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N° 17 | Setembro de 2011 U rdimento

EM PROCESSO: IMAGENS E
MEMÓRIAS COMO MATERIAIS DE
CRIAÇÃO NO CONTEXTO DO DRAMA
Wagner Monthero1

Resumo

Este artigo relata e analisa um experimento onde o recurso


de imagens visuais é utilizado como matriz para os processos
de criação em Drama/Teatro. O objetivo foi investigar
a interação imagem-memória no contexto do drama. Os
procedimentos incluíram observação, materialização e
seleção de imagens como base para criação de ações. As ações
foram inseridas no contexto do Drama através da utilização
do texto como pré-texto e do estímulo composto. Os
resultados alcançados permitiram problematizar os processos
de subjetivação quando confrontados com a criação coletiva
dentro de um contexto ficcional.

Palavras-chave: atuação, materiais, drama, contexto de


ficção, estímulo composto.

Abstract

This article describes and analyses an experiment where


images are used as stimulus to develop creation processes in
Drama/Theatre. The aim was investigating the interaction
between image and memory within the drama context.
The procedures included observation, materialization
and selection of images as starting point for the creation
of actions. The actions were inserted in the drama context
through the text as pre-text and the compounding
stimulus. Through the archieved outcomes it is possible to
problematize the confront between subjective processes and
collective creation within a ficitonal context.

Keywords: action, materials, drama, context of fiction,


compounding stimulus.

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As provocações da memória nos A memória constitui assim, a principal


processos de criação contribuição da consciência individual
na percepção, determinando o recorte de

O
nosso olhar sobre o mundo à nossa volta.
espaço para a realização No âmbito desta prática, as imagens
das primeiras sessões visuais funcionaram como intimações3 do
deste experimento2 foi imaginário e foram materializadas por
preparado com o objetivo meio de formas. Nesta etapa do trabalho
de estimular o imaginário a emergência das singularidades pôde
e a capacidade perceptiva dos participantes. ser observada pela diversidade de formas
Quatro grandes varais contendo um criadas a partir de uma mesma imagem.
conjunto aproximado de 100 imagens visuais No trânsito entre imagem e imaginário,
extraídas de revistas diversas delimitaram a imagem que se configura como um
o espaço de trabalho. Estas imagens de signo provoca as memórias de cada ator e
caráter variado (pessoas, gestos, paisagens, através da materialização é transformada
objetos) foram utilizadas como ponto em símbolo. Nesta forma resultante estão
de partida para os processos de criação. implicadas as subjetividades.
A dinâmica de relação dos atores- Para Bergson, os dados fornecidos
participantes com as imagens iniciou-se pelos sentidos funcionam como signos
com a observação das mesmas. Após um destinados a evocar antigas lembranças,
primeiro contato com as imagens através e como tal, podem inclusive deslocar a
da observação, os atores foram instruídos realidade da percepção. Isto implica que
a materializá-las no corpo, percebendo não existe uma percepção ideal, nem
corporalmente este estímulo e transformando impessoal, ela é sempre influenciada por
cada imagem observada em uma forma. estes “acidentes individuais” do passado,
Da etapa de materialização passou-se à conforme sugere o autor.
etapa de seleção: a partir de todas as formas Neste sentido, o fato de uma mesma
materializadas cada ator selecionou 10 delas imagem ganhar formas e contornos
para compor uma sequência. diferenciados poderia exemplificar
A teoria de Henri Bergson é como estes acidentes individuais do
aqui introduzida, pois me permite o passado definem as qualidades subjetivas
entendimento do papel da percepção e da acrescentadas a esta imagem.
memória nos processos de criação.
Segundo o filósofo, as lembranças
da memória são ativadas no momento Percepção-Memória-Ação
da percepção. “Por mais breve que se
suponha uma percepção, com efeito, ela Se as reflexões sobre percepção e
ocupa sempre uma certa duração e exige memória me permitem relatar as primeiras
consequentemente um esforço da memória” sessões deste experimento, recorro agora
(BERGSON, 2010, p. 31). Desta forma, ao conceito de materiais proposto por
os dados fornecidos pelos sentidos são Matteo Bonfitto para focalizar os processos
misturados aos detalhes das lembranças, de atuação e a construção de ações físicas.
que arquivadas na memória vêm à tona. Cada ator elaborou uma sequência própria
de imagens. Esta estrutura de formas em
1 Wagner Monthero é ator, reingressou na Universidade em potência foi explorada neste processo de
2009 no curso de Teatro da UDESC e atualmente cursa mestrado construção de ações e no decorrer das
na mesma instituição, onde pesquisa atuação em Drama.
etapas seguintes.
2 Este experimento foi realizado no Departamento Artístico
Cultural (DAC) da UFSC, através do projeto Experimentos
Cênicos em Teatro vigente nesta instituição, totalizando 20h 3 Por intimações entende-se aquilo que nos impulsiona à ação
de trabalho, com 15 participantes. Drama, Process Drama ou ou à inércia em relação ao meio no qual estamos inseridos
Drama Education é uma atividade teatral caracterizada pela e do qual participamos voluntária ou involuntariamente
construção coletiva de uma narrativa dramática em cena. (DURAND apud OLIVEIRA, 2011, p. 14).

