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VALDIR LAMIM-GUEDES

ORGANIZADOR

CAMINHOS PARA O
ENSINO DE CIÊNCIAS
E MATEMÁTICA
DOCUMENTOS E PRÁTICAS
VALDIR LAMIM-GUEDES
(ORGANIZADOR)

CAMINHOS PARA O
ENSINO DE CIÊNCIAS
E MATEMÁTICA
DOCUMENTOS E PRÁTICAS

São Paulo
2023
EDITORA NA RAIZ
EDITOR-CHEFE: PROF. DR. VALDIR LAMIM-GUEDES

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6 APRESENTAÇÃO
Valdir Lamim-Guedes

13
1. O DESAFIO DE DEMONSTRAR O PAPEL DA
CIÊNCIA E MATEMÁTICA EM NOSSAS VIDAS
Valdir Lamim-Guedes

31
2. A ESPERANÇA DE PANDORA: CONTRIBUIÇÕES
DA SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA LATOURIANA PARA A
EDUCAÇÃO CIENTÍFICA
João Pedro Ocanha Krizek
SUMÁRIO

3. A MEDIAÇÃO DOS BIOMAPAS PARA O

57 PROTAGONISMO DO PERTENCIMENTO
SOCIOAMBIENTAL NO ENSINO DE QUÍMICA
Raquel Freitas de Oliveira; Jussara Lopes de Miranda

4. ENSINO DE CIÊNCIAS NO SISTEMA

81 SOCIOEDUCATIVO
Janete Teresinha Camargo; Liliane da Cruz Cardoso;
Lucia Ceccato de Lima

97
5. A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NOS PROJETOS
PEDAGÓGICOS DURANTE A PANDEMIA COVID-19
NO ENSINO FUNDAMENTAL – ANOS FINAIS
Rodrigo Gomes, Indhira Araújo Pilar, Lucia Ceccato de Lima
110
6. PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO DE
MATEMÁTICA PARA ESCOLA DO CAMPO
Liliane da Cruz Cardoso; Janete Teresinha Camargo;
Lucia Ceccato de Lima

132
7. O ENSINO DE MATEMÁTICA EM UM CURSO DE
ENGENHARIA ELÉTRICA
Alexandre Tripoli Venção; Makhelly de Liz Pessoa; Rodrigo Branco;
Lucia Ceccato de Lima

155
8. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA EM PROJETOS
PEDAGÓGICOS ESCOLARES
Indhira Araújo Pilar; Rodrigo Gomes; Lucia Ceccato de Lima

174
9. ESTILO DE PENSAMENTO DE PROFESSORES DE
MATEMÁTICA CONSTRUÍDO NA FORMAÇÃO
INICIAL
Rosméri Legnaghi Carbonera; Lucia Ceccato de Lima

197
10. CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO
SUMÁRIO

SUSTENTÁVEL, EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E A BNCC


Regine dos Santos; Patricia Branco Feltrin; Lucia Ceccato de Lima

11. PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE EDUCAÇÃO

216 MATEMÁTICA PARA JOVENS E ADULTOS NA


PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR
Patricia Branco Feltrin; Regine dos Santos; Lucia Ceccato de Lima

235 ORGANIZADOR E AUTORES

243 PARECERISTAS
2. A esperança de Pandora:
Contribuições da Sociologia da
Ciência latouriana para a Educação
Científica
João Pedro Ocanha Krizek

31
Introdução
Desenvolver uma maior compreensão da práxis científica é de
primordial interesse àqueles que são responsáveis, em certa medida,
pela Educação Científica de futuros cidadãos (CACHAPUZ et al.,
2005). Nesse sentido, faz-se necessário que os professores de Ciências
tenham o entendimento aprofundado do fazer científico e, para tal
intuito, a apropriação de conceitos centrais da Sociologia da Ciência
mostra ser uma atitude bastante valorosa.
Bruno Latour (1947-2022) foi um antropólogo, filósofo e
sociólogo francês, especialmente conhecido por seus trabalhos acerca
da atividade científica. Um de seus principais interesses de pesquisa
residia no estudo “[d]as ciências e [d]as técnicas em suas relações com
a história, a cultura, a literatura, a economia, a política” (LATOUR,
2016, p. 12, destaque do autor). Embora sua obra não incorpore
diretamente questões referentes à educação, este capítulo visa indicar
possíveis aproximações entre o pensamento latouriano e o Ensino de
Ciências.
À vista do exposto, este texto tem como objetivo apresentar
alguns conceitos centrais do pensamento de Bruno Latour acerca dos
componentes aparentes e ocultos do fazer científico. Considerando
sua vasta produção bibliográfica e a limitação do espaço textual aqui
disponível, este capítulo almeja expor apenas alguns dos conceitos
abordados pelo autor em seu livro A esperança de Pandora
(LATOUR, 2017). Para tal, primeiramente aborda-se o conceito de
referência circulante, e depois destrincha-se a noção de fluxo
sanguíneo da ciência. Também se apresenta a ideia de um realismo

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construtivista e, por fim, discute-se brevemente de que maneira as
conceituações latourianas aqui apresentadas podem constituir
referencial para a Educação Científica.

