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I VO QUEIROZ
Código Logístico
57276
Ivo Queiroz
Grave erro será concluir que traçamos uma linha de ódio aos bran-
cos. Jamais! Devemos encarar o passado serena e honestamente, ainda
que isso seja dolorido. O espírito de ubuntu e o axé de nossos ancestrais
inspiram-nos a convocar nossas irmãs e nossos irmãos brancos a deixa-
rem de lado o conforto da branquitude e a se unirem a nós na edificação
de um país onde haja verdadeira pluralidade racial.
Dialogar é preciso.
Ivo Queiroz
6 Africanidades e Democracia
Sumário
Africanidades e Democracia 7
1
Quando o ser humano
é o problema
Africanidades e Democracia 9
1 Quando o ser humano é o problema
Afirma-se que os animais vivem em um mundo sem conceitos. O que implica concluir
que suas condutas ocorrem em uma dimensão distinta daquela em que os seres humanos
situam-se, pois aprendemos que como humanos somos dotados de faculdade racional, po-
demos formular juízos de razão, estéticos e de ordem moral.
Em outras palavras, lidamos com noções de verdade, do belo e da justiça. Quando apro-
fundamos os campos da nossa intervenção, deparamo-nos com outros a nos esperar, entre
eles, da política, da religiosidade, do trabalho e do lazer.
Ora, a educação formal ocupa-se em preparar as pessoas com recursos intelectuais e
operacionais para a sua boa inserção na sociedade. Entretanto, a experiência demonstra que
equipar pessoas com técnicas e habilidades para fazer coisas parece não ser o suficiente para
termos boa gente e gente boa exercendo trabalhos profissionais.
O desafio da educação é preparar as pessoas para que alcancem autonomia intelectual.
Estas observações preliminares permitem-nos o levantamento de questionamen-
tos necessários:
1. o que é autonomia intelectual?
2. que relação tais reflexões teriam com a africanidades e a democracia?
3. como essas inquietações poderiam ser vinculadas a um conceito de ser humano?
Vamos trabalhar com esses questionamentos, e, nesse primeiro momento, com o ter-
mo autonomia. Trata-se da união de duas palavras de origem grega, autós (por si mesmo) e
nomos (regras, normas), significando o que vai por si mesmo, porque está ciente dos funda-
mentos (normas).
Intelectual provem de inter legere, no sentido de saber colher entre várias possibilidades
aquilo que melhor se coaduna a um propósito.
Portanto, ser intelectual nada tem a ver com a atitude arrogante e desrespeitosa de
quem treina palavras que os vizinhos e amigos desconhecem, de quem fala de modo empo-
lado e as pessoas não entendem do que se trata. Isso não é ser intelectual verdadeiramente.
Intelectual é a pessoa capaz de articular informações, conceitos, teorias e critérios racional-
mente válidos por meio dos quais possa interpretar a realidade e reconhecer as alternativas
e as possibilidades de práticas sociais capazes de contribuir para a felicidade humana. Para
o sentido humano da existência.
As duas expressões consideradas em suas origens indicam o amadurecimento da pes-
soa para o agir e o fazer. O agir envolve o campo da moral, diz respeito à boa vida e a vida
boa, ao bem viver. O fazer diz respeito à atividade profissional, ao trabalho, à técnica. Nesse
sentido deve-se considerar que uma pessoa desprovida da habilidade de problematizar a
realidade e questionar o sentido humano dos atos que realiza, que toca a vida irrefletida-
mente, sem aprofundar os conceitos e sem teorizar sobre o que pensa que pensa e o que faz,
10 Africanidades e Democracia
Quando o ser humano é o problema 1
torna-se um perigo público. Tal pessoa encontra-se suscetível de realizar atos contrários aos
profundos interesses e direitos humanos.
Durante o período de formação profissional, é imprescindível agir e fazer, ou seja, convi-
ver e trabalhar tendo em vista que, em primeiro lugar, estão as pessoas humanas, as mulhe-
res e os homens em sua diversidade e pluralidade. Uma pessoa que é capaz de discernir, no
meio de várias alternativas, aquilo que faz parte do sentido profundo e necessário de todo
ser humano, tem autonomia intelectual.
Como se pode notar, torna-se imprescindível que profissionais de todo e qualquer
nível de formação recebam suporte teórico para avançar em sua autonomia intelectual.
Os animais, conforme dito, não alcançam esse teor, por isso, a autonomia intelectual deve
ser um processo de reflexão. Portanto, uma pessoa durante sua formação científica, técnica
e tecnológica tem direito a ter contato com os temas, os problemas, as teorias e as discussões
pertinentes a esses campos de debates.
Naturalmente, as instituições de ensino têm o dever de propiciar as condições para que
as pessoas que nelas estudam sejam atendidas, acompanhadas, orientadas e qualificadas
para o exercício cidadão de seus saberes.
Alguém poderia ponderar, supondo que nem todas as pessoas gostam de estudar esses
temas, que ignorar é melhor do que conhecer.
Se assim fosse, iria se retornar ao terreno dos seres que não têm conceitos. Ou, em úl-
tima instância, poderia argumentar-se que é possível esperar as demandas para se decidir
por meio de ensaios e erros. O risco dessa opinião, no entanto, é não haver tempo para fazer
correções em caso de erro. De todo modo, ao bom senso cabe indagar: que mal haveria em
tirar proveito da economia de tempo, dinheiro e vida se estudarmos com crescente espírito
cívico e crítico?
Portanto, os estudos que realizamos em cursos e disciplinas são oportunidades que nos
desafiam a sermos pessoas humanas melhores, orientadas para contribuir na edificação de
um mundo e uma humanidade melhores.
Todo e qualquer fazer ou não fazer deve ter um sentido humano. Por isso, antes de
decidir o que fazer ou não fazer, uma pessoa deveria realizar um balanço: qual será a contri-
buição do meu ato para o mundo e a humanidade serem melhores? Inversamente, o questio-
namento coerente seria: se o meu ato não trará qualquer bem ao mundo e nenhum benefício
às pessoas ou até prejuízos ao meio ambiente e à vida humana, não seria coerente desistir
de tal ideia?
Com efeito, homens e mulheres com suas diversidades são seres limitados, com breve
prazo de validade. Uma pessoa nasce e atravessa os anos vividos combatendo carências bio-
lógicas. Ela necessita de alimentação, vestuário, moradia, remédios, entre outros cuidados
corporais. São as necessidades biológicas que todos temos. Sem atendê-las, morreremos.
Além disso, toda pessoa tem a necessidade de companhia, parcerias, isto é, de outras
pessoas para conviver. Não se vive isolado, incomunicável no mundo. Lembremo-nos da
epígrafe desse capítulo.
Africanidades e Democracia 11
1 Quando o ser humano é o problema
Porém, ter moradia, comida, roupas, amigos e amores, apesar de essencial, ainda é pou-
co – a ignorância mata, e por isso buscamos ampliar os nossos saberes. Desse modo, consi-
deramos que além das necessidades biológicas e sociais toda pessoa padece de necessidades
transcendentais ou espirituais. Por meio delas, somos desafiados a vencer o desconhecido,
a ignorância. Ao longo do tempo, os resultados alcançados nos permitem classificar os co-
nhecimentos em determinados tipos, a saber: do senso comum, filosófico, teológico, técnico,
tecnológico e científico.
O cotidiano das sociedades está marcado pela luta incessante das pessoas para superar
as necessidades biológicas, sociais e transcendentais (SANTOS, 1999). Se alguém não fizer
isso perderá o maior dos tesouros: a própria vida. Ora, nós construímos a história no único
lugar possível que temos, o planeta Terra. Por isso, a ação humana deve cuidar da vida da
Terra e contribuir para o bem-estar das pessoas.
A partir desses apontamentos que fizemos até o momento, você consegue notar o quanto
é importante termos um conceito consistente, uma forte base teórica do que seja o ser humano?
Quem não tiver essa compreensão da grandeza e excelência do ser humano – mulher, ho-
mem, seja assexual, hétero, homo, bissexual etc., seja ocidental, africano, indiano, oriental –;
não aprender a dar o justo valor e o devido cuidado à casa de todos, e a este planeta de re-
cursos finitos, chamado Terra; não alcançar o necessário preparo interior para cumprir ver-
dadeiramente o destino humano, não será uma pessoa humana.... Talvez seja esta criatura
algo menor do que um cogumelo (SAINT-EXUPÉRY, 2015).
Por isso, quando você decidiu prosseguir os estudos, de algum modo, envolveu-se com
esta questão: o que é o ser humano para mim?
O sentido dessa reflexão sobre o ser humano e o planeta Terra traz à tona dois gran-
des aspectos da moderna visão da ecologia: a ecologia ambiental e a político-social (BOFF,
2009). A primeira ocupa-se da sustentabilidade ou da busca de equilíbrio entre atividade
produtiva e responsabilidade ambiental. Ora, a penetração portuguesa no Brasil operava
sob a ótica de um catolicismo guerreiro (HOORNAERT, 1978), parte da colonialidade
agia de modo ambientalmente predatório.
Fomos inseridos em um modo de produção baseado na exploração ilimitada da terra
e de seus recursos naturais, visando à acumulação de riquezas, no menor tempo possível.
Simultaneamente, estabeleceram-se os princípios de uma ecologia política e social desi-
gual, pois tinha-se por princípio considerar que eles, os europeus, seriam a referência de
humanos, e quem não fosse nativo “puro” do grupo deles, seria menos humano ou animal.
Com esses pressupostos hierarquizadores, sentiram que estariam justificadas as políticas
de opressão de gênero, com os estupros e a escravidão de mulheres indígenas e africanas
e a escravidão ou o genocídio de indígenas e negros. Por isso, o colonialismo foi ecologi-
camente criminoso do ponto de vista da ecologia ambiental e político-social. De um lado,
foi predador, do outro, produziu violência contra milhões de pessoas, gerando gravíssimo
quadro de injustiça social.
12 Africanidades e Democracia
Quando o ser humano é o problema 1
A partir desse momento, devemos novamente nos perguntar: que tipo de profissional
queremos ser? Se você busca subsídios para uma práxis profissional responsável pela vida e
a felicidade humanas, então prossigamos a leitura.
Você já pensou alguma vez sobre o sentido da palavra problema? Pois é, conforme ensi-
na Carlos Alberto Faraco (2009), as palavras não têm um significado único. Com isso, pode-
mos inferir que a palavra problema pode apresentar uma variedade de significados. No caso
do povo brasileiro, de modo geral, em seu cotidiano, as pessoas consideram que o problema
seja algo ruim, tragédia, infelicidade, enfim, algum tipo de infortúnio ou desgraça.
No entanto, as atividades acadêmicas necessitam fundamentalmente de um ponto de
partida que seja radicalmente vigoroso para a produção do conhecimento. Tal ponto de par-
tida radical e vigoroso, pasme(!) é o problema. No sentido etimológico, que engloba a his-
tória da palavra, problema é colocar à frente, pôr adiante. No sentido acadêmico, o problema
a ser colocado faz lembrar uma agremiação esportiva no sentido de que esta deveria ter um
uniforme que a identificasse, como é o caso das cores do uniforme da seleção brasileira de
futebol. De modo semelhante, o uniforme do problema é a pergunta, a indagação.
Muito se escreveu sobre o problema de pesquisa, e o professor Mario Porta participou
dessa iniciativa, agregando importante contribuição ao explicitar a importância da identifi-
cação do problema para o entendimento da obra de um filósofo:
O primeiro passo para entender filosofia é sempre estabelecer o problema.
Diante de um filósofo particular, devemos começar pela pergunta “qual é o pro-
blema por ele proposto?” e, eventualmente, “por que ele formula dessa manei-
ra?” Entender um autor é ver sua filosofia como resposta “ao” problema que ele
se coloca. Isso vale para qualquer filósofo, sem exceções. (PORTA, 2002, p. 26)
Um antigo professor de filosofia, Rodolfo Mondolfo, também avaliou a precedência do
problema como condição de trabalho intelectual que pretenda ter seriedade. Na oportunida-
de, o autor ressaltou o papel do problema para o avanço da investigação:
Pois bem, a fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à
adequação da formulação do problema; de maneira que a primeira exigência
imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor maneira possível, uma
consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua indaga-
ção. (MONDOLFO, 1969, p. 30)
Esse fundamento vale para os estudos filosóficos e para aqueles das outras áreas, por-
tanto, deve valer para o tema do nosso livro. Qual é o problema das africanidades e da
democracia no Brasil? Ao final do nosso texto, deveremos retomar esse problema para fa-
zermos um balanço dos resultados alcançados e determinar se chegamos ao ponto almejado.
Africanidades e Democracia 13
1 Quando o ser humano é o problema
De acordo com o exposto, evidencia-se que uma pessoa ao avançar à autonomia in-
telectual em qualquer área do conhecimento não poderá, de modo algum, negligenciar a
colocação do problema.
Toda pessoa, por ser dotada da faculdade de raciocinar, é capaz de elaborar proble-
mas de grande profundidade para o interesse humano. A experiência tem ensinado que a
pessoa que tem noção de determinada realidade, seja por contato direto, seja pelo acesso à
literatura ou algum modo alternativo de recepção de informações a respeito, terá o ponto
de partida para formular um problema científico. Seguramente, será capaz de articular o
entendimento das circunstâncias envolvendo o tema e, a partir delas, respeitando o pró-
prio nível de consciência, construir uma problemática, isto é, uma exposição de elementos
e discussões que lhe permitam elaborar uma indagação consistente e fecunda. Essa per-
gunta será a mola propulsora que instigará o espírito a uma investigação profunda de um
tema de pesquisa.
Por que falar nisso? O que acontece em um texto acadêmico no qual o foco da intencio-
nalidade nem sempre é a geração de novos conhecimentos?
Ora, o olhar indagador, em qualquer etapa da formação científica, deve estar presente.
Logo, quando alguém na função de discente ou docente abandona o espírito crítico e ques-
tionador, fatalmente perde a própria vocação daquilo que faz. Estudar para valer é questio-
nar, é problematizar.
A partir do entendimento de que o problema consiste no principal aliado de quem
busca o conhecimento, pensamos que este livro deverá estar sempre em sintonia com os
problemas atinentes aos temas em análise.
Para um transcurso produtivo dos estudos aqui propostos não é suficiente conten-
tar-nos com descrições de fatos e situações, como um daqueles filmes que nada têm a ver
conosco. Nosso estudo precisa ser reflexivo. Isso significa que se trata de realizar um mo-
vimento interior de volta sobre nossa própria pessoa e experiência de vida, sobre nossos
sentimentos, valores, crenças e modos de ver a existência e as relações entre as pessoas em
nosso país.
Reflexão deriva de re-flectere, um termo de origem latina que se refere ao dobrar-se
sobre si mesmo. Como quem dá um passo atrás, para melhor compreender um quadro
ou um cartaz. Em termos intelectuais, significa pensar aquilo que já foi pensado, pensar o
próprio pensamento.
Você sabia que um dos significados do verbo pensar é curar? Tratar de um ferimento?
Antigamente dizia-se que cobrir uma ferida com gaze ou similar era colocar o penso.
Portanto, refletir significa examinar ideias, sentimentos, situações, acontecimentos,
mensurando o aspecto externo daquilo que se examina com o pensamento e as implicações
ou interações possíveis com a nossa pessoa, pensamentos, sentimentos, valores, crenças,
inquietações quaisquer que sejam.
E, sabe por que é imprescindível fazermos esse exercício? Porque somos também fru-
tos de um tempo e de uma cultura com suas dinâmicas, as quais atuam sobre os nossos mo-
dos de sentir, pensar, ser e ver o mundo. Por isso, ao problematizarmos as obras literárias
14 Africanidades e Democracia
Quando o ser humano é o problema 1
e toda a realidade que nos rodeia, pelo mesmo princípio da honestidade intelectual, deve-
mos questionar a nós mesmos.
Nesse caso, permita-nos perguntar: o que sabe você sobre os povos que fundaram o
Brasil? Portugueses, indígenas e africanos? Que legado daqueles povos fazem parte de você,
da sua maneira de ser e agir? Como você se relaciona com as pessoas de origem indígena ou
negro-africana ou europeia?
Tais noções preliminares colocam em xeque a nossa autodefinição de pessoa, de vida,
de democracia.
Porém, sejamos serenos, para nos questionar de modo honesto, sincero, com o intui-
to de sermos pessoas melhores. Pisar sobre o solo firme da verdade tem, sim, um poder
transformador e libertador – em um primeiro momento, podemos experimentar perple-
xidade, surpresa, admiração diante de descobertas inesperadas. Isso pode vir seguido
de algum desconforto, um sofrimento interior, uma consciência queimando em meio
a dúvidas sobre o embate entre o velho e o novo. Mas acredite: a pessoa que enfrenta
o desafio de crescer em sua autonomia intelectual e o faz por meio do exercício tenaz,
constante da busca do conhecimento sobre o mundo, o humano e a sua própria exis-
tência, certamente, sairá amadurecida e terá aproveitado uma enorme oportunidade de
ser feliz! Conforme dissemos alhures, a ignorância mata e faz matar. A verdade liberta
(BÍBLIA SAGRADA, JO, 8: 32).
O Brasil foi fundado com base no trabalho de gente criminosamente escravizada. Desde
meados do século XVI até o final do século XIX, foram quase quatrocentos anos de escra-
vismo. Clóvis Moura classificou o período em dois grandes momentos: escravismo pleno e
escravismo tardio. O segundo momento teve início após a Lei Eusébio de Queiroz estabelecer,
em 1850, a proibição do tráfico internacional de africanos ao Brasil (MOURA, 1994, p. 15).
Em muitos momentos, a população do Brasil foi constituída majoritariamente por gente
negra. Os números absolutos de negros africanos que entraram no Brasil por meio do crimi-
noso tráfico de pessoas é controverso, contudo, Moura consultou levantamentos e opiniões,
informando que
para avaliarmos o crescimento demográfico da população com o desembarque
ininterrupto de escravos, basta dizer que, no ano de 1853, as estimativas davam
à Colônia uma população de cerca de 57.000 habitantes. Deste total, 25.000 eram
brancos, 18.000 índios e 14.000 negros. Segundo cálculos de Santa Apolônia, em
1798, para uma população de 3.250.000 habitantes, havia um total de 1.582.000
escravos dos quais 221.000 eram pardos e 1.361.000 eram negros, sem contarmos
os negros libertos que ascendiam a 406.000. [...] Rocha Pombo estima em quinze
milhões o montante de negros entrados pelos diversos portos durante a escra-
vidão, número que Taunay acha exageradíssimo. Renato Mendonça cifra-o em
quatro milhões e oitocentos e trinta mil. (MOURA, 1988, p. 48-49)
Africanidades e Democracia 15
1 Quando o ser humano é o problema
2 O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística classifica a população brasileira nos seguin-
tes tipos raciais: branca, preta, parda, amarela e indígena. O movimento negro brasileiro, há muito
tempo, faz a soma das pessoas que se autodeclaram pretas e pardas e as denomina negras. Nos últimos
anos apareceu a categoria afrodescendente, mas esta não encontra unanimidade no movimento negro.
Isso porque se considera que o conceito negro foi reconstruído pelo povo negro, para ser um instru-
mento de luta e libertação. O termo negro foi utilizado pelos racistas como xingamento, ofensa. Porém,
a resistência negra inverteu essa lógica ressignificando o termo ao lhe dar um conteúdo positivo, a
exemplo do Movimento da Negritude, surgido na França na década de 1930. Em nosso livro, segui-
remos essa prática do movimento negro, portanto, para nós, negro significa pessoa preta e/ou parda.
