Você está na página 1de 97

FICHAMENTO CONTEMPORANEO/NEOLIBERAL/PÓS OU HIPER-

MODERNO

Nietzsche, F. Considerações extemporâneas,

E assim também ele [o homem de ciência contemporâneo] trata a cultura. (269)

Nossos eruditos quase não se distinguem, e em todo caso não em seu favor, dos
lavradores que querem aumentar uma pequena propriedade herdada e assiduamente, dia
e noite a fio, se esforçam em lavrar o campo, conduzir o arado e espicaçar os bois. Ora,
de modo geral, Pascal é de opinião que os homens cultivam com tanto afinco seus
afazeres e suas ciências simplesmente para com isso fugir às perguntas mais
importantes, que toda solidão, todo ócio efetivo lhes imporia justamente aquelas
perguntas pelo porquê, pelo de onde, pelo para onde. Aos nossos eruditos,
curiosamente, nem sequer ocorre a mais próxima de todas as perguntas: para que serve
seu trabalho, sua pressa, seu doloroso atordoamento. (270)

de onde, para onde, para que toda a ciência, se não for para levar à civilização?
Ora, talvez então à barbárie! (270)

SE É UMA felicidade, se é uma ambição por uma nova felicidade em um


sentido qualquer, aquilo que firma o vivente na vida e o _ força a viver, então talvez
nenhum filósofo tenha mais razão do que o cínico: pois a felicidade do animal, que é o
cínico perfeito, é a prova viva da razão do cinismo (...)Mas nas menores como nas
maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder
esquecer ou, dito mais eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade,
sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo
todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa
de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca
fará algo que torne outros felizes.(273)

o. Todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico
requer não somente luz, mas também escuro. Um homem que quisesse sempre sentir
apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou
ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação sempre repetida.
Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o
animal (273)

impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me ainda


mais simplesmente sobre meu tema: hd um grau de insônia, de ruminação, de sentido
histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arru{na, seja ele um
homem ou um povo ou uma civilização. (274)

o pensador supra-histórico ilumina toda a história dos povos e dos


indivíduos de dentro para fora, adivinhando com clarividência o sentido
primordial dos diferentes hieróglifos e pouco a pouco afastando-se, cansado, até
mesmo da escrita de signos que continua a jorrar sempre nova: pois como, na infinita
profusão do acontecimento, não chegaria ele à saciedade, à saturação, e mesmo ao nojo!
(274-75)
alegrar-nos de coração com nossa falta de sabedoria e fazer para nós um bom
dia, como se fôssemos os ativos e em progresso, como os adoradores do processo. Que
nossa apreciação do histórico seja apenas um preconceito ocidental; contanto que, no
interior desses preconceitos, pelo menos façamos progresso e não nos detenhamos!
Contanto que aprendamos cada vez melhor precisamente isso, a cultivar história em
função dos fins da vida! Então concederemos de bom grado aos supra-históricos que
eles possuem mais sabedoria do que nós; caso pudermos, simplesmente, estar seguros
de possuir mais vida do que eles: pois assim, em todo caso, nossa falta de sabedoria terá
mais fruto do que a sabedoria deles. E para que não subsista nenhuma dúvida sobre o
sentido dessa oposição entre vida e sabedoria (275)

Certamente um tal astro, um astro luminoso e soberbo, se interpôs, a constelação


efetivamente se alterou - pela ci€ncia, pela exig€ncia de que a hist6ria seja ciência.
Agora não é mais somente a vida que rege e refreia o saber em tomo do passado: todas
as estacas de limite foram arrancadas e tudo o que era uma vez precipita-se sobre o
homem. Até onde houve um vir-a-ser, até lá se deslocaram, para trás, ao infinito, todas
as perspectivas. Nenhuma geração viu ainda um espetáculo tão inabarcável como o que
a ciência do vir-a-ser universal, a história, mostra agora: é certo, porém, que ela o
mostra com a perigosa audácia do lema que escolheu: fiat veritas, pereat vita.1 (277)

O sentido histórico, quando reina irrefreado e traz todas as suas conseqüências,


erradica o futuro, porque destrói as ilusões e retira às coisas sua atmosfera, somente na
qual elas podem viver. A justiça histórica, mesmo quando é exercida efetivamente e em
intenção pura, é uma virtude pavorosa, porque sempre solapa o que é vivo e o faz cair:
seu julgamento é sempre uma condenação à morte (280)

O fundamento disso está em que, no cômputo histórico, sempre vem à luz tanto
de falso, grosseiro, desumano, absurdo, violento, que a piedosa disposição à ilusão,
somente na qual pode viver tudo o que quer viver, é necessariamente desbaratada:
somente no amor, porém, somente envolto em sombras pela ilusão do amor, o homem
cria, ou seja, somente na crença incondicional na perfeição e na justiça. A todo aquele
que obrigaram a não mais amar incondicionalmente, cortaram as raízes de sua força: ele
tem de se tornar árido, ou seja, desonesto. Nesses efeitos, a história é o oposto da arte: e
somente quando a história suporta ser transformada em obra de arte e, portanto, tornar-
se pura forma artística, ela pode, talvez, conservar instintos ou mesmo despertá-los.
Uma tal historiografia, porém, estaria em total contradição com o traço analítico e
inartístico de nosso tempo, e até mesmo será sentida por ele como falsificação. História,
porém, que apenas destrói, sem que a conduza um impulso construtivo interior, torna,
com o tempo, sofisticados e desnaturados seus instrumentos: pois tais homens destroem
ilusões e "quem destrói a ilusão em si mesmo e nos outros, a natureza, como o mais
rigoroso tirano, o castiga". (281)

