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TEXTO
RICARDO SILVA
INVESTIGADOR DO INSTITUTO
DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
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AMEAÇA O avanço da Alemanha a leste foi
acolhido com entusiasmo em Espanha e
nasceu uma divisão de voluntários, a Divisão
Azul, cujos soldados, nas estepes da Rússia,
cantavam versos como: “Só esperamos a
ordem/ que nos dê o nosso general/ para
apagar a fronteira/ de Espanha com Portugal”
Os planos de Franco
para invadir Portugal
Durante séculos, o “perigo castelhano” foi uma constante, com
as intermináveis guerras de fronteira a frustrarem os planos de
Castela sobre Portugal; quimeras de uma União Ibérica
idealizada em Espanha como solução de grandeza. Franco
também a sonhou, chegando a planear a invasão de Portugal,
mas a derrota do III Reich obrigou-o a despertar para a realidade
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SEGREDO Franco e Salazar
em 1940. Salazar fechara os
olhos às campanhas que
angariavam portugueses para
servir nas bandeiras da Legião,
mas a gratidão pelo apoio não
alterava os planos de Franco,
que incluíam Portugal como
parte de um futuro império
destinado a recuperar a
grandeza da Espanha
O
sonho de unir a Península Ibérica sob uma única
coroa é tão antigo como a sua história. Tentado por
romanos, visigodos e mouros, revelou-se tão sedu-
tor como impraticável, mas conseguiu perdurar ao
longo do tempo. Fiéis à sua fama, os povos ibéricos
resistiram ferozmente a todas as formas de domí-
nio exterior, numa tradição que popularizou heróis
como Viriato, o chefe lusitano que se revelou o ter-
ror das legiões romanas, e Pelágio, o nobre visigodo
que travou a expansão do Al-Andalus. No século XII
a ideia parecia cada vez mais longínqua, com a Re-
durante a Idade Média, com lutas dinásticas e guer-
ras fronteiriças a marcarem a tensão entre os dois
reinos, mas apesar de todos os esforços, Castela re-
velou-se incapaz de dominar Portugal.
A solução acabaria por chegar através dum ca-
samento que uniria as coroas de Castela e Aragão,
em 1469, com o reinado dos reis católicos a marcar
o início da era de ouro da história espanhola. Em
1492, não só a armada de Cristóvão Colombo alcan-
çou as Américas como chegava ao fim a resistência
do Reino Nacérida, concluindo-se de forma vitorio-
exércitos franceses no seu território na crença que o
ajudariam a alcançar Lisboa, mas acabando por ver
os gauleses marcharem sobre Madrid para o depor e
ao seu filho. Foi o princípio da derrocada espanhola
que levaria ao fim do império e à perda do estatuto
de grande potência, numa longa série de humilha-
ções que culminou com a estrondosa derrota face
aos Estados Unidos, em 1898.
IRREDENTISMO IBÉRICO
Ao iniciar-se o século XX, os sectores mais radicais
conquista a desmantelar o Califado Almóada e a pe- sa a Reconquista com a queda do último reduto mu- da sociedade espanhola acreditavam que o retorno
nínsula transformada num retalho de reinos e prin- çulmano em Granada. Em 1512, a monarquia católi- à grandeza de Espanha só seria possível mediante a
cipados. Foi nessa época conturbada que um jovem ca passou a ser a monarquia de Espanha e Portugal União Ibérica, e é nesse ambiente de irredentismo
nobre venceu a sua mãe na Batalha de São Mamede era agora o último entrave à concretização da União com tons de xenofobia, que um jovem cadete galego
e assumiu o poder do Condado Portucalense, com o Ibérica. Onde falhou a guerra, venceu a diplomacia, ingressa na Academia de Toledo, onde muitos defen-
título de D. Afonso Henriques. com a morte de D. Sebastião a abrir uma crise de diam que a absorção de Portugal e Marrocos seriam
No século seguinte, o condado foi reconhecido sucessão prontamente aproveitada por D. Filipe II a solução para os problemas de Espanha. Em 1907,
como Reino de Portugal e o seu território foi-se defi- para assumir o Reino de Portugal, em 1580, e criar a Francisco Franco iniciou a sua longa carreira militar
nindo ao ritmo da Reconquista para sul, empurran- União Ibérica num modelo que concedia a Portugal no seio duma instituição marcada pelo revanchismo
do as forças muçulmanas até ao Algarve ao mesmo uma larga autonomia. Seria sol de 60 anos de dura. e chefiada por um rei que não escondia o seu dese-
tempo que se desenhava a fronteira com o Reino de Em 1640, uma revolta rebenta em Lisboa e dá lugar à jo de reinar sobre o país vizinho, uma ambição que
Castela. A península parecia destinada a voltar ao Guerra da Restauração, seguindo-se 28 anos de uma se tornou mais clara três anos mais tarde, quando a
mosaico que a tinha caracterizado na era pré-roma- luta intensa pontuada por cinco derrotas do exército revolução de 5 de outubro instaurou a República em
na, com vários reinos cristãos a repartirem os terri- espanhol que culminaram no tratado de paz de 1668. Portugal e a crónica instabilidade política e social
tórios recém-conquistados, mas Castela acabou por Portugal voltava a ser independente, mas Espa- abalavam a integridade do novo regime.