Enquanto isso, afrodescendente ainda é um termo polêmico que vem sendo utilizado como facilitador
estatístico ou para assuntos burocráticos, mas não tem lastro da luta por emancipação.
3 Dia da Abolição da Escravatura no Brasil.
4 Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi, morto nesse dia em 1695 ao defen-
der o Quilombo de Palmares.
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Quando o ser humano é o problema 1
As notícias ainda apontam o povo negro como tendo a média salarial mais baixa, ocu-
pando as camadas mais empobrecidas da população total do país e os níveis inferiores em
termos de frequência às instituições educacionais (OLIVEIRA, 2017).
Alguns fatos cotidianos confirmam que algo errado está acontecendo nas relações ra-
ciais no país. Vejamos alguns exemplos.
• Tendo saído de casa para o trabalho de doméstica, a sra. Sirlei Dias de Carvalho
Pinto, mulher negra, em um ponto de ônibus, na Barra da Tijuca, zona oeste
do Rio, em junho de 2007, foi violentamente espancada por cinco universitá-
rios de classe média, que retornavam de uma noitada da farra. Justificaram o
ato dizendo: “Pensamos que fosse apenas uma prostituta...” (JOVENS..., 2014).
• Em um domingo, o garoto Douglas Rodrigues (17 anos) e o irmão (12 anos),
negros, foram surpreendidos por uma viatura policial, de dentro da qual um
dos policiais atirou em Douglas. Antes de tombar agonizando, o adolescente
indagou-lhe: “Por que o Senhor atirou em mim?” (“POR QUE..., 2013).
• Estudantes negros de uma universidade federal denunciaram ao Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros e Indígenas: “Os colegas brancos evitam a nossa participa-
ção nos grupos de trabalho acadêmico. Quando passamos em grupo, ouvimos ironias:
“Cuidado, a quadrilha está passando...”
Tendo como base esses exemplos, consulte o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e a própria mídia e identifique como as pessoas negras são vistas e a con-
dição de vida delas. Certamente, se você tiver a sensibilidade de respeitar a justiça, verá que
algo muito estranho está acontecendo em nosso país. É necessário informação, conhecimen-
to e reflexão para superar as injustiças, tendo-se em vista uma sociedade brasileira melhor.
Conclusão
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1 Quando o ser humano é o problema
A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais.
Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas
sejam ditas.
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não
faz mais parte de minha vida.
18 Africanidades e Democracia
Quando o ser humano é o problema 1
E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste mundo.
E já que o digo, vou tentar prová-lo.
O preconceito de raça...
Compreender e amar...
De todos os lados, sou assediado por dezenas e centenas de páginas que tentam
impor-se a mim. Entretanto, uma só linha seria suficiente. Uma única resposta
a dar e o problema do negro seria destituído de sua importância.
O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aber-
rações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será pre-
ciso retirá-lo.
Africanidades e Democracia 19
1 Quando o ser humano é o problema
Não sentiremos nenhuma piedade dos antigos governantes, dos antigos mis-
sionários. Para nós, aquele que adora o preto é tão “doente” quanto aquele que
o execra.
[...]
Atividades
1. Explicite o seu conceito de ser humano.
2. Diferencie o significado de problema para o senso comum e para a ciência, sem deixar
de aplicar o sentido científico à sua prática estudantil.
Referências
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Resolução
1. Há uma ampla margem de possibilidades conceituais para construir sua reflexão.
Você pode discorrer sobre as necessidades biológicas, sociais e transcendentais que
marcam cada pessoa. A resposta deve ter em vista que gente é para ser feliz, isto é,
tem direito a cuidar do corpo, gerar filhos, ter amizades, companheirismo, acesso
ao estudo, oportunidade de livremente escolher uma crença e frequentar ambientes
para desfrutar do prazer da arte, do esporte, do lazer. Além disso, pessoas têm di-
reito ao trabalho digno e ao cuidado da própria saúde. Sendo assim, resta lembrar
que uma pessoa tem o direito de amar e ser amada e de exercer a própria liberdade.
A responsabilidade é irmã gêmea da liberdade, por isso a pessoa tem direito a cres-
cer no discernimento para melhor servir a sua comunidade e a cuidar de sua vida e
das pessoas do seu círculo familiar.
2. O senso comum considera que um problema seja algo ruim, uma negatividade, dor,
sofrimento, ameaça ou frustração. Do ponto de vista científico, problema é como
o trampolim que faz o nadador saltar mais alto, em vista de um mergulho melhor
qualificado. O problema qualifica o trabalho científico porque orienta os esforços da
pessoa que pesquisa ao cerne da questão proposta. Sem um problema consistente
a pesquisa fica esvaziada de sentido e conteúdo, podendo levar à perda de objeti-
vidade. De modo semelhante, a pessoa que estuda estimulando sua capacidade de
formular perguntas, com uma mente questionadora em relação à realidade externa,
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2
Democracia racial:
mito ou realidade?
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2 Democracia racial: mito ou realidade?
Um velho ditado do povo negro em Salvador, BA, assegura que “nada acontece por acaso”.
Quando se declara que o Estado é uma nação politicamente organizada, significa que
ela foi organizada por algum motivo. Se temos culturas material e simbólica em nosso
povo e nos demais, a condição humana se realiza na ação dos indivíduos, em toda a sua
diversidade sexual, na luta diária para atribuir novos significados a sua própria existência,
marcada por incompletudes. Nesse sentido, se houver democracia racial no país, devere-
mos procurar suas causas em processos outros, menos no acaso. Se não houver, também.
Pensar a democracia racial é refletir sobre a racionalidade desse conceito. Sendo assim, o
ato de refletir sobre a democracia racial no Brasil, indagando-nos se ela é mito ou realida-
de, exige-nos uma conceituação preliminar de mito e de democracia. Mas não podemos nos
esquecer de que mito e democracia são fenômenos culturais, isto é, aparições históricas
da vida humana em sociedade. Portanto, após um levantamento preliminar sobre mito e
democracia, procuramos confrontar as definições com os fatos referentes às relações raciais
no Brasil. A questão inicial a esse respeito pode ser formulada nestes termos: qual seria o
sentido radical do mito na existência humana?
As sociedades pré-modernas ou tradicionais – compreendendo os povos “primitivos” e
as culturas antigas da Ásia, Europa e América –,desenvolveram narrativas, símbolos e ritos
para manifestar suas concepções do ser e da realidade (ELIADE, 1988). O significado de tais
elaborações evidencia um nível de consciência de alguma situação em curso no mundo, a
respeito da qual as pessoas atribuem um sentido e sobre ele assumem uma posição.
Em um primeiro momento, as narrativas operam no sentido de fortalecer os laços afeti-
vos e espirituais entre as pessoas de uma comunidade. Contribuem para a consolidação da
própria identidade e do sentimento de pertença a um grupo, a um povo.
As argumentações de Weber (1999, p. 5) sobre racionalidade assentam que racionalizar
consiste na prática do cálculo. Ação racionalizada é aquela planejada com base na relação
entre meios e fins, na ponderação sobre vantagem e desvantagem, custo e benefício, lucro e
prejuízo. Esse movimento do pensamento teria gerado a cultura do mundo desencantado,
isto é, sentimentos como a emoção, o maravilhamento, a afetividade são desprezados e, em
troca, ganham força o planejamento técnico com previsão, controle e os processos de gestão
centrados no ideal de otimização dos resultados. A frieza do cálculo sobrepõe-se às ebuli-
ções da subjetividade e sua dimensão emocional.
Contudo, Adorno e Horkheimer (1985) demonstram que há uma relação de mão dupla
entre mito e racionalidade, por isso denominaram seu livro de Dialética do esclarecimento.
O esclarecimento, sinônimo de racionalidade, está impregnado de mitos e os mitos, por sua vez,
carregam fortes traços de racionalidade.
Racionalizar consiste no empenho de se atribuir um sentido a algo, alguém ou a uma
relação. Trata-se de uma necessidade intrínseca ao ser humano. Nos primórdios, os gru-
pos humanos edificaram narrativas que explicavam a origem dos deuses, do cosmos, dos
humanos, assim como de situações próprias do cotidiano das coletividades. Por isso, se
24 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
diz que mito é uma narrativa, um discurso. Em termos práticos, tem-se um conjunto de
dizeres que circulam socialmente e atuam na consolidação dos laços entre as pessoas que
fazem parte do coletivo em questão, modelando o que se pode nomear como o status quo
de uma sociedade.
Isso significa que a vida em sociedade está marcada por interesses e disputas, por gru-
pos que se articulam politicamente, coordenando as forças materiais, como a posse de terra,
de máquinas, de armas e de forças morais, como lideranças sociais e religiosas e meios de
comunicação. Via de regra, os grupos que alcançam hegemonia e passam a exercer o con-
trole da sociedade impõem sua visão de mundo e trabalham para modelar as mentes e os
corações do povo à sua imagem e semelhança. O historiador Décio Freitas analisou o status
quo, a situação ou o estado de coisas de uma sociedade, e observou que “Inevitavelmente,
todo status quo se crê eterno: já não haverá história. Sucede, entretanto, que como a vida
social se encontra em processo de contínuo movimento e mudança, a história trabalha ine-
xoravelmente contra o status quo” (FREITAS, 1982, p. 9).
As narrativas são marcadas por conteúdos ideológicos. Nesse sentido, a ideologia pode
ser compreendida como pseudoverdade elaborada para o benefício de um grupo. Ela não é
reflexo da vivência, mas projeta um modo de ação sobre a realidade, tendo em vista o forta-
lecimento dos interesses do grupo que se propõe alcançar ou manter o poder.
A partir do exposto, fica demonstrado que os mitos cumprem papéis históricos decisi-
vos – em um primeiro momento, identificando o papel unificador das narrativas, compon-
do a cultura de uma coletividade, oportunizando a seus membros a construção da própria
identidade individual e coletiva. O mito organiza os destinos do ser humano e do mundo,
bem como as relações com os mistérios e o absoluto.
Por outro lado, a sociedade de classes deu vasão aos impulsos de dominação, trazendo
à tona a inquietação do espírito humano em busca da hegemonia, da supremacia política e
econômica. Sob essa lógica, foi-se definindo o poder sob o controle de uma classe social em
detrimento de outras.
Para efetivar e garantir a dominação, o grupo hegemônico realiza um trabalho ideo-
lógico, organizando corpos de ideias que modelam os modos de pensar e sentir da socie-
dade. Esse trabalho superestrutural constituirá o conjunto de narrativas que opera como
mito. Nesse caso, para a classe social hegemônica, tais narrativas justificam o status quo da
dominação, a situação confortável de quem desfruta a fortuna e o fausto às custas da clas-
se explorada. Inversamente, as narrativas servirão para acomodar a classe social explora-
da, levando-a à resignação, à inercia, ao conformismo e à “fatalidade” da vida sofrida que
deve enfrentar.
Depois de traçar as linhas gerais do conceito de mito, cabe a pergunta: qual é o problema
da democracia?
A partir dessa breve análise da vida em sociedade, são apontados os contornos históri-
cos do conceito de democracia e o sentido sociopolítico que foi sintetizando.
A história do pensamento ocidental acumula uma importante produção literária a
respeito do futuro desejável às sociedades humanas. Platão (427-347 a.C.), motivado pelo
Africanidades e Democracia 25
2 Democracia racial: mito ou realidade?
1 Autocrático: relativo a autocracia, regime que se caracteriza pelo autoritarismo, pela tirania.
26 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
capacitada, disponibilidade de tempo e cooperação entre os participantes, para se garantir
uma convivência sadia.
De maneira similar, porém em proporções ampliadas, deveria ser a organização e o cui-
dado para se promover as condições de sobrevivência, convivência e desenvolvimento es-
piritual das pessoas de uma aldeia, uma vila, metrópole ou país. Esse seria o sentido amplo
da atividade política, no sentido grego de cuidado com os interesses da pólis, isto é, a cidade.
Por isso, torna-se necessário o ordenamento político para a funcionalidade do ambiente e os
critérios de convivência e de relações entre seus ocupantes.
A definição tradicional reza que democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo
e com o povo. O pressuposto da definição é a liberdade de expressão, por meio da qual os
cidadãos e as cidadãs manifestam suas opiniões por meio do voto e das manifestações po-
líticas e jurídicas.
O Estado regido pelo parâmetro democrático garante alternância do poder, geralmente,
pelo voto e processos eleitorais regidos por normas que facultem a oportunidade de participar.
Nesse sentido, tem-se a democracia formal, constituída pelo conjunto de normas, estruturas e
procedimentos que propiciam condições de participação do povo. No entanto, a vida concreta
dos habitantes daquela sociedade pode estar distante de uma democracia efetiva, substancial.
É o caso de sociedades onde há fome, analfabetismo, precariedade das condições de
saúde, insegurança, desemprego, restrição de acesso à moradia ou ausência dela. Tais fatos
são indícios de uma democracia limitada. De fato, mesmo havendo democracia em sua for-
malidade técnica, o povo pode estar afastado das condições desejáveis de vida. A democra-
cia formal peca quando não atende às necessidades biológicas, sociais e espirituais do povo.
Agora que contextualizamos o problema da democracia e descrevemos o contexto de sua
realização, voltemos o foco da reflexão para outro problema, que é o mito da democracia racial.
Africanidades e Democracia 27
2 Democracia racial: mito ou realidade?
28 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
No Rio de Janeiro, no início do século XX, práticas religiosas e musicais eram curtidas
vigorosamente nas casas das “tias baianas”3, das quais tia Ciata é sempre lembrada por
acolher os músicos e os desvalidos da sorte. Sob a guarda das tias baianas teria nascido o
samba carioca, herdeiro de tradições culturais africanas e seus desdobramentos na diáspora
africana no Brasil. Atribui-se ao samba do Recôncavo Baiano uma contribuição decisiva no
processo de criação do samba carioca.
Entretanto, os praticantes do samba eram abordados pela polícia carioca e tratados com
métodos muito violentos, a exemplo do Delegado Chico Palha4 que espancava os músicos
e quebrava os seus instrumentos. Um violonista que tivesse calos nas pontas dos dedos
era enquadrado na prática da vadiagem. Pandeirista com seu instrumento era enquadrado
como portador de arma... Ou seja, as autoridades policiais, representantes do Estado, funcio-
navam como porta-vozes do racismo estatal. Esse tipo de discriminação impedia aos negros
o exercício da cidadania, cerceando-lhes o direito de ir e vir e de se expressar musicalmente.
A situação desfavorável em que o povo negro se via, da vigilância e suspeição perma-
nentes e das restrições ao acesso à terra deram origem a uma população sofredora de rua ou
confinada nos morros, de onde se originaram as favelas.
O Estado praticou e pratica racismo institucional omitindo-se e ignorando as demandas
do povo negro. Não se leva em conta que houve exploração escravista da força de traba-
lho desse povo durante quase quatrocentos anos. O Brasil foi o último país a extinguir a
escravidão na América. Durante todo aquele período, o braço, a inteligência e a tecnologia
africanas edificaram este país. Eram enviadas milhões de toneladas de produtos tropicais
anualmente à Europa, dando origem à riqueza, ao luxo e à opulência dos investidores da-
quele continente. Também aqui, a gente africana escravizada empoderou a classe social que
mais tarde passou a conduzir os destinos nacionais. Ora, após a lei de 13 de maio de 1888,
extinguindo a escravidão, o Estado virou as costas ao povo negro que teve de recomeçar a
vida a partir do zero.
No âmbito da educação, a questão racial não é contemplada. Se examinarmos planos de
cursos e ementários de disciplinas, encontramos o silêncio racial, isto é, o tema das relações
étnico-raciais não faz parte das inquietações das instituições. Assim sendo, o racismo é plan-
tado nas mentes e nos corações a partir das estruturas dos próprios cursos.
É importante lembrar que a Lei n. 10.639/03 é o resultado de uma antiquíssima reivin-
dicação do movimento negro brasileiro. Ao contrário do silêncio sobre as contradições do
racismo brasileiro, ela estabelece a obrigatoriedade do estudo da “História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2003).
3 Tias baianas - Senhoras baianas que moravam no Rio de Janeiro e abrigavam em seus terreiros os
sambistas perseguidos pela polícia. Em homenagem a elas, toda escola de samba traz a ala das baianas.
4 O cantor Zeca Pagodinho interpretou o samba “Delegado Chico Palha”, letra composta por Tio
Hélio e Nilton Campolino em 1938. Na letra, os autores descrevem a truculência do referido agente pú-
blico contra os sambistas. No link a seguir, assista à interpretação de Zeca Pagodinho. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7Mv3gechyaA>. Acesso em: 5 fev. 2018.
Africanidades e Democracia 29
2 Democracia racial: mito ou realidade?
30 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
2.3 Democracia racial necessária
Africanidades e Democracia 31
2 Democracia racial: mito ou realidade?
32 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
currículos acadêmicos, naturalmente, a práxis educacional deve ser questionada. Portanto,
temos gargalos no âmbito da dimensão social, porque o convívio das pessoas negras na
escola e universidade é perturbado pelos mecanismos racistas. Igualmente, a perspectiva
transcendental ou espiritual fica ferida, pois as pessoas negras são atormentadas por situa-
ções racistas quando se trata da busca ou produção do conhecimento.
Conclusão
O percurso da reflexão sobre a democracia racial, mito ou realidade, alcançará seu pro-
pósito se, em algum momento, suscitar no espírito das pessoas um questionamento em nível
pessoal: o que eu faço com isso? O que isso faz comigo?
A transformação da realidade segue, com a pessoa, uma via de duas faixas, ou seja, ao
mesmo tempo em que a sociedade passa por mudanças que a tornam melhor para a exis-
tência humana, cada pessoa é chamada a tomar posição; é convidada a participar e a tomar
parte no processo: mudar de mentalidade e alterar suas condutas coerentemente.
Esse movimento interior de enriquecimento conceitual e mudança de atitude é impres-
cindível para a edificação da democracia racial necessária.
Africanidades e Democracia 33
2 Democracia racial: mito ou realidade?
34 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
consegue impedir que os usos e costumes sociais – herdados da época da
escravatura – provoquem uma discreta forma de discriminação racial,
refletida especialmente no Sul do país, onde não há integração do negro
na vida social brasileira.
[...]
Atividades
1. Explique o teor do mito da democracia racial.
2. Em que sentido haveria uma sintonia entre o racismo institucional e o mito da de-
mocracia racial?
Africanidades e Democracia 35
2 Democracia racial: mito ou realidade?
Referências
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Resolução
1. O mito da democracia racial consiste em uma narrativa segundo a qual as relações
sociais no Brasil são marcadas pela convivência harmoniosa entre as pessoas de to-
das as raças. De acordo com tal mito, o Brasil está isento de conflitos raciais como
ocorreu no regime do apartheid na África do Sul ou da luta pelos direitos civis nos
EUA. O Brasil teria sido fundado em um contexto de cooperação entre as classes se-
nhorial e escravizada. Portanto, as relações entre os diferentes grupos étnico-raciais
estariam marcadas pela cordialidade e cooperação, sendo assim, o país poderia ser
tomado como uma referência para outras nações que tivessem conflitos raciais.
36 Africanidades e Democracia
Democracia racial: mito ou realidade? 2
2. O racismo institucional configura uma barreira estrutural no interior das instituições,
seja no âmbito da cultura, seja no teor de normas, diretrizes, documentos, projetos e
metas em detrimento das pessoas negras, dificultando ou impedindo-lhes o acesso
a bens ou serviços. Essa manifestação mascarada do racismo fortalece o mito da
democracia racial porque invisibiliza as injustiças produzidas contra a gente negra.
