelos historiadores. A maior parte das pesquisas e
entrevistas (que utilizo neste capítulo e no IV capítulo) nos possibilitou analisar esta problemática
a partir dos depoimentos de pessoas que foram submetidas à prática do trabalho escravo
entrevistas e conversas84 realizadas com os peões algumas vezes foram em botecos, Sindicatos
83
Os termos escravo e escravidão já eram utilizados pelos romanos através dos vocábulos servitus e servus. Na
Península Ibérica, os termos captivus e sarracenus gradualmente substituíram o termo servus, o que se explica pelo
número crescente de muçulmanos reduzidos ao cativeiro durante a Reconquista Cristã. Mas o tráfico de cativos dos
países eslavos introduziu o termo sclavus também na Espanha, durante o século XIV. Em Portugal, é no século XV
que o novo termo escravo se generaliza, significativamente num momento em que começava a tomar corpo o tráfico
de negros trazidos da África. Igualmente aqui, a distinção de origem étnica ou racial adquiriu conteúdo social (Palo
Neto, 2006, p. 64).
84
Algumas vezes não foi possível gravar as entrevistas, porque os trabalhadores não queriam ou a situação não
permitia, mas nestes casos, eu anotava o que era possível.
85
dos Trabalhadores Rurais, casa do idoso85 e na casa de agentes de pastoral da Prelazia de São
Félix do Araguaia. As entrevistas realizadas com os Agentes da CPT e Prelazia de São Félix do
é de desconfiança. Por um lado, por ser uma mulher que está conversando com um peão, por
outro, o medo de que o que dizem poderá mais tarde ser utilizado contra eles. Mas também
vislumbram a oportunidade de fazer uma denúncia, de reclamar pelo pagamento que não foi
realizado pelo gato ou fazendeiro. É alguém de fora das suas relações que está lhes dando
atenção. Falar de seus problemas para alguém que eles não conhecem, algumas vezes provoca
uma reação de estranhamento86, mas também de interesse, quando eles percebem que podem
As entrevistas foram realizadas com peões jovens e idosos. Algumas foram obtidas
logo após a fuga da fazenda. Em outras eles já haviam passado por essa prática a algum tempo,
mas na memória isto é muito recente. São feridas ainda abertas, marcas que não se apagam
facilmente. Para chegar até esses trabalhadores e fazer as entrevistas, contei com a colaboração
esperanças desses trabalhadores que na maioria das vezes são tratados não como pessoas, mas
como coisas, como mercadoria que pode ser comprada, usada e descartada. Eles reclamam com
85
Em São José do Xingu, realizei algumas entrevistas na casa de idosos, onde encontra-se vários peões que
trabalharam em diversas fazendas no território do Araguaia e agora não podendo mais trabalharem nas fazendas e
distantes das famílias esse é o lugar em que podem morar.
86
Depois de ser apresentada para os trabalhadores por alguém que os conhecia, em geral a reação de estranhamento
se dissipava. A desconfiança diminuía, aumentando a confiança. Mesmo assim, algumas vezes me pediam para
desligar o gravador ou não escrever o que estavam falando.
86
frequência que apenas querem trabalhar para conseguir o sustento da família. São pessoas que
vivem o cotidiano do não ter, desde a comida com qualidade até um lugar decente para dormir.
campo da história nos possibilita fazer novas reflexões sobre o mundo do trabalho. Como
considerou Gomes (2007), este fenômeno é relativamente novo nas discussões acadêmicas, e na
Uma das primeiras denúncias públicas foi feita por D. Pedro Casaldáliga, então
bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Em 1971, por ocasião da sua sagração episcopal,
D. Pedro publicou a Carta Pastoral “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a
marginalização social". Neste documento o bispo denuncia a situação dos índios e posseiros
que estão sendo expropriados pelas grandes empresas que começam a se instalar no Araguaia, e
D. Pedro Casaldáliga foi uma das pessoas mais importantes a utilizar o termo
trabalho escravo e escravidão branca, entre outros. Diversas denúncias também surgiram na
imprensa, como a que foi publicada em 1971 pelo Jornal do Brasil que noticiava a libertação,
município de Luciara.
escravidão por dívida, por si só não dão conta de expressar a complexidade do problema que
87
utilizado o termo “trabalho forçado”, uma categoria mais ampla que engloba diversas
trabalho no mundo. É preciso compreender essas designações dentro do campo político e social
A acepção que produz significância ao termo trabalho escravo deve estar sempre
(Grécia e Roma) é diferente de falar do trabalho escravo histórico (da escravidão com negros
vindos da África para serem explorados nas novas terras na América no período Colonial e
Imperial do Brasil); bem como das formas contemporâneas de trabalho escravo no Brasil (Jardim,
2007).
Koselleck (1992, p.3) ao discutir a história dos conceitos, afirma que “[...] todo
conceito articula-se a certo contexto sob o qual também pode atuar, tornando-o compreensível”.
Neste trabalho o termo trabalho escravo está sendo utilizado para chamar a atenção para a
modernas.
Conforme Neide Esterci (1994 p. 12), a melhor forma de classificar essa relação de
trabalho é de fato ir além de uma discussão, partindo “[...] de definições já estabelecidas nas
87
Ao falarmos em sistema de exploração, “de trabalho escravo” estamos nos referindo a uma cadeia que envolve o
patrão, o gato, a (o) dona de pensão, o motorista que leva ilegalmente os peões à fazenda desviando de barreiras e
quando é preciso suborna o policial que faz vista grossa, conforme descrito por D. Pedro Casaldáliga (1971) Neide
Esterci (1994) José de Souza Martins (1997) João Carlos Barrozo ( 1997), Binka Le Breton (2002) e Ricardo
Rezende Figueira (2004).
88
muitos questionamentos em torno dessa temática. E um deles é o das classificações, dos nomes
que se empregam segundo, “[...] o contexto, os critérios e as posições dos diversos atores
não ocorrem com a mesma configuração, mas cada caso tem as suas especificidades.
Ricardo Rezende Figueira88, explica que as diversas entidades de defesa dos direitos
humanos89 que atuam na fiscalização do trabalho, quando empregam a categoria “escravo” para
ao longo do tempo, não são estáticos e as sociedades apropriam-se deles de formas diferentes
em tempos e espaços variados. “[...] as palavras que permanecem as mesmas não são, por si só,
Ou seja, a designação trabalho escravo permanece, mas o seu significado alterou-se, se re-
significou, dando novo sentido ao seu uso. O trabalho escravo contemporâneo utiliza práticas
que divergem da escravidão clássica, do período colonial brasileiro. Foi apropriado em outro
88
Ricardo Rezende Figueira, padre que trabalhou por vários anos na CPT (Comissão Pastoral da Terra), no sul do
Pará, desenvolveu pesquisas para o mestrado e doutorado em antropologia sobre a temática do trabalho escravo
contemporâneo.
89
Sindicatos, Igreja, CPT e servidores públicos Grupo Móvel de Fiscalização, Ministério Público Federal e Policia
Federal.
89
tempo e espaço, para chamar a atenção de um fenômeno que, mesmo legalmente não existindo,
Muitas vezes, o termo escravidão é utilizado por pessoas e entidades sem a intenção
recusa a situações que rompem com limites aceitáveis de degradação dos trabalhadores.
(Esterci, 1994).
Para Gomes (2007, p. 06) “[...] quando uma categoria é excessivamente ampliada,
pode perder completamente a capacidade de atribuir sentido ao que designa, pois passa a se
Neide Esterci (1994, p. 16) chama a atenção para a re-significação do termo trabalho
escravo, a qual expressa a necessidade de superar essa variação nos termos utilizados como
O termo trabalho escravo em alguns casos tem sido banalizado, sendo utilizado para
seja trabalho escravo contemporâneo. O que está em jogo não é um significante meramente
teórico. Mas todo o conjunto de atuação preventiva e repressiva acerca do trabalho escravo
contemporâneo, naquilo que se refere à sua ineficácia/ineficiência, pode ser iniciado a partir da
falta de um entendimento maior à sua compreensão (Gomes, 2007). Segundo Esterci (1994) a
escravidão tornou-se uma categoria eminentemente política, fazendo parte do campo de lutas,
sendo utilizado pelas diversas entidades para designar o trabalho não livre.
contemporâneo não se dá de forma tão explícita como nos moldes da escravidão abolida no Brasil
no século XIX. A coerção não é só física, mas também a moral, simbólica91. O expediente da
dívida é para o trabalhador um fator de cerceamento da liberdade. Para ele sair devendo é
90
Refere-se à escravidão de africanos no Brasil nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.
91
Sobre as relações simbólicas, ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Bertrand / Rio de Janeiro:
Difel, 2000. Para Bourdieu, o poder simbólico surge como todo poder que consegue impor significações e impô-las
como legitimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como instrumentos por excelência de integração social, tornando
possível a reprodução da ordem estabelecida.
91
vergonhoso, não é digno de um homem que empenhou sua palavra ao receber o adiantamento do
gato. Uma das principais diferenças é que, na atualidade, a escravidão enquanto um sistema legal
já foi abolido, portanto, essa situação ocorre na clandestinidade. Além do mais, não há uma venda
formal do trabalhador, mas uma coerção (proibição de afastamento do local de trabalho, que é
perda temporária do direito de “ir e vir”) provocada por uma dívida, na maioria das vezes
ilegítima.
Autores como Eduardo França Paiva (2005) tem chamado a atenção para os usos do
termo trabalho escravo e suas implicações. Um dos problemas levantados pelo autor é a
vitimização do trabalhador. Este não é mais visto como um sujeito capaz de ações, mas sim como
coisa: “[...] Já transformar o escravo em coisa, ignorando-se sua humanidade, suas capacidades,
seus conhecimentos, suas habilidades, seus sentimentos, é, creio, uma opção equivocada e
reducionista, adotada por intelectuais de épocas que aceitavam essas simplificações, mas
estas práticas? Há uma necessidade de construir outro campo de análise que não reproduza a
naturalização das categorias pobre e vítima desses trabalhadores que têm demonstrado fantásticas
estratégias para escapar do aprisionamento, violência e exploração dentro das fazendas. (Souza,
2007).
