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e Pernambuco
Novos e velhos capítulos da colonização no Brasil*
Mato Grosso, essa fórmula e suas variações são o das duas formações sociais aqui delimitadas. Essas
modo mais comum e preliminar de apresentar-se a diferentes ênfases e relativizações serão exploradas,
si mesmo e à sua comunidade a um interlocutor fo- à medida que se revelam nas elaborações nativas
rasteiro como eu ou a equipe de estudantes que me sobre o passado, individual e coletivo, de modo a
acompanhou durante parte do trabalho de campo distinguir aspectos críticos daquelas socialidades:
na região.2 A formulação contrasta em relação ao especialmente, os critérios de inclusão e exclusão
que de ordinário ouvimos no sertão de Pernambu- coextensivos à formação das redes de pertencimen-
co em situação similar: “aqui é tudo parente”, di- to; as atuações e as concepções concernentes à po-
zem os sertanejos a respeito de uma fazenda, uma lítica, ao Estado e aos sentidos e limites implícitos
vila, eventualmente de uma cidade ou município. nas noções de família mobilizadas nos dois contex-
Em ambos os casos verifiquei que esses enunciados tos sociais. Impulsionado por um contraste mar-
não descrevem com rigor a composição populacio- cante inicial, o objetivo desse exercício comparativo
nal das localidades a que se referem e tampouco es- corresponde mais ao destaque de aspectos singula-
gotam as identificações coletivas ou pessoais entre res dessas formações sociais do que à acentuação de
os conterrâneos. Eles, no entanto, indicam modos suas eventuais diferenças, renunciando-se de ante-
de descrição e concepções alicerçadas em uma me- mão a qualquer proposição classificatória.
mória coletiva.
Embora proferidas no presente (verbal e tempo-
ral), tais formulações encapsulam um passado sobre Prólogos
o qual meus interlocutores prontamente se detêm
de forma a fazer mais compreensível o conteúdo de Mato Grosso
enunciados tão concisos. Os relatos que me dão su-
porte na presente discussão correspondem, assim, a Os relatos que recolhi em Mato Grosso têm
uma produção mnemônica. Mesmo quando resul- como pano de fundo a formação das novas cidades,
tante de lembranças pessoais e proferidas na primei- que se ergueram sob um impulso recente de ocu-
ra pessoa, as narrativas que serão referidas adiante pação e exploração agrícola de uma região consi-
constituem uma memória coletiva, como propôs derada antes ‘vazia’ demográfica e economicamente
Halbwachs ([1968] 2009, p. 70), no sentidode que de acordo com a visão do Estado brasileiro. Neste
os indivíduos recordam-se na qualidade de mem- artigo privilegiarei as narrativas formuladas por ou
bros contemporâneos de seus grupos. Conforme es- sobre os “pioneiros” dos municípios de Sorriso, Lu-
creve Vernant, as operações da memória se formam cas do Rio Verde e Nova Ubiratã. A juventude e
por uma sorte de “adestramento mental”: cada cul- o progresso das novas cidades que servem de sede
tura constitui ferramentas próprias “para orientar a aos dois primeiros estão subsumidos num evidente
mirada do espírito em direção do que não está ali contraste em relação às condições encontradas na
presente” (2009, p. 141). As narrativas que recolhi chegada e na fixação dos “pioneiros”. Como se verá
entre membros dos segmentos sociais dominantes adiante, outros elementos característicos nesses re-
em Mato Grosso e Pernambuco (fazendeiros, co- latos são também inseparáveis da produção de uma
merciantes, prestadores de serviço) proporcionam identidade “gaúcha” ou “sulista” atribuída ao seg-
a identificação de critérios que organizam a tria- mento social dominante naquelas localidades.
gem dos acontecimentos e personagens memorá- A partir dos meados da década de 1970, as áreas
veis do passado, daquilo que importa ou não para a de cerrado do centro-norte do atual estado do Mato
compreensão da socialidade presente. Grosso começaram a ser ocupadas e destinadas ao
Embora com pesos relativos e significados dis- cultivo mecanizado de grãos, de início o arroz e
tintos nas narrativas sobre o passado e o presente, logo em seguida a soja. Essa atividade propulsionou
os referenciais espacial (origem regional) e tempo- forte crescimento econômico e populacional na
ral (origem ancestral) operam complementarmente região em que se desenvolveu, com reverberações
na produção relacional de identidades e oposições na dinâmica econômica de todo o médio-norte ma-
Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 87
to-grossense. Além da multiplicação exponencial no Sul do Brasil, e com esse objetivo incentivaram
das áreas de cultivo e dos estabelecimentos agro- o deslocamento de agricultores sulistas interessados
pecuários desde os anos de 1980 (Cintrão, s/d), em em praticá-lo no Mato Grosso (cf. Barrozo, 2008;
torno ou a partir da soja introduziu-se a produção Bernardes, 2005; Moreno, 2007; Santos, 1993).
de novos itens, outras etapas da cadeia produtiva de Esse é o contexto histórico da fundação de Sorriso e
sua indústria e beneficiamento e um diversificado Lucas do Rio Verde.
setor de serviços que caracterizam o agronegócio. A ocupação atual do município de Nova Ubi-
Apesar da intervenção necessária de uma série de ratã teve início algumas décadas antes. Beuter
outros agentes na sua configuração, o atual perfil (2000, pp. 44-47) registra a experiência turbulenta
socioeconômico da região é associado aos “gaú- dos sócios pioneiros Iassutaro Matsubara e Sakú-
chos” ou “sulistas” e seu empreendedorismo. Assim rio Guibo, a quem Getúlio Vargas consignou uma
são identificados os “pioneiros”, que deram início gleba de 400 mil hectares às margens do Rio Ferro
a um intenso fluxo migratório da região Sul para o para que implantassem ali um projeto de coloni-
cerrado. Essa é a origem de grande parte dos pro- zação, no âmbito do programa de governo “Mar-
dutores, empresários, funcionários, comerciantes e cha para o Oeste”, sob moldes similares ao que já
prestadores de serviços que compõem hoje o extra- haviam empregado no Paraná. O projeto previa a
to social dominante política e economicamente. abertura de uma estrada de acesso à gleba e o as-
As novas cidades que se formaram em Mato sentamento de duzentas famílias japonesas vindas
Grosso corresponderam aos objetivos de uma polí- de Okinawa, onde plantariam pimenta do reino e
tica oficial de estímulo à exploração econômica da seringa. Uma epidemia de malária e um escândalo
Amazônia. Até o terceiro quartel do século XX, essa político e financeiro envolvendo a amizade entre os
região manteve-se marginal em relação à economia sócios e o presidente da República determinaram o
nacional e internacional, afora a velha exploração malogro do empreendimento.
