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legitimação das demandas dos atores (:204), isto é, na medida em que a sua
em oposição às práticas vigentes. Pois, adoção possa ser interpretada como um
ao identificar-se com a idéia de espon- ato de vontade do pesquisador. Pois, se
taneidade, característica de atitudes tomarmos atenção ao (ou consideração
e/ou ações que, ainda que desejáveis, do) ponto de vista nativo como um pres-
dependem exclusivamente da vontade suposto ético-moral da interpretação
dos atores, a noção de gratuidade não antropológica, a qual não pode funda-
viabiliza a interpretação de que a au- mentar suas pretensões de validade
sência de práticas assim orientadas (por sem se reportar às elucidações produ-
esta gratuidade) possa ser percebida zidas nesse diálogo com os atores, a
como uma falta de respeito ou mesmo opção pela caridade torna-se um passo
como uma agressão a direitos. desnecessário.
Por outro lado, se, ao tomar a refle- De qualquer forma, as interpreta-
xão antropológica como um commit- ções efetivamente empreendidas por
ment, Velho leva a sério as pretensões Velho são sempre ricas e reveladoras,
de legitimidade das demandas de seus motivando o leitor a se engajar nos pro-
“informantes”, o autor também não dei- blemas que o autor propõe, não apenas
xa de se preocupar com os problemas da perspectiva de um receptor de infor-
de validação da interpretação do antro- mações, mas do ponto de vista de um
pólogo enquanto tal. Desse modo, nas interlocutor pleno.
várias formulações que utiliza para ca-
racterizar sua perspectiva na antropolo-
gia, faz questão de marcar sua distância VIANNA, Hermano. 1995. O Mistério
do “niilismo solipsista subjetivista” (:74) do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/
que tem tido uma influência significati- Ed. UFRJ. 196 pp.
va na disciplina, seja ao propor uma
antropologia da relação ou do relacio-
namento (capítulos 2 e 4), ao sugerir a Christopher Dunn
possibilidade de uma antropologia da Prof. da Tulane University
transcendência (capítulos 8 e 9), ou
quando discute o balizamento da pro- Tanto a literatura acadêmica como o
dução de sentido (capítulo 9) e a possi- próprio imaginário popular tendem a
bilidade de se falar em realidades no conceber a história do samba como uma
plural (capítulo 10). descida heróica e quase espontânea, no
Entretanto, embora tenha grande final da década de 20, do “morro” para
simpatia pela perspectiva mais geral do a “avenida” – da favela ao espaço privi-
livro, assim como uma grande identida- legiado das camadas médias e da bur-
de com a proposta de se manter a abor- guesia. No livro O Mistério do Samba,
dagem antropológica igualmente dis- Hermano Vianna narra uma história
tante do niilismo e do cientificismo mais gradual, mediada e, às vezes, con-
(:195), e também me identifique com traditória, na qual as elites cultural e
sua crítica à “obsessão pelo poder” que política do Brasil, sobretudo do Rio de
parece ter invadido as ciências sociais Janeiro, elevaram o samba ao estatuto
(:199), não posso deixar de manifestar de expressão cultural “original e autên-
um certo desconforto com sua defesa do tica”, mesmo quando as autoridades
princípio de caridade como um “pres- continuavam a controlar e reprimir os
suposto indispensável à compreensão” músicos. Segundo Vianna, “a transfor-
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mação do samba em música nacional e paulistas manifestaram, já no começo


não foi um acontecimento repentino, dos anos 20, um certo fascínio pelas
indo da repressão à louvação em menos “coisas brasileiras”, havendo, portanto,
de uma década, mas o coroamento de um clima cultural que propiciava a
uma tradição secular de contatos entre aceitação da mestiçagem como fator
vários grupos sociais na tentativa de in- definidor da cultura brasileira. Vianna
ventar a identidade e a cultura popular ressalta a história de Pixinguinha e sua
brasileiras” (:34). Nesse excelente estu- banda, Os Oito Batutas, a orquestra
do, entendemos melhor o papel dos for- mais importante durante a primeira
muladores de opinião nessa transfor- fase do samba moderno. Quando es-
mação. treou em 1919, o grupo foi recebido ini-
A consagração do samba como rit- cialmente com desdém por críticos ra-
mo nacional acompanha, segundo Vi- cistas, que ficaram escandalizados ao
anna, a transformação no modo de pen- ver no centro da cidade uma orquestra
sar a mestiçagem – entendida aqui de negros. Mas, um ano depois, o grupo
como fenômeno racial e cultural – du- foi convidado oficialmente a se apre-
rante as primeiras décadas do século sentar para os reis da Bélgica que visi-
XX. Sílvio Romero, por exemplo, valori- tavam o país e, em 1922, a participar
zava a mestiçagem como garantia de das comemorações do centenário da
uma identidade cultural original, en- independência. Para Vianna, tais opor-
quanto a maioria de seus contemporâ- tunidades para os sambistas sugerem
neos a considerava um impedimento que “a ‘sociedade brasileira’ já estava
sério ao desenvolvimento nacional. Na preparada para aceitar aquela música
década de 20, vários grupos de intelec- mestiça, inclusive para representá-la
tuais, inclusive os modernistas de São em cerimônias oficiais” (:116).
