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CIÊNCIA, CULTURA E DESENVOLVIMENTO

Diversidade
e inclusão

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SUMÁRIO

Este é o oitavo de uma série de


10 fascículos temáticos que
compõem o livro FAPESP 60 anos:
A violência nossa de cada dia 2
Ciência, cultura e desenvolvimento, [ARTIGO]  Eunice Prudente
em comemoração ao aniversário de
seis décadas da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de
O impacto das cotas 6
São Paulo. Para ver o conteúdo
completo do projeto, aponte a câmera na universidade pública
do seu celular para o Código QR
abaixo, ou acesse diretamente
60anos.fapesp.br/livro Pesquisa e inclusão de 24
povos indígenas
[ARTIGO]  Gersem Baniwa

Um levante científico 28
contra a desigualdade de gênero

Saberes antigos, novos protagonistas 43

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A VIOLÊNCIA meio ambiente, também rico, contém todos os ecossistemas
conhecidos. Mas onde erramos?
NOSSA Nossa convivência não vai bem. Há mais de quinhentos

DE CADA DIA anos, os europeus tomaram posse das Américas, aniquilan-


do civi­lizações. Séculos XVI a XIX, momentos importantes
para o sistema socioeconômico, capitalismo que, de fases
Eunice Aparecida de Jesus Prudente | Professora sênior da Faculdade mercantis, alcança a industrialização com custos sociais
de Direito da USP que são sentidos até hoje, remanescentes da escravização
de africanos e ameríndios. Nem é preciso pensar no inte-
ressante instituto jurídico da escravidão do mundo antigo;
trata-se, neste momento histórico, da escravização de pes-
soas e descendentes, considerados pelos direitos vigentes
como bens de produção, animais úteis. É a desumanização
apoiada no epistemicídio, em apagamentos, negações de

I mpressionam os níveis de violência no Brasil e,


sobretudo, as colocações brasileiras nos rankings
valores, saberes, experiências históricas. Pensemos juntos
na submissão de milhares de seres racionais, espirituali-
de violência. A crise pandêmica, exigindo distan- zados, detentores de culturas milenares. A submissão, as
ciamento e permanência em família, fez aflorar a torturas e os sofrimentos foram descritos por literatos e
vitimização de crianças e mulheres, com os casos de violên- artistas. Acrescentem-se aos sofrimen­tos a proibição e os
cia doméstica e em família, além das formas discriminatórias entraves legais para a formação do núcleo social básico, uma
no mercado de trabalho, desempregando principalmente o família, por exemplo.
negro. O aumento de famílias em estado de miserabilidade Findada a escravização no Brasil, a nova política de em-
vem atingindo principalmente aquelas sustentadas por mu- branquecimento, sem providências inclusivas para o negro
lheres, com destaque para as provedoras familiares negras. brasileiro, volta-se para a imigração de famílias trabalha-
Estudos interseccionais, fundamentados em marcadores doras europeias. O sistema econômico está em outros pata-
CECILIA BASTOS / USP IMAGENS

de gênero, etnia e desigualdade socioeconômica, apontam mares. Potências europeias, as primeiras a alcançar a indus-
para um Brasil repleto de violências. Integramos uma socie- trialização, como Inglaterra, Suíça, Holanda, Bélgica, hoje
dade pluriétnica, em um ambiente também diversificado, integrando o primeiro mundo, formaram seus tesouros e
com cultura rica e raízes em todos os povos do mundo. Nosso forjaram tecnologias escravizando pessoas.

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Todavia, é perceptível ainda a imposição de papéis so- segurança que exigem constantemente identificação das
ciais do século XIX, como a do homem branco educado, for- pessoas negras, inclusive documentos que comprovem con-
mado para assumir o poder do grupo familiar e demais insti- trato de trabalho em tempos de desemprego em massa. É o
tuições. A invisibilidade da mulher nas funções de poder da racismo estrutural, com práticas violentas que permeiam
socie­dade ainda é fato. Cobra-se das poucas que as exercem nossa convivência. Não havendo um grupo social homogê-
comportamentos machistas, ou seja, práticas discrimina­ neo, pelas vias da interseccionalidade, com informes e dados,
tórias. Mas há assimetrias entre ser mulher branca ou negra desnudam-se realidades complexas.
no Brasil. São os tais papéis sociais injustos e ainda presen- Fundamental, portanto, uma política de dados abertos,
tes. A mulher branca merecerá educação e cuidados; afinal, em que instituições oficiais possam disponibilizar seus da-
gerará os futuros cidadãos, expressará valores familiares dos, permitindo à sociedade civil manipular, processar e
etc. Proteção esta que, muitas vezes, revela formas de vio- criar informações de interesse público, capazes de impactar
lência simbólica: mulher, ser frágil, protegido, incapaz de políticas públicas. O estado democrático de direito proposto
decisões, seu homem decidirá por ela. Homem negro, com na atual Constituição Federal encontra-se em construção;
representação midiática de ser violento, perigosíssimo ou portanto, são fundamentais as ações e as contribuições de
submisso, nunca expressado como ser humano normal. entidades científicas e de apoio à ciência e à cultura, como
A mulher negra, representada também como ser humano a FAPESP, que, analisando as questões sociais, exijam trans-
diferente, portador de sexualidade exacerbada, numa ima- parência na atuação pública e proponham políticas públicas
gem ainda marcada pela escravização, um objeto sexual aos governos.  ——
de seus senhores. À mulher negra são negados os cuidados
saudáveis da maternidade, como se seus descendentes não
fossem humanos. Há uma simbiose entre práticas violen-
tas, sexistas e racistas, além do conformismo com a miséria
em plena república capitalista industrializada, importante
produtora de bens agrícolas.
O movimento negro, integrado por intelectuais ativis-
tas, exige que seja a causa dos negros colocada nas pautas
políticas do governo brasileiro, inclusive na pauta das rela-
ções internacionais. Ser negro no Brasil é ter cidadania sob
suspeita, desde o direito de ir e vir até o direito ao trabalho.
Se no passado eram os seus senhores, hoje são os órgãos de

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Estudantes curtem o show do DJ KL Jay, do grupo Racionais MCs, A Uerj, 14 anos antes, juntara forças e implantara as cotas
na Virada Pró-Cotas da USP, em junho de 2016

O IMPACTO
lvo das reformas estruturais dos anos 1960

DAS COTAS NA A e 1970, destinadas à formação de uma classe


média inteligente que compusesse as novas
elites intelectuais e profissionais, sem as quais
MARCOS SANTOS / USP IMAGENS E ARQUIVO UERJ

UNIVERSIDADE seria inviável qualquer plano de desenvolvi-


mento do país, a universidade brasileira era, entretanto, no

PÚBLICA fim do século XX, um espaço majoritariamente ocupado por


moças e rapazes brancos. Ou seja, um gigantesco abismo
permanecia entre a composição demográfica da popula-
ção e sua representação na universidade, denunciando a

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escassa democracia nas vias de acesso a esse lugar especial. Retratos gráficos do Brasil
Assim, entre os 2 milhões de estudantes de graduação que Antes da lei de cotas: evolução do quadro de estudantes de graduação e
formados na faixa de 18 a 24 anos em 1997-2011
o país registrava em 1997, 60% deles concentrados na faixa
etária de 18 a 24 anos, mais os milhares de formados nessa 1997 2004 2011

mesma faixa, equivalendo juntos a modestos 7,2% desses 20,1 22,1 23,9
17,3 17,6
jovens, estavam apenas 4% dos jovens negros brasileiros 11,9 11,9
15,4 14,0
12,1
9,3 9,1
e, mais especificamente, 1,8% dos jovens pretos e 2,2% dos 6,3 6,4 7,3 7,1
3,6 3,4
pardos, ante 11,4% dos jovens brancos. São dados oficiais do
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil
Ministério da Educação.
Duas décadas mais tarde, em 2018, pelo menos nas insti­
Renda domiciliar Gênero
tuições públicas de ensino superior, mais da metade da po- Per capita 47,1
41,6 20,5
pulação estudantil na graduação era composta por pessoas 13,9 14,6
22,9
pretas e pardas. Haviam atingido 50,3% desse universo, de 7,9
10,3
6,2
acordo com estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e 0,5 0,6 4,2

Estatística (IBGE), aproximando-se, finalmente, de sua par- 20% de menor renda 20% de maior renda Feminino Masculino
ticipação efetiva na população, isto é, 55,8% dos brasileiros.
Faltam ainda dados seguros da atual distribuição étnica no Cor
25,6
universo total de 8,5 milhões de estudantes de graduação 18,7
registrados no Censo da Educação Superior de 2019 (MEC/ 11,4 8,8
11,0
5,0 5,6
Inep), dos quais 2 milhões ligados às instituições públicas e 1,8 2,2
6,5 milhões às universidades e faculdades privadas. Brancos Pretos Pardos
Por trás dessa profunda reviravolta, cujas repercussões NOTA: EXCLUSIVE A POPULAÇÃO RURAL DE RO, AC, AM, RR, PA E AP EM 1997

a própria universidade tem se empenhado em entender e FONTE: PNAD/IBGE

explicar com suas ferramentas de pesquisa científica, está


um intenso trabalho político de múltiplos agentes, desdobra- afirmativas entraram com força na pauta da política insti-
do em variadas instâncias. E, de modo particular, estão em tucional do país, e é desse momento um importante ponto
sua base as chamadas ações afirmativas, políticas públicas de partida para a legislação que iria dar suporte à mudança,
estruturadas para reverter um quadro de desigualdades his- o Projeto de Lei no 73, de autoria da deputada maranhense
tóricas, montado sobre um intrincado complexo de fatores, Nice Lobão, filiada ao então PFL (depois DEM e, hoje, parte
no qual a longa escravidão é o solo base. Em 1999, essas ações do União Brasil, formado com o PSL).

