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NATIVAS: BIOGRAFIAS E RECURSOS DE PODER ENTRE
GRANDES PECUARISTAS DO NORDESTE1
MASTERS OF DROUGHTS:
BIOGRAPHIES AND DOMINANCE STRATEGIES AMONG
BREEDER ELITES OF THE BRAZILIAN NORTHEAST
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caatinga” (DINHEIRO RURAL, 2011, p.1) ou elite para tentar transformar e, ao mesmo
nos “camelôs das secas”, “bruxos do ser- tempo, conservar um patrimônio fundiário
tão”, “cabras da peste” – adjetivos dado em e simbólico. Trata-se, portanto, de recon-
uma reportagem da Revista O Berro (EU- versões sociais, perspectiva trabalhada em
FLAVIO, 2013). Sem apoio de universidade pesquisas entre diferentes elites sociais se-
ou governo, estes pecuaristas conseguiram guindo o legado de Pierre Bourdieu (2015,
ter sucesso como empresário rural no ser- 2016) e melhor desenvolvida em trabalhos
tão nordestino provando, “na prática”, que como os de Monique Saint- Martin (1992,
a estiagem não é obstáculo, mas algo a ser 1995, 2011, 2012), e no Brasil por Afrâ-
aproveitado segundo combinação de for- nio Garcia Jr. (1988, 1989, 2007, 2011).
mas de criação dos animais com as espe- Observar e analisar esse tipo de estratégia
cificidades naturais. Outra particularidade social incide em algumas questões: quais
nesse perfil do “patrono” pecuarista nor- condições sociais tornam possíveis essas
destino é o investimento, não apenas nos crenças em torno de “patronos” pecua-
bovinos, mas também nos caprinos e ovi- ristas do Nordeste? Que recursos são mo-
nos: experimentos genéticos, cruzamentos bilizados para produzir essa aura mística
e até salvação da extinção de raças nativas dos “mestres sertanejos”? Guiado nessas
como Canindé, Moxotó, Azul Serrana, Ca- questões o eixo da discussão tenta-se com-
riri, dentre outras, caracterizadas pelo po- preender até que ponto a imagem pública
tencial para produção de carne, leite e cou- desses pecuaristas “notáveis” desenha um
ro com a vegetação e o ciclo de secas da re- quadro de posicionamentos políticos mais
gião semiárida. Ainda sobre esse trabalho, amplos de uma elite: entre uma afirmação
algumas reportagens colocam os “mestres empresarial e moderna, mas também sob
sertanejos” como responsáveis diretos por valores que se firmam em uma antiguidade
fazer com que a cabra e a ovelha deixassem e distinção ao impor uma autoimagem ser-
de ser vistas como “a pecuária dos pobres” taneja, regionalista e predominantemente
(GLOBO RURAL, 1988, p. 56). masculina, identificada com a propriedade
Apoiado nessas percepções iniciais, da terra, a pecuária e as secas. Em torno
proponho uma análise centrada na bio- desse argumento está o trabalho político
grafia de dois pecuaristas proprietários de de imposição e naturalização de uma cren-
fazendas tidas como referência em pecuá- ça na vocação rural do Brasil como “celei-
ria e convivência com as secas no Brasil: o ro do mundo”, o que, na região semiárida
Sr. Manoel Dantas Vilar Filho “Manelito” do Nordeste, implica em uma elite que se
da Fazenda Carnaúba, em Taperoá-PB, e apresenta como descendente de uma “so-
o Sr. João Batista de Andrade “Joãozito” ciedade do couro” dos criadores de gado,
da Várzea dos Gatos, em Jeremoabo-BA. A desde os tempos coloniais que ocuparam
partir de como são narradas as trajetórias o sertão na “pisada do gado”. Dentro das
biográficas desses personagens, é possí- estratégias de reconversão e imposição de
vel evidenciar alguns dos valores sociais, poder o pertencimento a essa “linhagem”
práticas, estilos de vida e visões de mun- justificaria autoridade e legitimidade dessa
do que circulam em uma fração da elite elite para impor um modelo de pecuária e
pecuarista do interior do Nordeste. Tam- convivência com as secas politicamente fa-
bém é viável refletir sobre estratégias dessa vorável à grande propriedade do Nordeste.
2. A maior parte do acervo das revistas Agropecuária Tropical e O Berro podem ser visualizadas no arqui-
vo virtual do site da ABCZ <http://www.crpbz.org.br/Revistas/ListaRevistas/6-Revista-Agropecuaria-Tro-
pical-Memorias-do-Zebu?page=1>
3. Para uma análise rica sobre as variações dos padrões de arquitetura colonial das antigas fazendas e ri-
beiras da região Nordeste ver o livro Um sertão entre tantos outros de Nathália Diniz (2015).
4. Para uma revisão sobre tradições, pesquisas e abordagens sobre o uso de relatos orais e biográficos ver
Narrativas e pesquisa biográfica na sociologia brasileira de Santos, Oliveira e Susin (2014).
5. Retirada do filme Il Gattopardo, de Luchino Visconti (1963), baseado no livro de Tomasi de Lampedu-
sa, a frase “é preciso que tudo mude para que tudo permaneça igual” é o lema de um dos personagens da
nobreza siciliana que se vê decadente diante da necessidade de fazer alianças com a ascendente burgue-
sia na Itália unificada do final do século XIX.