3. Democracia racial necessária é um conceito que nega o mito da democracia racial. Con-
sidera que as pessoas negras têm o direito de atendimento de suas necessidades
vitais, que lhes permitam a realização humana. Para isso, o Estado deve interferir
por meio de políticas públicas que lhes propiciem condições de sobrevivência, con-
vivência e aperfeiçoamento pessoal e profissional por meio do conhecimento formal.
Africanidades e Democracia 37
3
Racialização da
cultura brasileira
Produzir conhecimento é uma das mais valiosas ações das pessoas para lhes garan-
tir a sobrevivência e a convivência. A realização dos seres humanos pressupõe ir além
da simples resolução das necessidades materiais, pois uma vida sem significado tal-
vez não valha a pena. A construção de sentidos consistentes para a existência humana
deve levar em consideração o apelo à felicidade. Gente é para ser feliz. Pela superação
das necessidades materiais, pelo direito a conviver em paz com os semelhantes e pelas
oportunidades de evoluir no conhecimento.
Nesse sentido, esta obra pretende contribuir, subsidiar conceitualmente sua inter-
venção profissional e seus princípios de convivência.
Africanidades e Democracia 39
3 Racialização da cultura brasileira
É comum ouvirmos compatriotas repetindo refrãos deste teor: “Somos todos iguais”,
“Racismo não existe”, “Eu sou branco, mas minha alma é de negro” e discursos semelhan-
tes. Aparentemente, tais falas espelham o desconhecimento das desigualdades sociais, do
genocídio do povo negro, do legado negativo da escravidão criminosa e da dívida histórica
que o Brasil e a civilização ocidental têm com a África, os africanos e seus descendentes na
diáspora africana pelo mundo.
Este capítulo foi escrito com a intenção de enriquecer o nosso repertório conceitual, for-
talecendo o potencial de compreensão e explicação da dinâmica racial no Brasil, tendo em
vista uma intervenção social e profissional consistente.
As embarcações se deslocam sobre águas de mares e oceanos, amenas ou agressivas,
mas sempre resistentes; de modo semelhante, as pessoas e grupos humanos convivem so-
cialmente como se navegassem sobre mares e oceanos constituídos por discursos de varia-
das idades, ora amigáveis, ora agressivos e, também, sempre resistentes.
O mundo está repleto de fatos. Uma árvore é um fato, assim também uma pedra, uma
casa, uma pessoa. Fatos são públicos, estão disponíveis à sensibilidade e, por isso, é possível
prestar atenção a um ou mais fatos (SANTOS, 2000).
Pense em uma caneta. Ela é um fato, está aí. Tem um formato cilíndrico, dentro dela há
um tubo plástico cheio de líquido que a atravessa discretamente até a ponta, permitindo ao
usuário desenhar sinais gráficos, escrever palavras. É possível observar suas características –
o peso, o comprimento, o diâmetro, a cor, o aroma e a temperatura, bem como os materiais
utilizados na sua fabricação. Cada uma dessas informações, quando chegar ao intelecto, cor-
responderá a um dado, ou seja, a uma ideia simples sobre isso que se denomina caneta.
Note que enquanto os fatos são públicos, os dados não o são. Ao invés disso, são parti-
culares, isto é, pertencem à pessoa que gastou tempo observando-os e absorvendo as noções
a respeito deles. Ora, os dados armazenados no cérebro constituirão um acervo que o inte-
lecto, em uma operação secundária, articulará, relacionando-os com outros dados de que
dispõe, permitindo que o portador possa comunicá-los a outrem.
No entanto, uma dúvida se instala: como seria possível transferir os dados de um in-
telecto a outro, sem que o recebedor da mensagem tenha feito a experiência de observar e
absorver os dados a respeito daquele fato? Ora, a experiência humana acumulada durante
milênios levou os antepassados da nossa geração a criarem soluções admiráveis para esse
problema. Inventaram sinais materiais que operavam como representantes daqueles dados
armazenados no cérebro. Em lugar de apresentar os próprios fatos, as pessoas utilizavam-se
de gestos, sons e imagens, na intenção de comunicar os dados do próprio cérebro, entregan-
do-os ao cérebro das pessoas com quem mantinham interlocução. Surgiam assim os signos.
Uma palavra é um signo. Uma letra, um sorriso, também são. Quando as coletividades hu-
manas criaram consensos a respeito do conteúdo de determinados signos e, por meio deles,
trocavam dados para resolver os problemas da vida, criaram a linguagem. Por meio da lin-
guagem, surgiram novas experiências de convivência entre as pessoas.
40 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
Deveras, a partir da observação dos fatos, o intelecto absorveu os dados e as ideias bási-
cas sobre eles. Para comunicá-las, criaram-se os signos. O conjunto de signos articulados em
uma comunidade configura a linguagem e é com ela que as pessoas produzem verdadeiros
tecidos de ideias, que podemos nomear como discursos.
Assim sendo, discursos são conjuntos de dizeres que circulam socialmente. No entanto,
devemos lembrar que as palavras não têm significado único, por isso, podemos fazer delas
verdadeiras obras de arte ou verdadeiras armas de morte.
De fato, os discursos têm o papel social de aproximar pessoas, assim como o de destruí-
-las; podem fabricar guerras e exterminar os sistemas vitais, não poupando a flora, a fauna e
a espécie humana. Racismo é discurso. Racialização é a conversão do racismo em cultura que
permeia todos os tecidos psíquicos e institucionais de uma sociedade. Tendo em vista que os
discursos que circulam socialmente são produtos das ações das pessoas em suas trajetórias
históricas, podemos levantar o problema que nos envolve da seguinte forma:
• Como se explicam as relações racializadas entre as pessoas de uma sociedade?
• Em que sentido pode-se afirmar que a cultura brasileira é racializada?
• Em que sentido o racismo é uma cultura?
É importante notar que as relações entre os grupos humanos estão vinculadas aos fatos,
pois uma pessoa ou um grupo de pessoas é um fato. Ora, os seres humanos estão distribuí-
dos pelo planeta, recebendo influências da latitude, da longitude, da altitude, das massas
de ar, do relevo, dos alimentos disponíveis e das condições socialmente elaboradas para
dialogar com cada um dos cenários naturais. Por meio dessas relações, ocorrem alterações
na própria configuração corporal das pessoas, assim como no conjunto de signos, dados e
discursos que constituem as culturas materiais e simbólicas de cada grupo, no local especí-
fico onde vive.
Desse modo, observamos que, em determinadas regiões, a média da população tem
estatura elevada, cabelos e olhos claros e pele com discreta presença de melanina, mas
em outras regiões, com características ambientais diferentes, as pessoas têm nos corpos
marcas diferentes daquelas do grupo anterior. Os tipos de cabelos, as narinas, os lábios
e a intensidade da melanina no tecido epidérmico podem ter outras proporções, outras
condições específicas.
Curiosamente, embora as características exteriores como altura, cor da pele, dos olhos,
tipo de cabelo ou da pálpebra sejam distintas, um exame no nível do DNA apontará um
parentesco fundamental entre esses diversos tipos humanos. Por esse aspecto, no sentido
genético, o que se tem é uma única família humana, embora o fenótipo – isto é, a aparência –
apresente marcas diferentes entre dois ou mais grupos humanos.
No entanto, constata-se que as pessoas e as sociedades operam com base em dados
obtidos da realidade dos fatos e muito mais. Além dessa fonte, o cérebro humano é dotado
da capacidade de imaginar, inventar, criar fantasias e quimeras. Basta lembrar das narrati-
vas que assustavam as crianças com figuras monstruosas ou das perguntas inteligentes que
partiram da capacidade imaginativa e levaram pessoas a inventarem soluções científicas e
tecnológicas espetaculares.
Africanidades e Democracia 41
3 Racialização da cultura brasileira
Portanto, as pessoas exercem suas ações neste mundo apoiadas em dois critérios: um
deles, o objetivo, deriva da análise dos fatos e, o outro, o subjetivo, cuja origem são os desejos,
as emoções, a imaginação de cada pessoa.
Os tipos de conhecimento são discursos que abrangem variados campos de interesses.
O conhecimento religioso diz respeito à fé no Ser divino, inclui doutrinas, normas de con-
duta e práticas rituais religiosas, dentre outras. Os discursos científicos estão repletos de
teorias sobre campos específicos da investigação humana sobre a natureza, o indivíduo e a
sociedade. Já o discurso estético, que se refere ao conhecimento oriundo da percepção sensí-
vel das pessoas, manifesta-se nas obras de arte ou a partir delas.
Por outro lado, além das relações entre os grupos humanos terem uma base nos fatos, é
imprescindível reconhecer que as fantasias, as invenções criadas pela imaginação, baseadas
no desejo, nas emoções e na profundeza da subjetividade das pessoas também alimentam
discursos e governam as ações de indivíduos e sociedades. Nesse ponto está a raiz frontal
dos discursos racistas, das racializações dos processos sociais.
Quando as pessoas são marcadas e filtradas pelas marcas de seus corpos, temos aí o em-
brião da racialização na sociedade. Do ponto de vista biológico, não existem raças. Existem,
sim, seres humanos, únicos e plurais em sua diversidade sexual. Baseadas em interesses
particulares ou de grupos, as pessoas são sinalizadas, isto é, marcadas arbitrariamente como
raça. Quem as classifica como raça inferior, faz isso por medo, ciúme, inveja, cobiça ou algu-
ma perversidade de caráter, ruindade moral ou de maldade humana e usa como desculpa
alguma característica da cultura ou marcas dos corpos das vítimas. Então se fala em raça
branca, negra, amarela, vermelha...
O professor Kabengele Munanga, célebre estudioso das relações raciais, confirma a for-
ça do racismo no Brasil ao lembrar que desde o tempo da Frente Negra Brasileira1 (1931-
-1937), o problema do racismo brasileiro veio à tona, inspirando novos estudos. Segundo
esse mesmo autor, os
resultados da pesquisa científica realizada desde os anos 1950 e 1960 por pes-
quisadores renomados como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando
Henrique Cardoso, Oracy Nogueira, João Baptista Borges Pereira, Thales de
Azevedo, etc., [...], seguindo os passos da Frente Negra Brasileira, ratificaram
a existência de práticas racistas na origem das desigualdades entre Brancos e
Negros. (MUNANGA, 2009, p. 15)
Essa informação reforça a importância de investirmos tempo e atenção para conhe-
cermos os problemas raciais no Brasil e sua repercussão sobre a realidade pessoal e pro-
fissional. A história nos desafia a tomar posse de conceitos, análises e teorias que nos
ajudem a amadurecer a qualidade da convivência inter-racial, tanto no contexto pessoal,
quanto no profissional.
1 A Frente Negra Brasileira foi fundada em 16 de setembro de 1931 e durou até 1937, tornando-se
partido político em 1936. Foi a mais importante entidade de afrodescendentes na primeira metade do
século, no campo sócio-político. A Frente Negra foi um movimento social que contribuiu muito com as
lutas pelas posições do negro em São Paulo (GELEDÉS, 2011). Disponível em: <https://www.geledes.
org.br/hoje-na-historia-1931-80-anos-da-frente-negra-brasileira/>. Acesso em: 4 dez. 2017.
42 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
3.1.1 Raça
O termo raça teria sua origem etimológica no italiano razza, o qual deriva do latim ratio,
que significa categoria e espécie (MOORE, 2007, p. 21). O uso atual do conceito sugere uma
ambiguidade, pois ele contém um enfoque científico, genético, e outro social. Usualmente,
a ideia de raça traz à tona noções envolvendo uma origem comum, descendência, graus de
parentesco sanguíneo, características fisiológicas, comportamentais e culturais. No entanto,
a fragilidade do conceito é confirmada pela ciência genética: “Mas, do ponto de vista da ge-
nética, a ideia de raça é desprovida de conteúdo ou valor científico. Raça não é um conceito
operacional. Portanto, não permite fixar, na área da pesquisa genética, sistemas de classifi-
cação universal” (DADESKI, 2001, p. 44).
Essa declaração de Dadeski é importantíssima para o enfrentamento de equívocos que
as pessoas cometem ao tomarem posições sobre relações raciais. Assim, devemos definir a
questão e reafirmar: não existe raça humana do ponto de vista genético, biológico. Raça é
uma construção social. Nesse sentido, a pesquisa de Dadeski avança, informando que “a
noção de raças humanas é uma forma imprecisa de designar populações sobrepostas cuja
inacreditável diversidade não se presta a qualquer classificação simples e cientificamente
aceitável” (DADESKI, 2001, p. 45).
Ora, tendo em vista que é cientificamente impróprio operar com a ideia biológica de
raça, então por que se usam termos como racismo, conflitos raciais, raças branca, negra, amarela?
Por que devemos trabalhar com a ideia de raça?
Embora a ciência opere dentro de critérios rigorosos para formular suas conclusões,
as pessoas, no cotidiano, são governadas por critérios divergentes ou complementares.
Quando as pessoas se encontram dentro dos ônibus ou trens, em restaurantes, nas calçadas
das ruas, nos estádios ou prontos-socorros, elas agem com base em percepções superficiais
sobre quem está ali. Não raro, guiam-se pela aparência, classificam-se reciprocamente por
critérios subjetivos, ligados à imaginação, estabelecendo justificativas irrefletidas dos senti-
mentos e das opiniões que constroem umas sobre as outras. Por isso, embora não haja raça
no sentido biológico, as pessoas operam com percepções racializadoras, gerando as concep-
ções alimentadas pela noção fictícia de raça.
Nesse sentido, a construção social de raça passa a abastecer as ciências sociais de pro-
blemas e a demandar pautas no campo político. Por isso, justifica-se o debate sobre racismo
e democracia, bem como as reivindicações de políticas públicas para grupos racialmente
prejudicados em uma sociedade.
Mas é importante ficarmos atentos, pois, embora os cientistas nos prestem essas valio-
sas informações, o nosso “mundo da vida” apresenta contradições preocupantes. Os racis-
mos estão aí, mundo afora, disseminando ameaças e violência contra indivíduos e grupos.
No parágrafo anterior, recorremos ao conceito filosófico de mundo da vida que corres-
ponde ao terreno da vida diária. Nele podemos identificar três grandes áreas nas quais as
pessoas transitam socialmente e desenvolvem a própria existência: a sociedade, correspon-
dendo a todas as formas possíveis de organização da convivência, por exemplo, o Estado,
Africanidades e Democracia 43
3 Racialização da cultura brasileira
44 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
Negros. Em uma passagem, registra uma observação atualíssima e de grande importância
para esta meditação que estamos desenvolvendo:
O racismo não é, pois, uma constante do espírito humano. É, vimo-lo, uma dis-
posição inscrita num sistema determinado. E o racismo judeu não é diferente do
racismo negro. Uma sociedade é racista ou não o é. Não existem graus de racis-
mo. Não se deve dizer que tal país é racista, mas que não há nele linchamentos
ou campos de extermínio. A verdade é que tudo isso, e muito mais, existe como
horizonte. Estas virtualidades, estas latências, circulam dinâmicas, inseridas na
vida das relações psico-afetivas, econômicas. (FANON, 1980, p. 45)
O racismo, entranhado no âmago da sociedade, tem um caráter deletério2, particu-
larmente no caso brasileiro, em que se advoga um racismo cordial, supostamente ameno.
Nesse sentido, o texto de Fanon consiste em um alerta da maior relevância, pois nos chama
a atenção para o fato de que todo racismo carrega uma peçonha de letalidade radical.
Quem acompanha manifestações de jornalistas brasileiros do setor de futebol, observa
que são frequentes as comparações entre atletas, no tocante às características e desempe-
nhos. No entanto, parece existir uma unanimidade nacional: há um ponto imexível na lista,
pois os comentaristas de futebol, via de regra, recusam-se a comparar algum atleta de hoje
ao rei Pelé. Nomes importantes como os de Zico, Sócrates, Zidane, Platini, Maradona, Messi,
Neymar, Cristiano Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, entre outros, são lembrados. No entanto,
os jornalistas concluem: mas o Pelé, não! Pelé era Pelé! Não há comparações com ele.
Da mesma forma, as racistas e os racistas brasileiros coincidem num ponto, como se
houvesse um consenso entre eles, porque o brasileiro pratica o racismo, mas não quer ser
pego. Quando acontece a ofensa racista, logo vem uma reação brusca também: a pessoa é
pega em um ato flagrante de racismo e, quando é desmascarada, ela reage: “Não foi isso o
que eu quis dizer! Não tive a intenção...”. Em geral, outros racistas correm em socorro de
quem ofendeu e apresentam argumentos para inocentar a pessoa criminosa. Chega-se ao
absurdo de surgirem vozes prestando solidariedade ao agressor e não às vítimas, como
ocorreu em 2017, no famoso flagrante de racismo do apresentador da TV Globo, William
Waack (CARTA CAPITAL, 2017).
Nunca é demais recordar que a legislação brasileira estabelece o racismo como crime
inafiançável e imprescritível.
Africanidades e Democracia 45
3 Racialização da cultura brasileira
pau-brasil a Portugal. Naqueles primeiros anos de abordagem da terra, uma política de es-
cambo atraiu o interesse dos nativos do litoral, os quais realizavam o trabalho pesado com a
madeira, em troca de quinquilharias europeias.
Posteriormente, os colonizadores idealizaram a produção de açúcar em terras brasilei-
ras e, para isso, optaram pelos conhecimentos que os africanos detinham a respeito daque-
la atividade agrícola. Passaram a importar gente negra no continente africano, inferindo,
mais tarde, que a lucratividade seria superior pelo aproveitamento otimizado das embarca-
ções. Os navios traçariam uma rota triangular, mantendo-se permanentemente carregados
enquanto trafegavam pelo Oceano Atlântico. Partindo com a carga de produtos tropicais,
saíam do Brasil e descarregavam em Portugal ou Holanda. De lá, levando produtos ma-
nufaturados, rumavam ao litoral africano, onde os barganhavam por gente negra, estrate-
gicamente capturada e pronta para o embarque. Com as embarcações repletas de pessoas
negras controladas sob armas, as embarcações seguiam para o litoral brasileiro, onde os
sobreviventes da travessia eram leiloados entre os escravistas.
Desde a década de 1530 ao ano de 1888, transcorreu a escravização de africanos no Brasil.
A presença negra foi intensa a ponto de despertar comentários fortes de dois missionários cató-
licos. O padre António Vieira (1608-1697), famoso pregador jesuíta do período escravista, teria
registrado que “sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros.” (VIEIRA, 1925,
p. 243). Outro missionário daquele tempo, Antonil (1649-1716), opinou que os negros “eram as
mãos e os pés dos senhores de engenho” (ANTONIL, 1837, cap. IX, p. 31). As declarações dos
dois religiosos evidenciam que a presença operativa dos africanos e africanas criminosamente
escravizados foi absolutamente determinante para o sucesso da colônia portuguesa no Brasil.
A história econômica do Brasil registra, no período da escravidão criminosa, os grandes
momentos da produção: ciclos da madeira, mineração, do ouro e café. Seguindo paralela-
mente a essas atividades, a pecuária, a agricultura de subsistência, o artesanato e o charque
gaúcho. E não se pode perder de vista a presença de atividades tecnológicas ligadas às edi-
ficações. Os técnicos negro-africanos solucionaram demandas de construção civil e arquite-
tura – fossem residenciais, militares, eclesiais, de transporte. Ademais, grandes benefícios
foram disseminados pelos saberes medicinais trazidos da velha África. Seja como for, está
provado que em todo esse espectro da produção esteve presente de forma decisiva a mão
negra da mulher, do homem e da diversidade sequestrados da velha África.
