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MESTRES SERTANEJOS E OS SANTUÁRIOS DAS RAÇAS

artigo
NATIVAS: BIOGRAFIAS E RECURSOS DE PODER ENTRE
GRANDES PECUARISTAS DO NORDESTE1

MASTERS OF DROUGHTS:
BIOGRAPHIES AND DOMINANCE STRATEGIES AMONG
BREEDER ELITES OF THE BRAZILIAN NORTHEAST

Valdênio Freitas Meneses*

Introdução família por iniciativas que agregaram va-


lor à pecuária brasileira. Exemplo disso é a
Em canais de TV voltados ao agrone- importação de animais da Índia e o cruza-
gócio, sites de associações de criadores e mento e purificação de linhagens de raças
revistas especializadas em pecuária de elite zebuínas (Bos indicus) – como a Sindi, Gir,
do Brasil é comum deparar-se com a apre- Guzerá, Kangayan e o Nelore. Os elogios
sentação de nomes e biografias “notáveis”. ao pioneirismo desses grandes pecuaristas
Além de atores, cantores, jogadores de fu- frequentemente acompanham uma crítica à
tebol e outros famosos que têm a pecuá- burocracia estatal e seus obstáculos como
ria como hobby, há recorrente referência a impostos e outras limitações que “atra-
alguns criadores como “pais fundadores” palham aqueles que têm como vocação e
ou patronos da pecuária. Fotografados nas missão tornar uma nação bem alimentada”
matérias portando chapéus, bengalas e bo- (REVISTA DO SINDI, 2010, p. 5). Deslocan-
tas, tendo em geral como plano de fundo do-se do meio pecuarista do Centro-Oeste
a casa sede da fazenda e os animais, eles e Sudeste, centrado em exposições anuais
são apresentados como netos e/ou filhos de como as de Uberaba-MG, e indo para o
pecuaristas – com sobrenomes que ecoam semiárido nordestino, a apresentação dos
na política eleitoral –, que tiveram o mé- pecuaristas ganha adjetivos específicos:
rito de fazer reconhecidas as fazendas da são os “mestres sertanejos”, “mestres da

* Doutorando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e So-


ciedade – CPDA/UFRRJ (Rio de Janeiro/RJ/BR). valdeniofmeneses@gmail.com.
1. A primeira versão desse artigo foi apresentada durante o 40º Encontro Anual da ANPOCS, de 24-28 de outubro
de 2016, no ST 14 Espaços rurais no Brasil contemporâneo: questões teóricas e novos temas de pesquisa.

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caatinga” (DINHEIRO RURAL, 2011, p.1) ou elite para tentar transformar e, ao mesmo
nos “camelôs das secas”, “bruxos do ser- tempo, conservar um patrimônio fundiário
tão”, “cabras da peste” – adjetivos dado em e simbólico. Trata-se, portanto, de recon-
uma reportagem da Revista O Berro (EU- versões sociais, perspectiva trabalhada em
FLAVIO, 2013). Sem apoio de universidade pesquisas entre diferentes elites sociais se-
ou governo, estes pecuaristas conseguiram guindo o legado de Pierre Bourdieu (2015,
ter sucesso como empresário rural no ser- 2016) e melhor desenvolvida em trabalhos
tão nordestino provando, “na prática”, que como os de Monique Saint- Martin (1992,
a estiagem não é obstáculo, mas algo a ser 1995, 2011, 2012), e no Brasil por Afrâ-
aproveitado segundo combinação de for- nio Garcia Jr. (1988, 1989, 2007, 2011).
mas de criação dos animais com as espe- Observar e analisar esse tipo de estratégia
cificidades naturais. Outra particularidade social incide em algumas questões: quais
nesse perfil do “patrono” pecuarista nor- condições sociais tornam possíveis essas
destino é o investimento, não apenas nos crenças em torno de “patronos” pecua-
bovinos, mas também nos caprinos e ovi- ristas do Nordeste? Que recursos são mo-
nos: experimentos genéticos, cruzamentos bilizados para produzir essa aura mística
e até salvação da extinção de raças nativas dos “mestres sertanejos”? Guiado nessas
como Canindé, Moxotó, Azul Serrana, Ca- questões o eixo da discussão tenta-se com-
riri, dentre outras, caracterizadas pelo po- preender até que ponto a imagem pública
tencial para produção de carne, leite e cou- desses pecuaristas “notáveis” desenha um
ro com a vegetação e o ciclo de secas da re- quadro de posicionamentos políticos mais
gião semiárida. Ainda sobre esse trabalho, amplos de uma elite: entre uma afirmação
algumas reportagens colocam os “mestres empresarial e moderna, mas também sob
sertanejos” como responsáveis diretos por valores que se firmam em uma antiguidade
fazer com que a cabra e a ovelha deixassem e distinção ao impor uma autoimagem ser-
de ser vistas como “a pecuária dos pobres” taneja, regionalista e predominantemente
(GLOBO RURAL, 1988, p. 56). masculina, identificada com a propriedade
Apoiado nessas percepções iniciais, da terra, a pecuária e as secas. Em torno
proponho uma análise centrada na bio- desse argumento está o trabalho político
grafia de dois pecuaristas proprietários de de imposição e naturalização de uma cren-
fazendas tidas como referência em pecuá- ça na vocação rural do Brasil como “celei-
ria e convivência com as secas no Brasil: o ro do mundo”, o que, na região semiárida
Sr. Manoel Dantas Vilar Filho “Manelito” do Nordeste, implica em uma elite que se
da Fazenda Carnaúba, em Taperoá-PB, e apresenta como descendente de uma “so-
o Sr. João Batista de Andrade “Joãozito” ciedade do couro” dos criadores de gado,
da Várzea dos Gatos, em Jeremoabo-BA. A desde os tempos coloniais que ocuparam
partir de como são narradas as trajetórias o sertão na “pisada do gado”. Dentro das
biográficas desses personagens, é possí- estratégias de reconversão e imposição de
vel evidenciar alguns dos valores sociais, poder o pertencimento a essa “linhagem”
práticas, estilos de vida e visões de mun- justificaria autoridade e legitimidade dessa
do que circulam em uma fração da elite elite para impor um modelo de pecuária e
pecuarista do interior do Nordeste. Tam- convivência com as secas politicamente fa-
bém é viável refletir sobre estratégias dessa vorável à grande propriedade do Nordeste.

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As atividades de pesquisa que funda- Acompanham a análise dessas fontes
mentam este trabalho fazem parte de um dados elaborados durante trabalho de cam-
projeto de doutorado sobre reconversões po quando estive nas fazendas: no final de
sociais de elites pecuaristas e seus investi- abril de 2016, marquei uma visita com os
mentos na caprinocultura na região do Ca- proprietários da fazenda Várzea dos Gatos,
riri da Paraíba, iniciado em 2014 no Progra- em Jeremoabo; e em maio de 2016, durante
ma de Pós-Graduação de Ciências Sociais exposições e leilões de animais na fazenda
em Agricultura, Desenvolvimento e Socie- Carnaúba, em Taperoá. Consegui registrar
dade da Universidade Federal Rural do Rio nessas idas às fazendas um conjunto de en-
de Janeiro (CPDA/UFRRJ). O artigo é uma trevistas das quais são utilizadas aqui uma
tentativa de ampliar o olhar da pesquisa de com o Sr. “Manelito” Dantas Vilar, e outras
doutorado para o perfil dos pecuaristas de duas com os atuais proprietários da Várzea
outros estados que abrangem a área do se- dos Gatos, os Srs. Otacilio Júnior e Ricar-
miárido nordestino. Nesta proposta, foram do Andrade, herdeiros e administradores do
selecionadas as seguintes fontes: legado do Sr. “Joãozito” Andrade, falecido
- Reportagens: edições das revistas Glo- em 2011.
bo Rural (1988), Cabra e Ovelha (março a Na primeira parte do texto apresento
maio 2016), Dinheiro Rural (2011), Paraí- considerações teóricas e metodológicas so-
ba Rural (2015) e publicações ligadas ao bre minha experiência de pesquisa nas fa-
selo Agropecuária Tropical disponíveis no zendas e o aprendizado que tive de estar
arquivo digital do Centro de Referência da diante de um universo social que fala um
Pecuária Brasileira – Zebu (CRPBZ)2, Paraí- “idioma” pecuarista. Tento também situar
ba Pecuária e Agropecuária Tropical (1976- o leitor em um processo social recente, de
2010) e O Berro (1995-2003); transformações sociais no meio rural-ur-
- Autobiografias e memórias dos bano, que colocou a elite pecuarista do
“mestres sertanejos”: o livro Joãozito An- Nordeste e sua distinção social sob risco de
drade: trajetória e vocação de um sertanejo desclassificação. O tópico seguinte do arti-
(2010) e as crônicas biográficas de Manoel go detalha quais as linhas narrativas que
Dantas Vilar Filho (2001a, 2001b, 2001c, são produzidas textual e imageticamente
2004) publicadas nas revistas citadas aci- para as biografias dos “mestres sertanejos”:
ma e no site da Fundação Joaquim Nabuco a memória bucólica de meninos que tive-
(2001-2006); ram uma infância junto aos currais e aos
- Catálogos de leilões e exposições: Fei- vaqueiros que, mesmo passando um perío-
ra de Agronegócios da Paraíba (2015); Dia do fora das fazendas para estudar na ci-
D Empório Fazenda Carnaúba (2013; 2015); dade, acabam por abdicar de suas carreiras
Material publicitário da Associação Brasilei- profissionais para, enfim, cumprir um cha-
ra de Criadores de Zebu (ABCZ) e Associação mado a uma vocação rural e transformar a
Brasileira de Criadores de Sindi (ABCSindi). antiga fazenda dos pais e avós em referên-