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Para Bonfitto, materiais são elementos Estes princípios foram desenvolvidos


de diferentes naturezas que constituem por Grotowski na preparação do ator e
matrizes geradoras para o trabalho do ator. estruturação de ações, visando compreender
Ao apropriar-se do conceito aristotélico de o corpo como memória: “as memórias se
“matéria enquanto potência operativa e mostram e se organizam de uma forma
criativa”, este autor nivela os materiais em orgânica em todas as ações dos atores; um
três categorias: espetáculo é um intenso jogo do ator com
suas próprias memórias, o corpo não tem
O corpo, entendido como unidade memória, ele é memória” (GROTOWSKI
psicofísica, pode ser definido como material apud LIMA, 2009).
primário, pois é nele que os materiais Considero que este trabalho de
secundários e terciários estão contidos, e
será sobre ele que tais materiais atuarão;
materializar imagens e pesquisar ações
a ação física será o material secundário, pois parte do encontro de cada ator com algo
além de conter os materiais terciários, ela é, que está ausente - a imagem representada
como veremos, o elemento estruturante - que o impulsiona a dar sentido àquilo
dos procedimentos expressivos do que ele vê e o estimula. As imagens que
corpo; o ritmo e o aspecto ético são aqui
classificados entre os materiais terciários, representam algo, um homem sobre um
pois são procedimentos e/ou elementos cavalo com uma arma apontada, ou de uma
constitutivos da ação física, atuando moça lendo um livro ou de uma parreira
em seus processos de preenchimento e de uvas ou de um par de luvas envolto
justificação (BONFITTO, 2006b, p. 20).
por um colar, ao se configurarem como a
ausência destas pessoas, lugares e objetos
A estrutura, enquanto material, norteou consistem também em sua substituição. A
um processo de buscas e descobertas imagem enquanto ausência daquilo que
quanto às possibilidades de execução de ela representa é, portanto, uma enganação
ações. As formas funcionaram como ponto que ocorre com uma coisa que não está
de partida e referência neste trabalho. Os ali (RANCIÈRE, 2010, p. 92).4 A imagem,
atores-participantes foram instruídos a assim, não é aquilo que o ator vê, mas o
pesquisar diferentes ações a partir de uma sentido que ele lhe atribui, pois a imagem
mesma forma, explorando sua capacidade objetivamente não revela nada e pode ser
para catalisar processos psicofísicos. lida de diversas maneiras.
Neste jogo de manipulação das formas No âmbito do experimento, coube
em busca de ações, o ator está sujeito à a cada ator-participante no trabalho
estímulos simultâneos que surgem durante com as imagens e as formas, permitir-
o processo e que podem ser úteis na se a uma trajetória de busca de sentidos
estruturação de sua composição. No entanto, a ser atribuída ao estímulo, trajetória
considero que estes estímulos (extras) podem esta guiada pelo fenômeno perceptivo e
desviar o ator do foco na forma, causando pela estimulação sensível das memórias.
o esvaziamento da mesma. A forma é A interação entre estímulo e processo
pensada como uma maneira de provocar criativo está estreitamente relacionada
o imaginário e a estimulação das memórias com as matrizes imaginativas da história
quanto ao desenvolvimento de ações. e cultura de cada um. Esta relação com
Neste sentido, a etapa de materialização o material não se dá apenas através de
das imagens através de formas consistiu técnicas e conteúdos a serem aprendidos,
de um registro corporal. Este registro, mas também a todo um comportamento
impregnado de sensações perceptivas possui que perpassa questões filosóficas
o potencial de estimular sensivelmente ideológicas, pessoais e culturais.
as memórias e estando impresso como
uma marca pode ser acessada a qualquer
4 Em Trabalho sobre a imagem, Jacques Rancière faz reflexões
momento, em busca de organicidade e energia a partir do trabalho da artista Esther Shalev-Gerz realizado
para a construção das ações e das cenas. sobre a memória dos campos de concentração.

