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Performance antirracista:

do genocídio à dissimulação
BIANCA SILVA*

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de salientar o processo violento iniciado com a
escravização e colonização das pessoas africanas bem como sua continuidade e
atualização nas universidades ocidentalizadas. A esse processo denominamos de
“Performance Antirracista”. Para isso, utilizaremos o método Afrocêntrico em que a
perspectiva das pessoas africanas e afrodescendentes é posicionada em primeiro plano.
Isso porque é visível a exclusão ou desvalorização do pensamento destas pessoas,
principalmente no âmbito acadêmico. Assim, exporemos, através dessa metodologia de
resgate da centralidade das pessoas africanas e afrodescendentes, que as violências raciais
são perpetradas e atualizadas. Uma dessas atualizações é através do “disfarce” no qual o
opressor propaga um discurso antirracista, porém, desprovido de ações da mesma
natureza preservando, por conseguinte, a estrutura racista.
Palavras-chave: Branquitude; Afrocentricidade; apropriação; epistemicídio.
Anti-racist performance: from genocide to dissimulation
Abstract: This work aims to highlight the violent process that started with the
enslavement and colonization of African people, as well as its continuity and update in
westernized universities. This process we called Anti-“Racist Performance”. For this, we
will use the Afrocentric method in which the perspective of African and Afro-descendant
people is placed in the foreground. This is because the exclusion or devaluation of these
people's thinking is visible, especially in the academic sphere. Thus, we will expose,
through this methodology to rescue the centrality of African and Afro-descendant people,
that racial violence is perpetrated and updated. One of these updates is through the
“disguise” in which the oppressor propagates an anti-racist discourse, however, devoid of
actions of the same nature, thus preserving the racist structure.
Key words: Whiteness; Afrocentricity; appropriation; epistemicide.

*
BIANCA SILVA é doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professora de Filosofia na Fundação de Apoio à Escola Técnica, Ciência, Tecnologia, Esporte,
Lazer, Cultura e Políticas Sociais de Duque de Caxias (FUNDEC). Integrante do grupo de pesquisas
Descoloniais Carolina Maria de Jesus.

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Introdução estamos delimitando quem pode ou não
estudar tais assuntos. O problema aqui
Este texto abordará uma atitude que
colocado é quando o próprio sujeito
pode ser assumida pelas pessoas
desse conhecimento e mais interessado
brancas face ao racismo. Chamamo-la
na questão é forçado social, política e
de Performance antirracista. Ela
culturalmente a se afastar de tais
representa um tipo de atitude
questões e/ou espaços considerados
dissimuladora diante das violências
brancos enquanto os sujeitos das classes
sofridas pelos povos africanos e seus
dominantes se apossam desse
descendentes na diáspora1.
conhecimento sem agirem em prol
Perpassaremos algumas dessas
desses sujeitos que dizem ser aliados.
violências de forma resumida e daremos
maior atenção às violências ocorridas Para esse objetivo, utilizaremos a
nas universidades ocidentalizadas e metodologia da Afrocentricidade. Essa
como essa atitude dissimuladora pode metodologia, resumidamente, busca re-
ocorrer. centralizar o conhecimento dos
O foco nas universidades africanos e afrodescendentes, isto é, ao
ocidentalizadas se dá na medida em que invés desses conhecimentos ficarem à
observamos um aumento de estudos margem, como uma sub-sabedoria
sobre questões raciais, porém, a hierarquizada, eles seriam reorientados
presença dos sujeitos racializados é para o centro por seus próprios sujeitos
pequena. Ou seja, o sujeito africano e africanos e afrodescendentes. Assim,
afrodescendente vem sofrendo inúmeras tanto o conhecimento, que sofreu e
violências tais como assassinatos, sofre tentativas constantes de
epistemicídios, embranquecimentos, apagamento ou usurpação, é resgatado
apropriações; mas a tendência é que, em tal como esses sujeitos se apoderam do
maior escala, pesquisadores brancos e que é seu e se tornam sujeitos ativos e
pesquisadoras brancas estudem sobre não somente objetos de estudo
estes sujeitos e suas experiências visto (ASANTE, 2009).
que a entrada e permanência dos Portanto, a tentativa desse trabalho é
afrodescendentes nas universidades do expor mais uma faceta das inúmeras
Brasil é ínfima e, ao entrarem, suas violências sofridas pelas pessoas
vozes são deslegitimadas. africanas e afrodescendentes através de
Assim, gostaríamos de apontar para esse um ciclo que inicia no extermínio e
processo de extermínio dos corpos sequestro dos africanos e culmina na
pretos, mas com um disfarce de usurpação e apropriação de seus
aceitabilidade em que os conhecimentos conhecimentos que não foram
que não puderam ser exterminados exterminados a fim de, tal como afirma
juntos com seus sujeitos, são usurpados bell hooks (2019, p. 279),
e apropriados por pessoas brancas, em escamotearem a cumplicidade nesse
sua maioria. Destacamos que não processo através da dissimulação.
Desse modo, o primeiro tópico versará
1
Diáspora é um conceito utilizado para sobre o genocídio. No tópico seguinte,
representar a experiência vivida pelas pessoas
africanas, pelas pessoas que foram sequestradas
abordaremos o embranquecimento. No
da África e pelos seus descendentes ao redor do terceiro tópico, temos o epistemicídio.
mundo. Ver: AZEVEDO, 2005, p. 216-218. Nos tópicos finais, abordaremos a

