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Sociedade e Cultura

ISSN: 1415-8566
brmpechincha@hotmail.com
Universidade Federal de Goiás
Brasil

Costa Almeida, João Batista de


Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade e do território baianeiros em Minas Gerais
Sociedade e Cultura, vol. 5, núm. 1, janeiro-junho, 2002, pp. 53-64
Universidade Federal de Goiás
Goiania, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70350104

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Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar
da identidade e do território baianeiros
em Minas Gerais*
JOÃO BATISTA DE ALMEIDA COSTA**

Resumo: A identidade e o território baianeiros, construídos a partir do pensamento


social brasileiro e da representação simbólica do estado de Minas Gerais, no Brasil,
apresentam-se como resultante de processos sociais que, numa sociedade culturalmente
múltipla, hierarquiza – a partir do centro de poder – as diversas regiões que constituem
seu sistema social. Tomo dois signos Minas Gerais e Sertão Mineiro e leio os conteúdos
que informam tanto isoladamente, quanto no imbricamento entre os dois. Essa leitura
permite, ainda, compreender a posição de margem espacial e social em que os baianeiros
se encontram inseridos no conjunto interno da realidade social mineira, em si e em sua
representação. Utilizando dados historiográficos e literários, por um lado, e dados
coletados em minha pesquisa de campo, procuro descrever o território e a identidade
baianeiros como processos sociais vividos em situação de fronteira, da nação brasileira e
da representação simbólica de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, discuto processos de
subjetivação de sujeitos baianeiros – um camponês e um poeta – que a partir de sua
situação de fronteira (entre-lugar) fala politicamente de seu território e de sua identidade
como diferença cultural.
Palavras-chave:construção de alteridade territorial e identitária, representação e realidade,
fronteira como entre-lugar.

Neste artigo, focalizamos a identidade e o mônicos. Fazemos uma pequena digressão sobre
território baianeiros, baseando-nos na perspec- a formação histórica da sociedade mineira,
tiva do grupo dos subaltherns studies, para procurando mostrar a existência de duas
encará-los como processos que são produzidos dinâmicas sociais e temporalidades distintas que
na articulação de diferenças culturais. Apresen- se articularam em sua consolidação. Em
tamos, recorrendo ao pensamento social seguida, esboçamos a noção de fronteira, que
brasileiro – sua historiografia e sua literatura –, operacionaliza a nossa leitura, partindo do
uma breve caracterização de Minas Gerais, uma princípio de que, mais do que um conceito
das sociedades regionais brasileiras na qual a analítico, essa noção apresenta-se como um
identidade e o território em foco encontram-se conceito descritivo e operativo para designar
subsumidos à identidade e ao território hege- espaços sociais, os quais, em virtude de se
situarem à margem dos centros de poder,
* Este texto foi originalmente escrito para ser apresentado escapam da estruturação da narrativa da
no seminário Fronteras y Territórios, promovido pela
Universidad de Antiochia, na cidade de Medellín, Colômbia. identidade e do território hegemônicos. Utili-
Foi publicado em espanhol nos anais do referido seminário. zando os dados de nossa pesquisa de campo,
** Mestre e doutor em Antropologia Social pelo Programa base para minha tese de doutoramento, elabora-
de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do De-
partamento de Antropologia da Universidade de Brasília. mos uma leitura que aponta para o sentido de
E-mail: joba@unb.br, joaocosta51@hotmail.com. um deslizamento entre a representação e a
COSTA, JOÃO BATISTA DE A. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade...