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Na prática relatada, o trabalho com a pré-texto, que pode ser literário (extraído
pesquisa de ações demorou-se por algumas de um texto dramático ou não-dramático),
sessões. Dentro de uma perspectiva de imagético ou áudio-visual funciona como
descobrir possibilidades, as ações foram um roteiro, ou um pano de fundo para
testadas quanto ao deslocamento de delimitar o desenvolvimento do processo
sentidos e atribuição de novos sentidos e orientar as opções do coordenador.
objetivando a construção de uma partitura. Caracterizado como ponto de partida, guia
Para tal, os atores escolheram uma única a seleção e a identificação das atividades e
ação dentre as várias testadas sobre cada situações a serem exploradas cenicamente:
forma. Neste sentido, a partitura final “O pré-texto opera em diferentes momentos
pode ser considerada como a tradução das como uma espécie de ‘forma-suporte’ para
subjetividades de cada ator. os demais significados a serem explorados
Aberto à potência das descobertas e como tal define a natureza e os limites
e dos achados, cada ator estrutura sua do contexto dramático” (O´NEILL apud
composição pautada no trabalho sobre si CABRAL, 2006, p. 15).
mesmo. O estímulo é o meio através do qual A introdução do contexto pelo
o ator pode lançar-se sobre si em busca do coordenador é a instauração de uma
oculto, em busca de tocar uma qualidade atmosfera que permita o engajamento
de memória que amplia a percepção de si emocional e intelectual dos participantes no
mesmo. As sensações encontradas são re- processo e na história a ser desenvolvida.
elaboradas, re-significadas e re-apropriadas O contexto de ficção está relacionado com a
através da ação. criação de expectativas e o estabelecimento
de tensões que desafiam a participação dos
integrantes do grupo.
No contexto do drama No experimento em questão,
o contexto de ficção e a utilização
O Drama, considerado como um do texto como pré-texto permitiu o
meio de investigação cênica tem como desenvolvimento dos processos de
finalidade a construção de uma narrativa subjetivação iniciados na interação
teatral em grupo. A elaboração desta imagem-memória através da apropriação
narrativa ocorre de forma processual do contexto e do texto pelos sujeitos.
através da efetiva participação de todos os Através do contexto proposto os
integrantes, caracterizando-se como uma atores-participantes interagiram em
forma de arte coletiva. grupos. Este momento de encontro e
O trabalho desenvolvido até então, confronto de individualidades através
consistiu na investigação de procedimentos da criação de cenas permitiu a re-
de atuação centrados na autonomia significação das ações inclusive em
expressiva do ator e na interação de relação aos fragmentos de textos.
suas memórias com imagens visuais. Os O texto escolhido, Nós e Eles, de
processos de criação foram expandidos no David Campton,5 narra a história de dois
contexto do Drama, uma vez que este possui grupos distintos de pessoas que chegam
o potencial de instauração de um ambiente a um lugar e passam a conviver neste
propício ao desenvolvimento dos processos mesmo espaço. A convivência entre os
perceptivos de cada participante. grupos traz a imediata necessidade de
Neste sentido, foram focalizados o pré- divisão do espaço que leva a uma série de
texto no contexto da ficção e a utilização do conflitos. Algumas questões abordadas
estímulo composto.
Um processo de drama normalmente 5 David Campton (1924-2006) dramaturgo inglês que escreveu
se inicia com a escolha do pré-texto e a para o teatro, cinema e rádio e foi considerado um dos
primeiros dramaturgos britânicos a escrever no estilo Teatro
instauração de um contexto de ficção. O do Absurdo (VIDOR, 2010, p. 50).