Referência Circulante
No segundo capítulo de A esperança de Pandora, Latour ocupa-
se de um problema central da filosofia da linguagem: o problema da
referência. Trata-se da tentativa de compreender acerca de como as
palavras podem – se é que podem – referir objetos no mundo. Esta
relação entre objetos e palavras, ou entre mundo e discurso, é a
relação de referência:

Se digo que “o gato está no tapete”, parece que designo um gato cuja
presença concreta no dito tapete valida minha declaração; na prática
real, entretanto, não se trafega diretamente dos objetos para as
palavras, do referente para o signo, mas sempre ao longo de um
arriscado caminho intermediário. O que já não é visível no caso de
gatos e tapetes, por serem muito familiares, torna-se visível
novamente quando faço uma declaração mais inusitada e complexa.
Se eu disser que “a floresta de Boa Vista avança sobre a savana”, como
apontarei para aquilo cuja presença validaria minha frase? De que
modo se pode atrair esses tipos de objetos para dentro do discurso, ou
antes, para empregar uma palavra antiga, de que modo se pode “eduzi-
los” no discurso? (LATOUR, 2017, p. 55).

Para tratar dessa questão, Latour acompanha o trabalho de


pesquisa de quatro cientistas em Boa Vista, capital do estado
amazônico de Roraima, durante uma expedição de campo. A equipe é
composta por uma botânica e por uma geomorfologista brasileiras,
além de dois pedólogos franceses. Os pesquisadores estão
interessados numa área de transição floresta-savana. Nessa área, é
possível deparar com indivíduos de uma espécie de árvore resistente

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ao fogo (que geralmente só cresce na savana) dez metros floresta
adentro, local em que tendem a morrer por falta de luz. Estaria a
floresta avançando sobre a savana ou a savana avançando sobre a
floresta? – eis o problema de pesquisa.
Esta seção não tem a pretensão de fazer uma discussão
detalhada do estudo de caso de Latour acerca da expedição realizada;
em vez disso, tentará ilustrar o que o pensador entende por
“referência circulante” e sua defesa de que a referência não constitui
um ato de mimese.
Ao conceber a referência como “um jeito de fazer que algo
permaneça constante ao longo de uma série de transformações” (p.
73, destaque nosso), Latour faz alusão ao modo pelo qual os fatos são
construídos para se tornarem comunicáveis. Não se pode responder
ao problema de pesquisa colocado simplesmente olhando para a
transição floresta-savana – pois floresta e savana são entidades por
demais complexas constituídas por uma infinidade de fatores que
excedem os poderes da cognição e da memória humana. E embora,
ontologicamente, todos esses fatores possam fazer a diferença,
epistemologicamente nem todos são relevantes para o problema em
questão. É necessário, pois, preparar o objeto estudado para que os
fatores relevantes ao problema possam ser destacados:

[...] para torna-se reconhecível, o mundo precisa transformar-se em


laboratório. Se a floresta virgem tem de transformar-se em
laboratório, precisa ser preparada para entregar-se como diagrama
(LATOUR, 2017, p. 59, destaque nosso).

É por essa razão que a equipe de quatro cientistas utiliza mapas,


divide a região em diferentes áreas e alfineta as árvores com etiquetas
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numeradas – assim, é possível se localizar e orientar o registro
direcionado dos fatores de interesse. Amostras de solo e espécimes
vegetais são coletados (bem como suas localizações) e são
cuidadosamente deslocados e preservados.
Os espécimes vegetais são levados para longe e instalados numa
coleção botânica. Nesse local, metaforicamente, os pesquisadores não
estão nem muito perto nem muito longe do local de pesquisa. Estão a
uma boa distância e conseguiram transportar um pequeno número de
traços característicos:

Na coleção do naturalista, acontecem às plantas coisas que jamais


ocorreram desde o começo do mundo [...]. As plantas se veem
deslocadas, separadas, preservadas, classificadas e etiquetadas. Em
seguida são reaproximadas, reunidas e redistribuídas segundo
princípios inteiramente novos, que dependem do pesquisador, da
disciplina da botânica (padronizada durante séculos) e da instituição
que as abriga [...]. Graças a seu deslocamento sobre a mesa, a
superfície de contato entre floresta e savana torna-se uma mistura
híbrida de cientista, ciência botânica e floresta (LATOUR, 2017, p. 54).