Uma religião que, de todas as horas de uma vida humana, considera a última a
mais importante, que prediz uma conclusão da vida terrestre em geral e condena tudo o
que vive a viver no quinto ato da tragédia excita, com certeza, as forças mais profundas
e mais nobres, mas é hostil a toda nova implantação, tentativa audaciosa, desejo livre;
resiste contra todo o vôo ao desconhecido, porque ali não ama, não espera: somente
contra a vontade deixa impor-se a ela o que vem a ser, para, no devido tempo, repudiá-
lo ou sacrificá-lo como um aliciador à existência, como um mentiroso sobre o valor da
existência. (283)
promoveram aquela célebre queima sacrificial de quadros, manuscritos,
espelhos, máscaras, o cristianismo gostaria de fazer com toda cultura que estimule à
continuação do esforço e traga aquele memento vivere como lema, e se não é possível
fazê-lo em linha reta, ou seja, por prepotência, ele alcança igualmente seu alvo quando
se alia com a cultura histórica, o mais das vezes até mesmo à sua revelia, e então,
falando a partir dela, recusa, dando de ombros, tudo o que vem a ser, e espraia sobre ele
o sentimento do tardio e do epigonal, em suma, o encanecimento inato. (...)Assim, o
sentido histórico torna seus servidores passivos e retrospectivos; e quase que somente
por esquecimento momentâneo, precisamente na intermitência desse sentido, o doente
de febre histórica se torna ativo, para, tão logo a ação tenha passado, dissecar seu ato,
impedir por meio da consideração analítica a continuação de seu efeito e, finalmente,
ressequi-lo em "história". (283)

Giorgio Agamben O que é o Contemporâneo?


e outros ensaios – Chapecó, 2009 da tradução brasileira: Editora Argos

A pergunta que gostaria de escrever no limiar deste seminário é: “De quem e do


que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?”. (p.
57)
Uma primeira e provisória indicação para orientar a nossa procura por uma
resposta nos vem de Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no Collège de France,
Roland Barthes resume-a deste modo: “O contemporâneo é o intempestivo”. (...)as
“Considerações intempestivas”, com as quais quer acertar as contas com o seu tempo,
tomar posição em relação ao presente. (58)
Citando Nietzche: “somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao
menos disso nos dar conta” (p. 58).
Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua "contemporaneidade” em
relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeira mente
ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente
com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual;
mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse
anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu
tempo. (p. 58)
Essa não-coincidência, essa discronia, não significa, naturalmente, que
contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em
casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do
que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem inteligente pode odiar
o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não
pode fugir ao seu tempo. (p. 58-59)
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a
relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo.
Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta
aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.(p. 59)
O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo
de compor-se, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.(p. 61)
Neste ponto gostaria de lhes propor uma segunda definição da
contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo,
para nele perce ber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles
experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que
sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente. (p. 62-63)
Isso significa, se voltamos agora à nossa tese sobre o escuro da
contemporaneidade, que perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de
passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que, no nosso caso,
equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o
seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes. 
Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do
século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua intima obscuridade.(63-64)
o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e
singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de
trevas que provém do seu tempo. (64)

Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode
fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros. E por
isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser
capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber
nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda:
ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. 
Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. O
nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum
caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto
da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo. Compreendam
bem que o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar
simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro
deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos
permite apreender o nosso tem po na forma de um “muito cedo” que é, também, um
“muito tarde”, de um “ja” que é, também, um “ainda não”. E, do mesmo modo,
reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está
perenemente em viagem até nós. (65)

O tempo da moda está constitutivamente adianta do a si mesmo e, exatamente por isso,


também sempre atrasado, tem sempre a forma de um limiar inapreensível entre
um“ainda não” e um “não mais”. É provável que, como sugerem os teólogos, isso
dependa do fato de que a moda, ao menos na nossa cultura, é uma assinatura teológica
da veste, que deriva do fato de que a primeira veste foi confeccionada por Adão e Eva
de pois do pecado original, na forma de um tapa-sexo entrelaçado com folhas de figo.
(Para ser preciso, as vestes que nós usamos derivam não desse tapa-sexo vegetal, mas
das tunicae pelliceae, das vestes feitas de pele de animal que Deus, segundo Gen. 3, 21,
faz ves tir, como símbolo tangível do pecado e da morte, nossos progenitores no
momento em que os expulsa do paraíso.) (67)
De fato, a contemporaneidade se escreve no pre sente assinalando-o antes de
tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as
assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da
arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico:
ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião
continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.
A distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade - que define a contemporaneidade tem
o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com
mais força do que no presente. (69)
Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas
com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essencial
desomogeneidade. Quem pode dizer: “o meu tempo” divide o tempo, escreve neste uma
cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa cesura, dessa
interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo
coloca em ação uma relação especial entre os tempos. Se, como vimos, é o
contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu
a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e
de um encon tro entre os tempos e as gerações. (71)
Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o
escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e
interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os
outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma
necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência
à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do
presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de
sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. É algo do gênero que
devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia que as suas perquirições históricas
sobre o passado são apenas a sobra trazida pela sua interrogação teórica do presente. E
Walter Benjamin, quando escrevia que o índice histórico contido nas imagens do
passado mostra que estas alcançarão sua legibilidade somente num determinado
momento da sua história. É da nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência
e àquela sombra, de ser contemporâneo não apenas do nosso século e do "agora”, mas
também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado, que de penderão o
êxito ou o insucesso do nosso seminário. (72-73)

DARDOT, P. e LAVAL, C. A nova razão do mundo [recurso eletrônico]:


ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar. São Paulo,
Boitempo, 2016.

Não captaríamos a originalidade do neoliberalismo se não víssemos seu ponto


focal na relação entre as instituições e a ação individual. (133)
Dando ênfase à ação individual e ao processo de mercado, os autores austro-
americanos visam, em primeiro lugar, a produzir uma descrição realista de uma
máquina econômica que tende ao equilíbrio, quando não é perturbada por moralismos
ou intervenções políticas e sociais destruidoras. Em segundo lugar, visam a mostrar
como se constrói na concorrência geral certa dimensão do homem, o entrepreneurship
[4], que é o princípio de conduta potencialmente universal mais essencial à ordem
capitalista. Desse modo, como diz muito apropriadamente Thomas Lemke em seu
comentário sobre Michel Foucault, o neoliberalismo apresenta-se como um “projeto
político que tenta criar uma realidade social que supostamente já existe” [5] . É
precisamente essa dimensão antropológica do homem-empresa que, de um modo
diferente daquele da sociologia ordoliberal, será a principal contribuição dessa corrente.
(134)
radicalizando e sistematizando numa teoria coerente da ação humana alguns aspectos já
presentes no pensamento liberal clássico (desejo de melhorar a própria sorte, fazer
melhor do que o outro etc.), a doutrina austríaca privilegia uma dimensão agonística: a
da competição e da rivalidade. A partir da luta dos agentes é que se poderá descrever
não a formação de um equilíbrio definido por condições formais, mas a própria vida
econômica, cujo ator real é o empreendedor, movido pelo espírito empresarial que se
encontra em graus diferentes em cada um de nós e cujo único freio é o Estado, quando
este trava ou suprime a livre competição.
Essa revolução na maneira de pensar inspirou inúmeras pesquisas, como aquelas, em
plena expansão, sobre inovação e informação. Mas, sobretudo, ela exige uma política
que vai muito além dos mercados de bens e serviços e diz respeito à totalidade da ação
humana. (135)
moldar os sujeitos para torná-los empreendedores que saibam aproveitar as
oportunidades de lucro e estejam dispostos a entrar no processo permanente da
concorrência. Foi particularmente no campo do management que essa orientação
encontrou sua expressão mais forte. (136)