Nas nossas análises, utilizando uma vasta documentação, não há como tratar esses
trabalhadores como não sendo sujeitos, capazes de ações. Pois essa prática de exploração do
92
trabalhador tem sido conhecida e denunciada porque essas pessoas têm conseguido romper com
o cerco armado dentro da mata, utilizando uma multiplicidade de estratégias para sair desses
Um caso que teve notoriedade foi o de uma denúncia de que era utilizado trabalho
escravo na fazenda CODEARA no ano de 1971. Este fato teve grande repercussão no país 93.
Como destacou Casaldáliga, (2003) “[...] Na fazenda Codeara viu-se o maior caso de
escravidão branca da história do Brasil”. Este episódio foi denunciado por dois rapazes
memores de idade que conseguiram fugir da fazenda, sendo relatado em uma entrevista de
Antônio Canuto94:
Quando realizamos as entrevistas e/ou conversas com esses trabalhadores que foram
submetidos a essas práticas, podemos pensar em outras possibilidades de leitura que implicam em
92
Discutiremos sobre essas estratégias no capitulo IV.
93
A denúncia foi publicada em jornais de circulação nacional: O Globo, Correio Brasiliense, Folha de São Paulo,
entre outros.
94
Antônio Canuto é um ex-padre que trabalhou na Prelazia de São Félix do Araguaia por mais de 30 anos. Ele
ajudou dezenas de trabalhadores a fugirem, bem como encaminhou denúncias de trabalho escravo a diversos órgãos
do Governo Federal. Hoje ele integra a equipe da CPT na coordenação nacional
95
Entrevista realizada em 16 de outubro de 2007, com Antônio Canuto em Goiânia.
96
Ver distinção em BOURDIEU, Pierre. A distinção: Critica social do juramento. São Paulo, Edusp, 2005.
93
sociais pobres97. Segundo Souza (2007, p. 12) “[...] Essas classificações gerais e unificadoras
que eles ultrapassam, vão além dessa relação de forte/fraco. Eles são pessoas, que não podem ser
esta relação de trabalho, nos sugere que um novo conceito está sendo forjado e/ou re-
significado, com base nas práticas de coerção e exploração do trabalhador, resultantes dos
agenciadores de mão-de-obra, denominados gatos. Estes recebem dos gerentes ou donos das
trabalhadores temporários na época da safra. Levados para lugares distantes de sua residência,
97
Sobre deslocamentos de grupos de trabalhadores pobres que vivem a procura de novos espaços ver o trabalho
inovador de SOUZA, Ana Maria. Relatos de Cidades: nomadismo, territorialidades urbanas e imprensa Cuiabá-MT
– segunda metade do século XX. Cuiabá, Entrelinhas – EDUF, 2007.
94
Os gatos sabem que se o peão empenhar sua palavra significa que irá executar o
serviço por mais que seja difícil. Eles aproveitam desse contrato verbal, confiando na palavra
do trabalhador, aproveitando para explorá-lo ainda mais. Segundo Jeane Belline98, o gato
utiliza-se de artifícios como amizade, conhecer e saber o nome dos trabalhadores, enfim toda
uma simbologia para convencer os peões a deixarem seu lugar de origem e irem trabalhar em
outras localidades:
Eles não vêm só escondidos, eles vêm por que confiam no gato, e já está
adiantando pra ajudar a família, mas aquele adiantamento é dívida
entende, então, é toda uma psicologia de dominação, mas muito bem,
que o peão acaba sentindo que ele tem nome e os gatos também
aprendem os nomes, é todo um fenômeno. E pra mim é porque na cultura
camponesa o homem tem que ser o provedor da família, ele tem que ser
aquele que dá conta, reconhecido de alguma forma e eles vivem a
vergonha constante de não estar dando conta. Então, o gato, ele não pode
elaborar do jeito que ele esta dizendo, mas ele aprendeu como trabalhar
esta mentalidade dos homens. Tem deles que ficam muito fiéis ao gato e
teve vez que eles não queriam contar o que tinha acontecido, na cabeça
deles por causa desse lado afetivo, eles diziam para nós, não ele (o gato)
não é tão ruim, eles diziam que esse era um fato concreto, foi uma
decepção (Jeane Belline, outubro de 2007).
As astúcias utilizadas pelos gatos, fingindo serem amigos dos peões são formas de
mantê-los leais a eles. Em alguns casos os peões denunciam as tentativas de fugas dos próprios
companheiros, para manter a boa relação com o gato. Quando esta confiança é quebrada, ele
sente-se decepcionado. Mas, de alguma forma, decide “proteger” o gato, pois mais tarde irá
98
Entrevista Realizada com Jeane Belline em Goiânia, outubro de 2007. Jeane Belline é uma freira que trabalhou
por mais de 30 anos na Prelazia de São Félix do Araguaia como Agente de Pastoral primeiramente na Equipe de São
Félix do Araguaia depois em Porto alegre do Norte. Na Prelazia de São Félix do Araguaia, trabalhou com pessoas
que foram resgatados de fazendas onde existia a prática de trabalho escravo, e atualmente, desenvolve trabalhos na
equipe da coordenação nacional da CPT.
95
precisar de trabalho e quem poderá conseguir para ele é o gato. Dessa forma é difícil para eles
enquanto o trabalhador tiver dívida ele fica impedido de dispor livremente de sua força de
trabalho. Na concepção do trabalhador ele tem a obrigação moral de liquidar a dívida. Muitas
vezes o trabalhador não percebe que já pagou a dívida várias vezes e, esta é mais uma forma do
violência física e/ou psicológica, a responsabilidade moral sentida pelos trabalhadores frente à
dívida e a presença de homens armados. A vulnerabilidade das pessoas aumenta com a distância
entre a fazenda e o local de recrutamento. Eles não estão apenas longe de suas cidades, mas de
uma rede de solidariedade que poderia ser acionada, composta por seus parentes, amigos e
um conjunto de práticas sociais e políticas, que envolvem vários atores (gato, peão e fazendeiro),
como também as especificidades dos momentos e espaços em que ele ocorre. Não é só a
Tal designação não precisa ser vista como fruto de simplificação e/ou
distorção, mas como uma metáfora discursiva, que mobilizando o
passado, quer compreender o presente e defender um futuro, no qual
trabalhadores sejam homens livres, com direitos protegidos pelo Estado e
assegurados em lei.
Portanto, as dificuldades são ainda ampliadas quando buscam definir o que seria
trabalho escravo com a inserção de outro elemento, que são as condições degradantes de trabalho:
agem como senhores donos de escravos, exercendo autoridade absoluta em sua área de
influência, desafiando o Estado. Eles estabelecem seus poderes arbitrários com a certeza da
de uma influência direta na política local e regional. O julgamento das ações de casos de
trabalho análogo ao trabalho escravo, na esfera Federal, vem contribuir para diminuir a
impunidade desses crimes. Entende-se que estando fora da esfera estadual, estes fazendeiros
entidades de defesa de direitos humanos e dos operadores do direito, faz referência a uma
espécie de trabalho que se distingue daquele tipo exercido na antiguidade (a escravidão clássica
como é definida por alguns autores), bem como no período colonial brasileiro (a escravidão de
negros africanos). O fato é que o trabalho escravo, trabalho forçado, escravidão por dívidas, ou
Nos últimos dez anos, mais de vinte e cinco mil pessoas foram escravizadas em
diferentes localidades do Brasil, especialmente nas áreas rurais e distantes, nas quais se tornam
Segundo Gomes (2007. p. 23), “[...] O que se deseja acionar é seu potencial
explicativo e mobilizador, que permite uma rápida apreensão de um fenômeno novo, amplo e
O caso brasileiro possui especificidades próprias, sendo que este fenômeno ocorre
incidências está nos estados com grandes extensões de terra e de ocupação recente, sobretudo
nos Estados do Pará e de Mato Grosso, que são os campeões da prática de trabalho escravo
contemporâneo (a partir do final da década de 1960 e inicio da década de 1970). Esta forma de
2002 30 85 2.285
2000 25 88 516
99
Há alguns casos de trabalho escravo contemporâneo nas cidades, sobretudo, com trabalhadores imigrantes, que
trabalham na ilegalidade, um dos casos que teve grande repercussão foi o caso de bolivianos escravizados, nos
porões de fábricas em São Paulo.
100
No ano de 2007, está contabilizado apenas o primeiro semestre.
99
1999 19 56 725
1998 18 47 159
1997 20 95 394
1995 11 77 84
conseqüência da dívida, eles são impedidos de saírem devido ao controle dos gatos e gerente de
fazendas. Este controle é facilitado pela relativa distância geográfica onde estão localizadas as
fazendas estão na região Amazônica, em áreas de floresta amazônica. Algumas fazendas estão
situadas a dezenas ou centenas de quilômetros de distância das vias de acesso ou das cidades
mais próximas e, de seus lugares de origem. Nestas condições, os trabalhadores estão fora do
alcance dos agentes de fiscalização, e ameaçados pela presença inibidora de pistoleiros 101
101
Pessoa contratada pelo fazendeiro ou gato para vigiar os trabalhadores nas fazendas, um assassino profissional.
100
continuam, mas ficou muito mais difícil para o fazendeiro manter a mão-de-obra escrava retida
O fazendeiro, não precisa mais comprar seus escravos, já que se tornou ilegal alguém
ser propriedade de outra pessoa. Hoje, apenas pagam o transporte até a fazenda, assume a dívida
do trabalhador na pensão pioneira e adianta uma quantia pequena em dinheiro para sua família. O
adiantamento será cobrado do trabalhador, com juros e correção, com um grande valor acrescido.
O peão contratado paga todas as despesas efetuadas por ele, como parte
do adiantamento do empreitado, tendo que aceitar qualquer salário102,
pois já estava na dependência de recursos financeiros para soldar sua
dívida perante o hoteleiro ou pensionista (Martins, 1981, pág. 61).
menos, isso também não causa prejuízo ao fazendeiro. Basta que ele o abandone na estrada,
sem gasto nenhum, e recrute novos escravos. (CPT, 2006). Isso porque existe muita mão-de-
falta de perspectiva que atinge aproximadamente trinta milhões de pessoas no Brasil. (CPT,
2006).
era por um longo período. O escravo permanecia sob a dependência do senhor por toda a vida.
A dependência se estendia aos dependentes, também escravos. Nessa nova escravidão não há
uma relação entre trabalhador e patrão. Os peões apenas se relacionam com o gato ou o gerente
102
O peão não recebe salário. Ele recebe um pagamento acertado em forma de “empreitada” um valor fixo a ser pago
por um serviço determinado.