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por este texto foram exploradas como A noção de identidade na esfera


a convivência entre grupos distintos, deste trabalho é vista como processos de
a mudança de vida e as expectativas identificação por parte dos atores com os
geradas com esta mudança.6 materiais disponíveis onde a mobilidade
Este trabalho foi realizado em um está presente em todo o percurso. O
local adequado à exploração de questões trabalho do ator desenvolvido através do
como divisão do espaço e confronto intercurso de suas memórias individuais
entre grupos sugeridas pelo pré-texto, a com estes materiais se caracteriza como
Igrejinha da UFSC.7 Durante o trabalho processos de individuação, através
em uma das sessões, valendo-me da dos quais o indivíduo pode ampliar as
estratégia do teacher-in-role8 entrei em próprias referências intelectuais e afetivas
cena e fechando todas as portas do local (BONFITTO, 2009, p. 25).
desafiei os participantes: “A partir deste As diferenças e as singularidades
momento, todos vocês estão trancados colocam-se como peça-chave no
neste lugar, por tempo indeterminado. desenvolvimento dos processos de drama.
Vocês não sabem o real motivo deste A construção coletiva de uma narrativa
confinamento e devem se dividir em ocorre a partir de negociações: a) entre
grupos com pessoas que vocês não as relações individuais com o contexto
conhecem. Cada grupo deve escolher seu e outros elementos; b) entre as relações
espaço e permanecer nele com o objetivo individuais com o grupo; c) nas relações
de melhor conviverem entre si.” entre os diferentes grupos. A dinâmica
Assim, a questão de convivência entre destas relações reforça as diferenças.
grupos, abordada no texto de Campton Após o trabalho com o contexto de ficção
foi explorada em relação a questões de e com o texto como pré-texto, introduzi o
identidade e diferenças. As experiências de estímulo composto. O estímulo composto
cada intérprete trabalhadas até então através é um recurso que em Drama envolve o
das imagens e ações foram evidenciadas participante com o contexto dramático e com
pelo contexto de ficção. A partitura foi re- a narrativa a ser construída, incentivando
significada dentro de um contexto e através a fazer investigações paralelas, esboçando
da interação entre os atores nos grupos, hipóteses e ideias. As caixas de estímulos
funcionando como ponto de partida para são constituídas de objetos, que ao serem
o estabelecimento das diferenças. Isto foi explorados, originam dados através dos quais
reforçado pelos fragmentos textuais. cada integrante contribui com a narrativa a
ser desenvolvida. Deste modo, a introdução
do estímulo composto gera expectativas
6 Outras questões do texto com potencial de serem abordadas
são apontadas por CABRAL em O professor-diretor e a busca e estimula as habilidades dramatúrgicas.
da teatralidade em contextos periféricos (2004) tais como: A estimulação de habilidades
limites entre o público e o privado, processo de acomodação dramatúrgicas baseia-se na ideia defendida
e confronto entre recém-chegados a um mesmo lugar,
ocupação da terra. por John Somers de que a criação de
7 A Igrejinha da UFSC, que juntamente com o Teatro da narrativas é um aspecto indispensável da
UFSC e a Casa do Divino integram o prédio do Departamento experiência humana. Para este autor, o ato
Artístico Cultural da Universidade Federal, é um local para de criar histórias nos permite “organizar
realização de oficinas, cursos de arte e apresentações
artísticas. Este prédio antigo possui uma variedade de momentaneamente a experiência em uma
espaços que foram “habitados” pelos diferentes grupos: coro, série de memórias, prever um futuro e
escadas, plataformas com degraus, cúpula central etc. experienciar através da história dos outros
8 Teacher-in-role que literalmente significa professor no aspectos do mundo que não experienciamos
papel é uma estratégia muito utilizada em drama onde o
condutor do processo assume papéis e/ou personagens com
nós próprios” (SOMERS, 2008)9.
o objetivo de interagir com os participantes. Este termo foi
traduzido por CABRAL (2006) como professor-personagem.
Para maiores informações, ver em CABRAL (2006, p. 19-20) e 9 Este artigo foi traduzido por Biange Cabral e esta sendo
VIDOR (2010, p. 43-94) publicado neste número.