2. A maior parte do acervo das revistas Agropecuária Tropical e O Berro podem ser visualizadas no arqui-
vo virtual do site da ABCZ <http://www.crpbz.org.br/Revistas/ListaRevistas/6-Revista-Agropecuaria-Tro-
pical-Memorias-do-Zebu?page=1>

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cia na pecuária. Na terceira e última parte, sociais da pesquisa que, por sua vez, dire-
após detalhar as peças desse mosaico bio- cionaram algumas escolhas teóricas e me-
gráfico montado pelos próprios pecuaris- todológicas. A primeira dessas condições
tas, faço considerações gerais sobre como trata da observação e controle de impres-
e quais valores sociais, visões de mundo e sões face a face nas interações e diálogos,
quais posicionamentos políticos são legi- gravados ou não, no trabalho de campo nas
timados no meio dos grandes pecuaristas fazendas. Diante dessas interações sociais,
do Nordeste e suas afinidades mais amplas demarca-se um “idioma” feito não apenas
com as visões de mundo da elite do agro- por nomes de raças, conceitos de zootec-
negócio no Brasil. nia e veterinária e procedimentos de cria-
ção no meio da grande pecuária, mas por
1. O “idioma” pecuarista de uma elite e as disposições corporais, formas de falar e se
suas narrativas biográficas apresentar socialmente. Tive de apreender
traços desse “linguajar” e treinar o olhar
Ao fazer pesquisa entre elites sociais é sociológico para transitar e compreender
preciso refletir quais as negociações e ri- alguns traços básicos dos recursos mate-
tos de entrada feitos pelo sociólogo ao se riais e simbólicos que agregam pessoas ao
inserir em um grupo que se afirma como mundo dos grandes pecuaristas. Por esses
socialmente superior, fator que influencia aprendizados na pesquisa de campo, parti-
no vínculo pesquisador-pesquisados. Reco- lho com as observações que remetem a um
nhecendo que “os modos de fazer e escre- trabalho clássico das ciências sociais e que
ver sobre as pesquisas são inseparáveis dos abrem a tese de Natacha Leal (2014) sobre
objetos de sua reflexão” (MELUCCI, 2005, elites de bovinos e elites de criadores no
p. 9) trabalhar com elites tem implicações circuito de Uberaba-MG. Guardadas as di-
epistemológicas específicas diante da im- ferenças, ao fazer pesquisa junto a estratos
posição dirigida ao pesquisador, seja direta sociais da pecuária de elite brasileira é qua-
ou velada, de símbolos de poder que dão se inevitável não recordar de passagens que
coesão e distinção a um grupo social. Essa explicam a relação do gado com a explica-
é uma das fontes de um “mal-estar deon- ção de quase todos os fatos e sentidos da
tológico”, segundo pesquisadores da alta vida social entre os Nuer da África Central,
burguesia francesa como Michel Pinçon e descrita pelo antropólogo Evans-Pritchard
Monique Pinçon-Charlot (2007): por exem- (1971):
plo, na situação da entrevista no espaço das
elites (mansões, fazendas, escritórios, cas- Qualquer assunto que começasse, e de qual-
telos, clubes etc.) é comum um poder sim- quer ângulo que o abordasse, logo estaría-
bólico – que se exerce naturalizado – na mos falando de vacas e bois, vitelas e novi-
exposição de objetos “sagrados” junto a fa- lhos, carneiros e ovelhas, bodes e cabras, be-
las ou gestos que demonstram capitais cul- zerros e cabritos. Já mencionei que essa ob-
turais e sociais mobilizados em tentativas sessão – pois é isso que parece para um es-
de convencimento e controle da pesquisa. tranho – deve-se não somente ao grande va-
Levando em conta esses fatores tive de lor econômico do gado, mas também ao fa-
lapidar certo grau de reflexividade duran- to de que ele constitui o vínculo de numero-
te a escrita desse artigo segundo condições sos relacionamentos sociais. (...) seu idioma

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social é um idioma bovino. (EVANS PRIT- miza uma pecuária empresarial de alto in-
CHARD, 1978, p. 27) vestimento zootécnico e adaptada às secas.
Passam por esses valores e estilos de vida,
Com suas ressalvas comparativas ao como o gosto pela música ligada à “pega
caso dos Nuer, o “idioma” do mundo da eli- de boi” e vaquejada, à proximidade políti-
te pecuarista aqui analisada é inseparável ca com o ethos empresarial das associações
da evocação saudosa de um passado cen- patronais do agronegócio, ao ingresso em
tenário das fazendas do interior do Nordes- cursos de agronomia e veterinária das gera-
te: um insistente chamado a uma glória da ções mais jovens. Aqui também está o apre-
“civilização do couro”, narrativa protagoni- ço por conservar a arquitetura colonial da
zada por desbravadores do sertão colonial, fazenda3 junto à montagem de fotografias,
fundadores das fazendas, que abdicaram do arquivos e museus particulares na fazenda
litoral e, espontaneamente, “na pisada do para expor documentos e objetos, como os
gado” adentraram os sertões do Brasil co- centenários ferros de gado da família.
lônia. Entre a elite pecuarista do Nordeste Uma outra trilha teórica e metodológica
circula a visão de que a verdadeira brasili- desse artigo trata da leitura das fontes es-
dade ou “sertanidade” seria essa que remete critas – como livros de biografias, memó-
às centenárias fazendas de gado, símbolos rias e genealogias de grandes proprietários
de uma sociedade de vaqueiros e fazendei- e suas famílias. O olhar sociológico sobre
ros espalhados em uma vastidão de terras e esse material de fontes foi feito a partir do
com mais liberdade que a relação senhores e contraponto entre dois referenciais: de Ga-
escravos da zona litorânea dos engenhos de briele Rosenthal (2006) e Pierre Bourdieu
cana de açúcar. Se do ponto de vista acadê- (2006). De uma forma sucinta esses dois
mico, podem-se considerar já superadas es- nomes encabeçam tradições sociológicas4,
sas narrativas historiográficas – desmonta- uma alemã e outra francesa e seus respec-
das desde o trabalho de historiadores como tivos direcionamentos para estudos de re-
Maria Yeda Linhares (1996) e Francisco construção e análise de biografias e trajetó-
Carlos Teixeira da Silva (1997) –, do pon- rias de vida. Um ponto comum dessas duas
to de vista do recorte deste artigo, o fun- abordagens está em fazer perceber o quan-
damental é indagar até que ponto as elites to os fatos aleatórios de uma trajetória de
pecuaristas, ao evocarem essas narrativas vida são organizados sob tendências gerais
do passado em suas biografias, memórias que classificam e selecionam o que narrar
escritas e artigos de revistas de associações (ou silenciar) sobre as experiências vividas.
de criadores expõem padrões valorativos Contudo, Pierre Bourdieu (2006, p. 185) ao
e percepções comuns do seu lugar social: exigir uma ruptura com o senso comum
um passado rural dos descendentes de uma (doxa), trata a organização da vida em “um
elite “sertaneja resistente” mas que dina- todo coerente e orientado” como ilusões

3. Para uma análise rica sobre as variações dos padrões de arquitetura colonial das antigas fazendas e ri-
beiras da região Nordeste ver o livro Um sertão entre tantos outros de Nathália Diniz (2015).
4. Para uma revisão sobre tradições, pesquisas e abordagens sobre o uso de relatos orais e biográficos ver
Narrativas e pesquisa biográfica na sociologia brasileira de Santos, Oliveira e Susin (2014).

