Você está na página 1de 7

|17

PRIMEIRA PARTE

DOIS PROJETOS AMBICIOSOS


I. OS PRIMÓRDIOS
II. A NOVA LUSITÂNIA
III. A NOVA HOLANDA
18|
PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS |19

I
OS PRIMÓRDIOS

DO MEDO AO EMPREENDEDORISMO

O Estado de Pernambuco, como todo o Brasil colonial, surgiu


dentro daquele contexto que os historiadores cariocas Arno
e Maria José Wehling batizaram tão bem de “o desencravamento
planetário do século XVI” (Wehling, 1994, p.43). Foi um século de
efervescências nos mais diversos setores da vida. A expansão
das atividades mercantis trouxe consigo enormes desafios de
povoamento de áreas longínquas, porém prenhes de novas
atividades empreendedoras. E trouxe também uma gama de
conflitos: étnico-culturais, religiosos, econômico-financeiros e até
psicológicos. Sobre estes últimos, aliás, discorreu magnificamente
o historiador francês Jean Delumeau em História do Medo no Ocidente
(Delumeau, 1989). Uma Era de (muito) Medo, a Idade Moderna
estava repleta de medos individuais e coletivos, que conviviam
em pouca harmonia com o Renascimento Cultural e com a Reforma
Protestante.
O homem comum português do século XVI, por exemplo —
imensa maioria da população —, pouco ou nada soube desse tal
Renascimento, que mais deveria lembrar-lhe a Ressurreição de
Nosso Senhor Jesus Cristo, encenada periodicamente pela Igreja
desde os tempos de São Francisco de Assis. Jesus era o único
renascido/ressuscitado para a maioria dos europeus, composta de
homens e mulheres iletrados, pobres, mal alimentados e tementes
a tudo: antes a Deus Nosso Senhor e Senhor Nosso, mas também a
pestes, bruxas, vizinhos maledicentes, mau-olhados, cristãos-novos
judaizantes, monstros e serpentes marinhas, inimigos muçulmanos
e até intempéries climáticas. Tudo causava temor a essa gente
marcada pelo medo obsidional, medo que leva a atitudes extremas
de desespero e agressividade. Num mundo em transição, onde os
valores da Tradicional Cultura Medieval eram lentamente
substituídos e suplantados, a reação, típica da medievalidade, foi
de atribuir motivações transcendentais às dificuldades e aos eventos
trágicos, comuns no conturbado século XVI. Essa mentalidade de
medo e temores desembarcou em Pernambuco com cada um dos
colonos europeus que chegaram ao Estado.
20| PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS

Por outro lado, a Idade Moderna também foi a Era do


Empreendimento Colonial. Naquela época, foram fundadas as
primeiras grandes companhias de ações, cujos negócios eram
feitos em feiras livres.

Aos 130 anos, o Mercado de São Nos séculos XVI e XVII, surgiram algumas das mais extraordinárias
José mantém renovada sua organizações comerciais jamais vistas: “companhias licenciadas”
tradição comercial e reproduz mediante cartas reais (chartered ) com nomes que evocavam
ambiente semelhante àquele das praticamente todas as partes do mundo conhecido (Índias Orientais,
feiras livres medievais, onde foram Moscóvia, Baía de Hudson, África, Levante, Virgínia, Massachusetts)
vendidas as primeiras ações das e até mesmo lugares demasiadamente obscuros, que não tinham nome
companhias abertas. (“Companhia de Lugares Distantes”). Eram organizações
sofisticadas. (...) A Companhia da Baía de Hudson, fundada em 1670,
ainda existe até hoje, o que a torna a mais antiga multinacional
sobrevivente.
Micklethwait & Wooldridge, 2003, p. 45.

A colonização do Novo Mundo e a expansão comercial para


a África e, principalmente, para a Ásia, foi o primeiro grande
negócio internacional bancado por companhias capitalistas. Em
geral, pensamos que só governantes se envolviam nesses
empreendimentos. Ocorreu exatamente o contrário: enquanto ou
onde puderam, governos e governantes gastaram o menos
possível com o processo colonizador. Isso não significou, porém,
que não recebessem dividendos. Representando o poder instituído,
PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS |21