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As caixas de estímulo composto de suas ações: é um trabalho subjetivo


consistem de um recipiente apropriado de relação do ator com o objeto que
que contêm diferentes artefatos: objetos o estimula e como o estimula, que
de uso pessoal, fotografias, cartas e outros essencialmente não pode ser provocado
documentos, imagens, ferramentas, itens por conteúdos pré-estabelecidos. Estes
de vestuário, fragmentos de texto etc. processos são caracterizados pela conexão
A variedade do conjunto permite que entre as dimensões interior e exterior
diferentes histórias possam emergir através do ator, gerando partituras que contêm
da significância atribuída pelos integrantes materiais caracterizados por diferentes
aos diferentes objetos e a partir da criação de graus de abstração e subjetividade
conexões e especulações a serem articuladas (BONFITTO, 2006a, p. 49).
com a história em desenvolvimento. No âmbito desta prática propus
Na prática que aqui relato, o estímulo um deslocamento quanto à utilização
composto foi introduzido para ampliar as do estímulo composto. Em Drama os
criações individuais a partir da partitura de pacotes de estímulo são introduzidos
ações e fornecer elementos que contribuam com o objetivo de oferecer elementos que
para o desenvolvimento das narrativas contribuam com a construção da narrativa.
individuais e em grupo. Quatro caixas Desta forma, o estimulo está vinculado à
foram utilizadas e cada qual continha cerca construção dramatúrgica através da criação
de sete elementos, entre: de hipóteses e postulações sobre o material
em relação ao contexto.
• fragmentos de texto (dispostos em
Contudo, o estímulo composto foi
pequenos envelopes ou escritos em
explorado também como um material de
papéis envelhecidos)
criação com o objetivo de ampliar a partitura
• objetos pessoais (arranjo de cabelo,
de ações e o discurso cênico dos atores. No
relógio de bolso antigo, rosário,
entanto, mesmo não havendo interesse
colar, moedas antigas, gema, ticket
de metrô etc.) de construção de uma narrativa coletiva,
• imagens diversas (grupo de pessoas, narrativas individuais e em grupo foram
um homem ao lado de um crânio, criadas durante a exploração deste material.
a imagem de um homem formada Isso ocorreu devido às circunstâncias
por vegetais, mapa etc) através das quais o estímulo composto foi
• outros (pequeno recipiente contendo introduzido: dentro de um contexto de
unhas e outro com cabelos cortados, ficção e de acordo com as situações a serem
bula do medicamento Frontal, investigadas com o processo.
chave antiga, envelope com folhas
secas coladas em um papel etc.) Considerações Finais
Estes objetos remetem a espaços
e atmosferas diferentes. Os atores- Este trabalho se desenvolveu através
participantes foram instruídos a fazer de um percurso de exploração sensorial
o cruzamento entre os objetos e os e permitiu a interação entre o real (corpo,
segmentos de sua partitura de ações. Desta imagens, espaço, objetos) e o virtual
forma, os objetos do estímulo composto (imaginário, experiências pessoais,
também utilizados como materiais foram percepção). A influência da memória
apropriados em conexão com as ações, nesta interação determinou a construção
recriando e reorganizando as partituras em de discursos cênicos centrados em
diferentes direções. singularidades e diferenças.
Esta etapa foi realizada através de As singularidades foram evidenciadas
experimentação prática. Cada ator- pelo contexto de ficção criado a partir
participante precisou identificar os do texto Nós e Eles e o contexto de
materiais mais adequados na execução ficção inseriu um contexto coletivo que