o mercado não é mais o “ambiente” natural no qual as mercadorias circulam


livremente. Não é um “meio” dado de uma vez por todas, regido por leis naturais,
governado por um princípio misterioso do equilíbrio. É um processo regulado que
utiliza motivações psicológicas e competências específicas. É um processo menos
autorregulador (isto é, que conduz ao equilíbrio perfeito) do que autocriador,
capaz de se autogerar no tempo. E, se não necessita de poderes reguladores externos, é
porque tem sua própria dinâmica. Uma vez instaurado, poderia prosseguir em perfeito
movimento perpétuo, autopropulsivo, se não fosse desacelerado ou pervertido por
entraves éticos e estatais que constituem atritos nocivos. O mercado é concebido,
portanto, como um processo de autoformação do sujeito econômico, um processo
subjetivo autoeducador e autodisciplinador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir.
O processo de mercado constrói seu próprio sujeito. Ele é autoconstrutivo. (139)

O ser referencial desse neoliberalismo não é primeiro e essencialmente o homem da


troca que faz cálculos a partir dos dados disponíveis, mas o homem da empresa que
escolhe um objetivo e pretende realizá-lo. Von Mises deu a fórmula desse homem: “Em
toda economia real e viva, todo ator é sempre empreendedor” (139)

atribuísse ao processo de mercado a responsabilidade exclusiva de construir o sujeito


empresarial. Ao contrário dos ordoliberais alemães, que deixam a cargo do quadro da
sociedade o cuidado de limitar as ações humanas, os austro-americanos seguem o
caminho do “subjetivismo”, isto é, do autogoverno do sujeito. (140)

Esse autogoverno tem um nome: entrepreneurship. Essa dimensão prevalece sobre a


capacidade calculadora e maximizadora da teoria econômica padrão. Todo indivíduo
tem algo de empreendedorístico dentro dele, e é característica da economia de mercado
liberar e estimular esse “empreendedorismo” humano. (144)

A liberdade de ação é a possibilidade de testar suas faculdades, aprender, corrigir-se,


adaptar-se. O mercado é um processo de formação de si. (144)

A pura dimensão do empreendedorismo, a vigilância em busca da oportunidade


comercial, é uma relação de si para si mesmo que se encontra na base da crítica à
interferência. Somos todos empreendedores, ou melhor, todos aprendemos a ser
empreendedores. Apenas pelo jogo do mercado nós nos educamos a nos governar como
empreendedores. Isso significa também que, se o mercado é visto como um livre
espaço para os empreendedores, todas as relações humanas podem ser afetadas
por essa dimensão empresarial, constitutiva do humano (145)

Essa valorização do empreendedorismo e a ideia de que essa faculdade só pode se


formar no meio mercantil são partes interessadas na redefinição do sujeito referencial da
racionalidade neoliberal. (...) capacidade de se tornar empreendedor nos diversos
aspectos de sua vida ou até mesmo de ser o empreendedor de sua vida. Em resumo,
trata-se de fazer com que cada indivíduo se torne o mais “enterprising” possível.
(149)

O fortalecimento do capitalismo financeiro teve outras consequências importantes,


sobretudo sociais. A concentração de renda e patrimônio acelerou-se com a
financeirização da economia. (...) O empobrecimento relativo e muitas vezes absoluto
desses assalariados submeteu-os desse modo ao poder das finanças. Em segundo lugar,
a relação do sujeito com ele mesmo foi profundamente afetada. Em razão dos impostos
mais atrativos e do estímulo dos poderes públicos, o patrimônio financeiro e imobiliário
de muitas famílias de classe média e alta aumentou consideravelmente a partir dos anos
1990. Apesar de longe do sonho thatcheriano de populações ocidentais compostas de
milhões de pequenos capitalistas, a lógica do capital financeiro teve efeitos subjetivos
significativos. Cada sujeito foi levado a conceber-se e comportar-se, em todas as
dimensões de sua vida, como um capital que devia valorizar-se: estudos
universitários pagos, constituição de uma poupança individual para a
aposentadoria, compra da casa própria e investimentos de longo prazo em títulos a
bolsa são aspectos dessa “capitalização da vida individual” que, à medida que
ganhava terreno na classe assalariada, erodia um pouco mais as lógicas de
solidariedade. (197-98)

capitalismo se reorganizou sobre novas bases, cuja mola é a instauração da concorrência


generalizada, inclusive na esfera da subjetividade. O que aprouve chamar de
“desregulamentação”, termo ambíguo que poderia dar a entender que o
capitalismo não conhece nenhum outro modo de regulação, é na realidade uma
nova ordenação das atividades econômicas, das relações sociais, dos
comportamentos e das subjetividades. (198)

A concorrência introduzida pelos consumidores é a principal alavanca para a


“responsabilização”, portanto, para o bom desempenho dos assalariados nas empresas.
Um novo discurso de valorização do “risco” inerente à vida individual e
coletiva tenderá a fazer pensar que os dispositivos do Estado social são
profundamente nocivos à criatividade, à inovação, à realização pessoal. Se o
indivíduo é o único responsável por seu destino, a sociedade não lhe deve nada; em
compensação, ele deve mostrar constantemente seu valor para merecer as condições de
sua existência. A vida é uma perpétua gestão de riscos que exige rigorosa abstenção de
práticas perigosas, autocontrole permanente e regulação dos próprios comportamentos,
misturando ascetismo e flexibilidade. A palavra- chave da sociedade de risco é
“autorregulação”. (208)

