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           A EPOPÉIA IGNORADA
            (A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje)

  Autor: Otto Marques da Silva
  Editada pelo CEDAS ­1987

  Copyright de Otto Marques da Silva

  Direitos reservados do
  CEDAS­­Centro São Camilo de Desenvolvimento em Administração da Saúde
  Rua Barão do Bananal, 1111 ­­05024­­São Paulo­­SP.

  Capa de Júlio Braga

  Estela egípcia da XIX Dinastia: o porteiro de nome Roma faz oferendas à Deusa Astarte 
Síria (acervo da Glyptotek Ny Carlsberg­­Copenhague, Dinamarca).

  Dados Catalográficos

  SILVA, Otto Marques da
  A EPOPÉIA IGNORADA­­A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje
  São Paulo­­CEDAS, 1987.
  470 páginas ­ 2 partes ­ 5 anexos ­ 17 ilustrações
  Relações bibliográficas

  Conteúdo:

    I Parte­­ Deficiências e pessoas deficientes nos seguintes Períodos ou Épocas: Pré­
História, História Antiga (Egípcios, Hebreus, Gregos e Romanos), Advento do Cristianismo, 
Império Bizantino, Idade Média, História Moderna e História Contemporânea (Até 1981, 
Ano Internacional das Pessoas Deficientes).

    II Parte­­ Causas da marginalização das pessoas portadoras de deficiências, o significado 
da integração social, a questão da adequação da adequação pessoal como objetivo último da 
reabilitação, o preparo para a vida de trabalho, as equipes de reabilitação, a avaliação e o 
controle das atividades dos centros e programas de reabilitação.

  Para Nely
  Ana Maria
  Otto, Filho
  José Gustavo
  pela força que sempre me transmitem.

  Para Jary Maria
  Pela enorme lição de vida
  ("in memoriam")

    ÍNDICE
  A Oração da Pessoa Deficiente...
  Apresentação...
  Introdução...

    PRIMEIRA PARTE
   A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E DE 
HOJE

    Capítulo Primeiro
    A Pessoa Deficiente no Mundo Primitivo...
    O homem neolítico no Brasil de hoje ­ As primeiras civilizações do mundo...
  1. O Alvorecer da Humanidade...
  Os males incapacitantes de sempre ­ O ambiente físico ­ Os desafios para a vida do homem 
primitivo. O cuidado para com doentes e a incipiente medicina ­ As fraturas na Pré­História 
­ O que nos ensinam os ossos pré­históricos ­­ Freqüência do reumatismo ­­ A origem dos 
males que afetavam os homens ­ O tratamento primitivo e as deficiências – O destino das 
pessoas deficientes na Pré­História.
  2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes...
  O porquê das atitudes face a grupos minoritários Atitudes de aceitação, apoio e assimilação 
­ Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição ­ O extermínio de pessoas 
deficientes ­ A pessoa deficiente como objeto de ridículo ­ O povo inca e as trepanações 
cranianas. As deficiências físicas há mais de 20 séculos na Califórnia.

    Capítulo Segundo
    A Pessoa Deficiente dentro das Culturas Antigas...
  1. Os Egípcios e seus Vizinhos...
  A atenção médica no Egito Antigo ­ A medicina egípcia e os males incapacitantes ­ Os 
famosos papiros e os problemas de deficiências – As deficiências físicas no Antigo Egito ­ 
Os males que levavam a deficiências físicas ­ Casos concretos de lesões incapacitantes ­ A 
incidência de fraturas e outros problemas ­ Os anões na vida e na arte egípcias ­ Uma estela 
votiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro ­ As especialidades médicas e o 
problema das deficiências no Egito ­ Conceitos da medicina egípcia na Odisséia de Homero 
­ Anisis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C. ­ A deficiência visual na mitologia 
egípcia ­ Um coral de homens cegos para Amenhotep IV ­ As penas mutiladoras no Egito 
Antigo ­ Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas ­ Gaumata, 
um famoso mago de orelhas amputadas ­ Zópiro: tudo pela vitória de Dario I em Babilônia ­ 
A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C. ­ Os egípcios sob os olhos 
críticos de um Imperador romano.
  2. O Hebreus...
  Noé: a primeira pessoa com deficiência? ­­ As deficiências físicas entre os hebreus ­­ A 
cegueira de Isaac por 80 anos ­ Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza ­As 
leis criadas no deserto do Sinai – O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus ­ 
Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor ­ O preço da paz: um olho de cada habitante 
­ Mais normas e o papel do médico ­ As causas das deficiências entre os hebreus ­ A 
medicina dos hebreus ­ Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma? ­ Os cegos na 
cultura hebréia antiga ­ Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel ­ As pessoas 
deficientes nos Evangelhos ­ Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes ­ A cegueira de 
São Paulo, Apóstolo.
  3. Os Gregos...
  As deficiências na mitologia grega ­ Lenda e realidade: Hefesto na vida dos gregos ­ Outros 
seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais ­ As deficiências físicas na realidade 
da vida militar grega – As principais causas de deficiências na Grécia Antiga ­ Tirteu, poeta 
lírico com deficiência física ­ As leis que favoreciam as pessoas deficientes ­ A medicina 
grega e as deficiências físicas ­ A medicina de Hipócrates e as deficiências ­ Hipócrates e 
suas idéias quanto à epilepsia – Adaptações para prevenir deformações em crianças ­ 
Cláudio Galeno e sua importância ­ Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos ­ 
Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas ­ Pessoas deficientes trabalhando citadas 
em obras gregas ­ Creso, o mais feliz dos homens – A importância dos oráculos e adivinhos 
na vida grega ­ A história de um adivinho famoso que era cego ­ As próteses de 
Hegesístrato, adivinho grego ­ Peste Ateniense: o terror generalizado – A atenção a soldados 
feridos ou doentes: Anábase, de Xenofonte ­ Homens com sérias luxações nas pernas: 
sapateiros, ferreiros, seleiros ­ Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência 
­ Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes ­ As famosas instalações 
de Epidauros ­ O sistema de funcionamento de Epidauros ­ Plutão, deus da riqueza, curado 
por Asclépios ­ Os testemunhos das muitas curas ­ "Apothetai" do monte Taygetos, em 
Esparta ­ Como era o ambiente de Esparta ­ Outras formas de eliminar crianças defeituosas 
na Grécia Antiga ­ A história de Labda, mãe de um rei de Corinto ­ Os costumes em Atenas 
face a deficiências físicas – O legado da Grécia Antiga.
    4. Os Romanos...
    O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma ­ O destino das crianças 
deficientes em Roma ­­ O deus da medicina: Esculápio­­Horácio Cocles, um herói com 
deficiências­­Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C ­ Amputação como penalidade nas 
legiões romanas­­Caio Júlio César: atitudes face a seus males­­Ferimentos graves e 
deficiências físicas em batalhas ­­ Cláudio I, um imperador bastante controvertido ­­ Galba, 
imperador romano com diversas deficiências ­ Othon, um imperador nascido com 
malformações ­ Vitélio, imperador romano por oito meses­­Os milagres de Vespasiano ­ As 
deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural" ­As automutilações para dispensa 
do serviço militar­­Males incapacitantes e soluções paliativas ­ O problema da surdez na 
opinião de Cícero­­Deficiências múltiplas e morte ­ A medicina grega e sua infiltração no 
Império Romano ­ Médicos romanos famosos e os males incapacitantes ­ Os serviços 
médicos e os hospitais militares romanos ­ As "valetudinaria" descobertas em estudos 
arqueológicos ­ Os auxiliares de médicos nas legiões romanas O sistema hospitalar romano ­ 
O ensino da medicina no Império Romano Categorias de médicos em Roma ­ Implantação 
de serviços de assistência médica ­ A higiene e os banhos públicos—As pessoas deficientes 
nas artes romanas ­ Valores espirituais em pessoas deficientes.

    Capítulo Terceiro
    O Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média face as Pessoas Deficientes ...
  1. O Advento do Cristianismo ...
  As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos ­ Sétimo Severo, o sábio e firme 
imperador ­ "Praecepta Medica" e os males incapacitantes ­ Galério, imperador que morre 
com deficiência séria—Mutilações em cristãos: a Língua de São Romão ­ Alterações 
substanciais provocadas pelo Cristianismo ­­ Um bispo com deficiência: Castigo de Deus? ­
Dídimo, teólogo cego: Diretor da Escola de Alexandria ­­ Os primeiros hospitais cristãos e 
as pessoas deficientes ­ Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade ­ A 
hospitalidade cristã e o papel dos bispos ­ Notícias de organizações para pessoas deficientes 
­ A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos ­ Papel dos mosteiros na 
assistência aos miseráveis.
  2. O Império Bizantino e as Deficiências...
  Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra" ­ A pompa e a circunstância na corte bizantina 
­ As grandes e poderosas famílias do Império ­ A miséria na capital bizantina e as pessoas 
deficientes ­ As doenças e as deficiências físicas e sensoriais ­ Os miseráveis no "Reino de 
Deus" ­ As organizações assistenciais de Constantinopla ­ O imperador Justiniano e as 
pessoas enfermas e deficientes ­ O desenvolvimento da medicina e dos hospitais ­ A 
mutilação nas leis bizantinas ­ Períodos principais do Direito Penal Bizantino ­ A moderação 
nas penalidades impostas no tempo de Justiniano ­ As "Novas Constituições" de Leão III: 
"leis mais cristãs" ­ A defesa de um direito dos cegos: fazer testamento ­ Penalidade prevista 
para o vazamento dos olhos de outrem ­ Crime de rapto e sua condenação nos tempos de 
Leão III ­ General Belisário: lenda e realidade de sua carreira ­ Notícia sobre uma prótese no 
século IV ­­ Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes ­ Assistência a 
soldados a partir do século VI ­ Os primeiros hospitais da Terra Santa e de Bagdá ­ Castigos 
bárbaros levam a deficiências no Império Bizantino ­ A Imperatriz Irene e sua luta para 
conquista do trono ­ Os primeiros castigos contra conspiradores dentro da família ­ Punições 
severas continuam na corte bizantina ­ A selvageria de uma imperatriz na defesa de seu 
trono ­ Mutilação documentada em pintura do século IX ­­ Barbáries que levaram a 
deficiências físicas ­ Constantino VIII: "a violência dos fracos e dos poltrões" ­ Miguel V: 
imperador bizantino por apenas 132 dias ­Constantino IX, Monômaco: limitações físicas 
muito sérias ­­ Romano IV, Diógenes: presa de um soldado com deficiências ­ Enrico 
Dandolo: "doge" veneziano cego ­ Isaac II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador ­ 
Outros eventos que levaram a deficiências físicas e sensoriais ­ Ato friamente planejado 
instala a Dinastia dos Paleólogus ­­ O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389).
  3. As Pessoas Deficientes na Idade Média...
  A criação de hospitais e abrigos para pobres ­ Um santo cego na história da Bretanha do 
século VI ­ Santo Egídio, padroeiro dos deficientes ­ Assistência aos pobres pela Igreja ­ A 
mutilação como castigo no século VII ­ O milagre de fazer um mudo falar – Amputações 
como penalidade por crimes cometidos ­ A evidência de dupla amputação: século VII ­ Os 
hospitais criados pela Igreja na Europa ­ A profissão de massagista no Japão do século IX ­ 
Bispo Hincmar, vítima da crueldade de seus algozes ­ Deficiência física na mitologia 
germânica ­ As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média ­ Luiz III, o "Cego",
rei da Provença e da Itália ­ Deficientes físicos impedidos de participar da Primeira Cruzada 
­ Barbeiros­cirurgiões na Idade Média ­ A evolução dos hospitais medievais e as eficiências 
­ O estigma da hanseníase durante toda a Idade Média ­ Ricardo Coração­de­Leão e sua 
vingança ­ Hospitais proliferam no Oriente Próximo: século XIII ­ Os progressos da 
medicina até o século XIV ­ Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo de 
Deus"? ­ A medicina qualificada e a falta de assistência geral ­ As soluções populares e as 
crendices ­ O destino das pessoas deficientes na Idade Média ­ O significado das eficiências 
na Idade Média ­ Os privilégios para cegos durante a Idade Média ­ Dois heróis históricos 
com deficiências nos séculos XIII e XIV – Os hospitais face às pessoas deficientes nos 
séculos XIV e XV.

    Capítulo Quarto
    A Pessoa Deficiente do Renascimento até o Século XIX ...
  O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença ­ Os problemas dos deficientes 
auditivos no século XVI ­ A pintura renascentista e as pessoas com deficiências ­ Ambroise 
Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia" ­ Antonio de Cabezón: compositor cego – 
Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro" ­ O problema da mendicância organizada nos 
séculos XVI e XVII ­ A grande malha organizacional dos miseráveis na França ­ O 
problema da mendicância organizada em outros países ­ Deficientes mentais no século XVI: 
entidades não­humanas ­ A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra – O 
atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI – O "Grand Bureau des 
Pauvres" da França Classificação de indigentes na França no século XVI – Luiz de Camões, 
o poeta épico português por excelência ­ Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha – 
Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII ­ Galileo Galilei, matemático, 
astrônomo e físico ­ O contínuo problema dos soldados mutilados ­ Os trabalhos com os 
deficientes auditivos no século XVII ­ Johannes Kepler, astrônomo alemão ­ Padre Lejeune, 
maior pregador do século XVII ­ Novas formas de utilizar os hospitais ­ As deficiências 
físicas em peças de Shakespeare ­ A superação de deficiências no século XVII: um exemplo 
­ John Milton: o significado de sua cegueira ­ São Vicente de Paulo: suas obras face às 
tendências do século XVII ­ A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra ­ O nascer da ortopedia 
como especialidade ­­ Quatro cegos brilhantes: Sauderson, Metcalf, Euler e Blacklock ­ 
Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas ­ A reformulação hospitalar inglesa ­ A 
"Ortopedia" de Nicholas Andry ­ Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega ­ A 
assistência aos cegos: final do século XVIII ­ Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos" ­­ 
Educação dos deficientes auditivos no século XVIII ­ Os primeiros sinais de assistência nas 
Américas ­ O desencontro de atitudes na Europa ­ Inovações nas "Leis dos Pobres" ­ 
Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes ­ Hospitais públicos na França: final do 
século XVIII ­­ Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX ­ Ludwig van 
Beethoven: a trágica surdez ­Nelson, herói da Marinha Britânica ­ Os progressos nos 
Estados Unidos da América do Norte ­ Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos 
deficientes ­ Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte ­ Madre Agostinha, fundadora das Irmãs 
Irlandesas da Caridade ­ Lord Byron, poeta e satirista inglês ­ Antônio Feliciano de Castilho, 
um dos maiores literatos portugueses ­ Outros cegos do século XIX que ficaram famosos ­ A 
ortopedia do século XIX e as deficiências físicas ­ Atendimento mais especializado aos 
cegos ­ A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho ­ O problema dos surdos e 
dos surdos­mudos e suas soluções – Proteção ao acidentado de trabalho por legislação 
recente – A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes ­ Reabilitação 
desabrocha num Centro de Atendimento, em Cleveland ­ Helen Keller, cega, surda e muda: 
um marco indelével.

    Capítulo Quinto
    A Pessoa Deficiente no Brasil Colonial e Imperial...
  Os primeiros hospitais do Brasil Colonial ­ Anchieta e seu exemplo de assistência aos 
doentes ­­ Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil ­­ Cegueira noturna no Brasil 
dos séculos XVI e XVII ­­ Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil ­­
Médico com deficiência física na História de Pernambuco ­ O problema das paralisias no
Brasil do século XVII ­­ A medicina do século XVIII entre nós – Males limitadores que 
afetavam muito os negros escravos ­ Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios ­­
Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho" ­­ Uma primeira tentativa em projeto de lei: 
ajuda a cegos e aos surdos ­­ O problema das amputações do século XVI ao XIX – A 
influência européia no Brasil ­­ Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom 
Pedro II. 

    Capítulo Sexto
    O Século XX e os Caminhos da Reabilitação no Mundo...
  O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século­­EUA: um primeiro 
congresso mundial de deficientes auditivos­­A gradativa implantação da reabilitação­­As 
tentativas iniciais para a solução do problema de trabalho­­Implantação de serviços de 
naturezas diversas­­Os esforços de pós­guerra­­Surge a "Easter Seal Society" ­ O Código de 
Direito Canônico e os bloqueios a homens deficientes­­Reconhecimento das verdadeiras 
necessidades das pessoas deficientes—A previdência social e os acidentes de trabalho­­A 
reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército­­A retração dos anos trinta e as 
pessoas deficientes nos EUA­­A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação ­­ A 
criação de sociedades internacionais privadas ­ O envolvimento das organizações 
intergovernamentais ­­ Centros de demonstração de técnicas de reabilitação­­O Instituto de 
Reabilitação: vida e morte­­A evolução mais recente da reabilitação.

    Capítulo Sétimo
    1981­­Ano Internacional das Pessoas Deficientes...
  As declarações de direitos e sua importância ­­O significado de um "Ano Internacional" ­­ 
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais ­­ O conteúdo básico das 
idéias consensuais para um plano de ação mundial ­ As recomendações para atividades a 
nível nacional ­­ O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil ­­ A 
Comissão do Estado de São Paulo e seu relatório ­ As propostas para ação em São Paulo ­­ 
As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual ­­ Dois Encontros Regionais 
discutem as propostas da Comissão Estadual­­Conscientização: a meta para 1981 ­­O apagar 
das luzes para o Ano Internacional ­­ Recomendações finais de todas as Comissões: um 
desafio para o futuro.

    Bibliografia da Primeira Parte...

    SEGUNDA PARTE
    A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE ­­ O DESAFIO 
DE NOSSOS DIAS

    Introdução ...
    Capítulo Primeiro
    As Causas da Marginalidade das Pessoas Deficientes ...
  Normal ou anormal: Eis o problema ­­ As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis ­­ A 
questão em termos de Brasil ­­ A visibilidade da deficiência ­­ O problema do "comum" e do 
"normal" ­­ A grande variedade de condições marginalizantes ­­ Como classificar as 
condições marginalizantes (desvios intelectuais, desvios motores, desvios sensoriais, desvios 
funcionais, desvios orgânicos, desvios de personalidade, desvios sociais e problemas de 
idade avançada) ­ Outras condições que levam à marginalidade­­Deficiência e incapacidade: 
distinção importante.

    Capítulo Segundo
    O Significado da Integração Social das Pessoas Deficientes...
  A complexidade do desafio­­A integração social e seus "porquês" (O elevado número de 
pessoas consideradas como "deficientes", o valor próprio do ser humano, o valor econômico 
da mão­de­obra não utilizada)­­Os princípios básicos da reabilitação ­­ O despreparo nos 
programas reabilitacionais ­­ A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação­­Os 
programas necessários em nosso meio.

    Capítulo Terceiro
    Adequação Pessoal ­­ O Objetivo Último da Reabilitação ...
  Impedimento, deficiência e incapacidade ­­ Programas de reabilitação global ­­ 
Condicionamento físico em reabilitação ­­ O ajustamento psico­social no processo de 
reabilitação ­­ Ajustamento à vida de trabalho ­­Hábitos, atitudes e comportamentos­­A 
adequação pessoal e seu significado ­­ Adequação pessoal­fator decisório na integração 
social ­­ Anexo I (Indicativo para Identificação de Comportamentos) ­­ Anexo II (Lista de 
Comportamentos ou Hábitos Inadequados).

    Capítulo Quarto
    Preparo para a Vida de Trabalho
  Aconselhamento para a vida de trabalho (Características pessoais, experiência educacional 
e profissional, aptidões e potencialidades, interesses, capacidade física, capacidade mental) ­
­ Avaliação e ajustamento ao trabalho (potencial do indivíduo para o trabalho, significado 
para o indivíduo, o processo de ajustamento à vida de trabalho, a importância dos 
instrumentais de avaliação) ­­ O treinamento profissional em programas de reabilitação­­
Colocação em emprego­­Anexo I (Relatório de Aconselhamento em Reabilitação­
instrumental) ­­ Anexo II (Relatório de Avaliação Inicial­instrumental)­­Anexo III (Relatório 
Evolutivo do Caso­instrumental).

    Capítulo Quinto
     Equipes de Reabilitação nos Programas de Hoje ...
  trabalho de equipe em reabilitação­­As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe ­­A 
liderança de uma equipe de reabilitação­­A ausência da coordenação formal de uma equipe ­
­ As dificuldades principais em coordenar uma equipe­­Problemas típicos encontrados num 
trabalho de equipe (falta de confiança e respeito mútuos, excesso de importância à própria 
atuação, desconhecimento das demais profissões, falta de atitudes de cooperação sistemática, 
comportamentos inadequados numa equipe, falta de experiência em trabalho de equipe, 
estilo inadequado de relatório, metodologia de cooperação quase inexistente, jogos de 
prestígio e de poder e seus malefícios, ausência de uma boa política de pessoal)­­A 
necessidade de tratamento global do cliente ­­Superposição de atividades em equipes de 
reabilitação ­­ O trabalho de equipe: perspectivas.

    Capítulo Sexto
    A Avaliação e o Controle nos Programas de Reabilitação...
  Os profissionais envolvidos em reabilitação­­A falta de especialização e suas 
conseqüências­­Métodos de avaliação em centros de reabilitação­ Modelos de avaliação­­
Sistemas de avaliação (O “público” em geral, o "público" financiador, o "público" clientela, 
o "público" das famílias da clientela, o "público" das entidades) ­ Conseqüências de uma 
avaliação (decisão política, decisão estratégica, decisão tática) –Controle num centro de 
reabilitação­­Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação­­Características do 
sistema de controle.
    Bibliografia da Segunda Parte...

    ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

  Porteiro egípcio com deficiência física ...
  Harpista cego no Antigo Egito ...
  Soberano assírio cegando prisioneiros de guerra...
  Paralítico de Cafarnaum apresentado a Jesus.................
  Ulisses consultando o cego adivinho Tirésias........
  Mosaico de Lescar (França)­­Homem com deficiência física . . .
  Coluna de Trajano­­Atendimento a feridos em batalha ....
  Exorcismo de um catecúmeno com deficiências físicas .....
  Castigo na Idade Média: amputação de mão ..........
  Negociações com cruzados­­Ancião com muletas........
  Hanseniano e deficiente físico impedidos de entrar em cidade . .
  Meios de locomoção e transporte de pessoas com deficiências . .
  O transporte de pessoas deficientes no século XVI ..........
  A mão artificial do pequeno Lorenense ..........
  Cegos, deficiente físico e um dos famosos "Sabouleux" . .
  Mendigos com deficiências no período pós­Renascença.
  Restos da batalha de Lens ­ soldados com deficiências. . .
  Deficiente físico vindo da Guerra do Paraguai .....

    A ORAÇÃO DA PESSOA DEFICIENTE

    Pedi a Deus forças para poder realizar muitas coisas
    E fui feito fraco para poder aprender humildemente a obedecer;
    Pedi­lhe ajuda para que eu pudesse fazer coisas grandiosas
    E foi­me dada a enfermidade para que eu pudesse fazer coisas melhores;
    Pedi riquezas e bens para que eu pudesse ser feliz,
    Foi­me dada a pobreza para eu poder ser sábio;
    Pedi poderes a fim de receber a admiração dos homens,
    Foi­me dada a fraqueza para eu poder sentir a necessidade de Deus;
    Pedi­lhe tudo o que fosse necessário para eu gozar a vida
    E foi­me dada a vida, para eu poder gozar de todas as coisas.
    Eu não obtive nada do que havia pedido,
    Mas recebi tudo o que eu havia almejado.
    A despeito de mim mesmo quase,
    Minhas silenciosas preces foram atendidas.
    E dentre todos os homens
    Sou o mais ricamente abençoado!...

    (Autor desconhecido ­ Texto divulgado pelo Institute of Rehabilitation Medicine da New 
York University e pela Abilities, Inc. de Albertson ­ Long Island­NY EUA)
            APRESENTAÇÃO

    Para reforçar a credibilidade em torno do que dizem, certos catedráticos costumam se 
apresentar dizendo que têm tantos anos de cátedra, de cadeira. Se isto ajuda na apresentação 
de "A EPOPÉIA IGNORADA", direi que tenho quase vinte anos de . . . cadeira de roda! 
Direi também que este é o livro que gostaria de ter lido logo no início de minha pequena 
epopéia. Quantas dificuldades teria superado com menos lágrimas e decepções não tantas! E 
quantas palavras teriam poupado comigo alguns médicos, psicólogos e fisioterapeutas, se 
também eles tivessem lido obras como esta! Mas obras como esta, tão completa, humana, 
formativa e informativa sobre certas deficiências que acompanham a Humanidade desde seu 
berço, não existiam . . . até agora (É por isto, talvez, que existem tantos deficientes, físicos e 
sensoriais, incapazes de conviver mais naturalmente com suas deficiências). Mas agora 
chega Otto Marques da Silva com a História na mão. E a História é mestra. (Aqui ela ensina 
que, se é duro constatar que perante a paraplegia, por exemplo, a medicina tradicional ainda 
é aprendiz, ensina também ­ e com muito jeito e humanismo ­ a evitar decepções e conviver 
dignamente com tais deficiências). Otto nos leva pela mão através da História da 
Humanidade e nos faz conhecer gente que, sem condições físicas, fizeram capítulos 
importantes da História. Competência para isso o Otto tem: formado pela Universidade 
Católica de São Paulo e pela Universidade de New York na área de Serviço Social e de 
Reabilitação, contratado pela Organização das Nações Unidas como especialista nesses 
assuntos, trabalhou em colaboração com programas de 29 países na implantação de projetos 
para a reabilitação profissional de pessoas deficientes.
    Atualmente Otto é Diretor executivo da SORRI­SÃO PAULO (Sociedade para a 
Reabilitação e Reintegração do Incapacitado: "uma experiência que deu certo").
    Já que me coube a honra de apresentar "A EPOPÉIA IGNORADA", aproveito a 
oportunidade para convidar meus colegas deficientes físicos e, sobretudo, os profissionais 
ligados à saúde, a tornarem menos ignorada esta grande epopéia que é a reabilitação e 
reintegração da pessoa à sociedade. E meus agradecimentos a você, Otto,
por este importante trabalho, e à União Social Camiliana por tê­lo editado.

            INTRODUÇÃO

    Uma boa porcentagem de nossa população ficou muito surpresa com dados divulgados 
por todos os meios de comunicação ao final de 1980 quanto ao universo das pessoas que 
viviam as conseqüências de males incapacitantes, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. 
Esse esforço de divulgação aconteceu devido aos preparativos para 1981, o Ano 
Internacional das Pessoas Deficientes. Até então muito pouca divulgação tinha ocorrido 
quanto à verdadeira extensão de problemas dessa natureza e de repente atirava­se à 
população uma assustadora porcentagem: 10% de nossa população têm deficiências!
    Enquanto muitos espantavam­se com o incrível volume de pessoas envolvidas na questão 
de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais, os céticos, que estão sempre muito 
desconfiados de porcentagens mal calculadas e por vezes improvisadas para assustar os 
incautos, não chegaram a se impressionar. Comentavam eles, que se essas estimativas mal 
fundamentadas fossem rigorosamente levadas a sério, nem 10% de nossa população estaria 
livre de problemas graves ou de estigmas, tais como alcoolismo, abuso de drogas, 
prostituição, deficiência mental, psicopatia, neurose, tuberculose, tensão grave, cegueira, 
surdez, reumatismo, câncer, tantas são as porcentagens alegadas.
    Pode bem ser verdade que não temos 10% de nossa população com deficiência certamente 
que poderemos ter mais ou ter menos! Não há dados oficiais a respeito, não sendo possível 
contestar ou confirmar. A precisão da cifra, que não passa de uma estimativa internacional 
para dar o toque inicial a uma campanha de conscientização, não tem muita relevância, na 
verdade. O que importa é que todos fiquemos muito cônscios das dificuldades sentidas pelas 
pessoas que não têm a capacidade máxima de uso do seu corpo ou de sua inteligência, ao 
tentar seu pequeno lugar ao sol. E mais ainda, é fundamental que todos saibamos que um 
bom volume de providências para eliminação das desvantagens que elas sentem depende do 
envolvimento de cada um, individualmente, e não apenas de figuras abstratas e impessoais 
de "entidades" ou do "governo".
    Na verdade, essas estimativas mundiais,que foram divulgadas por documentos formais da 
ONU e de suas Agências Especializadas, têm alertado muita gente para a existência de um 
certo percentual de pessoas que são marginalizadas injustamente devido a problemas físicos 
ou mentais, todas elas detentoras de seus direitos fundamentais como seres humanos que 
são.
    Todos aqueles que sentem na própria carne essa rejeição e que tem parentes ou amigos 
nessa situação, abismam­se com a lentidão incrível de reação da sociedade como um todo 
em aceitar sua parcela de responsabilidade na solução desses problemas, sem atinar com as 
causas dessa espécie de imobilismo. Alega­se sempre falta de informações oficiais, falta de 
um posicionamento político, falta de condições para o estabelecimento de prioridades por 
parte dos órgãos do governo. E justifica­se a falta de um envolvimento maior chamando a 
atenção para o vasto programa de reabilitação profissional mantido pelo INPS em muitas 
capitais e cidades maiores do Brasil e seus suntuosos e caríssimos centros de reabilitação 
que dão atendimento apenas a casos de acidentados do trabalho.
    No entanto, não é só por inexistirem informações precisas que a nossa sociedade quase 
que ignora o problema. Há, bem no fundo, um sentimento velado de rejeição contra tudo o 
que é diferente, que é "defeituoso" e que causa certo mal­estar. Rejeita­se, afasta­se do 
convívio de um lado, mas procura­se também, de outro, manter algumas organizações que se 
dedicam ao problema sob pretextos os mais variados. Alguns trabalham e lutam pela causa 
das crianças carentes e portadoras de deficiências porque têm um parente com deficiência; 
outros o fazem devido a uma formação profissional; outros envolvem­se para recuperar 
investimentos financeiros em pequenos centros de finalidade lucrativa. E, embora em 
número reduzido, encontraremos também aqueles que se dedicam ao trabalho com pessoas 
deficientes devido a um posicionamento pessoal sério e muito bem pensado.
    Precisamos, todavia, ceder à evidência e reconhecer que faltam requisitos básicos para o 
desenvolvimento seguro de programas mais significativos do que aqueles que nossa 
sociedade tem mantido. Dentre esses requisitos inexistentes destacamos o seguinte: não há 
entre nós uniformidade e solidez de conhecimentos quanto à seriedade da situação, mesmo 
entre algumas pessoas mais envolvidas. Há por vezes uma noção deturpada quanto à 
realidade dos problemas e suas melhores e mais recomendáveis soluções por parte daqueles 
que são detentores de condições para muito sérias tomadas de posição e que certamente 
poderiam dar às pessoas deficientes tudo aquilo de que elas precisam para uma participação 
social efetiva.
    Aqueles que trabalham em programas reabilitacionais de caráter global ou que têm uma 
formação técnica adequada detectam com muita precisão atitudes descabidas, programas 
superados, posicionamentos desastrosos, que levam à confusão, ao fracasso técnico, ao 
descrédito e, pior do que tudo, ao atendimento falho e inadequado.
    A análise do quadro completo da evolução, do progresso ou do retrocesso no atendimento 
a pessoas deficientes no Brasil é uma tarefa impossível, enquanto que um simples olhar para 
o futuro poderá nos parecer nebuloso e sinistro, se algo de decisivo não for feito com 
urgência. Talvez o que realmente poderá nos ajudar seja um olhar demorado para o passado, 
pois sempre houve pessoas deficientes no mundo e as que sobreviveram fizeram­no de 
alguma forma com a ajuda de alguém, além de um enorme esforço pessoal. 
    A sobrevivência das pessoas com deficiências aqui no Brasil e em boa parte do mundo, na 
grande maioria dos casos, tem sido uma verdadeira epopéia. Essa epopéia nunca deixou de 
ser uma luta quase que fatalmente ignorada pela sociedade e pelos governos como um todo­­
uma verdadeira saga melancólica­­assim como o foi em todas as culturas pelos muitos 
séculos da existência do homem. Ignorada, não por desconhecimento acidental ou por falta 
de informações, mas por não se desejar dela tomar conhecimento.
    Ao tentarmos voltar no tempo, todavia, algumas questões afloram de imediato: O que 
pensavam nossos antepassados distantes de pessoas que tinham defeitos físicos ou 
problemas mentais? O que faziam as sociedades hoje inexistentes com pessoas portadoras de 
deficiências?
    E talvez as suposições do que seriam as respostas a essas perguntas indiquem uma certa 
posição nossa cultural, ou quem sabe pessoal, velada, secreta, muito íntima ­ e 
preconceituosa!
    Muitas outras perguntas podem ser levantadas, como, por exemplo: Qual tem sido o 
destino de crianças nascidas com deformações entre culturas primitivas que ainda hoje 
existem? Qual terá sido o destino de soldados com seus braços ou mãos decepados nos 
violentos combates corpo a corpo das campanhas romanas, gregas, egípcias, hebréias? Como 
foi possível a alguns poucos homens passar para a História, apesar de suas deficiências? 
Mesmo que poucos, o que tornou esses homens e mulheres diferentes para serem aceitos, 
assimilados e respeitados?
    Anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças 
graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, 
são tão antigas quanto a própria humanidade. Através dos muitos séculos da vida do homem 
sobre a Terra, os grupos humanos de uma forma ou de outra tiveram que parar e analisar o 
desafio que significavam seus membros mais fracos e menos úteis, tais como as crianças e 
os velhos de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal por vezes misterioso ou de algum 
acidente, passavam a não enxergar mais as coisas, a não andar mais, a não dispor da mesma 
agilidade anterior, a se comportar de forma estranha, a depender dos demais para sua 
movimentação, para alimentação,
para abrigo e agasalho.
    Muitos dos que começam a estudar o assunto deduzem apressadamente que o indivíduo 
doente, deficiente ou portador de um problema sério qualquer, era exterminado pelo grupo 
primitivo. Outros acham que não. Apresentam como prova eventual o aparecimento e a 
evolução da medicina, a existência de esqueletos com sinais de fraturas solidificadas e o 
achado de crânios trepanados.
    O levantamento histórico apresentado na primeira parte desta obra, cobrindo desde os 
tempos sem registro da Pré­História até o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981) 
não teria muita utilidade nem justificativa sem objetivos mais amplos e mais ambiciosos. Ele 
poderá, por exemplo, levar a um entendimento de certas atitudes e de muitas das 
preocupações de nossos dias quanto a deficiências que atingem o ser humano, pois de acordo 
com a incisiva afirmação do historiador Will Durant, "o estudo da Antigüidade perde o 
valor, exceto quando se torna um drama vivo, ou quando lança luz em nosso viver 
contemporâneo".
    Há, no entanto, outros motivos para o trabalho apresentado na primeira parte deste livro, e 
dentre eles um poderá ser expresso com palavras escritas por Flávio Josefo, historiador 
judeu do primeiro século da Era Cristã: "Aqueles que se determinam a escrever história a 
isso nem sempre são levados pela mesma razão". E, ao alinhar algumas dessas possíveis 
razões, indica como última a seguinte: “... e outros, por fim, o fazem porque não podem 
tolerar que coisas dignas de serem conhecidas fiquem sepultadas no silêncio".
    No entanto, não é apenas a curiosa, tocante e por vezes trágica referência histórica que 
tem relevância neste trabalho sobre as pessoas deficientes no mundo de ontem e de hoje. 
Ressaltemos que, dentre os variados aspectos de toda a questão que não podem de maneira 
alguma ficar "sepultados no silêncio", esquecidos, deturpados ou minimizados, estão aqueles 
que retratam a maneira como a humanidade de hoje vê as pessoas portadoras de deficiências 
e também aqueles relacionados com os caminhos novos ­ técnicos, bem cuidados e 
criteriosos da chamada "reabilitação" ­ para colaborar com essas mesmas pessoas para 
poderem ser inseridas em determinado contexto, assumindo seu papel com dignidade e 
competência.

            PRIMEIRA PARTE
            A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E 
DE HOJE

    "Toda filosofia depende da História" (Nietzsche)

    "O estudo da antigüidade perde o valor, exceto quando se torna um drama vivo, ou 
quando lança luz em nosso viver contemporâneo" (Durant)

            CAPÍTULO PRIMEIRO
            A PESSOA DEFICIENTE NO MUNDO PRIMITIVO

    Se tomarmos, como elemento de classificação das diversas etapas da vida do homem 
sobre a Terra, o material principal e mais relevante com que procurava ele fabricar todos os 
seus utensílios e instrumentos destinados à sua sobrevivência e conforto, poderemos dividi­
las em:
  ­­ Idade da Pedra Lascada
  ­­ Idade da Pedra Polida
  ­­ Idade do Bronze
  ­­ Idade do Ferro.
    A Idade da Pedra Lascada corresponde a uma boa parte do também chamado Período 
Paleolítico ­­ uma vastidão de tempo, com milhares de séculos muito obscuros, iniciados 
provavelmente há mais de um milhão de anos atrás. A Idade da Pedra Polida já corresponde 
aos Períodos conhecidos como Mesolítico e Neolítico, isto é, a épocas correspondentes a 
10.000 anos antes da Era Cristã até 2.500 a.C.
    Os tempos que costumamos chamar de históricos começaram a ser vislumbrados com a 
Idade do Bronze e definidos com a Idade do Ferro.
    Essas Idades ou Períodos indicam graus de desenvolvimento e não necessariamente 
períodos cronológicos da história do homem sobre a Terra. Esses graus de desenvolvimento, 
nos quais alguns poucos povos até hoje existentes encontram­se mergulhados por milênios, 
foram por vezes atingidos com rapidez por algumas raças.
    Para ilustrar essa disparidade de momentos de desenvolvimento basta lembrar que, 
enquanto os egípcios já viviam na Idade do Ferro, os gregos estavam vivendo sua Idade do 
Bronze e as tribos bárbaras do norte europeu viviam na Idade da Pedra Polida. Em regiões 
onde a natureza sempre foi mais pródiga e o tempo mais acolhedor e ameno, a velocidade do 
desenvolvimento foi muito menor. Ainda hoje vemos em zonas tropicais ou temperadas do 
globo terrestre ­­ inclusive no Brasil ­ povos que vivem vidas altamente primitivas e sem 
qualquer contato com a civilização, como homens das Eras Mesolítica e Neolítica.

    ­ *O homem neolítico no Brasil de hoje.*
    "No dia 8 os kranhacãrores estão de volta ao mesmo local. Nova correria no 
acampamento. Orlando, que havia rumado para lá logo que soube do primeiro contato, 
apanha os presentes e corre para a canoa. Avança lépido pela picada, apesar do corpo 
volumoso e apesar de quase não enxergar com um olho, operado de catarata. A canoa sai 
carregada de gente. Os kranhacãrores estão na outra margem, a 100 metros. Entre a canoa e 
os kranhacãrores, 100 metros de água e 30.000 anos de cultura. É o homem que já ronda as 
estrelas, atrás do seu irmão da Idade da Pedra Polida" ... "entre os presentes há um machado 
que o kranhacãrore mais jovem apanha e examina com curiosidade. Solta um grito, 
interpretado como de contentamento e vai para junto de uma árvore. Ergue os braços rígidos 
e vibra um golpe vigoroso, soltando outro grito. O machado escorrega de suas mãos, indo 
parar perigosamente perto de seu pé".
    "E se o kranhacãrore se ferir e interpretar aquilo como uma artimanha dos brancos? é o 
que a maioria pensa. Mas nada acontece. O kranhacãrore ergue o machado novamente e 
encaixa um golpe profundo no tronco. A pancada ecoa pela mata e o kranhacãrore dá o 
grande salto da Idade da Pedra para a Idade do Bronze" (in "Realidade", de abril de 1978, 
reportagem e texto de Luigi Mamprin).

    ­ *As primeiras civilizações do mundo.*
    As primeiras civilizações de alguma sofisticação começaram a desenvolver­se nas 
proximidades dos rios e em especial junto aos grandes rios que banhavam terras planas e de 
boa qualidade, tais como o Eufrates, Tigre, Nilo, Ganges, Amarelo e Indo.
    Foi exatamente ao longo desses grandes rios que, no ponto do Oriente conhecido como 
"Crescente Fértil" ­ situado entre o norte da África e o Oriente Médio ­­ logo distinguiram­se 
muitos grupos humanos que, devido às características de então e ao seu isolamento quase 
que contínuo, além de um incontido receio pelo desconhecido, formaram as primeiras 
civilizações: egípcios, assírios, babilônios, hebreus, fenícios, mesopersas e outros.
    Do Oriente, as facilidades de vida individual e de grupo conhecidas por nós como 
civilização foram levadas muito vagarosamente para o Ocidente, tendo chegado 
primeiramente à Grécia, antes de chegar a Roma, o que sucedeu diversos séculos depois. De 
Roma elas foram levadas também às regiões mais ocidentais da Europa, tendo afinal 
chegado ao Novo Mundo e à Oceania.

    1. O Alvorecer da Humanidade.
    Nada de concreto existe quanto à vida de pessoas com deficiências físicas ou mentais, do 
velho e do doente nos primeiros nebulosos e muitas vezes enigmáticos milênios da vida do 
homem sobre a Terra, a não ser supostas situações que estão baseadas em indícios 
extremamente tênues. É evidente que fatos concretos ou situações comprovadas de vida, em 
toda a fase pré­histórica da História da Humanidade, são impossíveis de serem 
estabelecidos, mesmo com o magnífico concurso dos sábios que dominam muito bem toda a 
ciência arqueológica e áreas afins.
    Poderemos, sim, tentar imaginar o ambiente de então e o que ele poderia significar para a 
sobrevivência dos grupos humanos como um todo, elaborando um pouco quanto às 
hipotéticas situações a serem enfrentadas por um eventual portador de alguma deficiência 
limitadora de suas funções básicas daquelas mesmas épocas.

    ­ *Os males incapacitantes de sempre*
    Lembremo­nos de início que muitos dos males incapacitantes de hoje sempre existiram, 
desde os primeiros dias do homem sobre a Terra. Muitos deles por muitos milênios foram 
fatais devido à falta de recursos no seio das populações primitivas. Apesar de nos 
encontrarmos diante da impossibilidade de citar com segurança os males que rapidamente 
deterioravam a vida do homem pré­histórico, ainda achamos válido, apenas para ajudar 
nossa imaginação e nosso raciocínio, anotar mentalmente que os seguintes males sempre 
foram e sempre serão muito sérios para a sobrevivência do homem, ou para sua integração 
ao seu grupo principal como elemento participante:

  ­­ Amputações em vários níveis e membros
  ­­ Artrites em suas várias caracterizações
  ­­ Cegueira ou limitações de visão
  ­­ Defeitos de nascimento ou malformações
  ­­ Surdez ou reduções graves de audição
  ­­ Afasia ou problemas de comunicação oral
  ­­ Desordens sanguíneas graves
  ­­ Problemas cerebrais
  ­­ Câncer nas muitas de suas caracterizações
  ­­ Queimaduras em vários graus e localizações
  ­­ Desordens cardíacas de gravidades diversas
  ­­ Paralisia cerebral de intensidades diversas
  ­­ Fibrose cística
  ­­ Problemas de abuso de medicamentos ou de álcool
  ­­ Epilepsia
  ­­ Diabete
  ­­ Problemas renais
  ­­ Doenças mentais das mais variadas intensidades
  ­­ Deficiências mentais nos variados graus
  ­­ Esclerose múltipla
  ­­ Distrofia muscular
  ­­ Gota em suas manifestações mais graves
  ­­ Desordens neurológicas diversas
  ­­ Fraturas e problemas ortopédicos os mais variados
  ­­ Problemas respiratórios e/ou pulmonares
  ­­ Paralisias (paraplegia, tetraplegia, hemiplegia)
  ­­ Doenças venéreas
  ­­ Fissuras lábio­palatais
  ­­ Hemofilia
  ­­ Síndromes incapacitantes diversas
  ­­ Hanseníase
  ­­ Paralisia infantil
  ­­ Incapacidades múltiplas
  ­­ Doenças crônicas
  ­­ Doenças dermatológicas transmissíveis
  ­­ Idade avançada

    Para vários dos males indicados poderemos de alguma forma imaginar as soluções dadas 
durante aquelas longínquas épocas, por paralelos ou comparações que fazemos com 
populações de cultura primitiva ainda existentes. Para alguns males é muito difícil 
elaborarmos qualquer quadro, como em casos de ósteoartrite. Existe evidência de sua ação 
não só no esqueleto de um homem de Neanderthal, de mais de 40.000 anos atrás, mas 
também de sua devastadora existência em dinossauros do período Mesozóico.

    ­ *O ambiente físico*
    Há muitos milhares de anos o homem vivia desprotegido num mundo hostil, habitando em 
abrigos naturais de pedra ou em cavernas. O número dessas cavernas era exíguo para toda a 
humanidade francamente em expansão e às vezes imobilizada por invernos rigorosos. É 
praticamente certo que as melhores e mais protegidas cavernas foram sendo ocupadas e 
defendidas por muitas gerações de um mesmo grupo.
    Dentre os primeiros habitantes de cavernas que povoaram esparsamente a Europa pré­
histórica, devemos destacar o Homem de Neanderthal, que viveu há uns 70.000 anos. Pelos 
achados ocorridos em cavernas da Europa utilizadas naquelas épocas, podemos chegar a 
algumas conclusões. Uma delas é que em geral tratava­se de grupos humanos que adotavam 
cuidados básicos muito rudimentares com tudo. Em boa parte dos casos estudados, eram 
seres humanos pouco dados à ordem ou à limpeza de seus ambientes. Praticamente tudo o 
que utilizavam ou que deixavam de usar por ser considerado como inútil, e mesmo restos de 
animais devorados eram jogados fora em cantos das cavernas habitadas, o que levava à 
formação gradativa de camadas de depósitos de detritos, incluindo neles pedaços de armas, 
ossos, cinzas de fogueiras destinadas ao aquecimento ou ao preparo de alimentos.
    Algumas das cavernas utilizadas pelo homem primitivo eram grandes, escuras e um tanto 
tenebrosas, mesmo para os dias de hoje. Mas seus ocupantes viviam apenas nas áreas 
próximas à entrada, como bem o demonstram os estudos arqueológicos. Lá eles se sentiam 
não só protegidos do vento, da chuva, do calor e do frio, como também das incertezas da 
noite, das grandes tempestades, dos animais ferozes e dos inimigos que continuamente 
procuravam desalojá­los.
    Os homens hoje conhecidos como Cro­Magnon, surgidos ao final da Idade do Gelo há 
mais ou menos 30.000 anos e muito parecidos com algumas raças de homens da atualidade, 
começaram a povoar esparsamente diversas partes da Europa, pois aos poucos tinham 
conseguido explorar e descobrir locais mais longínquos de seus abrigos originais, 
permanentemente ameaçados por tribos rivais. Tinham aprendido a construir abrigos 
provisórios de peles de animais abatidos e tinham também descoberto sítios mais adequados 
para caçadas mais promissoras. Esses foram os homens que começaram a documentar o 
mundo que os cercava, os animais que caçavam ou que os ameaçavam nas caçadas sem fim, 
para as quais plena agilidade, força e domínio do corpo eram fundamentais, num esforço de 
grupo. Bisões, mamutes, ursos, velozes javalis e ágeis cervos foram desenhados, entalhados 
e mesmo pintados com pormenores de cores vivas em pedras, pedaços de osso, paredes e 
tetos das cavernas. Esses desenhos e peças entalhadas são encontradiços principalmente nas 
cavernas ao sul da França e ao norte da Espanha.
    O interessante é que essas obras, em quase sua totalidade, não estão nem foram 
encontradas na boca das cavernas, mas em pontos bem mais afastados do ambiente habitado, 
e às vezes à beira de grandes buracos, em pontos de difícil acesso até para os nossos recursos 
de hoje, inclusive nos tetos das cavernas.
    Para lá trabalhar nas muitas horas e dias de dedicação à obra, durante os longos invernos, 
o supersticioso homem primitivo certamente precisou primeiro vencer o medo que sentia 
pela escuridão sempre povoada por seres tenebrosos e o próprio ambiente mais profundo e 
misterioso das cavernas que refletiam sombras confusas à luz de tochas fumarentas.
    Junto aos desenhos desses bisões e demais animais da época, existem contornos de mãos ­
­ muitas mãos ­­inclusive diversas com dedos visivelmente em falta!

    ­ *Os desafios para a vida do homem primitivo*
    Dentre os principais problemas enfrentados pelo homem pré­histórico para poder 
sobreviver, estavam não apenas o abrigo e o aquecimento durante os meses de inverno ou 
durante as intempéries, mas também as dificuldades, quase que diárias durante as épocas 
mais quentes do ano, para obter alimento fresco. Ele não dispunha de meios para manter em 
bom estado de conservação para consumo a carne dos animais caçados nos dias de muito 
calor, enquanto que durante os meses de inverno a caça tornava­se rarefeita e ele mesmo 
dispunha de poucas condições para sobreviver por longos períodos de tempo fora de seus 
abrigos.
    O homem das Épocas Paleolítica e Mesolítica praticamente não plantava e não dispunha 
de animais domesticados, tais como os bovinos e eqüinos, que poderiam ser sacrificados 
para resolver o problema da falta de caça para alimentar o grupo. Além disso, ele dependia 
quase que exclusivamente da caça de certos animais muito cobiçados, se quisesse garantir 
peles quentes e adequadas para cobrir seu corpo e proteger seus pés durante o inverno, sem o 
que não conseguiria expor­se por longo tempo ao frio para matar animais atentos e muito 
velozes.
    Assim, durante muitos milênios dominando apenas armas de curto alcance, não há dúvida 
que os requisitos básicos para a atividade principal, que era a caça, eram a sua inteligência 
muito superior à dos animais cobiçados, a capacidade de atuar em grupos bem coordenados 
e criativos e . . . uma capacidade física total. Dessa forma, é muito difícil imaginarmos como 
um homem ou uma mulher poderiam sobreviver naquelas remotas eras com uma deficiência 
física muito limitadora.
    Mas o homem primitivo aprimorou suas condições de vida e já na época Neolítica (há 
aproximadamente 10.000 anos), em parte graças ao gradativo término da chamada Idade do 
Gelo e à progressiva e amena mudança de temperaturas nas várias regiões do globo terrestre, 
notamos que ele começou a ter melhores condições para explorar por muito mais tempo 
territórios jamais trilhados, com suas campinas, florestas e rios. Foi exatamente o homem 
neolítico que conseguiu tornar a caça muito mais racional, montando armadilhas, redes, 
chegando mesmo a construir represamentos de riachos para obtenção mais fácil de peixes 
para seu consumo. E, avanço muito significativo, inventou armas de mais longo alcance. Foi 
ele também que começou a solidificar o grupo familiar, que acabou por se tornar uma 
unidade social básica. Foi igualmente esse primitivo homem neolítico que tornou mais 
elaborada a idéia de um Deus ou das muitas divindades, e mesmo de seu culto e das 
religiões. Em suas explorações longínquas encontrou, talvez com surpresa, novos grupos de 
homens e com eles misturou­se. Segundo nos relatam especialistas no assunto, foi o homem 
neolítico que se organizou em grupos mais heterogêneos e que certamente começou a 
desenvolver uma primitiva, mas marcante, consciência social.

    ­ *O cuidado para com doentes e a incipiente medicina*
    Como das demais Épocas, desta Época Neolítica também não temos dados ou sinais de 
qualquer significado quanto ao problema causado pelas eventuais incapacidades físicas ou 
mentais em membros dos vários grupos humanos, a não ser presumirmos que, não só com 
um paciente e sempre muito curioso olhar, comparar e também estudar o comportamento 
animal (por exemplo, a absoluta solidariedade dos elefantes para com seus membros 
feridos), mas com o despertar dos vínculos mais fortes de ordem familiar, e com o 
surgimento da consciência social, o homem começou a atuar diferentemente. Já havia a 
linguagem falada em plena evolução e mais, a idéia de um ser superior ­ ou seres superiores 
­ ainda de caráter punitivo e severo, o que talvez tenha levado o homem primitivo a melhor 
considerar as pessoas adoentadas, as acidentadas em atividades de caça e pesca, as vitimadas 
por ciladas ou agressões de grupos rivais. Provavelmente dessas não registradas épocas da 
vida do homem sobre a Terra foram surgindo os primeiros passos para uma medicina não só 
de medicamentos provenientes de plantas, frutos e alguns minerais, mas também as 
primeiras tentativas cirúrgicas mais sérias. Dedos das mãos amputados, não se sabe por que 
causas, já haviam surgido por milhares de anos em desenhos das cavernas habitadas.
    Ao final da Época Mesolítica, passando aos poucos para a Neolítica, amputações de pés, 
de mãos e também a incrível cirurgia craniana conhecida como "trepanação", com a 
comprovada sobrevivência do "operado", foram realizadas, conforme indicam achados da 
época.
    Facas, serras, instrumentos pontiagudos haviam surgido para utilização nas atividades 
principais relacionadas à alimentação e vestuário de todo o grupo. Talvez que de sua 
contínua utilização para esquartejamento de caça, retirada e preparo de suas peles, divisão 
das carnes em pedaços menores e mesmo preparo de algumas armas, tenha surgido a idéia 
de, com cuidados bem maiores, usá­los para intervenções cirúrgicas.
    O homem primitivo que se dedicava à arte de aliviar dores, estancar sangue e mesmo 
curar males, tinha seus conhecimentos de anatomia derivados exclusivamente da observação 
constante e da contínua e necessária atuação e experimentação. Essas experiências foram 
sendo acumuladas por alguns homens considerados como especiais, depois chamados de 
feiticeiros, magos, druidas, pajés, além de seus auxiliares e foram sendo passadas de geração 
para geração, de grupo para grupo, de milênio para milênio, propagando­se e enriquecendo­
se continuamente.
    Na Época conhecida como Neolítica, ou seja, aproximadamente 8.000 anos atrás, o 
homem descobriu muitos dos segredos básicos da natureza, da vida e da própria terra, tais 
como a domesticação de animais e a agricultura. Assim, a vida de cada grupo foi­se 
tornando cada vez menos difícil e menos perigosa uma vez que esse domínio maior do 
ambiente que o cercava acabava por não exigir grandes riscos de vida para garantir a 
sobrevivência pela caça quase que diária.
    O homem tornou­se dono de sua vida, de seu relativo bem­estar e de seu futuro, embora 
ainda vivendo em situações bastante precárias, como diversas das raças primitivas de hoje 
que ainda vivem como homens neolíticos.
    ­ *As fraturas na Pré­História*
    Membros fraturados certamente que eram tratados à semelhança da forma como animais 
superiores o fazem, muito mais por instinto do que por conhecimento de causa ou raciocínio, 
descansando a parte afetada ou deixando de utilizá­la. Provavelmente ainda na Era 
Paleolítica, durante a qual o homem esteve mais do que nunca sujeito a grandes quedas e a 
pancadas violentas, seja de inimigos portadores de armas contundentes, seja de animais 
acuados durante uma caçada, a própria vitima ou seus companheiros aliviariam o membro 
atingido com uma primitiva imobilização, por meio de pedaços de ramos de árvores ou 
pequenos arbustos atados por tiras de couro de animal, tufos ou cordas de capim, de cascas 
de árvores ou de outra natureza.
    Segundo o Dr. Edgard M.Bick, citado por Agüero, o homem pré­histórico que inventou a 
imobilização de um membro fraturado mereceria a mesma honra e teria os mesmos méritos 
que aquele que idealizou a roda ou que descobriu a forma de fazer e de controlar o fogo.
    Logo antes de partir para uma caçada ou para uma operação guerreira, os homens pré­
históricos reuniam­se ao redor do fogo, em algum tipo de cerimônia religiosa, que 
certamente demonstrava a importância e o significado do empreendimento. Nessas 
atividades perigosas e muitas vezes imprevisíveis, fraturas por golpes de clavas, patadas, 
quedas e mesmo pelos azares do dia­a­dia eram freqüentes. E certamente devido a essa 
freqüência, nas cavernas, abrigos e casas primitivas de então os acidentados já deveriam 
contar com homens mais idosos que tinham experiência e que sabiam como tratar com certo 
sucesso casos dessa natureza. Nas diversas cavernas pesquisadas pelos arqueólogos, e nos 
locais onde foram encontrados muitos esqueletos pré­históricos, vários ossos apresentam­se 
com fraturas solidificadas e bem tratadas.
    Esses ossos solidificados e com evidentes sinais de fraturas anteriores foram estudados 
meticulosamente por cientistas diversos que notaram a ocorrência maior e mais significativa 
de fraturas do ante­braço (radius). Nesses esqueletos pré­históricos encontrados e analisados 
até hoje, podemos citar sinais de fratura tratada em ossos de omoplata (em Vendreste), de 
tíbia (encontrados em dólmens da África do Sul e em Meudon), do perônio (terço superior), 
do fêmur (bastante comum), do húmerus, da clavícula e mesmo do metatarso.
    Em sua obra "La Médecine chez les Peuples Primitifs (Préhistoriques et Contemporains)", 
Stéphen­Chauvet afirma que um grande estudioso dos achados pré­históricos, o Dr. 
Raymond, pôde estudar um fêmur direito encontrado numa gruta do vale Petit­Morin que 
havia sido fraturado em seu terço inferior, e que apresentava um forte deslocamento. O 
fragmento inferior tinha sua ponta, na linha áspera e quebrada, solidificada à extremidade 
baixa do pedaço superior do fêmur, mas com grande desvio. Assim, o conjunto é envolvido 
numa calosidade óssea de aproximadamente 20 cm de circunferência, daí resultando um 
considerável encurtamento da coxa.
    Todas essas fraturas mesmo a do metatarso chegavam a impedir o homem primitivo da 
participação em atividades de caça ou de guerra praticamente durante meses. Viviam com 
seus membros imobilizados ­ ou pelo menos não usados ­ sobrevivendo na dependência dos 
demais. Eram, assim, transitórias, mas seriamente deficientes.
    No entanto, seja pelos dedos amputados, que podem ser notados nos desenhos das 
cavernas habitadas, seja pelo exemplo da incrível calosidade óssea com grande desvio da 
linha do fêmur e evidente encurtamento da perna, tivemos na Pré­História pessoas 
deficientes que sobreviveram por muitos anos. Como sobreviveu esse homem de perna com 
fratura solidificada com sério desvio? Como conseguiu integrar­se ao seu grupo, e com que 
tipo de papel? Sim, pois se não tivesse sido integrado, seus ossos não estariam na caverna 
em que foram encontrados... Como participou, pelo resto de sua longa vida, das atividades 
de sua família ou de seu grupo? Seu vulto, coxeando pelos agrestes e perigosos caminhos, 
num ponto perdido da Pré­História, permanecerá sem maiores explicações em nossa 
imaginação.
    Além das providências de imobilização para os casos de fraturas, membros ou partes do 
corpo atingidos por um golpe devem ter sido instintivamente socorridos por massagens do 
próprio indivíduo, da mesma forma como certas dores reumáticas podem ter sido aliviadas 
com o calor das fogueiras ou das pedras aquecidas ao seu redor nas primeiras cavernas 
habitadas pelos grupos humanos.

    ­ *O que nos ensinam os ossos pré­históricos*
    Os homens que se dedicam ao estudo de ossos pré­históricos têm desenvolvido denodados 
esforços para a criação de uma nova especialidade: a paleopatologia. Praticamente toda a 
especialidade aqui referida volta­se para achados que indicam a existência de patologias 
incapacitantes. Seus estudos não podem desconsiderar desenhos, estatuetas, relevos, além da 
análise sistemática de ossos que apresentam anomalias.
    A nova ciência da paleopatologia nos ensina que a doença e a deficiência física são tão 
antigas quanto a própria vida sobre a Terra.
    Pois bem, é a paleopatologia que nos diz que ossos de animais de todas as épocas indicam 
a presença de distrofias ­ sejam elas congênitas ou adquiridas ­ e lesões traumáticas ou 
infecciosas. Dentre os ossos encontrados na França, na Espanha e na Argélia, existe mais de 
uma centena que apresenta anomalias. Vejamos alguns exemplos mais marcantes:

    a) Pythecanthropus Erectus ­ Existem poucos ossos do tipo conhecido por esse nome 
científico: uma calota craniana, três dentes e um fêmur. O fêmur apresenta uma espécie de 
tumor ósseo bem volumoso no terço superior, próximo à sua cabeça, atribuído pelos 
estudiosos a uma fratura ou a um aneurisma.
    b) Homem de Neanderthal ­­ Há ossos do chamado Homem de Neanderthal que 
apresentam traços de traumatismo. Há, por exemplo, no úmero esquerdo, uma cicatriz que 
corresponde a uma lesão séria. No esqueleto desta espécie, descoberto em Krapina, existe 
um sinal de fratura solidificada na clavícula. O esqueleto de La Chapelle­aux­Saints mostra 
sinais de artrite deformante.
    c) O esqueleto analisado por Raymond ­ O fêmur com grande desvio citado mais atrás, foi 
descoberto por Raymond na gruta de Baye. É interessante notar que ossos provenientes 
dessa mesma caverna apresentam, quase todos, sinais de osteoartrite de natureza reumática. 
Segundo alguns especialistas, essa afecção apresenta­se como um real obstáculo à boa 
solidificação de uma fratura.
    d) Homem Cro­Magnon ­­ A espondilose foi encontrada num esqueleto de homem pré­
histórico conhecido como Cro­Magnon. Trata­se de um mal de efeitos muito limitadores, 
pois a espinha dorsal em geral fica com uma curvatura bastante acentuada, a cabeça inclina­
se para a frente e as coxas flexionam­se.
    e) Freqüência do reumatismo ­­ O reumatismo foi muito freqüente e devastador na Pré­
História. Havia casos que iam desde a chamada osteopatia peri­articular, até a total 
imobilização do homem primitivo. Um exemplo marcante é encontrado em ossos do Homem 
de Neanderthal, descobertos em La Chapelle­aux­Saints, na França. Pela análise dos 
mesmos, especialistas constataram sinais claros de articulações coxo­femurais com artrite 
seca e com poli­artrite.
    Na Era Neolítica a presença média do reumatismo é estimada em 20% dos esqueletos ou 
ossos encontrados. A incidência do mal talvez esteja relacionada à má qualidade da 
alimentação (que pode também ter causado muitos casos de cegueira), devido a infecções e 
também devido à exposição à umidade e ao frio. Convém que lembremos ter o homem 
primitivo vivido muito exposto às alterações do clima, muitas vezes em cavernas cheias de 
umidade. Assim, os casos de reumatismo não aconteciam apenas em faixas etárias mais 
elevadas; ocorriam também muito antes dos 30 anos de idade (Ver Goldstein, Guthrie, 
Gonzales, Stephen­Chauvet e Dastugue).

    ­ *A origem dos males que afetavam os homens*
    A rude e muito difícil vida do homem em seus primeiros milênios de existência sobre a 
Terra não admitiam fraquezas. A doença e os acidentes aconteciam, muitas vezes 
avassaladores e de muito rápido desfecho; mas por vezes o homem vencia, e uma primitiva 
medicina ­­ se assim poderá ser chamada ­­ ajudava com um socorro paliativo, cada vez 
mais eficaz, por meio de homens observadores, muito voltados para os recursos da natureza 
e para os misteriosos segredos do "desconhecido".
    Afirmam Graña, Rocca e Graña Jr. em "Las Trepanaciones Craneanas em el Perú en la 
Época Pré­Hispánica": "Se considera una doctrina plenamente confirmada que el hombre 
primitivo, a través de todos los tiempos y en todas las regiones del globo, observó las 
mismas creencias, iguales supersticiones y atravesó por semejantes etapas de cultura".
    "Y así, concurren a una interpretación común las leyendas y tradiciones más remotas 
sobre el origen de las enfermidades. Ignoradas las causas reales, el hombre invocaba lo 
ignoto y misterioso, lo invisible e palpable, o sea, el concepto de los espíritos y la influencia 
de la divindad. Desde este punto de vista el folk­lore médico es el mismo en todas las 
civilizaciones primitivas".
    "Elocuente demonstración de estos hechos ofrecen ciertas prácticas quirúrgicas registradas 
en la história de los pueblos más antiguos, y una de verdadera significación y importância es, 
sin duda, el caso de las  trepanaciones craneales, realizadas desde muchos milenios 
anteriores a nuestra era. Ya en el período neolítico se realizaba con extraordinaria frecuencia 
esta grave y dificil intervención, juzgada" como la operación más antigua de la cual existen 
huelas comprobadas". Como demonstración palmaria de las ideas enunciadas antes, 
podemos aducir que dicha intervención en el pasado lejano se llevó a cabo en las regiones 
más distantes de la tierra: Africa y Asia, entre los "Chaouias" de la Algeria, las tribus Bere­
Bere, que la practican aún hoy. Se han
descubierto cránios horadados en Herzogovina, Montenegro Y Albania; igualmente em las 
islas del Pacifico, la Malasia, Polinesia, Tahiti. En Nueva Bretaria, en el Archipiélago de las 
Bismark; en diversos paises del Mediterráneo, Itália, Francia. En Inglaterra y Austria; en las 
Islas Canarias y, bien lo sabemos, en diversos paises de la América Del Sur, Perú, Bolivia y 
Colombia".

    É indiscutível que o homem pré­histórico procurava a origem das enfermidades em 
crendices de natureza mística ou fantasiosa, mais de ordem demoníaca ou resultante de 
atitudes punitivas das divindades ou seres superiores. Apesar de podermos duvidar da 
profundidade ou da diversidade de conhecimentos dos aplicadores da primitiva medicina, a 
eficácia de muitos tratamentos é fato inquestionável.
    Data, por exemplo, de tempos imemoriais a utilização de uma lama especial para muitos 
casos de afecções cutâneas, bem como o uso de teias de aranha em cortes e feridas, com 
resultados positivos, Embora ainda não fosse do conhecimento do homem primitivo, hoje 
sabemos que os produtos naturais indicados acima contêm uma espécie de elemento protetor 
quase tão eficaz quanto a penicilina. Certamente que são surpreendentes para todos nós 
conhecimentos primitivos quanto à eliminação da dor, ao estancamento de sangue, à 
assepsia ou às técnicas operatórias, porque não há dúvida de que de alguma forma eles 
existiram.

    ­ *O tratamento primitivo e as deficiências*
    Comprovadamente tanto a existência quanto o tratamento de males diversos no seio das 
populações primitivas e pré­históricas sempre estiveram ligados à magia.
    A própria trepanação ­­ ou seja, a abertura de um orifício em alguma parte do crânio ­­ 
indica uma crença primitiva quase que demonológica ou maligna de origem desconhecida de 
certos males físicos ou mentais. No entanto, o tratamento dos feiticeiros ou mágicos 
daquelas épocas incluía, além de cerimoniais com evidente simbologia, providências de 
natureza objetiva, muitas vezes hoje utilizadas em tratamentos de urgência ou tratamento 
médico regular, como o calor, o frio, a sangria, os banhos, a sucção, dentre muitos outros 
meios que apenas podemos imaginar.
    Conforme referimos anteriormente, a massagem, certamente descoberta por mero acaso 
num momento perdido de dor na história do homem, levava – como sempre levou ­­ a uma 
sensação de alívio; assim também a proximidade com o calor do fogo, ou o amortecimento 
em contato com o gelo ou neve. O uso eventual de uma erva ­­ à semelhança do que fazem 
certos animais em momentos de dor ­­ pode ter levado a alívios pouco esperados.
    Cada povo ou cada tribo, por experiências acumuladas e por observações próprias, foi 
desenvolvendo seus próprios meios de tratamento de males. Por uma questão de 
sobrevivência da raça apenas, cuidados um pouco diferenciados podem ter sido dados às 
mães e aos recém­nascidos ­­ desde que perfeitos e, conforme as circunstâncias, desde que 
do sexo masculino. É quase certo que uma criança nascida com aleijões ou aparentando 
fraqueza extrema terá sido eliminada de alguma forma, tanto por não apresentar condições 
de sobrevivência, quanto por crendices que a vinculavam a maus espíritos, a castigos de 
divindades ou mesmo por motivos utilitários.
    Os primeiros auxílios prestados pelos homens primitivos foram relacionados a lesões do 
tipo traumático, como as feridas, os dilaceramentos causados por pedras, espinhos, flechas, 
lanças, garras ou presas de animais caçados, todas elas provocadoras de perda de sangue ou 
de fraturas. As circunstâncias da ocorrência desses fatos ou acidentes certamente levaram os 
companheiros ou a própria vítima a buscar na natureza que os cercava os remédios 
necessários. A compressão normalmente feita pelas mãos e as proteções por ataduras 
primitivas estavam incluídas nessas providências iniciais.
    Ressaltemos que os homens pré­históricos, assim como os nativos de certas tribos 
existentes hoje em dia, dispunham de armas de curto alcance, tanto para caçar como para se 
defender, sendo a maioria delas de efeito contundente (bastões, marretas, porretes, tacapes 
ou algo semelhantes). Essas armas e seu uso contra outros homens também levavam à 
existência de contusões ou de ferimentos sérios que nem sempre causavam a morte. Assim, 
seja durante um ataque ou uma operação de defesa contra inimigos racionais, ou mesmo 
durante uma caçada, o homem atingido por uma flechada, por uma pancada mais forte ou 
por garras afiadas, era socorrido ­­como não poderia deixar de ser ­­ pelos companheiros, 
que o abrigavam ou cuidavam dos ferimentos por meios rudimentares e naturais, e o 
levavam de volta ao núcleo de habitação, onde recursos maiores deveriam existir. Em alguns 
casos o indivíduo gravemente ferido não falecia, mas podia ficar vitimado por uma seqüela 
qualquer e se tornava limitado para a atividade principal da qual originalmente participara: a 
caça ou a guerra.
    ­ *O destino das pessoas deficientes na Pré­História*
    O que sucedia a esse homem? Ele fora valente, respeitado e útil ao grupo, mas a partir de 
então não tinha mais utilidade. Seria ele mantido pelo grupo na esperança de voltar à 
atividade? Seria ele utilizado em funções menos exigentes de perfeito domínio da força e do 
físico? Seria ele levado às planícies ou às armadilhas para, num último gesto de colaboração 
com o grupo, servir de isca para animais ferozes? Aceitaria ele funções menos briosas, ao 
lado de mulheres e crianças?
    Nada disso sabemos. Só conjecturas podem ser feitas e talvez com boas oportunidades de 
estarem certas.
    Lembremo­nos que, de acordo com o progresso lento da humanidade e o gradativo 
domínio dos ambientes e da natureza, certas funções começaram a existir: os fabricantes de 
cestos ou de armadilhas, os preparadores de peles para vários fins, os fabricantes de esteiras 
e de vasos para armazenamento de água, dentre muitas outras coisas. Por que um homem 
brioso, valente, lutador, corajoso, não poderia ter sido usado para esses fins, seja 
provisoriamente, seja permanentemente?
    Dos períodos mais adiantados da Pré­História para os dias de hoje, na Era Neolítica, vasos 
e urnas foram sendo decorados das mais variadas maneiras e com os mais incríveis motivos. 
Foram encontrados em alguns desses vasos ou urnas homens com evidentes sinais de 
deformidades de natureza permanente, sendo algumas delas conseqüentes de mal­formações 
congênitas: corcundas, coxos, anões e amputados. Isso nos indica que desde épocas as mais 
remotas as deficiências e mesmo as deformidades de nascimento ou adquiridas por 
traumatismos e doenças já eram um verdadeiro flagelo da humanidade. Indicam­nos também 
esses objetos da primitiva arte neolítica que esses homens sobreviviam até a idade adulta e 
poderiam ter algum valor, seja por motivos de superstições, seja por real utilidade, para 
merecer sua representação num utensílio permanente e de vital utilidade para os grupos 
sociais de então.

    2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes
    Muitos daqueles que se interessam por pessoas deficientes ou por grupos minoritários em 
culturas pré­históricas e em culturas primitivas dos dias de hoje, seja por falta de maiores 
informações, seja devido a uma projeção das tendências subjetivas de cada um, consideram 
inevitável generalizar a aplicação de procedimentos adotados por muitos séculos e 
defendidos até em uma lei básica de Roma ou em costumes adotados em Esparta, que 
determinavam a eliminação de crianças nascidas com deficiências físicas. No entanto, esses 
procedimentos não foram e nunca poderiam ter sido generalizados ou generalizáveis.
    Muitos dos hábitos e costumes adotados em culturas muito mais antigas que a nossa são 
até hoje aceitos por povos bastante primitivos que vivem uma vida praticamente ao nível dos 
antigos homens das épocas conhecidas como neolíticas. Alguns deles referem­se aos seus 
componentes mais fracos, mais idosos ou defeituosos.
    Exemplos concretos, coletados por antropólogos pacientes, podem de fato ser citados às 
dezenas.

    ­ *O porquê das atitudes face a grupos minoritários*
    Na abalizada opinião de antropólogos e mesmo de historiadores da medicina, pode­se 
observar basicamente dois tipos de atitudes para com pessoas doentes, idosas ou portadoras 
de deficiências: uma atitude de aceitação, tolerância, apoio e assimilação e uma outra, de 
eliminação, menosprezo ou destruição.
    Na primeira, as pessoas que estão à margem do grupo principal devido a doenças, 
acidentes, velhice ou defeitos físicos são em geral aceitas das mais variadas maneiras, 
incluindo­se a tolerância pura e simples, chegando até ao tratamento carinhoso, ao 
recebimento de honrarias e à obtenção de um papel relevante na comunidade.
    Na segunda, todavia, essas mesmas pessoas são destruídas também de formas variadas, 
incluindo­se desde o abandono à própria sorte em ambientes agrestes e perigosos, até a 
morte violenta, a morte por inanição ou o próprio banimento.
    Esses mesmos antropólogos e historiadores observam que as encontradiças atitudes 
positivas e de aceitação não correspondiam necessariamente a raças mais cultas, 
experimentadas ou evoluídas.
    Na verdade, o que sucedia com os grupos que precisavam coletar alimentos, pescar e 
caçar era que, apesar de haver um bom tratamento para com doentes e deficientes e mesmo 
para com os mais idosos de seus membros, de um modo especial na garantia da alimentação, 
o grupo maior tinha necessidade de livrar­se do peso que significavam as dificuldades na 
movimentação geral quando do escasseamento da caça, da pesca e dos outros tipos de 
alimentos. Problemas muito sérios surgiam com a mudança para regiões mais férteis e mais 
promissoras.
    Essa atitude é bem diferente daquela da destruição habitual e sistemática adotada por 
grupos primitivos mais complexos dedicados à agricultura e também ao pastoreio e uma 
incipiente pecuária. A causa principal da destruição das pessoas era evidentemente, 
econômica, face à quase inutilidade das mesmas. No entanto, observa­se também que a 
partilha de alimentos nesses mesmos grupos parece ter declinado em importância com os 
gradativos progressos verificados na agricultura e no pastoreio. Foi exatamente nesses 
grupos que aos poucos começou a surgir a caridade organizada, em seus primeiros sintomas.

    ­ *Atitudes de aceitação, apoio e assimilação*
    Vejamos, por exemplo, povos primitivos que adotam atitudes de apoio, assimilação, 
aceitação ou tolerância para com pessoas portadoras de deficiências, problemas mentais ou 
velhice:

  ­­ Aona: Os Aona residem ainda hoje à beira do lago salgado de Rudolf, no Quênia, numa 
ilha conhecida como Elmolo. De nômades que eram, transformaram­se em pescadores. 
Segundo eles acreditam, os cegos mantêm relação direta com o sobrenatural e os espíritos do 
sobrenatural moram no fundo do lago salgado e previnem diretamente os cegos quanto aos 
locais onde há peixe. Assim, os cegos sempre participam das pescarias primitivas, levando 
em consideração a lança atirada por eles que são sempre bem tratados e respeitados.

  ­­ Azande: Trata­se de um povo muito primitivo que habita as florestas situadas entre o sul 
do Sudão e o Congo, caracterizando­se pelo seu nomadismo esporádico. Todos os 
componentes dessa raça acreditam muito em feitiçaria. No entanto, não chegam a relacionar 
defeitos físicos e anomalias com intervenções sobrenaturais. Crianças anormais nunca são 
abandonadas ou mortas. Não lhes falta carinho dos pais ou de parentes mais próximos. 
Segundo antropólogos estudiosos de seus costumes, dedos adicionais nas mãos ou nos pés 
são bastante comuns e eles se orgulham de os possuir.
  ­­ Ashanti: Habitam a parte sul de Gana, a oeste da África, totalizando mais de um milhão 
de membros. Quando constituíam um reino próprio era costumeiro enviar à corte crianças 
com defeitos físicos para serem treinadas como arautos do rei. Esses mensageiros com 
deficiência física eram destacados para missões delicadas, como, por exemplo, a iminência 
de guerras com tribos vizinhas. Em geral a mensagem do rei Ashanti era incisiva e 
terminava com um recado do arauto: "se esses termos não forem aceitos, poderei ser morto 
agora mesmo".
    No entanto, parece que isso não acontecia, pois limitavam­se os inimigos a cortar um dos 
dedos do arauto, o que equivalia a uma declaração de guerra. Além dessa perigosa missão, 
os arautos eram também utilizados como inspetores sanitários ou coletores de impostos. 
Eram igualmente usados como bufões e tinham o privilégio de dizer a seus mestres o que 
bem entendiam. Foram também usados como espiões.
  ­­ Dahomey: Entre os habitantes mais antigos do Dahomey atual, localizado na África 
Ocidental, sempre foi considerado como fato costumeiro ­­ apesar de singular na grande 
maioria dos povos primitivos – que as autoridades conhecidas como "condestáveis do 
Estado" fossem selecionadas principalmente entre pessoas portadoras de deficiências físicas 
ou sensoriais. Em várias aldeias do país crianças nascidas com anomalias físicas sérias eram 
tidas como protegidas por agentes sobrenaturais especiais. Segundo crença popular, essas 
crianças existem para trazer sorte à aldeia. No entanto, em tempos passados, o destino de 
muitas delas dependia de alguns sinais supostamente sobrenaturais que podiam decretar seu 
abandono à beira de um rio.
  ­­ Macri: Pessoas deformadas ou portadoras de deficiências não são mortas nem 
abandonadas nas aldeias dos Macri, nativos da Nova Zelândia. Elas sobrevivem, embora 
com dificuldades, pois não encontram muito apoio e chegam mesmo a receber tratamento ou 
apelidos de natureza desagradável.
  ­­ Pés Negros: Tribo praticamente extinta da América do Norte, entre os Pés Negros 
cuidava­se bem de familiares com deficiência. Essas pessoas eram responsabilidade do 
próprio grupo familiar, mesmo que isso chegasse a acarretar sacrifícios.
  ­­ Ponapé: Nas ilhas Carolinas Orientais, entre seus primitivos habitantes pertencentes à 
tribo dos Ponapé, crianças com defeitos físicos ou evidentes sinais de retardo mental sempre 
foram bem tratadas como se fossem normais.
  ­­ Semang: Entre os nativos da raça Semang, habitantes de parte da Malásia, só pessoas que 
se movem com o auxilio de um bastão ou de uma muleta, devido a um defeito físico ou à 
cegueira, é que são procuradas para conselhos ou para decidir disputas. Trata­se de uma 
tribo Negrito, muito primitiva, que ainda vive em cavernas ou em abrigos de folhas.
  ­­ Truk: Para os nativos da ilha Truk ­­ uma das Carolinas ­­ as pessoas portadoras de 
deficiências das mais diversas naturezas e também as pessoas muito idosas que não podem 
prover seu próprio sustento ou que dependem necessariamente dos outros ­­ são 
consideradas como supérfluas. No entanto, esses aborígenes não tomam qualquer 
providência para sua segregação ou eliminação.
  ­­ Xagga (ou Chaggal): Nas fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da Tanzânia (leste da 
África), vivem os nativos do grupo Xagga. No seio dessa tribo primitiva ninguém se atreve a 
prejudicar ou a matar crianças ou adultos com deficiências, pois segundo acreditam, os maus 
espíritos habitam nessas pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna a 
normalidade possível a todos os demais.
  ­­ Tupinambás ­­ Entre os nossos antigos índios da grande raça Tupinambá do século XVI, 
o adulto doente ou deficiente por ferimentos graves de guerra, de caça ou devido a acidentes 
da vida na floresta era deixado à vontade em sua cabana, praticamente sem contato algum 
com o restante da tribo. Ficava sem comer se assim o desejasse, pois podia pedir alimentos, 
que lhe seria fornecido pelo tempo que achasse necessário, mesmo que pelo resto de sua 
vida. O que em geral acontecia, porém, por posicionamento do guerreiro ferido, era que 
acabava morrendo à míngua.
    ­­ *Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição*
    Alguns dos povos primitivos a respeito dos quais obtivemos informações não se 
preocupam ou não se preocupavam (conforme o caso) com as pessoas deficientes em termos 
de vida ou de morte, mas tomavam atitudes discriminatórias contra elas, como nos casos 
ainda hoje verificados dos habitantes da ilha de Bali ­­ Os nativos da ilha de Bali, na 
Indonésia, estão tradicionalmente impedidos de manter contatos amorosos com pessoas 
muito diferentes do normal, ou seja, albinas, retardadas, hansenianas, e em geral com 
pessoas portadoras de defeitos físicos sérios ou problemas mentais.
    Por vezes, no entanto, é a pressão pela sobrevivência que determina certas tomadas de 
posição quanto a pessoas idosas, doentes ou deficientes. É o que acontece com os índios 
Chiricoa ­­ eles habitam as matas colombianas e mudam­se com facilidade ou de acordo 
com as exigências para sobrevivência do grupo. Esses índios, tanto quanto certas tribos do 
Caribe antigo também o faziam, abandonam pessoas muito idosas ou incapacitadas por 
doenças ou por mutilações por ocasião de suas mudanças. Cada membro da comunidade 
carrega tudo o que pode levar e transportar pela selva, e que é considerado como 
estritamente necessário. Essas pessoas deficientes ou muito velhas e doentes terminam seus 
dias abandonadas nos antigos sítios de morada da tribo, por não poderem se movimentar ou 
por não serem consideradas como fundamentais para a sobrevivência do grupo.
    Em alguns casos pesquisados, o abandono e a morte por opção do próprio indivíduo 
idoso, doente ou portador de deficiência séria, para benefício da tribo ou mesmo da raça, 
também acontecem. É o caso observado entre os Esquimós ­­ Entre os esquimós mais 
antigos que mantiveram contatos com missionários franceses nos séculos XVII e XVIII nos 
territórios canadenses de hoje, as pessoas idosas ou deficientes eram deixadas, por sua 
própria orientação e muitas vezes por sua própria escolha e vontade, num local mais propício 
e próximo dos pontos onde todos sabiam ser a área de convergência contínua e de 
aparecimento de ursos brancos, para serem por eles devoradas. Segundo acreditavam, os 
ursos brancos eram considerados como animais sagrados e de grande utilidade para a tribo e 
que deviam manter­se sempre bem alimentados. Assim, sua pele mantinha­se também em 
ótimo estado para, quando mortos, bem agasalharem a população.
    Existem relatos de abandono mais evidente e aberto, ou um tanto velado, como no caso 
dos Tupinambás, acima indicado. O abandono intencional ocorre com os Siriono ­ Esses 
índios são seminômades e de língua Guarani, e habitam nas selvas da Bolívia, próximo ao 
Brasil. Para eles a doença e a incapacidade física, bem como a velhice, podem levar ao 
abandono e mesmo à morte com certa freqüência, devido a constante movimentação da 
tribo. O mesmo sucede com os pertences ou com a cabana de alguém que morre, que são 
destruídos pelo fogo.

    ­­ *O extermínio de pessoas deficientes*
    A maioria dos povos primitivos, no entanto, indicava o extermínio como solução para o 
problema de crianças ou adultos com deficiências físicas ou mentais. Vejamos alguns casos 
mais marcantes:
  ­­ Ajores ­­ Os índios Ajores vivem ainda hoje como nômades, em região pantanosa, entre 
os rios Otuquis e Paraguai, nos isolados confins da Bolívia e do Paraguai. São índios 
orgulhosos do Gran Chaco. Devido ao nomadismo, todos os recém­nascidos com 
deficiências, ou mesmo aqueles não desejados, são enterrados juntamente com a placenta, ao 
nascer. Os velhos Ajores, ou aqueles que devido às circunstâncias ficaram deficientes, são 
enterrados vivos, por solicitação própria ou mesmo contra sua vontade. Consideram alguns 
esse tipo de morte altamente desejável, pois a terra os protegerá contra tudo e contra todos.
  ­­ Creek ­­ Velhos doentes e vítimas de males crônicos eram mortos por misericórdia. 
Acreditavam os Creek que esses velhos ou doentes poderiam acabar por cair nas mãos do 
inimigo e sofrer muito mais. Os demais idosos sempre foram respeitados e mesmo 
reverenciados por todos os componentes da tribo.
  ­­ Dene ­­ Entre os índios Dene, do Noroeste do Canadá, bem como junto aos esquimós da 
região e algumas tribos da Sibéria antiga, era costume eliminar pessoas incapacitadas seja 
por idade, seja devido à deformidade apresentada. Eram abandonadas nas planícies geladas 
de seus imensos territórios.
  ­­ Dieri ­­ O infanticídio acontece com freqüência na tribo dos Dieri que ocupa algumas 
regiões do Centro da Austrália. Dele são vítimas não apenas crianças que nascem com 
defeitos físicos, mas também, por motivos de ordem social, os filhos de mães solteiras. No 
entanto, nessa e em várias outras tribos australianas, o respeito pelos idosos é 
constantemente citado pelos antropólogos que se dedicam ao seu estudo. Em quase todas as 
tribos da Austrália os velhos são respeitados como líderes e como conselheiros.
  ­­ Jukun ­­ Trata­se de uma tribo da Nigéria, na qual as crianças que nascem com 
deformações não sobrevivem. Elas são abandonadas nas matas ou nos lugares ermos onde 
logo encontram a morte. Acreditam os nativos Jukun que as crianças com defeitos físicos 
são tomadas, ainda no ventre da mãe, por espíritos malignos.
  ­­ Masai ­­ Os nativos da raça Masai são os sempre elegantes, magros e muito altos 
componentes de uma definida origem nilo­hamítica nômade. Eles tiram a vida das crianças 
recém­nascidas que se apresentam muito fracas ou que já apresentam deformações ao 
nascer.
  ­­ Navajos ­­ Os índios Navajos, aparentados dos Apaches e formadores da maior raça 
indígena norte­americana, no passado distante não permitiam que uma criança com defeito 
físico sobrevivesse. Ela era asfixiada ou afogada, abandonada no meio do mato ou 
ocasionalmente queimada viva. Mesmo hoje em dia os Navajos não se sentem muito à 
vontade diante de pessoas com deficiências, por considerar em seu íntimo que elas estão fora 
da harmonia das forças da natureza e que o contato com elas acabará trazendo desarmonia na 
vida de cada um.
  ­­ Ojibwa ­­ Conhecido grupo étnico de índios norte­americanos, existem famílias Ojibwa 
residentes ainda hoje nas ilhas Parry (Canadá) que acreditavam (e que talvez ainda 
acreditem) que pessoas com defeitos físicos eram feiticeiras e que sofriam com seus 
problemas físicos porque os seus poderes de cura acabavam voltando­se contra elas mesmas. 
Essas pessoas com deficiências podiam ser acusadas de feitiçaria e se fossem condenadas 
eram mortas a pauladas.
  ­­ Sálvia ­­ Nas matas fechadas da selva amazônica vivem os índios Sálvia, em extinção. 
Eles costumam dar a morte aos fisicamente deficientes por serem considerados como 
elementos claramente marcados por espíritos malignos.
  ­­ Saulteaux ­­ Pertencentes à grande raça dos Ojibwa, os Saulteaux estão espalhados tanto 
pelos Estados Unidos quanto pelo Canadá, na região dos Grandes Lagos e também do lago 
Winnipeg. Pensavam esses índios que as pessoas com deficiências físicas eram possuídas 
por espíritos malignos, o que levava a tribo a matá­las. Eram também consideradas como 
verdadeiras ameaças aos deuses que, com sua morte, mantinham­se pacificados e contentes.
  ­­ Uitoto ­­ Segundo costume observado pelos integrantes dessa tribo do alto Amazonas, a 
sudeste da Colômbia e nas proximidades do Peru, o recém­nascido era sempre submerso 
num riacho próximo à sua aldeia, por alguns segundos, a pretexto de sua limpeza e também 
para verificar sua resistência física. Segundo acreditavam, caso a criança não fosse 
suficientemente saudável e bem constituída, melhor seria morrer naquela hora do que passar 
uma vida toda de atribulações para si e para sua família, devido à fraqueza ou à deficiência 
física. No caso específico de ser portadora de alguma deformidade durante seu crescimento, 
o feiticeiro da tribo declarava abertamente que ela havia sido vítima de algum mau espírito, 
podendo causar malefícios para toda a aldeia. A esse pretexto ela acabava sendo eliminada.
  ­­ Wageo ­­ Entre esses primitivos habitantes da Nova Guiné, as crianças com 
deformidades físicas eram enterradas logo após o seu nascimento. No entanto, se a 
deficiência ocorresse durante a vida, as vítimas eram tratadas com cuidado e mesmo com 
carinho.
  ­­ Xagga ­ Muito embora os Xagga jamais procurassem se livrar de uma criança ou de um 
adulto com defeitos físicos ou problemas mentais, conforme vimos anteriormente, tinham 
atitude diferente face ao nascimento de uma criança defeituosa. A parteira, ou o próprio pai, 
tinham o direito de tomar uma decisão quanto à vida ou a morte de um bebê nascido com 
deformidades, no próprio ato do nascimento, se as circunstâncias assim o recomendassem.

    Nota­se nessas várias culturas aqui citadas que muitas vezes a não­sobrevivência ocorria 
mais devido à pressão causada pelas dificuldades na obtenção de alimentos ou mesmo de 
auto­suficiência e agilidade para cuidar de si mesmo em hora de perigo, quando não devido 
a questões de utilidade do componente do grupo. Há vários casos de eliminação de velhos ou 
de deficientes devido à ignorância das causas dos males considerados como misteriosos, ou 
por medo das divindades vingativas que poderiam estar envolvidas ou mesmo interessadas.
    No entanto muito raramente a rejeição ou a morte ocorriam devido a atitudes de 
ostracismo ou de discriminação intencional que, segundo nos parece, são produtos de 
civilizações mais sofisticadas.

    ­­ *A pessoa deficiente como objeto de ridículo*
    Um exemplo da pessoa deficiente como objeto de ridículo nos é citado por 
Wolfensberger: Entre os Aztecas da época de Montezuma (1466 a 1520) havia uma espécie 
de jardim zoológico na capital do Império, Tenochtitlán (hoje México, D.F.), que chegou a 
impressionar os homens do conquistador Cortés pela sua organização e variedade de 
animais. O que mais chocou os homens espanhóis, porém, foi o fato de Montezuma ter em 
instalações separadas homens e mulheres defeituosos, deformados, corcundas, anões, 
albinos, onde eram apupados, provocados e ridicularizados.
    Infelizmente em quase todas as culturas que indicamos restavam às pessoas marcadas pela 
incapacidade ou pela idade apenas duas alternativas: resignação à situação ou a morte.

    ­­ *O povo Inca e as trepanações cranianas*
    Embora não possa absolutamente ser considerada como primitiva, nem de caráter 
mesolítico ou neolítico, a cultura Inca será aqui inserida como uma nota especial, devido ao 
inusitado e surpreendente conhecimento que conseguiu acumular e que vale a pena aqui 
lembrar.
    O povo Inca habitou regiões do atual Peru desde épocas que certamente datam de 1.000 
anos antes de Cristo, com os povos originais que formaram a cultura Paracas. Estudos feitos 
por diversos especialistas da cultura Inca concluem que, mesmo antes da descoberta da 
América, esse povo já desenvolvia um incrível padrão de medicina e de cirurgia. Um dos 
indicativos mais sérios a esse respeito está no enorme acervo de crânios encontrados nos 
túmulos de várias cidades Incas daquelas épocas, com sinais evidentes de terem sido objeto 
de trepanação ainda em vida, e muitos deles com sinais de sobrevida, pelo crescimento 
centrípeto do osso perfurado.
    Supõe­se que muitos dos povos que praticavam a trepanação ­­ e seus indícios surgem em 
todos os quadrantes da Terra ­­ eram levados a ela por dois tipos básicos de motivos: devido 
a um problema de perigo de vida causado por um traumatismo craniano, ou uma solidamente 
arraigada crença de origem misteriosa que indicava como certa a localização de maus 
espíritos na cabeça do individuo.
    A crença de que males ou enfermidades eram causados por deuses vingativos ou 
enfurecidos, ou por maus espíritos, sempre existiu desde épocas pré­históricas, 
principalmente devido ao fato de os antigos habitantes da Terra desconhecerem as causas 
dos males. No entanto, quando se analisa os procedimentos e os métodos curativos de alguns 
povos como é o caso dos Incas verificamos que essa posição não pode ser generalizada. Não 
há muita lógica nas suposições de que nesse conceito cheio de mistério da origem dos males 
como castigo, maldição, magia negra, possam ser inseridos os procedimentos de tratamento 
usados nas intervenções cirúrgicas, nas amputações, nas trepanações, nas correções de 
defeitos congênitos, por exemplo.
    Na cultura Inca nota­se que incisões muito bem feitas denotam um conhecimento quase 
perfeito do mapeamento do sistema nervoso, pois cirurgias efetuadas do lado esquerdo do 
crânio destinavam­se a resolver problemas de paralisias do lado oposto do organismo, 
segundo nos provam especialistas no assunto.
    Nota­se pelo raciocínio lógico que, apesar de não dominarem o conhecimento das causas 
de certos males, os curandeiros ou os feiticeiros dominavam para seu próprio uso os 
procedimentos e as técnicas incipientes de tratamento físico. Usavam, sim, o fetiche, o 
amuleto, o palavreado misterioso, a fumaça cheirosa, o que não passava, na maioria dos 
casos, de um certo conforto psicológico para o doente.
    As trepanações entre os Incas das épocas anteriores ao descobrimento estão ligadas, em 
grande parte, a males incapacitantes. Dentre eles cumpre destacar os traumatismos cranianos 
por armas contundentes, os tumores internos e as infecções. Muito embora alguns dos 
estudiosos que analisam as cirurgias cranianas antigas e genericamente reconhecidas como 
trepanações, achem tratar­se de simples meios para facilitar a saída de espíritos malignos e 
prejudiciais que tinham entrado na cabeça da vítima, há cientistas que, ao se debruçar sobre 
crânios trepanados com muita cautela e muito espírito científico, admitem como causas 
dessas cirurgias tão sérias quanto perigosas, a dor, o vômito, a vertigem, as dificuldades de 
deambulação, a afasia, a cegueira, as convulsões e outros males incapacitantes. Sem esses 
sintomas é muito difícil imaginarmos a ocorrência de uma cirurgia dessas proporções e que 
demandava ­­ como ainda hoje demanda ­­ tantos cuidados na recuperação do doente.

    ­­ *As deficiências físicas há mais de 20 séculos na Califórnia*
    No Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia existem ossos descobertos na 
região de Bodega Head, a 70 quilômetros aproximadamente ao norte de Golden Gate, São 
Francisco. São esqueletos de 44 indivíduos que fazem parte de um acervo de achados 
arqueológicos de aproximadamente 2.200 anos. Eles nos trazem dados de um passado 
surpreendente e muito distante, quanto à forte incidência de certos males que, agravados pela 
falta de tratamento, levavam a situações de incapacidade naquela região de natureza 
litorânea. Essas informações preciosas foram levantadas graças aos especialistas em 
paleopatologia que é, como verificamos anteriormente, o estudo das doenças conforme 
ocorreram na vida das populações passadas.
    Num interessante artigo a respeito, James G.Roney Jr. dá­nos informações como estas:
  ­­ Dos 44 esqueletos encontrados e analisados, 20 (ou seja, 45% do total) apresentam sinais 
de condições patológicas parcial ou totalmente incapacitantes para uma vida plena. Quais 
eram esses males? Artrite, periosteíte, osteomielite, fraturas e anomalia congênita. Todas 
elas são encontradas nos esqueletos dos indivíduos adultos de mais de 20 anos de idade 
presumíveis.
  ­­ A artrite, segundo Roney, e suas lesões nos esqueletos em pauta atingem não só a área 
lombar, mas também eventualmente o tórax, a região sacro­ilíaca, os ombros, os joelhos, os 
dedos das mãos e dos pés e mesmo a área cervical.
    Vejamos algumas observações a respeito de um dos esqueletos estudados:
  "Número 7969: Adulto do sexo masculino, 35­39 anos de idade ao morrer, tinha 
osteoartrite na espinha cervical, toráxica e lombar e nas juntas sacro­ilíaca e nos 
joelhos"..."Além disso ele tinha periostelite em ambas as tíbias nas superfícies medial e 
lateral" .."Apresentava duas anomalias congênitas: uma costela bífida e espinha bífida no 
sacro. Tinha também fraturas solidificadas do quarto e quinto metatarsos direitos".
    Apesar de tantos problemas ­­ e com eles tantos e tão fortes sofrimentos ­­ foi um 
indivíduo que alcançou uma faixa etária elevada para o grupo em questão.
    O mesmo estudo indica que um dos esqueletos apresenta sinais evidentes do mal de Pott, 
com três costelas em forma de cunha e com a característica formação encurvada da espinha 
dorsal.
    Segundo Roney, as fraturas ocorriam basicamente devido a atividades de caça e de pesca, 
talvez devido a quedas nas rochas escorregadias muito características daquela região de 
beira­mar da Califórnia.
    Não nos resta dúvida de que diversos adultos do grupo analisado viveram anos a fio com 
dores atrozes e limitações de severidade variada. Mas vale a pena ressaltar que muitos dos 
esqueletos sem qualquer sinal de males incapacitantes eram de indivíduos abaixo de 19 anos 
(são 11 ao todo) e abaixo de 1 ano (6 ao todo). Talvez esse dado nos indique que os males 
aqui mencionados fossem conseqüentes a atividades de caça e pesca, básica para a 
sobrevivência do grupo.

            CAPÍTULO SEGUNDO
            A PESSOA DEFICIENTE DENTRO DAS CULTURAS ANTIGAS

    Muito embora seja difícil encontrarmos traços de civilização ou de sociedades melhor 
organizadas em épocas anteriores ao ano 4000 a.C., o homem conseguira já nas várias fases 
de eras muito remotas e sem memória da chamada Pré­História, trabalhar em criações e 
descobertas que foram de extremo valor para o estabelecimento de facilidades na vida dos 
grupos humanos. Dentre essas quase que "invenções" é necessário que destaquemos a 
utilização e o controle do fogo, as armas de médio e longo alcances, incluindo nelas até as 
lançadeiras de pedras, a utilização prática da roda, as embarcações, as armadilhas para 
prender animais selvagens, as roupas para melhor proteção de seu corpo, cestos para 
transportar e armazenar bens, as cerâmicas utilitárias, e também as residências mais seguras 
e mais confortáveis. O homem dominou igualmente os primeiros passos na utilização de 
alguns poucos metais básicos.
    No entanto, essas adaptações, descobertas e verdadeiras invenções muito criativas 
ocorriam de um modo geral em pequenos grupos de famílias e nem todas elas eram 
conhecidas e bem dominadas em todos os grupos espalhados pelas muitas regiões ocupadas 
pelo homem.
    Por volta do quarto milênio antes da nossa Era começaram a surgir grupos bem maiores 
de homens nas regiões da Mesopotâmia, no Egito e também no vale do famoso rio Indo. 
Esses grupos eram de alguma forma organizados e capazes de rápidos progressos, tanto em 
sua organização básica quanto no aprimoramento das habilidades manuais.
    Muito embora a preocupação básica com a sobrevivência levasse todos os grupos ao 
desenvolvimento de trabalhos relacionados à alimentação, ao abrigo e à defesa dos seus 
componentes, está fora de dúvida que neles também as artes, os ofícios e o que poderia ser 
chamado hoje de primeiros ensaios da ciência surgiram aos poucos e se firmaram; muito 
lentamente tornou­se notória a diferença entre os artífices e aqueles indivíduos mais 
qualificados por funções consideradas como vitais para o grupo: os que cuidavam das 
construções, os que entendiam das doenças ou dos ferimentos, os observadores e 
entendedores dos corpos celestes e todo o seu significado misterioso, os que se dedicavam 
aos elementos da natureza, à criação das crianças, à troca de bens, aos mistérios do mundo, à 
ordem, à defesa e também aos seres superiores.
    Fator de mais rápido e seguro progresso do homem primitivo foi o estabelecimento 
gradativo de alguns códigos de comunicação e de armazenamento de informações. A 
invenção da escrita, por exemplo, foi de notável utilidade e deve ter sido contemporânea 
com a instalação dos primeiros grupos mais civilizados no Egito. E foi por meio da escrita, 
cada vez melhor elaborada, que o homem conseguiu documentar sua evolução e transmitiu 
melhor aos demais os segredos que ia desvendando no mundo que o cercava. Tabuinhas 
assírias e papiros egípcios de aproximadamente 3.000 anos antes da Era Cristã nos dão 
algumas informações sobre incipientes profissões e sobre normas e regulamentos que o povo 
devia obedecer.
    Mas nem tudo estava necessariamente ligado à natureza ou a suas manifestações na vida 
diuturna do homem. Sua existência era muito sofrida e repleta de problemas que não tinham 
soluções fáceis. E ainda por cima surgia um elemento que o deixava sempre medroso: o 
desconhecido. Fenômenos da natureza, males incontroláveis e outros eventos foram levando 
o homem na direção daquilo que hoje conhecemos genericamente como "magia". Esta foi 
aos poucos sendo transformada em "religião" e desta foram surgindo pensamentos mais 
elaborados, ou seja, o raciocínio filosófico. Este tipo de encadeamento de pensamentos 
acabou levando à ciência, ou seja, ao método cientifico.
    Segundo autores diversos, a magia nada mais é do que uma errônea associação de idéias e 
suas leis não se baseiam em observações muito precisas. Baseiam­se, sim, em observações 
eventuais e também no desejo existente nas pessoas de concretizar atos ou fatos em geral, 
que estão fora de seu alcance.
    A idéia de divindade e de seu significado como origem de tudo foi deixando a magia de 
lado, embora esta não tenha desaparecido até os dias de hoje. E os deuses ­­ ou seja, essa 
mesma divindade transformada em seres de boa ou de má índole ­­ eram animadores, 
verdadeiros donos e gestores do céu, das nuvens, dos trovões e raios, da terra, dos ventos, da 
luz, da chuva, da água, do sol, da lua, do fogo, sendo imaginados de acordo com esses 
mesmos elementos.
    Dentre os grupos de homens mais evoluídos e dominadores de maior volume de 
conhecimentos das Eras Pré­Históricas, os que formaram as incipientes civilizações do Egito 
e da Mesopotâmia são muito mais antigos do que quaisquer outros de que tenhamos notícia, 
talvez 5.000 anos que antecederam a Era Cristã. Os primeiros indícios da cultura grega 
surgiram muito depois, talvez pelo ano 2000 a.C. A cultura romana por sua vez apenas 
floreceu a partir do século VIII a.C. 
    Por que a humanidade evoluiu mais e com rapidez maior no Egito e na Mesopotâmia? Por 
uma série de razões bastante concretas, sendo a mais significativa a fertilidade das terras 
banhadas por rios generosos.
    A fertilidade do solo na região da Mesopotâmia, por exemplo, era sempre assegurada pela 
cheia de seus rios, provocada principalmente pelo degelo das neves que cobrem as 
montanhas de grandes altitudes do interior do Oriente Médio. Havia também o próprio 
esforço dos povos que ali habitavam, construindo diques, melhor utilizando o fluxo das 
águas vindas pelos canais naturais de irrigação. Peixes eram de uma fartura sem par, aves 
das mais variadas espécies habitavam a região e animais ali viviam em grandes manadas. 
Além disso, a terra era muito fértil, levando o homem a cultivar com facilidade o trigo, a 
cevada, o arroz e outros cereais e frutas.
    Lutas começaram a ocorrer pelo domínio de terras férteis e dessas lutas surgiram 
domínios cada vez maiores e suas conseqüências: escravos, muitas vezes marcados como tal. 
Os poderosos senhores defendiam­se com homens armados que aos poucos foram se 
definindo em unidades organizadas e essas em exércitos. A religião floreceu sob a proteção 
desses donos de imensas glebas, muitas vezes para proteger seus interesses. Da mesma 
forma sucedeu com o mundo dos comerciantes.
    E as classes sociais foram aos poucos também sendo definidas: potentados e seus 
protegidos diretos de um lado, e do outro os lavradores, os que cuidavam de animais, os 
artífices, os escravos ou subjugados, todos sujeitos a entregar ao senhor (rei, monarca, faraó, 
emir, imperador, chefe absoluto, não importa o nome) parte de sua produção, ou seja, os 
tributos.
    Nessas condições de certa segurança, o comércio ­­ ou seja, a troca de bens ­­ começou a 
florescer,  principalmente ao longo dos caminhos ou à beira dos rios navegáveis. Surgiram 
então os aglomerados de casas ou de abrigos.
    No caso da Mesopotâmia sabemos que ela se transformou quase que imediatamente num 
ponto de forte atração para essas trocas vitais de bens e de informações. Cereais eram 
trocados por prata ou cobre; tecidos eram trocados por marfim; madeira por utensílios 
usados em casa. Os meios de troca não eram suficientes para a variedade oferecida, o que 
levou à criação de outros meios de pagamento. Uma das conseqüências desses contatos de 
homens vindos de muitas paragens estranhas foi a troca de informações, levando à 
acumulação de conhecimentos e ao domínio de invenções e de idéias novas, o que 
beneficiou evidentemente os moradores fixados nos aglomerados ou cidades.
    Não é difícil deduzir que, ao estudarmos as culturas mais significativas da antigüidade e 
que mais se relacionaram com a formação de nossa própria cultura, não poderemos deixar de 
ressaltar as provenientes dos milênios de experiência do Egito e da Mesopotâmia ­­ 
enfatizando principalmente o povo hebreu ­­ em muitas de suas fases de desenvolvimento, 
anteriores ou posteriores a Cristo. Além delas, jamais poderemos nos esquecer do muito que 
herdamos dos gregos e dos romanos.
    No ligeiro passar por esses tão distantes tempos vividos na história dos povos que tiveram 
significado na definição de nossa própria cultura e civilização, procuraremos voltar nossa 
atenção de um modo todo particular para os problemas decorrentes de deficiências físicas ou 
mentais, além de muitos males limitadores ou causadores de marginalidade, e o que eles 
podem ter significado para as pessoas e para as sociedades de então. Algumas referências 
são esporadicamente encontradas quanto ao problema que esses males representavam e 
quanto ao tratamento a eles dispensado. Documentos das mais variadas naturezas referem­se 
a eles sob ângulos variados e por vezes incomuns.
    Assim, nossas citações e informações deverão limitar­se aos mesmos sem muitos 
comentários, procurando deixar ao leitor a liberdade de análise dos usos, das leis, das obras 
de arte, do envolvimento da medicina e de outras ciências, de fatos históricos, de 
personalidades famosas que conseguimos coletar por esse rápido passar pela história dos 
egípcios, dos hebreus, dos gregos e dos romanos.

    1. Os Egípcios e seus vizinhos

    A civilização egípcia, conforme comentamos, é das mais antigas da humanidade. Quando 
falamos de Egito Antigo é bom que frizemos estarmos nos referindo a quase 5.000 anos de 
evolução anteriores, contemporâneos e posteriores a Cristo; e nele, durante muitos séculos, 
as classes sociais foram representadas pelos nobres, sacerdotes, guerreiros, escribas, 
mercadores, artesãos, lavradores e escravos. Estes últimos eram, em geral, povos mantidos 
em cativeiro ou prisioneiros de guerra.
    O desenvolvimento da civilização egípcia acha­se fortemente vinculado a fatores 
geográficos e climáticos favoráveis e relacionados à região onde ela se instalou. Trata­se de 
uma extensa área ­­ o vale do rio Nilo ­­localizada entre o Mediterrâneo, o Mar Vermelho e 
o deserto de Saara que foi ocupada muito vagarosamente por tribos que viviam da caça, na 
Era Neolítica. Seus descendentes lá se fixaram, agrupados em famílias que dominaram aos 
poucos as peculiaridades da região e a natureza por vezes hostil. Diminutos principados, 
separados uns dos outros, foram as incipientes comunidades espalhando­se devido ao 
domínio da agricultura, dos instrumentos que facilitavam o trabalho com a terra, das armas 
para a caça, para o ataque pessoal ou para defesa do grupo. Como na Mesopotâmia, 
pequenas propriedades começaram também a se agregar em propriedades mais extensas; 
diminutos reinos independentes, chamados "nomos", sob o domínio absoluto de seu líder, 
começaram a existir. Com o passar dos séculos, dois grandes reinos surgiram: o do Norte e o 
do Sul.  Por volta do ano 3000 a.C. o reino do Sul conquistou o do Norte, sendo estabelecida 
uma liderança única de um rei absoluto, um faraó, considerado a própria encarnação do deus 
Hórus.
    Essa civilização apresentava uma organização social e econômica muito própria e com 
uma sociedade toda hierarquizada, sendo que o faraó ­ deus entre os vários deuses ficava 
bem acima da pobre humanidade.
    Das classes sociais a dos sacerdotes era a mais poderosa, como é fácil de se deduzir, pois 
era ela que defendia a pretensa divindade do faraó e a sua intocabilidade. Os grandes 
templos, como os de Amon, chegaram a ter milhares de sacerdotes e terras úteis que 
chegaram a representar quase um décimo de toda a terra fértil do Egito.
    Essa situação toda era mantida pelos guerreiros que, evidentemente, tinham uma das 
melhores posições na sociedade egípcia, com os privilégios decorrentes. Os escribas, por sua 
vez, eram médios e pequenos servidores. Tinham posição invejada pelas camadas mais 
baixas da sociedade, mas mantinham­se firmes em sua posição devido à sua 
imprescindibilidade na sociedade egípcia.
    As atividades ligadas à produção de bens eram desenvolvidas por artífices e por 
camponeses, ajudados pelos escravos. A estes cabiam os trabalhos mais pesados para evitar 
o desgaste rápido dos bois. Coube aos escravos trazidos pelos guerreiros em suas inúmeras 
campanhas de conquista, a construção de diques, de templos, de palácios, de pirâmides, de 
monumentos. Além disso, eram também usados para bombeamento de água para os canais 
de irrigação durante a época das secas muito severas.
    Os mercadores, por sua vez, negociavam a grande produção armazenada nos anos de 
fartura, provocando trocas por mercadorias não produzidas no Egito com nações vizinhas e 
amigas.
    Muitas atividades artesanais sempre foram desenvolvidas no Egito, em oficinas próprias 
ou no lar, incluindo nelas a fabricação de diversos tipos de tecidos, especialmente do linho, 
sandálias de papiro, cerâmicas, jóias e muitos outros produtos. A produção artesanal de 
maior significado, no entanto, sempre foi a de rolos de papiros.

    ­­ *A atenção médica no Egito Antigo*
    Apesar de não existirem referências muito expressas sobre o assunto, por muitas dinastias 
da História Egípcia a atenção a pessoas que apresentavam indícios de males graves ou de 
deficiências físicas e mentais, fossem elas conseqüentes a malformações congênitas, 
acidentes ou infortúnios das guerras, circunscreveu­se aos membros da nobreza, aos 
sacerdotes, aos guerreiros e seus familiares. Todos eles podiam ser objeto das atenções dos 
sacerdotes especializados nos chamados "Livros Sagrados" sobre doenças e suas curas.
    Quanto ao atendimento médico às camadas menos favorecidas da população, sabe­se, por 
alguns documentos, que em dias prefixados os doentes eram transportados ao templo, onde 
sacerdotes mais jovens ou em formação davam seu atendimento gratuito. Era através dessa 
clínica ambulatorial incipiente que os jovens sacerdotes colocavam em prática os 
conhecimentos contidos nos livros e aprendiam a prática da arte da medicina ­ exclusividade 
sua. E era nessas clínicas para os pobres que também treinavam a arte da cirurgia. Os 
numerosos e estranhos instrumentos descobertos nos templos pelos egiptologistas deviam 
pertencer a esses locais de atendimento à pobreza.
    Para o novo sacerdote o ensino da arte médica podia durar muito tempo, dependendo do 
interesse e da própria inteligência do aluno. E quando seus mestres julgavam que estava 
pronto para a iniciação independente, o novo médico­sacerdote jurava solenemente não 
ensinar a ninguém os segredos dos livros sagrados. Os médicos­sacerdotes que conseguiam 
chegar ao final desses estudos e da prática requerida neles e passar pelas provas finais 
eliminatórias contra os quatro elementos (água, terra, fogo e ar), transformavam­se numa 
importante personalidade: faziam parte do alto clero, podiam usar a peruca de Osíris e o 
manto branco dos sábios. Seus serviços eram muito caros. 
    Assim, não é de admirar que muito poucos conseguiam ter um médico para cuidar de seus 
males. Membros das classes de rendimento médio precisavam contentar­se com alguns 
charlatões ligados à seita da deusa Sekhmet e que faziam parte de um clero inferior. Esses 
sacerdotes, em geral, haviam tentado inteirar­se da ciência dos livros sagrados, sem o 
conseguir, mostrando­se dessa forma indignos e incompetentes. Nesses sacerdotes 
inferiores, entretanto, predominava uma notória experiência.
    Como nos casos da China e da Índia, os templos egípcios sempre foram cercados por 
verdadeiros jardins botânicos, sendo um dos piedosos exercícios dos candidatos a médicos­
sacerdotes, durante sua formação, cuidar das platibandas dos templos, todas elas plantadas 
com flores ou arbustos de poderes curativos, utilizados tanto pelos detentores da mais alta 
sabedoria quanto pelos experimentados médicos­sacerdotes da deusa Sekhmet.
    De um modo geral as camadas mais pobres da população do Egito, tais como os 
lavradores, os artesãos e os escravos, dispunham de pouquíssimos recursos e ficavam à 
mercê de improvisadores, de exorcistas ignorantes que vendiam amuletos e feitiços aos 
trabalhadores e suas famílias. Dependiam também de algumas pessoas que pela vida afora 
haviam acumulado certos conhecimentos quanto aos efeitos de poções, ungüentos, sangrias e 
medicamentos naturais.
    A rica e muito diversificada experiência dos médicos­sacerdotes egípcios, que era sempre 
acrescida de novidades provenientes de reinos e estados da Mesopotâmia, nunca chegava às 
camadas mais pobres da população.

    ­­ *A medicina egípcia e os males incapacitantes*
    A medicina só surgiu no Egito no final do Velho Império e, em grande parte, acabou 
sendo um produto importado da Mesopotâmia. Mas o povo egípcio foi um dos primeiros a 
se preocupar em fazer, na História do Mundo, um registro de sua medicina, inclusive da 
medicina cirúrgica. Em papiros recentemente descobertos e decifrados, revela­se que os 
egípcios chegaram a tentar operações cranianas, operações no rosto e até na coluna vertebral, 
apesar da medicina daquelas eras ter sido quase que totalmente empírica.
    Na verdade, o sistema de medicina pré­científica que mais vestígios deixou foi o egípcio. 
Uma série de princípios mágicos e falsos o informava, além de haver nele inserida uma série 
de normas de higiene impostas a todos os habitantes. A medicina egípcia pairava entre o 
místico e o prático. Seus médicos­sacerdotes usavam poções, linimentos, cataplasmas, mel, 
sal, óleo de cedro, cascas de árvores, óleo de camomila, chifre de veado, excrementos, entre 
outros produtos, aliados a orações, oferendas, sacrifícios, além de uma indispensável fé nos 
deuses invocados. Heródoto (484 a 425 a.C.), o chamado "Pai da História", comenta com 
frases de muito respeito sobre os médicos­sacerdotes de Tebas e de Mênfis, tal a sua 
competência.
    A medicina egípcia muito colaborou para garantir ambientes mais limpos e mais sadios 
nas aglomerações urbanas, pois dela emanavam orientações para quase tudo o que poderia 
afetar a saúde pública e privada, tais como os enterros, a limpeza das casas, os banhos, a 
disposição e eliminação dos dejetos humanos e outras mais.
    Segundo os médicos do Antigo Egito as doenças graves e as deficiências físicas ou os 
problemas mentais graves eram provocados por maus espíritos, por demônios ou por 
pecados de vidas anteriores que deviam ser pagos. Dessa maneira não podiam ser debelados 
a não ser pela intervenção dos deuses, ou pelo poder divino que era passado aos médicos­
sacerdotes que às vezes tinham meios para chegar a esse desiderato. Em sua terapêutica 
usavam as preces, os exorcismos, os encantamentos, somados a poções, pomadas, elementos 
ou também a eventuais cirurgias.
    Existem alguns papiros que são excelentes referências quanto à arte médica egípcia e 
quanto à forma como ela cuidava de alguns problemas incapacitantes. E dentre eles cumpre 
que destaquemos o Papiro de Ebers, o de Edwin Smith e o de Brugsch.

    ­­ *Os famosos papiros e os problemas de deficiências*
    O papiro de Ebers, que hoje é patrimônio da Universidade de Leipzig, tem o comprimento 
de pouco mais de 20 metros ­­ talvez o correspondente a 110 páginas ­­ e foi descoberto no 
Egito em 1873, na necrópole de Tebas, pelo egiptólogo Ebers, que imediatamente o traduziu. 
É provavelmente o mais considerável de todos os documentos escritos sobre a medicina 
egípcia. Contém numerosos pequenos tratados que remontam a quinze séculos antes de 
Cristo, com fórmulas para tratar doenças as mais variadas, incluindo algumas que podem 
levar ao estabelecimento de uma deficiência física ou sensorial, como males dos olhos, 
problemas de ouvido, dos membros, dos vasos, da cabeça. Além disso, inclui tópicos 
importantes sobre ferimentos, queimaduras, fraturas e outros. Há receitas contra a 
conjuntivite, hemorragias do globo ocular e esquimoses perioculares. Há indicações de 
operação de catarata. Nenhuma outra cirurgia, entretanto, é nele indicada.
    Nesse famoso papiro de Ebers existe um tratado chamado de "Livro de Uchedu" no qual 
há trechos que falam com clareza a respeito da surdez.
    O papiro de Brugsch, propriedade do Museu do Estado (Berlim), foi descoberto nas 
proximidades de Zaqqarah. Data do século XVI a.C. e nele existem 204 prescrições de 
remédios. Ali, dentre as muitas receitas, o leitor encontrará algumas contra dores nos olhos e 
também contra a surdez. Uma delas é pomada para uso local, cuja fórmula é a seguinte:
  Planta "ank" ­ 1
  Bálsamo ­ 1
  Planta "ma" ­ 1
  "Plast" ­ 1
  Gordura animal

    Dos três papiros relacionados à arte médica no Egito o mais importante é o de Edwin 
Smith, que fala sobre cirurgia no Antigo Egito, em especial da cirurgia dos ossos, em casos 
de sérios problemas ortopédicos. Os casos e exemplos são citados sistematicamente nesta 
ordem: queixa, exame, diagnóstico e veredicto.
    Esse papiro, incompleto como foi achado, pertence à Sociedade Histórica de New York e 
tem apenas quatro metros e 68 centímetros de comprimento. Foi adquirido em Luxor, no ano 
de 1862, pelo próprio Edwin Smith. Segundo seus analistas, foi copiado há 3.600 anos atrás, 
embora contenha matéria já conhecida no Egito há mais de 4.000 anos. Seu autor parece ter 
sido um hábil cirurgião, além de um perfeito observador. Supõe­se que o tratado original 
lidava com a cirurgia de todo o corpo, mas o fragmento encontrado analisa apenas cirurgias 
da cabeça, do pescoço e do peito. O autor menciona fraturas tratadas com talas, fala sobre 
redução de deslocamentos da bacia e sobre sutura de ferimentos. Acham alguns autores que 
o papiro de Edwin Smith foi escrito pelo médico Imhotep, que séculos após sua morte foi 
transformado no padroeiro egípcio da arte de curar, e mesmo no deus da medicina.

    ­­ *As deficiências físicas no Antigo Egito*
    Se de um lado os ossos pré­históricos nos dão certeza da existência de males 
incapacitantes nos muitos milênios de vida do homem primitivo, conforme vimos antes, de 
outro, os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam­nos 
indícios muito seguros não só da antigüidade de alguns males, como também da maneira 
como alguns ferimentos eram cuidados e das várias formas adotadas para o tratamento das 
doenças.
    A paleopatologia tem tido um campo muito fértil nas terras do Egito, onde mais do que 
em qualquer outra parte do mundo, as técnicas de embalsamamento conseguiram sucesso na 
conservação dos corpos. Tem sido exatamente nesses corpos embalsamados que os cientistas 
têm podido reconhecer ferimentos graves, processos degenerativos, fraturas e várias outras 
lesões que fornecem abundante material sobre a medicina egípcia.
    Segundo muitos autores, provavelmente o povo egípcio foi o mais saudável da 
antigüidade, devido à sua dieta vegetariana e também à amplidão de seus muitos dias 
ensolarados. No entanto, o exame patológico de algumas múmias tem comprovado que 
várias doenças graves chegaram a atingir duramente o povo egípcio e uma delas era uma 
infecção dos olhos que muitas vezes levava à cegueira. O Egito chegou a ser conhecido por 
muito tempo como a "Terra dos Cegos", tal foi a extensão e a gravidade desse problema .
    ­­ *Os males que levavam a deficiências físicas*
    Dentre as lesões descobertas através dos exames feitos em múmias ou em esqueletos do 
Egito Antigo, cumpre que destaquemos aquelas que provocam em suas vítimas lesões mais 
limitadoras, levando o homem a tornar­se temporária ou permanentemente limitado em suas 
atividades:
  ­­artrite crônica
  ­­espondilite deformante
  ­­Mal de Pott
  ­­pé varo eqüino
  ­­hidrocefalia
  ­­ gota
  ­­osteosarcoma
  ­­fratura
  ­­amputação

    Convém ressaltar que em boa porcentagem do vasto material estudado pelos 
paleopatologistas, as lesões em esqueletos revelam de um modo todo especial a presença da 
artrite crônica, com forte incidência na coluna lombar.
    Sir Armand Ruffer, uma reconhecida autoridade no assunto, analisou múmias nos museus 
de Alexandria e do Cairo e notou diversas lesões sérias em algumas delas. Ao escrever a 
respeito de suas conclusões afirmou: "As lesões que descrevemos não poderiam ter sido 
produzidas em povo não­civilizado, pois os doentes morreriam de inanição antes que as 
mesmas chegassem ao ponto que chegaram e sua existência é a melhor prova do alto grau de 
civilização atingida pelos antigos egípcios" (Apud Riad).

    ­­ *Casos concretos de lesões incapacitantes*
    Vejamos alguns exemplos de lesões provocadoras de deficiências físicas que chegaram 
até nossos dias devido à existência das mesmas em múmias, esqueletos ou obras de arte de 
naturezas várias:
    ­ No ano de 1910 vários cientistas estudavam e descreviam a múmia de um sacerdote do 
deus Amon, da XXI Dinastia (aproximadamente século X e XI a.C.). O corpo apresenta 
indícios claros de ter sido vítima do Mal de Pott, com um forte deslocamento da coluna 
vertebral. Registre­se que vários outros casos do mesmo mal foram igualmente identificados, 
dentre os quais salientamos alguns registrados na arte egípcia, como segue: Múmia de um 
nobre (XII Dinastia ­ aproximadamente século XIX a.C.), localizada num belíssimo túmulo 
de Beni­Hassan, com lesões que indicam o atingimento das regiões cervical inferior e dorsal 
superior; em outro túmulo (XVIII Dinastia­­aproximadamente século XIV a.C.), existente 
em Tel­el­Amarna, podemos observar uma pintura mural na qual há um nobre com lesões 
nas regiões dorsal superior e lombar; num túmulo existente em Tebas (XIX Dinastia­­
aproximadamente século XIII a.C.) podemos admirar uma pintura que representa um 
jardineiro com evidentes sinais do Mal de Pott levando água a um elevador do liquido.
  ­ Em Beni­Hassan podemos também admirar a estátua de um anão com as pernas 
defeituosas, com forte arqueamento.
  ­ Casos de pés tortos ou caídos existem diversos. Dois deles são de anões mumificados que 
se encontram em Beni­Hassan. Existem também figuras de anões com os dois pés tortos 
(varos eqüinos) em outro túmulo de Tel­el­Amarna. Há no Museu do Cairo a famosa múmia 
do faraó Siptah (XIX Dinastia, ou seja, século XIII a.C.), com o pé esquerdo visivelmente 
deformado.
  ­ Uma estátua da XI Dinastia (por volta do século XXI a.C.) deixa muito claro o problema 
de elefantíase nas pernas do faraó Mentuhotep.

    ­­ *A incidência de fraturas e outros problemas*
    Quanto à incidência de fraturas, existe um estudo de aproximadamente 6.000 esqueletos 
de todas as idades e de todos os períodos da História do Egito Antigo. Segundo os resultados 
apurados, um em cada 32 indicam a existência de fratura solidificada corretamente.
    A mais comum delas é a fratura do ante­braço (31% dos casos estudados), certamente 
devido a atividades desportivas ou conseqüentes a acidentes das mais variadas ordens. 
Fraturas da clavícula e mesmo do fêmur chegam a mais de 10% dos casos (Apud Salib, 
Dastugue e Wells).
    Muito embora a cirurgia egípcia não tenha podido se voltar para casos de malformações 
congênitas, há autores que afirmam que a fissura lábio­palatal chegou a ser atendida. Um 
indício desse atendimento é encontradiço numa das muitas múmias examinadas, que tem 
uma prótese rudimentar ligada aos molares por fios de ouro.

    ­­ *Os anões na vida e na arte egípcias*
    Na cultura egípcia antiga os anões jamais foram olhados como seres marginalizados ou 
desgraçados,  inferiores aos outros homens. Os de classes mais elevadas podiam aspirar a 
qualquer cargo que fosse; os provenientes de classes mais pobres eram por vezes adquiridos 
por grandes somas por faraós ou ricos senhores.
    Os anões da raça Dang, por exemplo, eram os mais procurados por serem excelentes 
dançarinos. Há textos hieroglíficos que a eles fazem menção: ..."ele dançará como um anão 
diante de Osíris" (Apud Riad).
    Afrescos existentes nas paredes e outros recantos dos túmulos por vezes magníficos e 
algumas estatuetas sugerem­nos que havia um elevado número de anões no Egito. Eles são 
em geral representados com fidelidade: corpos musculosos, um pouco gordos, membros 
curtos, cabeças grandes, pernas por vezes arqueadas e muitas vezes corcundas.
    Em algumas obras de arte os anões aparecem aos pés de seus mestrês ou cuidam de 
animais favoritos.  Aparecem levando um cão para passear, caçando pássaros, ou segurando 
um macaco preso; outras vezes são representados fazendo trabalhos de ourivesaria ou de 
joalheria.
    Um dos deuses do imenso panteão egípcio é representado como um anão disforme de 
pernas arqueadas e aparência feroz. Trata­se de Bés, deus dos combates, dos jogos e das 
danças. Servia de amuleto contra todos os males devido à sua feiúra. Segundo alguns 
autores, Bés personificava os sentimentos que os homens deficientes suscitavam, mas 
basicamente como gênios bons.
    Existe no Museu do Cairo um sarcófago da época Saita (1150 a 336 a.C.) com a famosa 
múmia de Talchos, representado na tampa como um anão que realmente era em vida. A 
inscrição cita sua piedade, pois dançava magnificamente em festas religiosas.

    ­­ *Uma estela votiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro*
    Uma placa de calcáreo com ilustrações e palavras em símbolos hieroglíficos e hoje em dia 
muito famosa entre os ortopedistas e profissionais de reabilitação. Ela retrata um momento 
muito significativo na vida de um homem portador de deficiência física que viveu no Egito 
aproximadamente 1.300 anos antes da Era Cristã e que tinha uma profissão de alta 
responsabilidade no mundo egípcio de então: era porteiro, e seu nome era Roma.
    Devido à multiplicidade de versões quanto ao significado da cena ali retratada, nada 
melhor do que o próprio museu onde a peça se encontra para estabelecer com clareza o seu 
sentido. Segundo a Ny Carlsberg Glyptotek, de Copenhague (Dinamarca), que é a 
proprietária da citada obra de arte, estes são os dados principais a seu respeito:
  ­­ Trata­se de uma estela votiva classificada como AAEIN 134, da XIX Dinastia e 
originária de Mênfis. Tendo sua parte superior côncava, ela mede 0,27 cm de altura por 0,18 
cm de largura e sua coloração natural está parcialmente conservada.
  ­­ Ao alto da estela está inscrita sua dedicatória com hieróglifos coloridos de azul: "À 
Deusa Astarte". E no campo principal, logo abaixo, vemos o "porteiro Roma", sua esposa 
"Amaô" e seu filho "Ptahemheb". O grupo leva oferendas à famosa e muito conceituada 
deusa originária da Síria. Roma aproxima­se de uma pequena mesa coberta de alimentos e 
de flores que ele molha com água benta,apresentando um pão num vaso de pé alto. Com 
uma postura muito digna, expressa seu pedido à deusa nestes termos: "Receba estes bens 
para a tua alma".
  ­­ A esposa leva um recipiente com alguma fruta (ao que parece são bananas) e conduz um 
antílope seguro pelos chifres. O porteiro Roma, de cabeça zelosamente raspada, como era 
costumeiro, veste uma túnica pregueada, curta e parcialmente transparente. Sua perna 
esquerda apresenta anomalia de musculatura e o pé está atrofiado ("pés eqüinus"), talvez 
devido a paralisia infantil, segundo alguns médicos contemporâneos. Não pode andar com 
firmeza sem seu bastão de apoio que durante a pequena cerimônia permanece preso a seu 
corpo por meio de seu braço esquerdo. Abaixo da cena, num campo separado, temos a prece 
básica e motivo da própria estela, em caracteres negros semi­destruídos: "Que o rei esteja de 
acordo e conceda, para que Astarte Síria, a soberana do céu, a senhora das duas terras, a 
primeira entre os deuses, também esteja favorável e  conceda.....boa...alegria e felicidade e 
um bonito enterro no deserto ocidental de Mênfis à alma do porteiro Roma" (Apud Koefoed­
Petersen).

    ­­ *As especialidades médicas e o problema das deficiências no Egito*
    Segundo Heródoto, a medicina egípcia era muito sábia. Já naquelas remotas eras havia 
especialidades, pois havia médicos para males da cabeça, para problemas com dentes, para 
dores no ventre e regiões vizinhas e para males internos. Havia também médicos para 
problemas de ossos. Praticamente todos eles aprendiam e exercitavam a arte da cirurgia.
    Apesar de suas falhas e de seu empirismo todo, a medicina egípcia era famosa e a mais 
conhecida por séculos em todo o mundo civilizado de então. Homero fez referências a seus 
médicos e tanto Ciro quanto Dario tinham médicos egípcios. Ciro, por exemplo, mandou 
buscar o melhor especialista em problemas da visão com o Faraó de nome Ahmasis (560 
a.C.), como veremos mais adiante. No entanto, pouco nos é relatado quanto a problemas 
relacionados a males deformantes, amputações e paralisias.
    Todo estudioso da História Egípcia já ouviu falar em "Livros Herméticos". São obras 
muito importantes relacionadas à arte médica e atribuídas ao deus Toth, ou seja, a Hermes 
Trismegisto, usualmente representado por um homem com a cabeça de Ibis, e considerado o 
patrono da medicina. Dentre os famosos "Livros Herméticos" há um conhecido como "Livro 
dos Cyranidos", que contém 24 capítulos e apresenta um manancial muito importante de 
conhecimentos. Procura voltar às tradições de Zoroastro, citando para cada um dos capítulos 
uma planta, uma pedra, um pássaro e um peixe que reúnem suas virtudes para combater os 
males neles discutidos. Quanto a problemas que levam a deficiências são citadas as 
seguintes pedras com propriedades terapêuticas: o berilo alivia ataques de epilepsia e 
também a nefrite; o âmbar e a esmeralda são poderosos e muito eficientes nos males da 
visão.
    Apesar de diminuir em importância com o surgimento da medicina grega no cenário 
mundial, durante séculos a medicina greco­romana socorreu­se da medicina egípcia; 
médicos como Galeno e Dioscórides, por exemplo, mencionavam medicamentos e métodos 
de tratamento egípcios e faziam prescrição de remédios usados no Egito, graças a 
conhecimentos adquiridos nos templos de Ptah ou de Imhotep, em Mênfis.

    ­­ *Conceito da medicina egípcia na Odisséia, de Homero*
    Os egípcios não gozaram apenas de merecida fama de sábios e eruditos, conforme bem o 
demonstraram viagens de alguns dos maiores sábios da antigüidade, dentre os quais estão 
Heródoto, Thales de Mileto, Pitágoras, Demócrito, Platão e Eudóxio. Por vários séculos 
desfrutaram também da fama de constituírem um povo que possuía os melhores médicos do 
mundo. Homero faz menção expressa a isso na Odisséia, escrita cinco séculos antes do 
nascimento de Cristo. Diz o seguinte em seu Canto IV: "Neste momento, Helena, filha de 
Zeus, concebeu novo plano. No vinho da cratera donde bebiam, lançou de súbito uma droga, 
um calmante da dor e do ressentimento, que fazia esquecer todos os males. Bastaria que 
alguém a tragasse para que em todo o dia as lágrimas lhe não corressem pelas faces, nem 
mesmo que morressem sua mãe e seu pai em sua presença, nem diante dos olhos seu irmão e 
filhos fossem mortos pelo bronze, tais as drogas engenhosas e salutares que a filha de Zeus 
recebera em dádiva de Polihamna, mulher de Ton, nascida no Egito, país onde a terra, fértil 
em trigo, produz também símplices em abundância, com os quais se preparam misturas, 
umas benéficas, outras nocivas. Todos ali são médicos, os mais hábeis do mundo, porque 
todos descendem do sangue de Péon" ("Odisséia", de Homero).
    Segundo a mitologia egípcia Péon era considerado como o próprio médico dos deuses.

    ­­ *Anísis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C.*
    Heródoto fala­nos de um faraó cego, sem citá­lo como lendário. Trata­se de Anísis, que 
viveu muitas atribulações como rei dos egípcios em época localizada aproximadamente 
2.500 anos antes da Era Cristã. Em breves palavras o Pai da História informa que durante 
seu reinado o Egito foi invadido pelos etíopes­­vizinhos do sul ­ não restando ao faraó outra 
alternativa a não ser a fuga.
    O então jovem rei fugiu através dos pântanos e ali viveu refugiado durante a longa 
ocupação inimiga por nada menos do que 50 anos. Heródoto acrescenta que "assim que 
Sábados" ­ o rei dos invasores ­ "deixou o Egito, Anísis (o cego) saiu da região pantanosa 
onde se refugiara e retomou as rédeas do governo. Tinha permanecido 50 anos numa ilha por 
ele próprio formada com cinza e terra, pois quando os egípcios lhe iam levar víveres, cada 
um de acordo com as suas posses, ele lhes pedia um pouco de cinza, que ia acumulando em 
mistura com a terra" ("História", de Heródoto).

    ­­ *A deficiência visual na mitologia egípcia*
    O mesmo historiador refere­se a mais dois faraós que ficaram cegos, mas seus nomes são 
um tanto lendários. O primeiro deles é Sesóstris, que dividiu o Egito em 36 "nomos" e 
conquistou pelas armas todo o mundo conhecido. De volta ao Egito com uma multidão de 
cativos, foi bastante exaltado, fez construir muitos monumentos e mandou executar muitas 
obras de utilidade pública. Ficou cego em sua velhice e acabou suicidando­se.
    Seu sucessor foi Phéron, que ficou cego logo após assumir o poder. A narrativa de 
Heródoto leva nos a analisar fatos bastante fantasiosos: "Conta­se que tendo o Nilo 
transbordado dezoito côvados nessa ocasião" ­ correspondem a mais de onze metros acima 
de seu leito original ­ "submergindo todos os campos vizinhos, começou a soprar um vento 
impetuoso, agitando as vagas com violência. Phéron, numa louca temeridade, tomou de um 
dardo e lançou­o no meio do turbilhão das águas. Pouco depois seus olhos eram acometidos 
de um mal súbito e ele ficava cego. Permaneceu dez anos nesse estado" ("História", de 
Heródoto).
    No décimo primeiro ano, já muito arrependido, obteve do deus Nilo a promessa de 
recuperar a visão, desde que lavasse os olhos com a urina de uma mulher que nunca tivesse 
tido contato com outro homem senão com o seu próprio marido.
    A experiência com a urina de sua própria esposa não deu resultados. O infeliz faraó 
continuou a fazer tentativas, até que um dia recuperou a visão. Agradeceu ao deus Nilo com 
oferendas e tomou uma providência adicional: reuniu todas as mulheres infiéis aos seus 
maridos ­ inclusive a sua ­ numa cidade abandonada e mandou incendiá­la, matando a todas 
elas. Logo em seguida casou­se com a mulher que lhe devolvera a visão.