Em que pese a familiaridade dos indígenas com a terra, fator que favorecia a resistência
ao escravismo português, durante longo tempo houve indígenas escravizados no Brasil.
Como vimos, o foco econômico levou os colonos à opção pela escravização de africanos.
Ainda assim, durante séculos, indígenas também foram escravizados.
Os europeus que aportaram no litoral brasileiro tornaram-se agentes orgânicos da
colonização. Comumente, evitavam os trabalhos braçais, impondo-os aos africanos.
Portanto, podemos concluir que a fabricação do Brasil se deu por meio da exploração do
trabalho de africanos escravizados em ampla escala, bem como de indígenas em propor-
ção bem menor.
46 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
3.3 Mudanças políticas e manutenção
da exploração racial
O escravismo brasileiro bateu recordes. O Brasil foi o lugar que mais importou gente
negra; aqui, a escravidão criminosa atingiu proporções continentais, pois em todo o territó-
rio brasileiro se praticou o escravismo.
Clóvis Moura classificou o escravismo brasileiro em dois momentos:
Uma fase ascendente, até 1850, quando foi extinto o tráfico internacional de
escravos. Outra descendente, de desagregação paulatina. Começa com a Lei
Eusébio de Queiroz, que estrangula a dinâmica demográfica via tráfico interna-
cional, garantindo o seu desaparecimento efetivo. A esses dois períodos que se
articulam, reestruturam e se desarticulam de acordo com a dinâmica específica
de cada um chamamos, respectivamente, de escravismo pleno e escravismo tardio.
(MOURA, 1994, p. 15)
O escravismo participou intensamente do momento em que a economia capitalista so-
lidificava seu poderio. A colônia fornecia os produtos tropicais à metrópole, entrementes,
as classes sociais europeias protagonizavam disputas que repercutiam no Brasil. Um dos
episódios marcantes desse contexto foi a transferência da Corte portuguesa ao Brasil. Mais
tarde, as tensões políticas desembocaram no movimento separatista, pelo qual o príncipe
D. Pedro converteu o Brasil em país independente, inaugurando o Império brasileiro. Porém,
do ponto de vista da gente negra, permanecia o mal-estar da tirania, da vida em estado de
sítio. Mudou-se a identidade da instituição, tornando o Brasil um Império; mais tarde, crises
internas promoveram um movimento de troca-lugares: Dom Pedro I retornou a Portugal,
vieram os regentes e, por fim, Dom Pedro II.
Porém, em todos esses movimentos um fato seguia imexível: o povo negro permane-
cia escravizado.
Após a Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão, acentuaram-se as
medidas políticas para a extinção do negro no Brasil. Ainda assim, o povo negro perseverou.
Acompanhemos o relato sobre uma família negra brasileira e observemos que a escra-
vidão extinta por aquela lei não foi acompanhada por medidas de apoio ao povo negro.
O enfrentamento das adversidades, por Emídia e Sabino, ilustram o caráter perverso do
racismo brasileiro, que corrói por dentro as possibilidades de florescimento pleno da huma-
nidade da gente negra neste país.
Africanidades e Democracia 47
3 Racialização da cultura brasileira
Conclusão
48 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
Ampliando seus conhecimentos
Acompanhemos atentamente a reflexão do Professor Joaze Bernardino, que nos ajuda a
compreender as classificações raciais no Brasil e alguns aspectos da dinâmica silenciosa do ra-
cismo no cotidiano brasileiro. Professor da UFG – Universidade Federal de Goiás, no momen-
to da escrita deste texto, fazia o curso de doutorado em Sociologia na UnB – Universidade de
Brasília. O livro do qual se recolheu este fragmento faz parte da coleção Políticas da cor, uma
iniciativa do Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira, do Laboratório de Políticas
Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LPP/UERJ), cujas obras têm prestado
inestimável contribuição para o enfrentamento do racismo no Brasil.
Africanidades e Democracia 49
3 Racialização da cultura brasileira
Este caráter contextual das percepções valorativas relacionadas à cor tem per-
mitido que alguns estudiosos das relações raciais no Brasil classifiquem a nossa
realidade como harmoniosa e paradisíaca, sobretudo quando têm como foco de
análise os domínios que Lívio Sansone nomeou de “suaves” e os espaços negros.
50 Africanidades e Democracia
Racialização da cultura brasileira 3
Atividades
1. Explique a construção discursiva do racismo a partir dos fatos e a partir da subjeti-
vidade.
2. Tendo em vista que é cientificamente impróprio operar com a ideia biológica de raça,
justifique a necessidade de políticas de combate ao racismo.
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Africanidades e Democracia 51
3 Racialização da cultura brasileira
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Resolução
1. Como vimos, a construção objetiva do conhecimento parte dos fatos. O intelecto
apreende os dados correspondentes aos fatos e os comunica por meio de signos.
A coletividade que compartilha um conjunto de signos, cria uma linguagem por
meio da qual produz discursos, que são os dizeres sobre algum fato. Ora, o racismo
não tem sustentação biológica, porque os fatos não autorizam o intelecto a inferir
que uma raça seja superior ou inferior a outra. Ainda assim, no passado, se produziu
teorias argumentando em favor de uma raça, essa tida como pretensamente supe-
rior a outras. Por outro lado, as pessoas são dotadas de outros recursos pelos quais
elaboram ideias e discursos. Desejos, imaginação, preconceitos ou curiosidade, por
exemplo, podem levar alguém a criar teorias ou ficções. O racismo gerado pela sub-
jetividade é um desses casos. A pessoa afirma a superioridade ou inferioridade racial
de alguém por motivos fantasiosos.
2. Embora o racismo não tenha fundamento científico, as relações cotidianas são ba-
seadas nas aparências das pessoas. Os grupos cristalizam sentimentos e opiniões
negativas sobre pessoas ou grupos e, a partir de tais pressupostos, ocorrem danos de
todos os tipos, para os quais são necessários processos conscientizadores, medidas
judiciais e políticas de superação dos males.
52 Africanidades e Democracia
4
Os povos fundadores
do Brasil
Este capítulo reflete sobre o processo que resultou na fundação do Brasil, focali-
zando os três grupos humanos que atuaram no nascedouro da nação brasileira, indí-
genas, portugueses e negros africanos. A reflexão do texto é conduzida por esta pergunta:
como se caracterizavam os parâmetros culturais de portugueses, indígenas e negros
africanos no momento que antecedeu à colonização?
Africanidades e Democracia 53
4 Os povos fundadores do Brasil
O tempo que antecedeu a chegada de Cabral ao Brasil foi marcado por uma longa
disputa entre portugueses e negros islamizados, denominados mouros, que ocuparam a
península ibérica durante vários séculos. Ao se ver desocupada da guerra contra os mouros,
a burguesia portuguesa acentuou o interesse pelo comércio de produtos orientais, motivo
pelo qual investiu no estabelecimento de uma rota atlântica para as Índias. Essa política
evitaria conflitos com as cidades italianas, pois o mar Mediterrâneo seguia controlado
ciosamente pelos comerciantes de lá.
O afastamento dos mouros representou também um estreitamento entre os reinos por-
tuguês e espanhol com a Igreja católica, fazendo com que aquelas duas nações protagonizas-
sem forte resistência ao protestantismo. Consolidou-se uma parceria entre Igreja romana e rei
português e, desse modo, a expansão marítima portuguesa realizou simultaneamente o pro-
jeto mercantilista de busca de riqueza e poder e a política de difusão do cristianismo católico.
Portugal praticou um catolicismo guerreiro. O próprio rei de Portugal, D. João III,
conforme citação de Eduardo Hoornaert, escreveu a Tomé de Souza, o primeiro governa-
dor geral do Brasil, nestes termos: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi
que a gente do Brasil se convertesse à nossa santa fé católica.” (1978, p. 32). Tratava-se de
uma cristianização agressiva, pois prevalecia o espírito guerreiro contra os inimigos da fé.
A ideologia de guerra santa impediu o desenvolvimento da missão no sentido evan-
gélico. Por isso, “houve conquista, implantação da estrutura da religião dominante.”
(HOORNAERT, 1978, p. 32).
Entre os séculos XVI e XVIII, o Brasil foi administrado à luz do pacto colonial – um
pacote de medidas que determinava o sentido econômico da Colônia que deveria funcionar
como criação a serviço da metrópole.
O sociólogo peruano Aníbal Quijano explicou a estrutura do padrão de poder em nível
mundial, a partir da ação dos colonizadores da América Latina. Nesse sentido, a interven-
ção de espanhóis e portugueses racializou indígenas e negros e utilizou-os em benefício do
capital. O continente americano foi levado a cumprir um papel de espaço e tempo de poder,
de abrangência mundial.
Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido
espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo pa-
drão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores
e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura
biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a
outros. (QUIJANO, 2005, p. 117)
Segundo Quijano, a população da América foi submetida à hierarquização racial.
Os discursos racialistas legitimavam a exploração da mão de obra de indígenas e, mais tar-
de, de negros africanos, garantindo aos europeus a acumulação de capital que pretendiam:
54 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais
tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de
todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos, em torno do capital e do mercado mundial. (QUIJANO, 2005, p. 117)
Comerciantes espanhóis, holandeses, franceses e ingleses também estavam ávidos por
riquezas de além-mar e rivalizavam com Portugal, no momento em que este iniciou a explo-
ração das riquezas brasileiras. O processo civilizatório português deu-se apoiado pela igreja
católica e por um amplo aparato tecnológico e bélico. Darcy Ribeiro argumentou que
Esse complexo do poderio português vinha sendo ativado nas últimas décadas,
pelas energias transformadoras da revolução mercantil, fundada especialmen-
te na nova tecnologia, concentrada na nau oceânica, com suas novas velas de
mar alto, seu leme fixo, sua bússola, seu astrolábio e, sobretudo, seu conjunto
de canhões de guerra. Com ela surgiam solidárias a tipografia de Gutenberg,
duplicando a disponibilidade de livros, além do ferro fundido, generalizando
utensílios e apetrechos de guerra. (1995, p. 38)
O empreendimento colonial, protagonizado por Portugal, Espanha e outras nações eu-
ropeias – por sua abrangência, pelo tempo de duração e pelas multidões envolvidas, entre
outros fatores –, constituiu-se em um fenômeno que alterou radicalmente a configuração
geográfica e social do planeta. Uma das consequências foi a criação do Brasil, o sexto país de
maior extensão territorial.
Africanidades e Democracia 55
4 Os povos fundadores do Brasil
1 Trecho de um dos sermões utilizados do Pe. Antonio Vieira, em que compara o martírio de Cristo
com o sofrimento dos escravos africanos: “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado [...]
porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em
toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Tam-
bém ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro
de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite
sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido,
e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em
tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa
imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Só lhe faltava
a cruz para a inteira e perfeita semelhança o nome de engenho: mas este mesmo lhe deu Cristo, não
com outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e a
de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também torcular [...]. Em todas as invenções e ins-
trumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o seu que
o vosso. A propriedade e energia desta comparação é porque no instrumento da cruz, e na oficina de
toda a Paixão, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo
o sangue da humanidade sagrada [...] E se então se queixava o Senhor de padecer só [...] e de não haver
nenhum dos gentios que o acompanhasse em suas penas [...] e vede vós quanto estimará agora que os
que ontem foram gentios, conformando-se com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação
tão boa companhia!”(VIEIRA, 1633, p. 10).
56 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
4.3 Parâmetros culturais de autóctones e africanos
4.3.1 Indígenas
Os indígenas distribuídos ao longo da faixa litorânea “somavam, talvez, 1 milhão divi-
didos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de
várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes” (RIBEIRO, 1995, p. 31). O IBGE (2017) estima
que o Brasil teria, no século XVI, aproximadamente 3,5 milhões de indígenas.
O relacionamento dos povos nativos com os colonos portugueses oscilou entre o acolhi-
mento, a desconfiança e a hostilidade. Insistentes, os europeus instalaram e avançaram na
consolidação dos projetos definidos para sua intervenção no Brasil.
O catolicismo consistia em um dos critérios mais marcantes da cultura portuguesa, por
isso, durante os primeiros séculos da formação histórica do Brasil, era obrigatório ser católico.
“Era praticamente impossível viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a
religião católica” (HOORNAERT, 1978, p. 13). Os missionários católicos, especialmente os je-
suítas, atuaram como intelectuais orgânicos da conquista e dominação, pois o resultado do tra-
balho que faziam estimulava indígenas e africanos a cooperarem com as iniciativas dos colonos.
Indígenas e africanos, anteriormente ao contato com os portugueses, tocavam a vida
com base nos parâmetros culturais que lhes eram próprios, avançando segundo as condi-
ções nas quais se encontravam, mediadas pela interação com a natureza e com outros gru-
pos que viviam ao redor. Porém, o contato com o português provocou violenta ruptura nas
condições de vida daquelas sociedades.
As manifestações de resistência à colonização portuguesa foram tratadas com persegui-
ções, massacres, guerras, enforcamentos, torturas, esquartejamentos, mutilações e castigos
Africanidades e Democracia 57
4 Os povos fundadores do Brasil
em praça pública, perfazendo uma metodologia que se aproxima da descrição feita pelo
filósofo Michel Foucault no livro Vigiar e punir2. Escrevendo sobre a repressão dos negros
africanos em processo de resistência, Nascimento expõe a metodologia de controle dos es-
cravocratas do Brasil: Tinha um caráter extremamente violento e assassino a repressão dos
escravocratas a esses legítimos esforços de libertação do africano escravizado, assumindo a
expressão de verdadeiro massacre coletivo da população negra (1980, p. 51).
As palavras de Nascimento traduzem o desespero que se abateu também sobre os po-
vos indígenas, pois foram atacados com o mesmo teor de violência.
A professora Maria Regina Celestino de Almeida pesquisou os indígenas aldeados do
Rio de Janeiro e relatou que
o texto [da tese dela] apresenta os índios aldeados do Rio de Janeiro como sujeitos
históricos que não se anularam diante do caos e da violência impostos pela con-
quista e colonização de seus territórios. Ao invés de vítimas passivas do projeto
colonial, os aldeados foram vistos como agentes sociais que, apesar dos imensos
prejuízos, adaptaram-se às novas condições que lhes eram impostas, desenvolven-
do diferentes estratégias para fazer frente às adversidades e buscar as melhores
possibilidades de sobrevivência na nova ordem colonial. (ALMEIDA, 2015, p. 120)
Passados os séculos de dominação eurocêntrica, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
informa que o censo de 2010 constatou a existência total de 896.917 indígenas no Brasil.
Comparando-se este número aos 3,5 milhões de indígenas no início da colonização, a dis-
crepância entre o passado e o presente sinaliza que os povos indígenas experimentam uma
convivência desastrosa com o sistema ocidental que lhes foi imposto.
O processo histórico de fundação do Brasil registra a interação dos povos indígenas
com portugueses e negros africanos. As marcas dos indígenas e suas contribuições encon-
tram-se no idioma, nos usos, costumes e na miscigenação. A herança desses vínculos faz
parte da configuração do imaginário do povo brasileiro.
Nossa reflexão avançará focalizando a presença dos negros africanos no Brasil.
58 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
que outras civilizações teriam subsidiado os africanos, alavancando seus avanços tecnológi-
cos científicos e culturais (NASCIMENTO, 2008, p. 29-54).
Uma área de grande extensão que exerce importante influência sobre o continente afri-
cano é o deserto do Saara. A esse respeito, destaca-se o passado verde daquela região:
O Saara é um imenso deserto que cobre a maior parte do norte da África. Embora
seja hoje um deserto, o Saara já foi bastante povoado em vários períodos. Atribui-
-se o abandono da região pelas últimas etnias que a ocuparam a instalação de um
clima cada vez mais seco e quente, que provocou a rarefação das precipitações
e o esgotamento das fontes e dos rios. O consequente desaparecimento da co-
bertura vegetal e da fauna forçou o homem a procurar regiões periféricas mais
clementes. (SILVÉRIO, 2013, p. 109)
Em se tratando do continente africano, as aparências causadas pela longa extensão do de-
serto do Saara poderiam sugerir uma divisão brusca do espaço, separando as populações que vi-
vem ao norte do deserto e os habitantes ao sul. Contudo, essa incomunicabilidade não acontece:
A história da região saariana oferece uma imagem bem distinta daquela que a
separa do restante do continente. Durante milênios, o Saara era verde e habita-
do por africanos negros que se encontrariam, no decorrer de migrações rumo
ao vale do rio Nilo, com populações originárias da África Central. Juntos, esses
povos africanos formariam a base demográfica da civilização clássica núbia e
egípcia. Mesmo depois do período verde, o Saara continuou habitado por gente
“subsaariana“, ou seja, por africanos negros. (NASCIMENTO, 2008, p. 50)
O Saara é um espaço percorrido por caravaneiros e tem também seus moradores, por-
tanto, é um equívoco supor o isolamento entre os povos do norte e os do sul. Há intercâmbio
cultural e histórico entre as duas regiões, pois “o fluxo de comerciantes, viajantes imigrantes
atravessando o Saara, nos dois sentidos, caracterizou um intercâmbio ativo e constante entre
os povos ao norte e ao sul do deserto desde tempos imemoriais” (NASCIMENTO, 2008, p. 50).
O continente africano é considerado o ambiente onde apareceram os primeiros ances-
trais dos seres humanos. Ao longo de milênios formaram-se mais de uma centena de etnias,
com cerca de dois mil idiomas, espalhados por mais de 30 milhões de quilômetros quadra-
dos. O intercâmbio frequente entre os grupos propiciou uma dinâmica de vaso-comunica-
ção de experiências, conceitos e soluções.
Um sacerdote africano, do Burundi, no século XX, recordava dois princípios éticos:
“O homem se abre ao homem” e “O homem não tem coisas, mas ‘está com as coisas’, não tem
propriedade, mas ‘está com a propriedade’, não tem amigos, mas ‘está com amigos” (ONDÓ,
2006, p. 91-92). O filósofo Eugenio Ondó, autor do relato, admirado, chama a atenção para o
fato de que esses dois princípios éticos haviam sido largamente ensinados pelos sacerdotes no
Egito da negritude. Eram princípios milenares. O sentido de abertura ao outro ser humano
traduz-se em generosidade e gratuidade, permitindo à pessoa ir além do caráter possessivo.
Ninguém é proprietário porque recebe a dádiva de estar com amigos, com as coisas. Portanto,
a convivência entre as pessoas deve ser conduzida por esses fundamentos.
Africanidades e Democracia 59
4 Os povos fundadores do Brasil
60 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
Portanto, em tudo aquilo que fazemos, colocamos o homem em primeiro lu-
gar e, por isso, nossa ação em geral é uma ação comum, mais orientada para a
comunidade solidária do que para o individualismo, que é a marca registrada
da abordagem capitalista. Sempre evitamos usar as pessoas como degraus para
subir. Em vez disso, estamos dispostos a um progresso muito lento, num esforço
de garantir que todos caminhemos no mesmo ritmo. (BIKO, 1990, p. 57)
É importante ressaltar que essa prática comunitária da África do Sul, descrita por Biko,
é encontrada em todos os povos negro-africanos. A pessoa humana é prioridade e isso im-
plica a fidelidade. Partindo da certeza da presença divina e do compromisso radical com as
pessoas, aprendem o fundamento da fidelidade como a força de decisão que leva ao cuidado
da vida recebida dos ancestrais. Por isso, os ancestrais, conhecidos ou não, devem ser honra-
dos e a pessoa deve zelar pelo bem da comunidade da qual faz parte.