As amostras de solo também são transformadas. Após coletadas


e transportadas, são classificadas e comparadas com cartões coloridos
convencionalmente usados pela comunidade científica – o chamado
“código Munsell”–, o que permite que cada diferente cor de solo
receba um valor numérico padrão. Tais números, por sua vez, são
indicadores de outras propriedades contidas no solo. “Nunca se deve
falar em data, ou seja, aquilo que é dado, mas antes em sublata, ou
seja, aquilo que é ‘realizado’” (LATOUR, 2017, p. 57).
Após a transformação do solo em amostras de solo, das
amostras de solo em cores e das cores em valores numéricos, tais
números são agora transformados em gráficos, diagramas, mapas e
35
tabelas. Dessas inscrições, por sua vez, podem ser inferidos padrões a
serem transformados no discurso que as acompanha nos artigos
publicados – como o discurso, proferido pelos pesquisadores, de que
“a savana está invadindo a floresta”.
A partir de sua exposição, Latour defende a tese de que o
conhecimento não reside da confrontação direta da mente com o
objeto, da mesma forma que a referência não designa uma coisa por
meio de uma sentença verificada por essa coisa:

Ao contrário, a cada etapa reconhecemos um operador comum, que


pertence à matéria num dos extremos e à forma no outro; entre uma
etapa e a seguinte, há um hiato que nenhuma semelhança pode preen-
cher. Os operadores estão ligados numa série que atravessa a dife-
rença entre coisas e palavras (LATOUR, 2017, p. 85, destaque do au-
tor).
Em outros termos, o que estabelece a possibilidade de
referência não é uma semelhança entre a proposição e a transição
floresta-savana – uma mimese entre palavra e objeto – mas a série de
transformações situada entre o discurso e o estudado.
O antropólogo ressalta que uma propriedade essencial dessa
cadeia de transformações é sua necessidade de permanecer reversível
– daí o termo “referência circulante”: “A sucessão das etapas tem de
ser rastreável, para que se possa viajar nos dois sentidos” (LATOUR,
2017, p. 85). Ou seja, é a possibilidade de se mover “para frente” e
“para trás” que permite o deslocamento da floresta para o artigo e
deste de volta para a floresta, já que “conhecer não é apenas explorar,
mas conseguir refazer os próprios passos, seguindo a trilha
demarcada” (LATOUR, 2017, p. 91).

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Para Latour, o suposto “hiato” entre o mundo e as palavras só
existe quando eliminadas todas as mediações numa série de
transformações. Segundo ele, o problema da referência surge de uma
confusão epistemológica que toma o discurso científico como
proporcionador de uma cópia exata do mundo. Porém, as ciências
fazem mais que isso: ao longo de etapas sucessivas, vinculam-nos a
um mundo transformado, construído – embora real:

O gato “real” espera pachorrentamente em seu tapete proverbial para


conferir valor de verdade à frase “o gato está no tapete”. No entanto,
para obter certeza, o mundo precisa agitar-se e transformar muito
mais a si mesmo que às palavras (LATOUR, 2017, p. 63, destaque do
autor).

Fluxo Sanguíneo da Ciência


Latour considera que a única maneira de compreender a
realidade dos estudos científicos é acompanhar os cientistas em ação,
nos bastidores (e.g., LATOUR, 2011). Para o pensador, as atividades
científicas são construídas e sustentadas por uma rede de atores
humanos e não humanos8, que interagem de modo a estabilizar os
fatos aceitos por uma determinada ciência.
A partir de uma metáfora que relaciona o processo de produção
e circulação do conhecimento científico com o sistema circulatório
(Figura 2.1), o autor define cinco circuitos necessários para que um
fato seja tomado como científico e obtenha a sua legitimação de

8 “Actante” ou “atuante” é utilizado para se referir, de forma neutra, tanto a


humanos quanto a não humanos, já que o termo “ator” muitas vezes assume uma
carga simbólica que o relaciona exclusivamente a seres humanos.
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objetividade: (I) mobilização do mundo; (II) autonomização; (III)
alianças; (IV) representação pública; e (V) vínculos e nós:

Seguindo as trilhas da circulação dos fatos, saberemos reconstruir,


vaso após vaso, o sistema circulatório completo da ciência. A noção de
uma ciência isolada do resto da sociedade se tornará tão absurda
quanto a ideia de um sistema arterial desconectado do sistema venoso.
Mesmo a noção de um “coração” conceitual da ciência assumirá um
sentido completamente novo depois de começarmos a examinar a
farta vascularização que dá vida às disciplinas científicas (LATOUR,
2017, p. 97).

Figura 2.1: Modelo latouriano para reconstituição da circulação dos fatos científicos.
Fonte: Latour, 2017.

38
Mobilização do mundo
De maneira breve, a mobilização do mundo refere-se à maneira
pela qual os não humanos (instrumentos, equipamentos, medidas,
substâncias, amostras, expedições, questionários, levantamentos etc.)
são progressivamente utilizados na construção dos conhecimentos
científicos. Trata-se, pois, de mover o mundo para dentro do
laboratório, e de fazê-lo suscetível de análise e argumentação. Sobre
esse circuito, Latour (2017, p. 120) afirma: “em vez de girar em torno
dos objetos, os cientistas fazem os objetos girar em torno deles”.

