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As múltiplas vozes de Vinte e zinco

e a identidade cultural de
Moçambique
Márcia Helena S. Barbosa*
Raquel Aparecida Cesar da Silva**
Gisela Lacourt***

Resumo Identidade cultural e


Este trabalho consiste em uma polifonia
análise das múltiplas vozes presen-
tes em Vinte e zinco, obra de autoria Este trabalho examina a presença de
de Mia Couto publicada em 1999. O múltiplas vozes no romance Vinte e zinco,
exame realizado permite evidenciar de Mia Couto, evidenciando o modo pelo
não apenas os diversos discursos e
qual tal obra representa o processo de
manifestações culturais que o escritor
moçambicano recolhe do contexto ex- construção das identidades individuais
tratextual e reelabora artisticamente, e da identidade coletiva de Moçambique,
como também o modo pelo qual re- durante o período colonial e no momento
presenta o processo de construção das
em que ocorre a independência do país
identidades individuais e da identida-
de coletiva de Moçambique, durante africano. A articulação das ideias de
o período colonial e no momento em Stuart Hall sobre identidade cultural e
que ocorre a independência do país das teses de Mikhail Bakhtin acerca da
africano. polifonia no romance oferece a funda-
Palavras-chave: Identidade cultural.
Polifonia. Literatura moçambicana. *
Docente do PPGL-UPF, Doutora em Teoria da Litera-
tura.
**
Mestranda do PPGL-UPF, bolsista da Capes.
***
Bolsista PIBIC-UPF.

Data de submissão: maio 2011. Data de aceite: jun. 2011

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mentação teórica necessária à realização rica”. E explica: “Essas identidades não
da análise. estão literalmente impressas em nossos
Stuart Hall (2006) afirma que a iden- genes. Entretanto, nós pensamos nelas
tidade não é fixa, nem estável; ela está como se fossem parte de nossa natureza
em determinado lugar, pois depende de essencial” (2006, p. 47). Em verdade, as
um contexto social e histórico. Não se identidades nacionais não são fundamen-
pode afirmar que o sujeito está consti- tos que se possuem desde o nascimento;
tuído genuinamente, uma vez que os são formadas e transformadas por meio
indivíduos possuem várias identidades, da representação. Somente é possível
as quais são instáveis e determinadas compreender o que significa pertencer
por um contexto específico, ou seja, a a uma nacionalidade pela forma como
identidade de um sujeito não pode ser esta é representada, pelo seu conjunto
resumida a uma única ideia. O mesmo de significados, que resulta na cultura
pode ser dito em relação à identidade nacional. Segundo Hall, uma nação não é
social, sobretudo na sociedade moderna. somente uma entidade política, mas algo
A observação do indivíduo é fundamental que produz sentidos, um sistema de re-
para a análise da identidade social, pois, presentação cultural. Os sujeitos não se
assim, torna-se possível estabelecer uma constituem apenas como cidadãos legais
relação entre os elementos identitários de uma nação; eles constroem o conceito
particulares em busca de uma constitui- de nação em sua unidade representativa.
ção coletiva. A identidade cultural de um Logo, uma nação é uma comunidade sim-
povo pode ser apreendida por meio do bólica que pode levar a um sentimento
exame do discurso dos sujeitos situados de identificação e de lealdade.
em determinado momento histórico e em Hall afirma que a formação de uma
uma função social. Como afirma Hall, cultura nacional
identidades culturais são “aqueles aspec- contribuiu para criar padrões de alfabeti-
tos de nossas identidades que surgem de zação universais, generalizou uma única
nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, língua vernacular como meio dominante de
uma comunicação em toda a nação, criou
raciais, lingüísticas, religiosas e, acima uma cultura homogênea e manteve institui-
de tudo, nacionais” (2006, p. 8). ções culturais nacionais, como, por exemplo,
Para o teórico, as culturas nacionais um sistema educacional nacional (2006,
p. 50).
do lugar em que o indivíduo nasce cons-
tituem-se em uma das principais fontes Esses elementos demonstram que a
de identidade cultural. Quando o sujeito cultura nacional resultou do processo
busca uma definição de si próprio, um de industrialização e dos dispositivos
dos aspectos que se tornam relevantes é da modernidade. Porém, outros aspec-
o pertencimento a uma determinada na- tos são relevantes ao se determinar um
cionalidade. Hall salienta que “ao fazer conceito de nação, pois conferem a esta
isso estamos falando de forma metafó- definições ambíguas, levando a crer que

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as identidades nacionais não são tão As culturas nacionais são tentadas, algu-
unificadas e homogêneas como represen- mas vezes, a se voltar para o passado, a
recuar defensivamente para aquele “tempo
tam ser. Ao se afirmar que as culturas perdido”, quando a nação era “grande”; são
nacionais são sistemas simbólicos e tentadas a restaurar as identidades passa-
representativos, constroi-se a concepção das. Este constitui o elemento regressivo,
anacrônico, da estória da cultura nacional.
de cultura como discurso. A cultura se- Mas frequentemente esse mesmo retorno ao
ria, portanto, uma forma de construção passado oculta uma luta para mobilizar as
de sentido que influencia e organiza as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras,
para que expulsem os “outros” que ameaçam
ações dos sujeitos e as concepções de si
sua identidade e para que se preparem para
próprios, conforme sustenta Hall. Para uma nova marcha para a frente (2006, p. 56).
ele, “as culturas nacionais, ao produzir
Essa ambiguidade ressaltada por
sentidos sobre a nação, sentidos com os
Hall demonstra a importância do res-
quais podemos nos identificar, constroem
gate das tradições de uma nação após a
identidades” (2006, p. 51).
ruptura com os vínculos impostos pelo
Assim, para Hall, a identidade na-
colonizador, ou seja, para definir sua
cional é uma “comunidade imaginada”,
identidade uma nação precisa reaver
determinada por vários fatores. Pode-se
o seu passado. Entretanto, essa identi-
destacar aqui a forma de narrativa na-
dade não se encontra fixada no período
cional, ou seja, o modo como a cultura
anterior ao processo de subordinação; vai
é contada e recontada nas histórias e
se constituindo de elementos variados,
nas literaturas nacionais, na mídia e
representados pelos processos históricos.
na cultura popular. Essas fornecem toda
Com isso, não se pode deixar de conside-
a representatividade simbólica resul-
rar a relevância que a cultura do “outro”
tante de eventos históricos, tradições e
tem na construção e na instituição de
experiências partilhadas dentro de tal
uma identidade social.
comunidade. Dessa forma, as afirmações
Ernest Renan afirma que o princípio
do teórico confirmam a possibilidade da
da unidade de uma nação está constituí-
verificação da identidade cultural por
do de três aspectos: “a posse em comum
meio da análise de uma obra literária.
de um rico legado de memórias, o desejo
Ainda para Hall, o discurso da cultura
de viver em conjunto e a vontade de per-
nacional, mencionado anteriormente,
petuar, de uma forma indivisa, a heran-
não é tão moderno quanto aparenta ser.
ça que se recebeu” (apud HALL, 2006,
Esse discurso constrói identidades que
p. 58). Nas palavras de Hall, não importa
estão situadas ambiguamente entre o
o quanto diferentes – no que se refere a
passado e o futuro; divide-se entre a von-
gênero, classe ou etnia – possam ser os
tade de recorrer às glórias do passado,
membros de uma comunidade nacional,
evidenciando-as, e o impulso de seguir
uma cultura nacional busca sempre
adiante, em busca da modernidade. O
unificá-los em uma identidade cultural,
teórico afirma:

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para assim representá-los como perten- cretizam mais nas sociedades pós-mo-
centes a uma grande família nacional. dernas, ou seja, ocorre a transformação
As identidades nacionais das socieda- de uma identidade do sujeito do ilumi-
des pós-modernas, conforme evidencia nismo para a de um sujeito sociológico
Tutikian (2006), amparada nas teorias e, posteriormente, para a de um sujeito
de Stuart Hall, relacionam-se com os pós-moderno. Nesse processo, perde-se
elementos que as constituem, tais como a ideia do fixo, do estável ou do per-
a língua, a tradição, o mito, o folclore, manente. Para Jane Tutikian, esse fe-
o sistema de governo, o sistema econô- nômeno seria “a ‘celebração do móvel’,
mico, a arte e a literatura. Sendo essas uma espécie de transformação contínua
estruturas suscetíveis a constantes em relação às formas de representação
transformações, a identidade de uma ou interpelação desses mesmos sujeitos
nação não se configura como um fenôme- dentro dos sistemas culturais” (2006,
no fixo e isolado. Sobre isso, a ensaísta p. 12). Ainda segundo Tutikian, os sinais
afirma que “é a crise de identidade que de imutabilidade e força, representados
termina colocando em risco as estruturas pelas fronteiras geográficas, são redefini-
e os processos centrais das sociedades, dos pelas fronteiras históricas, políticas,
abalando a velha estabilidade do mundo ideológicas e, sobretudo, culturais, em
social” (TUTIKIAN, 2006, p. 12). Essa constante transformação.
observação fundamenta-se sobre a aná- No século XX, entra em crise o con-
lise de Hall acerca da identidade coletiva ceito universal de nação exportado pela
e pessoal na pós-modernidade: Europa no século anterior, que restringia
Um tipo diferente de mudança estrutural ao espaço limitado pela fronteira natural
está transformando as sociedades modernas tudo que havia nele: a língua, a crença, o
no final do século XX. Isso está fragmentan- sistema político e econômico, bem como
do as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, o sentido do nacional. Ao romper com
que, no passado, nos tinham fornecido esses limites rígidos, o conceito de nação
sólidas localizações como indivíduos so- fixa-se nos fundamentos de identidade.
ciais. Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais,
Logo, é nas idiossincrasias que se podem
abalando a ideia que temos de nós próprios distinguir as fronteiras, e elas se concre-
como sujeitos integrados. Esta perda de um tizam na cultura, reafirmando a ideia de
“sentido de si” estável é chamada, algumas
que a nação não se constitui como uma
vezes, de deslocamento – descentralização
dos indivíduos de seu lugar no mundo social entidade plenamente estruturada, pois
e cultural quanto de si mesmo – e constitui está exposta a mecanismos de inclusão e
uma “crise de identidade” [...] (HALL, 2006, exclusão, o que confere maior relevância
p. 9).
à tangência da identidade nacional.
As mudanças mencionadas por Hall Se a intenção é resgatar a identidade
atingem as velhas identidades de um de um povo como nação, o ponto de par-
mundo social estável, que não se con-

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tida recai sobre a cultura e os processos é possível verificar que a literatura afri-
históricos que influenciaram a formação cana de língua portuguesa destaca-se
desta. A identidade de países que enfren- como elemento de mobilização de povos,
taram grandes desafios para tornarem- forma de resistência e resgate de identi-
se independentes e para legitimarem-se dades locais, uma vez que sua temática
enquanto nação passa pelo crivo da principal é a vida do povo, sua forma de
relação entre culturas, ou seja, é resul- falar, seus mitos e crenças, e “[...] até
tante das relações entre culturas locais porque a literatura é fonte de cultura e
e cultura estrangeira. Pageoux define cultura é fonte de identidade”. Para Tu-
três formas de relação entre culturas: tikian (2006), nesse fim/início de século,
“a philia, quando a cultura nacional de a busca pela identidade nacional passa,
origem e a estrangeira colocam-se num impreterivelmente, pelo resgate de de-
mesmo plano, de colaboração mútua; a terminados valores autóctones de raízes
fobia, quando a cultura nacional de ori- específicas. Não se trata da supervalori-
gem se considera superior à estrangeira zação do passado, ou da simples negação
e tenta refratá-la, e a mania, quando a da cultura do outro, e sim de uma ten-
cultura nacional de origem considera-se tativa de estabelecer novas articulações,
inferior e busca absorvê-la” (apud TUTI- ou novas negociações. Para isso, tenta-se
KIAN, 2006, p. 13). Pode-se considerar, resgatar a tradição, ou construir uma
porém, outra perspectiva, segundo a tradição nova, buscando, por meio da
qual o encontro de duas culturas com afirmação ou anulação dos mitos, uma
marcas minoritárias acarretaria a perda aproximação daquilo que poderia ser
da ambivalência identitária, surgindo dado como conceito de homem, de nação
daí uma terceira, o que resultaria na e de identidade, nacional ou cultural.
hibridação cultural. Entretanto, como Se, de acordo com Hall, a identidade
afirma Tutikian (2006, p. 14), seria inge- nacional é uma “comunidade imagina-
nuidade desconsiderar a fobia “às vezes da” – determinada, entre outros fatores,
quieta e observadora” como uma forma pelo modo como a cultura é contada e
de resistência. Mesmo que ocorra um recontada nas literaturas nacionais –,
espelhamento entre a cultura que olha podendo ser apreendida por meio do
e a que é olhada, o outro sempre será o exame do discurso dos sujeitos situados
outro, independentemente do discurso de em um determinado momento histórico
prosperidade que traz consigo. e em uma função social, para a análi-
Tutikian (2006, p. 15) lembra, ainda, se da temática em questão, recorre-se
que, nos períodos de colonialismo e pós- também às teses de Mikhail Bakhtin
colonialismo, a identidade utópica é agu- acerca da assimilação de diferentes tipos
çada pelo sentimento de nacionalismo. de discurso pelo gênero romanesco. O
Pensando acerca dessas circunstâncias, dialogismo, conforme esclarece Bakhtin