Uma comunidade africana é composta por três tipos de moradores: os vivos, os fale-
cidos e quem ainda não nasceu. Por isso, as práticas sociais darão atenção à memória dos
ancestrais, ao cuidado dos viventes de agora e se manterão atentas aos direitos das crianças
vindouras. Associada à dinâmica da fraternidade, da reverência aos ancestrais e da respon-
sabilidade perante às gerações futuras, as pessoas são educadas para o cuidado ambiental.
Elas servem-se da natureza para acudir às necessidades materiais, evitando a exploração
predatória. Por isso, pode-se inferir que os negros africanos têm consciência ecológica desde
recém-nascidos.
Desde pequenas as crianças aprendem os fundamentos da convivência. Todo mundo
educa todo mundo. Cada pessoa tem o dever de alertar a outrem se esse estiver transgredin-
do os princípios da convivência. As pessoas mais velhas são consideradas sábias, por isso,
são autoridades.
Africanidades e Democracia 61
4 Os povos fundadores do Brasil
Esse estudioso descreve as características políticas do tio que atua como mediador, ad-
ministrando os direitos e interesses da irmã na relação com o esposo e a família dele:
A importância do tio materno reside no facto de que é este que auxilia a sua irmã,
que a representa em todo o lado e, caso seja necessário, toma a sua defesa. Este
papel de assistência à mulher, inicialmente, não cabia ao marido considerado
antes como um estrangeiro aos olhos da família da mulher. Esta concepção en-
contra-se diametralmente oposta à do indo-europeu. (DIOP, 2014, p. 34)
Os parâmetros culturais próprios dos africanos reservam especial reverência à autorida-
de feminina, centrada na figura materna, conforme se pode constatar neste relato de Diop:
Qualquer sermão invocando a mãe deve ser executado sob a pena de depre-
ciação: originariamente, os mais sagrados foram aqueles que se pronunciavam
com a mão estendida acima da cabeça da mãe. A sua maldição acaba irremedia-
velmente com o futuro do seu descendente: esta representa a maior desgraça
que deve ser evitada a qualquer custo. [...] Toda a sociedade africana negra está
convicta da ideia segundo a qual o destino da criança depende unicamente da
sua mãe, e em particular, do labor que esta concretiza no lar conjugal. (DIOP,
2014, p. 36)
Esses dados concernentes aos fundamentos culturais africanos são de vital importân-
cia para a compreensão das formas como tais manifestações influenciam a realidade social
brasileira no tempo presente. O povo da diáspora negro-africana no Brasil foi fortemente in-
fluenciado pelo sistema patriarcal português. As mulheres negras, atualmente, realizam um
crescente movimento emancipacionista. Um dos temas da pauta delas é o fim da violência
contra a mulher negra. Violência muitas vezes produzida pelo próprio companheiro negro.
Apesar disso, os fatos do cotidiano testemunham a força do legado da cultura matriar-
cal africana. A memória popular registra nomes de mulheres negras atuantes nos processos
de resistência e boicote ao sistema opressor, durante a escravidão criminosa. No Quilombo
de Palmares vibraram os nomes de Aqualtune, a avó de Zumbi, Dandara, a companheira
dele e Acotirene, que teria sido conselheira real em Palmares.
Muitas outras mulheres negras são lembradas por sua fidelidade aos fundamentos da an-
cestralidade africana, como Anastácia, Chica da Silva, N’Zinga, a rainha de Angola, que guer-
reou contra os portugueses na mesma época de Zumbi em Palmares e, no século XX, a baiana
Tia Ciata, negra retirante, em cuja casa, no Rio de Janeiro, teria surgido o samba carioca.
Mulheres negras exercem um papel determinante na religiosidade de matriz africana,
candomblé, umbanda, batuque dentre outras; por meio do sacerdócio fundam comunidades
de fé onde administram e fomentam o crescimento da ancestralidade africana. Mãe Estela
de Oxossi, do Terreiro Axé Opó Afonjá, e Mãe Vera, ambas em Salvador, Mãe Dorsa, em
Porto Alegre, e milhares de sacerdotisas espalhadas pelo Brasil urbano e rural diariamente
atualizam a herança feminina africana. Por meio da prática religiosa que dirigem, exercem
autoridade e sabedoria para orientar homens e mulheres em assuntos espirituais, pessoais
e de interesse comunitário.
62 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
4.3.5 Identificação geográfica e configurações políticas
Os africanos trazidos ao Brasil eram provenientes de várias regiões do continente: povos
sudaneses e/ou iorubás (nagôs, ketus e egbás); jejês (ewês, fons); fanti-ashanti (genericamente
conhecidos como mina); povos islamizados (mandingas, haussás, peuls), que eram oriundos da
África Ocidental. O Brasil absorveu gente negra na África Central, povos bantos, dentre eles
grupos bakongo, mbundo, ovimbundos, bawoyo, wili (que seriam congos, angolas, benguelas,
cabindas e loangos); da África Oriental foram sequestrados os moçambicanos (SILVÉRIO,
2013, p. 13).
Outra realização dos povos negro-africanos foi a configuração de estados ou reinos,
dentre os quais: o Império de Gana ou Wagadu (existiu de 830 a.C. até por volta do ano de
1235 d.C.); o Império de Aksum ou Axum (entre os anos de 100 a 940 d.C. região da Eritreia
e Etiópia); houve o Império do Mali ou Mandinka (de 1230 a 1600, com auge na década de
1350); o Império do Congo (teria surgido no século XIV e foi esgarçado por europeus no
século XIX). Não menos importantes foram os Impérios do Songhai, do Zimbábue e de Oyo
Yorubá, além do Reino do Benin.
As informações e os conceitos sobre os parâmetros culturais dos negros africanos, apre-
sentados até aqui, contribuem para melhor compreendermos os modos de ser do povo bra-
sileiro. A forte religiosidade, a alma musical, o espírito de jovialidade, a alegria e o gosto
pela festa, além da espontaneidade da comunicação, da fácil receptividade e o acolhimento
das pessoas estranhas recordam os modos de ser dos negros africanos, centralizados na
vivência comunitária.
Conclusão
As reflexões que acompanhamos até aqui permitem dizer que os povos fundadores do
Brasil viviam momentos que lhes eram peculiares, criando parâmetros culturais que davam
sentido aos modos de ser e estar no mundo.
Os europeus experimentavam as inquietações do capitalismo que se formava, cujo prin-
cípio-mor é o de multiplicar riquezas. Naquele momento, o tesouro dos corações europeus
(BÍBLIA SAGRADA, MATEUS, 6:21) era a acumulação de capital. A intensa exploração das
terras brasileiras por meio da produção de gêneros tropicais alterou a própria Europa e os
europeus. A sangria de gente negro-africana reduzida à escravidão, bem como o genocídio
e escravização de indígenas, em longos processos criminosos, precarizaram as condições de
vida na África e dos indígenas, no Brasil.
A atual configuração humana e social do Brasil é o resultado de processos históricos
de grande violência ambiental e contra a vida humana. As novas gerações de profissionais,
amadurecidas pelo aprendizado do passado, apropriam-se de conceitos que podem contri-
buir na edificação do Brasil, para que a pessoa humana seja prioridade.
Africanidades e Democracia 63
4 Os povos fundadores do Brasil
Na aldeia, existem aqueles que chamamos anciãos; são eles que tomam as deci-
sões do povoado. Quando há uma situação urgente, os anciãos se reúnem e
tentam decidir o que precisa ser feito. Não temos polícia ou algo parecido. Para
questões de justiça, contamos principalmente com o espírito e com os anciãos.
O conselho é selecionado por todos que passaram pela iniciação dos anciãos.
Eles são selecionados de acordo com a compreensão dagara das forças elemen-
tares que formam o universo. Temos cinco elementos diferentes: terra, água,
mineral, fogo e natureza. Cada um desses elementos é representado, no conse-
lho, por uma mulher e um homem. O conselho, portanto, é formado por cinco
mulheres e cinco homens.
Mineral ajuda-nos a lembrar nosso propósito e nos dá os meios para nos comu-
nicar e compreender o que os outros estão dizendo.
64 Africanidades e Democracia
Os povos fundadores do Brasil 4
Fogo relaciona-se com sonhar, manter nossa conexão com o ser e os ancestrais
e manter nossa visão viva.
Natureza nos ajuda a ser o nosso verdadeiro ser, a passar por importantes
mudanças e situações que ameaçam a vida. Traz mágica e riso.
**
**
**
As crianças podem dormir onde quiserem. Não sofrem restrições, até atingi-
rem a adolescência. Elas podem dormir com as mulheres hoje, passar amanhã
para o setor dos homens, ou dormir com os avós, etc.
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Africanidades e Democracia 65
4 Os povos fundadores do Brasil
Atividades
1. Explique a relação da colonização do Brasil e o capitalismo.
4. Discorra sobre as contribuições dos valores culturais dos negros africanos para a
formação cultural brasileira.
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Resolução
1. O sistema capitalista encontrava-se em processo de consolidação e expansão, no con-
tinente europeu. Os portugueses investiram na tecnologia que lhes possibilitou a
navegação marítima ao Brasil, com a intenção de fomentar os negócios e garantir o
crescimento da economia. Para isso, abriram novas fontes de matérias-primas e mer-
cadorias de grande interesse comercial. Assim sendo, a instalação e gestão da colônia
portuguesa no Brasil fazia parte do objetivo de ampliar a acumulação de capital dos
portugueses envolvidos.
2. Havia uma parceria entre a cúpula da Igreja católica e o rei português. A colonização
foi conduzida com a motivação aparente de evangelizar os povos encontrados nas
terras de além-mar. Ficou demonstrado que o trabalho dos missionários junto aos
indígenas e negros africanos induzia os escravizados à passividade, conformismo
e aceitação do jugo da escravidão criminosa; com isso, o trabalho da evangelização
contribuía para a acumulação de capital.
Africanidades e Democracia 67
5
Tecnologia africana e
resistência
O estudo proposto nesta unidade discorre sobre dois temas: a tecnologia africana
e a resistência dos africanos escravizados.
Africanidades e Democracia 69
5 Tecnologia africana e resistência
70 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
por interesse, que almeja o ter, o poder e prazer, ou seja, a propriedade, o controle político da
situação e a vida de gozo nesse mundo. Opera como conquistador. Consoante essa premis-
sa, a relação do proprietário privado com a natureza e os outros seres humanos segue uma
racionalidade específica, denominada razão instrumental. Conforme explicou Horkheimer
(2002), trata-se de uma razão subjetiva, na qual quem tem razão é o sujeito. Essa prática da
razão orienta-se pelo cálculo: custo versus benefício, lucro versus prejuízo. A pergunta pelo
sentido maior da ação racional, pelo sentido da mulher, do homem, da diversidade humana
e do mundo, não conta. Portanto, não há preocupação com uma razão vital, porque ao capi-
talista interessa apenas a razão prática, a utilidade.
O imaginário da instrumentalidade opera com força, encharcando todos os poros dos
sistemas culturais das sociedades. Em que pese a profundidade dos valores do evangelho de
Jesus, o cristianismo institucional também sofre com a contaminação pela instrumentalidade.
A instrumentalização do conhecimento ocidental se traduz na sentença de Bacon (1999,
p. 33): “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frus-
tra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece.” Esse princípio
de que o saber é poder, confirma a noção de oposição entre o sujeito e o objeto, pois a obe-
diência de que fala Bacon implica a intenção de conhecer o funcionamento da natureza para
exercer o controle sobre ela e obter os resultados desejados.
O conhecimento instrumental considera Deus, a natureza e o seres humanos como pe-
ças. Todo e qualquer conhecimento é pensado com base nas exigências da economia capi-
talista. A ciência e a tecnologia modernas estão a serviço da acumulação de capital. Tudo,
inclusive o povo, deve subordinar-se ao capital. Os assuntos religiosos, em grande parte das
vezes, são tratados como negócios altamente lucrativos.
Africanidades e Democracia 71
5 Tecnologia africana e resistência
existência repercute sobre todas as atividades humanas, inclusive sobre o trabalho, os ins-
trumentos e as técnicas.
A produção de bens se faz devido às necessidades comunitárias, não se produz o supér-
fluo, o que conta são as necessidades vitais das pessoas que constituem a comunidade. Nesse
sentido, a produção africana tem sempre uma vocação social. Consequentemente, a tecnologia
africana é orientada para que as pessoas da comunidade vivam bem (LEITE, 1995, p. 10).
A condição de possibilidade de qualquer presente e futuro é a terra, dado o seu cará-
ter divino: “A terra, principal recurso natural dessas sociedades agrárias, é considerada ela
mesma uma divindade, sua fertilidade é tomada como doação preexistente.” (LEITE, 1995,
p. 10). A gente africana entende que a terra é um ser vivo e está repleta da energia vital que
a sacraliza. Não se trata de mercadoria de compra e venda. Não pertence às pessoas, mas,
inversamente, as pessoas pertencem a ela. Os ancestrais estabeleceram a política de uso,
para o convívio e obtenção do sustento.
Para tanto, é necessário organizar e sacralizar essa relação, o que é conseguido
através de pactos selados entre o homem e a terra, daí nascendo os deveres e
direitos de ocupação, sendo o principal deles a inapropriabilidade do solo e sua
transmissão, nesse estado, às gerações que se sucedem. (LEITE, 1995, p. 10)
Também os instrumentos de trabalho são confeccionados utilizando-se elementos colhi-
dos da terra, com espírito reverente:
Outro fator decisivo da produção — os instrumentos de trabalho — também
se organiza a partir das relações estabelecidas entre o homem e a natureza.
A origem divina da terra exige, segundo os pactos, que os instrumentos destinados
à sua manipulação sejam fornecidos por ela mesma. Para esse fim, a matéria-
prima necessária é retirada da terra e processada em fornos, transformando-
-se em ferro, com o qual são elaboradas as ferramentas destinadas ao trabalho.
(LEITE, 1995, p. 10-11)
Os povos negro-africanos desenvolveram técnicas de transmissão oral de conhecimen-
tos. Essa modalidade de comunicação de experiências acumuladas constitui a tradição oral –
opção realizada com base em critérios e metodologias próprias, pelas quais as comunidades
africanas não encontram qualquer problema em prosseguir nesse caminho. Apesar disso,
baseando-se na cultura letrada, pesquisadores ocidentais costumam questionar a seriedade
e confiabilidade dos relatos tradicionais africanos.
O pressuposto religioso prevalecente nas comunidades africanas estabelece que a palavra
consiste em uma força vinda do próprio Deus. A origem divina da palavra lhe confere a sua
própria autoridade. Uma das implicações fundamentais da comunicação pela palavra falada é
o compromisso com a verdade. Para os africanos é um absurdo uma pessoa falsear a realidade,
mentir. A palavra constrói a existência e a pessoa mentirosa perde o fundamento humano:
Na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo,
encontra‑se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia
no homem e no mundo que o cerca. Por esse motivo a maior parte das socie-
dades orais tradicionais considera a mentira uma verdadeira lepra moral. Na
72 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
África tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa civil, religiosa e
oculta. Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferível que morresse,
tanto para si próprio como para os seus. (BÂ, 2010, p. 174)
A censura à pessoa mentirosa é severa, pois os efeitos da mentira são devastadores para
os padrões culturais. Quem pratica a mentira produz um desequilíbrio cósmico.
Não mais preencheria o conjunto das condições rituais necessárias à realização
do ato sagrado, sendo a principal estar ele próprio em harmonia antes de mani-
pular as forças da vida. Não nos esqueçamos de que todos os sistemas mágico-
‑religiosos africanos tendem a preservar ou estabelecer o equilíbrio das forças,
do qual depende a harmonia do mundo material e espiritual. (BÂ, 2010, p. 177)
Portanto, o compromisso das pessoas com a prática da verdade no ato comunicativo
estabelece a ética rigorosa e o compromisso político de quem fala, pois o conteúdo de sua
declaração interfere sobre a vida do público ouvinte e sobre a própria relação com Deus.
Então deve-se falar a verdade e ser fiel em todo e qualquer relato. Falar é, fundamentalmen-
te, existir para outrem, então é um ato social e político que configura a vida comunitária. Por
isso os africanos são rigorosos na exigência da fidelidade à verdade.
O mesmo princípio tradicional de transmissão da história, da religiosidade, da filoso-
fia e da ética inclui o ensino das técnicas e da tecnologia. As formas de intervenção sobre a
natureza estão impregnadas de elementos religiosos. No mundo africano tudo é vivo, tudo
manifesta a presença divina, portanto o próprio ato de realizar alguma operação de modi-
ficação da natureza, de retirada de recursos da natureza para o serviço humano, tudo está
associado ao sagrado. Também a concepção de ciência na perspectiva tradicional africana
visa ao bem-estar humano:
E quando falamos de ciências “iniciatórias” ou “ocultas”, termos que podem
confundir o leitor racionalista, trata‑se sempre, para a África tradicional, de uma
ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar em relação
apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colo-
cadas a serviço da vida. (BÂ, 2010, p. 175)
Orientados pelos valores, crenças e costumes consolidados nas próprias trajetórias, os
africanos desenvolveram complexos sistemas de conhecimento, entre eles os saberes técni-
cos e tecnológicos. Agricultura, mineração, pecuária, caça e pesca, metalurgia, transportes,
arquitetura, medicina, farmacopeia, educação, entre outros fazem parte do repertório de
saberes que, a partir do século XVI, atraiu o interesse dos europeus e estimulou o tráfico
humano para as Américas.
Africanidades e Democracia 73
5 Tecnologia africana e resistência
74 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
A importação forçada de gente africana e seus saberes durante mais de 300 anos levou
ao trabalho compulsório dos sobreviventes, que foi um fator determinante para a formação
econômica e social do Brasil. O cultivo do café, do dendezeiro, do coco; o aproveitamento
de ervas aromáticas e medicinais, como arruda; a destreza no aproveitamento da madeira
para a construção de engenhos, veículos, habitações; assim como a produção têxtil africana,
largamente representada em quadros de Debret e Rugendas, fazem parte do repertório tec-
nológico africano e constam no rico relato de Cunha Júnior (2010).
A história da escravidão criminosa no Brasil foi marcada por protestos permanentes das
populações escravizadas. As formas de contestação do regime perfazem um rol de iniciati-
vas aquecidas pela desesperança, pelo desespero, pela ira e a ousadia de viver livre – houve
quem comesse terra, com a intenção de morrer. E se sabe dos boicotes, pela danificação dos
instrumentos de trabalho, pelo incêndio das instalações ou plantações. Não faltou o infan-
ticídio, porque se entendeu que a morte dos recém-nascidos era preferível à escravidão.
Fez-se o banzo4. Também se envenenaram alimentos, provocando mortes na casa-grande.
Mas houve ainda quem agisse com ares de colaboração, pensando em atrair alguma boa
vontade e, desse modo, contornar os dias e noites de agruras do cativeiro. Acima de tudo,
ocorreram as fugas e as formações de agrupamentos de gente negra livre, os quilombos
rurais e urbanos.
As narrativas referentes à conduta dos africanos escravizados a respeito do regime que
os subordinava, por um bom tempo minimizava o protesto negro. Nesse sentido, era ressal-
tada uma suposta docilidade do negro africano e, ao mesmo tempo, a grande benevolência
da classe senhorial.
Atuando na contramão dessa tese, Clóvis Moura lutou incansavelmente para ressaltar
a profundidade da contradição estabelecida pela ação dos negros africanos escravizados.
Desde a primeira obra, Rebeliões da senzala, de 1959, Moura dedicou-se ao estudo do protesto
negro. O conjunto de seus escritos, no campo da sociologia e da história, ressaltou o caráter
de luta de classes sustentada pelos negros africanos. Ele argumenta que os negros escravi-
zados estabeleceram uma disputa com o poder hegemônico do capital. A consumação dessa
disputa se deu por meio das infindáveis manifestações de protesto e boicote protagonizadas
pela gente negra em luta de libertação. Segundo Moura (1988, p. 30), esse ponto de vista
influenciou os estudos posteriores sobre o escravismo brasileiro.