    ­­ *Um coral de homens cegos para Amenhotep IV*
    Na XVIII Dinastia de faraós egípcios, ou seja, no século XIV a.C., Amenhotep IV 
destacou­se pelas suas fortes e persistentes tentativas de introduzir no Egito o culto a um 
deus único. Durante os 18 anos de seu reinado combateu duramente toda a plêiade de deuses 
e deusas, incluindo o mais forte de todos eles: Amon.
    O novo deus era representado pelo sol e seu nome era Aton. Em sua homenagem 
Amenhotep IV alterou seu próprio nome para Akhenaton (ou Ikhnaton), nome que significa 
"aquele que torna Aton feliz" ou algo semelhante. Fez mais, mudando a sede imperial de 
Tebas para uma nova cidade planejada para homenagear Aton: Akhetaton (hojeTel­el­
Amarna). Foi casado com Nefertiti, tendo o casal gerado seis filhas, ou seja, nenhum 
herdeiro do sexo masculino, o que, segundo Neubert, talvez explique o rosto triste da rainha 
em contraste com sua beleza pura, retratado numa famosa estatueta de 34 cm de altura, que 
todos conhecem.
    Foi considerado um idealista, um pacifista, um revolucionário. O clero voltado ao deus 
Amon considerava­o evidentemente um herético.
    Akhenaton era um homem doentio e sofria muito com ataques epiléticos, então 
considerados como evidentes sinais de contatos com o seu deus. Vários historiadores 
dedicaram­se a esse estranho faraó monoteísta. Contam alguns deles que em sua nova capital 
ele cultuava esse seu deus único não só em público, mas também  particularmente e em 
especial quando sentia a iminência da "aproximação de Aton", nos ataques de epilepsia. E, 
para não haver testemunhas oculares de suas crises quando em palácio, só admitia cantores 
cegos no coral masculino do templo do palácio.
    Esse coral de homens cegos cantava em tons severos a exaltação a Aton, em um hino que 
passou para a posteridade e do qual destacamos o seguinte belo trecho:
    "Quão vastos são os vossos trabalhos!
    Eles estão escondidos em nossa frente,
    O deus único, cujos poderes nenhum outro possui!
    Criastes a terra de acordo com o vosso coração"  (Apud Encyclopaedia Britannica).

    Akhenaton, o primeiro rei monoteísta e o que mais se destacou no Egito em termos de 
idéias religiosas, viveu duzentos anos depois de Moisés ter deixado o Egito com seu povo 
também monoteísta... Haveria alguma ligação entre uma idéia e outra? O tema da vida de 
Akhenaton foi bem explorado por Mika Waltari, escritor finlandês, no romance "Sinuhe, o 
Egípcio", depois transformado em magnífico filme, com o título de "O Egípcio".

    ­­ *As penas mutiladoras no Egito Antigo*
    Durante os muitos séculos de sua interessante história os egípcios conheceram as 
seguintes penalidades por crimes:
  ­ a morte
  ­ os trabalhos forçados
  ­ a mutilação (das duas mãos, das partes genitais, do nariz, da língua ou das orelhas)
  ­ a servidão
  ­ o flagelo
  ­ o jejum forçado
  ­ a infâmia
  ­ o confisco de bens
  ­ a multa

    Eram penas freqüentemente aplicadas e não há indícios confiáveis de que os faraós se 
voltassem de um modo especial para sua amenização.
    Em geral a mutilação atingia os membros ou a parte do corpo com os quais o condenado 
havia cometido seu crime.
    Diodoro de Sicília, historiador grego radicado em Roma, contemporâneo tanto de Augusto 
quanto de Caio Júlio César, afirma que cada um "pela punição da parte do corpo com a qual 
o crime havia sido cometido, portava até a morte uma indelével marca que, pela divulgação 
desse castigo, devia impedir outros de agir contra a lei" (Apud Thonissen).
    Era costumeiro no Egito Antigo mandar­se cortar o nariz da mulher adúltera, enquanto 
que seu cúmplice recebia mil golpes de vara. Cortava­se também a língua do espião delator, 
especialmente quando revelava segredos de Estado.
    O conquistador etíope Actisanos, por exemplo, era um rei considerado "bondoso", 
segundo Diodoro de Sicília. Essa bondade transparecia principalmente durante anos de 
fartura e prosperidade. No entanto, mostrava­se muito severo para com os assaltantes, os 
criminosos em geral e os bandidos que punham a população sob contínuo terror. O famoso 
historiador grego afirma que "ele não condenava os culpados à morte, mas não os deixava 
sem punição. Reunindo todos os condenados do reino, tomou conhecimento preciso de seus 
crimes; fez então cortar o nariz dos culpados, mandando­os para os confins do deserto e 
fixando­os numa cidade que, para lembrar essa mutilação, tomou o nome de Rhinocolura (de 
"rhinos" = nariz e "koluros" = cortado)" (Apud Thonissen).
    A cidade de Rhinocolura ficava próximo ao ponto em que hoje se localiza El­Arish, no 
Sinai, nas costas do Mediterrâneo.

    ­­ *Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas*
     Conforme referimos anteriormente o rei Ciro, o Grande (reinou de 558 a 529 a.C), 
garantiu a presença contínua de médicos egípcios em sua corte. E devido a graves problemas 
com doenças dos olhos que levavam muitos de seus súditos à cegueira ­ sem muita diferença 
do Egito ­ Ciro solicitou também ao faraó Ahmasis que lhe enviasse o seu melhor 
especialista. O faraó atendeu imediatamente e o médico especializado em problemas da 
visão atuou na Pérsia durante vários anos, combatendo a alta incidência de casos que 
corriam riscos sérios de ficar cegos.
    À morte do grande fundador do Império Persa, esse médico egípcio, que jamais 
conseguira perdoar seu faraó por tê­lo mandado à Pérsia, onde ficara longe de sua esposa e 
filhos e de seu próprio ambiente, começou a trabalhar o jovem rei Cambises (reinou de 529 a 
522), filho e sucessor de Ciro, para poder vingar­se de  Ahmasis e eventualmente voltar ao 
Egito. Chamou sua atenção para a beleza da mulher egípcia e convenceu­o a pedir a filha do 
faraó para casar­se com ela. O faraó, sabedor das intenções de Cambises e achando 
inaceitável mandar sua filha para viver, como concubina do novo monarca, enviou em seu 
lugar a filha de Apries, faraó por ele destronado.
    A linda jovem Nitétis chegou a Cambises com vestidos caríssimos e cheia de jóias. Mas 
logo Cambises ficou sabendo do engano, pois, conforme relata o historiador Heródoto, 
"algum tempo depois, como Cambises a saudasse pelo nome do pai, ela replicou: Ahmasis, 
senhor, vos enganou. Enviou­me ele a vós com estas ricas indumentárias em lugar de sua 
filha. Meu pai chamava­se Apries, por ele destronado e morto pelos egípcios que se 
sublevaram sob seu comando" ("História", de Heródoto).
    Cambises ficou enfurecido e pouco depois invadiu o Egito (em 525 a.C.) como desforra 
pela deslealdade de que se sentira vítima. Deixou governando a Pérsia seu irmão mais novo, 
Smérdis. Ao vencer Ahmasis e tomar posse de todo o Egito, no qual permaneceria até sua 
morte, encerrou a XXVI Dinastia e introduziu os faraós da XXVII Dinastia.

    ­­ *Gaumata, um famoso mago de orelhas amputadas*
    O mesmo Cambises, logo ao início de seu reinado de sete anos, mandara um dia amputar 
as orelhas de um mago de sua corte devido a faltas muito graves. O castigo era inusitado 
para os magos, pois eles eram membros importantes da casta sacerdotal persa.
    Apesar da forte marca pelo resto de seus dias, o mago castigado, cujo nome era Gaumata, 
disfarçou muito bem sua deficiência infamante, pois a circunstância de ser bastante parecido 
com Smérdis, irmão de Cambises, acabou levando­o a usurpar o trono persa.
    Como sucedeu o logro? Heródoto conta­nos que durante a ausência da Pérsia em 
campanha no Egito, Cambises aos poucos começou a desconfiar seriamente de Smérdis, seu 
irmão, que havia deixado como ocupante provisório do mais alto mandato para governar a 
região em sua ausência prolongada. Sob um forte esquema sigiloso mandou seus oficiais de 
confiança matar seu irmão, o que foi feito sem qualquer comoção junto às tropas persas ou 
junto à nobreza, pois na verdade ninguém ficou sabendo do hediondo crime.
    No entanto, o esperto Gaumata soube do evento e apareceu em cerimônia da corte como o 
próprio Smérdis, sem qualquer surpresa, tal sua parecença com o rei assassinado.
    Houve tentativas frustradas para desmascarar a fraude levada a efeito por um homem que 
poderia estar marginalizado devido às suas orelhas cortadas. Sete líderes das melhores e 
mais fortes famílias persas decidiram cautelosamente esclarecer o assunto e na tentativa final 
participou uma jovem de nome Fédima, uma das concubinas do falso rei da Pérsia. Ela 
pertencia a uma das sete famílias interessadas e, instigada pelo pai, verificou no meio da 
noite, enquanto o falso rei dormia, que se tratava de Gaumata (ela viu que suas orelhas eram 
realmente amputadas) que continuamente disfarçava o problema com os cabelos longos 
usados então.
    E foi exatamente nesse ponto importante da História Persa que surgiu a vivaz figura de 
Dario, jovem e audacioso nobre persa que até então fizera parte da guarda pessoal de 
Cambises, que assumiu rapidamente a liderança do grupo dos sete líderes que sempre havia 
desejado livrar o Império daquele impostor.
    Smérdis (na verdade, Gaumata, o mago de orelhas amputadas) foi morto pelo próprio 
Dario, tendo conseguido permanecer por sete meses no trono como soberano persa.
    O evento foi imortalizado num famoso e estranho monumento nas montanhas de 
Behistun, a oeste do Iran, gravado em pedra a mais de 100 metros de altura, com dizeres em 
três línguas diferentes e em caracteres cuneiformes. Nesse alto­relevo, concluído em 516 
a.C., aparece Dario pisando o prostrado Gaumata, tendo à sua frente mais oito reis por ele 
vencidos. Dentre eles cumpre que chamemos a atenção para o último da fila, de chapéu 
ponteagudo à cabeça, ou seja, o rei Phaortes II que foi duramente castigado por sua 
resistência às forças de Dario: teve seu nariz, suas orelhas e sua língua amputados e seus 
olhos vazados.
    Em conseqüência do desmascaramento do falso monarca Smérdis, ocorreu uma 
verdadeira chacina geral dos magos na cidade de Persópolis. Foi então instituída a grande 
festividade persa que foi comemorada por muitos séculos, conhecida pelo nome de 
"magofonia" (de "magos" = mago e "phonia" = matança).
    Subiu ao trono o jovem Dario I (reinou de 521 a 485 a.C.) graças a um truque denotador 
de sua criatividade e vivacidade, e que devido a um acidente logo ao início de seu reinado 
quase foi vítima de uma bastante séria limitação física, da qual se livrou graças a um médico 
grego, conforme veremos mais adiante ao nos referirmos à expansão da medicina grega e 
seus famosos médicos.

    ­­ *Zópiro; tudo pela vitória de Dario I em Babilônia*
    Dentre os sete magnatas persas que colaboraram para a eliminação de Gaumata, o mago 
de orelhas cortadas de que falamos acima, Zópiro foi o que mais se sobressaiu, tendo 
marcado sua existência por uma extremada amizade por Dario I.
    Embora fosse sátrapa (governador) de uma das províncias persas, colaborou forte e 
decisivamente na feroz batalha pela tomada da sempre cobiçada Babilônia, capital do 
Império Assírio, cujo imperador era Nabucodonosor III. Na verdade, Zópiro viabilizou 
diretamente a queda de Babilônia por meio de um truque único na História do mundo: Fez 
com que seus servos o chicoteassem até o sangramento e logo em seguida amputassem seu 
nariz e suas orelhas. Nesse lamentável estado apresentou­se às forças assírias e culpou Dario 
I por aquele "castigo". Eles acreditaram e o aceitaram em seu meio. Mais do que isso, face 
ao ódio que Zópiro demonstrava contra Dario, e considerando sua experiência militar, 
agregaram­no logo ao próprio sistema de defesa das muralhas, encarregando­o da guarda de 
dois portões que davam acesso à maravilhosa cidade.
    Nessa privilegiada condição de comandante, ele próprio abriu o acesso às forças de Dario 
que conquistaram Babilônia em 519 a.C. E em reconhecimento pelo seu feito heróico e de 
lealdade fora do comum, Dario I deu­lhe o governo de Babilônia, concessão essa garantida a 
seus descendentes.
    Luís de Camões faz menção ao feito heróico de Zópiro com os seguintes versos:
  ... "Que mais o Persa fez naquela empresa
  Onde rostos e narizes se cortava?
  Do que ao grande Dario tanto pesa
  Que, mil vezes dizendo, suspirava
  Que mais o seu Zópiro são prezara
  Que vinte Babilônias que tomara" ("Os Lusiadas", de Camões).

    ­­ *A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C.*
    Ainda durante a vida de Aristóteles, o grande sábio ateniense, Alexandre, o Grande, 
praticamente conquistou o mundo ocidental conhecido em sua época e fundou cidades cujos 
habitantes falavam grego e adotavam costumes gregos. No ano de 332 a.C. fundou no delta 
do rio Nilo a cidade de Alexandria, que foi por muitos anos o maior centro de cultura do 
mundo.
    Alexandria era uma cidade moderna, com suas ruas em forma de xadrez de linhas 
paralelas, canais subterrâneos para dejetos humanos e para água servida em cada uma delas; 
duas avenidas principais com mais de 60 metros de largura e o Grande Farol ­­ uma das sete 
maravilhas do mundo ­­ eram algumas das características marcantes da famosa cidade.
    O sucessor de Alexandre, Ptolomeu Soter, reinou no Egito de 323 até 285 a.C. e foi um 
grande protetor e promotor da sabedoria e da cultura. Sob seu reinado foi criada a 
mundialmente famosa Escola de Alexandria. E dentre suas diversas unidades destacou­se 
desde logo a Escola de Anatomia, inserida na Academia de Ciências.
    A medicina egípcia ­­ que procurava dar cobertura a males que afetavam duramente o 
povo e as classes privilegiadas, inclusive a problemas de ossos e dos olhos, que levavam a 
muitas deficiências físicas e sensoriais ­­ fez rápidos progressos científicos após a instalação 
da Escola de Anatomia. E nela, dois nomes destacaram­se face à importância de seus 
estudos para melhor compreensão dos males incapacitantes; Herophilus de Chaludônia e 
Erasistratus de Kéos.
  ­ Herophilus foi um anatomista que viveu no século IV a.C. e um dos fundadores da Escola 
de Anatomia. Um dos primeiros médicos a desenvolverem exames post­mortem, pôde 
estudar em muitos pormenores o globo ocular e os males que levavam à cegueira, como a 
catarata. Dentre seus diversos estudos ressalta­se aquele que demonstra o valor curativo da 
ginástica e dos exercícios físicos. Ele é considerado como o "Pai da Anatomia".
  ­ Erasistratus de Kéos, igualmente do século IV a.C. foi também um renomado anatomista 
e fisiologista, co­fundador da Escola de Anatomia, ao lado de Herophilus. Seus estudos 
levaram­no a sugerir que o excesso de sangue no corpo (chamava de "pletora") era a causa 
de muitos males, inclusive de um mal considerado como sagrado, que era a epilepsia. Sua 
terapêutica preferida era também o exercício físico. É considerado como o "Pai da 
Fisiologia".

    ­­ *Os egípcios sob os olhos críticos de um imperador romano*
    Adriano (Publius Aelius Hadrianus ­­ 76 a 138 d.C.) foi imperador de 117 até o ano de sua 
morte. Durante sua gestão o Império Romano viveu anos de grande desenvolvimento.
    O imperador viajou durante vários anos por quase todos os quadrantes do vasto Império e 
no ano 130/131 esteve no Egito não só como imperador mas também como estudioso dos 
usos e costumes do Egito. E, em uma carta escrita a seu cunhado Serviano, Adriano afirma: 
"Tenho estudado bem os egípcios de que me falaste"... "A sua cidade é de tudo abundante, e 
pessoa alguma está ali ociosa, nem mesmo os cegos. Um sopra o vidro; outro faz papel, 
aqueles tecem; todos se ocupam em algum mister" ("História Universal", de Cantu).

    2. Os Hebreus

    Analisar os usos e costumes de um povo multimilenar sem conhecer um pouco de sua 
história é tarefa inviável. No caso dos hebreus, por exemplo, esse conhecimento torna­se 
muito importante para nós, face às estreitas ligações que com eles temos mantido através dos 
séculos.
    Dentre elas, a mais significativa é o monoteísmo. O povo hebreu adotou­o em meio a uma 
tendência generalizada ao politeísmo, muito típico das culturas mais antigas. Existem 
autores que chegam a fazer uma relação entre sua adoção pelos hebreus e as tentativas do já 
citado faraó egípcio Ikhnaton, que pregava a existência de um deus único a seus adeptos de 
Akhetaton, aspirantes ao sacerdócio. No entanto, o monoteísmo hebreu vem de épocas bem 
anteriores à própria migração das várias tribos ao Egito, ou seja, desde o patriarca Abraão. O 
culto ao Deus Único e Verdadeiro dos hebreus foi estruturado por Moisés e a própria 
elaboração do decálogo leva à sua sustentação. Foi esse mesmo Deus Único (Javé) que se 
transformou no mais forte elo de ligação das doze tribos do povo hebreu através dos séculos.
    Como surgiu esse sofrido povo hebreu? Originalmente alguns grupos de famílias nômades 
de origem hebraica, provenientes da Mesopotâmia, habitaram a Palestina por muitos séculos. 
De lá foram tangidas pela escassez de alimentos e de bons pastos para seus rebanhos. 
Gradativamente dirigiram­se para as férteis terras do delta do rio Nilo, sobejamente 
conhecidas pelos mercadores e caravaneiros. E lá entraram quase ao mesmo tempo que os 
povos hicsos, também afastados de suas terras pela falta de alimentos. Ali viveram por 430 
anos, mudando seus hábitos e passando do nomadismo para atividades de um povo mais 
fixado à terra, mas sob escravidão.
    Após a expulsão dos hicsos pelos exércitos do faraó, pelo ano de 1570 a.C., os hebreus 
perderam seu ponto principal de sustentação e começaram a ser considerados como 
indesejáveis. E foi provavelmente no reinado de Tutmés I, morto em 1512 a.C., que os 
hebreus, sob o forte comando de um líder que conhecia muito bem as altas esferas 
governamentais egípcias e seu sistema de funcionamento, Moisés, iniciaram seu êxodo na 
direção da Terra Prometida, tão sonhada durante todos os anos de permanência no Egito. 
Aquele povo buscava um retorno à sua terra original, terra de seus ancestrais.
    Na verdade, tratava­se de um povo que havia abandonado circunstancialmente o 
nomadismo dos pastores há poucas gerações, dedicando­se à vida agrícola, e que se via de 
certa forma forçado a voltar a um quase que indesejável nomadismo, na busca da sua terra, 
onde poderia se instalar em definitivo. A maioria certamente nem imaginava que ficaria 
perambulando pelo deserto durante mais de 40 anos...
    Após toda a migração pelo deserto os hebreus tiveram que enfrentar a resistência natural 
daqueles que tinham passado a ocupar seus antigos territórios. As doze tribos uniram­se para 
fazer frente às dificuldades e combateram os moabitas, os amoritas, os filisteus, entre outros.
    Após a morte do rei Salomão, dez tribos instalaram­se ao norte da Palestina, com sua 
capital na Samaria, passando a identificar­se como Reino de Israel. Duas tribos ficaram mais 
ao sul, com sua capital em Jerusalém, constituindo o reino de Judá.
    Com o passar de muitos séculos os hebreus foram combatidos e dominados pelos assírios, 
babilônios, persas e pelos macedônios de Alexandre, o Grande. Caíram finalmente sob a 
possessão romana em 63 a.C.
    Todas essas lutas, opções, fugas, migrações forçadas, dominações, desterros e 
conseqüentes sofrimentos fizeram os hebreus viverem por milênios em ambientes rudes e 
situações por vezes muito cruéis. Essas imensas dificuldades vividas por um povo tão 
sofrido e sonhador num futuro libertador, o Messias, transparecem em seus códigos de leis e 
costumes antigos. Nota­se neles também a absorção de práticas adotadas por outros povos 
com os quais foi forçado a se relacionar. E dentre esses usos e costumes, normas e leis que 
formaram o importante acervo cultural e religioso do povo hebreu, vejamos alguns que se 
relacionam com pessoas portadoras de deficiências e identifiquemos alguns de seus líderes 
que viveram sob o impacto de limitações variadas, especialmente da visão e da palavra.

    ­­ *Noé: a primeira pessoa com deficiência?*
    Noé, o décimo descendente de Adão segundo as palavras do Gênesis, homem honesto (e 
sua arca tão universalmente comemorada), é uma das primeiras figuras muito humanas a nós 
repassadas pela Bíblia, em contraposição a outras figuras a ele anteriores, com as de um 
Adão meio ingênuo, de um Abel sonhador, de um Caim vilão e fratricida e de um 
Matusalém muito elevado em anos.
    O nascimento de Noé nos é descrito pela Bíblia (Gênesis) em palavras muito breves. 
Existe, no entanto, um documento escrito em linguagem "apocalíptica" (repleta de sinais) 
conhecido como "Livro de Enoc, o Profeta", que parece ter sido escrito um ou dois séculos 
antes do nascimento de Jesus. É um documento proscrito pela Igreja Católica. Pois bem, 
nesse livro o nascimento de Noé é relatado em termos mais ou menos místicos e nos dá 
conta de alguns problemas bem humanos e concretos.
    "Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma esposa para seu filho 
Lamec. Ela engravidou e deu à luz uma criança cuja pele era branca como a neve e vermelha 
como uma rosa; cujo cabelo era comprido e alvo como a lã e cujos olhos eram lindos. 
Quando os abriu iluminou toda a casa, como o sol; a casa toda ficou cheia de luz".
    Lamec, pai do rebento, ficou intrigado com a aparência do recém­nascido e no fundo da 
alma deve ter duvidado da fidelidade de sua esposa. Foi procurar seu pai, Matusalém, a 
quem descreveu o menino, informando dentre outras coisas: ... "parece o fruto dos anjos do 
céu; é de natureza diferente da nossa, sendo no todo diferente de nós"..."ele parece não ser 
meu, mas dos anjos".
    Com as características básicas de um albino, o bebê devia realmente ser muito diferente 
dos primos, tios, avós e demais parentes, todos morenos e de olhos escuros. E essa diferença 
deve ter sido considerada problemática o suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369 
anos de idade, a empreender uma viagem longa e cansativa para procurar seu pai, o patriarca 
Enoc, bisavô do recém­nascido, retirado do mundo "nas extremidades da terra".
    Enoc, o velho patriarca, analisou a questão com a sabedoria de seus muitos anos de vida, 
com o seu misticismo nato e informado por seus alegados contatos diretos com Deus. 
Matusalém voltou sabendo que o bebê era, de fato, filho de Lamec, que ele deveria ser 
chamado de Noé (Consolo da Terra) e com isso ser preparado para os eventos que 
culminariam com o dilúvio, 600 anos após.
    Ao discutir a eventual origem do albinismo de Noé, Sorsby, a quem devemos os textos 
acima do "Livro de Enoc, o Profeta", comenta que Lamec e sua esposa eram primos em 
primeiro grau, sendo "o tipo comum de consangüinidade em albinismo".
    O autor citado conclui com certa dose de ironia britânica: "A possibilidade de Noé ter 
herdado o albinismo de um anjo caído não necessita ser considerada com seriedade. Essa 
hipótese levanta consideráveis dificuldades genéticas. Uma delas teria que postular que 
BT'NWS" ­ a esposa de Lamec ­ "e o anjo seriam portadores não­relacionados do gens numa 
época em que não deveria estar amplamente espalhado, ou também, alternativamente e ainda 
menos plausivelmente, que o albinismo é mais dominante nos anjos do que nos homens" 
("Noah­­an Albino", de Sorsby).

    ­­ *As deficiências físicas entre os hebreus*
    Para os antigos hebreus tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou mental, e 
mesmo qualquer deformação por menor que fosse, indicava um certo grau de impureza ou 
de pecado. Tanto isso é verdade que chegou a ser determinado por Moisés no seu livro 
"Levítico" (conjunto de normas e orientações para os sacerdotes): "O homem de qualquer 
das famílias de tua linhagem que tiver deformidade corporal, não oferecerá pães ao seu 
Deus, nem se aproximará de seu Ministério; se for cego, se coxo, se tiver nariz pequeno ou 
grande, ou torcido; se tiver um pé quebrado ou a mão; se for corcunda "...
    No tratado de Bekhorot são citados oito tipos de defeitos, inclusive a falta de orelhas, seu 
tamanho ou formato defeituoso, como impedimento para os serviços do templo. A 
discriminação contra pessoas portadoras de qualquer deficiência era, portanto, aberta e 
manifesta nas próprias leis. E certos livros da Bíblia dão­nos algumas indicações de 
costumes ou de ambientes, além de apresentar relatos às vezes elaborados na própria época, 
sobre os preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos.
    Será interessante saber que no verbete "defeito" da Enciclopédia Judaica lemos o seguinte 
texto: "Defeito (Heb. mum) ­­ Termo bíblico referente a um defeito físico ou ritual, que 
excluía uma pessoa do serviço do templo e tornava um animal impróprio para ser 
sacrificado. Segundo a Bíblia, existem doze defeitos físicos aparentes, qualquer um dos 
quais desqualifica um sacerdote para o desempenho de suas funções (Lev. 21:16­23), mas a 
"Halachah" aumenta essa lista para cento e quarenta e dois. Os defeitos físicos que 
desqualificam um animal para o sacrifício também são enumerados (Lev. 22:20­25) e 
aumentados para setenta e três na Lei Rabínica. Um defeito temporário desqualifica um 
sacerdote para sua função e um animal, para o sacrifício, apenas pelo tempo que durar. 
Segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do marido ou da mulher pode, em 
certas circunstâncias, até invalidar um contrato de casamento".
    O Levítico é contundente quanto aos homens portadores de deficiências físicas, afirmando 
taxativamente: "Todo homem da estirpe do sacerdote Arão que tiver qualquer deformidade 
(corporal), não se aproximará a oferecer hóstias ao Senhor, nem pães ao seu Deus; comerá 
todavia dos pães que se oferecem no santuário, contanto, porém, que não entre do véu para 
dentro, nem chegue ao altar, porque tem defeito e não deve contaminar o meu santuário" 
(Lev. 21:21­23).
    
    ­­ *A cegueira de Isaac por 80 anos*
    Segundo nos é colocado pelo Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, o grande patriarca 
hebreu Isaac ficou cego por muitos anos. Talvez seja ele o homem que mais tempo viveu 
numa situação de deficiência.
    A bonita e por vezes empolgante história de Isaac indica­nos que se casou com uma linda 
jovem da Mesopotâmia, Rebeca, que lhe gerou dois filhos do sexo masculino somente 20 
anos após o casamento: Esaú e Jacó. Eram gêmeos, tendo Esaú nascido em primeiro lugar.
    Esaú era considerado como primogênito, mas era um homem rude, cheio de pêlos no 
corpo e nas mãos, que se tornou caçador, dedicado às atividades do campo e da guerra, 
enquanto que Jacó era um homem simples e, como diz o Gênesis, "habitante de tendas". O 
pai preferia seu primogênito pelo que era e pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava sua 
atenção e carinho a Jacó, protegendo­o sempre e mal imaginando que ele se transformaria no 
maior patriarca hebreu e que um dia receberia de Deus o nome de Israel ("O que luta com 
Deus").
    Embora primogênito, Esaú não titubeou em vender seus direitos a Jacó sem muitos 
questionamentos.
    Mais ou menos à época em que estava com 100 anos de idade Isaac ficou cego. É desta 
forma que o Gênesis o relata: "Ora, Isaac envelheceu e a vista escureceu­­se­lhe e não podia 
ver" (Gen. 27:1).
    O mesmo livro conta­nos em pormenores marcantes o verdadeiro golpe tramado por 
Rebeca para obter as bênçãos formais de Isaac ao seu filho Jacó. Para tanto foi 
fundamentalmente importante o fato do velho Isaac estar cego, muito embora se mantivesse 
desconfiado e estivesse muito atento àquele importante momento da vida de seu clã. Mesmo 
desconfiado, Isaac acabou dando sua bênção solene a Jacó que se disfarçara com peles de 
carneiro pelo corpo e nas mãos e vestira as roupas de Esaú.
    Mais tarde Isaac explicaria a Esaú o engano e daria o veredito final: "Eu o constituí teu 
senhor e sujeitei à sua servidão todos os seus irmãos; estabeleci­o na posse do trigo e do 
vinho. Depois disto que te posso eu fazer, meu filho?" Nem o fato de ser cego e de ter­se 
enganado devido à deficiência visual levou Isaac a mudar sua posição anteriormente 
assumida.
    Isaac viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda passou 80 anos na dependência de 
Rebeca e de seus criados. Não fôra a vivacidade de Rebeca e de Jacó, o abençoado e 
herdeiro na grande família teria sido Esaú, o homem rude, o caçador, o guerreiro. A história 
do povo hebreu teria sido diferente e não teria evoluído da  forma como evoluiu sob a 
inspirada liderança de Jacó.

    ­­ *Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza*
    De acordo com afirmações inseridas no livro de sua autoria, o "Êxodo", Moisés foi vítima 
de um sério e perturbador distúrbio da comunicação. Esse problema, já antigo em sua vida, 
deve ter­se agravado num momento de forte tensão em que ele, morador no deserto por 
muitos anos, decidiu levar seu rebanho ao monte Horeb para pastar. No meio da noite calma 
viu uma grande touceira de sarça pegando fogo, mas sem queimar. Aproximando­se com 
cautela, ouviu uma voz que, segundo suas informações, era do próprio Deus, chamando­o 
para a grande missão de sua vida: tirar os hebreus do Egito e conduzi­los à Terra Prometida.
    A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo cuidadosa. Eis o que está 
registrado no Êxodo: "Perdoa, Senhor, eu não falo bem desde ontem e antes de ontem" ­ 
quer dizer, há muitos anos ­ "e desde que falaste ao teu servo sinto­me com mais dificuldade 
e mais atrasado em minha língua".
    Mas Deus contra­argumentou, segundo Moisés, com o seguinte e forte questionamento: 
"Quem faz a boca do homem? Ou quem faz o mudo e o surdo, o vidente e o cego? Sou 
eu?"...
    Deus procurou encorajá­lo também por outros meios para enfrentar os desafios que se 
punham à sua frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do faraó, chegando a demonstrar 
que Ele estaria efetivamente ao seu lado.
    Mesmo assim Moisés continuou cônscio de suas limitações quanto à desenvoltura em 
falar, o que levou Deus a indicar uma solução: o irmão de Moisés, Aarão, seria seu 
companheiro de todas as horas, tanto para  convencer os líderes hebreus quanto para falar ao 
faraó nas horas aprazadas.
    Aliás a figura de Aarão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso projeto, uma vez que 
os planos, os comentários, as novas ações e providências, e mesmo os novos argumentos 
eram diretamente transmitidos por Deus a Moisés e este os repassava a Aarão. Por sua vez 
este não dispensava nunca a carismática presença de Moisés e tudo transmitia ao faraó e sua 
corte, aos líderes hebreus e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos.
    Após diversas tentativas frustradas de tirar o povo de uma escravidão cada vez mais 
opressora, Moisés queixou­se com seu Deus: "Eis que sou incircunciso dos lábios, como me 
ouvirá o faraó?" Deus continuou com a mesma orientação operacional até então adotada, 
indicando Aarão mais uma vez como seu porta­voz: "Tu lhe dirás tudo o que te mando e ele 
falará ao faraó". . .
    Apesar dessa deficiência funcional de ordem bastante grave face ao papel indicado e 
assumido por Moisés, ele conseguiu sair­se bem da missão, com a ajuda permanente de seu 
irmão Aarão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes figuras de toda a História dos Hebreus. 
Foi um grande legislador, profeta, mediador dos hebreus e  grande líder daquele povo que 
conseguiu tirar da mais negra escravidão. Conseguiu ele, com a superação de sua deficiência 
e com um indispensável carisma pessoal, além de um profundo conhecimento do deserto, 
realizar a grande proeza de levar mais de meio milhão de hebreus com seus pertences e 
criações das terras do Egito até as fronteiras da Terra Prometida a Jacó, onde nunca entrou.

    ­­ *As leis criadas no deserto do Sinai*
    De acordo com o "Êxodo", durante a épica migração de todo o povo hebreu do Egito para 
a Terra Prometida, quando estacionado por anos a fio no sopé do monte Sinai, Moisés 
elaborou não apenas o Decálogo, mas muitas outras determinações, regulamentos e leis 
adicionais que se destinavam a pôr um fim às mazelas de um povo volúvel e a tentar ordenar 
sua vida. Assim é que havia leis e normas a respeito de escravos, de conflitos e suas 
soluções, de homicídios e seus castigos, de roubos, de seduções, de magia e também a 
respeito de diversos assuntos de medicina.
    Moisés elaborou com muito cuidado os preceitos relacionados à higiene e à saúde de seu 
povo, no cenário grandioso do deserto, lembrando muitas daquelas normas que ele conhecia 
muito bem do Egito, onde havia sido educado bem próximo à nobreza e aos sacerdotes. Não 
é, portanto, de espantar que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros do "Levítico". 
E exatamente como no Egito e outros países da Mesopotâmia ele colocava a 
responsabilidade da medicina sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os Levitas.
    Na legislação dos hebreus daquelas eras violentas e muito problemáticas nas quais era 
fundamental manter o povo unido, mas também disciplinado, apenas argumentos 
relacionados à vontade expressa de Deus ("temerás o Senhor teu Deus, porque eu sou o 
Senhor") não surtiram os efeitos esperados. A lei de talião, reinante em alguns países de 
então, foi também introduzida pelo líder maior, Moisés, que certamente já conhecia o 
Código de Hamurabi. Algumas dessas severas normas lavradas em pedra muitos anos antes 
de Moisés existir passaram para o código dos hebreus quase que com as mesmas palavras.

    ­­ *O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus*
    No Museu do Louvre, em Paris, existe o original do Código de Hamurabi. Trata­se de 
uma pequena coluna de 2,25 m de altura, de cor negra, em forma de cone, e toda escrita em 
caracteres cuneiformes. Essa obra está dividida em 46 pequenas colunas em toda a sua volta, 
com 3.600 linhas escritas. Bem ao alto, num baixo­relevo bastante claro, o grande monarca 
da Babilônia apresenta­se em atitude de adoração diante de Shamash, o deus do sol e das 
leis. O texto, segundo seus estudiosos, não apresenta nenhuma divisão a não ser esta: sua 
primeira parte relaciona­se a propriedades e sua segunda parte a pessoas. É a coleção mais 
antiga de leis que se conhece ­­ bem mais antiga que o Decálogo de Moisés e que as normas 
por ele traçadas no "Levítico", com o qual existem pontos de similaridade eventual. Há 
semelhanças também no "Deuteronômio". Vejamos alguns pontos que indicam, como 
punição, amputações.
    "Eu, Hamurabi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis, que conquistei as cidades do 
Eufrates, introduzi a verdade e a eqüidade por todo o país e dei prosperidade ao povo. De 
hoje em diante"..."Se alguém apagar a marca de ferro em brasa de um escravo, terá seus 
dedos cortados"..."Se um médico operar um patrício com faca de bronze e causou­lhe a 
morte, ou abriu­lhe a órbita do olho e causou­lhe a destruição, terá sua mão cortada"... ..."Se 
um escravo disser ao seu dono: "Tu não és meu Senhor", seu senhor provará que o é e 
cortará sua orelha"..."Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas"... ..."Um olho 
por um olho, um dente por um dente. Trata­se de justiça sem piedade. Se um homem tira um 
olho de um patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso de um patrício, seu 
braço será quebrado. As classes inferiores da sociedade também merecem compensações. Se 
ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá pagar uma miná de prata; se foi 
de um escravo, pagará metade de seu preço"...
    No "Levítico" há textos e palavras tão semelhantes que parecem pura cópia. Eis um deles: 
"Se alguém ferir o olho de seu escravo ou de sua escrava e os deixar cegos de um olho, 
deixa­los­á ir livres pelo olho que lhes tirou"..."O que ferir qualquer de seus compatriotas, 
assim como fez, assim se lhe fará a ele; quebradura por quebradura, olho por olho, dente por 
dente; qual for o mal que tiver feito, tal será o que há de sofrer". A mesma linha de 
pensamentos encontramos no "Êxodo": "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé 
por pé"...
    Para nós torna­se óbvio que tanto entre os babilônios como entre os antigos hebreus 
sempre houve muitas pessoas marcadas por crimes cometidos. No entanto, nem sempre a 
deficiência ou deformação física ou sensorial correspondiam a uma demonstração de castigo 
por feitos delituosos ou à "troca" por males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes, 
soldados eram por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e levavam 
consigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos vencedores, como aconteceu com 
Sedecias.

    ­­ *Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor*
    Sedecias foi o último rei de Judá. Além de mencionado na Biblia (Segundo Livro dos Reis 
e Jeremias), Sedecias é também citado em diversos documentos e crônicas da Babilônia que 
relatam os principais acontecimentos políticos, religiosos e guerreiros dos séculos VI e VII 
a.C. sob o ponto de vista babilônico. Segundo todos esses documentos e relatos, 
Nabucodonosor, famoso rei da Babilônia, colocou Sedecias no trono do reino de Judá, como 
substituto ao destronado Joaquim, refém mantido na capital do reino babilônico.
    Apesar de ter sido indicado e empossado por Nabucodonosor, Sedecias logo começou a 
conspirar contra o poderoso rei, fazendo contatos pessoais com diversos monarcas dos 
minúsculos países e também com o faraó egípcio. Sedecias tinha apenas 21 anos de idade ao 
iniciar seu reinado e sua intenção era empreender uma guerra geral contra o monarca 
conquistador.
    No entanto, no nono ano do reinado de Sedecias, Nabucodonosor, bem informado das 
pequenas conspirações e traições, tomou providências enérgicas. Mandou todo o seu 
exército cercar Jerusalém e lá se plantou durante dois anos. Em 586 a.C. o exército sitiante 
conseguiu abrir uma brecha na muralha externa da cidade e o povo, já sem pão por muito 
tempo, sofreu todo o impacto da fúria dos soldados invasores que buscavam tesouros, que 
incendiavam, que matavam e que espalhavam o pânico para todos os lados. Sedecias, ciente 
do perigo, fugiu pelos jardins dos fundos do palácio, mas foi preso, e levado à presença do 
temido rei da Babilônia, em Riblah, ao lado de Jerusalém. Seus filhos ainda novos foram 
mortos em sua presença. E segundo todos os documentos,
Sedecias teve seus olhos vazados ali mesmo. E quando o enorme exército movimentou­se de 
volta a Babilônia, levando as últimas levas de prisioneiros de Judá, Sedecias, carregado de 
ferros, cego e amargurado, empreendeu a mesma caminhada. Terminou seus dias numa 
prisão da Babilônia.
    O Livro de Jeremias assim relata o infortúnio de Sedecias: "E degolou o rei da Babilônia 
os filhos de Sedecias ante seus olhos; e matou também a todos os príncipes de Judá em 
Riblah. E tirou os olhos a Sedecias, e o carregou de ferros e o rei da Babilônia o conduziu a 
Babilônia e o pôs na casa do cárcere até ao dia de sua morte" ("Jeremias", 52:10/11).

    ­­ *O preço da paz: um olho de cada habitante*
    Os Amonitas, povo habitante a leste do rio Jordão, foram contínuos inimigos dos hebreus 
(na verdade aqueles que compunham as tribos de Israel e não as de Judá) em épocas bem 
anteriores aos anos de problemas com o cativeiro da Babilônia, ou seja, em épocas que 
beiram a um milênio antes da Era Cristã. O Primeiro Livro dos Reis conta­nos que Najash 
Amonita, ao sitiar a vila de Yabesh­Guilead, recebeu uma preocupada proposta da 
população sitiada, para não ser dizimada. Os anciãos da vila foram os portadores da seguinte 
mensagem: "Toma­nos como aliados e nós te serviremos"...
    Najash Amonita, inimigo cruel ao extremo, respondeu: "A aliança que eu farei convosco 
será tirar­vos a todos o olho direito e tornar­vos o opróbio de todo o Israel".
    Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio de um famoso herói da Bíblia, 
que foi Saul. Ele conseguiu juntar, na base de violentas ameaças àqueles que não aderissem, 
um exército de trezentos mil homens das tribos próximas de Israel e mais trinta mil das 
tribos de Judá. Com esse impressionante contingente bateu decisivamente o exército inimigo 
que apavorava o pacato povo de Yabesh­Guilead. Já anteriormente ungido por Samuel como 
primeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi confirmado como tal.

    ­­ *Mais normas e o papel do médico*
    Ao analisar as muitas normas que orientaram a vida do povo hebreu pelos seus muitos 
séculos de existência, notaremos que gradativamente elas foram entrando em pormenores 
bastante indicativos das muitas ocorrências que levavam a necessidade de sua criação. No 
Tratado de Kidushin (sétimo e último tratado da Ordem de Mishnah Nashin, do Talmud) 
encontramos o seguinte trecho que nos é transmitido por Heiman: "Se alguém pegar um 
homem e lhe soprar a orelha, daí resultando a surdez, o agressor será punido de acordo com 
a lei. Da mesma forma, quem golpear seu pai na orelha e assim provocar a surdez, será 
condenado à morte, pois em conseqüência do ferimento, uma gota de sangue penetrou no 
interior da orelha" (Apud Heiman).
    Poucos são os documentos da antiga cultura dos hebreus que nos falam sobre o progresso 
da medicina. Dentre eles, cumpre que façamos menção a alguns livros da Bíblia, ao Talmud 
e aos escritos de Flávio Josefo, em especial na sua "História dos Hebreus”.
    Além de material escrito, alguns líderes e homens especiais que sempre tiveram influência 
sobre o povo hebreu também influenciaram quanto ao desenvolvimento de sua medicina. 
Esses foram os casos de alguns reis e de diversos profetas. Ao que parece pelos relatos 
contidos na Bíblia, os profetas de Israel não eram meros homens que previam 
acontecimentos (em certas épocas conhecidos como "videntes", conforme nos é contado no 
"Primeiro Livro dos Reis" ao relatar a história de Saul), mas personalidades que se 
preparavam muito bem para sua missão, estudando muito e tornando­se verdadeiros sábios, 
e que, exatamente por esse motivo e pela sua bondade, desfrutavam da total confiança do 
povo hebreu. E com a fé que despertavam, chegavam mesmo a realizar milagres.
    Muitos dos conselhos e dos preceitos deixados por homens dessa natureza levaram o povo 
a moderar seu modo de agir, a alterar seus costumes e a respeitar tudo aquilo que julgava vir 
de Deus, como, por exemplo, a importância da medicina e do papel do médico para o povo 
hebreu. Segundo o "Livro da Sabedoria" de Sirac, muito mais conhecido como 
"Eclesiástico", era bem alto o conceito dos médicos na cultura hebréia. Lá encontramos 
afirmações como esta: "Honra o médico, porque ele é necessário; porque o Altíssimo foi 
quem o criou. Porque toda a medicina vem de Deus e receberá donativo dos reis. A ciência 
do médico exaltará sua cabeça e será louvado na presença dos grandes".
    Esse mesmo conceito, encontradiço em diversas culturas, prevalecia entre os hebreus pelo 
ano 200 a.C., uma vez que essa é a idade presumível do livro "Eclesiástico”.
    ­­ *As causas da deficiências entre os hebreus*
    Além das deficiências ou das deformações consideradas como conseqüências diretas de 
pecados ou de crimes, tais como a cegueira, a surdez, a paralisia, por exemplo, entre os 
hebreus havia também aquelas provenientes de acidentes, de agressões, de participação em 
lutas armadas contra inimigos do povo, e também de punições previstas em lei. Havia 
também as deficiências que eram marcas da própria escravidão: orelha ou nariz cortado, 
dedos ou a mão decepados, olhos vazados. Vejamos alguns exemplos:
    O livro da Bíblia conhecido como "Deuteronômio" corresponde a uma espécie de 
repetição ou reformulação de leis e normas para o povo. Na verdade significa "segunda lei". 
Moisés foi seu autor, nele repetindo e elaborando melhor depois de muitos anos do Decálogo 
e do Levítico, os preceitos contidos tanto no "Êxodo" quanto no próprio livro de normas para 
os sacerdotes, ou seja, o "Levítico", também de sua autoria. O "Deuteronômio" é uma 
espécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra Prometida. Pois bem, nesse livro 
encontramos um castigo severo (amputação da mão) para um procedimento considerado 
altamente pecaminoso por parte da mulher: "Se se levantar alguma pendência entre dois 
homens e um começar renhir com o outro, e a mulher de um querendo livrar seu marido da 
mão do mais forte, estender a mão e lhe pegar pelas partes vergonhosas, cortar­lhe­ás a mão, 
e não te moverás de compaixão alguma por ela" (Deut. 25:11/12).
    Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e mesmo de Israel eram por vezes 
muito cruéis e de caráter extremo. Eles correspondiam a alguma necessidade da própria 
época em que foram estabelecidos. Segundo o próprio Moisés que elaborou muitos deles, "a 
fim de que todo Israel, ouvindo isto, tema e não torne mais a fazer coisa semelhante a esta" 
(Deut. 13:11)... ou então, "o povo da cidade a apedrejará e ela morrerá, para que tires o mal 
do meio de vós e todo Israel, ouvindo isto, tema" (Deut. 21 :21).
    Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam os preceitos e uma delas era 
esta: "O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de sorte que andes às 
apalpadelas nas trevas e não acertes nos teus caminhos" (Deut. 28:28/29).
    O Livro dos Juízes, da Bíblia, é uma obra que procurava levar o povo hebreu a melhor 
conhecer seus grandes heróis, tais como Otoniel, Aod, Barac, Débora, Gedeão, Jefté e 
Sansão. Eles procuraram libertar o povo da opressão constante dos inimigos e tentaram fazer 
com que esse mesmo povo observasse as leis estabelecidas. É o Livro dos Juízes que nos 
relata fatos que demonstram claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, às 
vezes era indispensável "passar a fio de espada" todos os homens aprisionados. No entanto, 
existe o relato de um caso de evidente "desencorajamento" permanente aos ataques aos 
hebreus, num severo castigo aplicado a um líder cananeu por uma das tribos de Judá que 
atacara Bezec e lá matara 10.000 homens. Nesse relato menciona­se, no entanto, a fuga do 
líder Adonibezec. Mas, "indo eles ao seu alcance, apanharam­no e cortaram­lhe as 
extremidades das mãos e dos pés. E Adonibezec disse: Setenta reis a quem tinham sido 
cortadas as extremidades das mãos e dos pés, apanhavam debaixo de minha mesa os sobejos 
da comida; como eu fiz, assim Deus me fez" (Juízes, 16:21).
    Conforme vimos anteriormente, o vazamento dos olhos era um castigo severo, um tanto 
em moda naquelas regiões. Existe um baixo­relevo da cultura assíria, muito conhecido, que 
nos mostra um soberano vazando os olhos de três prisioneiros, um deles ajoelhado e os 
outros dois, de pé, puxados pelo próprio rei para perto de si por meio de um fio preso aos 
lábios dos infelizes por argolas. Esse castigo desencorajava as fugas, sem causar maiores 
limitações ou dificuldades para trabalhos pesados. Foi o que sucedeu com um dos 
fascinantes heróis da Bíblia: Sansão.
    Conforme é ali relatado, "os Filisteus, tendo­o tomado, tiraram­lhe logo os olhos e 
levaram­no a Gaza, atado com cadeias e, encerrando­o no cárcere, o fizeram girar a mó" 
(Juízes, 16:21).
    Não seria exagerado depreender que da mesma forma eram tratados os mais perigosos ou 
mais fortes inimigos e prisioneiros de guerra em muitos dos pequenos ou dos grandes reinos 
da antigüidade. Depois de marcados pela mutilação estigmatizadora e cerceadora de 
movimentos, eram colocados a trabalhar em serviços pesados, dos quais não conseguiam 
jamais se afastar.
    
    ­­ *A medicina dos hebreus*
    Conforme nossos comentários anteriores, pouco nos é relatado pelos diversos livros da 
Bíblia a respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia ocorria basicamente para a 
circunstância da circuncisão, com uma lâmina de sílex. Outras informações são quase 
inexistentes.
    Quanto ao tratamento de problemas ortopédicos, sempre houve cuidados caseiros com 
bons resultados. Há uma citação de Ezequiel que mostra ter havido na cultura hebréia antiga 
plenos conhecimentos dos tratamentos indispensáveis para pernas ou braços quebrados. Diz 
ele em seu quarto oráculo contra o Egito: "Quebrei o braço do Faraó, rei do Egito, e eis que 
não foi tratado para se lhe restituir a saúde, nem atado com panos, nem embrulhado com 
toalhas, para que, tendo recobrado as forças, pudesse manejar a espada" (Ezequiel, 30 :21).

    ­­ *Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma?*
    Um dos juízes da tribo de Nephtali, Tobias viveu no século VII a.C. e sua história nos é 
narrada por um dos livros da Bíblia. Trata­se de uma verdadeira jóia de delicadeza e de arte 
que chegou até os nossos dias graças aos trabalhos de São Jerônimo .
    Tobias era um dos muitos hebreus desterrados em Nínive. Ele procurava dedicar todos os 
seus dias à misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos seus compatriotas.
    Em certa ocasião, cansado de cavar para enterrar secretamente os mortos, "deitou­se junto 
duma parede e adormeceu e, enquanto dormia, caiu­lhe dum ninho de andorinhas um pouco 
de esterco quente sobre os olhos e ficou cego" (Tobias, 2:1 0/1 1 ),
    Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho que também se chamava Tobias 
resgatar o pagamento de uma dívida na cidade de Ragés, no reino dos Medos. Em sua 
viagem, ao lado de Azarias, que na verdade era o anjo Rafael disfarçado, Tobias aprendeu 
dele que o fel de peixe poderia ser usado com sucesso como ingrediente para remédios. 
Segundo a narrativa, "e o fel é bom para untar os olhos que tem algumas névoas, e sararão" 
(Tobias, 6:9).
    Em sua volta, tendo guardado o fel de um enorme peixe que o havia atacado quando da 
travessia de um rio, Tobias tomou­o e fez a tentativa que lhe havia sido indicada: untou os 
olhos do pai. Segundo a Bíblia, esperou meia hora. E "começou a sair de seus olhos uma 
belida" ­ que é uma espécie de membrana opaca sobre a pupila ­ "como a película de um 
ovo. E Tobias, pegando nela, tirou­a de seus olhos, e imediatamente recobrou a vista" 
(Tobias, 11:13 a 15).
    O velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem maiores problemas com a vista.

    ­­ *Os cegos na cultura hebréia antiga*
    O "Levítico", nas suas normas e leis relativas à santidade, à caridade e à justiça, 
recomendava a todo o povo hebreu não apenas respeitar os pais, guardar o sábado, evitar a 
idolatria, a vingança, o ódio, o furto, mas também que fossem respeitados os surdos e os 
cegos. Vejamos o que nos diz Moisés em suas orientações: "Não amaldiçoarás o surdo, nem 
porás tropeços diante do cego, mas temerás o Senhor teu Deus, porque eu sou o Senhor" 
(Lev. 19:14).
    Por sua vez, o "Deuteronômio" recomendava aos hebreus que garantissem a proteção e o 
bom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas diretamente ao lado e em pé de 
igualdade com o amor aos pais, a certeza da justiça, a condenação da idolatria, a garantia da 
propriedade e algumas outras práticas relacionadas a sexo e também a traições. Diz o 
chamado Livro da Segunda Lei de Moisés, que é o “Deuteronômio”: “Maldito o que faz o 
cego errar num caminho: e todo o povo dirá: Assim seja” (Deut. 27:18).
    Todavia será interessante saber que, apesar dessa forte ênfase nas várias normas de 
conduta do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos séculos em absoluta 
degradação social, que só começou a ser combatida sob o reinado do príncipe Judah­ha­
Nasin (135a 217 d.C.).

    Cumpre notar que a literatura sobre o Talmud ((O ensinamento de toda a cultura hebréia 
tem alcançado todas as gerações por dois canais: a lei escrita (a Bíblia) e a oral (a Tradição). 
Esta foi aos poucos compilada pelos sábios e desse esforço surgiu o Talmud, com seus dois 
livros principais: O Mishnah (aprendizado) e o Guemara (esclarecimento).)) fala de quando 
em quando sobre a sabedoria de alguns mestrês e mesmo de alguns juízes cegos. Dentre as 
limitações de atuação a eles impostas, não lhes era permitido ler o Torá (Gênesis, Êxodo, 
Levítico, Números e Deuteronômio) nem oficiar serviços religiosos públicos. Não tinham 
também nenhuma obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprir 
obrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O Talmud referia­se a esses sábios 
mestrês e juízes cegos por meio de um apelido afetuoso, ou seja, de "saguí Nehor" (ricos em 
luz, ou videntes).

    ­­ *Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel*
    Um parente de Jesus foi vítima de uma deficiência passageira. Segundo o Evangelista 
Lucas, na verdade foi por castigo, corroborando a idéia de que as doenças e as deficiências 
estavam fortemente relacionadas a  castigos ou penitências para pagamento de faltas ou 
pecados.
    Zacarias era sacerdote e casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Eram os dois 
considerados como justos e harmoniosos em seu modo de viver e não tinham filhos, pois 
Isabel era estéril. Lucas conta­nos:  Sucedeu que, exercendo Zacarias diante de Deus o cargo 
de sacerdote na ordem de sua turma, tocou­lhe por sorte, segundo o costume que havia entre 
os sacerdotes, entrar no templo do Senhor e oferecer o incenso; e toda a multidão do povo 
estava fazendo oração na parte de fora, à hora do incenso. E apareceu­lhe o anjo do Senhor, 
posto em pé ao lado direito do altar do incenso".
    Zacarias ficou assustado e não sabia o que fazer. O anjo tranqüilizou o velho sacerdote e 
anunciou que sua esposa engravidaria. Ele reagiu como qualquer outro homem reagiria: 
duvidou. E perguntou o óbvio: "Como conhecerei que isto acontecerá? Porque eu sou velho 
e minha mulher está avançada em anos". O anjo identificou­se como Gabriel, "que assisto 
diante de Deus; fui enviado para te falar e te dar esta boa nova. E eis que ficarás mudo e não 
poderás falar até o dia em que estas coisas sucedam, visto que não acreditaste nas minhas 
palavras, que se hão ­ de cumprir a seu tempo".
    Nove meses depois, nascido João Batista ­ primo de Jesus ­ Zacarias indicou numa 
tabuinha o nome que o menino deveria ter e imediatamente voltou a falar.

    ­­ *As pessoas deficientes nos Evangelhos*
    Se continuarmos a folhear esse documento sagrado que é a Bíblia, encontraremos também 
as narrativas relacionadas ao Novo Testamento que retratam uma Judéia muito viva, muito 
real. Detectamos costumes, atitudes e encontramos diversas considerações sobre pessoas 
deficientes ou com doenças muito sérias. Percebemos também repetidamente a crença 
arraigada no povo de que a maioria dos males de então era tida como conseqüência da 
interferência de maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados antigos.
    Passando os olhos por alguns episódios anotamos frases que eram destinadas a leitores 
daquelas épocas e que certamente aceitavam os posicionamentos expostos. Uma dessas 
frases que nos chama a atenção é esta: "E eis que veio uma mulher que estava possessa de 
um espírito que a tinha doente há 18 anos; e andava encurvada e não podia absolutamente 
olhar para cima". Essas palavras são de Lucas, o Evangelista médico, mas que naturalmente 
media as palavras face ao público, ao povo que precisava ler suas páginas ou interpretar os 
fatos que pretendia repassar. No entanto, na mesma passagem, ele coloca na boca de Jesus 
palavras que demonstram um enfoque diferente: "Mulher, estás livre de tua enfermidade" ... 
Nem demônio, nem castigo ... apenas enfermidade.
    No Evangelho escrito por Mateus encontramos estas frases: "E tendo­se estes retirado, 
apresentaram­lhe um homem mudo, possesso do demônio, E, expulso o demônio, falou o 
mudo" . . .
    Esse mesmo Evangelista escreveu: "Quando o espírito imundo saiu de um homem, anda 
por lugares secos, buscando repouso, e não encontra. Então diz: Voltarei para minha casa de 
onde saí" ... "Então vai e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele e, entrando, 
habitam ali; e o último estado daquele homem torna­se pior do que o primeiro".
    Na Judéia Antiga, inclusive no tempo de Jesus Cristo, o destino dos deficientes era 
esmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais 
variadas causas, ficavam expostos nos caminhos, ruas e praças. E pelo que se lê, deviam ser 
apenas tolerados. Depreendemos isso das parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes do 
próprio Jesus para com eles, demonstrando que estava errada a forma como eram tratados, 
mesmo sem expressar esse modo de pensar.
    Segundo o Evangelista Lucas, o ambiente de exposição da pessoa para esmolar era um 
fato concreto e percebemos isso em sua afirmativa: "Vai já pelas praças e pelas ruas da 
cidade e traze cá os pobres e os aleijados, e cegos e coxos". Mateus corrobora a impressão ao 
dizer: "E eis que dois cegos que estavam sentados junto à estrada"...
    Como não poderia deixar de ser, a movimentação externa ou a simples mudança de lugar 
de um caso mais sério de paralisia ou de enfermidade grave sempre era dramaticamente mais 
difícil. Podemos imaginar a aflição de parentes e amigos desses doentes ou deficientes que, 
ao saber da existência ou da presença de um rabino miraculoso nos arredores, procuravam 
alcançá­lo por todos os meios. O Evangelista Marcos, por exemplo, conta­nos: "E foram ter 
com ele conduzindo um paralítico que era transportado por quatro. E como não pudessem 
apresentar­lhe por causa da multidão, descobriram o teto pela parte de baixo da qual Jesus 
estava e, tendo feito uma abertura, arriaram o leito em que jazia o paralítico"...
    Elgood, estudioso dos usos e costumes dos povos do Oriente Médio, afirma que a 
medicina contida nos Evangelhos e mesmo nos Atos dos Apóstolos aceitava basicamente 
três tipos de causas para as doenças e para as muitas limitações e deficiências que afligiam 
os homens: o castigo pelos pecados, a interferência dos maus espíritos e finalmente as forças 
más da natureza, contra os quais o poder divino era o único remédio ­ ou pelo menos era 
assim considerado.
    Eis alguns pontos citados nos Evangelhos que ilustram essa assertiva:
    João 5:14 ­­ "Depois, achou­o Jesus no templo e disse­lhe: Eis­te curado! Não torna a 
pecar para que não te suceda algo pior".
    João 9:2 ­­ "Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus 
respondeu: Nem ele nem seus pais pecaram mas foi para se manifestarem nele as obras de 
Deus".
    Lucas 9:38­39 ­­ "Mestre, rogo­te para que olhe para meu filho, porque é o único que eu 
tenho e um espírito imundo se apodera dele e subitamente dá gritos e o lança por terra e o 
agita com violência, fazendo­o espumar".

    ­­ *Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes*
    Dentre os muitos documentos antigos que nos falam sobre deficiências ou sobre pessoas 
deficientes, os mais explícitos são os Evangelhos. Eles mostram, por exemplo, que o povo 
hebreu ­­ e com ele quase todos os povos ao seu redor – estava acostumado não apenas à 
existência das doenças e das deficiências que levavam o homem a uma vida de quase certa 
indigência ou total dependência, mas também à busca de soluções naturais e sobrenaturais, 
quando possível, para sua eliminação.
    Em Jerusalém dos tempos de Jesus Cristo, por exemplo, havia bem ao lado do templo uma 
piscina ou tanque destinado à purificação de animais que eram sacrificados e que era por 
esse mesmo motivo conhecida como "piscina probática" (do grego "probatikón", ou seja, 
carneiro ou relativo a ovinos em geral), ou como Betsaida na língua hebraica.
    As suas bordas, a despeito dos objetivos principais, mantinha­se verdadeira multidão de 
enfermos, coxos, cegos e paralíticos porque, segundo todos acreditavam, várias vezes ao dia 
um anjo de Deus ali descia para "movimentar as águas". Era, como se pode bem imaginar, 
um momento muito esperado, muito tenso, pois apenas o primeiro que ali se banhasse teria 
seus males curados.
    Foi exatamente nesse ambiente que Jesus realizou um dos seus famosos milagres, 
beneficiando um homem paralítico há 38 anos e que nunca havia conseguido ser o primeiro 
a chegar às águas de Betsaida por não ter pessoa alguma que o ajudasse.
    Esse foi um dos muitos milagres a nós transmitidos pelos evangelistas. Segundo seus 
relatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionados 
a pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais, a saber:
  ­ Cego de nascimento ­ João 9:1­7
  ­ Cego em Betsaida  ­ Marcos 8:22­26
  ­ Cego Bartimeu de Jericó ­ Marcos 10:46 e Lucas 8:35­43
  ­ Dois cegos de Jericó ­ Mateus 20:29­34
  ­ Dois cegos de Cafarnaum  ­ Mateus 9:27­31
  ­ Cegos na Galiléia ­ Mateus 15:29­31
  ­ Cego e mudo (endemoniado?) ­ Mateus 12:22
  ­ Mudo de Cafarnaum ­ Mateus 9:32­34
  ­ Mudos na Galiléia  ­ Mateus 15:29­31
  ­ Surdo­mudo na Decápole ­ Marcos 7:31­37
  ­ Surdo­mudo de Cesaréia  ­ Marcos 9:16­26 e Lucas 9:37­43
  ­ Coxos na Galiléia ­ Mateus 15:29­31
  ­ Leprosos de Cafarnaum ­ Mateus 8:1­4, Marcos 1 :40­45e Lucas 5:12­14
  ­ 10 leprosos ­ Lucas 1 7 :1 3­1 9
  ­ Hidrópico ­ Lucas 14:1­6
  ­ Mulher com espinha curvada ­ Lucas 13:11­13
  ­ Homem de "mão seca" ­ Mateus 12:9­13, Marcos 3:1­6 e Lucas 6:6­11
  ­ Paralítico servo do centurião ­ Mateus 8:5­13
  ­ Paralítico em Betsaida ­ João 5 :5­9
  ­ Paralítico de Cafarnaum ­ Mateus 9:1­8, Marcos 2:1­12 e Lucas 5:17­26
  ­ Outros deficientes na Galiléia ­ Mateus 15:29­31

    ­­ *A cegueira de São Paulo, Apóstolo*
    A conversão de São Paulo tem sido considerada por todos os cristãos como um fato 
decisivo na história do Cristianismo. Ela teve seu início com um evento universalmente 
conhecido que o deixou cego por três dias, deles emergindo como um novo homem.
    Saulo havia sido por diversos anos um fervoroso fariseu, além de um convicto 
perseguidor dos adeptos da nova seita do Nazareno que se afirmara Filho de Deus, 
considerada então uma verdadeira heresia na Sinagoga Judaica. Na verdade, tão envolvido 
estava Saulo que, quando o primeiro mártir da incipiente religião ­­ Santo Estêvão ­­ foi 
apedrejado, esteve não só presente como também indiretamente ajudou na execução da pena, 
segurando os mantos dos apedrejadores para melhor executarem sua tarefa.
    Diversos médicos e estudiosos escreveram a respeito do fato que modificou drasticamente 
a vida de Saulo de Tarso. Alguns acham que ele foi vitima de um ataque epilético, podendo 
a intensa luz por ele relatada ter sido a aura que antecede esses eventos médicos. Há outros 
que especulam em torno de problemas relacionados a uma artrite ou mesmo malária.
    O que parece certo é que, intervenção miraculosa à parte, Saulo foi severamente atingido, 
física e psicologicamente. Para uma análise objetiva do que sucedeu, é preciso conhecer um 
pouco as circunstâncias por ele vividas. Em primeiro lugar é básico considerar que a 
distancia percorrida por Saulo, entre Jerusalém e Damasco, é de pouco mais ou menos 200 
quilômetros, quase toda ela coberta por um deserto de areia branca e de natureza inóspita. 
Essa viagem, numa caravana de camelos, demandava de seis a sete dias de marcha, muito 
embora estejamos acostumados a visualizar um Saulo de Tarso caindo de fogoso cavalo, o 
que não corresponde à realidade daqueles tempos. A caravana cruzou o deserto pelas colinas 
da Samaria, sob sol ardente e muito brilhante, num calor fortíssimo. Ao final dessa cansativa 
viagem, é natural que Saulo estivesse preocupado com sua missão, a ele confiada pelo sumo 
sacerdote através de cartas às sinagogas de Damasco. Cansado e tenso, ele aguardava os 
primeiros sinais da paisagem de seu destino quando, segundo seus relatos, viu uma luz muito 
forte e caiu ao chão, ouvindo uma voz que se identificava como de Jesus Nazareno.
    Cego ao levantar­se, Saulo teve que ser "levado pela mão" à cidade à busca de ajuda, pois 
estava doente e não podia nem beber nem comer por três dias.
    Virtualmente fechado em ambiente escuro por todo esse tempo, devido às dores nos olhos, 
com certeza muito abalado com sua cegueira que provavelmente associava a um castigo 
divino, como era costumeiro no seio do povo hebreu, Saulo foi inicialmente atendido por 
solícitos adeptos da "seita do Nazareno". Pode ter parecido a ele um verdadeiro milagre 
quando Ananias entrou, conversou com ele, tocou­o e ele recuperou sua visão.
    O que deve ter acontecido com os olhos de Saulo de Tarso? Autores categorizados acham 
que sua cegueira temporária foi causada pelos efeitos nocivos de muita irradiação solar sobre 
os olhos, causando alguma queimadura da córnea por raios ultravioletas. Esse tipo de 
cegueira acontece devido aos reflexos do sol na areia branca do deserto ou aos reflexos na 
neve.
    "O efeito no olho é cumulativo e Paulo deve ter recebido mais do que suficiente radiação, 
especialmente quando olhou para o céu. Este é um efeito biótico e a recuperação do estágio 
agudo requer vários dias de convalescença. A vitima fica temporariamente cega, não pode 
abrir seus olhos e sofre com muitas dores e ansiedade. Fica inutilizada e é compelida a 
manter­se no leito. Todavia, como o epitélio se regenera com rapidez, a sensível córnea nua 
volta a ser coberta e então o paciente vive uma brusca e dramática recuperação como viveu 
Paulo" ("The Blindness of Saint Paul", de Manchester e Manchester).
    São Paulo viveu todo o resto de sua vida com algumas seqüelas do mal e isso é 
perceptível ao analista cuidadoso por alguns sinais, um dos quais seria sua própria 
informação quanto à sua letra provavelmente maior ou diferente do que a costumeira: 
"Vejam com que letras eu lhes escrevi com minhas mãos" (in Epistola aos Gálatas) e "Minha 
saudação da mão de Paulo: que é minha marca em toda carta. Assim escrevo" (in Eprstola 
aos Tessalonicenses (2a ), ao final). A tradução corresponde às palavras na Vulgata, em 
latim.
    São Paulo tinha algumas dificuldades para ler, escrever e mesmo reconhecer pessoas a 
certa distância, o que talvez indique grave redução de sua acuidade visual. Vejamos, por 
exemplo, o fato narrado nos Atos dos Apóstolos (23:1 a 6): Levado diante do Sinédrio para 
esclarecer graves acusações feitas contra ele, Paulo olhou o aglomerado de sacerdotes e não 
distinguiu a presença muito importante do sumo sacerdote Ananias. E foi considerado 
irreverente pela mais alta autoridade da Sinagoga Judaica, tanto assim que recebeu uma 
bofetada na boca tão logo começou a falar, por ordem de Ananias. Paulo reagiu e qualificou­
o de "parede caída". Na confusão estabelecida, ele foi questionado se estava maldizendo o 
sumo sacerdote. Neste ponto ele afirmou:
"Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote"...
    Parece também evidente que São Paulo foi vítima de um mal crônico e desagradável que, 
em suas cartas, chama de "espinho da carne". Relembremos uma pequena frase sua inserida 
na carta aos cristãos de Gálata, com os quais convivera bastante: "Sabeis que ao princípio 
vos preguei o Evangelho com enfermidade na carne: e sendo eu a vossa provação na minha 
carne, vós não me desprezastes nem rejeitastes" (Gal. 4:13/14). A tradução aqui também 
leva em conta a Vulgata latina.
    Para os cristãos o fato concreto é que, logo após o evento que levou Saulo de Tarso a três 
dias de cegueira, ele mudou drasticamente e foi um dos maiores esteios da Cristandade. 
Conviveu o resto de seus dias com alguma deficiência parcial da visão e certamente com 
algum outro mal (epilepsia, malária, artrite, não se sabe) indefinido e marcante que não 
diminuiu em nada o seu entusiasmo na transmissão da doutrina de Cristo, mas que acabou 
influenciando seus pensamentos e suas pregações.

    3. Os Gregos

    Em grande parte devido à inexistência de bases científicas para melhor compreender a 
vida e a natureza, o homem grego antigo sentia­se envolvido por muita fantasia e por uma 
infinidade de pequenas crenças e, conseqüentemente por centenas de deidades. A variedade 
de deuses e deusas que habitavam o portentoso e, nas palavras de Homero, "nevoso 
Olimpo", ou que o haviam abandonado em busca de mais tranqüilidade e da proximidade 
dos ambientes a eles dedicados, é bem indicativo desse estado de espírito. Na fantástica 
mitologia de tantos deuses de vários escalões e de tantos seres fantasiosos, o homem grego, 
além de dedicar altares a um Deus Desconhecido ­­ conforme comenta o Apóstolo Paulo ­­ 
acabou não se esquecendo de um ser portentoso prejudicado por uma deficiência física séria, 
bastante competente em seus misteres, mas que sempre foi de certa maneira ridicularizado, 
além de envolvido pela estrondosa risada da maioria de seus fisicamente magníficos colegas 
do Olimpo. Tratava­se de Hefesto (Hephaestos, em grego), o deus do fogo, das artes 
manuais, da metalurgia e das indústrias, que era filho de Zeus e de Hera.
    ­­ *As deficiências na mitologia grega*
    Homero, o mais famoso dos grandes poetas gregos, que foi cego, segundo relatos 
baseados na tradição e em diversos escritores antigos, e que certamente viveu em épocas 
anteriores ao século VII a.C., é autor dos poemas épicos Ilíada e Odisséia. Na Ilíada ele nos 
revela algumas particularidades interessantes a respeito de Hefesto, de sua deficiência física 
nas pernas e de suas altíssimas habilidades em metalurgia e artes manuais.
    No Canto XVIII desse famoso poema ele narra uma das mais conhecidas intervenções 
desse deus portador de deficiência: o quase invulnerável Aquiles, durante o cerco de Tróia 
encontrava­se muito abatido com a morte de seu amigo Pátroclo e ao mesmo tempo 
enfurecido com o líder troiano Heitor não só por tê­lo morto como também por tê­lo 
despojado de armadura, elmo, escudo e espada, além de todos os demais acessórios 
invejáveis pela sua beleza e perfeição e que eram propriedade de Aquiles. Ele pede o auxílio 
de sua mãe, a deusa Tétis, dizendo:
    "... não me incita a viver meu coração, nem a ficar entre os homens, a menos que Heitor, 
ferido primeiro por minha lança, perca a vida e pague por Pátroclo, filho de Menetes, sua 
presa".
    "Debulhada em lágrimas Tétis respondeu: ­ Rápido será teu destino, meu filho, com tais 
palavras, pois, logo após Heitor, o momento fatal soará para ti".
    "Acabrunhado retrucou Aquiles, de alígeros pés: ­ Morra eu neste instante, visto que não 
fui capaz de proteger da morte meu companheiro"...

    No entanto, de fato Aquiles não tinha mais armas, pois o corpo de Pátroclo havia sido 
despojado de todos os magníficos apetrechos de guerra que tornara o filho de Tétis um 
incrível herói. É Tétis que observa:
    "Mas tuas belas armas estão nas mãos dos Troianos, tuas armas de coruscante bronze; o 
próprio Heitor de fúlgido capacete tem­nas sobre os ombros e com elas se paramenta"...
    Tétis, muito chocada com a tragédia de seu filho­herói, considerou a determinação de 
Aquiles e foi à procura do único "imortal" capaz de fazer armas próprias e dignas para ele: 
Hefesto. Quando chegou ao Olimpo, notou nas oficinas um deus trabalhador, suado, um 
verdadeiro operário da metalurgia com deficiência física.
    "Encontrou­o suando; apressando­se à volta dos foles, empenhado no fabrico de nada 
menos de vinte trípodes, para encostar à parede, em torno de uma sala bem construída"...
    Homero apresenta neste poema Hefesto casado com a belíssima Cáris ("Cáris de brilhante 
toucado, a  formosa Cáris, esposa do insigne coxo"), a deusa da primavera. Após acomodar a 
veneranda deusa Tétis em um trono cravejado de prata, Cáris chama o marido:
    ­­ "Hefesto, vem como estás; Tétis precisa de ti".
    "respondeu o ilustre coxo:­­Sim, é uma deusa temida e veneranda que está em minha casa; 
que me acudiu quando o sofrimento me acometeu, depois da longa queda provocada por 
minha mãe de olhos caninos, que queria esconder­me porque eu era coxo. Eu teria, então, 
sofrido muito, se Eurínome e Tétis não me tivessem recebido em seu seio; Eurínome, filha 
do Oceano, que volta sobre si mesmo. Ao pé dela, durante nove anos, forjei muitas jóias 
bem feitas em profunda gruta, além de presilhas, espirais de formosas curvas, cálices de 
flores e colares".
    Hefesto, agradecido por ter sido amparado e amado, e por ter com elas aprendido um 
verdadeiro ofício, mostra­se mais do que disposto a pagar pelo imenso favor recebido 
durante anos a fio.
    "... da bigorna ergueu­se manquejando o ser monstruoso, enorme; debaixo dele agitavam­
se­lhe as pernas finas" ... "Vestiu uma túnica, empunhou um grande cetro e encaminhou­se 
para a porta, coxeando".
    A pedido da desesperada mãe de Aquiles, Hefesto fabricou então um escudo que Homero 
chega a descrever com muitos pormenores. E continuando com a descrição das fabulosas 
peças de armamento, afirma:
    "E depois de ter forjado o escudo grande e robusto, fabricou para Aquiles uma couraça, 
mais brilhante do que o esplendor do fogo; fabricou­lhe espesso capacete adaptado as 
têmporas, belo, feito com arte, encimando­o um penacho de ouro; e fabricou­lhe "cnêmides", 
com o estanho que se modela bem ("Ilíada", de Homero, trechos do Canto XVIII). ( * 
“Cnêmides” eram perneiras usadas pelos gregos. Protegiam a parte dianteira da perna até o 
joelho. Eram forradas interiormente de couro e amarradas à perna por correias. A parte 
externa era de bronze ou de estanho, segundo Homero.)
    Na Odisséia, Homero apresenta Hefesto casado com Afrodite, a deusa do amor (a Vênus 
dos romanos), furiosamente ciumento, magoado e ardiloso, mostrando todo o seu 
ressentimento devido à deficiência nas pernas de uma forma bem franca e muito aberta.
    O que havia sucedido para tanto? De fato o assunto era sério, pois Ares, deus da guerra 
(Marte para os romanos), havia­se enamorado de Afrodite e começara a encontrar­se com 
ela em sua própria casa, logo após Hefesto sair para trabalhar em suas oficinas. Sabedor do 
adultério de sua mulher, Hefesto planejou com muito cuidado a armadilha para o 
estabelecimento de um flagrante incontestável: fabricou uma rede quase invisível, mas de 
"laços inquebráveis, inextricáveis, para que neles ficassem retidos os dois amantes". E, de 
fato, a rede foi colocada cuidadosamente sobre o leito e prendeu os dois na hora exata; 
deixou­os debatendo­se no ar, sem qualquer possibilidade de escapar, pois o engenhoso 
Hefesto preparara tudo para a invisível rede ser puxada para o alto, sem qualquer apelação.
    Hefesto, que havia acionado a armadilha por suas próprias mãos, sentia­se vilmente traído 
devido à sua deficiência física e explodiu para todo o Olimpo ouvir: ­­ "Zeus, pai, e todos os 
deuses restantes, bem­venturados e sempiternos, vinde aqui presenciar uma cena ridícula e 
monstruosa; por eu ser coxo, Afrodite, filha de Zeus, de contínuo me cobre de desonra; ela 
ama Ares, o destruidor, porque é belo e tem as pernas direitas, ao passo que eu sou 
defeituoso de nascença. Mas a culpa não é minha, apenas de meus genitores, que melhor 
teriam procedido se não me houvessem gerado"... "a minha rede os reterá cativos até que o 
pai dela me restitua todos os presentes que lhe dei por sua descarada filha. Pode ser bela, 
mas não tem vergonha".
    Homero entra em alguns pormenores quanto ao vexame imposto a Ares e Afrodite, presos 
na rede invisível que os puxara para o alto, sendo observados por outros deuses ­­ todos eles 
do sexo masculino, uma vez que as deusas, por pudor, haviam preferido ficar fora. Todos 
eles riram muito dos dois amantes e no meio dos comentários bastante humanos para os 
portentosos imortais, surgiu uma observação de alta valorização das habilidades de Hefesto, 
o artífice deficiente: ­­ "De que aproveitam as más ações? Um coxo alcança o que é ágil, 
como agora aconteceu: este cambeta Hefesto, lento como é, apanhou com seus artifícios a 
Ares, o mais veloz dos deuses, habitantes do Olimpo" (trechos do Canto VIII da "Odisséia", 
de Homero).
    Naturalmente que estamos apenas analisando cenas de pura ficção, mas que foram escritas 
diversos séculos antes da Era Cristã. Acresce a isso dizer também que Homero, segundo a 
tradição, foi um escritor cego. Não deixam de ser palavras de certa forma indicativas da 
crença na utilidade de um homem competente, mesmo que porta dor de uma séria 
deficiência e na justa explosão desse mesmo homem face à traição e à desonra de que foi 
vítima. Demonstram elas também uma posição já arraigada no seio do povo grego de que 
crianças com defeitos de nascimento não deveriam sobreviver, sendo obrigação dos pais não 
as deixar viver, tomando para tanto medidas práticas, conforme verificaremos mais adiante.

    ­­ *Lenda e realidade; Hefesto na vida dos gregos*
    Quanto a seus traços principais, Hefesto parece sempre justo, sério, fortemente 
competente em sua arte e muito cônscio de seu papel. E, como vimos, é conhecedor de seus 
direitos e sabe lutar por eles. Conquistara o respeito dos deuses pelo seu trabalho e suas 
obras, e nada mais. Desfrutava de um amor tranqüilo de uma linda deusa da primavera, 
Cáris, segundo o poema Ilíada, e de um atribulado afeto por Afrodite, na Odisséia, tendo­se 
considerado no direito de lhe dar uma lição completa, como outros homens jamais poderiam 
arquitetar.
    Analistas dos poemas de Homero têm sugerido que, devido à apresentação de Hefesto 
como o deus da metalurgia e das artes manuais, a profissão de ferreiro e atividades afins 
talvez fossem especialmente preferidas por homens com deficiências físicas nas pernas. Vale 
ressaltar que na cidade industrial de Atenas, Hefesto sempre foi considerado um deus 
importante, mantendo­se a classe dos artesãos sob sua proteção.
    Seu casamento com Afrodite foi conseqüência de um ardil muito bem preparado. Durante 
os nove anos que passara sob a proteção de Tétis e Eurínome, Hefesto guardou consigo um 
profundo ressentimento contra sua mãe devido ao fato de o ter feito cair do alto do Olimpo. 
Arquitetou uma terrível vingança contra ela: fabricou­lhe um lindo trono de ouro, todo 
trabalhado, e mandou que lhe fosse entregue durante uma festa. Hera ficou contentíssima por 
ouvir a respeito do filho que já considerava morto há anos, e muito orgulhosa sentou­se no 
trono. Ao tentar levantar­se, porém, sentiu­se presa, agarrada por mãos invisíveis. Hefesto, 
que não estava presente, recusou­se a sair de sua gruta e deixou os demais deuses tentar 
livrar Hera inutilmente. Afinal, face à insistência de todos, Hefesto concordou, impondo 
uma única condição: casar­se com a mais bela de todas as deusas, ou seja, com Afrodite.
    Hefesto dava­se importância e sabia o que lhe convinha. Segundo as lendas, cuidava de 
sua aparência com esmero e procurava reduzir as dificuldades provocadas por sua 
deficiência nas pernas de um modo bastante sofisticado. Primeiramente, quando recebia 
visitas de importância, o fabuloso ferreiro e artesão parava para lavar o rosto, os braços, o 
pescoço e o peito. Logo após, vestia uma túnica limpa e, apoiado num trabalhado bastão que 
ele mesmo fabricara, ia sentar­se em seu trono. Refinado como era, inventara duas estátuas 
feitas de ouro e que muito se assemelhavam a duas lindas jovens, que se movimentavam e 
falavam, e que ficavam ao seu lado para tornar mais cômodos todos os seus movimentos! ...
    Segundo as lendas Hefesto teve vários filhos e um deles, Perifetes, tinha o mesmo 
problema físico do pai ­­ o que talvez indique certa crença popular de que alguns defeitos 
físicos podiam ser hereditários. Diferentemente do pai, Perifetes foi um bandido, assaltante 
de estradas. Teseu, o destruidor de monstros, arrancou­lhe o terrível bastão com que matava 
suas vítimas, terminando com o pavor que rondava Epidauros e os devotos de Asclépios, o 
deus da cura.
    Hefesto está representado no símbolo da Associação de Avaliação Profissional e de 
Ajustamento ao Trabalho dos Estados Unidos da América do Norte.

    ­­ *Outros seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais*
    Existem diversas deidades e seres um tanto quanto irreais que estão inseridos na mitologia 
grega e que apresentam algumas anomalias ou deficiências que por vezes são sua 
característica principal. Vejamos os mais notórios:
    a) Deuses da Fortuna, do Amor e da Justiça: Segundo afirmam os especialistas em 
mitologia grega, as figuras dos deuses do Amor e da Fortuna são eventualmente 
apresentadas como pessoas cegas. Um dos mais marcantes exemplos dessas apresentações 
ocorre com a peça "Plutão, o Deus da Riqueza", de autoria de Aristófanes. Nela o temido 
senhor das profundezas do inferno é um mendigo cego e sobre ele falaremos mais adiante ao 
analisarmos Epidauros e sua importância na vida grega.
    Todos nós conhecemos também a apresentação simbólica da Justiça como uma jovem 
cega, figura que chegou aos nossos dias e é muito utilizada em nossos meios jurídicos.
    b) Édipo e sua tragédia: Uma figura trágica das muitas e coloridas histórias e lendas 
gregas é aquela de Édipo. Matou o próprio pai para poder casar­se com a mãe, sem estar 
consciente do relacionamento que havia entre eles. Ao descobrir toda a verdade, com a ajuda 
do adivinho cego, Tirésias, o rei Édipo arrancou os próprios olhos e viveu o resto de seus 
dias em total isolamento, numa atitude de autopunição e desespero.
    c) Filomela e Procné: a andorinha e o rouxinol: Segundo lendas que cercam essas duas 
figuras da mitologia grega, Pandion era rei de Atenas e tinha duas filhas muito belas que 
eram Filomela e Procné. Esta casou­se com Tereu, rei da Trácia, e teve um filho, cujo nome 
era Itys. Com o passar dos anos, entretanto, Tereu começou a prestar mais atenção à sua 
linda cunhada e ficou apaixonado por ela. Tendo­a em determinada circunstância forçado a 
ter com ela relações amorosas e notando sua revolta, cortou­lhe a língua para impossibilitar a 
formulação de alguma acusação de sua parte. Todavia Filomela encontrou um meio 
convincente de apontar o culpado. Bordou uma toalha com figuras, contando todo o drama. 
As duas irmãs passaram a perseguir ferozmente a Tereu que, com o auxílio de outros seres 
mitológicos, conseguiu transformá­las em pássaros para
sempre: Procné tomou a forma de um rouxinol e Filomela de uma andorinha.
    d) Licurgo, rei mitológico da Trácia: Foi castigado com a cegueira por ter proibido em seu 
reino o culto a Dionísio, deus do vinho e correspondente ao Baco dos romanos. Essa 
proibição ocorreu depois do corajoso rei ter tomado atitudes bastante agressivas contra o 
mencionado culto. Mandara, por exemplo, arrancar de seu reino todas as vinhas e maltratara 
pessoalmente o famoso e muito popular deus do vinho.
    e) Fineu, outro rei da Trácia: Igualmente mitológico, abusava dos seus poderes de 
adivinhação, revelando aos homens as confidências e as intenções dos deuses moradores no 
Olimpo. Foi castigado pelos poderosos imortais a fazer uma opção: viver uma longa vida 
sem visão ou morrer. Preferiu a primeira opção. Casado com a filha do rei Bóreas, 
Cleópatra, teve com ela dois filhos, Depois de algum tempo de casado repudiou a esposa, 
como era facultado aos homens fazer, e casou­se com Idéia, filha de Dárdano, o famoso 
construtor das muralhas de Tróia. Esta não gostou dos filhos adolescentes de Cleópatra e 
logo encontrou meios para acusá­los de terem tentado violentá­la. Fineu, muito furioso e 
intempestivo, mandou vazar os olhos dos dois, sem fazer qualquer averiguação. No entanto, 
o castigo prometido pelos deuses chegou quase que imediatamente, pois os irmãos da 
repudiada Cleópatra que faziam parte da expedição dos Argonautas, vazaram seus olhos.

    ­­ *As deficiências físicas na realidade da vida militar grega*
    Na Grécia Antiga, em épocas anteriores ao surgimento do Cristianismo, encontramos 
muitos indícios de medicina bastante evoluída e da organização de diversos serviços de 
saúde, tanto para o povo quanto para os soldados que procuravam garantir a sobrevivência e 
a pujança de sua pátria. Serviços médicos na área militar não atendiam apenas a soldados 
gregos e seus aliados mas também a prisioneiros com problemas de mutilações ou com 
doenças graves. As amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com 
freqüência nos campos de batalha devido aos combates corpo­a­corpo e ao uso de armas 
cortantes. Para as pernas havia algumas proteções por meio das já citadas "cnêmides", que 
certamente impediam muitos ferimentos mais sérios em guerreiros importantes. Lâminas 
ameaçadoras que eram colocadas nos eixos dos carros de combate eram um dos perigos de 
amputações ou ferimentos sérios. Ocorriam também ferimentos com pancadas violentas e 
armas penetrantes. Médicos destacados para servirem nos exércitos de então acumulavam 
rapidamente larga experiência, apesar de disporem de parcos recursos para aliviar dores, 
estancar o sangue ou outras providências que poderiam salvar vidas em perigo. Hemorragias 
eram estancadas por vezes com ferro em brasa ou com o cobre superaquecido. Às vezes 
ferimentos graves eram tratados na retaguarda com óleo fervendo e alguns escapavam com 
vida a tais tipos de tratamentos.

    ­­ *As principais causas de deficiências na Grécia Antiga*
    Na antigüidade clássica praticamente todos os povos chegaram a desenvolver atividades 
de assistência pública devido à insuficiência daquelas prestadas pela população, de maneira 
direta. Segundo alguns autores, Aristóteles já indicava que "é mais fácil ensinar a um 
aleijado a desempenhar uma tarefa útil do que sustentá­lo como indigente". Não só para 
Aristóteles, mas para muitos pensadores e políticos gregos, competia ao Estado proteger os 
pobres, os miseráveis e, quase sempre no meio deles, os portadores de deficiências devido a 
qualquer causa. 
    Na abalizada opinião do Professor Pournaropoulos, na Grécia Antiga havia três tipos de 
pessoas com deficiências:
  ­ os mutilados ou deficientes devido a ferimentos ou a acidentes próprios da guerra e de 
atividades afins;
  ­ os prisioneiros de guerra com deficiências físicas, ou os detentos criminosos civis, cuja 
mutilação ou deficiência era causada por uma pena ou castigo;
  ­ os deficientes civis por doenças congênitas ou adquiridas, ou também por acidentes os 
mais variados.

    Dentre os acidentes da vida civil (na vida industrial e também na forte construção civil 
gregas) os acidentes de trabalho ocorriam com bastante freqüência devido à falta de medidas 
de segurança ou de proteções especiais. Um caso que passou para a História Grega ocorreu 
com o famoso arquiteto Mnésicles, que no ano 435 a.C., ao inspecionar as obras de 
construção da monumental propiléia da Acrópole de Atenas, caiu de um dos andaimes. 
Segundo nos relatam os historiadores e analistas da História Grega, Mnésicles não ficou 
paralisado pelo resto de seus dias por mera sorte. Entretanto o misticismo grego conta­nos 
uma história interpretativa diferente, afirmando que quem o salvou foi a deusa Athena 
(Minerva para os romanos), pois ela apareceu num sonho a Péricles, que àquela 
oportunidade comandava os destinos da cidade­estado de Atenas. A ele a deusa sugeriu um 
misterioso tratamento que deveria ser aplicado no famoso arquiteto acidentado. Com a sua 
recuperação miraculosa, tão vital para a glória da poderosa Atenas, Péricles mandou erigir 
uma linda estátua de bronze da deusa salvadora no próprio lugar da queda, e em seu pedestal 
mandou gravar estas palavras reconhecidas que só foram descobertas muitos séculos após, 
devido às escavações: THEY ATHENAI  HIGIEIAI (A Athena  Salvadora)

    ­­ *Tirteu, poeta Lírico com deficiência física*
    Nascido na Ática em meados do século VII a.C., Tirteu é identificado pelos historiadores 
como um dos poetas líricos elegíacos iâmbicos mais expressivos da Grécia Antiga. 
Trabalhou no inicio de sua vida como professor de uma escola ateniense, embora sofresse 
bastante com as limitações físicas marcantes que o obrigavam a claudicar 
significativamente.
    No entanto, o poeta Tirteu viveu numa época em que a poesia era muito valorizada, o que 
o tornou muito aceito nos meios atenienses mais cultos.
    Conta­nos sua quase lendária história que durante a Segunda Guerra Messênica os 
espartanos foram obrigados a fazer aos atenienses um pedido incomum: precisavam de um 
general para comandar suas forças, não porque inexistissem homens capazes na aguerrida 
Esparta, mas devido a uma clara indicação do sagrado oráculo de Delfos.
    Os atenienses ironicamente mandaram aos espartanos o poeta Tirteu, manco como era, 
sem nenhum conhecimento de vida militar e um mero poeta. Mas os espartanos respeitaram 
a indicação, pois viram naquele homem, cuja figura física seria inaceitável nas elites de 
Esparta, um verdadeiro sinal de Apolo, o deus dos oráculos e também do canto.
    Na prática Tirteu provou ser muito competente em sua missão inusitada. Explorou a 
interpretação indicada e as diversas conotações da mesma. Adotou uma linha de valorização 
da coragem dos soldados espartanos em todos os seus cantos de guerra, conduzindo­os dessa 
forma à vitória final contra seus inimigos. Eis um de seus cantos que chegaram até nós: 
"Que honra para o jovem valente ser morto pelo seu país com a espada em sua destra" (Apud 
Pournaropoulos).

    ­  *As leis que favoreciam as pessoas deficientes*
    Na História Grega existem citações relativas à assistência destinada a pessoas deficientes 
que são muito mais claras e específicas do que aquelas encontradiças em culturas anteriores, 
contemporâneas ou posteriores.
    Havia, por exemplo, em Atenas e em Esparta ­ rivais famosas ­ determinações oficiais que 
davam aos soldados feridos e seus familiares vantagens de diversas naturezas. Existiam 
provisões especiais relacionadas à alimentação, como as que eram conseqüentes a uma lei de 
Sólon (640 a 558 a.C.) que determinava: "Soldados feridos gravemente e os mutilados em 
combate serão alimentados pelo Estado".
    Plutarco (45/50 a 125 d.C.), historiador e moralista grego, afirma que esse tipo de lei 
favorecia pessoas consideradas incapacitadas para obtenção ou a garantia de seu próprio 
sustento, mas que tais provisões não tinham sua origem tanto na sensibilidade de Sólon a 
respeito do problema geral dos soldados mutilados durante as muitas batalhas nas quais 
Atenas estava continuamente envolvida. Na verdade, a compreensão mais aguda do 
problema que o grande estadista demonstrara originara­se do conhecimento que tivera das 
dificuldades vividas por alguém que Plutarco chega a identificar em sua obra apenas pelo 
nome, não lhe dando, porém, maiores qualificativos. O historiador grego afirma que essa 
famosa determinação legal "foi promulgada devido ao fato de Térsipo ter ficado inválido, e 
essa mesma lei foi usada mais tarde para uma outra semelhante, de
Pisistrato" ("Sólon", de Plutarco).
    Houve, por muitos séculos, nas cidades de Atenas e de Esparta, determinações que davam 
aos soldados e seus familiares vantagens que todo o povo considerava como justas. No 
entanto, mesmo naquelas épocas surgiam elementos viciosos que procuravam tirar proveito 
das situações e tentavam indevidamente se enquadrar nessas vantagens, como podemos 
deduzir de um interessante discurso de Lysias (459 a 380 a.C.), orador extremamente 
eloqüente, citado pelos historiadores como inimigo ferrenho dos chamados Trinta Tiranos. 
Nesse discurso, Lysias faz comentários a respeito de diversos problemas das pessoas que 
tinham mutilações ou que apresentavam algum tipo de deficiência. E faz referências irônicas 
aos pseudo­deficientes perante o Senado Ateniense. Esse discurso chegou até nossos dias e é 
intitulado, na língua grega, "Uper tou Adunatou" (Em favor do deficiente).
    A questão deve ter deixado as autoridades e mesmo o povo ateniense bastante 
preocupados não só com o franco desmascaramento dos falsos deficientes, mas também com 
a necessidade de garantir a sobrevivência dos heróis atenienses do presente e do passado e 
daqueles outros que certamente iriam se prejudicar fisicamente em defesa de Atenas.
    Em seu trabalho relativo à constituição de Atenas, intitulado no grego "Athenáion 
Politéia", Aristóteles (384 a 322 a.C.), um dos maiores sábios de todos os tempos, afirmou 
taxativamente aos membros do Conselho Ateniense: "O Conselho passará agora a examinar 
o problema dos deficientes. Existe, de fato, uma lei que estabelece que todo ateniense cujos 
bens não ultrapassem três "minás" e cujo corpo esteja mutilado ao ponto de não lhe permitir 
qualquer trabalho, seja examinado pelo Conselho e que seja concedido a cada um deles, às 
expensas do Estado, dois óbulos por dia para sua alimentação. E existe um tesoureiro dos 
deficientes, designado para tal" ("Constitution d'Athène", de Aristóteles).
    Percebe­se, portanto, que não se tratava de mero paternalismo nem de esmola oficializada 
pelo Estado. O indivíduo tinha seu caso estudado antes de receber os óbulos estabelecidos e 
ao início da aplicação desses planos não ocorreram muitas fraudes. A cidade­estado de 
Atenas tivera meio século após o discurso de Lysias para achar uma fórmula mais objetiva 
de atendimento aos deficientes. Defendia­se, na verdade, um direito adquirido pela prestação 
de serviços à Pátria.
    Nota­se pelo estudo da História Grega que esse beneficio foi aos poucos sendo estendido 
a outras pessoas portadoras de deficiências ou de incapacidade para o trabalho, 
independentemente da causa do problema, abrangendo eventualmente os pobres em geral. 
Na época em que Aristóteles chamou a atenção do Estado para o problema, já havia mais de 
20.000 pessoas alimentadas às expensas do governo ateniense, devido a muitos tipos de 
deficiências e doenças, correspondendo a 20% da população total de Atenas.

    ­ *A medicina grega e as deficiências físicas*
    A Grécia Clássica foi a pioneira dos movimentos de assistência médica à sua população 
civil. Nomes famosos como os de Asclépios (Esculápio para os romanos), médico renomado 
que muitos anos após sua morte foi transformado no próprio deus da medicina, Demócedes 
de Crotona, Eródicos, Hipócrates e Cláudio Galeno, enriqueceram o cabedal de estudos 
sobre medicina e também sobre questões ligadas direta ou indiretamente a deficiências 
físicas e sensoriais, durante muitos séculos.
    Dentro dos objetivos deste trabalho, procuraremos restringir a pesquisa às atividades ou 
personalidades de alguma forma relacionadas a deficiências físicas ou mentais sérias e 
também ao eventual tratamento dispensado aos portadores de algum tipo de deficiência na 
Grécia Antiga.
    É do conhecimento geral que a medicina grega não conheceu fronteiras, pois seus mais 
famosos e competentes homens eram avidamente procurados por reis e pela nobreza de 
vários paises vizinhos, tais como do Egito, Roma, Pérsia e outros mais.
    Um pequeno exemplo poderá muito bem ilustrar essa procura e ao mesmo tempo a velada 
disputa existente entre médicos egípcios, também muito famosos por séculos, e os médicos 
gregos. Um acidente na área da ortopedia, que quase levou um rei famoso a uma séria 
deficiência física, fez com que a medicina grega penetrasse no Império Persa, no qual 
médicos egípcios pontificavam, devido ao fato de por muito tempo terem sido considerados 
como os mais competentes e mantenedores de renome soberbo.
    Heródoto que nos relata que Dario I (521 a 486 a.C.), orgulhoso soberano persa, ao descer 
num salto arrojado de seu cavalo durante uma caçada, torceu violentamente o pé. Os 
médicos de sua corte ­ todos eles egípcios por preferência e exigência do próprio monarca ­ 
eram adeptos de técnicas um tanto violentas para casos de deslocamento, fraturas, luxações e 
males afins e acabaram piorando o problema de Dario. Por sete dias e sete noites ele ficou 
sem dormir devido às fortes dores no pé, todo inchado e dolorido ao extremo.
    No oitavo dia ele não suportava mais as dores e o desconforto de não poder nem dormir e, 
quando todos aos seu redor já sentiam que a irritação do soberano persa poderia fazer rolar 
algumas cabeças, inclusive de  assustados médicos egípcios, Demócedes, médico grego 
nascido em Crotona, que vivera em Atenas e na ilha de Samos onde havia aprendido e 
praticado medicina, foi levado à sua presença, às pressas e também à força. Mal vestido, sujo 
e cheirando mal devido às circunstâncias de sua verdadeira caçada para ser levado ao rei, e 
além disso, arrastando ruidosa e acintosamente seus grilhões de prisioneiro, não causou boa 
impressão.
    Dario, irritado sobremaneira pelo seu próprio problema e pela decepção face à sua 
esperança naquele médico grego sobre o qual seus auxiliares vinham falando há dias e que 
poderia tirá­lo daquela desconfortável situação de incapacidade física, perguntou aos gritos 
se ele pelo menos entendia um pouco de medicina. Demócedes, de seu lado muito 
preocupado em poder voltar à Grécia, respondeu que não. O que ele não esperava é que 
Dario, que antes ouvira falar de sua vasta competência em medicina, mandasse seus servos 
buscar açoites e instrumentos de tortura. Diante da negra perspectiva, confessou que 
entendia um pouco de medicina e que vivera um pouco com um outro médico grego, mas 
que seus conhecimentos eram muito limitados e jamais poderiam chegar aos pés daqueles 
dos médicos­sacerdotes egípcios ali mesmo presentes.
    Mesmo assim o desesperado Dario fez questão de ficar sob seus cuidados. Demócedes, já 
limpo e sem grilhões, começou por usar métodos mais suaves para recuperar o dolorido pé 
do monarca persa. Usou ungüentos e remédios que conhecia graças à sua experiência na 
Grécia, tendo tomado antes a sábia decisão de fazer o irritado Dario dormir, para depois, por 
um tratamento mais prolongado e menos traumatizante, recuperá­lo ­ impedindo uma 
eventual amputação ­ e fazê­lo voltar a andar. O médico grego transformou­se no médico 
favorito de Dario, lá estabelecendo­se com o mais absoluto sucesso e abrindo caminho para 
muitos outros médicos gregos no Império Persa. Demócedes tornou­se muito rico e famoso 
desde então, tendo sido um dos fatores decisivos na finalização dos planos de Dario I para a 
invasão da Grécia à qual sempre pretendeu voltar e nela se radicar.

    ­ *A medicina de Hipócrates e as deficiências*
    Eródicos, médico grego de vastíssima experiência, foi um dos principais mestrês de 
Hipócrates (460 a 377 a.C.). Segundo a opinião de alguns estudiosos da história da 
medicina, foi Eródicos o primeiro médico mais famoso que começou a utilizar técnicas de 
tratamento que ele mesmo chamava de "ginástica médica", uma incipiente fisioterapia .
    Hipócrates, por seu lado, apresenta em muitos de seus trabalhos várias descrições e 
análises sobre males incapacitantes ou limitadores. Dentre eles destacamos a espondilite, a 
escoliose, o deslocamento congênito da bacia. Além disso o grande mestre da medicina 
indicava como fazer o tratamento por meio de massagens, de calor e de sua "ginástica 
terapêutica" ­ também uma antecessora da fisioterapia.
    Segundo estudiosos dos trabalhos de Hipócrates, foi ele que deu início à árdua tarefa de 
separar a superstição e o misticismo da realidade dos fatos em medicina, especialmente no 
tratamento de alguns males misteriosos para aqueles afastados séculos. Sua famosa máxima 
"divinum opus est sedare dolorem" (aliviar a dor é uma obra divina) durante muitos séculos 
levou muitos homens dedicados à ciência de curar a continuamente procurar métodos mais 
humanos e menos dolorosos durante procedimentos cirúrgicos, de um modo especial nas 
amputações causadas por lesões de origem traumática.
    Hipócrates dedicava­se à medicina como um todo, não sendo nada estranho, portanto, que 
conhecesse bem uma infinidade de problemas médicos e seus remédios. Dentre eles 
destaquemos cerca de 30 doenças relacionadas à visão. Lidou, portanto, com males que 
levavam também a deficiências físicas ou sensoriais.

    ­ *Hipócrates e suas idéias quanto à epilepsia*
    Com relação a um dos principais e mais misteriosos problemas causadores de muito séria 
marginalização, ou seja, a epilepsia, Hipócrates insistia que o famoso "mal divino", tão 
comum nos oráculos, nos sacerdotes e mesmo nos imperadores da antigüidade nas mais 
variadas culturas e povos, não passava de um mal que não era nem sagrado nem divino, pois 
tinha causas naturais. Eram a ignorância, o medo, a superstição e a crendice que levavam o 
homem a crer em sua sobrenaturalidade, muitas vezes até sugerida ou confirmada por 
homens dedicados à medicina, principalmente por não saberem como tratá­la.
    Sobre esse assunto Hipócrates diz textualmente: "Na minha opinião pessoal, aqueles que 
primitivamente deram a essa doença um caráter sagrado eram feitos mágicos, exorcisadores, 
curandeiros e charlatões dos nossos tempos, homens que se gabam de possuir grande 
devoção e não menor sabedoria. Não sabendo e não possuindo medicamento algum que os 
possa auxiliar, escondiam­se e abrigavam­se por detrás da superstição, chamando a essa 
doença de sagrada, a fim de que sua profunda ignorância não chegasse a manifestar­se"... 
"Mas essa doença, na minha opinião, não é mais divina do que qualquer outra; possui a 
mesma natureza das demais, com a mesma causa que dá origem a cada uma das doenças"... 
"Sua origem, como a de outras, reside na hereditariedade" ..."O fato é que a causa dessa 
afecção, como em geral a de todas as doenças mais graves, reside no cérebro" (Apud 
Tavlor).

    ­ *Adaptações para prevenir deformações em crianças*
    Já era do tempo de Hipócrates, que certamente deu relevante contribuição ao assunto 
graças à sua vasta experiência, a adoção de medidas preventivas de defeitos físicos em 
crianças de pouca idade. Os gregos e muitos outros povos que viviam no século IV a.C. 
usavam certos tipos não identificados de recursos artificiais que são citados por Aristóteles 
meio século após a morte de Hipócrates. A afirmação taxativa do grande filósofo grego é 
esta: "Todos os movimentos aos quais as crianças podem se sujeitar em idade tenra são 
muito úteis. Mas, a fim de preservar seus frágeis membros de defeitos, tem usado aparelhos 
mecânicos que fortificam seus membros" ("Politics", de Aristóteles).
    A tradução do grego para o inglês utiliza as palavras "mechanical appliances", enquanto 
que a versão francesa adota a palavra "machines" para o mesmo vocábulo grego.
    É de se ressaltar, entretanto, a importância já dada a medidas preventivas generalizadas, 
segundo afirmação de Aristóteles. Foi exatamente sua relevância que o levou a fazer dela 
menção expressa em uma de suas obras mais importantes.

    ­ *Cláudio Galeno e sua importância*
    Nascido mais de cinco séculos após a morte de Hipócrates, um outro médico grego que 
teve grande influência no desenvolvimento da medicina como um todo e que também 
trabalhou com situações de deficiências físicas foi Cláudio Galeno (131 a 201 d.C.), na 
cidade de Pérgamo, na Grécia.
    Trabalhou muito em fisiologia experimental, passando a maior parte de sua vida em Roma 
e outras paragens do Império Romano ­ o que não era de estranhar nos séculos do apogeu 
romano. Foi primeiramente médico de arena dos famosos circos romanos; após, foi 
destacado para ser médico de várias legiões romanas por muitos anos, durante os quais 
acumulou enorme experiência. Posteriormente, devido à sua competência, foi promovido 
para médico imperial e também para professor de medicina. Seus trabalhos e sua relatada 
experiência sobreviveram a ele e foram quase dominantes em medicina durante muitos 
séculos da Idade Média, chegando a ser usados em diversas escolas de medicina até o século 
XVII.
    Escreveu sobre várias paralisias, tendo estudado a fisiologia patológica de maneira mais 
cientifica do que a anteriormente conhecida. Sempre muito envolvido no atendimento a 
casos de ortopedia, como é fácil de imaginar pela sua vida juntos aos circos romanos e a 
legiões diversas; foi o primeiro a utilizar certos termos médicos identificadores de males e 
que são até hoje empregados, tais como: "kyphosis", "lordosis",
"skoliosis", dentre vários outros.

    ­ *Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos*
    Dos homens gregos portadores de deficiências ou de limitações, que se notabilizaram e 
passaram mesmo para a História, o leitor certamente apreciará a lembrança de Demócrito e 
de Homero.
    Demócrito (470 a 360 a.C.) foi um físico e filósofo grego. Em seu modo de ver, devemos 
procurar tudo de bom que o mundo pode ter, dentro de um otimismo moderado e sem 
esquecer dos problemas inerentes a ele, Embora suas obras mais famosas não tenham 
chegado até nós, escreveu­as com títulos interessantes, como, por exemplo, "sobre a 
tranqüilidade da alma", "sobre a natureza do homem", "sobre as causas da harmonia 
celestial" e outros.
    Dele, quase quatro séculos após sua morte, escreveu Cícero: "Demócrito, após perder a 
visão, não podia mais distinguir o branco do preto; mas distinguia o bem do mal, o justo do 
injusto, o honesto do desonesto, o útil do inútil, o grande do pequeno. Pode­se ser feliz sem 
distinguir a verdade das cores, mas não se poderá sê­lo sem dominar idéias verdadeiras. Esse 
homem acreditava até que a visão era um obstáculo às operações da alma" ("Tusculanae 
Disputationes", de Cícero).
    Diz a lenda que, para melhor meditar, Demócrito havia inutilizado seus próprios olhos, 
pois expusera à luz do sol por muito tempo uma placa de cobre brilhante, fazendo incidir 
seus raios sobre seus olhos (Apud Cabanès).
    Quanto a Homero, já notamos a grandiosidade de suas obras Ilíada e Odisséia ­ ao falar de 
Hefesto, o deus da metalurgia. A respeito desse grande poeta grego, afirmou Cícero quando 
analisava os males que aparentemente podem tornar uma vida miserável, mas que podem ser 
superados graças à força de cada um: "Homero era cego, segundo a tradição. Seus poemas 
são verdadeiros quadros: que lugares, que praias, que paragens da Grécia, que tipos de 
combates, que estratégias de batalhas, que manobras navais, que movimentos de homens e 
de animais são tão fielmente retratados pelo autor, que parece nos colocar sob os olhos, o 
que ele mesmo não havia nunca visto! O que é, então, que faltou a esse grande gênio não 
mais do que a outros homens verdadeiramente sábios, para aproveitar todos os prazeres de 
que a alma é capaz?" ("Tusculanae Disputationes", de Cícero).
    ­ *Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas*
    Homem famoso e importante do século IV a.C. foi o orador e político ateniense, 
Demóstenes. Embora tenha nascido de família bastante abastada, o garoto perdeu seus pais 
muito cedo e sua fortuna foi malbaratada pelos seus tutores. O jovem Demóstenes tinha 
sérias dificuldades para falar correntemente. Gaguejava muito, segundo os historiadores. Ao 
que parece ele colocava pedrinhas na boca e gritava ao arrebentar das ondas, a fim de vencer 
a dificuldade. De fato, obteve uma grande vitória sobre os problemas de comunicação que o 
afligiam, pois chegou a tornar­se um dos mais enfáticos oradores atenienses, chamando 
sempre a atenção de seus concidadãos para o perigo contínuo dos espartanos.
    Existem, no entanto, algumas dúvidas quanto à extensão dos males que de fato afetaram 
Demóstenes durante toda a sua vida e a mais séria delas nos é sugerida por duas obras de 
arte existentes no Museu Britânico, de Londres. Trata­se de duas cabeças do grande orador 
que nos dão a nítida impressão de que ele tinha lábio leporino do lado esquerdo.
    Saul M. Bien, do Instituto Gugenheim de Pesquisa Dentária da Universidade de New 
York, publicou na revista médica The Lancet uma interessante carta ao editor, anexando 
uma cópia de foto da peça em questão e afirmava àquela ocasião, entre outras coisas: 
"Lembrando que Demóstenes costumava descer à beira­mar, lá enchendo sua boca com 
pedrinhas para discursar acima do barulho das ondas, ocorreu­me que com toda a certeza o 
objetivo era conseguir uma pedra lisa e plana que serviria como um obturador para uma 
possível fissura palatal associada com presumível defeito no desenvolvimento labial".
    Se a hipótese de Bien estiver correta, ressaltemos que o esforço para a superação dos 
problemas que afetavam Demóstenes duramente foi bem maior do que o imaginado por 
muitos séculos já passados após sua morte.

    ­ *Pessoas deficientes trabalhando citadas em obras gregas*
    Homero faz diversas citações de pessoas portadoras de deficiências desempenhando 
funções com grande sucesso. Uma dessas citações fala de Hefesto, conforme tivemos 
oportunidade de ver anteriormente: um ser superior com deficiência nas pernas e indicado 
como exímio artífice e magnífico ferreiro. Lenda provavelmente indicativa dos costumes e 
usos da sociedade de então, cinco séculos antes da época de Hipócrates.
    Outra figura citada pelo mesmo autor relaciona­se a um contador de histórias e de 
rapsódias, além de cantor de voz agradável: Demódoco, "ao qual, mais do que a ninguém, a 
divindade outorgou o dom de deleitar com seus cantos, seja qual for o assunto que seu 
coração lhe inspire" . . . Homero afirma também que Demódoco era "entre todos querido da 
Musa, a qual lhe dera, a um tempo, o bem e o mal, pois, o privara da visão e lhe concedera o 
melodioso canto" ("Odisséia", de Homero).
    Há uma terceira figura citada por Homero na Odisséia: Tirésias. Era um adivinho cego, 
muito famoso, proveniente da vila de Tebas. Inserido em diversas outras obras, a história de 
Tirésias confirma a crença de que a cegueira não era só um mal, mas um castigo também. 
Ele ficara cego por ter revelado à humanidade os segredos do Olimpo. Segundo as lendas, 
foi Tirésias que colaborou com o rei Édipo na descoberta das origens e circunstâncias de seu 
nascimento, o que levou o infeliz monarca a arrancar os próprios olhos, conforme vimos em 
páginas anteriores. As lendas acrescentam que mesmo após a morte, do próprio Hades 
(mansão dos mortos) para onde foi, Tirésias continuou a fazer adivinhações. Retratando ou 
não a viabilidade da função de adivinho ou oráculo ter sido bastante desempenhada por 
pessoas deficientes, um pouco mais adiante citaremos casos reais que comprovam essa 
possibilidade.
    As aplicações da vida prática nas obras literárias são muito comuns e certamente 
influenciaram também os escritores gregos. Os exemplos citados acima, que são apenas uma 
ilustração retirada das obras de Homero, deixam­nos a impressão de que pessoas deficientes 
tinham seu lugar na sociedade produtiva grega, desde que exercendo funções à sua altura. O 
próprio Homero é um incrível exemplo de competência.

    ­ *Creso, o mais feliz dos homens*
    Creso é uma figura conhecida na História dos povos que gravitavam ao redor da Grécia, 
da Pérsia, do Egito e de outros países mais fortes e pujantes do século VI a.C. Foi rei da 
Lídia entre 563 e 548 a.C. e, tido como riquíssimo, considerava­se para todos os efeitos o 
homem mais feliz de todo o mundo.
    Foi em certa ocasião visitado por Sólon (640 a 558 a.C.), um dos sete sábios de Atenas, já 
com mais de 75 anos de idade que, embora impressionado com a sua riqueza, considerou 
outros homens já mortos como mais felizes do que Creso. Segundo o velho legislador 
ateniense, ninguém poderia afirmar com segurança que este ou aquele homem era o mais 
feliz durante sua vida. A infelicidade sempre poderia surgir repentinamente.
    E Creso teve de fato, logo a seguir, dois problemas seríssimos que provaram a teoria de 
Sólon, empanando de vez a sua felicidade: teve dois filhos, "um dos quais vitimado por uma 
desgraça de nascença: era surdo­mudo" ("História", de Herodoto).
    O outro filho, apesar dos extremos cuidados do pai por muitos anos, morreu 
acidentalmente durante uma caçada em companhia de amigos e nobres da corte de seu pai. 
Creso teve também a infelicidade de ver seu reino invadido e dominado por Ciro, rei dos 
persas, sendo por ele condenado à morte. Deveria ser decapitado na presença do filho surdo­
mudo e de sua corte.
    No momento em que o carrasco, de espada levantada, ia desferir o golpe mortal, o filho de 
Creso, num emocionante gesto de amor filial, superando a deficiência que o mantivera mudo 
até então, gritou: "Soldado, não mate Creso!" Ciro ficou tão impressionado com a reação do 
garoto e com a coragem demonstrada por Creso que mandou soltá­lo e recebeu­o como um 
de seus conselheiros. Apreciou tanto seu modo de ser que o recomendou a Cambises, seu 
sucessor, do qual já falamos. 

    ­ *A importância dos oráculos e adivinhos na vida grega*
    Todos os historiadores gregos transmitem­nos uma nítida impressão da crença que todo o 
povo e mesmo todas as autoridades depositavam nos oráculos e nas mensagens transmitidos 
por sacerdotes, pitonisas e adivinhos, quase todos eles verdadeiros recados cifrados dos 
deuses consultados que admitiam algumas interpretações. Raramente decisões de 
importância eram tomadas sem que esses canais de comunicação com os deuses fossem 
consultados. O costume era tão arraigado e tão levado a sério que cada comandante 
mantinha ao seu lado um adivinho incorporado e pago pelo governo, consultando­o antes de 
movimentar suas tropas para um combate.
    Alguns desses adivinhos eram portadores de deficiências as mais variadas, conforme 
comentamos anteriormente, sendo vítimas da epilepsia (o famoso "mal sagrado") ou de 
cegueira, na maior parte dos casos. Muitos deles tornaram­se famosos no exercício de sua 
função, quer analisando o vôo dos pássaros, quer examinando as entranhas de animais 
sacrificados, ou mesmo dando interpretações instantâneas a alguns sinais da natureza, como 
os ventos, raios, trovões, tremores de terra, eclipses do sol ou da lua, por exemplo.
    Heródoto fala­nos a respeito de diversos adivinhos, durante a fortíssima campanha do rei 
Xerxes, soberano dos persas, contra a Grécia, nos anos 480 a 479 a.C., sendo Megístias um 
deles. Seguia esse adivinho o heróico grupo dos 300 espartanos de Leônidas que, no estreito 
das Termópilas, chegou a bloquear por vários dias o imenso exército do poderoso Xerxes, 
com mais de três milhões de soldados. Conta­nos Heródoto: "O adivinho Megístias, tendo 
consultado as entranhas das vítimas, comunicou aos gregos que guardavam o desfiladeiro 
das Termópilas, que eles deviam perecer no dia seguinte, ao romper da aurora" ("História", 
de Heródoto).
    A credibilidade do adivinho era tal que Leônidas ordenou às suas tropas de apoio (4.000 
homens de cidades aliadas à causa) para se retirar naquela noite mesmo, permanecendo no 
local apenas ele, seus trezentos espartanos e o próprio Megístias que não quis abandonar seu 
rei. E lá deixaram uma mensagem famosa e tocante que hoje está inscrita no belo 
monumento ali existente: "Caminhante, vá dizer aos espartanos que aqui morremos em 
obediência às suas ordens" ...

    ­ *A história de um adivinho famoso que era cego*
    Outro adivinho mencionado por Heródoto na mesma obra, de nome Deifono, originário de 
Apolônia, na Ilíria (hoje Albânia), era filho de Eveno, adivinho muito mais famoso e que era 
cego.
    A história de Eveno, nas palavras do próprio Heródoto, é esta: "Durante todo aquele dia 
os combatentes gregos mantiveram­se em repouso, e na manhã do dia seguinte realizaram 
sacrifícios aos deuses, sendo­lhes favoráveis os augúrios deduzidos do exame das entranhas 
das vítimas. Tinham eles por adivinho Deifono, de Apolônia, cidade situada no golfo lônio, 
filho de Eveno, a quem aconteceu estranho fato, que passo a relatar. Existem na cidade de 
Apolônia rebanhos consagrados ao sol. Durante o dia esses rebanhos pastam às margens de 
um rio que desce do monte Lácmon, atravessa aquela cidade e desemboca no mar perto do 
porto de Órico; mas à noite são guardados por um habitante da cidade, escolhido todos os 
anos entre os cidadãos da mais alta categoria, quer pelo nascimento, quer pelas suas posses; 
pois os Apolonitas, em vista da advertência de um oráculo cercavam esses rebanhos do 
maior cuidado. Passavam eles a noite numa gruta afastada da cidade. Eveno, tendo sido 
escolhido para essa missão, dormiu quando devia velar. Os lobos, entrando na gruta, 
devoraram cerca de sessenta animais. Despertando e vendo o que acontecera, Eveno 
resolveu ocultar o fato, com a intenção de adquirir outros animais para substituir os que 
haviam sido devorados pelas feras. Contudo, os Apolonitas vieram a ter conhecimento da 
verdade e, indignados, submeteram Eveno a julgamento, condenando­o a perder a vista, por 
ter dormido quando devia estar vigilante. Mas depois que lhe vazaram os olhos, os rebanhos 
deixaram de procriar e a terra cessou de produzir frutos. Essa calamidade lhes havia sido 
predita pelo oráculo de Dodona e de Delfos. Os profetas, consultados sobre a causa de 
tamanha desgraça, responderam constituir aquilo uma punição pela injustiça que haviam 
cometido, cegando Eveno, guarda dos rebanhos sagrados. Disseram que eles próprios tinham 
enviado os lobos e que continuariam a vingá­lo até que os Apolonitas reparassem a sua 
injustiça para com ele. Quando isso se desse, eles próprios concederiam a Eveno um dom 
que o faria parecer a muitos um homem verdadeiramente feliz".
    Heródoto continua a narrativa, informando: "Ante essa resposta, que lhes foi dada sob 
sigilo, os Apolonitas incumbiram alguns de seus concidadãos de irem à procura de Eveno, a 
fim de sondá­lo quanto à sua maneira de sentir com relação à pena que lhe fora imposta. Os 
emissários foram encontrar Eveno sentado numa cadeira. Tomando assento ao seu lado, 
puseram­se a falar­lhe sobre coisas banais, fazendo, aos poucos, recair a conversa sobre a 
desgraça que o atingira, terminando por perguntar­lhe como receberia uma reparação dos 
Apolonitas, se eles se mostrassem dispostos a assim proceder, e qual a que ele considerava 
mais justa no caso.
Eveno, que ignorava a resposta do oráculo, respondeu que, se os Apolonitas, em reparação 
ao mal que lhe causaram, lhe concedessem terras, escolheria as de dois de seus concidadãos, 
cujos nomes citou, consideradas as melhores de todo o país. Gostaria também que lhe 
dessem a mais bela casa da cidade. Com tais compensações ficaria satisfeito, cessando as 
suas queixas contra os seus concidadãos".
    "Eveno ­ disseram os emissários ­ os Apolonitas lhe concedem, obedecendo às ordens do 
oráculo, a reparação que exiges pela perda da visão". Posto, então, ao corrente dos fatos que 
se seguiram à sua punição, Eveno mostrou­se bastante contrariado por haver sido enganado; 
mas os seus desejos foram satisfeitos, pois os Apolonitas adquiriram as propriedades que ele 
havia escolhido e fizeram­lhe presente delas. Logo depois, os deuses lhe concederam o dom 
da adivinhação, com o que ele adquiriu grande celebridade" ("História", de Heródoto).

    ­ *As próteses de Hegesístrato, adivinho grego*
    Hegesístrato de Eléia é considerado como o adivinho "mais célebre das Telíadas", na 
opinião de Heródoto, aparecendo como agregado às tropas de Xerxes, por volta de 479 a.C., 
ao final da grande luta contra os gregos.
    Vários anos antes disso, todavia, os espartanos haviam capturado Hegesístrato que era 
apenas um rebelde que combatia continuamente a Lacedemônia. Posto a ferros, devia ser 
executado após inimagináveis torturas, Heródoto nos conta que "encontrando­se em tão 
triste situação e tendo antes de ser executado de sofrer ainda os mais cruéis tormentos, 
praticou um ato de incrível temeridade. Achava­se com os pés presos em entraves de 
madeira guarnecidos de ferro. Servindo­se de um instrumento cortante, que alguém, sem 
dúvida, lhe havia trazido, seccionou a parte do pé acima dos dedos, depois de ter examinado 
se poderia libertar dos entraves o resto do pé. Depois de ter praticado a mutilação e retirado 
o pé, como a prisão estava guardada, fez um buraco na parede e fugiu, caminhando durante a 
noite e escondendo­se durante o dia nos bosques. Na terceira noite de caminhada chegou a 
Tegéa, apesar das buscas dos lacedemônios, que se mostraram bastante espantados com a 
audácia do fugitivo ao verem nos entraves a parte dos pés mutilados".
    "Assim Hegesístrato, tendo conseguido escapar à perseguição dos lacedemônios, 
refugiou­se em Tegéa, que não se mantinha, naquela ocasião, em muito boas relações com 
Esparta. Curando­se dos ferimentos praticados em si próprio, passou a usar pés de madeira e 
tornou­se inimigo declarado dos lacedemônios" ("História", de
Heródoto).
    Diversos anos após, ocorrida a invasão de Xerxes, Hegesístrato trabalhou como adivinho 
de seus exércitos sendo muito apreciado e admirado por Mardônio, general comandante dos 
persas na Grécia. Vaticinara maus resultados para a batalha de Platéia, mantendo com isso o 
exército persa parado por 10 dias. Mardônio, entretanto, não lhe deu ouvidos, entrou na 
batalha e foi morto, deixando aos gregos a sensação de que finalmente Leônidas havia sido 
vingado. Os persas retiraram­se para a Tessália de onde prosseguiram, em retirada, até a 
Pérsia.

    ­ *Peste Ateniense: o terror generalizado*
    Dentre as epidemias graves, ou "pestes" como foram muitas delas conhecidas, podemos 
destacar três na antigüidade: a "Peste Ateniense", a "Peste Antonina" e uma outra, sem 
nome, que ocorreu no século III d.C.
    A "Peste Ateniense" teve uma testemunha ocular muito precisa no historiador Tucídides 
(471 a 395 a.C. ), tido como o mais brilhante dos historiadores gregos, que a relatou em sua 
obra "A Guerra do Peloponeso". Ela ocorreu no ano 428 a.C. e matou mais de 20 mil dos 
100 mil habitantes de Atenas. Deixou um elevado número de vítimas com deficiências 
físicas.
    Tucídides nos conta com muita clareza: "Se se escapava dos problemas mais graves, o 
mal atingia as extremidades que, nesse caso, mantinham as marcas da sua passagem; atacava 
os órgãos sexuais, os dedos das mãos e dos pés. Muitos livraram­se dela com a perda desses 
membros, outros pela perda dos olhos: outros, enfim, ficaram totalmente privados da 
memória" ("Histoire de la Guerre du Péloponèse", de Tucídides).

    ­ *A atenção a soldados feridos ou doentes. Anábase, de Xenofonte*
    Raros são os autores gregos que analisam ou mesmo fazem qualquer menção ao problema 
dos feridos ou doentes nos exércitos da Grécia Antiga, muito embora as batalhas fossem 
sempre sanguinolentas e os tipos de armas então utilizadas levassem a incontáveis riscos não 
só de perfurações graves ou fatais, como também de cortes profundos e de amputações.
    Encontramos em "Anábase", a famosa obra de Xenofonte (430 a 355 a.C.),um relato 
pormenorizado sobre a retirada de 10.000 mercenários gregos contratados por Ciro, que 
disputava com seu irmão Artaxerxes II a coroa do Império Persa. Essa famosa "marcha para 
o norte", que começou em Cunaxa, onde Ciro foi morto em acirrada batalha, durou cinco 
meses entre 401 e 400 a.C. e nela tomou parte o próprio Xenofonte, como um de seus 
comandantes.
    É nessa obra que podemos encontrar algumas referências à questão dos feridos e dos 
doentes, e que poderão ser ilustrativas quanto ao tratamento e à atenção dispensados aos 
soldados fisicamente prejudicados em batalha.
    No enorme esforço coletivo para viabilizar o retorno de todo aquele infeliz exército, 
podemos imaginar a dramática situação vivida pela totalidade de seus homens e 
acompanhantes, sempre perseguidos por destacamentos das forças de Artaxerxes II ou pelas 
tribos habitantes das montanhas do Turquistão e da Armênia por onde passaram. O drama 
ficou muito mais forte quando tiveram que enfrentar os perigos das montanhas próximas ao 
nascedouro do Eufrates, cobertas de neve, uma vez que as circunstâncias da marcha contínua 
não permitiam deixar ninguém para trás.
    Em sua narrativa cristalina Xenofonte fala de relance no sério problema dos soldados 
doentes ou feridos. Faz menção àqueles que haviam ficado cegos ou que tinham tido 
membros amputados devido ao congelamento. Descrevendo a pressa em subir as montanhas 
e em escapar dos desfiladeiros perigosos, cita os suprimentos e bens abandonados e 
imediatamente capturados e repartidos com um grande alarido pelos bárbaros que os 
perseguiam muito de perto.
    "Deixamos também para trás os soldados que a neve havia cegado ou que o frio havia 
congelado os dedos dos pés. Podia­se proteger os olhos do brilho da neve colocando diante 
deles um objeto negro enquanto se marchava. Podia­se também impedir os pés de congelar 
movimentando­os, não os deixando em repouso e tirando o calçado antes de dormir" 
("Anábase", de Xenofonte).
    Esses homens eram sempre colocados e protegidos na retaguarda e ocasionalmente 
participavam das escaramuças com as tribos de montanheses, pelo menos com seus gritos 
furiosos e com o barulho infernal que podiam fazer batendo espadas e lanças contra seus 
próprios escudos.
    Nota­se em certos pontos do livro IV a preocupação e o carinho para com esses homens 
feridos ou doentes. Tanto isso é verdadeiro, que, após cinco meses de marcha para o Mar 
Negro, tendo chegado às costas e se instalado com certa tranqüilidade por um mês, decidiu­
se buscar a ajuda dos navios gregos.
    Enquanto ela não chegava para transportar os 8.600 homens e seus acompanhantes que 
haviam sobrevivido à travessia, os primeiros a embarcar para a pátria nos navios ali mesmo 
disponíveis foram os doentes e alguns outros componentes das forças gregas. Segundo 
palavras de Xenofonte, "embarcamos os doentes" ­ e dentre eles estavam os que podiam ser 
considerados como deficientes ­ "os soldados com mais de 40 anos, as crianças, as mulheres 
e a carga supérflua".
    
    ­ *Homens com sérias luxações nas pernas: sapateiros, ferreiros, seleiros*
    Informações interessantes sobre a utilização de homens com deficiências físicas nas 
profissões de selaria, sapataria e ferraria nos são transmitidas por Hipócrates ao comentar 
sobre a sociedade das Amazonas.
    Eram mulheres guerreiras que, segundo algumas lendas, habitavam a região da 
Capadócia. A etimologia da palavra não é muito segura, mas há os que afirmam tratar­se de 
antiga composição grega para o correspondente a "sem seio". As histórias relatam que as 
mães superaqueciam metais e outros objetos para deixá­los durante longo tempo bem 
próximos ao seio direito das meninas, dificultando com isso o seu crescimento e dando a 
cada uma delas, quando adultas, melhores condições para manuseio do arco e da flecha.
    Na verdade, nessa estranha e semi­fantasiosa cultura comentada por vários autores, tais 
como Homero, Heródoto e mesmo Hipócrates, cabia às mulheres lutar e aos homens, 
desenvolver trabalhos manuais sedentários em situações especiais, uma vez que toda criança 
do sexo masculino praticamente era levada ao próprio pai, em outras nações e terras 
distantes, para ser criada.
    Hipócrates, em sua obra sobre as articulações tece comentários bem específicos e muito 
claros quanto a deformações provocadas pelas Amazonas em seus filhos do sexo masculino 
que excepcionalmente ficavam com as respectivas comunidades. Diz o grande sábio: 
"Contam que as Amazonas provocam, desde a infância, em seus filhos do sexo masculino, 
uma séria luxação, seja nos joelhos seja nos quadris, com objetivo de, sem dúvida, 
transformá­los em coxos, e de impedir que os homens conspirem contra as mulheres; 
servem­se elas depois desses deficientes como trabalhadores, para as tarefas de sapateiro, 
ferreiro e outros ofícios sedentários. Ignoro se a referência é verídica, mas o que é certo é 
que as coisas aconteceriam mesmo assim, se as crianças fossem mutiladas durante a 
infância" (Apud Moreno).

    ­ *Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência*
    Um dos maiores gênios militares que a Humanidade já conheceu, Alexandre III, o Grande 
(356 a 323 a.C.), rei da Macedônia de 336 a 323, criou o chamado Império Grego que ia 
desde os limites da Índia, a Leste, até a Cítia, ao Norte. Ao Sul atingia o Egito e o Golfo 
Pérsico.
    Foi educado por Aristóteles, especialmente contratado por Felipe da Macedônia, seu pai. 
Além de monarca e comandante militar, Alexandre foi filósofo, homem que respeitava os 
usos e costumes dos povos subjugados e repleto de dignidade. Morreu com apenas 33 anos 
de idade e ao final de sua curta vida, havia não apenas conquistado terras e reinos, mas 
também feito muitos amigos e aliados. Eventualmente encontramos informações de que 
Alexandre sofria de epilepsia, mas nem todos os autores o confirmam.
    Alexandre sempre foi muito participante da vida e das agruras sentidas por seus 
comandados, tendo em certa ocasião ficado quase cego devido ao seu envolvimento. É 
Plutarco que nos conta com pormenores coloridos o acontecimento.
    Foi durante violento ataque a uma fortaleza de tribos conhecidas como "malianas", 
atualmente em território da Índia. O destemido rei dos macedônios estava tentando galgar 
um dos lados da muralha que defendia as instalações, por meio de uma escada, juntamente 
com os demais companheiros, no auge da batalha, quando ela cedeu fragorosamente. 
Alexandre, agarrado que já estava ao alto da muralha, ali permaneceu e não teve outra 
alternativa a não ser saltar no meio dos inimigos que contra ele atiravam setas e pedras. Com 
o barulho do guerreiro e de suas armas batendo fortemente no chão, todos fugiram para os 
lados, mas logo voltaram­se para verificar se ele ainda vivia. E o ataque sobre ele foi feroz. 
Alexandre e apenas dois companheiros encostaram­se contra a muralha, próximos que 
estavam de uma grande árvore, e daquele ponto mesmo enfrentaram a multidão de inimigos 
e seus golpes violentos. Chegaram a ferir seriamente Alexandre com um golpe que furou sua 
armadura na altura do peito.
    "O golpe foi tão forte que ele, perdendo as forças, caiu de joelhos: aquele que havia 
desferido o golpe correu depressa com a cimitarra desembainhada na mão, mas Peceutas e 
Limneu lançaram­se à sua frente e foram ambos feridos; Limneu morreu na hora e Peceutas 
enfrentou­o, enquanto o próprio Alexandre matava o bárbaro
com suas próprias mãos, depois de ter recebido várias feridas pelo corpo todo. Finalmente 
desferiram­lhe um golpe de cacete na nuca, deixando­o atordoado" ("Alexandre, o Grande", 
de Plutarco).
    Forrest, porém, discorda dessa tradução, uma vez que, segundo ele, "Alexandre recebeu 
um violento golpe na nuca com uma pedra, que apagou sua visão por um bom tempo" (Apud 
Forrest)
    Alexandre foi salvo pela imediata afluência de soldados macedônios, mas permaneceu 
muitos dias entre a vida e a morte.
    Pois bem, esse inimitável herói da história greco­macedônica que foi Alexandre, o 
Grande, sempre foi muito apreciador dos esforços e dos sacrifícios feitos por seus soldados. 
Tanto isso é verdade que, um ano antes de morrer procurou mandar de volta à Macedônia, 
com todo um aparato de segurança, "os doentes e os inválidos, que haviam perdido algum 
membro na guerra" ... Alexandre passou alguns dissabores com seus principais comandantes 
devido a esse plano, mas acabou por fazê­los retornar todos à pátria, "após lhes haver dado 
magníficos presentes; escreveu ao seu lugar­tenente Antípater, que em todas as assembléias 
de jogos e de divertimentos públicos, eles fossem preferidos e se sentassem nos melhores 
lugares, coroados de flores e quis ainda que as crianças órfãs dos que haviam falecido, ao 
seu serviço, recebessem o soldo de seus pais" ("Alexandre, o Grande", de Plutarco).