Paulo, celebravam a mestiçagem e as Vianna se detém nos laços e afini-
expressões de cultura popular como dades pessoais que ligavam os sambis-
emblemas de “autenticidade”. Mas foi tas cariocas, que estavam desenvolven-
Gilberto Freyre, então um jovem inte- do o samba moderno e orquestrado, e
lectual de Pernambuco, quem mais afir- membros da elite intelectual brasileira
mou a centralidade do negro na forma- em busca de manifestações culturais
ção da cultura brasileira. Com Casa- consideradas “originais”. Um encontro
Grande & Senzala, Freyre substituiu a especialmente notável, em 1926, juntou
velha ansiedade sobre os supostos efei- Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira
tos degenerativos da miscigenação por – três sambistas do grupo Os Oito Batu-
uma visão celebratória da mestiçagem. tas – com Gilberto Freyre, Prudente de
As idéias de Freyre, à primeira vista Morais Neto, Sérgio Buarque de Hollan-
muito avançadas, serviam para minimi- da e Heitor Villa-Lobos, para uma gran-
zar, ou mesmo apagar, qualquer identi- de “noitada de violão”. Para Vianna,
dade politizada na base da raça ou este encontro entre intelectuais e artis-
etnia. Freyre temia “a constituição de tas eruditos de famílias brancas e ricas
um ‘Nós’ dentro do ‘Nós’ nacional” (:88). e músicos negros ou mestiços pobres
É claro que esta visão também serviu “pode servir como alegoria, no sentido
aos interesses do Estado Novo, que pro- carnavalesco da palavra, da ‘invenção
movia oficialmente, no final dos anos da tradição’, aquela do Brasil Mestiço,
30, uma cultura unificada. onde a música samba ocupa lugar de
Segundo Vianna, as elites cariocas destaque como elemento definidor da
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nacionalidade” (:20). Logo depois, Frey- cussão mais abrangente desse campo.
re escreveu um artigo para o Diário de Onde localizar, por exemplo, a posição
Pernambuco, notando que já havia no dos compositores e músicos do samba?
Rio “um movimento de valorização do Além da discussão sobre a trajetória dos
negro”. Referiu-se, então, à noitada de Oito Batutas e alguns comentários so-
samba como sinal de um Brasil real bre o bloco Deixa Falar (que se trans-
emergente que havia sido encoberto formou, em 1928, na primeira escola de
“pelo Brasil oficial e postiço” (:27). samba, a Estácio), o autor praticamente
Outros fatores, além da convergên- ignora alguns dos mais importantes
cia entre intelectuais e músicos, contri- sambistas da época, como Paulo da Por-
buíram para o sucesso nacional do sam- tela, Cartola, Carlos Cachaça e Arman-
ba. Vianna examina, por exemplo, a do Marçal.
importância da implantação e expansão Seguindo as linhas de Néstor Gar-
dos meios de comunicação de massa no cia Canclini, Vianna pretende mostrar o
final dos anos 20. Esse processo, que te- caráter “híbrido” da cultura popular,
ve avanços significativos durante os levando em conta sua interação com a
anos 30, consolidou a posição destaca- cultura erudita, mas não nos mostra co-
da do Rio de Janeiro como a capital cul- mo os sambistas negociavam essa rela-
tural do Rio. Por vezes, Vianna exagera ção. Como deixar de mencionar, por
a hegemonia cultural do Rio, como, por exemplo, o primeiro samba-enredo, Ho-
exemplo, quando afirma que “o carna- menagem (composto por Carlos Cacha-
val do Rio, exportado para o resto do ça para o carnaval de 1934), que procu-
Brasil (existem escolas de samba em ra justamente lançar uma ponte entre
Manaus e em Porto Alegre) serviu de os “imortais que glorificaram nossa
padrão de homogeneização para o car- poesia” (Olavo Bilac, Castro Alves e
naval de todo o país” (:124). Ora, exis- Gonçalves Dias) e “os pequenos poetas
tem escolas de samba em Salvador tam- que vivem cantando na verde colina”?
bém, mas nem por isso podemos dizer Aliás, a ausência quase completa de le-
que o carnaval baiano tenha adotado tras de sambas populares da época, que
um padrão carioca. É verdade que o Rio muitas vezes revelam como os composi-
serviu de palco para a nacionalização tores pensaram a transformação do sam-
do samba, mas tanto Salvador como ba, é uma lacuna do livro.
