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Diversidade
e inclusão
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SUMÁRIO
Um levante científico 28
contra a desigualdade de gênero
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A VIOLÊNCIA meio ambiente, também rico, contém todos os ecossistemas
conhecidos. Mas onde erramos?
NOSSA Nossa convivência não vai bem. Há mais de quinhentos
de gênero, etnia e desigualdade socioeconômica, apontam mares. Potências europeias, as primeiras a alcançar a indus-
para um Brasil repleto de violências. Integramos uma socie- trialização, como Inglaterra, Suíça, Holanda, Bélgica, hoje
dade pluriétnica, em um ambiente também diversificado, integrando o primeiro mundo, formaram seus tesouros e
com cultura rica e raízes em todos os povos do mundo. Nosso forjaram tecnologias escravizando pessoas.
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Todavia, é perceptível ainda a imposição de papéis so- segurança que exigem constantemente identificação das
ciais do século XIX, como a do homem branco educado, for- pessoas negras, inclusive documentos que comprovem con-
mado para assumir o poder do grupo familiar e demais insti- trato de trabalho em tempos de desemprego em massa. É o
tuições. A invisibilidade da mulher nas funções de poder da racismo estrutural, com práticas violentas que permeiam
sociedade ainda é fato. Cobra-se das poucas que as exercem nossa convivência. Não havendo um grupo social homogê-
comportamentos machistas, ou seja, práticas discrimina neo, pelas vias da interseccionalidade, com informes e dados,
tórias. Mas há assimetrias entre ser mulher branca ou negra desnudam-se realidades complexas.
no Brasil. São os tais papéis sociais injustos e ainda presen- Fundamental, portanto, uma política de dados abertos,
tes. A mulher branca merecerá educação e cuidados; afinal, em que instituições oficiais possam disponibilizar seus da-
gerará os futuros cidadãos, expressará valores familiares dos, permitindo à sociedade civil manipular, processar e
etc. Proteção esta que, muitas vezes, revela formas de vio- criar informações de interesse público, capazes de impactar
lência simbólica: mulher, ser frágil, protegido, incapaz de políticas públicas. O estado democrático de direito proposto
decisões, seu homem decidirá por ela. Homem negro, com na atual Constituição Federal encontra-se em construção;
representação midiática de ser violento, perigosíssimo ou portanto, são fundamentais as ações e as contribuições de
submisso, nunca expressado como ser humano normal. entidades científicas e de apoio à ciência e à cultura, como
A mulher negra, representada também como ser humano a FAPESP, que, analisando as questões sociais, exijam trans-
diferente, portador de sexualidade exacerbada, numa ima- parência na atuação pública e proponham políticas públicas
gem ainda marcada pela escravização, um objeto sexual aos governos. ——
de seus senhores. À mulher negra são negados os cuidados
saudáveis da maternidade, como se seus descendentes não
fossem humanos. Há uma simbiose entre práticas violen-
tas, sexistas e racistas, além do conformismo com a miséria
em plena república capitalista industrializada, importante
produtora de bens agrícolas.
O movimento negro, integrado por intelectuais ativis-
tas, exige que seja a causa dos negros colocada nas pautas
políticas do governo brasileiro, inclusive na pauta das rela-
ções internacionais. Ser negro no Brasil é ter cidadania sob
suspeita, desde o direito de ir e vir até o direito ao trabalho.
Se no passado eram os seus senhores, hoje são os órgãos de
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Estudantes curtem o show do DJ KL Jay, do grupo Racionais MCs, A Uerj, 14 anos antes, juntara forças e implantara as cotas
na Virada Pró-Cotas da USP, em junho de 2016
O IMPACTO
lvo das reformas estruturais dos anos 1960
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escassa democracia nas vias de acesso a esse lugar especial. Retratos gráficos do Brasil
Assim, entre os 2 milhões de estudantes de graduação que Antes da lei de cotas: evolução do quadro de estudantes de graduação e
formados na faixa de 18 a 24 anos em 1997-2011
o país registrava em 1997, 60% deles concentrados na faixa
etária de 18 a 24 anos, mais os milhares de formados nessa 1997 2004 2011
mesma faixa, equivalendo juntos a modestos 7,2% desses 20,1 22,1 23,9
17,3 17,6
jovens, estavam apenas 4% dos jovens negros brasileiros 11,9 11,9
15,4 14,0
12,1
9,3 9,1
e, mais especificamente, 1,8% dos jovens pretos e 2,2% dos 6,3 6,4 7,3 7,1
3,6 3,4
pardos, ante 11,4% dos jovens brancos. São dados oficiais do
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil
Ministério da Educação.
Duas décadas mais tarde, em 2018, pelo menos nas insti
Renda domiciliar Gênero
tuições públicas de ensino superior, mais da metade da po- Per capita 47,1
41,6 20,5
pulação estudantil na graduação era composta por pessoas 13,9 14,6
22,9
pretas e pardas. Haviam atingido 50,3% desse universo, de 7,9
10,3
6,2
acordo com estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e 0,5 0,6 4,2
Estatística (IBGE), aproximando-se, finalmente, de sua par- 20% de menor renda 20% de maior renda Feminino Masculino
ticipação efetiva na população, isto é, 55,8% dos brasileiros.
Faltam ainda dados seguros da atual distribuição étnica no Cor
25,6
universo total de 8,5 milhões de estudantes de graduação 18,7
registrados no Censo da Educação Superior de 2019 (MEC/ 11,4 8,8
11,0
5,0 5,6
Inep), dos quais 2 milhões ligados às instituições públicas e 1,8 2,2
6,5 milhões às universidades e faculdades privadas. Brancos Pretos Pardos
Por trás dessa profunda reviravolta, cujas repercussões NOTA: EXCLUSIVE A POPULAÇÃO RURAL DE RO, AC, AM, RR, PA E AP EM 1997
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A questão racial, na verdade, não é abordada nesse projeto. Avanço das cotas nas instituições paulistas
Seu foco é outro, ainda que, se aprovado, pudesse beneficiar de Ingresso de estudantes pretos, pardos e indígenas cresce em ritmos distintos
forma indireta e parcialmente a população negra. Como dito Em % USP Unicamp Unesp
nas primeiras linhas do texto de 2005 do relator, o deputado 37,2
33,5
mato-grossense Carlos Abicalil, do PT, o Projeto de Lei nº 73/99 31,5
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10 anos para “a revisão do programa especial para o acesso O estudo dirigia-se a “um mapeamento da discussão de
às instituições de educação superior de estudantes pretos, propostas de ações afirmativas voltadas para a população
pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado negra no Brasil”, partindo do pressuposto de que, embora
integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Em 2016 incipiente, o debate já suscitava “diversas polêmicas”. No
incluiu-se aí também “pessoas com deficiência”. resumo da pesquisa, a então mestranda Moehlecke e desde
2006 professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pesquisas à frente do tempo (UFRJ), observava que “a informação corrente no país traz
Quando a lei federal das cotas entrou em vigor, várias insti- como principal referência a experiência norte-americana,
tuições públicas tinham adotado modelos afins ao que ela hoje com quase 40 anos, e identifica as ações, fundamen-
propunha, por iniciativa própria ou por determinação de talmente, com o sistema de cotas, como é o caso de alguns
legislações locais. E uma vez sancionada, a lei tanto incen- projetos de lei que visam à melhoria do acesso da popula-
tivou a adoção crescente do sistema por novas instituições ção negra ao ensino superior”. Defendia a necessidade de
estaduais e municipais quanto, numa outra ponta, estimu- um debate mais detalhado, acrescentando que “através da
lou uma série de pesquisas que iriam investigar os efeitos análise do processo de denúncia, reconhecimento e, princi-
de uma política pública cuja proposição levantava enormes palmente, das formas de combate ao racismo, observa-se que
resistências no ambiente acadêmico. E, contra ou a favor, as particularidades da realidade social, política, econômica
o que mais se desejava investigar eram indicadores de de- e racial brasileiras são apreendidas na formulação de ações
sempenho dos estudantes que passavam a alcançar a uni- afirmativas que vão assumindo significados específicos”.