    ­ *Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes*
    Conforme analisamos anteriormente, a influência dos deuses foi marcante em 
praticamente toda a vida da Grécia Antiga, e mesmo depois de instalado o Cristianismo. 
Mais do que ninguém conhecedores disso, os sacerdotes e sacerdotizas procuravam, por 
todos os recursos à sua disposição, tornar o seu deus específico o mais eficaz e o mais 
poderoso possível.
    Asclépios, que os romanos, devido a uma corruptela de pronúncia, muito mais tarde 
passariam a chamar de Esculápio, reconhecido como o deus da cura e da medicina, foi um 
caso todo especial e que merece toda a nossa atenção, dentro do tema que estamos 
procurando analisar, contando com templos em cidades, ilhas e mesmo nações as mais 
diversas que recebiam a influência grega.
    Seu templo mais famoso foi aquele localizado em Epidauros, vila situada a nordeste do 
Peloponeso, ao sul da Grécia de nossos dias. Havia, no entanto, muitos outros templos e 
alguns deles considerados como muito importantes, tais como o de Pérgamo, de Tricca e de 
Cós. Em sua grande maioria os templos de Asclépios localizavam­se em pontos de alta 
salubridade devido ao ar muito puro, às águas termais e algumas outras condições que hoje 
caracterizam em geral as "estações hidrominerais".
    Quanto ao templo e às diversas instalações adjacentes de Epidauros, podemos admirar 
apenas suas ruínas, a mais de doze quilômetros do porto de Palaia Epidhavros. E o visitante 
não pode deixar de ficar admirado com a extinta pujança daquilo que por séculos diversos 
foi reconhecido como a "Asclepéia de Epidauros". Foram escavadas, parcialmente 
restauradas e tombadas as ruínas de seu teatro – famoso e muito bem conservado, sendo 
considerado como um dos melhores de toda a Grécia de hoje ­ do estádio esportivo, do 
ginásio que contava até com piscina, de uma espécie de hotelaria, de um muito sofisticado e 
complexo templo circular conhecido como "tholos", do próprio templo de Asclépios, de uma 
construção adjacente ao templo e conhecida como "abaton" e também de um hospital.
    Lemos no estudo biográfico romanceado sobre a vida de Marco Túlio Cícero, intitulado 
"A Pilar of Iron", da escritora norte­americana Taylor Caldwell, uma descrição minuciosa de 
Epidauros do século I a.C. e muitas de suas instalações. Vários pontos dessa descrição dos 
ambientes são muito importantes para melhor entendermos o real significado do conjunto de 
construções chamado de Santuário de Asclépios, ou "hiéron", no próprio grego, para pessoas 
vítimas de doenças crônicas, de males misteriosos e tidos como incuráveis e de deficiências 
das mais variadas naturezas. A escritora valeu­se de uma vasta documentação, visitas aos 
locais e conhecimentos acumulados por estudiosos especializados nas ruínas e no antigo 
funcionamento de Epidauros. Baseou­se também em muitas discussões com sociedades 
históricas e arqueológicas gregas. Diz ela em seu famoso livro que o "santuário de 
Asclépios, conhecido em todo o mundo civilizado, não era apenas um templo religioso e 
miraculoso, mas toda uma comunidade". Segundo a autora, em consonância com 
documentos históricos sobre o assunto, o santuário recebia continuamente pessoas 
portadoras de males os mais variados e muitos de natureza grave, e era o último recurso para 
aqueles que haviam sido abandonados ou desenganados pelos médicos como casos 
incuráveis ou sem qualquer possibilidade de solução.
    Ali surgiam continuamente pessoas com artrite, cegos, surdos, mudos, deficientes 
mentais, vitimas de paralisias, reumáticos, casos de doenças degenerativas, vítimas de 
picadas de aranha ou de cobra, casos de gestação difícil, vítimas de acidentes com seqüelas 
graves e muitos outros.
    Por essa razão, e levando­se em conta o cerimonial adotado pelos sacerdotes para permitir 
a aproximação ao famoso deus da cura e da medicina, não é de admirar que eles fossem 
sempre médicos muito experimentados que guardavam em segredo fechado um verdadeiro e 
surpreendente monopólio de conhecimentos passados muitas vezes de pai para filho. 
Tratavam os casos não apenas com atenção e carinho de um sacerdote ou autoridade 
religiosa, mas com avançados conhecimentos de medicina.
    Epidauros, devido ao seu movimento contínuo e permanente afluência de casos médicos 
que durou mais de quatro séculos, chegou a representar um campo de observação e de 
prática da medicina antiga dos mais sérios de toda a Grécia Clássica, mas quase que 
totalmente inserido num ambiente fechado e muito místico no qual a fé nos poderes de 
Asclépios desempenhou um papel de fundamental importância.
    ­ *As famosas instalações de Epidauros*
    Analisemos um pouco suas instalações. O recinto sagrado propriamente dito ("hiéron") 
contava com algumas áreas especiais, conforme poderá ainda hoje ser observado nas 
próprias ruínas ali expostas. Dentre esses ambientes físicos especiais é necessário destacar o 
chamado "abaton" e o próprio templo do deus Asclépios. O primeiro é um amplo pórtico, 
todo construído em colunadas praticamente ao lado do templo, sendo internamente dividido 
em dois níveis. No nível inferior ficavam os casos de pessoas impossibilitadas de andar ou 
que provocavam sérios empecilhos para seu transporte e no superior havia acomodações 
para os casos menos graves. Há alguns estudiosos de Epidauros que afirmam ser a separação 
em níveis correspondentes à distribuição por sexo.
    Para todos os fiéis que desejavam uma aproximação a Asclépios havia condições 
previamente estabelecidas pelos sacerdotes tanto para entrada no templo como para 
utilização do "abaton". Os médicos­sacerdotes ficavam conhecendo todos os casos com 
antecipação e, a pretexto de regras do culto, iniciavam um tratamento prévio através de ritos 
purificadores incluindo neles os banhos medicinais, jejuns, dietas especiais, sacrifícios ao 
deus, donativos ao complexo sagrado e outros tipos de intervenção que procuravam ligar 
intimamente aos ritos de aproximação ao "abaton", caso o devoto tivesse condições de cura, 
possibilidades eventuais de volta ou necessidade de orientações para cura mais demorada. 
Após esses trabalhos iniciais e caso o devoto cumprisse todos os requisitos iniciais, ele era 
aceito para passar uma noite no "abaton", dormindo sobre uma pele de animal sacrificado ao 
deus ou sobre um catre, em ambiente intencionalmente misterioso.
    O templo de Asclépios, em Epidauros, era de um estilo dórico puro, todo cercado de 
colunas, medindo 25,50 metros de comprimento e 13 metros de largura. Suas paredes eram 
construídas de pedra rebocada de branco. Seu teto era todo forrado com táboas de cipreste. 
No frontão do templo havia uma vistosa estátua de Niké, a deusa da vitória. A entrada 
principal do templo era bem ampla, com cinco colunas dóricas e contava com uma rampa de 
acesso. Rampas de acesso eram também usadas nas instalações do edifício conhecido como 
"tholos", do "abaton" e da "propiléia" do famoso templo, conforme podem ainda ser notadas 
nas ruínas existentes em Epidauros. O piso da nave do templo era acabado em mármore 
branco e preto. O altar interno do templo
(havia o altar externo, para sacrifícios de animais), a meio caminho da nave, era de mármore 
branco, levemente iluminado por lamparinas. E ao fundo, em ambiente suavemente 
rebaixado e cercado por leves degraus, ficava um trono no qual estava a bela imagem de 
Asclépios, em marfim e ouro, rosto sereno, com uma das mãos segurando um bastão e a 
outra pousada sobre a cabeça de uma serpente sagrada. A seus pés, um cão sagrado.

    ­ *O sistema de funcionamento de Epidauros*
    Desde a entrada do templo até o trono de Asclépios, sacerdotes e auxiliares espalhavam­se 
por todo o ambiente, ajudando os enfermos ou as pessoas devotas, orando ou entoando 
cânticos sacros. Cuidavam para que tudo corresse bem para os fiéis, evitando zelosamente 
para que ali dentro não sucedessem nem mortes nem nascimentos. Eventualmente alguns 
cães cruzavam o local, pois além de serem considerados animais sagrados, eram ali mantidos 
para a vigilância e salvaguarda do templo. Serpentes sagradas e não­venenosas eram olhadas 
com extremo respeito em seus raros e ocasionais passeios pelos cantos do templo ou pelo 
arvoredo que o cercava ­ eram elas consideradas como o próprio símbolo do deus Asclépios.
    O devoto portador de um mal ou de uma deficiência, e em geral desenganado por médicos 
­ ou deles desiludido ­ após um período de preparação já citado e que poderia durar alguns 
dias, dormia uma noite no local conhecido como "abaton", sendo preparado por alguns 
métodos hipnóticos ou pelo consumo de alimentos ou poções soníferas receitadas pelos 
médicos­sacerdotes. Essa espécie de "retiro espiritual" para o qual havia uma série de 
orientações, era conhecida como "noite de incubação", e considerada como elemento 
essencial para o culto do deus e a eventual efetivação da cura. Era durante essa noite que 
aconteciam visões ou sonhos, e pela manhã os sacerdotes anotavam e interpretavam todos 
eles, como se fossem mensagens diretas do próprio
Asclépios, sem, todavia, descuidar das medicações ou das providências que vinham 
adotando desde a chegada do devoto ao santuário.

    ­ *Plutão, deus da riqueza, curado por Asclépios*
    Aristófanes (450 a 388 a.C.), em sua peça "Plutão, o Deus da Riqueza", fala­nos 
pormenorizadamente do ritual utilizado em templos de Asclépios. Trata­se de uma trama 
bem desenvolvida na peça na qual vemos Cremilos, pobre e honesto, procurando um oráculo 
para encontrar a riqueza. Logo após, ao perseguir e dominar um mendigo cego, percebe 
tratar­se de Plutão, o próprio deus da riqueza.
    Vejamos um trecho em verso, no qual Aristófanes indica a já consagrada fama de 
Asclépios:

 "Cremilos ­ Restaurar a visão...
 Blepsidemos ­ . . . Restaurar a visão de quem?
 Cremilos ­ Restaurar a visão de "Riqueza", do modo que pudermos!
 Blepsidemos ­ O que? ! Ele é realmente cego? . . .
 Cremilos ­ Ele é, realmente!
 Blepsidemos ­ Ah! Porisso é que ele jamais veio a mim. . .
 Cremilos ­ Mas agora ele virá, se for o desejo dos céus.
 Blepsidemos ­ Não seria melhor chamarmos um médico?
 Cremilos ­ Existe neste instante algum médico em toda a cidade? Não há pagamentos e, 
portanto, não há especialistas!
 Blepsidemos ­ Pensemos um pouco. . .
 Cremilos ­ Não há nenhum!
 Blepsidemos ­ Não há mais nenhum. . .
 Cremilos ­ Então, será melhor fazermos aquilo que eu já pretendia: Fazê­lo dormir no 
templo de Asclépios a noite toda.
 Blepsidemos ­ Estou certo de que é melhor mesmo. Portanto, deixe de vadiar: Rápido, faça 
alguma coisa..." (Apud Edelsteinl

    Carion, outro personagem da comédia, encarregado de levar Plutão até então disfarçado 
em mendigo cego ao templo de Asclépios, volta muito feliz de sua viagem e conta à esposa 
como havia ocorrido a cura. Usa uma linguagem pitoresca e por vezes muito irreverente. 
Vejamos, numa tradução em prosa, os pontos que mais nos interessam em sua narrativa e 
lembremo­nos de que ela foi escrita quatro séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Ela 
nos fala de perto a respeito dos problemas das pessoas com deficiência à busca de cura para 
seus males, para os quais os médicos de então não encontravam soluções.
    "Carion (dirigindo­se à esposa) ­ Ouça, eu vou lhe contar todo esse negócio incrível, dos 
pés até a cabeça"... ... "Logo atingimos o templo do deus, levando o homem muito infeliz 
então, mas tão feliz e tão rico agora. Imediatamente levamo­lo até o mar e lá o banhamos"... 
..."Depois, levamo­lo ao recinto sagrado. Lá, sobre o altar, bolos de mel e guloseimas eram 
oferecidos, alimento para a chama de Hefesto"...
    "Esposa ­ Não havia outros para serem curados?"
    "Carion ­ Neocleides era um deles; o pobre cego que durante seus furtos havia furado seu 
próprio olho. E muitos outros, doentes com todas as formas de doenças. Logo o servidor do 
templo apagou as luzes e mandou­nos dormir, sem nos movermos ou falarmos a qualquer 
barulho que ouvíssemos. Assim sendo, deitamo­nos num repouso tranqüilo".
    Carion, muito observador, muito irreverente e muito curioso do que ali poderia suceder, 
vê na penumbra do "abaton" a figura de um sacerdote coletando e levando as oferendas que 
estavam sobre o altar, colocando­as todas num saco. E após algumas peripécias no ambiente 
de recolhimento pretendido pelos sacerdotes, conta o aparecimento de Asclépios, 
acompanhado das deusas Panacéia e laso. O deus vai de paciente a paciente, muito calmo, 
estudando cada um deles.
    Perto do cego Neocleides um servente coloca ao lado do deus um pequeno pilão e uma 
caixa de  medicamentos; o deus faz a mistura com vários ingredientes e coloca­a nos olhos 
de Neocleides, sem curá­lo, mais para castigá­lo por seus furtos do que para livrá­lo da 
cegueira parcial.
    A seguir, dá atenção ao cego Plutão: 
    "Carion  ­ Depois, sentou­se ao lado de Plutão e primeiro apalpou a cabeça do paciente e 
depois, tomando um lenço de linho, limpo e branco, limpou seus lábios e os secou. Então, 
Panacéia, com um manto vermelho, cobriu seu rosto e sua cabeça; o deus assobiou e duas 
grandes serpentes saíram do santo altar. E escondidas sob o manto vermelho, elas lamberam 
seus olhos, segundo me parece. E, querida, antes mesmo que você pudesse tomar dez cálices 
de vinho, Plutão levantou­se e enxergou" (Apud Edelstein).

    ­ *Os testemunhos das muitas curas*
    Segundo arqueólogos e historiadores especializados no assunto, ocorreram, só em 
Epidauros e sem considerar outros templos, curas verdadeiras devido a medicações corretas 
e bem dosadas, devido a intervenções cirúrgicas das mais variadas naturezas, devido a 
banhos especiais, devido a massagens e certos tratamentos ligados àquilo que hoje podemos 
chamar de fisioterapia, e também devido à sugestão. No entanto, destaque­se que em todos 
os casos que recorreram a Asclépios existiu por parte dos beneficiários uma fé muito forte 
em seu poder de cura. Sua fama ultrapassava em muito o Mar Egeu e o Adriático.
    Uma pequena parte dessas curas mais misteriosas foi para sempre registrada em pedras 
votivas, em ex­votos especiais, em placas de agradecimento, em pergaminhos, em colunas 
votivas, hoje localizados em diversos museus e no próprio acervo histórico de Epidauros.
    Existem, por exemplo, algumas colunas votivas que citam muitos casos, incluindo mais de 
cem curas consideradas hoje como inexplicáveis e tidas como miraculosas.
    Eis um testemunho eloqüente relativo à cura de um mal indefinível, mas de natureza 
grave: "O lugar está deserto e não há ninguém ao meu redor para ouvir minhas palavras. 
Acreditem­me, ó homens, estive morto durante todos os anos que eu já havia vivido. O belo, 
o sagrado, o mau eram todos semelhantes para mim; tal era, segundo me parece, a escuridão 
que me envolvia em minha compreensão e que de mim escondia todas essas coisas. Mas 
agora que aqui vim, recomecei a viver pelo resto da minha vida, como se eu tivesse dormido 
no templo de Asclépios e tivesse sido salvo. Este sol tão grande, tão belo, agora por mim 
descoberto pela  primeira vez, homens! Agora, hoje, eu vejo vocês, o ar, a acrópole, o teatro, 
sob o céu claro!"... (Apud Edelstein)
    Outro caso citado por vários autores está retratado numa invocação muito fervorosa que 
mostra a imensa fé e o forte conceito de Asclépios no seio do povo. Diz ela: "Ó Asclépios, ó 
desejado, o invocado deus! Como poderei ir ao teu templo se tu mesmo não me conduzires a 
ele, ó invocado deus que superas o esplendor da terra primaveril! E esta é a oração de 
Diofanto. Salva­me, ó misericordioso deus; somente tu, na terra e no céu. Ó piedoso deus, o 
deus de todos os milagres, graças a ti Diofanto não andará mais como um caranguejo, mas 
terá bons pés como tu o quiseste" (Apud Montanelli).
    Na maioria dos casos considerados como inexplicáveis e milagrosos, não tem sido viável 
à ciência médica fazer julgamentos objetivos das curas por não ser mais possível contar com 
qualquer base cientifica para análise quanto aos males alegados que afetavam as pessoas 
beneficiadas e muito agradecidas ao deus da cura e da medicina. Vejamos, a título de 
ilustração, alguns casos de pessoas que haviam levado ao templo de Asclépios em Epidauros 
problemas de deficiências sérias, tais como a cegueira, dificuldades de locomoção e outros, e 
as circunstâncias de sua cura.
    a) Nicanor ­ deficiência nas pernas: Segundo uma das colunas votivas acima indicadas e 
que mais parecem compilações de dados a respeito de curas miraculosas, Nicanor era um 
homem que sofria séria limitação nas pernas. É indicado como manco. Estava recolhido e 
sentado no interior do templo de Asclépios, orando em preparação para a sua "noite de 
incubação" no "abaton". Ao seu lado, a bengala que era forçado a usar. De súbito um 
misterioso e travesso menino passou correndo ao seu lado e tirou­lhe a bengala, dirigindo­se 
na direção da saída. Nicanor, surpreso e aborrecido, levantou­se para perseguir o garoto. Só 
quando chegou ao lado externo do templo, à procura do menino, é que notou que estava 
curado de sua limitação física.
    b) Alkétas, de Haliéis ­ homem cego: Este homem cego, durante a noite que passou no 
"abaton" teve um sonho: viu o próprio deus Asclépios chegar até ele e abrir­lhe os olhos com 
seus dedos. As primeiras coisas que enxergou, enquanto o deus manipulava seus olhos, 
foram as sombras das árvores do lado de fora do santuário, no meio da noite. Ao chegar o 
dia saiu curado.
    c) Lyson, de Harmione ­ menino cego: Como milhares de outros casos, este menino cego 
estava no templo de Asclépios para pedir sua cura e nada mais. Ali sentado, esperava 
pacientemente. Em certo momento sentiu, um tanto surpreso, que um dos cães sagrados do 
santuário havia chegado perto dele e começara a lamber seus olhos. Um pouco depois 
levantou­se muito feliz, pois começara a enxergar as coisas. Ficou também curado.
    d) Eschino ­ homem cego por ferimento recente: Com este homem aconteceu algo 
desagradável, muito embora o incidente seja bastante interessante. Curioso por saber o que 
poderia estar acontecendo no "abaton", no meio da noite, com tantos doentes ali dormindo e 
as histórias de que Asclépios aparecia em pessoa, subiu numa das grandes árvores que 
davam sombra ao recinto, sem que os vigias ou os sacerdotes percebessem. Procurou um 
galho que lhe desse acesso ao muro perto das colunadas do "abaton", para poder ver melhor. 
O galho, entretanto, não suportou seu peso e ele caiu fragorosamente sobre umas estacas 
existentes no jardim, ferindo gravemente os olhos. Em lamentável estado, foi socorrido. 
Suplicou perdão pela sua curiosidade. Depois dos primeiros cuidados foi recolhido ao 
"abaton" para uma noite de preces, tendo de lá saído curado.
    e) Menina muda: Não identificada, existe a história de uma menina muda que, ao entrar 
no recinto sagrado, corria de cá para lá, curiosa e muito irriquieta. De repente, pega de 
surpresa e aterrorizada com uma serpente sagrada que descia de uma árvore, gritou pelo pai, 
pedindo socorro. A partir desse momento voltou a falar.
    f) Menino mudo não identificado: Também sem identificação, este menino mudo chegou 
ao templo de Epidauros acompanhado pelo pai, com o objetivo evidente de recuperar a voz. 
Após ter feito os sacrifícios e passado pelos ritos iniciais, como era costumeiro para todos os 
casos, estava sentado no templo, aguardando, em oração, ao lado do pai. O servente do 
templo, que acendia as lamparinas para sua iluminação interna, olhando para o pai do 
menino sugeriu que ele deveria prometer trazer, dentro de um ano, a oferta de agradecimento 
pela cura do filho, caso o garoto obtivesse aquilo que viera buscar naquele templo de 
Asclépios. Mas foi o próprio menino mudo que de repente respondeu: "Eu prometo". O pai, 
espantado, pediu que ele repetisse. O garoto respondeu sem hesitação ­ e depois disso ficou 
curado.

    O leitor talvez tenha curiosidade de saber a natureza de mais algumas dessas fantásticas 
curas, consideradas como milagrosas, ocorridas em Epidauros, da mesma forma como 
aconteceram em muitos outros dos templos de Asclépios. Apenas nas colunas votivas citadas 
acima pudemos constatar:
 12 curas de oftalmias sérias, incluindo a cegueira total
 9 curas de defeitos nas pernas, incluindo paralisias
 3 curas de afasia
 2 curas de casos de surdez
 1 cura de tuberculose
 1 cura de convulsões (talvez epilepsia)
 2 curas de casos de gota
 2 curas de enxaquecas
 1 cura de picada de tarântula
 1 cura de infecção por piolhos.

    Além disso, há citações de diversos casos de gravidez problemática, que era uma 
verdadeira especialidade de Epidauros, de partos difíceis e também de diversos casos 
curados por intervenções cirúrgicas que chegam a totalizar mais de uma dúzia.
    Naturalmente que os casos mais graves ou que não poderiam encontrar solução nem pela 
fé nem pela intervenção dos médicos­sacerdotes, abrigavam­se pelas imediações em 
alojamentos ou, muito mais próximo do aparecimento do Cristianismo como nova força, 
num "hospital"construído por Antonino Pio (86 a 161 d.C. e lá, depois de muito sofrimento 
ou de um definhar continuo, muitos deles acabavam morrendo. O problema da grande 
afluência de mulheres em adiantado estado de gravidez e também de doentes desenganados 
por médicos e à beira da morte levaram também à construção de uma espécie de hotel ou 
abrigo. Essas instalações ficaram conhecidas como "Katagógion", tendo mais ou menos 160 
quartos.
    Existem ainda hoje alguns trechos da estrada entre as ruínas de Epidauros e o porto da 
Palaia Epidhavros que fazem parte do chamado "caminho sagrado", todo ele ladeado por 
túmulos daqueles distantes séculos.
    De acordo com alguns autores, Epidauros e alguns outros templos de Asclépios tiveram 
durante séculos a influência talvez correspondente àquela que hoje em dia tem Lourdes, na 
França e vários outros lugares considerados como milagrosos. Os tratamentos nesses 
templos de Asclépios funcionaram da mesma forma como ainda hoje funcionam os 
tratamentos ministrados em templos na ilha grega de Tenos, que são prescritos através das 
interpretações de sonhos ou de visões ocorridas durante a noite num recinto considerado 
sagrado do templo.
    A forte influência de Asclépios, seja em Epidauros, seja em muitos outros templos 
espalhados pelo mundo greco­romano, só foi cedendo muito vagarosamente aos ataques do 
Cristianismo que procurava  sistematicamente anular o significado da miríade de deuses e 
deusas do mundo pagão.

    ­ *"Apothetai" do monte Taygetos, em Esparta*
    Todos aqueles que trabalham em reabilitação já ouviram de alguma forma falar a respeito 
de um certo costume espartano de lançar crianças defeituosas em um precipício, em épocas 
anteriores ao advento do Cristianismo. Pessoalmente sempre tivemos curiosidade a esse 
respeito e chegamos mesmo a fazer contatos diretos e visitas, procurando das autoridades de 
reabilitação da Grécia algum esclarecimento a respeito do assunto.
    Talvez que ajude no entendimento dessa questão ­ que, segundo os espartanos de hoje em 
absoluto relaciona­se exclusivamente a Esparta antiga ­ a menção a ele feita claramente por 
Plutarco, em sua obra "Licurgo". Segundo nos conta o escritor o que sucedia era isto: O pai 
de qualquer recém­nascido das famílias conhecidas como "homoioi" (ou seja, "os iguais") e 
que eram a nata de Esparta, não tinha o direito de criá­lo, pois o Estado subordinava a todos. 
Pelas leis vigentes, ele era obrigado a levar o bebê, ainda bem novo, a uma espécie de 
comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia para 
examinar e tomar conhecimento oficial do novo cidadão. Segundo Plutarco, eles se reuniam 
num local conhecido como "leschi" (correspondendo certamente a "edifício", "órgão 
oficial", "repartição") para esse fim. Se nesses locais os autorizados anciãos anotavam ou 
não os dados pessoais de identificação, de paternidade, de maternidade, de local e de data do 
nascimento, de sexo e outros, o historiador não nos indica. Pelo seu relato sabemos que, se 
fosse um bebê normal e forte ("se o achavam belo, bem formado de membros e robusto") ele 
era devolvido ao pai que passava a ter a incumbência de criá­lo. Depois de certa idade ­ 
entre os 6 e 7 anos ­ o Estado tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação, que 
era dirigida para a arte de guerrear, como podemos comprovar pelos estudos da História 
Grega Antiga. No entanto, "se lhes parecia feia, disforme e franzina", como refere Plutarco, 
esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam, 
ficavam com a criança. Tomavam­na logo a seguir e a levavam a um local chamado 
"Apothetai", que significa "depósitos". Tratava­se de um abismo situado na cadeia de 
montanhas Taygetos, perto de Esparta, para lá a criança ser lançada e encontrar sua morte, 
"pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela 
vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e 
rija durante toda a vida" ("Licurgo", de Plutarco).

    ­ *Como era o ambiente de Esparta*
    Não nos é fácil nem tranqüilo entender esse costume ­ ou outros adotados em Atenas, 
Roma e outras cidades ­ a respeito do qual o leitor poderá  encontrar menções também em 
alguns escritores e filósofos antigos, tais como Platão e Aristóteles, citados um pouco mais 
adiante neste mesmo capítulo.
    Talvez ajude nossa compreensão o conhecimento dos usos e costumes, das circunstâncias 
e do ambiente que imperavam em Esparta ao redor do século V ou IV a.C.. O próprio 
Plutarco, ao comentar a vida de Licurgo, poderá nos dar uma idéia aproximada dessas 
características, especialmente quando considera as tentativas que fazia para tornar os 
espartanos um povo inexpugnável. Separemos alguns trechos dessa famosa obra:
    "XXV ­ Quanto à educação das crianças, que ele estimava ser a mais bela e a maior coisa 
que poderia estabelecer, ou introduzir um reformador de leis, começando de longe, 
considerou primeiro os casamentos e a geração das crianças. Pois, quanto ao que diz 
Aristóteles, que ele ensaiou reformar as mulheres e disso desistiu incontinenti, ao ver que 
não podia consegui­lo, por causa da enorme licença que elas haviam usurpado na ausência 
dos maridos, porque estes eram constrangidos a partir constantemente para as guerras, 
durante as quais os homens se viam obrigados a deixá­las senhoras de suas casas, honrando­
as e acariciando­as além da medida, chamando­lhes damas e senhoras ­  isso me parece 
falso: a verdade é que tratou de regulamentar­lhes e ordenar­lhes a maneira de viver, assim 
como a dos homens, de acordo com a razão. Primeiramente, pois, ele quis que as moças 
enrijecessem o corpo, exercitando­se em correr, lutar, jogar a barra e lançar o dardo, a fim de 
que o fruto que concebessem, vindo a tomar forte raiz num corpo disposto e robusto, 
germinasse melhor; e também para que, reforçadas por tais exercícios, suportassem com 
mais vigor e facilidade as dores do parto. E para tirar­lhes toda a delicadeza e ternura 
feminina, acostumava as mocinhas, assim como os rapazes, a freqüentar as procissões, 
dançarem nuas em algumas festas e sacrifícios solenes e cantarem na presença e à chegada 
dos rapazes, aos quais, muitas vezes, ao passarem, dirigiam algum brocardo apropriado, 
tocando ao vivo aqueles que em alguma coisa tivessem esquecido seu dever; e não raro 
também recitavam em suas canções os louvores dos que destes eram dignos" ...
    "XXVI  ­  Mas, quanto ao fato de se mostrarem inteiramente nuas em público, não havia 
nisso vilania alguma, pois, a exibição era acompanhada de toda a honestidade, nem 
lubricidade nem dissolução; antes pelo contrário, trazia consigo o costume da simplicidade 
e, entre elas, a vontade de possuir o corpo mais robusto e melhor disposto" ...
    “XXX  ­  Pois, em primeiro lugar, Licurgo não queria que as crianças pertencessem a 
particulares, mas fossem comuns à república, desejando, assim, também que aqueles que 
tivessem de ser cidadãos fossem gerados não por todos os homens, mas somente por gente 
de bem" .."Não obstante guardavam as mulheres encerradas debaixo de chaves com medo de 
que elas concebessem de outros que não eles, mesmo quando desmiolados, doentios e 
velhuscos, como se não fosse primeira e principalmente por culpa dos pais e mães, e dos que 
as educam, que as crianças nascem viciosas e defeituosas, quando filhas de pessoas 
taradas"...
    No item XXXII Plutarco fala das crianças defeituosas e da solução que a sociedade 
espartana havia encontrado para elas no "Apothetai" da cadeia de montanhas Taygetos, 
conforme comentamos um pouco acima. O livro continua, porém, a nos dar indicativos 
muito ricos do ambiente que imperava em Esparta, onde uma pessoa deficiente de fato não 
conseguiria sobreviver.
    “XXXIII ­ ... e assim, não era permitido aos pais educar os filhos à sua moda, como bem 
lhes parecesse. Pois, logo que estes chegassem à idade de sete anos, ele os tomava e as 
distribuía por grupos para serem educados e se habituarem a brincar, aprender e estudar uns 
com os outros; depois, escolhia em cada grupo aquele com aparência de ser o mais avisado e 
o mais corajoso no combate, ao qual dava a superintendência do grupo todo. Os outros 
sempre tinham a vista voltada para ele e obedeciam às suas ordens, suportando 
pacientemente as punições que ele lhes ordenava; de maneira que quase todo o estudo era 
aprender a obedecer" ("Licurgo", de Plutarco).

    ­ *Outras formas de eliminar crianças defeituosas na Grécia Antiga*
    No antigo Peloponeso, sob a liderança guerreira de Esparta, havia também outras formas 
de dispor de crianças malformadas ou doentias. Não ocorria necessariamente a morte, mas a 
"exposição" (* tal exposição dava­se em local onde a criança podia ser encontrada. No 
entanto, o chamado “abandono” correspondia a deixar à própria sorte para morrer. Princípio 
genericamente aceito na Grécia, não era todavia aceito na sociedade de Tebas, igualmente 
“civilizada”). Recorriam os seus habitantes a lugares considerados como sagrados, tais como 
as florestas, os vestíbulos dos templos, as beiras dos rios, as cavernas, onde as crianças eram 
deixadas bem embrulhadas numa grande panela de barro ou num cesto, com roupas que 
continham seus símbolos maternos ("Xymbola metrós"). Elas podiam sobreviver ou não. Os 
símbolos bordados nas roupas e nas cobertas poderiam inclusive levar à identificação da 
família original. Caso uma criança assim exposta morresse, a manta e vestidos acabavam 
servindo para adorno em seu funeral.
    No entanto, alguns filósofos dos mais renomados chegaram a alimentar a idéia do 
extermínio das crianças defeituosas, sendo um deles um dos maiores e mais conceituados 
pensadores gregos: Platão (428 a 348 a.C.). Ao filosofar sobre uma utópica república 
completamente nova para a Grécia, Platão afirma:. . . "e no que concerne aos que receberam 
corpo mal organizado, deixa­os morrer".
    Afirma ainda o insigne filósofo: "Quanto às crianças doentes e às que sofrerem qualquer 
deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto". 
("República", de Platão).
    Assim, na famosa república idealizada por Platão, só os bem formados de corpo e de 
espírito é que teriam qualquer papel. A criança ou adulto deficientes estariam, nessa 
hipotética realidade, fadados a morrer. Em seu conceito, e em suas próprias palavras, 
"estabelecerás em nossa república uma medicina e uma jurisprudência, como acabamos de 
dizer, que se limitem ao cuidado dos que receberam da natureza corpo são e alma formosa". 
E é certamente deste pensamento e desta frase de Platão que se originou o ainda hoje usado 
moto característico de programas esportivos ou de bom condicionamento físico: "Mens sana 
in corpore sano" ­ Mente sã num corpo sadio.
    De sua parte Aristóteles escreveu o seguinte: "Quanto a saber quais as crianças que se 
deve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proíba alimentar toda criança disforme" 
("Politics", de Aristóteles).
    Existem relatos de afogamentos de recém­nascidos defeituosos, ou de abandono dos 
mesmos às margens do rio Eurotas, que corta o sudeste do Peloponeso, na Lacônia, indo 
desaguar no Mediterrâneo, após banhar a cidade­estado de Esparta dos séculos anteriores a 
Cristo.
    Algumas das circunstâncias que teriam levado governantes a adotar medidas tão difíceis 
de aceitar hoje foram mais ou menos as seguintes: os cidadãos espartanos não eram nem a 
totalidade nem mesmo a maioria dos habitantes de Esparta, mas uma elite da população local 
que habitava aquela região. Eles eram conhecidos como os "homoioi" (os "iguais"), 
conforme referimos anteriormente. Dedicavam­se às guerras e suas obrigações giravam em 
torno de estar preparados para enfrentar não só as eventuais convulsões internas provocadas 
pelas demais facções da sociedade espartana, como também os inimigos externos da grande 
e poderosa Esparta. Assim, a cidade­estado não contava, como também não queria contar, 
com cidadãos fracos, doentios e imperfeitos.
    No entanto, a sobrevivência eventual de uma criança defeituosa podia perfeitamente 
ocorrer, como ocorria, uma vez que as leis de extermínio diziam apenas respeito aos filhos 
dos "homoioi", que eram os descendentes diretos dos dórios.
    Nas outras classes sociais não ocorria esse tipo de restrição. Tais eram os casos dos 
"periecos", dedicados aos trabalhos da lavoura ou cuidado com o gado, ou dos "ilotas", 
escravos que eram obrigados a manter­se vinculados à terra, sem qualquer tipo de privilégio.

    ­ *A história de Labda, mãe de um rei de Corinto*
    Os costumes que imperavam em Esparta não foram necessariamente universalizados por 
todas as cidades­estado da Grécia dos seis últimos séculos antes da Era Cristã, pois cada 
uma delas, bem como cada uma das pequenas ou grandes nações ao seu redor, desenvolvia 
seu próprio sistema de leis e de governo, e seus próprios usos e costumes.
    No tocante às atitudes face a crianças nascidas com deficiências físicas e ao trato a elas 
dispensado, encontraremos na história de Corinto, uma das mais fortes e melhor 
conceituadas cidades­estado da Grécia dos séculos VII e VI a.C., indícios interessantes 
inseridos no livro "Terpsícore", parte integrante da obra intitulada "História", de Heródoto.
    Lá encontraremos referências à filha de um dos importantes membros da oligarquia dos 
Báquidas, dominante em Corinto há muitos anos, e que formava uma enorme família devido 
ao fato de todos os seus membros  casarem entre si.
    Acontece, porém, que em época não bem determinada, Anfíon, um dos seus membros, 
teve uma filha que nasceu com malformação congênita, ao que parece, pois tinha uma das 
pernas mais curta que a outra, o que a levava a claudicar sensivelmente. Seu nome era 
Labda.
    O costume de casamentos consangüíneos, entretanto, não funcionou no caso dessa jovem, 
pois nenhum Báquida queria casar­se com ela devido a sua deficiência física. Assim, 
casaram­na com um jovem do burgo de Petra, aparentemente de poucas qualificações, 
embora de sangue nobre, cujo nome era Eécion, filho de Echacrates.
    Depois de algumas dúvidas quanto à fertilidade de Labda, o que levou o jovem marido a 
consultar uma pitonisa, ela engravidou e deu à luz um menino. Segundo o oráculo ele 
governaria Corinto e esmagaria os déspotas Báquidas.
    Sabedores do oráculo, os Báquidas aguardaram o nascimento e dez deles receberam a 
missão de ir a Petra e matar o garoto. A gentil Labda, ao receber a visita dos dez homens de 
Corinto ­ de certa forma seus parentes ­ singelamente achou que se tratava de visita de 
cordialidade, após tantos anos de desprezo e marginalidade. Passou o filho aos braços do 
primeiro visitante, ignorando completamente o propósito criminoso do grupo: esmagá­lo 
contra o chão.
    Mas naquele mesmo instante a criança de poucos meses sorriu para o estranho, "deixando­
o tão comovido que não teve coragem de matá­la, passando­a para as mãos do outro 
companheiro. Este, também tocado de piedade, transferiu­a para as mãos de um terceiro e 
assim passou ela de mão em mão, sem que nenhum se animasse a sacrificá­la. Devolvendo o 
recém­nascido ao carinho de sua mãe, deixaram a casa" ("História", de Heródoto).
    Diz­nos mais o historiador que Labda teve que tomar providências que denotaram 
extrema vivacidade e sangue frio para salvar o menino, uma vez que os dez revistaram a 
casa toda após terem voltado para consumar o crime para o qual tinham sido destacados. 
Apesar de tudo, conseguiu sozinha ludibriá­los. 
    O filho dessa jovem mãe portadora de deficiência recebeu o nome de Cípselo; ele, 
chegando à idade adulta, angariou bens e reuniu homens, atacou Corinto e dela se apoderou. 
Tornou­se logo após seu rei e, após ter vingado sua mãe e muitos dos injustiçados pelos 
Báquidas, reinou por 30 anos. Terminou bem seus dias.

    ­ *Os costumes em Atenas face a deficiências físicas*
    No que diz respeito a Atenas ­ a grande rival de Esparta ­ quando nascia uma criança, o 
pai celebrava uma festa conhecida como "amphidromia" (de "amphi" que significa "ao 
redor" e "dromos", para "volta"). Os costumes exigiam que ele tomasse a criança em seus 
braços, dias após o nascimento, e a levasse solenemente à sala para mostrá­la aos parentes e 
amigos e para iniciá­la no culto dos deuses. A festa terminava com banquete familiar. Caso 
não fosse realizada a festa, era sinal de que a criança não sobreviveria. Cabia, então, ao pai o 
extermínio do próprio filho.
    Durante sua vida, entretanto, os cidadãos atenienses tinham ampla proteção das leis para 
manterem­se livres de agressões provocadoras de lesões que os pudessem incapacitar para a 
vida normal. Segundo Plutarco, Sólon estabeleceu normas bem claras para proteger também 
cidadãos atenienses enfraquecidos por doenças ou vitimados por deficiências. Em Atenas 
essas normas, além de garantir a alimentação, davam ampla liberdade para que qualquer 
agressor fosse processado por atos de injúria ou de ataques físicos, caso algum desses 
cidadãos deficientes fosse assaltado, espancado ou sofresse qualquer tipo de violência. 
"Qualquer homem que fosse poderia processar o malfeitor" ("Sólon", de Plutarco).
    Acresce considerar também que as leis atenienses ordenavam que os filhos tinham 
obrigação de amparar e sustentar seus pais, seja devido à velhice, seja devido a deficiências 
físicas (Apud Durant).
    
    ­ *O legado da Grécia Antiga*
    Para quem vive em pleno século XX na cidade de Esparta, ou visita o produtivo e poético 
vale do rio Eurotas, torna­se muito difícil imaginar que as palavras de Plutarco ou os fatos 
relatados por historiadores sejam verdadeiros. No entanto, a eliminação de crianças 
disformes foi uma constante na História dos povos guerreiros de toda a antigüidade.
    Foi o Cristianismo que levou a Grécia, em suas múltiplas sub­divisões em cidades­
estados, a muito vagarosamente alterar esse e outros costumes, que já vinham sendo 
modificados pelos séculos afora por diversos governantes e por diversos dos filósofos que 
enriqueceram sua cultura e sua tradição. A implantação do Império Romano do Leste, 
posteriormente transformado no Império Bizantino, encontrou a Grécia organizando 
instituições mais e mais voltadas para problemas específicos: lares para deficientes 
("paramonaria"); lares para pessoas cegas ("tuflokoméia"); instituições para pessoas com 
doenças incuráveis (arginoréia "); e também organizações para pessoas muito pobres e para 
mendigos ("ptochéia").
    Apesar das histórias sobre Taygetos e sobre o rio Eurotas, a Grécia deixou para o mundo 
um saldo muito positivo de leis e costumes que valorizam a bravura e a dedicação à pátria, 
ao preço da própria integridade física ou da vida. Deixou também muitos conhecimentos 
relacionados à medicina, além de vários exemplos de organizações que, muito embora de 
caráter segregativo e assistencialista, chegaram a tornar­se um claro demonstrativo do 
reconhecimento do indivíduo como um ser repleto de valores.

    4. Os Romanos

    O legado de Roma ao mundo tem sido de extremo valor através dos séculos em 
praticamente todos os campos. Dentre eles cumpre que destaquemos a arquitetura, a saúde 
pública, as artes, as leis, a literatura e a medicina.
    Dos assuntos que mais nos interessam neste estudo e rápido passar pela História, o das 
leis é dos mais relevantes. Ninguém jamais poderá negar que uma significativa porcentagem 
de todo o acervo de leis que chegou até nós e foi por nós de certa forma absorvido, derivou 
do cuidadoso e muito esmerado trato que os romanos sempre deram ao assunto. Nem tudo, 
porém, foi bom ou aceitável para nós na legislação romana; nem tudo foi adaptado ou seria 
adaptável à nossa realidade ou ao nosso sistema de leis. O mundo de então era bem diverso 
daquele em que hoje vivemos.
    No que diz respeito a pessoas com deficiências, não é fácil encontrarmos referências 
precisas, mas se nos dispusermos a exercícios cuidadosos de estudo da História Romana, 
encontraremos não apenas leis, mas também fatos, costumes, obras de arte que nos 
surpreenderão. Veremos, por exemplo, que tanto a história da evolução da medicina romana, 
tão intimamente ligada à medicina grega, quanto a dos gradativos progressos em termos de 
saúde pública (por exemplo, abundância de água potável, latrinas públicas, rede de esgotos) 
garantiram a prevenção de muitos males incapacitantes. E ficaremos espantados ao 
reconhecer dentre os Césares, dois com sérias deficiências físicas; reconheceremos também 
um famoso censor romano que foi cego; e leremos páginas que nos falam da competência de 
pessoas deficientes...
    
    ­ *O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma*
    No Direito Romano havia leis que se referiam ao reconhecimento dos direitos de um 
recém­nascido e em que circunstâncias esses direitos deveriam ser garantidos ou poderiam 
ser negados. Dentre as condições para negação de direito, a chamada "vitalidade" e a forma 
humana eram as principais.
    Como exemplo poderemos mencionar que, tanto os bebês nascidos prematuramente (antes 
do 7º. mês de gestação) quanto os que apresentavam sinais da chamada "monstruosidade", 
não tinham condições básicas de capacidade de direito.
    Além de não encontrarmos uniformidade nos pontos de vista de autores quanto aos 
requisitos básicos para o reconhecimento dos direitos de um ser humano recém­nascido, 
dentro do Direito Romano, os sinais indicativos da "monstruosidade" eram um fator 
decisório para sua negação. Alguns abalizados estudiosos deixam a nítida idéia de que ela 
não se limitava à eventual similaridade com algum animal ­ principalmente no rosto ou 
devido a malformações de membros ­ mas também a mutilações ou falta de membros. 
Moreira Alves afirma que a solução dada pelas leis romanas, que àquelas épocas não 
contavam com a medicina ao seu lado ou com mais sólidos princípios de defesa da 
incipiente vida humana, advinha especificamente de uma lei régia atribuída a
Rômulo nos primórdios da vida formal de Roma. De acordo com ela, estava proibida a 
morte intencional de qualquer criança abaixo de três anos de idade, exceto no caso de a 
criança ter nascido mutilada, ou se fosse considerada como monstruosa. Para casos dessa 
natureza a lei previa a morte ao nascer.
    Segundo o autor citado, havia para o "pater famílias", dentre as faculdades a ele 
outorgadas pelo poder paterno (pátria potestas), uma alternativa: poderia expor a criança às 
margens do rio Tibre ou em lugares sagrados, desde que antes de o fazer tivesse mostrado o 
recém­nascido a cinco vizinhos, para que fosse de certa forma certificada a existência da 
anomalia ou da mutilação.
    A obra "De Legibus", de Cícero (Marcus Tullius Cicero ­ 106 a 43 a.C.), comenta que nas 
Leis das Doze Tábuas havia uma determinação para o extermínio de crianças nascidas com 
deformidades físicas ou sinais de monstruosidade. Em sua linguagem original, a famosa lei 
dizia o seguinte:
    "Tabula IV ­ De Jure Patrio et Jure Connubii
    Lex III ­ Pater filium monstrosum et contra formam generis humani, recens sibi natum, 
cito necato".
    
    Em nossa língua: 
    "Táboa IV ­ Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento
    Lei III ­ O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênero 
humano, que lhe tenha nascido há pouco".

    Sêneca (Lucius Annaeus Seneca ­ 4 a.C. a 65 d.C.) indica que os recém­­nascidos com 
deformidades físicas eram mortos por afogamento. O grande pensador e filósofo romano não 
analisa, em seus comentários, a validade da lei em si mesma. Analisa apenas a necessidade 
de, em nossas vidas, fazermos tudo, mesmo as coisas desagradáveis e chocantes, sem ira, 
sem ódio. Segundo Sêneca, devemos fazer tudo o que precisamos fazer com naturalidade, 
eliminando da obrigação o aspecto ódio. Ele cita alguns exemplos que, segundo deduzimos, 
eram bastante óbvios para os romanos daquela época, quando o Cristianismo começava a 
desabrochar e seus principais apóstolos atingiam Roma pela primeira vez. Vejamos o que 
afirma Sêneca:
    "... Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite dos demais, 
terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazei­o sem ódio"
    ... "Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o 
cortamos por ressentimento, pois, trata­se de um rigor salutar. Matam­se cães quando estão 
com raiva; exterminam­se touros bravios; cortam­se as cabeças das ovelhas enfermas para 
que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém­nascidos monstruosos; 
se nascerem defeituosos e monstruosos, afogamo­los; não devido ao ódio, mas à razão, para 
distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis" ("De Ira", de Sêneca).
    O trecho latino pertinente é o seguinte:
    "... portentosos fetus extinguimus, liberos quoque; si debiles monstrosique editi sunt, 
mergimus; nec ira sed ratio est, a sanis inutilia secernere" ("De Ira", de Sêneca).

    O termo "portentosus" significa extraordinário, muito diferente, monstruoso; a palavra 
"debilis", segundo o autor Plínio, pode significar tolhido de algum membro ou de alguma 
parte; Sêneca usa o termo "inutilia", no neutro plural, referindo­se a "fetus" e aos demais 
itens mencionados no mesmo texto (cães, touros, ovelhas,
membro gangrenado). No entanto, talvez o uso do neutro neste caso relembre­nos que 
mesmo ao nascer, sem ainda ter o cordão umbilical cortado (ato dos mais importantes no 
estabelecimento do direito da pessoa nas leis romanas) o recém­nascido era apenas um ente 
sem direitos ­ e podia ser eliminado.
    Presume­se que eram considerados como "monstros" todos os recém­nascidos que 
tivessem características bem diferentes dos normais, com membros a mais ou a menos, e 
também aqueles que apresentassem alguma deformidade muito séria.
    Houve em épocas bem precisas da História Romana muitos nascimentos de crianças ou 
abortos de fetos com deformações congênitas, devido a causas não identificadas. Segundo 
Plutarco "no ano 280 de Roma, um temor supersticioso tinha invadido toda a cidade, porque 
as mulheres grávidas davam à luz crianças quase todas elas defeituosas e imperfeitas em 
alguma parte do corpo, e não havia nenhuma que viesse a termo" ("Publius Valerius 
Publicola", de Plutarco). Face à legislação vigente desde os tempos dos primeiros reis de 
Roma, não se deve nutrir qualquer dúvida quanto ao destino desses recém­nascidos: a lei de 
extermínio da vida incipiente, seja por afogamento, seja por outros meios, mesmo antes de 
completado o nascimento com o corte do cordão umbilical, foi aplicada. Publícola, que era 
cônsul de Roma, mandou consultar os livros Sibilinos, como era costumeiro fazer ao 
acontecer fatos misteriosos e causadores de grandes desgraças. Fez a população romana 
oferecer sacrifícios especiais a Plutão, o deus das profundezas do Inferno, para tentar 
eliminar o problema que afligia a todos. De providências práticas e próprias para resolver a 
situação, entretanto, não se tem notícia e nem Plutarco entra em maiores considerações.

    ­ *O destino das crianças deficientes em Roma*
    Mesmo com a anuência da lei, o infanticídio legal não foi praticado com regularidade. 
Crianças malformadas, doentias ou consideradas como anormais e monstruosas eram, no 
máximo, abandonadas em cestinhas enfeitadas com flores às margens do Tibre. E os 
escravos ou as pessoas empobrecidas que viviam de esmolas ficavam na espreita e atentos 
para eventualmente se apossarem dessas crianças, criando­as para mais tarde servirem como 
meio de exploração do compadecido e por vezes muito culpado coração romano, obtendo 
esmolas volumosas.
    A esmola chegou a ser um negócio muito rendoso em Roma Antiga. Na verdade foi tão 
rendoso que houve épocas em que foram realizados raptos de crianças patrícias muito novas, 
para serem mutiladas ou deformadas a fim de se tornarem pedintes nos templos, nas praças e 
nas ruas de Roma e das outras importantes cidades do vasto Império Romano. Certamente 
foi por motivos dessa natureza que durante a decadência do Império, os patrícios que 
ocasionalmente tinham filhos defeituosos, sabedores dessas histórias, passaram a usar das 
prerrogativas dadas pelo instituto do "patria potestas" para eliminar a vida desses recém­
nascidos, não correndo eles mais o risco de se tornarem mendigos e de terem seus corpos 
deformados.
    Na Roma dos tempos dos Césares, ou seja, em séculos mais sofisticados e menos 
bárbaros, deficientes mentais, em geral tratados como "bobos", eram mantidos nas vilas ou 
nas propriedades das abastadas famílias patrícias, como protegidos do "pater familias". 
Cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidas com 
malformações eram também de quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, a 
bordéis, bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes 
humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade.
    É o historiador Durant que nos informa ainda sobre este assunto "... existia em Roma um 
mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos, 
gigantes, anões, hermafroditas" ("História da Civilização", de Durant).
    Foi extremamente notória em Roma também a utilização de meninas e moças cegas como 
prostitutas, além de rapazes cegos como remadores, quando não eram usados simplesmente 
para esmolar.

    ­ *O deus da medicina: Esculápio*
    A exemplo do que ocorrera na Grécia desde o século V a.C. com o deus da cura e da 
medicina, Asclépios, os romanos também dedicaram templos a um deus semelhante (e 
importado da Grécia...), numa espécie de Epidauros romana; o mais famoso desses templos 
era localizado numa pequena ilha do rio Tibre, a "Insula Tiberina". O interesse dos romanos 
pelo deus da cura e da medicina, em seu próprio modo de ver muito mais específico para o 
tratamento de males instalados do que a deusa Salus (significa "saúde"), surgiu em 
conseqüência de violenta epidemia ocorrida no ano 293 a.C. Os romanos consultaram os 
Livros Sibilinos e resolveram mandar uma delegação oficial a Epidauros, sob a chefia de 
Caio Ogúlnio, que de lá voltou com um símbolo vivo do deus, isto é, uma serpente sagrada, 
além das instruções para a organização do templo, para a construção de instalações para 
doentes e para o culto. Acontece, porém, que quando a delegação estava chegando à cidade 
de Roma, remando rio acima, a serpente escapou e foi nadando até a "Insula Tiberina". 
Tomando o acontecimento como um verdadeiro sinal do deus, lá os romanos erigiram um 
templo a Esculápio, novo nome de Asclépios graças a uma diferença de pronúncia. Depois 
de muitos anos, em consideração pelos bons resultados obtidos com esse novo deus, os 
romanos resolveram "casá­lo" com a deusa Valetudo, uma deidade correspondente à Higiéia 
dos gregos (deusa da Saúde).
    Nas instalações sagradas da ilha Tiberina havia acomodações para os que procuravam a 
ajuda do deus da medicina e também para os sacerdotes. De acordo com gravuras da época 
havia instalações magníficas das quais nada restou. O acabamento externo dava à ilha a 
forma de um portentoso barco. A ilha Tiberina hoje comunica­se com ambas as margens do 
rio Tibre, ressaltando­se que sua ligação com a margem esquerda é feita por meio de uma 
antiga ponte construída no ano 62 a.C., a ponte Fabrício, que é a mais antiga de toda Roma. 
De todas as originais proteções laterais hoje podemos ver alguns blocos de pedra travertina 
no lado leste da famosa ilha.
    O Cristianismo, que combateu duramente as crenças ligadas ao paganismo, fez 
desaparecer o templo de Esculápio e todas as demais instalações ligadas ao seu culto. Mais 
tarde foi ali construída a igreja de São Bartolomeu, consagrada no ano 1000 com a presença 
do imperador Otto III. Segundo tudo indica, não só parte do revestimento da igreja, mas 
também sua escadaria foram executados com pedras retiradas das ruínas dos templos e do 
acabamento lateral da ilha. Ali foi também construído um hospital, o Ospedale di San 
Giovanni di Dio, dirigido pelos Fatebene Fratelli.

    ­ *Horácio Cocles, um herói com deficiências*
    Horácio foi um famoso guerreiro romano da "gens Horatia" que viveu nos primórdios da 
vida de Roma. Recebeu o cognome de Cocles que significa "cego de um olho".
    Conta a história desse valente homem de armas que, com apenas dois companheiros, 
conseguiu defender a ponte Sublício por ocasião da pretendida invasão dos exércitos 
etruscos comandados por Porsena, ficando esses inimigos impedidos de penetrar em Roma. 
A refrega no meio da ponte foi muito violenta e Horácio ficou gravemente ferido numa das 
coxas, tendo logo após sido atingido num olho.
    Na grande confusão da luta os dois companheiros de Horácio tiveram tempo suficiente 
para cortar a golpes de espada os tirantes da ponte, lançando­a às águas do rio Tibre.
    Sangrando muito devido aos ferimentos recebidos, Horácio lançou­se ao Tibre com suas 
armas e a muito custo foi nadando até a margem onde foi socorrido pelos companheiros de 
armas.
    Elevaram­lhe depois de sua morte uma estátua na antiquíssima praça Vulcanal da velha 
Roma, que ficava localizada ao pé do Capitólio, representando­o como coxo e cego de um 
olho. Consideravam­no os romanos como de certa maneira associado a Vulcano, o 
correspondente a Hefesto na cultura romana.

    ­ *Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C.*
    Conhecido na História de Roma como Appius Claudius "Caecus" (ou seja, Ápio Cláudio 
"Cego") este grande homem público foi um dos mais célebres censores de Roma. Foi ele 
responsável direto por obras famosas das quais existem ruínas notórias. E uma delas é o 
aqueduto conhecido como Aqua Appia, originalmente com 15 quilômetros de comprimento 
e que conduzia a água potável por meio de canais subterrâneos até Roma .
    Outra obra é a famosíssima Via Appia, estrada que a época de sua construção tinha quase 
200 quilômetros, indo de Roma até Campania (Cápua). Mais tarde, devido à sua importância 
para a manutenção do comércio e da segurança interna, ela foi ampliada até o "salto" da bota 
italiana (Brindisi).
    Ápio Cláudio havia sido cônsul duas vezes antes de ser censor. É importante lembrar que 
os censores, sempre em número de dois, eram eleitos por cinco anos e detinham a 
magistratura mais elevada. Encarregavam­se eles do recenseamento e do inventário dos 
bens; faziam a relação dos senadores, estabeleciam os parâmetros do orçamento público e 
eram os responsáveis pelas obras públicas.
    Contam os historiadores que Ápio Cláudio, já avançado em idade, dissuadiu o Senado 
Romano por meio de um inflamado discurso, de dar consideração e guarida a um eloqüente 
apelo feito por Pirro, através de seu enviado especial, Cineas, para fazer a paz.
    Sempre esteve fortemente interessado em questões de gramática da língua latina; é 
considerado como o responsável pela distinção entre o "R" e o "S", em termos de fonética, 
na escrita latina, e também pela eliminação de uma letra que considerava dispensável: o "Z".
    Dele Cícero escreveu: "Ápio Cláudio, já velho e cego" (et caecus et senex), 
"responsabilizava­se por quatro filhos robustos e cinco filhas, além de uma grande mansão e 
toda a sua clientela. Mantinha um espírito tão tenso quanto um arco e não se deixava 
subjugar pela velhice para se transformar num homem sem energia. Mantinha também 
autoridade e poder sobre os seus: os escravos temiam­no, seus filhos o veneravam e todos o 
queriam bem; em seu lar reinavam os costumes dos ancestrais e a disciplina" ("Cato Major, 
seu De Senectute Dialogus", de Cícero).

    ­ *Amputação como penalidade nas legiões romanas*
    Segundo Mítton, a mutilação do nariz e das orelhas foi muito utilizada como castigo ou 
como vingança contra inimigos capturados pelas legiões romanas, nos tempos de guerra. 
Caio Júlio César (Caíus Julius Caesar ­ 102 a 44 a.C.) confessa em sua obra "De Bello 
Gallico" que aplicava essa pena em seus próprios soldados nos casos de faltas muito graves 
contra a disciplina militar ou de deserções. Diversos séculos após o imperador Justiniano I 
(Flavius Anicius lustinianus ­ 483 a 565) chegou a ordenar a amputação do nariz de soldados 
incriminados em faltas graves contra a disciplina. A mesma penalidade foi aplicada em 
soldados envolvidos com mulheres dos países cruzados ou dominados por legiões romanas 
(Apud Mitton).
    As punições não se limitavam, todavia, a essas amputações estigmatizadoras. Na 
abalisada opinião de Bubois, grande estudioso do direito criminal dos povos antigos, 
"abandonar o estandarte era um sacrilégio; esse crime era punido, conforme a gravidade do 
caso, com a mutilação do punho, com a decapitação, com a exposição a animais ferozes, 
com a crucificação e até com o afogamento. A desobediência às ordens dos
superiores era punida com a mesma pena"... ... "O roubo era também punido com a 
mutilação do punho direito" ("Histoire du Droit Criminel des Peuples Anciens",de Dubois).
    
    ­ *Caio Júlio César: atitudes face a seus males*
    Certamente um dos romanos mais importantes que a História registrou, Caio Julio César 
não era o tipo atlético, alto e sem problemas que muitos imaginam ao analisar seus feitos. 
Além de magro e de estatura bastante medíocre, sempre esteve sujeito a fortes dores de 
cabeça e, segundo muitos historiadores, sofria do famoso "mal divino", ou seja, de epilepsia.
    Plutarco faz algumas afirmações a respeito de suas atitudes face ao mal, dizendo que "às 
vezes, atacado de epilepsia, que contraíra pela primeira vez, como se diz, em Córdova, 
cidade da Espanha" .."ele não se serviu da fraqueza de seu corpo, como de um pretexto para 
delicadeza e comodismo em sua vida, mas ao contrário, tornou as agruras da guerra como 
um remédio para fortificar sua pessoa, combatendo contra a doença, caminhando sempre, 
vivendo sobriamente, dormindo ordinariamente ao relento, pois, a maior parte das noites, 
dormia num carro ou dentro de uma liteira, empregando sempre o descanso em fazer alguma 
coisa" ("Caio Júlio César", de Plutarco).
    Autores atuais, entretanto, ao considerar que César teve suas primeiras convulsões aos 52 
anos de vida e a segunda apenas três anos após, ponderam diferentemente da quase 
totalidade dos historiadores que consideram o grande imperador romano como o mais 
famoso epilético da História. Socorrem­se para isso da própria informação de Suetônio de 
que nos últimos tempos de sua vida César teve dores de cabeça e vários desmaios. Levam 
em conta o fato dele não ter tido nenhum parente próximo com indicações de males 
convulsivos. Concluem que Caio Júlio César foi vitima de um tumor cerebral benigno e não 
de epilepsia.

    ­ *Ferimentos graves e deficiências físicas em batalhas*
    As atividades guerreiras sempre tiveram como conseqüência natural muitas mortes e 
muitos casos de ferimentos de todas as naturezas e gravidades. Essas desgraças marcaram 
muitos homens pelo resto de seus dias, como não podia deixar de ser. Os feitos heróicos, no 
ardor das batalhas, são por vezes relatados em cores muito vivas por uns poucos autores 
latinos e gregos, mas apenas alguns deles fazem menção aos problemas supervenientes, 
como o fez Plutarco.
    Chega o historiador a aludir a problemas dessa natureza quando estuda a vida de Caio 
Júlio César, já citado. Deixa no leitor de hoje, 20 séculos após, a sensação de que a vida com 
deformidades ou com amputações conseqüentes à guerra era algo a ser muito temido pelos 
jovens romanos. Plutarco narra cenas pormenorizadas de batalhas e numa delas mostra­nos 
com clareza esse temor dos soldados mais jovens e inexperientes.
    . . . "as seis coortes que César tinha colocado atrás de sua ala direita avançaram contra a 
cavalaria e, em lugar de lançar longe seus dardos, segundo seu costume, e ferir a golpes de 
espada as pernas e as coxas dos inimigos, golpeavam os olhos e procuravam ferir­lhes os 
rostos; era a ordem que haviam recebido de César que duvidava que esses cavalarianos, tão 
noviços nos combates e pouco acostumados às feridas, ainda na flor da idade, se deixassem 
desfigurar, sacrificando sua juventude e beleza e evitariam com todo o cuidado essa espécie 
de ferida, não sustentando esse gênero de combate, tendo a temer tanto o perigo atual, como 
a deformidade no futuro" ("Caio Júlio César", de Plutarco).
    Muitos feriam­se gravemente e sobreviviam com deficiências sérias. Nas legiões romanas 
havia homens que lutavam por absoluta dedicação ao seu líder ou general. Plutarco também 
nos relata como César conseguia levar seus homens a atos de bravura insuperáveis, pois 
sabia inspirar afeição e muito ardor. Segundo ele, "nada resistia à impetuosidade de seus 
ataques, quando se encontravam nos mais graves perigos". E conta­nos a história de Acílio 
que, num ataque a um navio inimigo, teve sua mão direita decepada. Segurando a espada 
com a esquerda, continuou a luta, matando os inimigos.

    ­ *Cláudio I, um imperador bastante controvertido*
    Com a morte de Calígula em 41 d.C., Cláudio (Tiberius Claudius Caesar Augustus 
Germanicus ­ 10 a.C. a 54 d.C.), reconhecido na História Romana apenas como Cláudio I, 
foi elevado ao trono por imposição da forte Guarda Pretoriana, talvez por ter sido 
considerado muito mais manobrável do que qualquer outro "pretendente" ou "herdeiro" 
ligado a grupos que vinham de há muito se locupletando devido aos enormes desmandos 
existentes na corte imperial.
    Cláudio era aparentemente tolo, inofensivo e inconseqüente. No entanto, assim que 
assumiu o poder, surpreendeu a todos com as muitas demonstrações que deu de inteligência, 
sagacidade administrativa e cultura. Todavia, fisicamente ele não correspondia à imagem 
que o povo romano poderia fazer de seu imperador, uma vez que era, de fato, um tipo muito 
estranho: apesar de alto e bem forte, tinha cabelos quase brancos aos 51 anos de idade; 
feições agradáveis, tinha problemas físicos de bastante seriedade para aqueles tempos. Uma 
paralisia ("paralisia infantil", segundo o historiador Durant) e algumas doenças, dentre as 
quais todos os historiadores destacam a epilepsia, haviam­no quase que deformado. 
Apresentava­se com andar claudicante sobre pernas compridas e finas; mantinha a cabeça 
oscilante sobre o pescoço longo e fino; além disso, gaguejava e sofria muito com as dores 
provocadas pela gota. Seus pais haviam­no considerado, quando pequeno, uma espécie de 
retardado mental e sua mãe chegara a ele se referir como um "monstro inacabado", segundo 
informação de Durant.
    Esse tipo inacreditável como imperador chegou a declarar ao senado romano que se fizera 
passar por tolo e inconseqüente durante todo o governo calamitoso de Calígula apenas para 
salvar a própria pele.
    Cláudio desenvolveu um governo controvertido durante o qual reformulou leis, construiu 
grandes obras públicas, instalou novos serviços, garantiu maior proteção aos escravos, 
emancipou a Gália, conquistou a Bretanha e efetivou sua romanização.
    Terminou seus dias num emaranhado de disputas e de intrigas palacianas, envenenado por 
Agripina, sua própria esposa, por ter favorecido como seu herdeiro a Nero em detrimento de 
seu filho Germânico.
    Sêneca foi seu contemporâneo e preceptor de Nero, o futuro imperador. Em sua obra 
"Apokolokyntosis" ironiza com o imperador após sua morte, apresentando um perfil bastante 
indicativo dos problemas físicos de Cláudio e, por via de dedução, do que se pensava 
também das pessoas deficientes em Roma. E, ao fazer uma alegoria sobre seu destino após a 
morte, afirma: "Anunciam a Júpiter a chegada de alguém, estatura normal, cabelos quase 
brancos: Não deve ter boas intenções, pois abana continuamente a cabeça; e coxeia do pé 
direito" ("Apokolokyntosis", de Sêneca).

    ­ *Galba, imperador romano com diversas deficiências*
    Plutarco, Suetônio e Tácito são os historiadores que mais pormenorizadas informações 
nos dão quanto à vida dos grandes homens de Roma. Falam, de um modo todo especial, a 
respeito de seus imperadores.
    Segundo eles, nos anos 821 e 822 de Roma (68 e 69 d.C.), que se seguiram à morte 
trágica de Nero, a História Romana mostra­nos um quadro assaz confuso, no qual aparecem 
três homens que sobem ao poder e dele são afastados com bastante rapidez, graças à força 
dos militares que não desejavam ver os senadores proclamando a república. São eles: Galba, 
Othon e Vitélio.
    Galba (Servius Sulpicius Galba ­ 3 a.C. a 69 d.C.) era originário de família nobre, tendo 
tido em sua família um sério problema de deformidade física indicado por Lissner. Segundo 
o historiador, "o pai de Galba, doentio e disforme, ativo, trabalhador e inteligente mesmo, 
era advogado. Quando a rica e bela Lívia Ocelina quis casar com ele para compartilhar a 
antiga nobreza dele, Galba, o pai, sem intenções maldosas, mostrou­lhe sem pejo suas 
deformidades. Ocelina, entretanto, não se atemorizou"
("Les Césars", de Lissner).
    É sobre Galba que vamos encontrar nos renomados historiadores romanos indicados, 
traços bastante marcantes. Todos são unânimes em afirmar que Galba foi muito severo na 
aplicação da justiça. Achava ser sua obrigação. Na verdade foi tão severo na administração 
das despesas públicas que acabou desgostando não apenas o povo mas também os diversos 
escalões do sistema militar romano.
    Esse velho general foi imperador romano por apenas sete meses, com mais de setenta 
anos, portanto. Foi portador de sérias limitações físicas tanto nas mãos quanto nos pés. 
Sofria muito com as dores artríticas.
    "A estatura de Galba era mediana, sua cabeça, completamente calva, seus olhos, de um 
azul escuro, seu nariz aquilino, suas mãos e seus pés, inteiramente deformados pela gota, a 
tal ponto que não podia nem agüentar um calçado, nem desenrolar ou mesmo segurar uma 
missiva. Ele tinha também, no flanco direito, uma excrescência de carne tão volumosa que 
apenas conseguia contê­la com uma faixa" ("Vie des Douze").
    Plutarco apresenta­o como "doce e humano por natureza: a velhice aumentou ainda a 
opinião que se tinha dele, de que era tímido" ("Galba", de Plutarco).
    Segundo Tácito, todavia, esse grande personagem da História Romana poderia ter sido 
considerado ótimo para o Império, se não tivesse sido imperador...
    
    ­ *Othon, um imperador nascido com malformações*
    Othon (Marcus Silvius Othon ­ 32 a 69 d.C.) era filho de Lúcio Othon e de Álbia 
Terência, sendo a família de origem aristocrática. Muito embora diversos autores não façam 
nenhuma menção, revela­nos o historiador Lissner algo surpreendente sobre Othon, 
imperador por três meses, depois de ter mandado assassinar o imperador Galba: "No dia 28 
de abril do ano 32 d.C. a esposa de Lucius Othon, Álbia Terência, de origem aristocrática, 
colocou no mundo uma criança do sexo masculino cujas pernas tortas constituíam uma 
malformação incurável" ("Les Césars", de Lissner).
    O defeito físico não impediu Marco Silvio de procurar os ambientes e as amizades ­ 
inclusive a de Nero ­ que lhe dariam mais tarde condições para a busca de cargos 
importantes e muito rendosos. Exemplo dos mais marcantes foi o seu casamento com Popéia 
por solicitação de Nero que dela se enamorara e dela queria se aproximar sem chamar muito 
a atenção de toda a corte imperial. Foi em conseqüência dessa situação e de seus desmedidos 
desejos que Nero mandou Othon em missão especial para bem longe de Roma, como 
governador dos lusitanos que ocupavam território que mais tarde seria transformado em 
Portugal.
    Segundo os historiadores Othon não conseguiu demonstrar o quanto podia, apesar da 
verdadeira adoração que suas legiões tinham por ele, devido à cobiça e à inconseqüência de 
outro homem que, por coincidência, também apresentava limitação física muito evidente: 
Vitélio. Othon suicidou­se ao perceber que fora a causa primeira de uma guerra civil.

    ­ *Vitélio, imperador romano por oito meses*
    Vitélio (Aulus Vitelius ­ 15 a 69 a.C.), nasceu em Lucéria e morreu em Roma; ele foi o 
sucessor de Othon, por escolha das legiões romanas sediadas no Reno. Durante sua vida 
dissoluta foi protegido por quatro imperadores também dissolutos: Tibério, Calígula, Nero e 
Cláudio.
    Ainda bastante jovem foi empregado, como hábil condutor de carros que era, para ensinar 
o jovem Calígula a mesma arte, incluindo bigas aquadrigas. Foi no exercício dessa função 
que teve um acidente e sofreu violenta queda, recebendo, em conseqüência, um sério 
ferimento na perna. Acabou ficando com uma lesão permanente que o faria mancar bastante 
pelo resto da vida.
    Esse defeito físico não prejudicou tanto seu conceito quanto o de ser o maior e mais 
famoso glutão que Roma já teve. Muito obeso e vermelho, a excentricidade de Vitélio 
aumentava conforme era obrigado a andar. Foi um dos imperadores mais lamentáveis de 
Roma e morreu tragicamente, quase que linchado pela plebe furiosa devido a seus 
desmandos, ajudada pelos soldados de Vespasiano, que acabava de tomar o poder.

    ­ *Os milagres de Vespasiano*
    Tanto Suetônio quanto Tácito informam que Vespasiano (Titus Flavius Vespasianus ­ 7 a 
79 d.C.) participou de um evento estranho e que nos é transmitido como um "milagre". O 
fato envolve duas pessoas com deficiências físicas diferentes. Vejamos, nas próprias 
palavras de Tácito, o que sucedeu na cidade de Alexandria: "Durante os meses em que 
Vespasiano esteve em Alexandria, época na qual os ventos de verão vinham regularmente 
garantir a boa navegação, ocorreram muitos milagres ("multa miracula evenere", no original 
latino) que manifestaram o favor celeste e a simpatia dos deuses para com Vespasiano. Um 
habitante de Alexandria, pertencente à classe modesta, conhecidamente vítima de uma 
degeneração da vista, lançou­se aos seus pés e pediu­lhe gemendo que o curasse da cegueira. 
Obedecia, segundo informava, às ordens de Serápis, deus ao qual aquele povo, entregue a 
superstições, honrava mais do que a qualquer outro; e ele suplicava ao príncipe que se 
dignasse umedecer­lhe o rosto e ao redor de seus olhos com a secreção de sua boca. Um 
outro tinha sua mão defeituosa, e, por sugestão do mesmo deus, pedia a César para pisá­la 
com a planta de seu pé. Vespasiano zombou deles naquele momento e os afastou, mas, 
devido à sua insistência, começou a hesitar, de um lado por acreditar estar sendo vaidoso e 
presunçoso e do outro por confiança, pois, as veementes preces daqueles dois doentes e os 
elogios de seus cortesãos inclinavam­no à esperança. Ordenou, finalmente, aos médicos para 
verificar se a cegueira e a paralisia poderiam ser vencidas por meios humanos. Os médicos, 
após alguma discussão, responderam que dos dois doentes, um não tinha a força visual, já 
eliminada, e que ela voltaria se o obstáculo fosse removido; o outro tinha as articulações 
desviadas e, se fosse exercida sobre elas uma pressão saudável, poderiam retomar a posição 
normal; que os deuses tinham talvez desejado essa cura e que haviam escolhido o príncipe 
para essa divina missão; enfim, que se o remédio desse certo, a glória seria dele"...
    Vespasiano deixou­se levar e mostrou­se feliz, pois ficou absolutamente persuadido de 
que tudo seria possível à sua boa fortuna. Cercado pela multidão que já se aglomerara, 
acedeu ao pedido dos dois doentes.
    E Tácito finaliza: "Imediatamente a mão retomou suas funções e o cego de novo viu o 
brilho do dia. Esses dois milagres, testemunhas oculares lembram­nos ainda hoje"... 
("Histoires", de Tácito)
    Suetônio, em sua obra sobre os doze Césares, conta o mesmo fato, ao dissertar sobre a 
vida de Vespasiano. Além de pequenas circunstâncias ligeiramente diferentes, ele altera a 
deficiência de um dos suplicantes diante de César: um era cego, mas o outro tinha um 
problema de paralisia na perna e não em sua mão.

    ­ *As deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural"*
    Plínio (Caius Plinius Secundus ­ 23 a 79 d.C.), em sua monumental obra "História 
Natural", escreve a respeito de alguns males bastante notórios que podem levar as pessoas a 
situações limitadoras e mesmo a deficiências físicas sérias. Dentre eles cumpre notar 
citações sobre a elefantíase, gota, paralisia, epilepsia e outros.
    Em sua extensa obra de trinta e sete volumes aborda assuntos de grande valia, mas de 
quando em quando transmite informações fantasiosas e sem qualquer base na realidade.
    Quanto à elefantíase, por exemplo, Plínio afirma que quando reis e príncipes eram as 
vítimas do mal, os médicos recomendavam banhos em sangue humano. O problema passava 
a ser não apenas deles, mas principalmente dos homens escravizados que precisavam 
submeter­se a sangrias ou à própria morte.
    A gota, por ele citada com o nome de "podagra", é bastante analisada. No seu livro XVI 
(item LXIV) afirma que "a alfavaca­de­cobra diminui e cura varizes sem dor, se colocada 
sobre a parte doente. A gota é muito rara, não apenas na época de nossos pais e avós, mas 
ainda em nossos dias. Esse mal é estrangeiro, pois se ele tivesse sido freqüente na Itália teria 
um nome latino. Não se deve acreditar que é incurável, pois tem desaparecido em muitas 
pessoas e em muitas tem havido sua cura. Prescreve­se contra a gota raízes de panacéia com 
uva­passa, suco ou sementes de meimendro com farinha, escórdio com vinagre, mastruço­
bravo aplicado conforme explicado anteriormente, verbena moída com gordura, raiz de pão­
de­porco, cujo cozimento também é bom para frieiras. Para eliminar o calor da gota 
prescreve­se raiz de espadana, semente de zaragota, cicuta com picumã ou gordura e 
sempre­noiva, ao primeiro acesso do mal" ("Histoire Naturelle", de Plínio).
    Para as paralisias Plínio recomendava igualmente o uso de plantas medicinais, afirmando 
acreditar­se que a betônica e o mastruço­bravo curavam a paralisia ou os membros 
entorpecidos. Segundo ele, a argêmona tinha a mesma virtude, além de ser uma espécie de 
elemento estimulador da circulação, chegando até a evitar a amputação de membros.
    Por absoluta falta de conhecimento mais profundo Plínio acreditava nas chamadas 
"panacéias": remédios preparados com o concurso de várias plantas medicinais. Afirmava 
categoricamente que elas curavam até a epilepsia. Sua frase é incisiva: "Comitiales sanant 
panacis".
    É Plínio que cita algo interessante e curioso para a época (primeiro século de nossa Era) 
sobre membros artificiais. Afirma­nos que Estérgio, bisavô de Catalina, usara mão feita de 
metal para disfarçar amputação ocorrida em campo de batalha.
    Também conhecido como Plínio, o Velho, faleceu no ano 79 d.C. durante a erupção 
famosa do Vesúvio que sepultou Pompéia e Herculanum sob espessas camadas de cinzas e 
lava. Plínio, almirante da frota de Miseno, tendo aproximado seus navios para salvar 
habitantes em fuga, aproveitou a oportunidade para estudar os fenômenos mais de perto e 
morreu asfixiado.

    ­ *As automutilações para dispensa do serviço militar*
    Na douta opinião de Ammiano Marcellino, citado por Lucchini, os jovens romanos que 
viviam nos anos de decadência do Império Romano odiavam o serviço militar obrigatório e 
de duração por vezes indefinida. Alguns moços chegavam até a amputar o próprio polegar 
da mão direita, pois com essa deficiência estariam dispensados de ingressar nas legiões 
romanas, por não poderem usar a espada, além de não estarem de acordo com a qualificação 
física mínima de um recruta.
    Na obra "De Re Militarii", escrita em 390 d.C., Vegetius (citado por Cotrell em "The 
Great Invasion") afirma que existia a seguinte recomendação no recrutamento de soldados 
em todo o Império: ... "quem estiver alistando recrutas deve primeiro olhar para o rosto, os 
olhos, a forma toda do homem para ver se ele poderá ser um bom lutador. Assim, um jovem 
eventualmente adequado para a guerra deverá ter olhos brilhantes, postura ereta, peito 
amplo, ombros musculosos, braços fortes, dedos longos, ventre modesto, pés e barrigas da 
perna com tendões fortes" (Apud Penn).
    Um dos exemplos registrados quanto à reação dos governantes contra as automutilações 
que dispensavam o jovem do serviço militar, durante os anos do Império, é o caso de um 
certo Caio Vatieno que durante a chamada "Guerra Social" amputou sua própria mão 
esquerda, pois era com ela que os soldados seguravam seu escudo. Como castigo o Senado 
mandou vender todos os seus bens e rebaixou o jovem cidadão à categoria de servo.
    O imperador Trajano (Marcus Ulpius Trajanus Crinitus ­ 52 a 117 d.C.) mandava punir 
com a deportação o pai que, ao saber da convocação de seu filho para a vida militar, 
amputasse seus dedos ou o deformasse de alguma forma grave (Apud Lucchini) .
    Amputações para evitar o engajamento no serviço das legiões romanas tornaram­se 
freqüentes do século II ao século IV, tendo Constantino I (Caius Flavius Valerius Aurelius 
Constantinus  ­ 270 a 337 d C.) assinado um decreto determinando que qualquer pessoa que 
tivesse provocado sua automutilação para fugir ao serviço militar deveria ser encaminhada, 
dentro da realidade das forças armadas romanas, para qualquer outro serviço para o qual 
fosse capaz. 
    O imperador Valentiniano (Flavius Valentinianus ­ 321 a 375 d.C.) também assinou um 
decreto em 367 d.C. corroborando as ordens de Constantino. Com o passar dos anos, porém, 
aprovou determinações muito mais severas, face aos abusos freqüentes. Uma delas era a 
mais contundente: aquele que amputasse os próprios dedos para não servir nas legiões 
imperiais seria "queimado vivo" e seu "senhor" (pai ou responsável) que não o impedira de 
tal ato, sofreria uma grave condenação.
    Vejamos o texto original latino dessa forte determinação: "Si quis ad fugienda sacramenta 
militiae fuerit inventus truncatione digitorum damnum corporis expedisse, et ipse flammis 
utricibus concremetur et dominus eius, qui non prohibet, gravi condemnatione feriatur" 
(Apud Costa).

    ­ *Males incapacitantes e soluções paliativas*
    Romanos abastados sempre encontravam soluções, mesmo que apenas de caráter 
paliativo, para certos males que, por serem mal controlados, levavam muitos a situações de 
contínuo desconforto, enquanto que alguns chegavam a ficar parcial ou totalmente 
incapacitados para uma vida ativa e independente. Um dos casos mais notórios que são 
citados por Cícero foi o de Lúcio­Júlio César, cônsul romano e contemporâneo de Caio Júlio 
César.
    Lúcio­Júlio César sofria de reumatismo muito sério que o mantinha praticamente 
paralisado, conforme relata Cícero em uma carta dirigida a seu genro, Público Cornélio 
Dolabella. "Lúcio César, de fato, foi até Nápoles (Pompéia), porque estava muito oprimido 
por dores em todo o corpo" ... Pompéia contava com recursos naturais significativos, àquela 
época, pois Cícero afirma que "muitos cidadãos abastados procuram esses lugares por 
motivos de saúde" (Apud Menière).
    Cícero menciona também alguns grandes oradores romanos, conhecidos seus, que tinham 
problemas muito sérios e que procuravam tais recursos para aliviar seus males. Ele cita Caio 
Sexto Calvísio, que sofria de gota e mal podia andar; cita Cneo Otávio, que sofria de dores 
nas articulações e vivia envolto em faixas, coberto de medicamentos.
    De fato, os romanos conheciam muito bem as virtudes de certos recursos naturais, como 
as águas termais e sulfurosas, por exemplo. Sabiam que elas podiam ser muito úteis e 
benéficas para o tratamento dos males das articulações. Usavam­nas como um recurso 
básico para qualquer problema de dores musculares ou articulares e chegavam a beber 
grandes quantidades. Plínio afirma que algumas pessoas, desejosas de apressar a cura das 
dores que levavam às dificuldades de movimentação, bebiam as águas sulfurosas em 
excesso, ao ponto de comprometer a própria vida.
    Águas termais e sulfurosas que brotavam do próprio chão tornaram­se a causa do 
surgimento de muitos centros populacionais. Foi o que sucedeu com Epidauros, na Grécia, e 
tantos outros lugares considerados como miraculosos. Foi o que aconteceu com Pouzzoles, 
por exemplo, na Província de Nápoles, que surgira com o nome de "Dicaearcha", pelo ano 
522 a.C., sendo depois reconhecida como Puteoli (Poços) pelos romanos, devido aos seus 
poços de águas termais e medicinais. Para lá romanos abastados acorriam em verdadeiras 
multidões ­ e lá Cícero mantinha também uma vila.

    ­ *O problema da surdez na opinião de Cícero*
    "In surditate vero quidnam est mali?" pergunta Cícero em seus Debates Tusculanos. 
Afinal qual é o mal que há na surdez? Segundo seu depoimento e suas considerações quanto 
às misérias humanas, Crasso, conhecido como "Agelastos", era meio surdo, mas ouvia o 
suficiente para saber tudo o que dele se falava de mal.
    "Os surdos não ouvem a música, é verdade, mas não sentem seus ouvidos dilacerados pelo 
ruído da serra quando é afiada, ou pelo grunhido do porco quando está sendo degolado". 
Finaliza dizendo: "Assim como consolamos os cegos a todo o instante com os prazeres da 
audição, devemos também consolar os surdos com os prazeres da visão" ("Tusculanae 
Disputationes", de Cícero).

    ­ *Deficiências múltiplas e morte*
    Cícero continua com suas considerações e suas análises sobre os mais sérios problemas 
que podem atingir um ser humano, fazendo um comentário que só é compreensível para 
aquela época: "Reunamos agora todos esses males num só indivíduo. Que ele seja surdo e 
cego e que prove atrozes dores ­ ele será logo consumido por esses sofrimentos, e se, por 
falta de sorte, eles chegarem a se prolongar, por que suportá­los? A morte é um refúgio 
seguro onde esse indivíduo estará ao abrigo dessas horrendas misérias" ("Tusculanae 
Disputationes", de Cícero).

    ­ *A medicina grega e sua infiltração no Império Romano*
    Todos aqueles que estudam a História de Roma sabem que ela foi uma continua 
emprestadora, tanto nas ciências quanto na arte. E a Grécia foi uma das maiores 
colaboradoras do Império Romano, tanto numa quanto noutra área.
    A medicina grega, por exemplo, foi levada a Roma aos poucos, por alguns médicos 
gregos que deixaram de lado seus princípios éticos e passaram de imediato a explorar os 
abastados romanos.
    Catão, o Censor (Marcus Porcius Cato ­ 234 a 149 a.C.), detestava os gregos. Em sua obra 
"Praecepta ad Filium" diz: "Falarei dos gregos no tempo e no lugar, meu filho" ... "É uma 
raça perversa e indócil; creia que um oráculo te fala quando digo: Todas as vezes que essa 
nação trouxer seus conhecimentos, ela a tudo corromperá. E será bem pior se ela nos mandar 
seus médicos; eles juraram entre si matar a todos os bárbaros à custa da medicina". "De uma 
vez por todas, eu te proíbo os médicos" (Apud Laignel­Lavastine).
    Plínio comenta em sua História Natural: "É uma pena que não haja uma lei para punir 
médicos ignorantes e que a pena capital nunca é ditada para eles. No entanto, eles aprendem 
com o nosso sofrimento e fazem experiências, colocando­nos diante da morte" ("Histoire 
Naturelle", de Plínio).
    Marcial (Marcus Valerius Martialis ­ 40 a 102 d.C.) foi um mordaz autor latino que num 
dos seus muitos e irreverentes epigramas ironizou da seguinte forma com um médico de 
problemas visuais. "Agora você é gladiador, quando antes você era médico dos olhos. Como 
médico você fazia o que faz hoje como gladiador" ("Epigramas", de Marcial).
    ­ *Médicos romanos famosos e os males incapacitantes*
    Não há dúvida de que havia muitos médicos dedicados e competentes, tanto gregos 
quanto romanos. Falaremos sobre apenas três daqueles que lidaram com problemas de 
deficiências e que são citados por historiadores.
    Alem de Dioscórides, autor de um compendio sobre assuntos de medicina, incluindo neles 
doenças e alguns problemas que levavam a deficiências, "De Matéria Médica" (Sobre 
Matéria Médica), destaquemos dois famosos médicos que pela sua inquestionável 
competência passaram para a História da Medicina.
    O primeiro deles é Asclepíades de Bitínia, nascido em 124 a.C. e que, apesar de grego de 
nascimento, sempre viveu e trabalhou em Roma, semelhantemente ao que sucederia séculos 
depois com Cláudio Galeno, conforme verificamos quando discutíamos alguns aspectos de 
procedimentos precursores da reabilitação na Grécia.
    Asclepíades estabeleceu a prática médica com base na chamada "teoria da modificação 
corpuscular", segundo a qual qualquer doença resultava de uma certa movimentação de 
corpúsculos no corpo humano de uma forma não­harmoniosa. Em seus trabalhos procurava 
restabelecer a indispensável harmonia através de dieta acompanhada de alguns 
procedimentos terapêuticos reconhecidos hoje em fisioterapia, tais como a massagem, a 
hidroterapia e os exercícios físicos. Foi Asclepíades de Bitínia o primeiro médico a usar a 
música no tratamento e na recuperação de pessoas afetadas por doenças mentais.
    O segundo nome é o de Celso (Aulus Cornelius Celsus ­ 42 a.C. a 37 d.C.), famoso, 
competente e reconhecido por muitos séculos como o "Cícero dos Médicos" devido à sua 
interessante obra "De Re Medica" (Sobre a Medicina). Nessa obra Celso descreve um 
número bastante elevado de doenças e seus sintomas principais, incluindo as paralisias e 
males de extremidades, indicando textualmente tratamentos de massagens, de calor e de 
exercícios físicos.
    Em seu livro V Celso indica remédios para dores articulares, afirmando o seguinte: "Os 
ungüentos são bons principalmente nas afecções dos tendões e das articulações; também o 
ungüento de Euthycléa deve ser empregado" ..."quando é preciso combater a imobilização 
das articulações provocada por uma cicatrização recente, estado que os gregos chamam de 
"ankylose" ("De Re Medica", de Celso).
    No mesmo livro Celso dá uma descrição sucinta que demonstra amplo conhecimento da 
paraplegia e de suas características quando da sobrevivência de paraplégicos, afirmando 
textualmente: "Nas lesões da medula da espinha há paralisia ou movimentos convulsivos e 
privação de sensibilidade; ao final de algum tempo, o esperma, a urina e as matérias fecais 
são eliminados involuntariamente".
    Celso discute também a epilepsia num capítulo bastante longo de sua obra, recomendando 
lavagem intestinal com heléboro negro, planta medicinal até hoje utilizada para problemas 
neurológicos. Segundo ele a alimentação do epilético devia ser leve. A carne de porco devia 
ser a ele proibida. Além disso o doente devia evitar tensões e cansaço, sendo necessário 
raspar a cabeça e tomar duchas de água salgada. Para alguns casos Celso recomendava 
exercícios e massagens.

    ­ *Os serviços médicos e os hospitais militares romanos*
    Nos primeiros tempos da História de Roma o tratamento dos doentes e dos feridos em 
batalhas era deixado aos próprios companheiros de armas. Tanto assim que por muitos 
séculos os soldados levavam consigo, como parte de seus pertences, pomadas, hervas e 
bandagens para a eventualidade não descartável de serem feridos.
    Os soldados mais experimentados dominavam por vezes conhecimentos estranhos para 
um dos principais problemas enfrentados pelos soldados: o do estancamento do sangue em 
ferimentos profundos. A preocupação estendia­se à eventualidade da perda de um membro e 
à morte devido à hemorragia. Uma receita popular e muito divulgada entre os soldados que 
nos é transmitida por Samônico é esta: cozer estrume de cavalo com cascas de ovo 
trituradas, colocando a pasta sobre o ferimento.
    Sabe­se que os comandantes e oficiais mais graduados tinham o privilégio de serem 
atendidos por seus médicos, especialmente contratados para segui­los e estar ao seu lado nas 
batalhas. E houve também médicos das casernas que acumularam tanta experiência que se 
tornaram famosos. São os casos de Scribonius Largus, médico de Cláudio I durante a 
invasão da Bretanha; de Dioscórides, médico militar nos tempos de Nero; de Cláudio 
Galeno, a respeito do qual já falamos; de Jápide, médico que atendeu a Enéas ferido, em 
pleno campo de batalha, e vários outros que passaram para a História da Medicina.
    Embora haja poucas referências, sabe­se que sempre houve preocupação com a assistência 
aos casos de doenças e de ferimentos mais sérios nas legiões romanas, preocupação essa que 
muito vagarosamente foi requerendo algumas providências, principalmente com a chegada 
dos médicos gregos a Roma. Tácito, por exemplo, fala­nos sobre a existência de tendas para 
doentes e feridos nos acampamentos romanos. Sabe­se também que por séculos os soldados 
gravemente feridos e amputados eram deixados para maiores cuidados em cidades romanas, 
sob a custódia de cidadãos responsáveis e suas famílias, após terem recebido algum tipo de 
atenção em sua própria legião.
    Com a gradativa penetração e divulgação da medicina grega chegaram as legiões romanas 
a contar com 40 médicos em cada uma delas (ou seja, para dar cobertura a 6.000 homens 
armados). Existem em alguns autores menções quanto à distribuição das áreas nos 
acampamentos de guerra, incluindo a localização das chamadas "valetudinaria", uma espécie 
de enfermaria para os "grandes feridos", claramente delimitadas e que muito mais tarde se 
transformariam em hospitais de campanha, nos casos de acampamentos permanentes.
    Ao que parece aos historiadores as "valetudinaria" foram inicialmente instaladas durante o 
governo de Augusto, sendo certo que sob Trajano, ao final do século I d.C., elas já existiam 
em todas as legiões.

    ­ *As "valetudinaria" descobertas em estudos arqueológicos*
    Estudos arqueológicos têm revelado ao mundo muito das características dos exércitos 
romanos através dos séculos, inclusive seus hospitais militares de retaguarda e mais 
permanentes, isto é, "valetudinaria" construídas dentro de planos mais cuidadosos e 
materiais muito mais duráveis.
    Um dos pontos escavados situa­se a 30 quilômetros de Viena, às margens do rio Danúbio. 
O local era conhecido como Carnuntum, pujante cidade de aproximadamente 100.000 
habitantes, que mantinha em suas imediações duas legiões permanentemente estacionadas. O 
hospital militar romano de Carnuntum tinha um saguão principal que levava a uma sala de 
recepção, atrás do qual havia uma sala especial para cirurgias ou curativos para ferimentos 
graves. Ao seu redor havia uns 60 quartos pequenos.
    Existem outros locais escavados e que correspondem a hospitais militares romanos, tais 
como Novaesium, perto de Dusseldorf na Alemanha, provavelmente construído pelo ano 
100 d.C. no sistema de corredores; Borcovicus, perto de Housestead e vários outros na 
Inglaterra, incluindo um hospital conhecido como Pinnata Castra, em Perthshire, uma 
enorme construção de 7.000 m2 (Apud Penn).
    Graças aos médicos e seus auxiliares das legiões e dos navios de guerra romanos muitos 
homens feridos foram salvos da morte certa. E, sem sombras de dúvida, muitos também 
sobreviveram após amputações ou com algum outro tipo de problema incapacitante e 
voltaram para a vida civil.

    ­ *Os auxiliares de médicos nas legiões romanas*
    Soldados gravemente feridos, muitos dos quais com membros decepados a golpes de 
espada ou com seus olhos vazados, sobreviveram graças a um socorro médico de urgência 
que era viabilizado por certos tipos de auxiliares lotados nas legiões romanas em épocas 
difíceis de determinar. Dentre eles cumpre chamar a atenção primeiramente para os 
"Optiones valetudinarii", ou seja, ajudantes ou auxiliares de enfermaria. Eram meros 
funcionários administrativos aos quais cabia cuidar da limpeza local, da alimentação dos 
acamados, dos curativos e dos remédios dos soldados gravemente feridos e alojados nas 
"valetudinaria".
    Havia, no entanto, um tipo especial de auxiliares diretos dos médicos das legiões que 
eram conhecidos como "deputati" (mais tarde, no Império Bizantino foram conhecidos como 
"deputatoi"), ou seja, elementos delegados que não faziam parte dos contingentes guerreiros 
e que eram obrigados a seguir numa pequena distância a coorte à qual estavam destacados, 
durante uma batalha. Seu objetivo básico era prestar socorros a feridos que tombavam ao 
chão, levando­os imediatamente a cavalo para a retaguarda, onde por vezes havia carroças e 
meios mais seguros para seu transporte às "valetudinaria".
    Como acontecia esse incipiente serviço de socorro volante?
    Cada general colocava oito ou dez "deputati" atrás das linhas de combate direto com o 
inimigo, tendo antes feito uma cuidadosa seleção entre civis muito vivos e cheios de 
iniciativa. Ficavam a mais ou menos 50 metros de distância, agindo com rapidez a fim de 
que os feridos que tombavam ao chão não fossem pisoteados nos casos de retirada ou de 
avanço de uma segunda ala de combatentes de sua própria legião.
    Para cada soldado ferido transportado o "deputatus" recebia uma certa quantia de 
dinheiro. Para bem desenvolver sua tarefa eles levavam cavalos com selas especiais que 
tinham dois estribos suplementares, com os quais conseguiam remover até dois feridos por 
vez. Suspenso à sela levavam também um recipiente com água para poder reanimar um 
ferido desmaiado.
    Julius Pollux em sua obra "Onomásticon" recomenda inclusive que esses "deputati" 
exercitem seus cavalos a dobrar as pernas dianteiras para facilitar a um soldado ferido 
montar ou ter acesso aos estribos (Apud Cabanès).
    Esse sistema foi gradativamente sendo melhorado nas legiões romanas tendo sido 
continuamente adotado sob o imperador bizantino Mauricio que o menciona em sua obra 
"Stratégicon", conforme veremos mais adiante.

    ­ *O sistema hospitalar romano*
    Na medicina pura os romanos não realizaram muito. No entanto, uma das maiores 
contribuições de Roma à História da Medicina foi iniciar uma espécie de sistema de 
atendimento hospitalar para a população civil, incluindo o atendimento a pessoas com sérios 
problemas incapacitantes. Sua organização estava muito relacionada com a experiência 
vivida e acumulada por centenas de anos de lutas e de dificuldades das legiões romanas em 
várias partes do mundo. Os médicos que serviam nessas legiões não lidavam apenas com 
ferimentos, mas também com febres, doenças graves e corriqueiras, acumulando com isso 
uma vasta experiência. Muitos desses médicos passavam a dar atendimento à população em 
geral, tão logo deixavam os serviços nas legiões ou nos navios de guerra, o que tornou viável 
a organização desse incipiente sistema hospitalar.
    Foi em Roma que surgiram também as primeiras organizações separadas que cuidavam e 
davam abrigo a doentes crônicos e incapacitados. Lúcio Júnio Moderato Columella cita em 
seus trabalhos as "valetudinaria" para escravos doentes e incapacitados, em pleno século I 
d.C.
    Os patrícios e todos os demais cidadãos romanos que tinham posses suficientes para pagar 
médicos eram tratados em suas próprias vilas ou residências. Mas com o resultado 
satisfatório do tratamento que era dispensado nas "valetudinaria", romanos livres aos poucos 
começaram a usar esse novo tipo de recurso de tratamento médico, especialmente quando 
vítimas de males crônicos ou de problemas físicos limitadores.
    Nas escavações de Pompéia existem locais que parecem indicar que médicos mantinham 
instituições como se fossem casas de repouso ou de convalescença. E, segundo Cláudio 
Galeno de Pérgamo, nas províncias do Império Romano estabelecimentos de cuidados 
médicos acabaram tornando­se hospitais para atendimento a doentes graves e pessoas 
mutiladas, com o subsídio financeiro do poder central e pessoal pago pelo Império.

    ­ *O ensino da medicina no Império Romano*
    O atendimento melhor qualificado às pessoas doentes e àquelas limitadas por alguma 
deficiência física, sensorial ou algum mal crônico dependia da existência de médicos bem 
preparados, e estes existiriam na medida em que houvesse boas oportunidades de adquirir 
conhecimentos e experiência. Estes, por sua vez, dependiam da existência de recursos para 
treinamento.
    O ensino destinado à preparação de médicos não foi organizado em Roma a não ser na 
fase áurea do Império. Inicialmente o ensino das várias áreas conhecidas da medicina era 
feito em bases puramente individuais.
    Na severa opinião de Cláudio Galeno, era necessário que o aprendiz de médico 
trabalhasse por 11 anos até poder ser considerado um verdadeiro médico. Tessalo achava 
que 6 meses eram suficientes para praticar os rudimentos da medicina.
    No ano 46 a.C., quando os direitos de todos os cidadãos foram reconhecidos e aprovados, 
organizou­se com certa regularidade e critério o ensino médico. Assim é que, terminados os 
estudos de botânica, anatomia e cirurgia, os aprendizes da ciência médica recebiam o título 
de "Medicus a Republica" (médico pela República).
    O imperador romano Sétimo Severo (Lucius Septimius Severus ­ 146 a 211 d.C.) 
conseguiu locais para as incipientes escolas de medicina e para suas indispensáveis 
bibliotecas.

    ­ *Categorias de médicos em Roma*
    No final do Império Romano do Ocidente ­ ou seja, aquele liderado por Roma ­ havia 
cinco categorias de médicos: "Archiatri suori palatini", ou seja, os médicos do imperador e 
do palácio imperial; "Archiatri municipales populares" que eram os indicados para servir, às 
custas do Império, nas grandes cidades das províncias romanas e nos arredores importantes 
de Roma; "Archiatri scholares" que dirigiam as escolas de medicina ou nelas participavam 
no preparo de novos médicos.
    As outras duas categorias englobam os médicos dos ginásios esportivos, aqueles que 
serviam nas termas e banhos públicos, os que atuavam nos circos e que deviam ser também 
bons cirurgiões, e os médicos das vestais.
    ­ *Implantação de serviços de assistência médica*
    Dentre os fatos que aos poucos foram afetando a vida das pessoas deficientes ou 
portadoras de males que normalmente podem levar à instalação de uma situação 
incapacitante, no Império Romano todo, ressaltemos a gradativa implantação de serviços 
médicos mantidos pelos seus governantes desde os primeiros tempos do Império. Médicos 
(archiatri) eram indicados para diversas cidades ou para instituições existentes na ocasião, 
tanto em Roma como nas vizinhanças e também nas suas mais longínquas províncias, onde 
permaneciam estacionados servidores públicos provenientes da Capital do Império e suas 
legiões. O sistema de assistência aos doentes, incluindo os portadores de deficiências de 
ordem física, sempre esteve em bem melhores condições junto às legiões romanas do que 
nas cidades, como vimos anteriormente.

    ­ *A higiene e os banhos públicos*
    Desde o século VI a.C. Roma contava com uma obra que até hoje é testemunha do zelo de 
alguns de seus governantes pela saúde publica: a Cloaca Máxima construída pelos 
Tarquínios, famosos reis de Roma. A ela ligavam­se encanamentos de esgoto e de água 
servida. Gradativamente latrinas públicas foram instaladas, e na época de Constantino havia 
150 delas.
    Água potável e de boa qualidade certamente ajudou também os romanos na luta contra 
epidemias e contra muitos males. As adutoras de água foram objeto de um grande esforço 
dos romanos mais civilizados, pois até o ano 300 a.C. Roma ainda não era alimentada por 
fonte alguma de água, a não ser o próprio Tibre, acima da Cloaca. Na época imperial Roma 
chegou a contar com 14 aquedutos. Os romanos, que se contentavam anteriormente em lavar 
os braços e as pernas todas as manhãs e o resto do corpo uma vez por semana, puderam, sob 
o Império, dispor de 500 litros de água por dia cada um! A cidade recebia mais de um bilhão 
de litros diários de água potável, volume que nenhuma cidade moderna, de porte médio, 
recebe.
    Os banhos públicos tornaram­se, nas últimas décadas da República Romana, verdadeiros 
lugares de prazer, onde era mostrado um luxo refinado. Na época de Constantino existiam 
aproximadamente 850 banhos públicos em Roma.
    Inicialmente separados por sexo, os banhos tornaram­se comuns, tendo sido essa uma das 
causas da depravação dos costumes de Roma, rigorosa e continuamente combatidos pelos 
cristãos, impedidos de os freqüentar.

    ­ *As pessoas deficientes nas artes romanas*
    No museu do Louvre, em Paris, existe um vaso de origem romana ­ provavelmente do 
Século IV a.C. ­ no qual está representada uma pessoa com deficiência motora. Ela se apóia 
num bastão e utiliza um pilão na parte inferior da perna direita, devido a uma deformidade 
de origem poliomielítica talvez. Nota­se também o seu pé esquerdo numa posição 
deformada, como se fosse um pé eqüino.
    A coluna de Trajano, em Roma, é uma obra de arte "sui generis" e muito interessante. Ela 
apresenta numa seqüência ininterrupta, em forma de espiral ascendente, toda a vida de lutas, 
vitórias e dificuldades do imperador Trajano e suas legiões. Um dos trechos dessa famosa 
ilustração seqüencial mostra­nos com bastante clareza o atendimento a feridos nos campos 
de batalha. Nota­se, por exemplo, um soldado fazendo curativo num colega de armas, 
enquanto dois outros ajudam um terceiro, bastante ferido e que mal consegue manter­se em 
pé.
    Nas poéticas paragens do vale do rio Gave, a nordeste dos Pirineus, a 5 quilômetros da 
vila de Pau, fica o vilarejo de Lescar. Num passado bem remoto ali estava localizada 
Beneharnum, muito aprazível cidade galo­romana que foi mais tarde destruída pelos 
sarracenos. A mais importante de suas antigas construções é sua catedral, pois Lescar já foi 
sede de bispado. Num de seus mosaicos parcialmente destruídos percebe­se a figura de um 
homem dando uma larga passada à frente de um animal. A perna direita da figura, todavia, 
não tem o pé e o homem usa uma espécie de pilão para apoiar o joelho, formando uma 
primitiva e eficiente perna de madeira.

    ­ *Valores espirituais em pessoas deficientes*
    Em Roma, alguns anos antes de Cristo e mesmo à época da vida de Jesus, mas sem com 
Ele ter tido qualquer contato, dois sábios romanos chegaram a expressar com muita clareza o 
que pensavam de pessoas portadoras de deficiências de seu conhecimento. São eles Cícero e 
Seneca. 
    Cícero é bem explícito quanto a um problema incapacitante na vida de uma pessoa, ou 
seja, quanto à cegueira. Fala sobre a adequacidade de alguns homens cegos famosos, ou de 
seu conhecimento face à vida.
    "O velho Ápio, apesar de cego depois de longo tempo, exercia a mais elevada 
magistratura, sem faltar em nada a qualquer de seus deveres, públicos ou privados. A casa de 
C. Druso, o jurisconsulto, estava sempre cheia de clientes que, por terem sido pouco 
clarividentes em seus negócios, ali tomavam um cego como guia. Em minha infância, Cneo 
Aufídio, que havia sido pretor, não apenas dava seus pareceres no senado e ajudava seus 
amigos com conselhos, apesar de ter perdido a visão, mas também escrevia sobre história 
grega e era versado em literatura. Tive em minha casa por muito tempo o estóico Diodote. 
Depois que perdeu a visão, ele se aplicou mais do que nunca à filosofia, sem distrações 
outras a não ser tocar o alaúde à moda dos pitagoreanos. Liam para ele dia e noite; e, o que 
poderia parecer impossível sem a visão, continuou a ensinar geometria, demonstrando com 
clareza a seus alunos como traçar linhas. Diz­se que Asclepíades, filósofo, bastante 
conhecido entre os homens de Eritrícia, respondeu a alguém que lhe havia perguntado o que 
lhe incomodava mais com a perda da visão: ... "é que me falta um criado para me 
acompanhar" ("Tusculanae Disputationes de Cícero).
    Sêneca, o grande pensador e filósofo romano que nasceu no ano 4 a.C. e morreu em 65 
d.D., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus Cristo, escreveu muitas obras de grande 
interesse até nossos dias e dentre elas cumpre destacar, neste contexto, mais de 100 cartas ao 
seu amigo Lucílio. Numa delas ele analisa o problema das deficiências físicas de ordem mais 
grave e os valores espirituais existentes nas pessoas deficientes. Diz ele:
"Finalmente, se eu considerar nosso amigo Clarano, ele me parece belo e tão reto de corpo 
quanto de espírito. Um grande homem pode sair de um lar pequeno e uma grande alma pode 
ser encontrada num corpo pequeno e disforme; o que me faz crer que a natureza produz 
essas pessoas a fim de que se perceba que a virtude pode nascer em qualquer lugar" ... ... 
"Parece que Clarano existe expressamente para nos ensinar que a alma não é manchada por 
deformidades do corpo, mas que o corpo recebe certos brilhos pela beleza da alma" ("Lettrês 
à Lucilius", de Sêneca).
    Em outra de suas obras, Sêneca também comenta a respeito da importância de 
compreender os problemas que nos afetam, mesmo que sejam deficiências físicas sérias: 
"Existe alguma vantagem, diz você, em ser mandado para o exílio, em ver seus filhos cair na 
miséria, em enterrar sua mulher, em ser marcado pela calúnia, em ser mutilado?" ... ... "Se 
você imagina que, como remédio, deve­se às vezes amputar membros que não poderiam 
ficar unidos ao corpo sem causar sua destruição, você se deixará convencer que certos males 
são vantajosos para aqueles que os sofrem" ("De Providentia", de Sêneca).
    Eis alguns outros pensamentos desse sábio pensador romano:
    "Ninguém, em absoluto, me parece mais infeliz do que o homem ao qual nada de infeliz 
aconteceu jamais".
    "Ninguém conhece o que pode, sem ter­se provado antes".
    "O importante não é o que você sofre, mas como você sofre".

            CAPÍTULO TERCEIRO
            O CRISTIANISMO, O IMPÉRIO BIZANTINO E A IDADE MÉDIA FACE AS 
PESSOAS DEFICIENTES

    1. O Advento do Cristianismo

    Se analisarmos as circunstâncias que cercaram o aparecimento do Cristianismo no mundo, 
ficaremos muito admirados, pois foi precisamente quando o Império Romano apresentava­se 
a todas as nações como uma realidade imbatível e de sólidas raízes, com seus mais de sete 
séculos de lutas e muitas vitórias, e seus muito pomposos governantes desfrutando de muita 
autoridade, sempre garantida pela força de legiões bem treinadas e bem armadas, que um 
grupo de homens muito simples, sem cultura e de origem judaica, surgiu e colocou­se face à 
humanidade para iniciar uma substancial transformação que alteraria todo o curso da 
História do Mundo.
    Embora a própria origem da nova doutrina tivesse sido um dos principais fatores diretos 
de seu sucesso, ela não pode ser considerada como o único. Houve também fatores indiretos 
que deverão ser levados em conta, e um dos mais significativos foi a consagrada "Pax 
Romana": a paz garantida a vastíssimas e muito diversificadas regiões do mundo conhecido, 
coordenadas num imenso Império cujo poder central localizava­se em Roma. Essa paz que 
passou para a História não foi garantida apenas pelas armas muito superiores dos romanos e 
de seus "aliados", mas também por um aceitável sistema administrativo nas províncias e 
nações conquistadas e por boas estradas. E havia um outro fator ponderável: pelo fato de 
haver duas línguas básicas em quase todo o Império, ou seja, o latim e o grego. E não 
podemos nos esquecer do fator que talvez tenha sido dos mais relevantes àquela época, fator 
que de certa forma viabilizou inicialmente a divulgação do novo modo de ser e pensar 
"cristão", ou seja, a uniformidade de direitos garantidos a todos os seus habitantes, direitos 
esses que eram conseqüentes do esmero com que eram tratadas as leis em Roma.
    Esses fatores todos ­ por mais estranho e irônico que possa parecer apresentaram­se no 
início da vida cristã como agentes facilitadores. Mas, muito mais do que eles, convém 
ressaltar aqui o lamentável estado moral da sociedade romana como um todo ­ especialmente 
a mais favorecida ­ que, além dos desmandos quanto a usos e costumes, não chegava a atinar 
com o verdadeiro significado dos problemas que atormentavam continuamente certas 
camadas da população, tais como os escravos, os oprimidos, os servos e outros mais ­ enfim, 
todos aqueles que compunham a massa dos pobres do glorioso Império Romano.
    O conteúdo da doutrina cristã que era toda voltada para a caridade, ou seja, para o amor ao 
próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e compreensão do significado da 
pobreza, da simplicidade de vida e da humildade, conteúdo esse pregado por Jesus Cristo e 
divulgado com nuances cada vez mais convincentes, conquistou a grande horda dos 
desfavorecidos em primeiro lugar. No meio deles, aqueles que eram vítimas de doenças 
crônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais. Tudo isso deixou perplexos todos os 
que deles viviam despreocupados. Aos poucos, alguns começaram a posicionar­se 
favoravelmente a esse novo modo de ver o seu semelhante; outros mantiveram­se alienados 
como sempre; muitos reagiram ferozmente contra tudo o que se relacionava com cristãos ou 
sua doutrina. Nos primeiros tempos da Igreja Cristã houve um significativo impulso ao 
sentimento fraternal entre os cristãos, não importando em nada sua situação social ou mesmo 
sua nacionalidade, fosse ela romana, grega, egípcia, franca, hebréia ou de qualquer outra 
natureza. A minoria cristã foi aos poucos adquirindo mais e mais adeptos para se transformar 
em pouco mais de três séculos maioria absoluta, principalmente na Europa e no Oriente 
Médio.
    E houve, com a implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais justo 
posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a importância devida a cada 
criatura como um ser individual e criado por Deus, com um destino imortal ­ o que, sem 
dúvida, muito beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre colocadas de lado 
e menosprezadas na sociedade romana, tais como os portadores de deficiências físicas e 
mentais, antes considerados como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos em 
vidas passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente como seres que, em 
muitos casos, deveriam continuar sendo eliminados ao nascer, segundo as leis e costumes de 
Roma recomendavam há séculos.
    No entanto, a História nos conta que as conquistas do Cristianismo não aconteceram nem 
com facilidade nem com tranqüilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram desde os 
primeiros anos e mantiveram­se por três séculos.

    ­ *As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos*
    A nascente Igreja Cristã foi primeiramente desalojada da Sinagoga e depois perseguida 
pelos judeus devido às profundas divergências existentes, o que levou seus primeiros líderes 
e adeptos (muitos dos quais haviam conhecido Jesus em vida) a procurar montar sua própria 
organização, em vez de tentar inutilmente manter­se como parte da religião dos judeus, 
como talvez fosse a intenção inicial. O próprio Concílio de Jerusalém, citado nos Atos dos 
Apóstolos, estabeleceu as bases para transformar o Cristianismo incipiente em uma religião 
de caráter absolutamente internacional, universal. 
    Essa característica chamou imediatamente a atenção dos governantes romanos, pois o 
Império e seus mandatários, que respeitavam (ou ignoravam) as religiões e crenças locais ou 
nacionais dos povos conquistados, não aceitavam em hipótese alguma essa espécie de 
organização judaica que se instituía e que afirmava manter uma religião "não licenciada" 
pelas autoridades de Roma à busca de adeptos em qualquer das nações integrantes do 
Império. Foi dessa maneira que o Cristianismo começou a ser olhado pelas autoridades 
como movimento ilegal, tendo sido extremamente fácil descobrir aspectos "negativos" na 
audaciosa religião de um só Deus, que não apenas desprezava deuses sem conteúdo e 
"surdos­mudos", como afirmavam seus líderes, como também recusava­se a reconhecer a 
pretensa característica de divindade no imperador romano.
    Iniciaram as autoridades romanas a repressão violenta, para desencorajar sua expansão: as 
famosas perseguições aos cristãos. Foram elas decretadas por diversos imperadores 
romanos: Nero, Domiciano, Trajano, Marco Aurélio, Sétimo Severo, Maximino, Décio, 
Valeriano, Aureliano e Diocleciano (e sob seu nome, a feroz perseguição de Galério). 
Tiveram como conseqüência muitas mortes provocadas por sentenças injustas e por vezes 
muito cruéis, cuja intenção principal era desencorajar as afrontas dos cristãos aos usos, 
costumes e autoridades estabelecidos.
    A grande tragédia das violentas perseguições, seguidas de aprisionamento, condenação 
sumária ao suplício ou apenas perpétuas e mesmo à morte durou 129 anos. E durou tanto 
tempo com certos imperadores que seus juízes chegaram a ficar literalmente cansados de não 
obter resultados satisfatórios. Alguns desses imperadores, preocupados em manter uma certa 
imagem de clemência e de humanidade, resolveram mudar de tática: os juízes passaram a 
receber ordens para não mais condenar os cristãos à tortura e à morte, "por um ato de 
clemência do imperador"...
    Eusébio, bispo de Cesaréa, que viveu entre 267 e 340 e foi um religioso que gozava da 
mais absoluta confiança de Constantino I, o Grande, testemunha o seguinte ao falar dos 
cristãos perseguidos e condenados:
    "Ordenou­se que a partir de então vazassem nossos olhos e aleijassem uma de nossas 
pernas. Esta foi a humanidade e esse lhes pareceu um gênero brando de suplício contra nós. 
Dessa forma, por causa dessa brandura dos homens ímpios, de maneira alguma seria 
possível contarmos o número daqueles aos quais foi primeiramente extraído o olho direito e 
depois cauterizado com um ferro, ou daqueles aos quais foi estropiada (a musculatura) a 
barriga da perna esquerda com um ferro em brasa, sendo imediatamente após condenados às 
minas existentes na província, não tanto para trabalharem mas para serem atormentados" 
("História Eclesiástica", de Eusébio de Cesaréa).
    Ao comentar a questão das mutilações impostas aos cristãos, sob o ponto de vista do 
Código Penal Romano, Mommsen afirma que "na perseguição aos cristãos que teve lugar 
sob Diocleciano, deixava­se inicialmente a cada tribunal, se estivermos bem informados, a 
liberdade de agravar as penas como bem lhes parecesse, pela da mutilação corporal e 
finalmente o governo mandou adicionar à pena das minas, o vazamento do olho direito e a 
amputação do pé esquerdo" (" Le Droit Pénal Romain", de Mommsen ).
    De sua parte Allard nos diz, em seu pormenorizado estudo sobre a implantação do 
Cristianismo no Império Romano, o seguinte: "De 308 a 310, as pedreiras da Tebaida, as 
minas da Cilícia, da Palestina e do Chipre, viam chegar longas cadeias de cristãos, quase 
todos coxos e cegos" ("Le Christianisme et l'Empire Romain",de Allard).
    Por vezes os algozes desses muitos cristãos que estavam condenados às minas pelo resto 
de seus dias permitiam que se reunissem para orar e mesmo para formar pequenos grupos 
que foram sendo chamados de "igrejas". Depois, todavia, dependendo sempre dos tipos de 
homens encarregados de sua vigilância, bem como da produção das diversas minas, 
começou a ocorrer a dispersão violenta, sua transferência de mina para mina e finalmente a 
decapitação dos condenados enfermos e menos produtivos, incluindo sempre os portadores 
de deficiências sérias e limitadoras da capacidade de trabalho.

    ­ *Sétimo Severo, o sábio e firme imperador*
    Nascido em Leptis Magna, na África, e morto na Bretanha (hoje Inglaterra), Sétimo 
Severo foi imperador dos romanos de 193 a 211 d.C. Segundo os historiadores, desenvolveu 
um governo bastante firme. Uma séria mancha em seus dezoito anos de imperador foi uma 
acirrada e forte perseguição contra os cristãos.
    Já no final de sua vida, com 62 anos de idade, organizou uma campanha contra os 
caledônjos revoltados, levando consigo seus dois filhos e herdeiros, Marco Aurélio 
Antonino,que depois tornou­se imperador com o cognome de Caracala, e Lúcio Sétimo 
Geta, assassinado pelo próprio irmão em 212, após a morte do pai.
    Devido a atrozes dores provocadas pela gota em seus pés e pernas, Sétimo Severo não 
conseguia mais andar. No entanto, manteve­se sempre muito ativo, superando a dificuldade 
de movimentação de varias maneiras, levado de um lado para o outro pelos seus soldados ou 
escravos.
    É o historiador Lissner que nos conta sobre o grave problema físico desse grande 
imperador romano, informando: "Sofrendo atrozmente de gota, Sétimo Severo, durante a 
campanha da Inglaterra, fez­se transportar em liteira" ... "os soldados, compadecidos com os 
sofrimentos de Severo, quiseram proclamar Antonino imperador. Severo fez­se transportar 
ao tribunal, puniu implacavelmente os responsáveis por essa iniciativa inoportuna, exceto 
seu filho, e declarou: Sabeis agora que se governa com a cabeça e não com as pernas" ("Les 
Césars", de Lissner).

    ­ *"Praecepta Medica" e os males incapacitantes*
    Quando da morte de Sétimo Severo no ano 211 d.C., assumiu o poder seu filho 
cognominado Caracala (Marcus Aurelius Antoninus Bassianus ­ 188 a 217 d.C.). Para 
garantir­se no poder, eliminou primeiramente seu irmão Lúcio Sétimo Geta e, numa 
seqüência macabra, mandou matar mais de 20.000 homens importantes que considerava seus 
críticos e opositores.
    Dentre eles iremos encontrar o grande sábio Samônico (Quintus Severus Samonicus) que 
foi assassinado durante uma festa por ordem direta do imperador, no ano 212.
    Para compreendermos o significado de seu nivel de cultura, basta que saibamos o 
seguinte: Samônico tinha uma biblioteca com mais de 60.000 obras que continuamente 
consultava. Escreveu uma interessante farmacopéia em versos que chegou até nossos dias e 
intitulada "Praecepta Medica". Através dela passou para a posteridade receitas de muitos 
remédios e orientações quanto ao combate de certos males bem específicos. Neles vemos 
inseridos algumas doenças ou problemas que podem levar a deficiências físicas ou 
sensoriais, tais como a gota, a elefantíase, os males das articulações, a epilepsia, as doenças 
da visão e da audição e outros.
    Embora tenha sido escrita no início do século III d.C., a menos de dez anos após a morte 
de Cláudio Galeno, nota­se na obra de Samônico progressos muito pouco significativos na 
medicina. Há conceitos baseados apenas em crendices e há indicações de alguns preparados 
inócuos. Verifica­se, todavia, certa objetividade face a  problemas graves, tais como a gota, 
para a qual poucos remédios surtiam efeitos reais. Diz, então, o sábio Samônico: "Vários, 
portanto, são os remédios próprios para a cruel podagra, da qual o deus de Epidauros 
enumerou 30 espécies. Ele próprio afirmou que impor o repouso ao paciente será correto 
para pelo menos mitigar sua triste dor".
    É sobre a epilepsia que ele faz uma alegação pouco aceitável, mesmo para aquela época:... 
"o próprio Esculápio lembrava que as pessoas concebidas durante o tempo da lua (cheia) 
estarão sujeitas a ataques epiléticos".
    A respeito de sangramentos ou hemorragias por cortes profundos ocorridos em acidentes 
ou em campos de batalha, Samônico indica um preparado popular que devia ser muito 
utilizado ­ e com sucesso ­ por soldados e por civis sem qualquer distinção, e que já 
mencionamos anteriormente: "O esterco de cavalo, cozido com casca de ovo, é ainda um 
remédio de maravilhosa eficácia para estancar a saída de sangue" ("Praecepta Medica", de 
Sammonicus).
    
    ­ *Galério, imperador que morre com deficiência séria*
    No ano 311 falecia Galério (Caius Galerius Valerius Maximianus) imperador entre 293 e 
311 d.C., um dos integrantes da tetrarquia romana e dos mais cruéis perseguidores dos 
cristãos por um longo periodo de doze anos. Embora pareça irônico, foi ele o primeiro 
imperador que, ao final de sua vida, formalmente permitiu à religião cristã sair da 
clandestinidade em que vivia, por meio de um édito especial. No entanto, essa liberação só 
aconteceu devido a uma gravíssima moléstia que o atingira e que o havia incapacitado de 
andar no último ano de sua vida. O mal caracterizava­se por ulcerações muito sérias e que, 
apesar de serem tratadas com ferro em brasa ­ como era rotina ­ reabriam sempre, levando 
Galério a perder muito sangue. Enfraquecido ao extremo, e sem mais poder mover suas 
pernas devido à deformação de seus pés, o cruel imperador mandou vir médicos de todos os 
recantos de seu Império, sem qualquer tipo de resultado. Chegou até a recorrer a Apolo e a 
Esculápio, mas seu problema não só continuou como piorou. As feridas chegaram a atingir 
seus intestinos.
    Galério, muito irritado com a falta de bons resultados, mandou executar diversos médicos 
que não haviam conseguido minorar seus males ou que não haviam suportado o mau cheiro 
de suas úlceras. No entanto, um deles, que era cristão, vendo­se em verdadeiro perigo de 
vida ao tratar o imperador, usou de absoluta sinceridade. Disse­lhe que ele se enganava em 
esperar que os homens pudessem livrá­lo de um mal que lhe fora mandado por Deus. E 
lembrou Galério sobre os muitos anos de perseguição feroz dos cristãos, indicando com isso 
onde poderia estar a solução. Acreditando em tudo o que lhe sugeriam, resolveu o imperador 
desesperado publicar um édito imperial de caráter geral, pelo qual liberava a religião cristã. 
Mas colocou algumas restrições aos cristãos: "... considerando nossa mui doce clemência e o 
costume que temos sempre observado de perdoar a todos os homens, cremos dever dessa 
forma estender nossa ampla indulgência sobre eles (os cristãos) de tal maneira que possam 
ser cristãos como antes, e restabelecer seus lugares de reunião, na condição de que não 
façam nada contra as leis; de resto, faremos cientes os juízes, por outra carta, tudo o que 
deverão observar. Portanto, de acordo com esta graça que nós lhes fazemos, eles serão 
obrigados a rezar ao seu Deus por
nossa saúde, pela segurança da república e deles mesmos, a fim de que a república prospere 
de todos os lados, e que eles possam viver seguramente em suas casas" (Citação de Santo 
Eusébio, apud Rohrbacher).
    Galério morreu pouco depois da divulgação de seu decreto em todo o Império Romano, 
no qual já haviam sido iniciadas as providências concretas para não mais perseguir os 
cristãos e para libertar os que estavam presos e condenados à morte ou ao suplício.
    Sua grave enfermidade e sua morte trágica foram consideradas por todos os cristãos como 
um verdadeiro castigo de Deus.

    ­ *Mutilações em cristãos: a língua de São Romão*
    Conforme nos relata o historiador Rohrbacher, a crueldade dos juízes e das mais altas 
autoridades nas diversas Províncias do Império Romano era por vezes incompreensível e 
assustadora. E as decisões quanto à imposição de torturas eram sumárias. Para uma 
infinidade a morte foi o destino imediato. Para outros o severo castigo deixaria as marcas 
impostas pelo imperador ou em seu nome. Mutilações ocorriam em muitos casos, conforme 
indicamos antes.
    Durante a perseguição conhecida como de Diocleciano, pelo ano 303 aproximadamente, 
um corajoso diácono da igreja de Cesária, na Palestina, chegou a Antióquia e interpelou um 
juiz chamado Asclepíades, que estava condenando os cristãos a diversos tipos de tortura, 
simplesmente por não quererem se curvar ou reverenciar o imperador Diocleciano como 
divino. Diante do desafio público, o juiz mandou aprisioná­lo e torturá­lo. No entanto, 
durante as torturas o bravo diácono não deixava de reprovar o que estava acontecendo, 
condenando em altos brados a vaidade da idolatria e ressaltando a excelência do 
Cristianismo.
    Devido à óbvia inconveniência da palavra desabrida daquele cristão, conhecido como 
Romão, Asclepíades mandou amputar sua língua. Para tanto, foi chamado um médico ali 
presente, que também era cristão, mas que não havia suportado o martírio. Esse médico, 
Ariston, usou instrumentos próprios para essa operação e guardou consigo a língua 
decepada, como uma espécie de relíquia.
    O mártir, mandado de volta à prisão, foi barrado por um soldado que perguntou seu nome. 
E ele respondeu com clareza, apesar da língua amputada.
    O juíz e o próprio Diocleciano, presente em Antióquia, suspeitaram do médico e 
mandaram­no chamar. Ariston mostrou a língua decepada e disse­lhes que Romão era um 
homem protegido por Deus.
Diocleciano passou a temer tanto a influência desse loquaz cristão aprisionado que mandou 
colocá­lo com os pés presos ao chão por argolas de ferro, em sua própria cela. E assim 
mesmo, pés presos ao chão, foi enforcado no mesmo dia em que Diocleciano celebrava a 
festa do vigésimo aniversário de seu Império, ocasião em que mandou soltar muitos 
prisioneiros, inclusive os detestados cristãos.
    O castigo infligido a Romão é um pequeno exemplo das muitas mutilações de que foram 
vítimas, no Império Romano, os criminosos ­ dentre os quais os cristãos estiveram inseridos 
por longo tempo.

    ­ *Alterações substanciais provocadas pelo Cristianismo*
    O Cristianismo foi muito relevante na mudança da mentalidade imperante no século IV, 
pois condenava abertamente muito do que o sistema vigente aprovava, como a libertinagem 
das pessoas solteiras, a perversão do casamento, a morte de crianças não desejadas pelos 
pais devido a deformações, dentre muitos.
    Foi o imperador Constantino que, em 315, editou uma lei que bem demonstra a influência 
dos princípios defendidos pelos cristãos de respeito à vida. Essa lei considerava os costumes 
arraigados ­ embora não generalizados ­ de mais de cinco séculos, prevalecentes em Roma e 
em Esparta principalmente, que não só permitiam como também exigiam que o pai de 
família, senhor absoluto de tudo e de todos no lar, fizesse morrer o recém­nascido que ele 
não queria que sobrevivesse, devido a defeitos ou a mal­formações congênitas. Constantino 
taxou esses costumes de "parricídio" e tomou providências para que o Estado colaborasse 
para a alimentação e vestuário dos filhos recém­nascidos de casais mais pobres. Exigiu que 
essa nova lei fosse publicada em todas as cidades da Itália e da Grécia, e que fosse em todas 
as partes gravada em bronze para, dessa forma, tornar­se eterna.

    ­ *Um bispo com deficiência: Castigo de Deus?*
    Há fatos narrados por historiadores da Igreja que falam sobre deficiências físicas, 
relacionando­as com manifestações superiores, indicando por vezes castigo de Deus por 
faltas cometidas. Um desses fatos está inserido na vida de São Miles, bispo de Susa.
    Segundo a história, havia um bispo chamado Papas, cujo temperamento, arrogância e 
orgulho haviam causado sérios problemas ao clero a ele subordinado, levando a verdadeiro 
cisma na Igreja da Selêucia e de Ctésiphon. Diante da seriedade do problema, os bispos 
reuniram­se num sínodo no ano 314. Ocorreram discussões apaixonadas, principalmente 
entre São Miles e Papas.
    Procurando descobrir a causa do ódio com que Papas agia para com seus sacerdotes, 
Miles perguntou se ele afinal considerava­se um Deus. No calor das discussões Papas 
respondeu muito irritado: "Insensato! Tu queres me ensinar coisas como se eu não as 
conhecesse?" Tomando o livro dos Evangelhos que trazia consigo, Miles colocou­o sobre a 
mesa dos debates e lhe disse: "Se menosprezas aprender coisas de minha parte, por eu ser 
um mortal, não desdenhe aprendê­las do Evangelho do Senhor que aqui está" ... Papas não 
conseguiu conter­se mais, pois tomou o livro entre as maos e olhando­o ferozmente gritou: 
"Fala, Evangelho, fala!" ...
    Miles, assustado e ao mesmo tempo chocado com aquela atitude questionadora, tirou­lhe 
o Evangelho das mãos, beijou­o com respeito e aproximou­o dos olhos. Em seguida, num 
tom profético e inspirado disse ao bispo irreverente: "Já que em teu orgulho ousaste falar 
dessa maneira contra as palavras de vida do Senhor, eis que seu anjo está pronto para secar 
metade de teu corpo para inspirar o terror a todos; portanto, não expirarás: a vida ser­te­a 
conservada como um milagre de punição".
    No mesmo instante Papas sentiu a metade de seu corpo sem movimento e sem vida. 
Tombou sobre um lado e assim permaneceu. Viveu assim por mais doze anos, até sua morte 
no ano 326.

    ­ *Dídimo, teólogo cego: diretor da Escola de Alexandria*
    Dídimo perdeu sua visão aos 4 ou 5 anos de idade, quando começava a aprender a ler. No 
entanto, esse problema não diminuiu sua vontade de saber. Pelo contrário, parece que até a 
inflamou. Gravou o alfabeto em madeira e depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, as 
palavras e depois as frases inteiras. Seu ardor pelo estudo não o fez parar nesse ponto de 
conquista. Tomava providências para ouvir professores célebres, quando já era moço, e 
conseguiu ajuda de pessoas que se prontificavam a ler para ele, a fim de tomar conhecimento 
dos melhores livros. Quando seus ledores, cansados, adormeciam, ele meditava muito sobre 
o que acabara de ouvir e assim gravava o assunto em sua memória.
    Aprendeu as regras de línguagem e da gramática, os mais belos trechos dos poetas e dos 
oradores, e também noções de retórica. Tornou­se um ótimo conhecedor das letras sagradas 
e de assuntos humanos, das Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, que 
conseguia explicar, trecho por trecho, das mais variadas maneiras. Dominava a dogmática da 
Igreja Católica, e sobre os dogmas discutia com precisão e muita propriedade. Conhecia a 
filosofia de Platão e de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as diferentes 
opiniões dos filósofos.
    Quando chegou a Alexandria, atraiu muito a atenção e recebia muitas visitas de pessoas 
que queriam ouvi­lo. Tinha amigos importantes, dentre os quais cumpre citar Santo 
Atanásio, que acabou indicando seu nome para Diretor da Escola de Alexandria. Era 
estimado e respeitado pelos mais santos monges e eremitas do Egito.
    Recebeu um dia a visita de Santo Antão ­ talvez o mais famoso dos eremitas ­ que lhe 
perguntou se a cegueira o incomodava. Dídimo teve vergonha de responder e de confessar 
sua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta uma segunda vez, e à falta da resposta 
perguntou uma terceira. Dídimo confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava. 
Segundo seus biógrafos, Santo Antão lhe disse nessa oportunidade: "Admiro­me muito que 
um homem sábio como voce se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e as moscas 
possuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os apóstolos tinham. É mais 
importante preocupar­se com a alma do que com esses olhos dos quais um só olhar poderá 
perder o homem eternamente".
    Dídimo foi Diretor da Escola de Alexandria do ano 345 até 395, ano anterior à sua morte. 
Dentre seus alunos mais renomados podem ser citados São Jerônimo, Rufino e Paládio. 
Dídimo escreveu diversos estudos e deles os mais famosos são "Sobre o Espírito Santo" e 
"Sobre a Trindade".

    ­ *Os primeiros hospitais cristãos e as pessoas deficientes*
    Sob a influência da religião cristã e graças aos seus preceitos de mansidão, de caridade e 
de respeito a todos os semelhantes (motivos bastante sérios para dedicação a uma 
beneficência ativa e voltada à população mais pobre) começou logo a ocorrer o surgimento 
de hospitais em algumas localidades, marcados pela finalidade expressa de abrigar viajantes 
enfermos de um lado, e doentes agudos ou crônicos (e dentre estes muitos casos de pessoas 
deficientes) de outro lado.
    Sozomen (* Sozomen foi um historiador da Igreja Católica que viveu no século V. Uma 
das suas obras mais conhecidas é a “História Eclesiástica) relata­nos a fundação do chamado 
"Hospital de Edessa", na Síria, cidade hoje conhecida como Urfa. Naquele ano (370), 
assolada por uma terrível onda de carestia de víveres e de males decorrentes, Edessa recebeu 
a intempestiva visita do eremita Efraim, que havia saído de sua reclusão no deserto para 
censurar todos os cidadãos ricos da cidade devido à sua falta de caridade face à situação. Os 
pobres morriam sem receber ajuda, e as riquezas e comodidades dos mais poderosos 
continuavam intactas. Muito aborrecido com essa falta de envolvimento cristão, Efraim lhes 
disse: "Essa riqueza que acumulais com tanto cuidado, servirá apenas para condenar­vos, 
pois estais perdendo vossas almas, que valem mais do que todos os tesouros da terra"...
    Assustados e persuadidos por essas contundentes palavras do anacoreta, os ricos cristãos 
de Edessa argumentaram que não tinham podido até aquele momento decidir qual deveria 
ser a pessoa honesta à qual poderiam confiar dinheiro para uma justa distribuição ou uso, 
pois as que conheciam eram pouco honestas e confiáveis e seriam capazes de desviar o 
montante coletado dos seus fins originais.
    Efraim não duvidou e lançou a pergunta: "E qual é a vossa opinião a meu respeito?" Os 
apaniguados cidadãos responderam que ele certamente era um homem honesto e a ele 
entregariam de bom grado as contribuições para uma aplicação justa. Efetivada a coleta, 
recebeu Efraim um significativo volume de dinheiro, com o qual encomendou 
imediatamente trezentas camas que foram instaladas no vestíbulo de um edifício público 
cedido pelos poderes locais. Ali começou a ser dada atenção a todos os que sofriam de 
doenças graves conseqüentes à falta de gêneros ou à alimentação deficiente (Apud 
"Encyclopaedia of Religion and Ethics").
    Há historiadores da Igreja Católica, entretanto, que afirmam ter sido o papa Anacleto, que 
reinou entre 76 e 88 como Bispo de Roma, o primeiro a organizar um abrigo para as vítimas 
de uma violenta peste que assolava toda a região, vítimas da carestia de víveres e também de 
vários outros males, numa ala de sua propriedade. Isso aconteceu em 76 e deve ter sido o 
primeiro exemplo de um hospital cristão.
    Segundo alguns outros autores, todavia, o primeiro hospital cristão de que se tem notícia 
foi aquele criado por São Basílio, o Grande (329 a 379), célebre autoridade da Igreja Cristã, 
na cidade de Cesaréa, na Capadócia, hoje Turquia. Esse hospital teria sido construído às 
portas de Cesaréa, no ano 375, consistindo de vários edifícios separados. Era conhecido pela 
genérica e famosa designação de "xenodóchium", termo muito utilizado, tanto naquelas 
épocas quanto durante toda a Idade Média, e que acabou sendo aceito para designar "abrigo 
para doentes", quando na verdade pela sua derivação do grego significa "abrigo para 
estrangeiros" ("xenós" para estrangeiro e "dócheion" para abrigo e proteção).
    Num trabalho escrito no século passado Broglie apresenta a seguinte descrição desse 
verdadeiro conjunto hospitalar: "Às portas de Cesaréa, sobre um terreno antes deserto, 
elevava­se como por encantamento toda uma comunidade edificada pela esmola e habitada 
pela caridade. Era a hospitalidade sob todas as formas, dando­se a essa palavra toda a 
acepção que lhe fez tomar a  língua cristã, ou seja, considerando todo aflito em geral como 
hóspede de Deus e da Igreja. Ali havia um lugar de repouso para o viajante, um abrigo para 
o velho, um hospital para o doente, com instalações reservadas para males humilhantes que 
arrastam consigo o contágio e a vergonha. E eram essas instalações que São Basílio visitava 
mais vezes, lançando­se espontaneamente, ele mesmo, aos braços dos leprosos. Ao centro 
desses edifícios elevava­se uma vasta igreja, ornamentada com todos os esplendores do culto 
triunfante e servida por uma comunidade de monges, dos quais o próprio São Basílio era o 
superior. Nas imediações todas movia­se uma multidão de auxiliares, de enfermeiros, de 
fornecedores, de carroceiros, cuidando das coisas necessárias à vida. Era o próprio 
movimento de uma cidade populosa. E, no meio dessa população animada, São Basílio 
passava a toda hora, inspecionando tudo, falando com todos, edificando a todos pelo seu 
zelo. Um século depois, todo esse lugar de Cesaréa ficou conhecido como "Basilíada" 
("L'Eglise et l'Empire Romain au IVe Siècle", de Broglie).
    Naqueles três primeiros séculos da Igreja Cristã os doentes de famílias mais abastadas 
continuavam a ser tratados em suas próprias residências, da mesma forma como sucederia 
por séculos mais.