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questão da apropriação e a nossa morrer do que os brancos na mesma
percepção sobre o que resulta desse faixa etária (IBGE, 2019, p. 9-10).
ciclo violento que denominamos de
performance antirracista. Esses índices desproporcionais
iniciaram, visivelmente, na escravização
Genocídio visto que os africanos eram trazidos
para o Brasil em situações desumanas
Genocídio é denominado como o em que muitos sucumbiam no trajeto do
extermínio sistematizado de um navio negreiro ou na captura
determinado grupo. No caso, trataremos (GROSFOGUEL, 2016, p. 40).
do extermínio sistematizado e em massa Nascimento (1978, p. 58), afirma que
da população africana e esse tipo de tratamento foi responsável
afrodescendente. Inúmeras foram as por uma taxa elevada de mortalidade
violências sofridas por essa população infantil entre a população escravizada.
desde o sequestro, chegada e Outro fator era o pensamento de que
permanência no Brasil, e, neste tópico, esta era um produto que podia ser
gostaríamos de destacar o assassinato resposto facilmente caso a saúde de
do corpo físico desses sujeitos. algum deles fosse prejudicada.
Conforme Abdias do Nascimento Depois de sete anos de trabalho, o
(1978, p. 43-44) velho, o doente, o aleijado e o
mutilado- aqueles que
As populações indígenas no sobreviveram aos horrores da
começo da colonização, conforme escravidão e não podiam continuar
as estimativas mais autorizadas, mantendo satisfatória capacidade
somavam cerca de dois milhões de produtiva -eram atirados à rua, à
seres humanos. Atualmente, como própria sorte, qual lixo humano
resultado ou da extinção direta, com indesejável; estes eram chamados
ou sem violência, ou dos métodos de ‘africanos livres’. Não passava, a
de liquidação sutis e indiretos, liberdade sob tais condições, de
aqueles números reduziram-se pura e simples forma de legalizado
consideravelmente: não excedem a assassínio coletivo. As classes
duzentos mil nos cálculos mais dirigentes e autoridades públicas
otimistas. praticavam a libertação dos
escravos idosos, dos inválidos e dos
Mudamos os números, mas o mesmo enfermos incuráveis, sem lhes
podemos dizer da população africana. conceder qualquer recurso, apoio,
Essa população era maioria em grande ou meio de subsistência·. Em 1888
parte do Brasil e, com isso, a classe se repetiria o mesmo ato ‘liberador’
dominante perpetrou violências que a História do Brasil registra
sistematizadas para reduzi-la por meio com o nome de Abolição ou de Lei
do genocídio (NASCIMENTO, 1978, p. Áurea, aquilo que não passou de
um assassinato em massa ou, seja, a
73-74). De acordo com dados atuais do
multiplicação do crime, em menor
IBGE, a população afrodescendente no escala, dos africanos livres
Brasil é de 56% (pretos e pardos). A (NASCIMENTO, 1978, p. 65).
taxa de homicídio é de 16% para
brancos e 43.4% para afrodescendentes. Em outros termos, as iniciativas dos
Os rapazes afrodescendentes entre 15 e colonizadores consideradas
29 anos têm ainda maiores chances de “benevolentes” eram, na verdade, mais