Moura alertou: “O que não se pode é continuar vendo o escravo como uma simples
besta, assim como era visto pela legislação escravista” (1981, p. 9). As mulheres e os homens
trazidos da África sofriam uma regressão ontológica. O fato de uma mulher negra ou um
homem ser uma pessoa humana deixava de ter valor. No regime escravista eles passavam a
4 Muitas pessoas escravizadas, por discordar da usurpação da liberdade e da sua redução à con-
dição de escravizadas, optaram por um protesto radical: passavam a jejuar até a morte, cientes de
estarem causando um dano ao escravista. A morte da pessoa escravizada era, no mínimo, uma perda
de capital. A experiência atual mais próxima ao banzo é a greve de fome.
Africanidades e Democracia 75
5 Tecnologia africana e resistência
ser considerados uma mercadoria, um objeto, uma propriedade privada, ou seja, um inves-
timento de capital.
Nos dias atuais, é comum o empresário comprar uma nova máquina para sua empre-
sa. Naquele tempo, compravam-se seres humanos. Essa conversão da pessoa africana em
coisa influenciou o modo como os colonos relacionavam-se com a gente negra. No entanto,
as pessoas negras permaneciam pessoas, cientes da sua condição de seres humanos e não
abriram mão desse teor. Por isso, desenvolveram diversos estratagemas para combater o
sistema social opressor.
Moura escreveu um livro com a intenção de “mostrar o comportamento divergente do
escravo, isto é, o escravo participando da luta de classes” (MOURA, 1981, p. 10). A tese do
livro se justifica, segundo ele, pelo fato de haver no regime escravista duas classes sociais
fundamentais: a dos senhores e a dos escravizados. Durante o processo opressor, a popula-
ção escravizada, ciente do torniquete político que a mantinha perpetuamente subordinada e
coisificada, sem qualquer perspectiva de mobilidade social, tratou de desenvolver mecanis-
mos alternativos de realização da liberdade.
Cabe aqui uma distinção entre o sentido de liberdade para a sociedade burguesa e para
as culturas africanas. Enquanto a sociedade burguesa prioriza o direito de ir e vir e da li-
vre manifestação, assim como da livre iniciativa nos negócios e de escolha política, o olhar
africano tem outra concepção da liberdade. Deveras, as sociedades tradicionais africanas
praticavam uma forma de economia que não era capitalista. Os sistemas sociais centrados na
valorização da comunidade priorizavam os processos coletivos. Todos os gestos decorriam
da compreensão da presença divina junto à existência humana no mundo. Portanto, os cri-
térios próprios das culturas africanas definiam o sentido de liberdade. A liberdade não seria,
em princípio, o exercício do desejo ou da vontade individual acima de qualquer referência.
A pessoa é livre estando vinculada a uma comunidade, pois o interesse coletivo é maior do
que o interesse individual. Obediência a Deus, aos fundamentos estabelecidos pela comuni-
dade e autoridade dos mais velhos faziam parte da experiência da liberdade africana. Uma
pessoa existe para o seu povo, para sua comunidade.
O sentido da liberdade trazido da África esteve presente em toda a mobilização dos
escravizados durante os protestos contra o regime opressor. Isso explica em grande parte o
sucesso das mobilizações da resistência negra, mesmo enfrentando potências como as forças
armadas portuguesas que assolaram as comunidades quilombolas e também as expedições
holandesas. A fidelidade da gente negra aos valores trazidos da África contribuiu para a
extensão e longevidade das comunidades quilombolas, assim como para seu sucesso econô-
mico. As notícias da resistência quilombola circulavam e estimulavam a gente escravizada a
buscar outro modo de vida fora da senzala.
O movimento dialético de negras e negros em fuga e a consolidação das comuni-
dades livres5 estimulavam a luta pela liberdade e levaram os colonos, preocupados, a
aperfeiçoarem os meios de controle de negros:
5 Como a República de Palmares (AL), cujo nome evoca a lembrança de pessoas inspiradoras da
liberdade, como o foram Zumbi, Dandara, Aqualtune, Andalaquetuche, Acotirene, Ganga-Zuma e
76 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
no polo senhorial, criaram-se vários mecanismos de defesa contra esses levan-
tes refugos, mecanismos que vão da estruturação de uma legislação repressiva
violenta à criação de milícias, capitães do mato e ao estabelecimento de todo um
arsenal de instrumentos de tortura. (MOURA, 1981, p. 11)
Na confederação de quilombos denominada Palmares, o quilombo “mais importante era
a Cerca Real do Macaco, situado onde atualmente se localiza a cidade de União dos Palmares,
no Estado de Alagoas” (MOURA, 1981, p. 37). No mesmo local, Moura informa também que
os palmarinos, diferentemente do latifúndio escravista colonial monocultor, desenvolviam
uma agricultura diversificada em pequenas propriedades, das quais obtinham abundantes
colheitas de milho, banana e de muitas outras plantações, cujos excedentes eram negociados
com comerciantes vizinhos.
Em Palmares, havia dupla organização familiar, poligamia – praticada pelos principais
dirigentes – e poliandria (mulher casada com vários maridos), que alcançava a maior parte
da população. As condições sociais da Colônia desfavoreciam a família monogâmica, pois a
quantidade de mulheres era muito inferior à de homens. Uma família poliândrica teria uma
área de terra para cultivo, cuja safra seria entregue às autoridades. Os maridos residiam to-
dos com a esposa no mesmo mocambo e seguiam obedientemente às orientações dela sobre
a convivência e o trabalho (MOURA, 1988, p. 176). Assim, poligamia e poliandria foram as
duas soluções para a configuração familiar palmarina. “Com esses dois tipos fundamentais
de organização familiar criaram-se mecanismos de equilíbrio para a sua funcionalidade,
sem antagonismos agudos e conflitos, do grupo família” (MOURA, 1988, p. 175).
A resistência negro-africana tornou-se imortalizada nos quilombos. Em 2017, no Brasil
ainda havia milhares de comunidades quilombolas, testemunhas vivas da oposição ao mo-
delo social opressor do passado.
Clóvis Moura comenta que o escritor Afonso Arinos de Melo Franco publicou uma obra
de grande aceitação, na qual desferiu um olhar racista sobre a composição da sociedade
brasileira, definindo que “a nação brasileira é composta de duas culturas – a índia e a ne-
gra – e uma civilização: a lusa, ocidental e cristã” (MOURA, 1988, p. 13). Por isso, o Brasil
seria portador das qualidades da civilização e dos estragos das culturas primitivas. Em uma
passagem a respeito do Quilombo de Palmares argumentou que se tratava de uma manifes-
tação cultural afro-indígena,
Produto de um encontro de culturas, destinado a realizar, pela cultura, valores
vitais, que eram a liberdade e a independência, Palmares oferece um exemplo
admirável da defesa cultural afro-índia, contra a civilização branca, e, ao mesmo
tempo, uma demonstração da nossa tese da integração na natureza, como ato
elementar da cultura. [...] A defesa cultural, realizada em palmares, não poderia,
é claro, oferecer séria resistência às investidas da civilização branca. A república
bárbara sempre se defendeu pouco e mal, quando agredida. [...] Ora, como já
vimos, esta adaptabilidade ao meio selvagem é um traço cultural, próprio das
raças cuja formação se processou nesse meio. Contra a civilização defendia-se,
Ganga-Zona; o Quilombo de Campo Grande (MG), onde houve o rei negro Ambrósio e também o do
Piolho ou Quariterê (MT), de Teresa de Benguela, cada qual tendo reunido milhares de habitantes.
Africanidades e Democracia 77
5 Tecnologia africana e resistência
portanto, a cultura, com as suas próprias armas: cercava-se pela natureza. (MELO
FRANCO, 1936, p. 128-129)
O texto de Melo Franco confirma a argumentação de Clóvis Moura sobre o historicismo
antropológico dos cientistas sociais brasileiros dos anos 1930 e 40, que silenciavam a disputa
de projeto de sociedade contida nos protestos negro e indígena, configurando uma dialética
classista, perfazendo um tensionamento de ordem econômica e política.
A concepção racista de Melo Franco atribui o descontentamento dos negros escraviza-
dos a meras decepções de ordem cultural – a gente negra revoltava-se porque algum funda-
mento de sua cultura teria sido desrespeitado pelos escravistas, o que estimulava distúrbios
contra a ordem senhorial imposta.
Clóvis Moura rebelou-se enfaticamente contra essa concepção, por isso, argumen-
tou em suas obras a favor de uma resistência motivada por uma disputa de projeto.
A gente negra escravizada fez acontecer a luta de classes dentro do escravismo brasileiro.
Almejava-se uma sociedade em que as mulheres, os homens e a diversidade não fossem
mercadorias nem propriedades e que o trabalho fosse fator de realização humana. Por
isso, o pressuposto da liberdade. A introdução da quarta edição de Rebeliões da senzala
contém a vibrante argumentação de Moura, na qual combate diversos autores que defen-
dem a tese da antiaculturação do negro.
Conclusão
Ao interromper essa reflexão, devemos ter em mente que os apontamentos apresenta-
dos não esgotam o tema. A abrangência, profundidade e riqueza de detalhes que o acompa-
nham confirmam essa afirmação.
Tendo em vista a nossa sensibilização para o assunto, as relações e análises contidas
neste capítulo nos enriquecem com novos temas, problemas, conceitos, análises e teorias. Há
milênios, afirmara o profeta Isaías (32:17), a paz é fruto da justiça. A ignorância fortalece o
risco da injustiça e, inversamente, o conhecimento pode contribuir para a convivência apoia-
da na verdade e na justiça. Por isso, este estudo almejou enriquecer seu repertório intelectual
a serviço da construção da justiça e da paz.
78 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
Sobre a tradição viva
(BÂ, 2010, p. 169-173)
Africanidades e Democracia 79
5 Tecnologia africana e resistência
“Não havia nada, senão um Ser. Este Ser era um Vazio vivo,
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou‑se apta a tor-
nar‑se o interlocutor (kuma‑nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.
Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas
existentes e misturou‑as; então, insuflando na mistura uma centelha
de seu próprio hálito ígneo, criou um novo Ser, o Homem, a quem deu
uma parte de seu próprio nome: Maa. E assim esse novo ser, através
de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do
próprio Maa Ngala”.
Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos
os elementos do cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o inti-
tulou guardião do Universo e o encarregou de zelar pela conservação da
Harmonia universal. Por isso é penoso ser Maa.
Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descenden-
tes tudo o que havia aprendido, e esse foi o início da grande cadeia de
transmissão oral iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do
Nama, do Kore, etc., no Mali) diz‑se continuadora.
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo
tempo, dotava‑o da capacidade de responder. Teve início o diálogo entre
Maa Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas.
80 Africanidades e Democracia
Tecnologia africana e resistência 5
o contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se
carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a
corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a comunicação com
Maa Ngala.
Atividades
1. O nazismo e o desastre no Vale do Rio Doce – com o rompimento da barragem do
Fundão, em 2015, no município de Mariana, MG – refletem uma tecnologia centrada
na racionalidade instrumental. Defenda ou refute essa afirmação com base nos argu-
mentos apresentados no texto.
2. Explicite a contribuição dos povos africanos na formação do Brasil por meio do tra-
balho e da tecnologia.
Referências
BÂ, Hampatê. A tradição viva. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África/
Editado por Joseph Ki‑Zerbo. 2. ed. rev. Brasília: Unesco, 2010. Capítulo 8, p. 167-212.
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Doce-Web.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2017.
Africanidades e Democracia 81
5 Tecnologia africana e resistência
Resolução
1. O nazismo foi um movimento político que incorporou a contribuição de médicos, en-
genheiros, físicos, artistas, comunicadores e outros agentes, portanto articulou suas
ações de modo racionalizado. Para alcançar os objetivos de poder, hierarquizou pes-
soas, racializando as relações e defendendo que havia uma raça humana válida e de-
sejável e outras detestáveis e matáveis. Foi responsável pelo massacre de milhões de
pessoas e, certamente, não se tratou de um projeto orientado por uma razão vital. Seu
desempenho consistiu na barbárie potencializada pela racionalidade instrumental.
O desastre na usina de Belo Monte, por sua vez, foi responsável pela devastação do Rio
Doce. Tratava-se de um empreendimento empresarial administrado por muitos pro-
fissionais de nível superior. As análises do episódio apontam negligências de diversos
níveis, e os resultados do acidente confirmam o absoluto descompromisso empresarial
com o meio ambiente, a vida humana e os valores culturais e espirituais das vítimas.
82 Africanidades e Democracia
6
Racismo, gênero e
diversidade
A abordagem apresentada nas próximas páginas não tem pretensão catequética. Não
é proselitista2. A intenção do texto é oferecer um panorama do debate contemporâneo,
ressaltando aspectos do drama humano que atinge as pessoas diretamente envolvidas.
Africanidades e Democracia 83
6 Racismo, gênero e diversidade
3 Perde-se na noite do tempo a elaboração dos padrões de comportamento exigido das mulheres
na sociedade ocidental. Desde a tenra infância as meninas passam a ser treinadas para exercer um
determinado papel na sociedade. O costume produziu um discurso segundo o qual tais expectativas
depositadas sobre as mulheres não seriam produtos das relações sociais, da cultura. Seriam, sim, da-
dos intrínsecos à natureza. Desnaturalizar significa romper com essa lógica.
4 GeTec é um grupo de pesquisa integrante do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Socie-
dade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
84 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
A asserção do GeTec é acolhedora. Embora não mencione o termo diversidade, refere-se,
respeitosamente, às pessoas marcadas anatomicamente como mulheres e/ou homens que
realizam sua sexualidade de modo próprio, transcendendo convenções.
A existência humana, marcada pelas inquietações inerentes à sexualidade, estabelece
cobranças e imposições à gente negra. Desde os tempos da escravidão criminosa ao momen-
to presente, homens e mulheres, hétero e homossexuais têm seus corpos rotulados, vigiados,
controlados, perseguidos, desfigurados e mortos, seja por trabalho, tortura, estupro, aban-
dono, desdém ou execução sumária.
A presente reflexão compartilha um olhar sobre a situação da mulher negra e das pes-
soas homossexuais em face do racismo brasileiro.
Africanidades e Democracia 85
6 Racismo, gênero e diversidade
86 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
Além do efeito psicológico, as mulheres negras enfrentam o ônus do racismo econômi-
co. Elas ocupam os últimos lugares quando se trata de análises econômicas do Brasil: piores
salários, condições de maior precariedade na vida privada, decorrentes de remunerações
invariavelmente inferiores, entre outras razões. Naturalmente, muitas mulheres submetem-
-se a jornadas complementares, incluindo os finais de semana, para melhorar o orçamento e
atender às demandas familiares. Evidentemente, ocorre uma precarização das condições da
saúde e vida social dessas mulheres.
Mencionar esse fato não é apelo à misericórdia, mas realce à justa medida com que se
deve considerar o tema. A mulher negra no Brasil, especialmente aquela que carrega mais
fortemente os traços negro-africanos na cor da sua pele, no seu cabelo, nos seus traços fisio-
nômicos permanece sendo o ser humano estruturalmente mais massacrado no país.
A dimensão racial impõe-nos uma inferiorização ainda maior, já que sofremos,
como as outras mulheres, os efeitos da desigualdade sexual. Na verdade, ocupa-
mos o polo oposto ao da dominação, representado pela figura do homem bran-
co e burguês. Por isso mesmo, constituímos o setor mais oprimido e explorado
da sociedade brasileira. (NZINGA – COLETIVO DE MULHERES NEGRAS,
apud GONZALEZ, 2008, p. 44)
Nos últimos anos, cresceu o número de pessoas que se declararam negras ao IBGE.
Cresceu também o número de casais negros. No entanto, o doloroso capítulo dessa história
traz à tona a solidão da mulher negra. Isso se dá pelo fato de o racismo brasileiro ter como
uma de suas principais características a ideologia do embranquecimento, manifestada no
imaginário da sociedade brasileira, que pretende ser branca. Assim sendo, os homens bran-
cos preferem constituir relações matrimoniais com mulheres brancas e evitam radicalmen-
te as negras. Os homens negros, por sua vez, empurrados pelo ideal do embranquecimento,
procuram afastar-se das mulheres negras, preferindo laços matrimoniais com mulheres
brancas. Com isso, as mulheres negras encontram um cenário matrimonial excludente, im-
pedindo-as de constituir família. Por isso, têm sido frequentes os debates sobre a solidão
da mulher negra.
Além do aspecto matrimonial, a solidão da mulher negra inclui o chamado ao necro-
tério para reconhecer filha ou filho vítima de violência. O genocídio da juventude negra
brasileira fustiga diuturnamente as almas das mães negras.
As mulheres negras experimentam também a dura carga do sustento e educação de
filhas ou filhos próprios ou de familiares, em que pese a baixa remuneração.
Outro importante enfoque das africanidades é a diversidade sexual. A próxima seção
meditará sobre situações e conceitos concernentes a esse tema.
Africanidades e Democracia 87
6 Racismo, gênero e diversidade
Uma pessoa se descobre lançada neste mundo e imersa em uma sociedade que a recebe
com discursos e práticas sociais construídos, muitas vezes cristalizados. Com base nesses
critérios, explícitos ou não, as pessoas são avaliadas. Por isso, se as pessoas apresentam
condutas ou aparências que se afastam das expectativas do paradigma daquela sociedade,
certamente atraem a má vontade ou hostilidade do grupo.
88 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
O racismo brasileiro alimenta estereótipos sobre os papéis sexuais da gente negra. Em
geral, tais imagens que circulam socialmente supõem que o homem negro seja naturalmente
um atleta sexual, portador de supergenital.
Quanto à mulher negra, o estereótipo sobre ela reza que deve ser uma fêmea insa-
ciável em seus desejos libidinosos, de moral duvidosa e disponível ao consórcio carnal.
Habitualmente, são abordadas por pessoas que pensam serem elas empregadas domésticas
ou meretrizes. Essa expectativa faz lembrar um dito que circulava nos tempos da escravidão
criminosa, classificando sexualmente as mulheres: a branca, para casar. A preta, para traba-
lhar. E a mulata, para fornicar...
Essa expectativa do estereótipo do racismo brasileiro não tem qualquer base científica,
estando, pois, afastada da realidade. No entanto, as pessoas são julgadas com base naquelas
imaginações e muitas outras desprezíveis fantasias. Pior: muita “gente boa” tem cometido
crimes quando alimenta na alma aquelas bestagens do racismo brasileiro. Mônica Valéria
Gonçalves é uma mulher negra, nascida no Rio de Janeiro, tem dois diplomas de nível su-
perior, é servidora pública e vive em Brasília, casada com um juiz. Durante a lua de mel, em
Fortaleza, foi confundida com uma prostituta:
Meu marido e eu estávamos hospedados em um hotel de luxo. Fomos fazer um
passeio na orla da praia, na noite da virada do ano, quando um homem tocou o
meu corpo e me assediou abertamente. Levei um susto e gritei com ele, que se
desculpou dizendo que achou que eu estivesse ali com um homem branco fazen-
do programa, lembra. (COLONNA, 2016)
Africanidades e Democracia 89
6 Racismo, gênero e diversidade
particular. Como não há dados oficiais acerca de crimes violentos contra a população LGBTI,
os relatórios anuais acerca dessa realidade feitos pelo GGB utilizam notícias publicadas na
mídia, internet e informações pessoais para tentar sanar essa lacuna (MOTT; MICHELS;
PAULINHO, 2017, p. 1).
