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CAPÍTULO II: “SOBRE AS COISAS” E MEMÓRIA

1.1 Entre o passado e o presente: as memórias


Durante a entrevista com os artistas Uxa Xavier, diretora do grupo
“Lagartixa na janela”, Andrea Fraga, Vinicius Brasileiro e Tatiana Cotrim,
artistas integrantes da companhia artística, foi investigado o papel da memória
na obra “Sobre as Coisas”. A obra criada em 2021 trabalha, principalmente
com a memória da infância dos artistas, partindo da pergunta “O que você faz
enquanto espera?’.

Podemos considerar que o trabalho artístico com a memória constitui um


espaço de amplitude e pluralidade. Trabalhar com a memória da infância é um
campo que pode ser muito poético e, ao mesmo tempo, bruto, afinal, é revisitar
nossas próprias raízes. É um resgate profundo e íntimo.

Durante as diversas visitas e (re)visitas acerca da obra, algumas questões


foram surgindo, como por exemplo: o que as memórias da infância dizem sobre
nós? Como isso é enlaçado com as artes do corpo e com a performance? Que
papel isso ocupa em “Sobre as Coisas” e na construção da obra em diálogo
com as infâncias atuais e com aquelas das memórias?

Para Gomes (2000) é latente que as memórias podem ser entendidas


como janelas através das quais podemos olhar e perceber os mundos que
nelas se encerram. Sendo assim, chamamos as memórias ressignificadas em
“Sobre as Coisas” de janelas da infância, janelas que vão de encontro com as
infâncias presentes, colocadas em jogo através dos diálogos com as crianças.

Assim, é próprio de uma investigação deste


género ser uma investigação que se sustenta nos
indivíduos entendidos como seres únicos e
singulares, nas histórias das suas vidas, histórias
que se reportam a um conjunto de experiências e
vivências armazenadas na sua memória, memória
cujo conteúdo os indivíduos, através de um ato
narrativo, representam e trazem até um tempo
presente (GOMES, 2000, p.3).
A memória é, portanto, essencial para compreender a produção do
espetáculo e as concepções carregadas em seus gestos e direcionamentos.
Cabral (2004) aponta que as memórias no fazer teatral assumem o papel de
narrativas como forma de investigação, habitando o campo dos espaços
artísticos.

A autora acima também pontua que quando as/os artistas utilizam as


memórias e narrativas estão representando a realidade através de símbolos
que englobam a realidade humana. Diferentemente do tradicional que ocorria
até então, obras que tinham como porto a memória e que ressoavam nas
experiências do público, em “Sobre as Coisas” esse esquema se quebra e se
reinventa ao mesmo tempo.

Podemos dizer que ocorre um ponto de encontro, onde as memórias da


infância das/os artistas se encontram com as infâncias que habitam o presente.
A pergunta “O que você faz enquanto espera?” se dirige para as/os adultas/os
e também para as crianças, fazendo com que as experiências se cruzem,
promovendo esse encontro entre o passado e o presente, entre as infâncias
que já foram e que ressurgem e as infâncias que acontecem.

As performances dançantes que se desenrolam a partir dessa questão


evidenciam corpos que reconstroem suas histórias através de gestos, toques,
piruetas, danças, giros, movimentos. Os corpos passam a contar as suas
próprias histórias, singulares e coletivas, através dos gestos carregados.