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A questão racial, na verdade, não é abordada nesse projeto. Avanço das cotas nas instituições paulistas
Seu foco é outro, ainda que, se aprovado, pudesse beneficiar de Ingresso de estudantes pretos, pardos e indígenas cresce em ritmos distintos
forma indireta e parcialmente a população negra. Como dito Em % USP Unicamp Unesp
nas primeiras linhas do texto de 2005 do relator, o depu­tado 37,2
33,5
mato-grossense Carlos Abicalil, do PT, o Projeto de Lei nº 73/99 31,5

propôs que as universidades públicas reservassem 50% de suas 23,9


19,2 21,1
18,5
22,8
16,8 17,6 17,7 17,7
vagas “para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos
cursos de ensino médio, tendo como base o Coeficiente de Ren-
dimento — CR, obtido através de média aritmética das notas
2018 2019 2020 2021
ou menções obtidas no período, considerando-se o curriculum FONTES: JORNAL DA USP (28/5/21, POR ADRIANA CRUZ); COMVEST (ACESSADO EM 7/2/22); EDUARDO GALHARDO, PROGRAD/

comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação e do VUNESP/COPE-UNESP


OBS: NO CASO DA USP, ESTE GRÁFICO CONTABILIZA PPIS A PARTIR DA PORCENTAGEM INFORMADA DA COTA EP

Desporto”. Faculta também a adoção do mesmo procedimen-


to às instituições privadas. Ou seja, seu alvo era o sistema de em escolas públicas, e de incorporar a proposta original de
ingresso na universidade, conforme explicita o relator: “o PL Lobão no artigo 2º, já estabelecia em seu artigo 3º que “as
nº 73/99 propunha novo mecanismo de seleção de estudantes vagas de que trata o art. 1º serão preenchidas, por curso e
para ingresso no ensino superior, alternativo ao vestibular”. turno, por autodeclarados negros e indígenas, no mínimo
A essa altura, contudo, o debate parlamentar já se enri- igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na população
quecera enormemente com as contribuições e pressões do da unidade da Federação onde está instalada a instituição,
movimento negro, de outros movimentos sociais ligados segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de
aos direitos das minorias, de reitores e organizações de pro- Geografia e Estatística — IBGE”.
fessores das instituições públicas e de entidades estudantis. O debate seguiria em frente e só em 2008 o projeto encon-
O próprio material legislativo fora muito enriquecido com as traria uma redação definitiva. Em agosto de 2012, finalmente,
proposições de outros projetos de lei visando diretamente à a Lei Federal nº 12.711 foi sancionada pela presidente Dilma
reserva de vagas para egressos das escolas públicas, pessoas Rousseff, com os artigos 1º e 3º em redação idêntica ao que
negras e indígenas, que foram sendo apensados ou retirados já estava proposto no substitutivo de 2005. Vale notar, pri-
ao longo do processo, num redesenho contínuo da proposta. meiro, que, aos grupos originalmente citados, acresceu-se o
Dessa forma, o substitutivo do relator, a par de estabelecer em de “pessoas com deficiência” na nova redação dada ao artigo
seu artigo 1º, como propunha o Executivo federal, a reserva 3º em 2016 pela Lei nº 13.409. E, em segundo lugar, que a
de 50% das vagas nas instituições públicas federais para es- Lei nº 12.711 volta a ser discutida agora por dispositivo con-
tudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio tido nela mesma, que estabeleceu, no artigo 7º, o prazo de

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10 anos para “a revisão do programa especial para o acesso O estudo dirigia-se a “um mapeamento da discussão de
às instituições de educação superior de estudantes pretos, propostas de ações afirmativas voltadas para a população
pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado negra no Brasil”, partindo do pressuposto de que, embora
integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Em 2016 incipiente, o debate já suscitava “diversas polêmicas”. No
incluiu-se aí também “pessoas com deficiência”. resumo da pesquisa, a então mestranda Moehlecke e desde
2006 professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pesquisas à frente do tempo (UFRJ), observava que “a informação corrente no país traz
Quando a lei federal das cotas entrou em vigor, várias insti- como principal referência a experiência norte-americana,
tuições públicas tinham adotado modelos afins ao que ela hoje com quase 40 anos, e identifica as ações, fundamen-
propunha, por iniciativa própria ou por determinação de talmente, com o sistema de cotas, como é o caso de alguns
legislações locais. E uma vez sancionada, a lei tanto incen- projetos de lei que visam à melhoria do acesso da popula-
tivou a adoção crescente do sistema por novas instituições ção negra ao ensino superior”. Defendia a necessidade de
estaduais e municipais quanto, numa outra ponta, estimu- um debate mais detalhado, acrescentando que “através da
lou uma série de pesquisas que iriam investigar os efeitos análise do processo de denúncia, reconhecimento e, princi-
de uma política pública cuja proposição levantava enormes palmente, das formas de combate ao racismo, observa-se que
resis­tências no ambiente acadêmico. E, contra ou a favor, as particularidades da realidade social, política, econômica
o que mais se desejava investigar eram indicadores de de- e racial brasileiras são apreendidas na formulação de ações
sempenho dos estudantes que passavam a alcançar a uni- afirmativas que vão assumindo significados específicos”.
versidade via cotas sociais e raciais. Desenvolvida entre 2007 e 2009, uma outra pesquisa de
A rigor, entretanto, há estudos sobre as cotas que antecede- mestrado apoiada com bolsa da FAPESP foi “Raça e Estado
ram de longe esse florescimento de pesquisas pós-Lei nº 12.711, Democrático: o debate sociojurídico acerca das políticas de
inclusive em estados que postergaram por alguns anos a ado- ação afirmativa no Brasil”, de Priscila Martins de Medeiros,
ção de um sistema similar ao federal em instituições estaduais. orientada pelo sociólogo Valter Roberto Silvério, professor
Veja-se o caso de São Paulo: já em junho de1998 e até fevereiro na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), dedicado
de 2000, a FAPESP apoiou com uma bolsa a pesquisa de mes- em estudos pós-coloniais e relações raciais. Medeiros, que
trado de Sabrina Moehlecke, “Políticas de ação afirmativa hoje, além de professora, é coordenadora da pós-graduação
no Brasil: cotas para negros na universidade”, orientada por em sociologia no Centro de Educação e Ciências Humanas
Romualdo Luiz Portela de Oliveira, professor da Faculdade de (CECH) da UFSCar, estava empenhada no “mapeamento
Educação da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador das repercussões das ações afirmativas no campo jurídi-
reconhecido nos temas de políticas educacionais. co brasileiro, desde a criação da Lei Orgânica do Ministério

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Público (em 1985)”, para o que precisava identificar “o po-
sicionamento e os preceitos do Poder Judiciário quanto às
minorias na sociedade normativa” e as mudanças ocorridas
nesse âmbito dentro do Estado democrático.
A pesquisa partia do pressuposto de que havia uma
mudança de paradigma do Estado para observar quais “as
perspectivas e as representações de sociedade presentes nos
discursos acerca das Ações Afirmativas”. Entendia o pertenci-
mento racial como “um determinante muito significativo na
estruturação das desigualdades socioeconômicas no Brasil”,
tese aos poucos “reconhecida pela sociedade civil, pelos aca-
dêmicos e pelo Estado” e objeto de um debate mais intenso
com a aprovação da política de cotas raciais em algumas
Em maio de 2017, a Unicamp aprovou a proposta de adoção de cotas étnico-
universidades públicas. “Essas medidas deram início a uma -raciais em substituição ao sistema de bonificação por pontos no vestibular

verdadeira disputa jurídica entre o Estado, as instituições


de ensino superior e os indivíduos que se sentiram lesados
por tais políticas, o que significa um importante momento sua tese, aprovada em 2016, que “os estudantes empregam
de revisão dos princípios democrático-liberais e de reflexão estratégias criativas para subverter as relações de poder e a
sobre os direitos individuais e os mecanismos de justiça so- colonialidade do saber”. Propõe que trabalhos de conclusão
cial utilizados no país”, observava ela. de curso na graduação (TCC) “visibilizam demandas e inda-
Entre os estudos apoiados pela FAPESP, vale referência gações que são motivadas pelas experiências de seus grupos
também à pesquisa de doutorado de Luanda Rejane Soares de origem e, com isso, retratam processos de lutas para do-
Sito, iniciada em 2012, “Políticas de escritas afirmativas: es- minar ou transformar as práticas institucionais da univer-
tudo sobre as estratégias de estudantes cotistas para lidar sidade (seja nos modos de fazer ou nos modos de dizer)”.
com as práticas de letramento acadêmicas”, orientada por E nas trajetórias dos estudantes sobre as quais se debruçou,
Angela Del Carmen Bustos Romero de Kleiman, professora ela encontra a confirmação de que, além de interpelar as
ANTONINHO PERRI /SEC UNICAMP

do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade políticas afirmativas, os universitários também “apontam
Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente professora novos horizontes para a criação de diálogos mais simétri-
na Faculdade de Educação da Universidade de Antioquia cos na produção de conhecimento, por meio de estratégias
(UdeA), Colômbia, Soares Sito inclui entre as conclusões de como a autoetnografia, transculturação, crítica, colaboração,

