Você está na página 1de 8

5

Paradigmas socioculturais1, educação e desenvolvimento em Moçambique: uma


perspectiva epistemológica

Gregório Adélio Mangana2

Resumo
O texto tem por objectivo, analisar como as práticas sócio-culturais compõem
epistemologicamente a educação articulada em Moçambique, procurando identificar os seus
deslocamentos e efeitos no desenvolvimento da sociedade contemporânea, tendo como base a
crítica ao modelo de racionalidade ocidental, que surge como um modelo hegemónico,
suplantando, desse modo, os outros modelos. O texto pretende reivindicar uma forma de diálogo
inter e multicultural, sem excluir ou distanciar-se dos outros substratos epistemológicos.
Pretende-se propor aqui um modelo de racionalidade cosmopolita, resgatando e legitimando as
experiências produzidas localmente.

Palavras-chave: Conhecimento, Educação, Desenvolvimento, Moçambique, Paradigmas sócio-


culturais.

Educar em Moçambique: com que paradigmas?


O substrato epistemológico de qualquer sistema de educação deve assentar-se
aos valores do grupo e às condições sócio-culturais (cultura material e espiritual), às
quais os grupos deveriam dar resposta. Aliás, a cultura apresenta-se como um espelho
de uma determinada sociedade ou grupo. Parafraseando Durkheim 3, qualquer sociedade
deve ter para si um certo ideal de homem, daquilo que ele deve ser, tanto do ponto de
vista intelectual, como físico e moral, e que esse ideal é, em certa medida, o mesmo para
todos os cidadãos. A educação deve partir da imagem que temos do homem que
queremos construir, e ela tem como finalidade desenvolver no homem as suas
faculdades. A questão da educação em Moçambique centrada nos saberes locais vem
sendo muito debatida por académicos e pouco colocada em prática pelas entidades
competentes. A verdade é que tomou-se consciência de que a importação de modelos
pedagógicos ocidentais, sem adequá-los a realidade moçambicana concreta, afectou
muito negativamente a educação, quer sob ponto de vista da qualidade, assim como sob
que tipo de valores se quer transmitir.

1
Com a expressão “paradigmas socioculturais” queremos considerar os modelos sociais e culturais e os
conhecimentos produzidos nesses modelos, que podem ser designados por: etno-conhecimentos,
conhecimento indígena (local, nativo, original), saberes locais, etc.
2
Licenciado em Ensino de Filosofia e docente na Universidade Pedagógica - Maxixe.
3
DURKHEIM, Emile. Sociologia, Educação e Moral. Porto, Rés editora,1984.p.16
6

Há necessidade de se efectuar uma mudança paradigmática do status quo da


educação em Moçambique, e esta (a educação) deve centrar-se em paradigmas sócio-
culturais; mas não se quer dizer com isso que ela deve isolar-se do mundo e de outros
saberes culturais, isto porque, segundo Hall (1997), o mix cultural, cruzando velhas
fronteiras, pode não ser a eliminação do velho pelo novo, mas a criação de novas
alternativas. Ora, o que o texto pretende resolver e que emerge como inquietação é o
seguinte: numa realidade cosmopolita que é Moçambique, em que medida a integração
dos substratos sócio-culturais na educação poderá ser um factor epistemologicamente
preponderante? Qual é a pertinência da escola ser um espaço de debate dos
conhecimentos indígenas? E como é que a educação nesses moldes pode ser
impulsionadora de desenvolvimento em Moçambique? Ou como a integração dos
saberes locais na escola pode contribuir para melhorar a qualidade de ensino e,
consequentemente, o desenvolvimento de Moçambique?
Sem precisar de nenhum estudo aprofundado, salta-nos à vista, por um lado, que
até então tem-se privilegiado nas nossas escolas sistemas de educação ocidental, como
dissemos acima; facto pelo qual se tem notado em Moçambique um consequente
epistemicídio cultural4. Por outro lado, percebe-se que o maior problema da educação
em Moçambique hoje5, é que nos objectivos do processo educativo, o fim último, em
direcção ao qual se devem orientar todas as técnicas pedagógicas, não é
antecipadamente definido. Tanto que é crucial que quando se olha para um dado sistema
educativo, o interesse não deve ser prioritariamente para os métodos e para as técnicas
de ensino, mas para os conteúdos axiológicos que o sistema de educação pretende
transmitir, isto é, os substratos sócio-culturais.
Quero defender aqui que a dimensão cultural na educação vem, em primeiro
lugar, pelo seu substrato nas normas e nos valores instituídos de uma dada sociedade; ou
por outra, todo o projecto de educação depende do projecto de sociedade que se