101
da fazenda, por um curto período. Assim que termina o serviço não é mais preciso dar sustento
a este trabalhador.
africanos. Na escravidão atual, a característica étnica não é relevante. Hoje os escravos não se
caracterizam mais pela cor da pele, mas pela sua origem sócio-econômica. São pessoas pobres
eram considerados, por lei, propriedade do fazendeiro, o qual precisava gastar dinheiro na
destaca essa forma de trabalho escravo contemporâneo, evidenciando que o mesmo é tão ou
103
Depoimento de Ruth Vilela, In. GOMES, Ângela de Castro. Trabalho análogo ao trabalho escravo: construindo
um problema. Mimeo, 2007, p. 20-21.
102
não é o número de horas máximo permitido pela legislação trabalhista, mas definido pelo gato
enquanto for possível trabalhar com a luz do sol, só deixando o trabalho no inicio da noite.
Assim, o trabalhador inicia suas tarefas quando amanhece, e somente termina ao anoitecer.
As refeições são feitas durante uma breve interrupção do trabalho, sem o período de
descanso necessário. Na maioria das vezes esta é apenas um bocado de arroz, feijão e raramente
Em geral, este tipo de escravidão dura enquanto durar a derrubada ou a “limpeza” das
áreas. Os novos escravos são pessoas pobres, negros, mulatos e/ou brancos. Segundo dados da
CPT, 98% são analfabetos, e muitos não possuem documentos de identidades ou certidão de
nascimento, não aparecendo nas estatísticas do Governo. Eles não existem legalmente, como
A pobreza é tão grande nos lugares de origem, que mesmo passando pela exploração e
ou a prática do trabalho escravo eles retornam para trabalhar nas empresas por anos seguidos. Um
caso exemplar é o da destilaria Gameleira104. Esta empresa consta na “lista suja” 105 do Ministério
do Trabalho Emprego:
104
A destilaria Gameleira está localizada no município de Confresa foi autuada pelos fiscais do Ministério do
Trabalho por desrespeito as leis trabalhistas e a prática de trabalho escravo nos anos de 1997, 2001, 2003 e 2005,
recentemente mudou de nome, sendo denominada Destilaria Araguaia, pois como destilaria Gameleira fazia parte da
Lista Suja do Ministério do Trabalho e Emprego, ficando impedida de utilizar financiamentos em bancos oficiais.
105
Empresas que constam nesta lista encontram restrição de financiamentos públicos, a "lista suja" também lida
com a desvalorização da imagem do empregador que tiveram seus nomes incluídos. A idéia segundo, o Ministério do
Trabalho e Emprego é promover um amplo conhecimento das empresas que mantêm pessoas escravas em sua
produção econômica como forma de inibir o consumo dos seus produtos ou serviços. O boicote comercial não se
direciona apenas ao consumidor final, mas também a outras empresas que mantenham relação econômica com os
infratores incluídos na lista, evitando, assim, a aquisição de matérias-primas que serão utilizadas na produção de
outros bens.
103
contando as coisas que eles tinham passado, perguntei logo, por que vocês
vieram uma segunda vez? Por que alguns deles tinham vindo 2, 3, 4 anos
seguidos do Maranhão. Ai um deles disse se vocês vissem quem ficou pra
trás chorando porque não coube no caminhão, no ônibus, então a pobreza
do Maranhão que empurrava também106.
O fato desta empresa ter sido autuada várias vezes pela prática do trabalho análogo ao
trabalho escravo, não inibiu os trabalhadores de retornarem para o corte da cana na mesma
empresa. Há uma grande miserabilidade no lugar de origem. Quando eles não conseguem viajar
floresta, plantar a pastagem, no preparo da terra, na cata de raízes, sobretudo nos campos de soja.
O tempo necessário para a realização das tarefas é de alguns meses, dependendo do tamanho da
área. O que significa, então, que o trabalho escravo contemporâneo rural é temporário, que dura
enquanto durar a empreitada. É um trabalho temporário que utiliza uma mão-de-obra provisória.
Grosso, entre o Xingu e Araguaia) podemos identificar a prática do trabalho escravo na limpeza
106
Entrevista realizada com Jeane Belline, outubro de 2007, em Goiânia.
104
CAFÉ
ALGODÃO
SOJA
Pecuária
código penal desde 1940. Porém, poucas vezes o preceito legal foi utilizado para apoiar os
país a partir de 1993, a partir de pressões de entidades como a C.P.T. e, sobretudo da O.I.T., que
incluía sistematicamente a prática do trabalho escravo (ou forçado) em seus relatórios anuais. A
107
O Grupo Móvel é formado por Auditores-Fiscais, Policiais Federais, Ministério Público do Trabalho de várias
localidades que se reúnem para uma atuação planejada de alguns em uma determinada região. As ações de
fiscalização desenvolvidas pelo GEFM são organizadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT a partir de
denúncias recebidas de trabalho escravo, nas mais diversas regiões do País. O coordenador da ação (Auditor-Fiscal
do Trabalho), em conjunto com a SIT, faz a comunicação à Polícia Federal, ao Ministério Público do Trabalho e a
Procuradoria-Geral da República, além do IBAMA e INCRA (quando necessário e possível). MINISTÉRIO DO
TRABALHO E EMPREGO. Manual de procedimentos para as ações fiscais de combate ao trabalho escravo.
Brasília, 2004.
106
Para alguns autores e operadores do direito, esta lei cria mais confusão (Rodrigues
Junior, 2005, Gomes, 2007), no entendimento do que seja trabalho análogo ao de escravo,
Nesse sentido, no caso do trabalho escravo, além da informalidade, tida aqui em seu
sentido restrito, como a ausência de registro na CTPS, estão, indubitavelmente, presentes todos
O trabalho escravo Colonial não rendia lucros altos aos senhores de escravo devido
grande contingente de trabalhadores desempregados. São aliciados pelos gatos que possuem
oportunidades. Não é por acaso que as regiões mais pobres do Brasil são as principais fontes de
diversos do local de origem dos trabalhadores, pois é justamente quando esses trabalhadores
saem em busca de melhores condições de vida que se tornam presas fáceis dos fazendeiros e
gatos que os levam para as fazendas submetendo-os ao trabalho escravo. (Esterci, 1994, Breton,
2002, Barrozo, 1987 e Figueira, 2004). A condição de migrante é uma característica comum
identificada no trabalho escravo. Essa característica pode ser observada tanto na situação de
escravidão como considerou Esterci (1994) Gomes (2007), é um modo de não aceitar as formas
atuais de exploração do trabalhador, “[...] uma metáfora do inaceitável”. Tornando assim, “[...]
uma categoria eminentemente política, faz parte de um campo de lutas”. (Esterci, 1994, p. 44).
traficados em embarcações abomináveis e trabalhando sob o jugo imediato do senhor, sob pena
de castigos no tronco e vivendo acorrentados, sugere uma indignação, frente à existência das
Capítulo IV
Trabalhamos neste capítulo com a trajetória de vida dos peões, percorrendo, através de
seus relatos, diferentes espaços em que se deslocam, transitando por suas angústias, esperanças e
sonhos, perpassando por suas narrativas que envolvem uma multiplicidade de sentidos. Uma
histórias desses trabalhadores no Araguaia estão repletas de imagens que são amálgamas de
sonhos, realidades e irrealidades. Tentamos compreender o universo social dos “novos” espaços
que vão se constituindo com a chegada dos peões, acompanhando a trajetória de vida desses
Entendemos que o relato é definidor de lugar, pois as pessoas relatam os lugares em que
constroem suas relações. O relato, segundo Certeau (1994), é delinqüente porque não segue uma
referirem aos espaços nas fazendas relatam também a vida no local de origem. Pois os lugares
praticado.
submetidas a práticas sociais violentas, que, são “[...] específicos do movimento de ocupação
recente do território amazônico, a partir da década de 70 do século XX”. (Guimarães Neto 2002,
p. 02). São vidas que se esfacelaram em busca de melhorias. São homens e mulheres que se
possibilitaram a reconstrução de parte da história de pessoas que ainda lutam a cada dia pela
Nesses “painéis pintados” pelos peões encontramos marcas que na maioria das vezes
eles querem e, até mesmo precisam esquecer para continuar vivendo, procurando outras formas
para melhorar de vida. É nesse momento (da entrevista) que muitas vezes só as palavras não dão
conta de explicar aquilo que o depoente quer transmitir. Trabalhamos com memórias que
produziram feridas, as quais na maioria das vezes não estão cicatrizadas, apenas adormecidas. O
pessoas sentem vergonha de se expor. O entrevistador, nestas situações, sente-se impotente para
que trabalha com a oralidade é na escuta sensível de onde emerge a voz de sujeitos que são
portadores de uma memória, cuja significação tece fios na história de uma época”. Através da
memória dessas pessoas (os peões) é possível reconstruirmos parte da história do Araguaia. Uma
história que é marcada pela violência, pela luta pela terra, pela esperança de centenas de
trabalhadores pobres que saíram na segunda metade do século XX de várias regiões do país em
alcançados ao longo de suas vidas, instigamos nessas pessoas uma revisitação ao passado, a
lugares que muitos querem esquecer. É como se estas pessoas vissem um filme da própria vida. É
significante o trabalho com a memória desses migrantes, entretanto “[...] privilegiar os itinerários
111
construindo novos espaços. Os homens migram à procura de trabalho e as mulheres ficam com a
chegada. Raramente eles voltam para suas famílias de origem, vivendo em uma constante procura
por “lugares”.
lugar, os sentidos dados a determinados acontecimentos agora são outros. O peão precisa lutar
incessantemente pela própria vida. Tudo é perigoso, falar, fazer amizades ou inimizades. Perdem-
pouco as relações familiares. Quando o peão está longe, no interior da mata, eles percebem a
108
Documento arquivo da Prelazia de São Feliz do Araguaia – B-8.2.48, p. 02.
109
Para Guatari e Rolink ( 1986, p. 323, apud, Haesbaert e Bruce 2005 ) “a espécie humana está mergulhada num
imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem
ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação de deuses universais que ultrapassam os quadros da
tribo e da etnia, com sistemas maquínicos que levam a atravessar cada vez mais rapidamente, as estratificações
materiais e mentais”. Para uma melhor compreensão sobre territorialização e desterritorialização e reterritorialização,
ver Guimarães Neto (2005), Ianni (2003), Deleuze e Guattari ( 2002) , Guattari e Rolink (1986) Haesbaert e Bruce
(2005).
