O documento discute o papel da memória na obra de arte "Sobre as Coisas", criada pelo grupo Lagartixa na Janela em 2021. A obra trabalha com as memórias da infância dos artistas e como elas se relacionam com as infâncias atuais. As memórias são representadas corporalmente através de gestos e movimentos que evocam sons, texturas e objetos do passado. Isso permite uma conexão poética entre passado e presente.
O documento discute o papel da memória na obra de arte "Sobre as Coisas", criada pelo grupo Lagartixa na Janela em 2021. A obra trabalha com as memórias da infância dos artistas e como elas se relacionam com as infâncias atuais. As memórias são representadas corporalmente através de gestos e movimentos que evocam sons, texturas e objetos do passado. Isso permite uma conexão poética entre passado e presente.
O documento discute o papel da memória na obra de arte "Sobre as Coisas", criada pelo grupo Lagartixa na Janela em 2021. A obra trabalha com as memórias da infância dos artistas e como elas se relacionam com as infâncias atuais. As memórias são representadas corporalmente através de gestos e movimentos que evocam sons, texturas e objetos do passado. Isso permite uma conexão poética entre passado e presente.
Durante a entrevista com os artistas Uxa Xavier, diretora do grupo “Lagartixa na janela”, Andrea Fraga, Vinicius Brasileiro e Tatiana Cotrim, artistas integrantes da companhia artística, foi investigado o papel da memória na obra “Sobre as Coisas”. A obra criada em 2021 trabalha, principalmente com a memória da infância dos artistas, partindo da pergunta “O que você faz enquanto espera?’.
Podemos considerar que o trabalho artístico com a memória constitui um
espaço de amplitude e pluralidade. Trabalhar com a memória da infância é um campo que pode ser muito poético e, ao mesmo tempo, bruto, afinal, é revisitar nossas próprias raízes. É um resgate profundo e íntimo.
Durante as diversas visitas e (re)visitas acerca da obra, algumas questões
foram surgindo, como por exemplo: o que as memórias da infância dizem sobre nós? Como isso é enlaçado com as artes do corpo e com a performance? Que papel isso ocupa em “Sobre as Coisas” e na construção da obra em diálogo com as infâncias atuais e com aquelas das memórias?
Para Gomes (2000) é latente que as memórias podem ser entendidas
como janelas através das quais podemos olhar e perceber os mundos que nelas se encerram. Sendo assim, chamamos as memórias ressignificadas em “Sobre as Coisas” de janelas da infância, janelas que vão de encontro com as infâncias presentes, colocadas em jogo através dos diálogos com as crianças.
Assim, é próprio de uma investigação deste
género ser uma investigação que se sustenta nos indivíduos entendidos como seres únicos e singulares, nas histórias das suas vidas, histórias que se reportam a um conjunto de experiências e vivências armazenadas na sua memória, memória cujo conteúdo os indivíduos, através de um ato narrativo, representam e trazem até um tempo presente (GOMES, 2000, p.3). A memória é, portanto, essencial para compreender a produção do espetáculo e as concepções carregadas em seus gestos e direcionamentos. Cabral (2004) aponta que as memórias no fazer teatral assumem o papel de narrativas como forma de investigação, habitando o campo dos espaços artísticos.
A autora acima também pontua que quando as/os artistas utilizam as
memórias e narrativas estão representando a realidade através de símbolos que englobam a realidade humana. Diferentemente do tradicional que ocorria até então, obras que tinham como porto a memória e que ressoavam nas experiências do público, em “Sobre as Coisas” esse esquema se quebra e se reinventa ao mesmo tempo.
Podemos dizer que ocorre um ponto de encontro, onde as memórias da
infância das/os artistas se encontram com as infâncias que habitam o presente. A pergunta “O que você faz enquanto espera?” se dirige para as/os adultas/os e também para as crianças, fazendo com que as experiências se cruzem, promovendo esse encontro entre o passado e o presente, entre as infâncias que já foram e que ressurgem e as infâncias que acontecem.
As performances dançantes que se desenrolam a partir dessa questão
evidenciam corpos que reconstroem suas histórias através de gestos, toques, piruetas, danças, giros, movimentos. Os corpos passam a contar as suas próprias histórias, singulares e coletivas, através dos gestos carregados.