versidade via cotas sociais e raciais. Desenvolvida entre 2007 e 2009, uma outra pesquisa de
A rigor, entretanto, há estudos sobre as cotas que antecede- mestrado apoiada com bolsa da FAPESP foi “Raça e Estado
ram de longe esse florescimento de pesquisas pós-Lei nº 12.711, Democrático: o debate sociojurídico acerca das políticas de
inclusive em estados que postergaram por alguns anos a ado- ação afirmativa no Brasil”, de Priscila Martins de Medeiros,
ção de um sistema similar ao federal em instituições estaduais. orientada pelo sociólogo Valter Roberto Silvério, professor
Veja-se o caso de São Paulo: já em junho de1998 e até fevereiro na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), dedicado
de 2000, a FAPESP apoiou com uma bolsa a pesquisa de mes- em estudos pós-coloniais e relações raciais. Medeiros, que
trado de Sabrina Moehlecke, “Políticas de ação afirmativa hoje, além de professora, é coordenadora da pós-graduação
no Brasil: cotas para negros na universidade”, orientada por em sociologia no Centro de Educação e Ciências Humanas
Romualdo Luiz Portela de Oliveira, professor da Faculdade de (CECH) da UFSCar, estava empenhada no “mapeamento
Educação da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador das repercussões das ações afirmativas no campo jurídi-
reconhecido nos temas de políticas educacionais. co brasileiro, desde a criação da Lei Orgânica do Ministério
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Público (em 1985)”, para o que precisava identificar “o po-
sicionamento e os preceitos do Poder Judiciário quanto às
minorias na sociedade normativa” e as mudanças ocorridas
nesse âmbito dentro do Estado democrático.
A pesquisa partia do pressuposto de que havia uma
mudança de paradigma do Estado para observar quais “as
perspectivas e as representações de sociedade presentes nos
discursos acerca das Ações Afirmativas”. Entendia o pertenci-
mento racial como “um determinante muito significativo na
estruturação das desigualdades socioeconômicas no Brasil”,
tese aos poucos “reconhecida pela sociedade civil, pelos aca-
dêmicos e pelo Estado” e objeto de um debate mais intenso
com a aprovação da política de cotas raciais em algumas
Em maio de 2017, a Unicamp aprovou a proposta de adoção de cotas étnico-
universidades públicas. “Essas medidas deram início a uma -raciais em substituição ao sistema de bonificação por pontos no vestibular
do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade políticas afirmativas, os universitários também “apontam
Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente professora novos horizontes para a criação de diálogos mais simétri-
na Faculdade de Educação da Universidade de Antioquia cos na produção de conhecimento, por meio de estratégias
(UdeA), Colômbia, Soares Sito inclui entre as conclusões de como a autoetnografia, transculturação, crítica, colaboração,
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mas o problema era a execução”, relata. O argumento que en-
A POLÍTICA DE COTAS tão se apresentava como o mais racional, lembra, “era: ‘isso
TERÁ GRANDE REFLEXO não deve ser feito assim de uma maneira forçada, precisamos
EM TODAS AS POSIÇÕES incluir e melhorar muito a qualidade do ensino básico, de
tal maneira que todos competirão de maneira igual e, final-
QUE SÃO DEPENDENTES
mente, a sociedade estará representada na universidade’”.
DA QUALIFICAÇÃO Ora, pondera ele, “pode até parecer que faz sentido, desde
TÉCNICA E CIENTÍFICA que você tenha mais cem anos para realizar esse objetivo”.
Ex-presidente do CNPq, o Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecnológico (2007-2010), Zago ressalta
que, sem uma intervenção no topo, “naquele segmento do
bilinguismo, mediação, denúncia, expressões vernáculas, ensino que é o mais diferenciado, onde estão as pessoas que
propostas alternativas e reconstrução de imaginário”. serão lideranças e vão conduzir o processo, não se potencia-
O volume de estudos apoiados pela FAPESP nesse cam- liza a intervenção mais ampla pela inclusão”.
po vem crescendo, e seu presidente, Marco Antonio Zago,
diz não ter nenhuma dúvida de que, dentro de algum tem- Marcha lenta na ação política
po, a política de cotas terá um reflexo muito grande em Se na pesquisa do tema as instituições paulistas não têm
todas as posições que são dependentes da qualificação demoras a lamentar, na implantação das ações afirmativas
técnica e científica. “Não estou falando de um tempo geo- elas foram lentas, e as primeiras iniciativas passam ao largo
lógico, de esperarmos um século pela mudança”, enfatiza. de seu território. O pioneirismo é da Universidade do Estado
Zago era o reitor da USP entre 2014 e 2018, quando a re- da Bahia (Uneb), que aprovou o sistema de cotas para a gra-
serva de vagas por critérios sociais e raciais foi implantada duação e a pós-graduação em julho de 2002. Seguiram-na
nessa que é a maior instituição de ensino superior público a do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autora do primeiro ves-
do país, e, atento aos processos de inclusão em curso nas tibular com ações afirmativas, no começo de 2003; a Uni-
universidades e institutos de pesquisa paulistas, observa versidade de Brasília (UnB), com seu Plano de Metas para
uma mudança significativa do olhar em relação às cotas Integração Social, Étnica e Racial, que em junho de 2003
nos últimos anos. destinou a candidatos negros, independentemente das cotas
“Quando assumi a reitoria na USP, havia uma clara resis- sociais, 20% das vagas do vestibular; e a Federal da Bahia
tência à mudança. Todos diziam que era muito importante (UFBA), com a implementação da reserva de vagas por cri-
fazer inclusão social e racial, ninguém discutia o princípio, tério sociorracial no fim de 2004.
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Mais de uma década se passaria antes que as estaduais
paulistas transitassem das fórmulas de bonificação, basea-
das em pontos adicionais no vestibular, para a de reserva
de vagas por cotas. Houve tentativas anteriores, como a do
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público
Paulista (Pimesp), elaborado pelo então presidente da Fun-
dação Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp),
Carlos Vogt, e lançado pelo governador Geraldo Alckmin em
novembro de 2012, com o aval do Conselho de Reitores das
Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) e da Superinten- Avanço por etapas: dos formandos do ProFIS, oriundos das escolas públicas de
Campinas, em 2013, ao vestibular indígena e cotas étnico-raciais em 2017
dência do Centro Paula Souza. A implantação estava prevista
para 2014, após aprovação nos conselhos universitários das
instituições. cursos das Faculdades de Tecnologia, as Fatecs, e os do 2º ano
O projeto estabelecia metas progressivas em vez de cotas poderiam ingressar em cursos das universidades estaduais.
