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A aprendizagem do tempo ou o “fardo da História” – Uma leitura de

Portugal por António Lobo Antunes

Ou o tempo é invenção ou ele não é nada.


Bergson

Esta é a madrugada que eu esperava


O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sofia de Mello Breyner

Norbert Elias nos ensinou que o homem é construtor do tempo.


Acreditando nisso, podemos ampliar nosso raciocínio e pensar que cada
cultura organiza o tempo à sua maneira e que então, apreendê-lo seria uma
excelente ferramenta de leitura de aspectos fundamentais dessa sociedade.
Portugal é um país adoecido pelo “excesso de memória”, que forjou,
para si mesmo, uma espécie de intervalo no tempo. A obsessão de Portugal
por Portugal de que nos fala Eduardo Lourenço tem origem na grande gesta
dos Descobrimentos, da qual o pequeno país atuou como ator principal.
Naquele momento, o milagre operou-se e aquela pequena nação tornou-se
paradigmática da própria expansão européia no mundo.
Deste lugar, tão singular quanto fundamental, de toda a cultura
ocidental, Portugal não conseguiu ou não aceitou sair, embora historicamente
inúmeras vezes lhe foi dado a ver o quão inadequado era tentar permanecer
preso, vinculado, a tal paradigma. De lá para cá, é como se Portugal vivesse
uma espécie de eterno hiato entre uma glória real e uma futura possível glória
eventual – e nesse seu caminhar de espera, na realidade, uma estagnação,
Portugal acabou por vivenciar, na sua historicidade, uma série de eventos ou
episódios que, oportunisticamente, acabaram por se valer desta inércia na qual
o país se colocou. Esperar a volta de Dom Sebastião foi apenas o primeiro dos
sucessivos momentos de suspensão da realidade histórica a qual Portugal se
viu entregue.
Embora existam vozes que minimizem o espaço que tal glória deve ter
no imaginário social de Portugal, o espectro do descobrimento continua a
rondar incansávelmente os portugueses.

E evoco então, as crônicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressucitado!
Luta Camões no mar, salvando um livro, a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais !
(O sentimento dum ocidental – Cesário Verde)

A Revolução dos Cravos representou uma brusca ruptura (como é


próprio de qualquer ato revolucionário) e acelerou enlouquecidamente o
tempo português. Esta imagem de um tempo desvairado está presente em
inúmeras manifestações artísticas que se seguiram ao 25 de abril. Vejamos o
depoimento de Eduarda Dionísio, no texto intitulado “25 anos do 25 de abril –
Vozes da Mudança”:

Foi um tempo sem relógios, sem


calendarizações e filofaxes, em que a noite
era tão ou mais importante que o dia. A
urgência era a vida, muito mais do que uma
solução para atrasos.

Desde então, já não faz mais sentido pensarmos, como sugere Eduardo
Lourenço, nos motivos que levaram Portugal a criar para si mesmo essa
imagem de um continente de tempo perdido, mas sim nos habilitar a forjar um
novo tempo presente, onde possamos novamente nos capacitar como
verdadeiros sujeitos históricos para que a construção de um futuro seja viável.
É tempo, portanto, de re-semantizarmos o tempo simbólico português, uma
vez que o tempo da realidade impõe-se como urgência.
Nos versos de Sofia de Mello Breyner:

“Como casa limpa


como chão varrido
como porto aberto

como puro início


como tempo novo
sem mancha nem vício

Como a voz do mar


Interior de um povo

Como página em branco


Onde o poema emerge

Como arquitetura
Do homem que ergue
Sua habitação”

A percepção do tempo, segundo Elias, pressupõe a existência de


indivíduos que sejam capazes de identificar em sua memória acontecimentos
passados e de construir mentalmente uma imagem que os associe a outros
acontecimentos mais recentes, ou que estejam em curso. Embora seja difícil
entendermos que passado, presente e futuro sejam definitivamente um único e
mesmo conceito, é preciso considerá-los como “três dimensões do tempo na
experiência humana”. E isto porque o homem, como sujeito, é quem realiza
essa síntese do tempo. É a partir dele e de sua experiência no mundo, que
pode-se localizar um antes, um agora e um depois.
Parece que Portugal, no período salazarista, vivia um não-tempo. Ou,
pelo menos era esta a estratégia do governo ditatorial que apregoava
incansavelmente a não-modernização, o não-diálogo com outras partes do
mundo, criando com isso, uma idéia de estagnação e de segregação - que, no
limite, desapropriava os homens de sua condição de sujeitos históricos.
O Estado Novo português (1932-1974), de clara inspiração fascista
(Salazar era fã de Mussolini), criou mecanismos altamente repressivos que
conjugavam o catolicismo e o autoritarismo, desencorajando a
industrialização. Fez da clara e simples administração doméstica a tônica de
seu governo. Segundo Maxell, “o Portugal de Salazar estava firmemente
artilhado contra o século XX”, daí o ditador ter congelado Portugal”. (são
palavras suas) P.33
Cardoso Pires, no ensaio “Lá vai o português”, o caracteriza assim:

“Lá vai o português, lá anda.


Dobrado ao peso da História, carregando-a
de facto, e que remédio – índias, naufrágios,
cruzes de padrão (as mais pesadas) (...) Mal
nasce deixa de ser criança: fica logo com 8
séculos.”