se tornar hegemónica após absorver os reinos de nha continuou a sonhar com a União Ibérica, um so- Em Espanha a situação deu lugar a um discurso
Galiza e Leão; ganhando um poder acrescido que nho que se tornou pesadelo no início do século XIX. iberista público, tanto nas arengas de quartel como
despertou o ideal da União Ibérica e a ambição de Deslumbrado pelo poder militar do império francês, nas primeiras páginas dos jornais, e José María Sa-
se tornar a única coroa em toda a península. Nascia D. Carlos IV decide aliar-se a Napoleão Bonaparte laverría, correspondente do “ABC” que andava em
assim o “perigo castelhano” que foi uma constante para invadir Portugal, acedendo a deixar entrar os Portugal a acompanhar a revolução, não se coibiu
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tornar o general mais jovem da Europa e comandar
a temível Legião Espanhola. Em 1936, quando par-
te do exército tenta um golpe militar que falha e dá
lugar a uma mortífera guerra civil, Franco torna-se
líder dos rebeldes e encontra em Portugal um alia-
do da primeira hora. O Governo de Salazar autoriza
o envio de munições quando estas estavam quase a
esgotar-se, permite que os portos nacionais recebam
armamento alemão que é transportado até à fron-
teira e fecha os olhos às campanhas que angariam
portugueses para servir nas bandeiras da Legião.
Franco e os nacionalistas tinham uma dívida com o
Portugal do Estado Novo, mas a gratidão pelo apoio
não alterava os planos que incluíam Portugal como
parte de um futuro império destinado a recuperar a
grandeza da Espanha.
A Falange, principal força política do bando na-
cional, era abertamente fascista e defendia a União
Ibérica nas suas publicações, e mesmo entre os mi-
litares espanhóis era tema recorrente quando se
cruzavam com os portugueses da Missão Militar
Portuguesa de Observação em Espanha, que deixou
registo de vários incidentes nos relatórios enviados
para Lisboa. O capitão Luís Sousa conversou com di-
versos oficiais em 1937, e no seu relatório deixou um
alerta para “as palavras dos mais entusiastas, muitos
deles com representação nos meios nacionalistas,
acerca dos seus ideais imperialistas e da necessidade
de abolir fronteiras entre Portugal e Espanha”, uma
ideia que o capitão rebatia recordando a história “em
que nós portugueses para honra e glória nossa firma-
e comentou que lhada por outros colegas, como Luis del Olmet, para
quem “a oportunidade aparece propícia, fácil. Por-
que cada vez tenho mais apreensões sobre as ideias
do “Generalíssimo”. Acho-o enamorado do poder e
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CONFLITO Um golpe
militar falhado em
1936 dá lugar a uma
mortífera guerra civil
em Espanha, e Franco
torna-se líder dos
rebeldes, encontrando
em Portugal um aliado
de primeira hora
KEYSTONE/GETTY IMAGES
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A realidade é A Divisão Azul acabou por se converter no ba-
luarte ideológico dos que propunham a intervenção
de choque com a enorme quantidade de mortos so-
fridos num só dia, e para o Governo de Franco ficou
viram forçadas chas pelas estepes russas, uma das quais versava
sobre o grandioso destino imperial que aguardava a
entrada de Espanha na guerra até ao momento em
que a vitória fosse certa, mas com a queda de Estali-
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