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(1988), é uma tendência natural de toda igualdade, sem perderem sua autonomia
a linguagem; é um traço inerente a esta ou subordinarem-se umas às outras.
e pode ser entendido como a interação Como atribui ao romance um caráter
do discurso de um sujeito com o discurso plurilíngüe, pluriestilístico e plurivo-
alheio. Para haver dialogismo, de acordo cal, Bakhtin reconhece, nesse gênero
com o teórico, é necessário que os enun- literário, a expressão mais completa e
ciados se toquem internamente, estabe- mais profunda do dialogismo. O teórico
lecendo uma discussão ou confronto. Não afirma, ainda, que um dos elementos
se trata, portanto, de uma existência mais importantes para a concretização
paralela, mas de uma coexistência de da polifonia no romance é a personagem.
diferentes vozes. Os sujeitos personificam os pontos de
Na visão de Bakhtin, o diálogo só é vista que integram a obra, fazendo surgir
possível entre as vozes de autores reais a palavra encarnada. Bakhtin encara
ou virtuais – concebidas como convicções os heróis como ideólogos que postulam
ou pontos de vista acerca do mundo –, diferentes visões de mundo. A voz de
e não entre palavras ou idéias “em si”. cada personagem é independente tanto
Para o teórico, é a transformação da das vozes das outras personagens como
língua em “palavra encarnada” que lhe do discurso do narrador. Segundo o teó-
confere propriedades dialógicas. Quando rico, os conceitos incompatíveis, os juízos
ganha autoria e passa a participar da antitéticos e excludentes, e também as
comunicação verbal, isto é, quando um apreciações concordantes, são distribu-
sujeito a povoa com a sua intenção, a ídos entre várias consciências e dados
língua perde a neutralidade e abandona em diversas perspectivas equivalentes e
a condição de sistema de categorias gra- plenas. Estabelece-se, então, um proces-
maticais abstratas. Nessas circunstân- so de interação, em que nenhuma dessas
cias, assume um estatuto de discurso ou consciências se subordina ou se converte
enunciado saturado ideologicamente. A em objeto de outra. Elas se combinam
palavra torna-se, então, um meio de inte- numa unidade superior de segunda
ração humana e serve para representar ordem, própria do romance polifônico.
a opinião de alguém, relacionando-se, de O teórico enfatiza o papel da persona-
modo dialógico, com os julgamentos de gem no romance polifônico, mas adverte
outros sujeitos. que este é inteiramente dialógico. Os
O teórico dá o nome de polifonia à gêneros, as idéias, os discursos, enfim,
realização literária do dialogismo. Poli- todos os componentes da sua estrutura
fonia, explica o teórico, é a coexistência participam do diálogo, que penetra,
de uma multiplicidade de vozes inde- inclusive, no interior de cada palavra,
pendentes, imiscíveis e equipolentes, tornando-a bivocal. Diz-se que a palavra
que participam de um diálogo em pé de é bivocal, no entendimento de Bakhtin,

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quando pertence a duas vozes, serve o nome de Antônio Emilio Leite Couto.
a duas intenções e atinge os menores Ele escreve desde muito jovem – aos 14
gestos da face do herói, transformando- anos já publicava seus poemas no jornal
os em movimentos intermitentes ou local Notícias de Beira –, mas somente
convulsos. Ao processo que envolve as em 1983 lança seu primeiro livro, a
partículas mínimas da obra o teórico dá coletânea poética intitulada Raízes de
o nome de “microdiálogo”. orvalho. Essa obra, que vem a ser tradu-
Constata-se, portanto, que, ao carac- zida para o inglês e o italiano, conferindo
terizar o dialogismo como um fenômeno grande notoriedade ao seu autor tanto
de tamanha extensão e complexidade, ele em Portugal como em outros países,
não deixa espaço para equívocos: sua in- surge após a independência de Moçam-
dicação é a de que não se deve imaginar bique (1975), processo do qual o escritor
que a polifonia do romance se esgote nos participa ativamente como integrante
diálogos das personagens. De acordo com da Frente de Libertação de Moçambique
Bakhtin, é o plurilinguismo que, ao ser (Frelimo). Em 1992, Mia Couto estreia
introduzido no romance, propicia a plena como romancista ao publicar o livro Ter-
realização e o desenvolvimento da polifo- ra sonâmbula, com uma tiragem inicial
nia em seu interior. O plurilinguismo, no de 15 mil exemplares.
âmbito extraliterário, consiste na estra- O romance Vinte e zinco, publicado
tificação interna de uma língua nacional em 1999, caracteriza-se como a obra em
em dialetos sociais, maneirismos de gru- que a história moçambicana deixa de ser
pos, jargões profissionais, linguagens de coadjuvante e assume o papel principal
gêneros e falas das gerações, das idades, na narrativa. O enredo é construído
das tendências e das modas passageiras. com base nos acontecimentos relativos
Assim, tal processo de estratificação à queda do regime totalitário português
impede que a língua conserve formas no país africano. Para comemorar os
neutras, que não pertencem a ninguém. vinte e cinco anos da queda da ditadura
Todas as palavras evocam uma profissão, salazarista em Portugal, ocorrida um
um gênero, uma tendência, um partido, ano antes da independência de Moçam-
uma obra determinada, uma pessoa de- bique, a Editora Caminho decidiu lançar
finida, uma geração ou uma época. a coleção Caminhos de Abril, propondo a
cada um dos mais importantes escritores
Discursos e identidades no moçambicanos a criação de uma obra

romance de Mia Couto que tivesse como tema central o dia 25


de abril de 1974. Essa foi a data da Re-
Mia Couto é filho de pais portugueses volução dos Cravos, movimento que pôs
e nasceu em Beira, Moçambique, no ano fim à ditadura vigente em Portugal por
de 1955, tendo, originalmente, recebido quase meio século.