Autonomização
A autonomização refere-se à associação entre cientistas que
compartilham objetos e interesses de pesquisa. Trata-se do processo
que dá origem às disciplinas científicas e que concebe as instituições
de pesquisa. Também é o circuito em que se constrói o estatuto de
“cientificidade” ao redor de um conhecimento, através do
convencimento dos pares. “Um especialista isolado é um paradoxo.
Ninguém pode se especializar sem a autonomização simultânea de um
pequeno grupo de pares” (LATOUR, 2017, p. 121).

Alianças
As alianças dizem respeito ao recrutamento de não científicos
para que o trabalho de pesquisa seja realizável: agências
financiadoras, políticos, industriais, entre outros. Tais alianças são
firmadas através de interesses e tornam o fluxo sanguíneo da ciência
mais rápido e com uma taxa mais elevada de pulsação. Trata-se, pois,
39
de “cientistas inserindo a disciplina num contexto suficientemente
amplo e seguro para garantir-lhe a existência e a continuidade”
(LATOUR, 2017, p. 123, destaque do autor).

Representação pública
A representação pública, por sua vez, respalda o
desenvolvimento de um sistema de crenças e opiniões em comum e
está relacionada à adesão do público em geral aos objetivos dos
cientistas. Ela concerne à adesão da mídia, de influencers e de
jornalistas, por exemplo, por meio dos quais os conhecimentos ou
produtos científicos são divulgados e adquirem credibilidade e
aceitação na sociedade. “Os mesmos cientistas que precisaram correr
o mundo para torná-lo móvel, convencer colegas e assediar ministros
ou conselhos de diretores têm agora de cuidar de suas relações com
outro mundo exterior formado por civis: repórteres, pânditas e
pessoas comuns” (LATOUR, 2017, p. 124-125).

Vínculos e nós
Finalmente, a coesão entre os quatro circuitos citados só é
possível mediante a existência de vínculos e nós, o “coração
palpitante” do fluxo sanguíneo da ciência. Fazendo referência ao
conteúdo conceitual produzido que percorre os demais circuitos
(como o fluxo sanguíneo nas veias e artérias do sistema circulatório),
são os vínculos e nós que mantêm juntos os inúmeros elementos
heterogêneos (Figura 1). É por essa razão que Latour (2017, p. 128)

40
afirma que “O conteúdo de uma ciência não é algo que esteja contido:
é, ele próprio, o continente” (destaque do autor).

Realismo Construtivista
No quarto ensaio de A esperança de Pandora, Latour faz o
estudo de um dos artigos mais importantes de Louis Pasteur (1822-
1895): “Mémoire sur la fermentation appelée lactique” [“Memória
sobre a fermentação dita láctea”]. No mencionado trabalho, Pasteur
relatou sua descoberta de um fermento biológico do ácido láctico –
numa época em que a fermentação vinha sendo explicada em termos
puramente químicos, com vistas a livrar-se de obscuras explicações
vitalistas (MAYR, 1998). A partir de então, Latour utiliza do caso da
levedura “descoberta” por Pasteur com a intenção de ilustrar sua
defesa de que os objetos científicos são, simultaneamente, fabricados
e reais – visão denominada por Latour de “realismo construtivista”:
“O problema não é a mera circunstância de sua fabricação e realidade.
Ao contrário, exatamente porque eles foram feitos artificialmente é
que conquistam autonomia completa de qualquer espécie de
produção, construção ou fabricação” (LATOUR, 2017, p. 152,
destaque do autor).
A partir do estudo de caso analisado, Latour ressalta a postura
de Pasteur quanto um construtivista do tipo racionalista. No último
parágrafo de seu artigo, Pasteur confessa sua convicção de que fatos
precisam ser enquadrados e gerados por uma teoria:

Ao longo desta memória, tenho raciocinado na base da hipótese de


que o fermento é organizado, ou seja, é um organismo vivo e que sua
ação química sobre o açúcar corresponde a seu desenvolvimento e
41
organização. Se alguém ponderasse que com que semelhantes
conclusões estou indo além daquilo que os fatos demonstram, eu
responderia que isso de fato é verdade no sentido de que a posição por
mim assumida consiste num quadro de ideias que, em termos
rigorosos, não pode ser provado de maneira irrefutável. Eis como
vejo as coisas. Sempre que um químico estudar esses fenômenos
misteriosos e tiver a boa sorte de dar um passo importante, sentir-se-
á inclinado institivamente a atribuir sua causa primária a um tipo de
reação consistente com os resultados gerais de sua própria pesquisa.
Tal é o curso lógico da mente humana em todas as questões polêmicas
(PASTEUR, 1857, §22 apud LATOUR, 2017, p. 152-153, destaque
deste autor).