4
Termo usado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos no seu artigo: Para uma Concepção
Multicultural dos Direitos Humanos, 2001. Literalmente significa assassinato do conhecimento; e usa o
termo para designar o processo pelo qual o conhecimento ocidental – primeiro a teologia depois a ciência
moderna – deslegitimou, suprimiu e, em última instância, eliminou conhecimentos rivais com que se
defrontou durante os períodos colonial e pós-colonial, um processo que dura até hoje.
5
NGOENHA, Severino Elias. Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique: O paradigmático
questionamento da Missão Suíça. Maputo, Livraria Universitária, 2000, p.26.
7

pretende construir. Por isso que a educação, segundo Toscano (1999)6, é o processo
social através do qual a sociedade sistematiza a transmissão do seu legado cultural,
sendo esta transmissão a própria condição de continuidade da espécie humana, enquanto
tal. E ela só pode ser entendida como integrando uma totalidade cultural, nunca como
um fenómeno isolado.
A sociedade produz uma variedade de códigos de significação que dão sentido
às suas acções. Esses códigos de significações, quando levados ao seu conjunto,
segundo Hall (1997), formam a cultura. Para ele toda a acção social é intrinsecamente
cultural e todas as práticas culturais, expressam significações. Ora, nota-se nas escolas
moçambicanas uma ausência total de alguns elementos culturais importantes que a
criança aprende no seio familiar, isto é, o legado familiar nas escolas moçambicanas não
é levado em consideração. É o exemplo das línguas locais/nativas com as quais a
criança se comunica no seio familiar, que, muita das vezes, quando chega à escola ela é
obrigada a esquecer. Durkhiem (1984), já dizia que ao aprendermos uma língua,
aprendemos todo um sistema de ideias, distintas e classificadas, e herdamos todo o labor
de que resultaram essas classificações, que se resumem a séculos de experiências de
uma determinada cultura. E na mesma linha, Ngoenha (2000), dá preponderância à
língua em termos da filosofia da linguagem, afirmando que ela (a língua) é um dos
principais veículos axiológicos, não apenas no sentido em que ela é um dos principais
meios de transmissão de valores, mas porque cada idioma é já nele mesmo habitado por
uma série de valores fundamentais. Dimas Masolo7, por exemplo, concebe o uso da
língua indígena como sendo simplesmente bom em si mesmo, sendo a língua crucial na
transmissão dos seus valores aos seus membros. O uso da língua é em si um valor e, do
ponto de vista epistémico, a língua de uma comunidade reflecte a estrutura do seu
mundo, como a comunidade a entende, define e procede à taxonomia das ideias sobre si
própria, as relações, as suas hierarquias e o seu ecossistema. Para este filósofo, não
restam dúvidas que o uso das nossas línguas ajuda no desenvolvimento da ortografia,
assim como na preservação e melhoramento das nossas diferentes línguas e no
desenvolvimento cultural.

6
A este respeito recomendo o 1º capítulo do livro Introdução a Sociologia Educacional de Moema
Toscano, Petrópolis, Vozes, 1999.
7
MASOLO, Dimas A. “Filosofia e conhecimento Indígena: Uma Perspectiva Africana”. In SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org): Epistemologias do sul. São Paulo, Cortez,
2010.p.526.
8

Todavia, sirvo-me destes exemplos para defender que, de facto, os substratos


sócio-culturais locais são bastante importantes na edificação da personalidade humana,
tanto que é crucial que definitivamente esses elementos sejam integrados nos sistemas
de educação em Moçambique. Castiano8 – emprestando o termo a Bourdieu – chama a
desvalorização ou marginalização desses valores epistemológicos violência simbólica.
Se olharmos para o percurso histórico da educação em Moçambique, vamos
perceber que a questão cultural sempre foi desvalorizada nos modelos curriculares, isto
é, houve sempre violência simbólica. Não obstante o interesse por parte do INDE 9, e de
algumas políticas do governo como a Agenda 202510, na integração dos valores locais
nos sistemas de educação, o esforço ainda mostra-se insuficiente do ponto de vista
prático e, sobretudo, na articulação desses substratos culturais para o desenvolvimento
do país.
Orientando a cultura para as escolas, estaríamos a conhecer a essência da
sociedade e, segundo Durkheim (2009), quanto melhor conhecermos a sociedade,
melhor poderemos dar-nos conta de tudo o que acontece no microcosmo social que é a
escola11. O currículo12 deve apresentar à criança, em forma idealizada, a vida presente,
as aspirações éticas do presente, a apreciação presente do valor cultural do passado. O
currículo é, de facto, a introdução da criança na vida e na educação escolar.
E o currículo local tem a incumbência de ser preenchido por conteúdos que os
membros da comunidade consideram ser relevantes para a criança conseguir inserir-se
na sua própria comunidade. O currículo local, segundo Castiano (2011), permite que as
crianças se confrontem racional e criticamente com o meio natural, cultural, epistémico
e político em que vivem e o professor deve ser o facilitador dessa confrontação. A
criança não só deve conhecer os conteúdos e tradições locais, mas, sim, deve
desenvolver a faculdade de julgar e formular seus próprios juízos sobre estes mesmos
hábitos, costumes e tradições.

