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o que é Soctologia 11

de um único filósofo ou cientista, mas representa


o resultado da elaboração de um conjunto de
pensadores que se empenharam em compreender
as novas situações de existência que estavam em
curso.
O século XVUJ constitui um marco importante
para a história do pensamento ocidental e para o
surgimento da sociologia. As transformações
econômicas, políticas e culturals que se aceleram
CAPÍTULO PRIMEIRO: a partir dessa época colocarão problemas inéditos
O SURGIMENTO para os homens que experimentavam as mudanças
que ocorriam no ocidente europeu. A dupla
revolução que este século testemunha - a indus-
trial e a francesa - constitu ia os dois lados de um
Podemos entender a sociologia como uma das mesmo processo, qual seja, a instalação definitiva
manifestações do pensamento moderno. A evolu- da sociedade capitalista. A .., palavra sociologia
ção do pensamento científico, que vinha se cons- apareceria somente um século depois, por' volta
tituindo desde Copérnico,passa a cobrir, com a de.183Q, mas são os acontecimentos desencadeados
sociologia, uma nova área do conhecimento ainda pela dupla revoluçãoque.a precipitam e a tornam
não incorporada ao saber científico, ou seja, o possível.
mundo social. Surge posteriormente à constituição Não constitui objetivo desta parte do trabalho
das ciências naturais e de diversas ciências sociais. proceder a uma análise destas duas revoluções,
A sua formação constitui um acontecimento mas apenas estabelecer algumas relações que elas
complexo para o qual concorrem uma constelação possuem com a formação da socicloqia. A revo-
de circunstâncias, históricas e intelectuais, e lução industrial significou algomaisdoquea intro-
determinadas intenções práticas. O seu surgimento dução da máquina avapor e dos sucesslvos-aperíel-
ocorre num contexto histórico específico, que çoamentos dos métodos produtivos. Ela represen-
coincide com os derradeiros momentos da desa- tou o triunfo da indústria capitalista,capitaneada
gregação da sociedade feudal e da consolidação pelo empresário capitalista que foi pouco a pouco
:!;J4:>r:JO capitalista. A sua criaçâo não é obra ccncentrandoas máculnas.res terras e as ferramen~

Biblioteca "Prof.1osé 8tqrq)6U"


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12 Cartas B. Marfins o que é Sociologia. 13

tas sob o seu controle, convertendo. grandes massas dade, assim como engaJou mulheres e crianças em
humanas. em simples trabalhadores despossu ídos. jornadas de trabalho de pelo menos doze horas,
Cada avanço com relação à consol idação da sem férias e feriados, ganhando um. salário de
sociedade capitalista representava a desintegração, subslstêncla, Em alguns setores da indústria ingle-
o solapamento de costumes e instituições até sa, mais da metade dos trabalhadores era cons-
então existentes e aintrodução de novas formas de titu ída por mulheres e crianças, que ganhavam
organizar a vida social. A util ização da máquina salários inferiores dos homens.
na produção não apenas destru iu o artesão inde- A desaperição : dos .pequenos proprietários
pendente, que possuía um pequeno pedaço de rurais, dos artesãos independentes, a imposição
terra, cultivado nos seus . momentos livres. Este de prolongadas horas de trabalho etc, tiveram
foi também submetido a' uma severa disciplina, um vefelto traumático sobre milhões de seres
a novas formas' de conduta ,e de relações de tra- humanos ao modificar radicalmente suas formas
. balho, completamente diferentes das vividas habituais de vida. Estas transformações, que
anteriormente por ele. possu Iam um sabor de catacHsma, faziam-se
Num período de oitenta anos, 'ou seja, entre mais visíveis nas cidades industriais, local .para
1780 e 1860, a Inglaterra havia.rnudado de forma onde convergiam todas estas modificações e
marcante a suafisionomia. País com pequenas explodiam suas conseqüências. Estas cidades
cidades, com uma população rural dispersa, passou passavam por um vertiginoso crescimento demo-
a comportar enormes cidades, nas quais se con- gráfico, sem possuir, no entanto, uma estrutura
centravam suas nascentes indústrias, que espalha- de moradias, de serviços sanitários, de saúde,
. vam produtos para o mundo inteiro. Tais modifi- capaz de acolher a população que se deslocava
cações não poderiam deixar de produzir novas do campo. Manchester, que constitui um ponto
real idades para os homens dessa época. A formação de referência indicativo desses tempos, por volta
de uma sociedade que se industrializava e urba- do início do século XIX era habitada por setenta
nizava em ritmo crescente implicava a reordenacão mil habitantes; cinqüenta anos depois, possu ía
da sociedade rural, a destruição da servidão, o trezentas mil pessoas. As conseqüências da rápida
desmantelamento da fam (lia patricialetc. A trans- industrialização e urbanização levadas a cabo pelo
formação da atividade artesanal em manufatu- sistema capitalista foram tão visíveis quanto trá-
reira e,· por último, em atividade fabril, desenca- gicas: aumento assustador da· prostituição, do
deou ..uma maciça emigração do campo para a cí- suicídio, do alcoolismo, do ·infanticídió;da crlrnl-
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. 14 CarlosB. Martins .~
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o.que é' Soeiologià
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nalidade, da . violência, de surtos de epidemia de I: . cava a sociedade-num plano de análise, ou seja,


tifo e.cólera .quedlzimararn.parte da população etc. esta passavaa se constituir em "problema",' .em
i: evidente que a -,situação' de vmlséria também "objeto" que deveríaserinvestigado; Os-pensado-
atingia o campo, principalmente. os trabalhadores res. ingl'f:~sesque testemunhavam' estastransforma-
.assalariados, mas o seu epicentro ficava, sem dúvi- ções .e com elas se preocupam não eram, no··en- ';
da, nas cidades industriais. . tanto, homens de ciência ou sociólogos que viviam
Um dos fatos de msior importância relacionados desta profissão.' Eram antes de. tudo 'homens
com a revoluçâc.lndustrial.é sem dúvida o apareci- voltados 'para a' ação, que desejavam introduzir
mento do proletariado e o papel histórico que ele determ inadas modificações. na sociedade. Parti-
desempenharia na sociedade capitalista. Os efeitos cipavam ativamente dos debates ideológicos em
catastróficos que esta .revolução acarretava para a que se envolviam as correntes liberais, conserva-
classe trabalhadora levaram-na a negar suas. con- doras ·esocialistas. Eles não desejavam produzir
dições. de vida. As manifestações de revolta dos um mero conhecimento sobre as novas condições
trabalhadores. atravessaram diversas fases, como" a de vida geradas pela revolução industrial, mas
destru i_ção das máqu inas, .atos de sabotagem e procuravam. extrair dele orientações para a ação,
explosão de algumas. oficinas, roubos e crimes, tanto para manter i como. para, reformar ou modi-
evoluindo. para a criação de associações livres, ficar radicalmente a sociedade de seu tempo ..
.formação de sindicatos etc. A conseqüência desta Tal fato significa que.os precursores da socloloqla
crescente organização foi a de que os "pobres" foram recrutados entre militantes pol íticos,entre
deixaram de se confrontar com· os ."ricos" ; mas indivíduos que participavam e se -envolvlarn pro-'
uma. classe específica, a classe operária, com cons- fundamente com os problemas de suas sociedades.
ciência de seus interesses, começava à orqanizar-se Pensadores como Owen-] 1771 ~1858) ,William
para enfrentar os proprietários dos instrumentos Thompson (1775-1833), Jeremy Bentham (1.748-
de .,trabalho. Nesta trajetória, iam produzindo 1832)., só para citar alguns daquele momento histó-
seus jornais, sua própria literatura, procedendo a rico, podiam discordar entre si ao julgarem as
uma crítica da sociedade cepltalistae inclinando-se novas condições de vida p,rovocadas pela revolução
para o -socialismo como alternativa de mudança. . industrial eas modificações que deveriam serreall-
Qual a importância desses. acontecimentos para . zadas na nascente sociedade industrial, mas-todos
a..sociologia? O que merece ser salientado é que a eles concordavam que ela produzira fenômenos
profundidade das .transformações em curso colo- inteiramente novos que mereciam ser' analisados.
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.Oulos B.Martins o queê Sociologia


.,
poderiam deixar de. provocar modificações na
o que eles refletiram e escreveram foi de funda- forma de conhecer a natureza e a cultura.
mental importância pa~a'formação econstitu ição A partir daquele· momento,. o p~n:aroento
de um saber sobre a sociedade. paulatinamente vai renunciando a um? V!S80 sobre- ~.

A SOCi?logia constitui em certa . medida uma -, natural para explicar os fatos .esuJ>stltulndo~ap~r
resposta . Int!l~tual.· às novas situações colocadas 'uma indagação racional. Aapllcaçao d,a obse~aça?
pela revolução Industrial. Boa parte de seus temas e da experimentação, ou seja, do metodo.clentl-
d! análise e de reflexão foi retirada das novas situa- fico para a explicação da natureza, conhecia uma
çoes, como, por exemplcç a situação da classe fase de grandes progressos. Num ,es~aço de cento.
trabalhadora, o surgimento da cidade industrial t,
e cinqüenta anos, ou seja, de Copernlcoa Newton,
as transformaçõe~ tecnológicas, a organização d~ L "a ciência passou por um notável progresso, mudan-
• trabalho na _fábrica etc. e a formação de uma . do até mesmo a localização do planeta Terra
estr~t~ra: social. muito específica - a sociedade
·nOCosmo. .
capl~hsta ,- que impulsiona uma reflexão sobre O emprego sistemático da observaça~ e da exp:-
a sociedade; ~obre suas transformações, suas crises, rimentação como fonte para a exploraç~o dos feno-o
seusanta~onlsmos de classe. Não éporrneroacaso menos da natureza estava possibilita~do uma
~ue ~ socloíoçla, en~uanto instrumento -de análise, grande acumulação de fatos. O estabe~eclmento de
tn~xlstl?~aS relativamente estáveis sociedades ) . relações entre. estes fatos ia p~ssibilitando. aos
pré-capitalistas, uma vez que o ritmo e o nível das . homens dessa época um conhecimento da natu-
mudanças qu~ a ( se verificavam não chegavam' a reza que lhes abria possibilidade dea controlar
~oloc~r a SOCiedade como "um problema" a ser
e dominar.· '; .
investigado.' . .' -. . O pensamento.filosófico do século XVI' contn-
. O ~urgimento da sociologia, como se pode per- bulu para popularizar os avanços 90 pensamento
ceber, prende-se em 'parte aos abalos provocados científico. Para Francis Bacon (1561-1626), por
pela r~v~lu~ão industrial, pelas novas condições exemplo, a teologia deixaria de ~r a forma nortea-
d~ eXls~en~la _por ela criadas. .Mas ·uma outra dora do pensamento. A autondade, que exa~-
clrcunstãncia ~concorreria também para a sua for- mente const!tu (a um dos. alicerces da teol?9.laJ
mação. Trata-se. das modificações' que vinham deveria, em sua opinião, ceder lugar a uma .duvlda
oc::orrendo nas formas de pensamento. As trans- metodica,a fim de possibilitar, um conhecimento
~~rma~ões econômicas, que se achavam em curso . objetjvo da realidade. Para' ele, o novo método
no 'ocidente europeu desde o século XVI, . não
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o que
18 Carlos B. Marfins é.Soctologia 19
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de conheclrnento.. baseado na observação e' na indicando uma produtividade antes desconhecida,


experimentação, ampliaria infinitamente' o poder o pensamento social deste período também realiza-
do homem e deveria ser estendido e aplicado ao va seus vôos rumo a novas descobertas. A pressupo-
estudo da sociedade. Partindo destas idéias, chegou sição de queo processo histórico possui uma lógica
a propor um programa para acumular os dados dis- passível de ser apreendida constituiu um aconteci-
11
I,
poníveis e com eles realizar ·experimentos afim de mento que abria novas pistas pàra a investigação
, descobrir e formular leis geraissobre a sociedade. racional da sociedade. Este enfoque, por exemplo,
O emprego sistemático da razão, do livre exame estava na obra de Vlco (1668-1744), para o qual
da realidade ~ traço que caracterizava os pensa- é o homem quem produz a história. Apoiando-se
dores do século XVII, os chamados racionalistas-, . nesse ponto de vista, afirmava que a sociedade
representou um grande avanço para Iibertar o podia, ser compreendida porque, ao contrário da
conhecimento do controle teológico, da tradição, natureza, ela constitui obra dos próprios, indiví-
da "revelação" e, conseqüentemente, para a for- duos. Essa postura diante da sociedade, queen-
mu/açãode uma nova atitude intelectual -diante contra em Vicoum de seus expoentes, 'influenciou
dos fenômenos da natureza edacultura, os historiadores escoceses' da época, como David
Diqa-se de passaqern queo progressivo abandono Hume{1711-1776) e, Adam Ferguson :(1723-
da autoridade, do doqrnatismo e de unia concepção 1816), - .e . "seria '. posteriormente desenvolvida e
. providencia lista, enquanto atitudes intelectuais
c amadurecida por Hegel e Marx.
para analisar a realidade, não constitufaumecon- Data também dessa épocaa disposição de tratar
tecimentocircunscrito apenas ao campo científico a sociedade a partir do estudo de seus grupos e
ou filosófico. A literatura do século XVII, 'por hão dos indivíduos isolados. Essa orientação esta- '
exemplo, .constitufa Uma outra áreaque ia se afas- va,porexemplo, nos trabalhos de Ferguson, que
tarido do pensamento oficial, na medida 'em que acrescentava que para' o estudo da sociedade era
se' rebelava contra a criação literária legitimada pelo necessârio evitar
\. •.
conjecturas e especulações. A obra
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poder. ,A obra de vários literatos dessa época, deste historiador escocês' revela, a influência de
investia contra as instituições oficiais, procurando algumas idéias de Bacon, como 'a de que é a
desmascarar os fundamentos do poder pol ítico, indução, e não a dedução, que nos revela a natu-
contribuindo assim para a renovação dos costumes reza do mundo, e a importância da observação
e hábitos mentais dos homens da época. enquanto instrumento para a obtenção do conheci-
Se no século XVIII osdadosestatfsticos voavam, mento.

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20 Carlos B. Martins o que é Sociologia 21

No entanto, é entre os pensadores franceses do Descartes, com seu método de investigação baseado
século XVIII que encontramos um grupo de filó- na dedução.
sofos que procu rava transformar não apenas as Influenciado por esse estado de espírito,Con-
velhas formas de conhecimento, baseadas na tra- I dorcet (1742-1794), por exemplo, desejava aplicar
diçãoe na autoridade, mas a própria sociedade. os métodos matemáticos ao estudo dos fenômenos
Osiluministas, enquanto ideólogos da burguesia, sociais, estabelecendo uma área própria de inves-
que nesta época posicionava-sede forma revolu- tigação a que denominava "matemática social".
cionária, atacaram com veemência os fundamentos 'Admitia ele que, util izando os mesmos procedi-
da sociedade feudal, os privilégios de sua classe mentos das ciências naturais para o estudo da
dominante e as restrições que esta impunha aos . sociedade, este poderia atingir a mesma precisão
.'1
interesses econômicos e políticos da burguesia . de vocabulário e exatidão de resultados obtidas
. .~ . a intensidade do confl ito entre as classes por aquel es.
dominantes da sociedade feudal e a burguesia Combinando o' uso da razão e da observação,
. revolucionária que leva os filósofos, seus represen- os iluministas analisaram quase todos os aspectos
tantes intelectuais, a atacarem de forma impiedosa da sociedade. Os trabalhos de Montesqu ieu (1689-
a sociedade feudal. e a sua estrutura de conheci- 1755), por exemplo, estabelecem uma série de
mento, e a negarem abertamente a sociedade observações sobre a população, o comércio, a reli-
existente. gião, a moral, a família etc. O objetivo dos ilu-
Para proceder a uma indaçãocrítica da socie- ministas, ao estudar as instituições de sua época,
dade da época, os iluministas partiram dos seus era demonstrar que elas eram irracionais e injustas,
antecessores do século XVII, como Descartes, que atentavam contra a natureza dos indivíduos e,
Bacon, Hobbes e outros, reelaborando, porém, nesse sentido, impediam a liberdade do homem.
algumas de suas idéias e procedimentos. Ao invés Concebiam o indivíduo como dotado de razão,
de utilizar a dedução, como a maioria dos pensa- possuindo uma perfeição inata e destinado à liber-
dores do século XVII, os iluministas insistiam dade e à igualdade social. Ora, se as instituições
-nurnaexplicação da realidade baseada no modelo existentes constitu íam um obstáculo à liberdade
das ciências da natureza. Nesse sentido, eram do indivíduoeàsua plena realização, elas, segun-
influenciados mais por Newton,.com seu modelo dó-eles, deveriam ser ·eliminadas. Dessa forma rei-
de conhecimento baseado na observação, na .expe- vindicavam a' liberação do' indivíduo de todos -es
rimentação ena 'acumulação de dados, do que por laços sociais tradlcionals, tal como as corporaçõês,
.,

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Carlos B. Marfins o que é Sociologia.

a autoridade feudal etc. das e transformadas.