imediatas — começando com 35%, até que 50% das vagas “O ProFIS, implantado na Unicamp desde 2011, era uma for-
de cada curso e em cada turno estivessem ocupadas por alu- te inspiração para o Pimesp”, diz Vogt, ex-reitor dessa univer-
nos originários da rede pública. Em números absolutos, isso sidade (1990-1994) e ex-presidente da FAPESP (2002-2007).
significava 22 mil vagas no conjunto das instituições esta- De fato, o Programa de Formação Interdisciplinar Superior
duais paulistas e, desse total, 7,7 mil vagas, ou 35%, seriam oferece um curso de dois anos de duração, com um forte ca-
destinadas a estudantes negros, pardos e indígenas, numa ráter de formação geral, e seleciona os melhores alunos das
proporção equivalente à representatividade desses grupos na escolas públicas de Campinas a partir da nota no Enem. Após
população do estado. O projeto também propunha a criação a conclusão dessa etapa, os alunos escolhem entre os cursos
de um fundo especial de apoio à inclusão e se estruturava num de graduação de acordo com seu desempenho e o número de
curso sequencial de dois anos baseado em estudos gerais de vagas oferecido em cada um. “Eu gosto de falar que o ProFIS
nível superior, que comporiam os Institutos Comunitários significa cotas geográficas, porque a ideia é ter pelo menos
de Ensino Superior (Ices), com metade das atividades didáticas um estudante de cada escola pública de Campinas dentro do
ANTONINHO PERRI /SEC UNICAMP
em modo presencial e a outra metade a distância. A seleção programa”, diz o ex-reitor Marcelo Knobel (2017-2021).
dos candidatos seria pelas notas obtidas no Exame Nacio- Mas, abandonado o Pimesp, sob críticas dos que só viam
nal do Ensino Médio, o Enem. Os concluintes do 1º ano com nele o modelo dos colleges, em agosto de 2013 o Conselho
aproveitamento superior a 70% teriam ingresso garantido em Universitário da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
18 19
aprovou sua política e, quase quatro anos depois, em julho
de 2017, foi a vez do Conselho da USP dizer sim ao sistema de
cotas a partir do vestibular de 2018, com os votos favoráveis
de 75 membros, 8 votos contra e 9 abstenções. Venceram os
que entendiam que se não fossem feitas “intervenções con-
comitantes em todos os níveis, inclusive na universidade, não
teríamos resultados mais rápidos, como eram necessários”,
diz Marco Antonio Zago. “O único local em que nos restava
capacidade decisória para intervir era na universidade, e era
privilégio nosso decidir o que fazer”, enfatiza o ex-reitor. Per-
deram os que disfarçavam as razões de sua oposição às cotas Recepção em 2018 aos primeiros calouros aprovados no vestibular indígena
da Unicamp
sob a defesa genérica da meritocracia.
Na Unicamp, as cotas foram aprovadas em novembro de
2017 e começaram a vigorar em 2019, mesmo ano em que foi nas periferias, nos grupos mais pobres, o racismo também
realizado também o primeiro vestibular indígena. Na verdade, atravessa as classes médias, que, por exemplo, com muito es-
desde 2004 ela oferecia pontuação extra no vestibular a estu- forço, pagam uma escola particular para seus filhos.”
dantes oriundos de escolas públicas e, pouco depois, a pretos
e pardos, por meio do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Um caminho sem retorno
Social (Paais). Mas a representatividade da população negra São variados os estudos apoiados pela FAPESP que confir-
avançava pouco com esse mecanismo, o que ficou claro no pri- mam o equívoco dos que previam perda de qualidade nas
meiro ano de adoção das cotas étnico-raciais, quando o ingres- universidades públicas em decorrência das cotas. Assim,
so de estudantes pretos e pardos passou de 23,9%, em 2018, uma pesquisa de 2017, coordenada por Jacques Wainer, do
para 37,2%, em 2019. Era perceptível também a insuficiência Instituto de Computação da Unicamp, e Tatiana Melguizo,
das cotas sociais para o enfrentamento da questão racial. “Em- da Universidade do Sul da Califórnia (EUA), comparou a per-
bora tenhamos uma correlação de aproximadamente 85% en- formance de cerca de 1 milhão de alunos no Exame Nacional
tre estudantes de baixa renda e pretos e pardos, sabemos que de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2012 e 2014 e
ANTONINHO PERRI /SEC UNICAMP
o racismo é um fenômeno estrutural que perpassa todos os concluiu que o desempenho de formandos que ingressaram
grupos de renda”, diz José Alves de Freitas Neto, coordenador no ensino superior via ações afirmativas equivale ou supera
da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp o de jovens que chegaram nas instituições de ensino superior
(Comvest). “Mais visível e com uma conotação mais perversa pela chamada ampla concorrência.
20 21
Num outro trabalho, “Desempenho acadêmico e frequên- Dado que as cotas na graduação alcançaram abrangência
cia dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão significativa, os desafios atuais se concentram mais em sua
da Unesp”, o coordenador da Permanência Estudantil, Mário extensão à pós-graduação, além, claro, do foco na revalida-
Sérgio Vasconcelos, e colegas concluíram que não há dife- ção da Lei nº 12.711. O Censo da Educação Superior de 2016
renças relevantes de rendimento acadêmico entre os que mostrou que mulheres pretas e pardas com doutorado não
ingressaram pelo sistema universal e aqueles que entraram chegavam a 3% do total de docentes da pós-graduação no
via reserva de vagas. O estudo vasculhou e sistematizou in- país, embora muitos programas já adotem algum tipo de ação
formações referentes à população total de estudantes que afirmativa. Lima relata, a propósito, que uma das iniciativas
entraram na Unesp de 2014 a 2017, ou seja, um banco de do Cebrap AFRO é o mapeamento dos formatos de inclusão
dados oficial referente a 35.294 estudantes, com 52 variáveis. contidos nos quase 3 mil editais de pós em todo o país.
Já uma análise divulgada em dezembro de 2021 pelo Cen- Nesse quadro, um enorme gargalo ainda é a docência,
tro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciên- porque há pouquíssimos docentes negros nas universida-
cia), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), des brasileiras, ela observa. Debora Jeffrey, professora da
sobre a mudança de perfil de estudantes do ensino superior Faculdade de Educação da Unicamp e primeira presiden-
da área da saúde, nas provas do Enade, em 2013 e em 2019, te da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da
em 15 instituições públicas federais, demonstrou que a maior Diretoria Executiva de Direitos Humanos, lembra que dos
parte delas teve um ganho na nota média da prova de conhe- 1.800 professores dessa universidade em 2021, apenas 121
cimentos específicos com as ações afirmativas. Na Unifesp, eram negros, ou seja, 6,7%.