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uma forma de exterminar o escravizado através dos estereótipos racistas. Uma
encarado como mercadoria improdutiva. das formas de difundir tais estereótipos
A libertação poderia ser concedida, ocorreu por meio das imagens.
ainda, pelo alistamento nas guerras dos Conforme bell hooks (2019, p. 28-29),
escravocratas. Assim, caso não as imagens têm um papel fundamental
morresse na guerra, o escravizado na construção de estereótipos, pois “Da
receberia a liberdade da mesma forma escravidão em diante, os supremacistas
que os outros escravizados: sem brancos reconheceram que controlar as
qualquer auxílio. Vale destacar que imagens é central para a manutenção de
muitos escravizados eram enviados para qualquer sistema de dominação racial”.
guerrear no lugar dos colonizadores, Para ela, um dos maiores desafios é
pois a vida destes era julgada como “transformar a imagem” (hooks, 2019,
mais valiosa (NASCIMENTO, 1978, p. p. 29) não esquecendo de “criticar o
66). status quo” (Ibid., p. 32).
Embranquecimento Assim, as representações dos africanos
e dos afrodescendentes reproduziam
Em conjunto com o genocídio, temos o
imagens estereotipadas de sague
polo da violência por meio do
africano como inferior e sangue europeu
embranquecimento. Esse processo visa
como superior ou como uma ‘salvação’
exterminar o elemento negro pela via da
(NASCIMENTO, 1978, p. 71). Essas
chamada “miscigenação”.
representações interferiram em todas as
Contrariamente do que alguns autores,
áreas da vida da população que havia
como Gilberto Freyre, propagavam, a
sido escravizada e, posteriormente, da
“miscigenação” não ocorreu de maneira
população “liberta” e de seus
harmônica, pacífica e natural. As
descendentes. Podemos mencionar as
relações interraciais se deram através do
altas taxas de desempregados africanos
estupro e exploração dos corpos de
e afrodescendentes a fim de restringir
africanos e afrodescendentes
suas capacidades econômicas e levá-los
(NASCIMENTO, 1978, p. 69-70).
ao extermínio por meio da pobreza ou
De acordo com Nascimento, o por meio do crime.
embranquecimento também representa
Os dados nos ajudam, mais uma vez,
o genocídio. Isso porque é um método
nesta amostra. A população
utilizado desde o período da
afrodescendente é a com menos
escravização para reduzir a população
emprego formal. Esta população, de um
que apresentava características
modo geral, ocupa os cargos de menor
fenotípicas africanas mais acentuadas
prestígio e, consequentemente, de
em detrimento da população com pele
menor remuneração (IBGE, 2019, p. 2).
mais clara. Assim, tivemos a exaltação
Esses números são possíveis por, pelo
da “miscigenação” pela classe
menos dois fatores: a baixa escolaridade
dominante a fim de clarear a população
posto que, por muito tempo, os
e, a longo prazo, exterminar a negritude.
africanos e afrodescendentes foram
Para otimizar os resultados, a classe proibidos de estudar; e o racismo na
dominante ofereceu incentivos para os procura de emprego visto que, ainda
imigrantes e a constante inferiorização hoje, é possível encontrar anúncios com
“da presença do sangue negro-africano” a indicação de ‘pessoas de boa
(NASCIMENTO, 1978, p. 69-70) aparência’ e, segundo Nascimento