realidade na narrativa mineira, a partir do qual a vida social intensa [...], [onde] criaram-se
existência de um “entre-lugar”, visto como condições culturais próprias [...] sob cuja
constituinte de uma situação de fronteira, indica influência se verifica o processo de vida
o aparecimento de algo que se faz presente em regional” (idem, ibidem, p. 21).
um movimento distinto ao da articulação Olhados na existência de duas formações
hegemônica. históricas e duas temporalidades distintas, a
sociedade e o território mineiros apresentam-se
Minas Gerais: uma realidade múltipla e cindidos no imaginário social brasileiro, não pela
uma representação social una diversidade de identidades culturais aí existentes,
mas pela existência de duas regiões mentais
O território de Minas Gerais, uma das distintas: Minas Gerais e Sertão Mineiro. 1
instâncias regionais do Estado-nação brasileiro João Guimarães Rosa, ao caracterizar essa
formada desde o período colonial, ocupa uma mesma sociedade e esse mesmo território,
zona central média no Brasil. Situação que afirma que “seu orbe é uma pequena síntese,
propiciou a muitos escritores afirmarem ser a uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas.
Terra Mineira o coração do país, como Nelson São pelo menos, várias Minas” (1978, p. 218).
de Senna (1926, p. 23), que a considera “o núcleo Para ele, existem muitas Minas: 1) “a Minas
territorial poderoso onde se conserva, com mais geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que
vigor, o sentimento da nacionalidade”. O seu lhe tinge o nome”; 2) “a Mata cismontana,
território, por essa centralidade, para João molhada ainda de marinhos ventos, agrícola ou
Guimarães Rosa, “ajunta de tudo, os extremos, madeireira, espessamente fértil”; 3) “o Sul,
delimita, aproxima, propõe transição, une ou cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives
mistura: no clima, na flora, na fauna, nos ou em colinas que européias se arrumam, quem
costumes, na geografia, lá se dão encontro, sabe uma das mais tranqüilas jurisdições da
concordemente, as diferentes partes do Brasil” felicidade neste mundo” (grifos no original); 4)
(1978, p. 217). A sociedade mineira – que, nesse “o Triângulo, saliente avançado, reforte,
território diverso, se consolidou com uma franco”; 5) “o Oeste, calado e curto nos modos,
sociedade distinta das até então vigentes na mas fazendeiro e político, abastado de habili-
antiga colônia de Portugal – foi constituída por dades”; 6) “o Norte, sertanejo, quente, pastoril,
frentes de expansão colonial distintas: “o um tanto baiano em trechos, ora nordestino na
bandeirismo preador de índios e prospector de intratabilidade das caatingas, e recebendo em si
metais e pedras preciosas [...] [e, por outro lado, o Polígono das Secas” (grifos no original); 7) “o
pela] marcha progressiva das fazendas de gado Centro corográfico, do vale do rio das Velhas,
no sertão nordestino”, segundo Caio Prado calcário, ameno, aberto à alegria de todas as
Júnior, em sua Formação do Brasil contem- vozes novas” e, finalmente, 8) “o Noroeste, dos
porâneo (1976, p. 37 e 39). De outra forma, chapadões, dos campos-gerais que se emendam
Manuel Diégues Júnior, ao caracterizar as com os de Goiás e da Bahia esquerda, e vão até
Regiões culturais do Brasil, informa que o ao Piauí e ao Maranhão ondeantes” (idem,
processo de ocupação humana – sistema de ibidem, grifos no original).
relações que se estabeleceram entre os homens Cada uma das regiões culturais internas à
e o meio – criou ambientes distintos, conferindo sociedade mineira têm temporalidades próprias
a cada região um quadro cultural específico. e surgiram de frentes de expansão colonial ou
Para esse autor, em Minas Gerais, confluíram de processos de migração que emergiram com
dois processos distintos: um que teve nos currais, o declínio da mineração aurífera, em meados
e depois nas fazendas de criação, o seu principal do século XVIII. Decorrentes das frentes de
centro social, em cuja sociedade que aí se
formou “teve no vaqueiro o seu tipo humano 1. A noção de “regiões mentais” é discutida por Mark Bassin
característico” (1960, p. 20). E outro que se (1991), em seu estudo sobre as representações que os russos
ocidentais, no início do século XIX, construíram sobre a
caracterizou pela “formação de arraiais de Sibéria, inventando-a. E, também, por Pandaya (1990), ao
mineração, ambiente de riqueza, de fausto de abordar a cartografia adamense em seu movimento e espaço.
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expansão colonial, temos a Minas geratriz, que Mas voltemos à questão da cisão da
se origina com a descoberta de ouro pelos sociedade e do território mineiros no imaginário
bandeirantes paulistas em fins do século XVII, social brasileiro, pois é com base em seu
enquanto o Norte sertanejo tem sua formação entendimento que se faz possível pensar, na
histórica vinculada ao bandeirismo preador de perspectiva de fronteira, a identidade e o
índios e exterminador de quilombos e à marcha território baianeiros, ou Norte sertanejo como
progressiva das fazendas nordestinas de gado quer Guimarães Rosa. No Brasil, ao se referir
pelo interior do país. Originariamente perten- a Minas Gerais, entende-se uma realidade
cente à Bahia, uma das instâncias regionais do social específica, aquela vinculada à exploração
Estado-nação brasileiro, ainda no período do ouro no período colonial e vivida sob a égide
colonial foi o Norte sertanejo incorporado à de uma democratização das relações sociais
capitania de Minas Gerais. Por meio dessa ação, pelo aparecimento de diversas classes sociais
a administração colonial, centralizada na região inter-relacionando-se nas cidades. Como a
aurífera, tentava impedir o desvio do ouro, que realidade mineira não se resume à sociedade
estava sendo transferido para essa região por mineradora, vemos que o imaginário social
meio do comércio de gêneros alimentícios e brasileiro articula um signo representacional, qual
animais de transporte. Depois de conflitos seja: o signo Minas Gerais. A representação
administrativos entre Minas Gerais e Bahia, construída sobre essa realidade abarcou também
resolvidos por ordem do rei de Portugal, que a identidade de todos aqueles que vivem em seu
fixou o Norte sertanejo como pertencente ao território – os mineiros –, como também a sua
território mineiro, houve uma tentativa de paisagem, que aciona a “imagem mental”,2 que
reversão pelos criadores de gado, que se informa a existência de montanhas e de cidades
armaram para uma revolta em 1736. No históricas nascidas da mineração.
confronto com a milícia portuguesa, os Por outro lado, quando se evoca o Sertão
insurgentes tiveram seus principais líderes Mineiro, temos então um outro signo. Distinto
aprisionados e um deles deportado. do primeiro, ele informa a realidade que é
Por sua vez, o Triângulo surgiu em vinculada aos currais e às fazendas de criação
de gado, em torno dos quais a vida social se
conseqüência das entradas e bandeiras oriundas
organizou, articulando fazendeiros e vaqueiros
de São Paulo, percorrendo o sertão e em busca
por meio de relações sociais que, apesar de
de novas áreas mineradoras, mas tendo sua
assimétricas, eram marcadas por igualitarismo
ocupação socioeconômica vinculada à criação
entre as partes.3
de gado, que se expandiu do norte rumo ao
Para se falar na realidade social de Minas
sudeste. O Noroeste teve sua ocupação
Gerais como um todo, tendo como referência o
vinculada aos bandeirantes paulistas e aos
pensamento social brasileiro, portanto, há que
criadores de gado dos antigos Currais da
se recorrer a esses dois signos. É pelo imbrica-
Bahia, caracterizado por Guimarães Rosa como
mento entre os dois que se pode dar conta da
Norte sertanejo. O Centro apresenta-se como
totalidade do sistema social mineiro. Cada um
o espaço territorial onde duas economias distintas
aponta para a presença de significantes e
se encontraram: a exploração aurífera, que se
significados distintos. Enquanto ao signo Minas
ampliou por toda a Serra do Espinhaço, que corta Gerais é associado o modo de olhar e ver,
longitudinalmente Minas Gerais, e a criação de pensar e falar a realidade social vigente em todo
gado que, vinda do Norte sertanejo, ajudou a o território mineiro, a partir de seu centro gerador,
suprir a região dedicada à mineração dos
alimentos e animais de transportes necessários.
2. A noção de “imagem mental” é construída por Simon
A região da Mata e, de certa forma, a região Schama (1996), quando afirma que a percepção humana
Oeste, apesar de esta também ter sido ocupado sobre a natureza forma uma paisagem, construída pela men-
te a partir de parâmetros sociais.
por paulistas, foram constituídas, em suas
3. Richard Burton vislumbra o norte sertanejo como uma
especificidades, pela migração dos mineiros, com “terra onde reina a perfeita igualdade, teórica e prática”
a decadência do ouro. (1977, p. 202).
COSTA, JOÃO BATISTA DE A. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade...