112
importância da família, que eles aspiram a reencontrar. “[...] lá não dava muito valor pra minha
mãe não, agora eu sei o que é ficar longe de mãe, sei que ela se preocupa comigo. Aqui ninguém
110
liga pra ninguém não” . Os relacionamentos amorosos com as mulheres, no novo lugar de
chegada, são sempre provisórios, estão de passagem, “[...] vou voltar com dinheiro e casar lá no
Essas pessoas estão recordando parte de suas vidas, e o ato de lembrar aflora, expõe
sentimentos, que por algum motivo ficaram na reminiscência do passado. Uma entrevista que me
emocionou bastante, quando o entrevistado ao mostrar suas mãos cheias de cicatrizes do trabalho
na derrubada da mata, limpeza de pastagem e a construção de cercas, diz: “[...] dona eu não sou
vagabundo sou gente, olha as minhas mãos, vivo do meu trabalho tomo a minha cachaça, mas
trabalho” 112.
tratos que ele passou no interior de várias fazendas onde trabalhou em Mato Grosso e no Pará.
Mas também reivindica a condição de ser humano, que possui dignidade. O fato de “beber
cachaça”, não o torna menos humano ou desprovido de decência. Porque muitas vezes os peões
Apesar da vida sempre difícil e sacrificada, e mesmo que sejam silenciados dentro das
fazendas, os peões constroem sua história com uma habilidade própria, através das narrativas e
conversas em bares, bordéis, pensões e em outros lugares. É a partir dessas narrativas que estamos
chegada ao novo lugar leva os trabalhadores a um novo mundo – o das desilusões. Os espaços
percorridos por eles são estranhos, tudo parece ser perigoso. Eles criam estratégias para se
110
Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
111
Idem.
112
Entrevista realizada com F. R. S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006
113
familiares, compartilhando desde o fumo até os alimentos. Tecem experiências, das codificações e
composição da organização dentro das fazendas. Entretanto, mesmo que construam relações de
amizade, há uma grande desconfiança entre eles, como nos relatam: “pois não dá para confiar em
ninguém”. Alguns foram enganados pelas falsas promessas do gato, tiveram seus direitos
usurpados e foram violentados, desde a saída de sua casa. Outros retornam as fazendas por não
terem condições de trabalho no lugar de origem. Como enfatiza Casaldáliga (2003) sobre os peões
que trabalhavam na fazenda Suiá Missú: “[...] Apesar de tudo, aquela fazenda era para muitos
como uma mãe, porque dava emprego. Esse mundo da peonada do trecho é dos mais
dramáticos”113.
Ao recordar passagem de suas vidas essas pessoas (re) compõem, na esfera mental,
imagens e discursos que, tornam presente um acontecimento ausente. Pois estão relembrando
com a significação do presente, a partir do que estão vivendo. Segundo Walter Benjamin (2000
p.37.): “[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao
passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que
veio antes e depois”. Ou seja, a presentificação do passado não nos remete apenas para o fato
memória que alguns dos peões, sobretudo, os mais velhos expõem sua indignação, pois muitas
vezes, não tinham “consciência” da situação de exploração no momento em que esta aconteceu.
113
Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007.
www.diariodecuiaba.com.br .
114
Mas ao longo do tempo e convivendo com outras pessoas, é como se despertassem para a
“realidade”. Pois estão falando do que viveram, agora sob a luz de novas relações e informações.
memória, o tempo não é marcado pela cronologia, o que importa é o significado dado a ela. O
presente. Sendo assim, o ato de lembrar reporta ao passado vivido por essas pessoas. A
lembrança, segundo Halbwachs (1990, p. 71), é “[...] uma reconstrução do passado com a ajuda
trabalhar nas fazendas agropecuárias, através de seus próprios relatos pode oferecer luzes para
para o Araguaia foram vários grupos sociais e, muitos indivíduos isolados, com experiências de
Ismael nos relata fragmentos dessa memória do mundo do trabalho ao fugir da fazenda Bela
A gente saía de noite, fugia né. Ai se eles pegavam, esse sofria! Aqueles que
eles viam que voltavam quietinhos eles ainda davam umas lapadas boas neles,
ai eles vinham trabalhar. Eu mesmo cansei de ver peão trabalhar amarrado,
115
trabalhava de dia quando era de noite eles punham uns correntão nos pés deles
para não fugir. Mas tinha aqueles que já tinha fugido mesmo... Ai eles sempre
maltratava aquela turma que fugia, algum assim era excluído, não podiam ficá
juntos com os outros. Ai aquela turma ficava ali trabalhava de dia quando era
de noite jantava, tomava banho. Amarravam eles lá no pé do pau, os capangas
ficavam lá vigiando com medo de outro ir lá e cortar as cordas e eles irem
embora. Já vi isso na fazenda Bela Manhã. 114
Essa memória do trabalho nas fazendas, relatada por senhor Ismael é ressignificada no
tempo presente. Para ele essas lembranças parecem envergonhá-los. Isso fica evidenciado em
várias entrevistas realizadas com trabalhadores que fugiram ou foram resgatados de fazendas,
onde viviam submetidos às condições de trabalho escravo. Poucos admitem que tenham sido
torturados e maltratados. Foi sempre com algum companheiro ou, como aparece em algumas
entrevistas dizem que “[...] o gato não era tão ruim para mim” 115.
Alguns admitem que fosse perto de onde trabalhavam, mas raramente aceitam que foi
com ele: “[...] a fazenda que eu trabalhei que disseram que era ruim, que tinha um gato que
116
espancava peão, foi do outro lado do rio pra ali, pra mim não foi tanto assim” . É uma desonra
ter passado por uma situação de aprisionamento, e ainda mais ter sido espancado. Na concepção
do peão ele perde a sua condição de homem provedor da família, e para suportar tudo isso, dizem
“[...] a cachaça é a minha companheira, quando bebo, esqueço tudo o que aconteceu comigo na
mata” 117.
É possível concluir que, mesmo não estando na fazenda e, muitas vezes, a centenas de
quilômetros de distância dela, o peão continua com medo do gato, uma figura que aterroriza os
114
Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT.
115
Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
116
Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008.
117
Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
116
peões por muito tempo, ou talvez por toda a vida. Esse medo do gato de alguma forma explica a
A história de vida desses trabalhadores também mostra que eles passaram por
seguidas migrações, tendo trabalhado em diversos estados do país. Mesmo sendo escravizados em
uma fazenda e conseguindo voltar, eles novamente vão para outra fazenda, onde possivelmente
serão outra vez escravizados. Vivem à procura de novos espaços, movendo-se sempre em lugares
que não são os seus. Por isso, mesmo impedidos de sair das fazendas por um determinado tempo,
os peões são movidos pelo sonho irrealizável de ganhar dinheiro e voltar para família que deixaram
há anos, muitas vezes, a centenas de quilômetros de distância, como foi relatado pelo senhor.
Ismael:
Eu tenho vontade de voltar para São Paulo ou Bahia; eu agora me deu vontade
de voltar pra onde está meus irmãos e filhos. Já fiquei desde dezessete anos
longe dos meus parentes. Com cinqüenta e cinco anos o que tinha de arrumar, já
arrumei, ao menos pra morrer. Morrer tudo lá mais perto tem uns pra chorar
pelo outro. Aqui a gente só tem amizade das pessoas, aqui eu conheço desde os
pequenininhos até os mais grandes. 118
Voltar sem dinheiro é ser fracassado, é não realizar o que procuraram durante toda a
vida. Esses trabalhadores vivem o cotidiano do não ter. Para os peões permanecer no lugar que
conhecem algumas pessoas lhes traz, de alguma forma, certo conforto. Mas estar com a família
perambulando nas periferias das cidades e nunca retornam para onde estão suas famílias. Existe
um sentimento de pertencimento àquele lugar, mas precisa encontrar-se em outro, estar com a
118
Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT.
117
família. O senhor Ismael quer voltar para perto da família, mas sente vergonha da situação em
que se encontra119:
É minha família, sabem que eu tô aqui no Mato Grosso, agora só não sabem
que eu to com essas pernas entrevadas, depois que eu entrevei as pernas não
comuniquei com eles mais não. Eu era perfeito agora não vou ser pai enquanto
não melhorar dessas pernas eu acho que vou acabar voltando e com pernas
assim mesmo. To esperando essa próxima eleição no mês de outubro que eu sou
eleitor aqui há vinte anos, ai sou obrigado a esperar pra não voltar aqui. Espero
a votação aqui e vou embora pra São Paulo. Não vou trabalhar mais aqui, ficar
menos perto dos parentes, né120.
Por mais dura que seja a situação em que se encontram esses trabalhadores eles
legitimar um discurso que os trata como coisas. Eles têm a percepção dos direitos e deveres
básicos da pessoa humana. A todo o momento eles relatam a sua situação, reivindicando os seus
direitos.
deste Estado ainda criança, indo para o Ceará, Maranhão e Mato Grosso. Em Mato Grosso
trabalhou em São Félix do Araguaia, Porto Alegre do Norte, Xingu e Confresa. Atualmente mora
em São José do Xingu. Veio a cavalo, a pé e de barco. Ainda criança, após a morte de seus pais
119
Sr. I.S. sofreu um acidente de trabalho em uma fazenda em São José do Xingu e perdeu os movimentos da perna
esquerda. Não podendo mais trabalhar foi morar na casa do idoso em São José do Xingu.
120
Entrevista realizada com I. S. em maio de 2008, em são José do Xingu/MT.
118
foi levado para o Ceará para ser criado com outra família. Como estes eram muitos severos, ele
fugiu e foi procurar parentes no Maranhão. Ainda muito jovem, aos dezesseis anos foi trabalhar
como vaqueiro no Maranhão, onde com dezessete anos encontrou um gato, que o aliciou e trouxe
para trabalhar em Mato Grosso. Atualmente com sessenta e quatros anos, velho, sem trabalho,
vive perambulando de cidade em cidade e não acha mais trabalho como peão nas fazendas.