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biográficas. Nessa abordagem do sociólogo entrelaçam saber e poder, orientados não
francês, uma reconstrução sociológica das só para fazer visíveis lembranças mas tam-
origens e recursos sociais que condicionam bém para marcar zonas de esquecimentos
recursos textuais de biografias é vista com do passado (HEYMANN, 2013).
desconfiança, pois o pesquisador corre risco Complementando essa reflexão, há uma
constante de referendar o “senso comum” outra proposta de análise de biografias fei-
ao abordar narrativas feitas de “criação ar- ta a respeito de grandes tradições: a que
tificial de sentidos” (BOURDIEU, 2006, p. Norbert Elias (1995) aciona ao analisar a
185). Essas ressalvas de Bourdieu acabam vida de Wolfgang Amadeus Mozart através
por colocar um grau valorativo caro à aná- das interdependências e processos sociais
lise de fontes biográficas: se, de um lado, entre mudanças na individualidade – no
atesta a necessária operação sociológica de caso da posição social de artista –, e trans-
uma ruptura com uma doxa que represen- formações mais amplas nas relações de po-
ta o vivido como linear, do outro, sugere der da vida social da corte vienense no fim
uma leitura, ou até o descarte, dos relatos do século XVIII. É nesse equilíbrio de for-
biográficos, como se neles o sociólogo ti- ças que Elias (1995) analisa a trajetória de
vesse de distinguir e purificar “verdades Mozart, através das suas correspondências
ou falsidades”. Nesse sentido, a proposta com os parentes e na produção musical de
de Gabriele Rosenthal (2006) fornece me- um intenso gênio outsider, e de como esse
lhores sugestões para o trato de uma fonte material documental expressa tensões in-
biográfica: em vez de assumir uma atitude dividuais no envolvimento em interdepen-
destrutiva das biografias, manuseando-as dências sociais e relações de poder que o
intelectualmente como um fato meramen- colocavam em uma posição inferior na so-
te ilusório, a autora chama atenção para ciedade de corte vienense – onde a posição
relações textuais internas entre o “eu” e o de artista autônomo não era possível.
“mundo”, linearidades e fatores endógenos A consulta a essas abordagens socioló-
que dão credibilidade e força de verdade ao gicas sobre o constructo biográfico torna
texto biográfico. Dialogando nas tradições compreensíveis alguns dos recursos sociais
intelectuais alemãs com a fenomenologia e comuns manejados textualmente em li-
a psicologia, Rosenhtal (2006) afirma que vros, crônicas e memórias de pessoas que
analisar uma história de uma vida requer têm origem em elites sociais: exemplo dis-
uma atitude analítica que considere cada so está no uso de expressões antecipatórias
parte segundo significação funcional para como “já nessa época” ou “desde então”,
o todo (Gestalt).Todas as tipificações (in- para afirmar supostos “destinos” e voca-
fância, adolescência, adulto, velhice etc.) ções “naturais” que os interlocutores acre-
podem ser fracionadas, desde que se consi- ditam que foram apenas sendo despertados
dere seu funcionamento na holística de uma na sua trajetória de vida. Considero que
fonte biográfica, ou seja, de como ela “fun- esses roteiros biográficos, amortizados de
ciona” no todo e emite significados e tenta- conflitos sociais e feitos a posteriori dos
tivas de convencimento. Sob essa perspec- fatos, não são feitos de forma aleatória,
tiva, os textos biográficos ou um arquivo mas interdependentes com as tendências
pessoal de objetos e fotos, não são “provas” de transformações nas relações de poder
de fatos pretéritos mas sim constructos que no meio dos grandes pecuaristas do Nor-

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deste, e do Brasil. Através da construção da reciprocidades desiguais de bens, compa-
imagem dos “notáveis” desse meio social drio, parentesco, amizade e também amea-
há uma tendência dos textos para tentar ças com uso de violência física e intimidade
convencer o leitor para afirmação de que sexual (RIBEIRO, 2011, p. 398).
essas pessoas têm uma vocação, que antes Essa lógica de relações sociais e do-
de profissional é afetiva e de “vivência ser- minação foi sendo desmontada através de
taneja”, com o meio rural e a atividade da vários fatores: intensificação da migração,
pecuária no Nordeste. Deve-se tratar teó- períodos de secas, diminuição e corte de
rica e metodologicamente tais afirmativas financiamento de crédito rural nos anos
não como maniqueísmos, mas como “ver- 1980 até o governo Collor e crises de mer-
dades” construídas, crenças que são impos- cado e pragas nos produtos de exportação
tas e plenamente aceitas pelos autores das (como o algodão da Paraíba) além de outras
biografias e, principalmente, pela elite pe- tendências na década de 1990-2000 que
cuarista, onde tais autores estão inseridos: iriam potencializar um desprestígio da elite
é para esse público, antes de mais nada, que pecuarista: as desapropriações de terras de
as biografias circulam e é nesse lugar social antigas fazendas para construção de assen-
que emanam narrativas de poder e posições tamentos rurais (SILVA, 2012); o avanço
de prestígio dos biografados. dos direitos trabalhistas e da previdência
Ainda nessas fontes biográficas, são para os trabalhadores rurais e a presença de
perceptíveis os olhares individualizados de uma rede de políticas públicas para crédito
processos sociais recentes de transformação rural, programas de transferência de renda
no meio rural nordestino que ameaçaram de combate à fome, entre outras melhoras
o prestígio da elite pecuarista. O reconhe- no poder aquisitivo (BACELAR, 2015). Essa
cimento coletivo de que é “preciso mudar mudança nas desigualdades sociais e aces-
para permanecer igual”5 paira sobre essa so a direitos dos mais pobres fez com que
elite, que pelo menos nas últimas três dé- a dominação da elite pecuarista dos fazen-
cadas, sofreu uma desclassificação dos seus deiros sofresse desmonte na sua legitimi-
principais recursos distintivos, assentados dade, processo esse que teve similaridades
em valores construídos sobre a posse da com o que foi percebido em pesquisas sobre
terra, a pecuária e as secas. Mais que uma a transição dos engenhos para usinas na
crise econômica, houve fissuras na ordem área canavieira do Nordeste entre os anos
social em que agregados se “sujeitavam” 1970 e 1980, feitas por Ligia Sigaud (2004)
aos fazendeiros “patrões” dentro de pres- e Afrânio García Jr. (1989).
tações e compromissos regidas por códigos Com status social “arranhado”, a elite
de conduta e hierarquia que, no geral, pou- pecuarista se tornou alvo de intenso arse-
co incluíam ou não eram decisivos os ter- nal de críticas políticas e acadêmicas. Des-
mos salariais e jurídicos – se baseavam em de pelo menos inicio da década de 1980 a

5. Retirada do filme Il Gattopardo, de Luchino Visconti (1963), baseado no livro de Tomasi de Lampedu-
sa, a frase “é preciso que tudo mude para que tudo permaneça igual” é o lema de um dos personagens da
nobreza siciliana que se vê decadente diante da necessidade de fazer alianças com a ascendente burgue-
sia na Itália unificada do final do século XIX.

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retórica de idealização dos heróis sertane- “sem abandono total das antigas posições
jos da civilização do couro, autoimagem da nem entrega total as novas” (SAINT-MAR-
elite pecuarista, é atacada por movimentos TIN, 2012, p. 73). São estratégias de recon-
sociais, pastorais e de críticas acadêmicas versões sociais, por excelência, devido a
mais à esquerda: nessa visão os fazendei- tensão de se engajar em transformações, ao
ros pecuaristas seriam representantes, por mesmo tempo que tenta conservar, manter
excelência, do “atraso” das oligarquias e do ou maximizar uma coesão, um sentimen-
latifúndio que agrava os problemas da mi- to coletivo de superioridade que dê condi-
séria e das secas, travando possibilidades ções mínimas de pertencimento a um grupo
de mudanças no sertão do Nordeste (MAIA, que acredita ser superior, ou seja, dotado
2014). Essa linguagem de luta contra o se- de uma história social, particular e distinta
tor dos grandes pecuaristas pode ser resu- (SAINT-MARTIN, 2002).
mida em uma reflexão que abre um livro da Dentro das ciências sociais no Brasil, os
Pastoral da Terra, que acusa a elite proprie- estudos de Afrânio Garcia Jr. (1988, 1989,
tária rural do Nordeste de genocídio devi- 2007, 2011) foram um dos primeiros a mo-
do a alta mortalidade infantil durante uma bilizar empiricamente o conceito de recon-
seca nos anos de 1979-1984. Assim como versões para refletir sobre a transforma-
o ferro na pele do gado, esses movimentos ção de elites agrárias e seus descendentes.
sociais firmam uma “marca” sobre a elite Garcia Jr. analisa, como caso específico, o
pecuarista: “O fazendeiro [que] come gado declínio dos senhores de engenhos e das
que come capim- terra-folhas de algodão relações personalizadas de moradia e tra-
que (...) que come forças do trabalhador que balho na plantantion, intensificada entre
é comido pelo fazendeiro (...)” (CPT - IBA- as décadas de 1970-1980 em que herdeiros
SE, 1986, p.50). das elites canavieiras internalizam códigos
Diante desse cenário, supondo que gru- de trabalho pelas leis trabalhistas e mone-
pos sociais, principalmente elites, não “des- tarização: lógicas estritamente capitalistas
mancham no ar”, quais seriam as estraté- (GARCIA JR., 1989, p. 214). Nessas recon-
gias de uma fração dos antigos proprietá- versões, sempre há o risco de falhas: de-
rios pecuaristas – a dos que não abdicaram pendendo do tempo e da estratégia, alguns
de posse da terra e da prática da pecuária proprietários podem ser vistos como atados
– para lidar com as transformações que demais a “coisas do passado” em relação
tornam seu passado e recursos distintivos aos segmentos já reconvertidos com suces-
cada vez mais distantes e desqualificados? so – reconversões podem ter insucessos, de-
É essa a questão a ser debatida ao se debru- pendendo do trânsito temporal/espacial de
çar nas narrativas dos “mestres sertanejos” gerações das famílias. Isso é visível na tra-
que circunscrevem seus esforços biográfi- jetória biográfica de intelectuais e políticos
cos no que pode chamar de estratégias de brasileiros que, mesmo produzindo “filhos
reconversões sociais da elite que fazem notáveis”, algumas elites “falharam”, ao
parte: movimentos que se vêem na iminên- menos em nível local, em manter e recon-
cia de mudar para não perder prestígio mas verter as condições de reprodução social de
que também não podem, a custo de per- um status. Em um trabalho sobre as recon-
der status enquanto elite, fazer uma total versões sociais nas biografias de estadistas
conversão dos bens materiais e simbólicos e políticos no primeiro governo Vargas,