Recife tiveram ritmos e danças distintos Paulo da Portela destacava-se como
(ijexá e maracatu), e estes sempre man- um sambista especialmente hábil em
tiveram posições de destaque nessas ci- lidar com as autoridades e em promo-
dades. ver sua própria imagem de “mediador
O cerne do argumento de Vianna é transcultural” (para usar um termo caro
que “a invenção do samba como músi- a Vianna) entre os subúrbios pobres, a
ca nacional foi um processo que envol- sociedade burguesa, a imprensa cario-
veu muitos grupos sociais diferentes” ca e as autoridades municipais. Em
(:151). Assim, podemos entender o sam- 1937, depois de meses de uma “campa-
ba dentro de um campo de produção nha” informal, Paulo foi eleito “Cida-
cultural que depende, em parte, dos crí- dão-Samba” pelo jornal A Rua. Falta
ticos, defensores e outros agentes cul- em O Mistério do Samba uma análise
turais para gerar os valores e significa- mais detalhada da atuação tática dos
dos dessa música. Vianna poderia ter compositores e músicos e não só da de
reforçado seu argumento com uma dis- seus defensores na elite intelectual.
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Para usar os termos de Bourdieu, quais está certo quando escreve que “o ‘au-
eram as “tomadas-de-posição“ dos pró- têntico’ nasce do ‘impuro’” e que com-
prios sambistas dentro desse “campo positores e intérpretes brancos, como
de luta” para a hegemonia cultural? Noel Rosa, participaram na definição do
Como contribuíram para mudar o eixo samba tido como “autêntico”. Assinalo,
do debate sobre a “brasilidade”? porém, que o “mistério do samba” – sua
Outro aspecto que mereceria mais migração gradual da periferia para o
atenção é a história institucional do centro da cultura nacional – envolveu
samba. A partir de 1934, a União de um processo mais abrangente de privi-
Escolas de Samba promovia os interes- légio e seleção, que teve, mesmo quan-
ses dos sambistas e defendia seus direi- do sutil, significados raciais.
tos autorais. No mesmo ano, o governo Voltemos a Gilberto Freyre e o ideal
municipal começou a patrocinar as es- do “Brasil Mestiço”. Vianna conclui: “o
colas de samba através do Departamen- discurso da homogeneidade mestiça
to de Turismo. Além disso, os jornais criado no Brasil através de um longo
davam cada vez mais cobertura para as processo de negociação, que atinge seu
escolas de samba, organizavam concur- clímax nos anos trinta, tornou ‘atos
sos, entregavam prêmios etc. Ao escre- decisivos’ possíveis e aceitos [...], inven-
ver que “as relações de diversos grupos tando uma nova maneira de lidar com
nunca se institucionalizaram” (:151), os problemas da heterogeneidade étni-
Vianna subestima a rede de relações ca e do confronto erudito/popular”
que ligava a União, as diversas escolas, (:154). Reconhece que esse “estilo” de
a imprensa e o governo, o que permiti- “imaginar” a nação talvez já tenha se
ria traçar alguns distinções dentro do tornado anacrônico em um mundo capi-
campo do samba, gênero que nunca foi talista fragmentário e multicultural. Por
homogêneo. Mesmo que o samba tives- vezes, Vianna parece olhar para esse
se sido consagrado como música nacio- mundo com ansiedade (“existe ainda a
nal nos anos 20 e 30, só o estilizado e possibilidade de um ‘nós’ brasileiro”?)
orquestrado samba-canção foi ampla- ou mesmo com nostalgia do passado
mente gravado e divulgado no rádio. (“um dia nós descobrimos, com Gilber-
Cartola e Carlos Cachaça, da Manguei- to Freyre, o orgulho de viver num país
ra, compuseram muitos sucessos de rá- moreno, onde tudo é misturado”) (:157).
dio, gravados por Francisco Alves, Má- O estudo conclui, contudo, reconhecen-
rio Reis, Carmen Miranda, Araci de Al- do as “perigosas pretensões universa-
meida e outros. No entanto, esses com- listas” e o “efeito paradoxal/ perverso”
positores não tiveram oportunidade, na do projeto freyreano. Estas meditações
época, de gravar suas próprias músicas. finais talvez tivessem servido melhor
Isto só veio a acontecer muito mais tar- como ponto de partida.
de. O samba encarnava o “Brasil Mesti-
ço” de Freyre, mas foram geralmente os
intérpretes brancos de classe média
quem mais se beneficiaram da sua con-
sagração como música nacional. Isto
não significa dizer que existiria um
samba primordial e “autêntico” dos ne-
gros, apropriado e deturpado por bran-
cos e pela indústria cultural. Vianna

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