Pode-se dizer, então, que Salazar com a sua política caseira, se


apropriou do tempo, fez dele arma de controle social.
Me parece, que os livros de António Lobo Antunes, trabalham nesta
direção de recolocar o homem no seu lugar de direito, dando-lhe, novamente,
as rédeas do tempo. São homens em experiências temporais, que estão num
difícil mas necessário aprendizado do tempo, assenhorando-se da sua
capacidade de síntese. Pois, como nos ensina Le Goff, “compreender o tempo
é essencialmente dar provas de reversibilidade”. P.205
Em seus romances, quase sempre construídos em cima de relatos em 1°
pessoa, Lobo Antunes aponta para questões que dizem respeito às motivações,
ou aos aprendizados que só são possíveis quando do confronto do indivíduo
consigo mesmo. Tornar-se sujeito responsável e consciente de suas ações
pressupõe releituras internas ininterruptas. São experiências, portanto, com as
percepções e possíveis apreensões do tempo o que vemos nas obras de Lobo
Antunes. Em seu romance Exortação aos Crocodilos, por exemplo, há uma
passagem paradigmática disto que chamei da aprendizagem do tempo. É
quando a personagem Mimi se depara com a fotografia de sua avó quando
criança:

“... e numa caixa de sapatos, sob o


colchão, (...) atulhada de tesouros que a
minha avó me mostrava num êxtase lento,
(...) num envelope onde o tempo
ou os dedos dela
apagara a memória das datas, o
retrato fraturado e rasgado,
com a assinatura do fotógrafo em
letras caprichadas
(...)
mas não podia ser ela, que tolice,
porque a minha avó era velha e tresendava à
aguardente de trança, a idéia de uma avó da
minha idade, encarando-me de um universo
amarelado e extinto, assustava-me por
introduzir estranhos mundos paralelos na
minha noção do mundo ...” p.47

Aliás, esta experiência com a fotografia aparece com certa frequência


nos escritos de Lobo Antunes. Seja concretamente, como por exemplo nas
crônicas “Texto para o livro do fotógrafo Eduardo Gageiro” ou “Fantasma de
uma sombra”, seja como linguagem, uma vez que a fotografia convida o olhar
sob diferentes ângulos.
Nesse sentido, podemos pensar na obra de Lobo Antunes como a
“câmara escura” onde, após o banho do revelador (ou a nossa leitura), surgem
instantâneos de imagens do passado. É justamente disso que Lobo Antunes
fala, nas outras mil maneiras de lidar com esse passado glorioso que abafa
Portugal.

Estes retratos nas estantes falam de


um passado em que me não reconheço, por
ter sempre a impressão de ser outro nas
molduras.

Se acreditamos que apropriar-se do tempo é uma possibilidade de re-


situar o homem como sujeito de um processo de construção da própria
história, é re-colocar o indivíduo no seu lugar de direito, me parece que Lobo
Antunes busca este exercício e, gentilmente, prepara o homem recém-saído
de uma ditadura que de certa forma o estagnou para estas novas exigências.
“Tive sempre medo dos fotógrafos [ nos segreda o autor em uma de
suas inúmeras crônicas, pois eles] engolem-nos de súbito, passamos, como os
mortos para um quadrado de papel onde não somos nós continuando a ser nós,
onde nos tornamos uma cara sem tempo ou um sorriso que não pertence a
ninguém.”
Na fotografia, o que verifica-se é uma tentativa de congelar
momentaneamente o tempo – suspendê-lo e fixá-lo. Pois o que é a fotografia
senão o imemorial desejo de reter o instante?
A fotografia introduz, pois, paralelamente, a idéia de suspensão do
tempo, um convite a um tempo outro – é neste sentido que ela passa a ser uma
espécie de dispositivo temporal. A foto convida, não apenas o olhar sob
diferentes ângulos, mas também introduz uma sensação de passado, de
lembrança. Como dizia Montesquieu, “uma fotografia é um espelho que se
lembra”.
A obra de Lobo Antunes está povoada de fotografias. Não há recanto
que não tenha uma moldura cuidadosamente colocada. Talvez a obsessão de
suas personagens pelas relíquias do passado indiciem o peso que este mesmo
passado (que não é apenas individual mas coletivo) exerce sobre a sociedade
portuguesa. É um passado que, para Lobo Antunes, não oferece conforto,
muito ao contrário, está ali justamente para servir de lembrete da necessidade
de não buscar no passado um reconhecimento que provoque inércia. Não à toa
vemos personagens nesses movimento de estranhamento, que ao olhar uma
foto sua é capaz de dizer: “O problema de envelhecer é que nos tornamos
novos” e “não mais nos reconhecermos naquilo que outrora fomos”.
É precisamente este o caminho que Lobo Antunes trilha em sua obra – é
como se ele trabalhasse com um matéria-prima opaca, já sem vida, que
acachapa o homem – o tempo fixo

Lobo Antunes restitui, através do seu gesto de escrita, o sentido da vida,


pois, segundo Norbert Elias, “compreender sua própria experiência do tempo
é, também, compreender a si mesmo”.
“Aprendizagem do tempo”
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Há em nós muito excesso de memória mitificada a acrescentar-se à
nossa memória multissecular de europeus. Há sobretudo esse excesso ou
sobrecarga de sonho que, como para o albatroz de Baudelaire, nos impede de
consentir ou de aderir às exigências da realidade.

Na ordem de uma temporalidade convencional, ao mesmo tempo


imperiosa e abstrata, é assim que as coisas se passam. Na realidade, cada
grande cultura tem o seu “tempo próprio”, exatamente como outrora, quando
povos, mesmo próximos, como tribos da Nova Guiné, se ignoravam uns aos
outros.
Será o fim do tempo português e o começo do tempo de Portugal, um
país como os outros a contas nunca certas com o tempo. Quer dizer, com a
rugosa essência da realidade.

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