das drogas do sertão e descontados alguns surtos Dois casais chegaram à região do atual municí-
de exploração mineira e o explosivo porém curto pio de Nova Ubiratã em 1973 e 1974 e permane-
ciclo da borracha. Apesar de sua presença na pauta ceram como os únicos moradores durante alguns
política e econômica do Estado Novo, a integração anos (Idem, p. 125). Paulista da região de Araçatu-
econômica da Amazônia de fato esperará pela con- ba, o Sr. Alberto Fabrício4 veio gerenciar uma fa-
jugação de certas condições fundamentais para sua zenda que seu patrão adquiriu como forma de seus
realização durante o regime militar: a abertura das anteriores proprietários liquidarem suas dívidas
grandes rodovias (Belém-Brasília, Cuiabá-Santa- para com ele, contraídas em razão dos maus resul-
rém, Manaus-Porto Velho); sua reestruturação fun- tados da iniciativa de criação de gado com apoio
diária, em sintonia com a formulação do Estatuto da Superintendência do Desenvolvimento da Ama-
da Terra e a criação do Incra; e a prodigalização zônia – Sudam. Experiência similar foi vivida por
do crédito agrícola (cf. Moreno, 2007; Palmeira, alguns outros funcionários que concordaram em
1989; Velho, 1970). Em Mato Grosso, a alienação viver anos em acentuado isolamento para “tomar
de terras regularizadas a preços simbólicos ao longo conta” de propriedades de seus patrões ausentes,
da BR 163, ainda em construção, e a dotação de por vezes com algum gado e plantando pequenas
financiamentos no âmbito dos programas Polocen- roças de subsistência: D. Maria e seu marido Nego
tro e Prodecer3 para implantação agrícola permiti- Otávio,5 próximo ao rio Lira, Ademar Pereira da
ram que “frentes pioneiras” se consolidassem ali, Silva e sua esposa,6 no rio Ferro, e o muito mencio-
em substituição às “frentes de expansão” existentes nado Pedro Sucuri,7 que montou um restaurante
em outras manchas da área amazônica (cf. Cardo- na margem esquerda do Teles Pires, onde preparava
so de Oliveira, 1981; Martins, 2009; Velho, 1970). peixe para servir aos soldados do 9º BEC, durante
Os formuladores dessa política de integração nacio- a abertura da BR 163, e aos primeiros visitantes in-
nal pretenderam introduzir no cerrado um modelo teressados em adquirir terras para abrir lavoura nas
de exploração agrícola modernizada já estabelecido redondezas. As histórias desses primeiros habitantes
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no tempo da chuva; o enfrentamento dos animais Também a busca da “terra nova” encontra mo-
da mata e os terríveis insetos; mas também a ale- tivação na insuficiência dos lotes coloniais para o
gria dos momentos reservados aos encontros com sustento das sucessivas gerações ou realiza um pro-
os vizinhos, a solidariedade e a disposição comum jeto familiar de acumulação patrimonial. Em regra,
de construir um lugar, uma comunidade, uma os pais e avós dos “pioneiros” do Mato Grosso já
cidade. Tudo isso diante da constatação orgulho- haviam se estabelecido em terras que não eram as
sa da extraordinária transformação da paisagem, de seus genitores, ainda no Rio Grande, em outro
do desenvolvimento e progresso; numa palavra estado da região Sul ou, em menor número, já no
constante de seu vocabulário, do “crescimento” que Centro-Oeste (Woortmann 1995). Assim como em
introduziram e continuam realizando na região. outras regiões do território brasileiro, a localização
Guardadas as especificidades do cerrado, a das terras livres (Velho, 1970), sobretudo associa-
“luta”, as “dificuldades”, a precariedade, a escassez da à presença das vias de comunicação (Mombeig,
de recursos não assegurados pelo Estado nem por 1984), vieram a definir os eixos dos fluxos de deslo-
um circuito de mercado previamente estabelecido, camento migratório em que essa população emer-
assim como a participação voluntária na conquis- gente das colônias do Sul tomou parte. O filho de
ta do bem comum, todas essas experiências foram um “pioneiro” e fundador de Sorriso descreve um
vividas em gerações anteriores à dos “pioneiros”, roteiro seguido pelos gaúchos até o oeste de Santa
ainda na região Sul. Embora esse passado não seja Catarina, onde nasceu seu pai.
explicitado nas narrativas dos novos núcleos de po-
voamento em Mato Grosso, a referência à origem o Mas se concentrando naquela leva alemã e ita-
engloba na omissão dos elementos que o compõem liana que foi decisiva nesse processo cultural
e que se reproduzem a cada etapa da trajetória de que a gente está discutindo, a italiana subiu.
expansão migratória dessa população. Ela ocupou a Serra Gaúcha, e daí sim, dessa
Os migrantes que partiram para Mato Grosso distribuição da Serra Gaúcha pelo Planalto
durante as décadas de 1970 e 1980 tinham raízes Gaúcho, ela se alastrou e veio para Passo Fun-
nas colônias do Sul, principalmente formadas por do… praticamente toda a região agrícola e do
descendentes de italianos e alemães que chegaram agronegócio do Rio Grande também tem no
ao Rio Grande do Sul no século XIX para inicia- italiano uma predominância. […] Em 1930,
rem uma exploração agrícola familiar em pequenos alguma coisa por aí, foi criada a ferrovia ligan-
lotes. Dada a insipiência dos recursos disponibili- do o Sul a São Paulo. Essa ferrovia que possi-
zados pela administração colonial, a eles coube a bilitou a ocupação.8 Então uma das primeiras
construção e a organização dos serviços na vila, pe- regiões que teve essa característica [da agricul-
queno centro aglutinador de uma comunidade dis- tura mecanizada] a nível de interior de oeste de
persa pelas colônias, instaladas ao longo das picadas Santa Catarina é essa região do Vale do Rio do
(Seyferth, 1974). O ‘trabalho acessório’ periódico Peixe. Ela sobe dentro do Vale, com montanhas
dos pais e filhos mais velhos, como forma de agre- dos dois lados. Ela corta Santa Catarina. O Rio
gar dinheiro aos rendimentos familiares obtidos nas do Peixe é afluente do Rio Uruguai, que faz a
roças de subsistência, passou a realizar-se em regime divisa de Santa Catarina com o Rio Grande, e
mais permanente nas gerações seguintes (cf. Santos, ela atravessa e entra, sai aqui em cima, pra che-
1982; Seyferth, 1984). Da mesma forma, a estra- gar em Curitiba, na divisa do estado aqui. Essa
tégia de exclusão de filhos da herança da terra com ocupação que trouxe essa leva de imigrantes do
vistas a evitar a fragmentação do patrimônio fundiá Rio Grande. Meu avô veio nessa situação, pro-
rio familiar, comum a outros campesinatos brasi- vavelmente, eu imagino – meu pai nasceu em
leiros (por exemplo Moura, 1978; Seyferth, 1985; 1936… – entre 1920-1925… e já pela data a
Woortmann, 1995), deslocou muitos membros des- ferrovia, então, foi construída antes… porque
sas famílias de colonos para outras atividades produ- nasceu todo mundo em Santa Catarina, e a mi-
tivas no comércio, mais tarde na indústria. nha tia mais velha é de 1925, a irmã mais velha
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da família é de 1925. Então provavelmente isso plausivelmente parte delas teve ancestrais no Rio
aconteceu entre 1920-1925 (Nei Frâncio, en- Grande do Sul uma ou duas gerações antes, como
trevista em agosto de 2011, em Sorriso). os Frâncio de Sorriso. Dessa forma se compreende
o uso intercambiável dos termos “sulista” e gaúcho”
Dados censitários proporcionam uma visão pa- pelos habitantes desta região do Mato Grosso.