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mas o problema era a execução”, relata. O argumento que en-
A POLÍTICA DE COTAS tão se apresentava como o mais racional, lembra, “era: ‘isso
TERÁ GRANDE REFLEXO não deve ser feito assim de uma maneira forçada, precisamos
EM TODAS AS POSIÇÕES incluir e melhorar muito a qualidade do ensino básico, de
tal maneira que todos competirão de maneira igual e, final-
QUE SÃO DEPENDENTES
mente, a sociedade estará representada na universidade’”.
DA QUALIFICAÇÃO Ora, pondera ele, “pode até parecer que faz sentido, desde
TÉCNICA E CIENTÍFICA que você tenha mais cem anos para realizar esse objetivo”.
Ex-presidente do CNPq, o Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecnológico (2007-2010), Zago ressalta
que, sem uma intervenção no topo, “naquele segmento do
bilinguismo, mediação, denúncia, expressões vernáculas, ensino que é o mais diferenciado, onde estão as pessoas que
propostas alternativas e reconstrução de imaginário”. serão lideranças e vão conduzir o processo, não se potencia-
O volume de estudos apoiados pela FAPESP nesse cam- liza a intervenção mais ampla pela inclusão”.
po vem crescendo, e seu presidente, Marco Antonio Zago,
diz não ter nenhuma dúvida de que, dentro de algum tem- Marcha lenta na ação política
po, a política de cotas terá um reflexo muito grande em Se na pesquisa do tema as instituições paulistas não têm
todas as posições que são dependentes da qualificação demoras a lamentar, na implantação das ações afirmativas
técnica e científica. “Não estou falando de um tempo geo- elas foram lentas, e as primeiras iniciativas passam ao largo
lógico, de esperarmos um século pela mudança”, enfatiza. de seu território. O pioneirismo é da Universidade do Es­tado
Zago era o reitor da USP entre 2014 e 2018, quando a re- da Bahia (Uneb), que aprovou o sistema de cotas para a gra-
serva de vagas por critérios sociais e raciais foi implantada duação e a pós-graduação em julho de 2002. Seguiram-na
nessa que é a maior instituição de ensino superior público a do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autora do primeiro ves-
do país, e, atento aos processos de inclusão em curso nas tibular com ações afirmativas, no começo de 2003; a Uni-
universidades e institutos de pesquisa paulistas, observa versidade de Brasília (UnB), com seu Plano de Metas para
uma mudança significativa do olhar em relação às cotas Integração Social, Étnica e Racial, que em junho de 2003
nos últimos anos. destinou a candidatos negros, independentemente das cotas
“Quando assumi a reitoria na USP, havia uma clara resis- sociais, 20% das vagas do vestibular; e a Federal da Bahia
tência à mudança. Todos diziam que era muito importante (UFBA), com a implementação da reserva de vagas por cri-
fazer inclusão social e racial, ninguém discutia o princípio, tério sociorracial no fim de 2004.

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Mais de uma década se passaria antes que as estaduais
paulistas transitassem das fórmulas de bonificação, basea-
das em pontos adicionais no vestibular, para a de reserva
de vagas por cotas. Houve tentativas anteriores, como a do
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público
Paulista (Pimesp), elaborado pelo então presidente da Fun-
dação Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp),
Carlos Vogt, e lançado pelo governador Geraldo Alckmin em
novembro de 2012, com o aval do Conselho de Reitores das
Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) e da Superinten- Avanço por etapas: dos formandos do ProFIS, oriundos das escolas públicas de
Campinas, em 2013, ao vestibular indígena e cotas étnico-raciais em 2017
dência do Centro Paula Souza. A implantação estava prevista
para 2014, após aprovação nos conselhos universitários das
instituições. cursos das Faculdades de Tecnologia, as Fatecs, e os do 2º ano
O projeto estabelecia metas progressivas em vez de cotas poderiam ingressar em cursos das universidades estaduais.
imediatas — começando com 35%, até que 50% das vagas “O ProFIS, implantado na Unicamp desde 2011, era uma for-
de cada curso e em cada turno estivessem ocupadas por alu- te inspiração para o Pimesp”, diz Vogt, ex-reitor dessa univer-
nos originários da rede pública. Em números absolutos, isso sidade (1990-1994) e ex-presidente da FAPESP (2002-2007).
signi­ficava 22 mil vagas no conjunto das instituições esta- De fato, o Programa de Formação Interdisciplinar Superior
duais paulistas e, desse total, 7,7 mil vagas, ou 35%, seriam oferece um curso de dois anos de duração, com um forte ca-
destinadas a estudantes negros, pardos e indígenas, numa ráter de formação geral, e seleciona os melhores alunos das
proporção equivalente à representatividade desses grupos na escolas públicas de Campinas a partir da nota no Enem. Após
população do estado. O projeto também propunha a criação a conclusão dessa etapa, os alunos escolhem entre os cursos
de um fundo especial de apoio à inclusão e se estruturava num de graduação de acordo com seu desempenho e o número de
curso sequencial de dois anos baseado em estudos gerais de vagas oferecido em cada um. “Eu gosto de falar que o ProFIS
nível superior, que comporiam os Institutos Comunitários significa cotas geográficas, porque a ideia é ter pelo menos
de Ensino Superior (Ices), com metade das atividades didáticas um estudante de cada escola pública de Campinas dentro do
ANTONINHO PERRI /SEC UNICAMP

em modo presencial e a outra metade a distância. A seleção programa”, diz o ex-reitor Marcelo Knobel (2017-2021).
dos candidatos seria pelas notas obtidas no Exame Nacio- Mas, abandonado o Pimesp, sob críticas dos que só viam
nal do Ensino Médio, o Enem. Os concluintes do 1º ano com nele o modelo dos colleges, em agosto de 2013 o Conselho
aproveitamento superior a 70% teriam ingresso garantido em Universitário da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

18 19
aprovou sua política e, quase quatro anos depois, em julho
de 2017, foi a vez do Conselho da USP dizer sim ao sistema de
cotas a partir do vestibular de 2018, com os votos favoráveis
de 75 membros, 8 votos contra e 9 abstenções. Venceram os
que entendiam que se não fossem feitas “intervenções con-
comitantes em todos os níveis, inclusive na universidade, não
teríamos resultados mais rápidos, como eram necessários”,
diz Marco Antonio Zago. “O único local em que nos restava
capacidade decisória para intervir era na universidade, e era
privilégio nosso decidir o que fazer”, enfatiza o ex-reitor. Per-
deram os que disfarçavam as razões de sua oposição às cotas Recepção em 2018 aos primeiros calouros aprovados no vestibular indígena
da Unicamp
sob a defesa genérica da meritocracia.
Na Unicamp, as cotas foram aprovadas em novembro de
2017 e começaram a vigorar em 2019, mesmo ano em que foi nas periferias, nos grupos mais pobres, o racismo também
realizado também o primeiro vestibular indígena. Na verdade, atravessa as classes médias, que, por exemplo, com muito es-
desde 2004 ela oferecia pontuação extra no vestibular a estu- forço, pagam uma escola particular para seus filhos.”
dantes oriundos de escolas públicas e, pouco depois, a pretos
e pardos, por meio do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Um caminho sem retorno
Social (Paais). Mas a representatividade da população negra São variados os estudos apoiados pela FAPESP que confir-
avançava pouco com esse mecanismo, o que ficou claro no pri- mam o equívoco dos que previam perda de qualidade nas
meiro ano de adoção das cotas étnico-raciais, quando o ingres- universidades públicas em decorrência das cotas. Assim,
so de estudantes pretos e pardos passou de 23,9%, em 2018, uma pesquisa de 2017, coordenada por Jacques Wainer, do
para 37,2%, em 2019. Era perceptível também a insuficiência Instituto de Computação da Unicamp, e Tatiana Melguizo,
das cotas sociais para o enfrentamento da questão racial. “Em- da Universidade do Sul da Califórnia (EUA), comparou a per-
bora tenhamos uma correlação de aproximadamente 85% en- formance de cerca de 1 milhão de alunos no Exame Nacional
tre estudantes de baixa renda e pretos e pardos, sabemos que de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2012 e 2014 e
ANTONINHO PERRI /SEC UNICAMP

o racismo é um fenômeno estrutural que perpassa todos os concluiu que o desempenho de formandos que ingressaram
grupos de renda”, diz José Alves de Freitas Neto, coordenador no ensino superior via ações afirmativas equivale ou supera
da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp o de jovens que chegaram nas instituições de ensino superior
(Comvest). “Mais visível e com uma conotação mais perversa pela chamada ampla concorrência.