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José Américo e Juarez Távora, Garcia Jr. cidas na imprensa do meio pecuarista como
(2007) analisa como descendentes de elites “santuários das raças nativas”.
canavieiras e pecuaristas, respectivamente
na Paraíba e Ceará, conseguiram ingressar 2.1 Meninos sertanejos: uma infância na fa-
nos ministérios e altos cargos do governo zenda e o passado da “civilização do couro”
Vargas no Estado Novo: essa ascensão na-
cional teve custo de alianças matrimoniais Em texto publicado na revista Agrope-
e políticas junto ao fato de suas famílias cuária Tropical (setembro de 2004), e re-
sofrerem localmente declínio de status e produzido na seção “Xerocentelha” no site
prestígio associados à propriedade da terra, da Fundação Joaquim Nabuco – espaço
cana-de-açúcar, gado e algodão. virtual cedido pelo primo e pesquisador da
Fundação, o engenheiro João Suassuna –,
2. Vidas secas, vidas pecuaristas “Manelito” Dantas Vilar rememora sobre
como o seu pai, Manoel Dantas Vilar, foi
Incorporo as reflexões dessa literatu- um dos primeiros pecuaristas do Nordeste
ra sobre biografias e reconversões sociais a criar o gado Guzerá. Os animais foram
para visualizar como a construção política trazidos de trem e “tangidos” por estrada
e biográfica dos mestres sertanejos é traça- de terra, em 1930, da fazenda Itaoca, em
da segundo as seguintes linhas narrativas: Cantagalo-RJ, local do rebanho selecio-
a) cenas de uma infância rural e sertaneja nado pelos filhos do famoso barão João
e afirmação do passado de glória da “civi- de Abreu6, até a Fazenda Carnaúba dos
lização do couro” ; b) a escolha por morar Dantas Vilar e Suassuna, em Taperoá. A
na fazenda: uma “volta ao campo” dentre crônica intitulada “O bom começo levou
rupturas ou desvios de uma trajetória pro- o guzerá” relembra a infância de Manelito
fissional urbana; c) a consagração de toda ouvindo esses fatos:
uma vida a uma vocação tanto “pessoal”
como da região do semiárido: o trabalho (...) Esse gado chegou aqui, tangido no pé,
dedicado a pecuária o que, no caso especí- desde a Bahia. Ainda hoje, sei da minha in-
fico dos caprinos e ovinos, fez com que as quietude nesse dia, quando [meu pai] falou
antigas fazendas da família fossem conhe- da chegada iminente, repetindo que Guze-

6. Segundo perfil no site da ABCZ, “João de Abreu Júnior nasceu em Portugal, na Ilha de Madeira, em 29
de maio de 1869, filho de João de Abreu e de D. Maria de Jesus Freitas. Quando tinha oito anos imigrou
para o Brasil, acompanhando um tio. Era de família humilde que sempre lidara com gado e pequenas cons-
truções em geral. Como todo imigrante, começou a vida dando duro no trabalho – aprendeu o ofício de
pedreiro, cantaria e alvenaria. Aos poucos, absorveu os bons ventos advindos do impulso dado pela Re-
pública Velha às obras de infraestrutura nos centros urbanos. A partir de 1888 a escravidão foi abolida,
onde os serviços nas fazendas passaram a ser remunerados. Em meio às dificuldades, a lavoura de café en-
trou em crise e o valor das propriedades rurais caiu. O ensejo, no entanto, tornou-se favorável àqueles que
vieram para o Brasil em busca de oportunidades. João de Abreu conseguiu adquirir uma pequena fazen-
da onde começou a vender madeira e dedicar-se à pecuária comprando animais para abate e revendendo
-os aos abatedores. Em pouco tempo, destacou-se nos negócios de compra e venda de gado nas principais
capitais brasileiras”.

Mestres sertanejos e os santuários das raças 261


rá era o bom, e o melhor era o JA [João de de barba e cabelos bem brancos, dos mitos
Abreu], porque dava leite e era puro (...) Meu do meu mundo primitivo, no escritório dos
pai começou a criar zebus em 1934, antes de sábados, na cidade, onde eu ia escutar a ad-
eu nascer. Vivi, desde pequeno, num curral ministração e as conversas.
onde leite, João de Abreu, Cantagalo, seca,
Guzerá eram assuntos do dia-a-dia e meu Quando vem o leite da Carnaúba, o queijo
mundo mítico de menino, povoado dessas cresce...” – Maria Cajarana, queijeira serta-
imagens (...). (VILAR, 2004, p.12) neja, despejando a coalhada já cozida em lei-
te, na urupema grande da panela de barro.
Outras cenas que marcaram as lembran- A gente esperando escorrer para mordiscar
ças da infância de Manelito foram ensina- pedaços, no “quarto do queijo”, da casa da
mentos e frases ditas por parentes, traba- rua.” (VILAR, 2004, p. 13)
lhadores, vaqueiros e os “profetas da chu-
va” que circulavam durante sua infância na Já o pecuarista Joãozito Andrade narra
Fazenda Carnaúba: sua vida como privilegiada por ter nasci-
do no “sertão de cima”, na caatinga baiana
“Vaca Guzerá só parte, quando o bezerro no- às margens do “lendário rio Vasa-Barris”,
vo está junto. É para defender ele. Tenha me- em junho de 1920 (ANDRADE, 2010, p.
do não!” – Cazuza Emiliano (1944), vaquei- IV). Essa origem e o nome do rio evocam
ro, protegendo- me entre a porteira e uma a infância ouvindo as conversas dos pais,
vaca recém parida. Eu com o caneco de asa avós e tios sobre política local, pecuária e a
que ganhara, para aprender a tirar leite. Guerra de Canudos, que teve batalhas que
ocorreram próximas as fazendas da famí-
Espere por aquela, essa daqui tem o leite du- lia. E no capítulo “Das origens a afirmação
ro e o peito grosso. Da vaca azulada é macio como pecuarista” Joãozito – o oitavo de
e cabe na sua mão; vai encher seu caneco.” – nove filhos – descreve a vida na Fazenda
Cazuza Emiliano (1944) Sitio Novo onde moravam os pais, o fa-
zendeiro Manoel Vieira de Andrade casa-
- Oh! vacas bonitas!” – Minha mãe (1945), do com Maria Josefina de Carvalho, filha
no terraço, vendo passar um grupo no pátio, do coronel Antônio Lourenço Carvalho de
enquanto fazia um curativo no dedão topado Jeremoabo. Os primeiros anos de vida de
do meu pé... Joãozito são descritos da seguinte forma:
A gente fala e elas vão. Essas outras, fi-
cam teimando, querendo voltar para comer Cresci cultivando o interesse de ir ao curral
mais.” – Seu Chico Clementino (1945), va- diariamente, ao cantar do galo aspirando o
queiro, apontando as Guzerás, ensinando- perfume silvestre da flor de quixabeira (...) e
me a tanger o gado pro curral após bebida ouvindo o cantar das aves ao alvorecer. Pre-
no açude, eu ao lado, escanchado e fagueiro, senciava o manejo do gado, a ordenha e con-
num jumento em osso. versava com Seu Manoel Dias, vaqueiro fa-
Esses chifres, que deixam o gado até mais moso, companhia agradável e grande amigo
bonito, têm que ter serventia. Se não, a Na- (...) Daí então quando chegava em casa trata-
tureza tinha tirado eles.” – Seu Manoel Da- va de projetar a minha fazenda de brinque-
mião, Mestre de Açude e Profeta de Chuva, do (...) utilizava a minha própria imaginação:

262 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


gado de icó branco e vaqueiro de caixa de memórias escritas por membros de sua fa-
abelha (...). (ANDRADE, 2010, p. 26) mília, como o trabalho de Dantas e Dan-
tas (2008). Nelas, é mencionado o nome de
Outra memória de infância relatada por Bento da Costa Vilar, patriarca da famí-
Joãozito é a do pai negociando gado com lia Vilar e tido como desbravador que em
outros grandes produtores da Bahia: 1782 fundou fazendas no sertão dos Cariris
Velhos. As antigas datas de terra de Ben-
A noite na varanda da casa, sob a luz do lu- to Vilar incluíam os cerca de 900 hectares
ar com a cabeça no colo da minha queri- da Fazenda Carnaúba e 4000 hectares da
da mãe (...) eu ouvia atentamente as histó- Fazenda Pau Leite, da família Dantas Vilar.
rias que papai contava das negociações que Dentro dessa história da família e da fa-
realizava com os fazendeiros do Recôncavo zenda, Manelito coloca logo nas primeiras
[Baiano]. Falava sobre o gado Zebu que eles frases da entrevista que registrou comigo
criavam e de um touro Nelore do Dr. Dantas “Eu sou a oitava geração nessa fazenda
Bião, que chegou a pesar mais de mil quilos. aqui”. Um outro símbolo dessa “passagem”
Meu pai adquiriu naquela época um lote de de séculos de gerações dos Dantas Vilar na
descendentes desse touro (...) Assim eu vivia Carnaúba é o ferro de gado dos Vilar. Cata-
feliz, ouvindo aquelas lindas histórias, tiran- logados no livro chamado Ferros do Cariri:
do conclusões e planejando ser um criador uma heráldica sertaneja, escrito em 1974
daquele gado branco, que tanto me encanta- por um dos primos de Manelito, o escritor
va e impressionava pela sua beleza e vivaci- Ariano Vilar Suassuna, o símbolo do ferro
dade. (ANDRADE, 2010, p. 21) da família (ao centro) faz parte da marca
da fazenda:
Além do Nelore, uma outra raça de gado
marcaria a infância de Joãozito devido a Figura 1 - Marca da Fazenda Carnaúba
um presente dado pelo seu pai ao comple-
tar um ano de idade: “uma bezerrinha da
raça curraleira, descendente do gado criado
por Garcia d´Ávila” (ANDRADE, 2010, p.
17). Essa linhagem de gado, segundo João
Batista Andrade (2010), remete a grande
casa senhorial no Brasil colônia, aos pro-
prietários de gigantes sesmarias e desbra-
vadores do interior do estado da Bahia que
deixaram parte do rebanho nas fazendas da
família Andrade porque essas eram rota e
rancharia do caminho centenário de tropei-
ros da região do Sertão de Cima (ANDRA-
DE, 2010, p. 66).
A figura de um patriarca do “tempo” do
Brasil colônia também é citada nas crôni-
cas autobiográficas de Manelito Dantas e Fonte: Facebook Fazenda Carnaúba