norâmica dos fluxos migratórios para a atual região Sucessivas mudanças de residência no inte-
do agronegócio mato-grossense. Entre os 213 ha- rior da mesma região ou entre o Sul e o Centro-
bitantes de Lucas do Rio Verde que declararam ao -Oeste marcam as trajetórias ao longo de duas ou
Censo 2000 morar ali desde a década de 1970, 181 três gerações das famílias que se encontram hoje
eram oriundos de estados da região Sul. Em Sorri- nos municípios aqui enfocados.11 Elas são os atores
so, a proporção eleva-se a 93% de 219 declarantes. de um processo amplo e prolongado de exploração
Os dados de 1990 apontam 100% dentre os 136 e das fronteiras agrícolas na região Sul, que se foram
90,8% dos 851 habitantes na mesma situação, res- abrindo ao mesmo tempo em que se esgotavam
pectivamente, nos dois municípios.9 A diferença no as terras devolutas nas áreas de ocupação anterior
número total nas duas contagens deve ser atribuí- (Gregory, 2008). Esse movimento correspondeu
da aos deslocamentos sucessivos dessa população, não menos às necessidades de reprodução social
que não se radica definitivamente no município de dos agricultores sulistas do que aos ensejos do Esta-
Mato Grosso aonde primeiro chegou, tal como su- do brasileiro, que através de políticas de estímulo a
cedia no Sul e continua acontecendo atualmente. projetos colonizadores públicos e privados preten-
Em seu trabalho de história municipal de Nova deu atrair para regiões economicamente marginais
Ubiratã, Ivo Beuter (2000, pp. 134-142; 162-163; migrantes dotados de um determinado perfil so-
191-198) elabora extensas listagens dos primeiros cioeconômico e cultural, a que se ajustavam per-
moradores de três distritos e faz constar em cada feitamente os membros egressos das colônias do
uma das entradas a data da imigração, o nome do Sul, pressionados pela escassez de terras livres. Renk
titular da “família”10 (cabeça do grupo doméstico), (2000, p. 90) e Gregory (2008, p. 121) explicitam
a sua naturalidade (“origem”) e o local da residência a presença dessa seletividade por parte dos men-
anterior à chegada a Mato Grosso (“procedência”). tores desses projetos nas regiões do oeste de Santa
Esse procedimento oferece, portanto, indicações Catarina e do Paraná, que prevalecerá também no
importantes a respeito da própria acepção de “fa- Mato Grosso (Santos, 1993, p. 72).
mília” presente nessa formação social, que veio a Desconsi (2011, pp. 121-122) destacou a repro-
ser reforçada pela generalidade das narrativas sobre dução, em Mato Grosso, de uma metodologia de
os “pioneiros”. Enquanto mais de uma família nu- ocupação colonizadora, estimulada por programas
clear (casais legitimamente reconhecidos, com ou e políticas de Estado, mas empreendidas por ato-
sem prole) ocupa a mesma casa, o conjunto de seus res privados, cujo modelo se construiu no oeste do
moradores conta como uma família só e apenas um Paraná. Para o recrutamento dos agentes humanos
homem é reconhecido como seu representante. Es- desejáveis, recorreu-se a meios de divulgação diri-
ses dados também reiteram a percepção da origem gidos que priorizavam as famílias de antigos co-
comum e revelam os critérios de classificação pri- lonos que haviam alcançado maior êxito, capazes
vilegiados pelo autor, também procedente da área elas mesmas de acionarem suas redes de conheci-
colonial sulista. As “famílias” de naturalidade “gaú- mento para atrair novos interessados ao novo em-
cha” somam 42 em um universo de 80 residentes preendimento em Mato Grosso. Assumia-se, com
na sede do antigo distrito. Trinta e cinco delas mo- razão, que a decisão de migrar seria favorecida pela
raram em outro estado antes de chegar a Nova Ubi- presença de conterrâneos, conhecidos ou pessoas
ratã, em Mato Grosso. Outras vinte e quatro famí- de origem semelhante. A existência de alguma in-
lias eram catarinenses ou paranaenses, das quais a fraestrutura também era encarada como atrativo
metade já tivera outra residência antes da chegada. aos novos migrantes, e os projetos de colonização
Embora não constem dados a este respeito, muito paranaenses caracterizaram-se por certo planeja-
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mento urbano, com recortes regulares de lotes e as quais o comércio se constituía em alternativa à
vias públicas, um cinturão de chácaras destinado à atividade agrícola que, mesmo quando não pratica-
produção de itens de consumo local, além do lote- da, permanecia no rol das possibilidades dos inves-
amento da área rural. timentos produtivos futuros.