Procedendo desta forma, os iluministas confe- A intensidade da crítica' às instituições feudais
riam uma clara dimensão crítica e negadora ao levada a cabo pelos iluministas constitu Ialndisfar-
conhecimento; pois este assumia a tarefa não só de çável indício da virulência da luta que a burguesia
'conhecer o mundo natural ou social tal como se travava no plano pol ítico contra as' classes que
apresentavam, mas. também de criticá-Io e rejeitá- sustentavam a dominação feudal. Na França, o
lo, O conhecimento da realidade e a disposição de confl ito entre 'as novas forças sociais ascendentes
transformá-Ia' eram, portanto, uma só coisa. A chocava-se com uma típica monarquia absolutista,
filosofia, de acordo com esta concepção, não cons- que assegurava consideráveis privilégios a aproxi-
titu (a um mero conjunto de noções abstratas dis- madamente quinhentas mH pessoas, isso num país
tante e à margem da realidade, mas, ao contrário, que possuía ao final do século XVIII uma popu-
um valioso instrumento prático que criticava a lação de vinte e três milhões de indivíduos. Esta
sociedade presente, vislumbrando outras possibili- camada privilegiada não apenas gozava de isenção
dades de existência social além das ex istentes. de impostos e possu (a direitos para receber tribu-
O visível progresso das formas de pensar, fruto tos feudais, mas impedia ao mesmo tempo acons-
das novas maneiras de produzir e viver, contribuía tituição de livre-empresa,a exploração eficiente .
para afastar interpretações baseadas emsupersti- da terra e demonstrava-se incapaz de criar 'uma
ções e crenças infundadas, assim como abria um administração padronizada através de uma pol (-
espaço para a constituição de um saber sobre os tica tributária racional e imparcial,
fenômenos, histórico-sociais. Esta crescente racio- A burguesia, ao tomar o poder em 1}89,invest~
nalízaçâo da vida social, que gerava um clima pro- decididamente contra os fundamentos da socie-
pício à constituição de um estudo científico da dade feudal, procurando construir um Estado que
sociedade, não era, porém, um privilégio de filó- assegurasse sua autonomia em face da Igreja e que
sofos e homens que se dedicavam ao conheci- protegesse e incentivasse ..a' empresa capitalista.
mento. O "hom-em comum" dessa época também Para a destruição do "ancien régime", foramrnobi-.
deixava, cada vez mais, de encarar as instituições lizadas as massas, especialmente os trabalhadores
sociais, as normas, como fenômenos sagrados e pobres das cidades. Alguns meses mais tarde, elas
imutáveis, submetidos a forças sobrenaturais, foram "presenteadas", pela nova classe dominante,
passando a percebê-Ias como produtos da ativi- com a interdição dos seus sindicatos.
dade humana, portanto passíveis de serem conheci- , Ã investida da -burguesia .rumo ao poder, suee-

.- I
V J
24 Cor/os B~Martins o que é Sociologia 25

deu-se uma liquidação sistemática do velho regime.


A revolução ainda não completara .um ano de
existência, mas fora suficientemente intempestiva .- . ~-"'":-.:- . ,"'-

para liquidar a velha estrutura feudal eo Estado


monárquico.
O objetivo da revolução de 1789 não era apenas
mudar a estrutura do Estado, mas abolir radlcal-
mente a antiga forma de sociedade, com suas
instituições tradicionais, seus costumes e hábitos
arraigados, e ao mesmo tempo promover profundas
inovações na economia, na política, na vida cul-
tural etc. r= dentro desse contexto que se situam
a abolição. dos grêmios e das, corporações e a
promulgação de uma legislação que limitava os
poderes patriarcais na fam Itla, coibindo os abusos
da autoridade do pai: forçando-o a uma divisão
igual itária da propriedade. A revolução desferiu
também seus golpes contra a Igreja, confiscando
suas propriedades, suprimindo os votos monás-
ticos e transferindo para o Estado as funções da
educação, tradicionalmente controladas pela Igreja.
Investiu contra e destruiu os antigos privilégios
de classe, amparou e incentivou o empresário.
I'
O impacto da revolução foi tão profundo que, I

passados 'quase setenta anos do seu triunfo, Alexis ,..


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de Tocqueville, um importante pensador francês,


referia-se a ela da seguinte maneira:
1/A Revolução segue seu curso: à medida que vai
aparecendo. a cabeça do monstro, descobre-seque,
após ter destru (do as instituições polfticas, ela  Revolução Francesa: uma nova realidade.
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.! .

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26 . CarlosB. Marttns o que é Sociologia

suprime asjnstltufçõescivls e muda, em seguida, como "anarquia", "perturbação", "crise", "de- I


I
as leis; os 'usos, os costumes e até a Iíngua; após sordem", para julgara nova realidade provocada \ :
ter errutnado a estrutura do governo, mexe nos pela revolução. Nutriam ernqeral esses pensadores I:
fundamentos da sociedade e parece querer agredir um certo rancor pela revolução, principalmente II
!
até Deus; quando esta' mesma Revolução expande- por aquilo que eles designavam como "os seus
se rapidamente pôr toda a parte comprocedimen- falsos dogmas"., como o seu ideal de igualdade,
tos desconhecidos, novas táticas, máxirnas mortí- de liberdade, e a importância conferida ao indivf- I,'
li
;
feras; poder 'espantosoque derruba as barreiras dos duo em face das instituições existentes.
impérios, quebra coroasiesmaga povos e - coisa A tarefa que esses pensadores se propõem é a de
estranha - chega ao mesmo tempo a', ganhá~los racionalizara nova ordem, encontrando soluções
para a sua causa; à medida que-todas estas coisas para o estadodevdesorqanjzação" então existente.
explodem, o ponto de vista muda. o que à primeira Mas para restabelecera "ordem e a paz", pois é a
. vista parecia" aos-prfnolpesda Europa e aos estadis- esta missão que esses pensadores se entregam,
tas urnacldenteéornum na vida dos.povos, tornou- para encontrar 'um estado de equil íbrio ria nova
se um fato novo.. tão contrário a tudo.que aconte- sociedade, seria necessário, segundo eles, conhecer
ceu antes no mundo e no. entanto tão geral,. tão as leis que regem os fatos sociais, instituindo
monstruoso, tão incompreensível que, ao aperce- portanto uma ciência da sociedade.
bê-Io, o espírito fica como que perdido". A verdade é que a burguesia, uma vez instalada
o espanto de Tocqueville diante da nova reali- no poder, se assusta com a própria revolução.
dade inaugurada pela revolução francesa seria com- Uma das facções revolucionárias, por exemplo,
partilhado também por outros intelectuais do seu os [acobinos, estava dispostaa aprofundá-Ia, radi-
tempo -. Durkheim, por exemplo, um dos funda- calizando-a e levando-a até o fim, situando-a além
dores da sociologia,. afirmou certa vez que a partir do projeto e dos interesses da burguesia.' Para
do momento .em que fia tempestade revoluclonéria contornar a propagação de novos surtos revolu-
passou, constitu iu-se' como .' que por encanto a cionários, enquanto estratégia para modificação das,
'noçãode ciência social". O .tato éque pensadores sociedades, seria necessário, de acordo com 'os .
. franceses da época, como .Saint~Simorl, Cornte. interesses da burguesia; controlare neutralizar
L~ Play e alguns outros, concentrarão suas' refle- novos levantes .revolucíonãrlos. Nesse sentido, era
xões sobre a natureza eas conseqüências da revo- de fundamental lrnportância proceder a rnodifi- ~
..
lução. Em seus trabalhos, .utillzarão expressões cações substanciais em.' sua" teoria da sociedade. I'·'

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28 Cor/os B. Martins o que é Sociologia 29

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A interpretação crítica enegadora da realidade, revolução industrial. Eram VISlveIS, a essa época,
que constituiu um dos-traços rnarcantes do pensa- a utilização intensiva do trabalho barato dernulhe-
mentoIlurninista e alimentou o projeto revolucio- res e crianças, uma desordenada migração docam-
nário da burguesia, deveria de agora em diante po para a cidade, gerando problemas de habitação,
ser "superada" por uma outra que conduzisse não de higiene, aumento do alcoolismo e da prosti-
mais à revolução, mas à "organização", ao "aper- tuição, alta taxa de mortalidade infantil etc.
feiçoamento" da sociedade. Saint-Simon, de uma A partir da terceira década do século XIX,
maneira muito explfcitavaflrrrtarla a este respeito intensificam-se na sociedade francesa as crises
que "a filosofia do último século foi revolucio- econôrn icas e as lutas de classes. A contestação
nária; a do século XX deve ser reorganizadora". da ordem capitalista, levada a cabo pela classe
I
A tarefa que os fundadores da sociologia assumem trabalhadora, passa a ser reprimida com violência ,
.. . .

é, portanto, a de estabil izaçãoda nova ordem. como em '1848, quando a burguesia utiliza os
Cornte também é muito claro quanto a essa ques- aparatos do Estado,· por ela dominado, para sufo-
tão. Para ele, a nova teoria da sociedade, que ele car as pressões populares. Cada vez mais ficava
denom inava de 11 positiva", deveria ensi nar os claro para a burguesia. e seus representantes inte-
homens a aceitar a ordem existente, deixando de lectuais que a filosofia iluminista, que passava a
lado a sua negação. ser designada por eles como "metafísica", "ativi-
A França, no início do século XIX, ia se tor- , dade crítica inconseqüente", não seria capaz
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nando visivelmente uma sociedade industrial, com de interromper aquilo que denominavam estado
uma introdução progressiva da maquinaria, prin- de desorgan ização", de "anarqu ia pol ítica" e
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cipalmente no setor têxtil. Mas o desenvolvi- criar uma ordem social estável.
mento acarretado por essa industrialização causava Determ inados pensadores da época estavam
aos operários franceses miséria e desemprego. imbuídos da crença de que para introduzir uma
Essa situação logo encontraria resposta por parte l/higiene" na sociedade, para "reorganizá-Ia",
da classe trabalhadora. Em 1816-1817 e em 1825- seria necessário fundar uma nova ciência.
1827, os operários destróem as máqu inas em mani- . Durkheim, ao discutir a formação da sociologia
festações' de revolta. Com a industrial ização da na França do século XIX, refere-se a Saint-Simon
sociedade francesa, conduzida pelo
,

capitalista, repetem-se
. .
determinadas
empresário
situações
da seguinte forma:
"0 desmoronamento do antigo sistema social,ao
sociais vividas pela Inglaterra no in ício de sua instigar a reflexão à busca de um remédio para os
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• )30 Carlos B. Marfins o que é Sociologia 31

males de que a sociedade padecia, incitava-o por fam ílias· de trabalhadores, insistia que estas, sob
isso mesmo a aplicar-se às coisas coletivas.' Partindo' a industrialização, haviam se tornado descontínuas,
da idéia de quea perturbação que atingia as socie- inseguras e instáveis. Diante de tais fatos,' propunha
dades européias resultava do seu estado de desor- como solução .,para a restauração de seu' papel
ganização intelectual, ele entregou-se à tarefa de de "unidade social básica"a reafirmação daautori-
pôr termo a isto. Para refazer uma consciência dade do "chefe de famílla", evitando a igualdade
nas sociedades, são estas que' importa, antes de jurídica, de' . homens e mulheres, -deümitando'.o
tudo, conhecer. Ora.vesta. ciência das sociedades, papel da mulher às, funções exclusivas de mãe,
a mais importante de todas, não existia; era neces- esposa e filha.
sário, portanto, num interesse prático, fundá-Ia Procedendo dessa forma,' ou seja, tentandoins-
sem demora"; taurar um estado de equilfbrio numa sociedade
Como se percebe pela afirmação de Durkheim, cindida pelos conflitos de classe, esta sociologia "

,
esta ciência surge com interesses práticos e não inicial revestiu-se de umindisfarçável conteúdo
"como que por encanto", como certa vez afirmara. estabilizador, ligando-se aos movimentos de refor- ." ~
Enquanto resposta intelectual' à "crisesocial" de ma conservadora da sociedade.
. Na concepção de um de seus fundadores, Comte,
~_:

seu tempo, os primeiros sociólogos irão revalorizar ',',

determinadas instituições que segundo eles desem- a sociologia deveria orientar-se no sentido de co-
penham papéis fundamentais na 'integração e na nhecer eestabetecer aquilo que ele denominava
coesão da vida social. A jovem ciência assumia . leis imutáveis da vida, social, abstendo-se 'de qual-
como tarefa intelectual repensar o problema da quer consideração" crítica, eliminando também
ordem social, enfatizando a importância deInsti- qualquer discussão sobre a realidade existente,
tuições como a autoridade, a família, a hierarquia deixando· de abordar; por exemplo, a questão da
social, destacando a sua importância teórica para o igualdade, da justiça, da liberdade. Vejamos como
estudo da sociedade. Assim, por exemplo, .LePlav ele a define e quals objetivos deveriaela perseguir,
(1806-1882) afirmaria que é a família e não o na sua concepção :
indivíduo isolado que' possu ía significação para "Entendo por ffsica social a ciência que tem 'por
uma compreensão da sociedade, pois era uma uni- objeto próprio o estudo dós fenômenos sociais,
dade fundamental para a experiência do indivíduo segundo o mesmo espírito coro que sãoconsidera-
e:elemento importante para o conhecimento da dos os fenômenos ·astronômicos, físicos, qu Irnicos
sociedade, Ao realizar um vasto estudo sobre as .e fisiológicos,isto'é, submetidos a leis invariáveis,
1

) " / }
I ) ) j }

Carlos B. Martins O que é Sociologia

cuja descoberta é o objetivo de suas pesqu isas. fundamentos da sociedade capitalista, já então
Os resultados de suas pesqu ísas tornam-se o ponto plenamente configurada. Também não será nela
de partida positivo dos trabalhos do homem de que o proletariado encontrará a sua expressão teó-
Estado, que só tem, por assim dizer, como obje- rica e a orientação para suas lutas práticas. t no
tivo real descobrir e instituir as formas práticas pensamento socialista, em seus diferentes m~tiz~s,
correspondentes a esses dados fundamentais, a fim que o proletariado, esse rebento da revolução in-
de evitar ou pelo menos mitigar, quanto possível, dustrial, buscará seu referencial teórico para levar
as crises mais ou menos graves que um movimento adiante as suas lutas na sociedade de classes. t nes-
espontâneo determ ina, quando. não foi previsto. te contexto que a sociologia vincula-se ao socialis-
Numa palavra, a ciência conduz à previdência, e a mo e a nova teoria crítica. da sociedade passa a
previdência permite regular a ação". estar ao lado dos interesses da classe trabalhadora.
Não deixa de ser sugestivo o termo "ffsica Envolvendo-se desde o seu in ício nos debates
social", utilizado por Comte para referir-se à nova entre as classes sociais, nas disputas e nos anta-
. ciência; uma vez que ele expressa o desejo de gonismos que ocorriam ·no interior da sociedade,
constru í-Ia a partir dos modelos das ciências ffsi- a sociologia sempre foi algo mais do que mera
co-naturaís .. A oficialização da sociologia foi tentativa de reflexão sobre a moderna sociedade.
portanto em larga medida uma criação do positi- Suas explicações sempre contiveram intenções
vismo, e uma vez assim constitu ída procurará práticas, um desejo de interferir no rumo desta
realizar alegitimaçãointelectual do novo regime. civilização tanto para manter como para alterar
Esta sociologia de inspiração positivista procu- os fundam'entos da sociedade que a impulsionaram
rará constru ir uma teoria social separada não ape- e a tornaram possível.
nas da filosofia negativa, mas também da economia
pol Itica como base para o conhecimento da reali-
dade social. Separando a filosofia e a economia
pai ítica, isolando-as do estudo da sociedade, esta
sociologia procura criar um objeto autônomo,
"0 social", postulando uma independência dos fe-
nômenos sociais em face dos econômicos.
Não seré esta sociologia, cnadae moldada pelo
espírito positivlsta, que colocará em questão os
~ ...
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-- - ~',~
.
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Boaventura de Sousa Santo\

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ftÍ

PELAMAO
Santos, Boaventura de Sousa
Pela mão de Alice : o social e o político na pós-modernidade /
Boaventura de Sousa Santos. - São Paulo: Cortez, 1995.