por exemplo, ela foi de 35,56 para 54,16. Ainda que a regulamentação da Lei nº 12.711 não tenha
“Todas aquelas previsões muito negativas de queda de traçado um desenho específico da avaliação da política e
qualidade não levavam em conta o quanto a existência da haja um vácuo sobre como será sua revisão, as articulações
política muda a dinâmica de quem se candidata”, diz Márcia para defendê-la ou derrubá-la intensificaram-se na esfera
Lima, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências política entre 2021 e o começo de 2022. Entretanto, Teresa
Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do Cebrap AFRO, Atvars, vice-reitora da Unicamp entre 2017 e 2021, observa
núcleo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento criado que a revisão da lei também traz a oportunidade de as uni-
em novembro de 2019. “Mudou o perfil de quem demanda versidades reafirmarem a sua autonomia. “Se por um erro
a universidade. Hoje, um aluno que é apto a se candidatar a do Congresso a lei cair, as universidades continuarão com o
uma vaga pelas ações afirmativas, já sabendo disso, muda a sistema de cotas, porque essa opção foi tomada no início à
relação com o estudo, investe e se prepara. Ter uma chance revelia da lei, quando ela não existia. O assunto está consoli-
já transforma todo o processo. dado nas universidades públicas, não tem retorno”, diz. ——
22 23
PESQUISA E A ciência acadêmica levou os povos indígenas a nela colocar
tanta fé que acabam desvalorizando seus conhecimentos tradi-
INCLUSÃO DE cionais e ancestrais por menos resolutivos. A ciência acadêmica
ção indígena tradicional continua levando em conta essa Os povos indígenas não querem ser enquadrados nas lógi-
alteridade, enquanto liberdade do indígena ser ele próprio. cas academicistas e meritocráticas que alimentam e sustentam
24 25
os processos de reprodução do conhecimento, da técnica e do impacto é se sentir perdido e sozinho num mundo desconhe-
poder individualista, consumista, materialista e capitalista. cido, estranho e às vezes hostil. Alguns logo desistem, mas a
Querem contribuir com o mundo a partir da universidade maioria segue adiante.
com seus saberes, valores comunitários, suas cosmologias Os fundamentos da discriminação e do racismo foram his-
e seus modos de ser, de viver e de estar no mundo. toricamente criados como as situações em que o esperado era
Se as universidades vêm passando pela experiência de que os indígenas sempre fossem “inferiores” na realização das
receber estudantes indígenas até então tratados como outros, atividades acadêmicas. E contra a diversidade de vivências e
desconhecidos, exóticos e estranhos, os acadêmicos indíge- trajetórias históricas, pensa-se preconceituosamente num
nas também têm assumido a responsabilidade de enfrentar indígena estático e genérico que vive na mata, estereótipo
e discutir sua diversidade cultural, social e epistêmica. A pre- concebido pela história, pelos meios de comunicação e pela
sença indígena interroga a universidade e evidencia as sutis literatura (Luna, 2021). Há práticas de racismo também por
e as explícitas expressões do racismo estrutural marcadas em parte dos professores universitários. São comuns casos em que
sua organização administrativa, acadêmica e curricular e nas adotam posturas de desprezo, discriminação, tutela, subjugan-
relações sociais no cotidiano dos cursos e das instituições. do e transformando suas diferenças em incapacidades, para
O Brasil tem mais de 1 milhão de indígenas de 305 etnias, uma “adaptação à civilização” (Luna, 2021). Há desencontros
falantes de 275 línguas nativas, estimou o IBGE em 2020. e confrontos epistemológicos e ontológicos.
Desses, 37,4% falam ao menos uma língua indígena e, em Mas, é importante destacar, mesmo diante de muita
2018, havia 260.875 deles na educação básica e 57 mil na opressão e racismo, os estudantes indígenas desenvolvem
educação superior, segundo o censo escolar Inep/MEC. estratégias para sobreviver nas instituições, potencializando
As universidades públicas criaram programas para in- suas experiências de superação. E o desafio que se constitui é
gresso e permanência de indígenas, e algumas implantaram o de visibilizar afirmativamente a presença indígena na edu-
estruturas específicas para atender a demanda. O primeiro cação superior, que nos enche de esperanças numa instituição
desafio do acadêmico indígena aprovado no processo sele- educativa verdadeiramente. Universidade que acolhe, agrega,
tivo é buscar meios materiais e financeiros para se deslo- soma, promove e expressa o universo ilimitado e plural de
car de sua aldeia até a universidade. As famílias indígenas saberes, valores e sujeitos de conhecimentos. Sonhos por
aldeadas, em geral, vivem de caça, pesca e de agricultura de uma Universidade PluriCultural, PluriÉtnica, PluriRacial e
subsistência ou com algum benefício de programas sociais. PluriEpistêmica, capaz de contribuir para a derrubada de-
A chegada à universidade é sempre um momento marcan- finitiva do racismo e da violência epistêmica e de construir
te de choques, rupturas, mudanças, de encontros e desencon- pontes, trilhas e horizontes civilizatórios que nos entrelacem
tros nesse novo ambiente de vida e de estudos. O primeiro com as nossas diferenças e diversidades de existências. ——
26 27
Genealogia acadêmica:
50 pesquisadoras
contribuíram, direta
e indiretamente,
para a formação de
32 mil cientistas
UM LEVANTE
CIENTÍFICO CONTRA
A DESIGUALDADE
DE GÊNERO
28 29
a projetos de pesquisa ligados às questões de gênero. Em impulsionar o empreendedorismo e o empoderamento de
pouco mais de duas décadas, a FAPESP contabilizou 211 au- mulheres negras.
xílios e bolsas concedidos a 170 pesquisadores dedicados a “Investigações desse tipo ajudam a compreender mudan-
temas como igualdade de gênero, sexualidade e violência ças em certas convenções sociais, abrindo novas abordagens
contra a mulher. às reflexões sobre temas tradicionais, como acessibilidade
Esse tipo de enfoque, segundo especialistas, é fundamen- e inclusão no ensino superior”, avalia Facchini, que integra
tal para aprofundar a compreensão do papel das mulheres a Comissão de Combate à Violência Sexual e de Gênero da
na sociedade e gerar informações capazes de subsidiar po- Unicamp. Ao financiar projetos dentro dessa temática, com-
líticas favoráveis ao equilíbrio entre homens e mulheres na pleta ela, a FAPESP contribui para a consolidação de uma base
pesquisa científica. “Nos anos 1960 e 1970, o foco dos estudos científica sólida com potencial de influenciar políticas institu-
era principalmente na condição feminina, nos efeitos da vio- cionais que estimulem a entrada e assegurem a permanência
lência doméstica e nas assimetrias do mercado de trabalho. de mulheres na universidade. “Assim como o Pagu, há diversos
Nas últimas décadas, o referencial se expandiu para tratar outros grupos dedicados a entender os entraves que dificultam
das relações de gênero em diversos setores da sociedade, a participação de mulheres não apenas em áreas dominadas
incluindo o ambiente acadêmico”, explica a antropóloga Re- por homens, como as ciências exatas e as tecnológicas, mas
gina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero também nos cargos mais altos e de maior remuneração.”
Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A partir de pesquisas desse porte, diz a antropóloga, a
A trajetória do núcleo, criado em 1986, é marcada por es- Unicamp vem desenvolvendo ações com o objetivo de elevar
tudos que questionam a visão polarizada do mundo e a sua o número de mulheres em seu quadro de docentes — atual-
compreensão binária por categorias como mulher e homem, mente composto por 1.194 professores e só 734 professoras.
negro e branco, homossexual e heterossexual, velho e jovem. Uma saída, propõe Facchini, é que os processos de contra-
Cerca de 72 projetos realizados pelo Pagu foram financia- tação e promoção na carreira levem em consideração com-
dos pela FAPESP desde 1999, muitos dos quais articulando portamentos sociais e vieses que influenciam a trajetória
gênero e outras categorias de diferença, como classe, raça, profissional das mulheres.