20 21
Num outro trabalho, “Desempenho acadêmico e frequên- Dado que as cotas na graduação alcançaram abrangência
cia dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão significativa, os desafios atuais se concentram mais em sua
da Unesp”, o coordenador da Permanência Estudantil, Mário extensão à pós-graduação, além, claro, do foco na revalida-
Sérgio Vasconcelos, e colegas concluíram que não há dife- ção da Lei nº 12.711. O Censo da Educação Superior de 2016
renças relevantes de rendimento acadêmico entre os que mostrou que mulheres pretas e pardas com doutorado não
ingressaram pelo sistema universal e aqueles que entraram chegavam a 3% do total de docentes da pós-graduação no
via reserva de vagas. O estudo vasculhou e sistematizou in- país, embora muitos programas já adotem algum tipo de ação
formações referentes à população total de estudantes que afirmativa. Lima relata, a propósito, que uma das iniciativas
entraram na Unesp de 2014 a 2017, ou seja, um banco de do Cebrap AFRO é o mapeamento dos formatos de inclusão
dados oficial referente a 35.294 estudantes, com 52 variáveis. contidos nos quase 3 mil editais de pós em todo o país.
Já uma análise divulgada em dezembro de 2021 pelo Cen- Nesse quadro, um enorme gargalo ainda é a docência,
tro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciên- porque há pouquíssimos docentes negros nas universida-
cia), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), des brasileiras, ela observa. Debora Jeffrey, professora da
sobre a mudança de perfil de estudantes do ensino superior Faculdade de Educação da Unicamp e primeira presiden-
da área da saúde, nas provas do Enade, em 2013 e em 2019, te da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da
em 15 instituições públicas federais, demonstrou que a maior Diretoria Executiva de Direitos Humanos, lembra que dos
parte delas teve um ganho na nota média da prova de conhe- 1.800 professores dessa universidade em 2021, apenas 121
cimentos específicos com as ações afirmativas. Na Unifesp, eram negros, ou seja, 6,7%.
por exemplo, ela foi de 35,56 para 54,16. Ainda que a regulamentação da Lei nº 12.711 não tenha
“Todas aquelas previsões muito negativas de queda de traçado um desenho específico da avaliação da política e
qualidade não levavam em conta o quanto a existência da haja um vácuo sobre como será sua revisão, as articulações
política muda a dinâmica de quem se candidata”, diz Márcia para defendê-la ou derrubá-la intensificaram-se na esfera
Lima, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências política entre 2021 e o começo de 2022. Entretanto, Teresa
Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do Cebrap AFRO, Atvars, vice-reitora da Unicamp entre 2017 e 2021, observa
núcleo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento criado que a revisão da lei também traz a oportunidade de as uni-
em novembro de 2019. “Mudou o perfil de quem demanda versidades reafirmarem a sua autonomia. “Se por um erro
a universidade. Hoje, um aluno que é apto a se candidatar a do Congresso a lei cair, as universidades continuarão com o
uma vaga pelas ações afirmativas, já sabendo disso, muda a sistema de cotas, porque essa opção foi tomada no início à
relação com o estudo, investe e se prepara. Ter uma chance revelia da lei, quando ela não existia. O assunto está consoli-
já transforma todo o processo. dado nas universidades públicas, não tem retorno”, diz.  ——

22 23
PESQUISA E A ciência acadêmica levou os povos indígenas a nela colocar
tanta fé que acabam desvalorizando seus conhecimentos tradi-
INCLUSÃO DE cionais e ancestrais por menos resolutivos. A ciência acadêmica

POVOS INDÍGENAS é essencial, mas também o é reconhecer outras ciências, outros


saberes relevantes, como as ciências indígenas, resultados de
experiências milenares que, complementadas, podem ampliar
Gersem Baniwa | Doutor em Antropologia Social pela UnB e as possibilidades de a humanidade buscar respostas a problemas
professor da Ufam ainda sem solução e desvendar mistérios da vida e do mundo.
A inserção de indígenas no mundo acadêmico contribui
para diminuir séculos de invisibilização e negação das ciências
indígenas e para seu protagonismo como sujeitos pesquisa-
dores e produtores de conhecimentos científicos — em vez de
objetos e informantes coadjuvantes de pesquisas alheias —,
o que abre novas perspectivas ao diálogo, ao compartilhamento,
O s povos originários das Américas construíram
com­plexos sistemas de conhecimento que lhes
à cooperação, à colaboração e à coautoria intercultural, intere-
pistêmica e intercientífica de diferentes concepções, cosmovi-
possibilitaram desenvolver civilizações humanas sões, lógicas, racionalidades e seus sujeitos.
altamente sustentáveis. São herdeiros de saberes Mas esse ingresso pressupõe condições específicas, porque
de seus antepassados, complementados por outros saberes, assim tendem a ser também suas trajetórias escolares, em
acessados e apropriados após o contato com os colonizado- razão de uma educação escolar indígena com pedagogias
res, formando culturas de interculturalidade e intercientifi- diferenciadas, diferenças linguísticas (o português frequen-
cidade. Culturas, saberes e ciências que, ao se encontrarem, temente é uma segunda ou terceira língua), centralidade da
dialogam e se complementam entre si. oralidade na produção de conhecimentos com implicações
Os indígenas compreendem que a educação escolar e sobre a apropriação da escrita, diversidade de saberes e de
universitária pode ser um instrumento de fortalecimento de modos de vida. É necessário repensar as estruturas universi-
suas culturas e identidades e um canal de acesso aos bens tárias, as disciplinas, a história ensinada, os conteúdos curri-
e valores materiais e imateriais do mundo atual. A educa- culares e as metodologias e criar novas formas de avaliação.
ARQUIVO PESSOAL

ção indígena tradicional continua levando em conta essa Os povos indígenas não querem ser enquadrados nas lógi-
alteridade, enquanto liberdade do indígena ser ele próprio. cas academicistas e meritocráticas que alimentam e sustentam

24 25
os processos de reprodução do conhecimento, da técnica e do impacto é se sentir perdido e sozinho num mundo desconhe-
poder individualista, consumista, materialista e capitalista. cido, estranho e às vezes hostil. Alguns logo desistem, mas a
Querem contribuir com o mundo a partir da universidade maioria segue adiante.
com seus saberes, valores comunitários, suas cosmologias Os fundamentos da discriminação e do racismo foram his-
e seus modos de ser, de viver e de estar no mundo. toricamente criados como as situações em que o esperado era
Se as universidades vêm passando pela experiência de que os indígenas sempre fossem “inferiores” na realização das
receber estudantes indígenas até então tratados como outros, atividades acadêmicas. E contra a diversidade de vivências e
desconhecidos, exóticos e estranhos, os acadêmicos indíge- trajetórias históricas, pensa-se preconceituosamente num
nas também têm assumido a responsabilidade de enfrentar indígena estático e genérico que vive na mata, estereótipo
e discutir sua diversidade cultural, social e epistêmica. A pre- concebido pela história, pelos meios de comunicação e pela
sença indígena interroga a universidade e evidencia as sutis literatura (Luna, 2021). Há práticas de racismo também por
e as explícitas expressões do racismo estrutural marcadas em parte dos professores universitários. São comuns casos em que
sua organização administrativa, acadêmica e curricular e nas adotam posturas de desprezo, discriminação, tutela, subjugan-
relações sociais no cotidiano dos cursos e das instituições. do e transformando suas diferenças em incapacidades, para
O Brasil tem mais de 1 milhão de indígenas de 305 etnias, uma “adaptação à civilização” (Luna, 2021). Há desencontros
falantes de 275 línguas nativas, estimou o IBGE em 2020. e confrontos epistemológicos e ontológicos.
Desses, 37,4% falam ao menos uma língua indígena e, em Mas, é importante destacar, mesmo diante de muita
2018, havia 260.875 deles na educação básica e 57 mil na opressão e racismo, os estudantes indígenas desenvolvem
educação superior, segundo o censo escolar Inep/MEC. estratégias para sobreviver nas instituições, potencializando
As universidades públicas criaram programas para in- suas experiências de superação. E o desafio que se constitui é
gresso e permanência de indígenas, e algumas implantaram o de visibilizar afirmativamente a presença indígena na edu-
estruturas específicas para atender a demanda. O primeiro cação superior, que nos enche de esperanças numa instituição
desafio do acadêmico indígena aprovado no processo sele- educativa verdadeiramente. Universidade que acolhe, agrega,
tivo é buscar meios materiais e financeiros para se deslo- soma, promove e expressa o universo ilimitado e plural de
car de sua aldeia até a universidade. As famílias indígenas saberes, valores e sujeitos de conhecimentos. Sonhos por
aldea­das, em geral, vivem de caça, pesca e de agricultura de uma Universidade PluriCultural, PluriÉtnica, PluriRacial e
subsistência ou com algum benefício de programas sociais. PluriEpis­têmica, capaz de contribuir para a derrubada de-
A chegada à universidade é sempre um momento marcan- finitiva do racismo e da violência epistêmica e de construir
te de choques, rupturas, mudanças, de encontros e desencon- pontes, trilhas e horizontes civilizatórios que nos entrelacem
tros nesse novo ambiente de vida e de estudos. O primeiro com as nossas diferenças e diversidades de existências.  ——

26 27
Genealogia acadêmica:
50 pesquisadoras
contribuíram, direta
e indiretamente,
para a formação de
32 mil cientistas

UM LEVANTE
CIENTÍFICO CONTRA
A DESIGUALDADE
DE GÊNERO

mpliar a diversidade sexual e de gênero na

A ciência é uma demanda social que desafia uni-


versidades, instituições de pesquisa e agên-
cias de fomento do mundo todo. No Brasil,
embora as mulheres representem 55% do total
de títulos de doutorado concedidos no país em 2019, con-

HELDER NAKAYA / HOSPITAL ISRAELITA ALBERT EINSTEIN


forme dados da Coordenação Nacional de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes), a presença delas na
pesquisa ainda é reduzida em áreas como matemática, com-
putação e nas engenharias. Diante desse quadro, a FAPESP
implementou uma série de medidas nos últimos anos para
aumentar a participação feminina nas ciências paulista e
brasileira. Destaca-se, por exemplo, o apoio da Fundação

