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TARTUCE, Flávio, Direito civil, v.

2 : direito das obrigações e responsabilidade civil;


12. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 56/58.

2.2.1.2Obrigação de dar coisa incerta (arts. 243 a 246 do CC)


Também denominada obrigação genérica, a expressão obrigação de dar coisa incerta indica que a
obrigação tem por objeto uma coisa indeterminada, pelo menos inicialmente, sendo ela somente indicada
pelo gênero e pela quantidade, restando uma indicação posterior quanto à sua qualidade que, em regra, cabe
ao devedor. Na verdade, o objeto obrigacional deve ser reputado determinável, nos moldes do art. 104, II, do
CC.
A título de exemplo, pode ser citada a hipótese em que duas partes obrigacionais pactuam a entrega de
um animal que faz parte do rebanho do vendedor (devedor da coisa). Nesse caso, haverá a necessidade de
determinação futura do objeto, por meio de uma escolha.
Assim, coisa incerta não quer dizer qualquer coisa, mas coisa indeterminada, porém suscetível de
determinação futura. A determinação se faz pela escolha, denominada concentração, que constitui um ato
jurídico unilateral.
Prevê o art. 243 do atual Código Civil que a coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela
quantidade.
O Projeto de Lei 6.960/2002, originalmente de autoria do Deputado Ricardo Fiuza, atualmente com o
número 699/2011, visa a alterar o comando legal em questão, que passaria a ter a seguinte redação: “Art.
243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pela espécie e pela quantidade”. Para o autor do projeto, a
palavra gênero teria um sentido muito amplo.
O Deputado Vicente Arruda, então relator nomeado na Câmara dos Deputados, vetou a proposta
original, eis que “alterar a expressão ‘gênero’ contida no texto do Código por ‘espécie’ não vai resolver o
problema. Se, como pretende o autor do projeto, ‘feijão’ é espécie do gênero ‘cereal’, a palavra ‘tecido’ é
espécie de ‘algodão’, de ‘lã’, de ‘fibra sintética’, ou tecido é ‘gênero’ e tecido de algodão, de lã, de seda, de
microfibra, são espécies? Por outro lado quer nos parecer que se substituirmos gênero por espécie estaremos
transformando a coisa incerta em coisa certa, determinável dentre certo número de coisas certas da mesma
espécie. Pela manutenção do texto”.
O art. 244 do mesmo diploma civil enuncia que nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade a
escolha ou concentração cabe ao devedor, se o contrário não resultar do título da obrigação. De qualquer
forma, cabendo-lhe a escolha o devedor não poderá dar a pior. Ademais, não será obrigado a prestar a
melhor.
A segunda parte do dispositivo legal apresenta o princípio da equivalência das prestações, pelo qual a
escolha do devedor não pode recair sobre a coisa que seja menos valiosa. Em complemento, o devedor não
pode ser compelido a entregar a coisa mais valiosa, devendo o objeto obrigacional recair sempre dentro do
gênero intermediário.
Essa última previsão está recebendo proposta de alteração pelo projeto original de Ricardo Fiuza (antigo
PL 6.960/2002, atual PL 699/2011), segundo o qual o dispositivo passaria a ter a redação seguinte: “Art. 244.
Nas coisas determinadas pela espécie e pela quantidade, a escolha pertence ao devedor, se o contrário não
resultar do título da obrigação; mas não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a prestar a melhor”.
A proposta, mais uma vez, é de substituição da palavra “gênero” por “espécie”. Na verdade, existe
polêmica doutrinária a respeito da natureza da obrigação de dar coisa incerta, surgindo corrente que aponta
ser melhor que ela seja determinada pela espécie e não pelo gênero, para uma melhor determinação
obrigacional (ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil…, 2005, p. 158-159). Na
opinião deste autor, não há problemas na atual redação dos textos, que devem ser mantidos pelo costume