Mestres sertanejos e os santuários das raças 263


Em entrevista, ao falar desses símbolos Dessa época, ele registra a lembrança da
da família – que também compõem a deco- saudade do gado e das plantas do sertão e
ração da casa sede da Carnaúba –, Maneli- as angústias vindas das dúvidas sobre sua
to reforça sua “luta pessoal” para recuperar vocação religiosa. São essas as cenas des-
o passado do sertão nordestino feito pelos critas ao reconstruir a memória dessa mu-
homens da “sociedade do couro”. Esse é o dança das fazendas Trindade e Várzea dos
mesmo argumento da crônica “Caprino- Gatos para um internato religioso:
cultura no semiárido” publicadas no site
da FUNDAJ (Fundação Joaquim Nabuco) e Fui indicado para conduzir a cruz durante
também no número 46 da revista O Berro: procissão no Largo da Sé. Mas, quando olhei
pra trás e vi o cortejo lembrei-me da seca no
O Brasil, com o Nordeste seco bem incluído, sertão. Lembrei-me da cena de quando o va-
tem a vocação e o destino de ser, também, a queiro e eu passávamos, e o gado nos acom-
grande nação agropecuária, sobretudo pecu- panhava em fila para comer o mandacaru
ária, do mundo (...) A civilização do couro foi assado (...) Na verdade eu estava continua-
a fase mais próspera da economia nordesti- mente vivendo o sertão, a minha família e o
na (...) Clareando o caminho (...) de viver em Nelore (...) (ANDRADE, 2010, p. 31)
sintonia com a natureza desse mundo áspe-
ro, bonito, possível e mal tratado do sertão Foi a partir de “revelações” religiosas
de águas desarrumadas, a pecuária de múlti- que Joãozito explica como não abdicou,
pla função (...) integrada por bovinos, capri- mas apenas transferiu traços da vocação
nos e ovinos bem adaptados ao ambiente, re- religiosa para a de pecuarista. Assim, como
criará a civilização do couro em novas bases ensinou Jesus, um “Bom Pastor” de ove-
e o semiárido poderá se transformar (...) num lhas, Joãozito percebeu que poderia servir a
belo pedaço do Brasil (VILAR, 2001, p.1) Deus não somente como sacerdote: “pode-
ria ser também criando e preservando tudo
2.2 “A volta ao campo”: escolarização e des- aquilo que Ele criou, como o Zebu sagrado
vios de uma carreira profissional na cidade da Índia” (ANDRADE, 2010, p. 31). Dessa
maneira, Joãozito narra que esperou o fim
Do fim do século XIX até meados do sé- do ano letivo de 1940 para abandonar os
culo XX, sair da fazenda da família para ir estudos no seminário e anunciar ao pai “a
morar e estudar em internatos, nos centros volta ao campo” e que a sua “universidade”
urbanos das capitais, foi quase como um ia ser a natureza e os animais. Em 1942
“ritual de passagem” na adolescência de iniciaria um trabalho fundamentado na
várias gerações de jovens filhos de gran- consanguinidade do gado Zebu com nego-
des pecuaristas da região Nordeste. No caso ciações de um pequeno rebanho junto a fa-
de Joãozito Andrade, esse ritual foi feito zendeiros de destaque no Recôncavo Baia-
em aceitação de um grande desejo da mãe no como Dantas Bião, Antônio Azevedo e
Maria Josefina, participante de grupos de Antônio Mendes em Itapicuru-BA. Nesse
Apostolado da Oração: a de ver um dos momento da vida Joãozito afirmou sentir a
seus filhos tornar-se padre. Seguindo essas verdadeira presença de Deus:
indicações Joãozito entrou como aluno do
Seminário Santa Tereza em Salvador-BA.

264 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


Fiz a morada na fazenda (...) escolhi a caa- critica a falta de centros de pesquisa pra
tinga como santuário para dedicar-me a se- entender a pecuária e as especificidades da
leção natural das espécies que idealizei des- seca no semiárido:
de a minha infância. Ali vivia criando o gado
sagrado da Índia e outros animais: os da raça Manelito - O semiárido do Nordeste que é
Kangayan, os caprinos da raça Canindé, os 91% do Território da região (...) ficou fora
ovinos e o gado leiteiro da Trindade, subme- (...) a escola de Agronomia de Salvador foi
tendo-os as adversidades do clima semiári- em torno do Cacau (...) a do Recife em fun-
do, assim como o deserto para os rabari7. Ou, ção da cana de açúcar (...) e a do Ceará foi
igualmente, um monge, rezando e acenden- em função da engenharia de pesca maríti-
do velas para louvar e compreender a natu- ma (...) o semiárido nunca entrou com um te-
reza que deve ser preservada e adorada, por- ma ou inspiração (...) ai resolveram criar uma
que ela representa o próprio Deus. (ANDRA- aqui na década de 30 no Brejo de Areia, on-
DE, 2010, p. 71) de chove

No caso de Manoel Dantas Vilar Filho, Para Manelito, essa falha dos centros de
é ele que explica sua trajetória de vida de pesquisa também esteve ligada, no início da
morar na fazenda e “fazer o caminho de década de 1970, a uma “americanização”
volta ao sertão” como o inverso ao pessoal prejudicial ao ensino superior brasileiro co-
da sua geração, que ele considera privile- locando um sistema de créditos e cadeiras,
giada pelos governos Vargas e JK, que se algo que foi definitivo para ele sair da vida
profissionalizou nas universidades e, em acadêmica: uma de suas últimas atividades
seguida, trabalhou a vida toda no meio ur- como professor foi a participação na comis-
bano em cargos técnicos da administração são para avaliar os cursos de agronomia da
pública. Manelito aprendeu a ler em aulas UFPB – quando exigiu separar cursos espe-
na fazenda e com indicações do pai, que cíficos para pecuária. Segundo a memória
gostava dos livros da Euclides da Cunha e de Manelito, essa saída do meio acadêmico
que, aos dez anos de idade, foi morar em foi simultânea a um momento dramático, o
internatos pra fazer o ginásio no Colégio falecimento do pai: dai foi quando tomou a
Américo Batista, em Recife-PE, seguido do decisão definitiva na sua “volta ao sertão”
curso de engenharia na Universidade Fe- para morar na Fazenda Carnaúba e se dedi-
deral de Pernambuco, na década de 1950. car ao conhecimento e experimentação “na
Tornando-se professor de hidrologia da prática”, o que nas suas palavras, é uma
UFPB, Manelito também exerceu cargos na postura de evitar modismos vindo de tec-
Superintendência de Desenvolvimento do nocratas do “sul do Brasil” e sem interme-
Nordeste (SUDENE), antes de 1964, e en- diação de universidade. Afirmando conhe-
cabeçou a criação da Companhia de Abas- cer como sertanejo a pecuária e as secas,
tecimento e Gestão de Esgoto da Paraíba Manelito tenta provar que pode ser viável
(CAGEPA). Em entrevista, ao falar sobre uma produção de grande porte de bovinos,
sua experiência na universidade, Manelito caprinos e ovinos no semiárido Nordestino.