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Mia Couto, então, escreveu Vinte e ção de exposição, confronto e análise
zinco, uma obra construída em forma de as várias culturas e crenças do homem
diário, que conta alguns fatos históricos moçambicano” (1995, p. 312). Em Vinte
situados de 19 a 30 de abril, dias imedia- e zinco, verifica-se que essas culturas e
tamente anteriores e posteriores à data- crenças evidenciam-se nas relações que
tema. O relato da história circunscrita a os nativos estabelecem entre si e com os
esse curto período permite vislumbrar o representantes de Portugal na colônia.
passado de Moçambique, marcado pela De um lado, o narrador mostra a reper-
violência e pela subordinação que o do- cussão do 25 de abril para os portugueses
mínio português impôs ao país africano. que se encontravam no país africano e,
O próprio título do livro já vem carre- de outro, revela o modo como os acon-
gado de significados. Nele, o autor faz um tecimentos relacionados a essa data
jogo de palavras, mostrando que a data refletiram-se nos anseios de liberdade
da Revolução dos Cravos – 25 –, embora dos moçambicanos. A trama apresenta
tenha grande importância para os por- personagens que pensam e agem de acor-
tugueses, é para o povo moçambicano do com a função social que ocupam. Se o
apenas uma esperança de liberdade. A sentimento de superioridade dos brancos
primeira epígrafe da obra, identificada em relação aos nativos é forte, o repúdio
como fala da personagem Jessumina, em relação à cultura do outro é recíproco
a adivinhadora, explicita essa ideia e entre portugueses e moçambicanos. Não
também o sentido da criação do autor: só o colonizador tenta impor sua cultura
“Vinte e cinco é para vocês que vivem e seus valores ao povo colonizado, como
nos bairros de cimento. Para nós, negros os africanos reagem a essa imposição
pobres que vivemos na madeira e zinco, o e tentam manter vivas suas crenças e
nosso dia ainda está por vir” (p. 5). tradições.
O fim da ditadura em Portugal, de Esse romance é a primeira narrativa
fato, tem como consequência o enfra- de Mia Couto que tem como protagonista
quecimento do poder nas colônias e um homem branco. Trata-se de Lourenço
representa um sonho de liberdade que de Castro, filho de colonizadores portu-
vem a se realizar um ano e dois meses gueses e inspetor da PIDE (Polícia de
após essa data. Moçambique torna-se Defesa de Estado), cuja função é a de
independente em 25 de junho de 1975, estabelecer a ordem na colônia. Através
como resultado de uma luta que durou da história dessa personagem – a quem
mais de dez anos. Dessa vez, o número o povo chamava de “pide” – e também
25 reveste-se de uma importância ainda dos fatos relacionados à sua família em
maior para a história do país africano. Moçambique, são desveladas as arbitra-
Pires Laranjeira afirma que as nar- riedades cometidas durante a ocupação
rativas de Mia Couto “colocam em situa- portuguesa no país africano e a explora-

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ção a que os nativos foram submetidos. prisão; depois, enfatiza a obsessão de
Esse processo tem início com Joaquim Joaquim de Castro por paredes brancas.
de Castro, pai de Lourenço, sobre a qual Ao apontar para a existência de um fun-
se tem conhecimento apenas por meio cionário cuja única função é a de pintar
das lembranças do filho e das demais as paredes do cárcere diariamente, o
personagens. Gradativamente, à medida narrador levanta suspeitas, que logo se
que a imagem do velho Castro vai sendo confirmam, sobre a prática de tortura:
configurada, percebe-se que Lourenço [...] as paredes brancas deveriam perma-
não passa de uma caricatura do pai, já necer assim, alvas e puras, sem vestígio
falecido, pois construiu sua identidade de sangue. O chão da prisão tinha sido
encerado de vermelho. Justo para que não
com base na memória de um homem que, se detectasse o sangue dos torturados. No
em verdade, lhe era estranho. chão, sim. Nas paredes, nunca. De onde
É justamente uma das vítimas de Joa- vinha esse medo de as paredes revelarem as
vermelhas nódoas? Quem sabe o sangue é
quim, ironicamente representada pela mais vivo que o próprio corpo? (p. 21).
personagem do cego Andaré Tchuvisco,
que leva o pide a ver quem realmente Entretanto, somente no penúltimo
fora o temido inspetor. Andaré não nas- capítulo descobrem-se as verdadeiras
cera cego; perdera a visão em virtude causas da deficiência de Andaré e tam-
de uma punição que recebera por haver bém o fato de que ele não é totalmente
testemunhado fatos comprometedores cego. Nessa passagem, Lourenço recusa-
envolvendo Joaquim de Castro, na época se a aceitar a perda do poder sobre a
inspetor da pequena cidade de Pebane. colônia e decide matar o homem – um
Após o ocorrido, para que todos pensas- dos principais suspeitos de conspirarem
sem que a deficiência do rapaz era de pela independência – como forma de
nascença, o velho pide resolvera mudar- vingança, ou para extravasar seu ódio
se, juntamente com a sua família e com pelos negros. Nesse momento, os segre-
o cego, para o vilarejo de Moebase. Algu- dos são revelados e o pide fica sabendo
mas hipóteses sobre a causa da cegueira da participação de seu pai, Joaquim de
de Andaré são aventadas no decorrer da Castro, na mutilação de Andaré:
história, mas o narrador deixa claro que Tchuvisco enche o peito e desata a lembran-
a verdade é outra, mantendo, assim, a ça. Sua vida desfila, um rosário de palavra.
Que ele entrara cedo na vida do pai Castro,
expectativa do leitor até o final da nar- em Pebane. Sua cegueira não era de nascen-
rativa, quando, então, revela os segredos ça. Nesse tempo ele e o mundo se olhavam,
da vítima e de seu algoz. olhos nos olhos. [...] todas as tardes ele
passava a inspeccionar a branquidão das
Ao longo do relato, o narrador vai paredes interiores da prisão. Nessas visitas
fornecendo pistas ao leitor: inicialmente, ele viu muita coisa, assistiu a casos que nem
menciona a função que Andaré desem- devia. E não foram só porradas, palmatoa-
gem, torturas.
penha, que é a de pintor das paredes da