    ­ *Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade*
    Na Roma do século IV d.C., no seio da famosa, multissecular e muito abastada família 
patrícia dos Fábios, uma notável mulher de nome Fabíola dedicou toda a sua fortuna e todo o 
seu tempo e energias para organizar o que é reconhecido como o primeiro hospital de 
caridade do Império Romano.
    Lá ela recebia pessoas com os mais severos males, conforme poderá ser constatado em um 
documento daquela época, ou seja, uma carta de São Jerônimo (347 a 420) a um cristão de 
Roma, Oceanus. A famosa e muito inspiradora carta, que procurava incentivar a comunidade 
cristã local a dedicar­se cada vez mais ao próximo dentro dos princípios básicos da caridade 
cristã, é uma análise sintética da vida dessa mulher muito dedicada, que nascera fora do 
Cristianismo e a ele se convertera quando já era casada pela segunda vez.
    Num certo ponto da missiva São Jeronimo afirma: "Todo o seu patrimônio, que era 
considerável e proporcional à sua linhagem, ela distribuiu e alienou, destinando o dinheiro 
aos mais necessitados dos pobres; e logo em seguida ela fundou um hospital para nele 
abrigar os doentes abandonados nas ruas e mitigar os sofrimentos dos infelizes acometidos 
por doenças ou consumidos pela fome".
    Ao analisarmos os termos utilizados pelo famoso santo da Igreja Católica, ao escrever 
essa carta, não podemos nos esquecer de que aproximadamente à mesma época surgira a 
primeira tentativa bem sucedida de cristãos na aplicação prática dos preceitos da caridade, 
criando em Cesaréa, como vimos, o que era conhecido pelo nome de "xenodóchium", ou 
seja, um grande e bem organizado abrigo para peregrinos e estrangeiros doentes ou com 
problemas, que recebia também doentes e miseráveis da própria localidade e seus arredores. 
Verificamos que no texto original latino São Jerônimo utilizou estas palavras: ... "et prima 
omnium "nosokómeion" instituit" ( e antes de mais nada criou um "nosokomeion"). O uso 
do termo grego, com caracteres gregos em sua carta original, indica­nos a inexistência de um 
termo próprio em latim para o novo tipo de organização de caridade na qual Fabíola e seus 
colaboradores cuidavam apenas de doentes, recebendo também pessoas deficientes, como 
veremos a seguir.
    São Jerônimo fala expressamente delas em algumas considerações adicionais que faz a 
Oceanus: "Mencionarei agora algumas calamidades humanas, tais como, nariz decepado, 
olhos vazados, pés mutilados, mãos enfraquecidas, ventrês tumefeitos, pernas enfraquecidas, 
pés inchados?" Na verdade, esses eram os tipos de doentes e de pessoas deficientes que 
Fabíola por vezes chegava até a carregar em seus braços para levar ao hospital.
    Ressaltemos que o esforço de Fabíola não foi isolado, pois ao que tudo indica, o 
empreendimento foi concretizado e fortificado com o concurso de outras fontes de dedicação 
pessoal e financeira, como a de Pammachius, por exemplo.
    A ele São Jerônimo escrevera uma carta, mas quatro anos antes daquela outra a respeito 
de Fabíola, com o expresso intuito de consolar esse importante cristão pela morte de sua 
esposa Paulina.
    E é nessa carta que o leitor poderá encontrar esta pergunta: "Ouvi dizer que voce construiu 
um hospital no porto romano?" E se for analisar de perto os originais do documento famoso, 
perceberá que São Jerônimo, ainda pouco informado sobre todo o empreendimento, no texto 
latino usou a palavra grega geralmente adotada para tal fim: "xenodochium".
    Fabíola e Pammachius, segundo a grande autoridade da Igreja, "uniram seus bens, 
associaram suas vontades, a fim de aumentar pela sábia inteligência o que a rivalidade 
poderia ter dissipado. E conforme foi dito foi feito. Foi construído um hospital e a ele a 
multidão acorreu e não há mais aflições em Jacó nem dor em Israel" ... "O mundo todo ouviu 
quase ao mesmo tempo que um hospital havia sido construído no porto romano. A Bretanha 
ficou sabendo no verão; o Egito e Parthus souberam na primavera".
    As palavras de São Jerônimo deixam­nos a impressão clara de que verdadeiramente 
algumas riquezas existentes nos primeiros séculos do Cristianismo haviam­se voltado à 
causa dos mais miseráveis dos pobres, ou seja, aos doentes crônicos e também aos 
portadores de deficiências físicas graves.
    Repare o leitor neste outro trecho que se relaciona à faustosa vila da família de 
Pammachius, bem como ao novo hospital, em que as deficiências são expressamente citadas: 
"Aquele cego que estendia a mão e que muitas vezes pedia esmola a quem não o podia 
socorrer, é hoje herdeiro de Paulina e co­herdeiro de Pammachius. Aquele homem 
deformado e forçado a arrastar seu corpo, a mão de uma jovem ampara. Aquelas portas que 
vomitavam uma multidão de cortesãos, são hoje assediadas pelos pobres. Um é hidrópico 
que traz a morte dentro de si; outro não tem língua e é mudo, sem a faculdade de pedir 
esmolas, mas que as solicita de maneira mais tocante por não ter língua para a pedir. Aqui, 
um defeituoso de nascimento pede esmola, mas não para si".
    Essas precisas informações e os comentários que a elas estão relacionados poderão ser 
encontrados na íntegra no volume intitulado "Lettrês Choisies de Saint Jérome", destacando­
se as cartas a Oceanus, sobre Fabíola, e a Pammachius, sobre Paulina.

    ­ *A hospitalidade cristã e o papel dos bispos*
    Para melhor compreendermos a prioridade que a Igreja Cristã deu às atividades que 
garantiram a assistência a pessoas pobres e marginalizadas nos seus primeiros séculos de 
existência, é necessário lembrar que ela colocava a hospitalidade como a virtude mais 
importante dos bispos. Ao tentar convencê­los da necessidade de uma atuação prática, o 
concílio da Calcedônia (em 451) adotou a diretriz com ênfase e em seu cânone oitavo deu 
aos bispos a responsabilidade de organizar e prestar assistência aos pobres e aos enfermos.
    Os primeiros indícios de regulamentação dessa assistência surgiram em alguns concílios 
da Igreja Gaulesa. O primeiro desses concílios (Orléans, 511) contou com a autoridade 
interessada de Childebert, filho de Clóvis e Clotilde. O cânone décimo sexto dizia: "O bispo 
proverá alimentos e roupas, dentro da possibilidade de suas posses, para o pobre e para o 
enfermo que devido a seus males estejam impossibilitados de trabalhar por sua conta".
    O papel dos bispos no atendimento aos mais carentes da população foi aos poucos sendo 
delineado, visando uma atuação prática. Tanto isso é verdadeiro que já no 5º concílio da 
Igreja Gaulesa (ano 549), o cânone vigésimo primeiro determinava: "Os bispos devem 
cuidar especialmente dos leprosos, dando­lhes comida e roupas" (Apud "Encyclopaedia of 
Religion and Ethics").

    ­ *Notícias de organizações para pessoas deficientes*
    Como resultado prático de muitas recomendações conciliares a História da Humanidade 
nos mostra que várias organizações de caridade ou de assistência a pobres, a deficientes 
abandonados e a doentes graves ou crônicos, conhecidas popularmente e impropriamente 
como "xenodochium", foram estabelecidas já a partir do século V por influência direta da 
Igreja. No ano 542, convencido das prementes necessidades dos pobres impossibilitados de 
se cuidar, o rei franco Childebert construiu um hospital de caridade na cidade de Lyon, com 
recursos e instalações que de alguma forma se assemelhavam àquela primeira e bem 
sucedida experiência de Cesaréa, iniciada quase dois séculos antes. Foi levado a isso pela 
pressão da Igreja Gaulesa e de um modo especial do bispo de Lyon. Todos os envolvidos ­  
rei e bispos ­ viam­se quase que forçados pelas decisões conciliares (na verdade a Igreja 
havia já organizado os concílios de Nicéa (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e 
Calcedônia (451), considerados como dos mais importantes) a dar abrigo e ajuda aos pobres 
e àqueles doentes que eram abandonados pelos seus parentes. Esta construção foi 
reconhecida e confirmada no concílio de Orléans (549), através de seu cânone décimo 
quinto.

    ­ *A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos*
    Segundo alguns historiadores da Igreja Católica, já nos chamados "Canones 
Apostolorum", cuja antigüidade todos desconhecem e que, no entanto, foram elaborados no 
correr dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para 
aqueles candidatos que tinham certas mutilações. Para a Igreja surgiam problemas sérios, 
durante esses três ou quatro primeiros séculos, com mutilações de ordem sexual 
principalmente. Na verdade, mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretexto 
para "fuga do pecado", seja em conseqüência de castigos impostos pelos tiranos daqueles 
distantes séculos. Tentando disciplinar a questão e esclarecer os bispos quanto à seriedade 
do problema, os "Cânones Apostolorum", do cânone vigésimo primeiro ao vigésimo quarto, 
indicam o seguinte: "Que não se coloque dificuldade em sagrar como bispo, se o candidato 
for considerado capaz, aquele que for eunuco por natureza, ou que se tornou eunuco por 
malícia dos homens ou por crueldade dos tiranos" ... Logo a seguir o cânone vigésimo 
segundo declara como "irregulares" os casos de sacerdotes que se automutilavam, porque 
"eles são homicidas de si mesmos". Para casos de sacerdotes que tomavam essas medidas, o 
cânone vigésimo terceiro castiga com sua deposição, seu afastamento das funções 
sacerdotais. Finalmente o cânone vigésimo quarto "priva da comunhão pelo período de três 
anos o leigo que fez a automutilação sexual" ("Les Conciles Généraux et Particuliers", de 
Guérin).
    O Padre Louis Thomassin (1619 a 1695), em sua obra "Ancienne et Nouvelle Discipline 
de l'Église" analisa em muitos pormenores diversas situações relacionadas aos bloqueios que 
as deficiências físicas ou sensoriais significavam para um homem ser aceito como sacerdote 
da Igreja Católica desde o início de sua criação até o final do século V. Segundo esse famoso 
autor, um dos primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi Hilário, que 
reinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias palavras do papa, na conhecida Epistola 
II, "propisciendum ne duo simul sint in Ecclesia sacerdotes: nec literarum ignarus, aut carens 
aliqua parte membrorum". Ou seja, na Igreja Católica não deveria haver dois tipos de 
sacerdotes: nem o analfabeto, nem o que não tivesse alguma parte de seus membros (Apud 
Thomassin).
    A obra de Louis Thomassin sobre a disciplina na Igreja, que foi escrita e publicada entre 
os anos de 1678 e 1679, foi revista e ampliada por M.André, um também famoso doutor em 
direito canônico, que a publicou em sete volumes em 1865. Encontraremos, portanto, mais 
adiante neste trabalho, dados mais atualizados sobre o assunto. 
    Mas ainda no século V houve posicionamentos de dois concílios, confirmando inclusive a 
posição do papa Hilário, mais tarde canonizado pela Igreja. Assim, é de se ressaltar que a 
posição dos concílios nunca foi dissonante. Vejamos os dois acima citados: Primeiramente o 
concílio realizado em Angers, em 453, estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medida 
contra sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito generalizados no seio da 
população, acostumada com barbáries sem conta: "São proibidas as violências e as 
mutilações de membros". Já o concílio realizado em Roma no ano 465, reunido sob a 
autoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação cinco cânones. Um deles, o de número 
três, diz com clareza: "Deve­se também excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ou 
que deceparam algum membro" (Apud Guérin).
    Gelásio I, papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de Hilário e do 
Concílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes com deficiências, ao afirmar em sua carta 
ao bispo de Lucânia que candidatos ao sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos nem 
"ter alguma parte do corpo incompleta". Esse mesmo papa afirmava ainda, muito convicto 
dessas justificativas para essa atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou problemas 
físicos, que "se trata de uma antiga tradição e um costume observado desde muito tempo em 
Roma; mais do que isso, que se trata de um desses louváveis costumes que a Igreja 
emprestou da Sinagoga" (Apud Thomassin).
    Encontramos ocasionalmente pequenos relatos relacionados ao problema aqui analisado. 
Existem histórias até de automutilação, destinada a caracterizar uma irregularidade, como no 
caso de Amônio, um santo eremita que ao se perceber praticamente "ameaçado" pelo povo 
de ser elevado à dignidade do bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma de suas 
orelhas. Todavia, as pessoas que o haviam procurado na tentativa de fazê­lo bispo, ficaram 
sabendo posteriormente que aquela mutilação seria apenas válida dentro da religião judáica e 
não para os cristãos. Assim sendo, voltaram a insistir com o mesmo propósito. Tiveram, 
todavia, uma surpreendente decepção, pois o eremita, muito resoluto em sua posição de 
humildade, de faca em punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles, conseguindo 
dessa forma dissuadi­los. Caso tivesse efetivado sua ameaça, Amônio estaria incapacitado 
inclusive para ser sacerdote.
    A Igreja Católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar pelos mais 
diversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam­se para benefício maior da Igreja e 
não por considerar as pessoas deficientes como indignas ou manchadas pelo pecado. 
Ressalte­se também que quando as deficiências ou males incapacitantes ocorriam "após a 
ordenação sacerdotal", a Igreja usava do máximo de benevolência e em geral não impedia o 
sacerdote de suas funções básicas.

    ­ *Papel dos mosteiros na assistência aos miseráveis*
    Conforme verificamos anteriormente, com o advento e o fortalecimento do Cristianismo, 
um grande impulso foi dado às diversas formas de assistência aos necessitados, por ser a 
caridade a própria essência da nova religião. Praticamente durante a Idade Média inteira, 
somando aos esforços dos bispos, já engajados por determinações conciliares, os mosteiros 
constituiram­se numa nova força impulsionadora da assistência social como pura expressão 
da caridade.
    De outra parte, responsáveis pela vida e bem­estar de seus súditos, alguns senhores 
feudais sentiram­se também obrigados a cuidar dos menos afortunados, doentes ou 
deficientes físicos e mentais, de bom ou mau grado, desde que dentro de seu feudo. No 
entanto, espalhados por toda a Europa e Oriente Médio, os mosteiros eram de fato os únicos 
lugares que possuiam alojamentos destinados a recolher enfermos, utilizando as instalações 
dos chamados "xenodóchium" ou "nosocomium", abrigando também eventualmente 
mendigos aos quais distribuiam a alimentação disponível, roupa e algum dinheiro.
    

    2. O Império Bizantino e as deficiências

    A História da Humanidade, conforme nos é transmitida nos países do mundo ocidental, 
minimiza e chega mesmo a deturpar a importância eventual do Império Bizantino, isto é, do 
Império Romano do Leste, que durou nada menos do que onze séculos. Instalado no ano de 
330 d.C. por Constantino I, o Grande (274 a 337), ocasião em que inaugurou a nova capital 
imperial com o nome de Nova Roma e para lá transferiu o governo, caiu apenas em 1453, 
ano em que Constantinopla tornou­se uma possessão dos turcos otomanos liderados por 
Maomé II.
    Foram onze séculos pujantes, intensamente vividos na mesma época em que a Europa 
mergulhava numa etapa obscura e problemática da História que foi a Idade Média. Durante 
vários desses onze séculos foi uma notável unidade política que manteve muito viva a 
cultura clássica de gregos e de romanos ­ e durante toda a sua duração estabeleceu com 
clareza sua característica fundamentalmente cristã.
    Neste trabalho sobre deficiências e pessoas deficientes o Império Bizantino tem um lugar 
especial, uma vez que diversos de seus imperadores destacaram­se em sua história não 
apenas por suas lutas, conquistas e intransigente defesa do Cristianismo, como também pela 
severidade dos castigos e penalidades que infligiam, apoiados ou não nas leis. Marca 
registrada da realidade bizantina foi, de fato, a existência legal de punições de mutilação de 
membros ou do vazamento dos olhos das muitas vítimas ­ culpadas ou não ­ que caíram nas 
mãos da justiça.
    Essas punições foram generalizadas e atingiram tanto a nobres senhores quanto a 
membros das camadas mais pobres da população, incluindo integrantes das forças armadas.
    Não nos é difícil imaginar a extensão dos problemas das pessoas portadoras de 
deficiências pelas causas usuais, quando a elas eram acrescentadas todas aquelas outras 
cegas e amputadas devido a penalidades impostas pela lei ou pelo poder absoluto dos 
imperadores.

    ­ *Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra"*
    Capital do Império Bizantino, a maravilhosa cidade das muitas mansões senhoriais, dos 
inumeráveis palácios e das incontáveis cúpulas douradas, localizada em ponto privilegiado e 
banhada pelas águas azuis do Chifre Dourado, do Bósforo e do mar de Mármara, toda 
cercada por aproximadamente 20 quilômetros de muralhas inexpugnáveis, Constantinopla 
foi por muitos séculos considerada pelos seus habitantes como o verdadeiro "Reino de Deus 
na Terra". Os bizantinos aceitavam e defendiam o seu império como "sui generis", pois 
havia sido estabelecido por ordem direta de Deus e questionar sua existência ou seu sistema 
de governo estava totalmente fora de cogitação.
    Brilhou como estrela solitária no mundo durante toda a Idade Média e significou para 
muitos potentados um sonho impossível. Além de tudo, Constantinopla era um verdadeiro 
bastião fortificado da Cristandade que desafiou durante todo um milênio o mundo bárbaro 
após a queda de Roma. Séculos após séculos, mongóis, tártaros, búlgaros, árabes, mas 
principalmente os turcos, atacaram­na, maravilhados pelo que conseguiam ver por cima das 
muralhas: suas cúpulas douradas e os seus palácios. E dentro desses palácios e igrejas as 
inimagináveis riquezas.
    No entanto, a vida de Constantinopla era enclausurada nos tempos de guerra, que foram 
muitos. Sua população, constituída de gregos, latinos e asiáticos (todos reconhecendo­se 
como "romanos") não conseguia imaginar o mundo além do horizonte das muralhas. Nesse 
universo limitado seu imperador sempre foi considerado como o representante de Jesus 
Cristo e sua figura autocrática era o próprio coração e a força propulsora de toda sua 
administração, localizada e concentrada no palácio imperial.

    ­ *A pompa e a circunstância na corte bizantina*
    Não é de admirar que as autoridades existentes no palácio do imperador e que com ele 
mantinham contatos próximos tinham permanente e inquestionável importância. Mas elas 
todas respeitavam ao preço da própria vida uma linha hierárquica muito rígida e garantida 
por leis de muita severidade.
    Numa clara demonstração da importância dessas autoridades, havia na corte bizantina 
muitos títulos, sendo que alguns deles eram honoríficos e não estavam ligados a funções 
específicas; correspondiam a verdadeiras sinecuras. Eram outorgados através de cerimônias 
faustosas durante as quais o imperador entregava títulos, diplomas e ensígnias; títulos 
correspondentes a funções oficiais (de trabalho propriamente ditas) eram confirmados por 
éditos do imperador.
    Exclusivamente para a família do imperador havia títulos honoríficos especiais, tais como 
"césar", "nobilíssimo" e "curopalato". Com o correr dos séculos e mesmo com a criatividade 
de algumas dinastias outros títulos foram a eles adicionados: "sebastocrator" e "déspota", por 
exemplo, que correspondiam ao de "césar" em termos de sua importância. Todos os titulares 
tinham o direito de serem tratados como "majestade imperial", sendo respeitados como tal.
    Muitos outros títulos havia para os nobres ou as personalidades importantes do Império, 
sendo o mais elevado dentre eles o de "magister".

    ­ *As grandes e poderosas famílias do Império*
    Em boa parte dos fatos que passamos a relatar e que se relacionam a deficiências físicas 
ou sensoriais graves, desejamos destacar algumas famílias que muito significaram na vida 
bizantina e a respeito das quais faremos menção mais adiante. São os Phocas, Commenus, 
Angelus, Tzimisces, Dukas, Paleólogus, Briennes, Lascáris, Diógenes e Argiros 
principalmente. A imensa influência desses fortissimos clãs nos assuntos de Estado está 
evidenciada nas muitas páginas da vida de todo o Império Bizantino. E o historiador ou o 
interessado nessa realidade conhece também o evidente perigo que eles podiam constituir 
para determinado imperador, conforme circunstâncias que mais adiante pretendemos expor.
    Os palácios dessas enormes e fortes famílias nobres na capital e principalmente nas 
províncias (por séculos conhecidas pela designação de "temas") eram verdadeiras cidadelas 
e cortes em miniatura.

    ­ *A miséria na capital bizantina e as pessoas deficientes*
    O vasto triângulo de terras cercado por imponentes muralhas que compunha o cenário de 
Constantinopla nunca foi uniformemente povoado. No século VII, por exemplo, nele viviam 
com certeza cerca de 500 a 800 mil pessoas, compondo uma sociedade diversificada não só 
em termos de raças e origens, como também em termos de poderio econômico: havia a 
nobreza dominante, a nobreza oprimida, as famílias ricas, as remediadas, as pobres e as 
miseráveis.
    "O número de pessoas miseráveis em Constantinopla durante o citado século era de pelo 
menos 30.000 e o número de ladrões e outros criminosos não pode ter sido muito menor. É 
dificil imaginar que, numa cidade na qual a polícia era extremamente ativa e uma 
organização municipal das mais apuradas, que supervisionava a imigração e cuidava dos 
empregos, esses elementos possam ter excedido a cinco por cento da população total, mesmo 
considerando terem sido os pobres reconhecidos como uma parte integrante e socialmente 
importante de sua composição" ("Cambridge Medieval History", de Hussey).
    A vida de Constantinopla, é fácil imaginar, mostrava muitas situações contrastantes, nas 
quais cumpre que enfatizemos as suas misérias e tragédias. Além de toda a população pobre 
e pedinte e dos portadores de deficiências por causas naturais ou por acidentes que àqueles 
séculos pupulavam pela cidade, havia a presença incômoda de ex­criminosos ou de traidores 
mutilados (olhos, nariz ou orelhas atingidos por carrascos frios cumprindo as sentenças 
previstas por lei) mostrando a quem quisesse olhar os cotos de mãos amputadas ou seus 
olhos vazados, deixando uma desagradável impressão de tudo.
    Ressaltemos neste ponto que o segmento comercial da sociedade bizantina não era 
composto apenas de prósperos negociantes. Havia também um grande número de pequenos 
comerciantes, lojistas, artesãos e seus assemelhados. E, procurando sobreviver a duras 
penas, abaixo deles surgiam os braçais que trabalhavam por dia e aqueles que, devido a 
circunstâncias, estavam em condições piores, ou seja, braçais não­qualificados, mendigos, 
ladrões e prostitutas.
    No meio dos mendigos havia sempre pessoas com deficiências ou vítimas de males 
crônicos, todos vivendo de esmolas que lhes garantiam condições mínimas de sobrevivência. 
Mas mendigar era por vezes uma atividade muito rendosa. Numa pequena comparação 
existente na obra de Hussey, já citada, as prostitutas recebiam à época do reinado de 
Romano I, o Lecapeno (919 a 944), uma certa quantia de dinheiro por mês para deixarem a 
prostituição, enquanto que muitos dos mendigos mais prósperos ganhavam bem mais do que 
elas, pois a renda de um ponto estratégico de coleta de esmolas poderia levantar 
importâncias muito significativas.
    Esta não se caracterizava, no entanto, como uma situação comum e muito menos 
generalizada. O mais encontradiço mesmo era, no inverno, ver­se mendigos em condições de 
extrema miserabilidade, esquálidos, tremendo de frio em casebres mal cobertos com palha 
em muitos pontos da cidade. A realidade de Constantinopla e das grandes cidades do 
Império Bizantino mostrava que longe dos palácios e das grandes mansões, havia as áreas 
mais miseráveis da cidade, com seus becos sujos e escuros. Mas mesmo essas enormes áreas 
de Constantinopla eram insuficientes para abrigar toda a população mais pobre e suas 
multidões de mendigos, de soldados estropiados pela guerra ou pelas penalidades impostas 
pelo regulamento militar, aos quais adicionavam­se camponeses fugitivos e aqueles que 
procuravam na grande capital uma oportunidade para se refazer das suas desgraças. 
Dormiam ao relento ou sob as arcadas existentes nos muitos pontos das grandes avenidas, 
em instalações do famoso e soberbo Hipódromo e nos átrios das muitas igrejas. Às vezes 
juntavam­se grupos durante o inverno para se aquecer ao redor de uma estufa ou de uma 
esterqueira, à falta de outros locais mais saudáveis (Apud Hussey).

    ­ *As doenças e as deficiências físicas e sensoriais*
    A quase totalidade desses infelizes sem condições de trabalhar para sua subsistência e 
para garantia de uma habitação menos infecta, ficava exposta a males endêmicos e 
epidêmicos que em geral eram provocados pela total ausência de condições mínimas de 
higiene e de saneamento. Algumas doenças graves e muitos males considerados como 
misteriosos levavam à instalação de limitações físicas e de males sensoriais severos, sendo a 
grande maioria deles considerada como sacrifícios para aperfeiçoamento da vida espiritual e 
também para pagamento de males feitos anteriormente.
    Mesmo na mais alta nobreza, todavia, a alta morbidade, a mortalidade infantil e a 
existência de deficiências físicas não eram incomuns. Um marcante exemplo poderá ser 
dado com a família do Imperador Basílio I, o Macedônio (867 a 886). De seus cinco filhos 
homens, apenas um sobreviveu e depois foi coroado como Leão VI. Este, por sua vez ficou 
viúvo três vezes e morreu com apenas 45 anos de idade. Dos seus filhos, um morreu logo 
após o batismo e o outro teve uma séria deficiência por toda a vida.
    Se esse podia ser o destino de uma família da mais alta nobreza, que vivia protegida na 
limpeza, na boa alimentação e no luxo, imagine­se a dificuldade para o restante da 
população em termos de morbidade, mortalidade, longevidade e deficiências, vivendo em 
ambientes menos saudáveis, alimentando­se mal e abrigando­se mal.
    
    ­ *Os miseráveis no "Reino de Deus"*
    Mas com certeza uma das mais surpreendentes características da vida de Constantinopla 
foi a aplicação prática que sua população deu à caridade cristã, insistente e aguerridamente 
defendida pela Igreja.
    "Os benefícios espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam da existência 
de uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada. Os "pobres", portanto, eram uma 
parte integrante da sociedade" . "Ao pedir esmolas os mendigos gritavam: "O paraíso bate à 
sua porta" ... e esmolas eram dadas com liberalidade.
Mendigar era uma profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões, os intrusos 
eram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados ciumentamente. Cada átrio de 
igreja era cercado por mendigos, cuja inoportunidade garantiria um suprimento liberal para 
seu pão de cada dia. Mas a caridade organizada transcendia de longe os limites da ajuda 
meramente casual. A cidade era com justiça famosa pelos seus hospitais, seus orfanatos e 
seus abrigos para idosos e para carentes" ("Cambridge Medieval History", de
Hussey).
    Nos trabalhos de organização e de manutenção dessas instituições a família imperial e a 
nobreza mais refinada tomavam parte ativa. Os seus membros do sexo feminino dedicavam­
se ativamente à ajuda aos doentes. Algumas mulheres chegaram mesmo a adquirir o hábito 
de visitar as prisões, que eram os ambientes mais degradantes da miséria humana na 
esplendorosa capital.
    E a Igreja era a principal responsável por essas organizações várias, desempenhando um 
papel de auxiliadora. Ressalte­se que somas fabulosas, levantadas em banquetes ou por meio 
de doações e legados, eram continuamente destinadas aos cofres da Igreja para distribuição 
aos pobres e, segundo os historiadores, essa distribuição era sempre feita com justiça, 
conhecimento de causa e pontualidade dignos de nota.

    ­ *As organizações assistenciais de Constantinopla*
    A Igreja e o Estado deram­se as mãos desde a época de Constantino I para prover os 
serviços assistenciais básicos, muito antes de existir qualquer serviço ou esforço organizado 
na Europa ocidental e cristã. Assim é que foram gradativamente estabelecidas entidades 
diversas que acabaram sendo classificadas em nove categorias, a saber: 
    "brephotróphium" ­ lar para recém­nascidos;
    "gerontotróphium" ­ lar ou abrigo para pessoas idosas abandonadas ou sem condições 
familiares de sustento contínuo e seguro;
    "lobotróphium" ­ abrigo e internato para pessoas vítimas de limitações físicas crônicas e 
muito severas;
    "nosokómeion" ­ criado para tratamento e abrigo de doentes agudos e crônicos sem posses 
nem condições para tratamento domiciliar;
    "orphanotróphium" ­ abrigo e alimentação para crianças órfãs ou abandonadas pela 
família ;
    "pandóchium" ­ abrigo polivalente destinado indiscriminadamente a todos os tipos de 
desamparados não enquadrados nas demais organizações;
    "ptochotróphium" ­ abrigo e alimentação para mendigos e pessoas pobres e abandonadas 
sem condições de sustentação própria;
    "typhlokómeion" ­ abrigo e alimentação para pessoas cegas pobres e desprovidas de 
condições famíliares para garantir seu sustento;
    "xenodóchium" ­ organização destinada ­ pelo menos no início ­ a viajantes e peregrinos 
estrangeiros adoentados ou em sérias dificuldades de abrigo.

    A eventual "latinização" das palavras não disfarça de maneira alguma sua origem grega. 
Os radicais "kómeion" e "dócheion" correspondiam a abrigo, proteção, cuidado, recipiente, 
enquanto que o radical "trópheion" relacionava­se à idéia de alimentação e de educação.
    Observe­se que o "Orphanotróphium" de Constantinopla foi tão importante e tão 
magnificamente construído e montado que levou o Império a manter o título honorífico de 
"orphanotróphus" para seu diretor, geralmente outorgado a um sacerdote ou bispo da Igreja.

    ­ *O imperador Justiniano e as pessoas enfermas e deficientes*
    Em uma de suas muitas leis (Nova Constituição n°. LXXX) o imperador Justiniano (482 a 
565) tratou dos problemas dos mendigos que não tinham doenças graves ou deficiências. E 
nessa norma fica muito patente a preocupação da sociedade bizantina em ocupar essas 
pessoas em algum tipo de trabalho ou atividade. O imperador deu à mais alta autoridade 
judicial do Império, o questor, a responsabilidade de não deixar essas pessoas à mercê da 
sorte e da esmola.
    "Convém que ele as faça comparecer imediatamente aos diretores de trabalhos públicos, 
aos chefes das padarias, aos encarregados do correio, aos diretores dos jardins ou das demais 
oficinas existentes, nas quais elas possam ao mesmo tempo trabalhar, ser alimentadas e 
também passar de uma vida ociosa para uma vida mais útil. Mas se algumas delas não 
quiserem trabalhar nas oficinas para as quais tiverem sido encaminhadas, o questor as 
expulsará desta cidade real”.
    A orientação do imperador Justiniano era para que o questor usasse sempre de indulgência 
para com as pessoas pobres encaminhadas de acordo com a lei; a preocupação expressa era 
que a preguiça não levasse as pessoas em dificuldades para atos ilícitos e com isso fossem 
condenadas pela justiça civil.
    Ainda sobre mendigos ou sobre pessoas pobres em dificuldades existia uma distinção 
importante que levou a sociedade bizantina a manter e mesmo ampliar sua organização de 
socorro aos necessitados. Afirmou o imperador Justiniano, ao final de sua Nova Constituição 
n°. LXXX: "Não obstante, é nossa vontade que as pessoas de um ou de outro sexo que não 
sejam sãs de seus corpos" (ou seja, pessoas portadoras de condições incapacitantes) "ou que 
sejam gravemente enfermas, não sejam molestadas em nossa cidade; queremos, pelo 
contrário, que elas sejam atendidas por pessoas piedosas”.

    ­ *O desenvolvimento da medicina e dos hospitais*
    No ambiente criado em conseqüência de um governo autocrático com fortes pinceladas de 
teocracia e ampla aceitação, havia muitos contrastes entre ricos e pobres, entre palácios e 
casebres paupérrimos em ruas cobertas de imundícies, conforme vimos anteriormente. E, 
segundo especialistas, tudo, absolutamente tudo, inclusive a miséria, a doença, a mutilação, 
a cegueira, tudo era considerado como motivo para se pensar no pagamento de pecados 
cometidos, no cerceamento dos impulsos carnais, na purificação da alma e no seu 
aperfeiçoamento. E esse modo de ver o mundo sempre foi considerado como uma positiva 
influência do Cristianismo.
    Não é de estranhar que tenha havido uma forte proliferação de entidades assistenciais e 
caritativas de um lado, e certa estagnação na ciência médica, de outro. Houve, entretanto, o 
cuidado de se estabelecer uma pormenorizada compilação dos conhecimentos já acumulados 
de medicina na realidade grega anterior à construção e à consagração de Constantinopla 
como capital do Império Bizantino.
    Essa mesma realidade, influenciada pelo Cristianismo tão marcante, considerava o 
enfermo, o acidentado, a vítima da justiça, o portador de uma deficiência congênita ou 
adquirida, como "santos" em potencial. Para todos os que sofriam, o melhor e mais certo 
remédio era a oração orientada e dosada por sacerdotes; o melhor hospital que poderia haver 
deveria estar funcionando em ambiente da Igreja; o melhor e mais seguro "curativo" era o 
próprio Jesus Cristo.
    Do milênio de existência do Império Bizantino não podemos dar relevância especial a 
quase nada, em termos de medicina, a não ser aos nomes universalmente conhecidos de 
Cosme e Damião, santificados pela Igreja.

    ­ *A mutilação nas leis bizantinas*
    A uma análise superficial a lei criminal bizantina mostra­nos alguns traços de uma 
positiva influência cristã, embora haja categóricas afirmações em contrário.
    Vindos de um sistema de penalização muito severo em que a pena de morte prevalecia 
para muitos crimes, os sistemas introduzidos por Justiniano e por Leão III, o Isauriano (680 
a 741), foram amenizando as penas, graças à influência do Cristianismo. A "Écloga" 
(Código de Leis) de Leão III restringe a pena de morte a alguns crimes apenas: assassinatos, 
alta traição, deserção das forças armadas e práticas sexuais não­naturais. Além disso, prevê 
diversas penas por mutilação ou por vazamento dos olhos que não existiam no Código de 
Justiniano, em vigência desde o século V. Muito embora a "Écloga" e as legislações 
posteriores tenham significado, para aquela época, uma amenização de parte do sistema 
penal, o fato concreto é que, com as penas de mutilação e de vazamento dos olhos provocava 
uma verdadeira e desagradável regressão a épocas anteriores a Constantino I, que proibia 
mutilar o rosto humano que era "feito à imagem da beleza divina".
    A suposta amenização não ocorreu em todas as linhas, porém, de cominações 
estabelecidas no Código de Justiniano em simples multas, verificou­se na "Écloga" um forte 
endurecimento para a pena máxima.
    No entanto, a Cristandade do Império Bizantino não questionava nada do que vinha do 
imperador e para ela, a substituição da pena de morte por mutilações podia até ser justificada 
no próprio Evangelho. Era questão de se tomar a palavra de Mateus ao pé da letra: ... "se tua 
mão ou teu pé te escandalizam, corta­os e atira­os fo­
ra" ..."e se teu olho te escandaliza, arranca­o e atira­o fora". Havia também outro fator de 
extrema importância: ao criminoso, ao pecador, seria dada a oportunidade de arrepender­se 
de seus pecados e se regenerar na penitência, na dor, na fome, na miséria, muitas vezes 
confinado num mosteiro.
    Ressalte­se, todavia, que o imperador bizantino, representante de Cristo na Terra, em seu 
juramento de coroação, obrigava­se a ser misericordioso e humano para com seus súditos, 
evitando a pena capital e a mutilação tanto quanto possível – isso nos interesses da justiça e 
da propriedade, e em fidelidade à verdade e à retidão.
    No rolar dos séculos, porém, o que sucedeu nas muitas histórias de mutilações e 
vazamentos de olhos foi que essas punições aconteceram, numa grande variedade de casos, 
devido a meras vinganças políticas e para afastar sérios pretendentes ao trono.
    A Igreja colaborava dentro dessa realidade muito concreta com o banimento a um de seus 
muitos mosteiros retirados da civilização, demonstrando com isso a sua influência no 
sistema penal em vigor. Ela tomava em suas mãos tanto a execução de partes das penas, 
como também a reabilitação de muitos desses criminosos.
    A profanação de sepulturas, a rapinagem de igrejas, a pederastia, as fraudes de 
funcionários eram reprimidos pela mutilação.

    "Pergunta­se como esse costume atroz, cuja crueldade refinada supõe uma perversão do 
senso moral, pôde ser introduzido na sociedade bizantina", comenta Bréhier ao analisar as 
mutilações. Segundo o famoso historiador, o gosto pela mutilação pode ter sido o resultado 
do ambiente que cercava a sociedade local, ao redor do século VII, e a influência da 
imigração de consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros, dentre os quais o 
suplício era prática corrente desde muitos séculos (Apud Bréhier).

    ­ *Períodos principais do Direito Penal Bizantino*
    Para que bem entendamos a questão das penalidades impostas pelas leis imperiais que 
redundavam na instalação de limitações físicas e sensoriais, é fundamental que distingamos 
pelo menos dois períodos na história desses castigos.
    O primeiro vai do século V até o século VII, notando­se um esforço para o 
estabelecimento de alguma humanização do corpo geral da legislação romana pertinente, 
esforço esse feito principalmente sob Justiniano e expresso em seu Código, aprovado em 
534. Esse Código, somado à legislação aprovada e codificada anteriormente pelo mesmo 
imperador, teve o enriquecimento de mais de 150 "Novas Constituições" que foram 
assinadas entre os anos 534 e 565, formando o famoso "Corpus Juris Civilis" de Justiniano.
    O segundo período vai do século VII em diante. Nota­se nele, especialmente pela 
aprovação da "Écloga" de Leão III, o Isauriano, uma tendência a certa humanização (ou pelo 
menos amenização) da drasticidade da pena de morte, surgindo em seu lugar maior 
incidência de penas de mutilação ou de castigos corporais.
    Note­se que no estudo das leis todas, tanto de Justiniano e de imperadores que ocuparam o 
trono depois dele, quanto de Leão III, deve­se ressaltar a relevância da existência de uma 
verdadeira universidade, criada no ano 425 em Constantinopla, na qual estudava­se mais 
profundamente assuntos leigos (não­religiosos), dentre os quais a Filosofia e as Leis.

    ­ *A moderação nas penalidades impostas no tempo de Justiniano*
    Inserida numa de suas "Novas Constituições" (a de nº CXXXIV, ou seja, assinada quando 
Justiniano estava no final de sua vida) encontramos uma orientação geral do velho 
imperador a todos os governadores e autoridades judiciais do Império, na qual fica evidente 
uma séria tendência à humanização, com determinações explicitas de moderação na 
aplicação de penas corporais. Diz o imperador: "Como precisamos proteger a fraqueza 
humana, diminuimos uma parte das penas corporais e abolimos a amputação de duas mãos, 
de dois pés e o suplício da separação das juntas, que é ainda mais grave do que a amputação 
das mãos". "Mas se a espécie de crime comportar a amputação de um membro, limitar­se­á à 
amputação de uma só mão. Proibimos que seja indicada a amputação de um membro por um 
simples furto, ou que o culpado sofra a pena de morte, mas desejamos que ele seja punido de 
outra maneira".
    Ao final dessas considerações e determinações relacionadas à moderação que as 
autoridades deveriam observar na aplicação de penas corporais ou pena de morte, Justiniano 
procura garantir a severidade da pena para aqueles que ameaçavam a estabilidade da coroa 
imperial, afirmando: "Mas ordenamos que a força das antigas leis seja conservada para os 
indivíduos condenados por crime de lesa­majestade".

    ­ *As "Novas Constituições" de Leão III: "leis mais cristãs"*
    As chamadas "Novas Constituições" editadas pelo imperador Leão III, o Isauriano (717 a 
741), após a publicação da "Écloga", são verdadeiras ordens imperiais. São leis escritas num 
linguajar quase coloquial, expressas em todos os seus termos na linguagem própria da época. 
Trata­se de um total de 113 "Novas Constituições", das quais desejamos aqui fazer menção a 
algumas que estabelecem a precisa condenação por certos crimes, incluindo o açoitamento, a 
amputação do nariz, da língua ou das mãos, o vazamento dos olhos e também a pena do 
"raspamento" de cabelos e barba, considerada como difamante.
    Essas Constituições procuravam impedir a criminalidade por meio de cominações severas; 
buscavam também desencorajar que o povo imitasse os imperadores ou as autoridades 
maiores do Império que, no uso (e no abuso) de seu direito supremo derivado de Deus, 
mandavam vazar os olhos ou amputar as mãos dos traidores do Divino Império. Procuravam 
também garantir direitos, estabelecer penas corporais ou pecuniárias e regulamentar alguns 
assuntos relacionados ao clero.
    Poderá nos parecer irrelevante nessa legislação, por exemplo, a preocupação com os cegos 
poderem ou não fazer testamento de seus bens, uma vez que não havia provisão alguma que 
garantisse direitos básicos a esses mesmos cegos, mas a preocupação da nobreza (das fortes 
e grandes famílias que já mencionamos) era compreensível face à realidade do que 
continuamente sucedia: o problema de muitos dignatários, militares ou nobres, que tiveram 
seus olhos vazados, seja por crimes de traição (sob a ótica do imperador reinante), seja por 
falsas acusações, seja mesmo por pertencerem à família de um indiciado traidor, não 
poderem legar seus bens.
    Será interessante ressaltarmos que das 113 Novas Constituições de Leão III três nos 
interessam diretamente neste trabalho. A respeito delas comentamos a seguir.
    
    ­ *A defesa de um direito dos cegos: fazer testamento*
    O próprio texto da Nova Constituição n°. LXIX é suficiente para compreendermos a 
totalidade do problema e a solução encontrada. Vejamos como o imperador considerou a 
questão:
    "Levantam­se muitas vezes dúvidas quanto à questão de se saber como os cegos podem 
fazer testamento, e essas dúvidas são originárias das leis que decidiram em contrário, e 
também dos costumes existentes sobre esse assunto: não é nem inconveniente nem difícil 
para mim, esclarecer e decidir sobre o assunto. Há uma lei que proíbe aos cegos de fazer um 
testamento secreto e estabelece que tal testamento não terá força a menos que testemunhas 
confirmem ter ouvido o testador proferir de viva voz as disposições por ele guardadas; o 
testemunho por si só não pode fazer fé de sua vontade. Outra lei, ao contrário, permite às 
mulheres e às pessoas iletradas fazer testamento na forma mística, e não as sujeita a outras 
formalidades, a não ser assiná­los, se souberem escrever, ou se não souberem, a fazê­los 
assinar por um terceiro. Essas duas leis estão evidentemente em contradição sobre o mesmo 
objeto; pois se as mulheres e pessoas desprovidas de toda instrução, que sabem apenas o que 
desejam, podem fazer seu testamento na forma mística, por que um cego não o poderia? Mas 
se essas leis estão em oposição entre si, estão ainda mais com os costumes. De fato, os 
costumes estabelecem que os testamentos das mulheres, de pessoas iletradas ou de cegos, 
feitos na forma mística, não podem ter força alguma. Nesse estado de coisas, ordenamos que 
os testemunhos secretos dos cegos ou de quaisquer outras pessoas tenham um pleno e inteiro 
efeito e adicionamos a essa disposição que, antes de as testemunhas serem ouvidas, os que 
lavraram o testamento e que a ele aporão as suas assinaturas, declararão ter escrito o que o 
testador lhes ditou; e se logo em seguida for reconhecido que cometeram alguma falha, serão 
despojados de seus bens se forem ricos, ou então serão açoitados e exilados se forem pobres. 
Adicionamos mais que, se para confirmação do testamento for necessário recorrer a 
juramento, como acontece freqüentemente, os que o lavraram deverão estar concordes com 
as testemunhas, que jurarão atestar e confirmar a coisa" (Apud Bérenger).

    ­ *Penalidade prevista para o vazamento dos olhos de outrem*
    A segunda Nova Constituição de Leão III que nos interessa neste trabalho procura coibir 
frontalmente os crimes de vazamento dos olhos de alguém. Para tanto o legislador imperial 
estabeleceu penas severas e bastante desencorajadoras. Essa norma específica está intitulada 
no documento original como "Qual deve ser a pena para quem cega alguém 
voluntariamente".
    Ela analisa a aplicação direta da lei do talião, fazendo menção expressa desse 
procedimento. Estuda também o problema que poderia ser criado com o fato de o malfeitor 
ter os dois olhos vazados por crime semelhante. Leão III pondera e decide da seguinte 
forma:
    ... "se ele tiver tirado" ­ extirpado, arrancado ou mesmo vazado são termos 
correspondentes ­ "os dois olhos, como nesse caso a igualdade da pena não traria nenhum 
proveito para o que perdeu a visão (pois qual a vantagem que pode achar um cego em um 
outro também ser cego?) e que a pena do talião, mesmo que merecida, seria muito cruel para 
o culpado (pois nada é mais triste do que a cegueira), decidimos que ele não a sofrerá e que 
será punido de outra maneira, capaz de garantir alguma compensação à vítima. É assim que 
concebemos a lei: qualquer pessoa que tiver vazado os dois olhos de um indivíduo, terá um 
vazado e, como mereceria perder a mão que cometeu o crime, pagará em seu lugar uma 
indenização igual à metade de seus bens, que será entregue àquele que teve seus olhos 
vazados, como um abrandamento de sua miséria. Dessa maneira este será consolado e o 
culpado será punido, tendo um olho vazado e em seguida perdendo seus bens no lugar de sua 
mão" (Apud Bérenger).
    Mas o que sucedia se o malfeitor fosse uma pessoa pobre ou sem recursos suficientes? 
Neste caso, não podendo o criminoso cumprir o estabelecido em termos de compensação, 
era condenado a experimentar idêntico mal infligido à sua vítima: tinha os olhos vazados.

    ­ *Crime de rapto e sua condenação nos tempos de Leão III*
    Dentre os diversos crimes citados nessa legislação coberta pelas Novas Constituições de 
Leão III, o rapto de uma jovem solteira merece nossa atenção especial. Essa Nova 
Constituição ­ de n°. XXXV ­ estava intitulada: "Da pena pronunciada contra o raptor de 
uma jovem e seus cúmplices". Ela é clara, incisiva e não desperta qualquer dúvida.
    ...  "Se o rapto for cometido sem o uso de armas, então o raptor não será punido com a 
morte, porque ele não manifesta a intenção de a provocar. Mas terá a mão cortada e aqueles 
que o ajudaram, ou que tenham tomado qualquer parte em seu crime, serão açoitados, 
raspados e exilados". A mesma Constituição estabelece que todos os que ajudavam nesse 
tipo de rapto, mas a mão armada, seriam punidos da seguinte maneira: ... "terão o nariz 
decepado e serão açoitados e raspados". E conforme indicamos acima ser raspado 
correspondia a ter os cabelos e a barba cortados à força, o que era considerado como um 
castigo estigmatizador e difamante.
    Quanto ao autor desse crime de rapto de uma mulher solteira a mão armada, a Nova 
Constituição n°. XXXV confirmava a pena de morte, já estabelecida séculos antes no 
Código de Justiniano.

    ­ *General Belisário: lenda e realidade de sua carreira*
    Belisário foi um general bizantino nascido na Trácia aproximadamente em 505, tendo 
falecido em 565, após ter vivido seus últimos anos cego, pobre e mendigo. 
    Após alguns anos de glórias e vitórias à frente dos exércitos que combatiam os muitos 
inimigos de Constantinopla, o imperador Justiniano transformou Belisário no primeiro 
general de todo o Império. Seus contínuos sucessos, todavia, acabaram por despertar em 
Justiniano os sentimentos de ciúme e de desconfiança, apesar dos incontáveis atos de 
fidelidade de seu general maior.
    No ano 562 Belisário foi envolvido numa conspiração e injustamente deposto de seu 
cargo. Acusado do crime de lesa­majestade, sofreu a pena usual amenizada: perda da visão, 
somada à perda de seus proventos de todos os seus bens. 
    A lenda mostra­nos Belisário cego por ordem direta de Justiniano, mendigando com o 
auxílio de um garoto para poder sobreviver. Sua figura magnífica de general adorado pelos 
seus subalternos e pelo povo em geral, transformado em mendigo, levou alguns pintores a 
criar obras de arte que ficaram famosas, destacando­se dentre eles Van Dick, Salvatore 
Rosa, David e Gérard.
    Levou também o escritor Nepomuceno Lemercier a escrever um romance em versos que 
foi musicado por Dominique Pierre Jean Garat, famoso compositor e cantor francês, no final 
do século XVIII. Um dos versos musicados da obra intitulada "Belisário" relata­nos o 
seguinte:
  "Seguro o capacete do guerreiro,
  Terror dos Vândalos e dos Godos.
  Caminhou, dizem, sem escudo
  Contra a fatal impostura.
  Um tirano fez queimar seus olhos
  Que velavam sobre toda a terra.
  A noite cobre para sempre os olhos
  Do triste e pobre Belisário" (Apud "Larousse du XXe.Siècle").

    Em algumas culturas européias de hoje o nome Belisário é muito utilizado para fazer 
referência simbólica a uma pessoa cega de boa educação e de refinadas maneiras.

    ­ *Notícia sobre uma prótese no século IV*
    Nos muitos documentos encontrados na pujante nova capital do Império Bizantino, e que 
escaparam à fúria destruidora dos seus muitos invasores, principalmente dos turcos, foram 
encontradas algumas referências a próteses. Mencionam essas citações eventuais casos de 
braços de metal, pernas de madeira e até mesmo casos de nariz ou de orelhas artificiais.
    George Kredinos, escritor grego do século XI, narra­nos o seguinte caso que nos informa 
da fabricação de uma importante prótese:
    "Uma pessoa da Macedônia, de nome Basílio, afirmava falsamente que era Constantino, 
filho de Dukas. Tendo maliciosamente persuadido muita gente a segui­lo, reuniu­a ao seu 
redor e, viajando a pé, causou distúrbios nas cidades e instou com a população para se 
levantar contra o imperador de Constantinopla. E, tendo sido aprisionado por um general 
chamado Elefantino, e levado ao imperador bizantino, foi condenado a ter um dos seus 
braços cortado. Depois de sua libertação da prisão, colocou no lugar do braço cortado um 
outro artificial feito de cobre e, fazendo uma enorme espada, perambulou pelo país 
ludibriando outra vez os cidadãos mais ingênuos" (Apud Pournaropoulos).

    ­ *Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes*
    Segundo alguns biógrafos de São Basílio, o Grande, ele patrocinou a criação e inaugurou 
um abrigo especialmente destinado a cegos em Constantinopla, conhecido pela genérica 
designação de "tuphlokómeion". Outro famoso santo da Igreja no Império Bizantino foi São 
Lineu que chegou a organizar e manter outros abrigos para cegos na cidade de Syr, na Síria 
atual. Esses abrigos eram compostos de pequenas cabanas onde os internados viviam por sua 
conta e graças à caridade das pessoas que garantiam seu sustento, todas elas ligadas a ricas 
famílias da região. Essa experiência foi levada a efeito no século V.
    No mesmo século, entre os anos 400 e 403, São João Crisóstomo fez construir alguns 
abrigos para doentes crônicos e pessoas que apresentavam condições incapacitantes de 
seriedade, impeditivas de atividades rentáveis. Usou para tanto as esmolas que coletava e os 
excedentes que juntava de seus proventos como arcebispo de Constantinopla.
    No final do século IV, bem nos primórdios da vida monástica que foi muito pujante no 
Império Bizantino, o cuidado dos pobres em geral e das pessoas deficientes no meio delas, 
segundo nos relata São João Crisóstomo, passou a ser uma preocupação básica e continua 
dos mosteiros. Afirma esse famoso santo da Igreja que "atendem os mendigos e os aleijados 
que vêm a eles às refeições e para abrigo"... "um dos irmãos cuida das feridas de um 
mutilado, outro cuida de um homem cego, enquanto que um terceiro apóia alguém que 
perdeu uma perna" (Apud French).

    ­ *Assistência a soldados a partir do século VI*
    O Império Bizantino, sempre bastante criativo, mantinha atendimento separado para 
soldados feridos ou deficientes, quando eram mutilados em atividades guerreiras, antes do 
início da Idade Média no mundo europeu ocidental. Em um trabalho escrito pelo imperador 
Mauricio Flávio Tibério (539 a 602) e intitulado "Strategikón", encontraremos esta frase: 
"Cuidados especiais devem ser prestados para proteger os feridos após a guerra" (Apud 
Pournaropoulos). No mesmo trabalho consta uma referência quanto à idade de incorporação 
às forças armadas, indicando que todos os súditos abaixo de 40 anos de idade eram 
obrigados ao serviço militar, dando­nos assim uma idéia da eventual incidência de lesões 
graves por ferimentos inclusive em homens com família formada e quase no final da vida. 
Existem outras referências também quanto ao assunto, nesse mesmo trabalho, e uma delas 
conta­nos em poucas palavras e sem maiores comentários  ­ como se estivesse falando de 
assunto sobejamente conhecido ­ o que sucedia com os feridos em campos de batalha. 
Garantiam os exércitos bizantinos um sistema de recolhimento desses feridos e de seu 
atendimento na retaguarda, salvando­os de morrer devido a hemorragias, pancadas, 
pisaduras, queimaduras e outros traumatismos. Afirma o imperador Mauricio o seguinte:
    "Durante as batalhas um corpo de auxiliares volantes" ­ citados como "ambulanciers" na 
versão original francesa ­ "a cavalo, os "deputatoi", estava encarregado de recolher os 
feridos e de os transportar à retaguarda para serem tratados. De suas selas pendiam estribos 
duplos que lhes permitiam erguer os feridos e os fazer montar. Recebiam eles um 
"nomisma" por guerreiro salvo" ("Les Institutions de l'Empire Byzantin", de
Brehier) .
    Uma referência a benefícios estabelecidos para soldados que voltavam com sérias 
deficiências físicas ou doenças graves dos campos de batalha também é mencionada pelo 
autor na mesma obra: ... "sob Constantino VII, o Porfirogeneta, os detentores de bens 
militares que ficavam inválidos continuavam a gozar de suas rendas a título de pensão".

    ­ *Os primeiros hospitais da Terra Santa e de Bagdá*
    Carlos Magno (742 a 814), rei dos Francos e chamado de "Imperador do Ocidente", em 
contraposição aos imperadores bizantinos que eram por vezes conhecidos como imperadores 
do oriente, é uma das mais impressionantes figuras da História da Idade Média. Sua vida 
toda esteve repleta de lances importantes. Uma de suas características principais era sua 
habilidade de administrador; dizem que em vez de criar organizações novas, reformava e 
melhorava as já existentes, levando­as a funcionar bem. Aliado ao famoso califa Haroun­al 
Raschid com o fito de intimidar o Império Bizantino, foi o co­patrocinador da construção do 
primeiro hospital ("nosokómeion") separado dos abrigos para peregrinos e estrangeiros 
("xenodóchium") construído na Terra Santa. Segundo seus biógrafos, Carlos Magno protegia 
também os cegos, tendo estabelecido severas penas para aqueles que os maltratassem.
    Foi no século X que surgiu na cidade de Bagdá um segundo hospital do mundo islâmico, 
sob o governo do califa Al­Muktadir. Um terceiro foi construído no mesmo século (ano 
970), também em Bagdá, contando com 25 médicos. Caracterizava­se este último hospital 
como entidade de tratamento, de observação, de ensino e de treinamento dos médicos.
    Esses hospitais e todos os demais 34 que foram organizados até o final do século X 
recebiam não apenas doentes mas também portadores de deficiências sérias e limitadoras.

    ­ *Castigos bárbaros levam a deficiências no Império Bizantino*
    Conforme tivemos oportunidade de verificar anteriormente, muito cruéis para os nossos 
dias eram as penalidades aplicadas por alguns imperadores ou potentados bizantinos. No 
entanto, ressalte­se que elas estavam perfeitamente bem estabelecidas em lei e o mundo 
oriental vivia séculos que demandavam fortes providências para cercear o crime, o roubo, o 
estupro, a traição e a deserção das forças armadas. Alguns exemplos serão apresentados 
deste ponto em diante quanto à aplicação de diversas dessas penas, embora estejamos todos 
muito certos de que inúmeros outros casos poderão ser coletados pelos estudiosos do 
assunto.
    Na obra intitulada "Vie et Mort de Byzance", de Bréhier, há uma introdução escrita por 
uma das maiores autoridades no assunto, que foi Henri Berr. Esse famoso historiador chama­
nos a atenção para um fato que caracterizou o Império Bizantino, ou seja, as mutilações:
    "Temos encontrado sem cessar nestas páginas, a menção não apenas de assassinatos, mas 
de torturas as mais diversas, de "suplícios refinados": arranca­se os olhos, a língua,queima­
se com ferro em brasa; mas sobretudo vaza­se os olhos. Vazar os olhos é prática corrente".
    De fato, tao corrente é essa prática que, só de acontecimentos importantes e muito 
notórios ­ e tão notórios e importantes que passaram para a História ­ poderíamos citar mais 
de trinta. Todos eles ­ vazamento dos olhos de um modo todo especial, mas incluindo 
mutilações como penas por crimes e traições, ou mesmo para incapacitar certos pretendentes 
ao trono ou a postos importantes ­ foram praticados contra membros da nobreza mais alta do 
Império, contra príncipes herdeiros, contra imperadores aprisionados ou destronados, 
durante toda a duração do Império Bizantino.
    Só no século VIII, por exemplo, encontramos diversos fatos que ocorreram após 741, ano 
em que Constantino V (718 a 775) procurava combater com muita força os povos árabes nas 
terras da Ásia, tendo para tanto se ausentado longamente de Constantinopla. Durante seu 
afastamento da corte, porém, seu cunhado Artavasde conspirou contra ele e chegou mesmo a 
ser proclamado imperador por suas tropas. Entrou vitorioso e sem maiores resistências na 
capital do Império e foi coroado e abençoado pelo patriarca Anastácio. Logo em seguida, 
para garantir sua sucessão, associou seu filho mais velho ao trono.
    No entanto, um ano e pouco após esses eventos Constantino V retornou e conseguiu 
retomar o trono com as forças armadas ainda à sua disposição. Logo em seguida castigou 
severamente a traição do cunhado, mandando vazar seus olhos e de seus pretensos herdeiros, 
ou seja, seus filhos. Fez mais o imperador: mandou açoitar publicamente a maior autoridade 
da Igreja que não lhe tinha sido fiel, o patriarca Anastácio.
    Já reafirmado no poder, encetou vários anos após uma violenta e pertinaz campanha 
contra o culto das imagens na Igreja ­ parte do chamado movimento iconoclasta, ou seja, 
movimento contrário à adoração de imagens no culto cristão ­ e, demonstrando um quase 
que incontrolável ódio contra os monges, mandou exilar, aprisionar e mesmo mutilar um 
imenso número deles. Nas províncias os governadores e autoridades da justiça procuravam 
seguir o exemplo do imperador. O governador da Trácia, por exemplo, fez reunir à força 
todos os monges e religiosas daquelas terras numa praça de Éfeso, obrigando­os a fazer ali 
mesmo uma opção: deviam escolher o casamento ou perder a visão (Apud Bréhier).

    ­ *A imperatriz Irene e sua luta para conquista do trono*
    Ainda no século VIII, durante um curto espaço de vinte anos, a História Bizantina relata­
nos algumas amputações de língua e vazamento de olhos na mais alta nobreza de 
Constantinopla durante a vida da famosa imperatriz Irene, ou seja, entre os anos 780 e 800.
    Para nós, em pleno século XX, trata­se de uma história no minimo bizarra. E poderá ser 
iniciada com o jovem príncipe herdeiro do trono, Leão, filho de Constantino V, com 25 anos 
de idade, casando­se numa faustosa cerimônia realizada na igreja de Santa Sofia, com uma 
belíssima jovem ateniense de 18 anos de idade, de nome Irene, que era plebéia e órfã de pai 
e mãe.
    Explica­se: a escolha de algumas imperatrizes ou de esposas de governadores e de alguns 
nobres dava­se em verdadeiros concursos de beleza e de talento, segundo alguns 
historiadores. Irene fora escolhida exatamente assim, pelo imperador Constantino V, cinco 
anos antes do velho imperador falecer. Irene conquistou com extrema facilidade não só o 
amor e a confiança do marido, como também do sogro, que já colocava toda a sua esperança 
de sucessão adequada no filho herdeiro do trono e em sua jovem, prendada, inteligente e 
belíssima esposa.

    ­ *Os primeiros castigos contra conspiradores dentro da família*
    A morte de Constantino V levou Leão IV ao trono. Ja estava casado com Irene e seu filho 
Constantino já havia nascido, mas o imperador estava doente e era muito inexpressivo em 
contraposição a uma imperatriz saudável e muito vivaz. Leão IV faleceu logo, deixando 
Irene como guardiã de seu herdeiro ao trono, então com 10 anos de idade. Esse acerto prévio 
esperado que tinha o intuito de garantir a coroa para o filho, não agradou aos cinco irmãos 
de Leão IV. Em circunstâncias normais poderiam ter reconhecido o direito do sobrinho, mas 
jamais poderiam permitir que a plebéia Irene assumisse o posto de imperatriz. Os títulos de 
"césar" e de "nobilíssimos" que haviam recebido do falecido pai não lhes interessavam mais. 
Queriam o poder, a glória e as riquezas sem fim.
    Foi face a essa situação que os cinco começaram uma trágica seqüência de conspirações, 
antes e depois da morte de Leão IV. A primeira tentativa de golpe, abortada, foi perdoada 
pelo imperador enfermo, sem maiores castigos. A segunda, entretanto, que aconteceu alguns 
anos após, tinha encontrado Irene com as rédeas do poder nas mãos na qualidade de regente. 
A penalidade imposta por ela foi suave, mas contundente: os cinco irmãos foram forçados a 
assumir o estado sacerdotal. E para que toda a nobreza e todo o povo soubessem da realidade 
do castigo, "convidou­os" a oficiar os solenes ritos do Natal na igreja de Santa Sofia, 
distribuindo inclusive a comunhão aos fiéis. O estado sacerdotal forçava as pessoas a 
manterem uma atuação a tempo integral e proibia o envolvimento em assuntos alheios 
àqueles próprios da função, o que presumivelmente deixaria Irene e o filho Constantino 
sossegados.
    Poucos anos depois, entretanto, ocorreu nova e séria conspiração dos cinco irmãos. Irene 
perdeu a paciência e mesmo na qualidade de regente considerou­se atingida por crime de 
lesa­majestade. Mas aplicou penas "suavizadas", face à perspectiva da pena de morte: 
mandou amputar a língua dos quatro "nobilíssimos" e vazar os olhos do "césar" Nicéforo.
    
    ­ *Punições severas continuam na corte bizantina*
    Com o evidente intuito de continuar com a totalidade do poder em suas mãos, mesmo 
após a subida do filho ao trono como Constantino VI, Irene procurou sistematicamente 
abafar qualquer iniciativa dele, provocando com sutileza e malícia o fracasso de seus 
projetos. Seu plano, na verdade, começara muito antes quando negligenciara com sagacidade 
e muita perspicácia sua preparação para o trono.
    No entanto, a situação vivida pelo Império levou o general Mouselen a destronar a 
imperatriz, aprisionando­a e garantindo a plena autoridade de Constantino VI. 
    Muito embora as forças armadas tivessem a intenção de afastar a má influência da mãe 
sobre Constantino VI, a fim de que ele governasse em toda a sua plenitude, não contaram 
com o afeto natural, além de uma certa dependência do jovem imperador para com sua mãe, 
o que se tornava cada vez mais evidente conforme a visitava na prisão. A conseqüência não 
demorou quase nada: Irene foi libertada por Constantino VI que, arrependido, restaurou­a ao 
poder com o título de imperatriz e com poderes para governar ao seu lado.
    Ano após ano Constantino provou ser um imperador fraco e Irene foi crescendo em sua 
influência, seu poder e mesmo em sua aceitabilidade antes muito questionada na corte. E foi 
por sua influência (e talvez exigência) direta que o general Mouselen, comandante da revolta 
que a levara à prisão vexatória, foi preso e teve seus olhos vazados, sem maiores 
considerações.
    Para a nobreza e para o povo esse ato demonstrou uma impressionante ingratidão do 
imperador; demonstrou também a evidente força de Irene que, com esse ato, vingava­se da 
vergonha que lhe fora imposta.

    ­ *A selvageria de uma imperatriz na defesa de seu trono*
    Com o ambiente propício criado pela dualidade do poder de comando, as intrigas foram 
crescendo no palácio imperial, agora infestado por eunucos e por religiosos venais. No ano 
797 Constantino percebeu que sua sustentação era precária e que sua vida corria sério perigo 
dentro da corte, tal o nível das intrigas e das conseqüentes e esperadas suspeitas. 
Sorrateiramente fugiu do palácio, mas foi preso em curto espaço de tempo e levado de volta; 
foi trancado, por ordem da mãe, no mesmo quarto onde nascera 26 anos antes. E lá mesmo, 
no meio da noite, teve seus olhos selvagemente vazados por ordem de Irene. Sobreviveu à 
violência do ataque que o inutilizou para o trono, vivendo ainda muitos anos 
verdadeiramente oprimido pela corte e esquecido pelo seu povo (Apud Gibbon).
    Anos após, a quarta conspiração dos infelizes irmãos de Leão IV aconteceu e Irene, 
plenipotenciária e despótica, não teve dúvidas em aplicar a pena que considerou como 
definitiva para eliminar de vez suas pretensões ao trono: mandou vazar os olhos dos 
"nobilíssimos" já de língua anteriormente amputada e mandou amputar a língua do "césar" 
Nicéforo, já cego; logo após exilou os cinco para longe.
    Irene foi destronada e exilada para a ilha de Lesbos alguns anos após; ali morreu 
trabalhando com suas próprias mãos e muito pobre. Segundo a Encyclopaedia Britannica, 
devido à sua intransigente luta pela restauração do culto das imagens nas igrejas do Império 
Bizantino, a Igreja Ortodoxa Grega elevou­a à categoria dos santos.

    ­ *Mutilação documentada em pintura do século IX*
    Se o leitor tiver oportunidade de visitar o Museu Nacional de Espanha, em Madri, poderá 
admirar muitas miniaturas que foram pintadas com esmero por monges da Sicília, diversas 
das quais registram fatos ligados à história de Basílio I, imperador bizantino que reinou entre 
os anos 867 e 886. Nessa verdadeira história em quadrinhos nota­se momentos muito 
importantes da vida desse surpreendente imperador, sendo que dois deles nos interessam 
sobremaneira neste estudo sobre deficiências e pessoas deficientes.
    O primeiro retrata uma encarniçada batalha, aparecendo ao centro o general bizantino 
Procópio mortalmente ferido por um magote de soldados inimigos, enquanto seus 
comandados, de costas para ele, batem em retirada. O episódio retrata uma derrota bizantina 
causada por um desentendimento entre o citado general e um outro, também de confiança de 
Basílio, de nome Leão. E o desentendimento havia ocorrido pouco antes da batalha, levando 
Leão a não colaborar com Procópio na hora necessária.
    Tendo tomado conhecimento do fato o imperador mandou prender o general Leão e levá­
lo à sua presença. E é exatamente isso que o segundo quadro nos mostra em seu lado direito, 
aparecendo Basílio I de dedo em riste e o ar preocupado de Leão. Mas há algo mais que 
impressiona neste quadro de reduzidas proporções: são as duas cenas pintadas em seu lado 
esquerdo. Trata­se da execução das penas impostas pelo imperador, após Leão ter sido 
destituído de seu alto posto de general. Vemos o infeliz condenado com os braços amarrados 
às costas e deitado no chão, com o carrasco imobilizando­o com suas pernas e cegando­o 
com um ferro em brasa seguro firmemente com ambas as mãos. E mais à esquerda vemos 
ainda o mesmo prisioneiro com o braço estendido sobre um pedaço de madeira enquanto o 
carrasco está com um machado a meio caminho para decepar­lhe a mão.
    Contam os historiadores que esse comandante deposto não morreu devido a esses castigos 
e viveu até idade avançada, mas exilado e na mais negra miséria.

    ­ *Barbáries que levaram a deficiências físicas*
    Notícias de barbáries sem precedentes ­ ou pelo menos conhecidas em países cristãos ­ 
são relatadas no século XI. E a mais chocante de todas relaciona­se a um imperador cristão 
considerado como um dinâmico líder bizantino, no final do primeiro milênio da Era Cristã. 
Trata­se de Basílio II, que recebeu apelido histórico e muito sugestivo: "Bulgaroctonus", ou 
seja, matador de búlgaros.
    Nascera ele em 958, tendo falecido em 1025. Reinou entre os anos 976 e o ano de sua 
morte. Dentre suas campanhas militares mais significativas para a História Bizantina, 
destaca­se a que empreendeu em 1014 contra a Bulgária. Basílio II subjugou­a 
completamente.
    No entanto, o golpe de misericórdia que aniquilou a resistência dos patriotas e dos 
soldados búlgaros e que terminou a guerra, levando os inimigos de Constantinopla à 
rendição total daquele país (qual bomba atômica daqueles tempos) foi uma ação de 
crueldade fora do usual. E ao citar o fato o historiador Gibbon nos diz:
    "Sua crueldade infligiu uma vingança fria e estranha a 15.000 cativos que haviam sido 
culpados apenas de defender seu país. Foram privados de sua visão, mas para um em cada 
cem, um só olho foi deixado, para que pudesse conduzir a sua centúria cega à presença de 
seu rei. Dizem que seu rei faleceu de pesar e de horror; a nação toda ficou traumatizada com 
esse terrível exemplo" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'Empire
Romain", de Gibbon).
    Ao escrever sobre esse mesmo episódio vergonhoso da vida de Basílio II, o historiador 
inglês George Finlay apresenta alguns pormenores mais. Conta­nos ele que "no dia 29 de 
julho de 1014 o imperador bizantino e seus generais estavam analisando a situação da 
campanha contra a Bulgária e considerando tudo na mais perfeita ordem para a completa 
rendição da Esclavônia" (parte da Bulgária). "Seu inimigo principal e mais persistente, que 
era o rei Samuel, opôs­se ao seu poderoso exército num desfiladeiro, à frente de 
considerável força militar".
    Muito irritado, Basílio II fez seus homens parar e deu ordens para que o governador de 
Philipópolis, Nicéforo Xiphias, com um bem aparelhado contingente de soldados, desse a 
volta numa das montanhas para assim  atingir o exército búlgaro por um dos flancos. E numa 
ação conjugada, os bizantinos venceram as forças búlgaras; mas não tiveram a oportunidade 
de prender Samuel que escapou ileso. Finlay afirma neste ponto o seguinte:
    "O ato de vingança de Basílio II foi terrível. Sua desumanidade amedrontadora forçou a 
História a despresar sua conduta e a quase enterrar no esquecimento os relatos de suas 
conquistas militares. Nesta ocasião, ordenou que os olhos de todos os seus prisioneiros" ­ 
15.000 segundo o próprio Finlay ­ "fossem arrancados" ("taken out", na versão inglesa) 
"deixando um só olho para o lider de cada cem, e nesta condição enviou os desgraçados 
cativos para procurar seu rei ou para perecer no meio da jornada. Quando chegaram a 
Achrida, um boato de que os prisioneiros haviam sido libertados levou Samuel a sair ao seu 
encontro. Quando tomou conhecimento da extensão da tragédia toda, caiu desmaiado ao 
chão, tomado de excessiva ira e dor, e faleceu dois dias depois" ("History of the Byzantine 
Empire from DCCXVI to MLVII", de Finlay).

    ­ *Constantino VIII: "A violência dos fracos e dos poltrões"*
    A morte de Basílio II, que não tinha filhos, levou ao trono o seu irmão que era "co­
imperador" desde seu nascimento, Constantino VIII (960 a 1028). Era um homem frívolo ao 
extremo, muito forte e de crueldade renomada. Segundo Bréhier, tinha "a violência dos 
fracos e dos poltrões".
    Acolhia com facilidade qualquer tipo de calúnia, sem o mínimo discernimento e "punia 
faltas veniais com a ablação dos olhos" ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier) .
    Entre as mais lamentáveis vítimas desse imperador os historiadores destacam o nobre 
Constantino Boutzès, cujo pai havia sido detentor do mais elevado dos títulos existentes fora 
da família imperial: o de "magister". O imperador, que o odiava de longa data porque ele 
havia por diversas vezes denunciado seus desmandos e atos indignos a Basílio II, apressou­
se em mandar vasar seus olhos.
    Embora não fosse considerado à época um tirano cruel, ele fazia vazar os olhos de pessoas 
importantes das quais suspeitava, deixando­as logo após em liberdade.
    Sobre Constantino VIII e as penas de vazamento de olhos por ele aplicadas, Zonaras, 
cronista bizantino do século XII, afirma:
    "Ele tinha verdadeira predileção por esse tipo de suplício que imobiliza a vítima e a torna 
incapacitada, sem a fazer perecer. Ele utilizou continuamente durante seu reinado esse 
terrível suplício para reduzir a nada uma multidão de homens eminentes. Dava­se a isso, em 
Constantinopla, um nome repleto de dolorosa ironia: a divina clemência do imperador" 
(Apud Schlumberger).
    Diversos são os historiadores que relatam fatos indicativos do uso e do abuso do poder por 
parte de Constantino VIII. O caso mais flagrante e que provocou uma mudança de rumo na 
História do Império Romano do Leste, relacionou­se à sua sucessão.
    Vejamos o que aconteceu: Constantino VIII tinha três filhas e nenhum herdeiro do sexo 
masculino; a mais velha das princesas ingressara num convento e as duas outras ­ Teodora e 
Zoé já com seus cinqüenta anos de idade, não haviam casado. Em 1028, nos primeiros dias 
de novembro, já em seu leito de morte após três anos de lamentável reinado, resolveu casar 
urgentemente pelo menos uma das filhas, podendo dessa forma passar seguramente o trono a 
ela e a seu príncipe consorte.
    Para assegurar um casamento condigno, convocou ao palácio o candidato mais indicado 
pelos eunucos e por alguns nobres de seu círculo mais próximo: Romano Argiro. Colocado 
aos pés do leito do imperador moribundo, tendo ao lado sua esposa, foi "intimado a se 
divorciar dela e a casar­se com uma das princesas, ou teria os olhos vazados. Tendo Teodora 
se recusado ao casamento, Romano Argiro casou­se com Zoe no dia 8 de novembro, três 
dias apenas antes da morte de Constantino VIII. Muito embora os dois cônjuges fossem 
parentes, o patriarca de Constantinopla, Alexius, relevou a dificuldade no interesse do 
Estado" ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier).
    Romano III, Argiro, foi o primeiro dos três maridos de Zoé.
    
    ­ *Miguel V: imperador bizantino por apenas 132 dias*
    A imperatriz Zoé é lembrada na história bizantina tanto por sua vaidade quanto por suas 
aventuras amorosas. Mas ela é também lembrada pelas diversas tragédias acontecidas 
durante seus 20 anos de imperatriz, tragédias que aconteceram devido aos seus casamentos.
    Romano Argiro, seu primeiro marido, por exemplo, que passou para a História como um 
imperador muito voltado aos interesses do Império, esquecendo as atenções que poderia dar 
à sua imperatriz que ainda era uma mulher bonita, bem conservada e saudável, teve sua 
morte por ela encomendada no ano de 1034, depois de ocupar o trono por seis anos. O 
motivo de Zoé: estava profundamente apaixonada por um novo amante seu e queria 
transformá­lo em imperador. Morto Romano, a imperatriz casou­se imediatamente, subindo 
ao trono Miguel IV. No entanto, o que logo a imperatriz descobriu foi que seu amado era 
doente e sofria de ataques epiléticos cada vez mais constantes. Tanto isso é real que logo se 
desinteressou da imperatriz e retirou­se a um mosteiro longínquo. Antes disso, porém, havia 
convencido Zoé a adotar um sobrinho seu como herdeiro do trono, o que a imperatriz fez 
com poucas hesitações face à paixão que a consumia.
    Em fins de 1041 o imperador foi substituído pelo herdeiro que assumiu o cargo com o 
nome de Miguel V. Para este jovem imperador leviano, hipócrita, bajulador e sem caráter, 
que reinou por pouco mais de 4 meses, a glória terminou numa negra tragédia pessoal.
    Miguel V irradiava uma antipatia tão forte ao seu redor que logo se tornou intolerável para 
a imperatriz e para a corte toda. Percebendo o perigo que corria, Miguel procurou bajular e 
agradar em público a imperatriz. Em tudo Miguel V procedia de acordo com orientações 
recebidas de um tio seu, Constantino, que recebera o título de "nobilíssimo".
    No dia 18 de abril de 1042, entretanto, as intenções de Miguel V e de seu tio confidente 
vieram à tona: Zoé foi presa e internada num convento. Antes, porém, foi vítima de supremo 
ultraje, pois teve seus vistosos e bem cuidados cabelos loiros cortados por ordem do 
imperador.
    No dia seguinte a esses acontecimentos a revolta popular e das forças armadas estava 
montada e o palácio completamente cercado. Teodora, irmã da imperatriz destronada, foi 
trazida às pressas de volta a Constantinopla e coroada como "basilissa" na igreja de Santa 
Sofia. No dia 21 de abril Miguel V estava deposto.
    Mas sua história não termina aí, pois ele e Constantino conseguiram fugir e procurar a 
segurança de um mosteiro. Lá foram localizados. "Miguel e Constantino fugiram por mar 
para o mosteiro de Stoudios onde, por ordem de Teodora, vazaram seus olhos e internaram­
nos cada um num mosteiro diferente ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier) .
    Em julho de 1042 Zoé casava­se com Constantino Monômaco.

    ­ *Constantino IX, Monômaco: limitações físicas muito sérias*
    Levado ao trono bizantino graças à sua boa estrela, Constantino Monômaco (980 a 1054) 
iniciou a parte mais conhecida de sua vida após o casamento com Zoé, ele com 62 e ela com 
64 anos de idade. Transformou­se dessa forma em seu terceiro marido e príncipe consorte, 
com o titulo de Constantino IX.
    Constantino era um homem especial, segundo os historiadores. Ele é assim descrito logo 
ao início de seu governo: "Seu rosto era encantador: tinha a tez clara, traços finos, um 
sorriso delicado, uma irradiação de graça espalhava­se sobre toda a sua figura. 
Admiravelmente bem proporcionado, tinha um talhe elegante e bem dosado, mãos finas e 
bonitas" ("Choses et Gens de Byzance", de Diehl).
    Estamos, no entanto, falando de um imperador que viveu muito intensamente uma 
seriíssima deficiência física, sofrendo muito com os problemas decorrentes de um mal que 
os historiadores identificaram como gota, mas que poderá ter sido artrite reumatóide ou 
artrite deformante.
    Para que tenhamos uma idéia viva das limitações físicas que atingiram o imperador 
bizantino é importante que analisemos os escritos de um contemporâneo seu: Miguel 
Psellos, autor de 125 trabalhos escritos, professor de filosofia, escritor renomado e 
Secretário de Estado de Constantino IX.
    Em sua notável obra "Chronographie" ele nos refere, na línguagem própria da época e 
com os limitados conhecimentos de medicina de então, o seguinte: "Os elementos essenciais 
desagregaram­se e embaralharam­se e, tanto nos pés e no âmago das juntas, quanto nas 
mãos, afluíam para dali inundar os músculos e os ossos da própria região lombar"...
    O mal não atingiu de imediato o corpo todo. Seus pés foram os atingidos em primeiro 
lugar, impedindo­o imediatamente de andar. Movimentava­se apenas com a ajuda dos 
outros, sempre carregado de um lado para o outro, no palácio, como um fardo. Psellos entra 
em pormenores preciosos quanto à vida diária do imperador e sua deficiência física tão séria, 
pois privava muito com ele.
    "...o fluxo de imediato atingiu suas mãos e depois seus ombros, e acabou atingindo o 
corpo todo. A partir daí, todo membro inundado por esse fluxo terrível perdia sua energia e, 
com as fibras e ligamentos embaralhados, os elementos da harmonia deslocaram­se, 
resultando em desequilíbrio e enfraquecimento. E eu vi seus dedos, tão bem feitos, negar sua 
própria forma e, retorcidos e desalinhados, tornar­se incapazes de segurar não importa o que; 
seus pés ficaram totalmente inchados e dobrados sobre si mesmos; seus joelhos, também 
inchados, formavam uma saliência como um cotovelo, a tal ponto que não eram capazes de 
assegurar sua marcha; e, impossibilitado de manter­se em pé por longo tempo, passava a 
maior parte do tempo no leito e quando desejava dar audiências, fazia­se preparar e arrumar 
para tal fim" ("Chronographie", de Psellos).
    No entanto, o povo tinha o direito e ansiava mesmo pelas cerimônias e procissões 
imperiais, tão repletas de cores e de fausto. Constantino reconhecia isso e participava, como 
era seu dever; mas seu sofrimento aumentava muito nessas ocasiões.Algumas providências 
eram tomadas para reduzir a um mínimo as dores do imperador.
    "Uma certa arte, a dos cavaleiros, o auxiliava e mantinha sobre a sela; depois, uma vez a 
cavalo, respirava com dificuldade e as rédeas eram supérfluas; levado por sua montaria, 
escudeiros vigorosos e de boa estatura sustentavam­no de ambos os lados e assim, apoiando­
o daqui e dali, seguravam­no como um fardo e transportavam­no para onde deveria ser 
levado. Mas ele, mesmo no meio de tantos males, não deixava de
lado suas características básicas; muito pelo contrário, ele compunha com elegância sua 
aparência; depois movia­se e mudava de lugar sozinho, ao ponto de aqueles que o viam não 
ficarem muito seguros de que vivia entravado pelas dores e minado pela doença" 
(Chronographie", de Psellos) .
    Que outras providências eram tomadas nessas procissões solenes para reduzir a um 
mínimo suas dores e dificuldades? Cobriam todo o trajeto com tapetes a fim de evitar que 
seu cavalo escorregasse nas lajotas das avenidas entre o palácio imperial e a basílica de 
Santa Sofia. Em sua vida de todo o dia e dentro do palácio, para se movimentar de ambiente 
para ambiente ele era carregado por camareiros bastante fortes sem maiores dificuldades, a 
menos que houvesse a incidência de um forte ciclo de dores. Para repousar à noite com um 
mínimo de desconforto, a dificuldade crescia, pois qualquer posição lhe era incomoda e 
diante disso seus camareiros ajudavam­no a procurar posições, viravam­no com cuidado no 
leito e com isso conseguiam acertar almofadas e adaptações não especificadas mas citadas 
na obra de Psellos, para tornar o sono possível.
    O grande cronista bizantino não faz qualquer comentário quanto à intervenção de médicos 
ou ao uso de medicamentos, muito embora seja certo que tudo era feito para diminuir as 
dificuldades do imperador. Com o passar dos anos Constantino IX sentia dores até na língua 
ao falar, sendo­lhe um suplício mudar de lugar. Assim, ele acabou paralisado num lugar só 
praticamente.
    Psellos informa também que Constantino, apesar da verdadeira batalha com dores e 
problemas delas decorrentes, jamais deixou escapar uma palavra contra Deus. E se alguém 
vinha se queixar dos próprios sofrimentos, ele ficava aborrecido e mandava a pessoa se 
retirar, às vezes até usando de palavras rudes.
    No mais recôndito de seu ser Constantino IX aceitava suas dores e a limitação física como 
uma punição pelos seus pecados passados e como freio de sua natureza. "Como meus 
instintos não cedem à razão, capitulam diante dos sofrimentos do corpo; meu corpo sofre, 
mas os impulsos desordenados de minha alma são assim controlados", afirmava ele (Apud 
Psellos).

    ­ *Romano IV, Diógenes: presa de um soldado com deficiências*
    Este imperador bizantino permaneceu na liderança do Império de 1067 até 1071. Logo 
que se casou com a imperatriz viúva, Eudóxia, no ano de 1067 e mal investido da autoridade 
e da dignidade de imperador, Romano, que era um general muito competente, partiu no 
comando de um grande exército para combater sarracenos e
turcos Seljuk, em três diferentes campanhas. Na última delas, levou suas tropas contra o 
sultão turco Alp Arslan, com ele defrontando­se na grande batalha de Mantzikert.
    Muito embora tenha lutado com extrema valentia e competência, Romano IV foi feito 
prisioneiro e levado à presença de Alp Arslan, com o qual acabou assinando um tratado de 
paz que os bizantinos consideraram vergonhoso.
    Nesse evento, todavia, queremos chamar a atenção para uma pequena informação do 
historiador Gibbon sobre as circunstâncias de seu aprisionamento. Afirma ele o seguinte:
    "Enquanto a esperança sobrevivia, Romano tentava reagrupar e salvar o restante de seu 
exército. Quando o centro, a estação imperial, ficou sem proteção de todos os lados e 
cercado pelos turcos vitoriosos, ele, ainda com desesperada coragem, manteve a luta até o 
final do dia, à testa dos bravos homens que haviam aderido ao seu estandarte. Eles caíram ao 
seu redor; seu cavalo foi morto; o imperador foi ferido. Apesar disso ele se manteve só e 
intrépido até que foi dominado e imobilizado pela força das multidões. A glória por essa 
ilustre presa foi disputada por um escravo e por um soldado: um escravo que o havia visto 
no trono de Constantinopla e um soldado cuja extrema deformidade havia sido relevada face 
à necessidade de serviços de sinalização" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de 
L'Empire Romain", de Gibbon).
    Como podemos muito bem notar por essa informação, às vezes pessoas deficientes eram 
consideradas aproveitáveis nos exércitos em funções que pouco ou nada demandavam 
quanto ao uso de armas. E no caso do aprisionamento de Romano IV, esse soldado com 
sérias deformidades físicas teve um destacado papel a fim de possibilitar que seu importante 
prisioneiro chegasse ao dia seguinte com vida. Assinale­se que havia prêmios altamente 
compensadores por prisioneiros resgatáveis ­ e um imperador era um caso altamente 
excepcional que levava não só a resgates a peso de ouro, como a tratados diversos. O próprio 
historiador Gibbon afirma que, já despojado de suas armas, das suas jóias e do seu manto de 
púrpura, Romano IV passou uma noite muito perigosa para sua vida no devastado campo de 
batalha, cercado por uma multidão quase sem controle que saqueava tudo o que podia.
    Voltando a Constantinopla, Romano IV foi destronado, preso e teve seus olhos vazados, 
por ordem do césar João Dukas; foi internado num mosteiro, em Proti, no mar de Mármara, 
ao sul de Constantinopla.
    ­ *Enrico Dandolo: "doge" veneziano cego*
    Enrico nasceu perto de Veneza no ano de 1105 e faleceu com exatamente 100 anos de 
idade na grande capital do mundo oriental daquele século: Constantinopla. Sempre muito 
hábil e corajoso em suas atividades comerciais e guerreiras, Dandolo foi um ótimo político e 
um hábil negociador, excelente orador e dono de um soberbo nome de família romana das 
mais antigas tradições que o tornaram muito influente na República de Veneza.
    Foram essas condições básicas e as circunstâncias relacionadas a negócios de Estado que 
o levaram a Constantinopla, em missão oficial e na qualidade de enviado das autoridades da 
poderosa República de Veneza. O objetivo era resolver uma pendência muito séria no ano de 
1171 quando Dandolo já estava com 66 anos de idade: Manuel Comnenus (1143 a 1180), 
imperador bizantino, havia aprisionado navios e tripulações de Veneza e recusava­se a 
devolvê­los, desafiando acintosamente os direitos reclamados e mesmo o cumprimento dos 
tratados assinados entre o Império Bizantino e a República Veneziana, que era muito 
importante àquela época.
    Dandolo foi incisivo na corte bizantina e expressou com extrema clareza e em termos 
convincentes a indignação sentida pelos venezianos face às atitudes do imperador quanto aos 
navios e suas tripulações.
    O que o velho embaixador certamente não havia imaginado era o tipo de reação do 
imperador bizantino que, enfurecido ao extremo e ofendido com as argumentações fortes de 
Dandolo, apelou para a tortura refinada e cruel, típica de sua corte: mandou colocar próximo 
aos seus olhos vasos de metal incandecente que acabaram comprometendo seriamente sua 
visão. Dizem os historiadores que Dandolo ficou completamente cego.
    De volta a Veneza foi reconhecido como fiel intérprete da opinião do governo e do povo 
veneziano e, apesar de cego, foi eleito "doge" ­ cargo supremo daquela república ­ alguns 
anos após o incidente na corte de Manuel Comnenus.
    Dandolo foi extremamente importante nos eventos que transformaram por completo a 
História Bizantina e a História de Veneza. Esses eventos envolveram a Dinastia Angelus e 
levaram à introdução de algo totalmente novo na história tumultuada de Constantinopla: os 
imperadores latinos. Levaram também à partilha do grande
Império entre os nobres cruzados e a República de Veneza, como veremos a seguir.

    ­ *Isaac II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador*
    Durante a primeira parte do reinado do questionado imperador Isaac II, Angelus, que vai 
de 1185 a 1195, um parente seu, Constantino Angelus, proclamou­se imperador bizantino 
com o apoio de suas tropas. Foi vencido e destronado pelas forças de Isaac II, tendo sido 
julgado de acordo com as leis. A sentença: vazamento de seus olhos. No entanto, um outro 
parente ­ e desta vez seu próprio irmão Alexius – liderou outra revolta no ano de 1195, 
procurando afastar o incompetente e alienado imperador. Desta vez Isaac II foi preso e teve 
seus olhos vazados por ordem do irmão a fim de eliminar suas pretensões de volta ao trono 
do Império Bizantino.
    Alexius assumiu o Império com o nome de Alexius III e imperou de 1195 até 1203, 
mantendo seu irmão na prisão ao lado do filho e pretenso herdeiro do imperador destronado. 
Com o passar dos anos, porém, o novo imperador soltou o sobrinho, que tinha também o 
nome de Alexius, fazendo­o participar de campanhas militares ao seu lado. O jovem príncipe 
mantinha­se inconformado e fazia planos para voltar a Constantinopla e conquistar o trono 
que por herança teria sido seu. E na primeira oportunidade fugiu e foi buscar a colaboração 
de nobres europeus que em Veneza procuravam organizar uma cruzada à Terra Santa e ao 
Egito, sob a forte liderança do "doge" cego, Dandolo.
    Com o aval do papa Inocêncio III conseguiu convencer o grupo de nobres a viajar para 
Constantinopla a fim de derrubar Alexius III e de garantir sua instalação no trono. Havia 
condições muito pesadas para tanto: pagar o aluguel dos barcos usados para todo o 
transporte dos cruzados e seus exércitos, ajudar financeiramente na organização de uma 
cruzada ao Egito e submeter a Igreja Ortodoxa a Roma. E a empreitada foi aceita na 
presunção líquida e certa de que Isaac II, cego como estava, não poderia mais ocupar o trono 
bizantino e de que Alexius seria, como de fato era, seu herdeiro.
    No entanto, quando Alexius III foi afastado do trono, enquanto os garbosos cruzados 
avançavam deslumbrados pelas avenidas de Constantinopla, os habitantes de origem grega 
libertaram Isaac II e colocaram­no no trono como imperador de fato.
    Quando o jovem Alexius e os cruzados chegaram ao palácio imperial tiveram a surpresa 
do fato consumado: o trono estava ocupado pelo velho imperador cego.
    "O choque foi muito grande para Alexius e para os cruzados, pois de acordo com a 
tradição bizantina, a cegueira incapacitava um homem para ser imperador" ("Cambridge 
Medieval History", de Hussey).
    Mas foi um impasse curto, pois pai e filho, após o reencontro, conversaram muito e Isaac 
II acabou aceitando as condições negociadas pelo filho, embora deixando claro que duvidava 
de sua viabilidade. E o velho imperador cego estava certo. Ficou logo claro que não seria 
possível pagar os cruzados e cumprir o prometido. Foram ambos afastados do trono, 
inaugurando­se então a fase de investidura dos imperadores latinos, sob a custódia dos 
cruzados Os imperadores do ocidente europeu.

    ­ *Outros eventos que levaram a deficiências físicas e sensoriais*
    Muitos outros eventos aconteceram no milênio de existência do Império Bizantino que 
levaram nobres e imperadores a terem seus olhos vazados ou corpos mutilados. Dentre eles 
cumpre destacar:
    ­ Filípico ­ cognominado de Bardane ­ foi imperador entre 711 e 713, sendo originário da 
Armênia. Foi infeliz em seu governo por ter que lutar contra búlgaros e árabes ­ inimigos 
externos além de enfrentar internamente os problemas com os ortodoxos e com os que 
pressionavam em favor da Igreja vinculada a Roma. Deposto finalmente, teve seus olhos 
vazados. 
    ­ Heracleonas ­ imperador de fevereiro a setembro de 641. Ao final do governo de seu pai, 
imperador Heraclius, obteve o título de "augusto", por influência direta de sua mãe. Dessa 
forma, foi proclamado imperador ao lado de seu irmão, Constantino III. A morte prematura 
deste levou a corte a suspeitar de Heracleonas e de sua mãe. Foi logo após destronado e 
preso; segundo os historiadores foram mutilados e banidos para a ilha de Rhodes.
    ­ Bryenne, general bizantino ­ Nicéforo Bryenne, general bizantino do século XI, era 
originário de importante família. Foi nomeado duque da Bulgária em 1075, 60 anos após a 
derrocada provocada por Basílio II. No ano de 1077 proclamou­se imperador da Bulgária 
mas foi derrotado por Nicéforo Botoniate em 1078, preso e, por ordem do imperador Miguel 
VI, teve seus olhos vazados.
    ­ Andrônico I ­ Andrônico Comnenus liderou revolta contra o imperador Alexius II, 
Comnenus, destronando­o. Enquanto se manteve precariamente no poder mandou cegar o 
"protosebaste", cujo titular tinha importância correspondente à de um primeiro ministro. 
Entretanto, suas lutas acabaram por garanti­lo no trono de 1183 até 1185. Foi um imperador 
cruel. "Multidões reuniam­se para ver o desfile ou a imolação de alguns traidores ou
criminosos horrivelmente mutilados; e as ferozes execuções ordenadas por Andrônico I 
foram o prelúdio natural para seu terrível fim, que, todavia, ele suportou com uma valentia 
muito própria" ("Cambridge Medieval History", de Hussey). Andrônico I morreu mutilado.
    ­ Teodoro Dukas ­ Foi imperador da província de Tessalônica e era irmão de Miguel 
Angelus Comnenus. Fez algumas tentativas para conquistar Constantinopla e para tanto 
procurou atacar a cidade pelo norte. No entanto, não quis "dar as costas" à Bulgária, 
considerada um perigo para seus exércitos. Com isso, provocou um sério atrito com antigo 
amigo seu, o czar búlgaro João Asen. Foi por ele derrotado na batalha de Klokotnika, em 
1230, tendo lá sido preso. E, por ordem do "amigo" czar, teve seus olhos vazados. Teodoro 
Dukas, no entanto, era muito dinâmico e sagaz. Acabou reconquistando a amizade de João 
Asen e foi posto em liberdade. Voltou incontinenti à Tessalônica e viveu uma vida de 
contatos políticos muito intensos, conseguindo inclusive lançar o chamado Império Grego da 
Tessalônica em violentas lutas, influindo decisivamente nas tomadas de decisão de seu 
irmão Manuel e de seus dois filhos, João e Demétrio.

    Para finalizar os relatos de eventos históricos ou de fatos relacionados a personalidades 
que marcaram o Império Bizantino, resta­nos falar de algumas figuras históricas que 
viveram nos séculos XIII e XIV: destaquemos, para tanto, os nomes famosos de Miguel 
Paleólogus e de João V, Paleólogus.

    ­ *Ato friamente planejado instala a Dinastia dos Paleólogus*
    Um ato muito frio e cruel nos é relatado por diversos historiadores e em especial por 
Gibbon, em sua obra anteriormente citada. Esse proceder desumano ocorreu no início do 
século XIII.
    O jovem príncipe João Lascáris (1250 a 1300 aproximadamente) que passou para a 
História Bizantina como João IV, era filho de Teodoro II, falecido em 1259. Com apenas 8 
anos de idade o herdeiro do trono bizantino teve como tutor o próprio patriarca de 
Constantinopla, Arsenius Autorianus. No entanto, graças a tramas muito bem urdidas e 
contando com o total apoio da grande família dos Paleólogus, Miguel foi apontado como 
tutor do jovem príncipe, tendo então recebido o titulo honorífico de "déspota" e algum 
tempo após o de "imperador­adjunto". Para efeitos desse segundo titulo, ele foi coroado na 
cidade de Nicéa em 1260.
    No ano seguinte, estando João IV, Lascáris, com apenas 11 anos de idade, Miguel 
Paleólogus resolveu destronar o príncipe e com isso afastar a dinastia dos Lascáris. Para 
tanto mandou cegá­lo.
    "A perda da visão incapacitou o jovem príncipe para as atividades do mundo: em vez da 
violência brutal de arrancar os olhos, o nervo ótico foi destruído com o intenso brilho de um 
vaso incandescente, e João Lascáris foi levado para um castelo distante, onde passou muitos 
anos na privacidade e na obscuridade" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'Empire 
Romain", de Gibbon).
    Arsenius Autorianus, ex­tutor de João Lascáris, patriarca da Igreja Ortodoxa, excomungou 
Miguel Paleólogus por esse ato ­ o que de fato provocava uma situação especial, pois o 
imperador era considerado o representante de Cristo. No entanto, após muita insistência do 
imperador e da corte, não ocorrendo a revogação do ato punitivo, o patriarca foi trocado e a 
excomunhão revogada.
    Além de cegar João IV, Miguel VIII, Paleólogus, mandou cegar vários nobres 
recalcitrantes e inconformados com a situação.
    "Em 1261 Miguel Paleólogus, querendo punir seu secretário Manuel Holóbolus por ter­se 
apiedado da sorte do infeliz João Lascáris, fez amputar seu nariz e seus lábios, após ter ele 
os olhos vazados" ("Les Institutions de l'Empire Byzantin", de Bréhier).

    ­ *O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389)*
    Durante o governo de João V, Paleólogus, sob a quase total custódia do sultão otomano 
Mourad I, o imperador bizantino procurou manter com os turcos um relacionamento cordial. 
Praticamente todo o território do Império Bizantino já havia sido tomado pelos turcos, à 
exceção de Constantinopla fortificada, que se mantinha intocada devido a um certo receio 
que os tão aguerridos otomanos tinham dos cruzados e das reações da Europa Cristã, caso a 
cidadela fosse tomada e saqueada.
    Enquanto João V mantinha sua capital na inexpugnável Constantinopla, o sultão turco 
colocava a sua na cidade de Adrianopla, próximo às fronteiras da Bulgária e da Grécia e a 
pouca distância da capital bizantina.
    Havia visitas cordiais à corte do sultão e as famílias ficaram se conhecendo bem. Tanto 
isso é verdade que Andrônico, o filho mais velho de João V, fez uma boa amizade com 
Saoudj, filho mais velho e eventual sucessor de Mourad I. Os dois jovens pretendentes aos 
respectivos tronos começaram a conspirar contra seus pais logo após Andrônico ter sabido 
que João V o havia afastado da sucessão em beneficio de seu irmão Manuel.
    Mourad I descobriu a conspiração dos dois príncipes e tomou uma decisão drástica contra 
a traição de seu filho primogênito: mandou vazar seus olhos, o que ocorreu em 1376. Mas o 
rigoroso sultão não deixou o assunto morrer aí, pois forçou o imperador bizantino a se 
manifestar, confrontando­o com o aspecto "traição".
    "O otomano ameaçou seu vassalo com o tratamento de um cúmplice e de um inimigo, a 
menos que ele infligisse a mesma punição a seu filho. Paleólogus tremeu e obedeceu, e uma 
precaução cruel envolveu na mesma sentença a infância e a inocência de João, filho do 
criminoso. Mas a operação foi feita tão brandamente ou tão imperitamente que um manteve 
a visão de um olho e o outro foi vítima apenas do mal do estrabismo" ("Histoire de la 
Décadence et de la Chute de l'Empire Romain", de Gibbon).
    Os dois príncipes conspiradores foram presos na famosa torre de Anema e a sucessão aos 
dois poderes ficou garantida para Manuel, do lado bizantino, e para Bayazet, do lado 
otomano. Dois anos após a aplicação da pena, os dois mandatários foram depostos e 
encerrados na mesma torre da qual os dois príncipes foram retirados para ocupar os seus 
respectivos tronos (Apud Gibbon).

    3. As Pessoas Deficientes na Idade Média

    Dos anos 500 até o final do século X, mergulhada num generalizado estado de ignorância, 
uma leve e quase imperceptível chama de cultura clássica era conservada na Europa e em 
muitos pontos do Oriente Médio. Os povos invasores e desmanteladores do antes 
inexpugnável Império Romano mantinham­se em franca e obscura atitude contrária aos 
ensinamentos deixados pelos grandes pensadores gregos e romanos, enquanto que no 
Oriente Médio, numa situação bem diversa daquela encontradiça na Europa, os povos 
árabes, igualmente invasores e expansionistas, procuravam desvendar todo o mistério de 
conteúdo da propalada sabedoria grega e dos seus mais renomados filósofos e cientistas.
    E no meio do caos do destroçado Império Romano, a Igreja Cristã demonstrava sua 
pujança e sua rigidez: ela passou a ser quase que o único baluarte capaz de manter a cultura 
clássica que ela preservava com segurança nas bibliotecas dos mosteiros e dentro de seus 
fortes muros organizacionais.

    ­ *A criação de hospitais e abrigos para pobres*
    Apesar de todas as concepções místicas, mágicas e muito misteriosas, de muito baixo 
padrão, que foram a tônica da cultura das populações menos privilegiadas e mais 
empobrecidas durante muitos séculos da Idade Média, em muitas partes da Europa e do 
Oriente Médio, os casos de doenças e de deformações das mais diversas naturezas ou causas 
passaram aos poucos a receber mais atenção. Isto é verdadeiro não só quanto à
Europa Cristã mas também a todo o leste islâmico. Um dos sintomas dessa atenção mais 
humanizada foi a continua criação de hospitais.
    No leste da Europa, por exemplo, hospitais e abrigos para doentes e pessoas portadoras de 
deficiências mais pobres eram criados por vezes por senhores feudais ou por governantes de 
aglomerados urbanos mais fortes ou de burgos mais significativos, sempre ajudados pela 
cooperação de esforços provenientes da Igreja. Além disso tivemos no século VII a criação 
de uma instituição para cegos perto de Pontlieu, na França, por iniciativa do bispo de Le 
Mans, São Bertrão. Foi um projeto diferente daqueles usualmente encontrados na mesma 
época.

    ­ *Um santo cego na história da Bretanha do século VI*
    A história de Santo Herveu, o monge cego, é típica do início da Idade Média, pois está 
repleta de poesia e de crendices. Segundo ela, Herveu nasceu no ano 520 na Bretanha 
continental. Seu pai foi o bardo (cantor e poeta) Hoarvian e sua mãe, uma piedosa jovem que 
cantava os salmos com excelente voz, Rivanone.
    Dizem os poucos biógrafos desse pouco conhecido santo bretão que sua jovem e 
inexperiente mãe, muito inquieta com os perigos do mundo, pediu a Deus que seu filho 
nascesse cego. O pai, menos sonhador e muito mais prático, ficou atemorizado com essa 
prece e repreendeu­a, dizendo:
    "Ó mulher, não é cruel por parte de uma mãe pedir que seu filho seja privado da luz da 
vida? Se ele deve nascer assim, todavia, peço de minha parte a Deus todo poderoso, que essa 
criança já daqui desse mundo tenha visão dos esplendores do céu. E para que minha prece 
seja atendida, renuncio desde agora a todas as vaidades deste mundo para servir apenas a 
Deus pelo resto de meus dias".
    E o pai acabou partindo de fato, sem ter chegado a ver o filho que, de acordo com orações 
de sua mãe, nasceu cego. O nome Herveu, recebido no batismo, significa "amargo". Bem 
mais tarde a mãe também deixou o filho com um monge conhecido pelo nome de Arzian, 
passando o menino a viver confinado no mosteiro.
    Herveu aprendeu muito com a escola existente no mosteiro de Arzian, incluindo em suas 
preferências também as ciências profanas, além de todos os salmos que sua mãe ­ ele 
recordava muito bem ­ cantava com límpida voz. No seu dia­a­dia o jovem Herveu 
movimentava­se com a ajuda de um guia chamado Guiac'han.
    Foi durante sua adolescência que deixou o mosteiro de Arzian e foi em busca do retiro do 
eremita Urfold, num local próximo ao convento onde sua mãe vivia confinada. Com a ajuda 
do eremita, Herveu acabou  encontrando sua mãe, muito debilitada pelos jejuns e pelas 
penitências.
    Transformou­se logo em professor, apesar da cegueira. No entanto, por humildade 
afastou­se e começou a peregrinar de mosteiro a mosteiro, seguido por grupos de alunos 
seus. Nessa espécie de peregrinação constante, o grupo visitou o bispo de Houardon que quis 
ordenar Herveu sacerdote. Mas, devido à sua cegueira e à sua humildade, não aceitou a 
ordenação. Recebeu finalmente as chamadas "ordens menores" e o poder do exorcismo. 
Fundou um mosteiro próprio pelo ano de 540, num local posteriormente conhecido como 
Lanhouarneau.
    Apesar de não ser sacerdote, recebeu o título de abade de sua congregação e nessa 
qualidade foi convocado para o concílio que ia ser realizado em Menez­Bré, em 545. Conta­
se que os participantes ficaram o dia todo esperando por ele para iniciar o conclave, o que 
irritou sobremaneira um dos bispos presentes.
     ­ "O que? ! ... Foi para esperar esse ceguinho que perdemos um dia todo?", explodiu o 
prelado. Sentiu­se uma indignação geral contra o bispo que, castigado no próprio ato, caiu 
cego ao chão. Herveu aproximou­se e tomando de um pouco de água que começara a brotar 
de seu bordão, umedeceu os olhos da vítima que logo a seguir voltou a enxergar (Apud Le 
Berre).
    Suas relíquias ainda hoje existentes no mosteiro de Lanhouarneau (distrito de Finistère, na 
Bretanha, a oeste da França, entre a Baía de Biscaia e o Canal da Mancha) são sempre 
usadas para a benção das águas da Fonte de Santo Herveu, em procissão solene realizada no 
dia de sua festa. Dizem que essas águas têm virtudes um tanto misteriosas para a cura de 
males dos olhos nelas lavados. Seus restos mortais foram transferidos para a catedral de 
Nantes em 1002.
    Santo Herveu é considerado o patrono dos cantores populares e é festejado em 17 de 
junho.

    ­ *Santo Egídio, padroeiro dos deficientes*
    Santo Egídio (Gilles, em francês e Aegidius, em latim) é patrono da pequenina cidade de 
Saint Gilles, ao sul da França. Fica situada no Departamento de Gard, as margens do canal 
do rio Rhone­à­Sète. Existe na vila uma antiga abadia que chegou a ser expressamente 
protegida por Carlos Magno e que hoje guarda as relíquias de seu santo padroeiro, que lá 
viveu no século VI.
    É ele considerado na França como um dos dez santos que mais ajudam à população 
desamparada e sempre foi venerado na Europa como o padroeiro dos mendigos, dos 
ferreiros e das pessoas com defeitos físicos.
    Sua fama foi tão importante no passado que os peregrinos agradecidos chegaram a 
contribuir para a melhoria da vila e da abadia. O famoso santo é representado tendo ao seu 
lado uma flecha e uma corça. Segundo lendas do século X Egidio era um jovem aristocrata 
de origem ateniense que, após ter visitado o mosteiro de São Cesário de Arles, pelo ano 543, 
passou a viver como eremita no meio do bosque. Foi ferido acidentalmente pelo rei Flavius 
dos Godos quando este perseguia uma corça e ela procurara segurança aos pés de Egídio.  
Arrependido com o engano, Flavius mandou imediatamente construir uma abadia naquele 
bosque e nomeou Egídio seu abade.
    Sua festa é celebrada no dia primeiro de setembro. Os restos mortais de Santo Egídio, 
levados a Toulouse no século XVI, foram transladados para Saint Gilles apenas em 1862.
    
    ­ *Assistência aos pobres pela Igreja*
    Os pobres, os doentes e os deficientes físicos e mentais foram objeto de uma norma da 
Igreja Católica em pleno século VI, norma essa que pretendia assisti­los e ao mesmo tempo 
circunscrever seus movimentos a um determinado território.
    E foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567 que decretou pelo seu cânone 
quinto o seguinte:
    “Cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os habitantes 
também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos vagabundos de correr as 
cidades e as províncias” (Apud Guérin).
    É também relevante saber que o concílio de Lyon (583) aprovou, em seu último cânone, a 
seguinte medida relacionada aos hansenianos:
    “Os leprosos de cada cidade e de seu território serão alimentados e abrigados às expensas 
da Igreja, aos cuidados do bispo, a fim de lhes impedir a liberdade para serem vagabundos 
em outras cidades” (Apud Guérin).

    ­ *A mutilação como castigo no século VII*
    Desde épocas imemoriais, em quase todas as culturas espalhadas pela Europa e por todo o 
resto do mundo conhecido até o século VII d.C., praticamente todos tinham o direito ­ ou 
viam­se investidos desse direito ­ de punir severamente seus criados, seus escravos ou 
empregados, mesmo que fosse, conforme as circunstâncias, pela mutilação de parte de seus 
corpos: orelhas, nariz, dedos, membro sexual, etc.
    Durante os primeiros séculos da Idade Média essa punição tanto podia ser aplicada 
diretamente pelo senhor como, de um modo indireto, por meio de juízes. A gravidade da 
situação poderá ser bem retratada por uma decisão tomada num dos concílios particulares da 
Igreja. Foi o concílio de Mérida, em Portugal, no ano 666 que procurou cercear esse bárbaro 
costume, pelo menos com relação aos bispos e sacerdotes, já um tanto distanciados dos 
preceitos da caridade. O cânone décimo quinto, aprovado nesse concílio, “proíbe aos bispos 
e aos sacerdotes maltratar os empregados da igreja pela mutilação e manda que, se forem 
eles considerados culpados de qualquer crime, que sejam entregues aos juízes seculares, pelo 
menos para os bispos moderarem a pena à qual serão condenados, e não deixarem que sejam 
marcados com ignomínia” (Apud Guérin).
    
    ­ *O milagre de fazer um mudo falar*
    São Vedo, cognominado “o Venerável”, tem sido considerado nos meios católicos 
ingleses não só como um homem santo, mas também como um sábio e grande historiador. 
Nasceu em 675, vindo a falecer em 735. Escreveu muitas obras dentre as quais não podemos 
deixar de chamar a atenção para a História Eclesiástica da Nação Inglesa a qual cobre 
período que vai desde os primórdios da Igreja Cristã na Inglaterra até 731.
    Consta nessa obra que em 685 um bispo católico chamado João, tido como santo e 
miraculoso, ensinou um jovem que nunca havia pronunciado palavra alguma a falar. Apesar 
do Santo historiador inglês citar o fato como um milagre, não causaria impacto maior hoje 
em dia ou mesmo há dois ou três séculos atrás.
    Segundo São Bedo, o bispo João pediu ao jovem para mostrar sua língua e soltar o som já, 
o que foi feito aparentemente sem maiores dificuldades. A partir desse ponto, pronunciando 
uma a uma as várias letras do alfabeto, o bispo orientou o jovem a repeti­las. Daí por diante 
o prelado começou a inserir sílabas, palavras curtas mesmo frases simples. O moço obteve 
pleno êxito e não parou mais de falar.
    No campo da comunicação dos deficientes da palavra falada esse é um fato totalmente 
isolado ocorrido no início da Idade Média, uma vez que só ouviremos falar sobre o ensino de 
surdos e de surdos­mudos pelo final do século XV (Apud Muller).

    ­ *Amputações como penalidade por crimes cometidos*
    Embora não disponhamos de dados muito precisos, existem evidências de penas severas 
para crimes considerados graves durante toda a Idade Média, em diversos países europeus. 
Na maioria dos casos o objetivo dessas penas ­ principalmente as mutilatórias ­ não era 
matar o criminoso, mas deformá­lo, sendo a mutilação um meio visual destinado a 
amedrontar outros criminosos. Cuidavam os aplicadores das penas mutilatórias que os 
condenados não morressem devido à hemorragia ou a eventuais complicações.
    Como as vítimas dessas penalidades quase sempre se viam impedidas de trabalhar, 
restava­lhes o recurso de esmolar, que de certa forma, como no Império Bizantino, levava o 
povo cristão a ter oportunidade de fazer caridade...
    Dentre os diversos crimes que podiam ter como pena a amputação das mãos, por exemplo, 
um deles (bastante específico para determinado fato ocorrido na História) sucedeu em Milão 
em 630, durante uma violenta peste.
    De acordo com muitas acusações baseadas em observações e também em crenças de 
natureza pseudo­científicas, a peste era espalhada por um certo ungüento que era esfregado 
nas paredes das casas por indivíduos criminosos. As autoridades e o povo deram caça aos 
mesmos, tendo todos eles sido submetidos a torturas, amputações e mesmo à morte. Um dos 
castigos a eles aplicados foi a amputação de uma das mãos, conforme nos é mostrado em 
estampa existente no Welcome Medical Historical Museum, de Londres (Apud Brothwell e 
Muller­Christenseln).

    ­ *A evidência de dupla amputação: século VII*
    Foi em 1956 que uma área desabitada na ilha de Tean (uma das Scilly, a sudoeste da 
Inglaterra) mereceu toda a atenção dos cientistas do Departamento de Arqueologia Pré­
Histórica da Universidade de Edinbourgh. É que lá haviam sido descobertos diversos 
túmulos ­ talvez do século VII d.C. ­ e um dos esqueletos apresentava peculiaridades bem 
marcantes.
    Eram os restos mortais de um homem de 40 a 50 anos presumíveis ao morrer que, além de 
ter sido vítima de um processo artrítico sério, apresentava algo bastante inusitado. Eis os 
dados que nos são repassados por dois cientistas:
     ­ O braço esquerdo apresenta sinais da amputação da mão a 10 mm acima do punho. Com 
a sobrevida de mais de um ano, a extremidade áspera correspondente ao ponto da mutilação 
ficou arredondada e quase lisa e uma espécie de calosidade óssea uniu as duas pontas do 
rádio e do cúbito num único osso. Há leves sinais de infecção, mas ao que parece não houve 
dificuldades na fase de cicatrização sem inflamações.
    ­ A perna direita apresenta mutilação do pé, tendo a amputação cortado 50 mm da tíbia e 
do perônio. Como no caso do braço esquerdo, o coto está arredondado, com a união de 
ambos os ossos num só.
    Segundo Broththwell e Moller­Christensen, acrescente­se a esses problemas o fato de que 
vários anos antes o mesmo indivíduo havia fraturado a clavícula e uma vértebra toráxica 
que, embora bem solidificadas, provocaram alguma deformidade.
    As mutilações indicadas pelos dois autores provavelmente não foram feitas sem 
conhecimento de causa. Vejamos a sua opinião:
    “Com certeza somente um ou dois anos antes de sua morte foi realizada a amputação de 
sua mão esquerda a 10 mm acima do punho e do seu pé direito aproximadamente a 50­60 
mm acima da junta do tornozelo. Essas mutilações não foram provavelmente feitas com uma 
serra ... mas foram o resultado de uma remoção intencional por machado ou faca pesada e 
martelada com um malho ­ métodos sabidamente empregados como punições na Inglaterra 
durante a Idade Negra. (Médico­Historical Aspects of a Very Early Case of Mutilation de 
Brothwell e Muer­Christensen).
    ­ *Os hospitais criados pela Igreja na Europa*

No ocidente europeu hospitais continuaram sendo organizados graças à iniciativa e à 
contínua ação de segmentos da Igreja Católica, tendo as ordens monásticas dado uma 
relevante contribuição, pois a experiência dos religiosos enclausurados em tratar seus irmãos 
feridos ou doentes, bem como os pobres e desvalidos portadores de sérias limitações físicas, 
passou a ser um verdadeiro modelo. Era já o resultado de uma experiência multissecular 
desenvolvida por mosteiros espalhados pela Europa e pelo Oriente Médio, além daqueles 
localizados na África.
    No entanto, já no ano 845, o concílio de Meaux referiu­se ao que chamou de “Hospitia 
Peregrinorum”  (Abrigos dos Peregrinos) e de “Hospitia Scotorum” (Abrigos dos 
Escoceses), queixando­se que eles haviam sido desviados de seus propósitos originais de 
hospitalidade e pedindo sua reinstalação em moldes diferentes, não só como casas destinadas 
à assistência aos peregrinos ou a viajantes doentes, como também abrigos aos inválidos.
    Duzentos anos antes desse concílio, considerando que era uma obrigação quase que 
funcional dos bispos dar abrigo e proteção a peregrinos e a doentes pobres, o bispo Landry, 
de Paris, organizou um lar para inválidos e para peregrinos doentes num local bem perto de 
sua igreja. Foi dessa experiência do século VII que surgiu o nome de “Hôtel Dieu” para 
hospital de caridade na França.
    Do século VII ao século XII os hospitais mantidos nas propriedades dos mosteiros e das 
abadias ou mesmo das poucas instituições especialmente preparados para tanto foram 
praticamente as únicas organizações européias que mantiveram como seus objetivos básicos 
cuidar do doente agudo e em muitos casos também do crônico. Serviram também de abrigo 
para pessoas impossibilitadas de prover seu próprio sustento devido a sérias limitações 
físicas e sensoriais.
    Convém aqui voltar a ressaltar que não havia propriamente nenhum mosteiro ou abadia de 
porte, durante a Idade Média, que não mantivesse seu “xenodóchium” devido ao espírito de 
caridade e de hospitalidade cristãs, enquanto que muitos foram se aparelhando e alterando 
seus serviços para um atendimento próprio de um “nosocómium”.

    ­ *A profissão de massagista no Japão do século IX*
    Segundo documentos históricos existentes no Japão do século IX os cegos passaram a 
dominar completamente a profissão de massagista, considerada desde então como de sua 
exclusividade absoluta. Além disso, eram os cegos os quase que exclusivos aplicadores de 
certas técnicas especiais de acupuntura.
    Esse verdadeiro privilégio foi­lhes garantido devido à circunstância de o filho do 
imperador japonês, o príncipe Hitoyasu, ter perdido a visão e ter fortemente influenciado seu 
pai em favor dos cegos que não tinham trabalho digno e que podiam perfeitamente bem 
desenvolver aquelas atividades.
    Esses privilégios para cegos prevaleceram praticamente por dez séculos, mas ainda hoje 
percebemos resquícios deles, uma vez que é notória a presença muito numerosa de cegos 
como massagistas não só no Japão como em muitos outros países que recebem ou receberam 
sua influência.
    
    ­ *Bispo Hincmar, vítima da crueldade de seus algozes*
    Hincmar (830 a 882) foi um dos bispos mais jovens de que se tem notícia na História da 
Igreja Católica. Foi sagrado bispo de Laon, na França, com apenas 20 anos de idade, por 
indicação e por influência direta do rei Carlos, o Calvo, que logo lhe confiou duas missões 
diplomáticas na Germânia.
    No entanto, depois de 21 anos de bispado, durante o concílio de Douzy, presidido por um 
arcebispo que tinha o mesmo nome e que era seu tio, Hincmar foi deposto e aprisionado. As 
condições da cela e do próprio ambiente para onde o bispo deposto foi mandado eram 
terríveis, tendo ele sido deixado sob violentos maus tratos de seus algozes que vazaram seus 
olhos. Essas violências desumanas aconteceram, segundo os historiadores, por ordem direta 
do arcebispo Hincmar de Reims, que levara o sobrinho prelado à prisão.
    Passados cinco anos, todavia, Hincmar foi liberto por influência direta do papa João VIII, 
que reinou entre 872 e 882. E, um fato singular na história da disciplina da Igreja Católica, 
esse mesmo papa autorizou Hincmar a celebrar missa, por ter considerado que sua cegueira 
não era impeditiva, pois havia ocorrido após sua ordenação, não significando, portanto, 
nenhuma irregularidade.
    
    ­ *Deficiência física na mitologia germânica*
    Wayland, o ferreiro, é um herói mitológico famoso na cultura germânica. Não 
necessariamente uma réplica nem cópia de Hefesto, já citado e inserido em muitas histórias 
da mitologia grega, Wayland também era um excelente artesão e ferreiro. Chegou a fabricar 
peças famosas que passaram para diversas histórias da avantajada mitologia do norte da 
Europa dos meados da Idade Média. Dentre essas peças imortais é importante destacarmos 
que, segundo as lendas, Wayland fabricou a espada de Siegfried (Nothung) e a do rei Artur 
(Excalibur).
    Wayland, o único herói teutônico assimilado pela cultura e pelo folclore de diversos 
países europeus, inclusive pela mitologia inglesa, aparece em histórias lendárias tanto na 
Alemanha quanto na Escandinávia.
    A lenda principal relacionada a esse fantasioso ser fala a respeito de sua vingança contra o 
rei que o havia aprisionado. Esse rei havia mandado quebrar seus joelhos para torná­lo 
incapacitado de se mover com destreza e rapidez. O objetivo era retê­lo no reino e com isso 
garantir seus serviços de alta qualificação.
    No entanto, o muito sagaz Wayland, depois de anos de paciente planejamento e da espera 
de um momento mais adequado, matou os dois filhos do rei Nipopr. Fez mais para dar mais 
peso à sua vingança: deflorou a princesa, sua filha. Logo após, tendo completado todos os 
atos que havia premeditado, empreendeu uma fuga espetacular, utilizando­se de um par de 
asas por ele mesmo fabricadas.

    ­ *As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média*
    Questão permanentemente discutida por autoridades eclesiásticas, tendo já merecido o 
posicionamento de papas e concílios e um lugar permanente no Código de Direito Canônico, 
o problema das deficiências físicas e sensoriais nos sacerdotes ou nos bispos é citado por 
Thomassin. No que diz respeito a alguns dos primeiros séculos da Idade Média essa 
autoridade da Igreja informa:
    “O Concílio de Tribur (Cânone XXXIII) alega as decisões do Concílio de Nicéia sobre os 
eunucos, aquelas do papa Inocêncio I sobre quem amputou seu próprio dedo, ou a quem se 
cortou o próprio dedo acidentalmente, dos quais o primeiro é irregular e o outro não o é: 
enfim, aquelas de Gelásio que excluem do clero todos os que são mutilados de qualquer 
parte do corpo. Esse concílio confirma em seguida todas essas ordens e a elas acrescenta que 
aqueles que se tornaram coxos por qualquer enfermidade corporal não devem ser impedidos 
das santas ordens” (“Ancienne & Nouvelle Discipline de l’Église”, de Thomassin).
    Nesses primeiros séculos da Idade Média a Igreja Ortodoxa Grega seguia basicamente as 
mesmas regras, sendo mais condescendente para com candidatos ao sacerdócio que 
apresentassem deficiências. Essa facção da Igreja decidira mesmo, por meio de cânones 
apostólicos, que os coxos e mesmo os que haviam perdido um olho, podiam ser ordenados e 
até mesmo elevados ao bispado. O motivo alegado era contundente para a época, mas muito 
real: “São as manchas da alma e não os defeitos do corpo que nos afastam dos divinos 
mistérios”... Segundo seus lideres e autoridades maiores, cegos e surdos eram considerados 
como impedidos ao sacerdócio porque essas deficiências os incapacitavam para exercer as 
funções múltiplas da vida sacerdotal.
    No entanto, os que já haviam sido ordenados podiam continuar exercendo o sacerdócio 
sem maiores dificuldades e não perdiam de maneira alguma a dignidade ou os benefícios e 
proventos que recebiam.
    Teodoro Balsamon, canonista grego do século XII, afirma ter conhecido diáconos, padres 
e mesmo bispos que, tendo­se tornado surdos ou cegos, não foram por causa disso privados 
de sua dignidade, e que a lei civil possibilitava àqueles que haviam perdido a visão gozar de 
sua antiga posição de juíz ou de senador, apesar de não permitir o acesso a outro tipo de 
magistratura (Apud Thomassin).
    Vários papas foram aos poucos tornando o assunto mais e mais esclarecido através de 
decisões, permissões, epístolas e regras. Encontramos no século XII, durante um reinado de 
22 anos, entre os anos de 1159 e 1181, o papa Alexandre III esclarecendo que, quanto a 
mutilações e deformações do corpo, elas tornavam uma pessoa “irregular” para o sacerdócio 
quando essas dificuldades fossem de tal monta que seria impossível exercer as funções 
sacerdotais sem provocar escândalo ou problemas.
    Ocorreram casos de sacerdotes parcialmente impedidos de ordens devido a deficiências 
físicas e sensoriais. Esses impedimentos incluíam: sacerdotes proibidos de celebrar a missa, 
sem ser impedidos das demais funções de seu ministério, por ter perdido metade de uma das 
mãos. O motivo: o alegado escândalo que já àquela época correspondia a algo chocante e 
que chamava muito a atenção. Os textos latinos, porém, utilizam o termo indicado: “nec sine 
scandalo propter deformitatem membri”.
    Inocêncio III, reinando ao final do século XII e entrando no século XIII até o ano de 1216, 
analisou o assunto em maiores detalhes, indicando que os mesmos defeitos e mutilações que 
tornavam impedido um homem para as chamadas ordens maiores não precisavam 
necessariamente excluir das ordens menores, pois estas expunham muito menos os 
candidatos já clérigos à vida pública.
    Esse mesmo papa, ao julgar o problema de um sacerdote que fora atingido por um 
assaltante e com isso perdera um dedo da mão esquerda, decidiu que não incidira em 
qualquer impedimento às suas funções, uma vez que o acidente ocorrera após sua ordenação.
    Foi Inocêncio III também que chegou a determinar a deposição de um abade, pois o 
mesmo não tinha uma das mãos (a esquerda), o que, se descoberto a tempo, e se tivesse sido 
constatado antes de sua ordenação, teria sido impeditivo dos mais sérios. Um outro motivo 
alegado pelo papa foi a dissimulação do referido abade: ele havia muito habilmente 
escondido o defeito durante sua eleição para o cargo de superior (talvez tivesse usado uma 
prótese).

    ­ *Luís III, o "Cego", rei da Provença e da Itália*
    Luís III, conhecido pelo cognome de o “Cego”, nasceu em 880 e era filho de Boso, rei da 
Provença ­ hoje parte Sudeste da França. À morte de seu pai em 887 foi protegido pelo 
imperador Carlos, o Gordo. Luís foi reconhecido como rei da Provença com 10 anos de 
idade, sob o forte apoio do papa Estêvão V.
    No correr do ano 900, quando estava com 20 anos de idade, por insistência e muita 
pressão dos inimigos de Berengar, rei da Itália, cruzou os Alpes com suas forças, depôs o 
monarca após muita luta e reclamou sua coroa. Foi coroado rei dos lombardos na cidade de 
Pávia e rei da Itália em Roma, em fevereiro de 901, ocasião em que recebeu a coroa real das 
mãos de Benedito IV, papa que ocupava então o trono da Igreja Católica.
    Mas o jovem rei tinha deixado em seu rastro um feroz e muito cruel inimigo: Berengar. 
Após poucos meses de reorganização de suas forças e de insistente luta, conseguiu 
surpreender Luis III em Verona e lá mesmo, com muito ódio, mandou vazar seus olhos.
    Levado de volta à sua Provença, Luís III, o “Cego”, lá permaneceu em Arles, vivendo por 
mais de 26 anos uma vida atrapalhada devido à cegueira. Deixou os negócios de sua coroa 
aos cuidados de um primo seu, Hugo, duque de Provença, que bem mais tarde tornou­se rei 
da Itália.
    Na vida deste personagem da História da Provença e da Itália há um registro lamentável e 
raro nos países da Europa, embora não tão surpreendente na corte bizantina: mandou vazar 
os olhos de seu irmão Lamberto, marquês de Toscana, por motivos de alegada traição.
    Berengar, que havia derrotado e vazado os olhos de Luis III, acabou derrotando também 
as forças deste odioso Hugo, rei da Itália, em 945.

    ­ *Deficientes físicos impedidos de participar da Primeira Cruzada*
    Apesar de ter sido Urbano II o papa que verdadeiramente inventou as Cruzadas e que 
estimulou fortemente a realização da primeira delas, que aconteceu entre 1096 e 1099, é 
muito importante que ressaltemos e prestemos a devida atenção ao papel de um típico 
pregador daqueles dias que ficou muito famoso no centro da Europa: Pedro, o Eremita.
    Vestido com uma longa túnica de lã parcialmente coberta por um manto escuro com 
capuz, Pedro, o Eremita, andava descalço e apoiado em longo bastão; comia muito pouco, 
alimentando­se de peixe e vinho unicamente.
    Ele teve muita influência no surgimento da chamada “Cruzada Popular”, que se 
caracterizava por bandos de pessoas do povo interessadas em peregrinar até Jerusalém e ali 
lutar pela libertação da cidade santa, mesmo à custa da própria vida.
    Esse movimento quase espontâneo acabou levando à organização precária de uma 
Cruzada do próprio povo contra os infiéis, bem dentro do espírito pregado pelo papa Urbano 
II. E esse foi o seu mérito maior.
    No entanto, procurando ordenar um pouco a incontrolável horda que já se movimentava 
antes mesmo de os nobres terem se organizado, o papa tomou uma posição de energia: 
proibiu que participassem dessa peregrinação guerreira desordenada os velhos, as mulheres 
solteiras e os deficientes físicos. Essa posição do papa foi sacramentada pelo concílio de 
Clermont, convocado para discutir a questão das Cruzadas no ano de 1095.
    Com essa ordem do chefe máximo da Igreja Católica os portadores de deficiências físicas 
foram bloqueados de lutar também pelos próprios postulados da Cruzada, ou seja, a imediata 
reconciliação do pecador com a Igreja por meio da confissão, mas sem os deveres da 
penitência (que seria a peregrinação guerreira...).
    A Cruzada Popular, como alguns historiadores a intitulam, acabou em total tragédia nas 
proximidades de Nicéa e de Constantinopla, graças à incompetência de seus chefes, e de não 
ter coincidido com o esforço guerreiro dos nobres latinos de diversas partes da Europa, sob a 
liderança de um delegado papal.
    ­ *Barbeiros­cirurgiões na Idade Média*
    Os clérigos e monges que viviam em mosteiros e abadias eram os detentores dos melhores 
conhecimentos a respeito de doenças e doentes, e das limitações físicas que sempre levavam 
as pessoas a situações de miserabilidade e dependência. Logo após 1163, todavia, surgiria 
um outro grupo de pessoas que muito se envolveu por séculos: os barbeiros. E por que 
motivo?
    Foi precisamente em 1163 que o concílio de Tours proibiu todo o clero derramar sangue, 
seja em lutas, seja em hospitais (“Ecclesia abhorret a sanguine”).
    Com o documento papal a função passou aos poucos a outras pessoas, sendo a mais 
indicada a do barbeiro porque desde 1031 havia obrigatoriamente barbeiros nos mosteiros e 
abadias; a partir desse ano todos os monges e sacerdotes deviam respeitar um cânone do 
concílio de Bourges: ... “todos os que forem empregados em funções eclesiásticas portarão 
tonsura e terão a barba feita”. O uso de navalhas e tesouras recomendava o barbeiro para 
funções de sangria, lancetamentos e curativos.
    
    ­ *A evolução dos hospitais medievais e as deficiências*
    As Ordens dos Cavaleiros que se preocupavam de um modo especial com doentes e com 
peregrinos, serviam também para socorrer as vítimas de ciladas, os acidentados, os 
portadores de males mais graves e as vítimas das intempéries à época dos rigorosos 
invernos. A primeira das Congregações Religiosas que surgiu para dar atendimento direto só 
de enfermagem, entretanto, foi a Congregação das Irmãs de Santo Agostinho, no ano de 
1155.
    Após a total desintegração do Império Romano Ocidental, sob a forte pressão dos 
invasores bárbaros, os hospitais de diversos feudos e reinos da Europa foram sendo 
instalados em cidades melhor organizadas ou mais ricas e aos poucos, com a ajuda de 
comerciantes abastados, bem como de médicos formados em algumas das novas unidades de 
ensino chamadas de universidades, foram melhorando de padrão. E as cidades mais pujantes 
e dinâmicas passaram de certa forma a competir para montar hospitais cada vez mais 
sofisticados, dando assistência a um mais amplo número de pacientes, sempre, entretanto, 
sob a custódia ou a manutenção de serviços de enfermagem por parte de diversas ordens 
religiosas.
    Durante os últimos séculos da Idade Média encontra­se noticias de associações 
especialmente criadas que tentavam levantar e manter fundos para a assistência a doentes e 
aos permanentemente deficientes que eram mais pobres e que se mantinham alojados nas 
instalações dos hospitais, sem qualquer esperança de cura.
    A iniciativa tinha a intenção de evitar ou pelo menos de minorar as dificuldades causadas 
pela superlotação perniciosa que estava ocorrendo nos hospitais, onde esses pobres 
acabavam abrigando­se até a morte. Não há notícia de tentativas bem sucedidas na 
construção ou mesmo na simples instalação de entidades com finalidades muito específicas 
no atendimento aos portadores de deficiências, a não ser nos casos de cegos e também dos 
hansenianos, àquela época e por vários séculos futuros reconhecidos por “leprosos”, 
“lázaros” e outros apelidos, sempre temidos e marginalizados em todo o mundo.
    Do século XII em diante os hospitais, que conforme vimos eram organizados e mantidos 
por religiosos recolhidos em mosteiros ou abadias, salvo raras e muito honrosas exceções, 
ainda misturavam pessoas doentes com as que não tinham meios de subsistência e dentre 
estas ficavam sempre os portadores de deficiências físicas e sensoriais mais graves. Esses 
hospitais foram a pouco e pouco sendo secularizados e, devido às conseqüências cada vez 
mais sérias da concentração urbana, da falta de cuidados básicos com a saúde e da 
inexistência de medidas de saneamento básico e outras, um volume muito mais expressivo 
de doentes levou ao aumento substancial de seu número.
    Do século XII ao século XV, por exemplo, só a Inglaterra chegou a organizar 750 
hospitais, dos quais 217 eram destinados às vítimas da temível “lepra”.

    ­ *O estigma da hanseníase durante toda a Idade Média*
    A lepra, hoje mundialmente conhecida como hanseníase, sempre causou muitas 
mutilações e outros tipos de deficiências. Já existia no Egito e na Índia muitos séculos antes 
da Era Cristã e foi conhecida dos gregos e dos árabes. Levada para toda a Europa pelos 
soldados romanos, espalhou­se mais ainda durante a época das Cruzadas. Para combatê­la 
durante toda a Idade Média, foram tomadas muitas providências concretas por todos os 
povos, face à periculosidade que apresentava e ao pavor de suas conseqüências.
    Embora até hoje permanece como um verdadeiro mistério o surgimento da hanseníase no 
mundo, apavorando por milênios a humanidade, é mistério maior ainda o seu quase 
desaparecimento ao redor do século XVII na Europa.
    Nos tempos bíblicos e nos primeiros dez séculos da Era Cristã já havia uma certa 
variedade de males dermatológicos considerados como contagiosos. Dentre eles destacava­
se evidentemente a hanseníase, mas com ela confundiam­se a psoríase, a escabiose e o 
ergotismo.
    Na Idade Média, quando um homem era declarado “leproso” tinha apenas um destino: 
banimento da sociedade e do convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim a 
sociedade armava­se de certas cautelas, sendo uma delas o estabelecimento de uma comissão 
responsável pelo reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam obrigatoriamente 
incluídos um médico e um hanseniano.
    Muitos casos foram vítimas de diagnósticos mal formulados. Os casos de ergotismo, por 
exemplo, apresentavam mutilações seriíssimas nos dedos devido à gangrena. Era um mal 
causado pelo uso continuado de farinha de centeio com fungos venenosos e que em sua 
forma gangrenosa levava a amputações muito sérias dos dedos.
    Se o resultado do exame do doente suspeito de “lepra” fosse positivo, rezava­se uma 
missa de Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um sepultamento simbólico. Era 
então conduzido para fora da cidade e no caminho o sacerdote, acompanhado de um acólito 
que tocava uma matraca, dava orientações básicas ao doente, repassando as proibições que 
iriam marcar sua vida futura. Era­lhe proibido:
    ­ entrar em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar público;
    ­ lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte (devia saciar sua sede usando uma 
caneca de sua propriedade exclusiva);
    ­ sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e sem calçados;
    ­ tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um bastão);
    ­ tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos cobertas);
    ­ tocar ou ter relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa;
    ­ comer ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.

    Com alguma sorte e com o apoio de sua família poderia conseguir um lugar num 
“lazareto” ou “leprosário”. Caso contrário passaria a vida toda espalhando o terror da 
doença, mendigando por comida e por bebida. Muitas vezes identificando­se por roucos 
gritos de “impuro, impuro” o temido “leproso” era também reconhecido por sinetas, 
matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era colocada às carreiras no meio 
das vielas ou dos campos.
    Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas que eram 
obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar chapéus ou capuzes e às vezes faixas 
vermelhas. Épocas houve na Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito 
um tecido vermelho com desenhos característicos.
    Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de 2.000 “lazaretos” que se 
destinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes. Na Europa inteira, 
devido à extensão do problema, havia aproximadamente 19.000 desses abrigos, todos 
separando duramente seus doentes da sociedade e deixando que morressem sem qualquer 
assistência.
    
    ­ *Ricardo Coração­de­Leão e sua vingança*
    Ricardo Coração­de­Leão (1157 a 1199), rei da Inglaterra, muito envolvido com as 
Cruzadas e com diversos feitos heróicos que se tornaram lendários, tem sido citado como 
personagem quase que de ficção, tal a quantidade de lendas e de histórias a seu respeito.
    Um dos traços característicos desse rei famoso dos ingleses era sua crueldade. Ricardo era 
valente, destemido, aventureiro, mas muito cruel e vingativo.
    Quando em guerra com a França, que procurava a todo custo desalojar os ingleses da 
Normandia, Ricardo Coração­de­Leão chegou a praticar um dia uma barbaridade 
inacreditável.
    Devido ao extermínio de um grupo de seus melhores homens pelos franceses, Ricardo 
mandou que trezentos cavaleiros franceses fossem atirados ao rio Sena com suas armaduras, 
para ali morrerem afogados. Ainda não satisfeito, mandou vazar os olhos de 15 outros 
cavaleiros que foram mandados de volta, ao encontro do rei Felipe Augusto (1165 a 1223), 
guiados por um cujo olho direito havia sido poupado, imitando de certa maneira a brutal 
atitude de Basílio II, imperador bizantino.
    Segundo historiadores como Finlay, Felipe Augusto não se deixou ficar atrás: tratou 
quinze cavaleiros ingleses aprisionados da mesma forma.
    Finlay comenta em sua obra que vazar os olhos de soldados ou de pessoas culpadas, em 
geral, foi um costume comum em toda a Europa, por diversos séculos. Era visto, portanto, 
sem exagerado horror, como o fazemos hoje. Na Inglaterra foi apenas em 1403, durante o 
reinado de Henrique IV, que o Parlamento inglês aprovou um ato que considerava como 
crime as penas de cortar a língua ou de vazar os olhos das pessoas
(Apud Finlay).

