Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A ação cultural e a
dimensão criadora
Suzana Schmidt1
Resumo
Abstract
T
nas dívidas a pagar, nas tarefas que não
consegui ainda concluir, em um ou outro
odas as manhãs eu me
sonho possível, nos sorrisos da minha filha e
levanto, me lavo, tomo café
no homem que gostaria de beijar. Apresso o
com biscoitos, me visto.
passo, pois estou invariavelmente atrasada
Elaboro uma autoimagem
e cruzo a rua quase sempre me desviando
condizente com o clima,
de veículos rápidos, com seus condutores
com minha idade, meu trabalho, com os
também atrasados para seja lá o que for -
olhares que quero dispensar ou atrair, com
ou parados em congestionamentos que
minhas necessidades de deslocamento pela
permitem uma ou outra conversa, ou
cidade e com as diferentes atividades que
consulta à internet no celular.
empreenderei ao longo do dia. Brinco com
Pego o primeiro ônibus que passa,
minha filha, a lavo e alimento e a arrumo
desço na Praça da República, onde
de acordo com o clima e suas necessidades
uma nova série de eventos, lugares,
sociais e pessoais de ir à escola, de brincar
paulistanos, nordestinos, nigerianos,
e se sujar ao longo do dia.
igrejas, moradores de rua, guardas
Saio para caminhar até o ponto de ônibus, de trânsito, escolas públicas, lojas,
deixo meu bairro arborizado observando restaurantes por quilo e mini-shoppings
as folhas mais ou menos verdes, de acordo de produtos contrabandeados cruzam
com a estação do ano, e os cachorros que o meu caminho, meu olhar, meus
disputam espaço na calçada, liderados pelo pensamentos e sentidos. Finalmente
futncionário do serviço de dog walking. Sinto chego ao meu local de trabalho, me
o vento mais ou menos quente, as flores identifico para o serviço de segurança e
fechadas ou abertas e sorrio sempre que pego o elevador. Chego ao oitavo andar,
me atravessa uma revoada de passarinhos. onde me fecho em uma sala quente e
Aos poucos as árvores escasseiam, a fumaça me sento mais ou menos confortável,
aumenta e me aproximo do centro da na companhia de colegas mais ou
cidade. Passo pela escola da minha filha, menos íntimos. Discuto por horas a
pela academia de ginástica, onde homens e fio as possíveis ações e procedimentos
mulheres mais ou menos gordos mostram para novas reuniões, orientações e
seu esforço em direção à saúde e à boa encontros, mais ou menos eficientes,
forma pelas imensas janelas de vidro; passo em um projeto de política pública para
pelo laboratório de engenharia genética, o desenvolvimento de ações artístico-
pelo salão de cabeleireiro, pelo edifício pedagógicas ao longo de toda extensa,
de alto luxo em construção, pelo hotel de caótica e dinâmica metrópole de São Paulo.
pernoites, pelo supermercado kosher e pelos Nesse breve percurso, uma série de
botecos que servem café, pastel, cerveja e símbolos, acontecimentos, imagens e desvios
pão de queijo, alimentando seus clientes constroem o mapeamento provisório de
também de informações 24 horas expostas uma realidade que se revela em vários
nas telas de LCD que, ao lado dos relógios, substratos dobrados infinitamente uns
ornamentam invariavelmente as paredes de sobre os outros, e que possibilitam minhas
todo lugar de refeição e encontro público. leituras da realidade, contrastada com a
reinvenção constante da minha memória e
1 Mestre em Teatro-Educação pela ECA-USP, autora do livro
"As regras do jogo: a ação sociocultural em teatro e o ideal
dos meus processos de vida.
democrático" (SP: Hucitec, 2005). Atua na formação de professores
e orientadores de processos artístico-pedagógicos. É também 2 "O animal caça-às-cinco-horas"; "um-cavalo-cai-na-rua",
dançarina e diretora de teatro, tendo participado por dez são exemplos de composições em que, segundo Deleuze, os
anos do grupo Minik Momdó. Tem atuado como professora seres não se destacam mais do cenário nem da atmosfera,
conferencista do curso de Licenciatura em Artes Cênicas, da mas são compostos imediatamente, originariamente com
ECA-USP e atualmente é coordenadora pedagógica do Programa eles (ZOURABICHVILI, François. Vocabulário Deleuze. Ifch-
Vocacional, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. UNICAMP, 2004, p.44).