ao signo Sertão Mineiro cola-se o modo de olhar p. 3), adquirindo importância como lugar de vida
e ver, pensar e falar as regiões Norte e Noroeste para aqueles que as habitam e pelo que
desse mesmo território. O signo sertão que representam para eles e, principalmente, para
informa a pátria brasileira, assim como o cerne outros. Gustavo Lins Ribeiro (2000) enfatiza que
desta nação, ao ser vinculado a uma instância fronteiras são sempre lugares isolados, impostos
do Estado-nação, requer o deslizamento da pelo distanciamento geográfico dos centros de
região assim designada para as fronteiras poder que fazem deles uma fronteira e um lugar
internas e para o cerne do Brasil. Ao de liberdade. Os espaços de fronteira, sendo
analisarmos o território e a identidade baianeira, determinados pelos centros de poder, são
retornaremos à discussão do conteúdo do signo inscritos politicamente em sua ordem, apesar do
sertão, para deixar claro a marginalidade dessa desenvolvimento de tradições culturais e de
realidade social subsumida na realidade social sociedades dessemelhantes. Toda ordem é
mineira, que reafirmamos como uma sociedade suportada por uma estrutura de pensamento
em fronteira. construída e mantida nos lugares axiais, centros
Por fim, como as diferenças culturais entre de poder, que vinculam outras realidades
os mineiros encontram-se subsumidas na políticas, culturais, identitárias a si mesmos,
mineiridade – representação simbólica do ethos englobando-as. Uma possibilidade de leitura
e do eidos mineiros –, que constrói a todos como teórica das sociedades em fronteira é aquela da
compartilhando um mesmo sentimento de hierarquia, como desenvolvida por Louis
pertencimento, de fraternidade e de identifi- Dumont (1992) e também em nossa tese de
cação, os estudos realizados sobre Minas Gerais doutoramento (Costa, 2003).
partem sempre do pressuposto desse compar- Sendo a perspectiva dos subaltherns
tilhamento, resultando invisíveis a realidade de studies o fundamento principal de nossa
negociação e conflitos, a produção de imagens interpretação, tanto estética quanto ética,
negativas dos vizinhos e as disputas de interesses tomamos a consciência da posição do sujeito
divergentes no interior desse sistema social, que baianeiro para nela focalizar o processo
articula diferentes culturas, hierarquizando-as. produzido na articulação de diferenças culturais
Englobadas pela identidade geratriz, essas entre mineiros e baianeiros. Para Homi Bhabha,
diferenças culturais são plausíveis de serem viver em fronteira é situar-se num entre-lugar
apreendidas em meio às relações sociais que (espaço intersticial entre o ato de representação
atravessam as fronteiras culturais e que se e a presença da comunidade) que fornece “o
encontram implícitas na estrutura social. terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação – singular ou coletiva – que dá início
Fronteira: espaço social e espaço a novos signos de identidade” (1998, p. 20).
representacional produzidos na Nessa liminaridade, os sujeitos que a vivenciam
diversidade por terem-se deslocado em movimentos – físicos
e elucidativos – para o exterior processam a
O Norte sertanejo foi construído no geração e a emergência de estratégias de
imaginário social estadual nas fronteiras da subjetivação que surgem da atividade negadora.
sociedade mineira, tanto no sentido geográfico, Esse momento de negação propicia o estabe-
quanto no sentido semiótico, adquirindo aí a lecimento de uma fronteira, da qual emerge o
condição de alteridade, cuja importância é significado das fronteiras históricas e discursivas
fundamental para o entendimento do seu lugar da subordinação. Dessa forma, a emergência
no sistema social mineiro. Na teoria social, do lugar de fronteira engendra um momento de
fronteiras têm sido entendidas, por sua estranhamento das realidades psíquicas, sociais
polissemia, como desde uma visão substantiva e culturais em que o sujeito se encontra inserido.
na definição de áreas geográficas, até como Há a geração de uma inversão dos pólos da
aquelas que se expressam nas construções estrutura simbólica, que traz à tona o que até
imaginárias, por serem “aspectos significativos então fora mantido oculto, permitindo ao sujeito
da experiência humana” (Miller e Steffen, 1977, colocar-se “além” e ver o “processo de signifi-
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cação através do qual afirmações da cultura ou da identidade vivida em fronteira, recorremos a