    ­ *Hospitais proliferam no Oriente Próximo: século XIII*
    Prosseguindo seus esforços para dar assistência aos doentes mais necessitados, e para 
melhor desenvolver os conhecimentos médicos de então, o governante turco Seljuk e seus 
sucessores (turcos otomanos) criaram diversos hospitais e escolas de medicina.
    Segundo o Professor Dr. A.Süheyl Unver, diretor do Instituto de História da Medicina da 
Universidade de Istambul, os mais antigos desses estabelecimentos de ensino teórico e 
prático foram os de Kayseri (1206) e de Amasya (1205).
    Ainda dentro do século XIII surgiram os hospitais­escola de Sivas, no ano de 1214, 
Konya, em 1219, Çankiri, em 1235 e outros mais. É interessante notar que os hospitais 
estabelecidos em Kayseri e Çankiri colocaram, à sua entrada, a figura de uma serpente. Este 
símbolo, apesar de grego em sua origem, graças aos templos de Asclépios, chegou aos turcos 
por influência dos egípcios (Apud Unver).

    ­ *Os progressos da medicina até o século XIV*
    Por volta de 1250, a Europa Ocidental e suas novas organizações ou associações de ensino 
programado (universidades) começaram a absorver os conhecimentos e as experiências 
médicas acumulados pelos árabes, quase todos extraídos da cultura grega clássica. Na Itália 
e na França a cirurgia começou a dar passos interessantes, especialmente com o concurso de 
Guy de Chauliac (1300 a 1368) que chegou a fazer operações de catarata com sucesso. A 
anatomia teve também seus progressos marcantes com o médico italiano Mondino De Luzzi 
(1270 a 1326). A dissecação de cadáveres, deixada de lado por aproximadamente dez 
séculos, foi retomada, uma vez que os médicos tinham apenas noções de anatomia retiradas 
das obras de Galeno. Mondino De Luzzi escreveu uma obra intitulada “Anathomia” no ano 
de 1316, e essa obra tornou­se padrão para ensino por mais de duzentos anos na Europa.
    Evidentemente esses progressos todos beneficiaram toda a humanidade, e dentro dela, de 
um modo especial pessoas que sofriam as conseqüências das doenças crônicas ou que 
provocavam limitações na plena utilização do corpo.
    Um dos resultados práticos da formação de médicos em universidades foi uma pequena 
ampliação do número de hospitais mais dedicados a tratamento do que a abrigo, como era de 
se esperar. De acordo com o cronista italiano Giovani Villani, só na cidade de Florença 
havia, pelo ano de 1300, trinta hospitais gerais e uma verdadeira rede de assistência a 
doentes e deficientes pobres, com capacidade para 1.000 vagas.

    ­ *Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo de Deus"?*
    É preciso aqui relembrar que dos anos 500 até o século XVI ­ portanto, durante toda a 
Idade Média praticamente ­ o mundo europeu viu decrescer muito os cuidados básicos com a 
saúde e com a higiene na imensa maioria das cidades, um pouco em decorrência do seu 
contínuo crescimento. Os aglomerados urbanos menores também não tinham qualquer infra­
estrutura ou recurso voltado para a saúde de sua população. E por muitos séculos, os 
habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente receio das epidemias ou das 
doenças mais sérias.
    Devido à ignorância imperante, as epidemias, as doenças mais graves, as incapacidades 
físicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas eram considerados como 
verdadeiros sinais da ira celeste e taxados como “castigos de Deus”. E, como não podia 
deixar de acontecer, e como nos relatam todos os historiadores, ocorreram diversas 
epidemias de gravíssimas conseqüências, grandes incidências de males não controlados 
pelos médicos que nem chegavam a atinar com suas causas ou não dispunham de meios para 
debelá­los com sucesso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e outros males 
devastaram diversas vezes a Europa durante os vários séculos da Idade Média e deixaram 
um significativo saldo de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram salvar­se, 
mas com sérias seqüelas, para ver o resto de seus dias passar em situações de extrema 
privação e quase que absoluta marginalidade.

    ­ *A medicina qualificada e a falta de assistência geral*
    Durante todo o período medieval, com exceções não levantadas mas que certamente 
devem ter ocorrido, o trabalho do médico mais qualificado, isto é, daquele formado pela 
prática ao lado de outros médicos ou daquele que depois do século XI começou a ser 
formado pelas universidades, na grande maioria dos casos continuava não sendo 
desenvolvido dentro dos hospitais. A proliferação dessas casas especialmente destinadas a 
recolher os doentes provenientes de famílias sem recursos, muitos deles portadores de males 
incuráveis ou defeitos físicos bastante limitadores, foi um fato comprovado e verificado em 
todos os países europeus. Construções especiais eram raras e dentre elas cumpre destacar o 
Hospital de São Bartolomeu, em Londres, que começou a funcionar no ano de 1123.
    E para nós, mesmo tão distanciados da Idade Média, não é nada difícil imaginar que esses 
doentes não tinham a mínima condição de pagar, quer pelos serviços do médico, quer pelas 
mezinhas ou pelos curativos feitos em outros ambientes. Assim, hospitais continuariam por 
séculos sendo verdadeiros depósitos de pessoas pobres, à beira da morte, ou vitimadas por 
males crônicos e defeitos físicos graves que lá ficavam até morrer, sem família e sem 
amigos. 
    Os médicos continuariam também por séculos como profissionais muito caros e muito 
raros em muitas partes da Europa para a população mais pobre e desprovida de recursos 
mínimos para encontrar soluções aos problemas decorrentes de enfermidades ou de 
acidentes a não ser aquelas advindas da medicina caseira ou dos charlatães.

    ­ *As soluções populares e as crendices*
    Como em épocas mais antigas da História da Humanidade, as camadas mais pobres da 
população tinham suas soluções para doenças. Muitas delas eram multi­seculares, 
enriquecidas com a experiência de certos núcleos populacionais mais adiantados, mas 
empobrecidas pela falta de registro de seus segredos. Benzeduras de um lado, exorcismo e 
ritos misteriosos de outro, entremeados pelo uso de medicamentos extraídos de produtos 
naturais, tudo isso fazia parte da medicina popular. A crença generalizada nas maldições e 
nos feitiços, na existência das doenças e das deformidades físicas ou mentais como indícios 
da ira de Deus, ou como resultado da atuação de maus espíritos e do próprio demônio, sob o 
comando direto de bruxas, era às vezes levada a extremos. Acreditava­se, por exemplo, que 
a epilepsia era conseqüência de uma possessão instantânea por um espírito maligno e o 
remédio era o exorcismo por ritual ou pela tortura.

    ­ *O destino das pessoas deficientes na Idade Média*
    Durante toda a Idade Média e principalmente durante seus séculos mais obscuros crianças 
que nasciam com seus membros disformes tinham pouca chance de sobreviver, devido às 
crenças e às histórias fantásticas transmitidas pelas mulheres que praticavam a função de 
curiosas ou aparadeiras. Essas crianças cresciam separadas das demais e eram 
ridicularizadas ou desprezadas. Os exemplos de anões e de corcundas inseridos na sociedade 
medieval com certo destaque são significativos.
    As superstições da época medieval levavam a atribuir a essas pessoas poderes especiais 
para uma espécie de contra­ataque aos efeitos deletérios de feitiços ou de maldições, do 
mau­olhado e mesmo das pragas e das epidemias. Com o tempo, essas pessoas disformes 
foram sendo objeto da diversão das grandes moradas e dos castelos dos nobres senhores 
feudais e seus vassalos, e mesmo das cortes de muitos reis, devido à sua aparência grotesca, 
aos seus trejeitos e também a uma propalada sabedoria de que não dispunham. Esses tipos de 
pessoas deficientes ­ corcundas e anões – começaram aos poucos a ter livre acesso a todos os 
ambientes ­ traziam sorte e afastavam os demônios ­ podendo alguns inclusive participar de 
todas as conversas e falar o que bem entendessem, pois eram supostamente tolos, divertidos 
e inconseqüentes.
    Os famosos indivíduos deformados e por vezes repelentes, segundo os historiadores, 
extravagantemente vestidos, temidos por serem manipuladores de situações embaraçosas e 
conhecedores de segredos delicados de alcova, chantagistas e confidentes de seus senhores, 
na maioria dos casos acabaram não passando de pessoas simplórias.
    E a História do mundo conta­nos casos em que esses "bobos da corte" cumpriam ordens 
criminosas de seus senhores, aos quais deviam servil obediência. O bufão corcunda hindu 
conhecido por "Vidusala" (significa atrevido) é certamente um dos primeiros a aparecer com 
destaque na literatura, pois logo nos primeiros séculos da Era Cristã ele aparece em trechos 
de dramas e mesmo em eventos da antiga sociedade da Índia.
    
    ­ *O significado das deficiências da Idade Média*
    Conforme verificamos anteriormente, por falta de conhecimentos mais profundos quanto 
às doenças e suas causas, falta de educação generalizada e o receio do desconhecido e do 
sobrenatural,ocorria na Idade Média uma verdadeira necessidade no seio do povo e mesmo 
das classes mais abastadas, de dar aos males deformantes uma conotação diferente e 
misteriosa, muito mais diabólica e vexatória do que em qualquer outro sentido mais positivo.
    O significado religioso ou sobrenatural das deformidades mais marcantes, durante essa 
época, pode ser perfeitamente notado em alguns quadros pintados durante o seu transcorrer. 
Neles, tanto os espíritos malignos da hierarquia imaginária de Satã quanto os seres lendários 
e de comportamento malévolo e desumano são invariavelmente representados por seres com 
os rostos monstruosos, os pés deformados, as cabeças enormes ou muito pequenas, as 
orelhas desproporcionais, o nariz aquilino muito comprido, corcundas, membros retorcidos... 
E apesar dos esforços eventuais dos grupos religiosos ­ e mesmo da própria doutrina cristã ­ 
o povo em geral acreditava que um corpo deformado somente poderia abrigar uma mente 
também deformada. Caso contrário certamente não teria havido necessidade das autoridades 
da Igreja Católica, por meio dos preceitos canônicos, justificar a não aceitação de pessoas 
com deficiências ao sacerdócio com estas palavras que bem mostram a atitude imperante, ou 
seja, o reverso da medalha: ... "essas restrições ao sacerdócio davam­se para benefício da 
Igreja e não por considerar as pessoas como manchadas ou indignas" (Apud Thomassin). (* 
Na verdade algumas dessas situações não são de todo diferentes hoje. Se nós observarmos, 
por exemplo, as ilustrações em histórias de quadrinhos e sem dúvida alguma muitos dos 
desenhos animados apresentados em nossa televisão para entretenimento de nossos filhos 
além de peças teatrais e filmes, notaremos que algo de medieval e, no fundo, de muito cruel 
existe em nossa sociedade pretensamente cristã e humanista. Bandidos, bruxas, gente 
perversa ou mesmo pervertida, por vezes são apresentados com seus corpos ou alguns de 
seus membros deformados. Qual o motivo? Está ainda subjacente a crença de que um corpo 
defeituoso apenas pode abrigar um espírito malévolo? Ou será para ir condicionando nossas 
crianças e nossa sociedade ao repúdio do mal, ligando o às idéias de deformidade? ...)

    Dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios para garantir sua 
sobrevivência de maneira digna, restou ao portador de defeitos físicos ou sensoriais a 
posição de elemento marginalizado e o recurso à esmola diária, sistemática, para com isso 
ganhar seu sustento. Pelas estradas e caminhos mais importantes da Europa Medieval, por 
onde passavam de quando em quando nobres cortejos e os bem ajaezados cavaleiros e 
cruzados, sujos e por vezes asquerosos seres humanos, com seus membros deformados ou 
suas feridas à mostra, defendiam­se como podiam para garantir seu infeliz sustento. 
Chegaram a organizar­se em verdadeiras redes para angariação de esmolas e de donativos.
    De seu lado, a população ligada aos vassalos e seus senhores, aos reis e à nobreza toda, 
bem como os comerciantes e homens enriquecidos pela sorte ou pela aventura ­ e mesmo o 
povo mais simples ­ todos temerosos dos invisíveis e fantasiosos poderes malignos que esses 
seres deformados poderiam ter, faziam de tudo para os afastar, mantendo­os longe de si em 
todas as ocasiões e por vezes até pagando por isso com comida ou com esmolas.
    ­ *Os privilégios para cegos durante a Idade Média*
    Sob diversos aspectos a situação era bem diferente para os cegos, principalmente para 
aqueles que viviam na França durante o século XIII, por exemplo. Já ao final do século XI e 
início do século XII, em Rouen, em Chálons e perto da cidade de Orléans, havia abrigos que 
aceitavam os cegos mais pobres. Também na cidade de Chartres havia um recurso para 
atendimento aos cegos. Era uma verdadeira comunidade criada por Renaud Barroult e 
conhecida como "Les Six­Vingts".
    Sob o reinado de Luís IX (1214 a 1270), conhecido como São Luís de França, foi criado 
um novo abrigo chamado "Hospice des Quinze­Vingts", por iniciativa direta do rei no ano 
de 1260. Sua criação chegou a beneficiar fortemente uma confraria pobre de cegos cujos 
membros, à falta de outro local, reuniam­se no Bosque de Garenne, em Paris. Quando o 
local foi descoberto pela coroa e pelo povo em geral, ficou conhecido pelo apelido de 
"Champovri", de uma corruptela para as palavras "Champ des Pauvres" (Campo dos pobres).
    Qual teria sido o interesse direto de Luís IX para dedicar tempo e dinheiro na criação de 
uma organização dispendiosa só para cegos? Segundo consta, quando Luís IX foi 
aprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada, trezentos de seus soldados 
tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por ordem direta do sultão, à base de vinte por 
dia durante quinze dias, enquanto aguardava os resultados da demorada negociação para 
pagamento do pesado resgate exigido para libertação do rei da França. Quando de sua volta 
São Luís dedicou­se com seriedade e muito empenho ao problema do abrigo dos cegos e 
mandou construir a famosa entidade para dar assistência de morada e alimentação pelos 
menos a 300 cegos.
    Entretanto, o incidente alegado para justificar o interesse de Luís IX nos cegos não é 
confirmado por vários de seus biógrafos.
    O rei foi muito atacado ainda durante sua vida por ter dedicado tanto esforço oficial aos 
cegos. Rutebeuf, trovador e satirista francês do século XIII, cantava ironicamente pelas ruas 
de Paris: "Eu não sei porque o rei juntou trezentos cegos em uma casa, só para eles saírem às 
ruas de Paris, o dia inteiro, pedindo esmolas incessantemente. Eles dão encontrões uns com 
os outros, machucando­se, pois, não há nenhum deles que os lidere" (Apud French).
    Entre os reinados de Luiz IX e Luiz XVI os cegos emanciparam­se e receberam 
privilégios tanto de reis quanto de bispos da Igreja Católica, chegando mesmo a acumular 
riquezas enormes e a vestir­se de veludo, um dos tecidos mais dispendiosos da época.
    A Igreja ajudou significativamente dando­lhes permissão expressa e exclusiva para 
esmolar nas escadarias e nas portas das igrejas. Tinham também autorização eventual para 
vender grinaldas e flores dentro de suas naves.
    Não é difícil imaginar que idéias de emancipação dos cegos nesses 500 anos da História 
Francesa fossem tidas como uma espécie de questionamento da autoridade da poderosa 
Igreja Cristã, ou talvez um sacrilégio. Os primeiros bispos que deram as famosas 
autorizações exclusivas tanto para mendigar nas portas das igrejas quanto para comercializar 
flores foram o de Paris e o de Chartres. Não foram autorizações individuais, mas dirigidas às 
corporações dos cegos.
    A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações não ocorria apenas na 
França. No ano de 1337 surgia em Pádua, na Itália, a Congregação de Santa Maria dos 
Cegos. Uniam­se esses cegos sob a liderança de um mestre, observando regras próprias e 
muito severas, por eles estabelecidas, como, por exemplo, a proibição de dizer palavrões e 
blasfêmias...
    ­ *Dois heróis históricos com deficiência nos séculos XIII e XIV*
    Podemos destacar duas personagens históricas, uma na Europa e a outra África, e ambas 
com deficiências físicas sérias. São elas:
    Sundiata, um líder negro Mandingo que, após ter conquistado Gana, no Oeste Africano, 
estabeleceu as bases de um novo e mais poderoso império Mandingo, ou seja, o chamado 
"Império Mali", em pleno século XIII. Sundiata era um homem com ambas as pernas 
paralisadas, segundo depoimento de N'Kanza, alta funcionária da Organização das Nações 
Unidas e ex­diretora do Centro das Nações Unidas para Assuntos Humanitários e Sociais de 
Viena.
    João de Luxemburgo, também conhecido como João, o Cego, nascido em 1296, era rei da 
Boêmia, filho de Henrique VII. João de Luxemburgo ficou cego em 1340, com 44 anos de 
idade, devido a um mal não identificado pelos médicos de sua corte. Mesmo cego, sempre 
imbuído de um vivo espírito aventuresco que o caracterizou fortemente até sua morte, 
continuou a participar de diversas campanhas militares, em muitas partes da Europa. Foi 
morto em plena batalha, em Crécy, no ano de 1346, lutando em prol de Felipe, rei da França.

    ­ *Os hospitais face às pessoas deficientes nos séculos XIV e XV*
    Apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade das situações encontradiças nos 
diversos países europeus que se formavam com o gradativo esfacelamento do sistema feudal, 
o atendimento médico de um modo geral progredia ­ o que seguramente muito significou 
para pessoas que sofriam as conseqüências de males limitantes.
Dentre providências marcantes no sentido de ampliar o atendimento nos hospitais existentes 
podemos citar aquela tomada por Carlos VI, da França (1368 a 1422). Assinou uma ordem 
real estabelecendo uma coleta obrigatória em beneficio dos hospitais, por ocasião dos 
casamentos. Essa coleta ajudou efetivamente na redução dos custos tanto dos hospitais 
quanto dos remédios, e na construção de alguns novos hospitais para dar atendimento e 
abrigo a um maior número de doentes, de pobres sem família e sem condições de 
sobrevivência e também de pessoas com deficiências permanentes.
    Uma outra iniciativa interessante ocorreu na Espanha. A rainha Isabella, a Católica (1451 
a 1504), mandou montar verdadeiros hospitais em localidades próximas às frentes de 
combate. Eram hospitais transitórios e foram quase que institucionalizados desde então, pois 
foram considerados como muito úteis para o atendimento imediato e a conseqüente salvação 
de vidas em grave perigo. Durante o cerco de Málaga ­ talvez a primeira experiência desses 
hospitais de campanha ­ receberam o nome de "ambulâncias".

    Uma observação final quanto aos hospitais existentes na Idade Média: Segundo diversos 
autores, eles existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas; menos para alívio 
do corpo e de suas dores do que para assistência da alma e sua preparação, considerada 
indispensável pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.
    Na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimento 
científico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao próximo e a fé 
na outra vida, na vida após a morte.
    Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as inglesas, 
eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do que se poderia supor. 
Dessa forma podemos também imaginar que, apesar dos relatos transmitidos pelos 
historiadores menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais europeus de certa 
qualidade, seja por doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves, 
recebiam mais cuidado profissional do que o imaginado.
    De outra parte pode­se também afirmar que ao final da Idade Média as sociedades 
existentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento de sua 
responsabilidade face aos pobres em geral. Inseridos no contexto estavam todos aqueles que 
eram, além de pobres, deficientes e impossibilitados de se sustentar.
    No final do século XV os problemas específicos das pessoas deficientes ainda não eram 
nem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que faziam essas pessoas parte de 
um grupo bem maior e de uma problemática mais séria ainda, ou seja, aquela representada 
pelos pobres, pelos enfermos, pelos mendigos. Ela marcou e chegou mesmo a caracterizar os 
ambientes das cidades e dos campos europeus do final da Idade Média.
    Na penosa história do homem portador de deficiência começava a findar uma longa e 
muito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida os tempos conhecidos como 
"Renascimento" ­ época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da sociedade, 
dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimento 
de uma filosofia humanista e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de 
atendimento mais científico ao ser humano em geral.

            CAPÍTULO QUARTO
            A PESSOA DEFICIENTE DO RENASCIMENTO ATÉ O SÉCULO XIX

    Todas as pessoas que estudaram um pouco de História Universal sabem que entre os 
séculos XV e XVII ocorreu no mundo europeu cristão uma paulatina e inquestionável 
mudança, com o surgimento do chamado "espírito científico", e com o parcial 
desmoronamento das concepções muito tradicionais de "natureza", muito afastadas que eram 
da realidade.
    O que sucedia era que o homem estava vivendo num mundo difícil e repleto de problemas 
no qual os homens ligados ao poder espiritual taxavam muito do que era "natural" e 
relacionado ao dia­a­dia ­ ou seja, bens e/ou comportamentos ­ como desprezível, miserável, 
pecaminoso face ao destino imortal do homem, sua vida eterna e as idéias de paraíso, 
purgatório e inferno. No entanto o homem, no fundo de seu coração, não podia negar que 
achava bons, bonitos e agradáveis essas coisas e esses comportamentos considerados como 
proibidos e pecaminosos.
    Evidentemente que essa ambivalência é multissecular, e dela alguns homens da Idade 
Média procuraram escapar sem ferir seus princípios e seu modo de viver cristãos das mais 
variadas maneiras.
    Segundo sabemos, alguns utilizaram­se da pintura, outros da poesia ou do canto, enquanto 
uns poucos procuraram derivativos na arquitetura. o fato é que o aceno do paraíso como 
recompensa por uma vida mortificada, sacrificada e miserável, e a contrapartida das ameaças 
do inferno e do castigo eterno, continuavam a deixar na alma do homem medieval grandes e 
doloridas dúvidas.
    O mundo europeu foi sentindo de várias maneiras que era necessário alterar essa situação 
e dar um corajoso mergulho na direção da luz, da cultura, das coisas novas e desconhecidas 
e ­ por que não? ­ também das coisas tidas como proibidas.
    Há um versinho popular do século XII que expressa muito bem esse forte conflito vivido 
pela humanidade e que diz:
    "Vita mundi, res morbosa,
    Magis fragilis quam rosa;
    Cum sis tota lacrimosa,
    Cur est mihi gratiosa? . . . " (Apud Taylor)

    Ou seja: Vida terrena, coisa doentia, mais frágil que a rosa; por que me parece tão 
graciosa, se és toda lacrimosa?
    Conforme a incômoda situação do homem medieval ia sendo definida, mesmo que por 
meio de modinhas ou versinhos populares de um latim também popular um tanto 
universalizado, surgiam contos em verso ou em linguagem corrente, divulgados cada vez 
mais, não graças aos arautos que sempre se limitaram a ler aos berros as ordens régias ou as 
imposições dos senhores e dos governantes, mas graças à invenção da imprensa, por 
Gutenberg.
    Pensadores começaram a ser mais popularizados e a se impor. A cultura, tão confinada 
que era e tão restrita a certas áreas especiais do mundo feudal, foi sendo espalhada por toda a 
Europa. E com ela chegou também a sede pela sabedoria dos clássicos gregos e latinos, 
muito famosos e praticamente esquecidos pelo povo, e que acabaram se transformando numa 
espécie de paixão dos estudiosos.
    Além disso tudo, outras alterações caminhavam celeremente pela Europa com a 
descoberta de novas terras no final do século XV e início do século XVI; com a contínua 
chegada de sábios de Constantinopla, que não suportavam a pressão dos turcos invasores; 
com a proteção que reis e nobres davam aos artistas da época. Esses fatos de inegável valor 
foram  ­  somados a muitos outros de menor e menos significativo vulto ­ os verdadeiros 
incentivadores da nova onda intelectual e cultural que, iniciada na Itália, passou logo para a 
França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e alguns outros países.
    Nomes famosos que antecederam imediatamente esse período foram os de Dante, 
Bocaccio, Giotto e Petrarca. Durante essa importante onda de mudanças e de progressos, 
depois universalmente aceita e batizada como "Renascença", nomes destacados e muito 
representativos foram os de Donatello, Ariosto, Machiavel, Leonardo da Vinci, 
Michelangelo, Raffaelo, Calvino, Montaigne, Erasmo, Cervantes, Camões e muitos outros 
escultores, escritores, pintores, arquitetos, filósofos humanistas e homens voltados para a 
religião.
    Nesse movimento novo e muito renovador, o reconhecimento do valor do homem era a 
nota dominante ­ era o Humanismo que surgia e se fortificava. Por meio dele, pelo menos no 
campo das idéias, o homem se sentiria mais livre, menos oprimido, mais valorizado, não 
mais um mero escravo dos poderes da Terra, nem mesmo preso à crença de que tinha que 
fazer o bem para merecer o céu ou simplesmente para escapar às torturas do inferno.
    Revolucionário sob muitos aspectos, esse novo modo de ser alteraria a vida do homem 
menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião dos pobres, dos enfermos, enfim, dos 
marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemas 
físicos, sensoriais ou mentais.
    A Renascença surgia no mundo para tirar o homem de uma era de trevas, ignorância e 
superstição, que foram os séculos da Idade Média.

    ­ *O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença*
    Dentro desse contexto, ao analisarmos o desenvolvimento dos hospitais e de muitos 
abrigos destinados a enfermos pobres ao se encerrar a Idade Média, verificamos que os 
cuidados prestados em muitos casos mostravam também sinais de um indisfarçável e novo 
modo de ver e de considerar o ser humano atingido por algum mal e não apenas os 
resultados de novas técnicas médicas em experimentação ou em vias de aperfeiçoamento. O 
cuidado para com as pessoas deficientes como um grupo especial e sempre marginalizado, 
diferente da significativa massa atingida e marcada pela pobreza, começava a se definir em 
pontos isolados do mundo, surgindo por meio de providências bastante práticas.
    Fato que não pode ser desmentido é que, apesar da baixa qualidade dos serviços, nos 
últimos decênios da Idade Média a Europa estava praticamente coberta por uma verdadeira 
rede ­ desarticulada, é verdade ­ de hospitais, casas de abrigo a doentes, enfermarias em 
conventos e mosteiros e também de casas montadas para abrigar pessoas necessitadas de 
tudo para poder sobreviver. Corresponde a uma verdade histórica e não há exagero algum 
em assinalar o desenvolvimento dos hospitais e a gradativa humanização das atenções para 
com os doentes ou pessoas deficientes, como um dos marcantes feitos do final da Idade 
Média.
    Tanto a provisão de serviços individualizados quanto a indispensável garantia e 
manutenção permanente de serviços de saúde para as cidades, na Europa, durante os séculos 
XVI e XVII, firmaram­se e permaneceram como uma responsabilidade de cada comunidade 
e não do Estado como um todo. Os poderes comunais, as paróquias, os mosteiros e abadias 
que já acumulavam experiências das mais variadas naturezas, procuravam cuidar dos 
doentes agudos e crônicos, prestando­lhes serviços de ordem cada vez mais eficiente. O 
cuidado médico começara a ser prestado através desses hospitais, em geral por meio de 
médicos contratados ou pagos pelo poder público local. No entanto, quanto aos homens de 
maior posse e suas respectivas famílias, continuou a prevalecer o costume de serem tratados 
em suas próprias casas, e nunca nos hospitais.
    No século XVI foram dados alguns passos decisivos no atendimento de pessoas 
portadoras de deficiências auditivas que até então eram consideradas como ineducáveis, 
quando não possuídas por maus espíritos.

    ­ *Os problemas dos deficientes auditivos no século XVI*
    Com o aparecimento e fortalecimento de novas formas de ver o homem, que vinham no 
próprio bojo do movimento renascentista, muitos esforços começaram a ser desenvolvidos 
para compreender os problemas vividos por seres humanos deixados à margem da sociedade 
por milênios. Dentre esses esforços e movimentos destaquemos os relacionados aos 
deficientes da audição e da palavra, ou seja, os surdos­mudos.
    Na verdade a luta chamara a atenção já no final do século XV, com a publicação da obra 
"De Inventione Dialectica", de Rudolph Bauer (1433 a 1485). Nessa obra o autor faz menção 
a um surdo­mudo que se comunicava por escrito. No entanto, foi apenas um século após que 
Jerônimo Cardan (1501 a 1576), médico, matemático, astrólogo e, segundo alguns 
contemporâneos, jogador e ardiloso egomaníaco de origem italiana surgiu no panorama, 
questionando um princípio defendido por Aristóteles (o pensamento é impossível sem a 
palavra).
    Cardan inventou um código para ensinar os surdos a ler e escrever, à semelhança do 
futuro código de escrita e leitura Braille para os cegos que surgiria apenas no século XIX. 
Foi Cardan quem influenciou as idéias do monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Léon 
(1520 a 1584), muito dedicado à educação dos deficientes auditivos e que nunca escreveu 
sobre seu método de trabalho.
    Ainda no século XVI o médico francês Laurent Joubert (1529 a 1582) inseriu todo um 
capítulo sobre o ensino de surdos­mudos em sua obra "Erros Populares relativos à Medicina 
e ao Regime de Saúde". Defendia um outro princípio de Aristóteles (o homem é um animal 
social com habilidade para se comunicar com os outros homens). Desse ponto ele partiu para 
desenvolver todos os postulados que defendia: a habilidade existia em toda e qualquer 
criança, mesmo nas nascidas surdas ou que mais tarde viriam se tornar surdas. O mestre 
dessas crianças deveria agir com paciência e cuidado, pois da mesma forma como uma 
criança aprende uma língua estrangeira poderá aprender a se comunicar em seu próprio 
ambiente se ela for surda. Devia o mestre começar por palavras simples e pequenas, 
reforçando sempre as expressões faciais. E acrescentava sua enfática opinião: a criança com 
deficiência auditiva aprenderia a falar mesmo sem se ouvir, desde que ensinada com 
paciência (Apud Mullett).

    ­ *A pintura renascentista e as pessoas com deficiências*
    Muitos pintores do conhecido Período Renascentista retrataram em suas obras cenas em 
que aparecem pessoas portadoras dos mais variados males incapacitantes. Alguns dos 
quadros mostram­nos com clareza a situação de miserabilidade em que viviam; outros 
ressaltam cenas que deixam patente a inadequacidade de atitudes; e vários outros são retratos 
encomendados.
    Alguns exemplos serão aqui citados para propiciar ao leitor mais curioso algumas 
indicações caso deseje aprofundar­se no assunto.
    a) Anões retratados individualmente ou inseridos em grupos: "Retrato da família da 
Marqueza de Mãtua", de Mantegna (1431 a 1506); "O Anão de Felipe IV", "Retrato de Dom 
Antônio, o Inglês" e "Menino de Vallecas", de Velazques (1599 a 1660); "Conde Tomás 
Alveo e sua mulher", de Rubens (1577 a 1640); "O Anão de Carlos V" e "Retrato do Bufão 
Péjéron", de Moro (1512 a 1578).

    b) Anões inseridos em cenas variadas: "Os Anões",de Johann Van Kessel (1626 a 1679); 
"Cilene como a Bacante", de Rubens (1577 a 1640); "A Ceia na Casa dos Fariseus", de 
Moretto da Brescia (1490 a 1555); "Núpcias de Caná", de Paulo Veronese (1528 a 1588); 
"Estudo sobre Anões", de Tiepolo ( 1693 a 1770).

    c) Pessoas com deficiências físicas ou sensoriais: No tocante a deficiências físicas, um dos 
pintores mais célebres da Renascença, Rafaello (1483 a 1520), desenhou uma interessante 
gravura que se encontra no Museu de South Kensington. Ela nos mostra um homem 
paralítico na porta de um templo, perto de São Pedro e de São João em seu trabalho de 
assistência a enfermos.
    Fra Angelico (1387 a 1455), do Período Pré­Renascentista, sempre devotado à arte sacra, 
é autor de um quadro muito famoso que se encontra na Capela de Nicolau V, no Vaticano, 
intitulado "São Lourenço distribui bens aos pobres". Nele aparecem diversas pessoas com 
deficiências: um amputado bilateral das pernas usando apoios para as mãos e um cego 
usando um longo bastão. Ambos levam grandes sacolas destinadas às esmolas angariadas, 
como era costumeiro.
    Outros quadros relevantes que conhecemos e que podem ser melhor estudados são os 
seguintes:
    "Parábola dos Cegos", que retrata uma cena em que vários cegos Vão caindo numa valeta. 
É de autoria de Pieter Bruegel (1530 a 1569).
    "Combate entre o Carnaval e a Quaresma" do mesmo pintor. Nele são retratados diversas 
figuras com deficiências físicas, inclusive um amputado da perna direita com guizos na 
perna esquerda.
    "O Tocador de Alaúde", de Georges La Tour (1593 a 1652), no qual o pintor retrata um 
tocador de alaúde cego.
    "A Briga dos Mendigos", do mesmo pintor e no qual podemos ver o mesmo tocador de 
alaúde do quadro anterior numa violenta briga com outros mendigos.
    "São Pedro cura os enfermos com sua sombra", de autoria de Masaccio (1401 a 1428), 
também do período que antecedeu a Renascença nas artes. O pintor retrata em sua obra duas 
pessoas deficientes e seus aparelhos para locomoção ao lado esquerdo do quadro.
    "O Pé Aleijado", quadro de Ribera, pintado em 1642 e exposto no Museu do Louvre, em 
Paris. Mostra um sorridente jovem com seu pé direito e sua mão direita com evidentes 
deformações.
    "Os Cegos de Jericó", de autoria de Nicolas Poussin e pintado no ano de 1651, no qual 
aparecem dois cegos sendo curados por Jesus.
    "A Fonte da Juventude", pintado por Lucas Cranach, o Velho, em 1546, mostra­nos com 
clareza alguns meios de transporte de pessoas deficientes.

    ­ *Ambroise Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia"*
    Foi nos meados do século XVI que a luta pelo estabelecimento de uma especialidade 
médica que tratava de ossos se iniciou. Nessa luta Ambroise Paré (1510 a 1590), dono de 
notável experiência, teve um papel relevante.
    Paré começou a preparar­se para a medicina com um barbeiro de Angers e continuou em 
Paris com um barbeiro­cirurgião, homem evidentemente mais experimentado. Logo que 
sentiu ter adquirido experiência suficiente procurou emprego no hospital de atendimento 
geral da população parisiense, ou seja, o Hôtel Dieu e lá permaneceu trabalhando como 
auxiliar durante três anos. Engajado como cirurgião no exército do
Marechal Montejan, introduziu muitas inovações, das quais duas são mais relevantes no 
tratamento de ferimentos por projéteis que no século XVI provocavam muitas mortes. 
Quando não ocorria o óbito ocorria em geral um acervo de seqüelas que podiam levar a 
deficiências físicas. Esses tipos de ferimentos eram tidos como "queimaduras envenenadas".
    O tratamento original consistia na aplicação de azeite fervendo para sua desinfecção e 
cicatrização. Caso ocorresse a necessidade de amputação do membro atingido, o 
estancamento do sangue demandava o uso de ferro em brasa.
    Por ver­se em certa ocasião em dificuldades por não haver "azeite fervendo" à sua 
disposição, Paré teve oportunidade de observar seus pacientes passando muito melhor. 
Experimentou a ligação das artérias e vasos, prática que havia sido abandonada e quase que 
esquecida pelos poucos médicos que faziam cirurgia naquele século. Nas muitas amputações 
de membros que fez, Paré teve oportunidade de tentar também o uso de retalhos da pele do 
doente, junto ao coto, para recobrir a superfície da amputação.
    Sempre lutando pela melhoria das condições de seus pacientes com seqüelas de problemas 
ortopédicos, de amputações ou mesmo de males neurológicos, Ambroise Paré chegou a 
propor o uso de coletes reforçados com tiras de aço para problemas ocasionados pelos 
desvios da coluna vertebral, botas especiais para pés tortos, dentre vários outros aparelhos. 
Acresce também lembrar que Paré foi o cirurgião que lançou a expressão "Bec de Lièvre" 
(entre nós "lábio leporino") e chegou a preparar obturações palatais para perfurações 
traumáticas, de ordem sifilítica ou congênita. Usava igualmente obturadores para defeitos 
causados pelas armas de fogo.

    ­ *Antonio de Cabezón: compositor cego*
    Um dos maiores e mais conceituados compositores de música para órgão da Espanha, 
Cabezón nasceu em Castrillo de Matajudios no dia 30 de março de 1500 e morreu em Madri 
no ano de 1566. Cego desde a primeira infância, conseguiu a custo superar todas as 
dificuldades que se lhe interpunham e em 1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia. 
Alguns anos após, já com 26 anos de idade, foi designado organista e clavicordista da 
Rainha Isabel da Espanha, tal a sua competência na execução da música sacra nesses dois 
instrumentos.
    Em 1548 passou a prestar serviços semelhantes ao próprio rei da Espanha Felipe II. 
Viajou com a Capela Real da Espanha para a Itália, Alemanha, Holanda e Inglaterra, tendo 
obtido um sucesso enorme e feito muitos amigos e admiradores.
    Foi um verdadeiro mestre da polifonia e influenciou decisivamente vários organistas de 
seu tempo, inclusive o famoso Thomas Preston, da Capela de Windsor, na Inglaterra, seu 
contemporâneo. 

    ­ *Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro"*
    São poucas as referências históricas a membros artificiais durante a Idade Média e 
primeiros tempos da Renascença. Uma delas diz respeito a uma prótese parcialmente 
funcional que foi utilizada durante muitos anos por uma figura um tanto fora de moda em 
sua própria época ­ início e meados do século XVI ­ durante a qual boa parte do mundo não 
estava mais preocupada com valores predominantes na Idade Média, mas estava 
francamente à busca de um modo de viver mais humano.
    Trata­se de um famoso cavaleiro alemão apelidado de "Mão de Ferro", ou seja, Goetz von 
Berlichingen, nascido em 1480 e morto em 1562. Viveu ele numa região da Europa que 
procurava manter um sistema feudal absolutamente decadente e uma cavalaria em extinção, 
muito embora como cavaleiro lutador tenha sido muito valoroso e útil para seus senhores.
    O apelido de "Mão de Ferro" deve­se ao fato de Goetz ter recebido uma profunda ferida 
na mão direita durante o cerco de Landshut. Complicações que se seguiram ao acidente 
ocorrido durante a sangrenta luta levaram à necessidade de amputação de sua mão. Estava 
então com menos de 30 anos de idade.
    Logo após sua recuperação tomou todas as providências com pessoas entendidas no 
assunto e principalmente com armeiros para a fabricação de uma mão de metal que mais 
tarde o imortalizaria. Ela foi tão bem planejada que podia ligar­se com absoluta segurança e 
firmeza ao seu antebraço e tinha a característica principal de poder manter sua espada 
firmemente presa em posição de ataque ou defesa.
    Por muitos anos mais Goetz envolveu­se em campanhas militares e escaramuças, 
tornando­se quase lendário. Casou­se duas vezes e teve diversos filhos. Foi sem dúvida um 
dos últimos cavaleiros medievais e da incipiente Renascença de soberbo renome. Não 
terminou seus dias sem antes escrever sua biografia, intitulada: "Vie de Gotz von 
Berlichingen, dit Main de Fer".

    ­ *O problema da mendicância organizada nos séculos XVI e XVll*
    Muito embora a teoria do humanismo renascentista procurasse valorizar o homem, na 
prática as situações de vida continuavam muito abaixo do mínimo aceitável. A necessidade 
de sobrevivência continuava levando muitos a recorrer não apenas à esmola como a 
expedientes menos honestos, como o furto e o dolo. Os mais ágeis e menos escrupulosos 
chegavam a tirar vantagens muito acentuadas, ao passo que os doentes e os deficientes 
socorriam­se apenas das esmolas e muito sofriam com a desleal concorrência dos falsos 
mendigos e falsos doentes.
    Havia para todos a obrigatoriedade estabelecida pelo imenso grupo dos mendigos de se 
vincular a organizações ou a confrarias de miseráveis, pagando taxas pré­estabelecidas.
    Houve épocas, na História da Europa, em que a esmola pública foi explorada dentro de 
uma forte organização na qual a figura do doente crônico e do deficiente físico teve um 
relevante papel. Podemos verificar a veracidade dessa afirmação pelo relato objetivo de 
historiadores.

    ­ *A grande malha organizacional dos miseráveis na França*
    Liderados por um personagem conhecido pelo título misterioso de "Grand Coesre", 
muitos grupos de mendigos (falsos e autênticos, reuniam­se em grandes confrarias em 
diversos países europeus, no correr dos séculos XVI e XVII. Reuniam nelas malfeitores, 
ladrões, bandidos, assaltantes de estrada, alguns tipos de artistas e integrantes do mundo 
boêmio, além dos pobres autênticos.
    Paul Lacroix (1806 a 1884), literato e erudito francês, autor de importante série de obras 
sobre usos e costumes da Idade Média e da Renascença, apresenta­nos pormenores muito 
interessantes sobre os mendigos e miseráveis. É ele que nos informa que na França existia a 
Ordem de Argot que congregava diversos tipos de indigentes. Eles usavam um linguajar 
muito seu, repleto de gírias exclusivas e matreiras, conhecido pelo nome de "le jargon".
    Dentre esses grupos que mantinham identificação própria, nos quais estavam 
invariavelmente inseridos pobres com deficiências evidentes, é importante destacar alguns, 
tais como:
    ­ os "Orphelins" ­ mendigavam chorando pelas ruas das cidades;
    ­ os "Marcandiers" ­ errantes, andavam vestidos com um gibão velho mas de qualidade, 
fazendo­se passar por comerciantes arruinados;
    ­ los "Malingreux" ­ cobertos de andrajos, mostravam suas feridas e chagas (falsas muitas 
vezes) e pediam dinheiro para uma pretendida viagem de peregrinação a um templo 
milagroso para sua cura;
    ­ los "Piètres" ­  mendigos com deficiências físicas, locomoviam­se com muletas ou 
pequenos aparatos para as mãos e joelhos;
    ­os "Sabouleux" ­ pedintes em feiras, mercados e igrejas, simulavam ataques e 
convulsões, espumando pela boca graças a um pequeno pedaço de sabão, rolando pelo chão 
e conseguindo polpudas esmolas.

    Havia também outros grupos de mendigos filiados e especializados em seu modo de se 
apresentar ou de atuar em determinados ambientes para angariação de esmolas em dinheiro 
ou em espécie: "Callots", "Coquillards", "Hubins", "Polissons", "Francs Mitoux", "Ruffés", 
"Millards", "Convertis", "Narquois" e muitos outros.
    Em Paris todos eles pagavam uma taxa fixa por ano ao rei dos mendigos, o "Grand 
Coesre", enquanto que nas maiores cidades da França havia seus lugares­tenentes, 
conhecidos pelo título generalizado de "Cagoux", que coletavam as taxas, além de serem os 
responsáveis diretos pelo treinamento dos novos mendigos quanto à apresentação, aos apelos 
ao público e à linguagem da Confraria.
    Esses grupos reuniam­se diariamente, comiam, bebiam, inteiravam­se das novidades e 
divertiam­se um tanto grotescamente naqueles famosos e comentados "Pátios dos Milagres" 
("Cours des Miracles"), que eram logradouros mal iluminados e infectos da mais triste 
memória. À noitinha aos poucos iam aparecendo os mais variados tipos de verdadeiros e de 
falsos mendigos: amputados, paralíticos, cegos, epiléticos ­ cada qual trazendo em seus 
alforges ou debaixo dos braços algum alimento ou bebida. Lá muitos abandonavam suas 
muletas ou bengalas, transformando­se em pessoas bem dispostas que dançavam todo tipo 
de música e que bebiam à vontade, fartando­se sem a mínima preocupação com eventuais 
dificuldades no dia seguinte. Sua diretriz maior era alimentar­se e divertir­se no Pátio dos 
Milagres "ni foi ni loi" (sem fé nem lei).
    Embora a França não fosse a única nação européia a viver esse problema, ela tomou uma 
providência que iniciou os primeiros passos no sentido do equacionamento do "modus 
vivendi" dos miseráveis daqueles séculos: foi organizado o "Grand Bureau des Pauvres".
    
    ­ *O problema da mendicância organizada em outros países*
    A Espanha, a Itália, a Inglaterra, a Alemanha e todo o resto da Europa viviam situações 
quase que inteiramente semelhantes durante diversos séculos e que, devido ao alheiamento 
da nobreza, da burguesia e dos governantes, muito demoraram para ser sanadas.
    A Itália, por exemplo, tinha os seus mendigos e indigentes (conhecidos pelo apelido de 
"Bianti" e também de "Ceretani") subdivididos em mais de quarenta grupos reunidos numa 
só organização.
    Dentre eles cumpre destacar os "Affrati" (vestidos com hábitos sacerdotais, roubavam as 
esmolas das igrejas e santuários), os "Accatosi" (pareciam cativos recém­libertos, com restos 
de algemas nos punhos e nos tornozelos), os "Allacrimanti" (apresentavam­se chorando 
muito suas desgraças), e mais, os "Morghigeri", os "Felsi", os "Vergognosi" e muitos mais 
(Apud Lacroix).
    Dentre os que obtinham mais e melhores esmolas sempre estavam os mendigos com 
deficiências físicas mais sérias ou que mais tocavam a população.

    ­ *Deficientes mentais no século XVI: entidades não­humanas*
    Até o século XVI as crianças com retardo mental profundo eram consideradas em certos 
meios como entidades que se assemelhavam a seres humanos, mas que não o eram. Havia a 
crença generalizada principalmente entre alguns religiosos que essas crianças ocupavam o 
lugar e chegavam a substituir mesmo crianças normais, através da atuação e interferência 
diretas de maus espíritos, de bruxas ou de fadas maldosas e de duendes demoníacos.
    E é surpreendente verificar que mesmo intelectuais do mais alto nível acreditavam sem 
qualquer sombra de dúvida nesses postulados. Exemplo dos mais marcantes foi o de 
Martinho Lutero que negou a própria natureza humana de uma criança com retardo mental 
de alguma seriedade. Eis o que Martinho Lutero relatou a respeito desse caso: "Há oito anos 
atrás havia em Dassau uma dessas crianças que eu, Martinho Lutero, vi e examinei. Tinha 
doze anos de idade, usava seus olhos e todos os seus sentidos de tal maneira que a gente 
poderia pensar que era uma criança normal. Mas ela só sabia fartar­se tanto quanto quatro 
lavradores. Ela comia, defecava e babava e se alguém tentasse segurá­la, ela gritava. Se 
alguma coisa ruim acontecia, ela chorava. Assim, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse 
o príncipe, eu levaria essa criança ao rio Malda, que passa perto de Dassau e a afogaria. Mas 
o príncipe de Anhalt e o príncipe da Saxônia, que estavam presentes, recusaram­se a seguir 
meus conselhos. Eu disse, então: Bem, então os cristãos rezarão o Pai Nosso nas igrejas e 
pedirão que Deus leve o demônio embora. E assim foi feito diariamente em Dassau, e o 
retardado morreu um ano depois".
    Lutero chegou a afirmar que estava convencido de que aquele retardado de doze anos de 
idade era apenas massa de carne ("massa carnis") sem alma. "O demônio possui esses 
retardados e fica onde suas almas deveriam estar" (Apud Wolfensberger).

    ­ *A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra*
    Passos muito importantes foram dados durante os séculos XVI e XVII na Inglaterra 
quanto ao atendimento a alguns grupos especiais de pessoas incluídas num grupo muito 
maior: o dos miseráveis. Com o esfacelamento do regime feudal e a posterior dissolução dos 
conventos, mosteiros e abadias, por expressa determinação do rei Henrique VIII (1491 a 
1547), logo após seus desentendimentos com o Vaticano, todos os religiosos foram expulsos 
da Inglaterra. Houve uma parcial paralisação e mesmo destruição do sistema de abrigo e de 
tratamento de doentes, bem como de assistência vigente e organizado pelo catolicismo sob a 
forma de caridade. A maioria desses edifícios religiosos foi sendo ocupada e utilizada para 
outros fins.
    Entre essa época (1536 a 1539 aproximadamente) e o século XVII poucos 
estabelecimentos hospitalares foram criados no Reino Britânico. Durante esses séculos da 
Renascença muitos hospitais não sofreram alterações substanciais na Inglaterra, uma vez que 
continuaram com suas características básicas de abrigo ou de mero asilo para doentes até a 
sua morte, ou também para deficientes físicos sem condições de sobrevivência e mesmo para 
velhos abandonados. O pauperismo na Inglaterra agravou­se com o fechamento dos 
mosteiros e abadias.
    A deterioração das condições de vida das populações mais pobres, dos enfermos e dos 
doentes ou deficientes em geral levou o próprio Henrique VIII a promulgar a primeira "Lei 
dos Pobres", pela qual todos os súditos eram obrigados a recolher o que foi chamado de 
"taxa da caridade".
    As famosas "Leis dos Pobres" da Inglaterra começaram a ser aplicadas na prática apenas 
no ano de 1531, pois foi exatamente nesse ano que surgiu um primeiro ato oficial, 
autorizando juízes a dar licenças para velhos abandonados e para pessoas portadoras de 
defeitos físicos sérios pedir esmolas, mas apenas em suas próprias comunidades ou, no 
máximo, em áreas circunvizinhas.
    O problema dos pobres passou a ficar tão sério na Inglaterra que em 1535 iniciaram­se 
discussões gerais para encontrar soluções aos seus múltiplos aspectos, sendo uma delas a 
inserção dos pobres "sem deficiência física" em trabalhos que eram pagos pela Coroa 
Inglesa.
    No ano seguinte a pressão continuava a mesma, senão maior do que antes, de tal forma 
que fundos privados foram organizados para de certa maneira forçar a participação do povo 
na solução do problema. A contribuição para a necessária ajuda aos pobres passou a ser, 
então, uma obrigação social em toda a Inglaterra. Essa contribuição, estabelecida no ano de 
1576, levou ao desaparecimento do caráter voluntário daquela anteriormente existente.
    Mesmo antes dessa contribuição decorrente de uma determinação legal, porém, a 
Inglaterra já vinha estudando as miríades de ângulos da questão da pobreza e montava 
instituições em diversos centros urbanos dos mais pujantes, para o atendimento separado dos 
pobres devido a incapacidades físicas ou mentais e pobres devido a circunstâncias de vida, 
tais como acidentes e doenças. Estavam incluídos nessas considerações os pobres por mero 
desleixo ou por falta de condições para a necessária auto­suficiência.
    
    ­ *O atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI*
    As crianças inglesas abandonadas, doentes ou portadoras de males incapacitantes 
começaram então a ser assistidas por organismos vinculados à Coroa Britânica e também por 
iniciativa das comunidades que procuravam manter seus esquemas com alguns objetivos 
mais ou menos bem definidos e que por vezes chegam a surpreender­nos em pleno século 
XX, pois já no século XVI incluíam, pelo menos na teoria ou nos seus postulados, o 
seguinte:
    ­ a obtenção de trabalho para essas crianças ao chegarem à idade requerida para uma 
atuação rentável;
    ­ a definição de alguma proteção para elas fora dos orfanatos e dos abrigos provisórios, 
ficando aos cuidados de famílias que delas se dispusessem a cuidar por baixo custo para o 
governo ou para instituições privadas bem organizadas;
    ­ internação definitiva em orfanatos, caso nenhuma dessas duas alternativas chegasse a se 
concretizar ou a se mostrar viáveis.

    ­ *O "Grand Bureau des Pauvres" da França*
    No ano de 1544 foi fundado o "Grand Bureau des Pauvres" na França, sob o reinado de 
Francisco I (1494 a 1547), um monarca seguidor de uma filosofia aparentemente humanista, 
além de muito voltado para as inovações da Renascença na Europa. O "Grand Bureau" era 
composto de burgueses ocupantes das mais importantes posições em Paris e ficou conhecido 
pelo apelido de "Aumône Générale" (Esmola Geral). Com as contribuições que recolhia 
conseguia manter os hospitais da Trindade e das "Petites Maisons", atendendo a doentes 
pobres, incluindo aqueles com paralisias, amputações, deformações e cegueira. 
Organizações semelhantes existiam em diversas importantes cidades francesas, dando 
alguma cobertura aos desamparados em geral quando em situação de doença ou de 
impedimento contínuo para ganhar a própria vida.

    ­ *Classificação de indigentes na França no século XVI*
    Henrique II (1519 a 1559), rei da França, casado com Catarina de Médicis, tomou a sério 
e resolveu prosseguir os esforços de Francisco I. Assinou um decreto em 1547 através do 
qual impôs aos parisienses uma coleta em favor dos indigentes. 
    Eles eram, àquela época, classificados em três categorias principais:
    "Robustes" ­ os que não eram doentes ou deficientes e podiam trabalhar ;
    "Invalides" ­ com problema sério de invalidez, mas com domicílio;
    "Invalides sans feu ni lieu" ­ deficientes sem abrigo nem domicilio.

    A primeira categoria tinha direito a empregos sem dificuldades; a segunda recebia ajuda 
em seu próprio domicilio; a terceira ­ a dos inválidos sem lar ­ era recolhida a um abrigo.

    ­ *Luís de Camões, o poeta épico português por excelência*
    O "cavaleiro­fidalgo" Luís de Camões (1524 a 1580) engajou­se na vida militar, servindo 
em Marrocos entre os anos de 1545 a 1548. Ali perdeu um de seus olhos em escaramuças 
com os marroquinos. Pouco depois voltou a Lisboa e aos ambientes da corte. Tendo lá 
chegado, a notória deficiência passou logo a ser motivo de algumas brincadeiras e zombarias 
por parte de uma jovem por quem Camões sentia forte atração. Segundo amigos mais 
próximos do poeta, ela se referira a ele como "cara sem olhos".
    Luís de Camões, em seus 25 anos, sentiu a agulhada do comentário. Mas acabou por 
transformá­lo em um galanteio com o seguinte verso dirigido à mimosa dama:
    "Sem olhos vi o mal claro
    Que dos olhos se seguiu:
    Pois cara sem olhos viu
    Olhos que lhe custam caro.
    De olhos não faço menção,
    Pois quereis que olhos não sejam
    Vendo­os, olhos sobejam,
    Não vos vendo, olhos não são" ...
    A deficiência, que poderia ter arruinado a vida de um jovem galante, não prejudicou nem 
a vida guerreira e aventuresca, nem a vida literária de Luís de Camões que muitos anos mais 
tarde, após infindáveis viagens para Goa, Calabar, Meca, Índia, China, Málaca, ilhas de 
Malásia, Moçambique e outros lugares, escreveu a epopéia portuguesa que intitulou de "Os 
Lusíadas".

    ­ *Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha*
    Navarrette, conhecido pelo cognome de "El Mudo" foi pintor da Escola Espanhola. 
Nasceu em 1526 em Logroño e faleceu em Toledo em 1579. Recebeu lições de Ticiano e 
com 42 anos de idade foi convidado pelo rei Felipe II (o mesmo rei que tinha um organista 
cego) a decorar El Escorial. A incapacidade de falar não o inibiu em seus múltiplos 
relacionamentos durante o empreendimento. Cita­se entre suas obras mais famosas o quadro 
intitulado "São João Escrevendo o Apocalipse". Outra obra sua muito conhecida é o quadro 
"Martírio de São Tiago, o Maior".

    ­ *Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII*
    Ainda dentro do século XVI a situação dos hospitais continuava extremamente ruim nos 
países do continente europeu, apesar dos muitos esforços feitos pelas ordens religiosas. 
Havia enorme falta de higiene, negligência e às vezes até crueldade por parte de atendentes 
mal preparados. E foi nessa situação que surgiu no cenário dos hospitais a figura de Camilo 
De Lélis (1550 a 1614) que com 25 anos de idade resolveu devotar­se a doentes 
hospitalizados. Trabalhou inicialmente com doentes crônicos internados no Hospital de São 
Tiago para Incuráveis, em Roma.
    Fundou uma congregação de religiosos para o serviço hospitalar que preparava ministros 
para os enfermos, a fim de dar a requerida atenção ao corpo e à alma do doente.
    Ele mesmo foi mais tarde vítima de ulcerações malignas numa das pernas, que o tornaram 
parcialmente deficiente até o final de sua vida. Os "Camilianos", como passaram depois de 
muitos anos a ser reconhecidos, contribuíram muito, através dos vários séculos de sua 
existência, para a melhoria dos padrões de atendimento nos hospitais e nas casas de saúde 
onde tiveram oportunidade de atuar.
    Com raras e honrosas exceções muitos hospitais da Alemanha e da França começaram, já 
no século XVII, a passar gradativamente para o controle dos governos locais. Sob a firme 
orientação do cardeal francês Jules Mazarin (1602 a 1661), alguns esforços especiais foram 
coordenados pelo governo francês para colaborar na solução ou pelo menos na diminuição 
dos sofrimentos e das dificuldades vividas pelos mendigos e pelos doentes pobres e 
incuráveis, e no meio deles sempre inseridos por não terem outro destino os deficientes 
físicos e mentais.
    Foram também criados na França, em 1656, os chamados Hospitais Gerais (Hôpitaux 
Généraux) que eram uma combinação de asilo e de hospital, mas bem melhor organizados e 
onde os serviços médicos estavam sempre presentes e a medicação era melhor controlada e 
administrada. Foi nesses hospitais gerais da França que pessoas deficientes foram também 
atendidas e passaram a ser objeto não só de abrigo e alimentação, como de assistência 
médica.
    
    ­ *Galileo Galilei, matemático, astrônomo e físico*
    Nascido em Pisa no ano de 1564, Galileo foi o primeiro homem a usar um telescópio. 
Após anos de contínuos e dedicados estudos, provou que a terra não era o muitas vezes 
pretendido "centro do universo", e que ela girava em torno do sol. Era uma teoria muito 
ousada para a época da incipiente Renascença e principalmente para as autoridades da Igreja 
Católica. Face à gravidade das suas afirmações que, no conceito de muitos iria atingir 
duramente a posição até então assumida e defendida pela Igreja e seus doutores, Galileo foi 
preso e formalmente acusado na Inquisição. Devidamente julgado, foi condenado a se 
desdizer e a passar seus últimos oito anos de vida em casa, sob custódia. No entanto, 
continuava a crer em sua teoria e morreu em 1642 balbuciando suas famosas últimas 
palavras: "Eppur, si muove" (no entanto, ela se move ...).
    Galileo sofria de um problema reumático sério e em conseqüência dele acabou ficando 
cego nos últimos quatro anos de sua vida. Continuou, todavia, estudando e mantendo 
correspondência científica, ditando seus trabalhos e suas cartas a dois de seus alunos: 
Viviani e Torricelli.
    No dia 4 de julho de 1637 o grande cientista escreveu uma carta a Donati, seu antigo 
companheiro, na qual se queixava: " ... Encontro­me acamado há cinco semanas ... 
Acrescente­se, oh dor!, a perda total de meu olho direito que é aquele que fez tantos tantos e 
tantos, seja­me lícito dizer, trabalhos gloriosos! Ele está agora, meu senhor, cego: o outro, 
que era e é imperfeito, mantém­se ainda sem o pouco uso que dele poderia fazer se o 
operasse, uma vez que um lacrimejar contínuo me tira a possibilidade de fazer qualquer 
qualquer qualquer das funções que se espera da visão" (Apud Germani).

    ­ *O continuo problema dos soldados mutilados*
    No atendimento ao soldado doente ou mutilado devido a atividades relacionadas às lutas 
armadas ou em atividades afins, sabe­se que, por ordens diretas de Henrique IV, da França, 
que reinou entre 1589 e 1610, foi organizado na Maison de la Charité, em Paris, um abrigo 
para os soldados franceses de todos os níveis. Era uma das primeiras e notórias tentativas 
européias destinadas a dar cobertura de assistência aos problemas daqueles homens que 
arriscavam sua integridade física e sua saúde em benefício de sua terra, de sua gente e de seu 
rei.
    
    ­ *Os trabalhos com os deficientes auditivos no século XVII*
    As idéias defendidas no correr do século XVI sobre os surdos e surdos­mudos não eram 
na maioria dos casos passadas para a prática e foi Juan Pablo Bonet que deu os primeiros 
passos nesse sentido. Escreveu sua obra intitulada "Reducción de las Letras y Arte para 
Enseñar a Ablar los Mudos", levantando questões a respeito das causas das deficiências 
auditivas e dos problemas da comunicação oral. Chegou a indicar qual a idade mais 
recomendável para crianças mudas poderem se beneficiar do aprendizado para falar.
    Concluiu que havia basicamente duas causas para o mutismo: a primeira e mais 
importante era a surdez; a segunda era algum eventual defeito na língua. Quanto à melhor 
idade para a criança surda aprender, achava que seria entre 6 e 8 anos, apesar de reconhecer 
as dificuldades de fazer as crianças exercitar­se para tornar a língua mais ágil para articular 
palavras: elevá­la até o palato, entortá­la, baixá­la, curvá­la para a direita e para a esquerda, 
colocá­la para fora da boca em posições diversas, atritá­la ou raspá­la contra os dentes, 
enfim, todas as posições indispensáveis para alguém falar. 
    Além disso Bonet condenava métodos brutais de gritarias e de enclausuramento em caixas 
que provocavam ressonância, defendendo sempre a necessidade de se garantir a 
compreensão dos alunos quanto ao que deles se esperava. Achava que o mestre e o aluno 
deviam ficar a sós e num ambiente bem iluminado porque a instrução exigia toda a 
concentração possível e o aluno precisava também observar bem a boca de seu mestre tanto 
do lado de fora quanto do lado de dentro.
    Outro autor que marcou época no século XVII no campo da surdez foi o inglês John 
Bulwer (1600 a 1650), com sua obra intitulada "Philocophus" e que tinha como sub­título 
elucidativo a pouco modesta intenção do autor: "O amigo dos homens surdos e mudos 
mostrando a verdade filosófica da sutil arte que pode capacitar alguém com olhar observador 
a ouvir o que qualquer homem fala pelo movimento de seus lábios. Provando aparentemente 
que um homem nascido surdo e mudo pode ser ensinado a ouvir o som das palavras com seu 
olhar e de aprender a falar sua língua" (Apud Mullett).
    Bulwer foi um dos primeiros educadores que defendeu um método de ensino da leitura 
labial, apesar de ter escrito também sobre a linguagem dos sinais.
    Há outros autores e educadores que atuaram com determinação e competência nesse 
campo no correr do século XVII e dentre eles cumpre chamar a atenção para Kenelm Digby, 
John Wallis, William Holder, John Wilkins e Francis Mercury van Helmont.

    ­ *Johannes Kepler, astrônomo alemão*
    Nascido em 1571 e falecido em 1630, Kepler desenvolveu importantes estudos sobre o 
movimento dos planetas, que muito ajudaram na elaboração das bases modernas da 
astronomia.
    O que poucos sabem, todavia, é que Kepler tinha uma séria deficiência visual, causada 
pelo sarampo contraído aos quatro anos de idade. As dificuldades causadas pela severa 
redução da acuidade visual, entretanto, não afetaram sua forte vontade de aprender e de 
estudar. Apesar de pobre, superou os problemas e mil dificuldades que se interpunham aos 
seus propósitos e trabalhou muito.
    Kepler legou ao mundo três leis básicas da astronomia, conhecidas pelo seu nome, das 
quais a mais popular é esta: "As órbitas dos planetas são elipses, tendo o sol como um dos 
seus focos" ...

    ­ *Padre Lejeune, maior pregador do século XVII*
    Nascido em Poligny (França, o padre Jean Lejeune foi o mais célebre pregador de seu 
século, segundo seus biógrafos. Perdeu a visão aos 43 anos de idade quando pregava durante 
a quaresma na cidade de Rouen.
    Mas a cegueira não diminuiu sua competência de grande orador nem sua alegria sempre 
muito natural.
    Lejeune morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e muito vivaz, apesar das doenças. A 
solidez de suas idéias e o seu estilo levaram o prelado e ao mesmo tempo grande pregador 
das cortes de Luís XIV e Luís XV, Massillon, a recomendar a muitos seminaristas e jovens 
sacerdotes o estudo de seus maravilhosos sermões publicados em dez volumes sob o título 
de "Le Missionaire de l'Oratoire", entre 1662 e 1676.

    ­ *Novas formas de utilizar os hospitais*
    A permanente luta para a criação de entidades hospitalares, ou pelo menos de 
organizações destinadas ao atendimento de pessoas com problemas crônicos ou gravemente 
incapacitadas para a vida independente, na época da Renascença, refletia o crescente papel 
que o Estado assumia para encontrar soluções para problemas sociais e econômicos de sua 
população, ou também de algumas entidades privadas em muitos países europeus.
    Na Alemanha, por exemplo, a responsabilidade pela manutenção de hospitais, após a 
reforma protestante, passou durante muitos anos para as mãos das corporações municipais.
    Devido à precariedade de recursos para o aprendizado da medicina, além das dificuldades 
dos médicos em adquirir experiência de ordem mais significativa na proximidade e mesmo 
convívio com colegas de profissão e de trabalho, uma importante e muito auspiciosa 
tendência começou a surgir no século XVII: a de considerar os hospitais não mais como 
meros depósitos de doentes pobres e nos quais os médicos quase nem compareciam ou 
davam atendimento, mas como uma organização destinada ao tratamento e à cura das 
pessoas doentes, com uma inegável possibilidade de se tornarem centros de estudos de casos 
e de treinamento prático de estudantes de medicina.
    A Holanda, liderando o ainda mal definido movimento, e reconhecendo a necessidade de 
poder contar com médicos melhor preparados, instalou no ano de 1626, na cidade de 
Leyden, o primeiro sistema de treinamento prático e bem orientado de médicos nos 
hospitais, o que sem dúvida acabou levando a medicina a prestar muito maior atenção não 
apenas aos doentes vitimados por males curáveis e comuns, mas também por males ainda 
pouco conhecidos que levavam à permanente vinculação ao leito, ou ainda a problemas 
incapacitantes do físico e do mental.

    ­ *As deficiências físicas em peças de Shakespeare*
    Nascido no ano de 1564 e morto em 1616, William Shakespeare foi o maior poeta e 
dramaturgo inglês de todos os tempos. Tal é sua versatilidade que para muitos ele dá a 
impressão de ter formação médica, devido à demonstração que faz de seus conhecimentos de 
anatomia, neurologia, fisiologia e outras áreas afins, colocados em diversas de suas peças. O 
volume de citações que faz de males incapacitantes é bastante expressivo.
    Em diversas de suas obras o leitor poderá encontrar casos de fraturas graves, de 
mutilações, de deformidades congênitas ou adquiridas.
    Como todos sabem, Shakespeare escreveu peças imorredouras, tais como Romeu e 
Julieta, Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão, Rei Lear, Mácbeth e outras. Há diversas que 
são pouco conhecidas entre nós e que têm muita importância em sua imensa obra literária, e 
nas quais o genial escritor insere personagens com deficiências, como em Ricardo III, 
Henrique IV, Henrique VI, Henrique VIII, Tróilus e Créssida, a Tempestade, Titus 
Andronicus, Péricles e Otelo.
    Vejamos alguns exemplos ilustrativos, iniciando pela peça Titus Andronicus. Trata­se de 
uma tragédia de proporções vastas. Um dos personagens, Lavínia, filha de Titus, teve seus 
braços cortados e sua língua decepada em dramáticas circunstâncias. O autor explora muito 
bem o fato narrado e suas circunstâncias, dando cores muito vivas a todas as cenas em que 
Lavínia aparece. Esse realce é mais evidente na cena em que, de certa forma imitando a 
lenda de Filomela, Lavínia consegue indicar os culpados pela sua situação, mesmo sem ter 
mãos para escrever ou língua para falar.
    Na tragédia Otelo, o personagem Cássio é ferido traiçoeiramente na perna pelo pérfido 
lago e grita desesperado na escuridão de uma rua cipriota:  ­ "Estou aleijado para sempre! 
Socorro! Assassino!", ... 
    Ao leitor não fica muito clara a extensão da lesão, embora algumas frases dos diálogos 
que seguem sejam bem indicativas. Da boca de Cássio temos, por exemplo, estas duas 
frases:
    ­ "lago? Oh! ... Fui inutilizado, aniquilado por vilões" ...
     ­ "Minha perna foi cortada em duas" ...
    Já na tragédia Ricardo III, Shakespeare associa o defeito congênito com maldade, perfídia, 
malícia, o que sucede também na peça Tróilus e Créssida, com a indefinível figura de 
Térsites. Ricardo III (rei que existiu de fato, mas certamente sem muitas das aberrações 
alegadas por Shakespeare) é identificado na peça como "montão de ódio", "massa ignóbil e 
disforme", "tão disforme de maneiras quanto de corpo", "rochedo fatal e disforme" e "sapo".
    Essa peça é iniciada com um monólogo muito revelador desse rei controvertido a respeito 
de cuja figura histórica surgem muitas dúvidas:  ­  "Mas eu, que não fui talhado para 
habilidades esportivas nem para cortejar um espelho amoroso; que, grosseiramente feito e 
sem a majestade do amor para pavonear­se diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, 
privado dessa bela preparação, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme, 
inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos; terminado pela 
metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães ladram para mim quando paro 
perto deles; pois bem, eu, neste tempo de serena e amolecedora paz, não acho delícia em 
passar o tempo, exceto espiar minha sombra no sol e dissertar sobre a minha deformidade" 
(Apud Miller e Davis).

    ­ *A superação de deficiências no século XVII: um exemplo*
    Por toda a história do homem na Terra certamente que esforços individuais de naturezas 
as mais variadas foram desenvolvidos para a eliminação dos bloqueios e das muitas 
dificuldades causados por limitações físicas e sensoriais. Bengalas ou bastões de apoio, 
calçados especiais, muletas, coletes, próteses, macas e camas móveis, cadeiras especiais, 
carros adaptados, liteiras e muitas outras idéias devem ter surgido em muitas ocasiões. No 
entanto, por milênios, essas adaptações e criações não causaram maior impacto sobre os 
homens detentores do poder ou do dinheiro, uma vez que o problema sempre foi considerado 
como puramente individual e não dos governantes.
    Conforme percebemos até este ponto da existência do homem, diversos casos de pessoas 
portadoras de deficiências foram até passados para a imortalidade da História. Relembremos 
aqui os nomes de Homero, de Dídimo de Alexandria, dentre tantos. O primeiro, apesar de 
cego escreveu fabulosos poemas épicos que integram até hoje o acervo dos melhores 
trabalhos já produzidos pelo homem. E quanto a Dídimo, também foi um exemplo digno de 
nota, chegando o ilustre diretor da Escola de Alexandria ­ também cego ­ a utilizar­se de um 
recurso até hoje muito usado pelos cegos que pretendem estudar ou manter­se atualizados: 
os ledores.
    Pela metade do século XVII, na Europa, alguns homens notáveis procuravam também 
solucionar problemas de ordem prática para pessoas portadoras de deficiências físicas sérias, 
especialmente nos casos daquelas que tinham posses e podiam pagar pela criatividade dos 
artesãos. E um dos homens inventivos e de grande iniciativa foi o alemão Stephen Farfler, 
que havia sido vítima de algum tipo de paralisia nas pernas. Segundo nos conta Pecci, foi ele 
"o primeiro a se locomover numa cadeira de rodas. Paraplégico desde os três anos, ele 
mesmo a idealizou e construiu quando tinha 22 anos, em 1655. Era uma cadeira baixa, 
pequena, toda de madeira, com duas rodas atrás e uma na frente. A da frente era acionada 
por duas manivelas giratórias. O próprio Stephen a movimentava. Ele utilizava essa cadeira 
não apenas em casa, mas saia com ela, trabalhava e passeava. Usou­a até a sua morte, aos 56 
anos, ocasião em que o veículo foi levado à Biblioteca Municipal de Nuremberg, onde ficou 
exposta até 1945, quando um bombardeio a destruiu" ("Minha Profissão é Andar", de Pecci).
    Outros homens do século XVII superaram sua deficiência e deixaram legados brilhantes. 
Milton (1608 a 1674), um dos maiores poetas ingleses, ficou cego com aproximadamente 45 
anos de idade. Conseguiu ajuda e continuou suas obras, tendo escrito o monumental "Paraíso 
Perdido" e outras obras mais, após a instalação da cegueira.

    ­ *John Milton: o significado de sua cegueira*
    Alguns autores têm escrito sobre a cegueira desse grande escritor inglês e têm arriscado 
um diagnóstico da causa desse grave problema que mudou a vida de John Milton. Dentre 
esses diagnósticos cumpre destacar os seguintes: castigo de Deus devido à sua participação 
na revolta de Cromwell, catarata, glaucoma crônico, complicações de miopia, descolamento 
de retina, glaucoma agudo devido a crises emocionais, albinismo,
neuroretinite de origem sifilítica congênita, e também "fraqueza natural".
    A fonte mais preciosa de informação quanto às reações de Milton à perda da visão é uma 
carta que ele mesmo escreveu a seu amigo Leonard Philaras. Dentre os muitos ângulos 
abordados pelo escritor cego, convém ressaltarmos as belas frases em que mostra a forma 
como aceita sua cegueira.
    Diz ele: " ... minha escuridão, por singular misericórdia de Deus, com a ajuda de estudos, 
lazer e a bondosa conversação de meus amigos, é muito menos opressiva do que a mortal 
escuridão à qual se alude. Porque se, conforme está escrito, o homem não vive só de pão, 
mas de cada palavra que vem da boca de Deus, por que um homem não pode realmente 
aceitar isso, pensando que só pode obter a luz de seus próprios olhos, julgando­se, todavia, 
suficientemente iluminado pela orientação e providência de Deus? Portanto, já que Ele prevê 
as coisas e me dá cobertura, como faz, e me leva para diante e para trás pela Sua mão, como 
se o fizesse pela vida toda, não poderei eu dar uma folga a meus olhos, já que esse parece ser 
o Seu prazer?"
    Na verdade, durante os 22 anos de sua cegueira, Milton tornou­se bem mais ativo e sua 
atividade de trabalho cresceu como nunca antes ocorrera. Os primeiros oito anos de sua vida 
como cego ele os dedicou a Cromwell, como Secretário para Línguas Estrangeiras. Traduzia 
cartas do latim para o inglês e vice­versa. Milton trabalhava com a ajuda de secretários e 
amanuenses.
    Organizou um dicionário de latim, preparou uma história da Inglaterra para publicação e 
chegou a publicar um estudo muito sério sobre a doutrina cristã. Além disso, sempre 
manteve extensa correspondência, como era costumeiro.
    Conforme nos diz Snyder, o fato de Milton ser lembrado pelos seus escritos quase 
desconhecidos nos dias de hoje não é tão significativo. O fundamental é nos lembrarmos que 
suas lindas declarações de fé foram compostas por um homem que era cego. Milton, que 
sempre se sentiu nas mãos de Deus, conseguiu no seu mundo de escuridão o que muito 
poucos homens que vivem na luz conseguiram sequer igualar.
    John Milton casou­se três vezes. Sua terceira esposa era uma mulher muito bela, mas dona 
de um temperamento difícil e muito violento. Dizem que quando o Lord Buckingham 
comentou com ele que considerava que ele havia casado com uma verdadeira rosa, Milton 
respondeu: "Não posso julgar pelas cores, Lord, mas sinto­o pelos espinhos".

    ­ *São Vicente de Paulo: suas obras face às tendências do século XVII*
    Nas muitas tentativas de atendimento à vasta população mais pobre em diversos países da 
Europa, começaram a surgir novidades e alterações significativas, quando em 1634 apareceu 
um abnegado e obscuro sacerdote: Padre Vicente de Paulo (1581 a 1660), nascido em Pouy, 
na França. Fundou instituições para crianças pobres e abandonadas, doentes e defeituosas e 
que em muitos casos estavam sendo exploradas para mendigar. Sua atuação levou à criação 
de congregações religiosas que se destinaram ao cuidado do doente pobre, como os Padres 
Lazaristas e as Irmãs de Caridade.
    Assim como em outras áreas do desenvolvimento humano e científico incrementado 
durante a Renascença, no século XVI I começara a brilhar muito tenuemente um pouco de 
justiça para pessoas fisicamente limitadas, bem como para toda a parcela da humanidade que 
se encontrara até então subjugada pela miséria e pela doença, pois durante quase toda a sua 
duração o mundo caminhou com firmeza para melhores condições de vida.
    ­ *A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra*
    Conforme verificamos anteriormente, toda a legislação relacionada aos pobres que 
"infestavam" a Inglaterra, desde o seu aparecimento, foi revista e re­editada em 1601, sob a 
rainha Elizabeth I (1533 a 1603). Esse acervo de leis e de normas, que levou muito em 
consideração os incapacitados devido a qualquer tipo de mal, foi de certa forma codificado 
no ano de 1623, tendo a partir daí sido reconhecido como "A Velha lei dos Pobres".
    Nessa codificação nova, as paróquias foram reconhecidas definitivamente como unidades 
básicas para sua administração e coordenação. Essa função adicional aos trabalhos da Igreja 
coube a supervisores designados por juízes locais que tinham a função de avaliar o montante 
de contribuição destinada a cada pobre e o volume de ajuda que cabia a cada cidadão. 
Quando estabelecida e ratificada pelo juíz local, essa ajuda tornava­se obrigatória para a 
comunidade.
    Pois bem, foi com esses fundos que os velhos e os deficientes foram atendidos e 
receberam abrigos em áreas pouco povoadas; crianças pobres receberam treinamentos; os 
pobres sem deficiência foram encaminhados para empregos.
    O período de vigência da "Lei dos Pobres" (Poor Law) que vai até o ano de 1644 foi 
muito importante. Foi iniciado um sistema centralizado de cobrança de providências a nível 
local, pois era notório o fato de que, mesmo onde não havia pressão de trabalho, onde 
esquemas assistenciais funcionavam bem, nas paróquias muito distantes e onde a supervisão 
tornava­se impraticável, muitas vezes os pobres eram assistidos sem qualquer relação aos 
preceitos da lei que forçava a isso.
    Houve também uma chamada "lei de localização e de remoção", de 1662, definindo 
melhor o papel de cada paróquia. As leis iniciais indicavam que o direito à assistência era 
local e da comunidade. Assim, as paróquias tinham que se prevenir contra a presença de 
estranhos ou de pessoas que poderiam se beneficiar de mais de um programa assistencial ou 
dispensarial. O preâmbulo dessa "lei de localização e de remoção" dizia que pessoas pobres 
não eram impedidas de se mudar de uma paróquia para outra e podiam assim estabelecer­se 
naquelas em que havia melhor estoque de matéria prima (para os trabalhos destinados aos 
pobres), os maiores terrenos para construir barracos e o maior volume de madeira para 
queimar durante o inverno e também para outros usos.
    Essa nova legislação dava às paróquias até poder para remover pessoas idosas, defeituosas 
e incapacitadas, com menos de três anos de residência.
    Dessa maneira, nenhuma ajuda poderia ser dada aos pobres, aos aleijados e aos mendigos 
quando fora de suas paróquias, a menos que houvesse autorização especial de um juíz. Os 
nomes desses pobres, seguidos de dados de identificação, eram lançados num livro especial 
que era revisto cuidadosamente uma vez por ano.
    Ao final do século XVII, formalizou­se na Inglaterra a estigmatização dos pobres velhos, 
órfãos, deficientes ­ pois aqueles que eram "autorizados" a receber ajuda mensal das 
paróquias, eram obrigados ­ a partir de 1697 ­ a usar em sua roupa externa (casaco, capa, 
manta, abrigo) um grande "P" vermelho ou azul.

    ­ *O nascer da ortopedia como especialidade*
    Dentre os muitos progressos e melhoramentos ocorridos no século XVII, é de se ressaltar 
o que sucedeu na área da medicina, praticamente em conseqüência do que vinha sendo feito 
desde vários séculos antes. Na França, por exemplo, no ano de 1662, foi determinado pela 
coroa real que cada cidade deveria criar o seu próprio hospital. As especialidades médicas 
começaram também a se definir, tendo a ortopedia sido, sem qualquer dúvida, a primeira a 
ser estabelecida como tal, apesar de não ter sido, de início, reconhecida pela nomenclatura 
de "ortopedia". Dessa forma, foi durante a Renascença que ficou registrado um dos 
primeiros avanços muito sérios na medicina, desde as remotas épocas clássicas greco­
romanas.
    Dentre os muitos motivos que podem ter levado à definição de uma especialidade médica 
que cuidava dos problemas de ossos e de mutilações, não se deve menosprezar o fato de a 
ortopedia ter se desenvolvido mais rapidamente devido à obrigação de o Estado manter 
serviços médicos para seus soldados feridos ou amputados em batalha, desde tempos os mais 
remotos, conforme pudemos observar. A proteção a soldados mutilados ou inválidos pelos 
azares das batalhas mereceu a atenção de toda a Europa Renascentista, e de um modo 
especial da França que, por determinação do rei Luís XIV (o Rei Sol), em ato assinado no 
dia 15 de abril de 1670, mandou construir um verdadeiro palácio (Hôtel, em francês) para 
alojamento e tratamento de seus oficiais e soldados feridos e inválidos para o serviço militar. 
Temos hoje, no centro de Paris, o famoso "Hotel des Invalides", um monumento do passado 
que é ainda hoje um orgulho dos franceses.
    Certamente dentro dessa linha de pensamentos e de preocupações, e por certo para não 
ficar numa posição de desequilíbrio de prestígio com a França, o rei Carlos II, da Inglaterra 
(1630 a 1685), fundou em Chelsea um lar para o que chamava, em sua linguagem pitoresca, 
de "worthy old soldiers, broken in the wars" (velhos valorosos soldados, batidos pelas 
guerras). Tratava­se do Hospital Real de Chelsea que teve suas instalações concluídas em 
1692. O imprevisível Carlos II mandou abrir uma lista de subscrições para a construção, 
para a qual cedeu o terreno. Muitos contribuiram, inclusive Sir Stephen Fox, Diretor Geral 
das Finanças do Reino, que foi nomeado pelo rei como administrador geral dos edifícios.
    O arquiteto que planejou e construiu o Hospital Real de Chelsea não conseguiu disfarçar a 
forte influência das idéias contidas no Hôtel des Invalides e no Hospital de Kilmainham, de 
Dublin, na Irlanda. Compõe­se ele de dois edifícios principais, podendo abrigar até seis 
companhias, num total de 558 pensionistas. Cada homem tinha e tem até os dias de hoje um 
alojamento (quarto) próprio, pequeno mas totalmente individualizado. Os pensionistas 
enfermos eram alimentados e medicados na enfermaria que foi completamente destruída 
durante um bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial. Desde a sua criação até os dias 
de hoje os pensionistas devem ter mais de 55 anos de idade, ter uma deficiência física e ser 
auto­suficientes em seus cuidados pessoais.
    O visitante desse antigo abrigo e hospital para soldados portadores de deficiências físicas 
poderá ainda hoje apreciar uma interessante coleção de quadros, de fotos, de medalhas e de 
condecorações, expostos no espaçoso salão de entrada da organização. Troféus e bandeiras 
capturados durante as muitas batalhas em que pensionistas participaram não podem, 
entretanto, ser mais apreciados ali, uma vez que foram todos devolvidos às unidades de 
origem dos homens ali internados.

    ­ *Quatro cegos brilhantes: Saunderson, Metcalf, Euler e Blacklock*
    Nicolas Saunderson (1682 a 1739), apesar da cegueira, chegou a inventar uma prancheta 
de calcular e publicou várias obras, dentre as quais destacamos "Elementos de Álgebra". O 
primeiro volume desta obra expõe um método que ficou conhecido como "aritmética 
palpável" e que permite ao usuário fazer todas as operações de aritmética com o uso do tato. 
Saunderson tornou­se professor brilhante na Universidade de Cambridge e foi um dos 
grandes expositores das teorias de Newton, dedicando­se de um modo todo especial às 
teorias da luz e das cores.
    John Metcalf (nascido em 1717) perdeu a visão aos 7 anos. Sempre foi muito hábil e de 
quando em quando as pessoas desconfiavam que não era cego devido à sua extrema 
facilidade em se movimentar, cavalgar e em nadar. Sua genialidade levou­o a dedicar muito 
de seu tempo à construção de pontes e de estradas. Foi conhecido nos meios oficiais ingleses 
como "Blind Jack". Sua competência comprovada na remodelação de estradas em péssimas 
condições e na construção de pontes tornou­o uma figura imortal na história das estradas em 
todo o mundo.
    Leonhard Euler (1707 a 1783) foi um geómetra suíço que perdeu a visão aos 58 anos de 
idade. Adaptou­se bem à nova situação e prosseguiu com extremo afinco em suas atividades 
científicas. Escreveu "Elementos de Álgebra" e três volumes sobre dióptrica, que é a parte da 
física que estuda a luz de acordo com os elementos que atravessa. A Academia de Ciências 
de Paris chegou a premiar várias de suas obras. 
    Thomas Blacklock (1721 a 1791) perdeu a visão aos 6 meses de idade devido ao sarampo. 
Desenvolveu muito bem seus estudos e chegou a se formar na Universidade de Edinbourgh. 
Tornou­se ministro evangélico em 1759 e destacou­se nas letras como um dos melhores 
poetas escoceses. É conhecido como "O Poeta Cego". Redigiu diversos tratados de teologia 
e foi colaborador da Enciclopédia Britânica, escrevendo um artigo sobre a cegueira. 
Escreveu também: "Consolações Tiradas da Religião Natural e Revelada", o poema épico 
"Graham" e "Observações sobre a Liberdade". Thomas Blacklock deu também apoio a 
poetas mais jovens, sendo Robert Burns o exemplo mais marcante. 

    ­ *Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas*
    Alexandre nasceu em Londres no ano de 1688, de pais católicos e bastante idosos, tendo 
sido considerado por todos que o conheceram um poeta nato.
    Além de suas obras originais (as "Pastorais", a "Floresta de Windsor", o "Tratado sobre a 
Crítica", o "Tratado sobre o Homem" e várias outras). Pope traduziu o poema épico Ilíada, 
de Homero, pelo que recebeu um total de £5.000. Segundo diversos críticos, foi a mais nobre 
versão de poesia épica que o mundo jamais apreciou. O sucesso foi tão grande que Pope 
traduziu também a Odisséia, com o que ganhou mais £3.000. Com isso, tornou­se 
financeiramente independente.
    Ele foi o mais famoso poeta de seu tempo na Inglaterra, tendo mostrado forte predileção 
pela crítica mordaz, com a qual agredia seus desafetos, dando vazão à sua agressividade.
    No entanto, cabe notar que Alexandre era portador de sérias limitações físicas desde o 
nascimento. Existe a seguinte descrição de Pope, feita por um brilhante pintor inglês, Sir 
Joshua Reynolds: "Ele tinha aproximadamente 4 pés e 6 polegadas de altura" (1,37 m), 
"muito corcunda e deformado. Usava um casaco preto e, de acordo com a moda de então, 
usava uma pequena espada. Tinha olhos grandes e bonitos, e um nariz longo simpático; sua 
boca tinha aquelas marcas peculiares que sempre são encontradas nas bocas de pessoas 
falsas; e os músculos que lhe corriam pela face eram tão fortemente marcados que pareciam 
pequenos cordéis" (Apud MacNalty).
    Sempre doentio, dizia que sua musa ajudava­o na sua longa doença, ou seja, sua vida. Na 
infância sofreu severamente com raquitismo e por causa desse mal ficou corcunda, com 
acentuada curvatura da espinha dorsal. A parte da frente da caixa toráxica também era 
deformada e um dos lados do corpo era afetado por uma forte contração.
    Dizem seus biógrafos que a amargura de suas poesias e a agressividade de muitos 
momentos seus são devidos a essas deformações.
    Adicionando aos seus problemas já tão graves, Pope teve um dia os tendões de dois dedos 
da mão direita gravemente prejudicados durante um acidente.
    Pope morreu em 1744, após uma continua e heróica luta contra doenças e dificuldades 
causadas por suas deficiências físicas. Sua vitória maior está retratada em sua poesia. E foi 
exatamente esse produto de sua inteligência, criatividade e sentimentos que lhe garantiram 
um imorredouro lugar na literatura inglesa, sendo o representante principal de seu 
classicismo.

    ­ *A reformulação hospitalar inglesa*
    Ainda no início do século XVIII, em conseqüência dos atos que levaram ao confisco e à 
destruição dos mosteiros e conventos e à expulsão dos religiosos que estavam vinculados à 
Santa Sé, em Roma, atos esses iniciados aproximadamente nos anos de 1536 a 1539, sob o 
reinado de Henrique VIII, poucos hospitais existiam. A maioria deles encontrava­se 
localizada em Londres e quase todos dispunham de instalações muito precárias. Nessa 
situação continuavam eles a receber doentes crônicos e pessoas seriamente incapacitadas por 
deficiências físicas e por problemas mentais, uma vez que fora de suas instalações não 
conseguiriam sobreviver.
    Pela metade do século XVIII, quando Londres contava apenas com 7 hospitais gerais, 
alguns hospitais especializados foram construídos ou montados em instalações adaptadas. 
Um deles passou a servir pessoas que até hoje são marginalizadas da sociedade maior, ou 
seja, as vítimas de problemas mentais graves. Tratava­se do Hospital Saint Luke. Foi mais 
ou menos por essa época que outras áreas da medicina começaram a melhor definir­se como 
especialidades médicas também na Inglaterra, em adição àquela que cuidava dos problemas 
dos ossos, das amputações e dos males deformantes.
    No atendimento à população civil, surgiram algumas instituições em diversos países 
europeus, seguindo exemplo na Inglaterra, financiadas pelo poder governamental, somando 
esforços com muitas contribuições obrigatórias, ou mesmo por doações avulsas e eventuais 
de ricas famílias ou nobres abastados, como sucedeu no caso do Conde Baden, que no ano 
de 1722 criou um lar para inválidos em Pforzheim.

    ­ *A "Ortopedia" de Nicholas Andry*
    No ano de 1741 Nicholas Andry, um professor da Universidade de Paris, adotou um 
neologismo para identificar a mais antiga das especialidades médicas: "Ortopedia". Segundo 
seus esclarecimentos, essa nova e jamais anteriormente utilizada palavra derivava de 
"orthos", que significa "direito" ou "reto", e "pais, paidós", que corresponde a "criança", na 
língua grega. Segundo o próprio Andry, tratava­se de uma nova "arte de prevenir e de 
melhorar nas crianças as deformidades do corpo". Outros autores e médicos que viveram 
muito mais tarde, verificando o alcance da especialidade e notando que ela não se limitava a 
atender apenas crianças mas a adultos também, de todas as idades, mantiveram a mesma 
designação para a especialidade mas questionaram a derivação proposta para composição 
daquele neologismo pelo seu criador. Achavam que a raiz adequada não estava relacionada a 
"criança", mas a "educação" (da palavra "paidéia", em grego).
    O que nos resta como certo é que muitos séculos antes de surgir a palavra "ortopedia", 
dentro da especialidade que recebia esse nome existiam já muitos de seus diversos 
componentes, porque doenças e acidentes que deformam o homem e o desviam de sua 
aparência original sempre existiram e já tinham recebido muita atenção por parte daqueles 
que se dedicavam à arte médica desde os primeiros tempos da vida do homem na Terra. 
Tanto isso é verdade que, segundo vimos em épocas anteriores ao século XVIII, as noções 
fundamentais já eram encontradiças em trabalhos egípcios, em tratados de Hipócrates, e nos 
muitos outros autores.
    De sua parte, Nicholas Andry procurava sempre atender bem os seus doentes, mas 
adicionava a essa atitude prevista no código de ética médica uma perfeita e fortemente 
humana compreensão dos males que levavam a uma deformidade do corpo humano, 
dedicando­se exclusivamente ao cuidado de crianças. Procurava pautar bem suas atividades 
e restringi­las a problemas passíveis de uma correção por meio de aparelhagem simples e de 
natureza prática.
    Quando, em 1781, Jean André Venel, um médico de Genebra, fundou na vila de Orbe­de­
Vaux, na Suíça, o primeiro centro especializado de atendimento ortopédico, lançou o marco 
mais importante não só para o desenvolvimento mais criterioso e pormenorizado de técnicas 
de aparelhagem e de correção, como também para o desenvolvimento mais aprimorado da 
cirurgia ortopédica, que tanto tem contribuído desde aquela época para a eliminação ou para 
a redução de deficiências físicas. A esse instituto de tratamento ortopédico acorriam não 
apenas crianças mas adultos também, acometidos por males das mais variadas origens. A 
partir de então a fabricação de próteses e de aparelhos de suporte e outros mais alcançou o 
esplendor de seu desenvolvimento.
    No entanto, cumpre ressaltar que todos esses progressos e indicativos de aprimoramento 
técnico e científico atingiam apenas a pessoas ricas ou àquelas que dispunham de meios para 
cobrir as despesas enormes incidentes sobre os mesmos. A grande massa dos pobres 
continuava à parte e sem qualquer acesso a esses melhoramentos ou benefícios.
    Ainda no que diz respeito a deficiências físicas vale a pena ressaltar que, ao encerrar­se o 
século XVIII, dois irmãos ­ os Hunter ­ muito contribuíram para o desenvolvimento e para o 
aprimoramento da cirurgia ortopédica, com estudos especiais a respeito da estrutura das 
juntas e do crescimento dos ossos.

    ­ *Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega*
    Maria Tereza von Paradis (1759 a 1824) foi uma música austríaca que nasceu e morreu 
em Viena. Ficou cega aos 5 anos de idade. Tendo aprendido piano e se transformado numa 
excelente concertista, percorreu toda a Europa e foi ouvida em diversas oportunidades pelo 
público de Paris.
    Ao voltar a Viena dedicou­se à composição. Três óperas dessa compositora cega devem 
ser ressaltadas: "Ariane em Naxos", "Ariane e Baco" e "O Candidato Instrutor".
    Maria Tereza conheceu Valentin Haüy em Paris e manteve com ele sólida 
correspondência a respeito dos problemas dos cegos.

    ­ *A assistência aos cegos: final do século XVIII*
    Um opúsculo interessante intitulado em sua versão original de "Lettre sur les Aveugles à 
l'Usage de Ceux qui Voient" (Carta sobre os Cegos para Uso daqueles que Enxergam) surgiu 
na França em 1749. Seu autor foi Diderot (1713 a 1784). Chegou a ficar confinado na prisão 
de Vincennes por três meses devido a esse corajoso trabalho, no qual enfatizava a 
dependência do homem das impressões sensoriais e dava um audacioso passo na direção do 
ateísmo. Diderot, filósofo e homem de letras, foi um dos mais brilhantes pensadores de sua 
época e foi o editor da "Enciclopédie", o mais importante testamento da era do iluminismo. 
Sua famosa e discutida "Carta sobre os Cegos" foi muito importante também devido à sua 
proposição para o ensino do cego a ler pelo uso do tato.
    No ano de 1751 publicou também uma carta a respeito dos surdos e dos mudos, sem 
maiores repercussões. Diderot procurou mostrar em sua "Carta sobre os Cegos" que as idéias 
dos cegos quanto a assuntos ou mesmo quanto a coisas de natureza abstrata são diferentes 
daquelas dos videntes. Afirma, por exemplo, que essas idéias a respeito de religião e de 
Deus não são idênticas às das pessoas videntes, sugerindo daí que as idéias religiosas 
daqueles que enxergam e não sentem a limitação causada pela perda da visão são 
conseqüentes às convenções estabelecidas pela sociedade.
    Entretanto, o preocupado trabalho de Diderot não levou a nenhuma conseqüência prática 
detectável, a não ser talvez influenciar os pensamentos e as preocupações de Valentin Haüy, 
que viveu um pouco mais tarde e a respeito do qual falaremos no tópico seguinte.
    Em termos de trabalho prático de assistência mesmo que segregativa, ou de ajuda mais 
concreta a cegos, devemos ressaltar que no ano de 1780 o famoso e antigo "Hospice des 
Quinze­vingts" foi transferido de sua localização original no Faubourg de Saint­Honoré para 
instalações mais amplas e melhores no Faubourg de Saint­Antoine, em Paris, no prédio do 
Hospital dos Mosqueteiros Negros. Inicialmente dependente do
Ministério do Interior, sobreviveu esta organização até os dias de hoje, mantendo­se com 
seus próprios recursos. Abriga aproximadamente 300 cegos ­ de acordo com seus objetivos 
originais ­ dos dois sexos, com mais de 40 anos de idade, que lá vivem. Solteiros ou casados 
ocupam instalações separadas mas mobiliadas por eles mesmos. Além desse abrigo, o 
Hospice provê uma pensão mensal a mais de 2.000 cegos franceses com pelo menos 21 anos 
de idade. Foi em suas instalações que em 1880 foi montada uma clíniCa nacional de 
oftalmologia (Apud "Larousse du XXe. Siècle").
    No ano de 1784, setenta anos após a rainha Ana, da Inglaterra, ter concedido uma patente 
a Henry Mill, engenheiro inglês, "por uma máquina ou método artificial para a impressão ou 
transcrição de letras separadamente ou progressivamente, uma após a outra, como na 
escrita”, foi inventada na França uma outra máquina para imprimir letras especialmente para 
cegos. Ressaltemos que muitas outras máquinas eram também destinadas a produzir cópias 
para que os cegos pudessem ter acesso à leitura pelo tato (Apud "Encyclopaedia 
Britannica").

    ­ *Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos"*
    Surgiram na mesma época dos eventos citados acima os primeiros esforços sistemáticos 
para a melhor educação dos cegos. Valentin Haüy (1745 a 1822), o homem que mais tarde 
seria reconhecido como "Pai e Apóstolo dos Cegos" teve sua atenção atraída para as 
questões ligadas à educação dos deficientes visuais, não só graças ao estudo das idéias de 
Diderot. Um momento decisório surgiu em sua vida quando, levado pelas circunstâncias, fez 
uma comparação entre apresentações musicais da pianista e grande concertista e 
compositora Maria Tereza von Paradis de um lado, e de outro, os entristecedores e grotescos 
espetáculos dados por alguns cegos, muito inadequados em seu modo de trajar ou se 
comportar, tentando executar música na rua para chamar a atenção dos transeuntes e com 
isso angariar esmolas.
    Haüy, depois de estudar muito bem o problema, fundou em Paris uma nova organização 
que levou o nome de "Institute Nationale des Jeunes Aveugles" (Instituto Nacional dos 
Jovens Cegos), em 1784. Essa organização provocou reações muito positivas e fez um 
grande sucesso desde o seu início.
    A causa principal dessas reações foi esta: o Instituto não asilava simplesmente o cego, 
mas procurava ensiná­lo a ler, tendo a Academia de Ciências de Paris examinado e aprovado 
os tipos em relevo que o Instituto utilizava. Com o passar dos anos o seu sucesso foi tão 
grande que Haüy acabou sendo convidado a comparecer à corte de Luiz XVI para fazer uma 
detalhada exposição quanto ao empreendimento, um pouco antes da eclosão da Revolução 
Francesa que desacelerou ou eliminou muito do que fizera antes a França com o apoio da 
nobreza.
    Mas logo após a regularização da vida do país novas escolas para cegos foram abertas. E 
isso aconteceu também em diversos outros países da Europa, quase todas elas seguindo o 
novo modelo apregoado por Haüy. Os exemplos mais positivos dessas escolas foram as de 
Liverpool em 1791, de Londres no ano de 1799 e, já no século XIX, de Viena em 1805 e de 
Berlim em 1806.

    ­ *Educação dos deficientes auditivos no século XVIII*
    De outra parte, envolvendo diferentes segmentos da sociedade mais esclarecida, 
notaremos a marcante evolução dos sistemas montados para a educação dos deficientes 
auditivos em geral.
    E no começo do século XVIII encontraremos o nome de John Conrad Amman (1699 a 
1724) publicando sua "Dissertatio de Loquela", que recebeu em inglês um título enorme: 
"Uma dissertação sobre a fala, na qual não só a voz humana e a arte de falar são analisados 
desde a sua origem, mas são descritos os meios pelos quais aqueles que são surdos e mudos 
desde o nascimento podem conquistar a palavra, e aqueles que falam imperfeitamente, 
podem aprender como corrigir suas dificuldades".
    Foi por essa época ­ início do século XVIII ­ que os educadores concluíram que era 
necessário um alfabeto manual para que o surdo pudesse melhor se comunicar e melhor 
entender o que precisava ser a ele repassado. Grande colaboração foi dada para a definição 
do alfabeto manual por membros da família Wren, da Inglaterra.
    Fato importante na gradativa definição da realidade em que viviam os surdos­mudos foi a 
publicação de Diderot intitulada "Carta sobre o Surdo e Mudo para Uso daqueles que 
Ouvem e Falam".
    Em 1755 o abade Charles Michel Epée (1712 a 1789) reconhecia que a psicologia do 
surdo era diferente daquela da pessoa que ouvia. Fundou uma escola para educação dos 
surdos em Paris, aperfeiçoando a linguagem por sinais como meio para instrução e 
comunicação de seus alunos. Acreditava que era necessário fazer entrar pelos olhos dos 
surdos tudo o que o restante da sociedade absorvia por meio do som, pela audição.
    O abade Sicard (1742 a 1822) ampliou as idéias de Epée no trabalho intitulado "Relato 
sobre um Menino Nascido Surdo e Mudo".

    ­ *Os primeiros sinais de assistência nas Américas*
    Enquanto todos esses desenvolvimentos ocorriam na Europa, nas Américas as mesmas 
tendências eram reconhecíveis com facilidade uma vez que todos os núcleos de colonização 
recebiam direta influência da respectiva Pátria­Mãe.
    Na verdade, os hospitais haviam há tempos surgido nas Américas. De fato, logo após o 
descobrimento por Cristóvão Colombo ocorreram diversos esforços para dar cobertura à 
população colonizadora.
    Os conquistadores espanhóis procuraram, é natural, seguir mais ou menos os padrões 
estabelecidos e encontradiços na Europa, nos seus esforços de criação de casas de tratamento 
e mesmo de hospitais. Esses recursos primitivos foram organizados pelos religiosos que 
haviam acorrido ao Novo Mundo (às Índias Ocidentais) para a ingente tarefa de 
catequização dos selvagens, com forte subsídio da coroa espanhola.
    Assim é que já em 1524 havia surgido o Hospital Jesus de Nazaré, a mais antiga 
organização de assistência médica do continente, no México. O mesmo sucedeu nas colônias 
mais tarde estabelecidas pelas coroas francesa, holandesa, inglesa e portuguesa.
    Ressaltemos, entretanto, que só dois séculos após é que podemos localizar nas Américas 
um primeiro esforço de organizada assistência médica e hospitalar, com sucesso absoluto. 
Tratava­se do hoje conhecido Hospital de Pennsylvania, na Philadelphia, inaugurado no ano 
de 1751.
    É bastante válido chamar a atenção para o fato de que os descobridores e colonizadores 
espanhóis já encontraram verdadeiros hospitais em nosso continente. Segundo nos conta De 
La Vega, as expedições espanholas comandadas por Cortés, conheceram hospitais mantidos 
pelos Aztecas nos locais conhecidos como Cholula, Tlescoco, Tlaxcala e na sua mais 
importante cidade, Tenochtitlán (hoje, Cidade do México).
    Falando sobre a mesma questão junto aos Incas, no Peru, Poma de Ayala, citado por De 
La Vega, afirma: "Nas grandes cidades havia verdadeiros hospitais que admitiam os anões, 
os corcundas e os indivíduos com lábios leporinos". Tinham eles também hospitais 
destinados a doentes incuráveis ou enfermos de aspecto repugnante, segundo o mesmo autor. 
Ele acrescenta que, à mesma época, os hospitais destinavam­se também a peregrinos, loucos, 
velhos e desvalidos (Apud De La Vega).
    Finalmente, ao terminar o século XVIII foi inaugurado o Hospital de New York, mas 
relativamente poucos foram os hospitais criados na América do Norte, seja pelos ingleses, 
seja pelos franceses, antes do século XVIII, devido ao fato de haver muito poucas 
comunidades de porte suficiente para mantê­los com a indispensável propriedade. Como 
sucedia na Europa, esses hospitais das colônias caminhavam para a implantação de 
especialidades médicas e dentro de algumas delas ocorriam os atendimentos às pessoas 
deficientes, como não poderia deixar de acontecer.

    ­ *O desencontro de atitudes na Europa*
    Durante o século XVIII atitudes as mais desencontradas são relatadas por estudiosos do 
desenvolvimento hospitalar em alguns países da Europa. No Hospital Real de Bethlehem, de 
Londres, popularmente conhecido na época pelo apelido de "Bedlam" (que significa 
manicômio ou confusão) muitas pessoas de baixa cultura e possuidoras de doentia 
curiosidade chegavam a pagar algumas moedas a vigias ou a atendentes do hospital para 
observar e para rir de certos doentes acorrentados, de seus gritos e dos seus rostos 
desfigurados e contorcidos, especialmente quando apresentavam deformações sérias ou 
deficiências físicas e mentais, segundo nos relata Wolfensberger. 
    De um modo geral, todavia, a sociedade do século XVIII dos países europeus, embora não 
homogeneamente, organizava­se para continuar a dar cobertura cada vez melhor, pelo menos 
de abrigo e de alimentação mais humanos àqueles que não dispunham de meios para se 
manter vivos fora dos hospitais, e que não apresentavam mais problemas de natureza 
médica.
    Abrigos e asilos mais modernos foram organizados, alguns já com os primeiros indícios 
de valorização real do ser humano, a despeito das suas malformações, da sua aparência ou 
das deficiências que apresentavam.

    ­ *Inovações nas "Leis dos Pobres"*
    No ano de 1723, na Inglaterra, foram aprovadas algumas alterações operacionais nas 
conhecidas "Leis dos Pobres". Foi autorizado, por exemplo, que cada paróquia construísse e 
colocasse em funcionamento casas de trabalho ou oficinas ("workhouses") e que recusasse 
prestar ajuda aos pobres que dela não participavam. Dessa forma, a situação das pessoas 
portadoras de deficiências físicas ou sensoriais deteriorou muito. Passaram a ficar 
bloqueadas dessa participação através do trabalho, uma vez que a prioridade para atuar 
nessas casas de trabalho recaia sobre os pobres com dificuldade de obter trabalho, mas sem 
qualquer tipo de deficiência. A experiência foi um fracasso, pois não eliminou nem a 
mendicância nem a pobreza.
    Apesar do objetivo original ter sido bom, ou seja, eliminar a inatividade e dependência da 
assistência prestada pela comunidade, selecionar melhor os candidatos ao recebimento de 
ajuda, abrigar as pessoas realmente enfermas, os velhos e as crianças, e dar trabalho real aos 
fisicamente habilitados, essas oficinas degeneraram completamente e com grande rapidez, 
tornando­se verdadeiros depósitos de pessoas em situação de miserabilidade.
    Esse fragoroso insucesso não nos permite, porém, esquecer algumas tentativas válidas 
para tornar as casas de trabalho um recurso útil para o atendimento à pobreza generalizada 
do século XVIII na Inglaterra. Seu eventual sucesso, entretanto, foi efêmero e sem muito 
significado.

    ­ *Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes*
    Os bloqueios interpostos pela Igreja Católica para pessoas deficientes se tornarem 
sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século XVIII. Alguns exemplos práticos nos 
são relatados por M.André, doutor em direito canônico e membro de diversas sociedades de 
sábios do final do século XIX, em adição à obra de Thomassin ("Ancienne & Nouvelle 
Discipline de l'Église") que fora escrita ao final do século XVII.
    Alguns dos mais significativos, citados ao final do capítulo sobre as irregularidades 
relacionadas aos defeitos de nascimento, são os seguintes:
    ­  No dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação recusou concordar com a ascensão 
às santas ordens de um clérigo "manco" da Diocese de Albenga, na Ligúria;
    ­ O padre François Pujol, da Diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido um acidente 
vascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao bispo a dispensa 
da irregularidade para exercício das funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capela 
privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou o 
pedido no dia 19 de agosto de 1797;
    ­ O seminarista Ambroise Lamberti, da Diocese de Albenga, tinha um problema de 
movimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o apoio contínuo de 
uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito e opinou que haveria graves 
inconvenientes em promovê­lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada 
Congregação no dia 20 de janeiro de 1798;
    ­ O sacerdote Philippe Maggiorani, da Diocese de Borgo San­Sepolcro, na Toscana, teve 
sua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão de espingarda 
excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi necessário amputar parte do braço 
para evitar sua morte. Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento de seus 
trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787 
apresentou uma nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispo 
e do total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois de haver 
submetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a recusa à dispensa de 
irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787. 
    Outros casos poderiam ser acrescentados, mas os citados acima mostram a posição quase 
que inalterada da Igreja Católica na aceitação de pessoas portadoras de deficiência para o 
exercício do sacerdócio até o século XVIII.

    ­ *Hospitais públicos na França: final do século XVIII*
    Na segunda metade do século XVIII os hospitais públicos da França haviam decaído tanto 
na qualidade de seus atendimentos que já estavam sendo abominados até pelos pobres. É 
Voltaire que comenta a respeito no ano de 1768: "Temos em Paris um Hospital ("Hôtel­
Dieu") onde reina o perpétuo contágio, onde inválidos pobres, amontoados uns sobre os 
outros, contagiam seus vizinhos com a praga e com a morte".
    O historiador francês Michelet também comenta a respeito do mesmo problema, dizendo: 
"Os doentes pobres e os prisioneiros ali confinados eram geralmente considerados como 
condenados, atingidos pela mão de Deus, cujo primeiro dever era expiar seus pecados e 
eram sujeitos a tratamentos cruéis. Caridade desse tipo pavoroso faz­nos sentir horror. No 
entanto, foi feita uma tentativa para eliminar a sensação de pavor dos hospitais: começaram 
a dar­lhes nomes sugestivos: Hotel de Deus, A Caridade, A Piedade, O Bom
Pastor, etc. Mas isso não convenceu os doentes e os inválidos pobres que se escondiam em 
casa para morrer, tão horrorizados estavam face à possibilidade de serem levados pela força 
para esses lugares" (Apud "Encyclopedia of Religion and Ethics").
    Foi nessa mesma época que os doentes mentais eram acorrentados em suas celas, pois 
acreditava­se que eram possuídos pelo demônio. O Dr.Philippe Pinel (1745 a 1826) tomou 
uma iniciativa revolucionária entre os anos de 1792 e 1826: quebrou as correntes que 
prendiam esses doentes às celas, substituindo o chocante tratamento anterior por um trabalho 
cientifico onde prevalecia uma enorme dose de bondade e de doçura.

    ­ *Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX*
    Em 1819 um oficial do exército francês de nome Charles Barbier procurou o Institute 
Nationale des Jeunes Aveugles, de Paris, com uma novidade que esperava ser útil aos seus 
professores e alunos. Barbier pretendia adaptar o que chamava de "sonografia" para o uso 
dos cegos. Era, na verdade, um processo de escrita codificada e expressa por pontos 
salientes, chegando a ter representados os 36 sons básicos da língua francesa. Fora 
idealizado pelo oficial para ser usado na transmissão de mensagens no campo de batalha à 
noite, sem chamar a atenção do inimigo pelo uso de qualquer ponto de luz.
    A idéia interessou sobremaneira alguns professores do renomado Instituto de cegos e logo 
começou a ser adaptada para uso dos alunos ali internados.
    Em 1833 surgiu nos Estados Unidos da América do Norte o primeiro livro para cegos de 
que se tem notícia. Adotava um alfabeto idealizado pelo educador Frielander. De outra parte, 
na Inglaterra, havia informações de que o primeiro livro para cegos surgira já em 1827, 
usando letras comuns em relevo, o que não era muito inovador. Desde o século XVIII havia 
máquinas de escrever em relevo essas mesmas letras comuns.
    Foi alguns anos mais tarde que um jovem professor cego do Institute Nationale des Jeunes 
Aveugles ­ Louis Braille (1809 a 1852) ­ baseado na idéia de Charles Barbier e na 
experiência acumulada com a utilização diuturna daqueles pontinhos em relevo, desenvolveu 
um sistema seu, já pelo ano de 1825, também de pontinhos em relevo, que podiam não 
apenas ser lidos como também produzidos com facilidade pelos cegos com instrumentos 
bastante simples. Na combinação de apenas seis pontinhos em relevo, Louis Braille garantia 
noventa e seis símbolos para letras comuns e acentuadas, números, pontuação e outros mais. 
A adoção do novo sistema em toda a França só ocorreu em 1854, dois anos após a morte de 
seu idealizador, Louis Braille.

    ­ *Ludwig van Beethoven: a trágica surdez*
    Em 1827 morria Ludwig van Beethoven, que nascera em 1770 e que se transformara num 
dos maiores gênios da música erudita, apesar de ter sofrido imensamente com a gradativa 
perda da audição, em seus últimos anos de vida. A surdez o isolara do restante do mundo, 
mas não o impedira de continuar sua obra criadora.
    A surdez de Beethoven começara em seu ouvido esquerdo quando estava com 27 anos de 
idade. Logo a perda se transformara numa dificuldade bi­lateral de ouvir bem, 
principalmente os sons de alta freqüência. Usava o grande compositor o auxílio de trompas 
de ouvido e outras adaptações próprias para seu trabalho quando ao piano.
    Em algumas de suas cartas a amigos e confidentes, principalmente ao Dr. Franz Gerhard 
Wegeler, nota­se sua aflição pelo mal que o atingia. Com 31 anos de idade escrevia o 
seguinte: " ... minha faculdade mais nobre, minha audição, tem piorado muito ... esse 
problema causa­me as dificuldades menos significativas ao tocar ou ao compor e as maiores 
quando em contato com os outros" ... "meus ouvidos assobiam e fazem barulho sempre, dia 
e noite. Em qualquer outra profissão isso poderia ser mais tolerável, mas na minha, essa 
condição é verdadeiramente atemorizante. Posso lhe dizer que vivo uma existência 
miserável" (Apud Landon).
    A surdez gradativa influenciou o próprio estilo de Beethoven. Com a plena consciência de 
sua surdez total próxima, tornou­se fortemente deprimido. Parece até ter pensado no 
suicídio. E aos 52 anos de idade estava surdo.
    Foi na fase inicial de sua perda de audição que o grande mestre compôs suas obras mais 
românticas e de melodia da mais alta suavidade: "Apassionata" e "Sonata ao Luar", em 
1804; Sinfonias n° 3 até 6, de 1804 a 1808.
    Contam seus biógrafos que ele foi o maestro honorário na primeira apresentação de sua 
9°. Sinfonia, mantendo­se sentado ao lado do maestro regente. Não ouvia nada de toda a 
execução da magnífica peça musical, mas seguia sua evolução pela partidura em suas mãos. 
Próximo ao final estava alguns compassos atrasado e não notou quando a orquestra 
terminara. Um dos solistas veio imediatamente até ele e virou­o para a platéia que aplaudia 
delirantemente a obra e seu compositor.

    ­ *Nelson, herói da Marinha Britânica*
    Nascido no ano de 1758, o Visconde Horácio Nelson tornou­se o mais famoso e talvez o 
mais querido dos heróis ingleses. Ele era mais do que um brilhante dominador de táticas da 
guerra naval ­ era um líder sob todos os aspectos. Há uma famosa frase de Nelson que 
passou para a História da Inglaterra e que é a seguinte: "A Inglaterra espera que cada homem 
cumpra o seu dever". Ela não foi dita por Nelson em reuniões ou em pronunciamentos a seus 
subalternos. Ela foi transmitida de seu navio capitania, o "Victory", por sinais, a toda a frota 
que navegava para a grande batalha de Trafalgar.
    A estratégia tática que Nelson imprimiu na luta contra a esquadra dos poderosos navios 
das forças napoleônicas (os franceses e os espanhóis) consagrou­o para sempre. 
    Mas foi exatamente nessa batalha que Nelson foi atingido por um projétil que fraturou sua 
espinha dorsal. Sem recursos médicos de grande monta que talvez pudessem ter salvo pelo 
menos sua vida, o grande herói inglês faleceu no meio do fragor da batalha que se 
desenrolou no dia 21 de outubro de 1805. Segundo alguns autores, se tivesse sobrevivido 
Nelson provavelmente teria sido vítima da paraplegia por secção da medula.

    ­ *Os progressos nos Estados Unidos da América do Norte*
    As primeiras providências observadas nos Estados Unidos da América do Norte com 
relação à assistência mais organizada aos soldados feridos ou mutilados parece terem 
acontecido em 1811, quando o Congresso autorizou o Secretário da Marinha a construir um 
lar permanente para seus oficiais. Esse novo recurso logo começou a aceitar marinheiros e 
fuzileiros navais com problemas físicos sérios e outros problemas limitadores da 
independência individual.
    Foi construído na cidade de Philadelphia e só entrou em funcionamento em 1831. E no 
ano de 1867 surgiu um outro recurso: o Lar Nacional para Soldados Voluntários Deficientes, 
assim que terminou a Guerra Civil Americana, com o seu primeiro núcleo na cidade de 
Togus, Me. (Apud "Encyclopaedia Britannica").

    ­ *Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos deficientes*
    Foi no século XIX que a sociedade começou a assumir a responsabilidade sobejamente 
reconhecida para com as pessoas portadoras de deficiências. Até o século XVI, durante o 
fortalecimento da Renascença, os homens em geral ainda relacionavam muito do que 
acontecia ao ser humano à força das superstições, das diversas crendices dominantes e do 
sobrenatural. Mas, do século XVI em diante, o mundo já se acostumara a examinar fatos em 
termos mais práticos e naturais.
    Precedida pela Revolução Industrial, a Revolução Intelectual fez com que a sociedade de 
muitos países europeus pensasse um pouco nos seus grupos minoritários e marginalizados 
como uma de suas muitas responsabilidades e não apenas como objeto de promoções 
caritativas e de caráter voluntário. Chegou­se à conclusão de que a solução para esses 
problemas não era apenas uma questão de abrigo, de simples atenção e tratamento, de 
esmola ou de providências paliativas similares, como sucedera até então.
    Ao se dar maior volume de atenção, por exemplo, aos cegos, aos velhos, aos surdos, aos 
mutilados de guerra, aos doentes crônicos e aos deficientes de um modo mais amplo, 
chegou­se a pensar que eles na verdade não precisavam tanto de hospitais de caridade ou de 
casas de saúde, mas de organizações separadas, o que tornaria seu cuidado e seu 
atendimento mais racional e menos dispendioso.
    Foi em boa parte devido a esse tipo de raciocínio e à troca de experiências que a sociedade 
de alguns países europeus, quase que exclusivamente por iniciativa de particulares, fundou 
algumas entidades especializadas, sem lembrar talvez que Constantinopla havia acenado 
para essa posição desde o alvorecer do Cristianismo, ou seja, há mais de 15 séculos...
    Essas novas organizações, todavia, não se destinavam apenas à assistência e à proteção 
desses grupos marginalizados, mas também para estudo de seus problemas e dificuldades, 
para o estabelecimento de algumas alternativas de atendimento e também para o tratamento 
de situações concretas. Surgiram abrigos para crianças (orfanatos, em geral) e para velhos 
(asilos), lares para as crianças com defeitos físicos e muitas outras organizações separadas 
dos hospitais gerais oficiais ou particulares.
    Embora no século XIX ainda não se pensasse na integração do homem deficiente à 
sociedade aberta ou mesmo à sua família, ele passou a ser visto como ser humano (infeliz, 
desafortunado e coitado para aquela época, é evidente) dono de seus sentimentos e capaz de 
viver ou de pretender levar uma vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso. 
Para um bom volume de casos a questão acabava restringindo­se à redução de uma situação 
de miserabilidade a um mínimo suportável, dando ao indivíduo atingido um restante de vida 
mais tranqüilo, desde que possível.

    ­ *Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte*
    Pensando mais avançada e utilitariamente, o arguto Napoleão Bonaparte, que nasceu em 
1769 e morreu em 1821, exigia de seus generais que olhassem os seus soldados feridos ou 
mutilados como elementos potencialmente úteis, tão logo tivessem seus ferimentos curados. 
Os exércitos franceses passaram, em muitas de suas unidades, a utilizar esses soldados nos 
esforços de guerra de tal forma que conseguiam ainda tornar­se produtivos e diretamente 
ligados às suas unidades.
    Napoleão procurava utilizar seus esforços conforme as circunstâncias o permitiam. E 
foram usados em serviços de manutenção montados na retaguarda, de acordo com suas 
capacidades físicas, conservando fardamentos, trabalhando em selaria, cuidando dos 
equipamentos, de alimentação, de limpeza de animais e outras atividades.

    ­ *Madre Agostinha, fundadora das Irmãs Irlandesas da Caridade*
    Mary Aikenhead (1787 a 1858), por solicitação do bispo Murray, de Dublin, na Irlanda, 
fundou a congregação religiosa conhecida como Irmãs Irlandesas da Caridade. As irmãs 
religiosas não eram enclausuradas e visitavam famílias pobres em suas próprias casas.
    Devido às características de desenvolvimento daquela época, durante a qual não havia a 
emancipação dos católicos na Irlanda, Mary adotou o nome religioso pelo qual ficou sendo 
conhecida (Madre Agostinha) apenas para contatos com outras religiosas, e o seu nome leigo 
para todos os demais contatos externos.
    Um dos trabalhos mais notáveis dessas religiosas ainda durante a vida de Madre 
Agostinha ocorreu durante uma epidemia de cólera.
    Madre Agostinha ficou muito enferma em 1831 e impossibilitada de se locomover até a 
sua morte, no ano de 1858. Dirigia sua comunidade mesmo com a desvantagem da 
deficiência que a bloqueava e impedia de uma participação maior e mais efetiva.

    ­ *Lord Byron, poeta e satirista inglês*
    George Gordon (1788 a 1824), barão e o sexto Lord Byron, teve uma vida que cativou a 
imaginação de toda a Europa. De um lado era profundamente melancólico e de outro era um 
homem repleto de aspirações políticas.
    Nasceu com um problema físico (pé torto) e sempre foi muito afetado por essa 
deficiência. Tratado como "garoto aleijado" por uma linda jovem da qual estava enamorado, 
alimentou sua mágoa com poemas de profunda tristeza, muitas vezes relacionados a amores 
inatingíveis. Dedicou muito de seu tempo e fortuna à causa da libertação da Grécia e lá 
morreu.
    Foi considerado e até hoje muitos o consideram um"herói nacional grego". 

    ­ *Antonio Feliciano de Castilho, um dos maiores literatos portugueses*
    Castilho (1800 a 1875) tem sido indicado como poeta, prosador, ensaísta, escritor e 
pedagogo, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes figuras literárias nascidas em 
Portugal.
    Perdeu a visão aos 6 anos de idade, mas seu denodado irmão Augusto, percebendo sua 
incrível memória, ajudou­o a estudar e a inteirar­se do mundo que o cercava. Já prestes a 
finalizar seu curso em Coimbra, publicou em 1821 seu primeiro trabalho de verdadeira 
importância: "Cartas de Eco e Narciso".
    Com a publicação de seu livro de poesias "O Outono", após uma viagem ao Brasil e seus 
anos em Açores, despertou nos meios literários lusitanos uma violenta polêmica que ficou 
conhecida como "Questão Coimbrã". Nela estiveram envolvidos nomes famosos, como 
Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e outros.
    A cegueira não impediu Antonio Feliciano de Castilho de se transformar num dos mais 
respeitados nomes de toda a literatura portuguesa.

    ­ *Outros cegos do século XIX que ficaram famosos*
    Embora numa brevíssima nota, é importante que nos lembremos de três cegos que ficaram 
famosos pela sua competência em pleno século XIX:
    *Jacques Nicolas Augustin Thierry* (1795 a 1856) um grande renovador da ciência 
histórica francesa e autor de "Narrativas dos Tempos Merovíngios", "Considerações sobre a 
História da França" e "Ensaio sobre o Terceiro Estado".
    *William Hickling Prescott* (1796 a 1859), historiador inglês, autor de "História do 
Reino de Fernando e Isabel" e "Conquista do México".
    *Henry Fawcett* (1833 a 1884), economista e político inglês, autor de "Manual de 
Economia Política" e catedrático na Universidade de Cambridge. Foi casado com a famosa 
Millicent Garrett.

    ­ *A ortopedia do século XIX e as deficiências físicas*
    Já nos primeiros decênios do século XIX foi surgindo a própria base da reabilitação de 
pessoas portadoras de lesões físicas. Essa base, ainda não estabelecida, defenderia a idéia de 
que as pessoas que apresentavam deficiências físicas deveriam receber, além dos cuidados 
médicos de que precisassem, serviços especiais para poder continuar uma vida de acordo 
com suas aspirações e a própria dignidade do homem ­ conceito esse derivado da filosofia 
humanista somada às experiências práticas advindas do forte progresso da ciência médica.
    Dentro dessa corrente de raciocínio, muito maior e melhor volume de atendimento 
médico­cirúrgico e/ou ortopédico surgiu em poucos anos na Europa e em diversas outras 
partes do mundo. Vejamos alguns progressos mais significativos:
    1812 – Johann Georg von Heine criou um hospital só de atendimento ortopédico na 
cidade de Würzburg, na Prússia.
    1817 ­ Foi criado na cidade de Birmingham, na Inglaterra, um hospital dedicado apenas a 
casos de ortopedia, ou seja, o chamado Orthopaedic Hospital.
    1818 ­ Em Lübeck, Alemanha, foi também fundado um hospital destinado a pacientes que 
apresentassem males ortopédicos, por influência do médico Lesthof.
    1821 ­ Foi fundado na cidade de Bar­le­Duc, na França, um hospital semelhante.
    1826 ­ São construídos em Berlim, Alemanha, dois hospitais para ortopedia, enquanto que 
no mesmo ano em Paris dois outros são também organizados.
    1828 ­ Um hospital ortopédico é inaugurado na cidade de Montpellier, França.
    1830 ­ Inaugurado na cidade alemã de Hannover o famoso Stromeyer Hospital, destinado 
exclusivamente ao atendimento de casos de ortopedia.
    Muitos outros evidentemente surgiram à mesma época ou durante a segunda metade do 
século XIX, não só na Europa como nos Estados Unidos, e dentre eles cumpre que 
destaquemos os de Haia, Londres, Copenhague, Praga, Florença, Petrogrado e New York.
    Este avanço fulminante da ortopedia, aliada a outras áreas do atendimento médico, levou a 
uma atenção muito mais apropriada a males diretamente relacionados a deficiências físicas, 
conseqüentes a fraturas, amputações, deformações e outros males do esqueleto.

    ­ *Atendimento mais especializado aos cegos*
    Verifiquemos alguns desenvolvimentos adicionais ocorridos no século XIX no campo da 
cegueira:
    ­ Três escolas destinadas ao atendimento especializado de cegos foram organizadas nos 
Estados Unidos, sendo a mais famosa delas a New England Asylum for the Blind, 
inaugurada no ano de 1832, hoje reconhecida no mundo todo com o famoso nome de 
"Perkins School for the Blind". Está localizada em Boston, Masachussets. As outras duas 
foram organizadas em 1832 e 1833, nas cidades de New York e Philadelphia 
respectivamente.
    Em outros países o atendimento mais específico e mais cuidadoso de cegos 
gradativamente se implantava:
    1863 ­ Em Lisboa, Portugal, no Castelo de Vide, foi iniciado o ensino profissionalizante 
para alunos cegos.
    1866 – Na Cidade do México foi criada e instalada a primeira escola para cegos 
mexicanos.
    1876/1880 ­ Em Kyoto e em Tóquio foram criadas duas modernas escolas para receber 
somente alunos cegos.
    1882 ­ Foi criada em Londres a Sociedade de Prevenção da Cegueira ­ entidades 
semelhantes foram também organizadas em outros países logo após.
    1888 ­ Criada em Buenos Aires, Argentina, a Escola para Cegos e para Surdos.
    1890 ­ Em Santiago de Chile foi também criada uma escola para cegos.
    De uma certa forma o Brasil foi pioneiro nas Américas Central e do Sul, com a criação do 
Imperial Instituto dos Meninos Cegos, no ano de 1854, no Rio de Janeiro. Sobre essa 
experiência daremos pormenores no capítulo seguinte.
    Ainda no atendimento a cegos, dentro do Continente Asiático, ocorreu o início da 
primeira escola para cegos da China em 1876, por iniciativa do missionário William Hill 
Murray, da Sociedade Escocesa da Bíblia. Murray dedicou­se muito a esse empreendimento 
e chegou mesmo a inventar um sistema Braille para a língua chinesa, mais tarde substituído 
pelo Braille Union Mandarin, aceito em todas as regiões da vasta China onde o Mandarin era 
falado.
    Um pouco antes disso, no ano 1868, durante a restauração Meiji, no Japão, os privilégios 
especiais até então dados aos cegos para se dedicarem com exclusividade à massagem e a 
certas áreas da acupuntura foram suspensos. A tradição, porém, manteve­se e até hoje o 
número de massagistas cegos é muito grande no Japão e em muitas outras partes do mundo.

    ­ *A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho*
    A partir da segunda metade do século XIX houve um forte incremento às atenções 
destinadas às pessoas portadoras de males limitadores de sua atuação, mais em concordância 
com as características individuais, tornando­se, portanto, mais humanas no mundo todo mais 
atualizado. Em alguns países nórdicos surgiram preocupações muito sérias quanto ao 
aspecto do potencial da pessoa deficiente para a produção de bens e para desenvolvimento 
de serviços, pelo menos para cobrir as próprias necessidades de sobrevivência.
    Como resultado prático dessa preocupação, no dia 1º de maio de 1863, um grupo de 
pessoas influentes da sociedade novaiorquina criou a New York Society for Relief of 
Ruptured and Crippled, em plena Segunda Avenida, no distrito de Manhattan. Hoje essa 
mesma sociedade foi transformada no New York Hospital for Special Surgery, um dos 
melhores do mundo todo no atendimento a casos de deficiências físicas das mais variadas 
ordens.
    A Dinamarca também entrou na luta para um melhor aproveitamento da mão­de­obra em 
potencial das pessoas deficientes, fundando uma organização especial para atendimento 
social e profissional, em 1872, ou seja, a Sociedade e Lar para Defeituosos (Society and 
Home for Cripples), seguindo praticamente exemplo sueco que, segundo parece, havia sido 
divulgado alguns anos antes de seu estabelecimento.
    Outro exemplo de tentativa para encontrar uma solução de trabalho para pessoas 
portadoras de limitações físicas surgiu com a iniciativa do Pastor Hoppe, um alemão que em 
1885 organizou uma sala de aulas para ensino de um ofício para crianças deficientes. Sua 
iniciativa encontrou um sucesso muito grande, pois toda aquela escola foi transformada num 
lar para pessoas com deficiências aprenderem profissões diversas.

    ­ *O problema dos surdos e dos surdos­mudos e suas soluções*
    O atendimento aos surdos e aos surdos­mudos também progrediu muito no século XIX. 
Exemplos desse progresso são os seguintes:
    ­ Na Inglaterra, ao final do século XVIII e início do século XIX, o educador Thomas 
Braidwood (1715 a 1806) organizou uma escola para surdos em Edinbourgh e logo após 
uma outra em Londres. Eram escolas particulares e a pagamento, que tiveram o condão de 
despertar a atenção para o problema dos surdos e para as soluções que se apresentavam 
viáveis. A primeira escola para surdos pobres havia já sido aberta em
1792, em Londres (Old Kent Road) mudando­se mais tarde para Margate. 
    Durante o século XIX muitas outras escolas para surdos foram organizadas na Inglaterra, 
tanto assim que em 1870 havia dez escolas residenciais dessa natureza. O governo inglês 
finalmente assumiu a responsabilidade pelo ensino oficial dos surdos e dos cegos em 1893, 
tornando­se obrigatório entre os 7 e 16 anos de idade, como parte integrante do ensino 
oficial.
    ­ Na Alemanha, Moritz Hill (1805 a 1874) desenvolveu um método próprio de educação 
para crianças surdas, usando a comunicação oral e seguindo exemplo do educador alemão 
Samuel Heinicke (1727 a 1790). Hill sempre foi considerado um dos melhores educadores 
de surdos de todos os tempos.
    ­ Nos Estados Unidos, em 1803, Francis Green de Boston já fizera juntamente com alguns 
religiosos protestantes, uma tentativa de recenseamento de surdos em todo o Estado de 
Masachussets, encontrando 75 surdos. Supondo, pelo seu levantamento, que no país todo 
deveria haver bem mais do que 500 surdos, sugeriu a criação de escolas especiais.
    No ano de 1815, em Hartford, Connecticut, foi organizada uma sociedade para a instrução 
de surdos que tomou a sábia iniciativa de levantar fundos para mandar o jovem professor 
Thomas Hopkins Gallaudet à Europa para aprender métodos comprovados de ensino para 
surdos. Chegou a estudar o método de sinais na escola do Abade Sicard, em Paris, e em 
1816 voltou aos Estados Unidos com um professor surdo: Laurent Clerc.
    No dia 15 de abril de 1817 foi aberta a Escola Hartford para Surdos que começou a 
utilizar tanto os sinais quanto o alfabeto normal e a própria escrita.
    Foi em 1818 que foi criada a New York Institution for the Deaf, graças à influência 
marcante e ao interesse direto do Reverendo John Stafford.
    O ano de 1867 viu surgirem duas escolas de importância nesse campo: a Clarke School, 
em Northampton, Masachussets e a Institution for the Impaired Instruction of the Deaf, em 
New York, hoje chamada de Lexington School for the Deaf. Elas usavam métodos de 
comunicação oral em contraposição ao de comunicação por sinais, usado nos primeiros 
cinqüenta anos do século XIX.

    ­ *Proteção ao acidentado de trabalho por legislação recente*
    Otto von Bismark, Chanceler do Império Alemão, aprovou no ano de 1884 o que é 
considerado como a primeira lei do mundo que protegia o acidentado no trabalho, no que foi 
imediatamente imitado por muitos outros países europeus. Era uma das primeiras 
providências objetivas relacionadas a trabalhadores civis, levando gradativamente às 
programações de recuperação física e de reabilitação, com tentativas de readaptação ao 
trabalho e reaproveitamento daquela mão­de­obra prejudicada.
    Boa parte da pressão por soluções que visualizassem a volta ao trabalho como um ideal a 
ser atingido partiu de companhias de seguros, envolvidas no processo devido às 
determinações legais de proteção ao trabalhador.

    ­ *A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes*
    Ao se especular sobre cirurgia ortopédica e seu significado na eliminação, na redução ou 
na prevenção de deformidades físicas, na segunda metade do século XIX, não se pode deixar 
de mencionar nomes como os de John Hilton, G.F.Stromeyer, William J.Little, H.O Thomas, 
Sir Robert Jones e outros.
    Como é sobejamente sabido, a cirurgia ortopédica pode ser preventiva ou reconstrutiva. E 
apenas para que possamos ter uma idéia do escopo amplo dessa especialidade médica dentro 
da ortopedia, que tanto tem a ver com o mundo das pessoas deficientes, relembremos que as 
deformidades podem ser adquiridas ou congênitas.
    Paremos por um instante apenas em nosso desenrolar histórico e meditemos sobre a 
importância que teve e tem a cirurgia ortopédica em problemas relacionados aos portadores 
de deficiências físicas, e façamos justiça aos médicos que têm procurado dedicar­se a essa 
especialidade.
    Dentro do vasto campo para suas intervenções, lembremos as mais significativas: a 
cirurgia reconstrutiva da coluna vertebral e das extremidades é da mais real importância; 
fraturas mal solidificadas ou mal restauradas são tratadas por procedimentos cirúrgicos 
dentro da cirurgia ortopédica; tendões podem ser reparados por transplantes e outros 
procedimentos específicos; diferenças nos tamanhos das pernas podem ser acertadas; muitas 
doenças do esqueleto humano podem ser resolvidas pela cirurgia ortopédica; amputações a 
níveis adequados e com técnica cirúrgica que permita o uso de próteses são possíveis; a 
prevenção de deformidades por procedimentos cirúrgicos é também perfeitamente viável. 
Essas são algumas das intervenções mais conhecidas da cirurgia ortopédica que avança 
continuamente para uma atuação cada vez mais primorosa.
    Dentre os cirurgiões ortopédicos mais famosos cumpre que separemos o nome de 
Stromeyer, de Hannover, na Alemanha. Ele havia desenvolvido uma operação conhecida por 
tenotomia (corte dos tendões), pela qual conseguia corrigir com menos dificuldade alguns 
tipos de deformidades. Foi a ele que um novo pioneiro da cirurgia ortopédica ­ William J. 
Little, da Inglaterra ­ recorreu no ano de 1836.
    O Dr.Little havia nascido com uma paralisia no pé, e com o tempo este havia ficado 
deformado. Venceu barreiras, enfrentou ambientes e formou­se médico. Seus estudos sobre 
as causas do pé torto e a introdução, na Inglaterra, da tenotomia, sobre a qual tanto aprendera 
com Stromeyer antes, durante e depois de sua própria cirurgia foram providências muito 
significativas para o desenvolvimento da cirurgia ortopédica.