Uma empresa colonizadora iniciou seus pro- A história da fundação de Sorriso e de Lucas
jetos antes mesmo da abertura da estrada Cuiabá- do Rio Verde guarda especificidades em relação ao
-Santarém. A cidade de Vera foi fundada no eixo que aconteceu em outras áreas de Mato Grosso,
que a via fora planejada. Quando um novo traça- onde já nos anos de 1950 e 1960 grandes empre-
do foi definido, o colonizador Ênio Pepino criou sários adquiriram terras como reserva de capital,
mais um núcleo urbano à beira da futura BR 163, a apenas introduzindo nelas uma boiada e as deixan-
que chamou Sinop, o mesmo nome de sua empresa do aos cuidados de algum funcionário. Aqui, a ve-
com sede no Paraná desde os anos de 1950. getação mais rarefeita do cerrado (o “cerradinho”)
facilitou a preparação dos terrenos para as primeiras
Sinop é um caso típico. [...] Sete ou oito cida- lavouras, mas não permitia a extração de madeira
des no norte do Paraná foram empreendimen- que capitalizou tantos sulistas na sua diáspora ru-
tos da colonizadora de Sinop. Então era assim, ral (Simon, 2009). Os compradores, por vezes nas
Sinop foi, por exemplo, vamos dizer assim, pessoas de seus filhos ou genros, não tardaram a
uma vinda estrategicamente política. Já existia, se transferir para a “terra nova” e iniciar a abertura
vamos dizer, através do governo, uma informa- das primeiras plantações e outros empreendimen-
ção de que aquela determinada empresa prati- tos comerciais e de serviços concomitantes. Esses
cava [projetos de colonização]: “ó, vocês preci- “pioneiros”, mesmo aqueles que contaram com o
sam ir lá no Mato Grosso que lá vocês vão fazer financiamento do Polocentro, investiram capital
cidades. Nós temos que ocupar então vamos próprio e contribuíram pessoalmente no proces-
lá fazer cidades.” Já vieram com essa missão... so de construção das cidades. Em Sorriso, alguns
(Nei Frâncio. Entrevista concedida em agosto dos compradores de Claudino se juntaram a ele em
de 2011). sociedade e a colonizadora assim formada capita-
neou a fundação e o desenvolvimento do lugar até
De acordo com Nei Frâncio, os fundadores de a emancipação do município. Esse envolvimento
Sorriso não tinham experiência como colonizado- atendia às necessidades de recurso dos habitantes,
res, mas serviram-se do modelo que observavam ao mesmo tempo em que alimentava os negócios
nas novas cidades planejadas do Sul. Seu pai, Clau- imobiliários da empresa, ao tornar o novo núcleo
dino, iniciou-se nesse empreendimento “meio por urbano cada vez mais atraente a novos investidores
acaso”, quando procurava uma saída para crise de e moradores. Em Lucas, malogrado um primeiro
sua empresa familiar, do ramo têxtil. No desempe- projeto de colonização pública (Zarth, 1998), esse
nho de sua atividade comercial, ele constituíra uma envolvimento se repete mesmo na ausência de obje-
clientela no seio da qual encontrou os primeiros tivos de lucro imobiliário, inicialmente coordenado
compradores dos lotes que demarcou quando ad- pela Cooperlucas – uma cooperativa formada por
quiriu uma gleba em pleno cerrado, a baixíssimo assentados em cumprimento a uma exigência do
preço, através de um corretor que conhecera du- Incra, cujas finalidades eram a prestação de assis-
rante uma viagem a Cuiabá. Em sua iniciativa vi- tência técnica, a administração de financiamentos e
sava antecipadamente a vários desses clientes que o desenvolvimento de infraestruturas. De uma for-
já lhe haviam revelado o desejo de comprar terras ma ou de outra, os projetos de exploração agrícola
no Norte, sabidamente baratas, movidos pelo êxito e de edificação das cidades mobilizaram a diminuta
econômico da agricultura mecanizada que teste- população de recém-chegados diretamente interes-
munhavam na região em que viviam, no Paraná. sada na sua boa execução. No geral, as narrativas
Tal como a família Frâncio,12 a maioria desses com- sobre a fundação das cidades pretendem salientar
pradores era originária das colônias gaúchas, para o caráter experimental e amador desse empreendi-
Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 93
mento, que sublinha a ousadia e o voluntarismo a compradores estranhos à família. A partir dessas
dos “pioneiros”, ao mesmo tempo em que relativi- fazendas formaram-se pequenos núcleos de povo-
za, se não descarta, a intervenção de outros agentes amento e aglomerados populacionais identificados
no processo, especialmente o Estado. às famílias de seus fundadores. Os Ferraz de Flores-
ta, os Pereiras de Serra Talhada, a exemplo de mui-
tas outras grandes famílias sertanejas, espalharam-se
Enredo de famílias por uma vasta região. “Linhagens” dessas famílias
subdividiram-se e passaram a ser identificadas pe-
O pessoal de Nazaré costuma dizer que Ma- los locais que lhes serviram de berço. Ema, Nazaré,
noel de Souza Ferraz é um tronco da família Navio, esses topônimos mencionados por Mário
Ferraz. Quando eu comecei a estudar genealo- Gominho exprimem tanto uma localização geográ-
gia, eu tava na loja e chegou um cidadão lá da fica quanto um recorte social correspondente a um
Ema, de Nazaré, e conversando com meu pai, segmento ou ramos familiares, a um “povo”, a que
disse: “os Ferraz vieram da Ema”. Aí eu virei são atribuídas qualidades singulares, baseadas na
para ele e disse: “seu Tonho, o senhor está er- reputação de seus habitantes e nos eventos memo-
rado. A Ema é que veio dos Ferraz do Navio”. ráveis em que tomaram parte (Marques, 2011b).
Ele disse: “não senhor, Manoel de Souza Ferraz Essa correlação entre família e lugar permite que
é o Tronco da família”. Eu disse: “não. Aqui os habitantes se situem perante outros e expressem
no Navio já existia pai e avô dele. Então ele foi essas distâncias relativas em seus enunciados na au-
para lá mas já existia os Ferraz aqui. Ou o se- sência de laços pessoais e, sobretudo, quando não
nhor não sabe que ele era neto de Jerônimo de conhecem em detalhes os vínculos que devem me-
Souza Ferraz, o verdadeiro primeiro Ferraz a se diar a relação entre os interlocutores. No sertão, a
radicar em Floresta? Foi um dos colonizadores referência espacial proporciona uma moldura no
de Floresta” (Entrevista concedida por Mário interior da qual os pertencimentos específicos (às
Gominho, em dezembro de 1999). casas, aos ramos familiares etc.) cedem, sem que de-
sapareçam, ao reconhecimento de uma comunida-
Atualmente, a maioria dos Ferraz sabe que a de maior, mais abrangente, aparentemente homo-
família descende do pioneiro Jerônimo, graças à di- gênea. A vizinhança produz totalidade, por assim
vulgação em Floresta e arredores de uma série de dizer. Porém, as localidades elas mesmas encerram-
publicações concernentes à história do município -se em séries de pertencimentos mais amplas, me-
(Ferraz, [1957] 2003; Gominho, 1996; Souza Fer- nos mediados pela cidadania do que por vínculos
raz, 1999). Quase sempre sem formação acadêmica pessoais e de parentesco, por vezes implícitos nos
em história, os autores desses trabalhos e de outros sobrenomes e na noção de “tronco” comum. Se os
relacionados à memória das pessoas e dos eventos Ferraz da Ema e de Nazaré descendem do Navio
de sua terra (por exemplo Ferraz, 1978; Gominho, ou o contrário, importa que ao reconhecerem uma
1993; Lira, 1990; Sá, 1998) compartilham com seu mesma origem, que aqui é um ancestral e não uma
público uma apreensão de seu mundo permeada localidade, algum sentido de comunalidade entre
pelo parentesco. Aqui, a ideia de origem é correla- eles se estabelece, mesmo na ausência de formas
ta àquela de descendência, por intermédio da qual mais concretas de solidariedade entre elas.