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– Vi outros abusos, ofensas sexuais. O pra- por seu pai em Moebase. Em um desses
ticante era o pai Castro. Sim, ele mesmo. O cruzamentos da narrativa, o enredo
inspector.
Joaquim de Castro se roçava, lascivo, pelos revela o fim trágico de Joaquim, que
presos. Depois de bem batidos, ele os cha- levara Lourenço a seguir seus passos,
mava e lhes acariciava as pernas, as costas, tornando-se também um pide:
as nádegas. Depois, consumava amores
forçados com os prisioneiros. O pai estava fardado e mantinha-se de pé,
– Sem querer, surpreendi seu pai numa lutando contra o balanço. Seus gritos, ás-
peros, sobrepunham-se ao ruído do motor.
dessas desavergonhices [...]. Aconteceu o
Mandava que os presos, de mãos atadas, se
seguinte: a imprevista não sucedência. Isto chegassem à porta aberta do aparelho. De-
é, Andaré não foi morto. Ou como se dizia pois, com um pontapé ele os fazia despenhar
na linguagem da PIDE: não foi desacorda- sobre o oceano. Daquela vez, o pai decidira
do [...]. O pintor seria convertido em cego. que Lourenço o devia acompanhar para ver
Depois, se transfeririam todos para outro esse espectáculo. Dizia: experiências daque-
lugar. Andaré Tchuvisco viria com a família las é que endurecem o verdadeiro homem.
Castro para Moebase (p. 83). – Você vai ver, filho: os cabrões esbracejam
no ar como se quisessem ganhar asas.
Cada vez mais, depois dessa reve- Anichado no canto do aparelho, Lourenço
sofria de enjoo. Mas ele não podia confessar
lação, Lourenço, que tinha o pai como essa fraqueza quase feminina. Passava-se
referência, vê-se perdido, além de en- ali prova tão macha e ele esverdeava, na
iminência do vômito? Forte, ser forte que
frentar uma situação de risco pessoal, os fracos não gozam a História. Palavras
uma vez que a maioria dos portugueses do velho Castro esconjurando os mimos de
já tinha fugido de Moçambique, temendo Margarida. Mariquices, isso é que dá cabo
de um homem. Lourenço ansiava comprovar
uma represália por parte dos nativos suas habilidades para bravezas. Por isso, ali
após a queda do regime. Mesmo assim, no helicóptero, ele se esforçava por não dar
parte de frouxo. De repente, um emaranha-
Lourenço resiste à ideia de que o regime do de pernas se cruzou em redor de Joaquim
chegara ao fim e decide-se por permane- de Castro. Como tesouras de carne os mem-
bros inferiores dos presos enredaram o corpo
cer na colônia. Extremamente perplexo do português. Os prisioneiros lutavam,
diante das revelações do cego, o pide arrumados em prévia combinação. Cairiam
não sabe mais quem realmente é; não eles, mas o Castro iria junto. O português
gritou, pediu ajuda ao filho. Mas este nem
se sente pertencente a nenhum lugar. se mexeu. Olhos esbugalhados, viu o pai ser
Ele nascera naquele local; acreditava ejectado do helicóptero (p. 14).
estar honrando o legado do pai. Todavia, Essa cena fatídica é a causa dos
quando a verdade vem à tona, ele não se constantes pesadelos de Lourenço e
reconhece mais na imagem que fazia de configura-se como uma das razões do
si e vive uma crise de identidade. ser infantilizado que ele se tornara.
Percebe-se, na narrativa, um constan- Desde o início da trama, o personagem
te cruzamento de planos temporais, em mostra-se um homem frágil e inseguro,
que cenas do passado, vivido em Pebane, que dentro de casa, sob a exagerada pro-
ligam-se com o presente da ação, prota- teção da mãe, revela todo seu tormento
gonizado por Lourenço, que atua como e fraqueza. A mesma fraqueza parece
inspetor, mesma função antes exercida invadir o casarão da família Castro

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– outrora imponente, um verdadeiro e imutável. Portugal uno e indivisível. O
símbolo de poder –, pois, no presente da visitante repetiu, como se duvidasse que o
outro o tivesse entendido.
ação, o prédio adquire uma atmosfera – Foi um golpe, houve um golpe em Lisboa!
sombria, que, somada à instabilidade de (p. 60).
seus moradores, pode representar, me-
O discurso do português está carrega-
taforicamente, o regime salazarista em
do de ideais de superioridade em relação
Portugal, extremamente débil, prestes
aos negros e da crença em um poder imu-
a ruir. Apesar da fragilidade emocional
tável. É em virtude dessas idéias que,
do pide, as atrocidades cometidas pela
mesmo diante de todas as evidências do
Polícia de Defesa de Estado persistem.
fracasso do regime, Lourenço recusa-se
Ele não é forte o suficiente para cometer
a admitir que, a partir desse momento,
os crimes e as torturas pessoalmente,
sua permanência na colônia representa
mas isso não o impede de dar ordens
um risco para si próprio, uma vez que
para que se pratiquem tais arbitrarie-
não detém mais o poder e a represália
dades. Logo, a identidade de Lourenço
dos nativos certamente virá. Entretan-
de Castro é ambivalente: em casa, ele é
to, nem essas crenças, nem o fato de
o menino atormentado pelas lembranças
Lourenço saber-se temido pelos nativos,
e pelo medo que sente dos negros; fora do
uma vez que representa a autoridade
ambiente doméstico, é o pide impiedoso
policial no vilarejo de Moebase, conferem
e cruel, que vive à sombra do pai e segue
unidade a seu discurso. A dualidade
seus passos.
que marca a identidade do colonizador
A mesma ambiguidade perpassa o
manifesta-se na sua fala. Veja-se como o
discurso de Lourenço, que ora representa
segundo aspecto apontado no discurso do
a crença na superioridade e no poder do
protagonista – a assimilação da crença
colonizador, ora assimila, pelo avesso,
dos nativos, provocada pelo medo que
a crença dos nativos – a quem atribui o
Lourenço sente dos africanos – faz-se
poder de prejudicá-lo –, quando pensa ter
presente no trecho de um diálogo que
sido vítima de “feitiço da pretalhada”. O
estabelece com sua mãe:
primeiro aspecto do discurso do coloni-
– Outra vez o pesadelo?
zador é facilmente observável no diálogo Lourenço nem responde, ocupado em respi-
que Lourenço trava com o médico local, rar. O suor desenrola-se, um líquido lençol
quando este lhe comunica a queda do o recobre.
– Os tambores. Não os ouve?
regime salazarista em Portugal:
– Era um batuque, mas já parou há algum
– Não disse para me deixar sozinho? tempo.
– É por causa da notícia... – Mas eu continuo a ouvir, mãe.
– Que notícia? Ela senta-se na cabeceira, limpa-lhe o suor
– Na rádio, dizem que houve um golpe de e estende-lhe o leite morno. O filho recusa.
Estado, caiu o regime. Há uma raiva que ele não consegue guardar.
Regime? Qual regime? Para ele não havia A mãe corrige a porta, ainda que não haja
um regime. Havia Portugal. A pátria eterna aragem nenhuma. Se não corre brisa por