nacionalidade e religião. Um deles, conduzido pela cientista Eventuais interrupções na carreira decorrentes de licen-
social Gleicy Mailly da Silva, tem mostrado como o maior ça-maternidade ou da necessidade de cuidar de filhos, fami-
acesso de mulheres negras às universidades, especialmente liares enfermos ou idosos são fatores que frequentemente
na primeira década dos anos 2000, contribuiu para arti colocam as mulheres cientistas em desvantagem na hora de
cular militância política e atividade acadêmica em institui- ocupar cargos de maior poder em universidades, instituições
ções de ensino e pesquisa paulistas e, concomitantemente, de pesquisa e agências de fomento, diz Ana Maria Fonseca de
30 31
Almeida, professora da Faculdade de Educação da Unicamp
e estudiosa das desigualdades de gênero na educação. SÚMULA CURRICULAR DA
“Por essa razão, é importante que procedimentos de avalia- FAPESP FOI AJUSTADA
ção de projetos submetidos à FAPESP estejam sendo revistos EM 2021 PARA RECONHECER
e reestruturados, a fim de reconhecer fatores que favorecem
DESAFIOS ESPECÍFICOS
a queda na produtividade de pesquisadoras”, diz Almeida,
referindo-se a uma iniciativa implementada pela Fundação DAS MULHERES, COMO A
em julho de 2021. Na ocasião, a FAPESP atualizou seu modelo LICENÇA-MATERNIDADE
de súmula curricular, documento que acompanha todas as
solicitações de financiamento encaminhadas à entidade.
A principal mudança foi a inclusão de uma orientação ex-
plícita para que o pesquisador responsável pelo projeto infor- pesquisadoras indiquem seus períodos de licença-materni-
me eventuais interrupções na carreira devido a licenças mé- dade. A geóloga Adriana Alves, por exemplo, tem duas dessas
dicas, incluindo licença-maternidade ou licença-paternidade. licenças anotadas no currículo, de 180 dias cada uma, e a
“Também é possível comunicar envolvimento com cuidados primeira referência que aparece em sua descrição pessoal na
de terceiros”, salienta Almeida, que é membro da Coordenação plataforma é “Adriana Alves, mãe de Flora e Serena”. A ex-
Adjunta de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. pectativa, diz ela, é que iniciativas como essas promovam
Na avaliação do neurocientista Luiz Eugênio Mello, di- uma mudança estruturante de cultura nas universidades e
retor científico da FAPESP, a medida deve beneficiar prin- instituições científicas. “Há uma complexidade inerente ao
cipalmente mulheres, uma vez que o trabalho doméstico problema da desigualdade de gênero na ciência, e isso tem
e os cuidados com a família tendem, culturalmente, a re- de estar no radar dos tomadores de decisão”, afirma Alves,
cair mais pesadamente sobre elas. “Ao solicitar esse tipo de que é professora do Instituto de Geociências da Universi-
informação a quem preenche a súmula, a agência orienta dade de São Paulo (USP) desde 2010 e, desde o fim de 2021,
que os avaliadores dos projetos levem em consideração, por coordena o Escritório USP Mulheres, dedicado à elaboração
exemplo, o período em que mulheres cientistas se tornaram e implementação de iniciativas de promoção da igualdade
mães”, destaca Mello. de gênero nos sete campi da universidade.
Outras agências, entre elas o Conselho Nacional de De- Além da queda na produtividade, diz ela, o trabalho do-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), investem méstico e os cuidados com a família — que tendem a recair
em mecanismos semelhantes. Em abril de 2021, a Plataforma mais sobre as mulheres — também podem dificultar a parti-
Lattes, mantida pelo CNPq, também passou a permitir que cipação em projetos internacionais, uma das atividades que
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diploma universitário em 2019, comparado a 15,1% dos ho-
mens. A proporção de mulheres entre docentes de ensino
superior, no entanto, ainda estava abaixo da metade: 46,8%
no Brasil e 43,4% no estado de São Paulo. A diferença se alar-
ga nos andares mais altos da pirâmide acadêmica: apenas
107 dos 576 membros titulares da Academia Brasileira de
Ciências eram mulheres em 2022.
“Mesmo optando por não ter filhos, sempre foi clara em
mim a percepção de que há um teto de vidro, uma barrei-
ra invisível que impede as mulheres de chegar ao topo da
carreira no ambiente acadêmico”, diz a astrônoma Beatriz
Adriana Alves e Beatriz Barbuy, da USP: pesquisadoras de gerações distintas, Barbuy, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e
com um objetivo comum, de valorizar as mulheres na ciência Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e pesquisadora nível 1A
do CNPq. Ela reconhece a importância dos estímulos que re-
costumam trazer benefícios simbólicos aos pesquisadores, re- cebeu na infância e na adolescência para se tornar cientista e
sultando em prestígio e poder acadêmico. Nota-se, por exem- seguir em uma área predominantemente masculina. “Meus
plo, que a distribuição de bolsas de produtividade em pesqui- pais eram filósofos e incentivavam, sem distinção, que seus
sa do CNPq foi marcada por ampla desigualdade de gênero na filhos homens e mulheres seguissem carreira intelectual”,
última década (2010-2021), de acordo com um levantamento conta Barbuy. “Eu gostava de matemática e, após ler um
feito por pesquisadores das universidades federais de Santa livro do físico ucraniano George Gamow, fiquei encantada
Catarina, Alagoas e Pernambuco.1 Entre os bolsistas da catego- pela astronomia.”
ria 1A nesse período, por exemplo, apenas 26% eram mulheres. Barbuy reconhece que seu caso está mais para exceção
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Es- do que regra. Nas últimas décadas, a pesquisadora ocupou
tatística (IBGE),2 as mulheres já são maioria entre os adultos cargos importantes no Brasil e no exterior; entre eles, o de vi-
com nível superior completo no Brasil: 19,4% delas tinham ce-presidente da União Astronômica Internacional (IAU), de
2003 a 2009. Em 2009, recebeu o Prêmio L’Oréal-Unesco para
CECILIA BASTOS / USP IMAGENS
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tante, sem dúvida. No entanto, o ideal seria que eu e outras Mulheres presentes
pesquisadoras tivéssemos mais oportunidades para ocupar Participação feminina em projetos da FAPESP cresceu entre 2000 e 2016;
taxa de aprovação permaneceu quase idêntica para homens e mulheres
cargos de direção em departamentos de universidades, insti-
tuições de pesquisa e mesmo na FAPESP, onde a participação Projetos submetidos à FAPESP por gênero e participação feminina
feminina no alto escalão ainda é baixa”, argumenta Barbuy. Feminino Masculino % Feminino total (eixo direito)
20.000 50%
42% 44% 42%
18.000 45%
40%
16.000 36% 40%
Equidade nas coordenações 14.000 15.504 35%
12.000 13.942 30%
Mello, da FAPESP, reconhece a necessidade de ampliar a 10.000
10.546
11.938
10.939 11.333 25%
10.080
diversidade entre assessores da agência e ressalta que um 8.000
6.000
6.938
8.816
20%
15%
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primeiro passo já foi dado nesse sentido. “Promovemos mu- 4.000
2.000
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toria Científica na análise dos pedidos de bolsas e auxílios
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submetidos à Fundação”, diz. A medida, em vigor desde maio Taxas de sucesso de projetos submetidos, por gênero
de 2021, aumentou de 17% para 48% a proporção de mulhe- Em % Feminino Masculino
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nacional e internacional no que diz respeito às políticas de
FONTE: INDICADORES FAPESP / ADAPTADO DE PESQUISA FAPESP - EDIÇÃO 259 (2017)
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Diante dessa realidade, é preciso tomar cuidado para não da comunidade LGBTQIA+, sigla para lésbica, gay, bissexual,
difundir afirmações genéricas sobre a baixa participação de transexual, queer, intersexo, assexual e outras diversidades
mulheres nas chamadas áreas STEMM (sigla em inglês para de sexo e gênero. “No debate sobre diversidade nas universi-
ciência, tecnologia, engenharias, matemática e medicina), dades, não podemos deixar de fora a necessidade de inclusão
alerta a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, e acolhimento de estudantes e pesquisadores homossexuais
professora titular aposentada da USP e pesquisadora do Cen- e transgêneros”, argumenta o psicólogo Leonardo Lemos de
tro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap). Segundo Souza, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Univer-
ela, mesmo em áreas de pesquisa como medicina há especiali- sidade Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis.