se formula o pertencimento a um lugar. Um refe- Entre os sertanejos, contar a história de sua
rencial genealógico guia o mapeamento mental das terra sempre conduz à distinção de personagens
distâncias relativas, físicas e sociais, entre as pessoas. e eventos memoráveis. Bons narradores da histó-
Ao longo do primeiro século de colonização ria de um lugar ou uma coletividade são aqueles
do sertão, parte dos descendentes dos primeiros ar- reconhecidamente capazes de “destrinchar” o pa-
rendatários fundaram suas próprias fazendas, de ex- rentesco entre os personagens das narrativas. Mais
tensos limites, mais tarde subdivididas em parcelas ainda, eles são capazes de relacionar os personagens
deixadas em herança ou eventualmente alienadas a figuras que não tomam parte nas histórias. O pró-
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prio narrador costuma posicionar-se, mesmo que pessoas não são nomeadas nas histórias municipais,
remotamente, em relação à teia de parentes sob es- raramente constam nos relatos de memória e basi-
crutínio, ainda que ele mesmo e o parente através camente estão excluídas das genealogias. Quando
de quem ele estabelece seu pertencimento não de- eventualmente mencionadas, sua descrição é me-
sempenhem qualquer papel nos eventos narrados. diada por aqueles a quem são subordinadas e, mais
amiúde, figuram como uma sorte de folclore local,
Quando foi em 1928, era prefeito nosso Ma- em virtude da extravagância de seu comportamento
noel Serafim de Souza Ferraz, irmão de Tonho de loucos, mendigos ou fora da lei.13 As entrevistas
Boiadeiro, primo de Antônio Ferraz, irmão da que conduzi em uma fazenda em Floresta permi-
minha avó, cunhado de Nequinho, que já ti- tiram constatar o reconhecimento muito menos
nha sido prefeito... profundo das suas genealogias, apesar de repetir-se
entre eles uma sobreposição entre parentesco e vizi-
Esse estilo narrativo tão comum entre os serta- nhança. Uma correlação que em parte decorre dos
nejos, em seus relatos orais e escritos, permite que vínculos mantidos com os patrões e donos da terra,
a memória de eventos e personagens singulares do por duas ou três gerações, que se prolongam mes-
passado se converta em história coletiva, porque mo quando membros dessas famílias se tornaram
através dos laços de parentesco o objeto da narrati- proprietários de casas e terrenos, por vezes doados
va diz respeito também ao seu narrador e público, em gratidão a tantos anos de serviço prestado e em
ainda que seja enunciada em terceira pessoa. Mário função do apreço mutuamente declarado entre em-
Gominho, em seus longos relatos, e muitos outros pregadores e empregados.14 Assim, a linguagem do
interlocutores durante minha pesquisa em Pernam- parentesco é capaz de revelar tanto os processos de
buco, incluíam seus ouvintes nos enunciados, ao identificação quanto as linhas de exclusão vigentes
mesmo tempo em que me guiavam no cenário que nesta formação social.
descreviam através da enunciação do vínculo de pa-
rentesco de seus personagens em relação a alguém
que sabiam ser do meu conhecimento. Por meio Autobiografia
desse recurso, eles me ensinavam que a identidade
das pessoas ultrapassava sua individualidade. Ali nós éramos umas 6 ou 7 famílias. A nossa
Certamente essas histórias sempre concernem contava uma só, porque nós morávamos jun-
mais àqueles que são nomeados e todos cuja pro- tos, trabalhava junto. No início, sim, só depois
ximidade pessoal ou parental com eles seja reco- que a gente foi dividindo. Mais umas seis fa-
nhecida. Uma vez que as principais famílias de um mílias além dessa. Mora todo mundo aí ainda.
município, grandes em número e prestígio, se mis- Tem a família dos Lembrusco, dos Piccolo, do
turaram por meio do matrimônio ao longo de ge- Tomanoti, do Benjamin... Os Otoboni já fo-
rações, seus membros sempre estão mais ou menos ram embora. Todos mais ou menos que nem
contemplados no conjunto das narrativas que com- nós. Sempre vinha família, mais pessoas da fa-
põem a história de sua terra. Por outro lado, esse mília. Foi chegando devagar, em 80 veio mais
procedimento exclui toda uma população que se gente. Em 76 era só eu (Antônio Isaac, pio-
fixa ou transita por esses municípios sertanejos, mas neiro de Lucas do Rio Verde, entrevistado em
que não é considerada como parte de sua história. março de 2008).
A camada mais empobrecida de famílias que vivem
na condição de “moradores” das fazendas ou que Antônio Isaac é conhecido em Lucas do Rio
residem nas periferias das cidades assim como as Verde como um dos primeiros “gaúchos” que ali
populações indígenas que habitam territórios mar- chegaram para “abrir lavoura”, ainda antes da im-
ginais aos principais núcleos de povoamento parti- plantação do primeiro projeto de colonização do
cipam de circuitos sociais próprios e parcialmente Incra. Com apenas 18 anos, ele convenceu seu pai
partilhados com a camada dominante. Mas essas a vender um terreno no Sul e adquirir terras pla-
Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 95
nas em Mato Grosso: “nunca me conformei com sica, um nível ainda mais abrangente de unidade
aquela vida de colono. Sempre sonhei com lavou- familiar persiste translocalmente, representada na
ra mecanizada”. Nas colônias, o relevo acidentado figura do pai, apesar do deslocamento de parte de
e a dimensão reduzida dos lotes inviabilizavam a seus membros e mesmo da emancipação do único
utilização de maquinário agrícola e todo trabalho filho homem.