Em seu Relatório 2016, o GGB afirma que “Infelizmente as reportagens policiais sobre
crimes contra as minorias sexuais são muito lacunosas relativamente ao perfil demográfico das
vítimas, dificultando sua melhor caracterização” (MOTT; MICHELS; PAULINHO, 2017, p. 4).
A homofobia governamental, que resulta na subnotificação de crimes contra pessoas LGBTI
gera um grande obstáculo para um diagnóstico preciso acerca do racismo homofóbico no Brasil.
O médico Drauzio Varella fez um pronunciamento esclarecendo aspectos da homosse-
xualidade e argumentou contra a expressão opção sexual, pois a pessoa não escolhe ser homo
ou heterossexual, mas se descobre como tal. Complementou afirmando que muitas espécies
de animais vertebrados apresentam comportamentos homossexuais e finaliza o comentário
com um questionamento e dando um importante alerta:
A homossexualidade é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. [...] Que dife-
rença faz pra você, pra sua vida pessoal, se o seu vizinho dorme com outro homem, se a
sua vizinha é apaixonada pela colega de escritório? Que diferença faz pra você isso? Se faz
diferença, procure um psiquiatra: você num tá legal! (VARELLA, 2014)
A tragédia de pessoas negras homossexuais principia quando se deparam com gente
perversa como a que Varella aconselha a procurar o psiquiatra. De fato, quando uma pes-
soa negra manifesta preferência por outrem de mesmo sexo, afasta-se do paradigma e fica
fora da heterossexualidade normativa , expondo-se ao racismo homofóbico. O cotidiano da
sociedade brasileira está repleto de narrativas de ataques a pessoas negras homossexuais.
Humilhações públicas, espancamentos e assassinatos com requintes de crueldade e feroci-
dade marcam a rotina de gente negra homossexual no Brasil.
Racistas homofóbicos não levam em conta que a pessoa a quem agridem é um ser hu-
mano com direitos plenos. Em uma sociedade democrática, não há lugar para barbárie.
Uma sociedade plural pressupõe a condição de possibilidade de seus integrantes serem
felizes. A justiça postula a distribuição adequada do bem. Por isso, cada ser humano tem o
direito de satisfazer suas necessidades biológicas, sociais e transcendentais.
Pessoas de todas as origens, de qualquer fenótipo, gênero ou orientação sexual neces-
sitam de reconhecimento e oportunidade. O reconhecimento implica a igualdade de todos
perante a lei, a isonomia, o direito de ser livre em si mesmo e no seu outro; ser si mesmo no
espaço privado e também no espaço público.
Ser livre no seu outro é saber que uma sociedade de direito deve garantir a cidadãs e
cidadãos o atendimento das necessidades. Quando uma pessoa é tratada dignamente, na so-
ciedade democrática, o pressuposto é que aquele princípio seja igualmente garantido a toda
e qualquer pessoa. Racistas homofóbicos não respeitam tais princípios e regridem ao estado
da barbárie.
O conjunto dos movimentos de mulheres negras e o feminismo negro são fortes aliados
na construção da democracia racial necessária. Vamos conhecer seus perfis e orientações.
90 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
6.3 Movimentos de mulheres
negras e feminismo negro
A organização política de mulheres negras no Brasil se deu desde sua chegada ao con-
tinente americano. Por meio de comunidades quilombolas, irmandades religiosas, religiões
de matriz africana, movimentos abolicionistas, ONGs, entidades do Movimento Negro, sin-
dicatos, partidos políticos, associações e outros, mulheres negras têm lutado por justiça: não
querem apenas sobreviver, querem viver, dignamente.
A antropóloga, cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), Lélia Gonzalez, re-
lata que o movimento de mulheres negras surgiu no interior do movimento negro. A dinâmica
do movimento negro propicia um ambiente de discussões, oportunizando um crescimento da
consciência política a respeito das articulações entre raça, classe e gênero (2008, p. 37).
Ao discutir a trajetória de movimentos sociais no Brasil, na transição da ditadura ci-
vil-militar, a partir do final dos anos 1970, Gonzalez relata que o movimento feminista he-
gemônico ignorava “a especificidade da experiência das mulheres negras, indígenas e de
países antes colonizados” (2008, p. 36).
A assertividade das mulheres negras era entendida como agressividade ou como uma
postura antifeminina dentro do movimento hegemônico de mulheres, porque:
sempre insistíamos que o racismo e suas práticas devem ser levados em conta
nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas
estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por
exemplo, denunciávamos a opressão e exploração das empregadas domésticas
por suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração
do trabalho doméstico assalariado permitiu a “liberação” de muitas mulheres
que se engajaram nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial
contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era aquela da
repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto
em um quanto em outro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo estado
policial-militar). (GONZALEZ, 2008, p. 39-40)
Embora existam contradições machistas e sexistas dentro do Movimento Negro, a alian-
ça entre mulheres negras e homens negros em prol das suas vidas tem avançado na supe-
ração dessas divergências. Essa mesma aliança não tem se concretizado entre o movimento
de mulheres negras e o movimento hegemônico de mulheres, pois o racismo gera uma cisão
radical entre os dois grupos. A esse respeito, reflete Gonzalez (2008, p. 40):
enquanto originário do movimento de mulheres Ocidental, o movimento de
mulheres brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural” daquele.
Nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do movimento de mu-
lheres não tem o menor escrúpulo em manipular o que chamam de “mulheres de
base” ou “populares” como simples massa de manobra para aprovação de suas
propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos).
Por outro lado, muitas ‘feministas’ adotam posturas elitistas e discriminatórias
em relação a essas mesmas mulheres populares.
Africanidades e Democracia 91
6 Racismo, gênero e diversidade
Conclusão
As reflexões desenvolvidas neste capítulo colocam diante do leitor um quadro denso de
inquietações acerca dos destinos humanos no Brasil.
Educar é acreditar no potencial de cada pessoa para a construção de uma humanidade
melhor, de um mundo melhor. O sonho da sociedade democrática é a justa distribuição do
bem socialmente produzido pela coletividade humana.
Fica aqui esse grito de alerta, apelando a quem quer que seja, a fim de que as pessoas
alcançadas pela violência desse tema tenham a oportunidade de viver e ser felizes.
92 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
Num dos polos desta hierarquia social encontramos o senhor de terras, que
concentra em suas mãos o poder econômico e político; no outro polo, os escra-
vos, a força de trabalho efetiva desta sociedade. Entre estes dois polos encon-
tramos uma camada de homens e mulheres livres, vivendo em condições pre-
cárias, sem meios de vida. Por estar assim definida, a sociedade colonial se
reveste de um caráter patriarcal que permeia toda sua estrutura, refletindo-se
de maneira extrema sobre a mulher.
Não quero dizer com esta última afirmativa, que o crescimento vegetativo da
população escrava no Brasil tenha sido positivo. Comparando aos Estados
Unidos, onde a população escrava tinha um alto crescimento vegetativo, o
balanço entre natalidade e mortalidade dos crioulos no Brasil foi desfavorável.
[...] De qualquer jeito é importante chamar a atenção desta “capacidade repro-
dutiva” da mulher negra, que a faz revestir de uma tradição como elemento
produtor neste período da história do Brasil sendo, junto com o seu correspon-
dente masculino, o suporte para a instituição escravocrata. [...]
Africanidades e Democracia 93
6 Racismo, gênero e diversidade
que se perpetuem estas diferenças. Um deles, como não poderia deixar de ser,
numa sociedade constituída de diferentes grupos étnicos, é o fator racial.
Atividades
1. Identifique os elementos centrais do problema de gênero com base nas categorias
identidade, papéis e interesse sexual.
94 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
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Resolução
1. Uma pessoa tem seu gênero formado por diferentes características: sexo biológico,
identidade de gênero, orientação sexual, expressão ou performance de gênero, além
de outras orientações.
Africanidades e Democracia 95
6 Racismo, gênero e diversidade
Também há quem não se identifique com nenhum dos dois, mulher ou homem, no
todo ou em parte – como as pessoas não binárias –; ou, ainda, as que se reconhecem
com uma identidade de gênero diferente do seu sexo biológico – como é o caso das
pessoas transexuais.
Por fim, expressão ou performance de gênero diz respeito ao modo como as pessoas
transitam em meio às convenções sociais e culturais, suas ambiguidades e contradi-
ções do tempo e lugar.
As elites brasileiras, naquele momento histórico, séc. XIX, definiram o interesse em ter
um Brasil totalmente sem negros, por isso esperavam que a imigração viesse a contri-
buir para que a população brasileira se tornasse branca por meio da miscigenação.
96 Africanidades e Democracia
Racismo, gênero e diversidade 6
O quadro de violência contra homossexuais negros reúne as maldades do racismo e
da homofobia contra a pessoa negra homossexual.
Africanidades e Democracia 97
7
Reação contra a
violência racial
O texto retoma os conceitos de àse1 (se diz axé) e ubuntu, como referenciais da
ancestralidade africana, para sugerir que o repertório epistemológico e ético de matriz
africana alimentou aquela geração e as seguintes, no duro empenho de restaurar o
rosto verdadeiramente humano da gente negra, desfigurado pela violenta escravidão
e o racismo que a sucedeu no cotidiano das relações sociais.
1 A palavra axé é a grafia portuguesa da palavra àse, em idioma iorubá. A grafia iorubá sinaliza a letra S com um
pingo na base da letra. No Brasil, vem crescendo a escrita da palavra aproximando-a do iorubá (àse). Isso acontece,
pelo menos, por dois motivos: 1) em respeito ao idioma estrangeiro e, 2) para evitar a confusão entre o conceito
espiritual da palavra e a apropriação que a indústria cultural fez dela, associando-a a um ritmo e às coreografias
feitas em contextos de espetáculos musicais. Em nosso trabalho, utilizamos a forma axé.
Africanidades e Democracia 99
7 Reação contra a violência racial
7.2.1 Ancestralidade
A ancestralidade funda-se na tradição africana. Com a disseminação do povo negro por
todos os espaços do país, os valores culturais africanos acompanharam as pessoas e passa-
ram a ser atualizados na diáspora do negro na África brasileira.
Fragmentos dessa ancestralidade africana são identificados na vida das pessoas, par-
ticularmente quando agrupadas nos territórios negros – terreiro de candomblé, casas de
umbanda, capoeiras de Angola e regional, nas rodas de samba de terreiro, em escolas de
samba, nos movimentos negros, nas comunidades remanescentes de quilombos, e mais…
A ancestralidade africana foi assumida por Eduardo David Oliveira como tema de pes-
quisa de mestrado e resultou na elaboração de uma proposta filosófica, uma filosofia da
ancestralidade. O trabalho seminal de Oliveira, Ancestralidade na encruzilhada, é tido como
marco inaugural da filosofia da ancestralidade.
7.2.3 Ubuntu
Ubuntu é o nome de uma prática cultural africana que consiste em um princípio espiri-
tual que se desdobra nas práticas sociais, originando uma filosofia e uma ética. Esse nome
foi apropriado pelo software livre Linux, e assim, difundido no Brasil.
Do ponto de vista de seus criadores e praticantes africanos, ubuntu manifesta uma epis-
temologia, uma ontologia e uma ética. O cerne do ubuntu é ressaltado no provérbio, criado
pelo povo zulu: “Umuntu ngumuntu ngabantu (a pessoa é uma pessoa através de outras pes-
soas)” (KAKOZI, 2017, p. 7).
7.2.4 Resistência
Durante o período escravista, o quilombismo foi a expressão mais contundente das
mobilizações do povo negro em busca de libertação. Longe de ser um abrigo de pretos fu-
gidos, os quilombos foram experiências sociais, africanas. Além do expressivo aprendizado
alcançado nas lutas quilombolas, o período pós-escravidão tem sido aproveitado pela gente
negra que desencadeou iniciativas produtivas em todos os setores de intervenção. Nas artes,
na religiosidade, na tecnologia e ciência, na comunicação, na prestação de serviços de toda
ordem. Vejamos alguns momentos dessa trajetória.
O povo negro vem apresentando significativo trabalho de criação estética, valorizando
diversas expressões artísticas, por meio das quais realiza suas críticas e projeta perspectivas
a respeito do futuro possível.
Como consequência das políticas coloniais de impedir que as pessoas negras aprendes-
sem a ler e escrever e, posteriormente, do ensino superior voltado preferencialmente para
formar a classe dominante, observamos uma pequena quantidade de pessoas negras qua-
lificadas no âmbito das profissões de nível superior. À medida, porém, que pessoas negras
passaram a obter diplomas de níveis técnico e superior, o quadro numérico passou a apre-
sentar alguma flexibilização, contudo, a maioria dessas pessoas, com graduação e pós-gra-
duação, encontra-se nas áreas das ciências sociais. As engenharias, ciências da saúde e da
natureza são cursos que exigem recursos financeiros e pré-requisitos na formação, operam
sob a influência de invisíveis barragens de peneiramento que impedem o sucesso acadêmico
de estudantes negras e negros.
Algumas pessoas, renomadas ou não, fazem parte da relação de negras e negros
que ocuparam e ocupam espaço nas áreas dos saberes especializados. O geógrafo baiano
Milton Santos, autor de vários livros, foi prestigiado no Brasil e no exterior, Enedina Alves
Marques, engenheira civil, foi a primeira engenheira negra do Paraná. Lélia Gonzalez,
antropóloga, atuou na PUC-RIO e foi militante do Movimento Negro Unificado (MNU),
tendo deixado inestimável contribuição para as mulheres negras na luta contra o racis-
mo. No tocante ao enfrentamento do machismo, Lélia argumentou sobre as diferenças
entre as demandas das mulheres negras e das brancas, por isso, defendeu um movimen-
to feminista orientado pelas e para as mulheres negras. Renato Noguera, professor da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e Wanderson Flor do Nascimento, profes-
sor da UnB, são filósofos estudiosos da filosofia africana e da diáspora negro-africana.
Guimes Rodrigues, professor da Universidade Federal de Uberlândia, estudou química,
especializando-se em polímeros.
No campo das letras, Lima Barreto (1881-1922), Machado de Assis (1839-1908), Cruz e
Souza (1861-1898), Solano Trindade (1908-1974) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977) deixa-
ram um legado memorável. Contemporaneamente, emerge com força o nome de Conceição
Evaristo (1941), considerada uma das mais importantes escritoras negras, cujo trabalho al-
cançou reconhecimento internacional. Na arquitetura, Antônio Francisco Lisboa (1730 ou
1738-1814), o Aleijadinho, é considerado a maior expressão do Barroco mineiro, tendo cons-
truído igrejas e estátuas, a exemplo de Os doze profetas.
Fonte: FelipeGoifman/IstockPhoto.
A música brasileira, dos pampas aos seringais, está marcada pela rítmica africana, pela
confecção e pelas formas de tocar os instrumentos e melodiar suas poesias. Assim sendo, o
povo negro africanizou os modos de o povo brasileiro cantar. Os ritmos gaúchos, o fandan-
go paranaense, o pagode caipira paulista, o samba em todas as suas vertentes passaram e
passam pela sensibilidade, criatividade e inventividade da gente negra.
Um evento fortemente marcado pelo modo africano de fazer música e arte é o carna-
val, com seus blocos, escolas de samba, maracatus, frevo e muitas outras expressões que
o enriquecem. Músicos e musicistas negras e negros seguem imortalizados na história da
música brasileira. Como ignorar a arte de Pixinguinha, Clementina de Jesus, Dona Ivone
Lara, Dorival Caymmi, Jovelina Pérola Negra, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes,
João Nogueira e Martinho da Vila, essa gente negra inspirada?
Além disso, as festas religiosas, do candomblé e do catolicismo, trazem em seu núcleo
a energia inspiradora do modo africano de celebrar sua fé.
Nos anos de 1930, uma importante organização de negros, a Frente Negra Brasileira,
reuniu milhares de pessoas filiadas em vários Estados. Além de aprofundar o entendimento
da dinâmica do racismo, estabeleceu princípios de conduta, de organização da gente negra,
7.3 Branquitude
Uma reação à violência racial no Brasil foi a abertura de uma frente de estudos com a
finalidade de entender o grupo social branco. Deveras, o branco não é mencionado na maior
parte das abordagens referentes às dificuldades historicamente impostas ao grupo social
negro. Notamos um silêncio crônico sobre a participação, cumplicidade e enriquecimento de
setores brancos no que concerne à exploração do povo negro e à violência racial contra ele.
Essa observação desperta questionamentos:
• Como os sujeitos brancos se posicionam em relação ao papel do próprio grupo
social branco no que concerne à exploração do povo negro e à violência racial
contra ele?
• Como sujeitos brancos se posicionam no tocante às relações raciais?
A reação à violência racial deu origem a importantes trabalhos acadêmicos com pesqui-
sas de dissertações e teses, além de publicações diversas. No âmbito da militância negra, o
tema tem feito parte dos debates e aprofundamentos das artimanhas do racismo.
Conclusão
Este capítulo descreveu alguns aspectos do empenho ontológico do povo negro brasi-
leiro. Dispondo apenas das próprias mãos e dos próprios pés, o negro vem escalando, tenaz-
mente, as paredes íngremes do profundo poço de negações ao seu direito de ser e realizar a
plenitude humana.
Não se entende a perseverança do povo negro enquanto não se tem em mente o princí-
pio da fidelidade. A resistência negra é sinônimo de pertença aos ancestrais, a si mesmo e aos
malungos e malungas – às irmãs e aos irmãos de travessia – e àqueles que virão.
Caetanos e Caetanos
(SILVA, 2008, p. 71-73)
Ezequias falou ainda da extensão de terras que sua mãe havia comprado no
bairro São João, local onde ele reside até hoje, que também foi mencionado por
Ricardo e pelo senhor Antônio como sendo o sítio que tinha todo tipo de frutas.
A indenização não foi justa, creio eu. Hoje a gente tem um pouco mais
de… (pausa) naquele tempo a gente não tinha… O tempo vai passando,
a gente vai criando mais um pouquinho de mente, de ideia. Então eu vi
que seiscentos, setecentos metros que tiraram de nós aqui. Esta avenida
(rua Indaial), eles nos pagaram duzentos e oitenta réis, cruzeiro… Hoje
a gente vê que não foi justo aquilo. Meu pai já tinha falecido, mesmo ele
era analfabeto. Minha mãe analfabeta, também eu só tinha o segundo
ano primário; conversar com essas pessoas… Me disseram que, se eu
não aceitasse, então ir para o juiz, ia demorar um tempo para receber,
então foi assim um tipo de ameaça. A gente não entendia patavina; semi-
-analfabeto. Então pegamos. Era eu e minha mãe. Eu mesmo fui cha-
mado lá para conversar e coisa e tal.
Eu conversei pouco com a tia Vitorina, ela era uma mulher assim muito
ruim, não dava para conversar com ela. Ela tinha uma parreira de uva,
tinha muita goiaba, laranja... Ela era muito apegada naquilo ali. Se a
gente fosse pegar uma goiaba, ela dizia ela era muito apegada naquilo
ali. Se a gente fosse pegar uma goiaba, ela dizia (tenta imitar, com a voz
rouca): “Não mexe na goiaba. Não mexe. Deixa uma goiabinha para a
Cassinha que mora em São Paulo. E a uva também.“ A dona Dorotéia
morou lá em casa, na casa de papai. Ela era uma mulher muito brava,
mas muito bacana. O neto que ela mais gostava era eu. Eu vinha lá da
Itajuba até Piçarras com ela. Eu vinha na casa da Rosa com ela. Era uma
negrona gorda. Acho que a tia Vitorina era filha de algum branco, por
que ela era bem mulata; e porque naquele tempo era tudo por debaixo
dos panos. O meu pai já era bem escuro.