Também a natureza efêmera do movimento – na


dança e na vida - torna-se tema e dramaturgia, a
partir da repetição usada das mais variadas
formas, da encenação de memórias dos
dançarinos ou de um processo criativo baseado
em perguntas ou estímulos respondidos de forma
livre e organizadas segundo um processo de
desconstrução - seleção, fragmentação e
repetição-transformação (FERNANDES, 2012,
p.78).
Podemos dizer que a memória, não apenas designa a capacidade de
lembrar graças às imagens que conservamos das coisas, como se estivessem
impressas de modo permanente em nosso cérebro, mas também indica um
processo complexo de reinvenção perpétua do passado no presente. Essa
reinvenção se constrói e reconstrói junto com as vezes dos sujeitos do
presente, formando um coro entre as artes, as memórias e as infâncias.
Durante a entrevista, ao serem questionados sobre as memórias que
permeavam a obra e a constituição da mesma, os artistas chamaram a atenção
para a presença da sensorialidade em suas memórias, os sons, os toques nos
objetos, as texturas, etc. Esse mesmo aspecto foi destacado por Lira (2019):

O elemento sensorial estava constantemente


presente. Durante a noite, as crianças escutavam
o barulho dos tiros, o barulho dos militares
transitando pelas ruas, o barulho dos aviões ou
dos helicópteros e a partir disso se usava a
imaginação. Escutava-se, no geral não se podia
ver: esconder para proteger. Entre os nossos
entrevistados, foi comum que relatassem como as
janelas deviam ser protegidas com colchas
grossas e as luzes apagadas; somente se
iluminavam com velas, dormiam nos cômodos do
interior da casa, calados, as crianças não deviam
fazer barulho; tudo isso para evitar tiros, para
evitar as invasões, para não provocar o militar
armado. (LIRA, 2009, p.159)
Essa teatralização com a memória pessoal dos atores é uma técnica que
foi sistematizada primeiramente por Stanivslasky (1936;1938) e que
desenvolveu diversas formas ao longo do tempo, sendo trabalhado por
diversas técnicas teatrais. O aspecto da memória que o grupo Lagartixa na
Janela traz em “Sobre as Coisas” é, principalmente, de índole corporal, no
sentido de uma memória que se aloja no corpo e que se reativa na ação. Mais
do que trazer à tona a memória emotiva ou narrativa dos atores, o fazer
artístico se centrou em recuperar, através da ação, aquela memória que habita
o corpo e que às vezes resulta tão difícil de desentranhar.

Se o corpo lembra, a ação do ator se torna densa, adquire peso e


autenticidade. Isso permite que a prática performativa tenha uma eficácia
simbólica que obtêm uma espécie de contágio entre o corpo vivo dos atores e
atrizes e o dos espectadores (COHEN, 1989). Outro ponto latente em “Sobre
as Coisas” é a presença dos objetos, que são resgaste de memória também.
As pedrinhas, os panos, os bancos. Objetos que permearam o passado e os
momentos de espera dos atores

O trabalho de encenação daquilo que se resgata da memória implica dar ao


passado uma nova vida para transmiti-lo no acontecer de um presente que se
compartilha no aqui e agora da performance. O modo como o passado e o
presente interligam-se no espetáculo é sutil e poético, onde as vozes que
ressurgem do passado se enlaçam com as vozes presentes, ambas
respondendo a pergunta central: o que você faz enquanto espera? Essa
pergunta, portanto, torna-se um fio invisível que guia as performances dos
artistas ativadas pelas memórias da infância que são trazidas para o corpo e as
infâncias que acontecem aqui e agora.

A memória é viva, dinâmica e vai dando um novo significado aos fatos


ocorridos através do tempo que se passa, mas assim como aponta Lira (2009),
a sociedade não dá espaços e ouvidos para que as memórias ocultas vindas
da infância ressurjam e sejam valorizadas. Há a possibilidade então de, na
obra de Lagartixa na Janela, que essas memórias da infância ocupem um lugar
central na cena e nos corpos, perpassando espaço e tempo, forjando outras
memórias com as crianças do presente.

É importante, então, trazermos à tona uma noção de sujeito para a


presente análise, a do sujeito que aparece representado, transformado por um
discurso. Este sujeito que não é tomado como um ser único, em sua condição
individual, visto que é formado pelo discurso do outro e se encontra em posição
de assujeitamento, se encontra representado pelos processos históricos e
sociais (LEHMAN, 2007).