28 29
a projetos de pesquisa ligados às questões de gênero. Em impulsionar o empreendedorismo e o empoderamento de
pouco mais de duas décadas, a FAPESP contabilizou 211 au- mulheres negras.
xílios e bolsas concedidos a 170 pesquisadores dedicados a “Investigações desse tipo ajudam a compreender mudan-
temas como igualdade de gênero, sexualidade e violência ças em certas convenções sociais, abrindo novas abordagens
contra a mulher. às reflexões sobre temas tradicionais, como acessibilidade
Esse tipo de enfoque, segundo especialistas, é fundamen- e inclusão no ensino superior”, avalia Facchini, que integra
tal para aprofundar a compreensão do papel das mulheres a Comissão de Combate à Violência Sexual e de Gênero da
na sociedade e gerar informações capazes de subsidiar po- Unicamp. Ao financiar projetos dentro dessa temática, com-
líticas favoráveis ao equilíbrio entre homens e mulheres na pleta ela, a FAPESP contribui para a consolidação de uma base
pesquisa científica. “Nos anos 1960 e 1970, o foco dos estudos científica sólida com potencial de influenciar políticas institu-
era principalmente na condição feminina, nos efeitos da vio- cionais que estimulem a entrada e assegurem a permanência
lência doméstica e nas assimetrias do mercado de trabalho. de mulheres na universidade. “Assim como o Pagu, há diversos
Nas últimas décadas, o referencial se expandiu para tratar outros grupos dedicados a entender os entraves que dificultam
das relações de gênero em diversos setores da sociedade, a participação de mulheres não apenas em áreas dominadas
incluindo o ambiente acadêmico”, explica a antropóloga Re- por homens, como as ciências exatas e as tecnológicas, mas
gina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero também nos cargos mais altos e de maior remuneração.”
Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A partir de pesquisas desse porte, diz a antropóloga, a
A trajetória do núcleo, criado em 1986, é marcada por es- Unicamp vem desenvolvendo ações com o objetivo de elevar
tudos que questionam a visão polarizada do mundo e a sua o número de mulheres em seu quadro de docentes — atual-
compreensão binária por categorias como mulher e homem, mente composto por 1.194 professores e só 734 professoras.
negro e branco, homossexual e heterossexual, velho e jovem. Uma saída, propõe Facchini, é que os processos de contra-
Cerca de 72 projetos realizados pelo Pagu foram financia- tação e promoção na carreira levem em consideração com-
dos pela FAPESP desde 1999, muitos dos quais articulando portamentos sociais e vieses que influenciam a trajetória
gênero e outras categorias de diferença, como classe, raça, profissional das mulheres.
nacionalidade e religião. Um deles, conduzido pela cientista Eventuais interrupções na carreira decorrentes de licen-
social Gleicy Mailly da Silva, tem mostrado como o maior ça-maternidade ou da necessidade de cuidar de filhos, fami-
acesso de mulheres negras às universidades, especialmente liares enfermos ou idosos são fatores que frequentemente
na primeira década dos anos 2000, contribuiu para arti­ colocam as mulheres cientistas em desvantagem na hora de
cular militância política e atividade acadêmica em institui- ocupar cargos de maior poder em universidades, instituições
ções de ensino e pesquisa paulistas e, concomitantemente, de pesquisa e agências de fomento, diz Ana Maria Fonseca de

30 31
Almeida, professora da Faculdade de Educação da Unicamp
e estudiosa das desigualdades de gênero na educação. SÚMULA CURRICULAR DA
“Por essa razão, é importante que procedimentos de avalia- FAPESP FOI AJUSTADA
ção de projetos submetidos à FAPESP estejam sendo revistos EM 2021 PARA RECONHECER
e reestruturados, a fim de reconhecer fatores que favorecem
DESAFIOS ESPECÍFICOS
a queda na produtividade de pesquisadoras”, diz Almeida,
referindo-se a uma iniciativa implementada pela Fundação DAS MULHERES, COMO A
em julho de 2021. Na ocasião, a FAPESP atualizou seu modelo LICENÇA-MATERNIDADE
de súmula curricular, documento que acompanha todas as
solicitações de financiamento encaminhadas à entidade.
A principal mudança foi a inclusão de uma orientação ex-
plícita para que o pesquisador responsável pelo projeto infor- pesquisadoras indiquem seus períodos de licença-materni-
me eventuais interrupções na carreira devido a licenças mé- dade. A geóloga Adriana Alves, por exemplo, tem duas dessas
dicas, incluindo licença-maternidade ou licença-paternidade. licenças anotadas no currículo, de 180 dias cada uma, e a
“Também é possível comunicar envolvimento com cuidados primeira referência que aparece em sua descrição pessoal na
de terceiros”, salienta Almeida, que é membro da Coordenação plataforma é “Adriana Alves, mãe de Flora e Serena”. A ex-
Adjunta de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. pectativa, diz ela, é que iniciativas como essas promovam
Na avaliação do neurocientista Luiz Eugênio Mello, di- uma mudança estruturante de cultura nas universidades e
retor científico da FAPESP, a medida deve beneficiar prin- instituições científicas. “Há uma complexidade inerente ao
cipalmente mulheres, uma vez que o trabalho doméstico problema da desigualdade de gênero na ciência, e isso tem
e os cuidados com a família tendem, culturalmente, a re- de estar no radar dos tomadores de decisão”, afirma Alves,
cair mais pesadamente sobre elas. “Ao solicitar esse tipo de que é professora do Instituto de Geociências da Universi-
informação a quem preenche a súmula, a agência orienta dade de São Paulo (USP) desde 2010 e, desde o fim de 2021,
que os avaliadores dos projetos levem em consideração, por coordena o Escritório USP Mulheres, dedicado à elaboração
exemplo, o período em que mulheres cientistas se tornaram e implementação de iniciativas de promoção da igualdade
mães”, destaca Mello. de gênero nos sete campi da universidade.
Outras agências, entre elas o Conselho Nacional de De- Além da queda na produtividade, diz ela, o trabalho do-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), investem méstico e os cuidados com a família — que tendem a recair
em mecanismos semelhantes. Em abril de 2021, a Plataforma mais sobre as mulheres — também podem dificultar a parti-
Lattes, mantida pelo CNPq, também passou a permitir que cipação em projetos internacionais, uma das atividades que

32 33
diploma universitário em 2019, comparado a 15,1% dos ho-
mens. A proporção de mulheres entre docentes de ensino
superior, no entanto, ainda estava abaixo da metade: 46,8%
no Brasil e 43,4% no estado de São Paulo. A diferença se alar-
ga nos andares mais altos da pirâmide acadêmica: apenas
107 dos 576 membros titulares da Academia Brasileira de
Ciências eram mulheres em 2022.
“Mesmo optando por não ter filhos, sempre foi clara em
mim a percepção de que há um teto de vidro, uma barrei-
ra invisível que impede as mulheres de chegar ao topo da
carreira no ambiente acadêmico”, diz a astrônoma Beatriz
Adriana Alves e Beatriz Barbuy, da USP: pesquisadoras de gerações distintas, Barbuy, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e
com um objetivo comum, de valorizar as mulheres na ciência Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e pesquisadora nível 1A
do CNPq. Ela reconhece a importância dos estímulos que re-
costumam trazer benefícios simbólicos aos pesquisadores, re- cebeu na infância e na adolescência para se tornar cientista e
sultando em prestígio e poder acadêmico. Nota-se, por exem- seguir em uma área predominantemente masculina. “Meus
plo, que a distribuição de bolsas de produtividade em pesqui- pais eram filósofos e incentivavam, sem distinção, que seus
sa do CNPq foi marcada por ampla desigualdade de gênero na filhos homens e mulheres seguissem carreira intelectual”,
última década (2010-2021), de acordo com um levantamento conta Barbuy. “Eu gostava de matemática e, após ler um
feito por pesquisadores das universidades federais de Santa livro do físico ucraniano George Gamow, fiquei encantada
Catarina, Alagoas e Pernambuco.1 Entre os bolsistas da catego- pela astronomia.”
ria 1A nesse período, por exemplo, apenas 26% eram mulheres. Barbuy reconhece que seu caso está mais para exceção
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Es- do que regra. Nas últimas décadas, a pesquisadora ocupou
tatística (IBGE),2 as mulheres já são maioria entre os adultos cargos importantes no Brasil e no exterior; entre eles, o de vi-
com nível superior completo no Brasil: 19,4% delas tinham ce-presidente da União Astronômica Internacional (IAU), de
2003 a 2009. Em 2009, recebeu o Prêmio L’Oréal-Unesco para
CECILIA BASTOS / USP IMAGENS

Mulheres na Ciência e, em 2021, venceu a terceira edição do


1  Mais informações na reportagem “Desequilíbrio no sistema”,
Prêmio Carolina Bori — Ciência e Mulher, na área de Ciências
Pesqui­sa FAPESP, edição nº 311, janeiro de 2022.
2  Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil Exatas e da Terra, concedido pela Sociedade Brasileira para o
(IBGE, 2021). Progresso da Ciência (SBPC). “Esse reconhecimento é impor-

34 35
tante, sem dúvida. No entanto, o ideal seria que eu e outras Mulheres presentes
pesquisadoras tivéssemos mais oportunidades para ocupar Participação feminina em projetos da FAPESP cresceu entre 2000 e 2016;
taxa de aprovação permaneceu quase idêntica para homens e mulheres
cargos de direção em departamentos de universidades, insti-
tuições de pesquisa e mesmo na FAPESP, onde a participação Projetos submetidos à FAPESP por gênero e participação feminina
feminina no alto escalão ainda é baixa”, argumenta Barbuy. Feminino Masculino % Feminino total (eixo direito)
20.000 50%
42% 44% 42%
18.000 45%
40%
16.000 36% 40%
Equidade nas coordenações 14.000 15.504 35%
12.000 13.942 30%
Mello, da FAPESP, reconhece a necessidade de ampliar a 10.000
10.546
11.938
10.939 11.333 25%
10.080
diversidade entre assessores da agência e ressalta que um 8.000
6.000
6.938
8.816
20%
15%
5.732
primeiro passo já foi dado nesse sentido. “Promovemos mu- 4.000
2.000
10%
5%

danças no quadro de pesquisadores que assessoram a Dire- 0 0%

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toria Científica na análise dos pedidos de bolsas e auxílios

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submetidos à Fundação”, diz. A medida, em vigor desde maio Taxas de sucesso de projetos submetidos, por gênero
de 2021, aumentou de 17% para 48% a proporção de mulhe- Em % Feminino Masculino

res nas Coordenações Adjuntas da instituição, inclusive em 70 64


58 56
60
áreas tradicionalmente dominadas por homens. “A questão 50
62
51
58 54 41
49
da equidade de gênero se coloca naturalmente, na medida 40
38
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em que as instituições paulistas contam com um número 20

cada vez maior de pesquisadoras reconhecidas e dispostas 10


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a contribuir para que a FAPESP siga sendo uma referência

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nacional e internacional no que diz respeito às políticas de
FONTE: INDICADORES FAPESP / ADAPTADO DE PESQUISA FAPESP - EDIÇÃO 259 (2017)

fomento”, sublinha Mello.