    ­ *Reabilitação desabrocha num centro de atendimento, em Cleveland*
    Os primeiros indícios de reabilitação aplicada como tal surgiram nos Estados Unidos no 
ano de 1889 com a criação de uma organização especial para o atendimento de pessoas 
deficientes e que utilizou o nome de Cleveland Rehabilitation Center.
    Um pouco depois, no ano de 1893, foi organizada na cidade de Boston uma entidade 
chamada Boston Industrial School for the Crippled and Deformed, que não só oferecia 
alguns treinamentos profissionalizantes mas também vários outros serviços que o individuo 
necessitasse.
    À época do nascimento de Helen Keller, em 1880, já havia movimentos bem conscientes 
no Alabama quanto aos problemas de pessoas deficientes. Havia profissionais que 
começavam a expressar sua preocupação com o conteúdo e com a própria metodologia (ou 
ausência dela) dos programas que se iniciavam em diversas áreas. Um dos sintomas claros 
dessa preocupação foi a criação da American Association of Workers for the Blind 
(Associação Americana de Trabalhadores com os Cegos, em Washington, no ano de 1895.
    O conceito de reabilitação em seu sentido amplo e de atendimento às necessidades do ser 
humano com deficiências, mas como um todo, tomou forma no final do século XIX, devido 
a fatores múltiplos, dentre os quais não podemos deixar de mencionar a preocupação de 
algumas sociedades com o homem em seu sentido mais profundo, as tendências 
humanísticas em algumas profissões, tais como a medicina psiquiátrica, e também o 
surgimento de outros grupos de profissionais mais voltados para problemas sociais ou para 
dificuldades individuais do ser humano num contexto familiar e comunitário.
    Algumas organizações continuaram e continuam a manter uma tônica custodial, 
assistencialista, caritativa e segregacionista. Mas o reconhecimento da pessoa humana como 
um indivíduo de méritos próprios e de potencial a ser melhor aproveitado passava a ser 
irreversível.

    ­ *Helen Keller, cega, surda e muda: um marco indelével*
    Ao final do século XIX (1880) nascia Helen e com 19 meses ficou cega e surda. Logo a 
seguir não conseguiu mais falar. Foi com 7 anos de idade que começou a receber a ajuda de 
Anne Sullivan, graças a uma sugestão de Alexander Graham Bell, consultado pelos Keller 
quanto a uma solução para os problemas de Helen. A assistência a Helen Keller resultou de 
uma combinação de esforços de várias organizações que levaram a jovem a ler, escrever e 
até falar.
    Em 1900 Helen entrou no Colégio Radcliffe, graduando­se em 1904 "cum laude". Desse 
ponto em diante sua vida foi marcada por uma plena dedicação à causa de pessoas vítimas 
de múltiplas deficiências.
    Ela foi um verdadeiro marco nos esforços para melhor compreensão das potencialidades 
do ser humano para superar problemas considerados insuperáveis.
    Lutando com problemas semelhantes à mesma época, mas vivendo situações de vida bem 
diversas, poderemos citar alguns nomes que fortalecem a crença no potencial do ser humano 
e na criatividade de muitos profissionais que levam a verdadeira ciência do atendimento para 
melhores e mais objetivos resultados:
    Laura Bridgman (que só tinha o sentido do tato e que mesmo assim recebeu uma educação 
metódica) e Richard Clinton, ambos dos EUA; Marthe Obrecht, da França; Inocêncio Juncar 
y Reyes, da Espanha; Eugênio Malassi, da Itália e Marie Heurtin, da França ­ todos com 
deficiência visual e auditiva.
    Marie Heurtin nasceu cega e surda e ao ser encaminhada a uma escola especial em Notre 
Dame de Larnay, perto de Poitiers, rolava na terra e grunhia como um pequeno animal. 
Segundo Pierre Villey, autor cego dos mais categorizados, que escreveu sua interessante 
obra "Le Monde des Aveugles" em 1914, Marie Heurtin "é hoje uma jovem de 25 anos, 
cordata, ativa, alegre, que raciocina bem"... e ... "Laura Bridgman, que não tinha apenas a 
visão e a audição, mas também o paladar e o olfato, fornece a prova irrefutável que apenas 
as impressões do tato são suficientes para emancipar uma alma e para liberar seu eco para os 
mais altos cimos que o espírito humano tem explorado" ("Le Monde des Aveugles", de 
Villey).
            CAPÍTULO QUINTO
            A PESSOA DEFICIENTE NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL

    Conforme tivemos oportunidade de verificar no rápido passar pelos muitos séculos da 
História do Homem, as doenças graves, os acontecimentos nefastos e os muitos infortúnios 
que sempre levaram às situações de deficiências físicas ou sensoriais jamais deixaram de 
existir. Essa verdade sempre foi válida em todos os quadrantes da Terra, em qualquer época. 
Ela é válida também para todos os períodos da História do
Brasil, tanto para os nossos aborígenes ou para os negros escravos que para cá foram 
trazidos como carga humana em navios infectos e superlotados, como também para os 
nossos muitas vezes bravos colonizadores provenientes de Portugal, da França, da Holanda e 
da Espanha.
    Se buscarmos nos arquivos de nossa História, poderemos surpreender­nos com normas ou 
decretos que chegaram a abordar os problemas de pessoas com defeitos físicos. E se formos 
pesquisar as atividades de organizações de épocas remotas em diferentes cidades 
(principalmente entre os séculos XVI e XVIII) certamente que acharemos referências várias 
a "aleijados", "enjeitados", "mancos", "cegos", "surdos­mudos" e outras mais.
    No entanto, assim como na velha Europa, a quase totalidade das informações sobre 
pessoas defeituosas está diluída em comentários relacionados aos doentes e aos pobres de 
um modo geral, como era usual em todas as demais partes do mundo. Na verdade, também 
no Brasil a pessoa deficiente foi considerada por vários séculos dentro da categoria mais 
ampla dos "miseráveis", talvez o mais pobre dos pobres.
    Os mais afortunados que haviam nascido em "berço de ouro" ou pelo menos remediado, 
certamente passaram o resto de seus dias atrás dos portões e das cercas vivas das suas 
grandes mansões, ou então, escondidos, voluntária ou involuntariamente, nas casas de 
campo ou nas fazendas de suas famílias. Essas pessoas deficientes menos pobres acabaram 
não significando nada em termos de vida social ou política do Brasil, permanecendo como 
um "peso" para suas respectivas famílias.
    Sempre que analisamos o problema das pessoas deficientes em épocas passadas da 
História do Mundo, não podemos deixar de prestar a devida atenção à evolução das ciências 
e de um modo todo especial à evolução do atendimento médico, à existência de recursos de 
assistência hospitalar das mais variadas naturezas e à manutenção, pela sociedade ou pelos 
governantes, de entidades de beneficência para pobres, pois as pessoas deficientes sempre 
estiveram inseridas nesses reduzidos contextos.
    É fácil depreender que no Brasil ­ uma mera colônia de Portugal ­ a situação não foi e 
nem poderia ter sido muito diferente. Assim, é muito importante que tentemos encontrar 
meios para visualizar, durante os primeiros três séculos de nossa História, os problemas das 
pessoas com males incapacitantes, em nossa realidade geral, sem entretanto poder destacá­
los por quase absoluta falta de dados específicos.

    ­ *Os primeiros hospitais do Brasil Colonial*
    Comecemos por verificar como nossos ancestrais enfrentavam os problemas de saúde. E 
nesse sentido notaremos que não existe concordância entre os autores quanto à criação de 
uma primeira entidade hospitalar no Brasil. Seguindo modelo português, a tendência foi 
criar as Casas de Misericórdia, com recursos provenientes da comunidade e com o fim 
específico de atender aos doentes necessitados de assistência médica, sem ter condições de 
pagar por esses serviços especiais.
    Alguns historiadores defendem como ano de fundação da primeira Casa de Misericórdia o 
de 1545, enquanto que outros falam do ano de 1567. Ao que parece, Estácio de Sá (1520 a 
1567), terceiro Governador Geral do Brasil e sobrinho de Mem de Sá, trouxera orientações 
diretas do rei de Portugal, não só para expulsar os franceses de Villegaignon, instalados na 
baía da Guanabara, mas de construir ali, próximo ao morro conhecido com o nome de Pão 
de Açúcar, uma cidade. Nela, dentre os recursos essenciais, o rei determinava a construção 
de uma casa para abrigar a Confraria da Misericórdia e seus serviços. A cidade recebeu o 
nome de São Sebastião, em homenagem ao rei. 
    Mas Estácio de Sá não teve muito tempo para se dedicar à completa construção da nova 
cidade, pois no ano de 1567, com apenas 47 anos de idade, faleceu, vítima de uma flechada 
no rosto, após ter passado semanas com alta febre e com seriíssima infecção causada pelo 
ferimento. Anchieta, um dos maiores jesuítas que atuaram no Brasil, esteve presente à sua 
morte.
    Segundo vários autores, só mesmo no dia 24 de março de 1582 é que foi determinada a 
construção de diversas palhoças de pau­a­pique cobertas de sapé, onde o padre José de 
Anchieta instalou, na vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, o que foi depois conhecido 
como Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. A construção fora acelerada para poder 
dar abrigo urgente à tripulação e aos soldados da esquadra de um corajoso almirante 
espanhol, Dom Diogo Flores Valdez, todos atacados por escorbuto e por febres malignas 
durante sua longa viagem da Espanha para o Estreito de Magalhães, com 23 naus e 5.000 
homens armados, a fim de lá construir fortificações e povoados. A volumosa esquadra havia 
surgido na baía da Guanabara muito cautelosamente, com a temida cruz negra no alto dos 
mastros de todas as naus. Era o indicativo de peste a bordo. E foi socorrida.
    Alojados, ainda que precariamente, os soldados e marujos espanhóis, Anchieta e os outros 
jesuítas auxiliados por colonos de boa vontade e por índios amigos, prepararam pomadas e 
mezinhas todas elas extraídas de nossa muito rica flora.
    Há autores que discordam da data e do local de instalação do primeiro hospital brasileiro. 
Segundo Zarur, por exemplo, o Barão do Rio Branco afirmava ter ocorrido no dia 24 de 
fevereiro de 1583 um violento combate entre dois galeões ingleses e três espanhóis em pleno 
porto de Santos, praticamente à frente de São Vicente. Devido a esse combate e aos seus 
desastrosos resultados em termos de destruição de casas e ferimentos em muitos marujos e 
habitantes da vila, ali foi organizada, no mesmo ano, a primeira Casa de Misericórdia do 
Brasil.
    As informações de Santos Filho dão­nos, todavia, uma visão bem mais ampla de todo o 
assunto. Segundo esse renomado professor de medicina, eis algumas datas de fundação de 
nossos hospitais de misericórdia no século XVI:
    1543 ­ Data considerada incerta mas provável para a criação da Casa de Misericórdia de 
Santos.
    1549 ­ Ano de criação da Casa de Misericórdia da Bahia.
    1540 ­ Embora anterior a todas, a data é bastante incerta para a alegada criação da Casa de 
Misericórdia de Olinda.
    1570 ­ Data das primeiras instalações da Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, 
retomadas em 1582 com a construção de palhoças para a tripulação e soldados embarcados 
com Dom Valdez.
    1590 ­ Instalação da Casa de Recife.
    1595 ­ Instalada a do Espírito Santo.
    Lembremo­nos que quase todas essas pobres Casas de Misericórdia mantinham a 
tristemente famosa Roda dos Expostos, na qual muitos recém­nascidos com deformações 
foram colocados por mães desesperadas, tendo eles sido criados em orfanatos ou nos 
conventos, como elementos à margem da sociedade.
    
    ­ *Anchieta e seu exemplo de assistência aos doentes*
    Ressaltemos que bem antes dos empreendimentos acima indicados outras iniciativas de 
assistência a enfermos, a doentes crônicos e enjeitados vinham sendo levadas a efeito. Isso 
ocorreu com a presença dos jesuítas desde o começo da fundação de São Paulo. Nada 
melhor do que buscarmos as palavras de quem realmente esteve ali presente, por aqueles 
agrestes e muito difíceis anos do início da maior metrópole brasileira, ou seja, o padre José 
de Anchieta.
    Em carta datada de 1554, enquanto ainda estava em Piratininga, ele narra o seguinte: "De 
janeiro até o presente tempo, permanecemos algumas vezes mais de vinte em uma pobre 
casinha feita de barro e paus, coberta de palhas, tendo catorze passos de comprimento e 
apenas dez de largura, onde estão ao mesmo tempo a escola, a enfermaria, o dormitório, o 
refeitório, a cozinha e a dispensa" (Apud Rodrigues).
    Doentes e acidentados acorriam a esse incipiente recurso polivalente surgido em São 
Paulo de Piratininga no próprio ano de sua fundação. Ao descer a serra para São Vicente, 
ainda no ano de 1554, Anchieta escreveu uma carta especial para os seus irmãos jesuítas 
doentes em Coimbra, afirmando: "... neste tempo que estive em Piratininga servi de médico 
e de barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios dos
quais viveram alguns de que não se esperava vida, por serem mortos muitos daquelas 
enfermidades" (Apud Rodrigues).
    O termo "barbeiro" relaciona­se aqui à função de cirurgião e não à de cortador de cabelos 
e aparador de barbas, pois conforme verificamos anteriormente, durante vários séculos as 
sangrias e certas intervenções hoje inseridas em cirurgia eram praticadas por esses 
profissionais.
    Ao referir­se às atividades de José de Anchieta quando "sangrava" portugueses e índios, o 
historiador Robert Southey (1779 a 1843) afirma: "suscitaram­se escrúpulos a respeito desse 
ramo de sua profissão, pois que ao clero é proibido derramar sangue; consultado Loyola, 
respondeu que a caridade se extendia a tudo ("História do Brasil", de Southey).
    O mesmo autor afirma também que Anchieta dispunha apenas de um canivete de afiar 
penas de escrita para realizar essas famosas sangrias.
    Não nos é difícil imaginar que Anchieta tenha lutado fortemente contra a desabusada e 
muito aceita atuação de benzedores ou feiticeiros, uma vez que, de acordo com seus próprios 
escritos, ele chegou a preparar mezinhas, operou, sangrou, fez partos, exumou cadáveres, 
curou feridas bravas, tratou de cancros, fez curativos, assistiu a velhos, crianças, moribundos 
e loucos. Cuidou também de problemas decorrentes de flechadas, golpes de tacape, feridas 
de guerra; combateu pestes, infecções, febres e até suicídios; chegou até a descrever males 
desconhecidos à época e diversos tipos de doentes.

    ­ *Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil*
    Falando sobre nossos indígenas, Santos Filho informa­nos incisivamente: "Eram 
raríssimos os aleijados e as deformações reconheciam origem traumática". E cita­nos uma 
frase de Anchieta a esse respeito: "Achava­se raramente um cego, um surdo, um mudo ou 
um coxo, nenhum nascido fora do tempo" (Apud Santos Filho).
    Sobre os nossos índios dos meados do século XVI Jean de Léry, que os viu muito de perto 
e com os mesmos conviveu muito enquanto aguardava navio para voltar à França, afirma: 
"Não são maiores nem mais gordos que os europeus; são, porém, mais fortes, mais robustos, 
mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles 
muito poucos coxos, disformes,aleijados ou doentios" ("Viagem à Terra do Brasil", de 
Léry).
    Entre os portugueses, no entanto, a situação era outra e não era tão serena. No início da 
colonização brasileira, os colonos sofriam muito com a quantidade de insetos nocivos à sua 
saúde e bem­estar. Afetavam­nos muito também os males próprios dos trópicos e 
característicos de uma terra nunca desbravada, alguns deles de natureza muito grave e que 
acabavam levando a severas limitações de natureza física ou sensorial.
    Havia, por exemplo, um inseto chamado "chigua", citado por diversos autores da época. 
Era de proporções reduzidíssimas, muito encontradiço nas primeiras pousadas ou fazendas 
que se dedicavam à produção de cana de açúcar. Infestava também outras regiões, 
evidentemente. Essa espécie de inseto pólvora introduzia­se entre as unhas e as carnes dos 
dedos das mãos e dos pés. Chegava a afetar muito seriamente algumas juntas do corpo.
    Léry conta que, por maior cuidado que tivesse e por maior esmero que procurasse 
empregar para deles se livrar, não conseguia. Segundo seu relato, chegaram a extrair dele 
mais de vinte "chiguas" num só dia. E, de acordo com Southey, muita gente chegou a perder 
os pés de uma forma pavorosa, por causa desse inseto.
    Os nossos índios e nossos mamelucos sabiam de uma segura solução para o problema dos 
"chiguas", não sendo por eles muito molestados. Aos poucos foram os europeus também 
seguindo seu exemplo. "Untavam as partes que mais expostas andavam a esta praga, com 
um azeite vermelho e espesso, espremido do "courouq", fruta que em nossa terra é parecida 
com a castanha. Por felizes se deram os franceses quando souberam desse preservativo. Para 
feridas e contusões era o mesmo óleo soberano ungüento" ("História do Brasil, de Southey).
    Santos Filho, analisando peculiaridades do Brasil nesse incrível e muito difícil século 
XVI, afirma que após anos de colonização "tal e qual como entre os demais povos, e no 
mesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de deformidades, congênitas ou 
adquiridas. Foram comuns os coxos, cegos, zambros, corcundas" ("História Geral da 
Medicina Brasileira", de Santos Filho).

    ­ *Cegueira noturna no Brasil dos séculos XVI e XVII*
    O naturalista holandês Guilherme Pison viajou em companhia de outro amigo das 
ciências, Margraff, ao Brasil no início do século XVII e escreveu sua principal obra em 
1648, à época intitulada "História Naturalis Brasiliae". Nela ele nos fala de severos males 
dos olhos, mencionando­os como oftalmias de muita seriedade e muito comuns aos 
moradores de nossa Terra. E diz que "entre as calamidades do Brasil, não ocupam o último 
lugar as doenças dos olhos, atacando mais que todos os soldados e os oprimidos pela 
miséria".
    Pison não coloca esses males como epidemias, mas culpa as pessoas vitimadas pelo mal 
devido à sua vida desregrada e corrupta. "Desses, uns perdem a vista quando o sol se põe", 
diz ele, e "outros a perdem com o crepúsculo matutino". Pison chama o problema médico de 
"gota­serena" e também de "amaurose", palavras que até hoje correspondem a cegueira 
parcial ou total. E comenta que as vítimas tratavam­se com "guabiraba" ("História Natural 
do Brasil Ilustrada", de Pison).
    Robert Southey, por sua vez, analisa o mesmo problema. O historiador inglês parece ter­
se baseado na opinião de Pison, pois a semelhança de seus comentários é óbvia quando diz: 
"Moléstias dos olhos eram tão vulgares, mormente entre soldados e pobres; a mais freqüente 
era essa meia cegueira que os europeus freqüentemente experimentam entre os trópicos; os 
remédios eram o fumo de tabaco, carvão de casca de guabiraba ou alvaiade em leite humano, 
então muito empregada como medicinal" ("História do Brasil", de Southey).
    A meia cegueira citada ("evening blindness", no original da obra), a "amaurose" ou a 
"gota­serena" devem corresponder à xeroftalmia, a cegueira noturna dos nossos dias, cuja 
causa básica deve ter sido alimentação com perniciosa falta de vitamina A.

    ­ *Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil*
    Não resta dúvida que a situação deve ter sido incrivelmente difícil e muito problemática 
durante os séculos XVI e XVII, para casos de doenças mais sérias, casos de fraturas expostas 
ou complicadas, ou mesmo de deslocamentos e, ainda pior, casos que provocavam lesões 
permanentes e de natureza incapacitante.
    Quando surgia uma epidemia nesses terríveis duzentos anos da História do Brasil, era um 
verdadeiro "salve­se quem puder". Nessas horas só se apresentavam para dar algum 
atendimento à população mais pobre os improvisadores e também os muito experimentados 
curadores. Pedro Calmon, em sua "História do Brasil", relata­nos a epidemia da febre 
amarela, em pleno século XVII, da seguinte forma: "A "bicha" era a febre amarela. 
Trouxera­a da Ilha de São Tomé para o Recife um brigue negreiro. Abertas duas barricas 
com carnes salgadas, logo morreram, como se vitimados pelo ar empestado, dois marítimos; 
e o mal se espalhou pelo porto, pela vila de Olinda e seus arredores, sem haver medicina que 
o atalhasse. Verificou­se na Bahia o primeiro caso de doença em abril. A sordície dos 
sobrados, cujos porões andavam cheios de escravos da África, o calor, as ruas sujas, a falta 
de higiene, agravada pelo número crescente de negros mercadejados nos bairros da praia, 
favoreceram a expansão da epidemia, "novo gênero de peste nunca visto nem atendido dos 
médicos, de que já morreram dois", como participou Vieira ao Conde de Castanheira em 1º 
de julho de 1686. Feria de preferência os brancos, os menos adaptados ao clima. Dias houve 
em que morreram na cidade duzentas pessoas" ... ... "Chegaram as ruas a estar despovoadas, 
não só morrendo de vinte a trinta todos os dias, mas não havendo casa em que não houvesse 
muitos enfermos e em algumas todos" ("História do Brasil", de Calmon).
    Diante de situação de tal seriedade podemos imaginar o abandono a que foram relegados 
os infelizes que padeciam de males crônicos ou que carregavam consigo a dificuldade 
própria de uma deficiência física ou sensorial.

    ­ *Médico com deficiência física na História de Pernambuco*
    João Fernandes Vieira (1613 a 1681), herói da guerra contra os holandeses que haviam 
invadido o Brasil, durante muitos anos organizou planos para a libertação de toda a região 
ocupada do Nordeste. Participou valentemente das duas batalhas de Guararapes, tendo sido 
um forte aliado de Vidal de Negreiros, Camarão e Henrique Dias.
    Tendo tomado posição em Covas com um improvisado exército mal treinado e sem 
qualquer disciplina, João Fernandes teve que se haver com descontentes e traidores em 
potencial, utilizando­se de medidas bastante severas para contê­los.
    No entanto, o problema da falta de assistência médica que afetava a todos, sem exceção, 
levou João Fernandes a mandar um pequeno grupo de soldados a Santo Amaro, para dali 
raptar um médico francês conhecido como Mestrola, homem devotado ao seu mister, apesar 
de séria deficiência física que o impedia de muita movimentação pelo local.
    É Southey que nos conta: "Ao ver­se nas mãos de tal gente clamou o pobre cirurgião que 
era cristão católico romano, e sempre curava os portugueses com o maior cuidado e carinho; 
se aqueles fidalgos queriam levá­lo para as matas e lá assassiná­lo, suplicava­lhes a bondade 
de o matarem antes ali mesmo perto da igreja, onde algum bom cristão o enterraria pelo 
amor de Deus. Mas se queriam que ele tratasse dos
portugueses feridos, lhe dessem um cavalo, que tinha ele a perna doente, com que não podia 
andar" ("História do Brasil", de Southey).
    O médico com a séria deficiência na perna conseguiu o cavalo e não teve outro remédio a 
não ser aderir ao pobre e valente exército de João Fernandes, ao qual prestou bons serviços.

    ­ *O problema das paralisias no Brasil do século XVII*
    Simão Pinheiro Morão foi um médico português que viveu muitos anos no Brasil em 
pleno século XVII, depois de ter passado sérias frustrações em Portugal. Ao final de sua 
permanência no Nordeste Brasileiro, precisamente no ano de 1677, resolveu escrever aquilo 
que intitulou pouco sutilmente de "Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes de Pernambuco 
contra os Abusos Médicos que nas suas Capitanias se
Observam Tanto em Dano das Vidas de seus Habitadores". O trabalho destinava­se 
principalmente às pessoas que improvisavam na área da medicina.
    Nesse extenso manuscrito que ficou perdido por séculos, ele arrola diversos males. 
Destaquemos aquilo que chama de "paralisia", mencionada inespecificamente, mas dando a 
entender tratar­se das seqüelas de um acidente vascular cerebral ou de alguns outros males 
que podem levar à perda eventual da sensibilidade.
    Percebe­se nas entrelinhas a inexistência de maiores preocupações com o problema 
familiar ou social causado pelo mal, limitando­se Morão a registrar o que pode ser usado em 
determinadas circunstâncias como medicamento.
    " ... se à paralisia sobrevier tremor não é ruim sinal, senão bom, assim como também se 
acharmos a parte ofendida com quentura, ou com calor, porque com isso nos dá esperança de 
melhoria; e muito melhor se à paralisia sobrevier febre. E também podemos fazer ruim 
prognóstico quando a parte ofendida se for secando, a que os médicos chamam atrofia".
    Um pouco mais adiante Morão começa a desfiar idéias suas e de outras autoridades 
médicas daqueles tempos quanto à cura eventual da paralisia. Eis algumas delas: "O mais 
eficaz remédio para este acidente de paralisia de que todos os autores fazem particular 
menção, e a experiência tem mostrado infinitas melhoras, é o das caldas, aonde acodem 
todos os anos, nos meses destinados a isso, todos os enfermos desta enfermidade e de outras 
muitas igualmente rebeldes; donde os mais deles saem com manifesta melhoria"...
    Morão não entra, todavia, em muitos pormenores por julgar inoportuno e devido ao fato 
de no Brasil ­ colônia portuguesa ­ não existirem então estações de águas termais. Mas a 
medicina, auxiliada por boticários experientes, já demonstrava sua criatividade e supria a 
falta das águas termais por "suores de salsaparrilha ou de pau­da­china".
    Após esse tratamento inicial de "suores" abundantes, o paciente devia continuar os 
cuidados intensivos, caso não ocorresse a melhora. E nesses casos, o que devia fazer?
    "Seja a primeira mezinha untarem a nuca e o espinhaço todo com óleos seguintes. Tomem 
de óleo de lírio e de arruda de cada um uma onça, de aguardente do Reino meia onça com 
enxúndias de ganso e uns pós de mostarda pisados se faça linimento, e com ele quente se 
untarão as partes ofendidas, fazendo­lhe primeiro nelas uma esfregação com pano quente 
perfumado com alfazema. E aqui se advirta, que as partes paralíticas se não carreguem com 
coberturas".
    O autor menciona outros tratamentos por meio do que chama de "rubificantes". Um dos 
tratamentos mencionados é defendido por outro médico e cientista português do século 
XVII, o Dr. Henrique de Quintal: “... tomar folhas de mostarda bem pisadas, cozidas em 
urina fresca de meninos, até que tome forma de papas, e estas moderadamente quentes se 
ponham nas partes paralíticas".
    Havia variações no uso de ervas, incluindo sempre a mostarda e muitas vezes a salva, 
manjerona e arruda, misturadas e cozidas em óleo para "untar as vértebras do espinhaço".
    Morão chega a discutir o problema da paralisia na eventual clientela pobre e que jamais 
poderia ter acesso a ingredientes dispendiosos como a salsaparrilha e o pau­da­china 
pareciam ser. O substitutivo por ele indicado era a salsa­da­praia, encontradiça com maior 
facilidade.
    As pormenorizadas informações de Morão e de outros autores já citados indicam­nos que 
sem a menor sombra de dúvida alguns procedimentos indicados por eles provocavam 
algumas curas, bastante melhora ou pelo menos algum alívio em pessoas que eram vítimas 
de algum tipo de paralisia nos primeiros séculos de Brasil.

    ­ *A medicina do século XVIII entre nós*
    As crendices passadas de geração a geração pelos escravos, índios e europeus 
predominavam no Brasil do século XVIII.
    Embora toda a situação fosse muito primitiva e nosso país não contasse com recursos 
significativos, alguns médicos procuraram documentar cientificamente o problema. No ano 
de 1741 o médico João Cardoso de Miranda escreveu um pequeno tratado intitulado 
"Relação Cirúrgica e Médica", dando alguns pormenores quanto às nossas doenças, nossas 
endemias, os contágios relacionados a males trazidos pelos negros escravizados e infecções 
várias. E no final do século XVIII, exatamente em 1796, o Dr. José Mariano Leal procurou 
organizar algumas aulas para demonstração e para tratamento cirúrgico, a fim de repassar a 
colegas seus as experiências que conseguira acumular durante toda a sua vida de médico. 
Em seus sonhos profissionais havia também a preocupação de combater mais 
sistematicamente a temida "lepra".
E tentativas para melhorar o padrão de atendimento médico e ampliar o campo de 
conhecimentos da medicina ocorreram em vários pontos do país. Com esse avanço os 
charlatães e os barbeiros foram sendo acuados para pontos menos desenvolvidos do Brasil.
    No entanto, bloqueios muito sérios ocorriam e a grande maioria deles oriundos da Pátria­
Mãe, Portugal. Em 1768, por exemplo, os vereadores de Sabará, na Província de Minas 
Gerais, pediram ao rei de Portugal permissão para a fundação oficial do que chamavam 
"Casa de Aulas", para ensinar anatomia e cirurgia, tanto na teoria quanto na prática. A 
resposta, vinda do reino depois de muito tramitar pelos corredores da corte, foi lacônica e 
desagradável ao extremo: "Não convém"... O rei procurava preservar, custasse o que 
custasse, a inquestionada liderança de Coimbra entre nós. De lá emanava todo o saber 
lusitano (Apud Calmon).
    Aqui em nossa Terra havia reduzido número de formados em Coimbra e todos eles 
localizados nas melhores cidades. Só atendiam à elite portuguesa ou aos homens mais ricos 
daqueles tempos. Para o povo em geral e para os pobres prevalecia a experiência dos 
sangradores, dos utilizadores de ventosas e sanguessugas e dos charlatães em geral. Não 
licenciados para essas funções, na verdade tratava­se de padeiros, barbeiros, negros 
experimentados, homens supostamente bem informados, mulheres habilidosas e curiosas, 
além dos sempre famosos curandeiros.

    ­ *Males limitadores que afetavam muito os negros escravos*
    Muitos dos africanos que foram trazidos à força para o Brasil como escravos aqui 
sofreram muitos castigos físicos, chegando mesmo a terem o corpo marcado pelos maus 
tratos a eles infligidos.
    Muitas vezes eram vítimas de raquitismo, de beribéri, de escorbuto (também conhecido 
como "mal de Luanda"), ou seja, das síndromes mais sérias denotadoras de carências 
alimentares.
    "Foram portadores de defeitos físicos provocados por castigos e desastres nos engenhos" 
("História Geral da Medicina Brasileira", de Santos Filho).
    Falando sobre os efeitos da varíola sobre os escravos negros, Sigaud nos esclarece que 
"com o fito de provocar a erupção e de evitar tanto quanto possível os acidentes provocados 
pelo seu atraso, ou também pelo surgimento de pústulas nas mucosas e em alguns Outros 
órgãos (casos de cegueira foram muito comuns, especialmente entre os negros), o Dr. João 
Alves de Moura, médico do Rio de Janeiro, mandava fazer fricção na pele com certo óleo 
extraído do corpo de lagartos brancos" ("Du Climat et des Maladies du Brésil", de Sigaud).

    ­ *Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios*
    Como resultado da profícua viagem de uma comissão cientifica ao Brasil durante três 
anos (1817 a 1820), Carl Friedrich von Martius (1794 a 1868) escreveu um interessante 
trabalho: "Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros".
    Nessa obra do botânico alemão encontraremos algumas afirmações interessantes quanto a 
deficiências entre nossos índios do norte do Brasil. Vejamos algumas referências do 
cientista:
    "Escoliose, "pied­bot" e deformações outras do esqueleto não observamos em parte 
alguma. Provavelmente, quando essas deformidades são hereditárias, o que é admissível, 
sacrificam as crianças aleijadas, ao nascer. Além disto é singular, e se poderá apresentar 
como característica da história dos costumes daquela raça, que tantos enigmas nos oferece, 
que o índio representa o curupira, produto de sua superstição, o assombro da mata, sempre 
mau e hostil ao homem, com "pied­bot" ou pé torto, voltado para trás, saindo do tórax".
    Em nota explicativa à informação de von Martius, o tradutor Pirajá da Silva acrescenta 
que o curupira "é gênio silvestre, o gnomo, anão de um pé só, ou de uma banda só. Cavalga, 
às vezes, um caitetu ou taitetu e transmite a desgraça a quem o avista. Sacy­pererê é outro 
gênio maléfico".
    Von Martius confirma ainda que "às vezes aparecem paralíticos e coxos; sua deformidade 
é sempre de origem traumática". Diz mais, quanto à cegueira: "Por causas traumáticas ficam 
muitas vezes cegos, porém a catarata só raramente os ataca"...
    A respeito da surdez o botânico alemão afirma que "os autóctones brasileiros sofrem mais 
dos ouvidos que dos olhos. Observamos muitos homens e mulheres completamente surdos; 
mais numerosos ainda eram os casos de meia surdez" ("Natureza, Doenças, Medicina e 
Remédios dos Índios Brasileiros", de von Martius).

    ­ *Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho"*
    Um exemplo muito importante de trabalho de alta qualidade de uma pessoa portadora de 
deficiência física muito séria e progressiva aconteceu na metade do século XVIII e alvorecer 
do século XIX.
    Em 1800 Antônio Francisco Lisboa (1730 a 1814), apelidado pela população que o 
conhecia mais de perto e reconhecido por todos como o "Aleijadinho", com setenta anos de 
idade acertava um contrato para a execução em pedra dos doze profetas no adro da igreja do 
Bom Jesus dos Matozinhos. Por essa época já tinha que ser carregado, provavelmente devido 
à tromboangeíte obliterante, que em seu caso se caracterizava por ulcerações nas mãos e nos 
pés.
    Com alguns dedos das mãos perdidos ou imobilizados, mandava que seus auxiliares ou 
empregados amarrassem o martelo e o cinzel às suas mãos.
    Morreu aos oitenta e quatro anos de idade, sozinho e esquecido, meio paralisado e cego. 
Foi um homem competente em sua arte considerada hoje como genial.
    O apelido de "Aleijadinho" provavelmente indica a comiseração de seus contemporâneos, 
muitos dos quais reconheceram sua arte e seu valor por muitos anos.

    ­ *Uma primeira tentativa em projeto de lei: ajuda a cegos e a surdos*
    Desde 1835 surgira formalmente no Brasil a idéia de se fazer algo sério em favor dos 
cegos, o que na certa já ocorrera em anos anteriores por meio da iniciativa privada, tendo 
sido já tentado em alguns pontos mais civilizados de nossa jovem pátria. Infelizmente a idéia 
não foi concretizada, mas o leitor interessado poderá encontrar nos Anais da Câmara de 
Deputados do Rio de Janeiro, um projeto de lei datado de 29 de agosto de 1835, que está 
assim redigido:
    "Art. 1°. ­  Na Capital do Império, como nos principais lugares de cada Província, será 
criada uma classe para surdos­mudos e para cegos".

    O Deputado Cornélio Ferreira França, seu autor, devido a motivos políticos não 
esclarecidos, nem chegou a ver seu projeto devidamente discutido em plenário. Seu mérito, 
porém, e incontestável. Apesar da restrita distribuição da notícia, chegou a chamar a atenção 
da sociedade para o assunto e despertar o interesse dos familiares das pessoas cegas, surdas e 
surdas­mudas.

    ­ *O problema das amputações do século XVI ao XIX*
    Durante os primeiros quatro séculos de nossa História, as amputações foram a mais séria e 
a mais comum das cirurgias. Compreende­se, dessa forma, a conotação dada naqueles 
séculos à cirurgia como técnica mutiladora. Naturalmente as amputações ocorriam devido a 
acidentes, gangrena, tumores, golpes violentos, entre diversas outras causas.
    O que sucedia com os amputados, no entanto, não nos é relatado pelos historiadores nem 
pelos cronistas.
    Os nossos "físicos", como eram conhecidos os médicos, e os barbeiros que tinham licença 
para ser cirurgiões, dispunham de poucos e mal conservados instrumentos cirúrgicos.
    Santos Filho relata­nos ilustrativamente que o cirurgião­mor do Hospital Militar de São 
Paulo, em 1804 dispunha para amputações de uma única serra de carpinteiro. Os demais 
ferros de cirurgia eram mal conservados e guardados em qualquer lugar.
    Muitos morriam em conseqüência da cirurgia, em grande parte devido a infecções pós­
operatórias. Não é de estranhar que isso acontecesse. Basta ler um pequeno trecho de 
Luccock, que em 1809 visitou um cirurgião alemão em São Pedro do Rio Grande do Sul. Ele 
"praticava tanto a cirurgia como a medicina e de uma feita os instrumentos que usava caíram 
sob os meus olhos. Estavam na maior das desordens e absolutamente impróprios para a mais 
vulgar das intervenções. Tomando de uma serra enferrujada, perguntei­lhe se se atreveria a 
amputar um membro com semelhante instrumento. "Por que não?", replicou, "é a melhor 
que possuo e ninguém mais aqui é capaz de realizar tal operação" ("Notas sobre o Rio de 
Janeiro e Partes Meridionais do Brasil", de Luccock).

    ­ *A influência européia no Brasil*
    No ano de 1841 Dom Pedro II mandou construir um hospital de misericórdia ligado à 
corte, a fim de substituir as superadíssimas e sujas enfermarias da praia de Santa Luzia. O 
estilo da nova construção adotava uma mistura do gótico com o neoclássico. O edifício era 
portentoso, digno de alguns países europeus bem adiantados. E com a presença da rica 
colônia portuguesa que aqui se radicara em definitivo, começou também a surgir nas cidades 
mais importantes do Império as chamadas "Beneficências Portuguesas", sustentadas por 
taxas diversas cognominadas de "impostos da vaidade".
    O Imperador, com o propósito de incentivar essas iniciativas e também aquelas que 
levavam à criação e à manutenção das Santas Casas de Misericórdia, honrava­as com títulos 
e condecorações.
    De outra parte, com a própria Independência do Brasil já havia ocorrido um inegável 
bloqueio à influência científica de Coimbra em nosso meio. Nossos estudiosos começaram a 
procurar as escolas e as universidades francesas, alemãs e austríacas. E a civilização francesa 
principalmente começou a invadir o Brasil sedento de cultura e de modernização, chegando 
a dominar nossos usos e costumes por aproximadamente um século todo. Alunos jovens de 
famílias ricas, bolsistas, ou estudantes das mais variadas origens lá iam estudar e, ao voltar, 
começavam a criar o nosso próprio ensino e o nosso próprio meio técnico e cultural.
    Foi o que ocorreu com a medicina entre os anos de 1824 e 1854. Foi também o que 
sucedeu no campo de atendimento a pessoas com deficiências.

    ­ *Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom Pedro II*
    No campo da assistência à população prejudicada por alguma deficiência em épocas 
anteriores aos meados do século XIX, não encontramos nada de relevante. A pessoa vítima 
de alguma paralisia, alguma deformação congênita, algum tipo de amputação ou em 
conseqüência de alguma doença mais grave, certamente acabava por se tornar 
responsabilidade de sua própria família. (* Mesmo hoje, aqui no Brasil, o problema continua 
pouco alterado. Temos, entre nós, aproximadamente dez milhões de pessoas deficientes, mas 
não as vemos. Onde estão elas? Nos quartos dos fundos da casa? Nos quintais cercados por 
altos muros? Institucionalizadas? Longe dos olhos curiosos do povo? Essa população 
"continua" sendo responsabilidade de suas famílias...).
    As condições delas no Brasil do século XIX não era outra. Ou antes, certamente que era 
outra e bem pior do que hoje ­ e as pessoas apelidadas de "aleijadas", "manetas", "pernetas", 
"zambras", "cambaias", "mancas", "paralíticas", "ceguinhas", "loucas", "bobas" e defeituosas 
de um modo geral ficavam sendo problema de seu grupo familiar e nunca do Estado ou da 
sociedade.
    As tendências européias que chegavam ao porto do Rio de Janeiro com o atracar dos 
navios de passageiros, com a distribuição das revistas atrasadas, com os livros publicados 
meses antes nos países mais adiantados e influentes e também com o contínuo retorno ao 
Brasil de homens inteligentes, estudiosos, bem preparados e interessados em sua Terra 
Natal, acabaram provocando o esperado avanço brasileiro no sentido da modernização.
    Foi por esses anos de renovação cultural e de ânsia de modernização que foram criadas 
três organizações por iniciativa de Dom Pedro II, homem público que esteve sempre muito 
voltado para as conquistas da civilização européia para a solução de problemas cruciais da 
população. A elas nos limitaremos neste capítulo.
    a) Imperial Instituto dos Meninos Cegos
    Em termos de empreendimentos concretos, nada havia sido feito no Brasil Imperial em 
favor dos cegos até 1854, a não ser algumas iniciativas privadas de mero alojamento, asilo 
ou segregação dos cegos em instituições mal organizadas. Mas no dia 17 de setembro de 
1854 foi inaugurado por Dom Pedro II o primeiro recurso de iniciativa da coroa brasileira, 
ainda modesto mas bastante significativo: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos.
    De onde surgira a idéia? Por que a corte brasileira poderia estar interessada em manter 
uma organização especialmente dedicada aos garotos deficientes da visão? Por que o próprio 
Imperador havia se envolvido a ponto de dar o peso da autoridade do governo a essa nova 
organização?
    Dentre os fatos mais relevantes que cercam a criação do Imperial Instituto dos Meninos 
Cegos cumpre que destaquemos que no ano de 1853 desembarcara no Rio de Janeiro, 
proveniente da França onde havia ido estudar no já famoso Institute des Jeunes Aveugles de 
Paris, o jovem brasileiro José Álvares de Azevedo.
    Muito animado com o progresso que sentira em sua própria educação e especialmente 
com as alterações positivas verificadas em sua vida pessoal, esse jovem pensara muito 
durante seus estudos e durante sua longa viagem de volta ao Brasil, e decidira, antes mesmo 
de pisar a terra natal e ser recebido pelos seus familiares, considerar como sacerdócio, como 
missão de sua vida, comunicar a outros brasileiros também cegos tudo o que havia 
aprendido.
    E pouco tempo após sua volta, em sua busca de autoridades brasileiras que poderiam se 
interessar e apoiar o que considerava sua missão, ficou sabendo que o Dr.Xavier Sigaud, 
médico da família imperial, tinha uma filha cega. Animado e instigado por sua idéia de 
organizar no Rio de Janeiro uma instituição semelhante àquela que lhe dera tanto durante 
anos em Paris e que pudesse ser realmente útil aos cegos brasileiros, procurou a residência 
do Dr. Sigaud e ofereceu seus serviços para a educação especial da jovem Adélia. A oferta, 
surpreendentemente generosa e interessante, foi aceita e acabou dando ótimos resultados em 
muito pouco tempo. Adélia Sigaud aproveitava ao máximo os ensinamentos práticos 
transmitidos pelo jovem Azevedo, deixando toda a família muito contente.
    O Dr.Xavier Sigaud comentou com a família imperial e com o próprio Imperador sua 
felicidade, os trabalhos de ensino de sua filha e os evidentes e rápidos progressos 
observados. Como era de se esperar, Dom Pedro II percebeu logo a importância de um apoio 
oficial a essa causa e mandou organizar, ligada à corte brasileira, uma instituição que seguia 
quase que até no próprio nome aquela onde Azevedo havia estudado, ou seja, o Institute des 
Jeunes Aveugles, de Paris. A nova organização levou o nome de Imperial Instituto dos 
Meninos Cegos.
    As primeiras regletes, punções, chapas para escrita e os primeiros livros de pontos 
combinados em relevo chamados de "escrita pelo método Braille" foram encomendados e 
chegaram ao Brasil em 1856, tendo sido uma doação pessoal do Imperador ao novo 
Instituto.
    E vale a pena relembrar e enfatizar aqui que esse sistema de escrita em relevo recém­
estabelecido e reconhecido na França apenas naqueles anos, dava, com essa encomenda de 
Dom Pedro II, seu primeiro passo no sentido de sua internacionalização. O pedido brasileiro 
foi executado com esmero e foi o primeiro em uma língua que não a francesa.
    O jovem idealizador não teve a ventura de ver o Instituto instalado e em funcionamento, 
pois faleceu no dia 17 de março de 1854, com apenas 17 anos de idade. Adélia, sua pupila 
aplicada e inteligente, embora por muito pouco tempo, foi professora do Imperial Instituto 
dos Meninos Cegos e atuou no ensino de cegos até sua aposentadoria. Por sua vez, seu pai, o 
Dr.Xavier Sigaud, foi indicado para seu primeiro diretor pelo Imperador Dom Pedro II.
    Foi dezoito anos após sua instalação que o Imperador fez a doação de um vasto terreno ao 
Instituto, à avenida Pasteur, no Rio de Janeiro, onde até hoje encontram­se as portentosas e 
muito conhecidas instalações do Instituto.
    No entanto, segundo Silvado, durante muitos anos o Instituto só foi um mero asilo e não 
passou disso, sempre sob a custódia imperial. "Em uma palavra: uma escola que se limitava 
a preparar apenas seus próprios professores" ("Les Aveugles au Brésil", de Silvado).
    Muitos desses mestres chegaram a ser nomeados sem qualquer qualificação para sua 
missão. Os poucos casos de sucesso aconteceram mais devido aos esforços pessoais de 
alunos mais aplicados e inteligentes do que ao sistema de ensino adotado. Este era 
excessivamente técnico e as oficinas ali montadas limitavam­se às de tipografia e de 
encadernação para rapazes, e de tricô para as meninas. A afinação de pianos, tão comum 
como atividade profissional bem remunerada para cegos em muitos países, não foi levada 
muito a sério entre nós, nem o Imperial Instituto dos Meninos Cegos deu a ela qualquer 
ênfase.
    Cláudio Luiz da Costa foi o segundo diretor do Instituto. Este homem de sérios propósitos 
tinha uma filha que havia casado com um jovem professor de matemática que lecionava no 
Instituto desde 1861: Benjamin Constant. Este sucedeu o sogro na direção do Instituto, por 
indicação do Imperador, dirigindo­o por vinte anos seguidos. Durante os anos que dedicou à 
direção do Instituto dos Meninos Cegos participou ativamente e foi um dos líderes na 
preparação das idéias para a Proclamação da República. Como diretor do Instituto procurou 
chamar a atenção das autoridades imperiais para o estado lamentável em que o Instituto se 
encontrava, propondo diversas soluções, sem ter obtido qualquer decisão. Com a 
Proclamação da República parece que conseguiu seu intento. Elevado ao poder na qualidade 
de Ministro de Estado, o ex­diretor do Instituto conseguiu rapidamente o decreto para sua 
reforma. A construção do prédio definitivo, que começara em 1872, foi concluída em parte e 
suas novas instalações foram ocupadas apenas após a Proclamação da República, ou seja, no 
ano de 1890.
    Foi no dia 17 de maio de 1890, pelo Decreto 408, assinado pelo Marechal Deodoro da 
Fonseca e por Benjamin Constant, que o Instituto mudou de nome e teve seu regulamento 
aprovado. Diz o Decreto:
    "O chefe do governo provisório, constituído pelo Exército e pela Armada, em nome da 
Nação, resolve aprovar o regulamento para o Instituto Nacional dos Cegos, que a este 
acompanha, assinado pelo general de brigada Benjamin Constant Botelho de Magalhães, 
Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, que assim o faça executar. Palácio do 
Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, 17 de Maio de 1890 ­ 2ºda 
República".
    No entanto, Benjamin Constant faleceu logo a seguir, em 1891, e o governo republicano 
rebatizou o Instituto em sua homenagem com o seu nome atual: Instituto Benjamin 
Constant.

    b) Instituto dos Surdos­Mudos
    Existe também um relato publicado em 1887 por Tobias Leite, sobre o Instituto dos 
Surdos­Mudos, hoje conhecido como o Instituto Nacional de Educação de Surdos ­ INES. 
Era um centro vinculado à coroa brasileira, por Decreto de Dom Pedro II.
    Tratava­se, à época de sua criação, de uma organização especial, também criada e 
inaugurada por Dom Pedro II, e que se caracterizava como um estabelecimento de educação 
que tinha como finalidade a educação literária e o ensino profissionalizante para garotos 
surdos­mudos.
    Embora não houvesse o volume de conhecimentos relacionados à surdez como ocorre 
hoje, já naqueles anos algumas preocupações básicas transparecem no relato indicado acima: 
"O ensino pela palavra articulada e leitura sobre os lábios, está a cargo de um professor 
expressamente habilitado na Europa, para dá­lo aos surdos­mudos nas condições de recebê­
lo".
    Havia nesse Instituto ensino da linguagem escrita, para o qual o estabelecimento contava 
com coleções européias de objetos, instrumentos, aparelhos e estampas que enriqueciam seu 
museu escolar, coleções essas bem completas que cobriam assuntos relacionados a 
substâncias alimentares, habitações, instrumentos de caça e pesca, "meios de locomoção 
terrestre desde o burro até o trem de caminho de ferro", meios de navegação, fios para 
roupas, lãs, calçados, utensílios para a vida nas cidades e nos campos, móveis, materiais para 
construção, globos e mapas geográficos e outras mais.
    A maior parte desse material fora trazido da Europa, como era costumeiro em quase todas 
as áreas do ensino em todos os níveis.
    A educação profissional mantida pelo Instituto dos Surdos­Mudos do Rio de Janeiro era 
dada em oficinas de sapataria e de encadernação. (* Algumas instituições existentes ainda 
hoje lançam mão apenas dessas duas áreas de treinamento). O rendimento pela venda dos 
produtos era dividido em 2 (duas) partes: uma pagava o custo do produto e a outra era 
recolhida à Caixa Econômica, já existente no final do século XIX, e era escriturada nas 
cadernetas individuais de cada aluno. Ao final do curso cada um retirava o capital somado 
aos juros.
    Nesse Instituto eram admitidos alunos entre 7 e 14 anos de idade, apenas do sexo 
masculino. Viviam em regime de internato, sem qualquer distinção de tratamento ou de 
instalações entre garotos ricos ou pobres. Nenhum deles pagava qualquer tipo de 
contribuição para ali ser internado e educado.
    Numa orientação aos pais e à sociedade em geral, o autor da obra aqui analisada fazia 
algumas considerações quanto à futura vida profissional do ex­aluno surdo­mudo. E dentre 
as orientações mais interessantes cumpre destacar as seguintes:
    ­ "É inquestionavelmente de máxima importância e conveniência que o surdo­mudo tenha 
um ofício, ou arte de que subsista".
    ­ "Na escolha do ofício ou arte a que o surdo­mudo deve aplicar­se, convém atender­se à 
sua constituição física, à localidade em que tem de residir, à sua aptidão e até à posição ou 
gênero de vida de seu pai".
    ­ "Em geral, as artes e ofícios convêm mais aos habitantes das cidades e a agricultura aos 
dos campos".
    ­ "Das artes e ofícios devem ser preferidos os que podem ser exercidos em qualquer parte, 
cidade ou pequenos povoados. Sapateiro, alfaiate, correeiro, torneiro, oleiro, chapeleiro, 
tintureiro, impressor e encadernador, são indústrias que muito lhe convém".
    ­ "Os ofícios de carpinteiro, pedreiro e outros que exigem comunicações simultâneas com 
o trabalho, não lhe são tão convenientes".

    Princípios básicos da programação do Instituto já eram bem estabelecidos e de certa forma 
bem aplicáveis para nossos dias, embora tivessem sido formulados há cem anos atrás: ... "os 
que não se deixam levar pelas exterioridades e encaram as situações pelo lado utilitário 
entendem que o objetivo da educação dos surdos­mudos é dar­lhes uma profissão de que 
subsistam nobremente, e habilitá­los a comunicar­se com os seus concidadãos pelo meio que 
lhes for mais fácil e mais cômodo" ("Notícia do Instituto dos Surdos­Mudos no Rio de 
Janeiro", de Leite).

    c) Asilo dos Inválidos da Pátria
    Outro relato de extrema importância para análise de atitudes predominantes no Brasil 
Imperial com relação a pessoas portadoras de deficiências diversas é o que se relaciona com 
o "Asilo dos Inválidos da Pátria", de autoria de Manoel da Costa Honorato e intitulado 
"Descripção Topográphica e Histórica da ilha do Bom Jesus e do Asylo dos Inválidos da 
Pátria", publicado no ano de 1869 pela Typographia Americana.
    Esta organização, destinada ao abrigo e à proteção dos soldados brasileiros mutilados em 
guerras ou em operações militares, surgiu em nossa terra, não só devido a uma necessidade 
premente da segunda metade do século XIX, mas também, para a grande maioria dos 
governantes e da população, por uma questão de gratidão e de justiça para com os jovens 
soldados feridos ou "inutilizados" para a vida militar e talvez até para a civil. No entanto, 
nota­se nas entrelinhas de crônicas da época um outro motivo, ou seja, o forte orgulho de 
uma jovem Nação do Novo Mundo que não pretendia ficar muito atrás das nações 
civilizadas da Europa.
    Orgulho, ufania, comiseração, caridade, emoção, interesse genuíno, reconhecimento 
patriótico a seus heróis, alguns lances literários e pouco práticos sobre integração à família e 
à sociedade, e muito mais, um leitor curioso poderá encontrar nessa interessante obra. É um 
relato bem elaborado, curioso, ao estilo da época imperial, às vezes emotivo, apresentando 
ambientes e circunstâncias que cercaram a criação e principalmente a inauguração de um 
abrigo oficial (esse o verdadeiro sentido da palavra "asilo") para os soldados que estavam 
lutando uma guerra sangrenta e muito difícil contra o desafiador vizinho nosso que era o 
Paraguai, e que poderiam voltar para o Brasil doentes ou incapacitados, tanto para o serviço 
militar quanto para atividades da vida civil.
    A idéia da criação do Asilo dos Inválidos da Pátria encontra vários similares na Europa do 
século XIX, dentre os quais o mais famoso do mundo todo era o "Hôtel des Invalides" 
(Palácio dos Inválidos) de Paris. Luís XIV mandara edificar esse monumental abrigo para 
soldados desde o século XVII, mas suas obras haviam sido concluídas pomposamente 
apenas no século XIX, um pouco antes do empreendimento brasileiro.
    Havia outros exemplos, como o Chelsea Hospital, em Londres; o Invalidenhaus, em 
Berlim; as Soldier's Homes, nos Estados Unidos da América do Norte em várias de suas 
unidades federadas. A Espanha mantinha o conhecido Cuartel de Invalidos, em Madri, junto 
à igreja de Atocha. Na Itália existia o Ricovero dei Veterani, localizado em Milão, enquanto 
que na Turquia havia o Malja El­Kuçah, em Constantinopla.
A Áustria já organizara o Kund Iz Invalidenhaus, na cidade de Thyrnan que hoje fica na 
Hungria. A Grécia tinha sua organização com o nome de "Tephonomeisda" na cidade de 
Atenas. Muito mais perto do Brasil, o Uruguay contava com o Asilo de Invalidos na cidade 
de Três Cruces e a Argentina com o Asilo de los Invalidos, na própria capital Buenos Aires.
    Muito mais próximo à cultura brasileira havia também o exemplo dado pelo reino de 
Portugal, que durante o governo de Dom José I (entre 1750 e 1777) fundara o Asilo dos 
Inválidos Militares, também conhecido como Hospital de Runa, organizado e inaugurado 
pela princesa Dona Maria Francisca Benedicta. Trata­se de um edifício em um só andar, mas 
bastante imponente, que havia sido uma quinta e fora adaptado para os fins acima. Só a 
título de curiosidade, o Asilo famoso tinha 99 metros de frente, por 61 metros de fundo e era 
acabado em mármore.
    O nosso Asilo dos Inválidos da Pátria, entretanto, era composto de edifícios mais simples 
do que aqueles que Luís XIV mandara construir para seus soldados, mas talvez 
correspondessem mais aos bons sentimentos daqueles que haviam patrocinado sua 
edificação. "O luxo foi inteiramente banido dos edifícios em que os bravos abrigam­se, pois, 
o luxo não é decência", segundo Honorato.
    Analisemos, porém, alguns pontos desse precioso documento para nele buscarmos 
indicativos do modo de ver a pessoa deficiente e das atividades dominantes, que muitas 
vezes transparecem no linguajar inflamado e colorido do autor, ou no conteúdo dos 
documentos e dados transcritos na mesma obra.
    A idéia da criação do Asilo não foi novidade no Brasil. Já em 11 de março de 1840 Dom 
Pedro II havia criado na corte brasileira e nas Províncias do Pará, Rio Grande do Sul e Mato 
Grosso, asilos para receberem soldados incapacitados para o serviço militar, ou em vias de 
baixa da ativa, por doença, por deficiência ou por idade. Em 30 de novembro de 1841, 
também por Decreto Imperial, criara­se nas imediações da corte brasileira um asilo de 
inválidos que, graças a uma Resolução da Assembléia Geral, recebera um pormenorizado 
regulamento para seu funcionamento e para que um soldado fosse ao mesmo admitido. Pelo 
que se pode deduzir, pouca gente era ali recolhida, pois por um Decreto de 1843, Dom Pedro 
II mandou ali recolher também os marinheiros deficientes.
    Todavia, apesar dos esforços e dos investimentos para garantir no Brasil os indícios de 
civilização no estilo europeu, e também por falta de experiência e de conhecimento de causa, 
nenhuma dessas medidas havia sido implantada. Eram empreendimentos puramente 
militares e de questionável qualidade. "Sem disciplina, ordem e asseio, eram essas 
companhias mais centros de distúrbios e focos de vícios do que asilos protetores de 
mutilados da pátria", segundo Honorato.
    No dia 25 de fevereiro de 1865, quando o Brasil se empolgava numa resposta efetiva a 
provocações e a incursões paraguaias e marchava para a guerra, os filiados, diretores e 
membros mais proeminentes da Comissão da Praça do Comércio do Rio de Janeiro 
reuniram­se no Palácio Imperial e, ansiosos para colaborar de alguma forma com os esforços 
do governo e dos homens que, deixando tudo, lutavam abertamente contra o inimigo, 
resolveram defender a idéia de angariar fundos e tomar providências para criar um "asilo 
para os que se invalidassem pela pátria"..."e em sessão solene desse mesmo dia 25 de 
fevereiro, foi aclamado seu presidente nato o nosso Augusto Monarca o Senhor Dom Pedro 
II".
    O imperador deve ter apreciado muito a idéia, que talvez tenha até brotado de seu espírito 
estudioso e interessado ou de algum colaborador recém­chegado do Velho Mundo e 
conhecedor das experiências ali mantidas. O fato é que louvou os planos todos e nomeou um 
delegado seu para a missão, não se omitindo, porém, de seguir pessoalmente as providências 
necessárias. "Escolheu o lugar que melhor lhe pareceu para que os inválidos tivessem 
liberdade sem obstáculos da massa popular e gozassem de melhor clima, mandou fundar os 
edifícios e ativou aos trabalhadores, a fim de que não houvesse retardamento, animando­os 
com sua presença quase diariamente".
    O Asilo foi construído numa pequena e muito aprazível ilhota conhecida como a ilha do 
Bom Jesus, em plena Baía da Guanabara. E Dom Pedro II, numa festa engalanada e 
completamente dedicada aos heróis mutilados ou paralisados na guerra contra o Paraguai, 
inaugurou o Asilo no dia 29 de julho de 1868, aniversário de nascimento de sua filha e 
herdeira do trono brasileiro, a Princesa Isabel.
    Conta­nos Honorato que "às 9,30 horas era recebido Sua Majestade o Imperador ao som 
do Hino Nacional, que de todas as partes se ouvia, repiques de sinos e salvas". Com ele 
estavam a Imperatriz Da.Thereza Christina, a Princesa Isabel e o Conde d'Eu; também 
presentes estavam todos os seus ministros de estado, o corpo diplomático em peso, o corpo 
consular, as autoridades eclesiásticas e também os oficiais de navios de guerra americanos, 
ingleses, franceses e espanhóis que com a sua presença demonstravam apoio formal à causa 
brasileira; e, como não podia deixar de ser, havia muita gente representativa do comércio, da 
indústria, das corporações e muito povo.
    A chegada do Corpo dos Inválidos, como era conhecido o grupo de oficiais e soldados 
mutilados, parece que foi muito comovente ao Imperador que tanto havia acarinhado aquele 
projeto e que tanto apreciava o sacrifício feito pela Pátria Brasileira. E deve ter sido 
comovente também à família imperial; e certamente muita gente vibrou com o foguetório, 
com o repicar dos sinos, enfim, com a "pompa e circunstância" toda que fora armada na ilha 
do Bom Jesus. O próprio Imperador, em seu traje de gala, "com sua Imperial família e sua 
corte pôs­se no lugar do desembarque a fim de receber os infelizes que eram objeto da 
solenidade". Bandeiras tremulavam por todas as partes, arcos triunfais estavam montados 
desde o cais até a capela onde seria cantado um solene "Te Deum" e todos estavam 
colocados em alas para a passagem dos"mutilados de guerra", sob salvas de palmas e vivas 
misturados a marchas militares, na manhã ensolarada da baía da Guanabara.
    Pela narrativa de Honorato, os heróis assim recebidos, porém, "eram infelizes" e à Pátria 
restava amenizar seus dias para viverem em paz. Todos eles estavam voltando da frente de 
batalha contra os paraguaios e recebiam ­ pelo menos naquele dia ­ o carinho de seu 
Imperador e de toda a multidão presente. "... Aqueles homens foram os que inutilizaram­se 
pela Pátria, foram os bravos que regaram os campos de batalha com o sangue de suas veias, 
foram os que viram para sempre a estrela fagueira, que lhes acenava para o futuro, 
desaparecer"...
    O Corpo dos Inválidos era composto de oficiais, cadetes e soldados, quase todos 
mutilados ou sem maiores possibilidades de atuar no serviço militar ativo. E eram todos 
pobres ­ segundo relato da época ­ e não tinham qualquer chance de receber da sociedade 
brasileira do final do século XIX muita coisa, a não ser talvez compaixão, como podemos 
notar nas entrelinhas de alguns documentos transcritos no livro de Honorato que aqui 
estamos analisando.
    O Imperador brasileiro, ao notar a finalização das manobras de atracação do barco que 
trazia o Corpo dos Inválidos, quebrou o protocolo e dirigiu­se à prancha de desembarque. 
"Os raios do sol, a fadiga do cansaço, a aglomeração do povo, a demora do desembarque não 
o incomodaram; com o semblante risonho, a todos os que desembarcavam dava a mão, 
ajudava­os a subir a escada de desembarque e recomendava aos demais que facilitassem­lhes 
a passagem, ajudando­os em seu caminho; e a Imperatriz parecia atravessada por tantas setas 
quantos eram os mutilados que passavam"...
    Esse corpo de soldados prejudicados por ferimentos graves, por amputações ou por 
doenças sérias, durante a guerra contra o Paraguai, havia sido provisoriamente instalado na 
Ponta da Armação, da Marinha Brasileira, e no dia da inauguração do Asilo correspondiam a 
"29 oficiais, 67 sargentos, 6 cornetas, 1 coronheiro, 7 músicos, 239 cabos e semelhantes, 
1.010 soldados e 1 tambor". E, no mesmo lote de doentes e deficientes do exército brasileiro, 
"havia também 42 prisioneiros paraguaios nas mesmas condições físicas".
    Num comentário empolgado Honorato analisa com ênfase o sentimento brasileiro 
naqueles exatos momentos: "Quando pensaram nossos antepassados que o Brasil possuiria 
um estabelecimento tão importante, que transmitirá às gerações vindouras a idéia do 
verdadeiro reconhecimento aos que por ela sacrificaram­se? Pois bem, o Brasil já não deve 
estar tão atrás da civilização; o Brasil, rico em tudo, será também nobre de sentimentos. Os 
inválidos são pobres, é verdade; porém, são nobres; eles deram em favor da pátria tudo 
quanto tinham, a vida, a saúde, tudo eles expuseram; e por atos de tanta generosidade são 
credores de tudo quanto em seu favor se possa fazer".
    Mas vale a pena conhecer um pouco do cenário da festa toda. O Asilo dos Inválidos da 
Pátria estava localizado na ilha do Bom Jesus, e a descrição de Honorato é esta: " ... desde 
logo principia a ver os edifícios que constituem a encantadora vista do Asilo dos Inválidos; 
vê uns à beira da praia entre dois elevados morros, cercados todos da bela verdura que orna 
esta aprazível ilha, e com suas imponentes perspectivas atraindo a atenção de quem para aí 
se dirige".
    Na realidade, a "aprazível vista" ­ irreconhecível no Rio de Janeiro do século XX ­ referia­
se a dois edifícios, um em cada lado do ancoradouro; o da direita continha em seu andar 
térreo as oficinas destinadas às atividades dos asilados. Veja­se, portanto, que já na fase de 
planejamento havia sido considerado, como em vários projetos similares europeus, o fator 
ocupação e, quem sabe, a aquisição de conhecimentos profissionais suficientes para o 
individuo poder deixar o Asilo, se quisesse integrar­se na sua própria comunidade, como era, 
aliás, permitido pelo Regulamento.
    O andar superior do primeiro prédio era destinado apenas a uma espécie de museu militar, 
O outro edifício ­ o da esquerda do cais ­ era também de dois andares e servia para 
enfermaria e acomodação dos mais doentes no andar superior, enquanto que no inferior 
residiam as irmãs de caridade que eram as responsáveis pelos serviços de enfermagem da 
entidade.
    Dos edifícios localizados nas elevações, um servia para cozinha e como refeitório, pois só 
no dia da inauguração o Corpo dos Inválidos contava com aproximadamente 1.500 homens. 
O pavimento superior servia para recreação e lazer dos asilados.
    Havia na ilha também um antigo convento franciscano que o Asilo utilizava como escola 
primária para os asilados, sob a responsabilidade do Capelão. Mais para trás e para o interior 
da ilha, seguindo paralelo ao antigo convento, havia outro prédio para abrigo de outras 
companhias de "inválidos". E, separado de todos, havia também o local onde se abrigavam 
os prisioneiros paraguaios.
    Terreno havia bastante na ilha para hortas e para diversos tipos de plantação mais extensa, 
nas quais os soldados ali recolhidos eram de certa forma "obrigados" a atuar, de acordo com 
sua capacidade física. O próprio Regulamento do Asilo diz: "Compete ao Comandante do 
Asilo: ..6º Obrigar os inválidos a que trabalhem na horta, nas oficinas, conforme suas 
aptidões e forças físicas". Cremos não ser muito de espantar essa autoridade para obrigar os 
soldados a fazer isto ou aquilo, uma vez que o Artigo 8º das Instruções para o Asilo diz 
muito claramente: "O Asilo fica sujeito ao regime e disciplina militar".
    Havia, pelo Regulamento já indicado, obrigatoriedade de participação e de colaboração 
também nos aspectos financeiros. Na verdade, cada soldado ou oficial ali recolhido por 
invalidez ou doença deveria contribuir para as despesas do estabelecimento com as pensões 
que recebiam do Tesouro Nacional; os que não recebiam pensões, por serem idosos, por 
exemplo, deviam contribuir com a metade do soldo de sua reforma.
    No entanto, cumpre destacar que não era vedado ao internado trabalhar no próprio Asilo e 
ganhar algum dinheiro extra. Pelo Artigo 19, por exemplo, fica bem claro que tanto os 
oficiais quanto os praças considerados como inválidos poderiam exercer no Asilo os 
empregos que seriam compatíveis com suas forças físicas ­ e eram remunerados pela 
atividade .
    E havia mais ­ alguns dos que eram casados poderiam viver com suas mulheres e filhos, 
em quartos próprios, sendo até possível às mulheres trabalhar no próprio Asilo com as irmãs 
de caridade.
    Quanto aos produtos, tanto de horta quanto de oficinas, o Regulamento estabelecia que 
eram todos destinados ao proveito do estabelecimento, no que se referia aos da horta. 
Quanto aos da oficina, dois terços destinavam­se aos indivíduos que os haviam produzido e 
uma terça parte era creditada em favor do Asilo.
    Do esmerado sermão proferido na cerimônia religiosa de 29 de julho de 1868 pelo 
Cônego Joaquim José da Fonseca Lima, com a presença de Dom Pedro II, de tantas 
autoridades e dos beneficiários do novo Asilo, encontramos palavras que representam 
vislumbres de total compreensão daquilo que é integração social, idéias que já brotavam 
naquelas épocas em ambientes mais cultos e seletos ­ há mais de um século atrás: "O 
inválido da pátria que aqui vier descansar à sombra de seus louros, terá ainda o honroso 
direito de tomar parte na vida ativa da sociedade: o seu trabalho continuará a enobrecer sua 
existência"...
    José Joaquim de Lima e Silva, Presidente da Comissão Central da Praça do Comércio do 
Rio de Janeiro, em seu relatório datado de 31 de agosto de 1869, um ano após a inauguração 
do Asilo, afirma textualmente: "É hoje na velha Europa questão duvidosa a eficácia dos 
asilos para os inválidos, embora ali se veja obras soberbas para esse fim, como o dos 
Campos Elíseos em Paris e do Greenwich em Inglaterra; sustentando muitos a preferência de 
se deixar o inválido livre na escolha de sua moradia e trabalho, recebendo do estado a 
pensão e socorro que as leis criaram ou criarem".
    E continua o interessante relatório: "Que o inválido deve ser livre em recolher­se ou não 
ao asilo é questão que nos parece liquida e jamais pensamos que, criando o asilo, se faça 
dele uma morada forçada para o inválido e principalmente quando atendendo para o caráter 
dos nossos homens vemos que eles são essencialmente e em grande número, amigos da vida 
social ou da família, e que assim preferirão a mais humilde choupana ao mais deslumbrante 
palácio, contanto que ali encontrem o prazer da família que aqui não podem ter. Essa 
liberdade de vida e esse amor da família não dispensa a criação do asilo, que será sem 
dúvida procurado por muitos que nele acharam os cômodos que não podem encontrar em 
outra parte e para
quem o sentimento ou o amor da família não e dominante"...
    Mas, o sonho não durou muito tempo, não. Terminada a guerra contra os paraguaios e os 
envolvimentos brasileiros em ações armadas, terminou também a euforia e o projeto caiu no 
rápido esquecimento do governo e do povo. Logo após a proclamação de nossa República, a 
situação na ilha do Bom Jesus já estava péssima. No ano de 1899, ou seja, dez anos de 
República, um jornalista resolveu tirar tudo a limpo e foi à ilha famosa. Era Ernesto Senna.
    Seu relato, em cores muito vivas e realistas, deixa­nos a sensação de um sonho 
desmoronado ­ talvez bem pior do que isso. Nem o Império soubera manter o Asilo dos 
Inválidos da Pátria, nem a nova República por ele se interessara. A burocracia ministerial 
acabara deformando o empreendimento.
    Algumas frases do jornalista serão suficientes para que compreendamos a fraqueza da 
organização e a debilidade do interesse. A sorte dos mutilados de guerra passara a ser 
problema deles mesmos.
    ... "Repetidas queixas chegaram à redação do Jornal do Comércio sobre o estado de 
abandono em que se achava o Asilo. Tantas foram elas que há tempos enviamos à ilha do 
Bom Jesus um nosso representante para "de visu" conhecer a realidade das queixas. 
Efetivamente eram justas e mereciam ser de pronto sanadas. Repugnava­nos, então, dar 
publicidade minuciosa do estado do Asilo, contando com as providências que se esperavam 
fossem tomadas pelo Quartel Mestre General, Senhor General Santiago, que havia visitado o 
estabelecimento e que mostrava­se interessado em melhorar a situação dos inválidos ali 
recolhidos. Como, porém, fossem improfícuas as medidas tomadas, a julgar pelo estado cada 
vez mais deplorável em que se acham aqueles servidores da pátria, resolvemos hoje publicar 
as notas que colhemos em uma recente visita, depois de uns ligeiros reparos que foram feitos 
no edifício."
    ..."dos 46 prédios que existiam em 1869, todos pertencentes ao Estado, apenas existe uma 
meia dúzia em ruínas, graças ao abandono e à indiferença. Os inválidos construíram à sua 
custa, por toda a ilha, 36 casinhas (ranchos), onde habitam com suas famílias, já por falta de 
acomodações no Asilo, já para evitar a morada em velhos pardieiros, que ameaçam ruínas" 
...
    ... "Logo ao desembarcar na ilha notamos o abandono em que está a instituição acobertada 
com o pomposo título de Asilo dos Inválidos da Pátria. O capim cresce com abundância e o 
local que se prestava para um belo e formoso jardim apenas ostenta vistosas palmeiras 
enfileiradas em frente do edifício enegrecido pela ação do tempo, pela falta de pinturas e de 
consertos externos e internos"...
    ... "Mas quem transpuser a entrada principal de uma ou outra ala do edifício, sente certa 
opressão ao reparar nas escadas velhas, imundas, deixando à mostra os montantes laterais do 
estuque sem reboco e os ferros azebrados pela umidade que se escoa pelas paredes e onde 
existem faltas de táboas. Galqando a escada da ala direita, no segundo pavimento, o visitante 
sente as exalações das imundas latrinas sem água, sem portas, sem tampas e sem a menor 
atenção aos preceitos de higiene. É nesta ala do edifício que se
acham os quartos reservados aos oficiais" ...
    ... "Velhas camas de ferro enferrujado, com as molas partidas e sem táboas e sobre elas 
colchões imundos e travesseiros que reclamam de muito um lugar na ilha da Sapucaia"...
    ... "O estabelecimento não fornece ao oficial nem um acessório de cama ou de quarto, de 
maneira que para lavar o próprio rosto é preciso que comprem bacia" ...
    ... "Latrinas foram colocadas nos alojamentos unicamente por luxo, pois que não existe 
encanamento para o serviço das mesmas. Não tem o Asilo mesas dignas de figurarem no 
refeitório, porque as duas que vimos, apesar de serem de mármore, precisam de guarnições e 
de pronta pintura"...
    ... "As praças não têm um banheiro e o fogão para as que tem família é comum, pois, está 
no pavimento térreo do alojamento dos casados e consta de um grosso paredão de tijolos 
com 36 bocas, e isto mesmo em péssimas condições" ...

    O artigo de Ernesto Senna entra em pormenores suficientemente claros quanto ao estado 
de coisas, apenas 30 anos após a festiva inauguração do Asilo dos Inválidos da Pátria, 
orgulho de um Brasil progressista.
    No entanto, o que escapou ao arguto jornalista é que o Ministério da Guerra já iniciara 
providências muito sérias para a devida recuperação do Asilo. Tanto é verdade que o 
Governo Republicano com ele se preocupava, que os heróis mutilados ou gravemente 
enfermos vindos da Guerra de Canudos para lá foram encaminhados no ano de 1897/98.
    Reformas muito sérias foram empreendidas e alguns dos edifícios em piores condições 
foram demolidos e substituídos.
    Se o leitor desejar conhecer algumas das instalações do Asilo dos Inválidos da Pátria, 
precisará saber o seguinte:
    1. A ilha do Bom Jesus não existe mais. Ela foi inserida nos imensos trabalhos de aterro 
da ilha da Cidade Universitária, que eliminou algumas ilhas e as uniu num bloco só. No 
entanto, as pontas e contornos das ilhas do Fundão e do Bom Jesus permaneceram 
inalterados, embora ligados à ilha principal da Cidade Universitária. A antiga ilha do Bom 
Jesus fica ao sul, após os prédios relacionados à agronomia. Sua área original, pertencente ao 
Exército Brasileiro, é ocupada pela Cia. de Comando da Primeira Região Militar, além de 
residências de militares e funcionários civis do Ministério do Exército.
    2. Existem alguns prédios originalmente inaugurados por Dom Pedro II, ocupados pelo 
Comando da Companhia ali sediada. A igreja também está intacta, no alto de uma elevação. 
Lá dentro estão enterrados os restos mortais do Marechal Osório.
    3. Há alguns descendentes dos "inválidos" nela instalados no final do século passado, e de 
vários outros soldados que ficaram mutilados em operações militares mais recentes.
    E se o leitor chegar até lá, verá que se trata de uma "ilha" de contornos agradáveis, sem 
alterações em sua forma original. E terá a surpresa de encontrar quase que exatamente o que 
é descrito por Honorato em 1869 quando diz: "Collocado em frente ao desembarque o 
visitante vê dous edifícios, não tão elegantes, quanto forão aquelles que o faustoso Luiz XIV 
fez edificar para os seos soldados, mas tão singelos quanto podem ser os bons sentimentos 
daqueles que os fizeram fundar".
    De fato, os dois edifícios são vistosos, ao estilo da época, e muito sólidos. Estão 
atualmente muito bem conservados, pintados e limpos, após restauração bastante 
significativa.
    ... "Sobe­se por uma espaçosa escada com os corrimãos e balaústrês envernisados, no 
patamar da qual, fronteira à porta, vê­se gravada em uma pedra mármore a seguinte legenda: 
No reinado do Sr.D.Pedro II, sendo ministro da guerra o conselheiro João Lustosa da Cunha 
Paranaguá, erigio­se este edifício em 1868. ­ Dahi partem duas escadas em sentido inverso à 
primeira, uma para o lado direito e outra para o esquerdo". E é exatamente isso que o 
visitante interessado lá irá encontrar.
    ... "Passemos agora à igreja. A igreja do Bom Jesus, fundada em 1705, como diremos, no 
alto deste môrro não podia ser edificada em melhor posição. Elevada a uma altura 
proporcional, com uma escadaria de sete degráos de pedra, tem na frente tres arcadas, sobre 
as quaes vê­se outras tantas janellas que ficão no côro da mesma igreja, e uma porta que dá 
entrada para o interior"...
    A linda igreja do Bom Jesus lá está, no alto de um pequeno morro, olhando a baía da 
Guanabara há mais de dois séculos.
    No entanto, o visitante deverá ficar atento para o fato de que o Asilo dos Inválidos da 
Pátria não funciona mais. Segundo informações obtidas no próprio local, foi desativado no 
ano de 1976, 107 anos, portanto, após sua festiva inauguração por Dom Pedro II.

            CAPÍTULO SEXTO
            O SÉCULO XX E OS CAMINHOS DA REABILITAÇÃO NO MUNDO

    Como em quase todas as áreas de atendimento à população mais pobre, houve um 
incremento substancial de assistência a pessoas portadoras de deficiências no mundo todo, 
durante todos os anos até agora vividos do século XX. Esse incremento não ocorreu apenas 
em razão de uma filosofia social mais voltada para a valorização do homem em alguns 
países mais proeminentes, mas também devido ao engajamento de muitos setores da 
sociedade no bem­estar comum ­ e por que não o dizer, em conseqüência dos evidentes 
progressos das ciências e suas aplicações práticas, em todos os campos. 
    Mesmo nos países sub­desenvolvidos, muitas áreas receberam o impulso no sentido da 
modernização e do avanço técnico. Além de se beneficiar dessa tendência geral, a medicina 
progrediu muito também em todos os seus setores especializados, tais como na cirurgia 
ortopédica, na ortopedia e na traumatologia ­ áreas que mais nos tocam neste estudo ­ devido 
a muitos fatores, mas em especial devido a duas guerras mundiais e várias outras de âmbitos 
mais restritos que assolaram o mundo.
    Os problemas múltiplos de grandes contingentes populacionais desabrigados ou 
simplesmente desalojados pelas ações destruidoras da guerra, as imensas dificuldades 
encontradas pelos refugiados, pelos doentes e pelos mutilados nos conflitos, a orfandade e o 
abandono quase que generalizados, levaram a grandes programas assistenciais de caráter 
internacional. Além disso, o contato direto com elevados contingentes de população que 
apresentavam problemas especiais teve como conseqüência melhores e mais precisas 
providências de ordem prática para o encontro de soluções que incluíam a completa 
reintegração dos mesmos à vida normal, numa sociedade produtiva devidamente 
reconstruída. Esforços especiais foram criados para lutar pela normalização da vida desses 
grupos populacionais vítimas das atividades de guerra.
    Antes dos conflitos armados, porém, no que concerne às medidas relacionadas 
diretamente aos portadores de deficiências de países mais evoluídos, a atenção para com as 
crianças portadoras de deficiências físicas foi se concentrando efetivamente em seu melhor 
cuidado e em sua educação especial, desde a primeira década do século. Princípios já 
defendidos há séculos na Europa, desde a época da Renascença, para o atendimento de 
órfãos e de crianças carentes e deficientes, foram efetivamente melhor definidos e postos em 
prática no início deste século.
    Além da simples proteção, da assistência para prevenir o abandono e a criminalidade, e da 
educação, algum treinamento profissionalizante, através do qual a criança ao chegar à idade 
adulta poderia obter meios para sobreviver, começou a ser de fato implantado em diversas 
entidades.
    O humanismo filosófico, em constante ascensão, sem dúvida que ajudou na ênfase a ser 
dada a esse grupo marginalizado, e ao seguir os seus princípios fundamentais, a medicina 
mais especializada encontrou o caminho ideal para um completo engajamento. E com ela 
vieram outras ciências e outros grupos de profissionais ou de voluntários interessados e 
muito vinculados a uma população de classe média politizada e mais consciente da 
necessidade de beneficiar a todos os que precisavam de ajuda.
    A crescente migração de segmentos populacionais deslocados ou tangidos pelo sofrimento 
das guerras e suas conseqüências amedrontadoras, procurando resolver os seus problemas 
básicos de vida, e a troca mais fácil de experiências devido aos meios de comunicação mais 
penetrantes e convincentes, levou a todos os quadrantes do mundo novas tecnologias e 
novos sistemas para análise e tratamento dos problemas sociais.
    Em várias das nações mais civilizadas do mundo ocorreram nesses períodos de pós­guerra 
melhorias consideráveis nos sistemas de bem­estar social, chegando ao seguro social, à 
assistência pública, à promoção social e também, de um modo todo especial, às atividades 
totalmente voltadas para a saúde publica.
    Os avanços cada vez mais acelerados da medicina começaram a surtir efeitos 
surpreendentes, aumentando a expectativa de vida, reduzindo o número de mortes por 
acidentes ou por doenças, diminuindo a taxa de mortalidade e morbidade infantil e quase 
extinguindo as epidemias avassaladoras. Esses resultados não teriam sido viabilizados se, 
por outro lado, os serviços públicos, mais conscientes de seu papel na garantia do bem­estar 
de todos, não tivessem atuado com eficiência na implantação de melhores sistemas de 
tratamento de água, de fiscalização de alimentos, de tratamento de esgotos, de vacinação 
contra males contagiosos e muitos mais. O mundo comercial e industrial muito colaborou 
também para definições mais precisas daquilo que era preocupação de todos, ou seja, a 
garantia de certa dose de qualidade de vida, a fim de dar condições essenciais para o homem 
progredir.
    Profissões voltadas para o atendimento aos problemas de pessoas em dificuldades foram 
surgindo e se fortificando, algumas delas como verdadeiro desdobramento da medicina, 
enquanto que outras, especialmente nos campos da educação, em razão da inegável 
valorização do ser humano. Mas a medicina sem dúvida que antecedeu no atendimento ao 
portador de problemas incapacitantes ou de lesões conseqüentes a doenças graves, chegando 
ao ponto de assegurar a vida aos casos antigamente considerados como fatais, e aumentando 
a expectativa de vida ao homem idoso. O Dr.Bernard Baruch, com carradas de razão já 
afirmara certa vez que "a medicina adicionou alguns anos à vida do homem, e agora depende 
da educação adicionar vida a esses anos"...
    Nesse contexto é interessante ressaltar o delineamento de profissões como a do serviço 
social (que muita gente até hoje chama de "assistência social"), que desde seus primórdios 
tem procurado levar para uma atuação de cunho técnico velhos e superados conceitos muito 
diluídos e por vezes até desacreditados de toda a área correspondente ao bem­estar social ­ 
situação que mesmo ao final do século XX persiste em muitos países do mundo em 
desenvolvimento.
    Vejamos alguns dos pontos mais relevantes dessa evolução toda nos programas de 
assistência às pessoas deficientes, dentro do século XX.

    ­ *O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século*
    Entre os anos de 1902 e 1912, na Europa, mais de 20 instituições destinadas ao exclusivo 
atendimento de pessoas que apresentavam problemas de deficiências físicas já existiam, 
levantando fundos e fazendo campanhas para garantir sua manutenção e para incrementar 
sua causa, em acréscimo às campanhas e aos levantamentos de dinheiro que já vinham 
ocorrendo para causas anteriormente absorvidas pela sociedade, como as de ajuda aos 
pobres, de proteção aos velhos, de assistência à criança desamparada, entre muitas.
    De outra parte, a ajuda a pessoas deficientes ­ não só as provenientes das fileiras militares, 
como das atividades civis ­ começou a se firmar em bases novas, mais modernas. Esse novo 
tipo de ênfase no atendimento, que brotara nos Estados Unidos, causou na Europa um 
movimento bastante dinâmico e coerente, incorporando­se a vários empreendimentos vindos 
do século XIX, ou mesmo dos primeiros anos do século XX. Por exemplo, em 1904 ocorrera 
já a organização da Primeira Conferência sobre Crianças Inválidas, em Londres. No ano de 
1909, seguindo a mesma tendência de dar cada vez maior atenção aos portadores de 
deficiências, um primeiro censo de pessoas deficientes foi levado a efeito na Alemanha, por 
iniciativa de Bielaski, que tentava com isso aquilatar a extensão do problema. No mesmo 
ano, nos Estados Unidos, havia também sido organizada a Primeira Conferência da Casa 
Branca sobre os Cuidados de Crianças Deficientes, que havia aprovado uma resolução 
incentivando programas de preparo das crianças institucionalizadas para sua futura 
integração na sociedade (Apud Agüero).

    ­ *EUA: um primeiro congresso mundial de deficientes auditivos*
    No ano de 1904, na cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, foi organizado um 
primeiro congresso destinado a estudar todos os problemas das pessoas surdas ­ era o 
Congresso Mundial dos Surdos. Nesse conclave, o método oral de comunicação foi 
combatido pelos seguidores do método de comunicação por sinais. No entanto, o chamado 
"oralismo" foi seguido por escolas particulares e por semi­internatos, combinando sua 
técnica com a dos sinais. Foi exatamente por essa época que Helen Keller recebia suas 
primeiras lições de linguagem falada, por meio de professores da Escola de Horace Mann.

    ­ *A gradativa implantação da reabilitação*
    O desenvolvimento de atividades coordenadas que chegariam a ser genericamente 
reconhecidas como "reabilitação" (e não apenas um nome de centro, como o de Cleveland à 
época de sua fundação...), aconteceu lentamente e sua implantação foi um tanto indecisa, 
quase que conseqüente à impotência dos médicos Face à multiplicidade de problemas que 
afetavam diretamente as pessoas mutiladas ou portadoras de outros tipos de deficiências. E 
isso ocorreu logo após a Primeira Guerra Mundial. Já fazendo parte de um programa de 
assistência ampla a pessoas deficientes e que logo se transformaria num esquema de 
reabilitação, o primeiro Estado norte­americano a fazer uma provisão específica para tal fim 
foi o Estado de Minesota que em 1897 já havia feito uma dotação para assistência a 
"crianças defeituosas" e com  necessidade de tratamento médico.
    Mas as primeiras organizações norte­americanas a estudar o problema geral das pessoas 
com deficiências e desse ponto partir para programas destinados à melhoria de sua condição 
física e social foram a Fundação Russel Sage e o Bureau do Deficiente da Sociedade 
Organização de Caridade, da cidade de New York, no ano de 1908.

     ­ *As tentativas iniciais para a solução do problema de trabalho*
    Em 1907 surgia na cidade de Boston a Goodwill Industries, até hoje mundialmente 
famosa. Não se dedicava ao problema geral das pessoas deficientes nem se preocupava com 
problemas de ordem médica ou social que elas pudessem apresentar. Dedicava­se 
intencionalmente aos aspectos de envolvimento da pessoa deficiente em atividades de 
trabalho remunerado  ­  mesmo que separado, isolado das outras empresas, 
institucionalizado ou "protegido", como viria a ser conhecido. Essa organização foi uma 
iniciativa da Igreja Metodista, tornando­se posteriormente dela desvinculada e sem qualquer 
cor religiosa. O plano original era dar às pessoas deficientes sem emprego ou sem qualquer 
rendimento, uma oportunidade de ganhar a vida pelo recondicionamento de roupas, sapatos, 
móveis descartados como velhos e outros artigos, cuidando a Goodwill Industries de vender 
todos esses artigos por preços muito módicos à população mais pobre.
    Focalizando o ângulo de treinamento para o trabalho melhor definido e qualificado, surgiu 
no ano de 1906, no Estado de Pennsylvania, a Widener Memorial Training School for 
Crippled Children, uma das mais importantes do gênero durante muitos anos.

    ­ *Implantação de serviços de naturezas diversas*
    Foi também no ano de 1906 que, na pequena cidade de Kallithéa, na Grécia, surgiu uma 
primeira escola para cegos, baseada na experiência localmente acumulada por pessoas 
interessadas no problema. Essa velha escola é hoje conhecida como Centro de Educação e 
Reabilitação.
    Enquanto isso, nos Estados Unidos, criava­se a Primeira Comissão Estadual para o Cego, 
no Estado de Masachussets, destinada a implementar programas pela primeira vez 
financiados pelo governo federal.
    No campo da assistência a deficientes mentais, os Estados Unidos, a par com muitos 
esforços do continente europeu, haviam também dado passos importantes ao finalizar o 
século XIX e iniciar o século XX, com as iniciativas de Horace Mann e Samuel Howe, 
criando organizações de atendimento a deficientes mentais. Programas equivalentes para 
surdos e também para cegos espalharam­se pelo país todo, e pelo ano de 1914 classes 
especiais com pessoal especificamente preparado existiam nas escolas públicas de 
Baltimore, Detroit, New York e também em Philadelphia.
    Como conseqüência da guerra que eclodira no continente europeu, no ano de 1915, em 
Londres, o Saint Dunstan's Hostel for the War Blinded foi organizado e iniciou seus valiosos 
serviços, atendendo os soldados cegos provenientes dos campos de batalha. Soldados de 
Colônias de toda a Comunidade Britânica também eram atendidos.

    ­ *Os esforços de pós­guerra*
    Após o ano de 1918, apesar de todas as dificuldades econômicas e sociais causadas pela 
guerra que assolara o mundo, com o volume de pessoas mutiladas, acidentadas, deslocadas 
ou refugiadas bem à mostra, os países mais evoluídos aumentaram substancialmente seus 
esforços para a sua ajuda, não só na área militar mas também na civil.
    Impulso dos mais significativos foi dado à reabilitação de pessoas deficientes na 
Inglaterra, assim que terminou a Primeira Guerra Mundial, pois muitos esforços foram 
surgindo para a elas dar todo o atendimento requerido, bem melhor e mais completo do que 
por meio das tentativas anteriormente adotadas. Devido ao quase que contínuo envolvimento 
da Inglaterra em guerras nas mais diversas partes do mundo, os problemas das deficiências 
eram tão generalizadamente conhecidos que muitos esforços isolados existiam, mas que 
requeriam uma certa coordenação. Criou­se então a Comissão Central da Grã­Bretanha para 
o Cuidado do Deficiente.
    Também devido aos seus muitos envolvimentos em guerras, surgiu nos Estados Unidos, 
na cidade de New York, no ano de 1917, uma entidade que desempenharia no futuro da 
reabilitação um dos papéis mais marcantes: a chamada Red Cross Institute for the Crippled 
and Disabled Men, mais tarde redenominada de Institute for the Crippled and Disabled, já 
atendendo a civis. Hoje é conhecida essa organização como
ICD Rehabilitation and Research Center.
    E como não poderia deixar de ser, de muita influência para definição dos programas de 
reabilitação foram os esquemas montados para dar assistência completa a soldados que 
voltavam mutilados de guerras em diversos países do mundo. Exemplo interessante disso foi 
o que sucedeu na França, onde, por lei assinada em 2/1/1918, todo militar ferido na guerra 
ou portador de uma deficiência devido às suas atividades de soldado e que se tornasse 
incapacitado para o trabalho civil ou militar, tinha o direito de inscrever­se gratuitamente 
numa escola profissionalizante, tendo em vista a necessidade de sua readaptação para o 
trabalho e sua colocação no mercado competitivo. A prioridade para obtenção de empregos 
na área civil, de cuidados médicos, de aparelhos ortopédicos e de cadeiras de rodas gratuitas, 
fazia e faz até hoje parte desse direito. Uma lei de 30 de janeiro de 1923 deu aos mutilados 
de guerra e também às conhecidas como viúvas de guerra, direito de preferência para certas 
funções no Estado, funções essas que, se fossem ocupadas, não poderiam ser extintas pelo 
Governo.
    
    ­ *Surge a "Easter Seal Society"*
    Enquanto essas necessidades começavam a ser cobertas em vários países, era criada nos 
Estados Unidos uma associação já de caráter nacional que, graças à cooperação de diversas 
outras organizações, passaria a ser de importância fundamental no desenvolvimento de uma 
reabilitação muito mais técnica, precisa e objetiva, ou seja, a Associação Nacional para 
Crianças e Adultos Deficientes ­ muito mais conhecida como a "Easter Seal Society". Essa 
entidade de caráter nacional, que foi criada em 1919, existe até os dias de hoje e tem um 
relevante papel na manutenção de programas os mais variados. 
    ­ *O Código de Direito Canônico e os bloqueios a homens deficientes*
    O Código de Direito Canônico continuou mantendo seus bloqueios a candidatos ao 
sacerdócio católico que apresentassem defeitos. O Capítulo Segundo do Código versa sobre 
as chamadas Irregularidades em Particular e analisa em pormenores o assunto. Seu Artigo 
Primeiro fala sobre as Irregularidades por Defeito e indica que existem oito espécies de 
defeito que podem tornar um candidato impedido de chegar até o sacerdócio:
    1º ­ Por defeito de espírito
    2º ­ Por defeito de corpo
    3º ­ Por defeito dos pais
    4º ­ Por defeito de idade
    5º ­ Por defeito de liberdade
    6º­ Por defeito de sacramento
    7 º ­ Por defeito de mansidão
    8º ­ Por defeito de fama.

    Vamos nos limitar, todavia, a uma pequena análise dos chamados "defeitos corporais" e 
seu relacionamento à irregularidade ou impedimento canônico que torne ilícita a recepção do 
sacramento da Ordem, de um modo direto, ou o exercício das funções sacerdotais, de um 
modo indireto. Segundo a disciplina da Igreja Católica, a irregularidade não é um castigo, 
mas um dos meios encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do estado 
sacerdotal e para a exclusão daqueles que não tem capacidade ou aptidão para o mesmo. 
Enquanto a irregularidade é permanente, o impedimento é transitório.
    Dentro dos regulamentos e normas vigentes na Igreja, são considerados como irregulares, 
além dos casos citados mais acima, os "corporalmente defeituosos que por fraqueza não 
podem exercer as funções do altar com segurança ou que por deformidade não o puderem 
fazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de legitimamente ordenado, só pode 
ser impedido no exercício de suas funções se o defeito for
notável. Não se proíbem, porém, atos que, apesar dos defeitos, puderem ser exercidos 
convenientemente" ("Compêndio de Moral Católica", de Jone­Fox).
    Os mesmos autores enumeram com exemplos pormenorizados os defeitos que tornam um 
candidato ao sacerdócio "irregular", da mesma forma que o faz o Padre João Pedro Gury em 
sua memorável obra "Compêndio de Teologia Moral", ao analisar o Código de Direito 
Canônico e jurisprudência encontrada. Segundo eles, são "irregulares" aqueles que não têm 
um dedo polegar ou um indicador, ou ambos; que usam uma perna mecânica ou que estão 
impossibilitados de usar as mãos; aqueles que tremem tanto que poderiam "derramar o 
preciosíssimo Sangue"; os cegos ou que tenham deficiência visual tão grave que não 
conseguem ler o conteúdo do missal; os casos de surdez que não consigam ouvir a voz do 
ajudante de um ato litúrgico; os que gaguejam de tal maneira que provoquem riso e 
desprezo; os que são vítimas de paralisias ou deformações que causem o andar típico de um 
"coxo", e que não conseguem ficar no altar sem bengala ou muleta; os que estão 
desfigurados por mutilações ou por outra causa (por agenesias de qualquer natureza ou por 
defeitos causados por males degenerativos); os que têm corcunda muito grande que 
provoque riso ou que os impeça de se colocar em posição ereta.
    As normas relacionadas a defeitos corporais entram em pormenores quanto a problemas 
de visão. Assim, a falta da vista esquerda não caracteriza casos de irregularidade, se o 
defeito for disfarçado por uma prótese ocular. O olho esquerdo, considerado como o Olho do 
Canon, é necessário para o sacerdote ler o Canon da Missa; se o sacerdote conseguir fazê­lo 
sem maiores problemas, a irregularidade poderá ser dispensada. Quem se torna surdo 
"depois da recepção das ordens", não fica proibido de celebrar os atos litúrgicos.
    Ainda para casos de ocorrência de uma deficiência após a ordenação as normas são 
bastante condescendentes. Vejamos alguns casos:
    ­ Quem estiver quase cego, segundo Jone­Fox, poderá obter do Papa dispensa para 
celebrar a chamada missa "de Beata", ou a missa cotidiana dos defuntos. Se um sacerdote 
ficar completamente cego, só poderá rezar a missa com a assistência de outro sacerdote.
    ­ O sacerdote que não consegue ficar de pé junto ao altar, ou que puder assim permanecer 
apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderá celebrar missa privadamente e 
nunca em público. Isso também é verdadeiro para o sacerdote que sofrer de hanseníase ou 
doença grave.
    ­ Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorre também a irregularidade, dependendo do 
bispo local ou das autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de suas 
funções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob controle. 
    É evidente que existe nesses regulamentos da Igreja Católica grande preocupação pela 
aparência física de seus ministros, mas muito mais do que isso, o firme propósito de não 
levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos.
    Em diversas cerimônias litúrgicas da Igreja Católica é fundamental no sacerdote poder 
ajoelhar­se e levantar­se diversas vezes, em atos de adoração; é básico também que tenha a 
mão direita para distribuir a comunhão ou para dar a bênção. (* Quando em meus dez ou 
doze anos fui "coroinha" de um sacerdote que pessoalmente considero um mártir do câncer: 
Pe. Luiz Alves de Siqueira. Lembro­me perfeitamente bem quando chegou de volta a 
paróquia sem o braço esquerdo, amputado por um tumor maligno. Celebrava
missa, desenvolvia todos os atos requeridos ­ e fora disso tudo, ainda guiava automóvel por 
algumas ruas do bairro. Colocado o braço artificial, continuou da mesma forma atuante, 
usando o braço mecânico para segurar o cibório na distribuição da comunhão a seus 
paroquianos...)

    ­ *Reconhecimento das verdadeiras necessidades das pessoas deficientes*
    Uma centena de leis que reconheciam os direitos e favoreciam às crianças portadoras de 
deficiências surgiu em diversos países, e de um modo todo especial nos Estados Unidos da 
América do Norte, durante os primeiros trinta anos deste século. A maioria dessas leis 
referia­se a cuidados médicos e a programas educacionais.
    Graças a programas parecidos desenvolvidos nos Estados de New York e de Ohio, e 
iniciados no ano de 1917 com a colaboração de comissões locais com a ajuda dos governos 
estaduais, houve progressos bastante significativos no cuidado à pessoa deficiente porque 
mostraram que a solução de seus problemas não dependia apenas de providências na área 
médica nem de esquemas educacionais mantidos em hospitais, asilos ou instituições de 
diversas naturezas. Ficou muito claro que o que era necessário compreender era que tanto 
crianças quanto adultos com deficiências necessitavam não só dos cuidados que instituições 
especiais pudessem lhes prover, mas também de atenção pessoal, de carinho, de 
relacionamento familiar e de um ambiente que possibilitasse alguma participação na vida 
comunitária, como qualquer outra pessoa.
    
    ­ *A previdência social e os acidentes de trabalho*
    As primeiras leis de compensação a trabalhadores que se acidentavam nas atividades 
industriais aconteceram a partir do ano de 1911 nos Estados Unidos, seguindo um exemplo 
de legislação que vinha sendo promulgada na Europa, desde o final do século XIX. Na 
verdade essa legislação acabou significando um passo à frente na fixação da 
responsabilidade que o governo deve assumir face ao problema de deficientes provenientes 
da indústria.
    Ao se findar a Primeira Guerra Mundial, a legislação de aposentadoria ou de 
compensação financeira para os acidentados no trabalho civil foi sendo introduzida com 
mais regularidade e foi se tornando cada vez mais comum no mundo ocidental. Acabou por 
se transformar em um dos mais sérios fatores que chegaram a levar muitas nações a aprovar 
extensos programas de volta das pessoas aposentadas à vida de trabalho, o que de fato 
acabou se definindo como programa de reabilitação profissional. E nesse movimento todo, a 
experiência acumulada por centenas de empreendimentos de assistência financeira, de abrigo 
ou de compensação por danos sofridos pelos soldados nas fronteiras em litígio aberto ou nos 
conflitos armados, foi de alto significado. Benefícios acarretados aos trabalhadores foram, 
de início, muito bem recebidos, mas esses programas provaram logo não ser muito 
eficientes, especialmente quando mantidos por companhias de seguro e outras organizações 
privadas, e em muitos casos, mesmo pelo sistema oficial de seguro social.
    O atendimento às vezes não era nem completo nem adequado, ou apresentava­se como de 
caráter paliativo e muito superficial, vendo­se as pessoas forçadas a comparecer às 
atividades programadas para poder receber os proventos a que tinham direito.
    Esses programas iniciais limitavam­se aos acidentados no trabalho, como hoje está 
ocorrendo com órgãos ligados ao nosso sistema nacional de previdência social e vários de 
seus programas, ressaltando­se o programa de reabilitação profissional mantido pelo 
Instituto Nacional da Previdência Social. As pessoas que, já na década de vinte, eram 
vítimas de acidentes domésticos, de trânsito e de outras naturezas, ou eram atingidas por 
alguma enfermidade grave ou malformação congênita, não podiam ser atendidas em sua 
reabilitação ­ como acontece na década de oitenta em nosso Brasil.
    
    ­ *A reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército*
    O ano de 1918 foi aquele que viu aprovada a lei conhecida nos Estados Unidos da 
América do Norte como Vocational Rehabilitation Act. Essa lei dava condições de 
reabilitação para o trabalho a veteranos portadores de deficiências, vindos quer das fileiras 
da Marinha, quer do Exército. Em 1920 o chamado Fessenyon Civilian Vocational 
Rehabilitation Act autorizou o atendimento de civis com deficiências físicas. Esta legislação 
procurou enfatizar soluções de trabalho e descuidou­se excessivamente dos aspectos de 
recuperação ou de restauração física, como parte do programa. No entanto, foi uma grande 
colaboração aos programas de reabilitação, pois abriu uma grande avenida para a 
compreensão da problemática global das pessoas deficientes e reconhecimento da 
necessidade de se implantar programas mais abrangentes.
    
    ­ *A retração dos anos trinta e as pessoas deficientes nos EUA*
    A década de trinta constituiu­se num período dos mais obscuros para pessoas deficientes, 
devido especialmente à retração econômica que varreu o país norte­americano. Todos os 
progressos até então feitos para empregar adequadamente as pessoas deficientes acabaram 
caindo a quase zero. A enorme avalanche de desempregados que não tinham qualquer 
deficiência, cujas necessidades de emprego pareciam à primeira vista mais urgentes do que 
aquelas das pessoas deficientes que sempre haviam sido consideradas como objeto de 
caridade e comiseração e não tanto como potencial humano sério a ser considerado para o 
mercado de trabalho fez com que o valor de seu trabalho fosse subestimado.
    Apesar da depressão econômica, muito se aprendeu quanto ao atendimento social das 
pessoas deficientes através de serviço social bem orientado. Mas a herança deixada pelo 
colapso econômico norte­americano foi muito amarga, e uma dessas heranças foi a criação 
das chamadas agências de bem­estar social, nas quais havia atendimento individualizado, 
com aconselhamento para o trabalho, orientação para treinamento profissionalizante, 
serviços globais de saúde, assistência psicológica e por vezes psiquiátrica, conforme o caso.
    
    ­ *A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação*
    Quando a Segunda Guerra Mundial foi deflagrada, o problema dos soldados vítimas de 
deficiências causadas pela guerra atraiu novamente a atenção do mundo. Mas a situação era 
bem diferente daquela deixada pela Primeira Guerra Mundial, pois logo ao terminar o 
segundo conflito, já existiam serviços de reabilitação tanto para civis como para militares. 
Para atender a esses problemas de deficiências, funcionavam agências que já haviam 
trabalhado por anos a fio com esse assunto. O que contribuiu grandemente para obter 
melhores condições para o desenvolvimento de reabilitação mais completa, nos EUA, foi a 
presença de Franklyn Delano Roosevelt, um paraplégico por poliomielite, na Presidência do 
país, eleito em 1932. Ficou evidente que uma pessoa deficiente poderia realizar 
perfeitamente bem até uma função de natureza executiva de alto nível, sustentando sua 
própria vida através de um emprego remunerado.
    Durante a Guerra, graças à escassez de braços e à premência de desenvolver os esforços 
de guerra, tanto as mulheres quanto os portadores de deficiências foram aproveitados aos 
milhares nas indústrias, nas vagas daqueles que haviam sido incorporados às forças armadas.
    Um dos grandes resultados da atuação de profissionais que cuidavam dos problemas de 
deficiências foi o avanço incontestável da Medicina Física e da Terapia Ocupacional. Além 
disso, foi sendo reforçada a impressão que havia de que a pessoa deficiente não precisa nem 
ser carga pública nem dependente; que a pessoa deficiente pode ser útil, contribuinte à 
economia geral de um país, participante na formação da riqueza nacional.
    Dessa época de anos difíceis do pós­guerra é que foram se definindo preocupações cada 
vez mais marcantes como o ajustamento psico­social das pessoas portadoras de deficiências.
    
    ­ *A criação de sociedades internacionais privadas*
    Quase sempre serviços de assistência a grupos minoritários são organizados e 
desenvolvidos por entidades da área privada. Cada esforço novo tem sido sempre inspirado 
em sucessos de esforços semelhantes ocorridos em países ou cidades vizinhas. Essa 
tendência é encontradiça em reabilitação e em esquemas de assistência a pessoas deficientes 
em todas as partes do mundo.
    Estudiosos do assunto "reabilitação" acabaram provocando no início do século o 
intercâmbio de informações e de sugestões entre todos os que se interessavam pelo 
problema, estabelecendo uma espécie de organização internacional de caráter informal. No 
entanto, havia claramente a necessidade de existir organizações do tipo não­governamental, 
mas de caráter internacional, voltadas para toda essa imensa problemática legada pela 
Primeira Guerra Mundial.
    A mais antiga dessas sociedades internacionais surgiu na Escandinávia, no início do 
século. Foi a Sociedade Escandinava de Ajuda a Deficientes congregando entidades que 
atendiam pessoas deficientes na Suécia, Noruega e Dinamarca, desde o século XIX.
    A sociedade internacional que hoje é conhecida mundialmente como a Rehabilitation 
International surgiu como uma das primeiras e mais importantes organizações voluntárias 
interessadas no ângulo internacional do problema, com o objetivo principal de manter 
contato com o progresso mundial na ajuda a pessoas deficientes. Ela foi fundada em 1922 
com o nome inicial de Sociedade Internacional para a Criança
Deficiente, graças a alguns interessados pertencentes ao Rotary International que, ao 
observar movimentos semelhantes aos que eram organizados nos EUA para crianças 
deficientes, compararam­nos a outros movimentos em outras partes do mundo. O Rotary 
International acabou patrocinando a idéia de formar uma federação para coordenar e 
estimular atividades destinadas a pessoas deficientes.
    O primeiro Congresso Mundial dessa sociedade internacional que já adotara o nome de 
Sociedade Internacional para o Bem­Estar dos Aleijados (International Society for the 
Welfare of the Cripples) foi na cidade de Genebra, na Suíça, no ano de 1929, graças a 
interessados no problema que participavam de uma reunião do Rotary International.
    Existem versões diferentes para a criação da Sociedade Internacional para o Bem­Estar 
dos Aleijados. Segundo uma delas, no ano de 1919, na cidade de Elyria (Estado de Ohio  ­  
EUA), foi fundada a International Society for Crippled Children, mas no ano de 1922 ela foi 
dividida em duas outras organizações internacionais, ou seja, a "Easter Seal Society for 
Domestic Action" e a "International Society
for the Welfare of Cripples".
    Tendo seu nome sido alterado para "International Society for Rehabilitation of the 
Disabled", na década de cinqüenta, ela é hoje conhecida como "Rehabilitation International", 
conta com 115 organizações do mundo todo a ela filiadas, incluindo nisso 64 países de todos 
os continentes.
    Evidentemente que existem hoje diversas organizações conhecidas como "não­
governamentais", que têm características internacionais, que se dedicam aos problemas de 
pessoas deficientes. Dentre elas cumpre destacar as seguintes:
     ­  Federação Mundial dos Veteranos
     ­ Sociedade Internacional de Medicina Física
    ­ Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais
    ­ Confederação Mundial de Fisioterapia
    ­ Conselho Mundial para o Bem­Estar dos Cegos

    Todo o esforço de muitas das organizações não­governamentais é atualmente coordenado 
pela Conferência de Organizações Mundiais, Interessadas na Pessoa Deficiente.

    ­ *O envolvimento das organizações inter­governamentais*
    Desde o final da segunda guerra que assolou o mundo no século XX, ou seja, desde o ano 
de 1945, expandira­se muito a compreensão daquilo que vinha insistentemente sendo 
chamado de "reabilitação". E com essa compreensão, muitas sociedades caminhavam para a 
plena conscientização quanto à sua necessidade, havendo muito pouca gente que duvidava 
que problemas sérios das pessoas deficientes só poderiam ser cobertos com sua aplicação. 
Programas muito mais amplos precisavam ser garantidos para dar assistência não só aos 
deficientes do aparelho locomotor, mas também que apresentavam dificuldades sensoriais e 
mentais.
    Um dos fatores mais significativos na divulgação dessa nova técnica de trabalho foi, sem 
dúvida, o envolvimento das organizações internacionais de caráter inter­governamental, 
comandadas pela Organização das Nações Unidas, incluindo nessa verdadeira família de 
organizações o Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), a 
Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial de Saúde (OMS), a 
Organização das Nações Unidas para Refugiados e a Organização das Nações Unidas para 
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). O verdadeiro envolvimento dessas organizações 
internacionais iniciara­se mesmo antes da própria criação da ONU, quando o organismo de 
congregação das nações do mundo era ainda a Liga das Nações, com sua sede em Genebra.
    Um exemplo desse envolvimento está no documento intitulado"Report on the Welfare of 
the Blind in Various Countries" (Relatório a respeito do Bem­Estar dos Cegos em Vários 
Países), datado de 1929 e publicado sob a responsabilidade da Liga das Nações. Esse 
documento apresentou um resumo analítico da evolução dos serviços de proteção e de 
assistência aos cegos, na Europa e na América do Norte.
    No entanto, um passo decisivo para um maior envolvimento da ONU e de suas Agências 
Especializadas ocorreu quando, no mês de dezembro de 1946, sua Assembléia Geral adotou 
uma resolução que estabelecia o primeiro passo para um programa de consultoria em 
diversas áreas do bem­estar social, nele incluindo a reabilitação das pessoas deficientes, 
como uma das principais áreas com possibilidades de captar recursos financeiros para 
assistência técnica a ser colocada à disposição dos países sub­desenvolvidos e interessados 
no assunto. Foi montado o Bureau of Social Affairs, dentro do Secretariado da ONU, que 
iniciou seu funcionamento quando a ONU ainda trabalhava em Lake Sucess, nos arredores 
de New York. Dentro da estrutura do Bureau foi inserida uma Unidade de Reabilitação de 
Pessoas Deficientes.
    Enquanto isso começava a acontecer a nível da nova Organização das Nações Unidas, os 
programas da já antiga Organização Internacional do Trabalho continuavam, pois já haviam 
sido montados há alguns anos. Logo envolveram­se as outras organizações e devido ao 
volume surpreendente de atividades e ao estabelecimento de áreas específicas de atuação 
para cada uma delas, gradativamente surgiu a necessidade de um sistema de coordenação 
internacional, envolvendo não só as organizações inter­governamentais, mas também as 
organizações mundiais de caráter não­governamental que iam proliferando em diversos 
campos.
    Durante o Seminário Internacional sobre Administração de Programas e de Centros de 
Reabilitação nos Países em Desenvolvimento, organizado pela ONU e pelo Governo da 
Dinamarca, em Copenhague, de 18 de julho a 5 de agosto de 1966, e do qual participamos 
como Secretário­Técnico, tivemos oportunidade de analisar a questão da coordenação em 
um painel de especialistas, sendo nossa missão apresentar pontos relevantes que justificavam 
a necessidade de coordenação a nível internacional. Fizemo­lo em nome da Unidade de 
Reabilitação de Pessoas Deficientes do Bureau de Assuntos Sociais, da qual éramos 
funcionário técnico. O trabalho escrito, apresentado na ocasião, aplicável quase que "in 
totum" à realidade de hoje, é relevante no contexto deste capítulo, face à importância que a 
ONU e suas Agências Especializadas têm tido no desenvolvimento da reabilitação no mundo 
de hoje. Alguns trechos parecem­nos relevantes:
    ... "A prevenção das deficiências e a reabilitação de pessoas deficientes são problemas nos 
quais a ONU e um certo número de Agências Especializadas têm demonstrado grande 
interesse muito antes de 1950. Nesse ano, tendo em mira obter uma atuação bem coordenada 
nesse campo, o Conselho Econômico e Social da ONU solicitou ao Secretário­Geral para 
planejar “inter­alia”, juntamente com as Agências Especializadas e em consultoria com as 
organizações não­governamentais interessadas, um bem coordenado programa internacional 
para a reabilitação das pessoas fisicamente deficientes. Planos para esse programa foram 
inicialmente discutidos por um grupo técnico de trabalho composto de especialistas 
indicados pela ONU, pela Organização Internacional do Trabalho, pela UNESCO, pela 
Organização Mundial de Saúde, pela Organização Internacional dos Refugiados e pelo 
Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças. O grupo reuniu­se em Lake 
Success e em Genebra, e o novo programa internacional, dinâmico em sua forma e baseado 
em princípios sólidos, começou a existir."
    Coordenação prática dessas atividades ­ o tópico principal das primeiras reuniões ­ 
continuou a constituir­se no foco de discussão através dos anos. Em tese parecia haver uma 
clara divisão de responsabilidades, mas na prática havia diversas áreas nas quais a 
sobreposição de responsabilidades persistia. Os problemas colocados por essas áreas 
"cinzas", poderiam ser resolvidos apenas por meio de uma eficiente coordenação que, em 
contrapartida, dependeria de uma precisa definição de responsabilidades. Depois de muita 
discussão, planejamento e revisão, a seguinte alocação de responsabilidades foi aceita:
    a) A Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes das Nações Unidas ficou 
encarregada de aspectos de Planejamento, Administração, Legislação, Aspectos Sociais, 
Aspectos Psicológicos e Próteses. Além disso, a Unidade de Reabilitação ficou responsável 
por manter um controle sobre todas as providências tomadas com relação a projetos práticos, 
e por garantir, tanto quanto possível, que as Agências Especializadas se mantivessem em dia 
e estivessem perfeitamente informadas das atividades umas das outras.
    
    b) A responsabilidade da Organização Internacional do Trabalho cobria todos os aspectos 
profissionais da reabilitação, tais como treinamento de re­condicionamento, de avaliação e 
de atividades pré­profissionais (como eram conhecidas àquela época); emprego protegido e 
organização de oficinas protegidas; medidas especiais para garantia de emprego para a 
pessoa deficiente; e centros de reabilitação industrial. Deve­se notar aqui que os princípios 
gerais da reabilitação profissional sempre estiveram baseados na Recomendação nº 99 da 
OIT, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho, em junho de 1955.

    c) A competência técnica da UNESCO no campo da reabilitação cobre o que é conhecido 
por todos nós como educação especial. A UNESCO inclui, nesse sentido, alguns programas 
para cegos, para surdos e em geral para os deficientes físicos e mentais. Uma Resolução 
sobre educação especial foi adotada pela Conferência da UNESCO de 1964, e espera­se que 
atividades de assistência técnica dessa Agência Especializada, em educação especial, 
aumente durante os anos futuros.

    d) A responsabilidade da Organização Mundial de Saúde em geral é promover a saúde de 
todas as pessoas. Quanto a atividades de reabilitação, seu papel é prevenir, sempre que 
possível, males incapacitantes, e desenvolver programas em cirurgia ortopédica e protética; 
em medicina física; em fisioterapia; em enfermagem especializada; em próteses e órteses na 
prática médica.

    e) O papel do UNICEF em reabilitação, bem como em outros campos de assistência, é 
prover equipamento e transporte. O UNICEF normalmente coordena seus próprios planos 
com os planos da ONU e de suas Agências Especializadas e somente dá assistência a 
projetos que tenham a aprovação técnica da relevante Agência das Nações Unidas". (Isto era 
verdade à época em que o documento foi apresentado e discutido ­ hoje em dia o UNICEF 
mantém seus próprios programas e suas próprias consultorias, contratando eventualmente a 
assessoria de especialistas mundialmente renomados ou de organizações não­
governamentais especializadas).

    O trabalho em pauta, que foi devidamente liberado pela ONU antes de sua apresentação 
quanto ao seu conteúdo e análise das atuações das Agências citadas em seu corpo, continua, 
estudando os fatores comuns encontradiços em seu trabalho, e que caracterizavam as 
organizações inter­governamentais. Só para informação do leitor, esses pontos comuns eram 
os seguintes:
    a) todas as organizações internacionais de caráter inter­governamental, inseridas na 
família de Agências das Nações Unidas, estavam e estão preparadas para prestar assistência 
técnica, mas apenas quando fossem apresentadas solicitações pelos governos;
    b) essa assistência técnica tanto poderia ser dirigida a órgãos ou programas oficiais, 
quanto àqueles da área privada;
    c) todas elas praticamente prestam serviços de consultoria de técnicos especializados ou 
provêm bolsas de estudos para o treinamento de pessoal local, sendo que uma boa parte 
delas ainda prepara literatura básica (monografias, estudos, pesquisas e outras publicações);
    d) elas organizam seminários inter­regionais ou internacionais, cursos intensivos e viagens 
de estudos, conforme programação aprovada com antecipação e notificação aos governos;
    e) elas de um modo geral procuram envolver outras agências internacionais nos 
programas desenvolvidos em determinado país.

    Para obter a almejada coordenação, até hoje cabe à ONU uma série de providências 
práticas, tais como a organização periódica de Reuniões Inter­Agências, a freqüente troca de 
informações e também as publicações conhecidas como "Summary of Information on 
Projects and Activities in the Field of Rehabilitation of the Disabled Throughout the World" 
(Sumário de Informações sobre Projetos e Atividades no Campo da Reabilitação do 
Deficiente através do Mundo). Pessoalmente vivenciamos não só a preparação dessas 
publicações mas também seu significado para as organizações Inter­Governamentais e as 
Não­ Governamentais envolvidas, uma vez que foi nossa responsabilidade direta sua 
elaboração do volume V (relacionado a atividades de 1963) até o volume IX (sobre 
atividades de 1967), correspondendo exatamente aos cinco anos de trabalho nosso na 
Unidade de Reabilitação das Pessoas Deficientes da O N U, em New York.
    O chamado "programa internacional coordenado" que havia sido recomendado pela 
Assembléia Geral da ONU ao seu Secretário­Geral, sempre foi levado a efeito por meio de 
um trabalho burocrático silencioso e persistente (e por que não o dizer, paciente) do qual 
percebíamos os resultados por vezes promissores, por vezes extremamente desoladores. 
Personalidades envolvidas dificultavam muitas vezes o andamento usual de processos; 
atitudes de ciúme de antigos funcionários internacionais barravam o dinamismo de pessoal 
mais novo; surgiam pruridos por "avanços" milimétricos nas conhecidas e muito disputadas 
"áreas cinzentas"; ocorriam bloqueios velados a projetos ­ mesmo que de boa qualidade ­ 
elaborados por alguma cabeça de origem "ocidental" quando a cabeça "oriental" estava no 
poder, e vice­versa ... e tantos problemas mais! Olhando daquele prisma que costumávamos 
olhar (ou seja, de dentro da ONU para fora), considerávamos um verdadeiro prodígio 
ninguém de fora perceber o drama que significava lutar sob a égide da bandeira azul e 
branca da ONU, na qualidade de funcionário público internacional, procurando dar ao barco 
de tantas velas desencontradas um rumo que era de fato esperado por todos os que se 
envolviam em reabilitação. Foram anos muito difíceis, e no trabalho que citamos há um 
desabafo velado nas entrelinhas, nos dois últimos parágrafos que dizem o seguinte:
    "Por todos esses meios e outros que podem surgir no correr do tempo, e também por meio 
da experiência acumulada, espera­se continuamente que a plena coordenação torna­se­á útil 
na manutenção de um programa internacional de reabilitação para todos os tipos de pessoas 
deficientes, com a eliminação de toda a duplicação desnecessária, sobreposições ou 
antagonismos, que normalmente surgem devido à ignorância quanto às atribuições e às 
atividades dos outros".
    "Certamente que muitos anos deverão passar antes que tal programa – e outros que 
possam ser organizados no futuro ­ traga completo alivio para a pessoa deficiente no mundo 
todo. Cada ano esperamos ver grandes progressos na direção de nosso objetivo último em 
reabilitação, de um plano claro e objetivo que possa ser seguido desde agora".
    Muita gente que se diz conhecedora da Organização das Nações Unidas faz dela a idéia de 
um órgão político, no qual se ressaltam dois constantemente citados setores: a Assembléia 
Geral e o Conselho de Segurança. No entanto, a ONU mantém, através de seu Executivo, 
que é o Secretariado (funciona no prédio que todos conhecem, localizado em New York, às 
margens do East River, e que é todo envidraçado em todos os seus 38 andares) uma incrível 
programação em contínua expansão, que levou a uma descentralização inicial, dentro da 
própria cidade de New York. Toda a área de Desenvolvimento Social, Defesa Social, 
Reabilitação da Pessoa Deficiente e outras, foi transferida para alguns andares do Chrysler 
Building. Anos após, num audacioso momento de decisão do Secretário Geral Kurt 
Waldheim, esses assuntos todos passaram para o Centre for Social Development and 
Humanitarian Affairs (Centro para Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários), em 
Viena, na Áustria, onde se localiza hoje.
    Muitos, dessa forma, não tem a mínima idéia do montante de atividades que são 
programadas e desenvolvidas para o benefício da humanidade que vive nos países em 
desenvolvimento.
    Gostaríamos de documentar a pujança das programações e o seu inquestionável alcance, 
no campo da reabilitação apenas, durante um curto período de tempo, já pertencente ao 
passado, mas muito ilustrativo. Responsabilizamo­nos pessoalmente pela informação, pois 
delas participamos num trabalho diuturno.
    Período de 1964 a 1966 apenas:
    *Técnicos* ­ Vinte e oito técnicos em reabilitação em diversos aspectos foram enviados 
pelas Nações
Unidas para missões em vinte e dois países em desenvolvimento. A grande maioria dessas 
missões internacionais foram de curta duração e destinadas a pesquisas iniciais para que o 
governo pudesse tomar uma posição face à problemática das pessoas deficientes. No 
entanto, algumas dessas missões, especialmente nos campos de fisioterapia e de próteses, 
duraram mais de um ano.
    *Bolsas de treinamento* ­ A ONU concedeu 45 bolsas de treinamento para estudos de 
diferentes aspectos de reabilitação. Os bolsistas eram oriundos de 17 países e tiveram uma 
duração entre 3 e 14 meses seus respectivos treinamentos. Foram também concedidas 96 
bolsas de treinamento para a participação de profissionais de alto nível em seminários 
internacionais ou viagem de estudo, organizados pela ONU ou contando com sua 
colaboração, no campo da reabilitação. Com essas bolsas de curta duração, 45 países em 
desenvolvimento foram beneficiados.
    *Seminários internacionais* ­ 
    a) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Próteses para Pessoas Deficientes ­ 
Este Seminário foi organizado pelas Nações Unidas com a cooperação da Sociedade e Lar 
para Aleijados na Dinamarca (Society and Home for Cripples in Denmark) e do Comitê 
Internacional de Próteses e Órteses da Sociedade Internacional para Reabilitação do 
Deficiente (hoje Rehabilitation International). Foi realizado em Copenhague, de 5 de julho a 
15 de agosto de 1964 (um curso intensivo, portanto), com a presença de 32 participantes de 
26 países em desenvolvimento na América Latina, África, Ásia, Oriente Médio e Europa. Os 
participantes foram selecionados entre candidatos designados pelos governos e, em sua 
grande maioria, eram diretores ou gerentes de importantes oficinas de próteses em seus 
países. Do Brasil tivemos dois participantes de São Paulo, ligados a projeto do Centro de 
Demonstração a que nos referimos um pouco mais adiante, neste mesmo capítulo. 
Participamos na qualidade de Diretor, em nome das Nações Unidas.
    Durante este Seminário ­ organizado como um curso intensivo e com firmes propósitos de 
elevar os conhecimentos dos participantes ­ foram dados certificados de sua conclusão 
apenas para aqueles que tivessem passado nos exames finais. Ao encerrar­se o Seminário, 
diversas recomendações foram aprovadas. E a mais relevante foi, sem dúvida, aquela que 
indicava a necessidade de se organizar outro Seminário da ONU para o estabelecimento de 
padrões mínimos para treinamento de pessoal. A recomendação foi aprovada logo em 
seguida pela Comissão Social do Conselho Econômico e Social da ONU, e incluída no 
programa de trabalho da Unidade de Reabilitação para 1968.

    b) Viagem de Estudos das Nações Unidas para Recursos de Reabilitação na Polônia e na 
Rússia, organizada pela ONU em estreita colaboração com os países visitados. Foi realizada 
em setembro de 1965, com 34 participantes de 24 países em desenvolvimento, incluindo 
pessoal de alto nível em seus respectivos países, mas envolvidos em reabilitação. Tiveram 
oportunidades de observar as várias modalidades de programas para resolver os problemas 
dos deficientes, todos eles baseados em vastos programas de seguro social. Enquanto a 
viagem era realizada, permanecemos em New York na direção da Unidade de Reabilitação. 
Brasil com dois participantes.

    c) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Administração de programas e de 
importantes Serviços de Reabilitação em Países em Desenvolvimento. Foi realizado em 
Copenhague, sob a égide da ONU, com o patrocínio do Governo da Dinamarca, de 18 de 
julho a 5 de agosto de 1966. Foram 31 participantes de 26 países em desenvolvimento, tendo 
o Brasil participado com dois profissionais, sendo um da Coordenação da Reabilitação 
Profissional do INPS e o outro, o Diretor de um Centro de Reabilitação da Bahia. Também 
na forma de um curso intensivo, foi um Seminário bem agradável aos participantes, pois 
incluiu viagem a várias cidades dinamarquesas e à bonita cidade de Oslo, na Noruega, mas 
com  compromissos de aulas e conferências em todas elas. Os assuntos tratados cobriram 
aspectos médicos, sociais, psicológicos e profissionais da reabilitação e suas tendências mais 
atualizadas. Participamos deste Seminário na qualidade de Secretário Técnico, em nome da 
ONU.

    É evidente que muitos outros Seminários Internacionais, cursos ou viagens de estudos ­ 
empreendimentos que envolvem grupos ­ foram patrocinados ou organizados tanto pela 
ONU quanto pelas agências de sua família organizacional, no campo da reabilitação, com 
resultados que só poderão ser dimensionados com o tempo. Se formos analisar os resultados 
dos Seminários aqui indicados, com informações eventuais que temos recebido, poderemos 
afirmar sem susto que para 50% dos participantes eles devem ter significado apenas uma 
viagem às custas das Nações Unidas e seu Programa Ampliado de Assistência Técnica, de 
um país sub­desenvolvidos para os extraordinariamente belos países escandinavos. 
Aprenderam muita coisa, é óbvio, pois a freqüência às atividades dos mesmos era 
obrigatória e eventuais distrações ou atividades sociais ocorriam apenas aos sábados ou 
domingos. Esses Seminários caracterizavam­se por atividades muito bem programadas pela 
manhã e à tarde ­ e às vezes à noite. E o local de concentração, conferências, trabalhos em 
grupo, refeições e alojamento para dormir não era perto de Copenhague. Mas sempre era a 
Dinamarca, a Suécia, a Noruega e aquele povo por vezes indiferente, por vezes formal, por 
vezes gentil e correto, mas quase sempre bem diferente das realidades encontradiças nos 
países africanos, asiáticos ou latino­americanos ... Para esses 50% certamente que os 
melhores momentos estiveram ligados a recordações que nada têm a ver com os Seminários 
em si: Tivoli, "smorebrods", gramados e jardins floridos, a sereiazinha triste, restaurantes, 
bicicletas, bandeiras, muita gente loira, uma língua impossível, planuras imensas com 
plantações de cereais quase sem fim, nenhum rio, nenhuma montanha, ferryboats e as 
gaivotas em seu encalço, palácios reais, museus ­ enfim, a Dinamarca propriamente dita.
    Mas houve o restante dos participantes ­ os 50%, que devem ter aproveitado e muito, 
ouvindo, discutindo, estudando, escrevendo. E para esses o programa de reabilitação deve 
ter aproveitado muito. Saldo positivo deve haver, sem a menor sombra de dúvida!
    O que nos fica muito patente é que assegurar resultados imediatos não está nem poderia 
estar relacionado ao conteúdo desses eventos, mas aos tipos de participantes que nem 
sempre foram (ou são) os mais indicados ou os mais competentes para tirar o devido 
proveito de encontros tão cuidadosamente preparados.
    Uma boa porcentagem das atividades destinadas à transferência de tecnologia de 
reabilitação dos países mais evoluídos para aqueles em estágio menos avançado de 
desenvolvimento, na ONU e em suas Agências Especializadas, sempre se concentrou na 
preparação e na distribuição de bibliografia relevante. Não são apenas relatórios de missões 
de consultores em áreas pouco evoluídas do mundo, ou missões de caráter regional e inter­
regional, que às dezenas enriquecem o acervo de informações relacionadas ao 
desenvolvimento da reabilitação no mundo, mas também estudos especiais. A maioria das 
publicações da ONU e de suas Agências Especializadas leva em consideração as 
discrepâncias culturais e sociais do mundo, e respeitam os processos implantados nos seus 
diversos Estados­Membros.
    Preocupação das mais relevantes ocorreu na década de sessenta, quando a Unidade de 
Reabilitação de Pessoas Deficientes da ONU iniciou uma série muito interessante intitulada: 
"Serviços e Material Básicos para os Centros de Reabilitação". Visava a série transmitir 
idéias, programas, exemplos dos serviços básicos existentes em centros de reabilitação, com 
o propósito de chegar aos diretores de programas, de atingir os profissionais, de alertar os 
governos. A série chegou a incluir números sobre fisioterapia, terapia ocupacional, serviço 
social, psicologia, próteses em geral, próteses para hansenianos. E seu grande alcance levou 
a Organização das Nações Unidas a traduzir cada volume (de aproximadamente oitenta 
páginas cada), em várias línguas. Essa série chegou a contar com suas publicações em 
inglês, espanhol, francês, russo e árabe.
    Na relação bibliográfica deste volume o leitor poderá ter uma diminuta idéia de 
publicações da ONU sobre reabilitação. Muitos outros trabalhos foram publicados, é 
evidente, sendo impossível a apresentação de uma relação completa.
    A mesma observação relacionada a publicações é aplicável à Organização Internacional 
do Trabalho, e em menor escala à Organização Mundial de Saúde e UNESCO nos assuntos 
de reabilitação.
    Outros esforços muito sérios foram desenvolvidos pela família de Organizações das 
Nações Unidas para divulgar, implantar ou fortificar programas de reabilitação em todas as 
partes do mundo. Um deles, quase esquecido entre nós, é o Centro de Demonstração de 
Reabilitação, a respeito do qual algumas explicações precisarão ser feitas, a fim de que seja 
feita justiça ­ tanto à ONU, OIT e OMS, quanto àqueles que a esse plano dedicaram seus 
esforços, suas inteligências, seu gabarito técnico, em quatro pontos diferentes do mundo.
    ­ *Centros de demonstração de técnicas de reabilitação*
    No início da Década de Cinqüenta a ONU, em decorrência de uma deliberação de caráter 
inter­organizacional da qual participaram os seus representantes e aqueles da OIT, OMS e 
UNESCO, resolveu adotar uma estratégia mais efetiva para a implantação de projetos de 
reabilitação nos quatro continentes: provocar a organização de centros de Demonstração de 
Técnicas de Reabilitação, que acumulassem a responsabilidade de não só dar atendimento 
qualificado, mas também de desenvolver cursos para a formação de pessoal básico nessas 
mesmas técnicas.
    O plano contava com o apoio das organizações envolvidas, mas de um modo todo especial 
da própria Organização das Nações Unidas, da Organização Internacional do Trabalho e da 
Organização Mundial de Saúde. As três organizações haviam estabelecido prioridade em 
programações de assistência técnica, dentro de certas condições, e haviam igualmente 
combinado as condições fundamentais para montagem de centros dessa natureza.
    Além de ser necessário manter um em cada continente, seus especialistas internacionais 
levaram a campo e indicaram aos governos visitados os critérios para escolha dos países, 
estados e cidades onde esses novos recursos poderiam ser instalados. Esses critérios 
resumiam­se nos seguintes:
    a) A existência de uma realidade universitária pujante que desse cobertura à formação de 
pessoal destinado aos programas do centro, ou seja, médicos, assistentes sociais, enfermeiros 
e psicólogos. Essa mesma realidade universitária deveria estar apta a, com esforço adicional, 
cobrir ainda a necessidade de formação de profissionais faltantes numa equipe de 
reabilitação (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, técnicos em próteses e órteses e 
conselheiros de reabilitação), com a montagem de cursos ainda não existentes no país, mas 
básicos para programas reabilitacionais.
    b) Existência de uma realidade industrial, comercial e de serviços em franca expansão, 
devido ao seu significado na montagem de programas de aconselhamento e de colocação da 
mão­de­obra das pessoas deficientes adultas em programas de reabilitação.
    c) Disponibilização de instalações, se possível nas proximidades de um complexo 
hospitalar que contasse com serviços de ortopedia e neurologia, suficientes para localização 
de todos os serviços e espaço para internamento de adultos de ambos os sexos.
    d) Preferência seria dada a país que já contasse com alguns profissionais que tivessem 
experiência no campo da reabilitação, e com recursos institucionais já instalados de 
treinamento profissional.
    e) O compromisso formal e o interesse direto do governo federal e do local (estadual) para 
a organização do centro de reabilitação e para sua manutenção como projeto de 
demonstração de tecnologia e de aproveitamento dos novos profissionais em formação.
    f) O compromisso adicional do governo central de dar prioridade aos pedidos de 
assistência técnica à família de organizações da ONU, não só pedindo especialistas nas áreas 
necessitadas de cobertura, mas também bolsas de estudos para a preparação adicional dos 
profissionais que trabalhassem como assistentes dos consultores das Agências 
Internacionais, se de todo necessário.

    Após exaustivos estudos e muitas consultas, os quatro pontos foram escolhidos de comum 
acordo com os governos interessados. Os Centros de Demonstração de Técnicas de 
Reabilitação foram instalados na lugoslávia (Skopje), Egito (Alexandria), Índia (Bombaim) 
e . . . Brasil (São Paulo). Criava­se em nossa Pátria um recurso altamente promissor que 
deveria ser o elemento catalítico do desenvolvimento da reabilitação em nosso meio: o 
Instituto Nacional de Reabilitação (INAR) da Universidade de São Paulo!

    ­ *O Instituto de Reabilitação: vida e morte*
    Analisemos, pelo menos superficialmente, o esquema de assistência técnica montado em 
termos de São Paulo para a implantação de um centro de reabilitação de natureza 
demonstrativa, padrão de atendimento, voltado para a formação de pessoal especializado.
    No ano de 1956 o Governador Jânio Quadros assinava decreto criando na USP, o Instituto 
Nacional de Reabilitação, algum tempo depois transformado em Instituto de Reabilitação. 
Foi instalado na Clínica Ortopédica do Hospital das Clínicas (1° Andar), sob a direção forte 
do Professor Doutor Francisco Egydio Godoy Moreira. Conforme instalado, já contando 
com alguns profissionais que haviam se beneficiado de bolsas de estudos nos Estados 
Unidos, tornou­se o Instituto, o primeiro centro de reabilitação global do Brasil, um 
verdadeiro modelo para futuros empreendimentos. Havia outros esforços no Brasil, não se 
pode negar, como aquele desenvolvido por um grupo dedicado e aprimorado de médicos e 
assistentes sociais do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários; havia 
também as tentativas de um grupo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários. 
Outros nomes de organizações daquela época podem ser relembrados pelos imensos esforços 
feitos, sem contar com as vantagens de assessoria de técnicos internacionais, como a 
Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, o Instituto Baiano de Reabilitação, o 
Hospital Arapiara, a Associação de Assistência à Criança Defeituosa, o Lar­Escola São 
Francisco, o Serviço de Reabilitação do SESI e outros mais. E já em 1958/59 a nascente 
Brasília, tão nova e tão surpreendente, contava com um singular e moderníssimo prédio 
muito bem instalado e equipado – mas sem clientes ­ que era o Centro de Reabilitação Sarah 
Kubitschek.
    Os técnicos especializados da ONU, indicados para o projeto do Instituto de Reabilitação 
da USP, enfatizavam continuamente em seus relatórios confidenciais às suas organizações 
de origem que aquele novo centro piloto de reabilitação deveria ser um paradigma para toda 
a América Latina ­ pretensão extremamente alta, tanto para as Organizações Internacionais 
que demonstravam pouco conhecer a realidade latino­americana, quanto para o próprio 
Brasil e em especial São Paulo, pois todas as autoridades envolvidas haviam se embalado 
naquela suave e hipnotizante melodia e na utópica vanglória de estar montando um recurso 
para todo um continente, esquecendo­se de se voltar para uma realidade bem própria e bem 
nossa ­ nada, ou quase nada, estava sendo feito em reabilitação pelos milhões de deficientes 
brasileiros.
    Conforme foram chegando, os especialistas internacionais foram cobrindo as áreas de 
consultoria geral e administração de reabilitação, aspectos especiais de reabilitação de cegos, 
aspectos profissionais de reabilitação, fabricação de próteses e treinamento de seu pessoal, 
organização dos departamentos de fisioterapia e terapia ocupacional e montagem dos cursos 
específicos. Bolsas de estudos foram concedidas em número bem reduzido nas áreas de 
enfermagem, medicina física, administração de centros e aspectos profissionais de 
reabilitação. Uma bolsa especial foi concedida na área de locomoção de cegos, um dos 
aspectos enfatizados pelos consultores da OIT.
    Após diversos anos de funcionamento, contava o Instituto de Reabilitação com uma 
equipe especializada, tinha um bom número de leitos para casos que precisavam de 
internação, atendia um bom volume de clientela e dava cursos de preparação dos técnicos 
em fisioterapia, em terapia ocupacional e no campo de próteses e órteses. Além disso, o 
Instituto aceitava profissionais formados ou alunos dos últimos anos para estágios de 
especialização, organizava congressos, seminários e dava uma expressiva cota de 
contribuição ao desenvolvimento dos ideais da reabilitação em nosso meio. Os problemas 
internos, seja de ordem financeiro­administrativa, seja de ordem técnica, eram discutidos, e 
os caminhos eram encontrados. Tratava­se de um centro de reabilitação que era o real 
detentor de um papel de alta relevância.
    O sucesso dos centros da Iugoslávia, do Egito e da Índia poderá, sem qualquer sombra de 
dúvida, ser medido pelos frutos gerados nesses países. Entre nós, porém, o final dessa 
promissora tentativa foi no mínimo lacônica: o Instituto de Reabilitação da Universidade de 
São Paulo, apesar de contar com bons profissionais e de ter potencial para atendimento de 
clientela adulta diversificada, acabou fechando suas portas ao final da década de sessenta, 
devido a problemas muito sérios. Seus cursos de Terapia
Ocupacional e de Fisioterapia, acrescidos de um curso de Fonoaudiologia, foram absorvidos 
pela Faculdade de Medicina da USP. As instalações ocupadas foram devolvidas 
integralmente ao Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da 
Faculdade de Medicina da USP. Seus profissionais, por anos a fio sem ter clientela para 
atender, sem verbas para atuar, dispersaram para outros serviços do Hospital das Clínicas ou 
pediram demissão.
    E, o mais terrível desse desfecho todo, as pessoas deficientes adultas ficaram sem um 
importante centro de reabilitação que procurava oferecer serviços globais ­ aliás, à época de 
seu fechamento, era o único centro fora da Previdência Social que atendia a adultos em São 
Paulo ­ lacuna essa até hoje não preenchida condignamente.
    