doutrinário de trabalho quanto à obrigação genérica. A alteração acaba por esbarrar em um costume
terminológico.
Superada essa questão, aplicando-se o princípio constitucional da isonomia ao art. 244 do CC, se a
escolha couber ao credor, este não poderá fazer a opção pela coisa mais valiosa nem ser compelido a receber
a coisa menos valiosa. Mais uma vez aplica-se o princípio da equivalência das prestações, fixando-se o
conteúdo da obrigação no gênero médio ou intermediário.
Em todo o conteúdo do art. 244 do CC consagra-se a vedação do enriquecimento sem causa (arts. 884 a
886 do CC), sintonizada com a função social obrigacional e com a boa-fé objetiva. Entende este autor que se
trata de norma de ordem pública, que não pode ser afastada por vontade dos contratantes ou negociantes. O
art. 2.035, parágrafo único, do CC enuncia expressamente que a função social é preceito de ordem pública.
Após a escolha feita pelo devedor, e tendo sido cientificado o credor, a obrigação genérica é convertida
em obrigação específica (art. 245 do CC). Com essa conversão, aplicam-se as regras previstas para a
obrigação de dar coisa certa (arts. 233 a 242 do CC), aqui estudadas. Antes dessa concentração, não há que
se falar em inadimplemento da obrigação genérica, em regra.
É interessante deixar claro que, com a dita alteração estrutural, incide também a regra do art. 313 do
vigente Código Civil, podendo o credor negar-se a aceitar coisa mais valiosa, tendo em vista a
individualização realizada pela escolha, pela qual o objeto da obrigação deixa de ser determinável e passa a
ser determinado.
O art. 246 do CC continua consagrando a regra de direito pela qual o gênero nunca perece (genus
nunquam perit), ao prever que antes da escolha não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa,
ainda que em decorrência de caso fortuito (evento imprevisível) ou força maior (evento previsível, mas
inevitável). Isso porque ainda não há individualização da coisa, devendo o art. 246 ser lido em sintonia com a
primeira parte do artigo antecedente.
Diante disso, consta do original Projeto Fiuza proposta para alterar esse dispositivo, que passaria a ter a
seguinte redação: “Antes de cientificado da escolha o credor, não poderá o devedor alegar perda ou
deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito, salvo se tratar de dívida genérica limitada e
se extinguir toda a espécie dentro da qual a prestação está compreendida”.
Nesse ponto, não se filia ao parecer do Deputado Vicente Arruda, que optou pela manutenção do texto,
nos seguintes termos: “o acréscimo da expressão ‘dívida genérica limitada’ equivale à obrigação de dar coisa
certa, conforme motivos expostos nos arts. 243 e 244”. Parece ao presente autor que o parlamentar não
compreendeu bem o sentido da proposta, que trata da obrigação quase-genérica, que merece um tratamento
legislativo, o que facilita o trabalho didático. Sobre o tema, comenta Flávio Augusto Monteiro de Barros:

“Essa máxima genus non perit é aplicável apenas às coisas pertencentes a gênero ilimitado.
Exemplos: dinheiro, café, açúcar etc. Se a coisa pertencer a gênero limitado, o perecimento de todas as
espécies que a componham acarretará a extinção da obrigação, responsabilizando-se o devedor pelas
perdas e danos apenas na hipótese de ter procedido com culpa.
A propósito, quando o gênero é limitado, a obrigação de dar coisa incerta denomina-se obrigação
quase genérica. O gênero é limitado quando existe uma delimitação, quer porque a quantidade é escassa,
quer porque o negócio faz referência a coisas que se acham num certo local ou que pertençam a certa
pessoa ou ainda que sejam referentes a determinada época ou acontecimento. Exemplo: A vende
para B 10 garrafas de vinho de sua safra de 1970” (BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual…,
2005, p. 45).

Com a análise do art. 246 do CC encerra-se a abordagem da obrigação de dar coisa incerta.

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