Também a natureza efêmera do movimento – na
dança e na vida - torna-se tema e dramaturgia, a partir da repetição usada das mais variadas formas, da encenação de memórias dos dançarinos ou de um processo criativo baseado em perguntas ou estímulos respondidos de forma livre e organizadas segundo um processo de desconstrução - seleção, fragmentação e repetição-transformação (FERNANDES, 2012, p.78). Podemos dizer que a memória, não apenas designa a capacidade de lembrar graças às imagens que conservamos das coisas, como se estivessem impressas de modo permanente em nosso cérebro, mas também indica um processo complexo de reinvenção perpétua do passado no presente. Essa reinvenção se constrói e reconstrói junto com as vezes dos sujeitos do presente, formando um coro entre as artes, as memórias e as infâncias. Durante a entrevista, ao serem questionados sobre as memórias que permeavam a obra e a constituição da mesma, os artistas chamaram a atenção para a presença da sensorialidade em suas memórias, os sons, os toques nos objetos, as texturas, etc. Esse mesmo aspecto foi destacado por Lira (2019):
O elemento sensorial estava constantemente
presente. Durante a noite, as crianças escutavam o barulho dos tiros, o barulho dos militares transitando pelas ruas, o barulho dos aviões ou dos helicópteros e a partir disso se usava a imaginação. Escutava-se, no geral não se podia ver: esconder para proteger. Entre os nossos entrevistados, foi comum que relatassem como as janelas deviam ser protegidas com colchas grossas e as luzes apagadas; somente se iluminavam com velas, dormiam nos cômodos do interior da casa, calados, as crianças não deviam fazer barulho; tudo isso para evitar tiros, para evitar as invasões, para não provocar o militar armado. (LIRA, 2009, p.159) Essa teatralização com a memória pessoal dos atores é uma técnica que foi sistematizada primeiramente por Stanivslasky (1936;1938) e que desenvolveu diversas formas ao longo do tempo, sendo trabalhado por diversas técnicas teatrais. O aspecto da memória que o grupo Lagartixa na Janela traz em “Sobre as Coisas” é, principalmente, de índole corporal, no sentido de uma memória que se aloja no corpo e que se reativa na ação. Mais do que trazer à tona a memória emotiva ou narrativa dos atores, o fazer artístico se centrou em recuperar, através da ação, aquela memória que habita o corpo e que às vezes resulta tão difícil de desentranhar.
Se o corpo lembra, a ação do ator se torna densa, adquire peso e
autenticidade. Isso permite que a prática performativa tenha uma eficácia simbólica que obtêm uma espécie de contágio entre o corpo vivo dos atores e atrizes e o dos espectadores (COHEN, 1989). Outro ponto latente em “Sobre as Coisas” é a presença dos objetos, que são resgaste de memória também. As pedrinhas, os panos, os bancos. Objetos que permearam o passado e os momentos de espera dos atores
O trabalho de encenação daquilo que se resgata da memória implica dar ao
passado uma nova vida para transmiti-lo no acontecer de um presente que se compartilha no aqui e agora da performance. O modo como o passado e o presente interligam-se no espetáculo é sutil e poético, onde as vozes que ressurgem do passado se enlaçam com as vozes presentes, ambas respondendo a pergunta central: o que você faz enquanto espera? Essa pergunta, portanto, torna-se um fio invisível que guia as performances dos artistas ativadas pelas memórias da infância que são trazidas para o corpo e as infâncias que acontecem aqui e agora.
A memória é viva, dinâmica e vai dando um novo significado aos fatos
ocorridos através do tempo que se passa, mas assim como aponta Lira (2009), a sociedade não dá espaços e ouvidos para que as memórias ocultas vindas da infância ressurjam e sejam valorizadas. Há a possibilidade então de, na obra de Lagartixa na Janela, que essas memórias da infância ocupem um lugar central na cena e nos corpos, perpassando espaço e tempo, forjando outras memórias com as crianças do presente.