sobre a cultura diferenciam, discriminam e um poema cujo autor, falando politicamente do
autorizam a produção de campos de força, entre-lugar, questiona o que significa falar tendo
referência, aplicabilidade e capacidade” (idem, como ponto de partida o centro da vida. Para
ibidem, p. 63). Bhabha, o entre-lugar constitui-se “o próprio
Situada nesse espaço vivido em fronteira, ‘lugar’ de onde o político é falado” (1998, p.
a articulação social da diferença é uma 37) E, como procurarei mostrar, o discurso do
negociação complexa, sempre em processo, em poeta corrobora essa afirmativa, pois em seu
que as minorias, isoladas por imposição dos poema enuncia, como uma voz subalterna, uma
centros de poder e sem privilégios, buscam o identidade ímpar que desafia os cânones da
direito de se expressar. Queremos frisar que, identidade hegemônica.
para Bhabha, as diferenças culturais que
emergem pelo desvelamento do oculto não A dupla liminaridade do território
estavam dadas à experiência por intermédio da baianeiro: a negação e o banimento
tradição cultural autenticada. As diferenças discursivo
culturais surgem em meio a processos de
deslocamentos e disjunção que não totalizam a Como mostramos na caracterização de
experiência e que podem ser compreendidas Minas Gerais, o Norte sertanejo, conforme defi-
com o auxílio de histórias de migração, de nido por Guimarães Rosa, pode ser apreendido
narrativas de diáspora e de deslocamentos no imaginário social a partir de dois signos que
sociais de camponeses e aborígenes. se imbricam, o signo Minas Gerais e o signo
A noção do entre-lugar, como espaço Sertão Mineiro. É na interioridade de cada um
social vivido em situação de fronteira, permite desses dois signos que é possível ler as represen-
operacionalizar a nossa discussão da identidade tações que se fazem do território baianeiro. De
e do território baianeiros. Iluminados por essa qualquer forma, elas remetem permanentemente
noção, tratamos primeiramente das represen- para as margens, seja do sistema social mineiro,
tações feitas sobre o território baianeiro no em sua ordem discursiva, seja no discurso
pensamento social brasileiro e confrontamo-las civilizador brasileiro. Tomemos primeiro o signo
com a presença desse mesmo território na sertão que, na historiografia e na literatura
trajetória da vida dos baianeiros. É no espaço brasileira, aponta para a existência de um lugar,
intersticial entre a representação construída e a situado num espaço não-cartografado, por se
realidade social vivida que a compreensão do tratar de uma “região mental” (Bassin, 1991).
território emerge diferenciada. Trazemos o De fato, o sertão, ou sertões, refere-se a uma
território baianeiro à cena discursiva, recorrendo geografia oposta ao litoral, cujos recursos
a pequenas enunciações, transcritas de autores naturais e humanos foram explorados pelos
regionais, que falam da paisagem natal, quando portugueses durante a colonização em benefício
dela distanciados por motivos de estudo ou de da metrópole. Essa região era o locus da alte-
migração permanente. Em seguida, utilizando ridade, que abrigava inicialmente as sociedades
o discurso de um camponês baianeiro sobre sua indígenas e em, seguida, os sertanejos,
identidade, colhido em trabalho de campo, populações não-brancas que, na ordem escra-
procuramos interpretá-lo como a narrativa do vista e autoritária da Coroa, buscaram refúgio
seu momento de estranhamento e do colocar- no interior do país, conforme nos mostra Otávio
se em situação de fronteira, quando a atividade Velho em seu clássico Capitalismo autoritário
negadora nasce em sua consciência. É com base e campesinato (1976).
em deslocamentos buscando garantir sua No pensamento social brasileiro, o espaço
reprodução social que pode, do exterior, ver a mental sertão e a alteridade agrupada sob a iden-
interioridade do signo identitário e apreender o tidade de sertanejos apresentam-se como ele-
significado das fronteiras históricas e discursivas mentos que, opostos ao litoral e à população que
da subordinação, tanto como camponês quanto aí vive, constroem a idéia de nação brasileira.
como baianeiro. E, para terminar nossa discussão Nessa antinomia fundante da nação, a histo-
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riografia e a literatura apontam para a conju- índios, expulsaram e exterminaram diversas