Quando minha avó ficou sozinha ali, naquela casinha, ninguém deu bola
para minha avó. Esse pessoal do Ludgero Caetano... Ainda tem um car-
tório lá, o Ludo, do cartório, é neto. Daí o papai pegou a minha avó, ela
com uma mala – tipo um bauzinho –, minha avó foi com a roupa dela
numa carroça ou carro-de-boi para a casa do meu pai e faleceu na casa
do meu pai.
Pedro Domingos acrescenta que a localidade onde morava sua avó, que fora
praticamente abandonada pelos ex-senhores Caetanos, era no Furado, perto
da ponte entre Piçarras e Penha, mais próximo da Penha. E finaliza dizendo
os motivos de sua mágoa com os brancos Caetanos, razão pela qual nem quer
mais o sobrenome deles: “Era uma casinha, estava quase caindo, era tudo de
aterro. Ainda me lembro, a cobertura era desse telhão de calha. Então foi aonde
que eu fiquei com aquele preconceito (raiva); porque tem criança que marca.”
Pedro continua a narrativa dizendo das más condições de vida dos ex-escravos
dos brancos Caetano:
Eu me lembro que meu pai contava que chegava às seis horas, sete horas,
toda a tarde ele tinha que ir buscar aquela panela de feijão com carne enso-
pada. Todos os dias ele tinha que buscar aquela panela pro meu avô. Ele
não deixava passar falta. Só o que ele fazia era aquilo. Eu conheci o meu
avô, trabalhava na roça para o velho (possivelmente para o velho senhor
branco, Caetano), cuidava de gado; tinha muito gado, vaca... também não
ganhava nada. Só pra se manter e alguma roupinha assim, para não andar
pelado. Só o que fazia era aquilo ali. Nunca reconheciam nada.
Pedro conclui a narrativa dizendo que seu avô viera da África, que “ganharam”
o sobrenome dos antigos senhores, mas que não herdaram nada dos mesmos:
Eu sei que quando meu avô veio da África pra cá, então naquela época,
quem não tinha nome – porque o nome de lá não valia, então o senhor
dava o nome. Eu acho que não herdava nada. Porque meu pai falou pra
mim que o meu avô veio da África, e a minha avó Caetana que era a mãe
do meu pai, tinha um terreno aqui no bairro da Fazenda. Ela chamava-se
Caetana. O primeiro nome dela eu não me lembro.
Atividades
1. Explicite a contribuição da ancestralidade africana para a resistência e a reconstrução
da identidade negra no período pós-escravidão.
2. Comente o aspecto da resistência do povo negro que lhe chamou atenção, argumentan-
do o sentido da sua percepção.
Resolução
1. Ancestralidade africana, entendida em linhas gerais como conjunto de princípios
culturais, de ordem epistemológica, ontológica e ética, consiste nos pressupostos
imprescindíveis à sobrevivência e realização de um povo. No caso dos negros africa-
nos e seus descendentes na diáspora brasileira, o momento após a abolição, não os
aniquilou radicalmente como o sistema dominante desejava, porém, se apresentava
profundamente negativo do ponto de vista dos direitos humanos. O povo negro se
reergueu, recorrendo aos próprios recursos para restaurar a sua condição humana.
Entretanto, nada disso teria sido possível se não fosse o legado da ancestralidade
africana que os revigorava.
2. O texto que foi estudado apresenta uma lista de situações, personagens e realizações
no tocante ao enfrentamento do racismo e à reconstrução da condição humana do
povo negro. Cabe aqui uma resposta de forma particular, no entanto, esperamos que
sua argumentação explique o que lhe chamou mais atenção.
4. A narrativa de José Bento, enriquecida pelos depoimentos das pessoas com quem
conversou, transmitem a atmosfera de esgarçamento brutal das pessoas negras, após
a exploração escravista a que foram submetidas. As nuances e os detalhes apresenta-
dos pela narrativa de Bento traçam uma impressionante descrição da violência ope-
rada sobre aquela gente. Os depoimentos destacam a perplexidade de quem saiu da
exploração escravista com as marcas da pobreza, do analfabetismo e do desconhe-
cimento dos meandros jurídicos e políticos da sociedade branca. O relato de Bento
demonstrou a vigência da reprodução da pobreza na geração seguinte, seguida das
revoltas e lamentos pelas perdas da gente ludibriada pelos exploradores.
O tempo presente atualiza e renova o crime histórico contra o povo negro, por
meio de uma estrutura social racista que o mantém na condição de pobreza. Em lugar
de contribuir para a inserção sadia do povo negro na sociedade, com acesso a bens
e serviços dignos, o aparato social racista cria sofisticadas barreiras para impedir o
acesso do negro aos bens culturais, além de ser condescendente com a violência racial
e o genocídio da juventude negra.
A política de extermínio do povo negro é o grau máximo da alienação que vem sendo
imposta a ele desde os tempos da escravidão criminosa. O sonho das elites brasileiras em se
desfazer da presença do povo negro1 ainda se encontra em andamento. A tomada de cons-
ciência por parte da sociedade brasileira e o acesso à educação por parte do povo negro são
caminhos de enfrentamento dessas demandas históricas.
Quando se instalou o projeto Lixo que não é lixo, na cidade de Curitiba, em 1989, houve
um trabalho de marketing orientando a comunidade a separar o lixo reciclável, que seria
recolhido em um momento específico. As pessoas tomaram consciência, incorporaram o há-
bito e passaram a separar o lixo. Mas quando vão a outras cidades onde não há essa política,
ocorre um espanto.
A tomada de consciência sobre algum tema, pensamento, fato, situação ou pessoa, pode
ter uma dimensão social, comunitária, porém, o último reduto é a pessoa em sua inalienável
individualidade. O sujeito e sua consciência.
Houve um tempo em que professoras e professores das séries iniciais passaram a men-
talizar nas crianças o zelo ambiental: a limpeza do ambiente, o carinho e o respeito às plan-
tas. Plantavam-se árvores. Décadas depois, surgem gerações de pessoas aguerridas, defen-
dendo as florestas e o cuidado ambiental.
A tomada de consciência é um exercício de alargamento cognitivo. Passa pelo senti-
mento inicialmente desconfortável causado pelo questionamento. A isso se soma a insegu-
rança, seguida da aprendizagem de novos fundamentos teóricos, da mudança de conduta,
de criação de novos hábitos. Às vezes torna-se irritante, pois o início da nova fase costuma
colecionar esquecimentos.
Vejamos o caso dos homens e os cuidados com a saúde. Nos velhos tempos, os homens
pensavam que ir ao médico, tomar medicamentos, fazer dietas, realizar exames rotineiros
fosse bobagem. Porém, a tragédia e a morte costumam crescer em silêncio... A cada sístole e
diástole do coração, a cada inspiração e expiração dos pulmões alguma novidade pode estar
ganhando força em algum tecido ou órgão escondido.
Lentamente, as mulheres, os homens e a diversidade começaram a frequentar os con-
sultórios médicos e a fazer os exames diagnósticos de rotina para se manterem atentos, in-
formados sobre as reais condições de funcionalidade e saúde dos principais sistemas vitais.
Passamos a desenvolver uma política familiar e individual de saúde. As pessoas começaram
a se cuidar preventivamente e, como consequência, aumentou a longevidade e sua qualidade
de vida melhorou.
2 O grego Sócrates (469-399 a.C.) foi um cidadão ateniense cujo trabalho filosófico exerceu grande
influência em sua época e contribuiu para o legado filosófico grego à posteridade. As notícias sobre ele
foram registradas por discípulos, sobretudo Platão e críticos.
Sócrates criou um envolvente método de produção e ensino de filosofia, centrado no diálogo. Seu ponto
de partida era a convicção de que ele mesmo era um ignorante. Porém, com uma diferença em relação aos
amigos e vizinhos: ele tinha consciência das limitações do próprio conhecimento: “Só sei que nada sei.”
Conversava com seus interlocutores, nas ruas, no mercado, nas residências, ou seja, onde quer que
estivesse. E fazia isto de modo questionador, refletindo sobre temas do cotidiano. No decorrer da con-
versa, costumava levar os interlocutores a manifestarem a própria ignorância sobre o tema. Às vezes,
avançava no diálogo e auxiliava a pessoa a alcançar um conceito sobre o alvo da conversa.
Ora, os jovens ficaram fascinados por aquele procedimento e passaram a segui-lo. À medida em que
aprendiam o método, saíam pela cidade a questionar pessoas. O resultado do trabalho de Sócrates
provocou a ira de outros setores da cidade. Sócrates foi acusado de perverter a juventude e de desobe-
diência aos fundamentos religiosos da cidade. Em vista disso, foi condenado à morte. Deram-lhe um
veneno chamado cicuta que ele bebeu tranquilamente, na presença de amigos e discípulos.
Vale a pena aprofundar o conhecimento sobre esse filósofo.
argumenta, tenciona e encurrala o sujeito, exigindo-lhe tomada de posição. Por isso, o terceiro
momento do processo de tomada de consciência carrega essa dimensão de cobrança, peso e
força.
Porém, quando internalizamos o novo modo de ser derivado da nova consciência, isso
passa a constituir a nossa cultura. Incorporamos esse modo de ser aos nossos hábitos e po-
demos experimentar alegria e libertação.
O livro As almas da gente negra, de William Edward Burghardt (W. E. B. Du Bois), pu-
blicado nos EUA em 1903, é considerado uma obra seminal do movimento da consciência
negra, devido à grande influência que exerceu. Mais tarde, o psiquiatra e filósofo martini-
cano Frantz Fanon relatou que até 1939, a gente negra das Antilhas não se assumia como
negra. Essa identificação não acontecia, pois, a opressão do passado colonial e o racismo
sofrido desde então, causaram uma brutal desarrumação identitária nos negros da região.
No entanto, um fato novo aconteceu na Martinica, possessão francesa no Caribe: a chegada
de Césaire, após concluir os estudos superiores na França:
Pela primeira vez, ver-se-á um professor de liceu, logo, aparentemente um ho-
mem digno, dizer simplesmente à sociedade antilhana “que é belo e bom ser ne-
gro”. Era, certamente, um escândalo. Nessa altura, disse-se que ele era um pouco
louco e os seus colegas fizeram grandes diligências para darem pormenores da
sua pretensa doença. (FANON, 1980, p. 25)
Realmente, Aimé Césaire (1913-2008) foi um dos fundadores do Movimento da
Negritude durante os tempos de estudo na França, na década de 1930, ao lado de estudan-
tes africanos e da afro-diáspora. Decididos a enfrentar o racismo contra os negros, propuse-
ram-se a esvaziar o conceito negro dos conteúdos perversos que lhe atribuíam os racistas e,
inversamente, convertê-lo em um instrumento positivo de luta e libertação. Reivindicavam,
então, a beleza e a bondade de ser negro.
Ora, os conterrâneos de Césaire pensavam que negro era uma aberração, conforme dis-
seminavam os racistas brancos. O seu regresso e a pregação do estranho significado do ser
negro provocaram uma reviravolta na autoimagem dos antilhanos. Assim, o Movimento da
Negritude pode ser considerado um dos embriões do movimento da consciência negra, que
se espalhou mundo afora.
O próprio Fanon deu grande contribuição à consciência negra quando escreveu o clás-
sico Pele negra máscaras brancas, no qual realiza uma respeitável análise dos conflitos psicoló-
gicos vividos pela gente negra oriunda do histórico colonial escravista.
A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente
que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência
das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um du-
plo processo:
Esta seção procura meditar sobre consciência negra e cotas raciais com base na seguinte
pergunta: por que cotistas negras/os não são usurpadores de vagas?
3 Data do martírio de Zumbi dos Palmares, ocorrido em 20 de novembro de 1695.
Acontecera de Isabel Caminha, a filha dele, casar-se com Jorge Osório, homem que foi
condenado ao exílio na África por praticar assaltos. Motivado pelos problemas familiares, o
escrivão utilizou o espaço do relatório da viagem, A Carta, com as primeiras observações sobre
o Brasil, para inserir uma súplica ao rei, em benefício do genro condenado ao exílio na África:
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qual-
quer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem
servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São
Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d’Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza. (CAMINHA, 1500)
O pedido de Pero Vaz de Caminha confunde o público e o privado4, ao suplicar ao rei
(Vossa Alteza), singular mercê (o que hoje se poderia chamar de especial favor), em troca, fica-
ria eternamente agradecido ao monarca: “o que d’Ela receberei em muita mercê.”
Portanto, as duas narrativas primordiais do Brasil evocam ao desprezo à meritocracia e
resvalam em soluções de “canetaço”. No primeiro caso, vimos que o papa estabeleceu duas
cotas e, no segundo, Pero Vaz de Caminha utilizou a posição estratégica de escrivão para
obter um favorecimento particular à sua família.
Segundo o Tratado de Tordesilhas, Portugal teria importantes extensões territoriais no
Brasil. No ano de 1534, ensinam os manuais, o rei português D. João III repartiu as terras bra-
sileiras que lhe pertenciam em quinze faixas horizontais, as capitanias hereditárias. Tais faixas
de terras foram doadas a pessoas da pequena nobreza portuguesa, os donatários. Novamente
aparece aqui uma política de cotas. Segundo a historiografia, o sistema das capitanias apre-
sentou falhas e uma nova política de cotas de terras foi colocada em ação, as sesmarias.
As sesmarias eram lotes menores, distribuídos para a efetiva colonização. Nelas, inicial-
mente, estabeleceram-se as grandes plantações de canaviais, para as quais acharam neces-
sária a importação compulsória de africanos. Noutros termos, desencadeou-se o comércio
triangular, já explicitado em outro capítulo.
Conforme os dados expostos, fica evidente que o Brasil carrega uma história de cotas,
desde as origens, como fica demonstrado no caso do Tratado de Tordesilhas, das capitanias
hereditárias e das sesmarias. Além disso, a busca de favores junto ao Estado começou a apa-
recer no próprio texto-fundador de Pero Vaz de Caminha.
Passados mais de cinco séculos, o Brasil de hoje carrega as marcas do passado colonial
e alguns setores sociais permanecem recebendo robustos benefícios financeiros nas tramas
do cotidiano.
4 Parece que, desde então, se cristalizou a prática da confusão entre o público e o privado que até
hoje perturba a vida política no Brasil.
5 “Negros têm IDH que brancos tinham em 2000, mostra pesquisa”. Disponível em: <http://brasil.
estadao.com.br/noticias/geral,negros-tem-idh-que-brancos-tinham-em-2000-mostra-pesquisa,
70001770848>. Acesso em: 7 fev. 2018.
Conclusão
Atlas da violência
(IPEA, 2017, p. 32-35)
Homicídios de negros
De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jovens e
negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como
se vivessem em situação de guerra. Cerqueira e Coelho (2017), a partir de análi-
ses econométricas com base nos microdados do Censo Demográfico do IBGE e
do SIM/MS, mostraram que a tragédia que aflige a população negra não se res-
tringe às causas socioeconômicas. Estes autores estimaram que o cidadão negro
possui chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos de
outras raças/cores, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado
civil e bairro de residência. Cerqueira e Coelho mostraram que, do ponto de
vista de quem sofre a violência letal, a cidade do Rio de Janeiro é partida não
apenas na dimensão econômica entre pobres e ricos, ou na dimensão geográ-
fica, mas também pela cor da pele. Ao calcular a probabilidade de cada cidadão
sofrer homicídio, os autores concluíram que os negros respondem por 78,9%
dos indivíduos pertencentes ao grupo dos 10% com mais chances de serem
vítimas fatais [...].
[...] Os dados mais recentes da violência letal apontam para um quadro que
não é novidade, mas que merece ser enfatizado: apesar do avanço em indi-
cadores socioeconômicos e da melhoria das condições de vida da população
entre 2005 e 2015, continuamos uma nação extremamente desigual, que não
consegue garantir a vida para parcelas significativas da população, em especial
à população negra.
Atividades
1. Explique o conceito de consciência negra, segundo Steve Biko.
3. Com base nos dados do Ipea, contidos na leitura complementar, justifique o título
do nosso livro – Africanidades e Democracia – e explique a importância e atualidade
do estudo desse tema.
4. O texto argumentou sobre as cotas raciais estudantis. Reflita sobre esse tema em dois
momentos:
Referências
BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. Trad. Grupo Solidário São Domingos. São Paulo: Ática, 1990.
CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta. Pero Vaz de Caminha. 1º de maio de 1500. Disponível em: <http://
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000292.pdf>. Acesso em: 6 fev. 2018.
CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2002.
FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Trad.e Isabel Pascoal. Lisboa: Livraria Sá da Costa,
1980.
_______. Pele negra máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
IPEA. Atlas da Violência 2017 Ipea e FBSP. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/
images/170609_atlas_da_violencia_2017.pdf>. Acesso em: 6 fev. 2018.
Resolução
1. Um aspecto do conceito consiste, para Biko, na recuperação da autoestima da pessoa
negra, ultrajada pelo racismo do regime opressor, o apartheid. Biko estimulava suas
irmãs e irmãos a reconhecerem que Deus criou, deliberadamente, a pessoa negra.
Portanto, não há nada errado no fato de a pessoa ser negra, pois Deus mesmo decidiu
que ela seria assim. A consciência negra tem também o papel de congregar as pessoas
marcadas racialmente no corpo, por serem negras, a unir as forças para combater o
regime opressor, tendo em vista a instauração da sociedade de pessoas livres e iguais.
Por outro lado, nessa data o povo brasileiro é chamado a fazer um balanço da rea-
lidade e da condição de vida do povo negro no momento presente. É também o
momento de o povo negro juntar as forças, avaliar os avanços e desafios, para pros-
seguir na construção da liberdade necessária.
O primeiro capítulo deste livro interrogou a realidade nestes termos: qual é o problema
das africanidades e da democracia no Brasil? Após o percurso conceitual, em sintonia com o
mundo vivido do povo negro, consideramos que um dos graves problemas ainda é o silên-
cio. A explicitação e o diálogo aberto e sincero sobre as contradições raciais do Brasil estão
atrasados. O fortalecimento da democracia racial, sem paternalismo, pressupõe a tomada de
consciência, portanto, é hora de ampliar a reflexão e o debate sobre o tema.
A vivência da democracia no Brasil tem sido marcada por altos e baixos, com seve-
ros prejuízos ao direito de o povo participar e tomar parte no processo produtivo e de
seus resultados.
A história e o sentido da presença africana no Brasil e as demandas do povo negro
têm sido escamoteados ou vistos superficialmente. Ainda é tempo de aprofundar o estudo
dessa realidade.
Ao rompermos o silêncio histórico, não podemos estudar o povo negro como se fosse
um cadáver (MOURA1, 1988). Importa ouvir a gente negra, aprender a reconhecer os valores
transcendentais africanos, preservados nas comunidades e possíveis de explicitação pelas
vozes e pelos exemplos das pessoas mais velhas.
A consciência negra é um dever de cada pessoa e condição da cidadania. Trata-se de um
desafio posto a toda pessoa. A comunidade consciente de sua pluralidade racial, orientada
a reconhecer os valores culturais dos povos que a compõem, terá um repertório superior de
opções de convívio e realização humana.
O enfrentamento das pautas do povo negro passa pela ação do Estado, na forma de
políticas públicas. Contudo, é preciso lembrar que cada pessoa também é responsável por
isso, e deve ampliar a consciência e assumir sua parte.
Código Logístico
57276