Um imenso mercado de segurança pessoal, que vai do alarme doméstico aos planos
de aposentadoria, desenvolveu-se proporcionalmente ao enfraquecimento dos
dispositivos de seguros coletivos obrigatórios, reforçando por um efeito de circuito-
fechado o sentimento de risco e a necessidade de se proteger individualmente. Por uma
espécie de ampliação dessa problemática do risco, algumas atividades foram
reinterpretadas como meios de proteção pessoal. É o caso, por exemplo, da educação e
da formação profissional, vistas como escudos que protegem do desemprego e
aumentam a “empregabilidade”. (209)

Nem sempre distinguimos a dimensão normativa que necessariamente lhes


pertence: a “liberdade de escolher” identifica-se com a obrigação de obedecer a
uma conduta maximizadora dentro de um quadro legal, institucional,
regulamentar, arquitetural, relacional, que deve ser construído para que o
indivíduo escolha “com toda a liberdade” o que deve obrigatoriamente escolher
para seu próprio interesse. O segredo da arte do poder, dizia Bentham, é agir de
modo que o indivíduo busque seu interesse como se fosse seu dever, e vice-versa.
(211)

A estratégia neoliberal consistirá, então, em criar o maior número possível de


situações de mercado, isto é, organizar por diversos meios (privatização, criação de
concorrência dos serviços públicos, “mercadorização” de escola e hospital,
solvência pela dívida privada) a “obrigação de escolher” para que os indivíduos
aceitem a situação de mercado tal como lhes é imposta como “realidade”, isto é,
como única “regra do jogo”, e assim incorporem a necessidade de realizar um
cálculo de interesse individual se não quiserem perder “no jogo” e, mais ainda, se
quiserem valorizar seu capital pessoal num universo em que a acumulação parece ser
a lei geral da vida. (212)

O consumidor deve tornar-se previdente. Como vimos anteriormente, ele deve


munir-se individualmente de todas as garantias (cobertura de seguros privados, casa
própria, conservação de sua empregabilidade). Deve escolher racionalmente, em todos
os domínios, os melhores produtos e, cada vez mais, os melhores prestadores de
serviços (o modo de entrega de seu correio, o fornecedor de sua eletricidade etc.). E,
como cada empresa amplia a gama dos produtos que fornece, o sujeito deve “escolher”
de forma cada vez mais sutil a oferta comercial mais vantajosa (por exemplo, a hora e a
data da viagem de avião ou trem, o produto de seguro ou poupança etc.).
Essa “privatização” da vida social não se limita ao consumo privado e ao
lazer de massa. O espaço público é construído cada vez mais pelo modelo do
“global shopping center”, (218)

Fazer com que os indivíduos ajam no sentido desejado supõe que se criem
as condições particulares que os obrigam a trabalhar e se comportar como agentes
racionais. A alavanca do desemprego e da precariedade foi, sem dúvida, um meio
poderoso de disciplina, (...)a gestão das empresas privadas desenvolveu práticas de
gestão de mão de obra cujo princípio é a individualização de objetivos e recompensas
com base em avaliações quantitativas repetidas. (220)

A concorrência torna-se, assim, um modo de interiorização das exigências de


rentabilidade do capital que permite o afrouxamento das linhas hierárquicas e dos
controles permanentes realizados pelo pessoal intermediário, introduzindo uma pressão
disciplinar ilimitada. (221)

Gestão por metas, avaliação de desempenhos e autocontrole dos resultados


são os métodos empregados por essa gestão dos indivíduos: “A principal vantagem da
gestão por metas é que ela permite aos executivos medir seu próprio desempenho. O
autocontrole reforça a motivação, o desejo de fazer melhor, de não se encostar . [...]
Embora não seja indispensável para dar unidade de rumo e esforço à equipe dirigente, a
gestão por metas é indispensável para permitir o autocontrole.” ( ref: O melhor de Peter
Drucker: o homem, a administração, a sociedade, trad. Maria Lúcia Leite Rosa, São
Paulo, Nobel, 2002].) (222)

mobilizar a aspiração à “realização pessoal” a serviço da empresa, transferindo


exclusivamente para o indivíduo, contudo, a responsabilidade pelo cumprimento dos
objetivos. O que, evidentemente, tem um alto custo psíquico para os indivíduos (223)

Esse controle da subjetividade somente é operado de maneira eficaz dentro de


um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a ameaça de desemprego está
no horizonte de todo assalariado. Ele também é resultado de técnicas de gestão que
tentaram objetivar as exigências de mercado e de rentabilidade financeira na forma de
indicadores numéricos de metas e resultados e, mediante a individualização dos
desempenhos medidos e discutidos em entrevistas pessoais, fazer com que os
assalariados interiorizem a necessidade vital para eles de melhorar continuamente sua
“empregabilidade”. O cúmulo do autocontrole, que também mostra o mecanismo
perverso que transforma cada um em “instrumento de si mesmo”, ocorre quando o
assalariado é convidado a definir não somente as metas que ele deve atingir, mas
também os critérios pelos quais ele quer ser julgado. (223)

Esse trabalho político e ético de responsabilização está associado a numerosas


formas de “privatização” da conduta, já que a vida se apresenta somente como
resultado de escolhas individuais. O obeso, o delinquente ou o mau aluno são
responsáveis por sua sorte. A doença, o desemprego, a pobreza, o fracasso escolar e a
exclusão são vistos como consequência de cálculos errados. (...)Daí o trabalho
“pedagógico” que se deve fazer para que cada indivíduo se considere detentor de um
“capital humano” que ele deve fazer frutificar, daí a instauração de dispositivos que
são destinados a “ativar” os indivíduos, obrigando-os a cuidar de si mesmos, educar-se,
encontrar um emprego. (224)

