Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
de acordo com a natureza é uma dádiva, mas viver de acordo com a cultura, essa
é obra exclusiva dos humanos.
Portanto, a cultura, por envolver maneiras de fazer, de agir, de se manifestar e,
até certo ponto, de pensar, torna os seus fazedores singulares dos mais distintos
grupos sociais. Estas manifestações completam a dimensão social do homem, em
que a linguagem é, não obstante, o meio socializador mais relevante. Os meios
culturais, ao serem diferentes na sua maneira de se manifestar, não só fazem um
povo ser distinto do outro, mas também constituem o seu DNA cultural, ou
melhor, a sua identidade. Identidade é algo que identifica e caracteriza alguém ou
um determinado povo.
Portanto, o termo identidade deriva da raiz latina idem, que significa igualdade
ou continuidade. Tal como o conceito de cultura, a palavra identidade tem uma
longa história filosófica que examina a permanência em meio à mudança e a
unidade em meio à diversidade. No período moderno, o termo está estreitamente
ligado à ascensão do ?individualismo?, e admite-se que sua análise tem início com
os textos de John Locke e David Hume. Porém, é só no século XX que o termo
entra em uso popular, reforçado especialmente desde os anos 1950, na América
do Norte (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996).
Os autores mencionam que, nas ciências sociais, as discussões sobre identidade
assumem duas formas mais importantes: a psicodinâmica e a sociológica. A forma
psicodinâmica surge com a teoria de Sigmund Freud sobre a identificação através
da qual a criança vem a assimilar pessoas ou objetos externos. Geralmente, os
fundamentos de Freud cingem-se nos conhecidos conceitos de ego e superego. A
teoria psicodinâmica enfatiza o cerne de uma estrutura psíquica como tendo uma
identidade contínua.
Nessa perspectiva, Menezes (2007) ressalta que a etimologia da palavra
identidade ( identitas) nos remete à ?repetição do mesmo?, tornando possível
a construção de um inconsciente coletivo que intervêm nas ações individuais.
E quanto mais difícil o reconhecimento da identidade do outro, mais tensas e
defensivas são as relações entre os grupos sociais:
Assim como a identidade pessoal é importante, dela faz parte a identidade grupal.
Nos grupos inseridos em outras culturas, percebe-se a ênfase nas diferenças mínimas
que são ressaltadas para evitar a confusão com o outro grupo. A essência do conflito
começa a se psicologizar dessa maneira, independente da sua natureza política ou
econômica. A etnicidade é uma forma coletiva de se buscar a identidade (MENEZES,
2007, p. 127).
Figura 1
Grupos étnicos de Moçambique
Moçambique para todos.
No meio de toda esta situação aqui colocada, que mecanismos usar para
acomodar o pluralismo cultural em Moçambique? O recurso será encontrar
outro discurso capaz de reunir consenso dessa pertença coletiva, o que se pode
considerar de ?consciência possível?, para usar a terminologia de Goldman
(1972). Ora, Max Weber, na sua obra Ensaios de Sociologia(2008), destaca a
solidariedade nacional como um dos mecanismos para esse efeito. Conquanto,
o autor realça que a solidariedade nacional não reside necessariamente nos
falantes da mesma língua: ela pode estar ligada a diferenças nos outros valores
culturais das massas, como um credo religioso. Não obstante, ?[...] a solidariedade
nacional pode estar ligada às memórias de um destino político comum com outras
nações [...] a ideia de nação pode incluir as nações de descendência comum e de
uma homogeneidade essencial, embora frequentemente indefinida? (WEBER,
p. 120). O autor, continuamente, explica uma possibilidade de coabitação
das nações, pois ?a nação tem essas nações em comum com o sentimento de
solidariedade das comunidades étnicas [...]? (p. 120).
Portanto, solidariedade é promover a tolerância; tolerância é valorizar as
diferenças; valorizar diferenças é aceitar o outro tal como ele é; e isto é só possível
através da compreensão mútua. Para essa compreensão, é necessário conhecer
o que há de diferente entre eu e o outro e encontrar um meio termo para a
inclusão social e convivência na diversidade. Até que a diversidade nos faz de
tão únicos e unos. Portanto, só observando estes princípios de solidariedade
nacional é possível acomodar o pluralismo étnico e cultural de que Moçambique
é característico e, por conseguinte, evitar conflitos de legitimidade étnico-
territorial.