O performer, nesta abordagem, torna-se então um sujeito de si mesmo,


considerando que o discurso constituído pelo léxico de palavras e gestos é
pontuado por referências trazidas no cruzamento dos outros discursos. São
vários discursos em um só. Cada ação, olhar, andar ou sentir está associado a
alguém que de alguma forma se insere na sua história, na da sua coletividade,
na do seu tempo e lugar. O discurso do performer constitui sua linguagem a
partir do contexto simbólico da sua memória, ligando materialmente,
inconsciente e ideologia. O tempo, passado, presente e futuros são totalmente
intercambiáveis.

Na multiplicação dos tempos e espaços dos fragmentos da memória, se


criam dobras que se dobram sobre si mesma numa sequência de remissões ao
conjunto que as lembranças pertencem. Criar uma narrativa com a linguagem
corporal significa agregar uma quantidade de fatos sobrepostos da memória
que correm em diferentes direções. Sendo assim, os discursos da memória são
sempre portais de inscrição de outros saberes, tempos e modos de existência.

O corpo é o espaço da memória do performer, o lugar onde os sentidos se


constituem perante o público. As ações compõem a sua linguagem, história e
ideologia. O espaço da memória é um lugar de trânsito de ideias e sentimentos,
um lugar de subjetividades, de revelação da interioridade do performer na
razão direta da sua exterioridade. As emoções que o performer perpassa na
sua pele, na sua carne, na sua expressão inscreve uma matriz de si próprio. Ao
acessar as vias profundas da vida pessoal do performer, a imaginação evoca,
distorce e muitas vezes reinventa as lembranças, fazendo-as vibrar nos gestos
compostos durante a arte performática (LOPES, 2010).

Lembrar não significa fidelidade aos fatos como eles realmente


aconteceram. Lembrar está ligado ao imaginar, ampliar, omitir. Distorcer faz
parte dos mecanismos da memória, na medida em que nossa imaginação
acrescenta ou retira os fatos como uma auto defesa da sua mente. Tudo
depende da natureza das conexões que o córtex estabelece no
armazenamento ou dos fatores externos ou internos que afetam a evocação da
memória.

Da mesma forma que a memória oferece uma variedade de reflexões que


atravessam os conceitos de sujeito, ideologia, história, como ferramenta teatral
possibilita uma experiência de linguagem capaz de colocar o tempo passado
como um meio de compreensão do presente. O discurso corporal gerado pela
percepção e expressão usa mecanismos que cada um perfaz a seu modo. No
trabalho com os seus arquivos, conscientes ou inconscientes, o performer vai
buscar formas de materializar aquilo que sente daquilo que relembra. O
discurso que se constitui é heterogêneo, fragmentado e disperso por envolver
os diferentes sentidos pelos quais ele é afetado (LOPES, 2010).

O que se pode concluir sobre com as questões que envolvem a memória do


performer é que a imersão na interioridade tem um fio invisível conectado para
o exterior pela força da linguagem. Enfatizando a ação e o acontecimento ele
gera uma forma de expressão que reflete a história e a formação ideológica
que o representa. Desta forma, este discurso não requer homogeneidade e
unicidade do sujeito, mas faz da linguagem um ponto de partida, de revelação.

Esse discurso artístico e teatral que se coloca em jogo através das


memórias dos performers se encontra presente nos diversos momentos de
“Sobre as Coisas”: um discurso que evoca a espera, a infância guardada, os
objetos que se tornam não apenas companheiros de cena, mas ativadores
daquilo que a memória guarda.

Esse processo é descrito por Uxa Xavier, como “o processo de ativar a


infância que nos habita”, infância essa guardada na memória dos performers,
resgada através do corpo e dos objetos presentes em cena. Talvez não seja
cabível chamar de infância adormecida, mas sim de infância revisitada. A
infância que nos habito não dorme, ela nos aguarda como uma casa a qual
voltamos a visitar pelo dispositivo da memória.

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