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RESENHA1

Construcionismo social – um convite ao diálogo


Kenneth e Mary Gergen
Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2010

Leonora Corsini
Psicóloga, Terapeuta e Pesquisadora

Escrever a resenha do livro escrito por Kenneth e Mary Gergen foi para mim uma oportunidade de
revisitar uma construção que eu já tinha feito como revisora da tradução para o português. Acabou
sendo bem interessante e muito frutífera a possibilidade de estabelecer mais um diálogo com os
autores, que nos fazem este convite em duas vozes.
Esta seria uma primeira qualidade a assinalar neste livro. A possibilidade de realizar uma leitura
diferente de teses já avançadas. Para os leitores já familiarizados com as teses construcionistas,
revisitá-las, confrontá-las com suas práticas atuais. Para os que estão conhecendo agora o
Construcionismo, acessar de forma bem simples e didática suas principais ideias.
Os primeiros capítulos do livro fazem um mapeamento das principais ideias e conceitos que são o
arcabouço desta construção teórica. A primeira a ser apresentada é a da centralidade das ideias
construcionistas em ação no cenário da construção social. As ideias em ação permitem dar um
salto do teórico à ação prática, porém uma prática que traz incorporada, não podemos esquecer,
visões de mundo, valores, jogos de linguagem.
Outra idéia forte que logo aparece é a de que a construção social é transversal a todos os debates
que colocam em xeque as verdades instituídas, as certezas invariantes, os fundacionalismos. Os
autores apresentam no livro uma metáfora bem interessante para ilustrar esta ideia: o
Construcionismo é como um guarda-chuva que abriga todas as tradições de significado e de ação,
não só as construcionistas. Esta imagem me remeteu a uma outra imagem, que William James diz
ter sido usada por um jovem pragmatista italiano: “O Pragmatismo situa-se no meio de nossas
teorias, como um corredor em um hotel. Inúmeros quartos dão para ele. (...) Todos, porém, abrem
para o corredor e todos devem passar pelo mesmo se quiserem ter um meio prático de entrar e sair
de seus respectivos aposentos”2. Ambas as imagens se casam muito bem com a ideia de que nós
construímos a realidade de formas diferentes e estas diferenças encontram-se enraizadas nas
relações sociais, a partir das quais o mundo se tornou o que é, para nós.
Quando tratam da passagem dos jogos de linguagem (a partir de Wittgenstein, jogos de linguagem
descritos como regras e valores encarnados naquilo que fazemos, e produzem formas de vida) aos
mundos possíveis, os autores também fazem pensar no deslocamento de perspectiva da linguagem
como representação à linguagem como atualização, ou seja, transformar em realidade o que
existe como possibilidade, como virtualidade.
Além disto, a linguagem envolve sempre algumas tensões:
(1) tensão entre fatos e valores. Toda ação, mesmo no âmbito as ciências (qualquer que seja o seu
nome) é sempre interessada, ou seja, atribuímos valor a certos eventos e eles passam a ter um
estatuto de fatos para nós;
(2) tensão entre a Verdade transcendente, e as múltiplas verdades, que apontam para o pluralismo
radical. As Verdades transcendentes costumam desfrutar de muito prestígio no mundo acadêmico e
das instituições, mas estão o tempo todo sendo desafiadas na vida cotidiana. Por exemplo, a célebre
fórmula 2 + 2 = 4 pode ser desmontada de muitas formas, uma delas foi feita de maneira precisa por