    ­ *A evolução mais recente da reabilitação*
    Houve um incremento tão grande a programas de reabilitação de pessoas deficientes que 
seria tarefa impraticável tentar relatar a história da evolução mais atualizada dessa técnica no 
mundo todo ou mesmo entre nós. Injustiças muito flagrantes poderiam ser cometidas com a 
citação de alguns nomes e a omissão de outros. Só na capital paulista estão cadastradas hoje 
mais de setenta entidades privadas que trabalham em prol das pessoas deficientes, seja em 
termos de abrigo, seja em termos de tratamento, seja em termos de reabilitação.
    Procuramos, através do reconhecimento das muitas atuações das organizações inter­
governamentais filiadas ao Sistema Nações Unidas, compensar por essa lacuna. Façamos 
justiça à Organização das Nações Unidas, à incansável Organização Internacional do 
Trabalho, à inovadora Organização Mundial de Saúde, à batalhadora Organização das 
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura ­ UNESCO, e também ao tão prestigiado 
UNICEF em sua contínua luta pela infância carente do mundo atribulado de hoje. Essas 
organizações desenvolvem um trabalho silencioso e continuo, e sempre anônimo, que se tem 
mantido na sua meta original, ou seja, fazer com que a reabilitação e serviços afins cheguem 
a todos os recantos do mundo.
    Mas façamos também justiça àquelas organizações que não estão na família 
organizacional da ONU, ou seja, as Não­Governamentais voltadas para os problemas dos 
cegos, dos veteranos, dos surdos, das pessoas deficientes de um modo geral. E não nos 
esqueçamos daquelas que, apesar de não serem destinadas especificamente a esses 
propósitos, desenvolvem atividades que beneficiam as pessoas deficientes. E mais uma vez 
para não fazer qualquer injustiça, sem mencionar qualquer nome em especial, limitando­nos 
a prestar nossas homenagens à Conferência das Organizações Mundiais Interessadas nas 
Pessoas Deficientes, que as congrega desde o final da década de cinqüenta.
    Essas organizações todas, sejam elas Inter­Governamentais ou Não­Governamentais, 
continuam seus trabalhos cada vez com maior ênfase e grau mais elevado de especialização, 
face a uma problemática que agora todo o mundo desenvolvido ou em desenvolvimento 
conhece, ou seja, a dos quase quinhentos milhões de pessoas portadoras de deficiências, das 
quais apenas menos de um terço tem possibilidade de receber algum tipo de serviço. Esse 
novo despertar para um problema tão grave aconteceu também por iniciativa da Organização 
das Nações Unidas, com o mais completo apoio das entidades não­governamentais, através 
do Ano Internacional das Pessoas Deficientes.

            CAPÍTULO SÉTIMO
            1981 ­ ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES

    Desde os primeiros dias do estabelecimento da Organização das Nações Unidas tem 
havido uma ênfase especial a programas destinados a encontrar soluções para toda a gama 
de problemas sociais sérios causados pela guerra e pelo sub­desenvolvimento, conforme 
vimos anteriormente. E, como analisamos no capítulo anterior, o problema de deficiências 
ocasionadas pelas atividades de guerra era tão significativo que demandou a concentração de 
esforços em programas de reabilitação das pessoas deficientes, quer tivessem elas sido 
envolvidas na guerra como integrantes das forças em conflito, quer como vítimas civis.
    No entanto, os esforços internacionais dirigidos para esse objetivo acabaram sendo muito 
pouco eficazes devido à sua falta de coordenação ­ na verdade não havia um plano mundial 
para dar cobertura a toda a magnitude de dificuldades. E descobriu­se rapidamente que, 
devido à dispersa ­ apesar de grande ­ quantidade de esforços na tentativa de remediar 
problemas de deficiências instaladas, pouca atenção estava sendo devotada à prevenção de 
outras deficiências ­ situação que perdurou por vários anos do pós­guerra.
    Assim, hoje em dia não é muito de espantar que o mundo tenha um total de 
aproximadamente 500 milhões de pessoas que sofrem com algum tipo de restrição séria à 
sua atuação, devido a deficiências de naturezas variadas. Percebemos hoje que as guerras, 
apesar de serem uma das causadoras mais sérias de deficiências, certamente que não são 
nem jamais foram as únicas. As sociedades continuam, talvez por falta de atenção ou por 
mera negligência, a produzir as pessoas com deficiências físicas e mentais, e aquelas que 
sofrem com os bloqueios de problemas sensoriais, orgânicos, comportamentais e sociais dos 
mais sérios.
    Ações preventivas são imperativamente importantes ­ talvez sejam mesmo tão 
importantes quanto a própria reabilitação. E uma importante razão para dar ênfase à 
prevenção de males é evitar o desperdício de recursos humanos, que são um componente 
básico de qualquer processo de desenvolvimento, somados que devem ser aos recursos 
naturais e financeiros.

    ­ *As declarações de direitos e sua importância*
    Com esse tipo de raciocínio dominante, a Assembléia Geral da ONU tem mantido muitos 
esforços para dar cobertura a esse problema social de alto significado, tendo sempre sua 
atenção voltada para a grande variedade dos demais problemas de desenvolvimento. Assim é 
que no ano de 1971 a Assembléia Geral proclamou a aprovação de uma resolução de alto 
significado a respeito das pessoas deficientes: a Declaração dos Direitos das Pessoas com 
Retardo Mental. No ano de 1975, por sua vez, aprovou a Declaração dos Direitos das 
Pessoas Deficientes.
    Este documento internacional é fundamental e o leitor não poderá em absoluto deixar de 
conhecê­lo pelo menos em seus postulados principais que são os seguintes:
    1) O termo pessoas deficientes refere­se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si 
mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em 
decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais.
    2) As pessoas deficientes gozarão de todos os direitos estabelecidos a seguir nesta 
Declaração. Estes direitos serão garantidos a todas as pessoas deficientes sem nenhuma 
exceção e sem qualquer distinção ou discriminação com base em raça, cor, sexo, língua, 
religião, opiniões políticas ou outras, origem social ou nacional, estado de saúde, nascimento 
ou qualquer outra situação que diga respeito ao próprio deficiente ou e sua família.
    3) As pessoas deficientes têm o direito inerente ao respeito por sua dignidade humana. As 
pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, 
têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica 
antes de tudo, no direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto 
possível.
    4) As pessoas deficientes têm os mesmos direitos civis e políticos que outros seres 
humanos: o parágrafo sétimo da Declaração de Direitos das Pessoas com Retardo Mental 
aplica­se a qualquer possível limitação ou supressão desses direitos para as pessoas 
mentalmente deficientes.
    5) As pessoas deficientes têm direito a medidas que visem capacitá­las a tornarem­se tão 
auto­confiantes quanto possível.
    6) As pessoas deficientes têm direito a tratamento médico, psicológico e funcional, 
incluindo­se neles os aparelhos de próteses e órteses, a reabilitação médica e social, 
educação, treinamento profissional e reabilitação, assistência, aconselhamento, serviços de 
colocação e outros serviços que lhes possibilitem o máximo desenvolvimento de sua 
capacidade e habilidades e que acelerem o processo de sua integração ou
reintegração social.
    7) As pessoas deficientes têm direito à segurança econômica e social e a um nível de
vida decente e, de acordo com suas capacidades, a obter e manter um emprego ou
a desenvolver atividades úteis, produtivas e remuneradas, e a participar de sindicatos.
    8) As pessoas deficientes têm direito de ter suas necessidades especiais levadas em 
consideração em todos os estágios de planejamento econômico e social.
    9) As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais adotivos e de 
participar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas. Nenhuma pessoa deficiente 
será submetida em sua residência, a tratamento diferencial, além daquele requerido por sua 
condição ou por sua necessidade de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficiente 
em um estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de vida 
nesse local devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de pessoas da sua 
idade.
    10) As pessoas deficientes deverão ser protegidas contra toda exploração, todos os 
regulamentos e tratamento de natureza discriminatória, abusiva ou degradante.
    11) As pessoas deficientes deverão poder valer­se de assistência legal qualificada quando 
tal assistência for indispensável para a proteção de suas pessoas e propriedade. Se forem 
instituídas medidas judiciais contra elas, o procedimento legal aplicado deverá levar em 
consideração sua condição física e mental.
    12) As organizações de pessoas deficientes poderão ser consultadas com vantagem em 
todos os assuntos referentes aos direitos de pessoas deficientes.
    13) As pessoas deficientes, suas famílias e comunidades deverão ser plenamente 
informadas por todos os meios apropriados sobre os direitos contidos nesta Declaração.

    Esta Resolução foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em sua trigésima sessão, no 
dia 9 de dezembro de 1975, levando o número XXX/3447.

    ­ *O significado de um "Ano Internacional"*
    Um ano depois, no dia 16 de dezembro de 1976, foi aprovada a Resolução n° 31/123, 
proclamando o ano de 1981 como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes 
(International Year for Disabled Persons). Estava muito claro o propósito dessa última 
declaração universalmente conhecida: dar condições para a implementação das resoluções 
anteriores, através da conscientização do mundo todo quanto à problemática das pessoas 
portadoras de deficiências.
    Muita gente que ouve falar de Anos Internacionais, questiona­os sob um ângulo apenas: 
fala­se muito daquele assunto durante um ano todo e depois tudo cai no esquecimento e 
quase nada de concreto é feito. Será, entretanto, justo lembrarmo­nos que os princípios que 
lastreiam os chamados "Anos Internacionais" podem ser resumidos num único: Que a 
comunidade internacional tome conhecimento da existência de um certo problema que afeta 
segmentos da população, procurando soluções através de consultas internacionais, ação 
conjunta e cooperação. Neste caso particular do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, 
existe, de fato, um problema sério para a comunidade das nações concentrar toda a atenção 
de que puder dispor, dando­lhe a possível prioridade durante um ano todo. E o problema que 
estamos analisando é, de fato, o intolerável problema de "meio bilhão de pessoas" ­ sim, 
estamos falando de "meio bilhão de pessoas" ­ que se vê à margem de tudo e não desfruta de 
seus direitos.
    Caso, através de um Ano Internacional, a ONU consiga obter um nível de conscientização 
internacional bom, haverá pelo menos o início de uma mudança gradativa nas condições de 
vida dessas pessoas marginalizadas devido à deficiência. As necessidades são tão grandes e 
tão desproporcionais aos recursos disponíveis que a mudança jamais poderia ocorrer com a 
mera soma de esforços individualizados de cada país, ou das instituições oficiais ou 
privadas. Essa mudança requererá a interação de todos esses esforços, privados e oficiais, 
nacionais e internacionais. Apenas uma ação de caráter nacional e internacional, regional e 
mesmo local, bem coordenada, poderá garantir qualquer sucesso aos ideais do Ano 
Internacional das Pessoas Deficientes.

    ­ *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais*
    Aprovada a idéia do Ano Internacional, era necessário que a própria ONU preparasse um 
plano de ação mundial de atuação. Para tanto, um Comitê Consultivo foi criado pela 
Assembléia Geral, composto de representantes de vinte e três países, dentre os quais o Brasil 
não estava incluído.
    As primeiras demonstrações de apoio à proposição do Ano Internacional das Pessoas 
Deficientes começaram logo a chegar à ONU, como nos é relatado pelo Boletim n° 1/79 
sobre o assunto. Uma das primeiras veio da Organização de Unidade Africana que já 
aprovara uma resolução de apoio ao Ano Internacional, em fevereiro de 1978, indicando a 
possibilidade de organizar um Seminário a nível regional para encontrar meios destinados a 
implementar os objetivos do Ano. O Centro Europeu para o Treinamento e para a Pesquisa 
em Bem­Estar Social, a Organização Internacional de Padronização, o Conselho Mundial 
para o Bem­Estar dos Cegos e a Federação Mundial dos Veteranos indicaram seu apoio 
irrestrito.
    O Comitê Consultivo apresentou seu relatório ao Terceiro Comitê da Assembléia Geral da 
ONU em 1979 (34ª Sessão). Acabou tendo a satisfação de ver o substancioso documento 
inserido no próprio Relatório do Secretário­Geral da Organização.
    
    ­ *O conteúdo básico das idéias consensuais para um plano de ação mundial*
    Desse relatório decisivo do senhor Secretário­Geral Kurt Waldheim é que muito daquilo 
que tem sido citado como básico, seja verbalmente seja por escrito, a respeito do Ano 
Internacional das Pessoas Deficientes, está inserido. E a maioria de seu conteúdo é de fato 
consideravelmente importante. Vejamos alguns trechos:

    "16. Diversos membros do Comitê enfatizaram a necessidade de levar em conta as 
necessidades e os problemas das pessoas deficientes no processo de planejamento do 
desenvolvimento nacional, Pessoas deficientes devem ter o mesmo direito que todos os 
outros cidadãos de se beneficiar dos serviços postos à disposição pelo Estado e pela 
sociedade em geral a seus cidadãos. Pessoas deficientes devem ser consideradas como 
cidadãos comuns com problemas especiais em vez de uma categoria especial de pessoas com 
necessidades diferentes daquelas de outros cidadãos. Participação plena deve ser entendida 
como participação em todos os aspectos da vida comunitária: nas atividades políticas, 
econômicas, sociais, culturais e esportivas. Medidas que forem necessárias para tornar essa 
participação possível devem ser adotadas e colocadas em prática. Foi reconhecido que os 
obstáculos mais significativos à participação plena eram as barreiras físicas, os preconceitos 
e as atitudes discriminatórias, e que devem ser desenvolvidas atividades para remover essas 
barreiras. Foi também reconhecido que a sociedade, ao desenvolver seus ambientes 
modernos, tendia a criar barreiras novas e adicionais, a menos que as necessidades de 
pessoas deficientes fossem levadas em consideração nos estágios de planejamento.

    “17. Alguns membros afirmaram que estava ocorrendo uma dramática mudança nas 
atitudes das próprias pessoas deficientes. Elas estavam assumindo cada vez mais o papel de 
um grupo consumidor que tinha seus próprios pontos de vista quanto à forma como as 
melhorias de suas condições de vida deveria ser efetivada e desejavam que esses pontos de 
vista fossem conhecidos daqueles que tomavam decisões. Alguns membros
sugeriram que essa tendência deveria ser encorajada, e que os representantes de pessoas 
deficientes deveriam desfrutar de plena participação não apenas no planejamento de 
programas a elas relacionados, mas também no planejamento do desenvolvimento social e 
econômico da sociedade em geral. Foi também sugerido que as organizações internacionais 
deveriam dar exemplo nesse sentido”.

    "22.Com relação ao programa de ação a longo prazo, alguns representantes enfatizaram 
que o Ano deveria marcar o início de um esforço internacional nesse campo e que o 
programa deveria ser preparado pelo Comitê baseado nas sugestões dos países­membros, das 
agências especializadas da ONU e das organizações não­governamentais próprias, no curso 
de 1980 e 1981. Poucos problemas poderiam vir a ser resolvidos durante o Ano e era 
também necessário considerar medidas baseadas em prazos mais longos de tempo, para 
assegurar ao máximo possível a concretização dos objetivos do Ano em todos os países".
    O relatório do Comitê Consultivo, aprovado pela Assembléia Geral ao ser apresentado 
como parte integrante do próprio relatório do Secretário­Geral da ONU, prossegue 
enfatizando a necessidade de medidas preventivas de males incapacitantes, bem como de 
envolvimento das próprias pessoas deficientes para a garantia de seus direitos. Havia, no 
entanto, membros desse mesmo Comitê que queriam saber de resultados práticos, de 
programas objetivos e de medidas exeqüíveis.

    "24. Diversos membros expressaram sua preferência por programas práticos para o Ano 
Internacional, que deverão incluir o uso de tecnologia apropriada para a reabilitação do 
deficiente, a concessão de bolsas de estudos para especialização, o desenvolvimento de um 
banco de equipamentos e outros programas que possam trazer benefícios diretos para as 
pessoas deficientes e assim tornar a observância do Ano mais significativa.
    25. Alguns membros indicaram que pessoas deficientes, de fato, formavam um grupo 
bastante variado, dentro do qual havia pessoas com deficiências diferentes e que havia, em 
conseqüência, grandes diferenças nas necessidades e nos requisitos para serviços. Foi 
sugerido que o programa para o Ano deverá levar em conta diferentes deficiências e prover 
meios para assegurar a implantação dos objetivos do Ano para todas as pessoas deficientes".

    "29. O representante da Organização Mundial de Saúde referiu­se particularmente a certos 
levantamentos recentes indicadores de que, presentemente, apenas uma pequena 
porcentagem de pessoas deficientes nos países em desenvolvimento recebiam os serviços de 
que necessitavam; o sucesso dos esforços para melhorar as condições de vida da maioria das 
pessoas deficientes da zona rural dos países em desenvolvimento depende da descoberta de 
novos meios para estender a prestação de serviços básicos necessários, a nível de 
comunidade, meios esses que devem estar em consonância com os recursos já colocados à 
disposição para tal finalidade nos países em desenvolvimento, ou que podem ser 
disponibilizados para tanto".

    ­ *As recomendações para atividades a nível nacional*
    Depois de discutir assuntos relacionados à cobertura de secretariado para o Ano 
Internacional, e de analisar algumas proposições que não chegaram a ser aprovadas, o 
documento apresenta suas Recomendações que, devido à sua relevância, transcrevemos.

    "III. RECOMENDAÇÕES
    A ­ Introdução ­ Princípios básicos adotados para as recomendações

    57. A finalidade do Ano Internacional das Pessoas Deficientes é promover a concretização 
de objetivos de "participação plena" de pessoas portadoras de deficiências na vida social e 
no desenvolvimento das sociedades nas quais vivem, "igualdade" significando condições de 
vida iguais àquelas de outros cidadãos na sua sociedade e uma participação igual na 
melhoria das condições de vida que resultam do  desenvolvimento social e econômico. Esses 
conceitos são aplicáveis da mesma maneira e com a mesma urgência em todos os países, 
independentemente de seu nível de desenvolvimento.
    58. Problemas de pessoas portadoras de deficiências deverão ser apreendidos em sua 
totalidade e levados em consideração em todos os aspectos de desenvolvimento. Todavia, 
deve­se notar que, em vista dos muitos problemas de alta prioridade e de meios e recursos 
insuficientes, os países em desenvolvimento têm­se visto impossibilitados de alocar os 
necessários recursos para resolver os problemas de pessoas deficientes".

    "B ­ Atividades a nível nacional
    68. A Comissão Consultiva recomenda que os Estados­Membros sejam convidados, em 
conformidade com seus direitos e responsabilidades, a determinar com plena liberdade seus 
objetivos de desenvolvimento e prioridades, e, à luz de suas próprias circunstâncias, 
considerar a adoção das seguintes medidas para a implementação e verificação dos objetivos 
do Ano Internacional, conforme estabelecido pela Assembléia Geral em sua resolução 
n.°31/123. Os Estados­Membros são convidados a:
    a) Fazer uma proclamação no início do ano (1981) contendo as medidas prioritárias a 
serem implantadas para a plena participação de pessoas portadoras de deficiências na 
sociedade.
    b) Estabelecer como medida preparatória, Comissões Nacionais ou Grupos semelhantes 
para o Ano, cujo nível de representação deverá ser de tal natureza que possa assegurar a 
implementação de suas metas, com a finalidade de planejar, coordenar e executar, ou 
encorajar a execução de atividades de apoio aos objetivos do Ano Internacional a nível local 
e nacional; dentre os que participam de Comissões deverão estar incluídos representantes de 
Ministérios, organizações governamentais e organizações não­governamentais e grupos 
voluntários, inclusive aqueles que representam a juventude e a comunidade econômica. A 
participação de representante de organizações de ou para pessoas portadoras de deficiências 
em tais Comissões deverá ser considerada como prioritária.
    c) Preparar, ao final de 1981, planos nacionais para o prosseguimento dos objetivos do 
Ano, tendo em vista a revisão e a avaliação de resultados do ano, previstos para 1991.
    d) Promover campanhas de divulgação para disseminar informações sobre os objetivos do 
Ano Internacional e esclarecer o público, aumentando seu conhecimento quanto aos direitos 
das pessoas deficientes de participar e de construir para a vida econômica, social e política 
de sua sociedade, elevando também a consciência da comunidade para o potencial das 
pessoas portadoras de deficiências de assim o fazer.
    e) Integrar os serviços destinados a pessoas portadoras de deficiências nos programas de 
desenvolvimento geral da comunidade e adotar o conceito de reabilitação integral em todos 
os serviços de saúde, de educação e de serviços sociais.
    f) Treinar pessoal profissional e técnico nos números e nos níveis que garantam a 
implementação de programas nacionais relacionados a todos os aspectos da reabilitação 
integral, através, por exemplo, da inclusão no currículo das escolas, universidades e outras 
instituições educacionais, do conceito de reabilitação integral.
    g) Prestar atenção especial à coordenação e fornecimento de serviços governamentais no 
que diz respeito a pessoas portadoras de deficiências, particularmente nas áreas de 
prevenção, cuidados de saúde, educação, habilitação e reabilitação social e profissional.
    h) Estabelecer mecanismos apropriados governamentais para coordenação de toda a 
política relativa às pessoas portadoras de deficiências, particularmente nas áreas de 
prevenção, de cuidados com a saúde, de educação, de habilitação e de reabilitação social e 
profissional.
    i) Rever a legislação existente para eliminar possíveis práticas discriminatórias com 
relação à educação e ao emprego de pessoas deficientes.
    k) Tornar o planejamento para desenvolvimento e programação de prevenção e serviços 
de reabilitação uma parte integrante no processo de planejamento nacional.
    l) Concretizar programas existentes relativos a medidas profiláticas de moléstias, como 
importante passo na prevenção de deficiências.
    m) Desenvolver todo o esforço para analisar com seriedade a incidência de deficiências, 
por exemplo, por pesquisas preliminares em residências, a fim de capacitar as organizações 
que determinam a política de atuação a conhecer a natureza e a extensão das necessidades 
que os serviços devem atender. Os órgãos de planejamento econômico e social deverão estar 
envolvidos num nível mais elevado em questões relacionadas a deficiências, prestação de 
serviços de reabilitação, e a estimulação do treinamento de especialistas de planejamento 
neste campo.
    m) Rever seus serviços e benefícios para assegurar que ajudem e encorajem as pessoas 
portadoras de deficiências a permanecer e/ou a tornar­se uma parte integrante da sociedade 
onde vivem, em vez de provocar segregação e isolamento.
    n) Quando do estabelecimento de política para as pessoas portadoras de deficiências, dar 
ênfase ao desenvolvimento de suas habilidades e promover informação para o deficiente a 
respeito de serviços e benefícios que estão ao seu dispor.
    o) Iniciar investigações quanto a restrições discriminatórias que limitam a liberdade da 
pessoa deficiente em participar plenamente da sociedade, e tomar as medidas que forem 
necessárias para remediar a situação.
    p) Promover condições adequadas, inclusive acesso sem obstáculos a instalações, para a 
plena participação de pessoas portadoras de problemas físicos em educação, trabalho, 
esportes e outras formas de recreação.
    q) Manter­se alerta para a necessidade de introduzir legislação que assegure que todos os 
edifícios novos e edifícios nos quais adaptações de grande monta estejam sendo iniciadas, 
garantam acesso pleno para pessoas com deficiência, e reconhecer formalmente que pessoas 
deficientes tenham o mesmo direito de acesso a todos os prédios públicos e sociais das 
demais pessoas. Isso deveria incluir também medidas para criar e aumentar o acesso à 
informação pública para pessoas surdas e aquelas que têm deficiência auditiva e visual, 
através, por exemplo, do aumento de literatura gravada em cassetes ou transcrição em 
Braille e com a provisão de equipamentos auxiliares de audição em edifícios públicos e 
serviços de intérpretes para surdos.
    r) Com relação à habitação para as pessoas portadoras de deficiências, evitar programas 
de reabilitação segregados que provocam um ambiente semelhante ao da vida 
institucionalizada e, em países onde instituições estão sendo reduzidas, transferir recursos de 
cuidados institucionais para cuidados relativos à integração e assegurar apoio adequado para 
pessoas portadoras de deficiências, em casa e junto à família.
    s) Rever e quando necessário revitalizar, programas destinados a prevenir a ocorrência de 
deficiências.
    t) Promover a saúde no contexto de "cuidados básicos com saúde" para a prevenção de 
deficiências, particularmente aquelas que são de origem pré­natal e natal, ou que ocorrem na 
primeira infância, pela adoção de atividades destinadas a melhorar os programas de 
reabilitação, nutrição, serviços de saúde maternal e infantil, assistência adequada durante a 
gestação e durante o parto, controle da doença microbacteriana e o controle de doenças 
crônicas, tanto transmissíveis como não­transmissíveis.
    u) Dar ênfase às normas de segurança no trabalho como medida preventiva, e adaptar sua 
aplicação à pessoa portadora de deficiência no trabalho às necessidades individuais.
    v) Tornar o ambiente de trabalho acessível à pessoa com mobilidade restrita, àquelas com 
problema de orientação e àquelas com problemas alérgicos. Atenção devida deverá também 
ser dada a fatores psicológicos no ambiente de trabalho e à influência das condições de 
trabalho sobre a saúde mental da pessoa.
    w) Possibilitar a isenção de taxas alfandegárias e de taxas sobre equipamentos, 
maquinaria, adaptação e outros materiais usados por e para benefício de pessoas deficientes, 
devido às suas incapacidades, e prover também a necessária licença de importação e 
alocações de câmbio para moeda estrangeira, quando aplicáveis.
    x) Assegurar, conforme for recomendável, que organizações não­governamentais estejam 
adequadamente envolvidas na preparação e implantação de programas nacionais no campo 
de serviços sociais para pessoas deficientes.
    y) Dar alta prioridade às atividades iniciadas por pessoas deficientes e encorajar o 
estabelecimento de organizações de pessoas deficientes.
    z) Indicar, se possível, representantes de pessoas com deficiência, para delegações que 
participem de encontros internacionais, particularmente quando os assuntos se relacionem a 
elas e ao Ano Internacional.
    aa) Proclamar o Dia Nacional das Pessoas Deficientes.”

    (Extraído do Documento n°. A/34/158, de 13 de junho de 1979 "International Year for 
Disabled Persons ­ Report of the Secretary­General" ­ United Nations, New York).

    ­ *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil*
    Foi através de uma carta datada de 25 de outubro de 1979 que Esko Kosunen, Oficial 
Encarregado do Ano Internacional para as Pessoas Deficientes e Chefe da Unidade de 
Reabilitação da ONU, remeteu­nos longos comentários e material farto e relevante quanto a 
1981, até então conhecido como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes. 
Trabalháramos um ano e meio juntos na ONU, em New York, no final de nosso período de 
cinco anos de atuação na Organização, e sabíamos muito bem que a preocupação dele era 
que alguém, fora de âmbito oficial federal, pudesse dar um primeiro impulso a nível de 
Brasil, para que o evento internacional surtisse efeitos em nosso meio. Por remessa postal 
separada, enviou­nos também o seguinte material inicial, depois complementado por outros 
mais atualizados:
    ­ Resolução da Assembléia Geral da ONU, n° 31/123, sobre o Ano Internacional para as 
Pessoas Deficientes, datada de 2 de fevereiro de 1977;
    ­ Relatório do Secretário­Geral da ONU, datado de 11 de novembro de 1977, sobre o Ano 
Internacional;
    ­ Resolução da Assembléia Geral da ONU, n°. 32/133, de 28 de fevereiro de 1978, 
também sobre o Ano Internacional;
    ­ Relatório evolutivo do Secretário­Geral da ONU sobre Prevenção de Deficiências e 
Reabilitação do Deficiente, datado de 19 de fevereiro de 1978;
    ­ Relatório do Secretário­Geral da ONU juntando a minuta do Programa Internacional 
para os anos de 1980/81, para consideração da Assembléia Geral;
    ­ Anexo II do Relatório sobre a Situação Social do Mundo, contendo medidas 
relacionadas à Implementação dos Direitos das Pessoas Deficientes;
    ­ Circular n°. 3/79, de comunicação sobre o ano Internacional das Pessoas Deficientes;
    ­ Relatório do Secretário­Geral da ONU à Assembléia Geral, adotando o relatório da 
Comissão Consultiva, e apresentando­o na íntegra para aprovação contendo todas as 
proposições sobre o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (transcritas em parte neste 
capítulo).

    De posse dessa documentação, tomamos providências pessoais para tradução dos trechos 
mais relevantes para o português, com o intuito de iniciar uma série de discussões sobre seu 
conteúdo, e de chegar ao final do ano de 1980 com algumas idéias bem estabelecidas.
    A primeira oportunidade surgiu em maio de 1980 quando um incipiente movimento de 
São Paulo, até então conhecido como "Coalizão de Pessoas Deficientes" e hoje conhecido 
como "Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes" reuniu­se numa manhã de sábado 
e discutiu as "proposições a nível nacional", contidas no documento. Os quase trinta 
participantes da reunião distribuíram­se em quatro grupos de trabalho e discutiram as vinte e 
sete proposições, elaborando propostas novas para aplicação local daquilo que, no 
documento original, parecia mais uma colcha de retalhos de idéias.
    A segunda oportunidade para estudar essas proposições surgiu durante o Segundo 
Congresso Brasileiro de Reintegração Social, organizado em São Paulo, no mês de julho de 
1980. O tema "Ano Internacional das Pessoas Deficientes" foi incluído no programa para 
debates durante uma tarde toda de trabalhos. O congresso aprovou uma série de conclusões 
dos grupos de trabalho, bem mais profundas e mais incisivas do que as primeiras, devido à 
heterogeneidade dos grupos, à diversidade de sua composição, ao acervo de experiências de 
seus debatedores e também devido ao fato de estar contando com os resultados das primeiras 
discussões durante o mês de maio, o que muito ajudou os membros integrantes dos grupos 
de trabalho.
    Também no início do mês de julho de 1980 surgiu em São Paulo um grupo conhecido 
como "de apoio e estímulo ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes". Logo após sua 
primeira reunião, convocada por Dona Dorina de Gouvêa Nowill, foi tomada a deliberação 
de remeter ao Senhor Presidente da República ofício co­assinado por entidades participantes, 
para que ele desse ao Ano Internacional o nome correto, ao assinar o decreto criando a 
Comissão Nacional ao mesmo destinada. Ouvia­se falar de traduções inaceitáveis, tais como 
"Ano Internacional do Incapacitado", "Ano Internacional do Excepcional" e outros nomes 
que estavam sendo fortemente tentados. A mensagem, juntamente com outras de locais e 
iniciativas diferentes, parece que chegou ao destino, pois em 16 de julho de 1980 o 
Presidente da República assinava decreto criando a Comissão Nacional do Ano Internacional 
das Pessoas Deficientes, vinculando­a ao Ministério da Educação e Cultura. Seus membros 
foram nomeados por Portarias do Senhor Ministro da Educação em 28 de agosto e 17 de 
setembro de 1980.

    ­ *A Comissão do Estado de São Paulo e seu relatório*
    A Comissão Estadual de São Paulo foi criada apenas no dia 5 de março de 1981, uma vez 
que a Secretaria de Estado da Casa Civil do Governador ficara aguardando orientações da 
Comissão Nacional até então. Foi criada com o nome de Comissão Estadual de Apoio e 
Estimulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, por meio de 
um decreto datado de 5 de março de 1981 e teve em sua presidência o próprio Secretário­
Chefe da Casa Civil do Governador. Recebeu o prazo de sessenta dias para apresentar seu 
relatório final. Prazo cumprido, o relatório foi impresso e amplamente distribuído para 
informação de todos os interessados no assunto, além de servir de base para discussão de 
seus temas nos mais variados níveis.
    Trata­se de um documento "que representa um consenso de opiniões de todos os seus 
componentes, analisa em cores adequadas a extensão dos problemas das deficiências entre 
nós e apresenta sugestões de naturezas várias, não só para 1981, mas para toda a Década de 
Oitenta, conforme indicado em suas  considerações", segundo nota introdutória do 
documento em questão.

    ­ *As propostas para ação em São Paulo*
    A Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das 
Pessoas Deficientes inseriu em seu relatório uma série de propostas para ação, a curto, 
médio e longo prazos. A primeira dessas proposições dirige­se ao Governo Estadual e a 
todos os Governos Municipais do Estado, indicando pontos básicos para o estabelecimento 
de uma política de ação para toda a Década de Oitenta. Assim, o relatório sugere medidas 
quanto à prevenção de males incapacitantes e à redução das conseqüências das deficiências 
já instaladas; sistemas municipais simples para a detecção precoce das deficiências, com o 
propósito de atender, tratar e reabilitar, levantando dados e adequando programas e ações 
futuras; acesso de pessoas deficientes de todas as idades à educação e à profissionalização; 
pesquisas das mais variadas naturezas nessas áreas; revisão de normas e padrões de 
funcionamento das entidades de atendimento; revisão tanto do Código de Obras quanto 
daquele relacionado a Normas Técnicas, e muitos outros pontos de relevância.
    Nesse importante documento a Comissão Estadual defende também a criação de um órgão 
de coordenação, a fim de verificar que a política de ação seja efetivada, assumindo a 
responsabilidade de planejar, incrementar e coordenar as atividades de atendimento às 
pessoas deficientes e seus familiares. Segundo os postulados da Comissão Estadual, esse 
órgão deverá ser de caráter inter­secretarial, contando com representação não só das 
Secretarias de Estado envolvidas, mas também de entidades de/para pessoas deficientes.
    Indica também a Comissão Estadual a necessidade da criação de um Fundo Especial de 
desenvolvimento, com dotação orçamentária própria para subsidiar programas 
reabilitacionais. Esse Fundo, considerado um programa coordenado, só poderá ser gerido 
pelo Órgão de Coordenação já indicado.
    Logo a seguir a Comissão Estadual entra em pormenores quanto a outros objetivos, tais 
como Educação, Prevenção, Reabilitação Global, Trabalho, Conscientização, Acesso e 
Eliminação de Barreiras, Materiais e Equipamentos, e Legislação.
    Documento inédito em termos de Brasil, o relatório da Comissão Estadual de São Paulo 
foi amplamente distribuído para todas as Comissões Estaduais/Territoriais ainda em 
setembro de 1981, com o intuito de dar subsídios e de ajudar na discussão dos problemas.

    ­ *As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual*
    A Comissão Estadual para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que foi 
organizada em São Paulo entregou seu relatório dentro do prazo estabelecido, e no ato de 
sua entrega ela encerrou as suas atividades. Decidiu, entretanto, seu Presidente, manter em 
atuação sua Secretaria Executiva, cabendo a ela prosseguir os entendimentos até então 
mantidos e assumir a responsabilidade de continuar todos os esforços viáveis para o objetivo 
fundamental de levar a uma conscientização mais completa possível quanto à problemática 
das pessoas deficientes.
    Do mês de julho até setembro foram distribuídas mais de quinze mil cópias do Relatório 
da Comissão Estadual, tendo cada Comissão Estadual ou Territorial recebido cinqüenta 
cópias para seu uso e como subsídio da Comissão Paulista aos esforços que estavam sendo 
feitos a nível de cada Unidade Federada.
    Além disso, dentro do mesmo período de tempo, foram remetidas cópias para vários 
organismos internacionais, tais como a ONU e seu escritório central para o A.I.P.D., em 
Viena, a Organização Mundial de Saúde, a Organização Internacional do Trabalho, a 
Organização Pan­Americana de Saúde, a UNESCO, o UNICEF, a Rehabilitation 
International, o Conselho Mundial para o Bem­Estar dos Cegos, a Federação Mundial dos 
Veteranos e diversas outras organizações não­governamentais de caráter internacional, 
envolvidas no assunto.
    Reações as mais diversas ocorreram a esse documento básico, trabalhado por São Paulo. 
A Organização das Nações Unidas solicitou cópias adicionais, pois pretendia estudar seu 
conteúdo com cuidado. A Rehabilitation International, por meio de uma correspondência 
atenciosa, chegou a se expressar da seguinte forma, por meio de seu Secretário­Geral, 
Norman Acton:
    "Prezado Otto,
    Com a maior sinceridade quero que me desculpe porque até agora não me foi possível 
responder pessoalmente à sua carta de 11 de agosto e todas as informações que mandou com 
ela. Este foi um exemplo extremamente interessante dos tipos de coisas positivas que 
aconteceram durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, e eu sei que você deve ter 
uma sensação de grande satisfação porque a atuação de vocês, em São Paulo, foi muito 
maior e mais efetiva do que foi o caso ao redor da maior parte do mundo".

    ­ *Dois Encontros Regionais discutem as propostas da Comissão Estadual*
    O Relatório da Comissão Estadual foi discutido em dois Encontros Regionais organizados 
especificamente para esse fim: 
    ­ I Seminário Regional de Habilitação e Reabilitação das Pessoas Deficientes, organizado 
pela Comissão Municipal de Ourinhos com a estreita colaboração da Comissão Estadual;
    ­ Encontro Regional sobre Integração das Pessoas Deficientes, organizado pela Comissão 
Municipal de Bauru em colaboração com a Comissão Estadual.

    De ambos os Encontros conclusões interessantes foram encaminhadas à Secretaria 
Executiva da Comissão Estadual, contendo não só uma análise do relatório em discussão, 
mas também proposições para sua implementação a nível local e/ou regional.

    ­ *Conscientização: a meta para 1981*
    Mantendo­se na linha de garantir como prioridade para o Ano Internacional das Pessoas 
Deficientes o objetivo de conscientização, a Secretaria Executiva traduziu e conseguiu que 
fossem impressas 50.000 cópias da "Carta para a Década de Oitenta ­ Declaração", das quais 
40.000 foram distribuídas até dezembro de 1981, tanto para Comissões Estaduais e 
Territoriais, à base de 500 cópias cada, como também para entidades que congregam pessoas 
deficientes, seminários, palestras, faculdades e outros pontos. Um volume de 500 cópias foi 
também remetido para o Secretariado Nacional de Reabilitação de Portugal.
    A Secretaria Executiva da Comissão Estadual também coordenou a gravação de quinze 
mesas redondas na Rádio Cultura de São Paulo, para transmissão em ondas curtas e longas, 
com a ampla participação de pessoas deficientes discutindo informalmente temas de alta 
relevância, como a necessidade de conscientização, a realidade de trabalho, a vida afetiva, as 
barreiras atitudinais e arquitetônicas e vários outros. Recebido o conjunto de gravações, 
providenciou também a Secretaria Executiva sua transcrição para o papel, com o intuito de 
futuramente preparar documento para impressão e distribuição. Esses conjuntos de 
gravações têm sido usados em Centros de Reabilitação e têm sido muito importantes para a 
discussão dos problemas de pessoas deficientes nos mais variados ambientes.
    Além disso, manteve também a Secretaria Executiva compromissos de palestras e 
conferências sobre o Ano Internacional em vários pontos do território nacional.
    Atuação das mais marcantes, entretanto, foi a pormenorização do projeto de órgão de 
coordenação para sua apresentação aos órgãos competentes, e o trabalho de elaboração dos 
projetos de reabilitação a nível comunitário, com o uso de tecnologia apropriada, e de 
cooperação e assistência técnica em reabilitação. Ambos os projetos foram preparados para 
serem colocados em prática tão logo o governo paulista se definisse quanto ao órgão 
coordenador, sem o qual pouca coisa poderia ser feita ordenadamente.
    Assim, muito embora sem qualquer divulgação externa, a Secretaria Executiva da 
Comissão Estadual do A.I.P.D. em São Paulo demonstrou que muito pode ser feito sem 
alarde, com o lançamento de sementes que são de fundamental importância no futuro 
desenvolvimento de programas de reabilitação no Brasil.

    ­ *O apagar das luzes para o Ano Internacional*
    Embora alguns artigos de jornal ou revista procurassem martelar uma certa sensação de 
vazio quanto a realizações concretas do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, o 
Encontro Nacional das Comissões Estaduais para o A.I.P.D. parece que demonstrou com 
clareza que ela não se justifica, a menos que se procurasse chegar apenas a realizações 
concretas.
    Na verdade, ninguém em sã consciência poderia esperar que séculos ­ milênios, para ser 
mais preciso ­ de esquecimentos e de desvalorização pudessem ser suplantados em um ano 
apenas, com realizações marcantes, mudanças de atitudes, elevação de prioridades 
governamentais, construção de centros, adaptação de meios de transporte, rebaixamentos de 
guias e eliminação de barreiras.
    Poucas foram as realizações concretas. A totalidade das Comissões Estaduais e da própria 
Comissão Nacional para o A.I.P.D. tiveram o bom senso de trabalhar com o objetivo de 
"conscientizar" o mais possível a sociedade quanto ao problema e quanto à necessidade de 
todos nos voltarmos para essas pessoas marginalizadas que aspiram uma participação 
adequada, em condições de igualdade de direitos e deveres.
    O Encontro Nacional realizado na cidade de Contagem ­ ao lado de Belo Horizonte ­ 
avaliou as atividades desenvolvidas e aprovou algumas recomendações fundamentais para 
toda a Década de Oitenta, relacionadas que devem estar a projetos a curto, médio e longo 
prazos.
    E finalizamos este trabalho com sua transcrição, esperando que não tenhamos todos nós 
passado por um Ano Internacional das Pessoas Deficientes sem dele termos saído 
convencidos de que precisamos interiorizar a extensão e a gravidade desses problemas todos 
que afligem gente semelhante a cada um de nós, e que precisam de uma solução agora, hoje 
­ e não no século XXI, quando o nosso País estiver melhor desenvolvido e houver recursos 
específicos para atender a todos os males.

    ­ *Recomendações finais de todas as Comissões: um desafio para o futuro*
    "Irmanados na luta em prol da melhoria de condições de vida das pessoas deficientes, a 
Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, os representantes das 
Comissões Estaduais/Territoriais e do Distrito Federal, de Entidades não­governamentais de 
assistência às pessoas deficientes e de organismos que congregam essas pessoas, reuniram­
se em Contagem, Minas Gerais, de 23 a 26 de março de 1982.
    Este Encontro chegou a algumas conclusões fundamentais para o prosseguimento dos 
trabalhos ao longo da década, a partir das seguintes considerações: 
    1) As resoluções aprovadas pela Assembléia Geral da ONU, concretizadas na Carta para 
os Anos Oitenta, enfatizam sobretudo o esforço conjunto para a consecução dos ideais de 
Igualdade e Participação Plena;
    2) Há necessidade de mudança de atitudes visando a eliminar os estereótipos e 
preconceitos que impedem a consecução dos ideais acima mencionados, o que foi 
amplamente evidenciado neste Encontro;
    3) O trabalho, a educação e a saúde são direitos inalienáveis de todo ser humano e que 
tantas vezes são negados às pessoas portadoras de deficiências, pela insistência de muitos 
em conceitos obsoletos, ultrapassados e claramente preconceituosos;
    4) Torna­se premente a cooperação técnica internacional no sentido de intensificar e 
divulgar estudos e pesquisas nas diferentes áreas do conhecimento humano com o intuito de 
prevenir deficiências ou reabilitar pessoas tornadas deficientes;
    5) Os ideais visados pela ONU realmente se efetivarão quando todo aquele que sofrer de 
limitações de ordem física, sensorial e mental, tiver acesso, em sua conotação mais ampla, a 
um ambiente livre de barreiras de qualquer natureza;
    6) Os legisladores devem estar atentos para que as pessoas ditas deficientes usufruam dos 
mesmos direitos assegurados aos demais cidadãos;
    7) O A.I.P.D. não teve a finalidade e nem a pretensão de solucionar a problemática em 
que se debate a pessoa dita deficiente, mas objetivou sobretudo ser um grito de alerta para a 
consciência de todos nós.
    
    Com base nas premissas acima enunciadas, recomenda­se:
    1. A utilização sistemática e continua dos veículos de comunicação de massa para 
disseminar e realizar o intercâmbio de idéias e temas relativos as pessoas ditas deficientes, 
promovendo, assim, tanto uma sensibilização cada vez mais crescente de todas as camadas 
da população como uma mobilização das pessoas ditas deficientes e suas famílias;
    2. A intensificação das medidas de imunização, diagnóstico e tratamento precoce, de 
atendimento materno­infantil, bem como programas de prevenção de acidentes e de proteção 
ao meio­ambiente;
    3. A implantação gradativa, na medida do possível, de Centros de Reabilitação, para 
aprofundamento e intercâmbio de tecnologia específica e treinamento de pessoal, ao lado de 
Centros Regionais de Reabilitação e dinamização de programas de reabilitação a nível 
comunitário com utilização de tecnologia simplificada e aproveitamento de recursos locais;
    4. A crescente ampliação do atendimento em educação especial a crianças, adolescentes e 
adultos, portadores de qualquer tipo de deficiência, bem como um maior incremento à 
capacitação de recursos humanos;
    5. O desenvolvimento de esforços para a adequação dos cursos profissionalizantes 
existentes e a criação de outros, ao mesmo tempo em que se intensifiquem não só a 
conscientização do empresariado como também trabalhos integrados para o 
encaminhamento a empregos condizentes, as pessoas portadoras dos vários tipos de 
deficiências;
    6. Maior estímulo a projetos de pesquisa e construção e medidas práticas visando a 
melhoria de acesso das pessoas ditas deficientes a edifícios públicos e sistemas de 
transporte;
    7. Gestão junto ao poder legislativo para a elaboração de novos projetos de lei visando 
eliminar a discriminação de que ainda são vítimas as pessoas ditas deficientes;

    Para que essas recomendações se efetivem ao longo da década, constatou­se, neste 
Encontro, a necessidade da criação de um Órgão Nacional para dar continuidade à 
coordenação desenvolvida pela Comissão Nacional durante o A.I.P.D. Esta medida virá 
responder ao anseio das Unidades federadas que, através de órgãos já criados para os fins 
propostos ou em vias de criação, prosseguirem, a nível estadual, os esforços em prol das 
pessoas ditas deficientes, iniciados durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que 
ora se encerra."
            BIBLIOGRAFIA DA PRIMEIRA PARTE

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            SEGUNDA PARTE
            A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE ­ O 
DESAFIO DE NOSSOS DIAS

            INTRODUÇÃO

    Aqueles que se defrontaram com a problemática das pessoas portadoras de algum tipo de 
deficiências pela primeira vez durante o ano de 1981 ­ por ter sido o Ano Internacional das 
Pessoas Deficientes – talvez não tenham tido oportunidade alguma de parar um pouco em 
sua própria vida e pensar sobre o assunto. Mas todos aqueles que têm algum tipo de 
problema limitador que pode levar em muitos casos à deficiência, seus familiares e todos os 
que de alguma forma trabalham ou se dedicam ao seu atendimento e à sua assistência sabem 
muito bem que tem havido uma inacreditável lentidão da sociedade e do governo em aceitar 
as reais dimensões do complexo de situações enfeixadas nas deficiências físicas, sensoriais, 
orgânicas e mentais.
    Podemos imaginar que essa atitude quase de imobilidade prevaleça devido à inexistência 
de dados entre nós. Nossos recenseamentos nacionais não têm inserido estudos dessa 
natureza em seus questionários. Diga­se de passagem que desde o ano de 1959, quando o 
General Lott ocupava provisoriamente a Presidência do Brasil, gestões tem sido feitas para 
tal fim, mas sem o menor vislumbre de sucesso.
    De outra parte, estimativas mundiais só começaram a ser profusamente divulgadas 
durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que foi expressamente criado pela 
Organização das Nações Unidas para alertar o mundo todo a respeito da existência de um 
certo percentual de pessoas marginalizadas por problemas físicos ou sensoriais, seus direitos, 
deveres e aspirações.
    Mas não é somente por falta de dados que a sociedade em geral e nossos governantes tem 
se omitido. Existe uma certa dose oculta de rejeição, consciente ou não, que é muito 
ponderável nesse panorama todo que envolve pessoas com deficiências no mundo de hoje.
    Face a esses fatores é muito importante chamarmos a atenção para o fato de que, 
exatamente por haver desconhecimento quanto às verdadeiras dimensões dos problemas 
relacionados a deficiências entre nós, e por ocorrer uma evidente rejeição das pessoas que 
são diferentes devido a uma anomalia física ou mental, a maneira como o Brasil está 
encaminhando programas e atividades voltadas para pessoas deficientes ­ salvo raras e mui 
distintas exceções ­ tem sido na melhor das hipóteses limitada. Na pior, poderá ser 
inadequada, talvez inócua, irrelevante e mal fundamentada, quando não contra­producente.
    As conseqüências da falta de conhecimento e de convicção quanto à gravidade da situação 
e à dimensão do problema, mesmo por pessoas altamente envolvidas, levará fatalmente 
nossos planejadores de governo, nossas organizações privadas, nossas repartições públicas e 
nossa população em geral a não dar atenção própria, a eliminar possibilidades de 
estabelecimento de qualquer nível de prioridade, a preterir a adequada assistência a pessoas 
deficientes por outros programas e a não apoiar qualquer tipo de ênfase nesse campo.
Acresce a tudo isso que, por estarem mal informados ou desinformados por completo sobre a 
verdadeira natureza do problema, todos aqueles que não estão diretamente envolvidos 
tentam ignorá­lo, evitá­lo ou simplesmente pretender que ele não existe. Quase toda a 
responsabilidade pelo atendimento dos casos concretos tem ficado nas mãos de algumas 
entidades privadas, bem ou mal preparadas para a tarefa, ou de órgãos governamentais, 
lamentando­se de quando em quando, ao se deparar com situações mais chocantes, a 
inviabilidade de melhor ajudar a família que literalmente vive a dificuldade permanente.
    Temos visto e ouvido muito em nosso meio que as famílias "atingidas" acabam sentindo o 
problema como exclusivamente seu.
    Muitas delas procuram esconder seu membro deficiente, a fim de evitar também situações 
sociais embaraçosas, tais como contínuas interpretações quanto à natureza e gravidade do 
mal, esclarecimentos quanto a providências já tomadas, elucidações quanto a este ou àquele 
médico especializado que resolveu casos semelhantes e tantas mais.
    Os documentos das organizações internacionais mais categorizadas indicam­nos que pelo 
menos 10%, da população de qualquer país do mundo em tempos de paz sofrem as 
conseqüências de algum tipo de problema físico ou mental ou da combinação de males, de 
tal maneira que precisam de serviços especiais de alguma natureza. No entanto, se fizermos 
uma superficial análise da distribuição geográfica das populações no mundo e dos recursos 
disponíveis para ajudar as pessoas portadoras de deficiências, verificaremos que a maioria 
delas, por estarem localizadas em países sub­desenvolvidos, não teve, não tem e não terá 
qualquer oportunidade de acesso aos mesmos.
    A Rehabilitation International, em sua farta documentação para o Ano Internacional das 
Pessoas Deficientes e também para a Década de Oitenta, afirma categoricamente que as 
modernas e por vezes palacianas instalações que costumamos chamar de "centros de 
reabilitação" ficam tão distanciadas de suas vidas quanto um carro de luxo de último tipo. E 
um dos motivos é que a maioria das deficiências ocorre nas áreas mais pobres com muita 
probabilidade de complicações adicionais devido à falta de assistência. Nessas realidades o 
que conta é a sobrevivência, o pão, o teto e não as aspirações "mais altas". Como pensar em 
reabilitação quando não há dinheiro para a alimentação ou vestuário?
    As dimensões verdadeiras e realistas das deficiências no Brasil não podem ser 
estabelecidas apenas por números de pessoas atingidas, conforme indicamos anteriormente.
    O claro estabelecimento da verdadeira extensão desses problemas deverá levar em conta 
os efeitos das deficiências sobre a vida das pessoas, tanto a vida daqueles que são 
diretamente atingidos, quanto a de alguns dos membros de seu grupo familiar, do povo, da 
comunidade e da sociedade em geral.
    Por estudos realizados em países mais avançados que o nosso, sabemos que por causa da 
deficiência física ou mental, 1/4 da população de uma nação poderá estar, de uma maneira 
ou de outra, limitada ou bloqueada quanto à plena utilização de suas capacidades e de seu 
potencial.
    É evidente que existe o reverso da situação. A sociedade, a comunidade, os círculos de 
vizinhança ou de amizade, o grupo de referência familiar, têm uma reconhecida influência 
no eventual agravamento da situação, ou seja, na transformação daquilo que é um 
"impedimento" físico, sensorial, orgânico ou mental numa "deficiência". E isso ocorre 
devido a atitudes, receios, estigmas, comportamentos, preconceitos e também à 
discriminação, que são mantidos consciente ou inconscientemente para com pessoas que 
apresentam essas limitações. As dificuldades que cada um de nós individualmente cria para 
a sua educação, participação na vida social ou colocação em empregos, adicionais que 
sempre são às barreiras de acesso a edifícios, ao transporte, aos recursos relacionados à 
recreação e ao lazer, geram problemas que tornam sua solução cada vez mais difícil.
    Ressaltemos, a bem da verdade, que não são poucos os segmentos da sociedade 
diretamente atingidos por deficiências físicas ou mentais. Adicione­se que há outros que são 
responsáveis pelas conseqüências negativas das limitações acima referidas.
    Uma redução objetiva dessas conseqüências poderá ser garantida por uma ação conjunta, 
dirigida a cada uma de suas origens. Como exemplo vale lembrar um maior provimento de 
serviços adequados de reabilitação para pessoas deficientes, incluindo nele serviços com 
tecnologia mais simplificada ou serviços baseados em recursos já existentes na comunidade.
    É fundamental que tenhamos programas de reabilitação mais dinâmicos, cujos 
profissionais não trabalhem apenas no físico, mas também nas atitudes e no comportamento 
das pessoas – tanto aquelas que são deficientes quanto as que não são portadoras de 
deficiências – quer individualmente, quer em grupo. Estaremos dessa forma dando àqueles 
que chamamos hoje, com uma certa despreocupação e sem medir bem o significado da 
palavra, de “deficientes”, oportunidades para superar o complexo de problemas que os 
afligem e passar a ser muito mais “eficientes” na sociedade.
    Analisarmos o quadro completo de evolução dessas situações no Brasil é tarefa 
impossível nos dias de hoje. Um olhar para o futuro poderá nos sugerir que o volume de 
problemas trazidos pelas deficiências continuará existindo e estará sempre vinculado às 
tendências mais gerais de evolução social e humana de nosso país.
    Essas tendências nos dias que correm mostram­nos taxas assustadoras de desemprego e 
num crescendo quase sem barreiras, o imenso acervo de pessoas sobrevivendo em situações 
de sub­emprego, o que deixa – aparentemente – as pessoas deficientes numa dificuldade 
ainda maior para serem absorvidas pelo mercado aberto de trabalho. 
    Continua existindo a migração de pessoas provenientes de regiões mais pobres para áreas 
mais promissoras, caindo quase sempre em favelas, em cortiços que se encontram super­
povoados, ou em outros tipos de habitações infra­humanas. Boa porcentagem da população, 
em vez de estar trabalhando em produção de alimentos, volta­se para ocupações não 
qualificadas do meio urbano, tangida pela ambição de obter melhores condições de vida. A 
tudo isso acrescentemos o imenso abismo, em continua expansão, que existe entre a nossa 
população que possui bens daquela população que não os possui. Procuremos, deste ponto 
em diante, analisar a situação das pessoas chamadas deficientes, dentro do final do século 
XX e dentro de nossa realidade brasileira. Tentaremos iniciar discussões quanto aos motivos 
que poderão levar pessoas portadoras de deficiências a uma situação de marginalidade.
    Elaboraremos também um pouco quanto ao verdadeiro significado e às implicações 
daquilo que é verbalizado muito facilmente como "integração social das pessoas 
deficientes".
    O que é que significam essas palavras bonitas em termos práticos?
    Como é que podemos traduzi­las para o nosso dia­a­dia?
    Analisaremos a importância do ajustamento do indivíduo portador de deficiência como 
pessoa, pois é a adequação pessoal o objetivo último do processo reabilitacional. É por meio 
dela que a pessoa poderá ter condições suficientes para sair de uma situação de dependência 
e marginalidade para uma outra de auto­suficiência na sociedade em que vive.
    Focalizaremos também um pouco mais pormenorizadamente os componentes do 
ajustamento à vida de trabalho, ou seja, a adequação da pessoa portadora de deficiência a 
uma situação concreta de produção de bens e serviços.
    Por não podermos de forma alguma desconsiderar a importância de uma consagrada ação 
que, sem a menor sombra de dúvida, desde os seus primórdios se caracterizou como um 
trabalho multi­profissional que extrapola em muito às atuações de um só profissional, 
teremos um capítulo especial de discussão quanto às características e as dificuldades do 
trabalho de equipe nos programas reabilitacionais de hoje. E finalmente iniciaremos pontos 
de discussão com o objetivo de dar uma visão de como poderá ser viável a avaliação e o 
controle das atividades de nossos centros e de nossos programas de reabilitação, 
considerados tão dispendiosos para nossa sociedade, tão aparentemente fora de nossa 
realidade, mas tão fundamentais para aqueles que precisam de serviços especiais para terem 
condições mínimas a fim de tentar a grande aventura da integração completa na sociedade, 
pois têm o direito de desfrutar de tudo aquilo que está implícito nos temas básicos do Ano 
Internacional das Pessoas Deficientes, ou seja, "participação plena e igualdade".

            CAPÍTULO PRIMEIRO
            AS CAUSAS DA MARGINALIDADE DAS PESSOAS DEFICIENTES 

    A ignorada epopéia de parcelas da população mundial, através dos muitos séculos da 
História do Homem sobre a Terra, mostra­nos com muita clareza que a sociedade dos 
homens, em todas as partes do mundo e em todas as épocas, sem qualquer exceção 
praticamente, colocou e continuará colocando por muito tempo mais à margem de sua 
correnteza principal certos tipos de indivíduos que dela poderiam fazer parte.
    A nossa sociedade, em seus múltiplos segmentos, não se apresenta como exceção, apesar 
de ser notória a pretensão que tem de muito aberta à integração de todos, sem adotar 
qualquer medida preconceituosa. A verdade dos fatos é outra, porém: as atitudes 
discriminatórias existem entre nós e com elas suas conseqüências mais lamentáveis, que são 
as situações reais de marginalidade social.
    Na tentativa de analisar com cuidado este tema, uma das primeiras e cruciais dúvidas 
aflora: quais os motivos que levam as pessoas ou os grupos a tomar uma atitude 
discriminatória e muitas vezes repleta de idéias pré­concebidas, em detrimento de outros 
indivíduos?
    Que tipo de raciocínio ocorre para alguém, sem muito pensar, simplesmente eliminar de 
sua vida e de seu meio uma pessoa por apresentar um tipo qualquer de anomalia?
    Embora muitos pontos possam ser colocados à consideração do estudioso do assunto, um 
dos mais sérios e significativos mostra­nos que a sociedade marginaliza ­ ou seja, retira da 
correnteza principal  ­  alguns indivíduos devido a motivos vários e definidos, mas cumpre 
que coloquemos em relevo aqueles que se relacionam à apresentação visual, ou aqueles que 
estão diretamente relacionados ao comportamento face ao grupo. Com isso ela demonstra 
que existem alguns padrões de aceitabilidade.
    Essa verdade é aplicável a várias situações, mas de um modo todo especial ela é quase 
universal com relação às características físicas e/ou mentais dos indivíduos.
    Preconceitos e medidas discriminatórias existem concretamente contra quase todos os 
tipos de "anormalidades" ou de "anomalias", muito embora essas atitudes apresentem 
tonalidades de ênfase diferente, pois "a maioria das pessoas não tem contra os deficientes a 
mesma espécie de preconceitos, que alimenta contra certos grupos religiosos, raciais ou 
desfavorecidos" ("O Indivíduo Excepcional", de Telford e Sawrey).
    Para todo aquele que procura melhor compreender as origens deste problema de 
ponderável complexidade, será de grande valia conscientizar­se das características 
aproximadas da normalidade, em seu sentido sociológico, procurando especular um pouco 
quanto às características que o ser humano precisa apresentar para ser considerado como 
"normal", em nossos grupos sociais. É importante compreender com alguma segurança quais 
os fatores que determinam ser o indivíduo assimilável, ou então, pouco aceitável.
    Essa preocupação levar­nos­á, sem dúvida, a lembrar primeiramente que não existe um 
indivíduo sequer que seja idêntico a outro. Na verdade, ser diferente é bem próprio da 
natureza humana e as diferenças são de caráter universal. No entanto, há vagos limites de 
tolerância para essas diferenças individuais entre os homens, a tal ponto e de tal maneira que 
o grupo social poderá chegar mesmo a bloquear aquele seu membro "excessivamente 
diferente", colocando­o de lado.
    Para todos os efeitos, "ser diferente" é ser "colocado de lado", o que em linguagem de 
relações inter­pessoais, pode significar rejeição.
    ... "Muitos escritores têm também atribuído a rejeição de uma pessoa deficiente ao fato 
dela ser diferente. O "ninguém quer ser diferente" é aceito como uma lei óbvia do homem" 
("Physical Disability ­ A Psychological Approach" de B. Wright).
    Tudo aquilo que é muito diferente, que não é nada igual ao costumeiro, que foge à 
normalidade, que é raro, chama a atenção. A diferença e a "excepcionalidade" podem existir 
tanto para melhor quanto para pior. Quando elas ocorrem para o lado positivo, como nos 
casos de beleza excepcional, da forma física perfeita, da inteligência fora do comum, elas 
causam deleite àqueles que com elas se defrontam.
    É a excepcionalidade positiva que estimula o homem a se aproximar ou a almejar o ideal 
perfeito, sempre sonhado e nunca atingido.
    No entanto, todos sabemos muito bem que há exceções que nos levam para o lado 
negativo e são essas as que mais causam dificuldades. Acontecimentos excepcionais 
catastróficos, grandes desastres coletivos, guerras ou revoluções como solução de disputas 
são acontecimentos que polarizam a atenção. Da mesma forma chamam a atenção os 
comportamentos irracionais e os padrões de desenvolvimento físico ou de aparência anormal 
do ser humano.
    Essas anomalias ou exceções preocupam as pessoas atingidas, as famílias envolvidas, as 
comunidades às quais pertencem, os poderes constituídos e a própria estruturação da 
sociedade. E chamam a atenção porque, para a grande maioria dos membros ativos ou 
passivos de nossa sociedade, num certo sentido não só desagradam, como também ameaçam 
a tranqüilidade, o bem­estar, o sentido de estética, a harmonia, a segurança pessoal e a 
familiar, criando eventuais dificuldades para a posição social das pessoas afetadas, além das 
respectivas famílias ou grupos de relacionamento, quando não da sociedade maior.
    Quando ocorrem catástrofes naturais ou situações anormais de caráter geral a sociedade 
mobiliza­se, pois ela sabe muito bem que esses eventos ou situações precisam ser 
contornados ou resolvidos ­ e mesmo eliminados ­ sempre que possível com a colaboração 
dos mais diversos setores da comunidade. Com essas providências ela se desenvolve cada 
vez mais e procura garantir melhores condições de vida e maior índice de segurança para o 
povo. As condições de divergência do usual atingem o homem como indivíduo e como 
membro de um grupo. Nesses casos a sociedade mais consciente, por meio de grupos os 
mais diversificados, procura também tomar sua posição. Assim como no primeiro exemplo, 
neste também ela se sente ameaçada.
    Dependendo de valores culturais predominantes, suas necessidades globais, sua 
composição, sua realidade política, seu grau e capacidade de desenvolvimento, seu modo de 
ver o indivíduo, seu nível de conscientização, e outros fatores, ela age através de atividades 
assistenciais que podem levar à compreensão do problema, à prevenção de males, 
eventualmente ao controle das pessoas afetadas por esses males e aos programas que levem 
à sua reabilitação global. Com isso ela "extermina" o mal, "elimina" a excepcionalidade, 
separa o contingente atingido, assiste­o financeiramente, abriga­o ou segrega­o do restante 
da sociedade, ou parte para sua completa integração em bases equânimes.

    ­ *Normal ou anormal: eis o problema*
    Será muito difícil para um estudioso afirmar com segurança que consegue indicar tudo 
aquilo que é "normal" ou "anormal" num ser humano, em dada realidade, seja em termos de 
desenvolvimento pessoal, seja em termos de comportamento. Ninguém sabe, na verdade, até 
que ponto uma diferença dos padrões da aceita "normalidade" poderá ser assimilada sem 
maiores dificuldades pela sociedade onde ocorre. O único ponto de conhecimento 
generalizado e que todos sabemos que existe um limite indefinido para as diferenças do 
"normal" serem assimiladas pelo grupo social. Segundo cada realidade social e cada cultura 
podem ocorrer claras delineações quanto aos desvios da normalidade que são ou não 
aceitáveis, que podem até ser considerados como vantajosos, dependendo sempre dos 
resultados práticos provocados pela "anormalidade" e do papel que os indivíduos afetados 
possam ter na sociedade.
    Vejamos um exemplo prático:
    Na época em que atuamos na Unidade de Reabilitação do Deficiente ­ Departamento de 
Desenvolvimento Comunitário e Bem­Estar Social da Organização das Nações Unidas ­ 
tivemos um dia a oportunidade de entrar em contato com uma situação "sui­generis", que 
estava embaraçando um consultor geral de reabilitação, em programa de assistência técnica 
num país africano de antiga vinculação com a Inglaterra.
O governo federal dessa nação mantinha uma equipe volante de bem­estar social que 
passava parte do mês em viagens pelas aldeias da região norte do país. Rodava milhares de 
quilômetros para garantir o desenvolvimento contínuo de programas e para fazer os 
indispensáveis contatos oficiais.
    Um dos objetivos desse programa volante era também entrevistar pessoas deficientes e 
seus familiares para estabelecer um bom clima de relacionamento com os mesmos e com 
isso gradativamente encorajá­las a participar de um programa de capacitação para o trabalho 
rural. O relacionamento com o chefe da aldeia era fundamental sempre. No caso em pauta o 
objetivo principal era garantir o encaminhamento de pessoas adultas cegas para um centro de 
reabilitação dos arredores da capital, que mantinha programações práticas para nativos que 
quisessem se dedicar a atividades próprias da aldeia.
    O Centro em si era muito simples e adaptado à realidade do país e todo o treinamento era 
custeado por verbas federais. Quase sempre a equipe volante retornava à base com alguns 
cegos dispostos a residir por alguns meses nas instalações do centro e aprender não só 
habilidades da vida de todo dia, mas também aquelas relacionadas ao cultivo do milho, da 
mandioca, do café, de legumes e de hortaliças, além dos cuidados com animais domésticos.
    Numa certa aldeia localizada às margens de um sereno lago, entretanto, um velho e 
indecifrável chefe de aldeia protelava indefinidamente a viagem de três cegos. 
Aparentemente não havia motivo algum. O chefe não dizia um "não" categórico e os cegos, 
apoiados em seus bastões, sorriam e não diziam nada. Na comunidade em si ninguém 
apresentava qualquer explicação.
    Numa das últimas viagens empreendidas pelo especialista da ONU com a equipe de 
campo, foi feita uma visita especial à aldeia em questão. Como sempre, todos foram 
recebidos muito bem e após os cumprimentos sorridentes sentaram­se ao redor do chefe­
ancião. No grupo de negros de características muito puras, a tez clara do estrangeiro 
sobressaía. E foi ele quem fez a pergunta direta que nenhum outro havia feito antes, seja por 
respeito às decisões do chefe, seja em conseqüência de uma posição cultural:
"Por que esses três jovens, que são cegos, não viajam para nosso centro para ali poderem 
aprender a ser independentes, a cuidar de si mesmos, a ter suas plantas, suas cabras e sua 
própria cabana?".
    A resposta veio clara, embora repleta de cautela. Segundo os ancestrais daquela tribo, toda 
aldeia poderia ter motivos para ser valente e muito aguerrida. Mas só aquela que tivesse 
motivos para ajudar seus próprios membros é que poderia ser uma aldeia feliz. Ora, os 
cegos, os velhos, as mulheres sem seus maridos significavam uma bênção dos deuses e dos 
ancestrais, pois todos eram muito bem cuidados por todas as famílias que repartiam entre si 
a responsabilidade pela sua alimentação, vestuário e abrigo. Se eles fossem levados a um 
centro para voltarem independentes, cuidando por si mesmos de suas plantas e seus animais, 
o que restaria àquela aldeia fazer para merecer a felicidade que só a caridade trazia?...

    ­ *As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis*
    Situações que fogem aos padrões normais existem no mundo inteiro, mas as 
características próprias dos tipos de preconceitos e das diversas formas de discriminação a 
elas relacionadas dependem diretamente dos padrões culturais de cada povo. Têm elas 
significado bastante variável de povo para povo e só poderão ser bem compreendidas no 
contexto social onde ocorrem.
    Numa cultura primitiva, por exemplo, na qual a qualidade de vida, o bem­estar geral e o 
relativo conforto podem depender em grande parte dos resultados da caça, as aptidões 
individuais correspondentes a um físico ágil e forte são as mais relevantes para o grupo 
social. Nele, a deficiência física, a debilitação geral, a velhice, as demonstrações de medo, o 
excessivo cuidado com a segurança do corpo são graves desvantagens. Nessa mesma 
sociedade primitiva a inabilidade para falar desembaraçadamente, ou para fazer cálculos, a 
incapacidade para ler e para escrever, a falta de condições para o desenvolvimento de 
atividades artísticas são muito pouco relevantes.
    Numa outra realidade hipotética, escassamente habitada e de características agro­pastoris, 
o indivíduo mentalmente retardado ou aquele socialmente desajustado não oferece 
preocupações relevantes para o grupo maior. A criança de uma região dessa natureza, que é 
incapaz de ler ou de escrever, sempre poderá ser muito útil para o desempenho de diversas 
tarefas, podendo constituir­se num membro bastante produtivo da família ou do grupo 
social, enquanto que num ambiente mais competitivo e desafiador, como o de cidades, a 
situação seria bem diversa.
    As diferenças individuais e que caracterizam cada um dos seres humanos serão 
encontradas sempre. Será o grupo social, todavia, que irá estabelecer quais as divergências 
que poderão ser consideradas como prejudiciais ou como vantajosas e quais as que 
provocarão depreciações ou valorizações do ser humano.
    Analisemos um outro exemplo concreto:
    Numa ilha do Oceano Pacífico, sempre cercada por cardumes de vorazes tubarões, a 
atividade de pesca, muito mais do que a atividade agrícola ou pastoril, é a fonte principal de 
alimentos de toda a população. Devido às circunstâncias próprias, apesar de atividade vital, é 
sempre muito perigosa. Ocorrem de quando em quando acidentes com os pequenos barcos 
de pesca que atiram às águas seus ocupantes. E muitas vezes eles são quase que 
imediatamente atacados por tubarões. Dessas vítimas poucas são as que sobrevivem. Nessa 
perdida ilha o fato de um adulto não ter um braço ou uma perna não leva a depreciação 
alguma. Muito pelo contrário, a deficiência corresponde à garantia de uma inquestionável 
posição de prestígio na comunidade, pois todos sabem que aquele homem enfrentou o 
inimigo mortal durante a luta pela sobrevivência do grupo. O homem amputado é ali olhado 
com respeito e admiração.

    ­ *A questão em termos de Brasil*
    Qual a situação que encontramos no Brasil de nossos dias a esse respeito? Todos sabemos 
muito bem que existem no Brasil situações as mais díspares e costumes os mais estranhos, 
pois temos uma sociedade que no geral fala a mesma língua, distribuindo­se por um 
território de tamanho continental, com realidades bem evoluídas de um lado, enquanto que 
em regiões mais pobres e menos desenvolvidas há camadas da população que ainda não 
chegaram a entrar em contato direto com o mundo moderno.
    Nessa realidade vastíssima, tão cheia de contrastes, observa­se também que em geral as 
pessoas com menor capacidade física e mental, com menor e menos atualizado 
conhecimento das implicações da vida moderna, vão sendo gradativamente marginalizadas. 
Com o desenrolar do tempo e com a real impossibilidade desses indivíduos conseguirem 
superar os problemas que os atiram à margem da sociedade atuante, acabam caindo, quer a 
contragosto, quer de bom grado, na dependência de membros mais ativos e produtivos. E há 
o contingente populacional de tamanho significativo que acaba como beneficiário dos bem 
ou mal definidos programas assistenciais mantidos pela comunidade.
    Entre nós, como em muitas outras sociedades do mundo moderno, existem diferenças que 
via de regra levam as pessoas a depreciar o indivíduo, quando essas diferenças são muito 
evidentes. E nas eventualidades dessas diferenças consideradas desagradáveis não serem 
pelo menos disfarçadas, escondidas ou reduzidas, acabam provocando reações que 
determinam providencias especiais para que o indivíduo seja separado, seja tratado ou seja 
simplesmente mantido longe.

    ­ *A visibilidade da deficiência*
    A visibilidade de uma diferença física menos agradável sempre dificulta tentativas de 
integração da pessoa humana atingida ao seu grupo, principalmente devido às dúvidas e à 
ansiedade que ela provoca.
    Há receios ocultos quanto às prováveis conseqüências das vinculações ou da convivência 
com o ser humano deficiente. A maioria das pessoas ditas normais não se sente à vontade na 
presença de pessoas gravemente deficientes que passam a ser tratadas como gente estranha e 
numa razoável distância social.
    As amputações de membros superiores (e em alguns casos as de membro inferior 
também), a paraplegia, a hemiplegia, a paralisia cerebral, as deformações congênitas em 
geral, todas tem grande visibilidade, enquanto que os males orgânicos, alguns sensoriais, os 
desvios psicológicos e sociais chamam muito menos a atenção e levam a menos 
significativas reações. Provocam em contrapartida menor índice de boa vontade por parte do 
público em termos de causas, de programas ou de campanhas.
    A visibilidade das alterações do padrão médio de normalidade física, às vezes precisa ser 
muito bem ponderada e cuidadosamente considerada por pais e educadores quando 
formulam planos educacionais para uma criança. E uma das perguntas mais cruciais é esta: 
"Até que ponto poderá uma criança diferente ­ portadora de algum tipo de deficiência mais 
facilmente perceptível ­ beneficiar­se de uma escola segregada ou de uma escola integrada?"

    ­ *O problema do "comum" e do "normal"*
    Conforme analisado, aparentemente um dos motivos mais ponderáveis para que se 
desencadeie um processo marginalizante é um certo desvio dos padrões da normalidade 
aceita pelo grupo. Embora seja muito importante a compreensão exata das implicações da 
"normalidade", a sociedade em geral confunde aquilo que é "normal" com aquilo que é 
"comum". Sob o ângulo prático de análise dos termos, "comum" é aquilo que é 
encontradiço, enquanto que "normal" é o desejável. O comum em termos de Brasil, por 
exemplo, pode ser um no Estado do Amazonas e outro bem diverso no Rio Grande do Sul ­ e 
ambos diferentes do que é encontradiço e considerado comum no Nordeste. Em algumas 
regiões brasileiras é comum vermos o homem analfabeto vinculado a situações quase que 
escravizadoras de trabalho. É comum a subnutrição, a ausência de recursos para ensino ou 
saúde. São situações comuns, mas não são normais, aceitáveis, dignas do homem. No 
entanto, essas situações anômalas são tantas vezes tomadas como naturais, corriqueiras, 
usuais e sem maior importância, que ficam sendo consideradas como normais ­ e não o são!
    Nessa mesma linha de exemplificação prática de raciocínio, o "normal" é e sempre será o 
desejável e aquilo que está em plena concordância com a natureza humana e com a 
dignidade do homem. Em qualquer sociedade do mundo civilizado de hoje, no qual não 
existem mais barreiras de comunicação, a palavra "normal" deveria estar sempre incluindo 
todas as condições conseqüentes aos direitos básicos previstos na Declaração Universal dos 
Direitos do Homem.
    É muito difícil eliminarmos qualquer um dos direitos previstos nessa Declaração, pois 
cada um deles focaliza aspectos de inquestionável importância na vida do homem sobre a 
Terra. Entretanto, é nesse mesmo mundo de hoje, que aceita tranqüilamente uma Declaração 
Universal dos Direitos do Homem, adicionando a ela declarações subsidiárias relacionadas à 
mulher, às pessoas com retardo mental, às pessoas deficientes, que vemos de quando em 
quando situações realmente desumanas de natureza muito comum que acabam sendo 
assimiladas e aceitas por grupos da sociedade, inclusive pela nossa própria. Isso jamais 
poderá significar que elas possam ou devam ser aceitas ou consideradas como "normais".

    ­ *A grande variedade de condições marginalizantes*
    Esse ângulo da questão leva­nos, sem dúvida, a alarmantes conclusões quanto à situação 
da maioria dos países do mundo ­ inclusive do Brasil ­ pois se formos levar até as últimas 
conseqüências a consideração do problema das deficiências, sob esse prisma, deveremos 
considerar como indivíduos colocados à margem da correnteza principal da sociedade todos 
aqueles que:
    ­ recebem salários injustos e insuficientes para seu sustento e para manutenção de seu 
grupo familiar;
    ­ não têm acesso aos benefícios da previdência social estabelecida;
    ­ são impedidos, na prática, de receber instrução básica;
    ­ passam fome ou alimentam­se inadequadamente por não terem condições financeiras 
para adquirir alimentos;
    ­ habitam de forma infra­humana;
    ­ não conseguem livrar­se dessas situações apesar de tentarem.

    ­ *Como classificar as condições marginalizantes*
    Mas estamos aqui procurando analisar somente o problema das pessoas que sofrem o 
estigma das deficiências físicas, mentais, sensoriais, orgânicas, ou conseqüentes a doenças 
mentais ou à idade. Para podermos dimensionar e avaliar concretamente o desafio 
apresentado por esse estigmatizado segmento da sociedade, procuremos uma forma de 
classificar as diferenças dos padrões de normalidade considerados usuais e por ela 
idealizados. Poderemos ter dessa maneira, uma idéia mais clara da verdadeira extensão dos 
problemas daqueles que são muitas vezes conhecidos como "deficientes", "excepcionais", 
"incapacitados" ­ e que passaremos a chamar de "pessoas deficientes" ­ e do seu desafio para 
programas que pretendem ter como meta a sua integração plena na sociedade.
    Na bibliografia existente encontraremos vários tipos de classificação dessas diferenças ou 
situações de excepcionalidade. Uma das mais claras e mais felizes é aquela que analisa o 
problema sob o ângulo do desvio básico dos padrões de normalidade, adotada também por 
Telford e Sawrey. Limitemo­nos, entretanto, a discutir os desvios de normalidade de 
natureza mais agravante, conforme referido acima, que podem levar o indivíduo a um tipo 
de marginalidade mais difícil de ser superada sem o concurso de serviços especialmente 
organizados.
    Mantenhamos em mente que para nossa cultura o indivíduo normal é o que tem um corpo 
praticamente perfeito e sem aberrações, aquele que tem os órgãos e os sentidos funcionando 
bem, com uma inteligência pelo menos em nível adequado, dono de um acervo de hábitos e 
de comportamentos que não chegam a causar preocupações e dentro de uma faixa etária 
considerada como produtiva e não muito avançada. Quase tudo que escapa desses padrões 
passa a ser visto com certa dificuldade e poderá levar o indivíduo a situações de certa 
marginalidade.
    É nesse sentido que poderemos citar os desvios intelectuais, os sensoriais, os motores, os 
funcionais e os orgânicos; além disso, incluiremos os problemas de personalidade e os 
sociais mais sérios; e não deixaremos de lado as dificuldades encontradas por pessoas de 
idade avançada.
    Procuremos analisar um a um, em poucas palavras, esses diversos tipos de desvios de que 
falamos acima.

    ­ *Desvios intelectuais*
    Existem estudos muito interessantes a respeito de problemas intelectuais que levam a 
certos desvios, tanto para o lado positivo quanto para o negativo, partindo sempre de um 
ponto médio. A preocupação básica de nossa sociedade, entretanto, tem­se centralizado nos 
desvios para menos, ou seja, nos casos de deficiências mentais de vários graus, incluindo os 
limítrofes, os educáveis, os treináveis e todos aqueles que não conseguem ser absorvidos 
pela sociedade devido a um rebaixamento intelectual.

    ­ *Desvios motores*
    Agrupados sob este tipo de desvio de normalidade encontraremos todos os casos de 
amputações, as malformações motoras congênitas ou adquiridas, os problemas ortopédicos 
de gravidade e provocadores de seqüelas incapacitantes, os males neurológicos com os 
mesmos tipos de conseqüências, dentre os muitos que poderiam ser aqui inseridos. Na 
verdade são os problemas que mais chamam a atenção quando se fala em reabilitação ou 
quando se menciona o problema das deficiências de um modo genérico.

    ­ *Desvios sensoriais*
    Sendo normal o uso de todos os sentidos, o ser humano que se vê privado de um só deles 
pode facilmente ser vítima de séria marginalização se não souber como superar o problema 
vivido. Assim é que, dentre os casos mais notórios, temos os cegos ou deficientes visuais, os 
surdos e casos afins, conhecidos como deficientes auditivos, com diminuição ou gradativa 
perda do sentido da audição. A perda ou redução de outros sentidos como o olfato, o paladar 
e o tato não é comum nem causadora de sérias dificuldades sociais, apesar de poderem ser 
arroladas as muitas exceções que acabarão por confirmar a regra.

    ­ *Desvios funcionais*
    Certas funções do organismo, quando prejudicadas por um defeito, por uma doença ou por 
um acidente poderão trazer sérios problemas para o indivíduo. Assim temos o caso dos 
afásicos ou daqueles que têm dificuldades de comunicação que é o tipo mais facilmente 
encontradiço neste grupo.

    ­ *Desvios orgânicos*
    Dentre os desvios orgânicos que mais trazem problemas ao homem estão aqueles 
ocasionados por vários tipos de cardiopatias sérias e por males da respiração, incluindo­se 
nos mesmos os casos de tuberculose, dentre muitos outros.

    ­ *Desvios de personalidade*
    Este tipo de dificuldade está diretamente ligado a problemas emocionais ou distúrbios 
mais graves como as neuroses e as psicoses. Vários males relacionados à saúde mental 
podem também levar as pessoas a situações de marginalização.
    ­ *Desvios sociais*
    Os delinqüentes juvenis, os criminosos adultos, certos tipos de contestadores, os viciados 
em drogas, os alcoólatras, os fármaco­dependentes são alguns tipos que ilustram o chamado 
desvio social. Muitos deles não têm absolutamente nada em comum e os programas 
montados para sua assistência são muitas vezes totalmente separados ou alheios uns aos 
outros.

    ­ *Problemas de idade avançada*
    Os problemas ocasionados pela velhice são muito próprios e característicos. Apesar de em 
outros tipos de situações encontrarmos eventualmente certas superposições sempre 
agravantes, na velhice e que sempre encontramos a maior incidência dessas superposições 
que tornam a assistência a idosos muito difícil. São os casos de velhos cardiopatas, cegos, 
surdos e outros tipos.

    ­ *Outras condições que levam à marginalidade*
    Cada um desses problemas mencionados separadamente poderá levar uma pessoa menos 
preparada ou menos protegida a certo grau de marginalização, ou pelo menos a uma série de 
dificuldades para garantir uma completa integração ao seu grupo. Nos casos de desvio 
motor, sensorial, orgânico, intelectual, de personalidade e de idade avançada, no entanto, 
verificamos muitas vezes que, além de ocorrer uma eventual superposição de dificuldades, 
existe também com muita freqüência a ocorrência de hábitos, de atitudes e de 
comportamentos inaceitáveis ou inadequados, provocando situações muito mais sérias do 
que o próprio desvio em si mesmo.

    São também muito ponderáveis os problemas causados por certos tipos de rótulos 
estigmatizadores aplicados a indivíduos ou a populações que vivem em condições diferentes 
daquelas consideradas como aceitáveis, ou seja os "favelados", os "aleijados", os 
"paralíticos", os "loucos" e tantos mais.
    As dificuldades, entretanto, não se limitam a essa questões ou a esses ângulos, pois aos 
problemas ocasionados pela existência de uma deficiência qualquer ou pela ocorrência de 
estigmas rotuladores, eventualmente deve­se também adicionar uma série de situações 
causadas por fatores pessoais ou sociais. Dentre os fatores pessoais convém que não nos 
esqueçamos dos males provocados pelo analfabetismo, pelas crendices e superstições, pela 
ignorância generalizada, pela inabilidade de resolver problemas e pela miséria material.
    Dos fatores sociais mais significativos causadores eventuais de situações de 
marginalização cumpre que destaquemos o crescimento vertiginoso e desordenado de nossas 
grandes cidades, a falta ou a inoperância dos recursos humanos ou dos equipamentos sociais 
da comunidade, o evidente descompasso existente entre a educação e o desenvolvimento 
tecnológico, além dos preconceitos e das atitudes discriminatórias.

    ­ *Deficiência e incapacidade: distinção importante*
    Segundo consenso internacionalmente existente, quando, em conseqüência de algum mal, 
o ser humano é vítima de um certo impedimento de ordem física, por exemplo, temos a 
instalação de uma deficiência. Essa deficiência poderá levar ou não a uma incapacidade, ou 
seja, a uma situação de desvantagem, de inferioridade. Claro que um impedimento sempre 
poderá causar uma deficiência inócua, pouco significativa e sem maiores conseqüências para 
o indivíduo afetado. Por exemplo, no caso de um auxiliar de caminhão perder o dedo 
mínimo da mão esquerda. Esse mesmo impedimento, fisicamente observado e 
diagnosticado, trará conseqüências marcantes para um pianista, para um datilógrafo, para um 
clarinetista profissional. 
    O que sucede é que quando essa deficiência é tomada como uma desvantagem 
significativa para com os demais, ou quando ela é rejeitada sem que o indivíduo atente para 
suas conseqüências práticas, em geral a pessoa portadora da deficiência começa a agir e a 
desenvolver hábitos e atitudes tais que o grupo social se vê forçado a deixá­la de lado e cada 
vez mais à sua margem.
    Consideradas as circunstâncias em que acontecem e muitas vezes as pessoas que atingem, 
certas deficiências não podem nem devem ser tidas como "incapacidades", pois estas são 
realmente problemáticas e estão presentes sempre que ocorrer a somatória de três tipos de 
limitações:
    ­ a limitação objetiva, imposta pelo impedimento ou desvio (por exemplo, um paraplégico 
não consegue mais andar e tomar uma condução pública sem a ajuda de muletas ou de uma 
cadeira de rodas; um cego não poderá ler instruções em planilhas de trabalho; um amputado 
de mão, por mais hábil que procure ser, não poderá ser um violinista);
    ­ a limitação estabelecida por segmentos da sociedade com os quais o indivíduo se 
relaciona (por exemplo, clubes não aceitam pessoas com deficiências físicas, a sociedade 
evita contatos próximos com vítimas de paralisia cerebral, ou procura manter os hansenianos 
fora de seu alcance);
    ­ a limitação que o próprio indivíduo atingido estabelece (por exemplo, o paraplégico que 
acha estar liquidado para a vida de trabalho ou a vida social; o cego que não se dispõe a 
aprender o Braille ou a andar sem a ajuda dos outros por medo de não o conseguir).

    Conforme foi já comentado anteriormente, os objetivos da vida de cada um de nós é que 
acabam por determinar se uma deficiência pode ser desvantajosa, tornando­se uma 
incapacidade, ou não. Como indicamos, para um violinista profissional as conseqüências da 
perda do dedo mínimo da mão esquerda são muito mais contundentes do que para um 
ajudante de caminhão. Uma datilógrafa poderá ter uma feia cicatriz no rosto, mas não uma 
recepcionista.
    Em síntese, a marginalidade existe entre nós, como existe em todos os países do mundo 
moderno. Ao analisarmos a história da humanidade descobrimos que o indivíduo deficiente 
quase sempre foi relegado a segundo plano, quando não apenas tolerado ou exterminado.
    Verificamos, no entanto, que segmentos mais esclarecidos e politizados de nossa 
sociedade, bem como parcelas significativas de nossos programas oficiais de assistência à 
população, preocupam­se e armam­se para dar cobertura àqueles que sofrem as 
conseqüências da marginalização. Todos sabemos que essas providências não são fáceis, 
nem baratas, o que também nos leva a raciocinar em termos do desafio que significam 
atividades às vezes conhecidas como programas de reabilitação, programas de reinserção 
social ou de integração social, sem que haja plena consciência de seu escopo e do seu valor.
    Fica conosco a dúvida: "Por que existem esses programas"?
    Em que tipo de raciocínio prático ou de princípios filosóficos, ou mesmo de racionalismos 
baseamo­nos para dedicarmos tempo e dinheiro destinados ao atendimento a portadores de 
deficiências? Qual é o verdadeiro significado da integração social das pessoas deficientes?

            CAPÍTULO SEGUNDO
            O SIGNIFICADO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL DAS PESSOAS DEFICIENTES
    Para muitos de nós o problema de integração de uma pessoa deficiente na sociedade é 
apenas questão de acomodação adequada, de equipamentos especiais, de arranjos práticos, 
de tratamento físico eficiente e muito pouca coisa mais. Acreditam muitos que a 
"integração" acontece naturalmente se a pessoa simplesmente voltar ao seu ambiente 
original com o auxílio dos recursos que a medicina coloca à sua disposição e com a remoção 
de alguns obstáculos físicos.
    Claro que esses fatores todos são importantes. No entanto, a desejada integração não 
acontece naturalmente; ela é resultante de um complexo processo cuja necessidade e 
significado pretendemos aqui estudar e discutir ­ ou seja, ela não é uma "volta", pura e 
simples.
    Antes de mais nada cumpre que notemos o seguinte: há pessoas que hoje têm uma 
deficiência e que por causa dela sentem­se marginalizadas, quando na verdade podem ter 
vivido e trabalhado em sua comunidade ­ antes da deficiência ­ sem ter estado realmente 
integradas nela. Viviam independentemente fazendo o que bem entendiam, sem se importar 
com o mundo ao seu redor. Quando uma pessoa desse tipo torna­se deficiente, percebe que 
não era tão integrada à sociedade quanto pensava. O contato restrito com os demais (que a 
pessoa nota pela primeira vez quando adoece ou quando se torna deficiente) acaba 
associando­se com a presença da deficiência.
    Se desejarmos trabalhar pela integração de pessoas deficientes na sociedade maior, é 
muito importante perceber que uma simples tentativa de fazê­la "voltar" à situação anterior à 
deficiência muitas vezes não é suficiente.
    Outro fator muito importante a ser lembrado é que a personalidade de uma pessoa 
deficiente não é a mesma antes e depois da deficiência surgir em sua vida.  Se atuamos no 
sentido de colaborar para que a pessoa portadora de uma deficiência atinja o grau melhor 
possível de integração na sociedade, devemos estar preparados para ajudá­la a compreender­
se melhor e a entender sua nova visão de vida, com a existência das limitações impostas pela 
deficiência. E isto é especialmente verdadeiro com aquelas pessoas deficientes que, antes de 
se tornarem deficientes, jamais se haviam preocupado com opções, com o significado de um 
bom ajustamento pessoal, e de repente notam a importância de tomar uma séria decisão face 
a esses requisitos invisíveis mas muito concretos e inseridos na vida social e familiar. Assim 
o processo de integração que a pessoa marginalizada por uma deficiência vive jamais poderá 
ser estacionário, pois move­se continuamente numa direção ou noutra: seja na direção de 
uma boa integração, seja na direção da segregação e do isolamento cada vez maiores. E 
todos os que trabalham em reabilitação ou que mantêm contatos com pessoas deficientes 
influenciam esse processo, quer o queiram, quer não.
    O processo de integração não acontece de repente ou só porque a pessoa deficiente de um 
lado, e o grupo social de outro, assim o decidem; ele demanda tempo para atingir sua 
plenitude e a plena consciência de todas as suas implicações.
    Em todas as comunidades e em todos os tempos encontramos pessoas que por alguma 
razão são segregadas, individualmente ou em grupos. Talvez elas mesmas tenham procurado 
o isolamento, mas em muitos casos elas são simplesmente excluídas da sociedade. Algumas 
resignam­se à situação, outras protestam contra isso. Há alguns anos atrás o indivíduo 
portador de uma limitação física ou sensorial cedia à evidência de fazer parte de um grupo 
marginalizado e marcado. Hoje a situação está ficando cada vez mais diferente entre nós, 
seguindo as tendências mundiais. As pessoas deficientes protestam e com muito boas razões. 
Elas demandam participação total em igualdade de condições; de sua parte a sociedade exige 
a contrapartida, ou seja, competência pessoal e profissional, independência de atuação, 
comunicação adequada, comportamento social aceitável e um papel definido.
    Nesse processo todo é muito importante que haja muita compreensão de todos os lados, 
pois a integração verdadeira só poderá ocorrer como resultado de cooperação entre duas 
partes.
    Por essa razão resolver os problemas apenas em parte ou só de um lado não solucionará a 
questão. Não é só a pessoa deficiente que deve ser trabalhada, mas também a realidade 
social na qual a integração é pretendida, para que todos entendam os problemas em sua 
complexidade e ajudem na busca de suas soluções.
    Embora muitos peçam ou exijam mesmo a integração em bases equânimes, essa 
integração é um sonho impossível. A sociedade não poderá jamais integrar uma pessoa 
sequer. Ela poderá apenas oferecer as possibilidades de integração e ficar disponível para 
tanto. O trabalho de chegar a essa situação integrada dependerá da própria pessoa deficiente.
    Muitas pessoas que são marginalizadas procuram escapar a essa faceta do processo, 
esquecendo­se que apenas elas poderão atingir esse objetivo, responsabilidade da qual 
jamais poderão escapar.
    Os progressos da medicina, os recursos técnicos e a organização de serviços de 
reabilitação global poderão tornar o processo de integração bem menos difícil.

    ­ *A complexidade do desafio*
    Por mais paradoxal e estranho que possa parecer, certos segmentos da sociedade em que 
vivemos colocam de lado o homem indesejável e que consideram fora dos padrões de 
aceitabilidade, enquanto que, ao mesmo tempo e muitas vezes dentro de uma idêntica área 
geográfica restrita, outros setores da mesma sociedade procuram montar programas de 
assistência e proteção a esse mesmo homem. Dependendo muito do grau de 
desenvolvimento da área em que as situações concretas acontecem esses pretendidos 
programas de atendimento podem chegar a ser bastante diversificados, indo desde a mera 
assistência segregativa e estigmatizadora, até modernos e sofisticados centros de reabilitação 
ou serviços de integração social.
    Que motivos poderiam ser tão fortes e tão ponderáveis para levar uma sociedade toda, ou 
alguns de seus setores, a canalizar esforços, recursos financeiros, voluntariado e outros 
programas das mais variadas naturezas para o desenvolvimento dessas atividades? Que tipo 
de raciocínio lógico poderia ser tão convincente para levar autoridades a dar prioridade a 
programas tão complexos e de tão difícil concretização? Estaria a sociedade apenas 
investindo em reabilitação devido à sua preocupação com a solidariedade para com seus 
membros mais fracos? Estaria ela preocupada com a magnanimidade que precisa demonstrar 
para com os mais fracos?
    As injustiças que assolam nossa sociedade e a ameaça que elas representam levaram o 
Papa João Paulo II a assim se expressar em São Paulo no seu famoso encontro com os 
operários: "O bem comum da sociedade requer, como exigência fundamental, que a 
sociedade seja justa! A persistência da injustiça, a falta de  justiça, ameaça a existência da 
sociedade de dentro para fora, da mesma maneira que tudo quanto atenta contra a soberania 
ou procura impor­lhe ideologias e modelos, toda chantagem econômica e política, toda força 
das armas pode ameaçá­la de fora para dentro. Esta ameaça a partir do interior existe 
realmente quando, no domínio da distribuição de bens, se confia unicamente nas leis 
econômicas do crescimento e do maior lucro; quando os resultados do progresso tocam 
apenas marginalmente, ou não tocam em absoluto, as vastas camadas da população; ela 
existe também, enquanto persiste um abismo profundo entre uma minoria muito grande de 
ricos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de outro lado.
    Todo aquele que trabalha em programas de promoção humana ou desenvolve atividades 
de atendimento ­ profissionais ou voluntárias ­ a grupos marginalizados, e basicamente todos 
aqueles que vivem uma situação concreta de marginalidade, prefeririam que a sociedade se 
envolvesse nessas atividades principalmente devido ao reconhecimento quanto ao valor do 
homem ­ mas isso nem sempre ocorre, uma vez que a sociedade dos homens mobiliza­se 
apenas de acordo com as circunstâncias, os interesses de grupos e as pressões que sobre ela 
são feitas. 
    A sociedade mobiliza­se, por exemplo, diante de grandes desastres, de acontecimentos 
especiais ou anormais, de catástrofes, porque esses eventos provocam mal­estar 
generalizado, trazem desconforto, ameaçam a estabilidade da família e da sociedade, pondo 
em risco a propriedade.
    As sociedades mais evoluídas têm demonstrado uma crescente preocupação não apenas 
com seus membros mais problemáticos ou anormais, mas também com grupos minoritários 
que acabam sendo prejudicados por atitudes preconceituosas. A despeito dessa preocupação 
crescente, nossa civilização tem dado mostras de suas fraquezas e de suas inconseqüências. 
Todos nós estamos acostumados e mesmo cansados de ouvir palavras ponderadas e 
altamente recomendáveis, ou ler estudos muito bem elaborados e louváveis quanto ao valor 
do homem, em contraposição a atuações de caráter aviltante e desumano. Tem­se a nítida 
impressão de que o indivíduo é visto por prismas que provocam espectros distorcidos, 
irreconhecíveis e que não correspondem a um mínimo desejável e mesmo esperado.
    "Talvez uma das mais evidentes debilidades da civilização atual esteja na inadequada 
visão do homem. A nossa época é, sem dúvida, aquela em que mais se escreveu e falou 
sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. Entretanto, 
paradoxalmente, é também a época das mais profundas angústias do homem com respeito à 
sua identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época de 
valores humanos espezinhados como jamais o foram antes" (João Paulo II ­ no Encontro 
com os Construtores da Sociedade Pluralista, em Salvador, no dia 7 de julho de 1980).
    Os programas destinados à adequada assistência ao homem marginalizado ou em franco 
processo de marginalização, e à sua integração à correnteza principal da sociedade, muito 
embora dispendiosos e de difícil concretização, sempre foram verdadeiras e inquestionáveis 
demonstrações da existência de uma sociedade voltada para os valores do ser humano e 
também da objetividade de seus propósitos. Segundo alguns autores, mede­se o nível de 
desenvolvimento e o grau de cultura de um povo pelo tipo e pela qualidade de preocupação 
que demonstra para com os seus grupos minoritários e marginalizados, ou para com os 
pobres.
    Mas por que falarmos em "integração social" que é tão complexa e problemática? Não 
seria suficiente para a sociedade falar apenas em "assistência social", em "abrigo", em 
"institucionalização"? Por que não a separação pura e simples desses marginalizados ou 
marginalizáveis, como se faz, institucionalmente, com todos os elementos que podem causar 
perigo ou preocupação séria à sociedade? Talvez a sociedade tivesse muito mais 
tranqüilidade se pudesse colocar, internar, segregar em organizações especiais aqueles que 
são rotulados como "débeis mentais", "leprosos", "tuberculosos", "cancerosos", "paralíticos", 
"cegos", "surdos" e ainda os "maloqueiros", "favelados", "pedintes", "trombadinhas", 
"viciados em drogas" e outros mais que, sob os olhos dessa sociedade comodista constituem 
a legião dos miseráveis, ou dos assim chamados "carenciados", "excepcionais", dos dias em 
que vivemos.
    ­ *A integração social e seus porquês*
    Motivos para qualquer sociedade do mundo moderno e progressista valorizar o ser 
humano existem do sobejo. Muitos desses motivos, já estudados e arrolados, fazem parte 
quase que obrigatória das Declarações Universais de Direitos do Homem, da Criança e da 
Mulher. Mais recentemente a Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembléia 
Geral, aprovou Declarações dos Direitos da Pessoa com Retardo Mental, da Pessoa 
Deficiente e outras mais. Ao que nos parece, os motivos de que estamos falando são mais do 
que suficientes para o surgimento de programas destinados à assistência adequada e à 
integração social de todos os grupos existentes na sociedade, mesmo que marginalizados. 
Não há, na verdade, necessidade de mais Declarações de Direitos. Há, sim, necessidade de 
colocá­las em prática, em todos os quadrantes de qualquer nação, pois estamos falando do 
homem, a respeito do qual já se falou e escreveu tanto e tão bem, e pelo qual tão pouco tem 
sido feito de concreto.
    Existem alguns tipos de considerações bastante convincentes que têm sido decisivas para 
o estabelecimento de programas objetivos das mais diversas naturezas, especialmente os 
destinados à integração de grupos humanos colocados à margem da sociedade.
    No entanto, para não dispersarmos muito e entrarmos em divagações quanto à miríade de 
facetas existentes nos grupos especiais até aqui indicados, limitemo­nos a considerar o 
problema de uma significativa parcela dessa população: os chamados "deficientes".
    Por "pessoas deficientes" entendemos todas aquelas que estão abaixo dos padrões 
estabelecidos pela sociedade como de "normalidade", por motivos físicos, sensoriais, 
orgânicos ou mentais, e em conseqüência dos quais vêem­se impedidas de viver plenamente.
    Dentre as considerações mais relevantes e que têm sido utilizadas em muitas partes do 
mundo para o estabelecimento de adequados níveis de prioridade e para a montagem de 
programas, podemos destacar as seguintes:
    a) *O elevado número de pessoas consideradas como "deficientes".*
    Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas e de suas Agências 
Especializadas, o problema é dos mais graves, pois, "pelo menos 10% da população de 
qualquer país do mundo sofre de algum tipo de incapacidade física ou mental, sendo das 
formas mais prevalescentes a limitação física, a doença crônica, o retardo mental e as 
incapacidades sensoriais".
    "Há mais de 400 milhões de pessoas deficientes no mundo" ("Rehabilitation of the 
Disabled ­ The Social and Economic Implications of Investments for this Purpose", United 
Nations).
    Infelizmente a dimensão desse problema não está vivamente impressa e muitas das 
autoridades brasileiras o ignoram. A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 
que ao final de 1980 realizou nosso recenseamento geral, não incluiu nos dados pesquisados 
qualquer menção ao problema discutido aqui, de forma que precisamos continuar a utilizar 
as estimativas internacionais.
    Dessa forma, já que temos uma população de mais de 120 milhões de pessoas, temos mais 
de doze milhões delas com problemas limitadores e que as bloqueiam de uma plena 
participação na sociedade. Segundo depoimento de Norman Acton, Secretário Geral da 
Rehabilitation International, órgão consultivo da ONU, através de seu Conselho Econômico 
e Social, "desconhecendo as reais dimensões da deficiência e suas muitas conseqüências, 
nossos planejadores, nossas instituições e nossos governos, com poucas exceções, não tem 
dado atenção, prioridade ou apoio adequados a programas nesse campo. Desinformados 
quanto à real natureza do problema, nossos cidadãos tentam ignorá­lo ou evitá­lo, deixando 
a responsabilidade nas mãos das profissões e das instituições especializadas. Por vezes sem 
conta nossas comunidades lidam com esses problemas, escondendo as pessoas seriamente 
deficientes atrás dos muros de suas casas, ou então, nas áreas residenciais mais sofisticadas, 
por detrás das cercas­vivas dos jardins de rosas. A idéia de que nossos modernos conceitos 
de direitos humanos se estendam aos portadores de deficiências físicas e mentais é hoje mais 
revolucionária do que a própria doutrina de Karl Marx" ("The Global Dimensions of 
Disability", de N. Acton).
    Conforme indicamos no capítulo anterior, o volume de pessoas deficientes já é muito 
grande na forma como é considerado pelos órgãos internacionais. Se adicionarmos a ele os 
grupos de pessoas que são vítimas de outros males de natureza repulsiva ou de desvios de 
conduta, e ainda por cima somarmos aqueles indivíduos que ganham insuficientemente para 
viver e sustentar a própria família, os que habitam sub­
­normalmente, os desajustados tecnológicos, os que são privados da assistência médica, os 
que passam fome crônica, os que não tem acesso à educação e à previdência social ­ e 
também aqueles que não conseguem livrar­se dessas situações, ou seja, os deficientes 
sociais, certamente que formaremos uma visão desalentadora.

    b) *O valor próprio do ser humano*
    A idéia de se colocar o ser humano à margem da sociedade, sem que se estabeleça ou sem 
que se possibilite um caminho de retorno, não é aceitável, pois o homem tem o direito de 
fazer parte da correnteza principal da sociedade que gera e que consome bens, pelo simples 
fato de ser um indivíduo dono de um valor intrínseco próprio e inalienável.
    Só mesmo a ignorância maliciosa e o barbarismo primitivo ou ultra­moderno de atitudes 
chegam a negar a importância que o homem tem como componente da sociedade e como ser 
individualizado. O ser humano pode, de fato, chegar a situações de marginalidade tal que só 
com um preparo extraordinário passará a ter condições de ser assimilado pela sociedade. 
Ninguém pode se esquecer de que uma das características principais do homem é a sua 
perfectibilidade, ou seja, sua capacidade de melhorar sempre e de se superar. Além disso, 
nenhum grupo social pode se arrogar o direito de impedir um de seus membros de atingir o 
máximo do seu potencial latente, pois o direito à realização pessoal é muito próprio do 
homem, independemente das diferenças individuais de cor, sexo, idade, credo, atividades 
políticas ou profissionais, ou das prioridades governamentais.
    A sociedade que assume as atitudes que são demonstrativas de sua posição de 
comiseração, de caridade piegas, de assistencialismo, monta seu próprio estilo de ajuda a 
grupos marginalizados que é muito característico, pois apresenta quase que exclusivamente 
programas de natureza segregativa e assistencialista. São os orfanatos, os asilos, os lares, as 
colônias especiais que se localizam longe dos núcleos populacionais, os internatos das mais 
variadas naturezas, as casas especiais e muitos outros "recursos" da comunidade.
    No entanto, na medida em que a sociedade se conscientiza e raciocina concretamente 
quanto ao valor do ser humano, ela tende a se aparelhar para atendê­lo adequadamente e 
passa a demonstrar essa preocupação pelo desenvolvimento de programas muito mais 
destinados à promoção humana, à libertação do homem da dependência odiosa, e à sua 
integração ao grupo social.
    Embora todos acreditemos no valor próprio do ser humano, é necessário que se faça uma 
séria parada para um exame crítico, a fim de que passemos todos de uma cômoda posição 
teórica, muitas vezes bem verbalizada, para uma atuação concreta, com o estabelecimento de 
programas objetivos de valorização do homem.
    c) *O valor econômico da mão­de­obra não utilizada*
    Em qualquer realidade existe elevado percentual de elementos considerados naturalmente 
como não­produtivos, ou seja, crianças e pessoas em idade avançada principalmente. Esse 
volume é aumentado por pessoas enfermas, por pessoas aposentadas precocemente e por 
contingentes populacionais marginalizados da força produtiva por muitos motivos e 
pretextos. As pessoas portadoras de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas, funcionais e 
mentais encontram­se nessa situação, com a agravante de não só deixarem de produzir, 
como também de, apesar de terem potencial para o trabalho, serem ônus para a sociedade.
    No entanto, segundo Ballester Hoys, "nenhum país pode considerar­se hoje 
suficientemente rico para desprezar a mão­de­obra do incapacitado" (Apud Gonçalves). E, 
de fato, se raciocinarmos um pouco, verificaremos que, se dos 10% da população que é 
vítima de males incapacitantes, pelo menos 25% estivessem de alguma forma engajados na 
produção de bens e serviços, não estariam apenas consumindo e dependendo de elementos 
mais produtivos, recebendo por vezes a contragosto auxílios dos cofres públicos ou da 
previdência social. Em termos de realidade brasileira, essa mão­de­obra em potencial 
poderia chegar a mais de 3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, em idade 
adulta, cujo objetivo principal de vida é trabalhar e sair da desagradável situação de 
dependência e de contínua frustração.
    O desemprego, a dependência econômica, o sub­emprego desumanamente remunerado e 
atividades muito pouco rentáveis são fantasmas que rondam significativa parcela da 
população em nossa sociedade repleta de contrastes e injustiças. No entanto, quando o 
emprego mal remunerado, o sub­emprego ou o desemprego ocorrem pura e simplesmente 
devido à existência de uma deficiência ou incapacidade de natureza física ou sensorial, ou de 
limitações orgânicas e mentais, eles passam a se tornar muito mais injustos e inaceitáveis, 
por melhores explicações que possam ser dadas ou encontradas para sua existência.
    Uma das principais tônicas de programas de bem­estar social com populações carenciadas 
e/ou marginalizadas deve ser a preocupação com o trabalho, ao qual elas têm direito. Os 
nossos governos ­ a nível federal, estadual e municipal ­ têm papel relevante nessa grande 
batalha de assimilação de mão­de­obra potencialmente produtiva, estando nela também 
engajados, além do poder público, o comércio, a indústria, o mundo dos serviços.
    Existem especialistas no assunto que se opõem à assimilação da mão­de­obra das pessoas 
deficientes em detrimento daquelas pessoas|não­deficientes desempregadas, como se as 
pessoas deficientes fossem meros cidadãos de segunda classe, com direito à sobrevivência 
após garantida a vida das pessoas consideradas como "normais". Esses argumentos são, no 
mínimo, "parvos", excessivamente pequenos para poderem ser levados em consideração. 
Cremos que talvez a colocação do argumento no sentido inverso poderia ser menos injusta, 
ou seja, aproveitamento da mão­de­obra das pessoas deficientes prioritariamente.

    ­ *Os princípios básicos da reabilitação*
    Essas poderiam ser as três pilastras básicas para garantir o desenvolvimento de 
programações destinadas a minorar toda essa gama de dificuldades, através da integração 
social. Se realmente pensamos em integrar socialmente o homem marginalizado e 
prejudicado por certos tipos de deficiências, temos a obrigação de nos inteirar de como 
iremos conseguir essa integração. Se as estimativas das organizações internacionais de 
inquestionável credibilidade são válidas para a nossa realidade ­ e por que não o seriam? ­ 
precisamos analisar com muito cuidado em que ponto estamos na assistência adequada a 
esses grupos especiais de seres humanos que se vêem prejudicados em todos os seus direitos, 
inclusive no direito de participar.
    Muito embora possamos relacionar diversos pontos de partida para o deslanche de 
programas tendentes a resolver os problemas que levam as pessoas portadoras de 
deficiências à marginalidade social (como, por exemplo, o estabelecimento de prioridades 
governamentais nesse campo, incluindo ações de prevenção de impedimentos, atividades de 
detecção precoce das deficiências e seu atendimento, financiamento de programas de 
atendimento especializado, garantia da formação de pessoal para essa atuação especial, 
organização de esquemas que garantam a profissionalização de pessoas deficientes, 
programas educacionais próprios, revisão da Consolidação das Leis do Trabalho, 
regulamentação da Emenda à Constituição Federal de n°. 12/78 e muitos outros), não há 
dúvida que o desafio maior estará sempre na interiorização individual e na aplicação de tudo 
aquilo que pode ser chamado de credo no homem:
    ­ O ser humano, mesmo portador de deficiência e marginalizado, tem um valor próprio, 
intrínseco e inalienável. Tem, portanto, direito a todo o respeito devido a qualquer indivíduo.
    ­ A dignidade do homem independe de sua inteligência, raça, credo, idade, sexo, ideologia 
e integridade física.
    ­ Ele é único, complexo e diferente de todos os seus semelhantes; ele só poderá ser 
considerado globalmente e nunca em partes estanques.
    ­ O indivíduo, mesmo que marginalizado, tem um potencial que deverá ser enfatizado, 
apoiado e fomentado, pois todo homem é perfectível e tem condições de se superar.
    ­ Todo ser humano faz parte de uma sociedade na qual deverá ter seu papel; o indivíduo 
tem também seu valor econômico como colaborador em potencial no processo de produção 
de bens e de serviços.
    
    ­ *O despreparo nos programas reabilitacionais*
    Os problemas físicos, psicológicos, sociais, educacionais e de natureza profissional são 
aqueles que marcam a grande maioria dos casos de marginalização devido a deficiências 
diversas, demandando soluções que jamais poderão olvidar o homem como um todo. Ao 
trabalhar com a problemática das pessoas deficientes, porém, a maioria de nossas 
organizações, de orientação simplista ou puramente tecnicista (pseudo­técnica), consideram 
que a grande questão está relacionada apenas à eliminação ou redução quando não, à 
camuflagem ­ da deficiência. Esquecem­se que o indivíduo sem uma perna ou sem um 
braço, que não pode fazer uso da visão ou da audição, estigmatizado por algum mal ou 
incapacidade, faz parte (ou deveria fazer parte) de grupos e deseja legitimamente seu lugar 
na sociedade, sentindo que tudo isso está fora de foco e ameaçado. Esquecem­se essas 
entidades ­ e os profissionais nelas inseridos ­ que esse mesmo indivíduo, já frustrado e 
magoado, pode ter desenvolvido e adotado hábitos inadequados, apresentando um 
comportamento inaceitável.
    Mais do que tudo isso, esquecem­se que esse indivíduo deficiente poderá ter algo a dizer e 
a contribuir quanto à evolução de seus problemas e das perspectivas para sua solução.
    Nessa infeliz somatória de atitudes de esquecimentos, de “não­lembrancas”, de “estar­
fazendo­um­grande­favor”, de “a­gente­já­faz­muito­por­você­que­é­um­coitado­e­não­
reconhece” ­ intencional ou não ­ percebemos uma velada e latente descrença no homem 
diminuído, feito escravo das situações e das pessoas, que não tem importância em termos 
sociais, cujos direitos são analisados e avaliados só muito contingencialmente.
    As organizações a respeito das quais comentamos acabam se esquecendo de que a 
marginalidade do indivíduo ocorre por uma série de motivos e não apenas devido à 
existência de uma anomalia, de uma deficiência física ou sensorial, por exemplo. Na 
verdade, a marginalidade surge no momento em que, além da deficiência apresentada, 
ocorrem limitações de graus e naturezas os mais variados quanto à estabilidade junto ao 
grupo e, de um modo todo especial, quanto a desvantagem sentida, pesada pelo próprio 
indivíduo, que é vítima do mal, da falta, da carência, da anomalia e de suas conseqüências.

    ­ *A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação*
    Conseqüentemente, para a integração social de um indivíduo que já está colocado à 
margem dos grupos principais da sociedade, a questão não se limita e jamais poderia se 
limitar à mera solução de um problema físico, como não poderia se limitar à simples 
obtenção de um emprego remunerado. A integração social ocorrerá, de fato, desde que se 
obtenha o pleno envolvimento do indivíduo atingido, e mais, se desenvolva com ele um 
trabalho de reaquisição de valores perdidos, de sua dignidade, de seu amor próprio, de seu 
real sentido de homem.
    Trabalho de tal natureza só poderá ser desenvolvido em condições especiais, incluindo 
obrigatoriamente atividades que levam à valorização pessoal. Além disso, por menos 
agradável que possa parecer, é bom também que essas atividades mostrem ao indivíduo a 
importância que pode ter em sua vida a criação ou a mudança de hábitos e de atitudes, o 
desenvolvimento de comportamento que a sociedade aceite, por estar de acordo com aquilo 
que ela espera de cada um daqueles que dela pretende participar e nela ter um papel definido 
e digno.
    Estamos caracterizando, dessa forma, um trabalho que jamais poderia ser 
responsabilidade de uma pessoa só, requerendo uma atuação integrada e uma ampla e 
permanente colaboração da comunidade. Na verdade, é somatória de esforços nos quais dão­
se as mãos diversos profissionais, tais como médicos, enfermeiros, assistentes sociais, 
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos, além de educadores e 
conselheiros diversos, para ajudar cada indivíduo a se definir quanto aos seus objetivos de 
vida, numa situação de plena participação na vida da comunidade.

    ­ *Os programas necessários em nosso meio*
    Trabalho dessa natureza e qualidade poderá ser desenvolvido em organizações 
especificamente criadas para esse fim, ou seja, em centros de reabilitação, cuja organização 
e manutenção não são de natureza nem fácil nem barata. Programas de integração a nível de 
comunidade, com o uso de uma tecnologia menos dispendiosa são também recomendados, 
face ao nosso nível de desenvolvimento, tendo sido uma preocupação contínua da 
Organização Mundial de Saúde desde os meados da década de setenta.
    Tanto centros de reabilitação quanto programas que utilizam tecnologia mais simples e 
menos cara requerem profissionais muito bem preparados que, além de seus cursos básicos, 
dominam também uma série de conhecimentos adicionais relativos aos procedimentos e ao 
embasamento filosófico do processo de reabilitação e da própria integração social. Essa 
qualificação adicional e indispensável deverá ser sempre informada e alimentada por 
atitudes positivas quanto ao trabalho multiprofissional, sem as quais nenhum programa 
poderá ser produtivo e útil para quem dele necessita e muito mais do que isso, por atitudes 
de verdadeira e genuína crença no ser humano, em sua dignidade, em sua perfectibilidade, e 
de respeito ao indivíduo como ele é e onde ele está ou pretende ficar.

            CAPÍTULO TERCEIRO
            ADEQUAÇÃO PESSOAL ­ O OBJETIVO ULTIMO DA REABILITAÇÃO
    Analisamos anteriormente algumas idéias quanto às dificuldades que podem levar 
indivíduos a situações sérias de marginalização; formulamos alguns princípios básicos sobre 
os quais programas de assistência a esses mesmos indivíduos podem basear­se; delineamos 
as condições fundamentais para um envolvimento da sociedade face a essa problemática; e 
chegamos à conclusão que os serviços destinados a dar apoio e cobertura de natureza 
integral a pessoas que vivem em situações dessa natureza não podem deixar de cobrir as 
necessidades essenciais do ser humano, em todos os sentidos.
    Verificamos também, que praticamente todos os desvios da normalidade podem ser 
considerados negativamente pelo grupo social e muitas vezes pela própria pessoa atingida, 
especialmente quando a anomalia provocadora do desvio não é bem aceita ou bem 
compreendida. Para especialistas em reabilitação, essa anomalia poderá chegar a significar 
uma “perda”, uma “restrição” ou um “bloqueio” a atividades usuais tais como andar, 
escrever, olhar, contar e outras ­ ou seja, uma deficiência; poderá também significar uma 
“desvantagem” ­ isto é, uma incapacidade.
    
    ­ *Impedimento, deficiência e incapacidade*
    Nunca será demais repetirmos um pouco o raciocínio a respeito dessa questão, uma vez 
que não estamos aqui discutindo apenas ângulos de sinônimos, pontos de semântica, mas de 
conceituações que são fundamentais para quem pretende compreender esses problemas e 
suas soluções. Assim é que, verificada a “anomalia”, o “defeito físico ou mental”, a “falta de 
um membro” (e tudo isso é reconhecido no Brasil como “impedimento”), temos instalado 
algum grau de deficiência, ou seja, o indivíduo não ouve, não fala, não vê, não anda; ouve 
mal, fala mal, enxerga mal, anda mal; não leva a mão à boca, não tem controle de 
esfíncteres. São conseqüências diretas da anomalia no funcionamento da pessoa. Portanto, a 
pessoa deficiente é aquela que vive em situações de bloqueios eventuais ou permanentes, em 
conseqüência de um mal, perda ou restrição.
    “Incapacidade” já e algo diferente. Na verdade, é o resultado da deficiência somado às 
conseqüências pessoais e sociais, com evidente prejuízo para o ser humano.
    No sentido de caminhar para uma uniformidade de conceitos, muitos profissionais têm 
adotado uma nomenclatura próxima àquela publicada pela Organização Mundial de Saúde e 
que foi inserida num importante documento da Rehabilitation International,em cooperação 
com o UNICEF, ou seja, “A Deficiência Infantil: Sua Prevenção e Reabilitação”.
    A guisa de esclarecimento: essa nomenclatura ou classificação terminológica é aqui 
transcrita:
    “Impedimento: um dano psicológico, fisiológico ou anatômico, permanente ou transitório, 
ou uma anormalidade de estrutura ou função”.
    “Deficiência: qualquer restrição ou prevenção na execução de uma atividade, resultante de 
um impedimento, na forma ou dentro dos limites considerados como normais para o ser 
humano”.
    “Incapacidade: uma deficiência que constitui uma desvantagem para uma determinada 
pessoa, porque limita ou impede o desempenho de uma função que é considerada normal, 
dependendo da idade, sexo, fatores sociais e culturais, para aquela pessoa”.
    O documento prossegue com esclarecimentos que são relevantes para a diferenciação 
desses conceitos, ao afirmar:
    a) Um impedimento pode ser uma parte do corpo, ausente ou defeituosa; uma perna 
amputada, uma paralisia pós­poliomielite, diminuição da capacidade pulmonar, diabetes, 
miopia, retardo mental, diminuição da capacidade auditiva, deformação da face, ou outra 
condição anormal.
    b) Deficiência como resultado de um impedimento pode consistir de dificuldade de 
marcha, visão, fala, audição, escrita, de contar, de levantar­se ou de interessar­se em fazer 
contato com o meio­ambiente.
    c) A deficiência pode tornar­se uma incapacidade quando interfere com a execução do que 
seria normal em determinada época de uma vida. Crianças com deficiências podem tornar­se 
incapacitadas para cuidar de si próprias, relacionar­se socialmente com outras crianças e 
adultos, manifestar seus pensamentos e preocupações, aprender na escola e fora dela e 
desenvolver a capacidade para atividade econômica independente (A Deficiência Infantil: 
Sua Prevenção e Reabilitação, da RI/UNICEF). Pormenorizando um pouco e referindo­nos 
ao que foi expresso no Capítulo Oitavo, a incapacidade (o handicap dos ingleses e norte­
americanos) ocorre quando existe a desvantagem ­ e esta acontece sempre que exista a 
somatória de três tipos de bloqueios ou de limitações: os impostos pelo próprio 
impedimento, objetivamente falando; os estabelecidos pelo grupo, ou grupos sociais, ou pela 
comunidade da qual a pessoa deficiente é oriunda; e aqueles que o próprio indivíduo 
estabelece.
    Às vezes uma deficiência quase imperceptível pode ser transformada em incapacidade 
devido basicamente as expectativas relacionadas aos propósitos, aos objetivos de vida da 
pessoa deficiente. Um nariz extremamente desproporcional poderá ser uma grande vantagem 
a um comediante, enquanto que uma pequena cicatriz no rosto poderá determinar o fim de 
carreira de uma estrela de cinema.

    ­ *Programas de reabilitação global*
    Muitas deficiências, quando transformadas em incapacidades, levam as pessoas atingidas 
à marginalidade de algum tipo, provocando muitas vezes situações de tal natureza e 
complexidade que apenas serviços especializados poderão possibilitar sua reintegração na 
sociedade. Tais problemas ocorrem principalmente nos casos de desvios mais evidentes ou 
limitadores, como os desvios motores, sensoriais e orgânicos, e muitos de natureza neuro­
psiquiátrica grave. Para situações dessa natureza criou­se aquilo que é convencionalmente 
conhecido como programa de reabilitação.
    Esse programa destina­se a prover serviços especiais e especializados para possibilitar à 
pessoa deficiente superar dificuldades de ordem física, psicológica, social e profissional, 
sempre através da prestação de serviços de uma forma integrada por meio de equipes 
multidisciplinares. O objetivo desse trabalho é levar a pessoa deficiente a uma participação 
mais completa em todos os aspectos de sua vida. O objetivo último da reabilitação é a 
independência dos indivíduos, como membros da sociedade e não como meros recebedores 
de serviços, em débito com ela, considerados sempre seus direitos, seus deveres e sua 
dignidade.
    A solução global é necessária, pois o indivíduo, ser complexo e potencialmente 
considerável, repleto de respeitabilidade e de valor, não pode deixar de ser considerado 
quanto às suas necessidades de ajustamento físico, psicológico, social e profissional. E todos 
os serviços de reabilitação precisam invariavelmente envolver a pessoa deficiente nos 
programas de tomada de decisão que ocorrem, pois ela é o agente principal de sua integração 
social.
    Embora seja possível encontrarmos situações especiais, nas quais, conforme o tipo de 
problema físico ou mental apresentado, a tônica do recurso em discussão possa ser 
ligeiramente alterada, basicamente o que se deve pretender em reabilitação é uma adequação 
pessoal que poderá ser obtida com o concurso de três áreas principais de atuação técnica, 
que podem ser identificadas como:
    ­ condicionamento físico;
    ­ ajustamento psico­social;
    ­ ajustamento à vida de trabalho.

    ­ *Condicionamento físico em reabilitação*
    Qualquer recurso que seja destinado à reabilitação integral das pessoas deficientes, quer 
do físico, quer do sensorial ou do orgânico, e em muitos casos até das vítimas de problemas 
mentais e sociais, deve pretender levar o indivíduo à otimização de seu potencial físico. As 
pessoas deficientes poderão ter ou não capacidade para se locomover para superar as 
dificuldades materiais de seu meio­ambiente, mas em um centro de reabilitação toda a 
equipe de profissionais deverá estar voltada para situações mais complexas e desafiadoras, 
pensando em termos do indivíduo lançado num ambiente absolutamente hostil e competitivo 
onde apenas o aspecto mobilidade não chega a ser satisfatório. Deve­se pensar e programar 
em termos de uma movimentação diuturna de casa para o trabalho, com qualquer tipo de 
tempo e condução, na deambulação e movimentação dentro do trabalho, na volta para casa e 
todas as demais circunstâncias previsíveis ou não, mas que o indivíduo precisará superar.
    Um programa reabilitacional precisará, portanto, manter serviços que possam orientar a 
pessoa deficiente a superar essas dificuldades de ordem física. Conforme situações 
individualmente consideradas, poderemos ter problemas com um ou dois membros inferiores 
amputados, com membros inferiores paralisados, com fraqueza generalizada, com vícios de 
postura, com rigidez muscular e muitas outras, para não citar problemas especiais com 
pessoas que são cegas ou surdas, por exemplo. Além disso, poderemos encontrar situações 
que requeiram assistência especial para membros superiores, como nos casos de amputações, 
paralisias, malformações e outras.
    Um recurso destinado à reabilitação deverá contar com alguns profissionais especialmente 
preparados para levar a pessoa deficiente a superar dificuldades físicas, ou seja, médicos 
versados, experimentados ou formados em fisiatria,enfermeiras especializadas em 
reabilitação, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e técnicos em próteses e aparelhos 
ortopédicos. Conforme o tipo de pessoas atendidas no centro de reabilitação, poderá ser 
indispensável a presença de técnicos em aparelhos ortopédicos ou talvez a especialidade 
médica requerida não seja a fisiatria, mas a relacionada a problemas de visão ou de audição. 
No entanto, teremos sempre a presença de um grupo de profissionais voltados para o melhor 
condicionamento físico possível das pessoas em atendimento e sua independência pessoal, 
pois, conforme foi já explicado, todo o potencial físico da pessoa deficiente deverá ser 
melhorado em muito para que ela possa enfrentar a vida em competição que a espera fora do 
recurso de reabilitação.
    Um centro de reabilitação cuja clientela tenha problemas de ordem física deverá manter 
seus serviços de medicina física, de atividades da vida diária, de terapia ocupacional, de 
fisioterapia, conforme as necessidades apresentadas pelas pessoas que se submetem ao 
programa. As dificuldades mais sérias que encontramos neste aspecto dos centros de 
reabilitação não estão tanto na disponibilidade de pessoal, mas num correto conhecimento do 
conteúdo de cada área e na sua respectiva coordenação. Dificuldades sem conta têm surgido 
em programas de reabilitação graças ao eventual despreparo dos profissionais envolvidos ­ e 
isso é aplicável não só em condicionamento físico mas em todas as áreas ­ e o problema 
torna­se muito sério em condicionamento físico quando vemos médicos, fisioterapeutas e 
terapeutas ocupacionais digladiando entre si. Problemas surgem também quanto às 
responsabilidades face à programação usualmente reconhecida como de atividades da vida 
diária, na qual por vezes chocam­se enfermeiras, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

    ­ *O ajustamento psico­social no processo de reabilitação*
    Uma das áreas de reabilitação que luta com grandes dificuldades é aquela que tem sob sua 
responsabilidade o desenvolvimento de atividades destinadas a levar a pessoa deficiente a 
um bom ajustamento social e psicológico. Envolvem­se aqui alguns profissionais que atuam 
com uma forte interdependência com as áreas de condicionamento físico e ajustamento 
profissional. Psicólogos, assistentes sociais e educadores, principalmente, desenvolvem as 
suas atividades procurando dar à pessoa deficiente condições de iniciar seu processo 
reabilitacional pela exata compreensão de seu problema e pela assimilação do significado 
que ele pode ter em sua vida; desse ponto o processo poderá ter condições para uma 
evolução satisfatória e equilibrada, tanto nos aspectos físicos quanto pessoais ou 
profissionais.
    Dentre as funções existentes num centro de reabilitação aquela assumida por assistentes 
sociais, desde que considerada com profundidade e na sua globalidade, é das mais difíceis. 
Cabe a esses profissionais uma atuação que não só elimine os eventuais bloqueios à 
participação da pessoa deficiente em seu programa de reabilitação, mas também que as ajude 
no necessário ajustamento à vida em geral, à situação familiar e ao seu grupo de referência.
    Distorções na organização de muitos centros de reabilitação limitam a atuação de 
assistentes sociais apenas e tão somente para resolver problemas que nunca saem das 
dificuldades financeiras, questões ligadas a problemas de acesso ao centro, ou listas de 
clientes que são oriundos de organizações financiadoras ou conveniadas. Nesses centros 
todos os problemas práticos ou que possam dificultar a pessoa deficiente e sua família são 
encaminhados às cegas ao serviço social. Contatos mais profundos da pessoa deficiente com 
o assistente social para discussão de problemas individuais relacionados às dificuldades de 
aceitação ou de assimilação do processo nunca ocorrem e ficam parecendo esdrúxulos. Em 
centros nos quais assistentes sociais limitam seus papéis a essas funções simples e de meros 
providenciamentos, há um permanente corre­corre e os profissionais ou seus auxiliares 
envolvidos trabalham suas seis ou oito horas diárias duramente, mas não atingem o âmago 
de sua função precípua. Na verdade, não chegam nem a arranhar a problemática que é a 
própria causa de sua inserção num centro de reabilitação.
    De um modo geral assistentes sociais envolvem­se numa avaliação social de triagem da 
clientela do centro de reabilitação. Essa avaliação em geral contém estudo e relato objetivo 
da situação familiar, do posicionamento da pessoa deficiente nela, da pessoa que busca 
reabilitação como integrante de uma vizinhança ou de um círculo de pessoas com as quais se 
vincula de alguma forma, do regime de sua vida familiar e seu ajustamento ao mesmo, das 
dificuldades e das barreiras que demonstra como um ser social, de sua vida extra­familiar, 
seja escolar, seja de ordem cultural.
    Além disso, assistentes sociais podem ter um papel muito relevante na interpretação do 
programa do centro de reabilitação, procurando, ao lado de outros profissionais, e com eles 
entrosados, levar a pessoa deficiente ao aproveitamento máximo da oportunidade que tem, 
procurando afastar eventuais obstruções ao seu progresso, quer elas partam do próprio 
cliente, quer partam de seus amigos e colegas, quer partam de algum profissional da equipe.
    Quanto ao psicólogo, teremos uma atuação muito significativa no processo de triagem, 
pois uma avaliação psicológica é fundamental a fim de que a equipe atue com propriedade 
em cada caso. O valor de uma adequada avaliação psicológica não pode ser minimizado, 
pois é através dela que a equipe do centro de reabilitação terá condições de não só selecionar 
bem os casos, como também de trabalhar bem com eles. A avaliação preparada pelo 
psicólogo, devidamente complementada e feita por médicos e assistentes sociais, ajudará o 
programa de condicionamento físico, o de avaliação e ajustamento ao trabalho, o de 
treinamento profissional, os vários aspectos e momentos de aconselhamento no centro e fora 
dele, e facilitará a compreensão do cliente e a adequação do programa conforme suas 
características e necessidades. Uma boa avaliação psicológica deverá conter tudo aquilo que 
pode ser conhecido como atividade intelectual, análise de personalidade e seus traços 
principais, análise dos interesses e aptidões e a opinião do profissional quanto a 
recomendações e contra­indicações. Não pode nem deve ser um mero relatório de alta 
sofisticação a ser inserido no prontuário do cliente, mas um instrumento de utilização prática 
para toda a equipe. Deve ser claro e objetivo, com indicativos seguros quanto às aspirações 
do cliente e quanto às condições psicológicas de natureza positiva ou negativa, e da 
orientação do que ele necessita para melhorar.
    Durante o processo de reabilitação, o psicólogo poderá estabelecer um programa de 
assistência psicológica regular para casos que considerar oportunos face a dados em seu 
poder desde o processo inicial de triagem, ou para casos nos quais pode ocorrer uma 
solicitação da própria equipe do centro de reabilitação.
    Nem o assistente social nem o psicólogo podem atuar isoladamente em seus papéis na 
realidade de um centro de reabilitação. Hoje em dia, em centros de reabilitação de orientação 
mais moderna e objetiva, existe uma pequena equipe de ajustamento psico­social que 
trabalha com o propósito de colaborar com a pessoa deficiente para que ela consiga se 
posicionar face às exigências da vida em competição e consiga assumir as responsabilidades 
correspondentes à vida independente. Essa atuação de alta necessidade inclui, em diversos 
casos, educadores que desenvolvem programas de treinamento mental para tomadas de 
decisão ou atividades práticas destinadas a levar a pessoa deficiente a um bom ajustamento 
pessoal, por meio da educação de base, em estreita colaboração com a programação 
específica do serviço social e da psicologia.