dades em que a predominância é de mulheres, como pediatria. “No caso de pessoas trans, que se identificam com um gê-
Ao mesmo tempo, dentro das ciências humanas, existem áreas nero diferente daquele que lhes foi atribuído ao nascerem, as
dominadas por homens, como é o caso da filosofia. dificuldades para acessar o ambiente acadêmico são mais
“Entendo que a situação geral melhora de geração em ge- acentuadas”, destaca Souza. Dados da Associação Nacio-
ração”, diz Maria Hermínia, que fez parte da Coordenação Ad- nal de Travestis e Transexuais (Antra) mostram que apenas
junta de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP por 10 anos 0,02% dessa população está no ensino superior e 70% não
(1996-2006). “Na geração da minha mãe, poucas mulheres concluíram o ensino médio.
chegavam à universidade, apenas um número muito reduzido Em entrevistas feitas em várias unidades da Unesp, pessoas
de membros da elite educada. Hoje em dia há um inequívoco LGBTQIA+ disseram se sentir fisicamente seguras na univer-
progresso. As barreiras existem, mas estão cedendo.” sidade, relata Souza. Ao mesmo tempo, porém, indicaram a
Passo a passo, a mudança começa a se consolidar, tam- percepção de que a instituição não sabe acolher essa população
bém, nos níveis mais altos do mérito científico nacional: em nem reconhece suas especificidades. “Ainda que se sintam se-
2022, pela primeira vez, as mulheres foram maioria entre os guras fisicamente, essas pessoas sofrem assédio, discriminações
novos membros eleitos para o quadro titular da Academia e exclusões. Isso ocorre principalmente por falta de informação
Brasileira de Ciências. e devido a uma cultura de desrespeito e invisibilidade desses
indivíduos”, afirma Souza, responsável pela Coordenadoria de
Desafios da população LGBTQIA+ Educação para Diversidade e Equidade da Unesp.
Um aspecto importante de ser lembrado é que os estudos de “Um dos maiores desafios que transgêneros encontram no
gênero não são apenas sobre mulheres cisgênero — termo que ensino superior é a aceitação pelos colegas e professores”, afir-
se refere a pessoas que se identificam com o gênero que lhes ma a física Daniela Cardozo Mourão, do Departamento de Ma-
foi atribuído no nascimento (correspondente à sua anatomia temática da Unesp de Guaratinguetá. Professora transgênero,
sexual). Também é possível estudar gênero sob a perspectiva Mourão participou da comissão responsável pela resolução
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aprovada em 2017, na Unesp, garantindo a professores, ser-
vidores técnico-administrativos e alunos transgêneros o
direito de uso do nome social em registros funcionais e em
eventos oficiais. Outras universidades, entre elas USP, Uni-
camp e a federal da Bahia (UFBA) têm iniciativas parecidas.
Na FAPESP, o Conselho Técnico Administrativo aprovou em
2018 um parecer que normatiza a adoção de nome social em
seus registros acadêmicos. (Nome social é aquele que pes-
soas trans adotam para se identificar socialmente.)
Facchini, do Núcleo Pagu, identifica um movimento re-
cente, cada vez mais forte, de estudos realizados por pessoas
Primeira Parada do Orgulho LGBT na Universidade de Brasília (UnB), 2015
assumidamente trans, que ingressam no ensino superior por
meio de políticas de ação afirmativa e de respeito à diversi-
dade cultural e de gênero. “É importante que universidades e Diálogo entre áreas do conhecimento
agências de fomento como a FAPESP tenham em mãos mais Na visão de Souza, da Unesp, é fundamental ampliar o diá-
dados sobre essa população. Só assim será possível criar ini- logo entre grupos de pesquisa que se debruçam sobre temas
ciativas concretas que busquem ampliar a participação de diversos, como sexualidade, raça e desigualdade social. “Isso
pessoas LGBTQIA+ na ciência”, diz ela. “Há muito desenten permitiria a incorporação de diferentes variáveis nas aná-
dimento na sociedade sobre quem são esses sujeitos de direi lises, viabilizando abordagens interseccionais da questão
to. Precisamos investigar as situações de vulnerabilidade trans e da igualdade de gênero a fim de ter um quadro mais
dessas pessoas, e isso requer mais dados sociodemográficos completo sobre temas como feminicídio, violência contra
sobre a população trans.” minorias e assédio no trabalho”, diz o pesquisador.
A necessidade de produzir mais trabalhos quantitati- Até o início de 2022, a FAPESP concedeu bolsas e auxílios
vos é uma demanda que desafia os estudos de gênero como a 36 projetos de pesquisa relacionados à sigla LGBTQIA+, dos
um todo, ressalta Alves, do USP Mulheres. “Evidentemente quais nove estão em andamento. A maioria (28) está no cam-
que pesquisas qualitativas são fundamentais, mas, para que po das ciências humanas, principalmente antropologia. Já o
possamos subsidiar políticas públicas mais profundamente, termo “estudos de gênero” aparece em 454 projetos financia-
nós, pesquisadores, precisamos oferecer dados e indicadores dos pela FAPESP, dos quais a maior parte (257) está nas ciên-
ISA LIMA / UNB
concretos que auxiliem os gestores das universidades no cias humanas, novamente com destaque na antropologia.
processo de tomada de decisão”, diz. “Está claro que um dos principais obstáculos a serem superados
40 41
pelos estudos de gênero é romper a bolha da disciplinaridade
e estabelecer conexões com outras áreas”, pontua Souza.
Um exemplo de como fazer isso é colocando em prática
estudos amplos, capazes de reunir pesquisadores de diferen-
tes campos do conhecimento em torno de grandes problemas
da sociedade, entre eles as mudanças climáticas, sem perder
de vista questões relacionadas à desigualdade de gênero. “Há
hoje uma necessidade urgente de mais pesquisas que ajudem
a entender como as alterações do clima impactam redes de
mulheres que dependem da pesca artesanal para sobreviver”, SABERES
por exemplo, diz a bióloga Leandra Gonçalves, do Instituto do
Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), integran- ANTIGOS, NOVOS
te de dois projetos interdisciplinares apoiados pela FAPESP e
uma das fundadoras da Liga das Mulheres pelo Oceano, mo- PROTAGONISTAS
vimento que reúne mais de 2.300 mulheres, entre pesquisa-
doras, líderes comunitárias e ativistas.