Todos os dias somos atravessados por Como lançar então esse confronto à
inúmeras imagens-movimento2 que fazem prática artística, para que esta, ao deixar
parte não apenas do nosso cotidiano, mas de ser representação de formas, abra uma
que constituem nosso imaginário e afetam brecha na possibilidade de reconstruir
continuamente nossa subjetividade, subjetividades? Como lançar-se no campo
elaborando-nos constantemente em uma do risco e das possibilidades imprevisíveis
cartografia de afetos e percepções que nos do aqui-agora, para permitir o afetar-se e o
assombram e se relacionam com outros reformular-se constantes que implicam na
afetos e percepções, materializando-se re-territorialização de consciências, em novos
como ações, objetos e discursos no campo desejos, novos campos de possibilidades de
da cultura. Esses percursos cotidianos compreender-se enquanto ser em relação
quase sempre nos passam despercebidos, com o mundo? Como permanecer sempre
pois no caminhar entre lugares e referências à deriva, na luta constante por obter a
estão imersos também os nossos desejos sobrevivência de uma cultura que, para
e sentidos. A rapidez dos hábitos e poder permanecer, talvez tenha que ser
necessidades do dia a dia nos impede de constantemente destruída? E, finalmente,
perceber que somos na verdade constituídos como empreender projetos de políticas
por esse emaranhado de agenciamentos, do públicas de cultura em um mundo refém de
conjunto das relações materiais, simbólicas si mesmo, de valores e práticas muitas vezes
e de desejos que marcam nossos próprios obsoletos que custam a enterrar os seus
domínios e identificações subjetivas. mortos e abrir-se para a possibilidade de
Como podemos então suspender novas experiências, de novos significados e
essa realidade e nos deixar escapar dessa modos de ser e estar no mundo?
ordem que nos define a percepção, a
afetividade e o pensamento, enclausurando
nossa experiência em formas prontas,
Mutabilidade e permeabilidade
determinadas pela própria cultura?
Como encontrar fendas nos trânsitos Nessa busca pelo entendimento e
automaticamente realizados no dia a dia e prática da ação cultural enquanto abertura
permitir-nos ir ao encontro da vida em sua de campos para a reformulação da própria
dimensão criadora? E como, a partir dessa práxis política - conceito compreendido
suspensão, possibilitar novos olhares e aqui como sentimentos, discursos e
construir novos sentidos e possibilidade de ações que se lançam no espaço público -
ser e estar no mundo? propomos a investigação da experiência
É nesse sentido que compreendemos a criativa como campo de experiência viva,
ação cultural: como qualquer ação, no campo e de seus processos constitutivos como
da cultura, capaz de interromper e desviar processos orgânicos. Nesse sentido, é
o fluxo cotidiano dos hábitos e valores dos preciso o aprofundamento das relações
agenciamentos e da indústria cultural, entre seus componentes, para que se
permitindo que linhas de fuga criem novos abram em seus graus de permeabilidade,
territórios, novas possibilidades de viver, possibilitando trocas múltiplas que afetem
de sentir e de habitar melhor o mundo. constantemente o equilíbrio-desequilíbrio
A ação cultural baseia-se diretamente na desses processos. Essas relações de
produção simbólica de um grupo, sendo alteridade são capazes de romper as
necessário então inverter o processo do zonas aparentemente impermeáveis e
consumo para a criação de novos conceitos, confortáveis dos agenciamentos, para deixar
relações e materiais que não se limitem a escapar novas formas que se estruturam
apenas reproduzir ou representar formas em criações de novos sentidos, na relação
ou pensamentos, mas criar novas visões de objetivo-subjetiva da elaboração e
mundo e possibilidades de existência. compartilhamento da própria obra artística.
Referências bibliográficas