A concepção que vê a sociedade como uma empresa constituída de empresas


necessita de uma nova norma subjetiva, que não é mais exatamente aquela do sujeito
produtivo das sociedades industriais. O sujeito neoliberal em formação, (...) é correlato
de um dispositivo de desempenho e gozo (p. 316)

uma condição nova do homem, a qual, para alguns, afetaria a própria economia
psíquica. (p. 316)

consultório pacientes que sofrem de sintomas que revelam uma nova era do
sujeito. Esse novo estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica a
amplas categorias, como a “era da ciência” ou o “discurso capitalista”. O fato de o
histórico apropriar-se do estrutural não deveria surpreender os leitores de Lacan, para
quem o sujeito da psicanálise não é uma substância eterna nem uma invariante trans-
histórica, mas efeito de discursos que se inserem na história e na sociedade (p. 316)
cada uma a sua maneira, psicanálise e sociologia registram uma mutação do
discurso sobre o homem que pode ser reportado, como em Lacan, à ciência de um lado e
ao capitalismo de outro: trata-se precisamente de um discurso científico que, a partir do
século XVII, começa a enunciar o que o homem é e o que ele deve fazer; e é para fazer
do homem esse animal produtivo e consumidor, esse ser de labor e necessidade, que um
novo discurso científico se propôs redefinir a medida humana. Mas esse quadro muito
geral é ainda insuficiente para identificar como uma nova lógica normativa se impôs
nas sociedades ocidentais. (p. 317)

Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas e
institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homempresa ou do
“sujeito empresarial”, favorecendo a instauração de uma rede de sanções, estímulos e
comprometimentos que tem o efeito de produzir funcionamentos psíquicos de um novo
tipo. (...) O homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na
competição mundial. (p. 317)

Marx (...) apontou os efeitos de dissolução que o mercado exerce sobre os


vínculos humanos. A mercantilização das relações sociais, juntamente com a
urbanização, foi um dos fatores mais poderosos da “emancipação” do indivíduo
com relação a tradições, raízes, apegos familiares e fidelidades pessoais. A grandeza
de Marx foi ter mostrado que o preço dessa liberdade subjetiva foi uma nova forma
de sujeição às leis impessoais e incontroláveis da valorização do capital. (p. 318)

O indivíduo liberal (...) proprietário de si mesmo, podia acreditar que gozava de


todas as suas faculdades naturais, do livre exercício de sua razão e vontade, podia
proclamar ao mundo sua autonomia irredutível, mas continuava a ser uma engrenagem
dos grandes mecanismos que a economia política clássica começava a analisar. (p. 319)

O contrato tornou-se mais do que nunca a medida de todas as relações humanas,


de modo que o indivíduo passou a experimentar cada vez mais na relação com o outro
sua plena e total liberdade de compromisso voluntário e a perceber a “sociedade” como
um conjunto de relações de associação entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Esse
é o cerne do que se convencionou chamar “individualismo” moderno. (p. 319)

Produziu incessantemente as mentes e os corpos aptos a funcionar no grande


circuito da produção e do consumo. Em uma palavra, a nova normatividade das
sociedades capitalistas impôs-se por uma normatização subjetiva de um tipo particular.
(p. 319)

O sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Não se tratava


apenas de aumentar a produção material; era preciso também que o poder se redefinisse
como essencialmente produtivo, como um estimulante da produção cujos limites seriam
determinados apenas pelos efeitos de sua ação sobre a produção. Esse poder
essencialmente produtivo tinha como correlato o sujeito produtivo, não só o trabalhador,
mas o sujeito que, em todos os domínios de sua vida, produz bem-estar, prazer e
felicidade. Desde cedo, a economia política teve como fiadora uma psicologia
científica que descrevia uma economia psíquica homogênea a ela. (p. 320)

vigiar os sujeitos e maximizar o poder? A resposta impõe-se por si só: para


produzir a maior felicidade. A lei da eficácia é intensificar os esforços e os resultados e
minimizar os gastos inúteis. Fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao
consumo, produzir o homem eficaz (p. 320)
o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do
homem em torno da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito opera uma
unificação sem precedentes das formas plurais da subjetividade que a democracia liberal
permitiu que se conservassem e das quais sabia aproveitar-se para perpetuar sua
existência. (p. 321)

“sujeito neoliberal” ou, simplesmente, neossujeito. Não estamos mais falando


das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar
os espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava em
crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve
estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-
se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. (p. 322)

sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-


se por completo a sua atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do
envolvimento total de si mesmo. A vontade de realização pessoal, o projeto que se quer
levar a cabo, a motivação que anima o “colaborador” da empresa, enfim, o desejo com
todos os nomes que se queira dar a ele é o alvo do novo poder. O ser desejante não é
apenas o ponto de aplicação desse poder; ele é o substituto dos dispositivos de direção
das condutas. Porque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do
novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse
para si mesmo (p. 322)

Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite


articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem-
sucedido”, (...) a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita ordenando
os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em
competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e
assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos. (p. 323)

a empresa é considerada em toda parte um lugar de realização pessoal, a


instância onde finalmente se podem conjugar o desejo de realização pessoal dos
indivíduos, seu bem-estar material, o sucesso (p. 323)

Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação


de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito
maiores. (p. 324)

a grande novidade reside na modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar


as novas condições que lhe são impostas, enquanto por seu próprio comportamento
contribuem para tornar essas condições cada vez mais duras e mais perenes. Em uma
palavra, a novidade consiste em promover uma “reação em cadeia”, produzindo
“sujeitos empreendedores” (...) que eles se adaptem subjetivamente às condições cada
vez mais duras que eles mesmos produziram. (p. 324)

Adaptação contínua às variações da demanda do mercado, da busca de


excelência, da “falha zero”. Desse modo, injunge-se o sujeito a conformar-se
intimamente, por um trabalho interior constante, à seguinte imagem: ele deve cuidar
constantemente para ser o mais eficaz possível, mostrar-se inteiramente envolvido
no trabalho, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem contínua, aceitar a grande
flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes impostas pelo mercado.
Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo,
empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si
mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. (p. 325)

uma correspondência íntima entre o governo de si e o governo das sociedades, a


empresa define uma nova ética, isto é, certa disposição interior, certo ethos que deve ser
encarnado com um trabalho de vigilância sobre si mesmo e que os procedimentos de
avaliação se encarregam de reforçar e verificar. (p. 326)

a grande inovação da tecnologia neoliberal é vincular diretamente a maneira


como um homem “é governado” à maneira como ele próprio “se governa”. (p. 327)

falar em empresa de si mesmo é traduzir a ideia de que cada indivíduo pode ter
domínio sobre sua vida: conduzi-la, geri-la e controlá-la em função de seus desejos e
necessidades, elaborando estratégias adequadas. (...) Trata-se do indivíduo competente e
competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, que não
procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem
econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de
transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz. O que
distingue esse sujeito é o próprio processo de aprimoramento que ele realiza sobre si
mesmo, levando-o a melhorar incessantemente seus resultados e seus desempenhos.
(327)