Tanto essa iniciativa quanto a mudança na súmula cur-
ricular decorrem de investimentos na geração de conheci- agência. Observa-se, porém, que a proporção de mulheres
mento sobre a participação das mulheres na ciência — “que coordenando projetos ainda é pequena em determinadas
é, afinal, um dos eixos pelos quais se alavanca a diversidade áreas, como nas engenharias (25%), e maior em outras, como
na pesquisa”, completa Mello. Os dados mais recentes da nas ciências da saúde (56%). A taxa de sucesso na aprovação
Gerência de Estudos e Indicadores da FAPESP mostram que, de projetos pela FAPESP é praticamente igual para homens
entre 2000 e 2016, a participação feminina subiu de 36% e mulheres (41% e 38%, respectivamente, em 2016) — mas
para 42% entre os responsáveis por projetos submetidos à também com variações entre áreas do conhecimento.

36 37
Diante dessa realidade, é preciso tomar cuidado para não da comunidade LGBTQIA+, sigla para lésbica, gay, bissexual,
difundir afirmações genéricas sobre a baixa participação de transexual, queer, intersexo, assexual e outras diversidades
mulheres nas chamadas áreas STEMM (sigla em inglês para de sexo e gênero. “No debate sobre diversidade nas universi-
ciência, tecnologia, engenharias, matemática e medicina), dades, não podemos deixar de fora a necessidade de inclusão
alerta a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, e acolhimento de estudantes e pesquisadores homossexuais
professora titular aposentada da USP e pesquisadora do Cen- e transgêneros”, argumenta o psicólogo Leonardo Lemos de
tro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap). Segundo Souza, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Univer-
ela, mesmo em áreas de pesquisa como medicina há especiali- sidade Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis.
dades em que a predominância é de mulheres, como pediatria. “No caso de pessoas trans, que se identificam com um gê-
Ao mesmo tempo, dentro das ciências humanas, existem áreas nero diferente daquele que lhes foi atribuído ao nascerem, as
dominadas por homens, como é o caso da filosofia. dificuldades para acessar o ambiente acadêmico são mais
“Entendo que a situação geral melhora de geração em ge- acentuadas”, destaca Souza. Dados da Associação Nacio-
ração”, diz Maria Hermínia, que fez parte da Coordenação Ad- nal de Travestis e Transexuais (Antra) mostram que apenas
junta de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP por 10 anos 0,02% dessa população está no ensino superior e 70% não
(1996-2006). “Na geração da minha mãe, poucas mulheres concluíram o ensino médio.
chegavam à universidade, apenas um número muito reduzido Em entrevistas feitas em várias unidades da Unesp, pessoas
de membros da elite educada. Hoje em dia há um inequívoco LGBTQIA+ disseram se sentir fisicamente seguras na univer-
progresso. As barreiras existem, mas estão cedendo.” sidade, relata Souza. Ao mesmo tempo, porém, indicaram a
Passo a passo, a mudança começa a se consolidar, tam- percepção de que a instituição não sabe acolher essa população
bém, nos níveis mais altos do mérito científico nacional: em nem reconhece suas especificidades. “Ainda que se sintam se-
2022, pela primeira vez, as mulheres foram maioria entre os guras fisicamente, essas pessoas sofrem assédio, discriminações
novos membros eleitos para o quadro titular da Academia e exclusões. Isso ocorre principalmente por falta de informação
Brasileira de Ciências. e devido a uma cultura de desrespeito e invisibilidade desses
indivíduos”, afirma Souza, responsável pela Coordenadoria de
Desafios da população LGBTQIA+ Educação para Diversidade e Equidade da Unesp.
Um aspecto importante de ser lembrado é que os estudos de “Um dos maiores desafios que transgêneros encontram no
gênero não são apenas sobre mulheres cisgênero — termo que ensino superior é a aceitação pelos colegas e professores”, afir-
se refere a pessoas que se identificam com o gênero que lhes ma a física Daniela Cardozo Mourão, do Departamento de Ma-
foi atribuído no nascimento (correspondente à sua anatomia temática da Unesp de Guaratinguetá. Professora transgênero,
sexual). Também é possível estudar gênero sob a perspectiva Mourão participou da comissão responsável pela resolução

38 39
aprovada em 2017, na Unesp, garantindo a professores, ser-
vidores técnico-administrativos e alunos transgêneros o
direito de uso do nome social em registros funcionais e em
eventos oficiais. Outras universidades, entre elas USP, Uni-
camp e a federal da Bahia (UFBA) têm iniciativas parecidas.
Na FAPESP, o Conselho Técnico Administrativo aprovou em
2018 um parecer que normatiza a adoção de nome social em
seus registros acadêmicos. (Nome social é aquele que pes-
soas trans adotam para se identificar socialmente.)
Facchini, do Núcleo Pagu, identifica um movimento re-
cente, cada vez mais forte, de estudos realizados por pessoas
Primeira Parada do Orgulho LGBT na Universidade de Brasília (UnB), 2015
assumidamente trans, que ingressam no ensino superior por
meio de políticas de ação afirmativa e de respeito à diversi-
dade cultural e de gênero. “É importante que universidades e Diálogo entre áreas do conhecimento
agências de fomento como a FAPESP tenham em mãos mais Na visão de Souza, da Unesp, é fundamental ampliar o diá-
dados sobre essa população. Só assim será possível criar ini- logo entre grupos de pesquisa que se debruçam sobre temas
ciativas concretas que busquem ampliar a participação de diversos, como sexualidade, raça e desigualdade social. “Isso
pessoas LGBTQIA+ na ciência”, diz ela. “Há muito desenten­ permitiria a incorporação de diferentes variáveis nas aná-
dimento na sociedade sobre quem são esses sujeitos de direi­ lises, viabilizando abordagens interseccionais da questão
to. Precisamos investigar as situações de vulnerabilidade trans e da igualdade de gênero a fim de ter um quadro mais
dessas pessoas, e isso requer mais dados sociodemográficos completo sobre temas como feminicídio, violência contra
sobre a população trans.” minorias e assédio no trabalho”, diz o pesquisador.
A necessidade de produzir mais trabalhos quantitati- Até o início de 2022, a FAPESP concedeu bolsas e auxílios
vos é uma demanda que desafia os estudos de gênero como a 36 projetos de pesquisa relacionados à sigla LGBTQIA+, dos
um todo, ressalta Alves, do USP Mulheres. “Evidentemente quais nove estão em andamento. A maioria (28) está no cam-
que pesquisas qualitativas são fundamentais, mas, para que po das ciências humanas, principalmente antropologia. Já o
possamos subsidiar políticas públicas mais profundamente, termo “estudos de gênero” aparece em 454 projetos financia-
nós, pesquisadores, precisamos oferecer dados e indicadores dos pela FAPESP, dos quais a maior parte (257) está nas ciên-
ISA LIMA / UNB

concretos que auxiliem os gestores das universidades no cias humanas, novamente com destaque na antropologia.
processo de tomada de decisão”, diz. “Está claro que um dos principais obstáculos a serem superados

40 41
pelos estudos de gênero é romper a bolha da disciplinaridade
e estabelecer conexões com outras áreas”, pontua Souza.
Um exemplo de como fazer isso é colocando em prática
estudos amplos, capazes de reunir pesquisadores de diferen-
tes campos do conhecimento em torno de grandes problemas
da sociedade, entre eles as mudanças climáticas, sem perder
de vista questões relacionadas à desigualdade de gênero. “Há
hoje uma necessidade urgente de mais pesquisas que ajudem
a entender como as alterações do clima impactam redes de
mulheres que dependem da pesca artesanal para sobreviver”, SABERES
por exemplo, diz a bióloga Leandra Gonçalves, do Instituto do
Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), integran- ANTIGOS, NOVOS
te de dois projetos interdisciplinares apoiados pela FAPESP e
uma das fundadoras da Liga das Mulheres pelo Oceano, mo- PROTAGONISTAS
vimento que reúne mais de 2.300 mulheres, entre pesquisa-
doras, líderes comunitárias e ativistas.
Nos últimos anos a FAPESP tem se esforçado para fomen-
tar pesquisas amplas, multissetoriais e que mobilizam cien-
tistas homens e mulheres, com o objetivo de pensar e propor

“O
soluções para problemas sociais. Projetos dessa magnitude, Brasil tem um imenso passado pela frente”,
diz Gonçalves, têm capacidade de promover não apenas a escreveu o jornalista Millôr Fernandes (1923-
diversidade de gênero dentro do próprio grupo de pesquisa, 2012). Repetida por anos a fio em diversas
mas também vincular temáticas como igualdade de gênero, conjunturas, a máxima entrou para o rol das
redução de desigualdades e conservação ambiental, que estão frases definidoras do país e pode ser aplica-
entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das da ao ensino superior. Historicamente caracterizada como
Nações Unidas — cujas metas foram internalizadas como uma etni­camente branca e de tradição intelectual europeia, hoje
referência para investimentos da FAPESP.3  —— a universidade brasileira se vê desafiada a rever suas estrutu-
ras. Nas últimas décadas, movimentos sociais e ambientais
3  Mais informações em Fapesp e os Objetivos do Desenvolvimento provocaram discussões e ensejaram medidas de inclusão na
Sustentável: ods.fapesp.br educação. Nas graduações e pós-graduações do país, a tônica