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(1978, p. 82), “Basta substituir ‘boa foi decisivo para a sua aceitação”
aparência’ por ‘branco’ para se obter a (NASCIMENTO, 1978, p. 72).
verdadeira significação do eufemismo.”
Epistemicídio e pretensão à
universalidade
Além do embranquecimento por meio
da “miscigenação”, temos o É conhecida a participação de
embranquecimento da psique do sujeito intelectuais e de cientistas na construção
afrodescendente em razão da violência e manutenção da inferiorização
psicológica. Segundo Souza (1983, p, epistemológica de determinados grupos.
34), há afrodescendentes que se veem Porém, outros intelectuais têm criticado
massacrados de tal maneira que aceitam a condição do conhecimento europeu
embranquecer, pois ele “nasce e como “universal”. Um desses autores é
sobrevive imerso numa ideologia que Rámon Grosfoguel, que relaciona
lhe é imposta pelo branco como ideal a quatro genocídios da história como
ser atingido”. A aceitação do fundamento das epistemologias nas
embranquecimento se deu também pela universidades ocidentalizadas. Dessa
tentativa de ascender socialmente visto maneira, os genocídios e os
que “naquela sociedade, o cidadão era o epistemicídios contra mulçumanos e
branco, os serviços respeitáveis eram os judeus, indígenas, africanos e mulheres
‘serviços de branco’, ser bem tratado consideradas bruxas foram os pilares
era ser tratado como o branco” para um tipo de pensamento excludente
(SOUZA, 1983, p. 21). e violento que fundamentaria toda a
ciência moderna e contemporânea.
Segundo hooks (2019, p. 281-282), o
Pelo escopo deste trabalho,
esquecimento é incentivado pelos
concentraremos nossa atenção no
colonizadores e a lembrança é encarada
epistemicídio contra os povos africanos
como amargura em excesso a fim de
e afrodescendentes. Esse epistemicídio,
que o passado de violência escravocrata
como sabemos, teve início com a
seja ignorado. Por outro lado, muitos
escravização/colonização dos povos
afrodescendentes e indígenas acabam
africanos e ascendeu com a
aceitando esse estado de amnésia “para
supervalorização do conhecimento
que possam ser melhor assimilados no
europeu em detrimento dos outros
mundo branco”. O objetivo da
conhecimentos existentes. Segundo
supremacia branca não é apenas se
Grosfoguel (2016, p. 28), esse
isentar da responsabilidade, mas
preterimento se deu com o auxílio da
exterminar o afrodescendente “tanto
filosofia cartesiana.
fisicamente quanto espiritualmente,
através do malicioso processo de A filosofia de René Descartes é
embranquecer a pele negra e a cultura considerada a episteme fundadora das
do negro” (NASCIMENTO, 1978, p. bases das universidades ocidentalizadas.
43). Essa filosofia ocupou o espaço que
ocupava a filosofia cristã, que era
Falemos agora de um processo fundamentada na verdade bíblica da
constituinte do genocídio da população existência de Deus. Deus era o
negra: o epistemicídio, pois “O conluio fundamento da filosofia. Entretanto,
dos intelectuais e dos acadêmicos Descartes inverte essa concepção de
‘cientistas’ na formulação dessa política Deus para a concepção do “Eu”. Assim,

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o lugar que Deus ocupava, passou a ser então, não haveria uma produção de
ocupado pelo “Eu” cartesiano. Esse conhecimento monológica,
lugar incluía “um conhecimento que é deslocada de lugar e antissocial. Se
verdadeiro além do tempo e do espaço, o conhecimento é produzido nas
relações sociais particulares, ou
universal no sentido que não está
seja, dentro de uma sociedade
condicionado a nenhuma particular, então não se pode
particularidade e ‘objetivo’, sendo argumentar que o ‘Eu’ humano
entendido da mesma forma que a pode produzir conhecimento
‘neutralidade’ e equivalente à visão do equivalente à visão do ‘olho de
‘olho de Deus’” (GROSFOGUEL, Deus’ (GROSFOGUEL, 2016, p.
2016, p. 28). 29).