6. Segundo perfil no site da ABCZ, “João de Abreu Júnior nasceu em Portugal, na Ilha de Madeira, em 29
de maio de 1869, filho de João de Abreu e de D. Maria de Jesus Freitas. Quando tinha oito anos imigrou
para o Brasil, acompanhando um tio. Era de família humilde que sempre lidara com gado e pequenas cons-
truções em geral. Como todo imigrante, começou a vida dando duro no trabalho – aprendeu o ofício de
pedreiro, cantaria e alvenaria. Aos poucos, absorveu os bons ventos advindos do impulso dado pela Re-
pública Velha às obras de infraestrutura nos centros urbanos. A partir de 1888 a escravidão foi abolida,
onde os serviços nas fazendas passaram a ser remunerados. Em meio às dificuldades, a lavoura de café en-
trou em crise e o valor das propriedades rurais caiu. O ensejo, no entanto, tornou-se favorável àqueles que
vieram para o Brasil em busca de oportunidades. João de Abreu conseguiu adquirir uma pequena fazen-
da onde começou a vender madeira e dedicar-se à pecuária comprando animais para abate e revendendo
-os aos abatedores. Em pouco tempo, destacou-se nos negócios de compra e venda de gado nas principais
capitais brasileiras”.
No caso de Manoel Dantas Vilar Filho, Para Manelito, essa falha dos centros de
é ele que explica sua trajetória de vida de pesquisa também esteve ligada, no início da
morar na fazenda e “fazer o caminho de década de 1970, a uma “americanização”
volta ao sertão” como o inverso ao pessoal prejudicial ao ensino superior brasileiro co-
da sua geração, que ele considera privile- locando um sistema de créditos e cadeiras,
giada pelos governos Vargas e JK, que se algo que foi definitivo para ele sair da vida
profissionalizou nas universidades e, em acadêmica: uma de suas últimas atividades
seguida, trabalhou a vida toda no meio ur- como professor foi a participação na comis-
bano em cargos técnicos da administração são para avaliar os cursos de agronomia da
pública. Manelito aprendeu a ler em aulas UFPB – quando exigiu separar cursos espe-
na fazenda e com indicações do pai, que cíficos para pecuária. Segundo a memória
gostava dos livros da Euclides da Cunha e de Manelito, essa saída do meio acadêmico
que, aos dez anos de idade, foi morar em foi simultânea a um momento dramático, o
internatos pra fazer o ginásio no Colégio falecimento do pai: dai foi quando tomou a
Américo Batista, em Recife-PE, seguido do decisão definitiva na sua “volta ao sertão”
curso de engenharia na Universidade Fe- para morar na Fazenda Carnaúba e se dedi-
deral de Pernambuco, na década de 1950. car ao conhecimento e experimentação “na
Tornando-se professor de hidrologia da prática”, o que nas suas palavras, é uma
UFPB, Manelito também exerceu cargos na postura de evitar modismos vindo de tec-
Superintendência de Desenvolvimento do nocratas do “sul do Brasil” e sem interme-
Nordeste (SUDENE), antes de 1964, e en- diação de universidade. Afirmando conhe-
cabeçou a criação da Companhia de Abas- cer como sertanejo a pecuária e as secas,
tecimento e Gestão de Esgoto da Paraíba Manelito tenta provar que pode ser viável
(CAGEPA). Em entrevista, ao falar sobre uma produção de grande porte de bovinos,
sua experiência na universidade, Manelito caprinos e ovinos no semiárido Nordestino.
A matéria de seis páginas traz um perfil portagem fala do sucesso, desde 1942, das
de Joãozito – um mestre sertanejo da caa- fazendas Trindade e Várzea dos Gatos com
tinga que desistiu de estudar para padre e o gado Nelore e a recuperação das cabras
até de casar por gostar de ser “catingueiro da raça Canindé – fruto de uma adaptação
mesmo (...) viver no meio do gado” (GLOBO de séculos ao clima e de cruzamentos das
RURAL, 1988, p. 53). Em seguida, a re- cabras alpinas trazidas pelos portugueses
8. Capacidade de rapidez nos ciclos reprodutivos e leiteiros calculada pelo número de filhotes nascidos por
fêmea durante um período de tempo.
15. Os caprinos foram objeto de uma batalha interna no campo dos pecuaristas, expressa nos editoriais,
crônicas e reportagens da Agropecuária Tropical entre os anos 1980-1990. O campo de disputas se divi-
diu entre um grupo de criadores que não defendia os caprinos e ovinos, afirmando que eles são “uma mal-
dição” e que aceleram a desertificação – a exemplo do pernambucano José Nivaldo (1980) em artigo da
Agropecuária Tropical de janeiro de 1980 –, e outra ala “ferrenha” defensora da criação de caprinos e ovi-
nos, apoiados em artistas e intelectuais – como Ariano Suassuna na Paraíba, e Elomar Figueira de Mello
na Bahia –, e pecuaristas com o perfil similar ao de Manuel Dantas Vilar e Joãozito Andrade. As movi-
mentações do “tabuleiro” desse jogo de disputas podem ser vista na forma como os caprinos e ovinos vão
ganhando espaço em publicidade de leilões, crônicas e reportagens de edições da Agropecuária Tropical
até a criação de uma publicação especializada, como a revista O Berro no final da década de 1980.
16. Essa combinação entre tradição/passado/ideia de missão sertaneja junto à modernização técnica das
fazendas se aproxima do que algumas pesquisas recentes chamam de “agronegócio sertanejo” (MAIA;
CUNHA, 2017), para tentar explicar as dinâmicas de modernização de grandes propriedades rurais na re-
gião do sertão paraibano.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Elite pecuarista. Caprinocultura. Biografia. Landlord elites. Goat breed. Biography.