    ­ *Ajustamento à vida de trabalho*
    O trabalho muito contribui para a auto­estima e confiança e para determinar o status da 
pessoa adulta. Seu papel é de fundamental importância para o indivíduo obter um meio de 
vida satisfatório e produtivo. Pode­se perceber, com muita clareza, a extensão com a qual o 
trabalho contribui para o bem­estar do ser humano, pelo grau de ajustamento emocional, 
físico e intelectual que pode provocar, desde que o trabalhador esteja nele bem ajustado.
    Esta observação é de um modo todo especial verdadeira com indivíduos portadores de 
deficiências físicas ou mentais de alguma severidade, para os quais obstáculos para uma vida 
útil e feliz no trabalho e na vida social assumem proporções bem maiores do que para outras 
pessoas que não têm problemas da mesma natureza.
    Estes pontos de reflexão nos chamam a atenção para a necessidade de um programa que 
nunca poderá deixar de ser completo, global, onde todos os aspectos da vida do ser humano 
precisam entrar em consideração. E em tudo aquilo que se relacionar, direta ou 
indiretamente, à vida de trabalho, a adequação da pessoa deficiente às exigências de uma 
atuação produtiva requer um cuidado todo especial.
    Dentre os múltiplos requisitos para um programa dessa natureza, é fundamental que haja 
um aconselhamento prático que ajude a pessoa deficiente a raciocinar com segurança quanto 
às perspectivas reais do mercado de trabalho e das possibilidades dela ser por ele absorvida; 
é necessário que o centro de reabilitação estabeleça um método próprio destinado à 
avaliação do potencial da pessoa deficiente para a vida de trabalho, avaliação essa que 
deverá ser capaz de indicar um trabalho específico que seja adequado não só ao físico 
prejudicado, mas às aspirações do indivíduo. Além disso, torna­se necessário desenvolver 
programas de ajustamento a situações de trabalho, de treinamento profissional para dar à 
pessoa deficiente armas bastante poderosas para poder enfrentar o mundo competitivo do 
trabalho, e de colocação e seguimento dos casos colocados, para garantia de seu sucesso.
    As dificuldades usuais que uma pessoa deficiente que tenha enfrentado o processo de 
reabilitação poderia encontrar para se integrar na sociedade produtiva, deve­se acrescentar 
problemas relacionados a atitudes muito pouco adequadas que ela vai encontrar por parte de 
segmentos da sociedade. Devido a esses tipos de atitudes a reabilitação não pode deixar de 
trabalhar com o indivíduo para que ele domine quase perfeitamente as condições que 
poderão facilitar sua aceitação como um ser normal.
    Os aspectos específicos do processo de reabilitação que se relacionam ao ajustamento 
profissional estão normalmente divididos em atividades que são variáveis, dependendo do 
tipo de centro e da orientação seguida; mas de um modo geral essas atividades englobam:
    ­ avaliação e ajustamento ao trabalho;
    ­ treinamento profissional;
    ­ colocação e seguimento dos casos.
    Para muitos centros de reabilitação essas atividades podem se confundir numa só, 
enquanto que certos recursos levam sua programação da área de ajustamento profissional 
apenas até os aspectos de avaliação e ajustamento ao trabalho, deixando aos próprios 
reabilitandos a responsabilidade de obter e manter sua colocação. Teremos oportunidade de 
melhor analisar estes assuntos no capítulo especificamente dedicado a eles.

    ­ *Hábitos, atitudes e comportamentos*
    Como em diversos outros tipos de empreendimentos, as tonalidades da programação de 
um centro de reabilitação também podem divergir e acabam dependendo não apenas da 
orientação de seu elemento diretivo, mas também do tipo, da adequacidade e da 
profundidade de preparo de componentes de sua equipe de reabilitação.
    Por que existem os Centros de Reabilitação?  Para prover um programa centralizado e 
individualizado para pessoas portadoras de deficiências que vivem em situação de 
marginalização e que não conseguem sair dessa situação por seus próprios meios, 
procurando cobrir suas necessidades básicas em todos os sentidos, para com isso levá­las a 
um nível mais adequado possível de atuação individual e social.
    No entanto, um centro de reabilitação só poderá atingir esses propósitos com um trabalho 
muito sério e voltado para a imperiosa necessidade de fazer com que pessoa deficiente seja 
“integrável” na sociedade. Para tanto, é básico que trabalhe não só com o físico ou com a 
preocupação de encontrar uma colocação ou re­colocação em trabalho competitivo, mas com 
a eventual alteração de hábitos, atitudes e comportamentos do indivíduo face à sua 
deficiência, face à família, à comunidade, ao mundo que nos cerca em todos os momentos de 
nossa vida.
    Assim, a questão não é apenas dar emprego a um portador de deficiência física que vive 
da caridade pública, mas levá­lo a lembrar valores médios e aceitos pela sociedade à qual 
pertence (ou pretende pertencer), que talvez ele tenha esquecido, perdido ou posto de lado 
face às circunstâncias e à necessidade de sobreviver. O sentido de dignidade e o amor 
próprio devem também ser trazidos à tona por meio de atividades próprias reforçadas pela 
atuação de toda a equipe de reabilitação. Essas atividades específicas precisam ser criadas, 
pois elas favorecerão o ressurgimento ou a criação de hábitos, de atitudes e de 
comportamentos que a sociedade pode esperar de cada um daqueles que dela pretendem 
fazer parte. Em poucas palavras: A pessoa deficiente precisa ter meios para tornar­se 
“competente” para enfrentar as situações que esperam todos aqueles que são integrados a 
uma vida social.
    Não é repetição desnecessária voltarmos a lembrar os princípios fundamentais da 
reabilitação, pois se considerarmos, de fato, que lidamos com pessoas que ­ apesar da 
deficiência ­ têm dignidade, valor, potencial e direitos inalienáveis, é necessário que 
verifiquemos com critério se o centro ou programa de reabilitação do qual participamos não 
só mantém programação que esteja de acordo com esses princípios, mas também se essa 
programação funciona concretamente. Precisamos manter­nos alertas para o fato de que a 
reabilitação, ou o processo de integração social que todos defendemos, não é apenas o 
resultado de um processo tecnológico ou do surgimento de grupos profissionais novos no 
cenário das profissões. Onde quer que esse programa se desenvolva com pujança ele é 
conseqüência de uma linha de pensamento humanista predominante, passado para a prática. 
O humanismo prático depende muito da atitude mental de cada um de nós em dar 
importância ao homem, às suas faculdades, ao seu potencial, à sua individualidade, à sua 
liberdade e ao seu bem­estar.
    Onde quer que essa tecnologia moderna surja só como conseqüência do progresso técnico, 
da mera importação de conhecimentos sem a indispensável depuração, ou do interesse 
puramente econômico de alguns profissionais, ela vacila e se descaracteriza no correr de sua 
implantação.
    Há um certo ceticismo a respeito de alguns técnicos inseridos em reabilitação (sejam eles 
médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas 
ocupacionais, fonoaudiólogos, conselheiros de reabilitação ­ não importa) que não atentam 
para a necessidade de se conscientizar e de assumir uma linha de pensamentos básicos 
quanto ao homem que procuram atender e que nela permanecem apenas pela remuneração 
ou pela inexistência de opção para outras áreas. Existe também uma atitude de reserva para 
com pessoas que apenas visam rentabilidade econômica, números, estatísticas, grandes e 
modernas construções e que se esquecem do homem portador de deficiência para o qual foi 
criado o processo de reabilitação.
    Considerada a expectativa que as pessoas deficientes têm quanto à atuação de 
profissionais que se dedicam à reabilitação ­ sejam eles bem preparados ou não ­ a 
programação de um centro de reabilitação, completamente voltada para o ser humano com 
deficiência, deverá estabelecer como sua meta última a integração social do indivíduo, mas 
esta só poderá ocorrer bem se a sociedade estiver conscientizada e se o homem que nela 
pretende se integrar estiver bem consigo mesmo e se considerar como um membro útil de 
um grupo familiar e social.

    ­ *A adequação pessoal e seu significado*
    Todo ser humano tem necessidades que precisam ser satisfeitas, objetivos a serem 
atingidos, sonhos a serem colocados em prática, qualquer que seja seu nível intelectual, seu 
tipo de personalidade, seu grau de cultura. E todo ser humano sente necessidade de eliminar 
ou de minimizar desconfortos e dificuldades, como a fome, o cansaço, o sono, o fracasso, a 
insegurança, a raiva, a pobreza, a carência. Precisa também satisfazer sua necessidade de 
sucesso, de afeto, de segurança, de repouso, de “status” e outras mais.
    Muitos de nós atingimos esses objetivos sem dificuldades maiores e sempre que isso 
ocorre existe uma automática retomada de equilíbrio que estava provisoriamente suspenso 
pela presença do problema. O processo de ajustamento ou de satisfação de uma necessidade, 
no entanto, nem sempre ocorre na hora certa, desejada, ou desejável; ou na forma planejada, 
pretendida ou sonhada. Surgem barreiras diversas que podem impedir ­ e impedem mesmo ­ 
o indivíduo de eliminar o problema ou de satisfazer a necessidade sentida, em todo ou em 
parte. O que sucede, então? O ser humano utiliza­se de vários meios e de situações para 
superar essas dificuldades e não é sempre que os meios empregados são os mais 
recomendáveis ou aceitáveis. E neste ponto do processo surge uma situação de óbvio 
desequilíbrio, de desajustamento, de quebra de princípios éticos, de infração a normas 
estabelecidas. É evidente que quando os objetivos são atingidos por meios normalmente 
aceitáveis a pessoa sente aquela esperada sensação de realização, de alívio, eliminando 
completamente ou reduzindo o volume de atividades destinadas a contornar o problema e a 
atingir o alvo em mira.
    Psiquiatras e psicólogos têm estudado abundantemente as causas que dão origem a 
necessidades e a frustrações para o homem em geral. Aqui estamos interessados apenas e tão 
somente naquelas advindas de motivos mais significativos que podem levar uma pessoa a 
um programa de reabilitação: uma deficiência física, sensorial, mental ou orgânica e todos os 
estigmas sociais criados contra ela.
    As deficiências podem trazer ao indivíduo tensões emocionais múltiplas, pois são fonte 
constante de frustrações as mais variadas, dentro dos diferentes níveis de atuação do ser 
humano integrante de uma sociedade como a nossa. Todos nós – pessoas com ou sem 
deficiências ­ tomamos todos os dias diversas providências ou adotamos as mais variadas 
atitudes para satisfazer necessidades obstaculizadas por problemas vários que se interpõem 
entre nossos desejos ou necessidades e o bem almejado. Isso acontece através daquilo que os 
psiquiatras e psicólogos chamam de “mecanismo de ajustamento” a situações. Em qualquer 
compêndio de psicologia encontraremos explicações suficientemente claras a respeito e que 
nos mostram que mecanismos de ajustamento podem ser evidenciados por compensações, 
projeções, sublimações, racionalizações e diversos outros tipos de comportamentos. Esses 
mecanismos, que podem ser de fuga, de defesa, de ansiedade, dentre muitos outros, acabam 
levando o indivíduo a criar hábitos por vezes inadequados, pouco aceitáveis ou combatidos 
pelo meio em que vive ou do qual faz parte.
    É teoricamente admissível o enquadramento do homem a uma situação concreta, com 
comportamentos considerados normais, mesmo que ele traga dentro de si motivos de sobejo 
para lançar mão de mecanismos de ajustamento os mais variados. Em reabilitação, todavia, a 
pessoa deficiente revela às vezes comportamentos inadequados, com hábitos e atitudes quase 
sempre rejeitados pela sociedade.
    Ao trabalhar com pessoas deficientes, voluntários e mesmo profissionais razoavelmente 
bem preparados acham que a solução dos problemas da clientela de reabilitação poderá 
encontrar­se na eliminação, na diminuição ou na camuflagem pura e simples de uma 
deficiência. Há outros que consideram estar a dificuldade resolvida com a solução do 
problema do trabalho remunerado. Entretanto muitos são os profissionais de reabilitação 
melhor conscientizados da profundidade dos problemas que atingem a pessoa deficiente e 
que acabam se preocupando com o ser humano como um todo, que percebem ter o problema 
facetas várias e que é fundamental envolver o cliente para fazer com que ele assuma a 
responsabilidade de fazer tudo para superá­lo.
    Considerando que, além das dificuldades ocasionadas por certos tipos de desvios ou de 
impedimentos, são os comportamentos inadequados e a manifesta incompetência pessoal e 
social que levam as pessoas a situações de marginalidade, a redução do impedimento já 
considerado, a eliminação consciente de comportamentos menos aceitáveis e a conquista de 
um certo grau de competência pessoal, familiar e social tenderão a gradativamente levar o 
indivíduo às faixas de normalidade.
    Não é sem motivo, portanto, que na programação de um centro de reabilitação, o enfoque 
deve ser sempre globalizante, apesar de se notar que, conforme o caso, o processo de 
ajustamento pessoal poderá ser desenvolvido com diferentes ênfases e isso ninguém pode 
condenar. Em um centro de reabilitação para o trabalho, por exemplo, o ponto principal de 
concentração de esforços poderá estar voltado, e com muita razão, para hábitos e atitudes no 
ambiente de trabalho.

    ­ *Adequação pessoal ­ fator decisório na integração social*
    Adequação pessoal é um objetivo e é conseqüente a um processo sistemático de 
tratamento e de treinamento em reabilitação que utiliza vários profissionais voltados todos 
para um trabalho individualizado ou em grupo, com o intuito de propiciar às pessoas 
deficientes condições de compreender o completo significado da vida familiar e social, o 
valor de seu próprio envolvimento e as exigências da sociedade em termos de vida familiar, 
social e profissional.
    Dentro desse tipo de ênfase o processo reabilitacional procurará garantir condições para 
ajudar a pessoa deficiente a alterar, se necessário, e a desenvolver atitudes e comportamentos 
mais próprios à sua realidade e a manter uma atuação aceitável nessa mesma realidade.
    Para que a equipe que trabalha em reabilitação possa, ao desenvolver suas atividades 
específicas, atingir esse objetivo, é preciso que auxilie, treine e ensine as pessoas deficientes 
a desenvolver por si mesmas:
    ­ conhecimentos mais claros do processo reabilitacional e de sua importância para 
atingimento do objetivo de integração social;
    ­ melhor aproveitamento do tempo de que dispõem no centro;
    ­ o melhor condicionamento físico que puderem atingir;
    ­ níveis aceitáveis de estabilidade emocional;
    ­ habilidades sociais mínimas de acordo com seus objetivos de vida;
    ­ confiança em seu potencial e aspirações realistas;
    ­ estabelecimento ou reaquisição de valores pessoais;
    ­ hábitos normais de trabalho, tais como comparecimento pontual e constante, 
envolvimento em todas as etapas do dia de trabalho, higiene pessoal e apresentação 
adequada ao ambiente, nível correto de relacionamento no trabalho e fora dele, perseverança 
no trabalho em todas as suas fases;
    ­ resistência à fadiga e tolerância às rotinas da vida de trabalho;
    ­ habilidade de ouvir críticas consideradas menos justas, e de analisá­las sem reações 
impróprias;
    ­ atuação de trabalho sem atitudes e comportamentos tendentes a interrompê­la;
    ­ capacidade de resolver problemas por seus próprios recursos;
    ­ equilíbrio no reconhecimento de suas limitações e na busca de ajuda.

    Os componentes indispensáveis de um programa de adequação pessoal desenvolvido num 
centro de reabilitação global, por sua equipe multidisciplinar de trabalho, são vários.
    Em primeiro lugar devemos procurar garantir a todos os membros da equipe a 
possibilidade da observação direta para a identificação de problemas ocasionados por certos 
hábitos e atitudes das pessoas deficientes e o estabelecimento dos objetivos a serem 
perseguidos com a sua ampla participação. Concomitantemente a isso, é fundamental que se 
trabalhe com a pessoa deficiente e sua família, por meio de entrevistas ou de atividades de 
grupo, na identificação dos problemas mais significativos de sua vida familiar e social. É 
muito importante também que seja feita uma clara análise dos problemas que podem causar 
dificuldades comportamentais e uma definição operacional do programa destinado à sua 
eliminação, com a integral colaboração do cliente.
    Assim sendo, é básico que todos os técnicos disponham­se a fazer anotações e 
observações sistemáticas, relatando­as com objetividade.
    Dentre vários tipos de material que poderão ser úteis na elaboração de um programa dessa 
natureza, a equipe poderá tomar como parâmetros orientadores para tal fim, um indicativo 
para identificação de problemas de comportamento, que cada centro deve manter, com o 
devido critério, para avaliação e para controle (V. anexos I e II).
    Um programa de adequação pessoal da pessoa deficiente, como aqui pretendido, é 
possível com a aliança das atividades próprias de cada setor do centro de reabilitação com as 
atividades destinadas especificamente à melhoria dos hábitos, atitudes e comportamentos 
dos clientes.
    Deverá tal programa ser objeto de constantes estudos por parte da equipe que o adotar, 
podendo a parte relacionada à adequação pessoal ser aplicada e desenvolvida através de 
entrevistas, de atividades de grupo, de terapia de apoio e de programações especiais de 
educação de base.
    A preocupação com a eventual mudança de hábitos e comportamentos das pessoas 
deficientes em programas de reabilitação nunca poderá ser isolada a de um só profissional, 
ou meramente individual. Toda a equipe, durante todo o programa, deverá voltar­se para ela.
    Caberá ao setor de ajustamento psico­social do centro de reabilitação a coordenação de 
programações dessa natureza.

            ANEXO I

            INDICATIVO PARA IDENTIFICAÇÃO DE COMPORTAMENTOS

  Nome do cliente:
  Treinamento na área de: 
  Data do início: 
  Encaminhado por: 
  Observações deste Indicativo válidas na data:
  Levantamento feito por:
  CONCEITOS: A = Ótimo, sem problemas; B = Deve ser melhorado; C = Deve ser 
modificado; D = Inaceitável.

  Observação: segue quadro: categorias – comportamento observado – conceito. 

  CATEGORIAS
  1. Aparência pessoal;
  2. Hábitos irritantes;
  3. Dificuldades de comunicação;
  4. Assiduidade às atividades;
  5. Pontualidade em geral;
  6. Capacidade de resolver problemas;
  7. Queixas pessoais;
  8. Vitalidade nas atividades;
  9. Resistência à fadiga;
  10. Persistência na atividade;
  11. Capacidade de seguir regulamentos;
  12. Distração durante atividade;
  13. Reações à mudança de tarefas;
  14. Reações à monotonia;
  15. Habilidade social com colegas;
  16. Requer supervisão após tarefa nova;
  17. Aceitação da supervisão;
  18. Tensão devido à proximidade da supervisão;
  19. Necessidade de ajuda da supervisão;
  20. Reação à crítica ou pressão da supervisão;
  21. Organização com equipamentos e materiais;
  22. Comportamentos estranhos;

  Comentários adicionais no verso
  Assinatura.

            ANEXO II.       
            LISTA DE COMPORTAMENTOS OU HÁBITOS INADEQUADOS

    CATEGORIA 1. Aparência pessoal
  ­ costuma comparecer com a pele ou cabelos sujos;
  ­ tem mau hálito;
  ­ excesso de gordura;
  ­ mantém cabelos mal penteados;
  ­ tem barba mal cuidada, para os que a usam crescida;
  ­ barba mal feita ou por fazer, para os que se barbeiam;
  ­ não usa desodorante quando deveria usar, devido ao odor;
  ­ veste roupas manchadas;
  ­ veste roupas amassadas;
  ­ usa roupas rasgadas;
  ­ veste roupas de tamanhos errados;
  ­ veste roupas inadequadas (formais ou ao contrário);
  ­ veste roupas necessitando de revisão ou conserto;
  ­ usa roupas soltas que podem causar acidentes;
  ­ usa sapatos muito largos, soltos e desamarrados;
  ­ usa sapatos sujos, não­engraxados ou de má aparência descuidado com vestuários, com 
zíper aberto, bolso cheio;
  ­ usa cosméticos inadequadamente;
  ­ tem posturas inadequadas;
  ­ mantém dentes sujos, que necessitam ser escovados;
  ­ tem caspa e não cuida do assunto;
  ­ tem odor característico da falta de asseio corporal;
  ­ costuma ter olhos sujos;
  ­ mantém unhas compridas, mal cuidadas e sujas;
  ­ costuma ter mãos sujas;
  ­ costuma ter nariz sujo;
    CATEGORIA 2: Hábitos irritantes
  ­ assobia sem parar ou com muita persistência;
  ­ cantarola sempre;
  ­ canta continuadamente;
  ­ mantém riso constante;
  ­ tosse em excesso e sem necessidade;
  ­ tem respiração funda e sonora;
  ­ funga sempre, aparentemente, sem necessidade;
  ­ limpa a garganta com freqüência excessiva e desagradavelmente;
  ­ cospe sempre que limpa a garganta;
  ­ tamborila os dedos incessantemente;
  ­ tamborila sempre com ferramentas, lápis, pés, dedos e outros objetos;
  ­ mastiga goma de modo desagradável;
  ­ chupa ar pelos dentes;
  ­ morde a dentadura de modo muito visível;
  ­ balança o corpo enquanto trabalha ou estuda;
  ­ costuma coçar o nariz ou o rosto;
  ­ coça a barba ou o cabelo com freqüência;
  ­ coça partes do corpo com freqüência e ruidosamente;
  ­ vive pregando peças nos outros;
  ­ chupa ar barulhentamente pelo nariz;
  ­ estala os dedos com freqüência;
  ­ encara as pessoas distraidamente;
  ­ roe as unhas;
  ­ costuma virar os olhos quando conversa;
  ­ faz caretas ou palhaçadas constantes e em momentos inadequados;

            CATEGORIA 3. Dificuldades de comunicação
  ­ gesticula demais ao falar;
  ­ fala demais, sem dar chance aos outros;
  ­ tem fala inaudível;
  ­ fala fanhosamente;
  ­ fala excessivamente rápido;
  ­ gagueja sempre ou ocasionalmente;
  ­ fala alto demais;
  ­ mantém tons de voz guturais;
  ­ usa palavras de baixo calão;
  ­ usa gíria em excesso;
  ­ deixa de fazer perguntas na hora certa;
  ­ vocabulário limitado, não dando nomes certos às coisas ou pessoas;
  ­ fala em linguagem extremamente errada;

            CATEGORIA 4. Assiduidade às atividades
  ­ falta à atividade várias vezes sem dar a mínima justificativa;
  ­ fica ausente da atividade diversos dias consecutivos;
  ­ fica ausente da atividade diversos dias alternados;
  ­ deixa a área de atividade por meia hora, pedindo a colega para justificar­se diante do 
supervisor ou técnico;
  ­ fica freqüentemente ausente devido a motivos particulares;
  ­ fica ausente duas horas para uma entrevista de meia hora;
  ­ inventa pretextos para se ausentar ou manter­se ausente;
  ­ falta à atividade por motivos triviais;
  ­ inventa motivos graves para faltar, mentindo ao supervisor;

            CATEGORIA 5. Pontualidade em geral
  ­ esquece­se de marcar o cartão do ponto;
  ­ começa a atividade apenas depois dos outros terem começado;
  ­ conversa com os colegas cinco minutos antes de começar;
  ­ habitualmente atrasado nas atividades;
  ­ gasta muito tempo nos intervalos para descanso;
  ­ chega atrasado após o intervalo do almoço ou do lanche;
  ­ é o último a chegar após o intervalo;
  ­ demora­se muito para começar nova tarefa;
  ­ sempre atrasado para entrevistas com pessoal de supervisão;
  ­ não aceita que o relógio do ponto esteja certo;
  ­ procura chamar a atenção pelos constantes atrasos;

            CATEGORIA 6. Capacidade de resolver problemas
  ­ indiferente a problemas que ocorrem por perto;
  ­ interrompe sua atividade e espera ajuda nos mínimos problemas;
  ­ grita pelo técnico ou supervisor quando encontra dificuldades;
  ­ acusa os colegas de causadores de seus problemas;
  ­ persiste por mais de uma hora tentando resolver problemas sem pedir ajuda, quando a 
ajuda é indispensável;
 ­ pede ajuda imediatamente, sem experimentar resolver o problema por sua própria 
iniciativa;
  ­ fica apertando e torcendo as mãos ou fica tremulo quando solicitado a desenvolver 
trabalho de cooperação com colegas;
  ­ bate com ferramentas e materiais na bancada para obter ajuda;

            CATEGORIA 7. Queixas pessoais
  ­ expressões de doença ou de mal­estar;
  ­ queixas de dor de cabeça;
  ­ queixa­se constantemente de dores de estômago, em várias partes do corpo, musculares e 
outras – hipocondríaco;
  ­ queixa­se de câimbras, calafrios, cansaço generalizado e sono;
  ­ indicativos de dores físicas, de depressão, de desconforto: franze a testa, manca, suspira 
alto, geme, tem respiração rápida, boceja;
  ­ declarações evidentes de desagrado pelas atividades que desenvolve;
  ­ queixa­se do ambiente onde desenvolve suas atividades: temperatura, iluminação, 
equipamentos, bancadas, assentos, ferramentas, barulho;
  ­ verbalizações negativas ou depreciativas por outras pessoas, tais como colegas, técnicos, 
supervisores e outros;
  ­ expressões de inconformismo ou de remorso por causa de certos infortúnios, tais como 
doenças, mortes de membros da família, problemas financeiros, falta de amigos, 
inadequacidade pessoal;

            CATEGORIA 8. Vitalidade nas atividades
  ­ move­se com lentidão e produz abaixo da média de produção na parte da manhã;
  ­ é lento em atividades ou tarefas que deve desenvolver parado, numa bancada, mostrando 
maior vitalidade em trabalhos movimentados;
  ­ trabalha vagarosamente quando sozinho, mas recobra velocidade quando colegas e 
supervisores estão envolvidos;
  ­ mostra­se cansado durante todo o dia de trabalho;
  ­ é constantemente apático e indiferente ao trabalho;
  ­ atua com ansiedade e grande agitação;

            CATEGORIA 9. Resistência à fadiga
  ­ trabalha com maior lentidão no período da tarde do que da manhã;
  ­ queixa­se de tarefas pesadas e puramente braçais;
  ­ produtividade evidentemente reduzida durante a sexta­feira;
  ­ mostra sinais de fadiga no final do dia de atividades;
  ­ pede para repousar duas ou três vezes por dia;
  ­ descansa a cabeça na bancada em intervalos freqüentes;
  ­ sente falta de ar e reclama quando colocado em área de trabalho mais pesado;
  ­ mantém postura inadequada na bancada de trabalho;

            CATEGORIA 10.Persistência na atividade
  ­ faz quatro ou mais intervalos por hora para fumar ou relaxar;
  ­ vagueia longe da área de trabalho;
  ­ fica olhando para o vazio durante o dia várias vezes;
  ­ encontra diversas desculpas para interromper o trabalho, perguntando coisas irrelevantes 
ao supervisor;
  ­ leva duas vezes mais o tempo em tarefas que não aprecia;
  ­ gasta uma boa parte de seu tempo de trabalho arrumando e re­arrumando materiais e 
ferramentas de trabalho;
  ­ tem manifestações repentinas de velocidade por menos de meia hora e então reduz a 
produtividade para quase zero ao final da hora;
  ­ começa novas tarefas antes de terminar as iniciadas;

            CATEGORIA 11.Capacidade de seguir regulamentos
  ­ tenta ou arrisca­se a operar equipamento ou máquina potencialmente perigosos,sem 
permissão e sem supervisão;
  ­ fuma em áreas proibidas;
  ­ deixa ferramentas, materiais, máquinas ou equipamentos em corredores, no chão ou em 
locais inadequados;
  ­ deixa de colocar em boa ordem áreas de trabalho e não devolve aos respectivos lugares 
ferramentas e equipamentos utilizados;
  ­ distrai outros que estão trabalhando com o uso de equipamento potencialmente perigoso;
  ­ deixa de se proteger e de vestir aventais de segurança, sapatos, óculos de proteção e 
outros;
  ­ faz brincadeiras de mau gosto com colegas, pondo em perigo a si próprio e aos outros por 
não escolher local ou momento adequado;
  ­ mantém atitudes viscosas, face ao regulamento em vigor;

            CATEGORIA 12.Distração durante a atividade
  ­ interrompe seu trabalho diversas vezes numa hora;
  ­ olha peia janela a cada dois minutos;
  ­ cumprimenta cada pessoa que passa pela sua bancada, mesmo que já o tenha feito antes;
  ­ levanta os olhos do trabalho cada vez que um ruído mais alto do que um sussurro é 
ouvido;
  ­ lança olhares distraídos pela oficina ou ambiente a intervalos regulares;
  ­ leva mais de cinco minutos para retomar uma tarefa interrompida por qualquer motivo;
  ­ não consegue concentrar­se quando por perto haja alguém do sexo oposto;

            CATEGORIA 13. Reações à mudança de tarefas
  ­ aceita com má vontade sua indicação para qualquer tipo de nova tarefa;
  ­ rejeita sua indicação para alguns trabalhos mas não para outros;
  ­ aceita alterações nas tarefas, mas é necessário uma grande quantidade de apoio e de 
encorajamento;
  ­ aceita alterações de má vontade, mas tornará sua atuação mais lenta ou sabotará o 
trabalho propositadamente, fazendo­o incorretamente;
  ­ adapta­se com dificuldade à maior parte das alterações em suas tarefas;
  ­ fica confuso com as rápidas e freqüentes alterações nas tarefas;
  ­ mostra­se inconformado com mudanças de tarefas;

            CATEGORIA 14. Reações à monotonia
  ­ recusa­se a realizar a tarefa;
  ­ reluta, exigindo encorajamento ou pressão da supervisão;
  ­ reduz significativamente a velocidade ou qualidade de trabalho;
  ­ há aumento de distração ou de falta de atenção;
  ­ reclama constantemente com os colegas;
  ­ há aumento de reclamações por motivos físicos;
  ­ interrompe seu relacionamento com colegas;
  ­ boceja ruidosamente e sem necessidade;

            CATEGORIA 15.Habilidade social com colegas
  ­ dá as costas ou vai embora quando um colega se aproxima;
  ­ demonstra indiferença quanto ao progresso social dos colegas (por exemplo, deixa de 
responder a cumprimentos, deixa de responder adequadamente a perguntas que lhe são 
dirigidas);
  ­ esquiva­se de qualquer tipo de contato social com pessoas do sexo oposto;
  ­ foge de todo contato social, exceto com um ou dois indivíduos;
  ­ comporta­se de maneira exagerada ou é dado ao flerte indiscriminado com pessoas do 
sexo oposto;
  ­ nunca inicia saudações ou conversas;
  ­ faz tentativas exageradas para fazer amigos ao ponto de o indivíduo passar a ser 
considerado uma praga pelos demais;
  ­ interrompe conversa dos colegas para poder juntar­se ao grupo;
  ­ domina as conversas dos colegas ao ponto deles deixarem o grupo;
  ­ fica freqüentemente irritado com seus colegas;
  ­ tenta freqüentemente incitar discussões, por puro antagonismo;
  ­ estimula rivalidades entre colegas através de mentiras ou de mexericos;
  ­ ridiculariza os problemas físicos dos outros;
  ­ mantém uma interação com colegas muito variada devido ao próprio humor;
  ­ faz constantes mexericos e é dado às fofocas;

            CATEGORIA 16.Supervisão após tarefa nova
  ­ dispensa a supervisão de imediato após as primeiras orientações quanto a novas tarefas;
  ­ precisa de considerável apoio e encorajamento para poder produzir a nível aceitável;
  ­ solicita supervisão e orientação de colegas para novas tarefas;
  ­ necessita de repetidas explicações com freqüência;
  ­ gasta considerável tempo do supervisor na identificação de falhas;
  ­ tende a ser descuidado quando trabalha com ferramentas ou com máquinas elétricas;
  ­ chama constantemente o supervisor após receber tarefas novas;

            CATEGORIA 17.Aceitação da supervisão
  ­ relaciona­se inadequadamente com todos os supervisores;
  ­ trata supervisores como amigos, esperando ser tratado diferentemente dos demais colegas 
de trabalho;
  ­ dá a impressão de reconhecer a autoridade do supervisor, mas faz seu trabalho à sua 
própria maneira quando ele se ausenta;
  ­ reconhece a autoridade de todos os supervisores, mas dá a impressão de trabalhar melhor 
sob supervisão mais permissiva;
  ­ recusa­se a aceitar supervisão, exceto que venha de certo indivíduo ou de certo tipo de 
supervisor (por exemplo: que seja homem, ou que seja mulher, que dê apoio, etc.);
  ­ recusa­se ruidosamente a aceitar a supervisão e mantém atitudes de quem sabe e pode 
fazer como quiser;

            CATEGORIA 18.Tensão devido à proximidade da supervisão
  ­ aumenta a velocidade da atividade com prejuízo de sua qualidade;
  ­ melhora a qualidade, mas diminui a velocidade;
  ­ fica desajeitado, derruba materiais, aumenta volume de erros;
  ­ agita­se, tremem suas mãos, transpira fortemente, ruboriza­se;
  ­ parece perder o fio da meada, esquece­se de fases do trabalho, deixa de seguir instruções;
  ­ não muda visivelmente com a proximidade da supervisão, mas fica em tensão que poderá 
vir a ser prejudicial;
  ­ interrompe completamente a atividade quando o supervisor está próximo;

            CATEGORIA 19.Necessidade de ajuda da supervisão
  ­ pede freqüentemente e exageradamente a ajuda do supervisor a fim de obter sua atenção;
  ­ continua trabalhando em vez de pedir ajuda quando incerto se o trabalho está sendo feito 
corretamente;
  ­ chama o supervisor aos gritos, de modo a chamar sua atenção;
  ­ pede ajuda aos colegas por receio de parecer pouco inteligente aos olhos do supervisor;
  ­ interrompe o supervisor quando ele está ocupado ou conversando com alguém;
            CATEGORIA 20. Reação à crítica ou pressão da supervisão
  ­ mostra sinais de ansiedades ou de temor, incluindo gagueira, transpiração, choro, mãos 
trêmulas;
  ­ fica desajeitado, derrubando ferramentas ou materiais;
  ­ demonstra resistência ao supervisor, inclusive discutindo, queixando­se de problemas 
físicos, responsabilizando os colegas, as ferramentas ou o próprio local de trabalho, pedindo 
para ser transferido para trabalho diferente, com mau humor e recusando­se a continuar no 
trabalho;
  ­ há um decréscimo imediato na velocidade, acompanhado de aumento no número de erros;
  ­ passa a trabalhar mais rápido, sem alterações perceptíveis;
  ­ culpa companheiros de trabalho ao receber críticas da supervisão;

            CATEGORIA 21 .Organização com equipamentos e com materiais
  ­ tem movimentos inadequados;
  ­ usa inconvenientemente ou impropriamente ferramentas;
  ­ deixa o local de trabalho com freqüência para obter ferramentas ou materiais;
  ­ estoca materiais de maneira imprópria ou perigosa;
  ­ mantém movimentos desnecessários e sem utilidade;
  ­ gasta muito material como resultado de seus descuidos;
  ­ costuma fazer trabalho mal feito;
  ­ costuma furtar material ou ferramentas;

            CATEGORIA 22. Comportamentos estranhos
  ­ há mudanças freqüentes e/ou extremas entre períodos de muita e de pouca atividade, com 
mudanças conseqüentes na disposição geral;
  ­ períodos de alta produtividade podem ser caracterizados por risadas inadequadas;
  ­ palavreado rápido e inconseqüente;
  ­ barulho, movimentos rápidos e exagerados do corpo;
  ­ períodos de baixa produtividade coincidem com isolamento de contatos sociais, choro ou 
opiniões negativas a seu próprio respeito;
  ­ mantém o olhar no vazio por longo período de tempo, ao ponto de parecer totalmente 
alheio ao ambiente que o cerca;
  ­ tem reações inadequadas à crítica, com riso, choro, explosão de temperamento ou 
completa falta de reação;
  ­ fala ou ri consigo mesmo nos momentos em que parece alheiado ao que faz ou ao 
ambiente que o cerca ­ incapaz de responder, quando solicitado, a informar a respeito do que 
fala ou ri;
  ­ faz comentários ou dá resposta totalmente estranhos ao tópico de conversação ou de 
comentário;
  ­ conta estórias ou faz declarações que são evidentemente mentirosas especialmente quando 
o indivíduo não parece estar alerta quanto às inverdades;
  ­ faz freqüentes tentativas de ouvir conversas, olhando diretamente os outros, olhando por 
sobre ombros, devido à própria crença de que estão falando de si, estão gozando de sua 
pessoa ou por não gostar de sua pessoa;
  ­ tem preocupação excessiva com limpeza, ordem e higiene, demonstrada pelas constantes 
idas ao banheiro para lavar as mãos;
  ­ demanda excessivo tempo para ordenar seus materiais e ferramentas;
  ­ faz freqüentes limpezas na área de trabalho, ou estudo, ou atuação, ao ponto de essas 
atividades ocuparem mais tempo do que a principal;

  (Esta lista está parcialmente baseada em levantamento contido em trabalhos de Luís Carlos 
Dutra ­ Ver Bibliografia)

            CAPÍTULO QUARTO
            PREPARO PARA A VIDA DE TRABALHO

    Conforme verificamos anteriormente o programa de ajustamento profissional dentro do 
processo de reabilitação de pessoas deficientes tem vários componentes que são basicamente 
os seguintes.
    ­ aconselhamento para a vida de trabalho;
    ­ avaliação e ajustamento ao trabalho;
    ­ treinamento profissional;
    ­ colocação em emprego e seguimento.

    O ajustamento profissional pressupõe, é óbvio, bons níveis de ajustamento psico­social e 
um bom condicionamento físico.
    Muito embora haja padrões já reconhecidos para o funcionamento dos componentes de 
um programa dessa natureza, para alguns clientes o processo poderá significar a inclusão em 
todas as atividades programadas, enquanto que para outros poderá se resumir numa simples 
tomada de posição quanto a problemas de ordem prática de trabalho, ou talvez numa simples 
colocação. De acordo com princípios anteriormente expostos, pelo simples fato de a 
reabilitação lidar com seres humanos, sua programação deverá ser adaptada às suas 
peculiaridades e deverá ser flexível, pois cada caso considerado individualmente apresentará 
características próprias e demandará soluções específicas.

    ­ *Aconselhamento para a vida de trabalho*
    O processo de aconselhamento para a vida de trabalho é iniciado logo após a 
determinação da elegibilidade da pessoa deficiente ao programa reabilitacional, através de 
avaliações que cobrem os aspectos do potencial físico e problemático correspondente, de sua 
estrutura psicológica e de seus problemas sociais e familiares. O conselheiro de reabilitação 
deverá fazer seu primeiro contato com a finalidade de obter da pessoa deficiente certos tipos 
de informação e também de formar seu próprio  juízo quanto aos seguintes pontos de básica 
importância em sua vida:
    ­ Características pessoais;
    ­ Experiência educacional;
    ­ Experiência profissional;
    ­ Aptidões e potencialidades;
    ­ Interesses;
    ­ Capacidade física para o trabalho;
    ­ Capacidade mental.
    A finalidade desse estudo é a elaboração de um plano concreto de atuação nos diversos 
tipos de atividades do programa do centro de reabilitação, com a participação consciente da 
pessoa portadora de deficiência em busca de sua Integração social.
    Vejamos, porém, alguns importantes ângulos do conteúdo do processo de aconselhamento 
de pessoas deficientes em reabilitação, com a finalidade de obter o seu melhor ajustamento 
profissional. E para tanto, nada melhor do que analisar, ponto por ponto, os itens acima 
indicados.
    a) Características pessoais: As características individuais e as atitudes da pessoa para com 
o trabalho são, juntamente com a destreza manual, fatores muito importantes na 
determinação da adequação de uma pessoa deficiente para um trabalho em competição no 
mercado aberto.
    Entretanto, o simples fato de viver ou de ter a pessoa vivido uma deficiência física, por 
exemplo, e as contínuas dificuldades encontradas na vida familiar e social, podem levar o 
indivíduo a se sentir em uma posição desvantajosa no mundo do trabalho. A mensuração 
desses fatores não é nada fácil e o conselheiro de reabilitação deverá, para tanto, basear­se 
em resultados dos estudos ou da atuação dos médicos, dos psicólogos, dos assistentes sociais 
e de diversos outros profissionais que atuam em reabilitação. Técnicos bem treinados 
poderão chegar a posições bem delineadas com relação a esses problemas, devido à sua 
atuação diária e devido às observações que são rotineiramente feitas nas oficinas de 
avaliação ou de ajustamento profissional.
    As entrevistas com o conselheiro de reabilitação poderão ser um excelente instrumento 
para a obtenção de um quadro bem objetivo das características pessoais do reabilitando, bem 
como de suas atitudes para com o programa do Centro e, é evidente, de sua futura vida 
profissional e social. Vale lembrar, todavia, que, por melhor e mais tarimbado que o 
conselheiro de reabilitação seja ­ e esta observação é válida para toda a equipe ­ quando esse 
quadro de características e atitudes não for informado por um estudo psicológico, familiar e 
social da pessoa deficiente, ele poderá se tornar simplesmente inconclusivo e muito limitado.
    Já que as características pessoais são aquelas que mais influenciam na formação e na 
manutenção de hábitos, de atitudes e de comportamentos da pessoa, sua observação poderá 
dar à equipe condições para trabalhar com mais segurança em seu ajustamento global.

    b) Experiência educacional e profissional: A entrevista do conselheiro de reabilitação 
procurará fazer uma verdadeira análise das experiências relacionadas à vida escolar, à forma 
como a pessoa deficiente vê o problema de sua educação e o que isso poderá significar em 
sua vida futura. Será necessário também que o profissional analise com cuidado as 
experiências de trabalho já vividas pela pessoa sob orientação, com informações quanto ao 
tipo de empresa em que trabalhou, remunerações percebidas, atribuições e requisitos para o 
desempenho de suas funções, ambiente de trabalho, motivo de desligamento e ida para uma 
nova empresa, quando for o caso.
    Será, portanto, de extrema valia essa análise quanto à vida educacional e de trabalho, 
tendo em vista o papel que a vivência anterior representa nas atuais atitudes do reabilitando, 
face a um programa de aprendizado. Dessa análise poderão ser retirados e utilizados muitos 
dados e informações de real valia para a pessoa portadora de uma deficiência planejar com a 
equipe o desenvolvimento de seu programa de atividades no centro de reabilitação.

    c) Aptidões e potencialidades: A simples existência ou a constatação de uma aptidão 
revela o fato límpido de a pessoa ser dona de uma facilidade ou de uma habilidade para 
aprender e para fazer, a qual, pela prática ou pelo treinamento sistematizado, poderá ser 
transformada em experiência. A aptidão em geral envolve mais do que a simples capacidade 
de adquirir conhecimentos. E ela que faz desabrochar o interesse e o desejo de aprender 
algo. Ela não promete à pessoa o sucesso, mas é indicativa de alguma facilidade na aquisição 
de técnicas de atuação e de habilidades no trabalho. Notemos, porém, que para uma aptidão 
ser transformada numa habilidade concreta, ou seja, numa capacidade real efetiva, ela 
depende de muitos fatores e de esforços de seu detentor.
    Assim, a capacidade já é uma habilidade adquirida, em geral conseqüente a uma tendência 
ou a aptidões. Mas também uma capacidade poderá não estar ligada a qualquer aptidão e sim 
a esforços contínuos, conscientes e bem determinados por parte da pessoa. A capacidade 
retrata um estado razoavelmente estável que precisa de constante prática para se manter.
    As aptidões, normalmente classificadas em sensoriais, motoras e mentais, manifestam­se 
de diversas maneiras. Assim é que as aptidões SENSORIAIS dizem respeito aos sentidos 
(audição, olfato, paladar, visão e tato). As MOTORAS são a velocidade, a força, a direção, a 
tração, a precisão, a destreza e diversas outras, enquanto as MENTAIS são a inteligência, a 
imaginação, a atenção, a memória e outras.
    É básico esse tipo de conhecimento para todo profissional que trabalha em reabilitação. 
No entanto, o conhecimento dessas características em cada um dos reabilitandos dependerá 
de uma avaliação psicológica completa, incluindo não só aptidões e capacidades, mas 
também seus traços de personalidade e análise de seus interesses.

    d) Interesses: O interesse pelo trabalho, por parte de uma pessoa deficiente em processo 
de reabilitação, poderá ser consideravelmente aumentado com a obtenção de certas 
satisfações pessoais, conseqüentes à constante participação nas atividades a esse fim 
destinadas no centro de reabilitação. O nível de interesse aumentará conforme crescer o seu 
prazer diante do trabalho, isto é, além de desenvolver bem as atividades, ela deve ver essas 
atividades com resultados que lhes sejam favoráveis.
    O interesse não depende, todavia, "in totum", da qualidade do trabalho executado. A 
pessoa deficiente poderá ter interesse por certos tipos de trabalho ou atividade que não 
consegue executar com perfeição, devido a circunstâncias várias, inclusive devido a uma 
deficiência adicional até então não considerada.
    Para alguns clientes de reabilitação, a dificuldade de certos tipos de tarefa significa 
desafio, sendo esse um motivo mais do que suficiente para tentar executá­la bem, dedicando­
se ao máximo a ela. O pessoal que trabalha em oficinas de reabilitação na qualidade de 
avaliador de atividades precisa ter condições para distinguir o que a pessoa deficiente faz 
apenas para superar um desafio e aquilo que ela faz por puro interesse. A atitude para com 
um desafio é de extrema importância no processo de integração social, principalmente ao se 
analisar, em confronto, suas atitudes em outras atividades no programa. Se essa atitude for 
adequada e equilibrada, a equipe poderá ponderar melhor as suas possibilidades de sucesso 
na vida após terminado o processo de reabilitação.
    O reabilitando demonstra interesse no trabalho pela sua aplicação e dedicação a certos 
tipos de função, bem como pelo esforço intelectual e físico dispendido na obtenção de 
melhorias ou de aperfeiçoar os resultados até então conseguidos. Essas demonstrações de 
interesse ficam patenteadas de várias formas, como, por exemplo, pela vontade de dedicar 
mais tempo do que o indicado na tarefa, pela curiosidade e desejo de aprender mais, pelo 
desagrado ao ter que interromper sua atividade na oficina, pela ordem, pelo cuidado, pela 
limpeza que demonstra na bancada, pela atitude de permanente colaboração com o instrutor 
de oficina.
    O conselheiro de reabilitação deve estar informado quanto a alterações nos interesses 
expressos pela pessoa deficiente e o avaliador de oficina é o profissional mais indicado para 
discutir o assunto, na área de trabalho, especialmente se tiver um preparo especial, como o 
de terapeuta ocupacional, por exemplo.

    e) Capacidade física: Ninguém pode medir a adequacidade de uma colocação profissional 
apenas pela habilidade que a pessoa deficiente demonstra na bancada de trabalho. Uma 
pessoa que possui a indispensável habilidade ou capacidade de trabalho para certos tipos de 
tarefas, pode não ser considerada boa para certa colocação no mercado competitivo de 
trabalho se não tiver, além da habilidade requerida, a capacidade física para o trabalho 
durante o dia todo, todos os dias da semana e todas as semanas do mês. A mesma restrição 
poderá ser feita se puder trabalhar apenas por limitado número de horas ou de dias. 
Problemas surgem também em outras áreas de extrema importância, como, por exemplo, no 
que diz respeito a comportamentos durante o trabalho, relacionados com colegas, com 
superiores e outros mais.
    Quando, no setor de avaliação e de ajustamento ao trabalho, o indivíduo conseguir 
demonstrar pela sua atuação que pode ampliar o volume de horas de trabalho diário até 
chegar às oito horas diárias, sem grandes dificuldades e gradativamente, com a mesma 
produtividade, durante os cinco dias da semana, teremos um resultado significativo em 
termos de condicionamento físico para o trabalho.
    Dependendo da cronicidade do mal e das características físicas da pessoa deficiente, 
somente um período significativo numa oficina protegida de trabalho poderá determinar com 
segurança sua resistência à fadiga e demais desafios colocados pela situação de trabalho.
    O conselheiro de reabilitação deverá estar perfeitamente a par desses aspectos da atuação 
da pessoa deficiente em processo de reabilitação, uma vez que só o gradativo aumento de 
sua capacidade física, por meio de um programa constante de melhoria de suas condições 
físicas, supervisionado, sempre que viável, por fisioterapeuta familiarizado com problemas e 
características da deficiência, é que poderá dar condições dela enfrentar a vida de trabalho 
competitivo, após sua passagem pelo centro de reabilitação.

    f ) Capacidade mental: A capacidade intelectual de uma pessoa deficiente que se submete 
a um programa de reabilitação global precisa ser conhecida e devidamente considerada por 
toda a equipe. De um modo especial, precisa ser contínua e concretamente lembrada pelo 
conselheiro de reabilitação, em seu programa de aconselhamento para a vida de trabalho, 
pois é fator de preponderante importância na determinação dos planos de trabalho.
    Os níveis requeridos de aprendizagem para determinada área diferem muito e chegam 
mesmo a contrastar marcadamente com os níveis para áreas afins. O conhecimento da 
capacidade mental de um cliente de reabilitação é importante também para o 
estabelecimento de planos exeqüíveis de colocação profissional. Certos empregos 
competitivos exigem habilidades físicas e mentais de determinada natureza, e se a pessoa 
deficiente não chegar aos níveis requeridos, a colocação poderá redundar num grande 
fracasso.
    Nesse sentido o conselheiro de reabilitação poderá ser ajudado não só pelos resultados da 
avaliação psicológica como também pelos trabalhos desenvolvidos no setor especifico do 
centro de reabilitação, destinado a atividades de avaliação do potencial do indivíduo para o 
trabalho e de ajustamento a situações concretas de trabalho em competição. O processo de 
avaliação colabora muito com todo o esquema de orientação e expõe muito às claras as 
capacidades que correspondem aos requisitos da colocação competitiva pretendida.
    No anexo I deste capítulo o leitor encontrará uma proposição de roteiro para análise de 
cada caso que for encaminhado para programas de ajustamento profissional.

    ­ *Avaliação e ajustamento ao trabalho*
    A avaliação para a vida de trabalho, ou "avaliação profissional" como é de um modo geral 
conhecida, é um recurso fundamental que todo centro de reabilitação global deveria procurar 
manter. Essa avaliação deverá ser processada em unidade física praticamente acoplada a 
todos os demais aspectos de ajustamento profissional do centro de reabilitação.
    Trata­se de um processo que procura ajudar os indivíduos a entender o significado, o valor 
e as exigências do trabalho; procura também colaborar para que atitudes e hábitos positivos 
sejam corroborados, adquiridos ou modificados e que características pessoais ou 
comportamentos voltem­se para a demanda diuturna do ambiente de trabalho.
    Um programa dessa natureza não poderá deixar de levar os clientes a desenvolver hábitos 
funcionais.Usa, para tanto, a atividade de trabalho ­ e não a terapia. Esse trabalho poderá ser 
real ou simulado e através dele procura conhecer melhor o indivíduo e fazer um pouco de 
exploração profissional. Uma oficina de reabilitação organizada para esses fins deve ser 
parte integrante do processo de orientação de cada caso, sendo um dos mais positivos 
veículos de capacitação do cliente, pois conscientiza­o praticamente do alcance das medidas 
e do plano de reabilitação.
    Dentre os aspectos que fazem parte das contínuas preocupações dos sistemas de avaliação 
e de ajustamento ao trabalho, os mais relevantes e que jamais poderão ser esquecidos são os 
seguintes:

    a) Potencial do indivíduo para o trabalho: Para ter utilidade concreta no programa de 
reabilitação, as atividades de avaliação e de ajustamento ao trabalho devem oferecer ao 
cliente de um centro de reabilitação toda oportunidade possível para demonstrar o seguinte:
  ­ sua capacidade de preencher todas as condições necessárias para um emprego 
competitivo, após o programa de reabilitação;
  ­ sua aptidão para alguma das diversas oportunidades de treinamento oferecidas pelo centro 
ou mantidas pela comunidade.

    É necessário que a oficina de avaliação e de ajustamento ao trabalho esteja planejada 
sobre bases sólidas não só quanto ao seu papel no processo reabilitacional, mas também 
quanto às exigências do mercado aberto de trabalho, relacionando­as ao potencial desse 
mesmo mercado quanto às oportunidades de assimilação de pessoas deficientes, mas 
devidamente qualificadas.
    Isso não significa nem que a oficina deve ter possibilidade de testar o cliente de 
reabilitação em todas as possíveis funções existentes no mercado de trabalho, nem que a 
pessoa deficiente deva passar por todas as suas áreas de análise. Significa, isso sim, que as 
atividades do setor devem ter aplicabilidade ampla e estar bem relacionadas com as 
oportunidades de emprego, de tal forma que o avaliador de oficina possa fazer um 
julgamento quanto ao potencial do reabilitando para as oportunidades existentes.
    Um fato que precisa ser levado em consideração num programa de avaliação do potencial 
do indivíduo para o trabalho é que no campo das profissões semi­qualificadas, de um modo 
geral, são os esforços físicos de mediana intensidade e habilidades mais ou menos uniformes 
que são requeridos, não interferindo muito com o fato de a pessoa ter ou não problemas 
orgânicos ou deficiências não­aparentes, como nos casos de cardiopatias ou de males da 
respiração. O problema está localizado muito mais no ambiente de trabalho ­ calor, barulho, 
poeira, tensão, velocidade ­ do que no dispêndio de energias físicas para desenvolver a 
atividade.
    O cliente de reabilitação deve gradativamente dominar tudo aquilo que é comumente 
indicado como mínimas condições para o trabalho, uma vez que ele só conseguirá vencer na 
vida profissional se chegar a essas condições mínimas aceitáveis de qualidade, de quantidade 
de produção, de adequado relacionamento, de organização, de assiduidade, de pontualidade, 
de apresentação pessoal, de atitudes ­ enfim, de bom ajustamento pessoal.

    b) Significado para o indivíduo: A pessoa deficiente em programa de reabilitação poderá 
beneficiar­se de muitas maneiras de uma boa programação mantida por uma oficina de 
avaliação e de ajustamento ao trabalho. Como acontece com a maioria das pessoas 
deficientes que nunca trabalharam, mas que almejam muito uma situação efetiva de atuação 
remunerada, o cliente de reabilitação vive num mundo de suposições e de fantasias quanto às 
suas possibilidades, quanto às suas qualificações e pretensões para o futuro profissional, 
logo após o término do programa. Ao passar por um organizado sistema de avaliação e de 
ajustamento ao mundo do trabalho, passará a sentir melhor a realidade e procurará, com a 
ajuda da equipe do centro, planejar e concretizar um futuro profissional realista e atingível.
    Nesta fase do programa de reabilitação, essa posição é conquistada não apenas com o 
sucesso nesta ou naquela área avaliada, mas também com os eventuais resultados medíocres 
ou de má qualidade, ao desenvolver as mais variadas tarefas. É interessante notar que, 
enquanto alguns clientes de reabilitação enfrentam um esquema de avaliação na certeza de 
que dominam tudo, ou de que sabem tudo, especialmente quando se fala em hábitos de 
trabalho, outros tomarão parte do programa com reservas e com temor de mais um fracasso, 
pois tem a impressão de que nada mais sabem e de que não tem experiência alguma válida. 
Ambos os tipos, e todos aqueles que são intermediários, encontrarão o seu momento de 
verdade, pois o sistema avaliativo poderá deixar muito claro que o primeiro não é tão bom 
quanto gostaria de ser, enquanto que o outro extremo pode saber e sair­se muito.melhor do 
que julgava.
    Atividades de avaliação para o trabalho inseridas numa programação mais ampla de 
ajustamento profissional muito beneficiará as pessoas deficientes na gradativa e 
indispensável modificação de toda a gama de atitudes e de hábitos inadequados que poderão 
tornar­se um bloqueio e interferir seriamente em seu sucesso fora do Centro.
    O indivíduo precisa absorver o verdadeiro papel do trabalhador, com todos os 
comportamentos que o grupo pode esperar dele, tais como: ser pontual, ser cordial, seguir 
orientações, concentrar­se, manter produção sem reduzir qualidade e outros mais. Com a 
melhoria dos hábitos de trabalho, passará o cliente de reabilitação a notar pessoalmente suas 
possibilidades de sucesso e a ter mais confiança em seu futuro profissional.
    Em geral, um programa de ajustamento às peculiaridades do trabalho a mais longo prazo é 
indicado para casos de baixa produtividade, de atrasos ou ausências constantes, de má reação 
às ordens da supervisão, da falta de interesse, de dificuldades comportamentais, de 
dificuldades de relacionamento com colegas, principalmente.
    Devendo funcionar basicamente como unidade avaliativa e, conforme as circunstâncias, 
como unidade destinada ao melhor ajustamento do indivíduo ao trabalho, à oficina de 
reabilitação caberá elevar as possibilidades do reabilitando para as atividades indicadas 
numa certa situação de trabalho competitivo. Deverá sempre a oficina levar em consideração 
os pontos indicados pela equipe de técnicos durante todo o programa de reabilitação.
    c) O processo de ajustamento à vida de trabalho: Passado pela fase de tomada de contato 
com o programa por meio das atividades que determinam a elegibilidade para o centro de 
reabilitação, deverá o cliente adulto iniciar de imediato sua programação no esquema de 
discussão de seus planos profissionais. O seu primeiro contato nessa área será com o 
conselheiro de reabilitação, pois será ele o coordenador de sua atuação nas atividades de 
avaliação, de ajustamento, de treinamento profissional e de colocação, conforme foi 
indicado mais acima.
    O conselheiro de reabilitação deverá manter­se informado quanto ao condicionamento 
físico e quanto à evolução das programações de ajustamento psico­social do reabilitando. 
Logo após o primeiro contato o cliente de reabilitação deverá ser encaminhado e iniciar 
imediatamente o programa da oficina, para uma análise rápida de seu potencial para 
atividades de trabalho. Com essa análise inicial será possível ao conselheiro discutir com o 
reabilitando sua programação a prazo mais curto ou mais longo, na oficina de avaliação e de 
ajustamento ao trabalho.
    Assim, a oficina procurará, observadas as solicitações e as recomendações do conselheiro 
de reabilitação, desenvolver uma avaliação inicial mais pormenorizada e logo após procurará 
trabalhar o potencial do cliente para o programa de ajustamento à vida de trabalho e 
eventualmente para treinamento profissional de algum tipo, mantido pelo centro ou pela 
comunidade.
    No sistema de funcionamento usual de um centro de reabilitação global, caberá ao 
conselheiro de reabilitação ­ como coordenador da área de ajustamento profissional ­ fazer 
solicitações especificas à oficina quanto à observação de hábitos e comportamentos, bem 
como quanto à observação destinada a determinar o potencial do indivíduo para o trabalho, 
que deverá ser medido pelos avaliadores de oficina através de um formulário próprio, no 
qual uma lista de requisitos deverá deixar bem claro o que deve ser observado e/ou medido, 
para um concomitante aproveitamento daquilo que poderá prejudicar a pessoa em sua vida 
de trabalho e/ou social.
    Ao ser concluída, uma avaliação para o trabalho poderá sugerir uma ou várias das 
seguintes providências:
    ­ colocação imediata do indivíduo;
    ­ necessidade de educação complementar;
    ­ desejo e necessidade de um treinamento formal;
    ­ necessidade de atividades para correção ou alteração de falhas em sua atuação como 
trabalhador;
    ­ colocação em oficina protegida de trabalho;
    ­ outras soluções a critério da equipe do centro de reabilitação;

    d) A importância dos instrumentais de avaliação: Os hábitos e atitudes do indivíduo num 
programa dessa natureza deverão ser analisados e trabalhados de forma sistemática em todo 
o centro de reabilitação e por toda a sua equipe. Para tanto, os avaliadores de oficina deverão 
ter à sua disposição um instrumental adotado pelos mesmos, em discussão com o 
conselheiro de reabilitação. Como anexos II e III deste capítulo estão transcritos 
instrumentais à guisa de orientação para a organização inicial de uma oficina. Apresentam 
aos avaliadores de oficina fatores diversos a serem identificados, conceituados e trabalhados 
­ todos eles de alto interesse no mundo empresarial, ou seja, no mundo competitivo de 
trabalho.
    O instrumental de avaliação para o trabalho e de ajustamento aos seus requisitos mínimos 
­ corresponde ao anexo III ­ inclui todos os hábitos e atitudes que deverão ser observados ou 
trabalhados, conforme o caso podendo seu conteúdo ser confrontado com o instrumental 
relativo à adequação pessoal ­ desde que adotado pelo centro ­ para fins de ampliação da 
análise por parte do avaliador de oficina.
    A lista apresentada no instrumental de avaliação retrata uma tentativa de estabelecer com 
clareza o conteúdo inicial do sistema de avaliação. A necessidade da existência de um rol de 
observações é devida ao fato de o potencial de um reabilitando não poder ser apenas 
suposto. Deve ser medido o mais acuradamente possível.
    O próprio conselheiro de reabilitação, ao fazer contatos com os dirigentes de empresas, 
notará a diferença nas reações do empregador entre ser procurado para empregar uma pessoa 
deficiente (por ser deficiente ou coitada ou algo assim) e colocar uma pessoa deficiente que 
já passou pela reabilitação global e cujo desempenho observado nas áreas de ajustamento 
profissional foi de um certo nível quanto à pontualidade, à assiduidade, à rentabilidade, à 
concentração, ao interesse, ao relacionamento com colegas e supervisores, e tantos outros 
dados pormenorizados de atuação em situações reais de trabalho, que podem ser tirados do 
instrumental acima proposto.
    "Sacar informações", apelar para o senso humanitário, "inventar comportamentos de 
super­heróis", usar das amizades, dar dados errôneos quanto a um determinado indivíduo ou 
generalizar comentários quanto à maior seriedade ou produtividade de pessoas deficientes, 
não corresponde nem a princípios básicos de atuação profissional, nem ao respeito que se 
deve a cada um.

    ­ *O treinamento profissional em programas de reabilitação*
    Muitos autores de reabilitação consideram fundamental que a pessoa portadora de 
deficiência deva ter ao seu dispor algumas oportunidades para treinamento em profissões 
específicas, a fim de que tenham possibilidade de lutar por boas condições de trabalho, como 
profissionais desses ramos selecionados.
    Quando as limitações físicas ou sensoriais assim o permitem, a pessoa deficiente deverá 
procurar, no entanto, os recursos da comunidade, do tipo SENAI e/ou SENAC, quando não 
as próprias empresas, para tal propósito enfrentando sem maiores regalias os sistemas e os 
padrões adotados na seleção dos alunos. Deve ficar muito claro que não caberá jamais a 
centros ou programas de reabilitação montar sistemas paralelos e segregados de treinamento 
profissional, não só por serem segregativos, mas por serem também inteiramente descabidos 
e muito dispendiosos.
    A experiência de integração da pessoa deficiente com colegas que não têm dificuldades ou 
limitações físicas, nos programas já existentes na comunidade, poderá sempre ser válida e 
útil para adaptação ao trabalho em condições competitivas, ajudando inclusive a pessoa não­
deficiente a se posicionar melhor e eventualmente a se despojar de preconceitos, revendo 
conceitos e reformulando idéias.
    Tal tipo de linha de orientação está perfeitamente consoante com os princípios da própria 
integração social das pessoas deficientes. Seria sua própria negação manter instalações e 
programas segregados de treinamento profissional, quando o que o processo de reabilitação 
busca é a inserção do indivíduo em seu meio.
    Para as pessoas deficientes que têm sérias limitações e para as que requerem métodos e 
técnicas especiais de ensino, poder­se­á pensar no planejamento de cursos especiais de 
treinamento profissional através de programas, técnicas e métodos seletivos, considerando:
    ­ A necessidade de uma instrução mais individualizada;
    ­ a organização de cursos profissionalizantes bem selecionados e de maior duração.
    Cursos dessa natureza que os centros de reabilitação possam desejar manter, precisarão 
conter exigências adicionais devido ao fato de serem mais flexíveis em alguns aspectos, a 
fim de que obtenham o reconhecimento oficial e para que tenham o nível requerido. Centros 
de reabilitação que dão atendimento a deficientes visuais, por exemplo, também podem 
organizar treinamentos profissionais válidos em certas funções próprias para tais casos, 
usando técnicas especiais de comunicação.
    Não se pode, entretanto, confundir o treinamento profissional que prepara profissionais 
para áreas definidas (como tornearia mecânica, fabricação de calçados, eletrônica, 
eletrotécnica, artes gráficas, funilaria e outras) com os meros adestramentos para algumas 
funções existentes especialmente no grande e variado mundo dos serviços (tais como 
telefonistas, consertadores de eletro­domésticos, barbeiros, sapateiros, consertadores de 
rádio e tantos mais) que realmente podem ser mantidos por centros de reabilitação.
    Seja num, seja noutro caso, porém, o importante é que o cliente de reabilitação aprenda 
que ele não poderá ser aceito simplesmente pelo diploma ou certificado que tiver em mãos, 
mas pela competência como "trabalhador" que domina uma área de conhecimentos 
específicos que nunca poderá ser dissociada de sua atuação como "pessoa humana". Seu 
sucesso estará muito mais na dependência desse tipo de competência pessoa!/profissional do 
que de outros fatores.

    ­ *Colocação em emprego*
    A finalização do processo de reabilitação total é a colocação da pessoa deficiente em 
algum tipo de trabalho condizente com seu potencial, suas aspirações e seu preparo, e poderá 
sempre ter sucesso se trabalharmos dentro dos princípios que se aplicam ao emprego de 
pessoas não­deficientes, ou seja, dos demais trabalhadores. No entanto, são freqüentes os 
casos em que se requer a aplicação de métodos especiais na escolha de empregos para 
pessoas portadoras de deficiências.
    Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dever­se­á sempre levar em conta 
certos fatores particulares que tornam mais difícil a colocação de pessoas deficientes 
reabilitadas. Deve se procurar uma colocação que corresponda, não às deficiências do 
candidato, mas às aptidões, como é feito, aliás, com boa parte de todo o contingente de mão­
de­obra assimilado pelo mundo de trabalho. Será necessário considerar não apenas sua 
qualificação profissional ou suas qualidades pessoais, seus conhecimentos e sua disposição 
ou preferências, mas também ­ e com cuidado todo especial ­ sua capacidade física para 
desenvolver o trabalho indicado.
    Não se deve esquecer que a pessoa deficiente precisa sentir que tem uma tarefa a 
desenvolver e que poderá fazê­lo com a mesma chance de sucesso que seus demais colegas, 
sem perigo para si mesma e sem que se tema um agravamento de suas condições físicas ou 
suas limitações.
    Para se determinar o trabalho e as condições mais adequadas para cada pessoa deficiente 
em situações de trabalho, é necessário que o conselheiro de reabilitação ou o profissional 
encarregado de promover sua colocação faça a indispensável análise de diferentes postos, 
comparando seus requisitos às capacidades residuais e qualidades da pessoa que procura 
emprego, ou seja, uma "análise de trabalho".
    "Análise de trabalho é usada para vários propósitos na empresa, e pode ser utilizada de 
maneira mais significativa na área de reabilitação humana e nas oficinas de reabilitação. Seu 
uso maior é como um instrumento através do qual os atributos e as exigências do trabalho 
podem ser combinados com os traços comprovados dos clientes, que vieram à tona e foram 
posteriormente desenvolvidos durante sua estada nas oficinas de reabilitação. Um estudo 
cuidadoso dos traços característicos de um dado trabalho ou trabalhos, e os traços 
característicos verificados no cliente, resultará em uma colocação melhor e mais 
satisfatória". ("Análise de Trabalho (Job Analysis)", de Vieira).
    Numa análise de trabalho não podem deixar de constar os requisitos de educação, 
aptidões, interesses, traços de personalidade, exigências físicas ou mentais, e também 
condições de trabalho, tais como temperatura, poluição ambiental, barulho e muitas mais.
    É fundamental que sejam feitos levantamentos de ocupações disponíveis, com o cuidado 
de não caracterizá­las como "funções para deficientes". Dentre os profissionais que atuam 
em reabilitação, há aqueles que visualizam seus clientes em funções não­qualificadas, 
sedentárias e despidas de maiores envolvimentos, independentemente do nível intelectual, da 
formação, dos planos e aspirações, ou mesmo do potencial do indivíduo. Essa posição 
profissional não deixa de ser injusta, demonstrando a descrença no processo de reabilitação. 
Ela é também encontradiça entre dirigentes empresariais e predomina entre selecionadores 
de pessoal.
    Apesar de sempre ser trazido à baila o momento de recessão do mercado como fator 
decisivo para a não­abertura da contratação de pessoas deficientes, encontramos nas 
empresas uma atitude de reserva quanto à colocação aberta, indiscriminada de pessoas 
portadoras de deficiências. Há temores que elas possam se tornar pontos de atrito na 
empresa, ou que assumam atitudes inadequadas; há também uma generalizada propensão a 
julgar que pessoas deficientes têm mais possibilidade de se acidentar no trabalho e que seu 
rendimento e produtividade sejam menores.
    Muitos desses receios e tendências são plenamente justificáveis, pois o mundo 
empresarial tem seus canais de comunicação formais e informais e os sucessos ou insucessos 
de pessoas deficientes no trabalho correm muito velozmente. E nesse sentido é fácil deduzir 
que más experiências em política de pessoal ­ no que se relaciona a empregados com 
deficiências, evidentemente chegam a todos os cantos.
    Uma das causas dos eventuais fracassos na colocação de pessoas deficientes vem do fato 
muito simples de muitas delas não terem condições de trabalho, seja devido a atitudes 
inaceitáveis, seja devido à falta de condições físicas ou psicológicas para o trabalho.
    A conquista dos empregadores e de seus gerentes de pessoal, diretores de relações 
industriais, diretores de produção chefes de seleção e outros elementos categorizados numa 
empresa não dependerá nunca de campanhas inconseqüentes por meio de programas de 
comunicação de massa, como sucedeu durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, 
através de um canal de televisão no Brasil todo. A idéia "empregue um deficiente" é péssima 
sob todos os ângulos e traz dentro de seus termos a própria condição para seu fracasso, pois 
o termo "deficiente" em si já é depreciativo e tem conotações de insucesso, de perda, de 
fracasso. Se qualquer um de nós for um empregador convicto de sua função e do seu papel 
no mundo da produção de bens e serviços, levantaria a questão: "Empregar um deficiente 
por que? Eu preciso de empregados produtivos e não de deficientes que sempre são 
problemáticos, cheios de dificuldades, revoltados, limitados, criadores de problemas" ... Essa 
é a imagem que a grande maioria tem de pessoas deficientes ­ até que provemos o contrário 
por casos bem colocados e de sucesso.
    O envolvimento do mundo empresarial deverá se dar pela competência que as pessoas 
portadoras de alguma deficiência poderão mostrar ­ e essa "competência" elas precisam 
adquirir através de uma educação adequada em casa e na escola, ou num centro de 
reabilitação que não seja apenas um simulacro de centro. Aliás, é um requisito que é válido e 
é aplicado a toda a mão­de­obra, sem qualquer exceção. Pessoas incompetentes, criadoras de 
problemas, sem escolaridade ou preparo de natureza profissional, sem experiência, sem 
documentação em ordem, são pessoas consideradas inaceitáveis. quer tenham, quer não 
tenham qualquer tipo de deficiência.
    Por mais incrível que possa nos parecer o grande problema que temos no Brasil é a 
existência de muitas entidades que trabalham em reabilitação e, seja devido a dificuldades 
financeiras, seja devido à verdadeira noção das implicações desse processo complexo de 
trabalho com o ser humano portador de deficiências, não conseguem atingir plenamente os 
objetivos propostos. Elas sabem que a reabilitação finaliza o processo com vida de trabalho e 
fazem a promoção da colocação do indivíduo sem tê­lo realmente preparado para tanto.
    E entramos num círculo vicioso no qual o elemento mais prejudicado é o ser humano 
diretamente envolvido numa colocação inadequada que ele logo perde; mas a longo prazo 
temos prejuízos muito mais sérios e lamentáveis para a própria causa da reabilitação, pelo 
descrédito do processo reabilitacional.
    Assim, vislumbramos um caminho apenas: a conquista individual de cada empresa, 
oferecendo a ela mão­de­obra bem preparada, conhecedora das implicações da vida de 
trabalho, pronta para uma atuação normal. E essa conquista individual funciona muito bem ­ 
sempre funcionou, aliás.
    O problema da absorção da mão­de­obra de pessoas portadoras de deficiências é muito 
sério e já mereceu estudos profundos em países mais evoluídos que o nosso. Entre nós 
mereceria também um estudo crítico, pois não é em duas ou três páginas de considerações 
que ele poderá ser dissecado com propriedade.

            ANEXO I
            ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
            ACONSELHAMENTO DE REABILITAÇÃO

    RELATÓRIO.
    I. IDENTIFICAÇÃO
    1. Dados pessoais: Sexo; Estado Civil; Data de Nascimento; Local/Nascimento; Filiação: 
Pai; Mãe.
    2. Localização: Endereço residencial; Bairro; CEP; Cidade; Endereço Atual; Bairro; CEP; 
Cidade.
    3. Documentação: Carteira Identidade RG n°; Est; Carteira de Trabalho n°; Série; Est; 
Título de Eleitor n°; Zona Eleitoral; C.P.F. n°; Outros.
    4. Problema físico:
    5. Situação familiar/social:
    6. Procedência (encaminhado por):
    7. Observações especiais:

    II. EXPERIÊNCIA ESCOLAR
    1. Curso primário: Escola; Relacionamento cliente­escola; Matérias preferidas.
    2. Curso secundário: Escola; Relacionamentos cliente­escola; Matérias preferidas.
    3. Outros cursos: Escola; Relacionamentos cliente­escola.
    4. Comentários sobre: a) Experiência escolar; b) Significado dos estudos feitos.
    5. Planos de estudos:

    III. ORIGEM DA IDENTIDADE PROFISSIONAL
    1. Profissão/ocupação dos pais ou equivalentes: a) O que os pais pensam do próprio 
trabalho; b) O que o cliente pensa do trabalho dos pais.
    2. Profissão/ocupação dos irmãos: a) O que os irmãos pensam do próprio trabalho; b) O 
que o cliente pensa do trabalho dos irmãos.
    3. Interesse profissional de amigos/colegas; O que o cliente pensa a respeito.
    4. Interesse profissional do grupo de referencia; Como o cliente se vê nessas 
profissões/ocupações.
    5. 0 que o próprio cliente imagina vir a ser no trabalho:
    6. Opinião do cliente quanto a: a) Trabalho de pessoas deficientes e não­deficientes; b) 
Trabalho de pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto; c) O papel do trabalho na vida do 
homem..

    IV. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
    1. Comentário geral sobre vida profissional:
    2. Empregos especificados:
    a) Primeiro local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa; Endereço; Função 
exercida; Período de permanência; Como conseguiu emprego; Motivos de saída; 
Remuneração (última); Horário; Observações quanto a: ­ Aspectos percebidos como 
positivos; ­ Aspectos percebidos como negativos; ­ relacionamento com superiores; 
relacionamento com colegas.
    b) Empregos intermediários (comentários):
    c) Último local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa; Endereço; Função 
exercida; Período de permanência; Como conseguiu emprego; Motivos de saída; 
Remuneração (última); Horário; Observações quanto a: ­ Aspectos percebidos como 
positivos; ­ Aspectos percebidos como negativos; ­ Relacionamento com superiores; ­ 
Relacionamento com colegas; ­ Comentários adicionais relevantes.
    d) Informações sobre "situação de trabalho":
    e) Significado do trabalho na vida do cliente:
    f) Situação atual face ao trabalho (fatos):
    g) Atividades atuais: ­ Como ocupa o dia da semana; ­ Como ocupa o fim de semana;
    h) Como vê sua situação atual frente ao trabalho e como procura resolvê­la: ­ Fantasias de 
solução do problema; ­ Papel atribuído ao progr. ajust. Profissional.
    i) Planos para a vida de trabalho, após a reabilitação: ­ Como espera atingir o objetivo; ­ 
Caso não consiga atingi­lo.
    j) Conhecimento do universo ocupacional:
    l) Expectativa a respeito do futuro (global):

    V. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CASO
    a) Síntese interpretativa:
    b) Planos de atuação para os primeiros 3 meses:
    
    VI. PONTOS ESPECIAIS A CONSIDERAR:

    LOCAL, DATA E ASSINATURA.

    
    Nome do cliente:

    VII. EVOLUÇÃO NO PROGRAMA 
    a) Condicionamento físico: Data – observação.
    b) Ajustamento psico­social: Data – observação.
    c) Problemas especiais, intercorrências e outros:

    VIII. PLANOS PARA O AJUSTAMENTO PROFISSIONAL (EVOLUÇÃO):
    a) Programa de aconselhamento: Data – observação.
    b) Avaliação para o trabalho: Data – observação.
    c) Ajustamento à vida de trabalho: Data – observação.
    d) Treinamento em área específica: Data – observação.
    e) Colocação: Data – observação.
    f) Seguimento: Data – observação.

    IX. CONCLUSÕES PARA O CASO:

    Local, data e assinatura.

            Anexo II.
            ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
            AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO

            RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO INICIAL
    I. IDENTIFICAÇÃO: nome; data de nascimento; local; estado civil; residência; bairro; 
cidade; escolaridade; experiência de trabalho; diagnóstico; observações.

    II. ASPECTOS FUNCIONAIS
    Desempenho qualitativo; desempenho quantitativo; ritmo de execução; organização na 
atividade; conhecimento/habilidade no manuseio de materiais/ferramentas; resistência psico­
física; tolerância; utilização de resíduos e/ ou tato; observações especiais.
    
    III. ASPECTOS INTELECTIVOS
    Atenção/concentração; compreensão/ assimilação.

    IV. ATITUDES
    Motivação; iniciativa; independência; relacionamento.
    
    V. OBSERVAÇÕES FINAIS QUANTO AO CLIENTE:

    PROGRAMA DE ATUAÇÃO PARA OS TRÊS PRIMEIROS MESES: ...
    Data de início do programa:
    Local, data e assinatura.

            Anexo III
            ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
            AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO

    RELATÓRIO EVOLUTIVO DO CASO
    Nome do cliente:
    Avaliação inicial em:

    FATORES A SEREM AVALIADOS – CONCEITO/SEMANA. (1, 2, 3 E 4)

    FATORES PROFISSIONAIS
 Quantidade de trabalho;
 Qualidade de trabalho;
 Aceitação de crítica do supervisor;
 Aceitação de crítica de colegas;
 Organização da bancada de trabalho;
 Ordem e limpeza no trabalho;
 Relacionamento com colegas;
 Relacionamento com superiores;
 Trabalho em situações difíceis;
 Assiduidade;
 Pontualidade;

    FATORES SOCIAIS E PESSOAIS
 Comunicação;
 Sociabilidade;
 Embasamento cultural;
 Atitude perante a vida como um todo;
 Atitude perante a vida de trabalho;
 Habilidades relacionadas à vida diária;
 Apresentação pessoal;

    Conceitos simplificados: E = Excelente (sem maiores dificuldades no trabalho); B = Bom 
(quase aceitável, mas precisa melhorar); R = Regular (demonstra algum potencial); P = 
Péssimo (cliente com hábitos inaceitáveis).

    Outros conceitos poderão ser dados por extenso, no verso deste instrumental, chamando o 
avaliador a atenção para o mesmo ponto relevante.
    OBSERVAÇÃO: Outros fatores poderão ser inseridos, à vontade, tais como: Persistência 
na atividade de trabalho; Vitalidade no desempenho; Disciplina em trabalho; Cuidado com 
materiais e ferramentas; Perseverança nas atividades; Resistência à fadiga.

            AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
            RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO 
(EVOLUÇÃO)
    
    PORMENORES QUANTO AOS FATORES AVALIADOS
    Quantidade de trabalho: Total produzido comparado com o total do mesmo produto a 
nível competitivo de trabalho industrial.
    Qualidade de trabalho: Habilidade de produzir peças perfeitas e executar tarefas sem 
erros, continuamente.
    Aceitação de crítica de seu supervisor: Aceitação e uso construtivo quanto aos pontos 
criticados pelo supervisor.
    Aceitação de críticas de colegas: Com ou sem discussão de pontos de vista de colegas 
mais experientes, com boa vontade e sem irritação.
    Organização da bancada de trabalho: Mantém seu local de trabalho com ferramentas no 
local certo, sem perigos para si e para os outros, com maior produtividade.
    Ordem e limpeza no trabalho: Não apenas na bancada propriamente dita, mas também nas 
imediações de seu local de trabalho.
    Ansiedade no trabalho: Não tem preocupações e receios evidentes; está bem enquadrado e 
sem tensões aparentes.
    Relacionamento com superiores: Faz contatos adequados que trazem como conseqüência 
maior produtividade e melhor ambiente.
    Relacionamento com colegas: Estabelece bons níveis de relacionamento que acabam 
contribuindo para melhoria do ambiente de trabalho.
    Trabalho em situações difíceis: Consegue desenvolver seus trabalhos sem maiores 
dificuldades, em condições consideradas difíceis e fora do normal.
    Assiduidade: Inexistência de ausências sem constantes justificativas.
    Pontualidade: Marca o ponto nas entradas e saídas, nos horários estabelecidos.
    Comunicação: Tem habilidade de se expressar no trabalho e fora dele.
    Sociabilidade: Tem conduta aceitável na área de trabalho, durante os eventuais intervalos 
e em outras situações, tanto com colegas individualmente, quanto com grupos e com 
supervisores.
    Embasamento cultural: Tem nível cultural adequado ao seu potencial e aos seus planos de 
trabalho.
    Atitudes perante a vida como um todo: Tem atitude positiva com relação à sua vida 
pessoal e familiar.
    Atitude perante a vida de trabalho: Tem atitude positiva com relação ao trabalho e com 
relação aos seus planos profissionais.
    Habilidades relativas à vida diária: Mantém­se diária e diuturnamente bem com relação 
aos componentes da vida de todos os dias.
    Apresentação pessoal: Bem penteado, bem barbeado, limpo, vestido de forma adequada 
para o trabalho.

            CAPÍTULO QUINTO
            AS EQUIPES DE REABILITAÇÃO NOS PROGRAMAS DE HOJE

    Na assistência à pessoa deficiente, através dos tempos, podemos reconhecer os diversos 
métodos de trabalho, os objetivos dos programas estabelecidos e os procedimentos adotados 
para levá­la a sair da situação de dependência.
    O processo de reabilitação, conforme hoje concebido e posto em prática, reconhece um 
método apenas, um único objetivo e apenas um tipo de procedimento que são aceitáveis. O 
método precisa ser devidamente centrado na pessoa portadora de deficiência e com isso 
garantir seu tratamento como um todo e nunca em partes estanques. O objetivo do processo 
reabilitacional, que é respeitado universalmente e não apenas em nosso meio, é o de prover 
meios para que o indivíduo satisfaça suas necessidades, enquanto que o procedimento 
reconhecido adota o tratamento global do homem deficiente.
    Para que esses pontos fundamentais possam chegar a ser concretizáveis num centro de 
reabilitação e para que, como resultado prático, a pessoa deficiente possa se sentir 
beneficiada, é básico que exista e que de fato ocorra a reunião de vários especialistas, cada 
um dono de suas próprias habilidades de caráter profissional, para formar o que todos 
conhecem como "equipe de reabilitação”.

    ­ *O trabalho de equipe em reabilitação*
    O trabalho de equipe tem se tornado cada vez mais importante e recomendado. Ouvimos 
falar a respeito desse tipo de atuação em atividades do mundo industrial, nas ciências, nos 
esforços comunitários, na medicina, na educação, nos esportes, na reabilitação e em quase 
toda atuação na qual as pessoas trabalham juntas para atingir objetivos comuns. Não é de 
estranhar que a expressão "trabalho de equipe" tenha sido muito utilizada, própria ou 
impropriamente, para todas as experiências que demandam esforços cooperativos.
    O trabalho de equipe, na acepção correta do termo, porém, supõe um modo especial de 
trabalhar em conjunto, com a indispensável integração de todos os que compõem o grupo. 
Especialistas podem ser agrupados e podem encontrar­se para trabalhar juntos ou em 
colaboração com outros, sem que essa atuação resulte num típico trabalho de equipe.
    Verifica­se que em certos tipos de atividades a atuação de equipe é tão fundamental que 
sua inexistência acaba provocando seu mais contundente fracasso. Uma dessas atividades é a 
reabilitação, que somente tornou­se viável após o estabelecimento de uma atuação conjunta 
de ciências diversas, com a participação de profissionais pré­determinados que conseguem 
operacionalizar um programa de atividades indispensáveis ao desenvolvimento do ser 
humano que é portador de uma deficiência física, sensorial, orgânica ou mental.
    A qualidade de sua atuação e os seus resultados dependem muito da maneira como o 
trabalho de equipe é desenvolvido, e esse trabalho só funcionará se cada um dos 
profissionais reconhecer o entrelaçamento existente entre seu campo de atuação e os das 
demais profissões, assumindo todas as conseqüências dessa posição. Em reabilitação das 
pessoas portadoras de deficiências não existe simplesmente um tratamento físico, ou apenas 
um trabalho que leve ao ajustamento psico­social, uma vez que, por definição mesmo, o 
tratamento deverá ser sempre "global", somando os esforços dos diversos profissionais. É 
também importante notar que um trabalho de equipe, no campo da reabilitação, bem 
coordenado e bem dosado, evita duplicações de esforços, conflitos de objetivos e a eventual 
omissão de um determinado tipo de atendimento pela suposição de que outro profissional já 
o tenha providenciado.
    Consideradas as finalidades da reabilitação, a equipe de profissionais nela atuante jamais 
poderá tornar­se um mero aglomerado de detentores de habilidades específicas e não 
relacionadas entre si, uma vez que terá significado e valor quando conseguir funcionar como 
uma unidade. É interessante notar que uma equipe de reabilitação é mais complexa do que 
uma outra formada, por exemplo, para trabalhos de comunidade, na qual um certo número 
de representantes de entidades e empreendimentos participa. A equipe multiprofissional de 
reabilitação no seu sentido mais global é também mais ampla do que uma equipe médica ou 
do que uma equipe destinada à "reabilitação hospitalar" que é necessariamente limitada em 
suas possibilidades de bem lidar com as necessidades globais do ser humano.
    A equipe destinada a centros de reabilitação global não pode deixar de incluir todos os 
profissionais necessários para cobrir tudo aquilo que for considerado essencial para um bom 
desempenho físico, social, psicológico e profissional de cada indivíduo atendido. E pelo 
menos alguns dos membros dessa equipe de reabilitação devem compreender e assimilar os 
princípios básicos e os conhecimentos que são necessários para ajudar uma pessoa deficiente 
em sua reabilitação.
    Considerações importantes quanto aos fundamentos de um trabalho reabilitacional 
poderão ser levantadas outra vez, mas três delas são básicas, e não podem jamais ser 
esquecidas:
    ­ o ser humano, dinâmico, perfectível, único e integrado, funciona à base de interações;
    ­ o processo de tratamento de reabilitação deve ser dinâmico e suficientemente fluido para 
se manter na  mesma velocidade de evolução e progresso da pessoa em mudança, 
considerada sempre a globalidade de seus problemas, o conjunto de suas potencialidades e 
sua participação no processo;
    ­ para o desenvolvimento de um programa de reabilitação que dê um atendimento à 
pessoa como um todo, o trabalho de equipes multiprofissionais é indispensável, uma vez que 
enseja atividades de associação de vários profissionais que interagem e que se especializam.

    O trabalho de equipe, conforme deve ser aplicado num centro de reabilitação, é a união 
próxima, democrática e multidisciplinar, devotada a um propósito comum, ou seja, o 
tratamento mais completo possível do indivíduo portador de deficiência, com base em suas 
capacidades, necessidades e aspirações.
    A equipe de reabilitação não deixa nunca de ser um grupo distinto em suas partes, que age 
como uma unidade. Tanto isso é verdade que nenhuma ação importante quanto ao cliente 
deve ser adotada pelos membros de uma profissão sem que haja a ciência e mesmo a 
concordância da equipe como um todo.
    Para que isso venha a acontecer, é necessário que todos os que fazem parte da equipe 
dominem um embasamento técnico que inclua não apenas pontos fundamentais do processo 
de reabilitação, mas também:
    ­ o reconhecimento dos limites de sua atuação profissional;
    ­ a compreensão da linha básica de funcionamento do centro de reabilitação onde atuam;
    ­ o conhecimento essencial das práticas e o alcance das diversas ciências ou técnicas que, 
no trabalho de equipe, se fazem companheiras.

    É fundamental também que todos os componentes de uma equipe que se responsabiliza 
pelo desenvolvimento de um processo complexo como é a reabilitação, tenham mentalidade 
madura e flexível para discutir novas idéias e aceitar novos desafios, sempre muito comuns 
para quem trabalha nesse campo. Sendo assim, é claro, todos devem sentir­se seguros em 
suas áreas de atuação.

    ­ *As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe*
    Para assegurar o atingimento dos desideratos acima indicados, há que se considerar em 
primeiro lugar a própria planta física do centro de reabilitação, pois as instalações devem ser 
de tal natureza e distribuídas de tal forma que dêem a todos os membros da equipe de 
trabalho oportunidades para o estabelecimento fácil de discussões entre si – e, talvez mais do 
que isso, que virtualmente levem a esse tipo de contato.
    As salas do diversos profissionais de uma equipe de reabilitação devem ficar próximas 
umas das outras – especialmente aqueles que cobrem áreas afins ou convergentes, como 
condicionamento físico, ajustamento psico­social e ajustamento profissional – de modo que 
eles se encontrem com freqüência durante o dia de trabalho, mesmo fora de reuniões 
programadas, para discutir pormenores que talvez possam ficar omissos ou deixados de lado, 
caso seja necessário procurar alguém muito distante.
    É necessário garantir também, com bastante persistência, uma atmosfera agradável de 
trabalho, o que implica em não apenas haver salas e equipamentos suficientes, mas também 
em manter muito clara e presente a noção de que a cooperação deve ser mútua e constante 
dentro de um centro de reabilitação.
    A administração do centro, nesse desejável ambiente de trabalho, deve ser suficiente 
democrática para permitir a livre troca de informações profissionais no desenvolvimento do 
tratamento do cliente. Sem essa liberdade, o nível ideal de atuação dificilmente poderá ser 
atingido por uma equipe consciente de seu papel. Todos os membros da equipe devem ter a 
certeza de que, respeitada a linha hierárquica e garantidas as normas vigentes na instituição, 
não há bloqueios aos contatos com a administração do centro e que os problemas por eles 
analisados serão sempre devidamente considerados.

    ­ *A liderança de uma equipe de reabilitação*
    Palavra super­valorizada, tanto em reabilitação quanto em atividades as mais variadas do 
mundo moderno, "equipe" tem problemas inerentes e muito característicos, de grande 
seriedade. Um desses problemas é o de sua "liderança". 
    No caso da reabilitação, já ficou claro que o trabalho de equipe é essencial; nenhum 
profissional conseguiria desenvolver o processo sozinho. Essencial como ele é, o trabalho de 
equipe ­ seja em reabilitação, seja em outras atividades ­ historicamente surgiu e foi adotado 
não só em conseqüência de decisões estabelecidas pela observação científica, mas por 
analogia com atividades esportivas em grupo. Pois foi essa mesma analogia que sempre 
levantou a idéia de que uma equipe necessita de um "capitão", um "líder". E, de fato, é 
crença generalizada que grupos de pessoas não conseguem atuar e trabalhar juntos sem que 
haja um líder, um capitão, um responsável, um diretor.
     Qual dos profissionais poderá ser o líder de uma equipe de reabilitação? Existem líderes 
pré­determinados?
    Por mais técnicos e objetivos que os profissionais que atuam em reabilitação queiram ser 
em sua atuação, todos eles, sem qualquer exceção, reconhecem que há um problema que 
afeta diretamente uma equipe (dentre os muitos que podem afetá­la que se resume nesta 
pergunta: "quem é o líder do grupo?").
    Todos, sem exceção, concordam que é importante estabelecer claramente essa questão de 
liderança ou coordenação, e quase todos concordam que deve haver "um" líder. No entanto, 
a grande maioria dos médicos fisiatras acha que não deve haver "um" líder, mas "o" líder, 
que precisa, necessariamente, ser o médico. Claro que há motivos sérios para esse 
posicionamento, motivos esses que vão desde a etiologia dos males e das deficiências, até a 
urgência de se iniciar o processo reabilitacional ainda no hospital. Um outro motivo muito 
sério que tem sido constantemente alegado é a evidente liderança que muitos médicos têm 
exercido no desenvolvimento geral da reabilitação em todo o mundo. O questionamento 
dessa posição de médicos não nasce e nem poderia nascer desses argumentos, 
evidentemente, mas de alguns outros.
    Há, por exemplo, profissionais de reabilitação que defendem a posição de que o ato de 
coordenar o trabalho de uma equipe ou de liderá­lo depende muito mais de habilidade para 
fazê­lo do que do cargo ou da formação profissional do líder ou do coordenador ­ e há 
carradas de razão nesse argumento.
    Outros acham que a liderança ou a coordenação de uma equipe muito tem a ver com 
questões e padrões de produtividade e essa missão deve caber a um elemento em cargo de 
chefia ou ligado à administração do centro, que pode ser médico ou não. Há também aqueles 
que defendem esta posição: deve coordenar a equipe o profissional detentor da ênfase 
principal no programa do cliente. Se a ênfase for médica, o médico coordena; se ela for 
profissional, o conselheiro de reabilitação coordena, e assim por diante.
    ­ *A ausência da coordenação formal de uma equipe*
    Há uns poucos centros no mundo que defendem uma linha de atuação mais aberta e mais 
moderna, que não mantêm coordenação alguma para suas equipes, pois partem da 
pressuposição de que seus profissionais devem ser maduros e muito conscientes de suas 
obrigações, e com noção clara das possibilidades e necessidades de entendimentos 
complexos e objetivos.
    "Um grupo de profissionais pode, portanto, funcionar sem necessidade de supervisão ou 
de controle. O próprio grupo coordena ou dirige sua atuação e garante os serviços de que 
cada cliente necessita. A continuidade dos serviços pode ser mantida sem qualquer direção 
por parte de uma pessoa especialmente designada para tanto. Cada profissional continua a 
trabalhar com o cliente, do início ao fim do processo de reabilitação ou pelo tempo que tiver 
algo a contribuir. O tratamento não é, ou não deveria ser uma questão de passar um cliente 
de um especialista para outro. A qualquer tempo, dependendo das necessidades do cliente, 
qualquer um dos profissionais poderá ter responsabilidade mais séria de prestar serviços 
especiais ao cliente. O grupo em si mesmo, através de contatos informais ou reuniões, bem 
como através de contatos formais, coordena os serviços e atividades destinadas ao cliente" 
("Is the Team Concept Obsolete?", de
Patterson).
    O autor acima refere­se a certos pré­requisitos para um funcionamento dessa natureza. Ele 
acha que cada membro da equipe deve aceitar o outro profissional em bases de igualdade e 
cada profissional deve ser competente em seu próprio campo de ação. A pressuposição 
principal para que um centro de reabilitação funcione bem deveria ser a de que toda a sua 
equipe é composta de profissionais bem treinados e competentes em seu campo ­ o que 
raramente sucede entre nós. Existem centros de reabilitação, em vários pontos do Brasil, que 
não contam com profissional algum especializado.
    Pessoalmente vivenciamos uma situação de observação e análise de uma equipe de 
reabilitação que adotava há anos a chamada "auto­coordenação" ­ a equipe em questão não 
dispunha de líder ou de coordenador estabelecido. À época admiramo­nos da versatilidade e 
da naturalidade de fluência do processo, bem como da objetividade das colocações e 
notamos que, de fato, é um sistema viável de atuação em equipe, desde que ela conte com 
profissionais de boa vivência e muito bem preparados quanto à reabilitação e ao trabalho em 
cooperação. Não cremos que seja impossível tal sistema funcionar entre nós, embora 
somente possa ter sucesso e a indispensável continuidade em situações bastante especiais.
    O fato concreto e irretorquível é que uma equipe precisa trabalhar num bom equilíbrio, 
com respeito mútuo, competência e dentro de um ordenamento bem estabelecido que acate 
todos os procedimentos básicos adotados pelo centro de reabilitação ­ e isso não pode 
ocorrer em climas de tensão criados por líderes inadequados ou impostos.

    ­ *As dificuldades principais em coordenar uma equipe*
    O trabalho de equipe em reabilitação não pode ser deturpado. Ele não pode existir, por 
exemplo, apenas para colecionar opiniões dos vários profissionais, cada um considerando o 
cliente sob o seu especializado ângulo de visão, de forma estática, sob a coordenação de 
alguém que acaba assumindo a função de uma espécie de "arranjador­mestre", cuja 
obrigação é fazer todo o possível para combinar esses pontos de vista, a fim de chegar a uma 
conclusão.
    Temos em diversas partes do Brasil centros de reabilitação ­ ou organizações que usam 
esse título ­ das mais variadas naturezas e objetivos e que funcionam dessa maneira. E assim 
o fazem, quer devido à reduzida experiência profissional de alguns membros de sua equipe, 
quer pela necessidade que algumas diretorias de centros sentem de manter o poder de 
tomada de decisões em suas mãos. Há também a tendência de algumas diretorias de manter 
o poder de tomada de decisões nas mãos de um só elemento, ou seja, do coordenador da 
equipe, que assume essa função sem apresentar condições básicas de preparo profissional, 
sem ter vivenciado outras experiências, ou sem ter condições mínimas de liderança 
reconhecida pela equipe que com ele atua.
    As equipes assim "comandadas" apresentam, de um modo geral, um fenômeno 
característico e muito sintomático: alguns profissionais menos experimentados procuram 
tornar seus relatórios de um nível tão alto e sofisticado, ou de um linguajar técnico tão 
rebuscado, que se torna quase impossível qualquer tentativa de sumariação. Em 
conseqüência, não ocorre a necessária assimilação do conteúdo dos relatórios pela equipe 
como um todo e os programas dos clientes ficam repartidos e sub­divididos em áreas quase 
que estanques. Dessa forma, os profissionais acabam se prejudicando, e muito mais do que 
isso, os clientes sempre levam a pior de todas as desvantagens, uma vez que seus programas 
perdem a objetividade.
    O difícil papel de coordenador de uma equipe de reabilitação não se reduz à simples 
cobrança de relatórios ou providências, nem à re­escalação de clientes para uma reavaliação. 
Não se reduz também à simples função operacional de facilitar o diálogo entre profissionais 
durante as reuniões da equipe, ou à tentativa de levar a uma assimilação das informações 
profissionais contidas em relatórios.
    Cabe ao coordenador de uma equipe levar seus profissionais a entender a importância do 
trabalho multiprofissional bem ajustado às capacidades da clientela e ao andamento da 
equipe como um todo. Para que isso ocorra é preciso que eles se mantenham alertas quanto à 
necessidade de elaborar seus relatórios com propriedade, considerados os fins propostos pela 
reabilitação, sem que caiam no extremo oposto e indesejável de transformá­los num mero 
relato formal, cronológico e frio dos acontecimentos verificados durante o desenvolvimento 
do programa, por vezes muito pouco úteis para os demais serviços.
    Cada profissional deverá dar sua contribuição em bases quase que equivalentes com os 
demais colegas, para uma tomada de decisão ou julgamento de situações, considerada a 
própria posição profissional.
    A despeito das dificuldades características desse tipo de trabalho, o respeito mútuo e o 
interesse pelo reabilitando e por seu programa de atividades devem impedir, ou pelo menos 
refrear, irretratáveis diferenças de opinião que podem transformar uma reunião de equipe 
num verdadeiro campo de batalha, na tentativa de obter vitórias de argumentação quanto a 
procedimentos e formas de atender a pessoa deficiente.

    ­ *Problemas típicos encontrados num trabalho de equipe*
    Além das dificuldades características relacionadas à liderança e/ou coordenação de 
equipes, dentre os problemas que podem bloquear, impedir ou dificultar o desenvolvimento 
das atividades de reabilitação poderemos citar os seguintes adicionais:
    a) Falta de confiança e respeito mútuos: Às vezes os membros de uma equipe de 
reabilitação não demonstram na prática as necessárias doses de confiança e respeito mútuos. 
Outras vezes agem como se considerassem seus colegas de equipe como meros defensores 
de um determinado campo de atuação de suas áreas profissionais, mantendo­se alertas para 
eventuais "invasões" de campos alheios.
    b) Excesso de importância à própria atuação: Para alguns profissionais o longo processo 
educativo e formativo em sua área profissional leva a uma quase certeza de que o tratamento 
do cliente precisa ser centrado em sua atuação ou em sua profissão. Isso ocorre em quase 
todas as profissões envolvidas, pois eventualmente cada profissional acaba dando maior 
ênfase à sua atuação por considerá­la a mais importante para o cliente. Na verdade, em 
qualquer programa de reabilitação, toda entrevista, teste, prova, atividade ou esforço 
profissional sistematizado deve ser apenas um ponto de referência a mais e nunca um 
trampolim para diagnósticos isolados e apressados.
    c) Desconhecimento das demais profissões: É um fato sobejamente conhecido que todas 
as profissões envolvidas no processo reabilitacional procuram ser dinâmicas, mantendo­se 
em constante processo de mudanças e de adaptações. Se o profissional consciente de hoje já 
acha difícil manter­se atualizado com os progressos de sua própria profissão, torna­se tarefa 
sobre­humana procurar atualizar­se com relação a outras profissões. Além do mais, o 
conhecimento que adquirimos de um campo profissional alheio ao nosso, acaba sendo quase 
que invariavelmente superado. Tem sido notório o engano de imaginar­se o serviço social 
como uma profissão que só se preocupa com providenciamentos de ordem prática, por 
exemplo. Pensar que fisioterapia limita­se a massagens é também um erro que acontece. 
Outro engano usual é julgar que psicólogos só aplicam testes.
    Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas o que nos importa aqui que saibamos 
que em muitos centros de reabilitação essas interpretações errôneas ou tendenciosas poderão 
levar a prescrições ou a recomendações causadoras de mal­estar e mesmo de agressividade. 
É fundamental que os profissionais de reabilitação conheçam os campos de competência dos 
demais colegas, sem que essa preocupação os leve a excessos.
    d) Falta de atitudes de cooperação sistemática: Mesmo conhecendo as atribuições ou 
papéis dos vários profissionais engajados em reabilitação, existem aqueles que não adotam 
atitudes de cooperação sistemática, tornando a atuação de todos bem mais difícil do que a 
usual. A cooperação profissional é uma condição básica e insubstituível para o bom 
desenvolvimento do processo.
    e) Comportamentos inadequados numa equipe: Certos tipos de comportamentos no grupo 
de técnicos às vezes causam dificuldades ou constrangimento. Alguns profissionais mantêm­
se em competição quase que inconsciente para um efetivo "controle" do cliente que estão 
atendendo. Alguns outros são excessivamente rígidos ou inseguros no trabalho com outras 
pessoas. Há também aqueles que são excessivamente permissivos no relacionamento com os 
clientes, eliminando tudo aquilo que é característico da relação profissional­cliente, 
causando com isso situações de sérias dificuldades para a equipe.
    De quando em quando encontramos em equipes de reabilitação profissionais com um 
estranho domínio da noção de ética funcional/pessoal/profissional. Conhecemos um 
profissional participante das reuniões de equipe que contava aos clientes as opiniões dos 
diversos colegas quanto a assuntos delicados de seus casos. O tom de suas informações era 
de tal natureza que a equipe começou a sentir sérias dificuldades no desenvolvimento de 
seus trabalhos
    f) Falta de experiência em trabalho de equipe: Devido ao fato de terem vivenciado apenas 
experiências de trabalho isolado, com pleno sucesso, mas limitadas no sentido de não ter 
ocorrido trabalho em colaboração com outras profissões, alguns profissionais, ao ingressar 
num centro de reabilitação, não se adaptam com facilidade ao trabalho de equipe. 
Experiências dessa natureza às vezes dificultam a atuação em equipe, embora tais problemas 
possam ter sido estabelecidos mais por ignorância do que por conhecimento das diversas 
áreas de competência profissional. Além da atitude própria para trabalhar em equipe, um 
técnico que trabalha em reabilitação deve dominar bem seu campo de atuação e ter uma 
idéia clara de quais os aspectos de outras atividades por eles desenvolvidas que podem ser 
mais adequadamente executadas por algum profissional de outro setor ou área profissional.
    g) Estilo inadequado de relatório: Por vezes ocorrem situações em que membros da equipe 
simplesmente "relatam" em vez de "interpretar". A linguagem precisa e especializada da 
medicina ou da fisioterapia, por exemplo, rivaliza­se com as expressões técnicas do serviço 
social ou da psicologia. Alguns profissionais chegam a utilizar­se de termos apenas adotados 
em circuitos fechados, termos esses que acabam tornando­se pouco compreensíveis para os 
que não militam no mesmo campo ou área de atuação. E muitas vezes ocorrem dificuldades 
nos termos homógrafos que podem ter, em certas profissões, conotações diferentes. Muitos 
exemplos poderiam ser citados, mas apenas alguns são suficientes para alertar quanto ao 
estilo inadequado de se relatar em reabilitação.
    ­ De um relatório de terapia ocupacional: "Tônus normal, tendendo à hipertonia do 
proximal para distal ­ MSE" ... "Sensibilidade: testada bilateral p/MMSS" ...  "Topognosia: 
percebeu difusamente no dorso da mão e na região palmar" ...
    ­ De um relatório de fisioterapia: "Resistência: FC antes da prova 86 bpm. Após a prova a 
FC não se alterou" ... "Quadrupedia: adota a posição. Duplo apoio heterolateral do MSE e 
MID" ...

    Claro que são relatórios que precisam ser interpretados para aqueles profissionais que não 
são versados em terminologia ou abreviaturas de origem médica. Mais do que isso, precisam 
ser reformulados face aos objetivos do processo de reabilitação. 
    Estudos desenvolvidos em países mais evoluídos no atendimento a pessoas deficientes 
mostram que profissionais de formação equilibrada e seguros de sua própria atuação ou de 
suas posições em geral, conseguem explicá­las, interpretá­las e elucidar dúvidas, podendo 
com essa atitude educar e ser educados.
    h) Metodologia de cooperação quase inexistente: Embora prejudicial para todos os 
programas destinados ao atendimento global da pessoa deficiente, nenhum grupo 
profissional dele participante tem desenvolvido qualquer tentativa válida para o ensino de 
métodos de cooperação com as demais profissões. Em alguns programas de reabilitação 
sabe­se de tentativas e esforços isolados de alguns profissionais para fomento dessa 
indispensável cooperação, mas a eventualidade do esforço não o torna consagrado para todas 
as situações.
    i) Jogos de prestígio e de poder e seus malefícios: Os chamados jogos de poder, do 
prestigio político ou pessoal, e dos compromissos já assumidos existe muito forte e 
impregna toda nossa realidade, e não apenas a reabilitação. A atitudes conseqüentes a esses 
tipos de expediente afetam seriamente um trabalho que precisa ser desenvolvido em equipe. 
Exemplos dessas inadequacidades de atuação podem ser facilmente encontrados, como por 
exemplo, a influência indevida de quem controla a situação financeira da entidade 
mantenedora do centro de reabilitação; a pressão de certos políticos; a influência do prestígio 
de certos membros da equipe; o sutil e desagradável efeito da atuação de profissionais que 
não se preocupam ou nunca se conscientizaram quanto a certos princípios éticos, e que com 
isso procuram manter situações sob seu controle indevido.
    j) Ausência de uma boa política de pessoal: Uma administração ou direção de entidade 
que não adota uma boa política de pessoal pode surgir ­ como de fato tem surgido ­ como 
um bloqueio dos mais sérios à atuação da equipe de reabilitação. O interesse autêntico de 
profissionais, o envolvimento constante, a vitalidade do processo, as possibilidades de 
crescimento profissional, precisam ser garantidos pela direção do centro, em dosagens 
adequadas.
    Em resumo, uma equipe de técnicos de muito boa qualidade individual num centro de 
reabilitação terá valor apenas limitado para as pessoas deficientes, a menos que, além de 
dominar com segurança os princípios fundamentais e os propósitos da reabilitação, os 
diversos técnicos que dela tomam parte se vejam como membros de uma equipe 
multiprofissional, onde cada um tem seu papel específico e um determinado valor. Trabalhar 
em diversas direções, ou pior ainda, trabalhar em direções antagônicas, mesmo que seja com 
habilidade e grande virtuosismo, não levará nunca à reabilitação e certamente prejudicará o 
reabilitando.

    ­ *A necessidade de tratamento global do cliente*
    Existe certa uniformidade de conceito ­ pelo menos em tese ­ e uma concordância 
generalizada quanto à consideração da pessoa humana do cliente de reabilitação como um 
todo, como um ser global. Esse conceito é tão universalmente aceito que trabalhos escritos 
em cada área profissional, seja ela qual for, quase sempre indicam a necessidade de seus 
profissionais ficarem alertas para os muitos aspectos da natureza humana e para a 
necessidade de disseminação desse conhecimento às disciplinas componentes da equipe de 
reabilitação, de tal maneira que essa criatura diferente, repleta de valores próprios e de 
aspirações que é o ser humano portador de uma deficiência, receba um tratamento cada vez 
mais adequado e de natureza global.
    Dentre as várias razões que podem ser alegadas para justificar esse tipo de 
posicionamento, cumpre destacar aquilo que vem ocorrendo há muitos anos já na medicina: 
tem­se observado a psiquiatria e a medicina psicossomática procurando levar médicos e 
outros profissionais que colaboram direta ou indiretamente com a medicina, a reconhecer 
que há problemas que afetam seus pacientes que vão muito além de sua esfera de 
competência. Com a complexidade crescente de todas as ciências e a necessidade cada vez 
maior de especializações, fica sempre mais evidente que, dentro de uma única área, o 
profissional não pode trabalhar com alguns sintomas especiais, sem uma consulta ou troca 
de opiniões paralelas com outros profissionais.
    A expansão da reabilitação que colocou uma certa variedade de profissionais em contato 
com o outro, tem adicionado certo impulso a essa tendência na Europa e na América do 
Norte. Surgem nesses países, hoje em dia, muitas críticas quanto à profundidade de 
treinamento de médicos, por exemplo, no entanto, se considerarmos o volume de tempo que 
tem demandado o preparo de um profissional de medicina de bom nível, ficaremos surpresos 
como esse treinamento tem aumentado através dos tempos e admiraremos o esforço quase 
sobre­humano que tem sido dado por estudantes de medicina que desejam levar a sério sua 
profissão. O campo a ser coberto é tão vasto que o currículo médico é considerado, e com 
verdade, indevidamente reduzido sob certos pontos de vista Mesmo assim, o médico é 
muitas vezes educado somente em parte nas muitas das crescentes especialidades e ele 
poderá muito bem não estar alerta quanto à problemática inserida na faixa de 
responsabilidade do serviço social ou da psicologia. 
    É evidente que a profissão médica não é a única à qual esse tipo de observação é 
aplicável. A verdade é que nenhum profissional consegue entender outro ramo profissional 
tão bem quanto possa desejar.
    A falta de tempo, por si só, seria um impedimento para tanto. Mas, tal falha de 
compreensão, quando não for sanada por atitudes demonstrativas de genuíno interesse e 
confiança, acaba gerando conflitos justificáveis ou não, num trabalho de equipe, levando 
inclusive alguns profissionais a invadir a área dos outros; é a temida superposição de 
atividades que acontece.

    ­ *Superposição de atividades em equipes de reabilitação*
    Os motivos que acabam provocando desentendimentos e conflitos em equipes de 
reabilitação não são apenas conseqüentes à parcial ignorância das funções e das 
responsabilidades de cada um dos profissionais. Decorrem igualmente da falta de clareza na 
definição dessas funções, somada à eventual tendência de algum profissional "resolver 
problemas práticos" pela simples aplicação da tática do bom senso (subjetivo, claro) ou pela 
ampliação das funções em seu campo de trabalho.
    Essa tendência surge devido a problemas provocados por certos profissionais omissos em 
suas obrigações para com o cliente; surge também devido ao desejo de colaborar de um 
modo mais rápido, menos burocratizado, mais efetivo. A conseqüência indesejável da 
ampliação indevida de funções é a ocorrência de superposições e a eventual desorientação 
do reabilitando.
    Apesar de reconhecer que todas as outras profissões são importantes, o que ocorre com 
esses profissionais que avançam nas funções alheias é que eles acham que as necessidades 
mais relevantes do cliente estão infalivelmente dentro de seu campo de ação e todas as 
demais profissões acabam consideradas como "auxiliares" de sua própria. Desta forma, um 
profissional que trabalha dentro dessa linha de raciocínio acaba tentando usurpar a função de 
outro, minimizando sua importância face ao elemento mais interessado que é a pessoa 
deficiente em busca de uma solução para seus problemas. Essa verdadeira invasão à custa do 
cliente bloqueia o trabalho de reabilitação, pois o reabilitando fica inseguro em sua definição 
de vida de trabalho, por exemplo, se um profissional qualquer que não o conselheiro de 
reabilitação lhe diz: "Você poderá se tornar um joalheiro ou consertador de relógios" ... O 
mal feito nesses casos poderá ser considerável, dependendo do tipo de profissional que tiver 
feito o infeliz comentário. Opiniões mesmo que veladas em forma de pergunta, ou expressas 
devido a uma atividade qualquer, podem ser avidamente tomadas, dificultando a elaboração 
de planos mais objetivos e concretizáveis relacionados à vida de trabalho.
    Evitar problemas dessa natureza é muito importante e a cooperação para esse fim poderá 
ser intensificada não só pelo respeito sistemático aos limites de atuação de qualquer das 
profissões envolvidas, como também pela ação integrada em um plano mais global, ou ainda 
em planos desenvolvidos juntamente com outros colegas de trabalho, seja por meio de 
contatos individuais, seja através das reuniões de equipe.
    Para se trabalhar numa equipe de reabilitação não é necessário apenas ser possuidor de um 
diploma de curso superior, mas é fundamental ser profissionalmente maduro. Em 
decorrência dessa maturidade exigível, o profissional precisa entender que a simples 
alegação de conhecimento de um campo de trabalho alheio ao seu, será sempre inadequada. 
Só poderá alegar conhecimento e domínio de um campo de trabalho quem vive 
continuamente nele, formou­se nele, preocupa­se com ele e nele toma decisões, por vezes 
difíceis, vendo seus resultados e ganhando conhecimento em profundidade. A identificação, 
o prognóstico e o diagnóstico de uma necessidade podem ser elaborados somente por 
profissionais especificamente orientados por um sistema de formação profissional, além da 
experiência e treinamento para assim fazê­lo.

    ­ *O trabalho de equipe: perspectivas*
    Considerada a realidade da reabilitação, e da formação de pessoal que normalmente irá 
compor suas equipes, qual poderá ser a solução para o tratamento mais adequado do cliente, 
globalmente considerado? Estará na obtenção de maior volume de especialização? Estará no 
aumento do treinamento acadêmico ou na maior profundidade quanto a conceitos básicos?
    Cremos que qualquer tentativa de resposta não poderá ignorar os seguintes pontos:
    a) Existem, concretamente, as várias áreas funcionais e as respectivas limitações de cada 
uma delas, nos programas de reabilitação. Assim é que, consideradas as características do 
programa global que deve procurar levar o individuo com deficiência a um estado de 
adequação pessoal de acordo com seus planos e realidade, teremos o condicionamento 
físico, o ajustamento psico­social e o ajustamento profissional, dentro dos quais se inserem 
todos os componentes da equipe de reabilitação.
    b) Há uma incontestável vantagem na combinação dessas áreas, ou seja, num trabalho 
harmonioso desenvolvido por meio de uma equipe multiprofissional, que deve ser obtida 
após o atendimento bem coordenado em cada uma das áreas acima indicadas.

    Em nenhuma outra situação temos encontrado maior necessidade de integração de 
conhecimentos e de combinação de várias profissões do que no campo da reabilitação. A 
complexidade da missão de integrar pessoas portadoras de deficiências na sociedade aberta 
tem levado centros de reabilitação a adicionar serviços novos, a fim de encontrar soluções 
cada vez mais complexas às necessidades das pessoas que apresentam problemas inter 
relacionados. No entanto, considerada a realidade de trabalho inter­profissional de um centro 
de reabilitação a tendência para um treinamento mais amplo e sem profundidade, ou para a 
especialização extrema, deve ser evitada.
    Para chegarmos a soluções que concretamente beneficiam os programas de assistência 
reabilitacional e muitos outros que dão atendimento ao ser humano através de trabalhos de 
equipe, algumas ponderações precisam ser feitas, pois algumas alterações fundamentais 
precisam ocorrer e algumas delas bem significativas, tais como:
    ­ A escola primária precisa enfatizar continuamente os trabalhos em cooperação, ênfase 
essa que deverá ser adotada e/ou mantida também nos níveis secundário e superior, 
procurando dessa maneira levar as pessoas a trabalhar em grupo.
    ­ É muito importante que haja em todas as faculdades um ensino realista de métodos e/ou 
de fórmulas de atuação inter­profissional, além da indispensável oportunidade da prática de 
cooperação com profissionais de outras áreas, sempre informada pela noção objetiva da 
importância que têm as outras profissões.
    ­ É muito importante que, em reabilitação, sejam enfatizados os conhecimentos básicos e 
as atitudes profissionais para o trabalho de equipe, a fim de que treinamentos bem orientados 
possam suprir as falhas decorrentes da ausência de temas específicos em cursos superiores 
normais.
    ­ É fundamental que sejam desenvolvidos e sempre encorajados estudos e pesquisas a 
respeito dos processos de trabalho em colaboração e de caráter multiprofissional.

    Não resta dúvida que o trabalho de equipe num centro de reabilitação é um ideal a ser 
atingido em sua plenitude. No entanto, há muito que se aprender dentro de nossa realidade 
de atuação. Experiências já vividas nunca deixarão de ser de valor muito concreto, podendo 
levar­nos a uma cuidadosa análise da realidade que nos cerca, pois essa realidade mostrar­
nos­á como é importante um trabalho cooperativo.
    Àqueles que trabalham em programas de reabilitação restará o desafio de bem utilizar 
essas experiências, para o bem­estar de todos aqueles que pretendem dedicar­se à 
reabilitação e para benefício de todas as pessoas deficientes que dela necessitarem.
            CAPÍTULO SEXTO
            A AVALIAÇÃO E O CONTROLE NOS PROGRAMAS DE REABILITAÇÃO

    Ninguém pode negar que um centro de reabilitação pode determinar, por iniciativa 
própria, a ênfase que  deseja dar aos seus trabalhos. Encontramos, por exemplo, 
organizações que dão maior volume de atendimento médico e para­médico, outras que dão 
ênfase aos aspectos profissionais da reabilitação, procurando levar o indivíduo a um 
ajustamento significativo em sua vida de trabalho. No entanto, ao nos aprofundarmos no 
estudo de alguns recursos existentes aqui no Brasil, notamos que há iniciativas que denotam 
menos uma opção de ênfase técnica do que um real desconhecimento do que seja 
reabilitação.
    Encontramos em nossa realidade centros de reabilitação que trabalham muito mais como 
ambulatório médico para males ortopédicos do que como centro destinado à reabilitação do 
indivíduo. Há clínicas de fisioterapia que se intitulam centros de reabilitação. A própria 
palavra "reabilitação" é utilizada indiscriminadamente pelos próprios profissionais que nela 
atuam, patenteando um desconhecimento real do assunto.
    Aberrações dessa natureza ocorrem à nossa volta com certa insistência, causando à 
reabilitação muito mais mal do que bem. Em centros de reabilitação de caráter geral 
encontramos, via de regra, todos os profissionais e serviços usualmente requeridos. Na 
verdade, há vários serviços que são óbvios em termos de utilidade prática imediata, enquanto 
que outros ainda permanecem como grandes dúvidas e são tolerados principalmente devido 
ao fato de que sem eles a entidade passaria a ser mal conceituada ou, então, teria seus 
convênios com organizações financiadoras cancelados. Essa seria uma das poucas razões 
para manterem seu lugar ao sol.

    ­ *Os profissionais envolvidos em reabilitação*
    Analisemos um pouco o passado de certos serviços que cuidavam de pessoas com 
deficiências físicas. A ociosidade era o que mais preocupava os voluntários e profissionais 
de então. Importou­se a idéia de certa ocupação por atividades de trabalho ­ a então chamada 
laborterapia. Diga­se de passagem que muita gente que procura atuar nesse campo sem 
qualquer tipo de curso, ainda batiza a atividade de laborterapia, ignorando por completo o 
que sucedeu de avanço técnico na reabilitação desde 1956 no Brasil. Sabemos muito bem 
que hoje em dia temos profissionais formados e que a terapia ocupacional integra sempre os 
centros de reabilitação. Ela não só faz o específico, mas também colabora significativamente 
na avaliação dos clientes para atividades de trabalho. De quando em quando vemos com 
frustração, entretanto, que a terapia ocupacional serve mais para ser mostrada a visitantes do 
que a propósitos realmente terapêuticos.
    Isso tudo é verdade também para a fisioterapia que evoluiu de métodos muito mal 
definidos de massagem, aplicação de calor, aplicação da água e da eletricidade e outros 
recursos, para uma gama de atividades que é de responsabilidade de profissionais 
devidamente formados. No entanto, temos verificado que a fisioterapia ­ ou melhor, alguns 
fisioterapeutas ­ tem servido mais aos propósitos de alguns médicos que desejam fazer 
fisiatria, pois assim como certos médicos recorrem à enfermagem para curativos, injeções e 
serviços menos elevados, recorrem à fisioterapia para o desenvolvimento prático da 
programação de exercícios que não se preocupam nem em aprender nem em executar. 
Embora possa haver uma carrada de razão da parte desses médicos, é necessário que eles 
reconheçam, mais do que todos os demais profissionais, que a fisioterapia é fundamental em 
reabilitação e traz evidentes benefícios aos clientes que recorrem aos centros. Assim sendo, 
embora vivendo hoje em dia como profissão auxiliar da medicina e sendo mal interpretada, 
ela tem um papel certo e valioso e não sofre muitas pressões por parte de diretores de centros 
de reabilitação.
    No entanto, com certos outros serviços a situação é bem diversa. O serviço social, por 
exemplo, sofre injustiças bem piores e muitas dessas injustiças são causadas pelos próprios 
profissionais que acabam se sujeitando a um tipo de trabalho um tanto marginalizado no 
centro de reabilitação, ou seja: estudos simples de levantamento socioeconômico do cliente e 
sua família, preparo de relações de vagas para pagamento de "per capita" pelo INPS ou 
Secretaria da Promoção Social, dificuldades financeiras do cliente, escala para remoção dos 
clientes, financiamento ou plano de pagamento do tratamento e vários mais.
    É com os profissionais de serviço social, em geral, que ocorrem os mais sérios atritos por 
parte da diretoria de centros de reabilitação, pois argumentam diretores que, para fazer o que 
os assistentes sociais fazem, não se requer diploma de curso superior. E se considerarmos o 
que alguns assistentes sociais fazem ou sujeitam­se a fazer, concordaremos plenamente. As 
atribuições que às vezes são passadas a assistentes sociais poderiam ser desenvolvidas por 
secretárias bem preparadas. Isso tudo não quer dizer que as coisas estejam caminhando 
corretamente, pois não estão. Os profissionais precisam lembrar que o serviço social tem um 
papel muito sério e complexo num programa de reabilitação e compete a cada profissional 
lutar por ele. Mas ficamos por vezes com a dúvida: será que ele sabe por que papel lutar?...
    Com psicólogos acontecem situações semelhantes, mas menos graves. A psicologia tem, 
em seu socorro, certos tipos de estudos que são menos óbvios, tem seus testes e o 
conhecimento técnico indispensável para sua interpretação. Assim sendo, o máximo que às 
vezes sucede é o médico tentar questionar o papel do psicólogo como válido, chegando 
mesmo a indicar sua dispensabilidade. Reduzindo­se despesa considerada inútil, obtém­se 
com facilidade o aval de diretores da organização. Assim sendo, seja por pressão de outros 
profissionais, seja por falta de objetivo prático no programa, encontramos vários centros que 
não contam nem pretendem contar com psicólogos. No entanto, vale aqui lembrar que o 
psicólogo tem um papel relevante em reabilitação, cabendo também aos seus profissionais 
lutar por uma boa definição de sua atribuição.

    ­ *A falta de especialização e suas conseqüências*
    Para qualquer área ou ramo profissional o que alarma acima de tudo é verificarmos que 
certos profissionais procuram emprego num centro de reabilitação, sem se inteirar com 
seriedade quanto ao que deles poderá ser esperado. Essa observação é perfeitamente cabível 
para três tipos de profissionais: médicos, assistentes sociais e psicólogos. Por que não 
conselheiros de reabilitação? Porque esses surgem de uma das últimas profissões e em geral 
trazem um bom acervo de conhecimentos específicos.
    Devido ao fato lamentável de não termos cursos de reabilitação, a situação tende a 
generalizar­se, pois o mercado de trabalho vai ficando difícil e um profissional de nível 
superior precisa de emprego. Vemos, então, uma reabilitação estagnada como técnica, e a 
leva de clientes a procurar serviços, graças a financiamentos do governo ou do sistema 
previdenciário, que acabam sendo apenas aquilo que procuram: serviços, isto é, consulta 
médica, uma prótese, sessão de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, entrevista 
de serviço social, testes de psicologia, etc.
    Reabilitação propriamente dita ... bem, cada profissional acha que fez o seu quinhão com 
o máximo de consciência profissional, o que não deixa de ser verdade. Essas situações são 
tão generalizadas que se torna muito difícil repetir frases verdadeiras como esta: “O centro 
de reabilitação deve desenvolver seu serviço de forma integrada e coordenada, para levar o 
cliente a um ajustamento global, a fim de que tenha condição de se reintegrar à sociedade”.
    Esta verdade precisa ser dita e repetida por mais que ela soe inexeqüível. A maioria de 
nossos centros de reabilitação faz, sim, fisioterapia, faz terapia ocupacional, faz algum 
treinamento profissional um tanto marginal e conta com alguns profissionais que se debatem 
e procuram (ou não procuram) seus papéis reais. As exceções existem e elas confirmam a 
regra, infelizmente.
    Quando relembramos que a reabilitação, como processo, deve ajudar o cliente a escolher 
metas práticas viáveis, nas quais haja oportunidade para a independência, satisfação pessoal, 
contribuição social e outras, oferecendo uma bateria de serviços multidisciplinares que 
restauram, preservam e desenvolvem a capacidade física, psicológica, social e profissional 
para enfrentar a realidade da vida, verificamos que muita coisa anda bem fora dos 
parâmetros corretos e que algo de muito sério precisa começar a ser feito.
    Resta perguntarmos: O que pode, afinal, ser feito para melhorar a situação de vários de 
nossos centros de reabilitação?
    O caminho para situações mais adequadas é bastante árduo e repleto de problemas. E, 
como todo caminho, ele tem um início. Em nosso modo de ver, esse deve ser através do 
estabelecimento de sistemas de avaliação: Avaliar um centro de reabilitação não é e não 
pode ser o mesmo que avaliar outro tipo de instituição social ou entidade de assistência 
médica. O centro de reabilitação é entidade “sui­generis” de atendimento a pessoas com 
sérios problemas marginalizantes.
    Procuremos, portanto, estudar o assunto com cuidado para encontrar a aplicabilidade a 
cada centro que procura desenvolver seus trabalhos de reabilitação.

    ­ *Métodos de avaliação em centros de reabilitação*
    Avaliação é uma formulação de juízos a respeito do sucesso de um centro de reabilitação 
ou de qualquer outro tipo de empreendimento. Ela é, basicamente, uma técnica 
administrativa que se destina a alimentar a direção da organização com a finalidade de 
aprimorar cada vez mais sua atuação. Ela não é e não pode ser uma atividade isolada, mas 
precisa ser programada e acontecer periodicamente.
    O objetivo básico da avaliação é fornecer dados e informações que ajudem o centro de 
reabilitação no processo de tomada de decisão Com isso, a avaliação colabora 
definitivamente na melhoria dos serviços, na maior rentabilidade dos investimentos 
financeiros feitos, no melhor aproveitamento e no aprimoramento de seu pessoal técnico e 
administrativo e na mais adequada alocação de recursos destinados ao seu desenvolvimento.
    A avaliação tem propósitos utilitários, pois sua função é descobrir evidências dos 
resultados dos programas e das atividades, para que aqueles que têm a missão de planejar, 
supervisionar ou dirigir, possam julgar e tomar decisões adequadas no presente e no futuro. 
Conforme as evidências dos resultados denotarem que o centro de reabilitação vai chegando 
mais próximo de seus objetivos e vai atingindo suas metas, a avaliação poderá ir se 
transformando num instrumento de apoio para a continuação ou para a expansão dos 
serviços prestados.

    ­ *Modelos de avaliação*
    Não existe nenhum modelo de avaliação que seja adequado a todas as situações. Uma 
avaliação que transmita a informação pura e simples da adequacidade ou da impropriedade 
de uma atividade num centro de reabilitação, além de quase que infalivelmente inútil, acaba 
sendo prejudicial trazendo em geral conseqüências indesejáveis. Assim sendo, é 
aconselhável que o modelo de avaliação adotado e os avaliadores (que devem ser 
profissionais de alto gabarito e grande vivência de reabilitação) tenham muito mais a dizer e 
a sugerir do que simplesmente relatar que a atividade está ou não atingindo seus objetivos 
parcial ou integralmente. A avaliação precisa contribuir com os tipos de dados que dêem aos 
diretores de um centro de reabilitação a possibilidade de fazer suas opções dentro do 
contexto em que atuam. Tais considerações a respeito de avaliação podem, evidentemente, 
ser aplicáveis a programas gerais de reabilitação ou a centros de reabilitação como 
empreendimento isolado, e também a entidades sociais afins.

    ­ *Sistemas de avaliação*
    Não é fácil nem prático indicar qual seria o melhor sistema para avaliar um centro de 
reabilitação. Dentre alguns dos sistemas reconhecidos pelos estudiosos do assunto o mais 
aplicável poderá ser, em nossa opinião, o do claro estabelecimento do grau de 
responsabilidade perante seus "públicos". Verifiquemos então, qual o grau de 
responsabilidade de um centro de reabilitação perante seus públicos, e quais seriam esses 
públicos.
    Há diferentes tipos de "público" para um centro de reabilitação:
    a) O "público" em geral ou seja, os componentes da comunidade onde o centro atua, a 
sociedade da qual faz parte. Embora entre nós, brasileiros, esse tipo de responsabilidade seja 
um tanto relativa e bastante diluída (indefinida talvez seja o melhor termo) e as entidades 
sociais não a sintam nem se preocupem com ela, é ela de considerável importância. O que 
sucede no Brasil é que as entidades sociais acham que pelo simples fato de existirem já 
fazem muito. Entretanto, a comunidade merece uma atenção, e esse tipo de responsabilidade 
precisa ser gradativamente bem estabelecido e enfatizado. As equipes de profissionais que 
trabalham em centros de reabilitação precisam se voltar para ela e ficar alertas a esse 
respeito.
    b) O "público" financiador ­ é aquele do qual provém o numerário destinado à cobertura 
das despesas de todos os gêneros, ao desenvolvimento dos programas, à construção ou 
reformas. Pode ser o governo federal, estadual, ou municipal; pode ser o usuário que retribui 
remunerativamente pelos serviços prestados; podem ser empresas participantes, entidades 
conveniadas, doadores, sócios beneméritos. Seja qual for o público financiador, ele tem 
direito a certa atenção e o centro tem definitivamente certo grau de responsabilidade para 
com ele.
    c) O "público" clientela ­ pode parecer espantoso para certos tipos de entidades 
voluntárias dever satisfações ao público­clientela, pois muitas vezes encontramos 
exatamente no seio delas as maiores distorções quanto aos princípios básicos de sua atuação. 
No entanto, por não acreditarmos em reabilitação a não ser que seja sedimentada nos 
princípios de respeitabilidade, dignidade e potencialidade do ser humano, achamos tal tipo 
de posicionamento muito correto. A clientela tem direito aos serviços de um certo padrão.
    d) O "público" das famílias da clientela ­ O centro de reabilitação tem uma séria 
responsabilidade para com as famílias dos clientes, não apenas nos casos de crianças como 
também de adultos das mais variadas idades. O "modus fasciendi" brasileiro coloca as 
entidades sociais e médicas num pedestal inatingível, inquestionável. No entanto, as famílias 
dos clientes de um centro de reabilitação merecem consideração e respeito e assim devem 
ser tratadas. O grau de responsabilidade de um centro para com as famílias pode ser 
facilmente delineado.
    e) O "público" das entidades ­ Sejam essas entidades conveniadas ou não, que usam os 
serviços do centro, para ele encaminhando casos ou dele recebendo encaminhamentos, 
também merecem respeito, havendo inquestionável grau de responsabilidade para com elas.

    ­ *Conseqüências de uma avaliação*
    Um centro de reabilitação não poderá nem deverá ficar imobilizado após um estudo 
avaliativo. Ao tomar alguma atitude séria a respeito do trabalho avaliativo e seus resultados, 
poderá ter que enfrentar alguns tipos de decisão. Conforme o interesse da direção do centro 
de reabilitação, três tipos de decisão poderão ser tomados:
    a) Decisão política ­ Esta decisão deverá ser sempre a nível alto, em resposta a indagações 
como esta: O centro de reabilitação deverá continuar seus trabalhos ou não? O centro 
ampliará, reduzirá ou simplesmente manterá suas atividades? O centro deverá reformular ou 
manter seus objetivos?
    b) Decisão estratégica ­ Esta decisão relaciona­se com as eventuais opções em termos de 
"modus operandi". Assim é que poderemos colocar o centro em situação própria para 
resolver pendências como estas: Quando analisados os objetivos, como atingi­los após sua 
reformulação, decidida numa tomada de decisão de alto nível? Como interferir para manter 
os padrões aceitáveis e recomendáveis de atuação técnica?
    c) Decisão tática ­ Este tipo de decisão diz respeito aos problemas de atuação prática do 
centro de reabilitação, às atividades rotineiras nele existentes, ao sistema interno de 
funcionamento técnico ou administrativo e muitas outras. Há providências na vida 
administrativa, na política de pessoal, no fluxo de papéis, na gestão financeira e mesmo na 
atuação técnica que muitas vezes precisam ser tomadas após uma análise avaliativa.
 
    ­ *Controle num centro de reabilitação*
    Verifiquemos o que é controle para determinarmos sua utilidade num centro de 
reabilitação. Controle é uma função administrativa intimamente ligada à avaliação, que se 
destina a medir e a corrigir o desempenho das diversas atividades a fim de se assegurar que 
os objetivos sejam realizados. Consiste o controle em verificar cuidadosamente se tudo 
ocorre corno foi planejado originalmente, se tudo está de acordo com os princípios básicos 
estabelecidos. Em palavras diferentes, controle consiste em aferir resultados, numa 
comparação intencional com os resultados esperados ou planejados. O estabelecimento 
preciso dos objetivos de um centro de reabilitação, além de ser uma condição "sine qua 
non", torna mais fácil a tarefa de elaboração de instrumentos próprios de controle.
    Ressaltemos neste ponto que não é de utilidade tentar controlar fatos passados. Controla­
se o presente. As informações sobre fatos passados podem ser muito úteis, se analisadas sob 
ângulo correto, para a elaboração de julgamentos quanto à Situação atual e à formulação de 
planos que possam eliminar ou corrigir desvios notados no presente.

    ­ *Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação*
    Qual poderá ser o melhor sistema de controle num centro de reabilitação? Sem maiores 
preocupações poderemos afirmar que o melhor sistema de controle que um centro de 
reabilitação poderá adotar será aquele que indicar com clareza e objetividade os desvios do 
plano originalmente traçado, ou dos objetivos vigentes, na medida em que esses desvios 
ocorrem.
    Muitas vezes encontraremos profissionais das áreas técnicas achando que o controle em 
alto nível será mais do que suficiente, com a clara presunção de que o controle em níveis 
inferiores passa a ser supérfluo. Na verdade, o controle nos níveis altos só se realiza com 
adequação quando for bem realizado nos níveis inferiores.

    ­ *Características do sistema de controle*
    As características desejáveis de um sistema de controle implantado num centro de 
reabilitação poderão ser as seguintes:
    a) Deve refletir sempre a natureza daquilo que é indispensável às atividades do centro. 
Todos os instrumentos de controle do nível operacional ou dos trabalhos administrativos, por 
exemplo, devem ser específicos àquele nível ou aos trabalhos indicados.
    b) Deve mostrar com presteza os desvios ocasionais. As informações sobre os desvios 
devem fluir com rapidez para o nível que é responsável pela decisão, como pura rotina e não 
como medida especial, a fim de que o responsável possa tomar as providências próprias que 
corrijam os desvios notados eliminando dessa forma a repetição ou mesmo a perpetuação de 
lapsos.
    c) Dependendo do sistema a ser adotado ou da finalidade ele deve ser efetuado através da 
própria direção do centro de reabilitação, ou do sistema diretivo do programa, conforme for 
o caso. Evidentemente essa observação não é válida "in totum" para problemas de ordem 
técnica de cada área profissional dentro da equipe do centro de reabilitação.
    d) O controle deverá ser simples e econômico. Mais do que isso, deverá ser facilmente 
compreensível. Não é recomendável montar esquemas caros e sofisticados de controle, 
sendo menos recomendável ainda controles de difícil compreensão. Sua simplicidade e 
clareza são os requisitos básicos de seu sucesso.

    A conclusão lógica que tiramos é que um centro de reabilitação só poderá beneficiar­se da 
montagem de esquemas de avaliação e do estabelecimento de sistemas objetivos de controle 
de suas atividades. Terá condições, dessa forma, de prestar serviços cada vez mais 
adequados à sua clientela, assumindo gradativamente o papel de respeitabilidade que merece 
numa comunidade. Sua programação melhorará, seus profissionais terão maior e melhor 
participação, seus clientes serão os maiores beneficiados.
    A avaliação não pode nem deve ser a mera análise crítica das atividades de um centro de 
reabilitação. A avaliação pretendida para um centro de reabilitação não é do tipo auditório­
contábil. Ela deve estar voltada para as soluções viáveis, de ordem técnica e administrativa. 
Os problemas advindos da inexistência de análises avaliativas num centro de reabilitação 
sempre foram notórios e não podem perdurar.
    Esses problemas são perfeitamente superáveis. O ser humano que precisa dos serviços de 
um centro de reabilitação, suas famílias, a comunidade onde ele se insere, o seu público 
financiador, sua equipe de profissionais, merecem melhor consideração que certamente 
surgirá se todos estiverem realmente voltados para a perfeita adequação do recurso moderno 
e muito importante que é um centro de reabilitação.

            BIBLIOGRAFIA DA SEGUNDA PARTE.

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