8
NGOENHA, S. E. e CASTIANO, P. J. Pensamento Engajado: Ensaio Sobre filosofia africana,
Educação e Cultura politica. Maputo, Editora Educar, 2011, p.86-87.
9
(INDE) - Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação que tem vindo a fazer um inventário sobre
as necessidades locais de aprendizagem, no âmbito do currículo local.
10
Agenda 2025: Visão e Estratégia da Nação. Maputo-Moçambique, 2003.p.98 (Que destaca que a
educação deveria promover valores tradicionais familiares ao mesmo tempo que cultiva os valores
nacionais mais altos de patriotismo, auto-estima, paz, diálogo e reconciliação entre os moçambicanos,
valores estes que estão enraizados nas diferentes culturas moçambicanas).
11
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa, Edições 70, 2009. p.111.
12
MONROE, Paul. História da Educação. 10. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979.
9

Assim, pode-se perceber que o currículo local vai permitir dar mais relevância
aos conhecimentos indígenas. E para Masolo (2010), tudo aquilo que é indígena, ou
localmente produzido, se for reinstalado no topo do seu regime epistémico terá,
consequentemente, maior valor político e cultural do que o que é estrangeiro ou
importado.13 Aliás, os conhecimentos reflectem sempre os contextos (sócio históricos)
práticos da comunidade em que são produzidos. Mas é preciso que se impulsione a
emergência dos movimentos de construção-social-de-conhecimento (etno-
conhecimentos) através do currículo local nas escolas. Reconhece-se nos tempos
hodiernos o fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica e a
emergência de uma nova ordem científica (as epistemologias contextuais)14.
Mas a emergência destas epistemologias contextuais deve ter suas bases nos
nossos sistemas de educação, através dos currículos locais. Embora haja algumas
instituições e académicos em Moçambique que se preocupam com estudos virados ao
conhecimento local, é crucial que todo o sistema de educação comece a valorizar os
conhecimentos locais, enquadrando estes nos currículos, só assim é que a educação
poderá alcançar resultados almejáveis, quer na melhoria da qualidade de ensino, assim
como no alcance do desenvolvimento desejável do País.

Conhecimento e Desenvolvimento
No seu artigo intitulado "Knowledge as a Development Issue", Hountondji
reconhece que houve um interesse crescente, tanto na Europa como na América, em
estudos denominados por conhecimento indígena ou local; quando em 1972 Harold
Conklin publicou uma impressionante bibliografia sobre o conhecimento indígena e
muitos novos trabalhos foram posteriormente publicados, por Clifford Geertz (1973,
1983), Paul Richards (1985, 1986, 1996), Pieter Schmidt (1996), etc. Mas o próprio
Hountondji diz ter suas reservas quanto aos métodos, pressupostos teóricos, metas e
objetivos usados nesses estudos. Porém, a ideia que Hontondji nos quer passar e, num
olhar com tendências viradas para a África sobre os conhecimentos indígenas, é de que
estes ainda são bastante marginalizados, e que é urgente integrá-los em pesquisas para o