Vinha assim, ele (o gato) mentia. Enganou os coitados, dizia que na fazenda
dele tinha toda profissão. Chegava lá (o gato) virava bandido ruim. Aí os canto
cheio de foice e machado, era assim, vinha enganado, aí os coitados ia
trabalhar. Tava bom, aí a urubuzada121 era grande, mandava matar e jogava lá
dentro (uma lagoa nas proximidades da fazenda). Ele não queria nem que
ninguém de fora encostasse naquele lugar, era arrudiado de pistoleiros. 122
ficaram marcados em sua memória, como também um desencanto com o gato que ele havia
confiado e que poderia ajudá-lo a sair da difícil situação em que se encontrava no Maranhão.
trabalhadores, pobres como ele, saíram do Nordeste à procura de trabalho e melhoria de vida em
Mato Grosso.
121
O trabalhador está referindo-se as diversas formas de violência e descumprimento dos acordos que os gatos
cometiam no interior das fazendas.
122
Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006, em Confresa.
119
Porém, raras vezes eles conseguem saldar essa dívida. Em alguns casos eles ficam
meses dentro da mata trabalhando de doze a quatorze horas por dia e, dificilmente conseguem
quitar a dívida. Os peões que vieram para trabalhar na abertura das fazendas agropecuárias no
Araguaia foram (e são) aliciados, sobretudo, nos estados do Nordeste e Goiás. Em uma entrevista
realizada com o senhor Celestino, ele nos apresenta a situação por que passou ao ser aliciado no
Maranhão, para vir trabalhar em Mato Grosso em 1964. A imagem que esses trabalhadores
constroem das fazendas de Mato Grosso é um pouco mítica: de riqueza, da terra em abundância,
fazendo com que muitos venham na esperança não só de trabalhar nas fazendas, mas também
poder, um dia, conseguir um pedaço de terra e reconstruir a vida, o que raramente acontece.
O senhor Celestino Pereira de Souza nos relata com detalhes quando foi aliciado aos
dezessete anos no estado do Maranhão para vir trabalhar na derrubada de matas em Mato
Grosso:
lugar. Eu vou matar minha fome, senão eu morro aqui nesse Maranhão.
123
O relato mostra como os gatos aliciam os peões em outros estados. Este fragmento de
memória do senhor Celestino, mostra a astúcia dos gatos para aliciar os trabalhadores. Este
trabalhador, que saiu do interior do Piauí com dezesseis anos de idade, e depois foi aliciado por um
gato, é um caso exemplar da utilização dos métodos perversos que os gatos empregam para
atraírem os trabalhadores que estão em situação de extrema pobreza. O gato mostrou a fotografia
determina a sua partida. Ele precisava sair daquela situação degradante em busca de condições
mais dignas.
Neste caso a memória reconstrói parte da trajetória do seu sofrimento, dando ênfase
ao que para ele era significante, saciar sua fome. No momento de sua fala ele busca uma
justificativa para sua condição, ao mesmo tempo em que se indigna com esta, procura meios para
fugir, não quer de forma alguma a acomodação e conformidade com sua situação. Fica evidente no
depoimento que a fotografia do “balaio de comida” é o que o motiva a tomar a decisão de partir.
Ou seja, a fome leva-o a ir embora para longe de sua terra, pensando que naquele lugar poderá
As lembranças o remetem a períodos de sua vida que por algum motivo estavam
pouco tempo. Segundo Verena Alberti ( 2004, p. 12) “ [...] ele (o entrevistado) se constitui (no
123
Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
121
com as pessoas, pois ao chegar em Mato Grosso, tudo foi muito diferente. As promessas de comida
em abundância que o haviam motivado a partir não se concretizaram. Pelo contrário, na mata para
onde foi levado para trabalhar, a comida também faltava em alguns momentos, ou era de péssima
qualidade. Ficou perambulando de fazenda em fazenda, sem conseguir melhorar de vida, como ele
nos mostra nesse trecho do relato, referindo-se ao gato que o aliciou, trazendo-o para Mato Grosso
destaca:
Pois aquele homem (o gato) não era bom não. Aquilo é peça ruim. E eu
enfrentei tudo; passei fome, medo, frio, doença. Aí trabalhei lá na fazenda, eu
fui tomando conhecimento com gatos, tudo, todo mundo da Suiá. As fazendas
estavam formando. Essa Reunidas, São Francisco, São João, tudo. Esse mundo
de fazendas que tem hoje aqui. Tudo eu cheguei ainda no princípio. Eu saí
fugido das matas pra não morrer. Pros pistoleiros não me matar, e agora estou
aqui sem trabalho. 124
O senhor Celestino, aos sessenta e quatro anos de idade, já se casou por duas vezes,
mas na velhice está só. Passou por diversas situações de violência no interior de várias fazendas
realidade encontrada nas fazendas em que trabalhou, foi totalmente diferente. Mas ainda,
continua a procura por “dias melhores”. O fato de estar desempregado e que nesta idade já não é
fácil encontra trabalho como peão, o deixa um pouco desencantado com a vida. Homens como
senhor Celestino estão sempre à procura de trabalho em diferentes lugares. Eles passaram a vida
124
Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
122
acordos que os gatos e fazendeiros mantinham com os donos de pensões. Eles assumiam a dívida
do trabalhador e os levavam para trabalhar na fazenda. A dívida muitas vezes super-faturada era
transferida para o gato, passando a ser uma justificativa para manter o trabalhador dentro da mata.
pensões:
Eu vim no pau de arara de lá pra cá. Tinha uma mulher na Santa Helena em
Goiás que chamava tia. Ela tinha uma pensão que sempre que chegava a
campanheirada ficava ali, ajuntava um lote de gente pra vir pro Mato Grosso, ai
os empreiteiros chegava lá e ela arrumava e vinha mais os empreiteiros até na
Barra do Garças. Chegava na Barra do Garças o empreiteiro pagava o que a
gente ficava devendo para ela. Naquele tempo tinha um negócio do empreiteiro
arrumar um adiantamento pra companheirada. Aí, por exemplo, o Ronildo aqui
era o empreiteiro ele chegava aqui, tinha eu, tinha o Baiano, tinha seu João, ai
nós via ele e ele falava como é que era pra nós trabalhar. Queria fazer as contas,
falava que queria trezentos cruzeiros né, aí é pagar com o trabalho. 125
Estes trabalhadores homens, mulheres e em alguns casos crianças 126, uma mão-de-
obra desqualificada, substituível, são recrutados e iludidos com a promessa de ganhar dinheiro.
desconhecido, sempre sob a vigilância e o controle armado dos gatos e seus auxiliares. Sendo
desejando dias menos sofridos. Esses peões são levados para outras regiões, distantes de seu
125
Entrevista realizada com D. da S. B., maio de 2008 em São José do Xingu-MT.
126
Cf. Os documentos do Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia que tem registro de algumas fazendas. Em
1971 na fazenda CODEARA, e na Fazenda Araguaia Hevea, foram encontradas crianças trabalhando nesses locais.
123
A fazenda Suiá Missú128, a qual se referi o senhor Celestinho e também citada em vários
outros depoimentos, instalou-se no Araguaia no final da década de 1960. A empresa aprovou seu
projeto pela SUDAM, para a criação de gado de corte e instalação de um frigorífico para a
exportação de carne bovina. Através da SUDAM recebeu incentivos fiscais do governo federal para
sua implantação. Na época era uma das maiores propriedades privadas do país (aproximadamente
695.843ha.). Esta fazenda ocupou terras de índios e posseiros, gerando conflitos pela posse da
terra.
Segundo Casaldáliga:
127
Entrevista com Celestino Pereira da Silva realizada em julho de 2006 em Confresa.
128
Sobre os conflitos nesta fazenda, ver o trabalho de Lima, Terezinha Gomes. Suiá Missú X Sociedade Xavante: a
deportação dos Xavantes da aldeia Marâiwatsede – Baixo Araguaia. Monografia de conclusão do Curso de História,
UNEMAT, 2002.
124
Porque era uma fazenda grande, que na época chegou a ser a maior fazenda de
gado da América Latina. Chegou a ter três mil peões, em uma época em que São
Félix tinha pouco mais de 600 habitantes. Ali o regime era de escravidão
mesmo. Havia uma curva de estrada pouco antes de chegar à Suiá, com um
precipício, uma espécie de grota como uma cratera. Na época mais dura da Suiá
Missú, os peões diziam que aquele era o passeio do papai. Pegavam peões,
matavam e jogavam os corpos lá. Eles diziam: eu não tenho nem um passarinho
para criar, a minha casa é o meu chapéu. Morriam muitos de malária, muitos
matados, às vezes por pistoleiros, às vezes entre eles mesmos. Quando vinham
aqui para São Félix, era só para bebedeira, prostituição e violência. Isso também
mudou muito pouco 129.
nas fazendas. A maioria deles é constituída de analfabetos, o que em parte facilita serem
ludibriados pelos empreiteiros/gatos. Mas isso não os impede de constituírem estratégias para
saírem do aprisionamento. Eles também não podem contar com a policia local que, com freqüência,
está a serviço do fazendeiro. Denunciar à policia é assinar a sua condenação, aos castigos corporais
e até mesmo à morte, como podemos identificar em um exemplo citado por Casaldáliga (1971, p.
48), que denuncia as situações vivenciadas pelos peões em diversas fazendas no Araguaia:
A própria polícia local é utilizada com freqüência para manter ainda mais
escravizados os peões. Na Tamakavy, por exemplo, alguns peões chefes de
"time" (turma), ao irem reclamar com o Capitão de Polícia de Barra do Garças,
por maus tratos, receberam dele uma carta para o gerente, Geraldo, em que
denunciava os peões. O Gerente, ao tomar conhecimento do que os peões
reclamaram, solicitou a presença da polícia de São Félix que, armada de
metralhadoras, foi à fazenda e prendeu a Pedro Pereira dos Anjos, líder dos
peões.
129
Trecho da entrevista concedida ao diário de Cuiabá em 23/02/2003, acessado em junho de 2007.
www.diariodecuiaba.com.br.
125
A violência policial enfrentada pelos peões em geral está a serviço dos fazendeiros.