Recuando na história, os anos que se seguiram à segunda República (1990)
caracterizam-se pela explosão de movimentos étnicos, fruto das liberdades
garantidas pela nova Constituição. A exemplo disso, citamos os casos da
SOTEMAZA, cujo acrônimo se refere às províncias de Sofala, Tete, Manica
e Zambézia; Movimento Cívico de Solidariedade e Apoio à Zambézia
(MOCIZA); Associação para o Desenvolvimento de Nampula (ASSANA)
e; a Ngiana [8]- Associação dos nativos e amigos de Maputo. Inicialmente
reivindicavam a exaltação das minorias étnico-regionais e alguns, adicionalmente,
foram mais longe ao exigirem a redistribuição justa e equitativa dos bens
nacionais e dos cargos públicos de administração política e econômica do
Estado que, segundo os seus representantes, encontravam-se nas mãos de uma
minoria do sul e de alguns que não sendo desta região, foram cooptados pelo
regime (CHICHAVA, 2008). Desde então, os grupos locais que buscam a
autoafirmação começaram a se proliferar e a se manifestar publicamente. A
consciência de pertença ganhou forma e passou a ser recorrente em quase todo
o território nacional.
Portanto, acomodar os interesses dos diferentes grupos étnicos de um
território formado nas circunstâncias históricas como as de Moçambique não só
é importante, mas imperioso, para a construção da referida unidade nacional.
O princípio de integração social e a comunicação intercultural podem garantir
a unidade na diversidade. Para explicar o dilema ?como é que podemos viver
juntos com as nossas diferenças?, Touraine (2003) explica que a melhor solução
é recorrer a um princípio de mediação no qual a ação de cada indivíduo tome
um protagonismo para combinar suas ações às pertenças culturais. Portanto,
uma sociedade pode possibilitar a comunicação intercultural se reconhecer o
esforço de cada indivíduo para se constituir em sujeito e encorajar cada pessoa a
reconhecer e apreciar o esforço dos outros. Assim, o que nos permite viver juntos ?
[...] é o parentesco dos nossos esforços para juntar os dois domínios da nossa
experiência, para descobrir e defender uma unidade que não é a de um ego, mas
de um eu,de um sujeito? (TOURAINE, 2003, p. 169).
Quando é para falar sobre o papel da cultura, torna difícil por onde começar,
não pela exiguidade de evidências, mas pela sua abundância. De acordo com Hall
(1996), em ciência social pode se destacar dois papéis fundamentais que a cultura
cumpre na vida social. Em primeiro lugar, a cultura proporciona significados,
tal como foi durante a maior parte da história humana, por meio da religião
organizada. Em segundo lugar, a cultura fornece regras de ação social sem as
quais seria difícil para os seres humanos, dentro de uma sociedade, chegar a
compreender uns aos outros. Por outro lado, é importante observar que as
religiões do mundo são, natural e inevitavelmente, em grande parte, compêndios
de regras para lidar com a vida no dia a dia. Em uma breve reflexão em torno
dos estudos de Max Weber (2004) sobre as religiões do mundo, identificamos
a tentativa de explicação da origem, o conteúdo, a difusão e a manutenção de
sistemas de crença, assim como a análise dos modos pelos quais elas (religiões)
influenciam a ordem social das respectivas comunidades de que fazem parte.
Por outro lado, ninguém ignora que a cultura é o fator determinante das nossas
identidades. As nossas manifestações culturais, a nossa forma de fazer, de ser
e estar depende como esses valores foram-nos transmitidos, ou seja, o que nós
somos não é exclusivamente nossa obra, mas sim e, sobretudo, o que nos foi
determinado pela cultura. Assim, a cultura é parte fundamental de manutenção e
multiplicação do capital social. Bourdieu (2014) lembra que o volume do capital
social que um determinado agente individual possui depende da extensão da rede
de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital cultural
ou simbólico daqueles com quem está ligado. A nossa personalidade, como seres
sociais, depende do meio em que vivemos e de quem convivemos e partilhamos
as nossas emoções.
Entretanto, quando uma determinada manifestação cultural cobre a totalidade
de um país, Hall (1997) chama de cultura nacional. Para ele, as culturas
nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes da
identidade cultural. As manifestações culturais permitem-nos distinguir um
inglês de um estado-unidense, um francês do alemão, e assim por diante.