Nessa citação, Pasteur evidencia que a entidade “levedura” foi


concebida a partir de convicções. A origem de seu “quadro de ideias”
reside nas lealdades disciplinares (“um químico”), elas próprias
ligadas a um investimento passado (“consistente com os resultados de
sua própria pesquisa”) e enraizadas tanto na cultura e história pessoal
(“sua própria pesquisa”) quanto na natureza humana (“instinto”, “o
curso lógico da mente humana”) (LATOUR, 2017). Apesar de
defender que “o curso lógico da mente humana” inviabiliza o
“julgamento imparcial” de “questões polêmicas” que não podem ser
“provadas de modo irrefutável”, o próprio Pasteur, no mesmo
parágrafo, muda de postura e defende que suas conclusões devem
convencer “quem quer que julgue imparcialmente” os resultados de
sua pesquisa:

E penso, a esta altura da evolução de meu conhecimento do assunto,


que quem quer que julgue imparcialmente os resultados deste
trabalho e do que pretendo logo publicar reconhecerá comigo que a
fermentação parece correlacionar-se com a vida e a organização de
glóbulos – não com sua morte e putrefação (PASTEUR, 1857, §22
apud LATOUR, 2017, p. 154, destaque deste autor).

42
Ou seja, a partir das duas citações anteriores, duas
epistemologias de modo algum relacionadas são justapostas pelo
mesmo Pasteur: os fatos exigem uma teoria enraizada na história
prévia do programa de pesquisa para fazerem-se visíveis; mas, então,
eles têm de ser julgados independentemente da história apresentada.
Latour argumenta que esse aparente paradoxo pode ser desfeito
através do modo pelo qual Pasteur distribui a atividade entre ele
mesmo, o experimentador, e o pretenso fermento, o experimentado:
“[...] um experimento é um ato realizado pelo cientista para que o não
humano apareça por si mesmo. A artificialidade do laboratório não
ameaça sua validade e verdade; sua imanência óbvia é, de fato, a fonte
de sua transcendência absoluta” (LATOUR, 2017, p. 154).
O sociólogo da ciência expõe que um experimento gera dois
planos de referência – um no qual o experimentador é ativo e outro
no qual a ação é delegada ao não humano. A atividade experimental,
então, desloca a ação de um quadro de referência para outro. No caso
analisado, tanto Pasteur quanto a levedura são forças ativas:

Mais precisamente, Pasteur age para que a levedura aja sozinha. [...]
Pasteur cria um cenário no qual não precisará criar coisa alguma. Ele
desenvolve gestos, frascos e protocolos para que a entidade, uma vez
transferida, torne-se independente e autônoma. Segundo se enfatize
um ou outro desses aspectos contraditórios, o mesmo texto será
construtivista ou realista (LATOUR, 2017, p. 155, destaque do autor).

Ou seja, Latour defende que, quanto mais Pasteur trabalha em


seu laboratório, mais o fermento se torna independente. Apesar do
fermento do ácido láctico ser totalmente autônomo e existir além da
construção humana, sua existência não pode ser concebida fora do
trabalho construído por Pasteur – e é justamente esse trabalho que o
43
permite existir. Latour chama atenção para a alteração da cenografia
de Pasteur na passagem a seguir:

Extraio a parte solúvel do levedo de cerveja tratando o fermento por


algum tempo com quinze a vinte vezes seu peso em água, à
temperatura de ebulição. O líquido, uma solução complexa de material
albuminoso e mineral, é cuidadosamente filtrado. Cerca de cinquenta
a cem gramas de açúcar são em seguida dissolvidos em cada litro, um
pouco de giz é acrescentado, e borrifado um pouco do material
cinzento, que acabo de mencionar, oriundo de uma boa fermentação
comum; depois, aumenta-se a temperatura para 30 ou 35 graus
centígrados. É bom também introduzir uma corrente de ácido
carbônico para expelir o ar do frasco, que se aplica por meio de um
tubo de saída curvo, imerso em água. Já no dia seguinte, manifesta-se
uma vívida e regular fermentação... Numa palavra, temos diante dos
olhos uma fermentação láctica nitidamente caracterizada, com todos
os acidentes e complicações usuais desse fenômeno, cujas
manifestações exteriores são bem conhecidas dos químicos
(PASTEUR, 1857, §8 apud LATOUR, 2017, p. 156-157, destaque deste
autor).

Através da análise dessa passagem, constata-se que, no


momento em que a entidade se encontra em seu status ontológico
mais fraco, o experimentador está em plena atividade (extraindo,
tratando, dissolvendo etc.). Porém, em seguida, o experimentador sai
de cena e o leitor vê “uma fermentação láctica nitidamente
caracterizada” que toma corpo no centro do placo independentemente
de todo trabalho ou construção experimental (LATOUR, 2017).
Diante do exposto, Latour conclui:

Se ignorarmos o trabalho de Pasteur, cairemos no poço do realismo


ingênuo [...]. Mas que acontecerá se ignorarmos a atividade
autônoma, automática e delegada do ácido láctico? Cairemos em outro
poço, tão sem fundo quanto o primeiro, do construtivismo social,
repudiando o papel dos não humanos em quem todas as pessoas que
estudamos concentram sua atenção e por quem Pasteur gastou meses
de trabalho desenhando essa cenografia (LATOUR, 2017, p. 157-158).
44
Aproximações com a Educação em Ciências
Em vista do que foi apresentado, discute-se brevemente, nesta
seção, de que maneira as conceituações latourianas aqui expostas
podem constituir referencial para a promoção da Educação Científica.