Lembrando que nesse período de abertura das fazendas no país havia um regime militar e
qualquer organização dos peões seria considerada como um ato subversivo. O senhor Dijalmir
relata como aconteceu a captura de alguns peões em uma Fazenda em São José do Xingu-MT em
1975:
Nessa época (1979) como não existia lei aqui (São José do Xingu-MT) ainda,
tinha pouca policia, tinha muito pouco e as leis eram mais compradas no
dinheiro. Aí eles (os policiais) iam atrás dos peões batia de corrente de moto-
serra, eles tinham até um cachorro policial treinado pra pegar gente. Os peões
fugiam, eles iam atrás por tocaia nas estradas quando os peões vinham, eles
entravam no mato, aí eles soltavam o cachorro. O cachorro ia, começava a
morder os peões e os peões voltavam para trás, aí eles (os policiais) colocavam
dentro da camionete e levava para o serviço novamente. Quantas vezes
fugissem, eles iam atrás130.
prometida pelo gato. As regras do “jogo” são alteradas. Um dos principais problemas
enfrentados eram as distâncias. Muitos chegavam ao local do trabalho de avião e, quando era de
130
Entrevista realizada com D. da S. B., maio de 2008 em São José do Xingu-MT
126
Já viemos (em junho de 1970) direto com o dono da fazenda. Quando nós
viemos de lá do Goiás pra Três Flechas, nós já viemos trazidos de avião pelo
dono da fazenda. Fazer cantina, pra roçar, veio o empreiteiro que era o finado
Manoel. E aí a gente foi roçar mato e derrubar de machado, mais esse
empreiteiro. Porque aqui era meio revoltado, aqui era [...] Matava muita gente,
e não tinha nada, era Bang Bang mesmo. A gente trabalhava em fazenda e veio
fazer uma visita aqui, eu trabalhava em fazenda, trabalhava na Três Flechas do
Wilmar, vindo do Goiás pra Mato Grosso. Aqui na época tudo era mato. Aqui
era tudo capoeira131.
Raimundo Lustosa nasceu no Piauí, saiu de sua terra para trabalhar na construção de
Brasília na década de 1950, depois foi para Goiás e Mato Grosso. Em Mato Grosso trabalhou em
fazendas no município de Luciara. Chegou de avião com mais 15 companheiros. Atualmente ele
exploração e violência por que passaram os peões no interior das fazendas. Estes trabalhadores
vieram com esperança de um “futuro promissor”, ou pelo menos melhor do que a vida que levavam
no lugar de origem.
população local sobre o que estava acontecendo nas grandes fazendas que estavam se instalando
131
Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008
127
Trabalhadores Trabalhadores
Mensalistas Remunerados por Produção
Trabalhadores Indiretos
Diretoria
Assessoria
Técnica
gerente
Contador Capataz Fiscal Empreiteiro
Geral
Auxiliar de Geral
Escritório
Fiscais Gatos
(jagunços)
Retagato
Vaqueiros Tratoristas Operadores de
Moto-Serra
Peões Auxiliares
Auxiliares
Trabalhadores Diretos
Fonte: Equipe de Pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. 1983: 21
Este esquema elaborado pela equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia contribui
para a compreensão da organização do trabalho dentro de uma fazenda, demonstrando como era
feita a distribuição das funções. Os gatos assumem um papel essencial dentro das empresas. Pois
são estes que saem para arregimentar os trabalhadores para levá-los às fazendas. Eles não
possuem um contrato (carteira assinada) com os donos das empresas, mas em geral fazem um
Goiás com sua família para Mato Grosso á procura de terras férteis para a agricultura, percorrendo
longas distâncias com sua família. Ele relata que “[...] uns andava montado a cavalo ou jumento,
132
Estes contratos informais muitas vezes é apenas a palavra que fica empenhada.
128
outros andava a pé. Levamos meses para chegar a Santa Terezinha”. O relato permite compreender
parte da complexidade das relações nas longas viagens até chegar ao interior das fazendas. Quando
chegou a Santa Terezinha foi aliciado por um gato, indo trabalhar na Fazenda CODEARA, onde
Olha nas aberturas da fazenda não tinha tempo definido. Não tinha tempo não, e
assim tinha gente trabalhando o tempo todo. Era assim 50, 100, 200, eu
acompanhei turma de até de 400 homens. [...] Olha na mata aconteceu de eu
entrar uma vez, isso aconteceu com vários [...] vou contar um exemplo que
aconteceu comigo, de eu entrar dia primeiro de abril e sair dia vinte e cinco de
agosto, ficar na fazenda quatro meses. Tinha o problema de gato com
trabalhador, quando dava muitos problemas às vezes batia [...] de facão, de pau,
com uma coisa qualquer. Vi acontecer, não foi uma vez e nem duas vezes, foi
varias vezes. Com facão tirava da bainha e batia, batia também de pau aí
qualquer. Eu vi foi várias vezes, não tinha ninguém, condição nenhuma. A
questão que naquele tempo era uma humilhação muito grande quem escapava
da mão daqueles gatos, tinha quatro, cinco pistoleiro pra segurar ele, ficava
zuando na mata, ficava lá [...] dominava autoridade que fazia presente na
cidade, fazer o que? 133
Narrativas como a do senhor Eurípides permitem a reconstrução de parte de uma
história que por algum tempo não foi trabalhada pela historiografia, e que a partir de algumas
pesquisas realizadas sobre essa problemática no Araguaia, começam a ser evidenciadas, discutidas
e refletidas.
Gurupi (na época Goiás) que foi enviado por um companheiro que fugiu da fazenda a pé, demorou
72 dias até chegar Gurupi, permite constatar a violência exercida no interior da fazenda pelos gatos
e dirigentes da Companhia:
133
Entrevista realizada com E. F. R. setembro de 2005, em Confresa.
129
Delfina estou aqui numa boca quente em Mato Grosso. Olhe nem pense em vir
aqui. A fogueira que estou nela é alta. Se um dia eu saltar essa fogueira um dia
chego lá. Aqui tudo é preso. Só sai se for fugido. O mais o Carcará te conta.
Nada mais. Aceita as minhas lembranças e saudades. Lembranças e bênçãos a
todos os meninos. Delfina se tu está muito apertada vai para onde teu pai,
porque estou mais do que tu. Só não estou sofrendo doença, o mais estou
sofrendo 134.
trabalhadores nas fazendas no Araguaia foram submetidos. O trabalhador denuncia a “prisão” que
está sofrendo e, também encontra uma forma de enviar notícias a sua família. Ele está longe, mas
também se sente presente e preocupado, é o chefe da família, precisa dar as “ordens”. Neste trecho
escrever, o peão dá uma significação à situação em que está vivendo. Como considerou Araújo
(2006, p. 273):
134
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. – A 09.0.1CA
135
Sobre o trabalho com cartas e bilhetes ver o Trabalho de ARAUJO, Maria do Socorro Sousa. Paixões Políticas em
Tempos Revolucionários: nos caminhos da Militância, o percurso de Jane Vanini. Dissertação de Mestrado, UFMT,
2002.
130
O bilhete está carregado de significados múltiplos, “só não estou sofrendo doença, o
mais estou sofrendo”. Violência física e/ou psicológica, fome, saudade, medo. Para esse peão o
bilhete pode significar livrar-se da condição de isolamento em que se encontrava. Pode de alguma
forma, revelar para outras pessoas o que estava passando no interior da mata. Ao mesmo tempo
talvez, para não fazer a mulher sofrer ainda mais ele não entra em detalhes sobre a sua situação.
imagem do que estavam passando, considerando que no momento da escrita a fazenda CODEARA
provedor da família. Ele é o responsável, e mesmo que esteja “preso e apertado”, determina
As cartas como destacou Araújo (2006, p. 289) “[...] são lugares que potencializam o
exercício pleno das liberdades múltiplas onde a individualidade cria e recria suas tramas íntimas, e
assim regula suas relações de sociabilidade. São esses espaços singulares e libertadores que
produzem os tempos dos desejos e dos prazeres pessoais”. Portanto, o bilhete escrito por este peão
é uma representação do vivido no interior da fazenda, trazendo significações daquele momento que
Os bilhetes dos peões, escritos em uma situação de isolamento e violência, são fontes
Araguaia, há vários outros retratando a situação em que viviam centenas de peões. Através desses
bilhetes é possível reconstruir a história desses trabalhadores que estava “esquecida”. Por um
131
longo período a historiografia não se interessou pela a história dos homens “comuns”. O foco eram
as histórias dos grandes homens e dos grandes feitos e acontecimentos. A partir da década de 70 do
século XX, a historiografia produz novos deslocamentos dando atenção para a história das
mulheres, do medo, das crianças, dos trabalhadores entre outras, possibilitando a construção de
A empresa CODEARA, à qual o peão que escreveu o bilhete para sua esposa se
refere, chegou a ter aproximadamente 1.200 peões trabalhando na derrubada da mata nos entre os
anos de 1968 a 1975. Era uma das maiores empresas agropecuárias instaladas no Araguaia.
Recebeu incentivos fiscais do governo federal e crédito de bancos oficiais para a sua instalação.
Esta empresa também entrou em conflito com os antigos moradores e índios daquele território,
tendo sido denunciada pela Prelazia de São Félix do Araguaia pela prática de trabalho escravo. Em
1972 a empresa foi alvo de uma ação da Policia Federal, que libertou centenas de trabalhadores.
136
Entrevista com I.S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu.
132
Podemos destacar no depoimento do senhor Ismael o medo que ele sente de trabalhar
na fazenda Codeara. Raramente um peão admite que tenha medo de algo e menos ainda, de
trabalhar em alguma fazenda. As práticas dentro dessa fazenda eram tão violentas que extrapolam
os sentimentos dos peões. A ação da Policia Federal em 1971 na fazenda Codera foi destaque em
O Globo noticiava:
regiões pobres. Muitas vezes os peões referem-se a esta prática com naturalidade, para eles que
estavam devendo para os donos das pensões e precisavam saldar a dívida. Pois é uma questão
moral não ficar devendo. Essa dívida na maioria das vezes é cobrada por um valor muito acima
Essa prática também foi encontrada e denunciada por fiscais do Grupo Móvel de
de um gato apreendida pelos fiscais em uma fazenda de Mato Grosso em 2003, está evidenciada
137
Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008.
134
Caderno do
gato para
anotação
das dívidas
dos peões
Compra da
liberdade do
peão...