A tese cartesiana está fundamentada em Essa filosofia culminou no que


dois pressupostos: separação entre Grosfoguel (2016, p. 30) chama de
corpo e mente e solipsismo. A “mito da egopolítica do conhecimento”.
desvinculação do corpo da mente Esse mito se baseia na concepção do
permite que esta possa existir “Eu” como “o” produtor de um
independente do corpo e, com isso, sem conhecimento privilegiado por ser capaz
sua influência física. A mente estaria, de se distanciar e “olhar” por todos
com isso, “indeterminada e cientificamente. É aquele capaz de se
incondicionada pelo corpo” colocar no lugar do “não lugar” e
(GROSFOGUEL, 2016, p. 29) assim reivindicar um conhecimento universal,
como é atribuído ao Deus cristão. Isso imparcial e neutro. De acordo ainda
autorizaria a mente a exercer as mesmas com o crítico (GROSFOGUEL, 2016, p.
funções exercidas pelo Deus cristão e 30), embora tenha decorrido bastante
ser universal, imparcial e neutro tempo desde Descartes, sua filosofia
distanciando qualquer indício de ainda permanece sendo o parâmetro
localização e demarcação física. Dessa científico das universidades
forma, na visão ocidentalizada, o ocidentalizadas e “Mesmo os que são
conhecimento produzido a partir dessa críticos da filosofia cartesiana
concepção deve possuir as mesmas continuam utilizando-o como critério
características. para diferenciar o que é ciência ou não”.
Assim, somente homens brancos
No pressuposto do solipsismo, temos ocidentalizados alcançam esse status de
um método de alcance do conhecimento produzir episteme conforme “a visão de
de maneira solitária. O sujeito utiliza Deus”. Segundo Grosfoguel
sua própria mente (universal, imparcial, (GROSFOGUEL, 2016, p. 31), os
neutra) através de um diálogo interior europeus não ficaram satisfeitos em
excluindo toda interferência externa. O conquistar o mundo e foram em busca
aspecto social e comunitário da de conquistar “um privilégio epistemo-
construção de saberes não pertence a lógico sobre os demais” e as epistemes
um “Eu” separado do corpo e que não seguem essas características,
indeterminado fisicamente. não podem ser consideradas
Sem o solipsismo epistêmico, o “conhecimento”. Foi o que ocorreu com
‘Eu’ estaria situado nas relações as epistemes dos indígenas, africanos,
sociais particulares, em contextos afrodescendentes e das mulheres, por
históricos e sociais concretos e, exemplo. O conhecimento chamado

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“não ocidental” foi inferiorizado formas para atingir esse objetivo. O
enquanto o conhecimento ocidental é epistemicídio, como parte desse
concebido como o ponto de partida para processo de eliminação, age em vários
a ciência, para o conhecimento âmbitos da vida, tal como enfatiza
produzido nas universidades Carneiro (2005, p. 97)
ocidentalizadas. Consequentemente, “as Para nós, porém, o epistemicídio é,
estruturas fundacionais do para além da anulação e
conhecimento das universidades desqualificação do conhecimento
ocidentalizadas são epistemicamente dos povos subjugados, um processo
racistas e sexistas ao mesmo tempo” persistente de produção da
(Grosfoguel, 2016, p. 28). indigência cultural: pela negação ao
acesso a educação, sobretudo de
Subjugadas a essa estrutura racista e qualidade; pela produção da
sexista, as epistemes indígenas, inferiorização intelectual; pelos
africanas, afro-brasileiras e das diferentes mecanismos de
mulheres sofreram inúmeras tentativas deslegitimação do negro como
de eliminação. Suas sabedorias foram portador e produtor de
constantemente negadas, apagadas e conhecimento e de rebaixamento da
ridicularizadas. A esse processo de capacidade cognitiva pela carência
material e/ou pelo
extermínio dos conhecimentos de
comprometimento da auto-estima
determinados grupos chamamos de pelos processos de discriminação
“epistemicídio”. correntes no processo educativo.
Sueli Carneiro (2005, p. 96) afirma Isto porque não é possível
desqualificar as formas de
haver uma estrutura racista que engloba
conhecimento dos povos
a vida de todos os brasileiros e que o dominados sem desqualificá-los
epistemicídio é um procedimento também, individual e
característico dessa estrutura. Esse coletivamente, como sujeitos
procedimento foi e é parte central na cognoscentes. E, ao fazê-lo,
instauração e na manutenção da destitui-lhe a razão, a condição
supremacia branca em razão do esforço para alcançar o conhecimento
em deslegitimar a episteme de “legítimo” ou legitimado. Por
determinados grupos como dos próprios isso o epistemicídio fere de
“sujeitos do conhecimento”, pois é morte a racionalidade do
“processo de destituição da subjugado ou a seqüestra, mutila
racionalidade, da cultura e civilização a capacidade de aprender etc.
do Outro” (CARNEIRO, 2005, p. 96).
Há, por conseguinte, uma relação entre Dessa maneira, os corpos subjugados
genocídio e epistemicídio porque ao encontram dificuldades desde a tenra
eliminar o corpo, elimina-se seu idade, entre algumas delas estão a falta
conhecimento. Ambas as violências de acesso ao ensino formal, a baixa
trabalham juntas. Tenta-se matar o qualidade no ensino, as práticas racistas
corpo e seu saber, mas caso não se nos ambientes escolares, currículos
consiga, tenta-se um ou outro. racistas. A finalidade é de podar tanto o
conhecimento produzido por esses
A supremacia branca constantemente sujeitos quanto de cercear suas
investe contra os grupos dominados a capacidades intelectuais por meio da
fim de eliminá-los e são várias as precarização e da inferiorização sofrida.