ISOI~ 85-249-0578-6

DE ALICE
1. Ciências sociais - Filosofia 2. Conhecimento - Teoria 3. Política -
Filosofia I. Título.

95-3235
CDD-300.1
o social e o político na pós-níodernidade
índices para catálogo sistemático:

1. Ciências sociais: Filosofia 300.1

@c.oRTEZ
~EDITORA

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arrisc -se a sufragar o despotismo, o ue veio de facto a acontecer, é Se


verdade q o leninismo não é um desvio es 'rio do marxismo, não é, contudo;
menos verda ue o marxismo caucionou mo s de transformação socialista
que procuraram .c npatibilizar emancipação com. iectividade e cidadania;
das posições de Kaub'kz à de Bernstein, das posições s.austro-rnarxistas (os
,grandes ,esquecidos) às _~ eurocomunistas, o que afinal a na em fa.vo..~.,d~
mpíexidade das pOSIÇeil:S da Marx, ' .. 'lili'~"
M:~~~J,
se segue,
o segundo capítulo pro~~
Agora p endo a~ena,s relevar alguó'~os
um balanço geral da proposta-qe
méri~os dela para a di,scus,s ,,.
primeiro lugar, a cntica; marxista da democracia hbera,é
"«~,~
basicamente corr ta, ainda que a alternatica, que lhe propõe não o' seja;~;-~,~:
segundo lugar, ao a' ar o primado das rel~~s sociais na constitúiçãO[;-alf
subjectividade e da polfi ,Marx oferece a rnelhôr, contestação dos proces~o$Y
,- naturalização e de reific ão do social de que ~'fJimentam os excessos'
de r ulação em que se veio a tra zir a modernidade nas 'st}Çiedades capitaIís~.)
Em terc ' o lugar, Marx estabelece, a tradição hegeliana, qi:le\ não há subjéC4'
tividade se antagonismo e que o co'h~to. de classe social'e~o artiêuladQ~. __-,
uclear do anta nisrno nas sociedades cap~istas. ajnda que. par'à:~xa ..lm.e.•".te:
..·\i.:... '
e contrário de x, possa não ser o articufu<lor nuclear da supera -,qesse.
antag ismo. Neste do 'nio. o erro de Marx foi ~sar que ocapit"lism~po(;
via do envolvimento nológico das forças pro tivas, possibilitl\t:i.aFi. I
mesmo torn 'a necessária a ransição para o socialis . Como. s~,:Y,~j9J'.~l·'
i verificar, entregu a si próprio, o apitalismo não transita pa nada s~/)ãgú~.u:.'J-;:'
mais capitalismo, A ação autom ica entre progresso tecnol gicoe pr,ogrl(§~$?J;
social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e torna-a",Aç {lftffi,tp.:A.r
perversamente gémea da regulação capitalista. i ,;;;{J~U'4~~~'

'J,~.q~t.rf~).ij:~~-~·
A emergência da cidadania social •(".i:;~~lJ1!i,'
" ,>\dll.,:í,~V,I~j;';

'O segundo período do' capitalismo nos países centrais. o capitíillsin~:If


organizado. caracteriza-se !pela passagem da cidadania cívica e pol{tica.;~á~\t.~~~
que foi designado por "cidadania social'] isto é. a conquista de signífi~átiy()~~;~
direitos sociais, no domínio das relações de trabalho, da segurança'; sóÇ,Jál;f~éJâ~,
saúde. da educação e da habitação por parte das cI:.>~t-~ trabalhadÔfás;'1i"9"w
sociedades centrais e. de um modo muito menos característico e inten'só+:lp
parte de alguns sectores das classes trabalhadoras em alguns países pérífért .
e serniperiféricos. Melhor que ninguém, T. H, Marshall caracterizou este prpCessot;~~
em Citizenship and Social Class publicado pela primeira vez em ,195'0'l;;~~Pâi~~~
Segundo Marshall, na linha da tradição liberal, a cidadania é o conteú~ililií;
da pertença igualitária a uma dada comunidade política e afere-se pejos pjrejto,~~1!1~

243~~~~'1~
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e deveres que o constituem e pelas instituições a que dá azo Qara ser social operário ou uma concessão do Estado capitalista", não parece restar,ldúví4.áld~
e politicamente eficaz, (A cidadania não é, por isso, monOlíticaJé constituída que, pelo menos, sem as lutas sociais do movimento operário, tais concessões
por diferentes tipos de direitos e instituições; é produto de histórias sociais não seriam feitas. Mesmo que: com Brian Turner, não se devaesqlieéer~à
diferenciadas protagonizadas por grupos sociais diferentes, Os direitos cívicos contribuição de outros factores para a expansão e o aprofundamento.daicíd-ádifutà
correspondem ao primeiro momento do desenvolvimento da cidadania; são os social, como a guerra e as migrações. ':'KI~"V"6fkr:.
mais universais em termos da base social que atingem e apóiam-se nas _ • . I',;';'f\';'I~;:~-j~
Para a cornpreensao do tempo presente é, no entanto, Importante.te(c;ro
instituições do direito moderno e do sistema judicial que o aplica. Os direitos
conta que as lutas operárias pela cidadania social tiveram lugar no"m~rdb)'da
políticos, são mais tardios e de universalização mais difícil e traduzem-se
democracia liberal e que por isso a obrigação política horizontal 'dd!!prínCfpio
institucionalrnente nos parlamentos, nos sistemas eleitorais e nos sistemas
políticos em geral. Por último, os direitos sociais só se desenvolvem no nosso da ~omunidade só foi ;ficazna medida em que se submeteu·à!.o~t!â'â5~ô
século e, com plenitude, depois da Segunda Guerra Mundial; têm como referência política vertical entre cidadão e Estado, A concessão dos direitos soéiais';;ê"oá's
social as classes trabalhadoras e são aplicados através de múltiplas instituições l, instituições que os distri~uíra_m soc,i~ímente. ~ão exp~;~~ão da expan~ã9~~.(fil:?
que, no conjunto, constituem o Estado-Providência. aprofundamento dessa obrigação pohtlca.(Pohtlcamer.!,:" este processo S!gl)lfJeç,u
a integração política das classes trabalhadoras no Estado capitalista e;'poitánlli~
Um dos principais méritos da análise de Marshall consiste na articulação
o aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação. Daí~!q~ig!}àS
que opera entre cidadania e classe social e nas consequências que dela retira
lutas pela cidadania social tenham culminado na maior legitimação dô:L~~~a~
para caracterizar as relações tensionais entre cidadania e capitalismo. Transferida
capitalista. Daí que o capitalismo se tenha 'transformado profundameo~~iJp~r~;
para o quadro analítico que aqui proponho, essa articulação significa que no
no "fim" do processo da sua transformação, estar mais hegemóÍli,éó:".dQ.:,q4~
período do capitalismo liberal a cidadania civil e política, enquanto parte l'I ..U ...J!U
, •.• ", ,( I 6

nunca. , . ";' :;U)


integrante do princípio do Estado, não só não colidiu com o princípio do ."; •.I/~{;'J i; {j

mercado como possibilitou o desenvolvimento hipertrofiado deste. Ao contrário, Em face disto, não surpreende que neste período se tenha agravado~P~
no período do capitalisl;i() organizado, a cidadania social, porque se ancorou tensão entre subjectividade e cidadania. Por um lado, o alargamento da cidadaóià
socialmente nos interesses das classes trabalhadoras e porque serviu estes em abriu novos horizontes ao desenvolvimento da subjecrividader A segurança 'dâ
grande medida através de transferências de pagamentos, colidiu significativamente existência quotidiana propiciada pelos direitos sociais tornou possíveis vlv~nçias
com o princípio do mercado, conduzindo a uma relação mais equilibrada entre de autonomia e, de liberdade, de promoção educacional e de programação..Q~
o princípio do Estado e o princípio' u(/" ••,,~ ,'ca('" .;., c(\'~ ela, li uma nova trajectórias familiares que até então tinham estado vedadas às classes trabalhii~
estrutura da exploração capitalista, precisamente 6 capitalismo organizado. dorasy'Mas, por outro lado, os direitos sociais e as instituições estatais a,;qJ.~
Este maior cqui líbrio entre Estado c mercado foi obtido por pressão tio eles deram azo foram partes integrantes de um desenvolvimento, socíetalque
princípio da cornunidadc- enquanto campo e lógica das lutas sociais de classe aumentou o peso burocrático e a vigilância controladora sobre os Indivíduos;
que estiveram na base dd' conquista dos -direitos sociais. A comunidade assenta sujeitou estes mais do que nunca às rotinas da produção e do consumO;jcrio~
na obrigação política horizontal entre indivíduos ou grupos sociais e na um espaço urbano desagregador e-atomizante, destruidor das solidariedadesdas
solidariedade que dela decorre, uma solidariedade participativa e concreta, isto redes sociais de interconhecimento e de entreajuda; promoveu uma cultura
é, socialmente contextualizada, Ora a classe operária foi precisamente o motor mediática e uma indústria de tempos livres que transformou o lazer n~m' gozo
e o conteúdo desse contexto social e a articuladora da obrigação política qüe programado, passivo e heterónomo, muito semelhante ao trabalho. .Enflm,
se traduziu nas múltiplas formas organizativas da solidariedade operária, dos um modelo de desenvolvimento que transformou a subjectividade "num
partidos operários e dos sindicatos r,~ cooperativas, aos clubes operários, à processo de' individuação e numeração burocráticas e subordinou a Lebenswelt
cultura operária, etc., etc.. .. às exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objecto
de si próprio.
Se a classe operária 1!::(~::foi o sujeito monumental da emancipação
pós-capitalista, foi sem dúvida o agente das transformações progressistas (ernan-
cipatórias, neste sentido) no interior do capitalismo. Embora seja ainda hoje 4, Cf. por exemplo. o debate entre Tumer (1986), que privilegia o papel das lutas~odai;:·ril.
debatível em que medida a cidadania social é uma conquista do movimento criação da cidadania social, e Barbalet (1988), que dá mais atenção ao papel do E!l;tado.. '.'.lij < l\

244 245
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existência fora desse processo, O sujeito e o cidadão são produtos m ufactúradôs'


pelos poderes-saberes das dis iplinas, É com base nesta ideia e Foucaultssé;
recusa a atribuir ao Estado lugar central no processo histó co de dominação':
moderna. De facto, segu o ele, o poder jurfdico-polftic sediado no Estado'
e nas instituições não t cessado de perder importân a em favor do poder .
disciplinar. A cidadani é, pois, para Foucault, um a efacto deste poder-mais
do que do conjunto dos direitos cívicos, políticos sociais concedidos' pelo
Estado ou a ele c nquistados. 'i

Em meu e ender, o processo histórico d cidadania e o processo his~p~


da subjectividj de são autónornos ainda qu , como tenho vindo a def~,~f.I~,
intimamente elacionados. O capitalismo em sabido conviver CO~di~. e~.:en..tê..,•,S.,.
soluções e cada um destes processos as que consistiram na mai amplitude
dada à dadania política e social ão são certamente as p'ores pàrai~o.
desenvo imento da subjectividade. a das reivindicaçõ~j.,;;.,;ntrafs do feminis~Õ
radica a de que a esfera pess I é política, não é,: nas .londíções,·iWttJ31~!
susc tível de satisfação senão através da repolitização ~pS'~aesfera' ~~:\:i~~
éaí d id d . /, "'1 >l'fr:l~),
'I
em strat gras e CI a ama. ,./,/, 'T'i!;:':5i!~ri
Acresce que,. do po o de vista da emancipação, é possível ,pen~a.n!~JU
vas formas de cidad ia (colectivas e não ingi~iduais; menos asse~~§'i~m,
direitos e deveres do ue em formas e critérios' de participação), não:-li~J:~j~,'
e não-esratizantes, que seja possível um51/relação mais equí1íbrada!,Ç9m:-I~',:
subjectividade.J M mo assim, estas novas }ór~as de cidadania não nos ~4~y~W,'~;:
fazer esquecer ue o Estado ocupa umJV'poslção centrah (porque exteno(h},l~'
configuração as relações sociais de rodução capitalista e que essa. ppsiç~? .'; r ;r. -; '~: ,,': ~.\::: :,!

ao contrári do que afirma Foucaul, tem vindo a fortalecer-secom ,o,'~~~~-9ã!~;


volvimen do capitalismo. A te dência foucaultiana para homoge~fi~~i!i~I;}i'
diferent formas de poder sob, conceito-chave do poder díscjplinar,",~ar;' .,
furtar formulação de critéri s que permitam hierarquizã-los e pàr~'iv~;l,e,.i,i
tod, as tentativas de resi encia a emergência insidiosa de noyos,iJ@F,~~§if.j
c )' tra os quais é preciso organizar novas resistências, acaba por, copq~~iriJ.t,:W
,ma concepçãopanóptic dopanóptico benthamiano, ou seja, a uma copse~~f-
'da opressão onde não possível pensar a emancipação",";i,li\~jy.~.
: /."',;, fn;~;;'IlJ..".
_.),j\ ~~(,g~~.i,
A crise da cidadania social ,;,tmthZli;l';)

No final dos anos sessenta, nos países centrais, o processo hj~tóriJ.~e:~'9./'


desenvolvimento da cidadania social sofre uma transformação cuja verdàdêiÍ'á :,\
dimensão só veio a revelar-se na década seguinte. Dois fenómenos marcam;
essa transformação: a crise do Estado-Providência e o movimento estudantil. "