13
MASOLO, Dimas A. “Filosofia e conhecimento Indígena: Uma Perspectiva Africana”. In SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org): Epistemologias do sul. São Paulo, Cortez, 2010.
p.508.
14
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso Sobre as Ciências. 15. ed. Porto, Edições Afrontamento,
2007.p. 9.
10

benefício da própria África (Cf. Hountondji, 2006: 534). Afirma ainda Hountondji que
antes de ser aplicado, e de modo a ser bem aplicado, o conhecimento tradicional deveria
ser testado constantemente pelas pessoas, deviam reapropriá-lo, para que torne possível
a sua ligação indispensável com o avanço da ciência e da tecnologia. O racional é
potenciar as pessoas a desenvolver novos conhecimentos de forma contínua, num
processo ininterrupto de criatividade, aplicando as inovações de forma sistemática e
responsável com intuito de incrementar a sua própria qualidade de vida.
Na mesma dianteira, Prakash, no seu artigo: “Uso do Saber Indígena nos
Programas de Desenvolvimento”15, lamenta o facto de ter havido em África um
subaproveitamento do conhecimento indígena como veiculo do desenvolvimento, e que
no passado, muitas nações africanas adaptaram políticas económicas visando a
modernização da sociedade e a transformação dos sectores produtivos. Ora, o grande
erro foi o de terem desconsiderado o saber indígena que poderia ter consubstanciado,
em grande medida, este processo.
No entanto, é crucial que, em Moçambique, o saber indígena seja aplicado em
programas e projectos de desenvolvimento.
Para que o conhecimento indígena tenha uma influência significativa no futuro
das sociedades da África, terá que ser valorizado nas escolas, instituições sociais
oficialmente responsabilizadas pela organização de aprendizagem e pela certificação do
conhecimento e formação das próximas gerações dos cidadãos. (Cf. Easton; Capacci;
Kane, 2000, p. 3)16
Portanto, é crucial que a escola moçambicana seja um espaço de diálogo entre as
culturas de natureza local e universal, onde o currículo local seja um espaço de
integração dos saberes, valores e práticas locais e, também, da sua legitimação. Os
discursos sobre o desenvolvimento local ou regional têm espaço se for compreendido o
homem e a sua própria cultura. Os grupos sociais constroem o conhecimento que a
escola veicula, dependendo das políticas educacionais desenvolvidas.

15
PRAKASH, Siddhartha. Uso do Saber Indígena nos Programas de Desenvolvimento.2000.Disponivel
em http://WWW. Worldbank. Org/afr/ik/pr/iknotes.htm> Acesso em 29 de Junho de 2012.
16
EASTON,P.; CAPACCI, C; KANE,L. O Saber Indígena Vai à Escola. 2000. Disponível em
http://WWW. Worldbank.org/afr/ik/pr/iknotes.htm> cesso em 29 de junho de 2012
11

Referências bibliográficas
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa, Edições 70, 2009.
DURKHEIM, Emile. Sociologia, Educação e Moral. Porto, Rés editora.1984.
EASTON,P.; CAPACCI, C; KANE,L. O Saber Indígena Vai à Escola. 2000.
Disponível em http://WWW. Worldbank.org/afr/ik/pr/iknotes.htm> acesso em 29
de junho de 2012
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez. 1997.
HOUNTODJI, P. Knowledge as a Development Issue, in Wiredu, K., (ed.) A
Companion to African Philosophy, Blackwell Publishing Ltd; Oxford, 2006.
INDE. Integração do Conhecimento Local no Currículo do Ensino Básico: Pesquisa
educacional sobre o Conhecimento Local/Indígena e Educação. Maputo, INDE,
2004.
MASOLO, Dimas A. “Filosofia e conhecimento Indígena: Uma Perspectiva Africana”.
In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org):
Epistemologias do sul. São Paulo, Cortez, 2010.
MAZULA, Brazão. Ética, Educação e Criação da Riqueza: Uma Reflexão
Epistemológica. Maputo, Texto Editora, 2008.
MONROE, Paul. História da Educação. 10. ed. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1979.
NGOENHA, S. E. e CASTIANO, P. J. Pensamento Engajado: Ensaio Sobre filosofia
africana, Educação e Cultura politica. Maputo, Editora Educar, 2011.
NGOENHA, Severino Elias. Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique: O
Paradigmático questionamento da Missão Suíça. Maputo, Livraria Universitária,
2000.
PRAKASH, Siddhartha. Uso do Saber Indígena nos Programas de
Desenvolvimento.2000.Disponivel em http://WWW. Worldbank.
Org/afr/ik/pr/iknotes.htm> Acesso em 29 de Junho de 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso Sobre as Ciências. 15. ed, Porto, Edições
Afrontamento, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia
das Emergências, Revista Crítica de Ciências Sociais, No.63, 2002.
12

TOSCANO, Moema. Introdução a Sociologia Educacional. Petrópolis, Vozes, 1999.

Você também pode gostar