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Este artigo tem como principal objetivo mobilizar humanos (Pires 2016 e 2017), para tensioná-las, ao
o pensamento de Lélia Gonzalez para reposicionar fim, com possibilidades de produção que podem
as discussões sobre direitos humanos, tendo ser extraídas da experiência ladino-amefricana.
como premissa o fato de que colonialismo jurídico
condiciona o vocabulário em torno do qual os Trata-se de um convite para pensar o direito em
referidos direitos são reconhecidos e juridicamente pretuguês. A partir do legado de Lélia Gonzalez,
mobilizados, assim como impacta na percepção renova-se o compromisso de racializar para politizar
sobre sua construção política. o aparato normativo e subsidiar formas encarnadas
de exercício de liberdade e de limitação de poder
A partir da categoria político-cultural da na Améfrica Ladina.
amefricanidade, busca-se oferecer uma narrativa
que implique o direito em relação aos processos Amefricanidade como proposta de
de violência sobre a zona do não-ser, tomando repactuação político-epistêmica do direito
como referência a experiência e produção de
Lélia Gonzalez desenvolve a categoria político-
africanos/as em diáspora na Améfrica Ladina, bem
cultural da amefricanidade a partir da experiência
como suas respectivas resistências à dominação
histórica compartilhada de luta promovida por
colonial. O modelo normalizado de resolução
africanos/as e seus descendentes e pelos povos
de conflitos, construído e parametrizado pela
originários na Améfrica Ladina. Lélia Gonzalez, ao
experiência da zona do ser, simplifica as violências
contrário da ideia afirmada de que a formação
produzidas sobre a zona do não-ser em categorias
brasileira tem o predomínio de elementos brancos
como inefetividade ou violação de direitos. Como
europeus, pensa o Brasil e demais países da
alternativa a esse modelo pretende-se, de um
américa latina como uma “América Africana”, que
lado, romper com uma compreensão sobre os
sofreu uma forte influência negra na sua formação
direitos humanos que reproduza a proteção ilusória
histórico-cultural.
que o colonialismo jurídico oferece a corpos e
experiências negras e, de outro, informar uma
Tendo como um dos pontos de enfrentamento o
proposta de construção dos direitos humanos
modelo moderno/colonial centrado na experiência
centrada e compreendida a partir da zona
europeia, a amefricanidade reposiciona o eixo
do não-ser.
de percepção sobre o legado da colonialidade.
Atribuindo centralidade às resistências produzidas
Nesse intuito, é necessário entender como Lélia
na zona do não-ser, lastreia politicamente
Gonzalez constrói a noção de amefricanidade, para
os processos de formação da burocracia
depois articulá-la com os processos que marcam
institucional brasileira, desenvolve categorias
a produção normativa no Brasil. Em seguida,
epistêmico-políticas radicadas na cosmosensação
objetiva-se relacionar as referidas contribuições
afrodiaspórica e propõe um letramento imbricado
com as leituras hegemônicas sobre direitos
Para estabelecer uma conversa com a categoria da Lélia Gonzalez reivindica a importância de se
amefricanidade, são mobilizados os conceitos de reconhecer um fazer próprio da experiência
zona do ser e zona do não-ser, por influência do amefricana. Para ela, tentar achar as
pensamento de Frantz Fanon (2008), para explicitar “sobrevivências” da cultura africana no continente
o modo através do qual o projeto moderno colonial americano, atribuindo à África aquilo que aqui
europeu organizou as relações intersubjetivas e é produzido, é um equívoco que pode encobrir
institucionais que marcam a colonialidade do as resistências e a criatividade da luta contra a
poder. A categoria raça foi instrumentalizada para escravidão, contra o genocídio e a exploração que
separar de forma incomensurável duas zonas: a do por aqui se desenvolveram. A amefricanidade
humano (zona do ser) e a do não humano (zona carrega um sentido positivo, “de explosão criadora”,
do não-ser). O padrão de humanidade passou a de reinvenção afrocentrada da vida na diáspora,
ser determinado pelo perfil do sujeito soberano afinal, “foi dentro da comunidade escravizada que
(homem, branco, cis/hétero, cristão, proprietário, se desenvolveram formas político-culturais de
sem deficiência), representativo do pleno, resistência que hoje nos permitem continuar uma
autônomo e centrado. As dinâmicas de poder luta plurissecular de liberação” (Gonzalez 1988,78).
na zona do ser fazem da afirmação do não-ser a
condição de possibilidade de suas humanidades, O valor metodológico da amefricanidade, segundo
condicionam o vocabulário a partir do qual passam Lélia Gonzalez, radica na possibilidade de resgatar
a definir a si, ao outro como outro e a própria uma unidade específica, forjada pela violência do
realidade. racismo e pela resistência contra medidas seculares
de espoliação, expropriação e apagamento da
A recuperação das categorias fanonianas ancora- memória e das contribuições científicas, históricas
se na premissa de que a construção normativa e políticas de negros/as. A amefricanidade não
(teórica, legislativa e jurisprudencial) é produzida a é sobredeterminada pelo continente africano,
partir da experiência da zona do ser, sendo incapaz tampouco pela hegemonia eurocêntrica. Produz-
de, nesses termos, oferecer uma resposta que se a partir da resistência e criatividade que a luta
reposicione o papel dos direitos humanos sobre negra em diáspora, protagonizada por mulheres,
os processos de violência sobre a zona do não- conduziu a partir da experiência colonial que por
ser (Pires 2018). Busca-se aproximar referenciais aqui se forjou. Mais do que um retorno deslocado
afrodiaspóricos comprometidos com os desafios para o lado de lá do Atlântico, potencializa o
de autoinscrição para pensar os direitos humanos complexo trabalho de dinâmica cultural que “nos
a partir de um repertório capaz de acessar os traz de lá e nos transforma no que somos hoje:
diversos corpos e formas de vida que conformam a amefricanos” (Gonzalez 1988, 79).
sociedade brasileira (Pires 2017).
Lélia Gonzalez (1988) afirma que negros/as em
Achille Mbembe (2001) alerta para a necessidade diáspora não podem atingir uma consciência
de elaboração de uma autoinscrição que não efetiva de si, se permanecerem prisioneiros de uma
encerre os/as africanos/as (e, aqui também, os/as linguagem racista. Por isso, compromete-se com a
amefricanos/as) em uma identidade limitada e assunção de uma linguagem própria (o pretuguês),
essencializada, nem reafirme as leituras sobre os/as propõe o termo amefricanos para designar a
africanos/as (e sobre os/as amefricanos/as) criadas todos nós e rompe com a linguagem imperialista
pelo opressor. Nesse sentido, as formas africanas que define o mundo e os “outros” a partir da
de autoinscrição não se dão nos mesmos termos autoimagem de sua supremacia.
que na Améfrica Ladina, mas as propostas de
Mbembe e Gonzalez comungam do compromisso