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permitiu as relações entre as Referências bibliográficas


subjetividades estabelecidas.
Em relação aos processos de BERGSON, H. Matéria e Memória: Ensaio
subjetivação, constatei que alguns atores- sobre a relação do corpo com o espírito. São
participantes apresentaram dificuldades Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.
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fato de o contexto ter sido introduzido
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Editora Unb, 2006a.
da tensão dramática, pode ter dificultado
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utilizada naquele momento. No entanto,
_______. Os Seres Ficcionais: Identidade
outros conseguiram ampliar e re-significar
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a partitura através do seu cruzamento com
Invenção de materiais de atuação. In:
o contexto e com o estímulo composto.
Urdimento Revista de Estudo em Artes Cênicas
Através da identificação destas
da Universidade do Estado de Santa Catarina, v.
facilidades e dificuldades pontuo os
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trabalho do ator foi observado como _______. A Estética do dissenso em
processos de composição em interação processos coletivos. In: CAVAS, N.;
com estímulos diversos permite outro ISAACSSON, M.; FERNANDES, S.
questionamento: A necessidade de re- (org.). Ensaios em cena. Salvador, BA:
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poderiam estar relacionadas à apropriação LEONARDELLI, P. A memória como recriação
dos materiais disponíveis através dos do vivido aplicada às artes performativas.
referenciais de memória? In: Sala Preta Revista de Artes Cênicas, n. 09,
Esta prática possibilitou a identificação pp. 191-201. São Paulo: ECA-USP, 2009.
e exploração de camadas de materiais no LIMA, T. M. Experimentar a memória ou
processo de criação. O conjunto de imagens experimentar-se na memória: apontamentos
foi o primeiro material. Com a introdução sobre a noção de memória no percurso
do contexto, a partitura criada a partir das artístico de Jerzy Grotowski. In: Sala Preta
imagens funcionou como outro material. Revista de Artes Cênicas, n. 09, pp. 159-169.
As partituras revelam os processos de São Paulo: ECA-USP, 2009.
subjetivação de cada participante, que RANCIÈRE, J. Trabalho sobre a Imagem. In:
dentro de um contexto interage com outros Urdimento Revista de Estudo em Artes Cênicas
materiais encontrados: o texto como pré- da Universidade do Estado de Santa Catarina, v.
texto e as caixas de estímulo. 1, n. 15, p. 91-105. Florianópolis, out. 2010.
Os materiais são estímulos para a SOMERS, J. Narrative, Drama and
criação que possuem o potencial de ativar Compound Stimulus. Tradução de Biange
o arquivo de memórias de cada ator, Cabral. In: Education & Theatre Journal, n. 09,
que através do trabalho sobre si mesmo, Tradução de Biange Cabral. Atenas, GR.
constrói gradativamente um discurso VIDOR, H. B. Drama e Teatralidade: O ensino
cênico baseado na experienciação e na do teatro na escola. Porto Alegre: Editora
reinvenção de sua realidade. Mediação, 2010.

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