Ética do nosso tempo (...) essas formas éticas, exaltando o “homem que faz a si
mesmo” e a “realização plena”, mas é por outros aspectos que ela se singulariza. A ética
da empresa tem um teor mais guerreiro: exalta o combate, a força, o vigor e o sucesso.
Ela transforma o trabalho no veículo privilegiado da realização pessoal: (p. 327)

O que devemos entender por essa afirmação? A empresa de si mesmo é uma


“entidade psicológica e social, e mesmo espiritual”, ativa em todos os domínios e
presente em todas as relações. (...) A responsabilidade do indivíduo pela valorização de
seu trabalho no mercado tornou-se um princípio absoluto. (p. 329)

o uso da palavra “empresa” não é uma simples metáfora, porque toda a


atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu. (p. 329)

comparar a empresa de si mesmo a uma forma moderna de “cuidado de si”, a


uma versão contemporânea da epimeleia. Hoje, a epimeleia consistiria em “gerir um
portfólio de atividades”, desenvolver estratégias de aprendizagem, casamento, amizade,
educação dos filhos, (...) (p. 329)

“A empresa de si mesmo é encontrar um sentido, um compromisso na


globalidade da vida”, (p. 330)

Se “a empresa de si mesmo não é imediatamente evidente”, novos exercícios


devem substituir “a abordagem terapêutica de suporte individual e familiar, fornecendo
ferramentas e estratégias pragmáticas”. (p. 331)
Isso significa que cada indivíduo deve aprender a ser um sujeito “ativo” e
“autônomo” na e pela ação que ele deve operar sobre si mesmo. Dessa forma, ele
aprenderá por si mesmo a desenvolver “estratégias de vida” para aumentar seu capital
humano e valorizá-lo da melhor maneira. (p. 331)

Se essa ética neoliberal do eu não se restringe aos limites da empresa, é não só


porque o ser bem-sucedido na carreira confunde-se com o ser bem-sucedido na vida,
mas, ainda mais fundamentalmente, porque a gestão moderna tenta “aliciar as
subjetividades” com a ajuda de controles e avaliações de personalidade, inclinações de
caráter, maneiras de ser, falar e mover-se, quando não de motivações inconscientes (p.
331-32)

Diferentes técnicas, como coaching, programação neurolinguística (PNL),


análise transacional (AT) e múltiplos procedimentos ligados a uma “escola” ou um
“guru” visam a um melhor “domínio de si mesmo”, das emoções, do estresse, (p.
332)

Todos têm como objetivo fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade, torná-lo
mais operacional em situações difíceis. (...) todos se apresentam como saberes
psicológicos, com um léxico especial, autores de referência, metodologias
particulares, modos de argumentação de feição empírica e racional. O segundo
aspecto é que se apresentam como técnicas de transformação dos indivíduos que podem
ser utilizadas tanto dentro como fora da empresa, a partir de um conjunto de princípios
básicos. (p. 333)

são técnicas que visam à “conduta de si e dos outros” ou, em outras palavras,
técnicas de governamentalidade que visam essencialmente a aumentar a eficácia da
relação com o outro. (p. 333)

o domínio dos efeitos pelo eu nunca é um simples meio (o que, diga-se de


passagem, devolve ao devido lugar a referência ao ideal do “domínio de si mesmo”
que abunda nesses discursos). Todos os princípios da PNL visam a tornar o indivíduo
mais eficaz, a começar pelo trabalho de autopersuasão pelo qual ele deve acreditar que
os “recursos” são ele próprio: “Postular que cada um de nós possui os recursos
necessários para evoluir, atingir seus objetivos ou resolver problemas estimula a
responsabilidade e a autonomia e constitui um vetor fundamental do desenvolvimento
da autoestima” (p. 334)

Todos esses exercícios práticos de transformação de si mesmo tendem a jogar o


peso da complexidade e da competição exclusivamente sobre o indivíduo. Os “gerentes
da alma”, segundo expressão lacaniana retomada por Valérie Brunel, introduzem uma
nova forma de governo que consiste em guiar os sujeitos fazendo-os assumir
plenamente a expectativa de certo comportamento e certa subjetividade no trabalho (... )
odo indivíduo é idealmente um gerente com o qual se deve contar para resolver os
problemas. (p. 335)

O domínio de si mesmo coloca-se como uma espécie de compensação ao


domínio impossível do mundo. O indivíduo é o melhor, senão o único “integrador” da
complexidade e o melhor ator da incerteza.
Se, portanto, trata-se de “trabalho de si mesmo”, “realização de si mesmo”,
“responsabilidade por si mesmo”, isso não significa reclusão do sujeito, que toma a si
mesmo por um objeto sem nenhuma relação com qualquer instância ou ordem que lhe
sejam externas. (p. 335-36)

Pode parecer que há algo de perverso na manipulação de temas que são ao


mesmo tempo morais e psicológicos. Porque é exatamente como instrumento eficaz que
o sujeito interessa e que se quer impor a ele certa conduta “correta” em relação aos
outros. A despeito das aparências – que, aliás, participam plenamente da gestão das
subjetividades, (...) trata-se de construir, com o auxílio da psicologia e da ética,
técnicas de governo de si que são parte interessada do governo da empresa. (p. 337)

A partir do momento que o sujeito é plenamente consciente e mestre de suas


escolhas, ele é também plenamente responsável por aquilo que lhe acontece: a
“irresponsabilidade” de um mundo que se tornou ingovernável em virtude de seu
próprio caráter global tem como correlato a infinita responsabilidade do indivíduo por
seu próprio destino, por sua capacidade de ser bem-sucedido e feliz. Não se atravancar
com as coisas do passado, cultivar previsões positivas, ter relações eficazes com o
outro: a gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu
produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce,
paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados. (p. 337)

a coerção econômica e financeira transforma-se em autocoerção e


autoculpabilização, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece.
(p. 338)

“autoestima”, chave de todo sucesso. Contudo, essas afirmações paradoxais


sobre a injunção de sermos nós mesmos e nos amarmos como somos estão inseridas
num discurso que coloca o desejo legítimo como uma ordem. (p. 338)

todos os domínios da existência são da competência da gestão de si. Portanto,


toda a subjetividade, e não apenas o “homem no trabalho”, é convocada para esse modo
de gestão, (p. 338)

“viver na incerteza” aparece como um estado natural, (p. 340)

A nova norma em matéria de risco é a da “individualização do destino”. (...)