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que razão a bandeira portuguesa tombou da o papel de mãe, mimando e protegendo
parede onde estava pendurada? Lourenço de forma exagerada. Além dis-
– Ê esse cego, eu ainda vou dar cabo desse
gajo. so, ao não questionar as atitudes do filho,
– O cego Tchuvisco? Deus ainda o castiga. anula-se completamente como mulher e
Que mal pode fazer esse pobre diabo? cidadã. Essa era, então, a função que a
– Esse gajo é que faz isto tudo, mãe. sociedade reservava ao gênero feminino,
– Disparate, filho.
– Acredite em mim, eu conheço essa gente. a de esposa e/ou de mãe: “Mas mulheres
– Outra vez o umbigo, Lourencinho? não contam. Assim se dizia em casa dos
– Está-me a crescer, mãe. A sério, desta vez Castro. Maior parte das vezes até descon-
é a sério. Até já
tam, acrescentavam” (p. 70). Como não
estou a sentir o cordão umbilical a sair-me.
– Deixe que eu lhe faço uma massagem e se posiciona em relação aos desmandos
isso já passa. cometidos na colônia, a portuguesa assu-
A mãe senta-se na cama e esconde as mãos me a posição de cúmplice, caracterizando,
por baixo dos lençóis. Seus olhos agasalham
assim, um tipo de colonizador conivente
muita ternura.
– Vê, mãe? Eu não dizia? com aqueles que detinham o poder,
– Já vai passar, filho. mesmo sem participar diretamente dos
– Isto só pode ser feitiço da pretalhada. É atos arbitrários. Entretanto, apesar de
esse cego, mãe (p.11).
essa personagem, por omissão, situar-se
Deve-se observar que a fala da mãe, politicamente do lado do colonizador, em
no diálogo acima, desautoriza o discurso certo momento, o convívio forçado com os
do colonizador, pois, embora tente confor- nativos acaba fazendo que ela, de modo
tar Lourenço e fazê-lo acreditar que os inconsciente, passe a agregar elementos
temores que o assaltam não têm funda- culturais do povo africano.
mento, Dona Margarida, em seus pensa- O colonizador, há muito tempo distan-
mentos, mostra que não está convicta do te de sua terra, vai perdendo suas refe-
que diz. A queda da bandeira portuguesa rências. Então, a necessidade e, talvez,
da parede onde se achava pendurada, a curiosidade, acabam lhe despertando o
sem que haja uma força mecânica capaz interesse pela cultura dos negros. Assim,
de fazê-la cair, sugere a ela que o declí- uma cultura influencia a outra. É isso o
nio do poder da metrópole sobre o país que acontece quando Dona Margarida,
africano também está próximo e que as angustiada e temerosa pelo que pudesse
consequências desse fato para os portu- acontecer a Lourenço, procura a ajuda da
gueses que vivem na colônia, sobretudo feiticeira Jessumina:
para aqueles que aí exercem funções de Quem visse Dona Margarida trilhando as
mando, serão inevitáveis. incognitudes do mato não acreditava. Ali,
nas margens das lagoas, pisando os fétidos
Além disso, há outros aspectos a se- matopes! Resguardada no guarda-chuva,
rem destacados no que se refere à perso- com ares furtivos, mais discreta que som-
nagem de Dona Margarida. Após a morte bra da cobra-mamba. Caminhava nessa
do marido, ela desempenha, sobretudo, hora em que o sol já começa a ter dúvidas.