de cultivo era manual, executado por seus titulares, Em regra, ao longo de sua vida produtiva –
os pais junto a seus filhos (Santos, 1982; Seyfer- que nas colônias se iniciava já na infância (Santos,
th, 1974). Antônio e muitos outros jovens sulistas 1982, p. 27) – espera-se que um homem conquis-
foram seduzidos pela oferta a baixo preço de áreas te graus progressivos de autonomia econômica ou
bem maiores e planas do que as que seus pais já ocupe posições ascendentes no interior de uma
possuíam. empresa familiar. Seu casamento deve coincidir, de
Esse sonho não concernia somente a Antônio. preferência, com um avanço significativo nessa tra-
O pai comprou a terra e obteve financiamento do jetória. Nesse contexto se insere a forte correlação
Polocentro. A convite do filho, dois cunhados jun- entre os primeiros residentes (a correlação ainda
taram-se ao empreendimento e, com suas esposas, hoje válida, embora mais atenuada), entre a data
partiram para o Mato Grosso com a mudança. Para de instalação em Mato Grosso e a época do ma-
trás ficaram a mãe e três outras irmãs ainda soltei- trimônio – se abrangemos nesse período a aproxi-
ras, para cuidar das roças que a família preservou. mação da idade adulta nos solteiros e o início da
Os trabalhos começaram de imediato, a montagem fase de expansão do grupo doméstico, entre casa-
do acampamento e a derrubada da mata. Por três dos (cf. Desconsi, 2011, p. 110). No caso de An-
meses moraram sob lonas, com os dois marceneiros tônio Isaac, sua emancipação formal ocorreu antes
que haviam contratado no caminho, em Cuiabá, de seu próprio casamento, mas esta foi a condição
para a construção da casa. Ao fim do primeiro ano, para que os maridos de suas irmãs, através delas – o
nada conseguiram colher do arroz que plantaram. trabalho feminino, como o infantil, subordinava-se
Por isso, o pai decidiu voltar para casa, no Sul, e ao do chefe de família, concebido como “ajuda”, a
emancipar seu único filho, que se orgulha em dizer exemplo do que acontece em diferentes contextos
que aos 19 anos já era empresário agrícola. A co- camponeses (por exemplo, Brandão, 1982; Garcia
lheita seguinte já proporcionou algum rendimento e Heredia, 1971; Heredia, 1979; Meyer, 1979) –,
e, daí por diante, a trajetória econômica da família viessem a adquirir meios próprios de sustento, à
foi ascendente. medida que os rendimentos obtidos na “terra nova”
O emprego da primeira pessoa é uma carac- permitissem o desdobramento de outras unidades
terística comum às narrativas dos “pioneiros” de produtivas a partir da primeira área adquirida em
Mato Grosso, bem como daqueles que os sucede- Mato Grosso pelo sogro.
ram em trajetórias similares, que obscurece parcial- Muitas famílias que iniciaram a exploração
mente uma série de processos coletivos envolvidos de seus primeiros lotes como um único grupo ad-
no deslocamento, no estabelecimento e na funda- quiriram outras áreas, contíguas ou distantes, ou
ção de lugares. Antônio Isaac nunca esteve sozinho, subdividiram uma mesma unidade fundiária em
como tampouco nenhum dos “vizinhos” que pouco parcelas atribuídas a seus vários membros. Em
a pouco chegavam à região, a quem encontrava ca- qualquer caso, não há coincidência necessária en-
sualmente pela estrada ou em Diamantino, aonde tre unidade produtiva e patrimonial. Um pai, seus
iam em busca de víveres ou outros recursos. O jo- filhos e genros podem investir seu trabalho con-
vem assume-se como representante de uma unida- juntamente em uma mesma fazenda, com ou sem
de doméstica e familiar, que conta como uma. Ele subdivisão de lotes, e definindo fórmulas de dis-
não pretende sugerir que esteve absolutamente só, tribuição de rendimentos; um grupo similar pode
pois explicita em diversos momentos a presença subdividir-se no controle sobre distintas proprie-
de suas irmãs e cunhados. Sua narrativa também dades, que conformam uma mesma empresa fa-
permite compreender que apesar da separação fí- miliar; ou assumirem completa autonomia sobre
96 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 83
a produção e rendimentos delas, mesmo que sua -emancipação” foi formada em Sorriso com vistas
partilha não tenha sido ainda formalizada. Algu- a se informar das condições necessárias ao seu des-
mas variáveis costumam incidir sobre essas formas membramento15 em relação a Nobres, Paranatinga
de organização produtiva, tais como a dimensão e e Sinop (Dias e Bortoncello, 2003, pp. 297-298).
a distribuição contígua ou descontínua do patri- Não menos importante era a reafirmação e a am-
mônio fundiário, o acesso individual ao crédito, as pliação das articulações políticas com prefeitos da
vantagens fiscais, o porte do maquinário possuído região, deputados estaduais e governador iniciadas
e, não menos importante, as fases do ciclo de vida por relações pessoais durante o processo de eleva-
dos grupos domésticos e familiares (Fortes, 1974). ção a distrito. Essas alianças externas, no entanto,
Como se pode perceber, todas essas definições con- resultaram na divisão entre os fomentadores desse
cernem às famílias, que se organizam, ainda hoje, projeto, no apoio a duas candidaturas, de Inácio
como grupos produtores e empresariais, mas se Schevinski, pelo PDS, partido do governador, e
rearranjam de acordo com uma série de constran- Alcino Manfrói, pelo PMDB. Os dois candidatos
gimentos, estímulos, tensões que as ultrapassam. eram amigos pessoais e sem experiência prévia na
Assim, o “convite” de Antônio a seus cunhados, a vida política, mas os vizinhos e políticos que os
persuasão de seu pai, o desejo da “terra nova” e da apoiavam não chegaram a acordo em torno de uma
agricultura mecanizada, a busca em Mato Grosso chapa única formada por ambos. Os dois grupos de
resultam menos de suas deliberações contingentes, interesse político antagônicos que então se forma-
livres e individuais do que de uma pluralidade de ram correspondiam aos alinhamentos partidários
agências atuantes sobre seus atos, hábitos, gostos, externos e não a distintos segmentos sociais. Mas
escolhas (cf. Latour, 2005, p. 44). as vicissitudes da política terão logo refletido no
Outros sentidos do emprego da primeira pes- convívio social entre aqueles dois grupos, segundo
soa se ligam intrinsecamente ao processo de funda- recordam algum de seus membros, em uma comu-
ção de cidades em Mato Grosso. Os relatos sobre nidade até então unida e indivisa
o período pioneiro sempre distinguem as pessoas a Uma clara distinção de classes só veio a acon-
quem se devem as primeiras escolas, a construção tecer após os anos de 1990, em Sorriso e Lucas
de capelas, a implantação de comércio e oferta de do Rio Verde, com a afluência de novas levas de
serviços essenciais, os esforços para obtenção e dis- imigrantes, que se fixaram nos bairros periféricos
tribuição de água, a compra de geradores, de apare- dessas cidades. Em sua maioria, esse segmento é
lhos telefônicos etc. Esse envolvimento pessoal em formado por trabalhadores “braçais”, funcionários
favor da coletividade culmina na mobilização polí- e empregados menos qualificados das lavouras, in-
tica para emancipação do município, que presume, dústrias e construção civil. Uma parte desta popu-