Esse risco é cada vez menos “risco social”, assumido por determinada política do
Estado social, e cada vez mais “risco ligado à existência”. (...) o indivíduo deve mostrar-
se ativo”, ser “gestor” de seus riscos; (p. 341)

significa, sobretudo, instaurar um mecanismo que identifica o compartilhamento


da informação e o compartilhamento do risco: a partir do momento que se supõe que o
indivíduo tem condições de acessar as informações necessárias para sua escolha, deve-
se supor que ele se torna plenamente responsável pelos riscos envolvidos. (p. 342)

O que, devemos lembrar, tem certa ressonância no indivíduo, na medida em que


ele aspira controlar o curso de sua vida, suas uniões, sua reprodução e sua morte. Mas
essa ética “individualista” é tratada como uma oportunidade de jogar todos os custos
nas costas do sujeito, por mecanismos de transferência do risco que não têm nada de
“natural”. (342)

Ser “empreendedor de si mesmo” significa conseguir ser o instrumento ótimo


de seu próprio sucesso social e profissional. Mas contar apenas com a tecnologia do
“training” e do “coaching” não é suficiente. (...) fabricar o homem accountable
[responsável]. As técnicas de produção do eu produtivo estão intimamente ligadas a
esse modo de controle como momentos preparatórios ou sequências reparadoras. (p.
343)

“a ‘responsabilização’ dos indivíduos não os torna apenas responsáveis: eles


devem responder por seu comportamento a partir de escalas de medida dadas pelos
serviços de gestão de recursos humanos e pelos administradores”. A “avaliação” tornou-
se o primeiro meio de orientar a conduta pelo estímulo ao “bom desempenho”
individual. Ela pode ser definida como uma relação de poder exercida por superiores
hierárquicos encarregados da expertise dos resultados, uma relação cujo efeito é uma
subjetivação contábil dos avaliados. Uma vez que o sujeito aceita ser julgado com base
nessas avaliações e sofrer as consequências, ele se torna constantemente avaliável, isto
é, um sujeito que sabe que depende de um avaliador e das ferramentas empregadas por
ele, sobretudo porque ele mesmo foi educado para reconhecer de antemão a
competência do avaliador e a validade das ferramentas. (p. 343)

O sujeito neoliberal (...) não vale mais pelas qualidades estatutárias que lhe
foram reconhecidas durante sua trajetória escolar e profissional, mas pelo valor de uso
diretamente mensurável de sua força de trabalho. (p. 344)

O ideal – que constitui como que o modelo dessa atividade de avaliação,


inclusive nos setores mais distantes da prática financeira, como saúde mental, (...) poder
avaliar os ganhos produzidos por cada equipe ou indivíduo considerados responsáveis
pelo valor acionário produzido pela atividade que realizam (p. 344)

A técnica de si mesmo é uma técnica de bom desempenho num campo


concorrencial. Ela não visa apenas à adaptação e à integração, ela visa à intensificação
do desempenho. (p. 345)

O poder dessa racionalidade, como vimos, deve-se à instauração de situações


que forçam os sujeitos a funcionar de acordo com os termos do jogo imposto a eles.
Mas o que é funcionar como uma empresa num contexto de situação de concorrência?
Em que medida isso nos leva a um “novo sujeito”? Abordaremos aqui apenas alguns
dos elementos que compõem o dispositivo de desempenho/gozo e mostram diretamente
sua novidade em relação ao dispositivo industrial de eficácia.

O novo sujeito é o homem da competição e do desempenho. O


empreendedor de si é um ser feito para “ganhar”, ser “bem-sucedido”. (p. 345)

um imaginário em que desempenho e gozo são indissociáveis. O sujeito


neoliberal é produzido pelo dispositivo “desempenho/gozo”. Inúmeros trabalhos
enfatizam o caráter paradoxal da situação subjetiva. (p. 346)
O sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo “desempenho/gozo”. Inúmeros
trabalhos enfatizam o caráter paradoxal da situação subjetiva. Os sociólogos
multiplicam os “oximoros” para tentar dizer do que se trata: “autonomia controlada”,
“comprometimento coagido” (346)

a resolução dessa tensão num dispositivo que ia identificar o desempenho ao


gozo e cujo princípio é o do “excesso” e da “autossuperação”. Não se trata mais de
fazer o que se sabe fazer e consumir o que é necessário, numa espécie de equilíbrio
entre desutilidade e utilidade. Exige-se do novo sujeito que produza “sempre mais” e
goze “sempre mais” e, desse modo, conecte-se diretamente com um “mais-de-gozar”
que se tornou sistêmico. A própria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos
dispositivos de desempenho e gozo. (p. 347)

Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um


dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo. Ressaltar apenas a
tensão entre ambos seria esquecer tudo o que estabelece certa equivalência entre o dever
do bom desempenho e o dever do gozo, seria subestimar o imperativo do “sempre mais”
que visa a intensificar a eficácia de cada sujeito em todos os domínios: escolar e
profissional, mas também relacional, sexual etc. (p. 347)

o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta advertência: “No time
for losers” [Não há tempo para perdedores]. A novidade é justamente que o loser é o
homem comum, aquele que perde por essência. (p. 347)

a norma social do sujeito mudou. Não é mais o equilíbrio, a média mas o


desempenho máximo que se torna o alvo da “reestruturação” que cada indivíduo deve
realizar em si mesmo. (p. 347-48)

identificação do sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extração


de um “mais-de-gozar”, tirado de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de
viver, é que faz funcionar o novo sujeito e o novo sistema de concorrência. Em última
análise, subjetivação “contábil” e subjetivação “financeira” definem uma subjetivação
pelo excesso de si em si ou, ainda, pela superação indefinida de si. Consequentemente,
aparece uma figura inédita da subjetivação. (...) trata-se de uma “ultrassubjetivação”,
cujo objetivo não é um estado último e estável de “posse de si”, mas um além de si (p.
348)

