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TERCEIRA PARTE
VII
O ABOLICIONISMO
originários de povos que se somaram a esse encontro étnico de mão-de-obra das fazendas brasileiras, representava uma
brasileiro. Não somos, de modo algum, a única sociedade que atividade bastante lucrativa. Estima-se que um negro comprado na
vivenciou encontros étnicos. Deu-se, porém, no Brasil, a África poderia ser vendido por um valor vinte vezes maior.
singularidade cultural de um grande encontro, representativo da Ao longo do século XIX, no entanto, diversos fatores
maior parte das variações de etnias, sob o domínio de um convergiram para que a escravidão fosse contestada e
colonizador que vivenciava quase que livremente a miscigenação, formalmente extinta. Curiosamente, o processo de abolição finda
pois os mestiços brasileiros somos resultado de todos os por confundir-se com a história do Império, acompanhando e
cruzamentos étnicos possíveis. O esforço de alguns estudiosos contribuindo para sua crise e derrocada.
do primeiro quartel do século XX nunca permitiu apontar o O Império do Brasil nasce à sombra de um outro império:
“brasileiro puro”. Somos muito mais a pátria dos mestiços que o Inglês. O reconhecimento da independência brasileira pela
outras ex-colônias, principalmente inglesas. Inglaterra se deu às custas de tratados comerciais que
Mesmo assim, quase quatro séculos de escravidão haviam estipulavam o fim do tráfico de escravos, que, desde 1807, já
habituado principalmente os senhores das terras produtivas a havia sido proibido nas colônias britânicas. A Inglaterra se
uma mão-de-obra de baixo custo e capaz de muito trabalho no consolidava, então, como grande potência industrial, interessada
eito. Além disso, a elite local encarava com naturalidade a na ampliação de seus mercados, vendo no Brasil um aliado de
revolucionários é que o tema vinha fortemente à tona. Foi contra O tratado assinado em 1826, segundo o qual o tráfico
essa profunda tradição escravocrata que se ergueram os deveria ser abolido três anos após sua ratificação, deu origem,
abolicionistas do Oitocentos. E Pernambuco, com sua tradição em 1831, à primeira lei antitráfico no Brasil, que, não tendo
libertária, esteve no centro da cena. funcionado na prática, acabou sendo, na expressão idiomática
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que sobreviveu até os nossos dias, apenas “para inglês ver”. As Ao mesmo tempo, os cafeicultores estavam divididos no
pressões inglesas se intensificaram a partir de 1839, quando a que dizia respeito à escravidão. No Vale do Paraíba, prevaleciam
costa brasileira passou a ser patrulhada, e navios negreiros, a produção tradicional e o trabalho escravo, enquanto que, no
apreendidos ou afundados pela marinha britânica. O fim do oeste paulista, em função dos maiores lucros auferidos,
tráfico é finalmente instituído em 4 de setembro de 1850 — fomentava-se a mecanização e o trabalho livre, atraindo a mão-
passo decisivo para a crise do escravismo no Brasil. de-obra imigrante. O escravismo sucumbia ante um processo de
racionalização da produção orientado pela redução dos custos
A abolição da escravidão encontrou, no entanto, muitas
com a mão-de-obra empregada, tendo em vista o aumento da
resistências. Para a maioria dos grandes produtores, tal decreto
produtividade e dos lucros. A manutenção do braço escravo, em
representaria nada menos que o “suicídio econômico do Império”.
contrapartida, demonstrava-se onerosa e era incapaz de competir
A manutenção da mão-de-obra escrava era encarada como um
com a velocidade das máquinas.
“mal necessário”, sem o qual a empresa agroexportadora não
seria possível. Além disso, imaginava-se que a abolição conduziria
ao caos social; que os negros escravizados, uma vez livres, PERNAMBUCO E O ABOLICIONISMO
reagiriam com violência a seus antigos senhores. Havia medo de
insurreição dos libertos. Prevalecia, contudo, o zelo pelo direito à
propriedade — conceito no qual os escravos estavam incluídos—,
O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravatura.
O tráfico de negros foi abolido em 1850, mas o contrabando
subexistiu, pelo menos até 1855, no litoral sul de Pernambuco,
tornando a abolição sinônimo de “prejuízo”. É justamente nesse
na famosa Porto de “Galinhas”, cujo nome referia-se à chegada
ponto que o liberalismo brasileiro, inclusive aquele que inspirou
de escravos, codificados como “galinhas”.
a maioria dos movimentos “libertários” do século XIX, encontra
No Recife, acostumado à ebulição dos movimentos
seu limite e revela sua face contraditória.
revolucionários que tomavam suas ruas até alguns anos antes e
Tais ressalvas e temores favoreceram a tese de uma abolição ainda marcado pelas idéias libertárias inspiradoras e decorrentes
“lenta, segura e gradual”, cujo impacto econômico deveria ser das revoluções que sediou, propagaram-se com certa facilidade e
atenuado por indenizações pagas aos proprietários. As políticas vigor as idéias abolicionistas pelas vozes de Castro Alves, que
públicas que concederam a liberdade aos filhos de escravos (Lei do veio estudar Direito no Recife, José Mariano Carneiro da Cunha,
Ventre Livre, 1871) e aos escravos maiores de sessenta anos (Lei dos Joaquim Nabuco, Maciel Pinheiro, Afonso Olindense, Guedes
Sexagenários, 1885) seguiram, em larga medida, essa orientação, e Alcoforado, Martins Júnior e outros intelectuais e políticos da época.
não produziram grandes mudanças na ordem escravista. José Mariano, tribuno de grande popularidade, junto com
Outro elemento que concorreu para a crise do escravismo foi sua esposa, D. Olegarinha (de quem se diz ter vendido todas as
a expansão da cultura do café no Vale do Paraíba e no oeste paulista, jóias para comprar escravos e libertá-los), e amigos, fundou o
inversamente proporcional à queda da produção de açúcar nas Clube do Cupim, destinado à propagação das idéias abolicionistas
chamadas Capitanias do Norte. A demanda por mão-de-obra nos e a dar guarida e posterior transporte para o Ceará aos escravos
cafezais, quando o tráfico negreiro não era mais permitido, foragidos. Os escravos eram embarcados no Poço da Panela,
fomentou o comércio interno, deslocando para as plantações de numa atividade flagrantemente ilegal e arriscada.
café os escravos das antigas fazendas de cana-de-açúcar.
Museu da Abolição, no
bairro da Madalena, início
da Avenida Caxangá, antiga
casa-grande do Engenho
Madalena e posterior
residência do conselheiro
João Alfredo.
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REPERCUSSÕES NA ECONOMIA escravos, não se podia querer implantar a até então estranha
ideologia de “crescer pelo trabalho” de uma hora para outra.
Há, porém, um fator cultural a ser levado em conta. É um fator
nos séculos XVI a XVIII. João de André Antonil, o cronista maior No final do século XVIII, o açúcar teve revalorização no mercado
daqueles tempos, nos deixou dados interessantíssimos que internacional. As lutas coloniais em torno da Revolução Francesa
explicam a produção e a produtividade de um bangüê (Maranhão, quebraram a produção antilhana (Pinto, 1982 IN: Mota, 1982). Na
2003, p. 142): Bolsa de Amsterdã, o valor do produto, mesmo com altos e baixos,
subiu 145,4% entre 1790 e 1799 (Pinto, 1982 IN: Mota, 1982).