1
Resenha publicada na seção Estante de Livros da revista NPS n. 38, dez 2010
2
Citado por Ferreira, Bezerra e Tedesco [orgs.]. Introdução. Pragmatismos, Pragmáticas e Produção de
Subjetividades, Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
Jean Piaget quando lembrou que 2 gotas d’água + 2 gotas d’água não vão necessariamente resultar
em 4 gotas d’água, podem virar uma minúscula poça... Tiramos daí que uma posição
Construcionista deverá favorecer formas de diálogo a partir das quais novas realidades e novos
valores possam emergir... Mas, o construcionista nunca poderá fazer isto desde uma posição de
neutralidade;
(3) tensão entre mundo real e mundo material, ou entre Ciência e Religião.
Outra passagem importante é a que diz respeito ao indivíduo como fonte de significado. Para o
construcionista, a produção de significado é sempre uma ação coordenada entre pessoas. Nunca
teremos garantia de acesso ao que está ‘dentro’ da cabeça de alguém. Assim, ao invés de localizar o
significado dentro de um indivíduo, passamos a focalizá-lo nos espaços “entre” dois ou mais
indivíduos em relação. Isto nos convida a repensar noções como sujeito, ‘self’, identidade. O que
chamamos sujeito ou ‘self’ é uma construção, ou melhor, uma reconstrução relacional e dialógica
da mente (certamente podemos entender mente em uma conotação batesoniana) a partir da
performance (performances como componentes de sequências relacionais).
A segunda parte do livro vai examinar os impactos das ideias construcionistas nas práticas
profissionais, e este acaba sendo um momento bastante importante para nós leitores, por nos ajudar
a conectar com aquilo que o convite construcionista suscita em nossas próprias práticas. Os autores
selecionaram três terrenos em que as ideias construcionistas podem ser muito úteis e produtivas.
São eles: o campo das terapias, em que foram eleitas três formas de terapia que combinam de
maneira especial com a sensibilidade do construcionista – a Terapia Narrativa, a Terapia Breve e a
Terapia da Posição do Não-saber. O âmbito das organizações, onde são apreciadas questões como
eficácia e liderança (da liderança individual para a liderança relacional) e as metodologias e técnicas
que dão sustentação a essas novas possibilidades. E, por último, o campo educacional, onde são
analisadas as pedagogias participativas, a pedagogia crítica – estabelecendo um diálogo com Paulo
Freire – e a pesquisa como prática de construção e reconstrução de conhecimento. No que diz
respeito à temática da pesquisa, são valorizados métodos múltiplos como etnografias, as ‘aventuras
etnográficas’, a pesquisa-ação, a interdisciplinaridade, os estudos sobre o discurso – a
discursividade como regime disciplinar – e o método da Análise do Discurso.
Mas, para mim, o que foi mais desafiador na leitura de Convite ao Diálogo foi tentar pensar de que
maneiras o Construcionismo pode contribuir para, diante das críticas que lhes são endereçadas,
alimentar o diálogo e assumir uma posição colaborativa. Ou seja, como podemos usar a crítica
como convite ao diálogo? Como trabalhar juntos, de maneira criativa, a partir das críticas? E são
oferecidas algumas pistas: sair de um suposto niilismo para realidades mais ricas; ir além do
realismo, no que diz respeito a corpos, mente e poder, podendo conjugar os discursos realistas com
os discursos ‘meta’ do construcionismo; explorar os limites da linguagem; e, importantíssimo, ir
além do relativismo moral.
Vivemos, como dizem os autores, em contextos de abundância de bens morais e de inevitabilidade
da diferença. Somos então convidados a trocar o relativismo moral pelo perspectivismo relacional.
Não se trata aqui da troca de uma Verdade transcendente por outra, e sim poder trocar de lugar para
ver as coisas de outra perspectiva – troca de pontos de vista. A história do óvulo-sereia da feminista
Emily Martin é emblemática desta troca de pontos de vista.
Ao ler este livro várias vezes e de diferentes perspectivas senti-me convidada a dialogar com as
muitas vozes que nele ressoam. Sempre aposto nas conversas, por isso meu desejo é de que o
grande guarda-chuva construcionista possa fazer circular cada vez mais ideias, tradições de
significado e ações, e que o convite ao diálogo feito por Ken e Mary Gergen seja tão instigante para
os leitores quanto foi para mim.

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