A referência circulante e a tribo de leitores-


escritores
Um dos elementos característicos dos cientistas é sua forma
peculiar de escrever textos (LATOUR, WOOLGAR, 1997). Não
obstante, o texto científico é diferente de todas as outras formas de
narrativa: ele discorre de um referente, presente no próprio texto, de
maneira distinta da prosa – fazendo menções a mapas, gráficos,
tabelas, equações. “Mobilizando seu próprio referente interno, o texto
científico traz em si sua própria verificação” (LATOUR, 2017, p. 71).
Com vistas a almejar uma Educação Científica, faz-se necessário
introduzir os estudantes a esse tipo de narrativa, dado que a prática
científica seria impossível sem o suporte da leitura e da escrita.
Quando um cientista escreve, escreve para si próprio (registros de
experiências, notas de campo, diários etc.), seja para apreender o
pensamento ou para elaborá-lo; porém, também escreve para os
outros (artigos, relatórios etc.), com a intenção de comunicar
informações e persuadir os pares (BARRAS, 1979; LATOUR, 2017).
Nesse sentido, a comunicação em sala de aula é essencial para que a
atividade de ensino se aproxime da práxis científica (GIL-PÉREZ et
al., 2005). “Na aprendizagem de ciências, os estudantes precisam se

45
apropriar de formas de discurso, interação, comunicação e de
engajamento de grupos sociais” (DENG et al., 2019, p. 1409).
Não apenas apropriar-se do discurso científico, faz-se
necessário também que os estudantes compreendam como ele
próprio é construído, a partir da noção de referência circulante. Para
tanto, o Ensino de Ciências por Investigação (e.g., CARVALHO, 2013)
é uma abordagem didática interessante. Nela, a partir de uma “série
de transformações” que envolvem a construção e a interpretação de
dados, gráficos, tabelas etc., é possível compreender que, quando um
cientista fala com veracidade sobre um estado de coisas, ele não salta
das palavras para o mundo – dois domínios bastante distanciados um
do outro – mas faz uso de uma série transversal de intermediários
alinhados, que revelam a passagem da ação manipulativa para a ação
intelectual.
O uso da abordagem inclusiva da História da Ciência no ensino
também é bastante recomendável. O estudo de casos históricos –
como, por exemplo, o caso do embate entre Louis Pasteur e Félix
Archimède Pouchet relativo à geração espontânea (MARTINS, 2009)
– possibilita maior aprofundamento acerca do entendimento de como
diferentes proposições são articuladas para a composição do discurso
científico9 e, por conseguinte, ilustra a construção das teorias

9 “Proposição”, para Latour, não assume o sentido epistemológico de uma assertiva


tida como verdadeira ou falsa, mas o sentido ontológico daquilo que um atuante
oferece para outros atuantes. Pasteur, o fermento do ácido láctico e o laboratório na
cidade de Lille são, eles próprios, proposições. O fermento do ácido láctico existe,
argumenta Latour, porque se articula entre inúmeras outras proposições: “Quanto
mais Pasteur trabalha, mais o fermento do ácido láctico se torna independente, pois
46
científicas dentro de uma rede traçada pelos deslocamentos de
pesquisadores, amostras, vidrarias, gráficos, relatórios etc.
(LATOUR, 2017).
É importante pontuar que tais recomendações, que objetivam
aproximar o “aprender ciência” com o “fazer ciência”, não são
realizadas com a intenção de transformar os alunos em cientistas. O
que se propõe, de fato, é algo mais simples e absolutamente plausível:
a intenção é criar, nas aulas de Ciências, um ambiente acolhedor à
cultura científica que possibilite, aula após aula, gradativamente, com
que os estudantes alfabetizem-se cientificamente (SASSERON;
CARVALHO, 2008).

