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PRIMEIRA PARTE
I
OS PRIMÓRDIOS
DO MEDO AO EMPREENDEDORISMO
Aos 130 anos, o Mercado de São Nos séculos XVI e XVII, surgiram algumas das mais extraordinárias
José mantém renovada sua organizações comerciais jamais vistas: “companhias licenciadas”
tradição comercial e reproduz mediante cartas reais (chartered ) com nomes que evocavam
ambiente semelhante àquele das praticamente todas as partes do mundo conhecido (Índias Orientais,
feiras livres medievais, onde foram Moscóvia, Baía de Hudson, África, Levante, Virgínia, Massachusetts)
vendidas as primeiras ações das e até mesmo lugares demasiadamente obscuros, que não tinham nome
companhias abertas. (“Companhia de Lugares Distantes”). Eram organizações
sofisticadas. (...) A Companhia da Baía de Hudson, fundada em 1670,
ainda existe até hoje, o que a torna a mais antiga multinacional
sobrevivente.
Micklethwait & Wooldridge, 2003, p. 45.
investindo muito ou pouco, os governos e até os próprios essas prósperas sociedades as que primeiro deram a conhecer e
divulgaram a forma da sociedade por ações. (...) A sociedade anônima
governantes enquanto “pessoas físicas”, como chamaríamos hoje,
regulava as condições de participação e o desenvolvimento do negócio,
eram parceiros nem sempre bem-vindos no objetivo de apoderar- através de um privilégio ad hoc, se bem que o Estado se fazia sentir
se do máximo possível das riquezas desses mundos distantes e como organismo inspetor (...). Foi só no século XVIII que se implantou
o princípio de formulação anual de inventário e balanço, sendo preciso
exóticos. Na Inglaterra e na Holanda, as companhias operavam
que se produzissem tremendas bancarrotas para que se sentisse a
com grande independência em relação aos governantes locais. sua necessidade.
Weber, 1980, p. 126 e 127.
Foi justamente uma dessas companhias holandesas que,
no século XVII, viria invadir e governar Pernambuco para garantir
Essas corporações, sem os limites das congêneres medievais
o retorno do capital investido através do seu ex-aliado Portugal,
ou antigas (Weber, 1980, p. 155 e 156), foram a base financiadora
que caíra sob domínio regencial do maior inimigo da Holanda
e empreendedora do sistema colonial. Mesmo em Portugal, onde
na época: a Espanha.
o empreendedorismo era muitas vezes tolhido pela tradição
Mas a grande ousadia das companhias foi outra. Já nas
patrimonialista local, a falta de recursos e a indisposição da
feiras medievais do século XIII, em muitas das cidades européias,
nobreza palaciana com assuntos do além-mar acabaram por
era possível comprar, em bancas de feirantes ao ar livre, entre
vincular a empresa colonizadora portuguesa aos holandeses. Foi
frutas e animais para o abate in loco, títulos ou ações de minas e
a eles que Duarte Coelho apelou, contraindo empréstimos com
de navios (Micklethwait & Wooldridge, 2003, p. 46), podendo ou
banqueiros dos Países Baixos para a instalação de engenhos de
não comprometer o patrimônio pessoal com contratos draconianos.
açúcar em Pernambuco (Alves, 1982, p. 111). “Com o lucro, pagou
Algumas dessas ações eram títulos livres, passíveis de venda por
as dívidas, fazendo novos investimentos” (Alves, 1982, p. 111).
seus portadores. Isso implicava o princípio da responsabilidade
A conexão entre o processo colonizador e a ascensão das
limitada. Nenhuma terra conquistada pelas companhias, nenhum
corporações capitalistas modernas é geralmente relegada a plano
galeão espanhol apreendido abarrotado de prata foi tão importante
secundário. O uso cruel da mão-de-obra escrava e as tradições
quanto a adoção da responsabilidade limitada do investidor.
político-institucionais de Portugal escondem outros vínculos: a
Graças a esse princípio — nascido esporadicamente nas
distante capitania portuguesa governada pelos Albuquerque —
transações medievais, mas que seria regra no mundo capitalista
Duarte, sua esposa e filhos — era objeto de planos e interesses
moderno —, o patrimônio pessoal dos que investissem em
de modernos investidores das praças de valores da Holanda.
empreendimentos de alto risco, como, por exemplo, as excursões
Mal a venda de ações saíra do relento, ao ar livre nas bancas de
marítimas às terras distantes, não estaria comprometido em caso
feirantes medievais, e passara para as casas de investimentos
de falência por qualquer causa que fosse. Por outro lado, sobre o
— futuras bolsas de valores! —, Pernambuco já surgia como um
valor investido, pagavam-se os dividendos das viagens bem-
importante investimento de valor. Por não querer ou não poder
sucedidas. “A colonização envolvia tantos riscos que a única forma
pagar, o Estado português permitiu que o empreendimento
de levantar grandes somas era proteger os investidores”
colonial fosse muito mais privado que público, dependendo até
(Micklethwait & Wooldridge, 2003, p.46). Eram empresas muitas
de financiadores externos, que eram, certamente, crentes em
vezes temporárias, que ainda desconheciam o balanço e o inventário.
heresias protestantes ou até judaizantes contumazes.
A própria distribuição dos ganhos poderia extinguir a empresa
colonizadora, antecessora das atuais sociedades anônimas, ou S/A. Apesar da participação da burguesia na produção de açúcar no Brasil
Max Weber pondera, mas reconhece o pioneirismo do colonial, a nobreza impedia que o aparelho estatal português investisse
empreendimento colonial para as sociedades de ações: mais maciçamente neste empreendimento. Daí a participação dos
banqueiros holandeses no refinamento e distribuição na Europa do
açúcar brasileiro. Com uma bem montada rede de comercialização,
(...) fase preliminar da moderna sociedade anônima é aquela constituída casas de crédito, bancos, enfim, um suporte econômico forte, os
pelas grandes sociedades coloniais, as mais importantes das quais holandeses participavam inclusive do financiamento para a instalação
foram (sic) a Companhia das Índias Orientais Inglesas. Todavia, não de engenhos.
são sociedades anônimas na acepção atual. (...) Sem dúvida, foram Alves, 1980, p. 122.
22| PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | OS PRIMÓRDIOS
Assim, identifica-se a História de Pernambuco pelo ângulo com a do Rio de Janeiro e a de Cabo Frio). Erguida provavelmente
da produção cultural e da relação dos pernambucanos com o em 1516, ficava na desembocadura do Canal de Santa Cruz, que
espírito capitalista do empreendimento. Nesse sentido, a História contorna a Ilha de Itamaracá. O local era chamado pelos nativos de
pode ser vista de maneira inovadora e até, talvez, renovadora, Paranã-Puka, que em tupi significa, literalmente, mar (paranã) que
contra a idéia de um passado marcado por frustrações e estoura/quebra/arrebenta (puka), ou seja, “mar rebentado”, ou “mar
vergonhas. As frustrações ficam no campo político e estão ligadas estourado”, ou “mar quebrado”, ou, mesmo, no entendimento
aos sonhos libertários e revolucionários tantas vezes perseguidos manifesto por alguns historiadores, “buraco do mar”.
pelos pernambucanos. As vergonhas estão no passado escravista, Há referências históricas em Varnhagem dando conta de
feudal (segundo alguns outros) e coronelista. que, já em 1516, o rei de Portugal enviara técnicos e materiais
para implantação de um engenho de açúcar em Itamaracá. Dez
anos depois, há registros da entrada de açúcar produzido em
O DESENCRAVAMENTO DE PERNAMBUCO terras pernambucanas no porto de Lisboa.