7. Rabari é uma tribo de pastores da região de Gujarat, na Índia.

Mestres sertanejos e os santuários das raças 265


Essa é a lição de vida tirada do momen- pecuária ocorreu por sucessão súbita de meu
to da morte do pai: firmar uma vocação pai, há 36 anos. Foi um encargo, mas, tam-
como afirma em entrevista para Revista da bém um reencontro com minhas raízes e mi-
ABCZ (Associação Brasileira de Criadores nha vocação essencial (CRPBZ, 2016, p.1)
de Zebu), e reproduzida em site da CRPBZ
(Centro de Referência da Pecuária Brasileira 2.3 Santuários das raças nativas: as fa-
– Zebu): zendas modelo da pecuária caprinovina
no Nordeste
Revista ABCZ: O senhor é engenheiro por
formação. Porque decidiu se dedicar à pecu- A fazenda Várzea dos Gatos (3500ha),
ária? em Jeremoabo, foi matéria de capa da re-
Manoel Dantas Vilar: Sou engenheiro civil vista Globo Rural de janeiro de 1988, com
por formação acadêmica. Por natureza e sen- uma fotografia de uma cabra da raça Canin-
timento fui criador. A dedicação exclusiva a dé com a frase “cabra macho, sim senhor!”:

Figura 2 – Capa da revista Globo Rural (jan./1988)

A matéria de seis páginas traz um perfil portagem fala do sucesso, desde 1942, das
de Joãozito – um mestre sertanejo da caa- fazendas Trindade e Várzea dos Gatos com
tinga que desistiu de estudar para padre e o gado Nelore e a recuperação das cabras
até de casar por gostar de ser “catingueiro da raça Canindé – fruto de uma adaptação
mesmo (...) viver no meio do gado” (GLOBO de séculos ao clima e de cruzamentos das
RURAL, 1988, p. 53). Em seguida, a re- cabras alpinas trazidas pelos portugueses

266 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


para o Nordeste, mas que estavam em vias ção, o bode acabou sendo vendido por um
de extinção desde a grande seca de 1877. preço três vezes maior que o do mercado
A reportagem encerra descrevendo ao lei- (ANDRADE, 2010).
tor como Joãozito foi um criador criterioso Seguindo em buscas em Portugal, Es-
que lutou pela pecuária de forma solitária, panha e França pelo ancestral da Canindé
“aprendendo” com a vida: e fazendo cruzamentos na Várzea dos Ga-
tos, Joãozito foi construindo o que ficou
Ele vai em frente sem esperar nada de governo conhecido como maior rebanho Canindé
nenhum (...) Garante o pão de cada dia com seu do Brasil – atualmente em 7000 animais
Nelore Na verdade são três os desafios propos- – valorizado pela prolificidade8 e rustici-
tos. Regenerar, preservar a raça e o desafio de dade tendo animais vendidos para gran-
torna-la uma boa leiteira (...) Joãozito não vai des criadores e empresas como Odebrecht,
sossegar enquanto a Canindé dê leite para “en- exportados pra regiões da África e Ásia. O
cher um açude” (GLOBO RURAL, 1988, p. 54). rebanho da Várzea dos Gatos também foi
inserido em pesquisas da Embrapa Capri-
A reportagem do Globo Rural não fala nos (Ceará), Universidade Federal do Rio de
de um personagem mencionado por João- Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal do
zito na sua autobiografia como fundamen- Ceará (UFCE). Assim, as fazendas Várzea
tal para o trabalho com as cabras Canindé: dos Gatos e Trindade – que fica em Cícero
a de Otacílio José, o “Dodó”, filho de um Dantas (BA) e onde fica o rebanho bovino
vaqueiro das fazendas do avô de Joãozito, –, se “tornaram laboratórios naturais” (AN-
Coronel Antônio Lourenço. Foi com Dodó DRADE, 2010).
que Joãozito narra que fez as primeiras A última reportagem com Joãozito An-
buscas por exemplares da raça Canindé em drade em vida foi feita da edição nº 78 da
feiras e exposições de animais nas cidades revista Dinheiro Rural de abril de 2011. O
de Jeremoabo e Uauá. No livro, Joãozito primeiro parágrafo da matéria – ilustrado
homenageia Dodó exaltando a figura do com uma fotografia de Joãozito em frente ao
vaqueiro “como um doutor diplomado pela rebanho caprino –, fala do trabalho respeita-
universidade da natureza e da aula da caa- do das fazendas Trindade e Várzea dos Gatos
tinga” (ANDRADE, 2010, p. 81). com o gado Nelore e com as cabras Canindé:
A narrativa conta que, guiado pela pró-
pria intuição e pelos conhecimentos do Joãozito posou [para a foto] com a naturalidade
vaqueiro e amigo trabalhador da fazenda, de quem está acostumado com os flashes e com
Joãozito iniciou uma busca por cabritos da a simplicidade do sertanejo que é. Suas origens
raça Canindé e teve seu primeiro sucesso têm tudo a ver com o negócio que construiu
ao encontrar em uma feira livre um animal na pecuária (...) “Eu não fiz nada, só respeitei a
de pele escura. Dodó conseguiu convencer necessidade dos animais na natureza, que lhes
o dono do bode, que estava prestes a abatê ofereceu o necessário para sobreviver na caa-
-lo, a vender o animal; no fim da negocia- tinga”. (DINHEIRO RURAL, 2011, p.1)

8. Capacidade de rapidez nos ciclos reprodutivos e leiteiros calculada pelo número de filhotes nascidos por
fêmea durante um período de tempo.

Mestres sertanejos e os santuários das raças 267


Na reportagem Joãozito anuncia que um título de raceadores de caprinos nativos é
estava trabalhando na seleção e aperfei- Manoel Dantas Vilar Filho e Ariano Suassuna.
çoamento para registrar uma nova raça de Após receber um prêmio pela obra A Pedra do
ovinos deslanados e adaptados à seca, que Reino, em 1971, Ariano começa, na fazenda
levaria o nome de Trindade. Vindo a fale- Carnaúba – onde ficava temporadas em uma
cer alguns meses depois dessa matéria da casa particular da sua família –, um projeto de
Dinheiro Rural, Joãozito teve nota de ho- criação de cabras junto com o “primo-irmão”
menagem compartilhada em vários sites de Manelito levando em conta dois critérios: o
notícias e associações de criadores como Ca- primeiro seria melhorar a capacidade produ-
nal Rural9 e ABCZ10. É com orgulho que os tiva de pele, leite e carne com rusticidade e
atuais administradores da Fazenda Várzea adaptação às secas – função essa de Manelito,
dos Gatos e Trindade, Otacilio Júnior, filho a época criador já experiente de gado Guzerá.
do vaqueiro “Dodó”, e José Ricardo Andra- O segundo seria literário: a recuperação dos
de, sobrinho de Joãozito, afirmam assumir povos que formaram a identidade brasileira
o compromisso de herdar e manter o legado e sertaneja (índios, negros e brancos) através
que Joãozito deixou para pecuária brasileira do “resgate” das raças de cabras nativas. Esse
projeto pecuarista é sintonizado com a propos-
José Ricardo - eu fiquei acompanhando ali ta armorial da literatura de Ariano Suassuna,
dando assistência a ele [Joãozito] e suas du- como explica na crônica “As Cabras e o Cariri”
as irmãs (...) enfronhado no negócio do gado na edição de março de 1978 da revista Agrope-
dele (...) ele terminou morrendo (...) foi o últi- cuária Tropical, da qual Manoel Dantas Vilar
mo a morrer de todos (...) ele era um dos [ir- fazia parte do comitê editorial enquanto mem-
mãos] mais novos (...) esse [aponta pra Otací- bro da Sociedade Ruralista da Paraíba. Nesse
lio] nasceu com a gente (...) esse ai eu vi nas- texto, o escritor faz críticas as futilidades da
cer (...) a gente se criou (...) praticamente eu vida urbana e tece reflexões sobre a existência
mais Joãozito a gente criou ele desde peque- humana a partir dos caprinos: “as cabras re-
nininho (...) e hoje a gente tá tomando con- presentam para mim a porta aberta para uma
ta desse legado que ele deixou pra gente (...) atividade criadora, real e bela” (SUASSUNA,
a parte principal seria o gado (...) pra mim e 1978, p. 35). Em seguida, Suassuna expõe al-
Otacílio (...) e ai a gente está administrando e guns dos “erros e apostas” da criação do reba-
dando continuidade ao trabalho (...) não com nho junto com Manelito:
a mesma capacidade de zootecnista nato que
Joãozito (...) a gente tá trabalhando com a O primeiro erro que nos demos foi de acredi-
experiência que adquiriu com ele. tar nos números que os estudos teóricos ela-
borados em gabinete sobre caprinos nos ofe-
Se na Bahia, a dupla Dodó e Joãozito é reciam (...) montados no gabinete ou, nos me-
reconhecida no meio pecuarista pela “salva- lhores casos, a partir de 10 a 20 cabeças (...)
ção” da raça Canindé, na Paraíba quem detém houve também perdas no rebanho por doenças

9. Ver no link: <http://www.canalrural.com.br/noticias/pecuaria/pecuaria-brasileira-perde-joao-batista


-andrade-13454>.
10. Ver no link: <http://www.abcz.org.br/Home/Conteudo/21408-Criador-Joaozito-Andrade-sera-sepul-
tado-amanha-na-Bahia >.