247

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Não t: este o lugar .sara tratar detalhada mente nenhum destes fenômenos". contra ã cidadania, da subjectividade pessoal e solidária contra a cidadania
Basta reter, para () que aqui nos interessa, que a crise do Estado-Providência atomizante e estatizante. O compromisso social-democrático amarrou de 'tal
assenta basicamente na crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra, modo os trabalhadores e a população em geral à obsessão e às - rotinas-da
o "regime fordista", como é hoje conhecido. Este regime de acumulação produção e do consumo que não deixou nenhum espaço para o exercício da
caracteriza-se por uma organização taylorista da produção (total separação entre autonomia e da criatividade, com as manifestações daí decorrentes, desde o
concepção e execução no processo de trabalho) acoplada à integração maciça absentismo laboral à psiquiatrização do quotidiano. Por outro lado,a cidadania
dos trabalhadores na sociedade de consumo através de uma certa indexação social e o seu Estado-Providência transformaram a solidariedade social numa
dos aumentos de salários aos ganhos de produtividade. Esta partilha dos ganhos prestação abstracta de serviços burocráticos benevolentemente repressivos, con-
da produtividade é obtida por duas vias fundamentais: pelos aumentos dos cebidos para dar resposta à crescente atomização da vida social rnas.: de 'facto,
salários directos e pela criação e expansão de salários indirectos, ou seja, os alimentando-se dela e reproduzindo-a de modo alargado. Por último, o COm"
benefícios sociais em que se traduz a cidadania social e, em última instância, promisso social-dernocrãrico, já de si assente numa concepção restrita (liberal)
o Estado-Providência. do político, acabou, apesar das aparências em sentido contrário, por reduzir
Como referi, a classe operária, através dos sindicatos e partidos operários, ainda mais () campo político. A diferença qualitativa entre as diferentes opções
políticas em presença foi reduzida até quase à Irrelevância, A representação
teve um papel central na configuração deste compromisso, também conhecido
por compromisso social-democrático para dar conta que as transformações democrática perdeu o contacto com os anseios e as necessidades da população
socializantes do capitalismo neste período (o "capitalismo organizado") foram representada e fez-se refém dos interesses corporativos poderosos. Com isto,
obtidas à custa da transformação socialista da sociedade, reivindicada no início os cidadãos alheararn-se da representação sem, no e~;;".I', terem desenvolvido
deste segundo período do capitalismo como a grande meta do movimento no,:as formas de partic!paç~o polí!i~a, exerci}áveí~ em áreas políticas: nov:asi'~
operário. Reside nisto verdadeiramente a integração social e política do operariado mais amplas. As orgaruzaçoes polfticas do operariado, longe de serem "vítimas
no capitalismo, um processo lento de desradicalização das reivindicações operárias deste processo, foram um dos seus_~!::lífices principais, não adrnirandor- pbísi
obtido em grande medida através da crescente participação das organizações que as suas energias emancipatórias tenham sido desviadas para a gestão;zelósa
operárias na concertação social, nas políticas de rendimentos e preços e mesmo do capitalismo, por mais transformado que este tenha saído dessa gestão':i\~':.í~~
na gestão das empresas, um processo cuja dimensão política é hoje conhecida . Como sab~mos, ~. movimento estuda~til dos anos sessenta foi A;;;~~~~ª~
por neocorporativismo. articulador da c~l~e pohtlco-~ultural do ford~smo e a ~res?nça nele, ~eW,J\~~~!1
A crise do regim 'i fordista e das instituições sociais e políticas em que de resto, da ,CritiCa m~rcuslana é expressao. d~ r~dlcahdade da c~~~~ó~~
ele se traduziu assentou, em primeira linha, numa dupla crise de natureza que protagonizava'', São três as facetas pnncipais dessa confrontaçãdJll;m
económico-política, na crise de rentabilidade do capital perante a relação primeiro lugar, opõe ao pr,QQutivismo e ao consurnisrno uma ideologi~~ndp,~
produtividade-salãrios e a relação sul(,ó-;os directos-salãrios indircctos, e na crise dutjvist~ ~ p6s-materíaJj~ta~m segun~o lugar, iden~ifica as múltipl~f~rêMmK
da regulação nacional, que geria efir;.nmf'nt~ até então essas relações, perante do ~uotldla~~. tanto ao nfvel da ~ro~uçao (trabalho alienado), como da re~f~H~~~
a internacionalização dos mercados e a 1tt~'i':~;lUcion9Iiz!\ç~\, clJ produção. Como socla~ (~amlha b~r?uesa, autontansmo da educação, monotonia doJ~r!'~~~
esta regulação estava centrada no Estado nacional, a sua crise foi também a pen,d.encyt, burocratl.ca) e propõe-se alargar a elas o de~ate e a p~icíplW,~
crise do Estado nacional perante a globalização da economia e as instituições pohtlcaseE.m t:rcelro. lugar, ~~clara o. fim da hegernonia operária;~~áM:m
que se desenvolveram (0 n ela (as empresas multinacionais, o Fundo Monetário pela emancipaçao SOCial e legitima a criação de novos SUjeitos sociais de base
transclassista. -,,;'!- t-"';"
Internacional, o Banco ~.[undial).· ,':' ;.~·it~-f.;~Rr()il
Mas a crise do fordismo ou do capitalismo organizado teve também lima O triu~fo ideológico da subjectividade sobre a cidadania teve, o~yiam~9~:
dimensão cultural ou político-cultural e, em meu entender, a reavaliação e a os ~eu~ ~ustos, O _afã na .bus~-~ novas formas de cidadania, nãq 'h9,~J~M,
revalidação desta dimensão é de crucial importância para definir as alternativas s~bJe~tJvldade levou ~ ~eghgencl.ar qua.se totalmente a única forma d>e"ç~,d,~g~ni~
ernancipatórias dos anos noventa. A crise é, em parte, a revolta da subjectividade historicamente constituída, a Cidadania de origem liberal. Esta; ;p~~lj~Sl1~i~
.1 ;t):: t1{p~t~}
5. Quanto à crise do Estado-Providên-'". :'f. Santos (1990:193 e 55.).

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revelou-se fatal para o movi rnento estudantil, enquanto movimento organizado,


e 'está talvez na origem da facilidade relativa com que foi desarrnadc, No
entanto, dialecticarnente, esse desarme organizacional facilitou a expansão capilar
da nova cultura política instituída pelo movimento estudantil, e' sem esta não
é possível entender os novos movimentos sociais dos anos setenta e dos anos
oitenta nem será possível entender os dos anos noventa. Aliás, a herança não
reside apenas na cultura política, reside também nas formas organizativas e na
base social destas, A partir daí os partidos e os sindicatos tiveram de confrontar-se
permanentemente com as formas organizativas dos novos movimentos sociais,
tal como a partir daí o complexo marshalliano cidadania social-classe social
não mais se pode repor como anteriormente.

As duas últimas décadas: experimentação e contradição

Por último, a década testemunhou Q c apso das.s..o.çl., ªA(;!§..


comunistas do Leste , um processo cujo desenvo imento é difíci e
prevei:"'Ãü·'êõi1iriírlo "do que s - passa com os novos movim tos sociais, este>.
processo significa, pelo menos na arência, a revalidaçãO,~_.'!l~_~)9._<:a2i~~I,~~~u
"
_de desenvolvimento econórnico e soc'i~e asua afirll}~窺 9.Qm9.,Q. q!'!i~º,D1()ºelo
viável da rnodernidade. Mas também neste caso é ainda cedo para-conhecer
o tipode forol'açÕes 'sociais que está n~'''R.fática a emergir dolorosa~énte no
Leste Europeu e qual o seu impacto na Eurepa e no mundo. Por todas estas
,; ~ 250
)
'- /

'-

i
Publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais. (Revista do Instituto
'-. -"

Brasileiro de Ciências Criminais/IBCCRIM. Ano 13 (56): 334-58 São Paulo:


Revista dos Tribunais, set. out 2005.

o ACESSO À JUSTIÇA: PARA ALÉMDO INSTITUÍDO)

Eneida Gonçalves de Macedo Haddad2


INTRODUÇÃO

Este estudo teve como objetivo a participação no debate científico acerca dos
caminhos que possam conduzir à mudanças nas relações dos cidadãos com os órgãos
públicos, transformações das próprias instituições, a. fim de aproximá-Ias física e
simbolicamente da população atendida. Em outras palavras, a partir da identificação de
obstáculos que impedem o acesso à justiça, buscou refletir sobre as possibilidades de
superação das atuais representações de justiça, representações restritivas que legitimam
uma história exc1udente.
Realizado o levantamento sobre o tema em questão, alguns resultados de pesquisas
empíricas foram eleitos como objeto de análise, na medida em que atendiam aos objetivos
delineados.

DESIGUALDADE JURÍDICA

Não constitui tarefa simples a conceituação da expressão "acesso à justiça".


Conforme Cappelletti e Garth, "o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito

) fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e

1 Este artigo é produto de atividades de pesquisa desenvolvidas junto aoDepartamento de Ciências Jurídicas
do Centro Universitário Nove de JulholUNINOVE .
2 Mestre em Antropologia Social e doutora em-Sociologia pela USP, professora universitária e coordenadora-
adjunta do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/lBCCRIM.
» Q

,.) -
igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direito de todos.',3 Segundo os
autores, a expressão aponta duas finalidades básicas do sistema jurídico: a obrigatoriedade
de ser igualmente acessível a todos e a de produzir resultados individual e socialmente
justos.
De fato, a atividade jurisdicional ocupa um lugar privilegiado na garantia do Estado

Democrático de Direito. Entretanto, há que se questionar em que medida o monopólio da

jurisdição pelo Estado vem garantindo a segurança jurídica. Conforme Rodriguez, os

cidadãos podem contar com os tribunais na defesa de seus direitos, do que decorre a

importância da atividade do juiz na preservação da paz social. "Sua atividade, por mais

criativa e inovadora que possa ser, deve se enquadrar nos limites ditados pelo direito

positivo e pelas estruturas de organização do poder do Estado." 4

Contrariamente, os estudos que serão apresentados a seguir apontam que, a despeito


das normas constitucionais, o acesso à justiça é precário e a arbitrariedade não foi
eliminada das práticas de justiça, na sociedade brasileira.
No Brasil - semelhantemente a sociedades modernas, cuja consolidação do
capitalismo, além de hiper-tardia, ocorreu por via colonial, onde não se verificou ou não se
consolidou o Estado do Bem-estar Social - o princípio da igualdade jurídica tem
permanecido letra morta. A distribuição da justiça alcança alguns cidadãos em detrimento
de outros; o acesso aos serviços judiciais é dificultado por diferentes motivos (ausência de
infra-estrutura do Judiciário para atender a ampliação das demandas; despesas e taxas
cartoriais, ausência de informação dos direitos, prestação jurisdicional morosa, ineficiente e
cara, custo elevado do processo e, principalmente, precária assistência judiciária"); a
discriminação social nas decisões judiciárias é uma realidade; os amparos legais e

3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12.
4 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Controlar a profusão de sentidos: a hennenêuticajurídica como negação do
subjetivo. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu e RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.) .. Hermenêutica
Plural: possibilidadesjusfilosóficas em contextos imperfeitos .. São Paulo: Martins Fontes, 200p. 282.
S O Estado de São Paulo, o maior arrecadador da União, até hoje não criou a Defensoria Pública, passados
quase duas décadas da promulgação do texto constitucional. A assistência Judiciária é prestada de forma
irregular pela Procuradoria Geral do Estado que conta, no presente, para a demanda de todo o Estado, com
300 procuradores lotados na Procuradoria de Assistência Judiciária/PAJ.

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constitucionais nem sempre são aplicados. Por conseguinte, não é de se estranhar o


sentimento de descrença da população a respeito do Judiciário."
O debate acadêmico vem apontando o papel que o Poder Judiciário deverá assumir na

instauração da democracia social no Brasil, tornando-se acessível a todos, abolindo os

rituais de distanciamento que o separam da população, dispensando o mesmo tratamento a

todos os cidadãos.

No artigo "Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. As mortes que se contam no

tribunal do júri" 7, Adorno problernatiza um axioma fundamental da modernidade, fruto da

arquitetura liberal do Estado moderno, qual seja, o que estabelece "uma correlação

inexorável e necessária entre justiça social e igualdade jurídica" 8: todos os cidadãos devem
"
estar submetidos às mesmas leis e gozar dos mesmos direitos constitucionalmente

assegurados.

As conclusões do autor estão fundamentadas em pesquisa empírica que privilegiou a


comparação entre o perfil social dos condenados e dos absolvidos": foram analisados 297

.. "
processos penais, instaurados e julgados em um tribunal de júri da cidade de São Paulo, no
,',
.;»

período de janeiro de 1984 a junho de 1988. Os dados levantados referem-se ao perfil da


vítima e dos agressores, do corpo de jurados e das testemunhas e à dinâmica dos
acontecimentos, da instauração do inquérito até a proclamação de sentença decisória, em
primeira instância. Conforme o autor, "as conclusões sugerem arbitrariedade na distribuição
das sentenças, identificam grupos preferencialmente discriminados e apontam algumas
evidências de desigualdade no acesso à justiça.t''" A universalidade do tratamento legal

6 A esse respeito, dentre outros, FARlA, José Eduardo. A crise do Poder Judiciário no Brasil. In: Justiça e
Democracia. Revista Semestral de Informação e Debate. Publicação Ofical da Associação Juízes para a
Democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1° semestre de 1996, p. 19-64,
7 ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. As mortes que se contam no tribunal do
júri. In: Revista USP. (21): 132-51. São Paulo: mar.labr/maio 1994.
8 Idem, ibidem, p.134.
9 Pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea- CEDEC, com apoio da Fundação Ford.
Participaram da investigação as pesquisadoras Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Maria Ângela Pinheiro
Machado e Anamaria Cristina Schindler (Nota do autor, p.134).
IOADORNO, Sérgio. Op. Cit., p.136.

~)

------------------------------------------------------------------ -
permanece apologia do discurso jurídico-político liberal, não tendo se consolidado sequer
nas democracias européias e norte americanas.
O funcionamento normativo do aparelho penal tem, por efeito, a
objetivação das diferenças e das desigualdades, a manutenção das
assimetrias, a preservação das distâncias . Assim, não há porque
falar na existência de contradição ou conflito entre justiça social e
desigualdade jurídica; a desigualdade jurídica é o efeito de práticas
judiciárias destinadas a separar, dividir, revelar diferenças, ordenar
partilhas. É sob esta rubrica que subjaz a 'vontade de saber' que
percorre todo o processo penal e cujo resultado é promover a
aplicação desigual das leis penais. II

Pesquisas mais recentes apontam na mesma direção. Merecem destaque dois


artigos, recentemente publicados - "Mulheres negras: as mais punidas nos crimes de roubo"
12 e "Mais punição para os punidos: as decisões judiciais da Vara de Execuções Criminais

\
da Capital do Estado de São Paulo,,13 - referentes a resultados de investigação realizada
"I

pela Fundação Seade, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
PaulolF APESP.
Nos crimes de roubo, aponta o primeiro artigo, réus negros, especialmente
mulheres, são mais punidos pelo sistema de justiça criminal de São Paulo.
O estudo reconstruiu a trajetória dos indivíduos desde o indiciamento até a execução
penal, no período de 1991 a 1998. Trabalhou com o total de registros criminais dos Bancos
')
.. '.-'" de Dados que formam o Sistema de Informações Criminais do Estado de São Paulo,
gerenciado pelo PRODESP.14

11 Idem, ibidem, p.149.


12 TEIXEIRA, Alessandra, LIMA Renato Sérgio e SINHORETIO, Jaqueline. Mulheres negras: as mais
punidas nos crimes de roubo. In: BOLETIM IBCCRlM - Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais. (125): Encarte. São Paulo: abr. 2003.
\3 TEIXEIRA, Alessandra e BORDINI, Eliana Blumer Trindade. Mais punição para os punidos: as decisões
judiciais da Vara das Execuções Criminais da Capital do Estado de São Paulo. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais. v.ll, (44): 267-77São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,jul./set. 2003.
14 Assim, a pesquisa tem o mérito de ter se baseado na totalidade dos registros, considerando que o PRODESP
(Processamento de Dados do Estado de São Paulo) é alimentado simultaneamente pela Secretaria de
Segurança Pública, o Tribunal de Justiça e a Secretaria de Administração Penitenciária.

4
Os resultados confirmam o que vem sendo apontado por outros estudos sobre os
processos de discriminação social, de gênero e, sobretudo, racial a que estão submetidos
indivíduos envolvidos no sistema de justiça criminaL 15
O segundo artigo corresponde a uma importante contribuição ao conhecimento da

insuficientemente estudada esfera jurisdicional da execução penal.