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Jessumina se admirou quando a portuguesa À primeira vista, somente Custódio
se anunciou: parece ter sido influenciado pelas ideias
– Dona Margarida? Que surpresa!
Sentaram-se ambas no chão que é o lugar do colonizador, na medida em que se per-
de mulher sentar. A portuguesa ensaiou as gunta se, realmente, vale a pena tentar
dúvidas e os métodos de sua descrença. Que mudar o mundo. Logo se percebe, porém,
aquilo das feitiçarias, Deus lhe perdoasse,
era imperdoável pecado (p. 39). que Marcelino – “sempre apto a recolher
motivos de zanga e ofensa” – parece mo-
Da mesma forma, o nativo deixa-se vido pelo ódio, tal como o colonizador, e
influenciar pelas concepções do colo- pelo desejo de tomar o lugar então ocu-
nizador. O discurso revolucionário fica pado pelo português, apenas invertendo
a cargo do mulato Marcelino, um dos os papéis de dominador e dominado.
integrantes da Frelimo, que representa Posição distinta de todas as que foram
a resistência ao poder da metrópole. Por comentadas até aqui é aquela assumida
outro lado, o discurso de seu tio, Custódio por Irene, a irmã mais nova de Dona
– marcado pelo temor e pela rejeição a Margarida, que revela a possibilidade
qualquer atitude de enfrentamento com de uma completa identificação do indi-
o colonizador – representa o conformismo víduo oriundo de Portugal com a cultura
e a submissão dos africanos ao poder moçambicana. Irene chega à África sem
que os portugueses detinham sobre eles. qualquer pretensão de portar-se como
As posições dos dois personagens ficam uma colonizadora; sua única intenção
explícitas no seguinte diálogo: é fazer companhia à irmã, que ficara
Andaré Tchuvisco costumava parar por viúva. Logo depois, ela estabelece um
aquelas bandas da oficina, escutar os sons
das ferramentas, o bater nas chapas. Na relacionamento de igualdade para com
altura, Andaré ainda gozava das boas os negros, assimilando aspectos da cul-
vistas. O mundo se mobilava de lumino- tura do povo moçambicano, além de se
sidade. Quem estava de marimbas para
essas alegrias era Marcelino, sempre apto envolver afetivamente com um nativo.
a recolher motivos de zanga e ofensa. Tudo A personagem de Andaré Tchuvisco
isso o mulato traduzia era suas pregações
políticas. Só o tio Custódio desconhecia mo- resume assim o episódio da chegada da
tivos para indisposições. Melhor era ignorar. portuguesa ao país africano:
Afinal, quem não sabe viver não sabe sofrer.
O sobrinho bem tentava convencê-lo dos Recordava Irene com seu mulato Marcelino.
assuntos da Revolução. O mundo precisa Atrevimento desses sempre se paga com
de ser cambalhotado, o invés do viés, dizia coração. O tempero da alma de Irene se
o jovem. Mas o tio esguelhava, suspeitoso: revelara desde que ela desembarcara em
– Não me venha com essas idéias de política. Moçambique. Irene chegara a Pebane sem
A política é desses incêndios que se acendem modos de ocupadora, ela em si requerendo
na casa do outro e quem arde é a nossa casa. apenas o espreitar respeitoso de quem não
– A política, caro tio, só é perigosa quando a quer posse nem domínio. Se comportava
vida é ainda mais perigosa. como era: estrangeira, vivendo em território
Não havia meio. Custódio se esquivava das colonial (p. 26).
razões do fraco contra o forte. Valia a pena
tentar mudar este nosso mundo? (p. 27).

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Irene não só convive pacificamente O rodar da maçaneta faz despertar
com os negros e participa de suas lutas Margarida. Irene continua dançando,
volteando-se pela sala. Lourenço, entrando
políticas – inclusive desviando documen- na sala, estremece. Irene passa rodando,
tos da casa dos Castro em favor dos guer- pernas deixadas nuas pelo arregaçar da
rilheiros, após seu envolvimento com o saia na cintura. Se percebe que aquela
dança não é européia. É ritmo africano.
integrante da Frelimo – como também
A mulher branca se balança como se seu
comunga das mesmas tradições e pratica corpo albergasse o mundo dos outros [...].
os mesmos rituais que os moçambicanos: Sempre embalada por uma inaudível
música, Irene vai de encontro ao sobrinho
Irene sai. A irmã não sabe, mas Irene vai
e lhe mostra o frasquinho. Margarida, em
cumprir o ritual dos falecidos. Dirige-se à
vão, gesticula. Recomenda recato à irmã.
grande maçaniqueira onde estão as campas
Mas Irene desafia o sobrinho. A moça
de Marcelino e Custódio. Irene visita-as à
o que fazia? Abria janelas em noite de
maneira das crenças indígenas. Leva-lhes
tempestade?
farinha, panos, bebidas. Senta-se junto à
– Sabe o que é isto, sobrinho?
tumba e conversa com os mortos. Resta-lhe o
– Foi outra vez à porcaria das lagoas?!
conforto daqueles falecidos terem encontra-
– Dentro deste frasquinho está uma água
do residência e não desvairarem sem pouso
que me deu Jessumina.
como esse seu malfadado cunhado, Joaquim
Pára, afogueada. E explica com coração
de Castro. Quem não tem parentesco com a
nas palavras: aquele era o líquido em que
vida não chega nunca a morrer devidamente
os abutres lavavam os olhos. Aquela água
(p. 48).
apurava visões de quem delas carecia. E ela
Diferentemente de sua irmã, Irene pedira aquele líquido para lavar os olhos de
Tchuvisco, o cego seu amigo (p. 16).
não concorda com as atitudes do cunhado
e do sobrinho e coloca-se em defesa dos No trecho acima, Irene menciona seus
nativos injustiçados, atitude essa que amigos Andaré e Jessumina, ambos na-
seus familiares classificam como loucu- tivos, que se constituem em personagens
ra. É assim que eles tentam justificar importantes na composição da narrativa.
a identificação de Irene com a África Em relação ao cego diziam: “O que ele
e também a sua inconformidade com o via eram futuros. Nada em actual pre-
autoritarismo presente na colônia, com- sença” (p. 16). Andaré faz previsões para
portamento pouco condizente com aquilo o futuro e utiliza-se de metáforas, que
que se espera de uma representante de conferem um tom poético ao seu discurso,
portugueses. Logo no primeiro capítu- a fim de falar de eventos políticos que
lo, ela sai em defesa do cego Andaré mudariam a história de Moçambique:
Tchuvisco. Nessa cena, Irene dá fortes No centro da praça está o cego Andaré
demonstrações de sua identificação com Tchuvisco, gesticuloso e barulhador. Grita,
convocando Moisés e a montanha. Anuncia
a cultura moçambicana e aproveita-se do
suas terríveis visões: que o rio está para se
estado de loucura que lhe atribuem para desprender do leito, cansado da margem, lá
provocar a irmã e o sobrinho: onde ela é pedra amontanhada. Berra com
tantas almas que o povo acode, aflito (p. 52).