268 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


e [ataque] de cachorros (...) [Conseguimos jun- turas lotéricas”. Para ele, “arar a terra significa
tar] 100 fêmeas em um rebanho que eu cha- desmontar o solo”. (...) “Precisamos considerar a
mei literalmente de indubrasil vermelha e 100 seca um componente intrínseco do trabalho ru-
da brasil indunegra, sendo todas originadas do ral e atuar racionalmente, reforçando a ativida-
cruzamento de reprodutores bujos e indianos de mais resistente ela, como é a criação de vacas,
com as cabras vermelhas e pretas do Cariri Pa- cabras e ovelhas”. (...) A solução (...) está no estí-
raibano ( SUASSUNA, 1978, p. 35-36). mulo à criação de animais resistentes à seca e a
introdução e cultivo de plantas adaptadas ao Se-
Os experimentos zootécnicos e literários miárido. Afinal, é o Semiárido mais rico do mun-
nas centenárias fazendas Carnaúba e Pau do em leguminosas, que vem a ser a proteína da
Leite começam a ser reconhecidos na déca- ração animal (O BERRO, 2013).
da de 1990, ao mesmo tempo em que, gra-
dativamente, artigos sobre caprinocultura A fazenda Carnaúba também foi tema
aparecem com mais frequência nas edições de reportagens. Manelito ganhou o “apeli-
da ABCZ, até que é feita uma publicação es- do de Camelô das secas” também devido ao
pecial para essa pecuária: O Berro (publicada uso pioneiro do capim búffel australiano na
bimestralmente de 1995 até 2013). E em uma década de 1980. O trabalho de importação
entrevista feita para Rinaldo Santos – editor e plantio dessa espécie vegetal e as técni-
da O Berro e jornalista especializado em pe- cas de alimentação e manejo da pecuária
cuária no Nordeste – Manelito explica como caprina podem ser vistos em reportagens
ele e Ariano foram selecionando um total de do Globo Rural, realizada em 198311, ano
15 raças de caprinos e ovinos, montando um de secas, e no Programa Campo Livre, em
plantel de 2500 animais na Pau Leite –, inclu- 199012. Um outro experimento que tornou
sive com o registro junto à Associação Bra- famosas as fazendas de Manelito foi a ins-
sileira de Criadores de Caprinos de uma raça talação de um laticínio para produção de
exclusiva, a Parda Sertaneja, nomeada assim um refinado queijo de cabra com sabores
por Ariano Suassuna. Em entrevista para o de ervas típicas da região do Cariri da Pa-
jornalista José Euflávio Horácio na revista raíba. A embalagem do queijo é feita com
O Berro, Manelito reitera as vantagens do desenhos que seguem o estilo armorial do
manejo racional da criação de caprinos em teatro e da arte de Ariano Suassuna, símbo-
contraposição à agricultura do que chama de los da heráldica “sertaneja” com os ferros
“culturas lotéricas e técnicas de irrigação: do gado das famílias Vilar e Suassuna.
Vivendo atualmente mais recluso13 na
É desses animais [caprinos] que o povo do inte- Carnaúba, Manelito recebe visitas de pa-
rior do Nordeste precisa para viver na região da rentes, amigos e pesquisadores em ocasiões
seca e não o cultivo da terra para plantar grãos - como vaquejadas, leilões e no Dia D: uma
afirma Manelito, realçando o que chama de “cul- exposição de animais sediada na Carnaúba,

11. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=K9nNpJtG014>.


12. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F3YwBlgod1s>.
13. As mais recentes aparição pública de Manelito fora das suas fazendas foi na palestra “Avanços tecno-
lógicos no campo” dada em 24 de maio de 2016, em razão da abertura da XXIV Semana de Zootecnia da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Mestres sertanejos e os santuários das raças 269


começou em 2013 e já vai pra seu quar- nejos é a realização em termos individuais
to ano. Recentemente, em 2015, Manelito de uma vocação coletiva e política defen-
Dantas foi homenageado no documentário dida por um grupo social: a de que o Brasil
Carnaúba, amor, a cultura e a fazenda14. A e, consequentemente, o Nordeste, estariam
narrativa do filme exalta a figura de Dom destinados a uma vocação rural, agrope-
Manelito como alguém que fez da “fraque- cuária, de “celeiro do mundo”. Nesse senti-
za a força”, o representante da oitava gera- do, quando Manelito fala de sua ida a Car-
ção da família Dantas Vilar na fazenda, que naúba, diante da morte do pai no fim dos
deixa para os filhos o vínculo com a terra anos 1960, e Joãozito justifica interromper
e o legado da Fazenda Carnaúba como um a missão de ser padre para substitui-la pela
modelo de grande pecuária e convivência vocação da pecuária nas fazendas Várzea
com a secas que, como coloca uma frase do dos Gatos e Trindade, estamos diante de
filme, é um “santuário de raças nativas” do algo mais que “acidentes” biográficos: a
semiárido nordestino. lembrança dos momentos, e as explicações
dadas pelos biografados que indicam como
3. A ordem social e os recursos de poder a elite pecuarista do Nordeste tem afinida-
dos grandes pecuaristas do Nordeste des eletivas com o ruralismo dos setores
patronais do agronegócio brasileiro, com
A separação feita aqui de aspectos da suas visões de nação e de defesa política da
biografia dos mestres sertanejos é apenas grande propriedade. Compreendo ruralismo
de exercício analítico, dentro do que foi de- como construção histórica nos termos da
batido sobre elites e reconversões sociais. discussão proposta por Sônia Mendonça
Considero que as narrativas sobre a vida de (2005): como algo que por mais que se ex-
Manelito Dantas e Joãozito Andrade podem presse na retórica de um “retorno” a uma
ser intercruzadas num plano mais amplo vida rural, não pode ser reduzido a um
de possíveis tendências, ideias-núcleo que mero saudosismo agrário. Trata-se de um
dão coesão e sentido ao mundo social dos forte discurso embutido na construção re-
grandes pecuaristas do Nordeste. Cruzando publicana e de uma modernidade brasileira
os dados da reflexão sobre as biografias do século XX: a reivindicação de moderni-
dos “mestres sertanejos” com trechos de zação do campo e políticas voltadas para o
editoriais, artigos e publicidades de revis- setor que se pensa como fiador da imagem
tas como Agropecuária Tropical e O Berro, do Brasil que alimenta o mundo é um mes-
ligadas a grandes sociedades pecuaristas mo projeto, mesmo que apareça sob distin-
nordestinas, é perceptível na elite pecua- tas modalidades – seja ela mineira, carioca,
rista um deslocamento, movimento de ida pernambucana etc. (MENDONÇA, 2005).
e volta entre duas diretrizes que indicam Essa ideia de uma vocação rural é acoplada
esquemas de percepção, recursos de poder, a uma defesa da grande propriedade: ponto
valores e práticas sociais: em que está a grande ambivalência de um
A) Um ruralismo e o ethos da proprie- ethos ruralista brasileiro como coloca Re-
dade da terra: a imagem dos mestres serta- gina Bruno (2010, p. 12): “o mesmo grupo

14. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=r0D4TUEcNgQ>.

270 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


que investe em parâmetros de modernida- lização que não coloca (...) carne na mesa
de, produtividade e competitividade repro- do nordestino”. Em seguida o editorial con-
duz a ideia do direito absoluto da proprie- clui afirmando que
dade sem limites, até mesmo com uso da
violência”. Outro fator característico dessa é uma grande mentira exibir São Paulo como
demarcação política do agronegócio – ex- uma locomotiva carregando vagões vazios
pressa em campanhas como “Sou Agro” (...) [ O Nordeste] tem vocação legítima para
ou no mais recente slogan “Agro é Tech, pecuária e não pode continuar pagando por
Agro é pop”, nos intervalos da TV Globo – um modelo de desenvolvimento de shoppin-
é a ausência de alternativas históricas para gs centers e favelas das cidades. (p. 5)
além de uma vocação agrária do Brasil e
uma missão de exportador de alimentos Acompanha esse lamento da industriali-
(BRUNO, 2009, p. 119). Essa imagem polí- zação e do “consumismo” uma “culpa” atri-
tica transposta para o cenário da elite aqui buída aos governantes as crises do algodão
debatida, indica o discurso que coloca só -pecuária do início dos anos 1980, com a
e somente só a pecuária (caprinos15 e bo- praga do “Bicudo”: as secas, os impostos e
vinos) como salvação regional: atividades leis trabalhistas “pensadas para o trabalha-
que sempre foram a redenção do povo nor- dor urbano”que destruíram a instituição da
destino diante das secas (AGROPECUÁRIA fazenda brasileira:
TROPICAL 13 ED., 1979, p. 9).
A luta pelo reconhecimento dessa voca- A lei trabalhista rural ( CLT N 5889 de ju-
ção pecuária “natural” do Nordeste ecoa em nho de 1973) é um corpo de leis cheios de
frases e posicionamentos que vêm pelo me- defeitos, concebida para problemas urbanos.
nos desde os governos militares e que fa- A Lei e a CLT constituem um corpo estranho
zem uma crítica ao investimento na indus- em qualquer fazenda tradicional, enquanto
trialização e urbanização feita por órgãos se prestar admiravelmente pras novas em-
como a Sudene. É esse o tom de lamento de presas rurais, da mentalidade industrial, que
um texto com críticas ao maior recurso das estão tomando o lugar dos antigos fazendei-
políticas industriais do que agrícolas, por ros (...) Diabolicamente planejada para ex-
parte do governo João Figueiredo, em edi- pulsar do campo mão de obra para alimentar
torial da edição 18 da revista Agropecuária as necessidades do pessoal da grande indús-
Tropical (1980, p. 4): “o governo faz uma tria. Essa lei consegue ser altamente preju-
política voltada para uma pseudoindustria- dicial tanto para empregado como para em-

15. Os caprinos foram objeto de uma batalha interna no campo dos pecuaristas, expressa nos editoriais,
crônicas e reportagens da Agropecuária Tropical entre os anos 1980-1990. O campo de disputas se divi-
diu entre um grupo de criadores que não defendia os caprinos e ovinos, afirmando que eles são “uma mal-
dição” e que aceleram a desertificação – a exemplo do pernambucano José Nivaldo (1980) em artigo da
Agropecuária Tropical de janeiro de 1980 –, e outra ala “ferrenha” defensora da criação de caprinos e ovi-
nos, apoiados em artistas e intelectuais – como Ariano Suassuna na Paraíba, e Elomar Figueira de Mello
na Bahia –, e pecuaristas com o perfil similar ao de Manuel Dantas Vilar e Joãozito Andrade. As movi-
mentações do “tabuleiro” desse jogo de disputas podem ser vista na forma como os caprinos e ovinos vão
ganhando espaço em publicidade de leilões, crônicas e reportagens de edições da Agropecuária Tropical
até a criação de uma publicação especializada, como a revista O Berro no final da década de 1980.