Trata-se de uma pesquisa de caráter quantitativo, cujo universo de investigação foi


constituído por 7.960 processos de execução dos condenados em cumprimento de pena, nos
estabelecimentos prisionais, sob competência da Vara de Execuções Criminais da Capital
do Estado de São Paulo, em junho de 2002. A partir de amostra aleatória dos presos, foram
trabalhados 339 processos; os parâmetros definidos corresponderam aos pedidos
formulados e pedidos concedidos: a proporção de condenados que tiveram progressão da
pena, a proporção de condenados que obtiveram a concessão de livramento condicional e a
proporção de presos que solicitaram cada um dos benefícios.
O objetivo fundamental- conhecer o funcionamento do sistema de execução penal,

no que se refere às decisões judiciais - partiu da necessidade de se verificar em que medida

têm fundamento empírico determinadas representações do senso comum sobre a atuação do

sistema de execução. É amplamente difundido na sociedade brasileira que as altas taxas de

criminal idade e a ineficácia da pena de prisão decorrem de serem os presos beneficiados

por concessões legais que antecipam a sua liberdade, acabando, assim, por cumprir, em

regime fechado, apenas uma pequena parte de sua pena. Neste cenário, projetos de lei têm

proposto o endurecimento penal e a proibição de benefícios prisionais ou aumento do prazo

para sua concessão.

15 Segundo os autores, "os dados apresentados reforçam a certeza de que a mudança tem que ser muito
mais profunda do que uma simples resposta à opinião pública. No atual momento histórico do país, o
governo federal acena ser possível sonhar com uma reforma do sistema de justiça para além de uma mera
reforma do Poder Judiciário, em que interesses corporativos têm sido os únicos reivindicados e a dar a
tônica monológica à discussão. A fim de ampliar e legitimar esse debate, a sociedade civil organizada, os
movimentos sociais, enfim, todos os cidadãos portadores do direito de acesso à justiça, devem participar
deste processo. " TEIXElRA, LIMA e SINHORETTO. Op. Cit, p. 4.

5
Por conseguinte, esse estudo acabou por questionar a realização dos ideais e
princípios constitucionais e legais previstos para a matéria, como a individualização da
pena e a sua progressividade'", demonstrando em suas conclusões que, contrariamente ao
que vem sendo sobejamente alardeado,
[...] o Judiciário apresenta um comportamento refratário aos
dispositivos da Lei de Execuções Penais, notadamente no que toca
aos chamados benefícios nela previstos. Pode-se dizer que, para
além dos ditames legais e constitucionais, o Judiciário tem
politizado suas decisões, assumindo, por certo, um discurso
altamente repressivo ao extrapolar estas prescrições legais. 17

A conclusão supra fundamenta-se no fato de a pesquisa ter constatado que o sistema


de justiça atua como· "aplicador de um plus punitivo", contemplando um pequeno número
de presos com os benefícios previstos na LEP.18

16 "A Lei de Execuções Penais - LEP (Lei n" 7210/84), de edição relativamente recente, regulamentou de
forma sistemática o modelo jurisdicionalizado de execução penal em nosso país. Afinada constitucionalmente
com princípios como a ressocialização e a individualização da pena, trouxe ainda o corolário da
progressividade do sistema - também adotado pela Constituição da República de 1988 - através do qual o
condenado cumpriria sua pena em fases progressivas e sucessivas de acordo com o tempo e o mérito, de
modo a alcançar a liberdade uma vez transcorridas as etapas de cumprimento: regime fechado, sem i-aberto,
aberto e livramento condicional. "A LEP normatizou ainda a chamada jurisdicionalização na execução
criminal, um sistema pelo qual cabe ao juiz das execuções, sobrepondo-se à administração prisional, presidir
e fiscalizar o cumprimento da pena. Essa tendência, adotada por países como Alemanha e Portugal, teria
finalidade de tornar a execução mais transparente e mais democrática, sujeitando todos os procedimentos ao
contraditório e à ampla defesa, âmbito jurisdicional.
Todo o cumprimento da pena, assim, compreendendo nele também aquilo que denominamos intercorrências,
desde fugas, faltas disciplinares, até pedidos de beneficios e autorizações de saída temporária, insere-se na
ordem jurídica processual, subordinando-se a procedimentos legais determinados. As decisões, por serem
judiciais e não administrativas, se sujeitam a princípios como o acesso à justiça, o duplo grau de jurisdição,
isonomia entre as partes e a necessidade de fundamentação da sentença, além dos já mencionados
contraditório e ampla defesa.
Descrito desse modo, é possível compreender que, não obstante a execução da pena ocorrer de modo híbrido
- a participação do Poder Executivo se dá pela atuação direta da administração penitenciária, que tem sua
competência definida por lei, especialmente ao que se refere à política prisional - é no âmbito jurisdicional
que as questões relativas à finalidade da pena e em especial ao apenado se realizam. Para compreender o
funcionamento desta realidade, portanto, foi necessário trabalhar quantitativamente junto a este universo: os
processos de execução penal em curso na Vara de Execuções Criminais." (TEIXElRA, Alessandra e
BORDINI, Eliana Blumer Trindade. Op. Cit, p. 269).
17 "Neste sentido, cabe citar a recente pesquisa realizada junto aos juízes federais e estaduais, pela
Associação dos Magistrados do Brasil, divulgada em 2003. Os dados revelaram que metade dos consultados
acredita que as penas arbitradas deveriam ser mais elevadas e 45% acreditam que as leis é que deveriam
prever punições mais severas. O curioso é que, como medida de diminuição da violência, sugeriram, entre
outros, o cumprimento efetivo da legislação existente" idem, ibidem, p. 276.
IS"OS laudos criminológicos aparecem, neste cenário, como instrumentos aprove itáve is pelosjuízes na
medida que impliquem em negação dos beneficios; mais uma vez percebe-se a utilização política, pelo
Judiciário, das disposições jurídicas do universo criminal e carcerário. "Idem, ibidem, p. 276.

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SOCIOLOGIA
\ E DIREITO
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Textos Básicos para a


Disciplina de Sociologia Jurídica

Cláudio Souto
e
Joaquim Falcão
(da Universidade Federal de Pernambuco
e da UI~i'!ersl/lac!a F~;;l,:ial do Rio de Janeiro)
(orgamzadores)

2!! edição atualizada

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Notas sobre a História


Jurídico-Social de Pasárgada
Boaventura de Sousa Santos

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Introdução

Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas jurídicas.çt-::-:J:::


ínternas de uma favela do Rio de Janeiro, a que dou o nome fictício de Pasárgadal'.:i;jitii
Este estudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de plur~ ~'11;\@i
jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações entre Estado,~,; :~!;1'il~
direito nas sociedades capitalistas. Existe uma situação de pluralismo jurídiC<;~:':Hlt\
sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mafs~:<;1Ji!il
uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentaç~;,; l"iW!
econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a \um período' J;:;' )(1:1
::~ ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária;ou, . ,:t
" ~1; pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do ',j'1[[:
J\~

r ~~~~~oãO~eclasses numa área determinada da reprodução social - neste :~;,;,.I!;.', '.


'lli!1
t'.
, ..' .~r, ' ", )~
Este estudo, cuja pesquisa de campo foi realizada no verão de 1970, constituiu wna tese ; ;;::
de doutoramento apresentada na Universidade de Vale (U. S. A.) em 1973 e intitUlada:, "•·.:'~
....
,,~~'~,,:.,.l:

Law Against Law: Legal Reasoning tn Pasargada Law. Foi publicado pelo Centro Inter-, .).
cultural de Documentacion de Cuernavaca (México) em 1974. Uma versão bastante reduzída.
e revista foi publicada sob o título "The Law o{ lhe Oppressed: The Construction .and ;:.i}:i
'11
Reproduction o[ Legality in Pasargada" na Law and Society Review, vol. 12 (1974), pp. ;'1'
5 -126. Encontra-se em preparacão a versão Dortl101Ip.,~ int"<rrol

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,SOCIOLOGIA E DIREITO NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURloICO·SOCL",L De PASÀRGAOA

'j A favela é um _espaço terrítoríal, cuja relativa autonomia decorre, entre o texto que se segue circunscreve-se à análise da primeira parte desta evoluçã9: s-
outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasí- e mesmo assim de modo muito lacunoso. As dificuldades da investigação hístõríca
leiro. Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacioname~to. da no domínio sõcío-jurfdíco do inúmeras:' sobretudo' qúãJido o objetivo é captat~;i lJ.:
comunidade enquanto tal com o aparelho jurídico-político do Estado brasilelr~. gênese das formas e estruturas jurídicas. As dificuldades são ainda maiores quattdS: Jf'
. l No caso específico de Pasárgada, pode detectar-se a vigência não-ofícíal e. pr,:cária como no caso presente, é quase total a carência de documentação escrita. Para 'aS<1:-f!:i!;:
. - .... , ~:r.~.:.<:
de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela .fSsoc13çao de obvíar, recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sob~d-' ;.:
moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade tudo com aqueles que. ali viveram desde o início da comunidade. É sabido que este •
'. decorrentes da luta pela habitação. Este direito não-oficial - o direito de Pasárgada método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento auavéi
como lhe poderei chamar - vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito dele obtido é sempre muito problemático. E isto é tanto mais assim quando se trata
oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a . depesquisar "questões jurídicas" porque, consoante a perspectiva anaJ{tícaus~
ordem jurídica de Pasárgada. Entre os dois direitos estabelec~-se ur~a ~e~açã~ de peloentrevistador, tais questões, ou se referem a fatos que não ultrapassam Os
pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma análise muito n.:m~clOs.a 'Umbrais de um quotidiano, por yezes longínquo, ou envolvem nútos e tabus volta â

, pode revelar. Muito em geral pode dizer-se que não se t~at~ de uma relaçao 1~~1' dos.quaís o conhecimento e o desconhecimento social 'se organizam estratégica e
tária, já que o direito de Pasárgada é sempre e de multiplas formas um direl~o .~Caprichosamente". Em qualquer dos casos, as respostas dos entrevistados tendem
dependente em relação ao direito oficial brasileiro. Recorrendo ~ uma c~te~~n.a :'a;'padecer de vícios, tais como lacunas e dístorções de percepção e me~óri~;
da economia política, pode dizer-se ,que se trata de umg, jrQca desigual d~ [uridicí- prejuízos éticos ou outros (sobrevalorização do presente em relação ao passado e
dade que reflete e reproduz, a nível sócio-jurfdico, as relações de desigualdade . ~ce-versa), indução das respostas, ou seja, ad.~"!'.t.i(ão destas ao estereótipo;'d~
" entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito. . . entrevístador e das suas preferências. Em condições como estas, a tentaçã6!~é
A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscreve-se, no que interessa : grànde para compensar as deficiências de informação com sobre-ínterpretaçãc.
" para este estudo, aos recursos internos que são mobilizados para ~r~venir e resolver .~flir;<~,' .. ':<.~I
conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre cons- :j;:~'f];ü:
truções (casas e barracos) que nesta se implantam' . É através da análise dos. ti~os de
conflitos e dos seus modos de resolução que melhor se surpreende o direito de 11
Pasárgada em ação. isto é, enquanto prática social. Esta análise, feita nu:n cer:o
momento do desenvolvimento de Pasárgada, requer, para ser completa, a inclusãó
de uma dimensão histórica. Mais concretamente, trata-se de saber como se consti-
tuíram e desenvolveram, a partir da formação da favela, as normas e as formas ,Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da
jurídicas e os órgãos de decisão iurfdica, que hoje se centram à volta da associação , "de 30J.,existía muita terra disponível. Cada morador demarcava o seu pedaço
de moradores e de outros pólos ~ Jrgr-i'~':tª() ,,~~munitária autônoma, que -.terra e construía o seu barraco, deixando em geral espaços abertos pano
continuam a subsistir, ainda que de modo cada vez mais precário, anos depois do '\'oide verduras, plantio de árvores ou para criação de animais domésticos.
apogeu do desenvolvimento comunitário no início da década de 60. ""'do os mais antigos moradores de Pasárgada, naquela época quase não
'fiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre a terra e as
ftações. "Não havia necessidade de brigas", dizem eles. Os barracos eram de
, Em qualquer sociedade moderna ou em vias de ~odernização, a terra te~de a ser ~onside- 'trução muito primitiva, pouco valor tendo. Podiam ser construídos ou demo-
. rada como um recurso de muito valor, tanto em áreas urbanas como em areas rurais. Desta "Vem.questão de horas. Por outro lado, uma vez que existia muita terra de»'
maneira, o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias atra~és das qu~is a ;\qualquer conflito relacionado com a posse da terra (linútes, preferências
segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas.
Como diz W. S, Holdsworth, "as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser
rVtdões) poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das
possuída, usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado. A ';"s'do conflito para outro lugar no morro.;];
estabilidade do Estado e o bem-estar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem' Nt\Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções
consideravelmente do dirp;:v'li'''' 'yropriedade sobre as terras". (An Historical Introduction '''orou consideravelmente, de tal modo que na segunda metade da. década de .
to the Land Law, Ox :"'ftl, 1927, ;;. 3,)Não admira, pois, que em Pasãrgada se te~ham '''ram já freqüentes os conflitos envolvendo a propriedade e a posSe'"daterra;~
desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o rnínímo
de segurança e de estabilidade das relações sociais centradas na terra e na habitaçã~, uma
o se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época
vez que, pelas razões apresentadas no texto, tal estabilidade e segurança não podiam ser } onflitos eram resolvidos, eles respondem invariavelmente: "Violência, a leí
.t'~_:.•1 1...•.•••,..;10 •••.••.•
'.~rita.is forte". Ouando. a fim de evitar. em alguma medida. diSioições'cfêper:--
__ I
, ..I! __ : •••__
-------'-'-- _ ...