O fluxo sanguíneo da ciência e o ensino


contextual
O Ensino Contextual das Ciências se apresenta como uma
tendência que explora os componentes históricos, filosóficos,
sociológicos e antropológicos do fazer científico, com a intenção de
oportunizar uma formação cidadã que supere a demarcação entre o
ensino dos conteúdos científicos dos seus contextos de produção
(PRESTES; CALDEIRA, 2009) e, dessa forma, propicie o
desenvolvimento de cidadãos cientificamente alfabetizados (REID;
HODSON, 1993).

está agora bem mais articulado ao cenário artificial do laboratório, uma proposição
que de modo algum lembra o fermento” (LATOUR, 2017, p. 171).
47
Compreendida como o conjunto de conhecimentos científicos
que facilitariam aos indivíduos fazer uma leitura do mundo onde
vivem (CHASSOT, 2000), a Alfabetização Científica se apresenta
como um componente básico da educação para a cidadania
(FOUREZ, 1997). Seu desenvolvimento é almejado pela necessidade
de uma formação científica que permita aos indivíduos participarem
na tomada de decisões em torno de assuntos sociocientíficos e
sociotécnicos cada vez mais complexos, e que se fazem presentes em
nosso contexto social (MARCO, 2000).
A Alfabetização Científica aparece, portanto, como uma
necessidade do desenvolvimento pessoal e social. Todavia, as
expectativas para a sua promoção não têm se cumprido, e constata-se
um crescente desinteresse – e, até mesmo, recusa – e um elevado
insucesso escolar dos estudantes para com a ciência e sua
aprendizagem – o que levou alguns autores a dirigir atenção para
como se está dando a Educação Científica (CACHAPUZ et al., 2011).
Tal análise tem evidenciado que, em grande parte das vezes, o Ensino
de Ciências transmite visões deformadas da Natureza da Ciência, que
se afastam da forma como os conhecimentos científicos são
construídos (GIL-PÉREZ et al., 2001; CACHAPUZ et al., 2011).
Ainda é bastante comum que ocorra nas aulas de Ciências a
transmissão de uma visão descontextualizada do fazer científico, que
ignora o impacto das ciências no meio natural e social, bem como os
interesses e as influências da sociedade no seu desenvolvimento
(HODSON, 1994). Nesse sentido, estratégias devem ser utilizadas, em
sala de aula, para superar tal imagem deformada da atividade
científica.
48
Nesse sentido, defende-se aqui que o modelo de sistema
circulatório dos fatos científicos, conforme brevemente exposto,
respalda uma concepção contextualizada do fazer ciência, na medida
em que o cientista precisa vagar por todos os circuitos para ter êxito
em seus objetivos (LATOUR, 2017). Uma abordagem do Ensino de
Ciências que valorize e privilegie o estudo desses diferentes circuitos
apresenta o efetivo potencial de desconstruir a transmissão de uma
visão descontextualizada da atividade científica, ao elucidar os
diferentes laços heterogêneos e mediadores encarregados de manter
vivos os fatos científicos.
Empregando a noção de mobilização do mundo, por exemplo, o
professor pode desenvolver, entre os estudantes, a compreensão de
que o conhecimento científico é construído a partir de evidências, as
quais são progressivamente inseridas no discurso. Alegações que não
são suportadas por evidências não possuem caráter científico,
independente dos sentimentos de admiração que podem causar
(SAGAN, 2006). É por meio da mobilização, pois, que o mundo se
converte em argumentos e que a ciência adquire seu status de um
corpo de conhecimentos confiáveis e seguros (LATOUR, 2017). Nesse
sentido, a partir de discussões acerca de como a mobilização do
mundo se dá, pode-se desenvolver, entre os estudantes, uma forma de
pensamento crítico – tão necessário para que parte da autoridade da
ciência seja recuperada entre os não cientistas.
Com a autonomização, por sua vez, apresenta-se o potencial de
se trabalhar a argumentação no Ensino de Ciências. A prática
argumentativa, elemento central deste segundo circuito e artifício
essencial para convencer os pares, deve ser desenvolvida entre os
49
estudantes como forma de se posicionar, de modo crítico e coerente,
frente a temas de cunho científico e de interesse público, como
mudanças climáticas, alimentos transgênicos, espécies ameaçadas de
extinção, entre tantos outros. A partir desse laço, é possível conceber
que a existência de conflitos não é um freio ao desenvolvimento da
ciência, mas um de seus motores (LATOUR, 2017).
Similarmente, a partir de estudos de caso e da análise de
notícias de jornais, é possível desenvolver a concepção acerca da
importância do financiamento de pesquisas para que o trabalho
científico aconteça. É importante que os estudantes compreendam
que cientistas precisam inserir sua disciplina num contexto político e
econômico para garantir-lhe a continuidade (LATOUR, 2017), e que,
portanto, autoridades políticas devem ser mobilizadas e cobradas
constantemente para que a ciência e seus produtos prosperem.

O realismo construtivista e a ciência quanto


processo
A ciência faz parte da herança cultural humana – sendo,
portanto, um direito de todos conhecê-la e ser capaz de discuti-la
(SILVA, 2010). Isso respalda não apenas o ensinar ciência, mas
também o ensinar sobre ciência. Nesse sentido, uma visão adequada
do fazer científico quanto processo, de sua dinâmica e de seus
contextos seguramente deve trazer consequências importantes. A
noção dos objetos científicos como fabricados, embora reais
(LATOUR, 2017), corrobora que o trabalho científico deve ser
respeitado e valorado – embora não santificado.