investindo muito ou pouco, os governos e até os próprios essas prósperas sociedades as que primeiro deram a conhecer e
divulgaram a forma da sociedade por ações. (...) A sociedade anônima
governantes enquanto “pessoas físicas”, como chamaríamos hoje,
regulava as condições de participação e o desenvolvimento do negócio,
eram parceiros nem sempre bem-vindos no objetivo de apoderar- através de um privilégio ad hoc, se bem que o Estado se fazia sentir
se do máximo possível das riquezas desses mundos distantes e como organismo inspetor (...). Foi só no século XVIII que se implantou
o princípio de formulação anual de inventário e balanço, sendo preciso
exóticos. Na Inglaterra e na Holanda, as companhias operavam
que se produzissem tremendas bancarrotas para que se sentisse a
com grande independência em relação aos governantes locais. sua necessidade.
Weber, 1980, p. 126 e 127.
Foi justamente uma dessas companhias holandesas que,
no século XVII, viria invadir e governar Pernambuco para garantir
Essas corporações, sem os limites das congêneres medievais
o retorno do capital investido através do seu ex-aliado Portugal,
ou antigas (Weber, 1980, p. 155 e 156), foram a base financiadora
que caíra sob domínio regencial do maior inimigo da Holanda
e empreendedora do sistema colonial. Mesmo em Portugal, onde
na época: a Espanha.
o empreendedorismo era muitas vezes tolhido pela tradição
Mas a grande ousadia das companhias foi outra. Já nas
patrimonialista local, a falta de recursos e a indisposição da
feiras medievais do século XIII, em muitas das cidades européias,
nobreza palaciana com assuntos do além-mar acabaram por
era possível comprar, em bancas de feirantes ao ar livre, entre
vincular a empresa colonizadora portuguesa aos holandeses. Foi
frutas e animais para o abate in loco, títulos ou ações de minas e
a eles que Duarte Coelho apelou, contraindo empréstimos com
de navios (Micklethwait & Wooldridge, 2003, p. 46), podendo ou
banqueiros dos Países Baixos para a instalação de engenhos de
não comprometer o patrimônio pessoal com contratos draconianos.
açúcar em Pernambuco (Alves, 1982, p. 111). “Com o lucro, pagou
Algumas dessas ações eram títulos livres, passíveis de venda por
as dívidas, fazendo novos investimentos” (Alves, 1982, p. 111).
seus portadores. Isso implicava o princípio da responsabilidade
A conexão entre o processo colonizador e a ascensão das
limitada. Nenhuma terra conquistada pelas companhias, nenhum
corporações capitalistas modernas é geralmente relegada a plano
galeão espanhol apreendido abarrotado de prata foi tão importante
secundário. O uso cruel da mão-de-obra escrava e as tradições
quanto a adoção da responsabilidade limitada do investidor.
político-institucionais de Portugal escondem outros vínculos: a
Graças a esse princípio — nascido esporadicamente nas
distante capitania portuguesa governada pelos Albuquerque —
transações medievais, mas que seria regra no mundo capitalista
Duarte, sua esposa e filhos — era objeto de planos e interesses
moderno —, o patrimônio pessoal dos que investissem em
de modernos investidores das praças de valores da Holanda.
empreendimentos de alto risco, como, por exemplo, as excursões
Mal a venda de ações saíra do relento, ao ar livre nas bancas de
marítimas às terras distantes, não estaria comprometido em caso
feirantes medievais, e passara para as casas de investimentos
de falência por qualquer causa que fosse. Por outro lado, sobre o
— futuras bolsas de valores! —, Pernambuco já surgia como um
valor investido, pagavam-se os dividendos das viagens bem-
importante investimento de valor. Por não querer ou não poder
sucedidas. “A colonização envolvia tantos riscos que a única forma
pagar, o Estado português permitiu que o empreendimento
de levantar grandes somas era proteger os investidores”
colonial fosse muito mais privado que público, dependendo até
(Micklethwait & Wooldridge, 2003, p.46). Eram empresas muitas
de financiadores externos, que eram, certamente, crentes em
vezes temporárias, que ainda desconheciam o balanço e o inventário.
heresias protestantes ou até judaizantes contumazes.
A própria distribuição dos ganhos poderia extinguir a empresa
colonizadora, antecessora das atuais sociedades anônimas, ou S/A. Apesar da participação da burguesia na produção de açúcar no Brasil
Max Weber pondera, mas reconhece o pioneirismo do colonial, a nobreza impedia que o aparelho estatal português investisse
empreendimento colonial para as sociedades de ações: mais maciçamente neste empreendimento. Daí a participação dos
banqueiros holandeses no refinamento e distribuição na Europa do
açúcar brasileiro. Com uma bem montada rede de comercialização,
(...) fase preliminar da moderna sociedade anônima é aquela constituída casas de crédito, bancos, enfim, um suporte econômico forte, os
pelas grandes sociedades coloniais, as mais importantes das quais holandeses participavam inclusive do financiamento para a instalação
foram (sic) a Companhia das Índias Orientais Inglesas. Todavia, não de engenhos.
são sociedades anônimas na acepção atual. (...) Sem dúvida, foram Alves, 1980, p. 122.
22| PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS

Assim, identifica-se a História de Pernambuco pelo ângulo com a do Rio de Janeiro e a de Cabo Frio). Erguida provavelmente
da produção cultural e da relação dos pernambucanos com o em 1516, ficava na desembocadura do Canal de Santa Cruz, que
espírito capitalista do empreendimento. Nesse sentido, a História contorna a Ilha de Itamaracá. O local era chamado pelos nativos de
pode ser vista de maneira inovadora e até, talvez, renovadora, Paranã-Puka, que em tupi significa, literalmente, mar (paranã) que
contra a idéia de um passado marcado por frustrações e estoura/quebra/arrebenta (puka), ou seja, “mar rebentado”, ou “mar
vergonhas. As frustrações ficam no campo político e estão ligadas estourado”, ou “mar quebrado”, ou, mesmo, no entendimento
aos sonhos libertários e revolucionários tantas vezes perseguidos manifesto por alguns historiadores, “buraco do mar”.
pelos pernambucanos. As vergonhas estão no passado escravista, Há referências históricas em Varnhagem dando conta de
feudal (segundo alguns outros) e coronelista. que, já em 1516, o rei de Portugal enviara técnicos e materiais
para implantação de um engenho de açúcar em Itamaracá. Dez
anos depois, há registros da entrada de açúcar produzido em
O DESENCRAVAMENTO DE PERNAMBUCO terras pernambucanas no porto de Lisboa.

N o século XVI, o trânsito de pessoas e produtos chegaria


aos quatro cantos do mundo. No caso do Brasil, há a tese,
hoje em dia bastante consubstanciada, de que o País foi
descoberto, na verdade, pelo navegador espanhol Vicente Yáñez
Pinzón, companheiro de Cristóvão Colombo na viagem de
descoberta da América em 1492, quando foi comandante da
Caravela Niña. Em viagem posterior, partido da cidade espanhola
de Palos de la Frontera, teria ele aportado, em janeiro de 1500
(três meses antes, portanto, de Pedro Álvares Cabral aportar na
Bahia), no Cabo de Santa Maria de la Consolación (posteriormente
rebatizado por Américo Vespúcio, em 1501, como Cabo de Santo
Agostinho). Ao fazer essa viagem e “descobrir” o Brasil em terras
de Pernambuco, Pinzón deve ter sido o primeiro espanhol a cruzar
a Linha do Equador e a “perder de vista a Estrela do Norte” (a
Estrela Polar). A descoberta não teria sido anunciada em razão
da vigência do Tratado de Tordesilhas, que dividia, naquela
época, entre Portugal e Espanha, o Novo Mundo.
A parte “descoberta” por Pinzón “pertencia” a Portugal.
Há indícios de que o povoamento de Pernambuco foi iniciado
a partir de 1503, com a exploração de pau-brasil, abundante e
de primeira qualidade nas terras pernambucanas. No início, a
exploração pode ter sido no sistema errante e temporário de
pequenas e frágeis feitorias, não representando ainda uma política Monumento no Cabo de Santo
de povoamento, seja governamental, seja privada. Agostinho lembra o pioneirismo
de Vicente Pinzón, que teria
A primeira grande feitoria construída em terras pernambucanas
“descoberto” o Brasil antes de
foi a de Cristóvão Jacques (uma das três primeiras do Brasil, junto Cabral.
PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS |23

Em 1534, D. João III, rei de Portugal, com base na experiência


bem-sucedida da Ilha da Madeira, dividiu o Brasil em capitanias
hereditárias para tentar iniciar uma colonização sistemática das
terras descobertas e evitar a crescente cobiça dos espanhóis e
franceses pelo chamado pau de tinta, ou pau-brasil, abundante
em todo o litoral.

A delimitação inicial de Pernambuco ia da margem direita


do Canal de Santa Cruz, ao norte, até o Rio São Francisco (da foz
à nascente, incluindo todas as ilhas), ao sul; e do litoral, a leste,
à linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, a oeste, formando
a maior capitania de todas as instituídas por D. João III.

O ambiente cultural desses primeiros anos da colonização


será variado e amplo como a natureza da Colônia. Assim como
o medo, o espírito empreendedor da época também desembarcou
nas terras pernambucanas. Ao contrário daquele, porém, o
empreendedorismo estava mais difuso.

Naquele período, muitos dos que vieram para o Brasil o


fizeram pensando em logo retornar a Portugal levando consigo
uma boa soma de recursos que pudessem amealhar na Colônia.
Um homem, porém, estava em posição-chave para fazer toda a
diferença: era Duarte Coelho Pereira.

Brasão de Duarte Coelho, o


“Soldado Afortunado”,
primeiro donatário da
Capitania de Pernambuco,
reproduzido na fachada do
Edifício Duarte Coelho, na
Avenida Conde da Boa Vista.

Você também pode gostar