cepção e de memória, se procura obter informações com base num paralelo entre comunidade com muita freqüência. Estas batidas eram tão ineficientes .do ponto
o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora, de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores que
é freqüente obter-se uma resposta deste teor: "Oh! Agora é diferente. Agora as delas eram vítimas. Aqueles que de fato eram "maus elementos" quase nunca eram
questões são tratadas em paz e tenta-se decidir de acordo com a justiça. Naquela apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com freqüência para prisões de onde
época eram resolvidas com facas e revólveres". Este tipo de resposta envolve ainda não eram libertadas a não ser através de suborno. Neste contexto, e mesmo I,
uma certa distorção, porque z.so ~. verdade que hoje em dia todos os conflitos colocando de lado perigos envolvidos, não existia qualquer propósito útil em ~
sejam pacificamente resolv.r'os, multe- embora não seja menos verdade em Pa- chamar a polícia em caso de conflito. Se a vítima ou, em geral, a pessoa prejudicada
sárgada do que o é na sociedade brasileira em geral. À luz de informações obtidas chamasse a polícia, sabia que esta provavelmente não se disporia a vir (a menos que
e tendo em conta a possibilidade de distorção, é talvez seguro concluir que a por outros motivos tivesse nisso interesse) e, se viesse, o culpado e todas as
probabilidade de relações sociais pacíficas envolvendo a propriedade e a posse relevantes testemunhas. já teriam então desaparecido ou, se não, quando ínterro-
da terra e o tratamento-também pacífico dos conflitos decorrentes de tais relações gadas, fariam o possível para não fornecer quaisquer informações úteis. Por outro
é hoje muito mais elevada do que há 20 ou 30 anos. lado, o morador que chamasse;a polfcía seria considerado traidor ou informante
.~ O aumento da violência numa primeira fase da história de Pasárgada resulta (cagüete) pelos outros moradores e isso poderia fazerperigar a sua permanência'
o~viam~nte d~ ~m~ pluralidade. d~ fatores. Entre eles ap~as se. referem dois .que na comunidade.
. ~ tem mais pertínêncía para os objetivos do presente estudo: 'por um lado, a indispo- Não existe razão para duvidar da exatidão deste relato, tanto mais queele
nibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenação e controle se refere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir, em
social próprios do sistema jurídico brasileiro e~~or outro lado, a ínexísténcía de grande parte, o quotidiano das relações entre os moradores de Pasárgada e a polícía,
mecanismos alternativos, de origem comunitária, capazes de exercer, ainda que Apesar de ter agora delegacia em Pasárgada, a polícia continua a desempenhar
de modo diferente e apenas nos limites da comunidade, funções semelhantes às um papel mínimo na prevenção e na resolução de conflitos. Não obstante os seus',
dos mecanismos oficiais. No que respeita ao primeiro fator, a indísponíbilídade esforços no sentido de uma aceitação mais positiva por parte da comunídadeç,
diz-se estrutural, sempre que as suas razões transcendem o domínio motivacional e continua a ser vista por esta como uma força hostil investida de funções estríta-' .
portanto, o nível dos eventos da interação social, independentemente do grau d~ mente repressivas.
universalização desta. Entre os mecanismos oficiais de ordenação e controle social, Para além da polícia (ou em complemento da ação desta), os tribunais corlStlX~J,o-·;:2;·
serão referidos dois: a polícia e os tribunais. tuem o outro mecanismo oficial de ordenação e controle social a que os habitantes
A polícia não tinha delegacias em Pasárgada e, mesmo se as tivesse, é impro- Pasárgada poderiam, em teoria, recorrer para prevenir ou resolver conflitos Internos'
vável que fossem solicitadas pela população para intervir em casos de conflito, e de natureza jurídica. Tal recurso estava, no entanto, igualmente v~do evárlas .
as delegacias policiais nas áreas urbanizadas próximas também não eram chamadas a são as razões apontadas pelos moradores mais velhosr~~·;.; tal fato~m prírnelro'
agir. Quando se pergunta aos moradores' mais antigos as razões por que eles não lugar, juizes e advogados eram vistos como demasíaco 'distanciadoHas cl~'"
usavam os serviços da polícia, eles primeiro riem pela surpresa 'que lhescausa tal baixas para poder entender as necessidades e as aspirações dos pobres:-E'm SegurÚlõ1.'
pergunta - tão óbvio é a resposta. Depois fazem um esforço para expressar o lugar, os serviços profissionais dos advogados eram muito caros. segundo) ·ai.
óbvio. Desde os primórdios da ocupação do morro, a comunidade "entendeu" que descrição de um dos moradores, "nós estávamos brigando por barracos e pedaÇos'"
estava numa contínua luta com a polípia. Antes de os terrenos de Pasárgada de terra que, do ponto de vista dos advogados, não valiam nada. Além disso, quando I
passarem para o domínio público, várias foram as tentativas empreendidas pela você contrata um advogado, você é duma classe mais baixa do que a de1e:?,:e~'
polícia para expulsar em massa os moradores. E mesmo depois disso a sobrevi- fica muito a fim de fazer acordos com outros advogados e com o juiz, que pedem
vência da comunidade ;unca esteve garantida, uma vez.que se conheciam casos de prejudicar os seus interesses. Então ele vem a você com aquele jeito de falai:<Je·
remoção de favelas construídas em terrenos do Estado, Chamar a polícia aumen- advogado e tenta convencer que foi o melhor- que ele podia fazer por você, e que;
taria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente afinal de contas, o acordo não é tão mau assim. E você não pode fazer nada":'
criar pretextos para remoção. Esta observação, embora referida a atitudes para com os advogados na 'épOca
Outros fatores contribuíam aip,da nara que a polícia fosse vista como um inicial de Pasárgada, baseia-se provavelmente em experiência e percepçõesadquírí-.
inimigo pelos moradores de Pasárgada. ;:rtllÚn(Gl:ii.~:;'~)J~pNjt·JS,
vagabundos e em das muito tempo depois. Em qualquer caso, pressupõe um conhecimento bíisiarite·
geral "maus elementos" eram considerados pela polícia como formando uma intimo da ação dos advogados que duvido fosse comum em Pasárgada há 200u'30
considerável proporção da população de Pasárgada. Por conseguinte, pelo que anos atrás. Comum era (e continua a ser) a idéia de que os serviços dos advogados
contam as testernunha s-Iesse tempo (que não é, neste aspecto, muito diferente do são muito caros e, por isso, longe do alcance das posses escassas das classes baixas,
tempo presente), a pcl.cia fazia incursões repressivas, isto é, "dava batidas" na uma idéia, aliás, profundamente enraizada na consciência jurídica popular e, portan-

m I
II J'

,,''-'
/:;-.

92 SOCIc..'LO(,~,JI'c.,:,
DI ~Ei~,:/,,,,••,, NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIOICO-SOCIAL DE PASÁRGADA 93

to, correspondente a uma experiência histórica longa". Uma


terceira razão invocada No entanto, em muitas entrevistas com os moradores de Pasárgada obtive
pelos moradores de Pasárgada para não recorrerem aos tribunais reside no fato de declarações nas quais a idéia do mecanismo de feedback é subentendida. Eis umad--
saberem desde o in íCÍtr que a comunidade era ilegal à luz do direito oficial, quer declaração trpíca: "parece que, somente porque a terra não é nossa, o Estado não
quanto à ocupação da terra, quer quanto aos barracos que nela se iam construindo. tem obrigação de nos fornecer água e luz elétrica e a polícia pode invadir nossas
Na expressão perspicaz de um deles, "nós éramos e somos ilegais". Recorrer aos casas quando bem entende. Existem mesmo patrões que recusam candidatos a
tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil corno emprego quando estes dão endereço numa favela". O significado ímplícíto deste
perigoso. Era inútil porque "os tribunais têm que seguir o código e pelo código extrato de entrevista é que, de acordo com os princípios de justiça, a ílegalídade.d->
nós não tínhamos nenhum direito". Era perigoso porque trazer a situação ilegal da posse da terra nas favelas não se deveria repercutir sobre a provisão de serviços
da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia levã-los a "nos jogar na públicos pelo Estado ou sobre o comportamento da polícia e dos patrões. No
cadeia". contexto em que esta declaração foi feita", significa também que o mecanismo
Esta série de observaç0~:;~~'ü'er uma análise detalhada, porque esclarece de feedback, embora existindo de fato, não é sequer legal face ao sistema jurídico
,
0,1, alguns as~ctos básicos dá "~ênese e ~<:strutura.da .o:~em jurídica interna de oficial. Na realidade, o feedbdck é legal no que respeita à provisão de serviços
Pasárgada},l\ expressão "nós éramos e somos ilegais , que, no seu contexto públicos referidos. De acordo com as leis gerais e com as disposições do código
.\ semântico, liga o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habi- urbano, o fornecimento por parte do Estado de serviços públicos, tais como água,
tantes de Pasárgada, pode ser interpretada como indicação de que nas atitudes esgotos, luz elétrica, pavimentação, é limitado a áreas cuja utilização tenha sido
destes para com o sistema jurídico nacional tudo se passa como se a legalidade aprovada nos termos da legislação em vigor". No que respeita ao comportamento 4--
da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais, mesmo da pohcía, foi possível, depois de algumas entrevistas com policiais trabalhando
sobre aquelas que nada têm a ver com a terra ou com a habitação. Tal seria o caso noutras favelas, confirmar a dísparidade entre o direito nos livros e o direito na
se, por exemplo, um conflito jurídico de índole estritamente pessoal não fosse prática. Indiferente ao disposto na lei, a polrcía tende a agir segundo o princípio
levado à atenção dos operadores do sistema jurídico nacional, pela suspeita das de que, uma vez que os favelados estão ilegalmente domiciliados, não têm razões
partes de que a ilegalidade do seu status residencial afetasse desfavoravelmente o para reclamar quando a polícia invade suas casas "no cumprimento do dever?". I
modo como o conflito seria processado pelos tribunais. Não tenho provas cabais A análise da expressão "nós éramos e somos ilegais" parece indicar que a <1-
do funcionamento deste mecanismo de feedback e julgo que seria muito difícil, idéia de uma capitis diminutio geral (de uma ilegalidade quase existencial) e a
senão impossível, obtê-Ias. Na verdade, apesar de a inacessibilidade dos tribunais prática social em que ela se espelhou e reforçou agiram como fatores bloqueantes
em relação aos conflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos
peculiares à luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de proprie-
dade e de posse, é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral em relação
impossível controlar completamente todas as restantes categorias (potenciais variáveís
aos problemas jurídicos das classes baixas residindo ou não em favelas e constitui,
independentes). Haveria assim sempre o risco de estas intervirem no processo causal (ou
por isso, uma das manifestações mais evidentes d~ natureza classista do aparelho simplesmente correlacional), oferecendo hipóteses alternativas de explicação. ,
jurídico do Estado numa sociedade capitalista" . S Nós estávamos a discutir situações em que o direito constante dos códigos e demais Iegis-
lações (a "law in books" da filosofia anglo-saxõnía de propen~~:-:-cioI6gica) não Ie coaduna
com o direito efetivamente aplicado e praticado (a "Iaw in a;;!:vil"). " 'o-

3 Sobre as razões econômicas e extra-econômids do uso diferenciado das instituições jurídicas 6 Isso não significa que o Estado tenha suprido todas as áreas urbanízadas com 05 ~.
segundo as classes sociais, razões essas que conferem o caráter de justiça de classe à justiça públicos referidos. Nem tão pouco sígnifíca que tais serviços tenham sido reC\lIado~. e,m
produzida pelo aparelho jurídico do Estado nas sociedades capitalistas, vide J. Carlin e J. absoluto às favelas. Por exemplo, ao tempo em que foi realizada a pesquisa de c31nPO
Howard, "Legal Representation and Class Justice", in V. Aubert, Sociology of Law, Lon- (verão de 1970), o então Estado da Guanabara iniciava a instalação da rede de áiuà 'em
dres, 1969 (1975), pp, 332-50. Pasárgada. Em verdade, os moradores da favela estão habituados a ver iniciado o forneci-
mento de serviços públicos em perfodos-pré-eleítorais (como era o caso em Pasárgada) para
4 A prova plena da existência do mecanismo de feedback exigiria, em obediência aos métodos ser ínterrornpidoou abandonado logo após as eleições. , c,i «',
de verificação sociológicos estabelecidos, que se tomassem dois grupos representativos 7 Em face das tensões entre a comunidade e a polícia, nunca contactei os policiais com base
das classes baixas brasileiras, homogêneos na totalidade das características consideradas operacional em Pasárgada. Qualquer contato com a polícia colocaria em perigo a continui-
importantes e apenas -:;:erindo quanto ao status residencial-tjendo um status residencial dade da minha pesquisa. Assim, e na medida em que a polícía faz parte da. "viu judlciala"
legal e o outro, ilegal). Seria então registrado, ao longo de uma seqüência temporal consi- ("Iaw-ways") de Pasárgada, a limitação óbvia da minha pesquisa consiste em apresentar o
derada razoável e por modo quantificado, o recurso aos tribunais em caso de conflitos ponto de vista da comunidade em relação à polícia sem o comparar com o ponto de vista
devidamente tipíficados. Ver-se-ia então se se verificavam diferenças significativas que da polícia em relação à comunidade. Essa limitação foi, contudo, conscientemente wuuúda
pudessem ser atribuíveis à variável independente adotada (a qualidade jurídica oficial do e aceita com base na ponderação relativa das limitações decorrentes das estratégias alter-
status residencial). Mas, mesmo recorrondo '.,.:",,:') este arsenal metodológico, seria sempre nativas de pesquisa. . ., '.'

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ilegalidade encontra-se precisado na expressão, também já mencionada, de (lüe zação Nestas condiçõt:$,o conflito atinge rapidamente urna íntensídade (f:--
"os tribunais têm que observar o código e pelo código nós não tínhamos nenhum extrema, pois que tende a generalizar-se atodas as relações sociaís entre íiS partes
direito". Juntamente com a anterior, esta citação ilustra bem a ambigüidade conflitantes, ínclusivamente àquelas não envolvidas inicialmente: no conflito.
profunda da consciência popular do direito nas sociedades caracterizadas por O conflito é entre dois poderes soberanos entre os quais nenhum poder mediador
grandes diferenças de classes'Ll'or um lado, a apreciação realista de que o direito pode interceder. É um conflito global e insolúvel. Cria-se, assim, uma situação de
do Estado é o que está nos códigos e de que nem estes nem os juizes, qu~~êm suspensão jurídica, ou melhor, de ajuridicidade cuja superação tende a ser deter-
por obrigação aplícã-lo, se preocupam com as exigências de justiça social~or minada pela violência. A privatização possessiva do direito constitui-se por uma
outro lado, o reconhecimento implícito da existência de um outro direito, para dialética entre a tolerância extrema e a violência próxima. É esta dialética que se
além dos códigos e muito mais justo que estes, à luz do qual são devidamente detecta em Pasárgada na fase da sua história que estivemos a analisar.
avaliadas as condições duríssimas em que as classes baixas são obrigadas a lutar
pelo direito à habitação.
Da discussão precedente conclui-se que, para além das razões diretamente Texto preparado pelo Autor com base em sua test,,~~'V'~outoramento apresentada à
econômicas, o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamento Universidade de Vale em 1973 sob o título Law Against Law: Legal Reasoning tn Pasar-
gada Law.
ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação de indisponibilidade
ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle
social. Esta situação poderia ter sido de algum modo neutralizada, se entretanto
se tivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos, informais e não-
-oficiais, capazes de articular e exercer Uma legalidade e uma jurisdição altemativas
para vigorar dentro da comunidade. Sucede, no entanto, que na fase da história
de Pasárgada que estarr os a analisar tais mecanismos nii:,-slÍrgiram e nem surpreende
que assim tenha sido. A existência de tais mecanismos pressupõe um índice bastante
elevado de organização comunitária, que obviamente não existia ao tempo. Mesmo
hoje, numa altura em que Pasãrgada» já uma velha e estável comunidade, a sua
organização é ainda baseada numa pJ~raljrl~~o de redes de ação social frouxamente
estruturadas. É de suspeitar que, quandó!'7; com\.~~!:Iê"~~' muito mais jovem e
ainda em processo de formação, a sua organização social fosse ainda mais precária
e totalmente desprovida de qualquer pólo centralizador.
A indisponibilida t: estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e con-
trole social e a ausência de mecanismos não-oficiais comunitários criaram uma
situação que designarei por privatização possessiva do direito. É uma situação
susceptível de ocorrer, por exemplo, ell? sociedades muito jovens constituídas
à margem de estatutos organizativos definidos, como é o caso da sociedade de
fronteira, ou em sociedades em fase de ruptura (devido a revolução, guerra, etc.)
e de desestruturação e reestruturação profundas. Esta situação caracteriza-se pela
apropriação individual da criação e aplicação das normas queregem potencialmente.
a conduta social. Cada unidade ,;.~'ilF1~·constitui-seem centro de produção de juridi-
cidade com uma vocação ·!Híversaliz<.:.te circunscrita à esfera dos interesses
econômicos ou outros dessa mesma unidade. Na medida em que a realização social
de tais interesses se processa harmoniosamente, isto é, sem ocorrência de conflitos
entre os vários centros individuais de juridicidade, a relação entre estes é de extrema
autonomia e tolerância recíprocas. No momento, porém, em que os conflitos
surgem, o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou normas jurídicas
isoladas, é antes entre duas ordens jurídicas, duas pretensões globais de juridicidade

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A MEMORIA
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da Telebrasília

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IVERSIDADE DE BRASILlA
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MINISTÉRIO DA JUSTiÇA
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Confronto
A suntuosa Brasília a esquálida Ceilândia
Contemplam-se. ~'.Jal delas falará
Primeiro? (.)uetem a dizer ou a esconder
Uma em face da outra? Que mágoas, que ressenti-
mentos
Prestes a saltar da goela coletiva
E não se exprimem? Por que Ceilândia fere
O majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
Ante a pobrezaexposta '~llS casebres
de Ceilândia, '
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
As g~~:~.;asóriações do gênio brasileiro.
Drummond'

Introdução

o presente
artigo buscará relatar a resistência firmada pelos mora-
dores do Acampamento da Telebrasília na defesa de sua moradia por
mim vivenciada a partir de 1997, como advogada daquela comunida-

1 CarJos Drummond de Andrade, Corpo, 48 edição, Record, 1984, p, 122,

--I
i ,. .- .,<,

78 O ~i~eit~-de morar e o~dir~-rto rmemó~~ ----------- -I,l~ Nishlei Vieira de Mello 79

de, por meio <Io: sua Associação de Moradores. O trabalho de defesa I .:


1\ luta pelo reconhecimento de ta's direitos, travada há mais de
do direito de morar, ali desenvolvido, encontra-se inserido no projeto 'I una década, ocorreu tanto no campo sociopolítico como no jurídico, o
"Núcleo de F ~ .ica Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cida- !11 que trouxe para os seus moradores ã necessidade de organização. Os ar-
dania", da Universidade de Brasflia (UnB), a qual em virtude da com- ,- gumentos técnico-jurídicos utilizados pelos órgãos governamentais,
plexidade do campo trabalhado, pretendeu desenvolvê-Ia a partir de que negavam a legalidade e a lP.,~itimidade de suas reivindicações,
uma propostj de trabalho de caráter interdisciplinar, Assim, às ativi- buscavam escamotear a luta social i ~Jizada por atores, localizados na base
dades por mim desenvolvidas, juntamente com dois estagiários de di-
reito, contaram ainda com a participação de duas estagiárias: uma, do ! da pirâmide social do país, na busca de afirmação de sua cidadania.