além do cumprimento das exigências da legislação, lação deslocou-se para a região em virtude da falên-
alianças fora do plano local, no governo do estado, cia do garimpo de Peixoto de Azevedo, município
entre os deputados estaduais e com o prefeito a que próximo à divisa do estado com o Pará, atraída
estão subordinados. Os primeiros prefeitos e vere- pelas oportunidades oferecidas com a abertura de
adores dos municípios recentemente emancipados novas áreas de plantio e a expansão das indústrias
emergem sempre do corpo mais ativo dos “pionei- de beneficiamento implantadas nos anos de 1990
ros”. Seus mandatos estendem e intensificam atri- e 2000. Atualmente identificada aos “nordestinos”
buições e responsabilidades que de certa maneira já ou “maranhenses” – os “cuiabanos” ocuparam o pa-
assumiam perante uma comunidade, em prol dos pel de alteridade até então, mas em número pouco
interesses nela comungados. Em outras palavras, a expressivo – dessa periferia socioeconômica tam-
atuação pública é concebida como uma continui- bém fazem parte muitos migrantes de outras ori-
dade em relação aos papéis antes desempenhados gens, inclusive da região Sul do Brasil. Hoje em dia
por chefes de família dispostos a colaborar entre si. também é mais heterogênea a composição da elite,
A política introduz ou reforça, também, certas elidida sob os epítetos “gaúcho”, “gauchada” e “su-
linhas de clivagem interna. Uma “comissão pró- lista”. O uso dessas designações é muito expressivo
Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 97
da divisão e das tensões sociais ali vigentes, que são até mesmo por seus pares, uma vez que não corres-
traduzidas localmente segundo concepções de “cul- pondem ao modelo “cultural” adequado. No plano
tura”, por sua vez associada à origem regional. da intimidade cultural (Herzfeld, 2005), o autorre-
A culinária e as aptidões para o trabalho, a pre- conhecimento como “gaúcho” ou “sulista” é conco-
ferência musical e a dança são traços diacríticos da mitante ao recurso a padrões de valores partilhados,
“cultura”, na acepção que o termo encontra entre sobretudo morais, para operar tanto diferenciações
os “gaúchos”. A esse respeito é assinalável o papel quanto identificações internas. Um bom pai é por
desempenhado pelos CTGs em todas as zonas atin- excelência um provedor, mas não deve subordinar
gidas pela ocupação gaúcha (Simon, 2009) e digno o bem-estar da família às suas ambições; uma boa
de nota que os conteúdos culturais ali veiculados mãe deve zelar pela união da família, sendo que
se refiram muito mais às tradições pastoris dos sua participação na vida social e produtiva jamais
pampas do que à policultura das colônias rio-gran- deve exceder essa incumbência (Marques, 2011a).
denses (Oliven, 1991, p. 45). De qualquer forma, O bom desempenho desses papéis serve tanto para
eles permitem estabelecer ou reformular um plano distinguir os “gaúchos” e “sulistas”, quanto para
dicotômico de oposições, no qual se reforçam iden- classificá-los entre si.
tificações a partir de relações contrastivas, de modo
similar ao que já se verificara no Sul, em diferentes
etapas de colonização (Desconsi, 2011, p. 147). Epopeia
Essa produção identitária evoca Barth (1969), mas
convém sublinhar que as designações étnicas e de Em Pernambuco, o estilo empregado nas nar-
naturalidade não permaneceram as mesmas ao lon- rativas do passado de certa maneira estende a uma
go do tempo. A oposição entre “gaúchos”/“sulistas” multiplicidade de atores, até mesmo do presente,
e “cuiabanos” e, mais recentemente, dos primeiros a pertinência à história dos lugares, em virtude do
aos “nordestinos”/“maranhenses” parece uma trans- papel que nelas desempenha a nomeação dos mais
mutação de outras que a antecederam: (alemães/ notórios personagens, a descrição de seus feitos e
italianos) versus (caboclos/brasileiros); brasileiros a explicitação de redes de parentesco em que estão
versus paraguaios. Essa população emergente das inseridos. Esse estilo narrativo é capaz de produzir
colônias se arranja em diferentes linhas de oposição pertencimentos, mas também de operar exclusões.
que não são coincidentes, nem sempre correspon- Os processos históricos que os englobam frequen-
dem a descrições objetivas de pertencimento e tam- temente também permanecem encobertos, mas por
pouco remetem a conteúdos culturais fixos.16 Esses vezes se desvelam através do trabalho cuidadoso de
alinhamentos parecem subordinados a critérios de alguns pesquisadores locais.
classificação de atitudes, hábitos e desempenhos in-
dependentemente da origem de quem os manifesta. As disputas e lutas políticas, em todos os níveis
Em Mato Grosso, como em outros polos de e em boa parte das províncias, continuavam
concentração de migração desde o Sul, a avaliação acirradas, no final dos anos quarenta do sécu-
e a distinção de si mesmos (“gaúchos” ou “sulistas”) lo XIX, entre os partidos liberal e conservador.
em relação aos outros (“cuiabanos”, “nordestinos”, Quando o Imperador formava um ministério
“maranhenses”) repousam especialmente em valo- com gente de um daqueles dois partidos, dis-
res que organizam o comportamento doméstico e pensando, por consequência, a colaboração do
público (Haesbaerth, 1997): os papéis masculinos e outro, aquele que subia tratava de desmontar,
femininos na produção e na esfera do consumo, do no País inteiro e por completo, a máquina po-
cuidado do lar e dos membros da família; a parti- lítico-administrativa que fora estruturada pelo
cipação em associações e comissões de caráter polí- adversário (Souza Neto, 2004, p. 203).
tico, empresarial e filantrópico. Na aplicação desses
critérios valorativos, muitos migrantes procedentes As disputas partidárias do Império interes-
do Sul não são a priori classificados como “sulistas” saram alguns historiadores dos municípios da
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região do Pajeú, que encontraram nelas um con- em sua casa, Nogueira Paz combateu seus inimigos
texto mais amplo de sua elevação e queda política até o último cartucho, ao lado de sua esposa, filhos
e menos restrito às deliberações dos atores locais. e um punhado de fiéis correligionários, entre eles
Álvaro Ferraz ([1957] 2003, p. 180) primeiro as- os dois amigos de Floresta, Serafim Ferraz e José
sinalou os ecos da revolução praieira – que opôs de Moraes. Todos eles se renderam juntos, ao fim
simpatizantes dos dois partidos do Império no li- de dois dias de intenso combate, quando chegou
toral – na grande comarca sertaneja de Flores. No o capitão Simplício Pereira da Silva com duzentos
interior, as reverberações da política da capital da homens, em reforço a seu irmão. Presos, não tarda-
província faziam-se sentir no ponto de equilíbrio ram a serem liberados. Especula-se que um acordo
instável entre os grupos capazes de ditar o destino previu a “retirada” de Nogueira Paz para o vizinho
de sua terra e de seu povo por meio de sua própria estado da Paraíba e que amizades pessoais que o li-
força, mas também do indispensável apoio dos beral mantinha com alguns dos Pereira transcen-
correligionários do governo. Coube a Francisco diam as afiliações políticas (Gominho, 1993, p. 70;
Barbosa Nogueira Paz, como deputado provincial Souza Neto, 2004, p. 209).