50
Além de sua contribuição para a formação de um espírito crítico
e para uma compreensão fundamentada das relações entre ciência,
tecnologia e sociedade, estudos da ciência em construção podem
facilitar o aprendizado dos próprios conteúdos científicos em si.
Tendo como referência a teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean
Piaget, faz-se necessário que os educadores compreendam que seus
educandos não são uma “tábula rasa” (PIAGET; GARCIA, 1987). Eles
apresentam concepções prévias, visões deformadas da ciência e da
tecnologia, anteriores à Educação Científica sistemática, que resistem
à sua substituição pelas noções adequadas da Natureza da Ciência
(CACHAPUZ et al., 2011; KRIZEK; GERALDINO, 2020).
De acordo com Piaget (1976), ensinar significa causar o
desequilíbrio na mente do educando para que ele, procurando o
equilíbrio (“equilibração majorante”), se reestruture cognitivamente
e aprenda (MOREIRA, 2022). Ensinar – ou, em sentido mais amplo,
educar – seria criar situações, seriadas e graduadas, que forcem o
estudante a reestruturar-se (OLIVEIRA LIMA, 1980). Nesse sentido,
defende-se aqui que o conhecimento do processo do fazer ciência
pode ser valioso para essa reestruturação. O processo pelo qual o
estudante deve passar é análogo ao próprio processo de construção do
conhecimento científico, na medida em que “as suas resistências são
semelhantes as dos próprios cientistas do passado; e mesmo as suas
ideias, por mais ‘absurdas’ que pareçam, podem ser semelhantes às
que foram aceitas em outros tempos por pessoas que nada tinham de
tolas” (MARTINS, 2006, p. XXVI).
Existem diversos métodos para o estudo da construção dos fatos
científicos. Entretanto, Latour (2011) sugere aquele que considera o
51
mais simples de todos: seguir os próprios cientistas em sua tentativa
de fechar uma caixa-preta e abrir outra. Ou seja, em vez de ensinar
apenas os produtos finais da ciência – o funcionamento de uma usina
nuclear, o enunciado de uma teoria cosmológica e o formato em
dupla-hélice do DNA – um professor deve guiar seus alunos pelos
caminhos percorridos pelos próprios cientistas. Juntos, professor e
alunos, devem seguir os passos dos cientistas nos momentos e nos
lugares nos quais planejam uma usina nuclear, modificam uma teoria
cosmológica e criam hipóteses pautadas em diferentes modelos para
a estrutura do DNA. Para tanto, estudos de caso da História e
Sociologia da Ciência constituem ferramentas pedagógicas essenciais.

Considerações Finais
Neste capítulo, algumas ideias trabalhadas por Bruno Latour
em seu livro A esperança de Pandora foram apresentadas.
Primeiramente, pretendeu-se mostrar como as ciências falam do
mundo, a partir do conceito de referência circulante. Depois, foi
exposta a noção de fluxo sanguíneo da ciência, a partir de uma breve
apresentação dos cinco circuitos que dão vida aos fatos científicos.
Além disso, foram abordados alguns aspectos do realismo
construtivista latouriano, que considera os objetos científicos
simultaneamente como fabricados e reais. Por fim, foram propostas
algumas reflexões acerca de como as conceituações latourianas aqui
expostas podem constituir referencial para o Ensino de Ciências.
Em vista do que foi apresentado, destaca-se que:
• A caracterização de Latour da narrativa científica quanto uma
forma peculiar de escrita, pautada em referentes internos,
52
remete a um aspecto crucial da comunicação entre cientistas.
Nesse sentido, faz-se necessário introduzir os estudantes a
essa modalidade de escrita, dado que ela é um aspecto
permanente da cultura científica.
• A noção de referência circulante é de vital relevância para a
Educação em Ciências. É imperioso que os estudantes
entendam como o discurso científico é construído, e o Ensino
por Investigação é uma excelente abordagem para esse
propósito. Essa aproximação com o fazer ciência envolve a
elaboração de hipóteses, experimentos, gráficos e tabelas,
permitindo que os estudantes compreendam como ocorre o
uso de intermediários alinhados com a construção do discurso
empregado pelos cientistas.
• O uso da abordagem inclusiva da História da Ciência no
ensino é altamente recomendado, pois permite aos estudantes
compreenderem os modos pelos quais as teorias científicas
são construídas dentro de redes compostas por pesquisadores,
amostras, vidrarias, gráficos, relatórios e assim por diante.
• O ensino contextual da ciência e dos processos de construção
do conhecimento científico é essencial para a promoção da
Alfabetização Científica e para a superação de visões
deformadas da Natureza da Ciência.

Agradecimentos
O autor agradece ao Prof. Marcus Vinicius Dias Vieira Muller,
ao Prof. Dr. Valdir Lamim-Guedes e aos pareceristas pelas sugestões
realizadas.

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Quarta capa
(terá um resumo da obra)

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