30
Portanto, o epistemicídio alcança o filhos ou a um monte de outras
conhecimento produzido, mas, atividades servis” (hooks, 2015, p. 471).
principalmente, o sujeito que o produz.
Dentro da universidade, outras
Como resultado, esta episteme fica
dificuldades se impõem: dúvidas
comprometida até que seja eliminada.
colocadas sobre a capacidade
intelectual, estilo da escrita acadêmica,
Podemos, com efeito, associar a
solidão (hooks, 2015, p. 472). Grada
exclusão do ensino formal à tentativa de
Kilomba (2019, p. 50-51) também
epistemicídio em que a universidade é
acentua que os afrodescendentes, nestes
um desses elos. Considerada local do
espaços, se veem diante do
saber científico, é um dos locais em que
silenciamento, pois “Ele é um espaço
a tentativa de exclusão dos
branco onde o privilégio de fala tem
afrodescendentes permanece latente. O
sido negado para as pessoas negras”.
número de afrodescendentes na
graduação tem aumentando devido à Apropriação
implementação das cotas, porém o
Poderíamos supor que diante do
número de alunos brancos é maior do
genocídio, o embranquecimento, e
que a de alunos não-brancos (IBGE,
epistemicídio a cultura africana, afro-
2019, p. 7-8). Na pós-graduação, o
brasileira e indígena fossem ignoradas
número é ainda mais reduzido devido
pelas pessoas brancas. Contrariamente,
aos desvantajosos processos seletivos e
além dos bens materiais e da
aos custos da manutenção de uma
humanidade das pessoas africanas e
pesquisa. Atualmente, a taxa de
afrodescendentes, a supremacia branca
professores afrodescendentes é 16%
apropriou-se e apropria-se da cultura
(MATEUS, 2019). É nítida a
daqueles que quer eliminar
discrepância de entre brancos e não-
(NASCIMENTO, 1978, p. 51; hooks,
brancos nesse espaço considerado o
2019, p. 279). O colonizador, com a
local onde se produz conhecimento.
ideia da “visão do olho de Deus”,
Podemos deduzir, então, que tipo de
coloca-se como aquele que pode contar
conhecimento está sendo produzido
a história de toda a humanidade do seu
majoritariamente.
ponto de vista. Assim, o que temos é a
compreensão deles sobre o resto do
Em função desses fatores, mesmo
mundo. Com isso “Muito do que
quando o sujeito afrodescendente
estudamos sobre a história, a cultura, a
consegue alcançar tais espaços, é uma
literatura, a linguística, a política ou a
tarefa complexa manter-se saudável
economia africanas foi orquestrado do
psicologicamente. bell hooks (2015)
ponto de vista dos interesses europeus”
confirma essa dificuldade. Para essa
(ASANTE, 2009, p. 93).
autora, as pessoas afrodescendentes não
são vistas como intelectuais e Podemos perceber que o conhecimento
encontram vários inconvenientes para que não foi eliminado, através do
alcançar tal objetivo. A situação torna- epistemicídio, é apropriado e alterado
se ainda mais difícil para as mulheres conforme a visão de mundo
afrodescendentes, pois elas são eurocêntrica ou conforme os interesses
educadas desde cedo de “que o trabalho eurocêntricos. Como o branco é aquele
mental tem de ser sempre secundário que é considerado o superior, o neutro e
aos afazeres domésticos, ao cuidado dos científico; ele torna-se especialista na