pelo Partido Liberal, a apresentação na Assembleia Mas a trégua durou pouco. No ano seguinte,
Legislativa Provincial de Pernambuco do projeto os três amigos foram acusados de mando do assas-
que, aprovado, erigiu à Vila de Floresta, o anti- sinato de um padre conservador no dia das primei-
go povoado de Fazenda Grande, em 1846.17 Sua ras eleições primárias sob o controle deste partido.
iniciativa é creditada à profunda “afetividade ou Indignados perante a acusação, decidiram resistir às
ligação política” daquele deputado com os habi- ordens de prisão expedidas contra eles. Dessa vez, os
tantes de Floresta (Idem, p. 142) e, mais especifi- combates que se sucederam ao longo de meses tive-
camente, à amizade “muito forte” que o unia ao ram lugar nas matas da Serra Negra e nas caatingas
tenente-coronel Serafim de Souza Ferraz e a José do Navio, em Floresta, zona de influência de Sera-
Rodrigues de Moraes (Gominho, 1993, p. 50). O fim e José, onde eles haviam se refugiado e recruta-
caráter pessoal e político dessa relação apreende-se do o apoio de parentes e “homens de confiança”. Os
dos diversos episódios que marcaram a vida públi- correligionários liberais enfrentaram destacamentos
ca dessas personagens. policiais enviados pelo presidente da província em
Em fins de setembro de 1848, o conservador reforço às tropas privadas e à Guarda Nacional,
Herculano Ferreira Pena foi nomeado governador organizada por Manoel Pereira da Silva. Nogueira
da província de Pernambuco em substituição a seu Paz desapareceu durante uma luta e seu corpo só foi
antecessor, em virtude da dissolução do ministério encontrado muitos anos mais tarde. Os dois outros
liberal pelo Imperador. No sertão, as turbulências amigos resistiram por mais alguns meses, mas as for-
políticas da corte se fizeram sentir especialmente em ças eram por demais desiguais. José se refugiou e Se-
torno das demissões de opositores de postos da po- rafim foi preso, mas não tardou a ser anistiado ainda
lícia e da Guarda Nacional.18 A nomeação do con- em 1850. Seu argumento de defesa era que eles não
servador Manoel Pereira da Silva, chefe político de haviam lutado contra o governo, mas contra seus
Serra Talhada, como delegado da comarca de Flores perseguidores políticos (Souza Neto, 2004, p. 240).
resultou em luta armada. Nogueira Paz, seu oposi- Passada a turbulenta onda de perseguição pessoal,
tor partidário, tomou como insulto a sua chegada à policial e política, ambos retornaram à vida pública.
Câmara de vereadores de Flores, onde este era en- Serafim foi agraciado com o título de Oficial da Or-
tão presidente e controlava a maioria no legislativo dem da Rosa, conferido pelo Imperador D. Pedro II
municipal, na companhia de numeroso grupo ar- (Gominho, 1993, p. 124).
mado, com vistas a tomar posse da delegacia. Ma- No “fogo de Flores” e na “rebelião da Ser-
logradas as tentativas de acordo e em meio à tensão ra Negra”, os historiadores sertanejos encontram
provocada pela presença de homens armados que as razões da transferência para Tacaratu da sede
acorreram em suporte e defesa de seus líderes, uma do Termo de Floresta, em 1849, e, em 1851, da
provocação deflagrou uma troca de tiros. Refugiado emancipação de Vila Bela (antiga Serra Talhada),
Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 99
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Pioneiros dE Mato Grosso e Pernambuco 103
O ponto de partida deste artigo são as The article explores the concepts of ori- Le point de départ de cet article sont les
concepções de origem presentes nos di- gin that unfold in oral and written re- conceptions d’origine présentes dans
ferentes relatos e depoimentos, orais e ports of the history and foundation of les différents rapports et témoignages,
escritos, que pretendem descrever a his- two settlements, one in the mid-north oraux ou écrits, qui ont pour but de dé-
tória de uma localidade ou de sua fun- of Mato Grosso, the other in the interior crire l’histoire d’un village ou de sa fon-
dação, entre os habitantes dos municí- of Pernambuco (sertão). It examines the dation, entre les habitants de communes
pios do médio-norte de Mato Grosso e different values and meanings such nar- de taille moyenne du Mato Grosso et de
do sertão de Pernambuco. Embora com ratives give to the past and the present, l’arrière-pays de l’État de Pernambouc.
pesos relativos e significados distintos nas and how spatial (regional origin) and Malgré les importances relatives et les
narrativas sobre o passado e o presente, temporal (ancestral origin) references sens distincts des narrations sur le passé
os referenciais espacial (origem regional) operate in complementary fashion in the et le présent, les références spatiale (ori-
e temporal (origem ancestral) operam production of relational identities and gine régionale) et temporelle (origine
complementarmente na produção re- oppositions in those social universes. In ancestrale) opèrent de façon complé-
lacional de identidades e oposições nos focusing on native elaborations of the mentaire dans la production relation-
dois universos sociais aqui delimitados. past, [I] the author shows how differenc- nelle d’identités et d’oppositions dans
Essas diferentes ênfases e relativizações es of emphasis distinguish critical aspects les deux univers sociaux ici délimités.
serão exploradas à medida que se revelam of sociality, and how criteria for inclusion Ces différents accents et relativisations
nas elaborações nativas sobre o passado and exclusion activate networks of be- seront analysés dans la mesure qu’ils se
individual e coletivo, de modo a distin- longing, perceptions concerning politics révéleront dans les élaborations natives
guir aspectos críticos presentes naquelas and the state, and the senses and implicit sur le passé individuel et collectif, de
socialidades. Especialmente, os critérios limits to the notions of family and soci- façon à distinguer les aspects critiques
de inclusão e exclusão coextensivos à ety mobilized in both social contexts. présents dans ces socialités, particuliè-
formação das redes de pertencimento, as rement les critères de l’inclusion et de
atuações e as concepções concernentes l’exclusion coextensifs à la formation
à política e ao Estado e os sentidos e li- des réseaux d’appartenance, les jeux
mites implícitos nas noções de família e d’acteur et les conceptions concernant
sociedade mobilizadas nos dois contextos la politique et l’État ainsi que les sens
sociais. et les limites implicites des notions de
famille et de société mobilisées dans les
deux contextes sociaux.