gação de temporalidades diversas – passado e sociedades indígenas e vários quilombos. Com
futuro – e para o cenário por onde o branco o isolamento a que a sociedade pastoril foi
litorâneo penetra para, em seu périplo mítico – lançada pela administração colonial da capitania
prefigurado nas entradas e bandeiras –, 4 de Minas Gerais, no início do século XVIII,
possibilitar a emergência da civilização na nação houve progressivamente o abandono da área
brasileira. Subjacente à idéia de nação construída pela população branca, movimento que provo-
pelo pensamento social brasileiro, Mireya Suárez cou a emergência de uma outra dinâmica na
propõe que ele estabelece “a existência de um expansão colonial. Esse território teve reforçada
processo civilizador do qual resultam áreas sua condição de margem espacial e social, ao
civilizadas e áreas atrasadas” (2000, p. 14). Para ser ampliada a sua ocupação por negros
essa mesma autora, as noções de sertão e aquilombados e grupos indígenas fugindo das
sertanejo “referem-se a alteridades situadas frentes de expansão colonial em outras áreas
dentro dos contornos da nação brasileira” (idem, do território brasileiro. René Marc Costa Silva,
ibidem, p. 15) no estabelecimento de sua estudando um grupo negro dessa mesma área
civilização. E aqui vista como na perspectiva de geográfica, contesta o imaginário que faz dos
Elias (1994), em que a civilização apresenta-se sertões lugar de brancos, quando afirma que
como a consciência que o Ocidente tem de ser “também o território e o espaço social do ‘outro’,
superior e, no caso brasileiro, a consciência que da alteridade radical do branco [...] eram
o branco litorâneo tem de sua superioridade. Os considerados virtualmente adscritos à etnia
sertanejos, vistos como inferiores por sua cultura superior, eram embranquecidos e etnicizados”
diferenciada e estruturada sobre parâmetros (1998, p. 3). Neles, as populações não-brancas
distintos, bem como por viverem nas áreas não- que aí viviam construíram sua própria territo-
estruturadas da nação, situam-se em suas rialidade e espaço social, cuja diversidade étnica,
margens sociais, afirmadas como margens cultural e identitária foi negada. Mesmo assim,
espaciais. Nesse lugar marginal, requer-se que essas populações não-brancas recusaram ser
sejam reiteradamente derrotados e banidos para banidas das margens espaciais e sociais onde
além da representação construída, como explica instituíram suas realidades sociais distintas.
Suárez (1998) em “Sertanejo: um personagem Construído historicamente pelas populações
mítico” (1998). não-brancas como um espaço social de
O território baianeiro, nos primórdios de sua encontros de diversidades, o território baianeiro,
ocupação por populações não-indígenas, foi o como parte do sertão, situa-se nas margens da
locus privilegiado para onde acorreu uma imensa nação brasileira, sendo, como tal, parte do cerne
quantidade de negros que, vindo escravizados da nacionalidade. Situado nos limites políticos
da África, buscavam um lugar de liberdade no entre a sociedade mineira e a sociedade baiana,
qual pudessem organizar a sua própria vida. sua marginalidade, entretanto, não está vinculada
Nesse espaço não-estruturado da colônia, os a essa posição limítrofe. Outras regiões mineiras,
negros articularam-se com sociedades indígenas mesmo estando nos limites geopolíticos do
aí então existentes e construíram uma territo- estado, não estão marginalizadas na represen-
rialidade e um espaço social não-branco. Quando tação enunciada e legitimada. Para compre-
da frente de expansão da economia nordestina ender o seu lugar social, há a necessidade de
no século XVII, essa população empreendeu considerar essa região como a alteridade posta
lutas armadas, resistindo à ocupação de seu às margens na construção do “nós” mineiro e
território, sendo, entretanto, vencida pelos grupos que emerge quando se faz a leitura de Minas
bandeirantes a serviço dos nordestinos, princi- Gerais como o signo Minas Gerais. Esse signo
palmente bandeiras paulistas que aí prearam tem como significante a sociedade mineira de
maneira geral, que não é una, mas múltipla,
4. As entradas e bandeiras são consideradas por Velho (1976) conforme caracterização de Guimarães Rosa
como a primeira forma de expansão de fronteiras internas
do Brasil, quando se dá inicio à ocupação branca do territó- (1978) apresentada no início deste texto. Por
rio brasileiro. outro lado, a sua representação como significado
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anuncia Minas Gerais como uma unidade. Essa currais de gado [eles surgem], nas planícies
unidade só ocorre no plano discursivo, que em ou terrenos levemente ondulados [...] junto às
sua enunciação esconde a diversidade. Sua terras sem fim, do pastoreio” (1978, p. 266).
imagem está focalizada nas cidades auríferas e Seus discursos descortinam uma paisagem natal
sua paisagem fala de montanhas. Quando distinta da paisagem montanhosa das Minas
imbricadas, imagem e paisagem iluminam as Gerais.
Minas e “esquecem” os Gerais, a Mata e as É quando se encontram fora de sua região
outras regiões constituintes da realidade social natal, ou fora de Minas Gerais, que os baianeiros
mineira. Assim, a imagem e a paisagem são levados, em experiências de subjetivação, a
socialmente construídas por meio da ideologia se colocar no espaço intersticial entre a
da mineiridade expressam o espaço social e representação e a realidade conhecida com base
territorial mineiros como uno, obscurecendo a em sua experiência pessoal de vida. Desse lugar
existência de outras imagens e outras paisagens interrogam sobre a ausência da paisagem do seu
que, negadas, são banidas para as suas margens território regional e de sua identidade, também
espaciais. É importante ressaltar que a noção regional, na representação da sociedade mineira.
de paisagem articula tanto o ambiente físico Compreendidos como parte do sertão – lugar
quanto as populações e o modo de vida de de atraso, de incivilidade e de violência –, o
determinado espaço social. território e a identidade baianeiros não estão
Para os baianeiros, a compreensão de sua fixados na imagem e na paisagem legítimas de
paisagem natal, ausente da paisagem enunciada Minas Gerais. A sua presença é poluidora dessas
como imagem de Minas Gerais, ocorre quando mesmas imagem e paisagem. Essa percepção
são informados que falar em Minas Gerais é do território e da paisagem baianeiros como
falar de montanhas e do ouro com suas cidades agentes poluidores é corroborada por pesquisa
surgidas no alvorecer do século XVIII. A que, utilizando os conceitos geográficos de
experiência dá-se contrastavelmente quando “topofilia” e “topofobia”, procurou apreender e
migram para a capital ou outra região mineira, interpretar os sentimentos de amor e de aversão
ou mesmo para fora de Minas Gerais, por existente entre estudantes mineiros. Para eles,
motivos de estudos ou de transferência de as montanhas e as cidades históricas da região
residência. Cyro dos Anjos, um escritor nascido aurífera despertam sentimentos positivos,
numa cidade baianeira, mas residente no Rio de enquanto a paisagem do Norte sertanejo suja a
Janeiro, descreve em suas memórias um périplo imagem legítima de sua terra natal, produzindo
que fez por sua região natal, evocando uma sentimentos negativos e abjeção.
paisagem distinta da imagem legitimada, De outra forma, em deslocamentos pelo
“quando o caminho apanha a crista da chapada, território mineiro no sentido sul/norte ou leste/
amplas perspectivas se rasgam, escalonadas em oeste, depois de algum tempo qualquer viajante
ondulações que vão cambiando do verde para o ultrapassa a zona montanhosa, deixando para
azul, até se diluírem na fímbria. Tem-se a trás as fraldas da Serra do Espinhaço e de seus
impressão do mar” (1963, p. 215). Por sua vez, picos. O cenário aos poucos não se apresenta
Antônio Augusto Teixeira, que estudou por mais como montanhoso e locus da exploração
muito tempo em Ouro Preto, antiga capital do aurífera, passando a exibir uma seqüência de
estado, compara as duas paisagens, observando chapadas “aonde tanto boi berra” (Guimarães
que “esta Minas acidentada, das montanhas Rosa, 1986, p. 22). Nesse percurso, lançando-
escarpadas e vales férteis e profundos, de ínvios se mão da flânerie – gênero literário, atitude
caminhos [...], é diferente da nossa Minas diante de um cenário e, por isso, metodologia
baiana [...], das chapadas estéreis a perder de textual como deduzimos ser a proposta de
vista, amplos horizontes, onde o homem corre e Walter Benjamim (1994), estudando Baudelaire
o pensamento voa” (1975, p. 85). Simeão como um flâneur em Paris –, podemos observar
Ribeiro Pires, intelectual nativo que estudou na na plasticidade da cena percorrida que houve
capital mineira, ao discorrer sobre a gênese dos uma instrumentalização dos sentidos da
povoados no sertão mineiro, anota que “nos paisagem mineira colados à região montanhosa
COSTA, JOÃO BATISTA DE A. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade...