Como podemos ler na caderneta, está escrito claramente: “compra liberdade (pião)
52,25. A seguir está escrito: “compra liberdade (pião) 50,00 e compra liberdade” 138,00. Alguns
produtos estão sem o valor. Esta também era uma prática comum entre os gatos. Eles anotavam
mercadorias chegam a custar cinco vezes mais que o valor no mercado regional. Devido ao alto
atrelado à fazenda, pois para o trabalhador enquanto houver dívida ele fica impedido de dispor
livremente de sua força de trabalho. O próprio trabalhador considera que tem a obrigação moral
135
de liquidar a dívida. Muitas vezes o trabalhador não percebe que já a pagou por várias vezes. Esta
é mais uma forma de reter o peão no trabalho, como considerou Esterci (1994, p. 43):
e confinamento são usuais, para assegurar que o trabalhador não escapará e se submeterá ao
trabalho até que a tarefa seja finalizada. Esse quadro representa uma forma de degradação e
juntamente com mais três companheiros para trabalhar na Fazenda Rio Cristalino, no Sul do
Eles (os gatos) nos levaram daqui (Canabrava do Norte-MT) em janeiro de 2003
para derrubar e roçar uns 20 alqueires. Aí fizemos os 20 alqueires, falamos
assim, ô vamos sair agora, vamos acertar as coisas. Mas ele (o gato) disse assim:
acertar, vocês não tem saldo não, vocês comeram arroz, comeram feijão e
comeram muita carne, então não tem saldo. Nego podia morrer lá de trabalhar de
foice, era de corta assim o coração. Aí ele falou assim, vocês vão roçar mais,
roçar esses vinte alqueires mais, ou vão embora? Com um revolver não mão. Aí
falamos nós vamos roçar. Vocês vão roçar mais vinte, vocês vão roçar esse resto
136
que tem, é esse resto logo todo. Pensei, nós não vamos dá conta... nós não damos
conta de derruba não, então roçar mais vinte alqueires. Aí ele passou por mim
assim, olhando como quem eu já ia fugir. Falei pros companheiros vamos
embora, o bicho vai pegar aqui. Foi quando nós fugimos de noite, andando a pé
até chega a uma cidade. Eu queria era voltar para Canabrava do Norte
lugarzinho bom [...] aqui não devo nada pra ninguém 138.
situada no Município de Confresa, em Mato Grosso. Em junho de 2005, essa empresa foi autuada
Processo Penal brasileiro no Artigo 149. Nesta operação foram resgatados 1.200 trabalhadores,
Essa ação só foi possível a partir da denúncia feita pela presidente do Sindicato dos
Araguaia em defesa dos trabalhadores, é uma figura impar, destacando-se na defesa dos peões.
Ismael Silva nasceu em São Paulo, mudou-se ainda criança para Minas Gerais, depois
Bahia, Goiás e Mato Grosso, Pará e Mato Grosso. Chegou ao Araguaia em 1970, onde trabalhou
138
Entrevista realizada com F. R. de S. em Canabrava do Norte/MT, junho de 2006.
137
com o sul do Pará, onde se instalou um grande número de fazendas. No final década de 70 e
vindos de diversos estados foram trabalhar nessas fazendas. A Prelazia de São Félix do Araguaia,
CPT e Sindicatos dos Trabalhadores Rurais encaminharam várias denúncias de trabalho escravo
naquelas fazendas.
trinta mil pessoas foram resgatadas em operações de fiscalização realizada por órgãos do Governo
Federal (Grupo Móvel de Fiscalização e Policia Federal). Os dados coletados por essas
organizações têm demonstrado que quem escraviza, não são proprietários desinformados ou
empresas arcaicas. Pelo contrário, são empresários que utilizam alta tecnologia (Sakamoto, 2006).
No município de Confresa/MT, a destilaria Gameleira, uma empresa que produz mais de trinta
milhões de litros de álcool por ano (Vitali, 2008), já foi autuada pelos fiscais do Ministério do
139
Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu.
138
Trabalho nos anos de 1997, 2001, 2003 e 2005, por utilizar a prática de trabalho análogo ao de
escravo. No Sul do Pará a Fazenda Rio Cristalino ligada ao Grupo Volkswagen140, até então
Governo Federal através da SUDAM, entrou no ramo do agronegócio, sendo flagrada nas décadas
Os peões no interior das fazendas são tratados de forma inferior aos animais (gado,
cavalos e cachorros) que muitas vezes possuem abrigos e alimentação mais decente que as pessoas
“[...] do jeito que estão fazendo conosco, é pior do que escravo, a gente tem que ficar na lama que
142
nem boi” . Segundo Figueira (2004, p. 292) “[...] são tratados como impuros, uma planta
Para esses trabalhadores falar da situação pela qual passaram é muito constrangedor. O
senhor Ismael, ao relatar a situação que vivenciou, se emocionou a ponto de rolarem lágrimas de
seus olhos. Ele pede desculpas por essa condição, dizendo: “[...] não sou mais como uma pessoa,
aconteceu com um companheiro seu, relatando com riqueza de detalhes a situação de humilhação
que este peão passou na frente de vários companheiros, os quais não puderam fazer nada para
ajudá-lo:
140
Está empresa investiu 38 milhões de dólares de recursos próprios e mais 116 milhões da Sudam. Essa fazenda,
em particular, foi alvo de denúncias de trabalho escravo, e a notícia teve repercussão internacional.
141
Sobre a escravidão moderna nessa empresa ver o trabalho de BUCLET, Benjamin. Entre tecnologia e escravidão:
a aventura da Volkswagen. Revista de Pós-Graduação em Serviços Social da PUC-Rio “O social em Questão” nº. 13,
no primeiro semestre de 2005. “ Em Maio e junho de 1983, as primeiras denuncias sérias são divulgadas na imprensa
e comunicada às autoridades públicas. O esquema do sistema de trabalho da fazenda vai, pouco a pouco mostrando a
dura realidade. Ela empregava mais ou menos 500 trabalhadores, fora da época da derrubada, momento em que mais
de 1.000 trabalhadores são empregados”.
142
Trecho da fala de um trabalhador em uma reportagem do Fantástico- Programa da Rede Globo,
www.fantastico.globo.com, acessado em 2/06/2006.
139
Situações como estas são freqüentes no interior das fazendas servindo de exemplo
para os outros peões. A violência sofrida não é só a física, como também simbólica. As imagens
das humilhações são fragmentos de memórias às quais estes trabalhadores, nas entrevistas
constantemente se reportam. Para eles algumas situações como a descrita pelo senhor Raimundo
são inaceitáveis, porque os desonram. A violação dos direitos básicos desses trabalhadores e a
precarização dessas relações leva à degradação humana. Muitos desses trabalhadores quando
saem dessa situação, não mais se reconhecem como homens capazes de construir relações sociais,
143
Entrevista Realizada com R. L. em São José do Xingu/MT, maio de 2008.
140
com base no respeito à pessoa humana. Nas ruas, bares, botecos, são pessoas extremamente
violentas, matam por qualquer motivo. “[...] a pessoa bebia cachaça tinha uma rixa com outra,
quando pensava que não matava, ai qualquer coisa bebia cachaça um com outro aí, se estranhava
pronto, neguim pegava e matava, já vi muito companheiro morto nessa rua”144. A vida para eles
Casaldáliga enfatiza que a vida de um peão vale tanto quanto a de um fazendeiro, pois
los, em qualquer situação que estes trabalhadores enfrentavam. Ajudou-os a fugirem muitas vezes
dos pistoleiros e gatos, escondendo-os em sua própria casa. Sempre se indignou com a violência
Quando esses trabalhadores ficavam doentes eram levados para barracões dentro da
própria fazenda. Em geral tinha um auxiliar de enfermagem que fazia o atendimento médico.
Muitos peões morriam antes mesmo de chegar a esses locais ou quando chegavam nele como
144
Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu-MT.
145
Documento arquivo da Prelazia de São Felix do Araguaia – B-8.2.48, p. 02.
141
distantes das cidades, os fazendeiros improvisavam “hospitais” dentro da mata mesmo. O que
não atendia nas necessidades básicas dos trabalhadores e muitos morriam, por falta de
atendimento adequado.
que construíram a partir da re-significação dos novos espaços de trabalho. Estas estratégias
dos trabalhadores no Araguaia. Essas estratégias apontam dimensões sociais das ações dos
indivíduos nas trajetórias de vida. Estes trabalhadores enfrentaram a violência, viveram incertezas
146
Entrevista com I. S. realizada em maio de 2008 em são José do Xingu-MT
142
encontravam. Mesmo que para sobreviver fosse preciso aliar-se ao gato ou fazendeiro,
do local onde trabalhava, encontrou meios para fugir, forjando uma autorização. Ele utilizou o
nome do gato para conseguir passar pela porteira da fazenda, que mantinha jagunços armados
para impedir que os peões saíssem do local de trabalho. Os peões relatam que alguns dos
jagunços também eram analfabetos. “[...] como ele não sabia ler, era só esperar o dia que ele
estava de guarda e entregar o papel que a gente saia. Teve um dia que um companheiro entregou
O senhor Celestino Pereira de Souza nos relata como aconteceu sua fuga de uma
147
Entrevista realizada com E. F. R. em Confresa, setembro de 2005.
143
Eu saí fugido das matas pra não morrer, pros pistoleiros não me matar, porque se
eu amanso, eles me matava. Quando eu ia levava aquele pacote de coisa, sempre
fui largadinho no mundo, mas nunca fiquei sem comer as coisas. Minha feirinha
né. E uns três metros de plástico, porque quando eu chegava no pantanal eu
botava aqueles trem todinho, botava a corda e botava no dente e ia nadando. Aí
um rapazinho chamou nós: - Piauí, vem cá. Era de São Felix, nós éramos
acostumados a brincar. Olha, dessa pista bem aí, lá na frente tem uns 40
quilômetros é 40 quilômetro de mata, só picadãozinho velho de picadeiro e, é daí
sai na Reunidas. Eu disse, vou encarar, topa Raimundo? Raimundo tinha uma
peixeirinha só e eu com um facão. Pode deixar comigo, pode deixar comigo! Nós
vamos se embora. Aí eu peguei aquelas coisas com tanta dó; panela novinha, tudo
[...] lima, facão, tudo, enxada, era uns 60 kg mesmo. O Raimundinho tinha
pouquinha coisa, só umas roupas e uma rede. Aí eu peguei e disse, pois é, falei
pro rapaz, ó você foi muito amigo porque eu ia sair na mata, eu ia cravar na mata,
cortar de onde o avião veio. Olha a idéia, passamos três dias pra sair cá na
Reunidas, no picadão. Eu ia cortar por onde o avião partiu, que largou nós, era ali
que eu ia, pegar a rota, era para sair para São Félix. Ia custar, ia passar era mês.