Serviço Social, outra, da Psicologia, cujas experiências se encontra

J
descritas nessa publicação. Um convênio firmado entre a UnB, o Mi- A construção de Brasília e a ausência de uma política habitacional
nistério da Justiça' e o Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
vimento (PNUD) assegurou a realização desse projeto, o qual veio O Acampamento da Telebrasília, assim como diversos outros
posteriormente a se ampliar. . acampamentos no Distrito Federal, foi criado, no final do ano de 1956
Vale lembrar que tais trabalhos se deram no sentido de promover . e início de 1957, para abrigar os operários empregados das empresas
que trabalhariam na construção da nova Capital. Os primeiros acam-
uma ampliação de esforços realizados anteriormente naquela comuni-
dade pelo Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP) e
pelo Departamento de Serviço Social da UnB. O Acampamento da
:1 pamentos foram montados com barracas de lona, com precárias condi-
ções de abastecimento de água e sem qualquer saneamento básico.
Telebrasília desde então já se apresentava como uma comunidade do- Em 1957, foram abertos diversos canteiros de obras para as ativi-
tada de organização própria, contando com uma Associação de Mora- dades de terraplenagem e fundações. Segundo Nair Heloísa Bicalho de
dores voltada à defesa dos interesses de sua coletividade, mais especi- Sonsa," se em novembro de 1956 o número de operários era de 232,
ficamente, do direito de morar e de ali permanecer, bem como do di- dois meses depois atingia 2.500, os quais enfrentavam jornadas de tra-
reito à memória. balho de 14 a 18 horas. Os "candangos", como eram chamados os
O texto resgatará a história do Acampamento da Telebrasília por operários da construção civil, eram anteriormente trabalhadores rurais
que vinham em busca de melhores oportunidades de vida e viam com
meio da crônica da construção de Brasília, já que, parafraseando o po-
a conquista do novo emprego, a possibilidade de ter um lugar onde
eta em epígrafe, são gêmeas as criações do gênio brasileiro. Assim,
morar.
por meio da exposição do tecido social da época, no Distrito Federal, e
da política habitacional adotada para atender os operários encarrega- Nas palavras de Nair Bicalho:
dos da construção da capital do país, teremos em mãos elementos su-
No ano de 1959, o território do Distrito Federal era formado por
ficientes para compreender a reivindicação dos moradores do Acam-
acampamentos (Central da Novacap, Candangolândia, Praça dos
pamento na busca da legitimidade de seu pertencimento à sociedade Três Poderes, Plano Piloto e outros), núcleos provisórios (Bananal e
de Brasília, enquanto se vêem como parte integrante do patrimônio Bandeirantes), núcleos estáveis (Planaltina, povoado de Taguatinga
histórico, social e espacial dessa cidade. e de Brazlândia) e a zona rural. As condições de vida dessa popula-
ção eram regradas pelo improviso e pela escassez. Eram predomi-
nantemente rústicos os domicílios da Candangolândia, Praça dos
2 A pareceria do projeto NlÍCk:O de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cida- Três Poderes, Bananal, Taguatinga e zona rural. As instalações dos
dania com o Ministério da Justiça deu-se por meio da Secretaria Nacional de Direitos Huma-
nos, inseri da na política do Programa Nacional de Direitos Humanos, preparado pelo governo
federal, tal como reCOJJD:adadopela Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em 3 Nair Heloísa Bicalho de Sousa, Construtores de Brasília - Estudo de operários e sua parti-
Viena, em 1993. cipação política.
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80 Õ dí~eit~de ~or.;re o direito à rnernóriá-


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moradores eram deficientes: o abastecimento de água com canali- Eram, quando da inauguração de Brasília, em abril de 1960 mais de
zação interna atingia apenas 22% dos domicílios, 42% deles não 65 mil trabalhadores. '
dispunham de instalação sanitária e 62% não eram servidos de ener-
O prob .~na ha?itacional do Distrito Federal teve início, portanto,
" gia elétrica (Censo Experimental de Brasília, 1959, 72-73). Sob condi-
ções tão adversas, sobreviviam as famílias operárias que, naquele mo- ant~~ mesn.o da mauguração de Brasília. A criação de cidades-
mento, constituíama maiorparte da populaçãobrasiliense," satel~tes, nesse momento, foi a opção feita pelo Estado diante do forte
movirnent. f ,Jela moradia por parte dos migrantes-trabalhadores e da
Nas mesmas condições e para os mesmos fins de todos os demais gra~de ma~sa. de desempregados e sem-teto que vieram para a nova
acampamentos, foi criado o Acampamento da Camargo Corrêa, hoje C:a~Ital, P' pCIpalmente em virtude da seca de 1958, no Nordeste bra-
conhecido como Acampamento da Telebrasília. A mudança de nome sileiro. Com efeito, nesse ano foi criada Taguatinga a primeira cida-
deveu-se à transferência de sua gestão a outra empresa, inicialmente de-satélite do Distrito Federal. . '
chamada Departamento Telefônico Urbano e Interurbano (DTUI), de- _ Brasília foi planejada para abrigar de 500 a 700 mil habitantes e
pois Companhia Telefônica de Brasília (Cotelb) e, por último, Com- em nen?um ~omento s~ cogitou a hipótese de os trabalhadores que ~
panhia Telefônica de Brasília (Telebrasília). Daí a origem do nome construíram VIrem a habitar o Plano Piloto. Mesmo estando vazia a ci-
desse acampamento, que foi sendo conhecido pelos quatro nomes das dade, os candangos foram colocados nas cidades-satélites. Nas pala-
empresas que o gerenciaram. Desde a sua criação, permaneceu no vras de Lúcio Costa,'
mesmo local: na Avenida das Nações, próximo à Quadra 815 Sul, às
margens do lago Paranoã que, à época, ainda não existia. O cf(~scimentoda cidade é que ocorreu de forma anômala. Houve
O projeto original de Brasília não previa qualquer espaço para que uma inversão que todos conhecem, porque o plano estabelecido era
(
seus construtores pudessem se instalar definitivamente no Distrito Fe- para ~ue Brasília se manti~esse ~el1trodos limites para os quais foi
deral com a inauguração da Capital. Em que pese, as autoridades de- \ pl~neJada,_de :00 a 700 mil habitantes. Ao aproximar-se desses li-
ram mostras de quererem aproveitar sucessivamente tal força de tra- \ rnítes, entao, e ~ue seriam planejadas as cidades-satélites, para que
balho no setor terciário e na agricultura, muito embora confiassem que II es~as se expandissem ordenadamente, racionalmente projetadas ar-
aproximadamente um terço dos operários retomariam à sua terra natal. - i q~lteton~camente definidas. Esse era o plano proposto. Mas oco~reu
a lD:e~sao, porqu~ a população a que nos referimos (os candangos)
A empresa responsável pela administração da construção da cidade, ,f
/ a~Ulficou, e surgiu ~ problema de onde localizá-Ia (...), Daí a cria-
Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), mantinha rígi-
dos controles sobre a admissão e o crescimento populacional nos
\1 çao dos nucleos penfencos, para transferir as populações, dando
terreno para que se instalassem de uma forma ou de outra. Como
acampamentos, a fim de que ao final das obras, antes da inauguração i conseqüência, os núcleos transformaram-se em verdadeiras cidades
da cidade, fossem removidos. Porém, os operários não só não retoma- ! as c~amadas cida~es-satélileS, que tomaram o lugar das cidades~
ram na proporção esperada, como a migração para Brasília teve conti- I satélItes,q~e dev~nam ocorrer. Assim, as cidades-satélites antecipa-
nuidade nos anos seguintes. Quer antes ou depois da inauguração ofi- ram-se a.clda~e inconclusa, cidade ainda arquipélago, como estava
cial da cidade, os trabalhadores que se dirigiam para Brasília traziam - agora Já mais adensada mas ainda não-concluída. A cidade ainda
suas famílias e, então, alugavam casas na "Cidade Livre" (atual Nú- está oca. Entretanto, dois terços da população de Brasília mora nes-
cleo Bandeirante) ou ocupavam áreas próximas a essa cidade, seja I sa periferia, o que foi, naturalmente, desvirtuamento.
pela escassez de habitação, seja pela falta de condições financeiras. ~

5Lúcio Costa, ~nsiderações em tomo do Plano Piloto de Brasflia, I Seminário de Estudos


4 Idem, p.38. Urbanos de Brasília, p. 26.

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Õ drreit~de morar e ~tajrélto i'memória Nishi'é'j Vi~irade Mello 83
---------------- ------

A falta de previsão de esj lço para a grande massa de trabalhado- . A organização dos moradores do Acampamento da Tü~~rasília
res, no plano original de Brasília, não apenas desmistifica a proposta para a defesa' da moradia e da memória,
"socialista" de seus idealizadores bem como explícita ulte :~,rmente o
espírito segregacionista das políticas adoradas. A cidade que nascera Diante de um contexto de erradicação de "favelas" do Plano Pi-
unitária na prancheta de seu criador, fraturou-se e pulverizou-se em loto e de periferização dos setores subalternos, os moradores do
inúmeras cidades-satélites e em "cidades dormitórios" q,~ se esten- Acampamento da Telebrasília organizaram-se em associação para a
dem além dos limites do Distrito Federal. :) defesa da moradia. A atuação dos moradores criou situações de dis-
Todavia, vários acampamentos não foram desfeitos eD~,1960, quer cussão, negociação e reconhecimento de novos direitos, uma vez que
pela falta de previsão de espaço, quer porque não seria politicamente não devidamente regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro.
Conveniente colocar todos os trabalhadores em um só local, carente de No caso, por novos direitos entendeu-se o direito de morar e o direito
infra-estrutura, quer porque havia muitas obras inconclusas quando da à memória.
inauguração de Brasília, sendo necessário, ainda, a mão-de-obra de [Criada em 1985, a Associação de Morador~s do Acampamento da
muitos desses trabalhadores, quer por outras razões que transcendem Telebrasília (AMA T), era inicialmente voltada ao atendimento assis-
os objetivos desse artigo. Permaneceram acampamentos como a Vila tencialista, como a distribuição de leite e o gerenciamento de uma cre-
Planalto, a Candangolândia, o Núcleo Bandeirante e o próprio Acam- che. Todavia, ela demonstrou-se um ator fundamental na resistência
pamento da Telebrasília, dentre outros. Nessa época, enquanto as au- dos moradores do Acampamento na medida em que o Governo do
toridades se esmeravam na tentativa de remover a Cidade Livre, não Distrito Federal começou 'a recrudescer suas ações para a retirada da-
foram despendidos grandes esforços para a retirada dos acampamentos queles moradores, pri?cipalmente. e~ 1?93 e 1994:)\gindo de tal
considerados pequenos, como foi o caso do Acampamento da Telebra- modo, o GDF desconsiderava a LeI Distrital 161/91, que determinava
sília. Além disso, como muitos acampamentos' se situavam em áreas a fixação do Acampamento no local onde está há mais de quarenta
que seriam inundadas pelo enchimento do lago Paranoá, o governo anos, bem como desrespeitava a decisão liminar concedida pelo juízo i/i
contava com essa "ajuda lacustre" para a remoção das aglomerações da Terceira Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, em outubro
urbanas indesejadas. O Acampamento da Telebrasília, ironicamente, de 1993, para a manutenção da posse em favor dos moradores do
não foi inundado e hoje encontra-se às margens do lago, fator inclusi- Acampamento.
ve de sua maior valorização imobiliária. Para a análise da atuação desses moradores, na demanda de novos
A partir de meados dos anos 1980, tiveram início as ações gover- direitos, o Direito busca recursos no referencial oferecido pelos estu-
namentais visando à remoção dos moradores do Acampamento da dos sociológicos sobre o papel dos movimentos sociais na "construção
Telebrasília, no âmbito de uma política de contenção do crescimento de uma democracia que se paute' pela conquista dos direitos de cida- /tr
populacional dos setores de baixa renda. Tal política culminou com a dania"," uma vez que os aspectos formais postos pelo direito positivo
construção de novas cidades-satélites para onde foram deslocados os não tendem a oferecer elementos para a solução de questões dessa
"favelados" que não se deixaram seduzir pelo lema do "retorno com natureza, dentro de certos horizontes democráticos. Como ensina Ro-
dignidade", num misto de conformismo e resistência que tanto carac- berto Lyra Filho:
teriza certos aspectos da cultura popular brasileira, conforme ilustrou
Marilena Chauí.6

7 Ana Arnélia da Silva, "Movimentos de moradia e políticas sociais: novas dimensões da in-
terlocução pública", Movimentos Sociais e Democracia no Brasil - "Sem a gente não tem
6 Marilena Chauf, Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular /10 Brasil. jeito.