Nos últimos anos a FAPESP tem se esforçado para fomen-
tar pesquisas amplas, multissetoriais e que mobilizam cien-
tistas homens e mulheres, com o objetivo de pensar e propor
“O
soluções para problemas sociais. Projetos dessa magnitude, Brasil tem um imenso passado pela frente”,
diz Gonçalves, têm capacidade de promover não apenas a escreveu o jornalista Millôr Fernandes (1923-
diversidade de gênero dentro do próprio grupo de pesquisa, 2012). Repetida por anos a fio em diversas
mas também vincular temáticas como igualdade de gênero, conjunturas, a máxima entrou para o rol das
redução de desigualdades e conservação ambiental, que estão frases definidoras do país e pode ser aplica-
entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das da ao ensino superior. Historicamente caracterizada como
Nações Unidas — cujas metas foram internalizadas como uma etnicamente branca e de tradição intelectual europeia, hoje
referência para investimentos da FAPESP.3 —— a universidade brasileira se vê desafiada a rever suas estrutu-
ras. Nas últimas décadas, movimentos sociais e ambientais
3 Mais informações em Fapesp e os Objetivos do Desenvolvimento provocaram discussões e ensejaram medidas de inclusão na
Sustentável: ods.fapesp.br educação. Nas graduações e pós-graduações do país, a tônica
42 43
Colheita de arroz no
quilombo Morro Seco
(Iguape, SP): inclusão de
quilombolas é desafio
no ensino superior
44 45
par das suas demandas e incluindo em seus editais projetos, (Unifesp), que também utiliza o Sisu, há cotas para alunos
temáticas e medidas de inclusão. “A FAPESP considera que de escolas públicas e pessoas com deficiência. Em diversos
se trata de desenvolvimentos muito positivos para o ecossis- casos, a universidade mescla os parâmetros de seleção.
tema de pesquisa nacional e paulista, pois o conhecimento Entrar pela porta, porém, é só o começo. Vencido o desa
avança quando as questões são tratadas a partir de ângulos fio de chegada à universidade, os estudantes precisam per-
múltiplos. A diversidade dos pesquisadores é um dos motores manecer no sistema e prosseguir a vida acadêmica com tudo
da excelência na pesquisa, e a FAPESP já apoiou mais de 200 que ela oferece — estágios, atividades laboratoriais, pesqui-
projetos sobre agricultura familiar, por exemplo”, reforça Luiz sas e intercâmbios —, o que também exige ações afirmativas
Eugênio de Mello, diretor científico da Fundação. de apoio por parte das instituições, como bolsas de perma-
Nas universidades públicas do estado de São Paulo, diver- nência e auxílios para moradia, alimentação e para com-
sas iniciativas têm sido aplicadas nos últimos 20 anos para pra de materiais. Aí entram em cena as bolsas de iniciação
incentivar o ingresso de brasileiros que há décadas espera- científica e, mais adiante, as de mestrado e doutorado, que
vam sua inclusão no ensino superior. Além das cotas para o incentivam os jovens não só a continuar estudando como
ingresso de alunos pretos, pardos e oriundos de escolas pú- também a se tornarem pesquisadores, versados no método
blicas,1 instituídas a partir do início dos anos 2000, há um es- e na lógica da ciência. “A FAPESP tem participado de dis-
forço crescente no sentido de fomentar a inclusão de outros cussões com diferentes instituições no Brasil e no exterior,
grupos menos privilegiados da sociedade, como indígenas acreditando que tem o papel de contribuir para garantir que
e pessoas com deficiência (PcD). A Universidade Federal de o ecossistema de pesquisa possa ser alimentado pela popu-
São Carlos (UFSCar), por exemplo, aplica um vestibular es- lação de jovens talentosos que têm chegado às universida-
pecífico para indígenas desde 2008. A Universidade Estadual des. O estímulo à participação e à diversidade acompanha
da Campinas (Unicamp) passou a fazer o mesmo em 2018, e o interesse da FAPESP em apoiar projetos excelentes. Para
em 2022 o concurso das duas instituições foi unificado. Já a isso, ela considera sua função identificar e coibir obstáculos
Universidade Federal do ABC (UFABC), cujo ingresso se dá e barreiras sistêmicas que impedem essa participação na
por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), conta des- pesquisa”, afirma Mello. Uma dessas medidas diz respeito
de 2008 com reserva de vagas para candidatos oriundos de à noção de mérito, já que a FAPESP incorporou à análise das
escolas públicas, pessoas com deficiência e refugiados ou trajetórias dos pesquisadores o conceito de oportunidade.
solicitantes de refúgio. Na Universidade Federal de São Paulo “Analisamos os resultados apresentados à luz das experiên-
cias a que o solicitante teve acesso ao longo de sua carreira.
1 Mais informações sobre cotas na primeira reportagem deste Isso resultou na mudança no formato da súmula curricular,
fascículo, páginas 6 a 23. por exemplo”, explica o diretor, referindo-se ao documento
46 47
Liderança Yawalapiti,
uma das etnias que
colaboram com o INCT
de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa
às práticas acadêmicas é fundamental, concorda Mello. Para em Araraquara. Por isso, a própria academia dialoga e pon-
isso, a FAPESP busca garantir que portadores desses conhe- dera internamente de que maneira a inclusão pode acontecer,
cimentos possam dominar as competências necessárias para em quais termos e em quais condições.
48 49
Construções coletivas
Tal mudança de perspectiva é fruto do espírito do tempo.
O movimento de descolonização tomou força no Brasil nos
anos 2000, impulsionando a demanda por ações afirmativas
e a apropriação de espaços públicos e culturais por popula-
ções tradicionais. A pauta ambiental também ocupa lugar
no avanço da universidade rumo a uma configuração diver-
sificada e mais parecida com a população brasileira. Nesse
contexto, surgiu mais uma via de inclusão: ter populações
tradicionais não apenas como alunos ou professores de cur-
sos universitários, mas também como colaboradores de pes-
quisas acadêmicas. Alexander Turra, professor do Instituto
Baía do Araçá, em São Sebastião (SP): cientistas trabalharam em parceria com as
Oceanográfico da USP, conta que este é um movimento re- comunidades locais para estudar e conservar local ameaçado
cente. “Pesquisas sobre essas populações, existem inúmeras.
Trabalhos com elas estão começando a crescer na chamada
pesquisa transdisciplinar, onde se busca a conexão entre de promover a transformação necessária no oceano e na
ciência e sociedade, com um olhar específico e dedicado aos sociedade”, acrescenta Turra. Neste caminho, as pesquisas
grupos marginalizados e pouco ouvidos”, define o ecólogo. dialogam diretamente com políticas públicas.
Na área ambiental, o pontapé para esse tipo de pesquisa Uma dessas construções coletivas foi o projeto Biota-
se deu a partir dos anos 1980. As convenções da ONU sobre o -FAPESP Araçá, do qual o professor foi um dos participantes.
clima e biodiversidade e a Agenda 2030, com seus Objetivos “Foi um processo de discussão do futuro da baía do Araçá
de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sedimentaram o [em São Sebastião, SP], tomando como base os atores locais.
tema da sustentabilidade socioambiental no debate públi- Analisamos esse processo do ponto de vista científico, mas a
co. A academia, por sua vez, percebeu que as pesquisas e base foi a visão que as pessoas tinham sobre a importância
iniciativas de preservação ambiental não iriam para a frente do local, sua estrutura e funcionamento”, explica. Os pesqui-
sem firmar parceria com as comunidades locais. “É funda sadores mapearam as ameaças ao sistema e, junto à comu
mental o envolvimento dessas minorias na perspectiva de nidade, definiram estratégias para a preservação do local.
coconstrução da ciência. Há um rebatimento prático cla- O resultado do trabalho veio pelas mãos da comunidade
GABRIEL MONTEIRO
ro na medida em que essas pesquisas se tornam cada vez e permaneceu com ela. “O documento final, o Plano Local
mais realistas, contextualizadas e com possibilidade real de Desenvolvimento Sustentável da Baía do Araçá, foi feito
50 51
pela comunidade com a nossa facilitação. O documento se academia mais atenta às demandas sociais e emergências
tornou um instrumento poderoso para que eles pudessem ambientais. “É fundamental que estejamos atentos a esse
buscar mecanismos para implementá-lo. Hoje, anos depois, papel da ciência-cidadã, um trabalho coletivo e colaborati-
temos a comunidade mobilizada e fortalecida, participan- vo que coloca a educação como algo ‘freireano’. É a apren-
do de discussões que afetam direta e indiretamente a baía”, dizagem social, que promove as trocas e a hibridização de
comemora o professor. conhecimento por canais que não são acadêmicos stricto
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha destaca a via sensu”, observa.
da coprodução de conhecimento com as etnias indígenas.