Aí eu joguei aqueles trem no mato e disse assim, toma conta pra tu rapaz, que me
148
ensinou aonde é que é.
Fugas assim, eram constantes nos locais de derrubada da mata. Muitos trabalhadores
eram capturados pelos gatos e seus capangas, sendo levados de volta para o local de trabalho. Os
depoentes relatam situações análogas ao que aconteceu com o senhor Celestino. Ele consegue
escapar desse cerco, mas retorna para outras fazendas de onde também fugiu. Ele destaca em seu
relato, que “já era largadinho no mundo”, ou seja, não era a primeira vez que fugia de uma
situação assim. Já andava com suas “tralhas”, roupas, comida, rede e ferramentas de trabalho,
148
Entrevista com C. P. da S. realizada em julho de 2006 em Confresa.
144
aparecem fundando estratégias de ação frente aos limites socialmente impostos ou aos desmandos
dos grandes proprietários”. Esses peões são portadores de ações que os possibilitam sobreviver e
depois se mudou para Canabrava do Norte, trabalhou no Pará, de onde fugiu e fez a denúncia a
Prelazia de São Félix do Araguaia que encaminhou ao Grupo Móvel de Fiscalização na fazenda
Eu tava pra fora, cheguei ontem aqui, minha mãe de novo cheguei eu sou assim
o que é meu é meu, e o que não é não é, eu sou assim, pode ser um irmão meu se
ele roubar um milhão de reais eu sou assim, igual dizia minha mãe assim, graças
145
a Deus. Minha mãe chorou mais meu avô e, eu com essa agora vou mexer só
com o gadinho deles, eu sou assim. Você viu homem honesto rico?
das vezes não retornam para seu lugar de origem, pois voltar implica em ser considerado um
fracassado. Eles sentem vergonha do que passou e se encontram em precária situação econômica,
Os peões, ao relembrarem a sua triste história narram apenas alguns momentos, pois
muitos têm vergonha das humilhações que passaram, não gostam de falar dos momentos “feios” de
sua vida. Essas pessoas percorreram grandes distâncias à procura de um sonho e sobrevivem a todo
tipo de violência. Essas angústias aparecem em muitos relatos, como no descrito abaixo:
O que eu sinto pode passar 100 anos eu não esqueço não, é humilhante é
duro né, é ruim você dizer, eu vou embora e o cara dizer trabalha ou
apanha. E ser ameaçado, você trabalhar com uma arma apontada para
você e uma pessoa dizer que vai te bater se você não trabalhar, não
importa se você está doente149.
Os relatos de José Francisco Rezende são regados de muita emoção e indignação. Sua
experiência de vida é repleta de tensões vividas no espaço de trabalho e familiar, ele reconhece a
sua condição de peão e reclama por seus direitos. As humilhações por que passou estão presentes
constantemente em sua fala durante a entrevista, como também mostra as suas mãos cheias de
149
- entrevista realizada em Canabrava do Norte com o Sr. J. F. R. em Novembro de 2006.
146
cicatrizes do trabalho pesado nas fazendas, e se indigna por não ter recebido o que lhe era de
significa que melhoraram as condições de trabalho. Por um lado não há mais tantas fazendas com
grandes derrubadas de mata. Portanto, não há mais tantos peões como na década de 1970. Por
outro, estes trabalhadores saem para outros estados à procura de trabalho em fazendas. Sem
qualificação, são presas fáceis para os gatos. A atuação de agentes de fiscalização e as denúncias
feitas pelas organizações como CPT, Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e Prelazia de São Félix
do Araguaia, de certa forma tem contribuído para a desarticulação desse sistema de exploração
De certa forma mudou pra melhor, mas de certa forma ficou pior pra peonada,
porque teve uma fazenda ai, que peão saiu, fez denúncia da fazenda, essa fazenda
tava com regime de trabalho escravo, aí marcaram o homem que trabalhava na
fazenda, aí marcaram o filho dele também com marca de gado, foi! Aí a coisa
ficou séria, aí esse homem saiu e deu parte pra policia. Aí veio aquelas [...] que
fala, que vem ministério do trabalho, vem policia federal, vem tanta coisa junto.
Ai chegaram na fazenda lá e descobriu mesmo, que tinha o trabalho escravo,
entendeu?
competência da Justiça Federal para processar julgar e condenar o crime de trabalho escravo, a
alteração do Artigo 149 do Código Penal e a liberação de Seguro Desemprego para trabalhadores
libertados do trabalho escravo. No Araguaia no ano de 2006, houve algumas ações mais
147
especificas como a sentença do Juiz da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia, condenando
os donos das fazendas São Pedro, em Vila Rica e Destilaria Gameleira em Confresa, a pagarem
indenizações por dano moral. O Programa Balcão de Direitos Humanos ligado à Secretaria
Especial de Direitos Humanos, Coordenado pela Prelazia de São Felix do Araguaia também tem
irão para outras, pois não possuem qualificação e essas políticas governamentais ainda são
precárias, não atendendo às necessidades reais dos trabalhadores. Como destacou Moraes (2006,
p. 127):
Mas não bastam essas ações. É preciso que haja esforço concentrado e
articulado do estado em todos os Poderes e esferas e, em especial do governo.
[...] É preciso que o Poder Judiciário assuma sua responsabilidade no tocante à
impunidade, fazendo caminhar os processos para que os autores do crime de
trabalho escravo sejam julgados e condenados e punidos.
148
Considerações finais
Araguaia, os peões, procurando compreender as relações sociais de produção nas quais eles estão
inseridos.
histórias de vidas de trabalhadores de vários estados do país que migraram para Mato Grosso.
Através dessas fontes documentais (relatórios, cartas, bilhetes e entrevistas) foi possível
reconstruir parte da história destes trabalhadores que sofreram diferentes tipos de exploração e
violência no trabalho. As fontes escritas são quase todas do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia.
no campo da história, o estudo sobre o trabalho escravo contemporâneo precisa avançar mais,
produzir novos deslocamentos historiográficos que possibilitem uma maior compreensão desse
fenômeno que ocorre com relativa freqüência e intensidade nas áreas de abertura na fronteira
amazônica.
para sobreviver no interior das fazendas, assim como para fugir quando isto é possível. A
pesquisa e as leituras mostraram que esses trabalhadores não podem ser trados apenas como
vítimas. Eles são sujeitos capazes de atitudes que revelam sua inconformidade com as relações
sociais de produção às quais estão submetidos, e a capacidade de reagir mesmo quando parece
149
que não tem possibilidade alguma. Fugir não é apenas uma ação isolada, mas faz parte de um
que vão se formando a partir da década de 1970 no Araguaia. As políticas públicas estimularam e
políticas dos órgãos públicos não favoreceram a ocupação da terra pelos migrantes pobres que
configuração dos espaços sociais no Araguaia e as novas relações no mundo do trabalho que vão
estratégias criadas pelos trabalhadores para sobreviver na mata. Essas espertezas se expressam
nas diferentes formas de fugir do gato, burlar os vigias nas guaritas das fazendas ou mesmo
melhores condições de vida nos colocou em contato com um mundo de violência, mas também
de sonhos e esperanças, na maioria das vezes não realizadas, ou irrealizáveis. Porém, essas
que reforçam a busca pela realização de um sonho. Para alguns o sonho é ter comida em
abundância, ou um trabalho certo com um salário decente. Esses trabalhadores estão sempre à
procura de lugares que lhes ofereçam uma melhoria de vida, de ganhar algum dinheiro para
poderem voltar para a família. Porém, muitos nunca voltam, pois não acumulam nada, como
haviam planejado quando migraram. E voltar pobre, sem dinheiro é vergonhoso, é reconhecer o
fracasso.
permitiu a leitura de uma história, que ainda está por ser escrita, de centenas de mulheres e
homens que transitaram e transitam no Araguaia. Uma história que é marcada pela exploração e
pela violência, na luta pela terra, por condições de trabalho decentes, pela procura de melhoria de
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Revistas
Jornais
Alvorada
O diário de Cuiabá
Vídeos
Correntes
Sites consultados
www.cpdoc.fgv.br.
www.mte.gov.br
www.reporterbrasil.org.br
www.cptanacional.org.br
www.ibge.gov.br
www.cartamaior.org.br
www.oit.com.br
www.anamatra.org.br
www.globo.com
www.alternex.com.br/~prelazia
www.ada.gov.br/amazonia.asp
www.diariodecuiaba.com.br
Arquivos consultados
Entrevista 01
Eurípides Florenço Roxo, nascido em 1945, Cristalândia Tocantins. Veio para Santa Terezinha-
MT com sua família em 1969, uma das primeiras fazendas que trabalhou foi a Codeara,
localizada no município de Santa Terezinha . Entrevista Realiza em Confresa, setembro de 2005.
Entrevista 02
Celestino Pereira de Souza, nascido em 1944, Teresina Piauí. Veio para trabalhar nas fazendas de
Mato Grosso em 1968, trabalhou inicialmente na Fazenda Suiá Missú, localizada no Município
de São Félix do Araguaia, depois trabalhou em várias outras fazendas no Araguaia. Entrevista
realizada em Confresa, Julho de 2006.
Entrevista 03
Francisco Rezende de Souza nasceu em 1962, Pium Tocantins, chegou a Canabrava do Norte em
1979. Na década de 1990, foi trabalhar nas fazendas no sul do Pará. Entrevista realizada em
Canabrava do Norte, setembro de 2006.
Entrevista 04
Ismael Silva nasceu em 1950, Guairá São Paulo, mas mudou-se ainda criança para Correntina na
Bahia. Veio para Mato Grosso em 1972 e foi trabalhar em fazendas em São José do Xingu.
Entrevista realizada em São José do Xingu, maio de 2008.
Entrevista 05
Raimundo Lustosa nasceu em 1940, no Piauí chegou a Mato Grosso em 1970 para trabalhar em
fazendas em São José do Xingu. Entrevista realizada em São José do Xingu, maio de 2008
Entrevista 06
Dijalmir da Silva Bernades nasceu em 1959, Campinopolis Minas Gerais chegou a Mato Grosso
em 1975 para trabalhar em fazendas em São José do Xingu. Entrevista realizada em São José do
Xingu, maio de 2008.
162
Anexo 01
Projetos de agropecuárias aprovados pela SUDAM no Araguaia Mato-grossense