Mestres sertanejos e os santuários das raças 271


pregador, dando origem ao mais cruel êxo- com outras elites taxadas como “sem con-
do rural de todos os tempos (...) O “modelo tato com a terra” como setores empresariais
brasileiro” quer enforcar um último peão nas e financeiros até os que “disputam a terra
tripas de um fazendeiro (...) Uma nova legis- e enganam os mais pobres”, no caso movi-
lação rural deveria respeitar o fazendeiro co- mentos sociais que empunham bandeira da
mo a instituição legitimamente brasileira ( reforma agrária.
AGROPECUÁRIA TROPICAL,-23 ED.. 1981, B) “Uma estirpe sertaneja”: considera-
p. 8-12) das as afinidades eletivas com o ruralismo
e a incorporação dos valores do ethos da
Outro ponto que indica afinidades de propriedade da terra, cabe refletir também
valores do ruralismo brasileiro, entre os sobre o que há de específico no mundo dos
pecuaristas nordestinos, são as formas de pecuaristas nordestinos, que os difere do
expressar rivalidades com outras elites: do patronato do agronegócio do restante do
governo Sarney até Collor os pecuaristas Brasil. A partir das narrativas biográficas
identificam os investidores financeiros e analisadas, fixo o olhar nas categorias que
banqueiros como um setor que ganha com remetem ao regionalismo nordestino dina-
a inflação, oscilando um capital especulati- mizados no conjunto de fontes analisadas,
vo que não investe na terra, nos alimentos e de como a elite as utiliza para construir
mas que mesmo assim é privilegiado pelos uma distinção social. Nesse sentido, por
governos (AGROPECUÁRIA TROPICAL 61 mais que haja proximidades com o estilo
ED. 1988, p.3-4 ). Por sua vez, a defesa vio- empresarial ruralista exigido no mercado
lenta da grande propriedade da terra é ex- de genética, e exposições de toda elite dos
pressa de forma mais clara em editoriais da pecuaristas brasileiros, o círculo social no
Agropecuária Tropical entre os anos 1990- qual Joãozito Andrade e Manelito Dantas
2010: a crítica à criação de assentamentos são tidos como “autoridades” expressa um
em antigas fazendas do semiárido, tidas particular projeto político de nação, via im-
como improdutivas, tem alvo no INCRA posição de um imaginário que se diz serta-
(Instituto Nacional de Colonização e Refor- nejo e nordestino fortemente associado à
ma Agrária) e principalmente na bandeira fazenda, à pecuária e às secas. Daí, o des-
da reforma agrária levantada por pastorais fecho do enredo biográfico como o cum-
e movimentos sociais, como o MST (Movi- primento de sequências, de meninos de fa-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter- zenda até senhores patriarcas do semiárido,
ra). Este movimento se torna pauta, sendo em que até mesmo as rupturas com suas
criticado pelo viés de “padres esquerdistas”, experiências urbanas são como “lições pes-
de pastorais, e como uma reforma “ideoló- soais”, que culminam na consagração de
gica guiada por arruaceiros que pouco se uma vocação inescapável: ser pecuarista;
importam com as necessidades do homem “morar no campo”; ser “sertanejo, antes de
do campo” (AGROPECUÁRIA TROPICAL, tudo, um forte”, ligado à terra e que sabe,
134ed., 2003, p. 21). há séculos, como é a vivência com o gado
Em síntese, dentro desse tom ruralista e as secas. Nas palavras de Ariano Suas-
e em defesa da propriedade, a construção suna (1993) na apresentação de um livro
das elites pecuaristas de um “Outro”, visto de memória da família esse é o sentido de
como “ameaça”, pode ser feita em atritos pertencer a uma “estirpe sertaneja (...) uma

272 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018


civilização do couro que pulsa dentro de muito mais os caprinos que bovinos –, não
mim” (SUASSUNA, 1993, p.11). é apenas um negócio que visa lucro mas
Essa autoimagem dos pecuaristas impli- uma tentativa de prestígio associada à ideia
ca passar por um debate que já tem con- de pertencer a um “sertão genuíno”, valo-
siderável acúmulo entre cientistas sociais, res esses que são armas de concorrência
historiadores, economistas e geógrafos no na luta interna, inclusive com o patronato
Brasil: a construção de uma identidade re- e empresariado rural de outras regiões do
gional do Nordeste entre acirradas lutas so- Brasil – esses com melhores e maiores com-
ciais em torno de categorias como região, petências econômicas do que os pecuaris-
nação e sertão e as próprias definições de tas nordestinos. Diferente do empresariado
imagens do rural e urbano. Essas lutas são que detém grandes extensões de terra do
historicamente dramatizadas na relação Cerrado ou Centro-Oeste, as fazendas dos
entre o fenômeno da seca, as demandas e pecuaristas nordestinos são investidas de
quadros do Estado, e elites – como a dos pe- uma aura nostálgica e memorial combina-
cuaristas e proprietários de terra. Por isso, das com parâmetros de gestão empresarial,
impressiona que este tema seja debatido em modernização zootécnica e de adaptação
autores de abordagens tão díspares e pes- às secas. Assim, pode-se afirmar que como
quisando diferentes contextos históricos. no caso do mundo rural reconstruído na
Esse debate aparece: na análise da criação literatura regionalista do século XX, feita
da Sudene; na visão marxista de Francisco por escritores que foram “meninos” de en-
Oliveira (1977); no clientelismo dentro dos genho, as biografias dos mestres sertanejos
quadros de políticas do Departamento Na- na fazenda pecuarista se tornam uma re-
cional de Obras Contra as Secas (DNOCS) constituição de um mundo de outrora, uma
de Marcel Burstyn (1985); na relação litera- particularidade que ascende à ideia geral de
tura e regionalismo por Rosa Godoy (1983); nação brasileira (GARCIA JR., 2011, p. 42).
nas retóricas e debates entre parlamentares Ao cruzar informações diversas, como a
vista por Iná Castro (1992); e, finalmente, história de raças de caprinos, publicidade
nos discursos de saber e poder que crista- de exposições e leilões à memória de fa-
lizam, no início do século XX, uma região mílias proprietárias de grandes fazendas, a
chamada Nordeste, no imaginário nacional, contribuição tentada neste artigo é de tor-
segundo Durval Albuquerque Jr. (2011). nar visível quais estratégias de manutenção
Dentro dos limites deste artigo, é impor- e transformação dos recursos socialmen-
tante acionar essa discussão do elo entre te distintos marcam essa elite rural, que
elite proprietária rural/imaginário sertanejo se proclama representante do que seria a
e nordestino, e o fenômeno das secas en- mais profunda brasilidade sertaneja16: um
quanto um fator de distinção social. O in- “autêntico Nordeste” de valores sociais fei-
vestimento na pecuária – e nesse sentido tos em torno de uma “saudade”, da exal-

16. Essa combinação entre tradição/passado/ideia de missão sertaneja junto à modernização técnica das
fazendas se aproxima do que algumas pesquisas recentes chamam de “agronegócio sertanejo” (MAIA;
CUNHA, 2017), para tentar explicar as dinâmicas de modernização de grandes propriedades rurais na re-
gião do sertão paraibano.

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Mestres sertanejos e os santuários das raças 277


RESUMO ABSTRACT
O artigo analisa em narrativas biográficas The article analysis biographical narratives
alguns dos recursos de poder e distinção de and political resources between landlord
uma elite proprietária rural do Nordeste que elites and goat breeders at the Brazilian
tem investido na pecuária de caprinos. Em Northeast. Researching model farms in the
pesquisa junto a fazendas tidas como mode- goat cattle at the states of Bahia and Pa-
los de criatórios no semiárido – a Carnaúba, raiba this paper try to explain strategies of
em Taperoá-PB, e a Várzea dos Gatos, em the landlord elites beyond the crisis of rural
Jeremoabo-BA – dinâmicas de ressignifi- working patterns at the final of twentieth
cação de latifúndios que “sobreviveram” a century. One of this strategies pass through
uma crise das relações de moradia e trabalho ideological creation of a “self made man”
em crise no fim do século XX. Uma delas biographies and investment in selection
passa pelos “mestres da caatinga”: respeita- of goat races for construct a elite market
dos por gerações mais jovens das famílias of this breed. The presentation of the lan-
proprietárias das fazendas, pela imprensa e dlord and goat- breeder as a “resistant” to
universidades como figuras de alto grau de the drought and rural patriarchy shows a
conhecimento - não apenas por ciência, mas political view in defense of the big proper-
“vivência como sertanejos” – com a pecuária ties and land concentration at the Brazilian
e as secas. A representação dos pecuaristas Northeast
na biografia dos “patriarcas” exibe um pro-
jeto político de imposição de uma vocação
para pecuária em defesa da grande proprie-
dade no semiárido nordestino

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Elite pecuarista. Caprinocultura. Biografia. Landlord elites. Goat breed. Biography.

Recebido em: 25/05/17


Aprovado em: 22/09/17

278 Repocs, v.15, n.29, jan./jul. 2018

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