de Minas. Construídos a partir da realidade da enuncia sua diferença e o sintoma da margi-


região mineradora, apresentam-se como nalização a que a região foi lançada desde inícios
diferenciados e diferenciadores dos sentidos do século XVIII e que continua ainda recor-
vinculados à região de chapadas dos Gerais, rente. Na última campanha para eleição do
instrumentalizados para informar uma outra governador mineiro, todos os candidatos
realidade que não se fecha no território mineiro, posicionaram-se contrários à tentativa de
mas como sertão abre-se para o Brasil. separação do norte para a criação de um estado
Na construção de Minas Gerais como um autônomo, afirmando a necessidade de essa
paradigma para se olhar e ver, pensar e falar o região sair do isolamento e superar a pobreza e
estado de Minas Gerais, às minas foram jogadas também de conferir aos norte-mineiros a mesma
todas as luzes, por sua civilização vinculada ao condição de vida já alcançada pelas populações
ouro, por sua cultura urbana e por sua identidade de outras regiões do estado. Um dos candidatos
tornada hegemônica; aos gerais, suas especifi- chegou a pedir a todos os mineiros que tivessem
cidades obscurecidas foram vinculadas à mais compaixão para com os norte-mineiros.
barbárie, à natureza e à poluição, pela mistura Mas o que se diz em campanhas políticas no
de culturas aí vivenciadas. Essas situações Brasil nunca se efetiva em realizações práticas.
conformam-na como uma sociedade em Os baianeiros, desesperançados de toda e
fronteira. Iluminada por um lado e obscurecida qualquer promessa de inclusão, lançam-se mais
por outro, essas realidades informam a existência uma vez à tarefa de conduzir as rédeas de seu
de duas regiões mentais diversas, ambas destino coletivo.
originadas de frentes de expansão colonial Procuramos mostrar como o território
distintas. A caracterização de Guimarães Rosa baianeiro é negado por sua invisibilidade no signo
para o Noroeste e o Norte sertanejo apontam representacional Minas Gerais e é banido do
para esses sentidos colados ao grande sertão, discurso da mineiridade, que enuncia não a
onde em suas veredas emergem historicamente realidade social, espacial, cultural e represen-
à cena uma realidade social, uma cultura e uma tacional de todas as partes do Estado, mas o
identidade singulares, “esquecidas” no panorama significado construído por seus intelectuais e
geral do Brasil, que fixou seu olhar nas Minas e políticos e fixado na região aurífera – sinônimo
esqueceu em Minas os Gerais. Pode-se, ao final de civilização, de cultura, de berço da democra-
do deslocamento pelo território mineiro no cia e da brasilidade. Enquanto no signo Sertão
sentido sul/norte ou leste/oeste, afirmar com Mineiro, em si mesmo ou quando imbricado na
Carlos Drummond de Andrade (1977) que essa representação Minas Gerais, o território
será sempre uma viagem de revelações e, baianeiro e a sua identidade são empurrados para
apesar do poeta não o querer, o enigma de as margens do sistema social que os engloba, e,
Minas não permanecerá o mesmo. inclusive, para fora da realidade mineira, já que
A noção de “esquecimento” sempre a categoria sertão é usada também para pensar
recorrente nas narrativas midiáticas, nos estudos o Brasil. Ao hierarquizar essas realidades
científicos, nos discursos políticos e nos relatos regionais, o Norte sertanejo tem seu território e
pessoais dos baianeiros, quando falam de sua sua identidade banidos para além daquilo que
região ou de suas cidades, aponta para aquilo se define como Minas Gerais, mesmo que se
que Bhabha chama de linguagem da sobrepo- vincule o signo sertão, apondo-lhe o adjetivo
sição e do deslocamento de domínios da mineiro, apesar da tentativa ficcional de João
diferença, em que “as experiências intersubje- Guimarães Rosa, que, em toda a sua obra
tivas e coletivas de nação (nationess), o literária, procura recriar Minas, “não pela
interesse comunitário ou o valor cultural são excludência de partes, mas pelo acentuar de uma
negociados” (1998, p. 20). Para os baianeiros, delas, a mais excluída das partes, ou seja o norte
o conceito de “esquecimento” – termo forjado de Minas”, como afirma Sylvio de Vasconcellos
nas fronteiras da discriminação cultural e (1968, p. 114). A tentativa forçada de incluir a
exclusão social, política, cultural e represen- realidade social baianeira no signo Minas
tacional – é, ao mesmo tempo, o signo que Gerais, por meio do signo Sertão Mineiro,
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apresenta-se como uma aporia, que não resolve lugar chamado Gado Bravo, aí dentro onde
o enigma de Minas, apenas torna-o insolúvel, tinha uma mataria grande e o gado andava solto
se considerado a partir da realidade norte- nas terras comuns. Era tudo bravo. Então eu
sertaneja. disse, por isso, que eu nasci em Minas Gerais,
no norte, quase na linha da divisa com a Bahia.
Mas, então, eles falaram que eu era baianeiro.
A identidade baianeira: a consciência de Virgem Santa, achar que eu sou meio gente?
ser outro em Minas Gerais Que nem sou mineiro e que nem sou baiano?
Senti como se tivesse recebido um tiro na boca
Para mostrar a identidade baianeira do estômago. Minhas vistas se anuviaram de
engendrada na consciência dos sujeitos que raiva. Aí eu disse, gente, eu sou norte-
vivem no norte sertanejo, em situação de mineiro!”
fronteira, recorremos a um depoimento de um E depois, o que aconteceu?
lavrador familiar, do tipo camponês, que
“Eles começaram a rir de mim e um falou: ‘tá
sazonalmente migra de sua propriedade para
bom, você é mesmo é baianeiro!’. Eu só não
outras regiões agrícolas do país. Ele busca, com
parti para cima deles porque o capataz chegou
os recursos financeiros arrecadados, viabilizar dizendo para a gente ir colher café. Eu fiquei a
a reprodução social de sua família, enquanto tarde inteirinhazinha, todinha, remoendo aquele
uma unidade camponesa. Em seu movimento desaforo. Vê só, dizer que não sou gente inteira.
sazonal, ocorreu um processo de deslocamento Eu sou é muito homem.”
e disjunção no interior de sua identidade E, depois, o que o senhor fez quando voltou a
geopolítica, a mineira, que acreditava ser aquela encontrar essas pessoas?
que lhe dava o sentido de pertencimento e de
“Nada, não fiz nada. É que eu me lembrei que
solidariedade coletivos. Ao ser constrastiva-
na Bahia, quando fui para o serviço de
mente informado de sua identidade desseme- eucalipto lá em Cocos, os baianos me chamaram
lhante, ele se viu num entre-lugar, que, para de mineiro cansado. Aí eu fiquei bestuntando
Bhabha (1998), tanto pode ser momento ou nas minhas idéias. Se os baianos falam que nós
processo. Lançado em um exercício de estra- somos mineiros cansados porque não conse-
nhamento quando inserido num processo de guimos ir para São Paulo, não é? E os mineiros
sociabilização com outros sujeitos de cujas dizem que a gente é baiano e quando eu falei
identidades pensa compartilhar ou não, esse que era norte-mineiro, eles me chamaram de
lavrador viu emergir em sua consciência um baianeiro. Deve ser porque eu não sou nem
novo signo de identidade. E, como poderemos uma coisa nem outra, não é? A gente cá desse
sofrido norte deve ser uma espécie diferente
ler no depoimento a seguir integralmente
de gente, não é? Eu fiquei bestuntando nas
transcrito, compreendeu-se como um outro, uma
minhas idéias a tarde inteirinhazinha, depois
alteridade vivendo às margens do sistema que passou a raiva colhendo café.”
identitário e do sistema social. É por meio de
uma lógica binária que a diferença identitária é E que espécie de gente diferente o senhor é?
construída em sua consciência: mineiro/baiano; “Eu sozinho não, esse mundão de gente que
baiano cansado/mineiro cansado. Finalmente, vive neste norte seco e sofrido. Mas só para
sintetizou-se num novo signo de identidade: os fracos, não é, que os fortes, esses fazem o
baianeiro, “essa espécie diferente de gente”. que quer. Mas eles também, nós todos,
formamos uma nação diferente de gente, essa
nação de baianeiros. Deve ser por isso que nós
Quando perguntado se já fora chamado de
somos mais pobres que os pobres de Minas e
baiano, baiano cansado ou baianeiro, José
da Bahia, não é?”
Lima, lavrador e migrante sazonal rural, revelou-
nos a identidade baianeira como uma alteri- O senhor já trocou essa idéia com alguém?
dade, vivida em situação de fronteira.
“Falaram que eu estava era ficando mole da
“Na verdade, quando falaram que eu era baiano, idéia. Um falou ‘está louco Zé, deixa de ser
eu disse que não, porque eu na verdade não besta, nós somos é da nação dos mineiros’.
sou, eu disse que sou norte-mineiro. Nasci num Mas depois uns falaram ‘não é que você tem
COSTA, JOÃO BATISTA DE A. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade...