42 43
Colheita de arroz no
quilombo Morro Seco
(Iguape, SP): inclusão de
quilombolas é desafio
no ensino superior

do movimento pelo acesso à educação tem sido a incorpo-


ração de tudo e todos que o Brasil pôs de lado durante cinco
séculos de desenvolvimento. Indígenas, pessoas economi-
camente vulneráveis, portadores de neces­sidades especiais,
povos tradicionais e moradores das periferias das grandes
cidades: o desafio é incluir, tanto no aprender quanto no
ensinar, populações que até alguns anos atrás estavam à
margem da educação superior no país.
Não se trata da inclusão pela inclusão. Os objetivos in-
cluem a correção de exclusões históricas e a ampliação do
horizonte epistemológico em que se dão o ensino e a pesquisa.
“Quanto mais diverso for o grupo de pessoas qualificadas para
fazer um trabalho ou investigação, melhor o conhecimento
resultante. A diversidade na construção do conhecimento
produz uma ciência melhor, que contribui para a transforma-
ção da sociedade, atende os interesses dos seres humanos e
dos seres vivos e geralmente considera, também, as gerações
futuras. Diversidade é essencial para um conhecimento de
qualidade”, define Gislene dos Santos, professora da Escola
de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
EDUARDO CESAR / PESQUISA FAPESP

Paulo (EACH-USP) e coordenadora do Grupo de Pesquisa das


Periferias do Instituto de Estudos Avançados (IEA), na mesma
instituição. A FAPESP acompanha o movimento de democra-
tização e diversificação do ensino e da pesquisa, estando a

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par das suas demandas e incluindo em seus editais projetos, (Unifesp), que também utiliza o Sisu, há cotas para alunos
temáticas e medidas de inclusão. “A FAPESP considera que de escolas públicas e pessoas com deficiência. Em diversos
se trata de desenvolvimentos muito positivos para o ecossis- casos, a universidade mescla os parâmetros de seleção.
tema de pesquisa nacional e paulista, pois o conhecimento Entrar pela porta, porém, é só o começo. Vencido o desa­
avança quando as questões são tratadas a partir de ângulos fio de chegada à universidade, os estudantes precisam per-
múltiplos. A diversidade dos pesquisadores é um dos motores manecer no sistema e prosseguir a vida acadêmica com tudo
da excelência na pesquisa, e a FAPESP já apoiou mais de 200 que ela oferece — estágios, atividades laboratoriais, pesqui-
projetos sobre agricultura familiar, por exemplo”, reforça Luiz sas e intercâmbios —, o que também exige ações afirmativas
Eugênio de Mello, diretor científico da Fundação. de apoio por parte das instituições, como bolsas de perma-
Nas universidades públicas do estado de São Paulo, diver- nência e auxílios para moradia, alimentação e para com-
sas iniciativas têm sido aplicadas nos últimos 20 anos para pra de materiais. Aí entram em cena as bolsas de iniciação
incentivar o ingresso de brasileiros que há décadas espera- científica e, mais adiante, as de mestrado e doutorado, que
vam sua inclusão no ensino superior. Além das cotas para o incentivam os jovens não só a continuar estudando como
ingresso de alunos pretos, pardos e oriundos de escolas pú- também a se tornarem pesquisadores, versados no método
blicas,1 instituídas a partir do início dos anos 2000, há um es- e na lógica da ciência. “A FAPESP tem participado de dis-
forço crescente no sentido de fomentar a inclusão de outros cussões com diferentes instituições no Brasil e no exterior,
grupos menos privilegiados da sociedade, como indígenas acreditando que tem o papel de contribuir para garantir que
e pessoas com deficiência (PcD). A Universidade Federal de o ecossistema de pesquisa possa ser alimentado pela popu-
São Carlos (UFSCar), por exemplo, aplica um vestibular es- lação de jovens talentosos que têm chegado às universida-
pecífico para indígenas desde 2008. A Universidade Estadual des. O estímulo à participação e à diversidade acompanha
da Campinas (Unicamp) passou a fazer o mesmo em 2018, e o interesse da FAPESP em apoiar projetos excelentes. Para
em 2022 o concurso das duas instituições foi unificado. Já a isso, ela considera sua função identificar e coibir obstáculos
Universidade Federal do ABC (UFABC), cujo ingresso se dá e barreiras sistêmicas que impedem essa participação na
por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), conta des- pesquisa”, afirma Mello. Uma dessas medidas diz respeito
de 2008 com reserva de vagas para candidatos oriundos de à noção de mérito, já que a FAPESP incorporou à análise das
escolas públicas, pessoas com deficiência e refugiados ou trajetórias dos pesquisadores o conceito de oportunidade.
solicitantes de refúgio. Na Universidade Federal de São Paulo “Analisamos os resultados apresentados à luz das experiên-
cias a que o solicitante teve acesso ao longo de sua carreira.
1  Mais informações sobre cotas na primeira reportagem deste Isso resultou na mudança no formato da súmula curricular,
fascículo, páginas 6 a 23. por exemplo”, explica o diretor, referindo-se ao documento

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Liderança Yawalapiti,
uma das etnias que
colaboram com o INCT
de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa

de referência que pesquisadores precisam preencher para


solicitar financiamento da FAPESP.
Mas a inclusão não para por aí. Atualmente, entende-se
que incluir como estudantes pessoas em situação perifé­
rica, indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e afins
não basta para reverter a histórica exclusão desses grupos
do universo do conhecimento formal. “O currículo da uni-
versidade é insuficiente porque não conta com os saberes
indígenas, afrodescendentes e de culturas populares. Tra-
ta-se de uma formação eurocêntrica. Isso foi ficando como participar do debate acadêmico. “Barreiras sistêmicas não
um passivo a ser resolvido; uma demanda que surgiu nos devem ser acionadas para impedir sua participação ou o
Seminários de Culturas Populares no Ministério da Cultura, próprio debate. É para isso que uma política responsável de
entre 2005 e 2006, dos quais mestres e mestras de cultura avaliação da pesquisa deve trabalhar, e nisso reside uma das
popular participaram”, recorda José Jorge de Carvalho, pro- principais missões das agências de fomento: garantir que
fessor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) e debates amplos e irrestritos possam ocorrer”, defende.
coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia O encontro dos universos pode não ser um processo
e Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI). fácil — e cada desafio é único. “Precisamos de iniciativas
Segundo Carvalho, o desafio é certificar ou legitimar o para criar os intercâmbios e, a partir disso, descobrir os gar-
ensino de saberes tradicionais. Iniciativas como a outorga do galos. Em cursos onde a ciência é mais presente, como me-
título de notório saber ajudam a diminuir a distância entre dicina, como seria o acolhimento a um xamã?”, pondera o
a academia e os professores que não passaram por ela em antropólogo Edmundo Peggion, professor da Faculdade de
sua formação, diz ele. De fato, alinhar os saberes tradicionais Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
FELIPE OLIVEIRA / INCTI / DR

às práticas acadêmicas é fundamental, concorda Mello. Para em Araraquara. Por isso, a própria academia dialoga e pon-
isso, a FAPESP busca garantir que portadores desses conhe- dera internamente de que maneira a inclusão pode acontecer,
cimentos possam dominar as competências necessárias para em quais termos e em quais condições.

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Construções coletivas
Tal mudança de perspectiva é fruto do espírito do tempo.
O movimento de descolonização tomou força no Brasil nos
anos 2000, impulsionando a demanda por ações afirmativas
e a apropriação de espaços públicos e culturais por popula-
ções tradicionais. A pauta ambiental também ocupa lugar
no avanço da universidade rumo a uma configuração diver-
sificada e mais parecida com a população brasileira. Nesse
contexto, surgiu mais uma via de inclusão: ter populações
tradicionais não apenas como alunos ou professores de cur-
sos universitários, mas também como colaboradores de pes-
quisas acadêmicas. Alexander Turra, professor do Instituto
Baía do Araçá, em São Sebastião (SP): cientistas trabalharam em parceria com as
Oceanográfico da USP, conta que este é um movimento re- comunidades locais para estudar e conservar local ameaçado
cente. “Pesquisas sobre essas populações, existem inúmeras.
Trabalhos com elas estão começando a crescer na chamada
pesquisa transdisciplinar, onde se busca a conexão entre de promover a transformação necessária no oceano e na
ciência e sociedade, com um olhar específico e dedicado aos sociedade”, acrescenta Turra. Neste caminho, as pesquisas
grupos marginalizados e pouco ouvidos”, define o ecólogo. dialogam diretamente com políticas públicas.
Na área ambiental, o pontapé para esse tipo de pesquisa Uma dessas construções coletivas foi o projeto Biota-
se deu a partir dos anos 1980. As convenções da ONU sobre o -FAPESP Araçá, do qual o professor foi um dos participantes.
clima e biodiversidade e a Agenda 2030, com seus Objetivos “Foi um processo de discussão do futuro da baía do Araçá
de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sedimentaram o [em São Sebastião, SP], tomando como base os atores locais.
tema da sustentabilidade socioambiental no debate públi- Analisamos esse processo do ponto de vista científico, mas a
co. A academia, por sua vez, percebeu que as pesquisas e base foi a visão que as pessoas tinham sobre a importância
iniciativas de preservação ambiental não iriam para a frente do local, sua estrutura e funcionamento”, explica. Os pesqui-
sem firmar parceria com as comunidades locais. “É funda­ sadores mapearam as ameaças ao sistema e, junto à comu­
mental o envolvimento dessas minorias na perspectiva de nidade, definiram estratégias para a preservação do local.
coconstrução da ciência. Há um rebatimento prático cla- O resultado do trabalho veio pelas mãos da comunidade
GABRIEL MONTEIRO

ro na medida em que essas pesquisas se tornam cada vez e permaneceu com ela. “O documento final, o Plano Local
mais realistas, contextualizadas e com possibilidade real de Desenvolvimento Sustentável da Baía do Araçá, foi feito