31
cultura que não é a dele e, além de como protagonista. Contudo, Kilomba
especialista, ele a interpreta alterando-a. (2019, p. 51) afirma que
Essa situação é considerada por
Carneiro (2005, p. 60) como uma Tal posição de objetificação que
“versão mais contemporânea nas comumente ocupamos, esse lugar
da ‘Outridade’ não indica, como se
universidades brasileiras, [d]o
acredita, uma falta de resistência ou
epistemicídio”. Ou seja, entre o branco interesse, mas sim a falta de acesso
e o não-branco que estude questões à representação, sofrida pela
raciais, o branco terá maior comunidade negra. Não é que nós
credibilidade científica que o não- não tenhamos falado, o fato é que
branco. Mesmo que a pesquisa da nossas vozes, graças a um sistema
pessoa branca adultere esse racista, têm sido sistematicamente
conhecimento, ele será preferível do que desqualificadas, consideradas
a pessoa não-branca devido seu status conhecimento inválido; ou então
na sociedade racista. representadas por pessoas brancas
que, ironicamente, tornam-se
Essas condições são perceptíveis no ‘especialistas’ em nossa cultura, e
mesmo em nós.
currículo de escolas e universidades em
que autores brancos dominam a Consequentemente, muitas pessoas não-
bibliografia em, praticamente, todos os brancas evitam a posição de intelectual
assuntos, inclusive os raciais. Os e, até mesmo, evitam buscar
pesquisadores não-brancos e suas informações e esclarecimentos sobre as
realidades são vistos como objetos de questões que dificultam suas vidas
pesquisa, mas não como protagonistas porque elas são angustiantes e as fazem
de um saber acadêmico. Eles são ainda reviver sofrimentos que talvez não
deslegitimados, principalmente, quando encontrem solução ou, ao menos, uma
abordam suas próprias questões “válvula de escape”. De acordo com
(CARNEIRO, 2005, p. 60), pois, para o hooks (2019, p. 35), “Muitas pessoas
olhar branco, as questões que passamos negras se recusam a avaliar nossa
tem que ser esquecidas. As dores dos condição presente porque elas não
que foram escravizados e de seus querem ver as imagens que podem
descendentes que ainda enfrentam forçá-las a militar. Mas a militância é
traumas e violências cotidianas são uma alternativa à loucura. E muitos de
minimizadas (hooks, 2019, p. 277). nós estão adentrando os domínios da
loucura”.
Por isso, estes espaços continuam
perpetuando as violências acima citadas Performance antirracista
com uma roupagem de aceitação, porém
muitas vezes é uma “apropriação Chegamos ao nosso entendimento sobre
indébita” (NASCIMENTO, 1978, p. a culminância dessas violências. Nossa
51), pois preserva a objetificação tese é de que por não conseguirem
expulsando ou dificultando a entrada e eliminar o conhecimento das pessoas
permanência dos não-brancos nas não-brancas, os brancos apropriam-se,
escolas e universidades. Diante dessas alteram deslegitimam aqueles e, com o
violências e tentativas de apagamentos, uso do conhecimento apropriado,
o sujeito afrodescendente encontra-se fazem-se passar por antirracistas
em desvantagem para assumir seu papel quando, na verdade, há uma