Portanto, as culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A
formação de uma cultura nacional contribuiu para a criação de padrões de
alfabetização universais, generalizou a única língua vernácula como dominante
para a comunicação em toda a nação e criou uma cultura nacional homogênea.
Além disso, permitiu manter as instituições culturais nacionais, como o caso do
sistema único educacional em toda nação.
As culturas nacionais não são apenas constituídas de instituições culturais,
mas também de símbolos e representações. No entanto, as culturas nacionais, ao
produzirem sentidos sobre a nação, dos quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Tal como disse Gellner, citado por Hall:
... a cultura é agora um meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, antes,
a atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma
sociedade podem respeitar e sobreviver e produzir. Para uma dada sociedade, ela tem
que ser uma atmosfera na qual podem todos respeitar e falar e produzir; ela tem que
ser, assim, a mesma cultura (GELLNER, 1983 apud HALL, 1997, p. 63).
Considerações finais
Estando dito o que até aqui ficou, cumpre assinalar que, ao longo do trabalho, ora
em desenlace, discutimos os conceitos de cultura e de identidade. Nesse âmbito,
constatamos que a cultura é um conjunto de manifestações sociais que podem ser
conhecimentos, crenças religiosas, máximas da moral, costumes, hábitos, entre
outras habilidades que o homem conquista como herança e construção social.
Por seu turno, essas particularidades da cultura, por não serem uniformes em
toda a extensão humana, criando assim distinções entre um povo do outro, dão
lugar à identidade. A cultura é usada para se referir aos padrões de vida de uma
dada comunidade e a identidade, o que distingue um do outro. Portanto, a
extraordinária diversidade social entre os humanos cumpre o papel de potenciar
a afirmação da identidade.
A cultura não é somente algo adquirido por membros de um grupo como uma
herança secular, como é também uma construção fruto da interação social. É o
caso da cultura de solidariedade: o grau de coesão de um grupo mede-se pelo
nível de solidariedade entre os membros e esta é que garante a estabilidade da
identidade.
No tocante à questão moçambicana, constatamos que é limitador identificar
uma única característica que represente a identidade dos moçambicanos como
uma nação, em virtude da multiplicidade de etnias e tendo em conta que cada
etnia possui o seu legado histórico à parte, a sua língua e um princípio psicológico,
pressupostos básicos para a afirmação de uma nação. Por isso, difícil é encontrar
uma cultura nacional uniforme em todo o território e que sirva de identidade
dos moçambicanos. Por essa razão, afirmamos que em Moçambique não temos
identidade, mas identidades. Mas isso não significa uma impossibilidade de
afirmação da nação. Portanto, entendemos que, para acomodar o pluralismo
cultural e promover o nacionalismo, é preciso que haja uma solidariedade
nacional, a tolerância, a valorização das diferenças, a compreensão mútua e a
inclusão social. Se faltar a observação destes elementos, a unidade nacional será
literal.
Quanto à sua importância, ninguém duvida que se não fosse a cultura,
unicamente desenvolvida pelos humanos, não haveria distinção rigorosa entre
estes e outras espécies animais e entre um grupo social, do outro. Assim sendo, a
cultura serve para localizar os povos e potencializar seu capital social e humano.
Referências
Notas
[1]Inicialmente apresentado no II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia Centro-Oeste
e Seminário das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Goiás, realizado em Goiânia em 2016, cujas contribuições culminaram com a sua
ampliação e melhoramento.
[4]A identidade pessoal e a identidade social, ambas são o que se pode chamar da identidade
do ?eu?, que o indivíduo vem adquirindo como resultado das suas múltiplas experiências sociais
(GOFFMAN, 1988; ELIAS, 1994b).
[5]Ao usarmos este conceito, estamos longe do sentido aplicado por alguns autores que usam
o conceito de ?identidade coletiva? para se referirem às tendências de grupos socialmente
construídos para enfrentamentos (ver GOHN, 2002). Aplicamo-lo para nos referir à identidade
comum, que permite identificar membros de um mesmo grupo.
[6]Capital social é o conjunto de recursos potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável
de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento vinculadas a um grupo,
como um conjunto de agentes unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU, 2014).
[9]A pesquisa com a finalidade de conclusão do mestrado foi realizada na cidade de Lichinga,
capital da província de Niassa em Moçambique, e visava aferir o papel dos ritos de iniciação na
comunidade yaawo, dada a importância atribuída e prática contínua, envolvendo crianças na fase
inicial da adolescência (NAMUHOLOPA, 2017).