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pela comunidade com a nossa facilitação. O documento se academia mais atenta às demandas sociais e emergências
tornou um instrumento poderoso para que eles pudessem ambientais. “É fundamental que estejamos atentos a esse
buscar mecanismos para implementá-lo. Hoje, anos depois, papel da ciência-cidadã, um trabalho coletivo e colaborati-
temos a comunidade mobilizada e fortalecida, participan- vo que coloca a educação como algo ‘freireano’. É a apren-
do de discussões que afetam direta e indiretamente a baía”, dizagem social, que promove as trocas e a hibridização de
comemora o professor. conhecimento por canais que não são acadêmicos stricto
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha destaca a via sensu”, observa.
da coprodução de conhecimento com as etnias indígenas.
“Há uma grande demanda por inclusão na universidade, e é Pluralizar para encontrar saídas
interessante pensar na inserção dos indígenas na literatu- A crise ambiental enfrentada pelo planeta reforça a necessi-
ra acadêmica, mais do que simplesmente seu desempenho dade de novos olhares para antigos problemas. Nesse que-
escolar”, sugere. Na antropologia, a tradição da etnografia sito, o diálogo entre culturas ocupa lugar de honra. “Há uma
e do registro de mitos das populações originárias tem dado forte relação entre povos tradicionais e biodiversidade no
lugar a uma nova corrente de pensamento e ação. “Há pelo Brasil. Estudos de arqueologia mostram que a nossa biodi-
menos 25 ou 30 anos pesquisadores estão incluindo como versidade é um legado da mão humana, pré-colombiana, na
autores os especialistas indígenas que trabalham com eles. natureza”, aponta Manuela Carneiro. A professora cita a Pla-
Há vários trabalhos em que indígenas e outras populações taforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços
tradicionais, como seringueiros, figuram como autores”, Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), criada em 2012,
completa Cunha, que é professora titular aposentada da USP cujo desenvolvimento por pesquisadores e populações tra-
e professora emérita da Universidade de Chicago. Segundo dicionais intensificou o olhar da opinião pública sobre esses
Peggion, é importante que haja incentivos institucionais para povos. “Os relatórios da IPBES deram espaço à contribuição
esse tipo de projeto, “porque essas pesquisas têm um recorte do conhecimento tradicional e local, porque as áreas mais
intelectual, mas também um compromisso ético e político”. bem conservadas estão sob a gestão deles”, exemplifica.
“É uma diferença fundamental o jovem ser pesquisador da Os especialistas afirmam ser urgente ampliar iniciativas
própria comunidade”, completa o antropólogo da Unesp. de coprodução do conhecimento científico, capazes de criar
Pedro Jacobi, professor do programa de pós-graduação uma via de diálogo entre a academia e a sociedade. “A pande­
em ciência ambiental da USP e coordenador do projeto temá- mia mostrou como é importante introduzir uma cultura de
tico da FAPESP sobre Governança Ambiental da Macrome- prevenção e precaução. Esse olhar de futuro tem que ser an-
trópole Paulista Face às Mudanças Climáticas, define essas tecipatório — de uma futura pandemia, do desmatamento,
iniciativas como fundamentais para a construção de uma de comportamentos predatórios. Esses termos têm que ser

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colocados fora da torre de marfim, permitindo sua decodi-
ficação para toda a sociedade. Nós, que produzimos ciência, COLABORAÇÃO ENTRE
precisamos ter pé no chão para que o nosso trabalho tenha CIÊNCIA E SOCIEDADE
um desdobramento social e esteja conectado à realidade É ESSENCIAL PARA O
global”, enfatiza Jacobi.
ENFRENTAMENTO DOS
Também há um consenso crescente sobre o papel das
agências de fomento nas iniciativas de inclusão e incentivo DESAFIOS SOCIOAMBIENTAIS
a pesquisas que levem em conta a diversidade de olhares e QUE AMEAÇAM O PLANETA
saberes sobre os desafios coletivos. Para Gislene dos Santos,
da EACH-USP, é preciso atenção para com os grupos que
costumam ficar de fora dos grandes projetos e do recebi-
mento de bolsas. “Financiar pesquisas com responsabilidade
envolve observar quem são as pessoas que majoritariamente e métricas de produtividade. Segundo Turra, o trabalho de
têm financiamento no Brasil e em São Paulo. São sempre os campo em projetos de ciência-cidadã e de parceria com a
mesmos grupos? Pode-se analisar quem são as pessoas que sociedade exige um timing diferente na execução de projetos.
poderiam receber financiamento e não recebem, investigar “Precisamos construir uma relação constante e duradoura
por que seus projetos não são aprovados”, sugere. Para Car- com as comunidades, e o formato do fomento pode ser um
valho, da UnB, o momento de efervescência e o movimento pouco limitante. Quando trabalhamos com elas, temos que
de descolonização têm nas agências de fomento um parceiro respeitar um tempo que não é o do projeto. Os órgãos de
fundamental. Para o professor, o universo acadêmico paulis- fomento precisam estar sensíveis para isso. É uma pesquisa
ta ainda não se apropriou plenamente do potencial das pes- carregada de responsabilidade e intenção de melhorar algo,
quisas e iniciativas docentes junto a populações tradicionais mas essa abordagem não dialoga necessariamente com as
e, por isso, há muito campo inexplorado. “São Paulo é um métricas exigidas dos pesquisadores, como a produção de
estado muito rico em termos de tradições negras, populares artigos”, resume.
e indígenas”, salienta. Segundo Jacobi, livros e relatórios que resultem de pes-
Mas o financiamento desses trabalhos precisa ser dife- quisas desse tipo devem ser integrados ao ensino básico e a
rente do que já é praticado em outras áreas do conhecimento. outras vias de disseminação de informação. Segundo Mello,
Os especialistas observam que o trabalho com comunida- a FAPESP conta com uma dinâmica interna que propicia a
des indígenas, tradicionais e locais vem carregado de parti­ emergência de novos temas de pesquisa — inclusive junto
cularidades. Entre elas, um olhar diferenciado sobre prazos a populações tradicionais, culturas da periferia e afins. “Parte

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importante dos recursos é despendida para apoiar o que se
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
trata como ‘pesquisa impulsionada pela curiosidade dos
PRESIDENTE
pesquisadores e pesquisadoras’. Isso significa que não há Marco Antonio Zago

uma competição entre temas e não há temas considerados VICE-PRESIDENTE


Ronaldo Aloise Pilli
menores ou menos importantes. A análise das solicitações CONSELHO SUPERIOR

de apoio examinam o projeto em termos da contribuição Dimas Tadeu Covas, Helena Bonciani
Nader, Ignácio Maria Poveda Velasco,

que seus resultados podem oferecer para um campo de pes- Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz,
Mozart Neves Ramos, Pedro Luiz Barreiros
Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma
quisa ou mesmo para apoiar políticas públicas”, explica. Ao Krug, Vanderlan da Silva Bolzani

lado da pesquisa movida pela curiosidade, há um esforço CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

constante em monitorar a cartela de apoios e dialogar com DIRETOR-PRESIDENTE


Carlos Américo Pacheco
a comunidade científica para identificar pontos cegos, o que DIRETOR CIENTÍFICO
leva à edição de chamadas específicas. Luiz Eugênio Mello

Qualquer que seja a população ou as vias para incluí-la DIRETOR ADMINISTRATIVO


Fernando Menezes de Almeida

na produção da ciência, o resultado é a ampliação do conhe­


FAPESP 60 ANOS
ci­mento e o desenvolvimento da sociedade nos âmbitos CIÊNCIA, CULTURA
E DESENVOLVIMENTO
social, econômico, político, cultural e ambiental. “Trata-se EDITOR-CHEFE
de uma mudança importante e fundamental para o futuro Carlos Vogt

da democracia no nosso país e também para fazer avançar EDITORES-EXECUTIVOS


Herton Escobar, Mariluce Moura,
a produção de conhecimentos. A FAPESP tem se mobilizado Mayumi Okuyama (arte)

para garantir que esse esforço seja levado adiante , garantin- REPORTAGEM
Bruno de Pierro, Laura Araújo,
do que obstáculos sistêmicos não impeçam a participação Ricardo Muniz

desses grupos no esforço de pesquisa que ela apoia e lidera”, INFOGRAFIA

afirma Mello. Turra afirma que, com base na sua experiência, Glauco Lara

uma universidade que fala com todos e para todos transfor- PESQUISA ICONOGRÁFICA
Vladimir Sacchetta

ma a sociedade de dentro para fora, reforçando o papel das DESIGNER


instituições para a construção do bem comum. “Teremos Felipe Braz (digital)

cada vez mais a sociedade entendendo o papel da universi- ILUSTRAÇÃO (capa)


Aline Bispo
dade, das agências de fomento e da ciência na sua vida e no
REVISÃO
seu futuro”, completa.  —— Mauro de Barros

57
60ANOS.FAPESP.BR/LIVRO

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