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. . .:,. -Ó: i,·

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8'+ o direito de morar e o direito àmernórta Nishle: vieira de Mello 85

aplicando-se ao Direito uma abordagem sociológica será então pos- uma mudança nas atribuições dos estigmas sociais e políticos sobre
sível esquematizar os pontos de integraçãodo fenômeno jurídico na as classes populares brasileiras, que assinalou sua capacidade para
. ~ vida social, bem como perceber a sua peculiaridade distintiva, a sua gerar critér, t- de legitimidade política democrática. Neste país, eles
"essência" verdadeira. 8 eram "novo," em vários sentidos, sobretudo em sua demanda de di-
reitos, dignidade e cidadania.
Diante da diversidade de entendimentos que se tem dos novos •. - .f
mO'41mentos sociais, este artigo os considera a partir do enfoque pro- ~ O n:~viment(~[eal~a?o ~,elos mor~dores do Acampamento da
posto por Claus Offe, segundo o qual, a caracterizar tais movimentos Telêbrasília tem PSlr objetivo ô-reconhecimento de que possuem, tais
:.: estão a autonomia e a identidade, uma vez que tais movimentos deve- moradores, direitcs le morar num local mais central, dir-se-ia até mais
rão estar comprometidos com o reconhecimento coletivo de um direito bonito, construído desde o ano de 1956, bem como o direito à sua
que conduz à formação da identidade do grupo. memória histórica, que só pode ser preservada enquanto existir o gru-
. po naquele local. Resistiram contra a transferência de seus moradores
Esta identidade não se pode restringir à satisfação única e exclusiva para o chamado Bairro da Telebrasília, situado no Riacho Fundo a .
de um sujeito, ainda que coletivo. O valor eleito pelo movimento vinte quilômetros do Plano Piloto, desprovido, inclusive, de qualquer ;".
social deve permitir a sua inclusão dentro da sociedade contempo- oportunidade de emprego e distante dos já exercidos pelos moradores.
rânea, uma vez que o objetivo pleiteado existe, pelo menos formal- Com essa resistência, denunciaram a utilização da lei pelo Estado
mente. Procuram o apoio do resto da sociedade civil e, principal- como forma de opressão e discriminação. Nessas ocasiões o governo
mente, o seu reconhecimento e legitimação." apoiava-se argumentos legais e técnicos segundo os quais a terra onde
se situa o Acampamento é pública e, portanto, não poderá ter uso pri-
Os movimentos sociais que surgiram no Brasil na primeira metade
vado; que o tombamento do conjunto urbanístico de Brasília é ferido
dos anos 1970, segundo Maria Célia Paoli,1O tinham como principais
com a presença do Acampamento; que ele se situava numa Área de
atores os grupos de operários fabris ~ os de moradores de bairros que
Relevante Interesse Ecológico (ARIE) afrontando leis ambientais. Há,
se organizavam para tentar alterar a qualidade de vida que observavam
i~clusive, um parecer, o de número 33/89 - DRTA, da Companhia de
precária. A década seguinte viu a entrada no cenário de novos atores
Agua e Esgoto de Brasília (Caesb) que apresenta críticas à fixação do
por meio do movimento de mulheres, do movimento negro, do movi-
Acampamento, sob a alegação de que o assentamento de população de
mento social do campo e também do movimento indígena.
baixa renda às margens do lago imporia sérios riscos ambientais e de
Esses movimentos e suas reivindicações traziam conflitos e atores contaminação da bacia do Paranoá pela esquistossomose. O mesmo
que não só reinventavam formas e espaços de luta que abriam os parecer, entretanto, nada observou sobre as outras populações dos
horizontes de um regime democrático formal para além dele próprio bairros de classe média e alta que vivem às margens do Lago e que
como, além disso, eram feitos por atores historicamente deprecia- por muito tempo lançaram seus esgotos diretamente nele. ]
dos, os situados lá no fim das hierarquias sociais. Onde ficaram vi- Ocorre, entretanto, que o fato de estar o Acampamento -localizado
síveis (...) os movimentos sociais trouxeram, entre tantas coisas, em terras públicas em nada inviabilizària a sua permanência. Primeiro,
. porque todas as terras do Distrito Federal, em sua origem, eram públi- n
8 Lyra Filho, O que é direito, pp.71-72. caso Segundo, porque a Lei 161/91, reconhecendo o direito desses mo-
9 Márcia Henriques de Oliveira Ribeiro e Mathias Mailleux Sant' Ana, Relatório final do pro- radores de lá permanecerem, determinou a sua fixação. Terceiro, por-
jeto os novos movimentos sociais e o direito. Programa lnstitucional de Bolsas de Iniciação
. Científica, orientador: prof. José Geraldo de Sousa Júnior, Universidade de Brasília, (rni- que a Lei 8.666/93 (lei de licitações) prevê- em seu art. 17, inciso I,
meo.), 1995, p.36. alínea f, a possibilidade de dispensa de licitação para atendimento de
10 Maria Célia Paoli, "Movimentos Sociais no Brasil: em busca de um estatuto
vimentos Sociais e Democracia no Brasil- Sem a gente não tem jeito". p.29.
político, Mo-
I programas habitacionais de interesse social. .

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Quanto ao tombamento de Brasília, as autoridades viam-no ferido Também rio qi ; se refere ao direito à, memária os moradores do
com a presença do Acampamento já que localizado na chamada "es- Acampamento encontraram no Estado um diftcil interlocutor. Esse Iftl
cala bucólica", à~klargens do lago Paranoá, destinada à preservação ,;f oferecia não poucas resistências no reconheci r ~ nto como "memória
paisagística e ao .azer, uma das premissas básicas da concepção de - legítima" todo um patrimônio comum daquela comunidade dotada de
Lúcio Costa para a cidade. Todavia, as autoridades não consideravam uma certa história de luta como grupo, cuja pre"!ença viva na constru-
que, quando do t p .ibamento (14 de março de 1990), o Acampamento ção de Brasília, não só faz deles parte integranl §da história, da cidade,
existia havia 34 OJIOS e que tein ele o poder de preservar o que existe, como também lhes garante a faculdade de poder ter a sua piópría ver-
porém não tem 0~ condão de destruir, partes da cidade para preservar são sobre aquela história. ' ,;'
uma concepção oúgínal, já transformada pela ação social. E mais, que A política de preservação brasileira tem prrvilegiado a conserva-
o art. 12, da Portaria 314, de 8 de outubro de 1992, do Instituto Brasi- ção de monumentos que ratificam sobretudo a versão oficial da histó-
leiro do Patrimônio Cultural (IBPC), hoje, Instituto do Patrimônio ria nacional, sendo bastante restrito o conceito de preservação que in-
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), reconhece como "setores , clua e articule aspectos morfológicos e sociais de setores subalternos
institucionalizados' todas as partes da cidade de Brasília criadas pela da sociedade brasileira. O reconhecimento do direito à memória do
administração durante a implantação da cidade e "consagradas pelo Acampamento só seria possível numa concepção mais democrática de
uso popular". Ademais, no que diz respeito à proteção da Área de Re- política de patrimônio. Segundo Maria Clementina Cunha, "a memó-
levante Interesse Ecológico (ARIE) do Riacho Fundo, o estudo de im- ria, desempenha um papel crucial no interior dos mecanismos de po-
pacto ambiental demonstrou que o Acampamento não incide na área der, desenhando um canipo de disputas essencial às possibilidades
de preservação do Riacho Fundo e que, tomando as devidas precau- democrãticas"." O reconhecimento de tal direito abriria a possibilida-
ções, já que se situam às margens do lago, não precisariam ser remo- de de nossa sociedade vir a aceitar a interpretação e reinterpretação da
vidos. história fundada também em experiências populares e em depoimentos
O embate tornou-se mais árduo na medida em que a prática políti- orais desses moradores. Para Maria Célia Paoli: '
ca dos moradores do Acampamento não traduzia um discurso pautado
sobre o direito de propriedade, e sim sobre o direito de morar. Este esta refundação da história a partir de outras narrativas constituiria
o próprio ato de cidadania, tanto para os sujeitos nela envolvidos (o
último ainda não incórporado ao ordenamento jurídico brasileiro, não
memorialista e o historiador) quanto para toda a sociedade, à medi-
alcançava foros de legitimidade segundo a visão das autoridades go-
da que permitisse a transformação de sua cultura política.
vemarnentaisIocais da época. Ademais, no campo jurídico a contra-
posição entre princípios que estruturavam o direito de propriedade e Com efeito, segundo os técnicos do IPHAN, o Acampamento da Tele-
aqueles que fundamentavam o direito de morar implicava a disputa brasília não possuía elementos arquitetõnicos que justificassem a sua preser-
sobre quais setores sociais seriam titulares daqueles direitos. Por um vação e a sua remoção serviria para preservar intacta a "concepção urbanísti-
lado, no caso do direito de propriedade, a definição quanto aos seus ca de Brasília. 12 .

detentores passa pelo vínculo econômico, de modo que tem tal direito A reivindicação ao direito de morar da comunidade da Telebrasí-
quem pode assumi-Io em função de sua "melhor" posição sócio- lia insere-se a partir das lutas do cotidiano por melhores condições de
econômica e até mesmo política. No outro, o direito de morar procura
sua definição a partir de conceitos que transcendem os limites postos
pela tradição jurídica positivista, de modo que seus detentores são
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11 Maria Clementina Cunha, Patrimônio Histórico e Cidadania, apud, Maria Célia Paoli,
"Memória, cidadania popular, 'cultura popular", Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
prevalentemente aqueles ''historicamente depreciados, situados no fim Nacional, nQ 24, 1996, p.186.
12 Maria Célia Paoli, Memória, Cidadania Popular, Cultura Popular, Revista do Patrimônio
das hierarquias sociais", como dito por Maria Célia Paoli.
Histórico e Artístico Nacional, p.185.

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vida, saneamento básico, transportes, luz, água encanada, ernpr.tjos De t\lj('" modo, no caso específico do Acampamento da Telebrasí-
mais próximos aos locais de moradia, escolas para os filhos, e -ío en- lia, COfIl!:, já acenado anteriormente, existe a Lei 161/91 que reconhece
frentamento da desigualdades sociais, acirradas, não raro, pelas políti- o direito ~ Ia comunidade permanecer no local onde sempre esteve, de-
cas adotadas pelo Estado. Assim, o movimento social apresenta o di- terminando ao Governo do Distrito Federal as providências para a fi-
reito de morar "quase que como um contra-direito do direito de pro- xação cl~quelas famílias, tais como a elaboração de estudo de impacto
priedade", como observado por José Geraldo de Sousa J únior, 13 quan- ambíer.ã I e seu resnectivo relatório (Eia-Rima), e o estudo das famílias
do narra a resistência da "Vila do Areal", também no Distrito Federal, que lá ~e encontravàrn, devendo ser fixadas as que estivessem moran-
contra a sua retirada. Em tais circunstâncias, segundo ele, torna-se do no ,~campamento ao menos desde 1988, já estando quase concluí-
possível a análise do "pluralismo jurídico dentro do qual se infere a dos todos esses procedimentos. A promulgação dessa lei foi, de fato, o
formulação de outros direitos que não o direito estatal". Vale ressaltar reconhecimento do direito de morar dos habitantes do Acampamento
que segundo Boaventura de Sousa Santos: . da Telebrasília e, por conseguinte, garantiu-lhes também o direito à
memória.
Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo Contudo, nada autoriza a cultivar ilusões quanto à tranqüilidade
espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma or- de vida desses moradores. Sem dúvida, eles concluíram com êxito a
dem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamenta- primeira fase da luta pelo reconhecimento dos direitos de morar e de
ção econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a
memória. Hoje, depois de 42 anos de. existência e resistência e de 13
um período de ruptura social como, por exemplo, um período de
anos de organização na Associação de Moradores, o Acampamento da
transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso
de "Pasárgada", da conformação específica do conflito de classes Telebrasília encontra-se em fase final de fixação. Nos últimos quatros
numa área determinada da reprodução social - neste caso, a habita- anos, inclusive por intermédio de interlocução direta com as autorida-
çãO.14 des locais, a Associação conseguiu garantir a defesa de seus interes-
ses. Em 1997, o GDF entregou ao Ministério da Cultura documento
Nos dias de hoje encontram-se positiva das algumas das reivindi- em que não só reconhecia os direitos dos moradores do Acampamen-
cações dos movimentos populares com relação ao direito de morar, o to, mas também declarava ser de competência do Distrito Federal a re-
que não significa que não existam as dificuldades em garantir tais di- solução dos problemas habitacionais dessa unidade federativa. O Acam-
reitos. A Constituição brasileira de 1988 atribui como competência da pamento conta hoje com rede de luz, água e esgoto, captação de águas
União a instituição de diretrizes para o desenvolvimento urbano, in- pluviais e aguarda pela pavimentação de suas ruas. Desse modo, cada
clusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos - art. 21, morador receberá, inicialmente, título de cessão de uso, concedido
XX - e estabelece ser competência comum da União, dos Estados, do pelo governo, de cada lote ocupado. O projeto urbanístico, feito pelo
Distrito Federal e dos municípios a promoção de programas de cons- GDF e pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília,
trução de moradias e a melhoria das condições habitacionaís e de sa- prevê espaços destinados à creche, áreas de lazer, praça pública e es-
neamento básico":" art. 23, IX. Além disso, foi o direito de morar defi- cola.
nido como tal pelo Direito Internacional, na Conferência Habitat 11, Todavia, se por um lado, os moradores do Acampamento conse-
ocorrida em Istambul, da qual é signatário o Brasil. guiram finalmente obter uma fixação definitiva naquela área, por ou-
tro, é ainda polêmica a inserção desses moradores no espaço social e
simbólico do "Plano Piloto", cujos mOradores não raro dificilmente os
13 José Geraldo de Sousa Júnior, Fundamentação teórica ao direito de moradia, Revista Di-
reito e Avesso, p. 14.
14 Idem, pp. 15-16.

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aceitam como elementos imzgrantes "naturais" daquele universo espa- Bibliografia referenciada
cial. Como, aliás, observa Pierre Bourdieu: 15 _
, ANDRADE,Carlos Drummond. C01pO. São Paulo: Record, 1984.
BOURDIEU,Pierre. (Coord.) "Efeitos de Lugar", A miséria do mundo,
A estrutura do espaço social se manifesta, assim, nos contextos
mais diversos, sob a forma de oposições espaciais, o espaço habita- Petrópolis: Vozes, 1997.
do (ou apropriado) funcionando como uma espécie ( *,imbolização CHAuÍ, Marilena, Conformismo e resistência: aspectos da cultura po-
espontânea do espaço social. Não há espaço, em um~ sociedade h/I' pular no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
erarquizada, que não seja hierarquizado e que não ,à prima as hie~ COSTA, Lúcio. Considerações em torno do Plano Piloto de Brasília, I
rarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (nAis ou menos) Seminário de Estudos Urbanos de Brasília.
deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização CUNHA, Maria Clementina. "Patrimônio Histórico e Cidadania".
que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural
Apud. Maria Célia Paoli, Memória, cidadania popular, cultura po-
acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim,
pular, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nO 24,
parecer surgidos da natureza das coisas (basta pensar na idéia de
"fronteira natural") (grifos nossos). , 1996.
LYRAFILHO, Roberto. O que é direito. Brasiliense: São Paulo, 1986.
Assim; os moradores do Acampamento da Telebrasília seguem na
busca da defesa de seus direitos. E respondendo a indagação de
Drummond, esses moradores falaram primeiro. Só que, diferente-
I,. PAOLI, Maria Célia. "Movimentos sociais no Brasil: em busca de um
estatuto político". Movimentos sociais e democracia no Brasil -
Sem a gente não tem jeito. São Paulo: Marco Zero, Ildesfes, Labor,
mente de Ceilândia, o Acampamento da Telebrasília ocupa o espaço 1995.
originalmente destinado apenas à Brasília, ferindo, ainda mais "o ma-
jestoso orgulho da flórea Capital" que desde o início de sua constru-
I Memória, cidadania popular, cultura popular. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N 24, 1996.
ção reservou aos setores subalternos a sua periferia. Da "goela" coleti- II RIBEIRO,Márcia Henriques de Oliveira e SANT'ANA, Mathias Mailleux.
va saltaram as reivindicações pela garantia de seus direitos, alguns já I Relatório final do projeto os novos movimentos sociais e o direito,
conquistados, outras, ainda a serem descobertos e reivindicados _na ! Programa lnstitucional de Bolsas de Iniciação Científica, orienta-
luta política e social que se travará na garantia desse espaço. E lem- dor: praf. José Geraldo de Sousa Júnior, Universidade de Brasília,
brando Roberto Lyra Filho, aí está a essência do Direito, que (mimeo.), 1995.
SILVA, Ana Amélia da. "Movimentos de moradia e políticas sociais:
é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, per- novas dimensões da interlocução pública". Movimentos sociais e
feita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos i democracia no Brasil - "sem a gente não tem jeito ", São Paulo:
i
de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas Marco Zero, Ildesfes, Labor, 1995.
explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias SbUSA JÚNIOR,José Geraldo de, Fundamentação Teórica ao Direito de
contradições brotarão novas conquistas. 16 Moradia. Revista Direito e Avesso, n~ 2. Brasília: Editora Nair Ltda,

I 1982.
SOUSA,Nair Heloísa Bicalho de. Construtores de Brasília - Estudo de
I operários e sua participação política. Petrópolis: Vozes, 1983.

rs Pierre Bourdieu, "Efeitos de Lugar", A miséria do mundo, p. 160.


16 Roberto Lyra Filho. op. cito p. 121.

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