algum fio de razão’.. Me deu um refrigério “outridade” (otherness), ou seja, a identidade


pensar que eu não estava ficando mole da idéia. mineira é apenas um pedaço de si, tornando-o
Porque idéia de um homem se não for igual um ser fragmentado, apesar de não se querer
idéia de outros homens, deve ser porque ele meio gente, mas homem inteiro.
está ficando é mole, querendo ficar nos cantos
Ao se ver assim, ao mesmo tempo, fala de
abestalhado. Virgem Santa, meu Bom Jesus me
proteja disso. Mas que nós somos uma espécie
sua exclusão na estrutura social regional. Sua
de gente diferente, isso nós somos. É essa gente condição de lavrador, entretanto, não o impede
toda desse norte de Deus, que agora está cheio de compreender a vivência de um compartilhar
de cancela, somos todos uma nação de de identidade, pois, apesar da existência de
baianeiros. Uma gente nem baiana e nem fracos e de fortes, os baianeiros encontram-se
mineira, não é? Mesmo que a gente diga que marginalizados, como um outro, do “nós” mineiro.
nós somos mineiros. Vá entender, Deus, essas Nessa compreensão, encontra-se anunciada a
loucuras.” existência de um sentimento de pertencimento
e de solidariedade regional distintos do
Nessa narrativa do seu processo de sentimento de pertencimento e de solidariedade
subjetivação formador de uma nova consciência, mineiros. Ao mesmo tempo, o camponês
quando em confronto com outras pessoas, baianeiro aponta para a existência de uma
camponeses como ele, primeiramente o territorialidade diversa daquela da lógica
baianeiro José Lima expõe sua enorme dúvida: dominante – e, nas entrelinhas, informa os
afinal quem sou eu? De que “nós” identitário conflitos decorrentes da imposição de uma
faço parte? O nós mineiro? Percebe-se, então, estrutura agrária instituída sobre a propriedade
que há instâncias em que se encontra englobado, privada, oposta ao uso comum e não-compar-
ao mesmo tempo em que há instâncias em que timentada –, que se verificava no território
se sente excluído. Seu englobamento é regional e hoje é recorrente apenas entre as
sobretudo geopolítico – vive no estado de Minas comunidades remanescentes de quilombos, das
Gerais, onde apesar de pagar tributos, vê-se comunidades de geraizeiros5 e da comunidade
excluído dos benefícios coletivos gerenciados indígena existente. Assim, José Lima, como
pelos organismos de Estado. Percebe-se, ainda, qualquer outro baianeiro que tenha experienciado
nessa instância geopolítica, como subsumido na confrontos identitários em suas migrações
hierarquia dos lugares estabelecidos. E, por fim, sazonais, diásporas e deslocamentos sociais, vive
enxerga que, como qualquer outro residente no um momento que Bhabha (1998) conceitua como
amplo território mineiro, faz parte de Minas “entre-lugar” e, a partir daí, em estratégias de
Gerais. Mas nota sua condição de marginalidade subjetivação, dá início a um novo signo de
social, política, cultural e representacional, pois identidade e se assume como o “outro”, nem
ideologicamente compreende-se excluído desse mineiro nem baiano, mas baianeiro. Um sujeito
mesmo “nós”. Quase diz literalmente: eu sou que se quer inteiro, mas que não se realiza como
outro. Nas entrelinhas de seu discurso, afirma tal coletivamente.
sua identidade coletiva como a negação do “nós” Para ampliar ainda mais a possibilidade de
mineiro e enuncia sua condição de, enquanto compreensão da interpretação que o sujeito
baianeiro, viver às margens do sistema social baianeiro faz de si como uma alteridade,
que pretende englobá-lo. Vendo-se a si mesmo transcrevemos a seguir um poema da safra de
como uma alteridade, a partir do outro, o lavrador Walter Cruz, coletado por nós numa tarde de
baianeiro informa que, na sua condição, não é domingo em Montes Claros (MG), quando da
permitido o englobamento. De outra forma, realização de uma manifestação popular a favor
podemos ver na enunciação da consciência da paz e contra a violência. Sabendo-se um
identitária de José Lima a afirmação de que, outro, o poeta afirma sua identidade distinta que,
sendo uma alteridade, assim permanece, embora
esteja incluído geopoliticamente no “nós” 5. Geraizeiros é denominação regional para as populações
que, vivendo no entorno das chapadas, incluem-na pelo uso
mineiro. A consciência de sua alteridade comum em sua estrutura produtiva para coleta de frutos,
também permite-lhe compreender-se como uma lenha e criação de gado de forma extensiva.
SOCIEDADE E CULTURA, V. 5, N. 1, JAN./JUN. 2002, P. 53-64