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O cego alude aos acontecimentos que como se verifica neste diálogo que man-
estão por vir como resultado da queda tém com Dona margarida:
do regime salazarista; diz que “o rio está – Antes de ir, Dona Margarida, me diga uma
para se desprender do leito”, fazendo coisa: veio por causa de seu filho Lourenço?
referência à independência de Moçambi- – Sim, ele está doente.
– Para nós, não é doença. É perda de pode-
que, mas afirma que, antes disso, viria res.
uma terrível “inundação”. Assim, ele an- – Ele diz que aparece o pai. Diz que o meu
tecipa, por meio da linguagem figurada, marido ainda não tombou do céu, anda por
aí pairando.
o período de turbulências que marcaria – E a senhora nunca vê o seu falecido ma-
o país africano depois da Revolução dos rido?
Cravos. Chama atenção o fato de que – Bom, isso não vem ao caso.
– Então, porquê até hoje perfuma o lado da
Andaré vê aumentar a sua clarividência
cama dele?
depois que lhe lavam os olhos com seiva – Foi irene que lhe disse?
do mukuni; desde então, “outras visões – Tenho minha maneira de saber. Eu lavo os
se abriram para ele”. olhos na mesma água onde o gato se banha.
Assim, vejo de noite (p. 43)
Desse modo, o cego torna-se capaz de
perceber a ameaça que representa para É através de Jessumina que o proces-
o futuro de Moçambique a identificação so de identificação de Irene com a cultura
dos nativos com o colonizador, identi- moçambicana torna-se pleno. Em uma
ficação essa que antes foi apontada no das últimas cenas da obra, Irene submer-
discurso de Marcelino, o revolucionário ge nas profundezas do lago, conduzida
integrante da Frelimo. Diz Andaré: pela feiticeira, a fim de adquirir – com
“– Os portugueses estiveram tanto tempo o povo que, supostamente, lá habita –
fechados connosco que agora há os que determinados conhecimentos e poderes
querem ser iguais a eles” (p. 89). Logo sobrenaturais: “Quando a água lhes dá
o narrador complementa: “Seu medo pelo peito, Jessumina pára e passa as
era esse: que esses que sonhavam ser duas mãos pela cabeça da branca. Depois,
brancos segurassem os destinos do país. a adivinha lhe vira as costas. Irene se-
Proclamavam mundos novos, tudo em gue avançando, em demorado naufrágio,
nome do povo, mas nada mudaria senão até submergir por completo na lagoa”
a cor da pele dos poderosos.” E conclui, (p. 92). Essa cena é duplamente signi-
revelando o maior temor de Andaré: “A ficativa. Por um lado, como já foi men-
panela da miséria continuaria no mesmo cionado, representa, metaforicamente, o
lume. Só a tampa mudaria” (p. 89-90). batismo de Irene, sua pertença à nação
A personagem Jessumina também faz moçambicana, condição que adquire
previsões de futuro. Porém, ao contrário por ter assassinado o sobrinho, um
de Andaré, em suas adivinhações ela se dos principais opressores do povo. Por
utiliza da linguagem simples do povo, outro, representa a necessidade que o

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povo moçambicano tem de resgatar suas que ele procura resgatar e trazer para
raízes, nesse caso representadas pelo dentro do universo ficcional. Desse modo,
mito, quando os portugueses começam a os personagens que representam os na-
deixar o país africano, depois da queda tivos em Vinte e zinco, em sua maneira
do regime. de agir e de falar, incorporam determi-
Os nativos acreditam que o povo que nados valores autóctones, preservando a
habita o fundo do lago tem saberes se- tradição oral e os mitos que compõem a
cretos, muito úteis para uma terra tão cultura moçambicana e que configuram
assolada pelo sofrimento como é Moçam- um contradiscurso, uma oposição ao
bique. Essa crença explica os poderes discurso do colonizador. Assim, pode-se
mágicos que foram adquiridos por Jes- afirmar que o romance de Mia Couto,
sumina, depois de haver permanecido no ao recontar a história de Moçambique,
lago por sete anos, e também a atitude de participa do processo de construção da
Irene, que segue os passos da feiticeira, identidade do país africano.
indo vai ao encontro dos espíritos das O escritor também demonstra que
águas. Após tantos anos de imposição a identidade – individual ou nacional
da cultura dos brancos, olhar para o pas- – está sempre em formação e que o
sado é uma forma de buscar elementos processo por meio do qual se dá a sua
culturais originalmente moçambicanos, construção é extremamente complexo.
que irão constituir a identidade do povo Essa complexidade é evidenciada não
liberto, embora essa identidade não pos- apenas quando mostra que as culturas
sa mais voltar a ser pura, uma vez que as do colonizador e do nativo influenciam-
influências externas são indissociáveis se reciprocamente, mas também quando
do processo de formação do país. revela que ambas se caracterizam pela
Mia Couto está ciente de que as mar- diversidade. Nem entre os portugueses,
cas da exploração e da violência deixadas nem entre os moçambicanos há uma
pelo colonialismo não podem, simples- única forma de pensar, de agir e de
mente, ser apagadas, e de que os traços expressar-se; os dois grupos caracteri-
culturais adquiridos com o colonizador zam-se pela diversidade de concepções
passam a integrar a identidade moçam- ou opiniões, de atitudes e de linguagens.
bicana. Entretanto, o autor demonstra Além de assimilar essa heterogeneidade
que essa identidade é construída, em presente no contexto extratextual, que se
grande parte, por elementos culturais converte numa fonte inesgotável para a
anteriores à colonização portuguesa, constituição da polifonia e do plurilin-
pois a dominação, mesmo quando se guismo no romance, Vinte e zinco explora
revela eficiente nos terrenos econômico os variados conflitos e combinações – ou
e político, não alcança a mesma eficácia fusões – que resultam da articulação das
no plano cultural. São esses elementos diferenças culturais existentes entre os

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dois povos. Desse modo, a obra de Mia Referências
Couto distancia-se do maniqueísmo que,
por vezes, comparece nas narrativas BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e
ficcionais voltadas à abordagem das de estética. São Paulo: Hucitec, 1988.
relações entre colonizador e colonizado. COUTO, Mia. Vinte e Zinco. 2. ed. Lisboa:
Caminho, 1999.
The multiple voices in Vinte e HALL, Stuart. A identidade cultural na
zinco and the cultural identity of pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da
Mozambique Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.
Abstract LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas
de expressão portuguesa. Lisboa: Universi-
This paper analyses the multiple dade aberta, 1995.
voices in Vinte e Zinco, work written
by Mia Couto and first published in TUTIKIAN, Jane. Velhas identidades novas:
1999. The examination made allows o pós-colonialismo e a emergência das nações
demonstrating not only the several de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra
speeches and cultural expressions that Luzzatto, 2006.
the Mozambican writer collects from
the extratextual context and re-elabo-
rates artistically, but also the way he
represents the process of individual
and collective identity construction of
Mozambique, during the colonial period
and at the time when the African
country achieves its independence.

K e y w o r d s : C u l t u r a l i d e n t i t y.
Polyphony. Plurilinguism. Mozambican
literature.

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