“Há uma grande demanda por inclusão na universidade, e é Pluralizar para encontrar saídas
interessante pensar na inserção dos indígenas na literatu- A crise ambiental enfrentada pelo planeta reforça a necessi-
ra acadêmica, mais do que simplesmente seu desempenho dade de novos olhares para antigos problemas. Nesse que-
escolar”, sugere. Na antropologia, a tradição da etnografia sito, o diálogo entre culturas ocupa lugar de honra. “Há uma
e do registro de mitos das populações originárias tem dado forte relação entre povos tradicionais e biodiversidade no
lugar a uma nova corrente de pensamento e ação. “Há pelo Brasil. Estudos de arqueologia mostram que a nossa biodi-
menos 25 ou 30 anos pesquisadores estão incluindo como versidade é um legado da mão humana, pré-colombiana, na
autores os especialistas indígenas que trabalham com eles. natureza”, aponta Manuela Carneiro. A professora cita a Pla-
Há vários trabalhos em que indígenas e outras populações taforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços
tradicionais, como seringueiros, figuram como autores”, Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), criada em 2012,
completa Cunha, que é professora titular aposentada da USP cujo desenvolvimento por pesquisadores e populações tra-
e professora emérita da Universidade de Chicago. Segundo dicionais intensificou o olhar da opinião pública sobre esses
Peggion, é importante que haja incentivos institucionais para povos. “Os relatórios da IPBES deram espaço à contribuição
esse tipo de projeto, “porque essas pesquisas têm um recorte do conhecimento tradicional e local, porque as áreas mais
intelectual, mas também um compromisso ético e político”. bem conservadas estão sob a gestão deles”, exemplifica.
“É uma diferença fundamental o jovem ser pesquisador da Os especialistas afirmam ser urgente ampliar iniciativas
própria comunidade”, completa o antropólogo da Unesp. de coprodução do conhecimento científico, capazes de criar
Pedro Jacobi, professor do programa de pós-graduação uma via de diálogo entre a academia e a sociedade. “A pande
em ciência ambiental da USP e coordenador do projeto temá- mia mostrou como é importante introduzir uma cultura de
tico da FAPESP sobre Governança Ambiental da Macrome- prevenção e precaução. Esse olhar de futuro tem que ser an-
trópole Paulista Face às Mudanças Climáticas, define essas tecipatório — de uma futura pandemia, do desmatamento,
iniciativas como fundamentais para a construção de uma de comportamentos predatórios. Esses termos têm que ser
52 53
colocados fora da torre de marfim, permitindo sua decodi-
ficação para toda a sociedade. Nós, que produzimos ciência, COLABORAÇÃO ENTRE
precisamos ter pé no chão para que o nosso trabalho tenha CIÊNCIA E SOCIEDADE
um desdobramento social e esteja conectado à realidade É ESSENCIAL PARA O
global”, enfatiza Jacobi.
ENFRENTAMENTO DOS
Também há um consenso crescente sobre o papel das
agências de fomento nas iniciativas de inclusão e incentivo DESAFIOS SOCIOAMBIENTAIS
a pesquisas que levem em conta a diversidade de olhares e QUE AMEAÇAM O PLANETA
saberes sobre os desafios coletivos. Para Gislene dos Santos,
da EACH-USP, é preciso atenção para com os grupos que
costumam ficar de fora dos grandes projetos e do recebi-
mento de bolsas. “Financiar pesquisas com responsabilidade
envolve observar quem são as pessoas que majoritariamente e métricas de produtividade. Segundo Turra, o trabalho de
têm financiamento no Brasil e em São Paulo. São sempre os campo em projetos de ciência-cidadã e de parceria com a
mesmos grupos? Pode-se analisar quem são as pessoas que sociedade exige um timing diferente na execução de projetos.
poderiam receber financiamento e não recebem, investigar “Precisamos construir uma relação constante e duradoura
por que seus projetos não são aprovados”, sugere. Para Car- com as comunidades, e o formato do fomento pode ser um
valho, da UnB, o momento de efervescência e o movimento pouco limitante. Quando trabalhamos com elas, temos que
de descolonização têm nas agências de fomento um parceiro respeitar um tempo que não é o do projeto. Os órgãos de
fundamental. Para o professor, o universo acadêmico paulis- fomento precisam estar sensíveis para isso. É uma pesquisa
ta ainda não se apropriou plenamente do potencial das pes- carregada de responsabilidade e intenção de melhorar algo,
quisas e iniciativas docentes junto a populações tradicionais mas essa abordagem não dialoga necessariamente com as
e, por isso, há muito campo inexplorado. “São Paulo é um métricas exigidas dos pesquisadores, como a produção de
estado muito rico em termos de tradições negras, populares artigos”, resume.
e indígenas”, salienta. Segundo Jacobi, livros e relatórios que resultem de pes-
Mas o financiamento desses trabalhos precisa ser dife- quisas desse tipo devem ser integrados ao ensino básico e a
rente do que já é praticado em outras áreas do conhecimento. outras vias de disseminação de informação. Segundo Mello,
Os especialistas observam que o trabalho com comunida- a FAPESP conta com uma dinâmica interna que propicia a
des indígenas, tradicionais e locais vem carregado de parti emergência de novos temas de pesquisa — inclusive junto
cularidades. Entre elas, um olhar diferenciado sobre prazos a populações tradicionais, culturas da periferia e afins. “Parte
54 55
importante dos recursos é despendida para apoiar o que se
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
trata como ‘pesquisa impulsionada pela curiosidade dos
PRESIDENTE
pesquisadores e pesquisadoras’. Isso significa que não há Marco Antonio Zago
de apoio examinam o projeto em termos da contribuição Dimas Tadeu Covas, Helena Bonciani
Nader, Ignácio Maria Poveda Velasco,
que seus resultados podem oferecer para um campo de pes- Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz,
Mozart Neves Ramos, Pedro Luiz Barreiros
Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma
quisa ou mesmo para apoiar políticas públicas”, explica. Ao Krug, Vanderlan da Silva Bolzani
para garantir que esse esforço seja levado adiante , garantin- REPORTAGEM
Bruno de Pierro, Laura Araújo,
do que obstáculos sistêmicos não impeçam a participação Ricardo Muniz
afirma Mello. Turra afirma que, com base na sua experiência, Glauco Lara
uma universidade que fala com todos e para todos transfor- PESQUISA ICONOGRÁFICA
Vladimir Sacchetta
57
60ANOS.FAPESP.BR/LIVRO