É importante, então, trazermos à tona uma noção de sujeito para a
presente análise, a do sujeito que aparece representado, transformado por um discurso. Este sujeito que não é tomado como um ser único, em sua condição individual, visto que é formado pelo discurso do outro e se encontra em posição de assujeitamento, se encontra representado pelos processos históricos e sociais (LEHMAN, 2007).
O performer, nesta abordagem, torna-se então um sujeito de si mesmo,
considerando que o discurso constituído pelo léxico de palavras e gestos é pontuado por referências trazidas no cruzamento dos outros discursos. São vários discursos em um só. Cada ação, olhar, andar ou sentir está associado a alguém que de alguma forma se insere na sua história, na da sua coletividade, na do seu tempo e lugar. O discurso do performer constitui sua linguagem a partir do contexto simbólico da sua memória, ligando materialmente, inconsciente e ideologia. O tempo, passado, presente e futuros são totalmente intercambiáveis.
Na multiplicação dos tempos e espaços dos fragmentos da memória, se
criam dobras que se dobram sobre si mesma numa sequência de remissões ao conjunto que as lembranças pertencem. Criar uma narrativa com a linguagem corporal significa agregar uma quantidade de fatos sobrepostos da memória que correm em diferentes direções. Sendo assim, os discursos da memória são sempre portais de inscrição de outros saberes, tempos e modos de existência.
O corpo é o espaço da memória do performer, o lugar onde os sentidos se
constituem perante o público. As ações compõem a sua linguagem, história e ideologia. O espaço da memória é um lugar de trânsito de ideias e sentimentos, um lugar de subjetividades, de revelação da interioridade do performer na razão direta da sua exterioridade. As emoções que o performer perpassa na sua pele, na sua carne, na sua expressão inscreve uma matriz de si próprio. Ao acessar as vias profundas da vida pessoal do performer, a imaginação evoca, distorce e muitas vezes reinventa as lembranças, fazendo-as vibrar nos gestos compostos durante a arte performática (LOPES, 2010).
Lembrar não significa fidelidade aos fatos como eles realmente
aconteceram. Lembrar está ligado ao imaginar, ampliar, omitir. Distorcer faz parte dos mecanismos da memória, na medida em que nossa imaginação acrescenta ou retira os fatos como uma auto defesa da sua mente. Tudo depende da natureza das conexões que o córtex estabelece no armazenamento ou dos fatores externos ou internos que afetam a evocação da memória.
Da mesma forma que a memória oferece uma variedade de reflexões que
atravessam os conceitos de sujeito, ideologia, história, como ferramenta teatral possibilita uma experiência de linguagem capaz de colocar o tempo passado como um meio de compreensão do presente. O discurso corporal gerado pela percepção e expressão usa mecanismos que cada um perfaz a seu modo. No trabalho com os seus arquivos, conscientes ou inconscientes, o performer vai buscar formas de materializar aquilo que sente daquilo que relembra. O discurso que se constitui é heterogêneo, fragmentado e disperso por envolver os diferentes sentidos pelos quais ele é afetado (LOPES, 2010).
O que se pode concluir sobre com as questões que envolvem a memória do
performer é que a imersão na interioridade tem um fio invisível conectado para o exterior pela força da linguagem. Enfatizando a ação e o acontecimento ele gera uma forma de expressão que reflete a história e a formação ideológica que o representa. Desta forma, este discurso não requer homogeneidade e unicidade do sujeito, mas faz da linguagem um ponto de partida, de revelação.
Esse discurso artístico e teatral que se coloca em jogo através das
memórias dos performers se encontra presente nos diversos momentos de “Sobre as Coisas”: um discurso que evoca a espera, a infância guardada, os objetos que se tornam não apenas companheiros de cena, mas ativadores daquilo que a memória guarda.
Esse processo é descrito por Uxa Xavier, como “o processo de ativar a
infância que nos habita”, infância essa guardada na memória dos performers, resgada através do corpo e dos objetos presentes em cena. Talvez não seja cabível chamar de infância adormecida, mas sim de infância revisitada. A infância que nos habito não dorme, ela nos aguarda como uma casa a qual voltamos a visitar pelo dispositivo da memória.