32
dissimulação antirracista, uma “nostalgia” é um disfarce para
performance. escamotear a culpa pelas violências já
realizadas e pelas que ainda estão em
Para expor nosso argumento, andamento. Essa “nostalgia” é uma
gostaríamos de ressaltar que os brancos performance para recalcarem a
ocupam os espaços de decisão e responsabilidade devida na manutenção
controlam juridicamente o da estrutura racista. A “nostalgia” seria
funcionamento das instituições. Além um recurso de fuga para evitar encarar a
disso, “controlam os meios de realidade: embora se tenha um discurso
disseminar as informações; o aparelho racista e aceite, de certa forma, a
educacional; eles formulam os episteme dos não-brancos, não se tem
conceitos, as armas e os valores do atitudes antirracistas. Embora os
país” (NASCIMENTO, 1978, p. 46). discursos sejam antirracistas, as atitudes
Durante tantos anos de luta das pessoas visam a manutenção de privilégios da
não-brancas e de leis criadas para supremacia branca. Performance!
combater as inúmeras violências
sofridas, parece que o que conseguiram Conclusão
de maneira perceptível é “disfarçar sua Com efeito, muitas violências ficaram
fundamental violência e crueldade” de fora, tais como a violência obstetrícia
(NASCIMENTO, 1978, p. 50. Grifo e o encarceramento em massa. Porém,
nosso). não era nosso intuito abranger a
Segundo ainda Nascimento totalidade das violências devido a
(NASCIMENTO, 1978, p. 50), um dimensão reduzida deste espaço. A ideia
método muito utilizado é “a mentira e a era expor uma ideia geral de como as
dissimulação”. Assim, através de violências contra as pessoas
criações de leis, de apropriação da afrodescendentes culminam no
cultura, de uma abertura de certos extermínio destes, mas contando com a
espaços para uma minoria, os dissimulação daqueles que se intitulam
supremacistas brancos disfarçam e antirracistas sem combater, de fato, o
dissimulam seu racismo criando o que racismo. Queremos dizer que, elas
chamamos de performance antirracista. defendem verbalmente o fim do
O objetivo não é ser antirracista, mas racismo, mas continuam agindo de
parecer. Explicando melhor: temos uma modo a perpetuá-lo.
aparência de melhores condições de Não intentamos excluir protagonistas ou
vida para as pessoas não-brancas, temos negar lugares de fala2, mas apontar o
uma aceitação maior da episteme não- olhar para as exclusões que ainda tem
branca, temos discursos antirracistas, sido feitas devido ao racismo. Os
mas as várias formas de extermínio aliados na luta podem auxiliar, porém o
continuam em suas variadas formas. auxílio está para além do discurso. O
auxílio precisa atingir o nível prático.
Para hooks (2019, p. 279), há um tipo Queremos currículos e epistemes
de “nostalgia imperialista”. Ou seja, o pluriversais para que o maior número de
colonizador destruiu a episteme não- pessoas tenha acesso e possam se
branca, apropriou-se do que sobrou,
alterou-a; mas demonstra um “desejo” 2
Conceito difundido por Djamila Ribeiro. Ver
por aquilo que ficou perdido na mais em: RIBEIRO, D. O que é lugar de fala?.
destruição. Conforme a autora, essa Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

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apoderar dele. Contudo, o que vemos, século XVI. Revista Sociedade e Estado – Vol.
conforme os dados já mencionados no 31, nº 1, p. 25-49, 2016.
texto acima, que os principais HOOKS, b. Intelectuais Negras. Revista
protagonistas desses conhecimentos não estudos feministas. Vol. 3, nº 2, p. 464-478,
1995.
o acessam. Assim, caminhamos para
esse novo tipo de violência que HOOKS, b. Olhares Negros: Raça e
pretendemos expor: a dissimulação Representação. São Paulo: Editora Elefante,
2019.
antirracista. Ou seja, a dissimulação
daqueles que têm um discurso INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
antirracista sem a tentativa de agir de E ESTATÍSTICA - IBGE (org.). Informativo
desigualdades sociais por cor ou raça no
forma antirracista. Queremos um Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. 12 p. v.
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Recebido em 2021-07-10
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Publicado em 2022-02-01

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