enunciada como um ato político, apresenta-se deslocando seu lugar social de Minas Gerais para
capaz de criar confusão no campo semântico o Brasil.
do signo Minas Gerais ou da identidade mineira. A consciência de ser distinto não é viven-
Por isso é bom ter cuidado, pois o poeta, ao ciada, apenas, por alguns poucos sertanejos do
enunciar-se como do “norte de Minas”, não está norte. Na primeira quinzena de setembro,
se dizendo mineiro, mas “uma espécie diferente quando da realização do Carnamontes, evento
de gente”, como nos comunicou José Lima em carnavalesco realizado nos moldes do carnaval
seu discurso explicitador do baianeiro como baiano e fora do período momesco, um músico
alteridade do mineiro. da banda Asa de Águia, tentando propiciar aos
participantes do evento a enunciação do orgulho
Abram alas para minha lira/ preparem-se,/ por sua terra, viu-se numa saia-justa. Conforme
ouçam meu brado. diversas pessoas narraram-nos o acontecido, ele
Eu sou do Norte de Minas,/ por isso é bom ter disse: “E aí mineirada, vamos cantar o orgulho
cuidado. que vocês têm por Minas Gerais, vamos lá,
Não trago em minha bagagem/ bobagem nem cantando ‘eu... sou mineiro, como muito orgul...’.
enganação. O que está acontecendo? Vocês não gostam de
Trago um quinhão de verdade,/ pra tocar teu sua terra?”. O que acontecera é que uma ínfima
coração. parte dos 150 mil presentes fez coro ao cantor.
Falar da vida dos fracos,/ dos fortes não tenho Então, ele incitou os participantes: “Vamos lá,
inveja, cantem o amor de vocês por sua terra, vamos
nem dos mineiros, nem de Minas./ Porque sou lá, cantando (e a multidão enunciou) eu sou...
do meu sertão. norte-mineiro, com muito orgulho, com muit...”.
E o cantor desabafou: “não estou entendendo
Ao enunciar a consciência de ser alteridade, nada!”. Num evento público que reúne jovens
o poeta define o espaço social baianeiro, das mais variadas cidades da região baianeira,
marginalizado, onde emerge sua identidade ao serem incitados a demonstrar o orgulho do
diferenciada, ao mesmo tempo em que focaliza seu pertencimento, os baianeiros foram
seu espaço como vivido em fronteira. Apoiado colocados num lugar de fala. Ao enunciarem,
em sua experiência de liminaridade, ele se faz através do canto, sua realidade, aqueles que
capaz de colocar politicamente em foco o eram informados e conformados pelo signo
significado das fronteiras histórica e discursiva Minas Gerais, formador do imaginário nacional
da subordinação regional. Sua voz subalterna a respeito da sociedade mineira, só poderiam
diz que “a fronteira se torna o lugar a partir do ficar desentendidos do dito. Simbolicamente,
qual algo começa a se fazer presente em um podemos dizer que, ao canto dos 150 mil jovens
movimento não dissimilar ao da articulação no carnaval temporão, juntou-se a voz do
ambulante” (Bhabha, 1998, p. 24), por isso não camponês José Lima e do poeta Walter Cruz
traz em sua bagagem bobagem nem enga- para enunciar juntos: eu sou baianeiro, nem
nação, mas sim um quinhão de verdade. Qual mineiro nem baiano, uma espécie diferente de
seja, a de compartilhar, no norte de Minas, com gente.
milhares de pessoas, a condição de ser outro,
nem baiano nem mineiro. Sua condição de
subalternidade é informada quando se posiciona
Abstract: Baianeiro identity and territory, built from
politicamente para falar da vida dos fracos.
Brazilian social thinking and from the symbolic
Nesse ato político enunciatório, o poeta revela representation of the state of Minas Gerais, Brazil, present
a estrutura de subordinação e se recusa a utilizar themselves as the result of social processes that, in a
sua voz para falar das coisas sociais, políticas, culturaly diverse society, hierarquises (from the centre of
culturais e representacionais do pólo dominante, power outwards) the manifold regions that constitute its
social system. From the social signs Minas Gerais and
pois são bobagens e enganação. Ele, também, Sertão Mineiro, I intend to ‘read’ the content that informs,
afirma-se às margens espaciais e sociais da both isolatedly and in the interface between both. This
nação, ao remeter-se ao signo sertão, assim ‘reading’ allows for the apprehension of the specificity
COSTA, JOÃO BATISTA DE A. Fronteira regional no Brasil: o entre-lugar da identidade...

of the marginal position, both social and spatial, in which Educacionais; Ministério da Educação e Cultura,
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