O corpo é produto de uma escolha, de um estilo, de uma modelagem. Cada


indivíduo é responsável por seu corpo, reinventado e transformado à própria vontade.
Esse é o novo discurso do gozo e do desempenho que obriga o indivíduo a dar-se um
corpo tal que ele possa ir sempre além de suas capacidades atuais de produção e
prazer. (p. 349)

essa virada somente foi possível a partir do momento em que a função “psi”,
apoiada pelo discurso “psi”, foi identificada como o motor da conduta e o objeto-
alvo de uma transformação possível por técnicas “psi”. Não que o sujeito neoliberal
seja produto direto dessa construção, mas o discurso sobre o sujeito aproximou os
enunciados psicológicos e os enunciados econômicos até quase fundi-los. Esse sujeito é,
na realidade, um efeito compósito, como era o indivíduo do liberalismo clássico. (...) é
pela combinação da concepção psicológica do ser humano, da nova norma econômica
da concorrência, da representação do indivíduo como “capital humano”, da coesão da
organização pela “comunicação”, do vínculo social como “rede”, que se construiu
pouco a pouco essa figura da “empresa de si”. (p. 349)

Concebendo o sujeito como lugar de paixões, desejos e interesses, mas também


de normas e julgamentos morais, pôde-se compreender como as forças psicológicas são
móbiles de conduta, e como agir tecnicamente no campo psíquico por meio de sistemas
adaptados de estímulo, incentivo, recompensa, punição. Todo um conjunto de técnicas
de diagnóstico e “ortopedia psíquica”, no campo educacional, profissional e familiar, foi
integrado ao grande dispositivo de eficácia das sociedades industriais. A ideia diretriz
era a da adaptação mútua dos móbiles psicológicos e das coerções sociais e econômicas,
o que nos ensinou a ver a “personalidade” e o “fator humano” como um recurso
econômico pelo qual se deve “zelar”. (p. 350)

O discurso “psi”, quando cruzou com o discurso econômico, teve outros efeitos
sobre a cultura cotidiana, dando uma forma científica à ideologia da escolha. (...)
Enunciados econômicos e enunciados do tipo “psi” juntaram-se para dar ao novo sujeito
a forma do arbítrio supremo entre “produtos” e estilos diferentes no grande mercado dos
códigos e dos valores. Foi ainda essa conjunção que deu origem a essas técnicas de si
que visam ao desempenho individual por meio de uma racionalização gerencial do
desejo. Mas foi outra modalidade dessa conjunção que permitiu o desenvolvimento do
dispositivo de desempenho/gozo, (p. 351)

como o sujeito psicológico e o sujeito da produção podem identificar-se. Para


falar em termos freudianos, a questão não é mais fazer com que os indivíduos passem
do princípio do prazer ao princípio da realidade – objetivo terapêutico dos partidários de
uma psicanálise “adaptativa” que promete um acréscimo de “felicidade” para os mais
bem adaptados; a questão agora é fazer os indivíduos passarem do princípio do
prazer ao além do princípio do prazer.* A identificação entre os dois sujeitos
distancia-se do horizonte homeostático do equilíbrio para operar na lógica da
intensificação e da ilimitação. (p. 351)
*Pensar na contraposição desse “empuxo ao gozo” com a questão do “me phynai”:
além do princípio do prazer – empuxo ao excesso mortífero, sob o engodo de que esse
excesso leva à felicidade, plenitude, completude etc., mas que conduz mesmo ao
desgaste x se deparar com o inexorável da finitude, com o fato de ser-para-a-morte, com
algo do simbólico que se inscreve inexoravelmente e impede permanentemente que o
sujeito atinja a completude, a plenitude, o absoluto etc. – “fim do furo x furo como
fim”.

A liberdade tornou-se uma obrigação de desempenho. (p. 351)

O marketing é empuxo-ao-gozo [pousse-à-jouir] incessante e onipresente, ainda


mais eficaz na medida em que promete, pela simples posse dos signos e dos objetos do
“sucesso”, o impossível gozo último. (p. 352)

-- Diagnósticos clínicos do neossujeito –

Tal sujeito encontra sua verdade no veredito do sucesso, submete-se a um “jogo


da verdade” em que prova seu ser e seu valor. O desempenho é, muito precisamente, a
verdade tal como o poder gerencial a define. Esse dispositivo de conjunto produz efeitos
patológicos aos quais ninguém escapa completamente. (p. 352)
se referir ao definhamento dos quadros institucionais e das estruturas simbólicas
os quais os sujeitos encontravam seu lugar e sua identidade. (...) mutação da instituição
em empresa. (p. 352)
O paradoxo em torno do qual gira o diagnóstico clínico é que as instituições que
distribuem os lugares, determinam as identidades, estabilizam as relações e impõem os
limites são cada vez mais regidas por um princípio de superação contínua dos limites,
(p. 353)
“Mundo sem limites” (...) O paradoxo em torno do qual gira o diagnóstico
clínico que as instituições que distribuem os lugares, determinam as identidades,
estabilizam as relações e impõem os limites são cada vez mais regidas por um princípio
de superação contínua dos limites, (p. 353)
A gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção de mercado, introduz a
incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso
pessoal, uma vergonha, uma desvalorização. (354)
é por autocoerção que o sujeito realiza o que se espera dele (...)a gestão exige
dele um comprometimento integral de sua subjetividade (...)as exigências são “sem
sujeito”, não têm autor ou fonte identificável, são consideradas integralmente objetivas.
O conflito social é impedido porque o poder é ilegível. É isso, sem dúvida, que explica
uma parte dos novos sintomas de “sofrimento psíquico”. (p. 354)
ênfase à “liquidez”, à “fluidez” ou à “evanescência” das personalidades
contemporâneas. Para Richard Sennett, a organização flexível, apresentada às vezes
como uma oportunidade para o indivíduo moldar livremente sua vida, na realidade abala
o “caráter” e corrói tudo que existe de estável na personalidade: os laços com os outros,
os valores e as referências (p. 354)
a ideologia do sucesso do indivíduo “que não deve nada a ninguém”, a ideologia
do self-help, destrói o vínculo social, na medida em que este repousa sobre deveres de
reciprocidade para com o outro. Como manter juntos sujeitos que não devem nada a
ninguém? Provavelmente a desconfiança, ou mesmo o rancor, em relação aos maus
pobres, aos preguiçosos, aos velhos dependentes e aos imigrantes, tem um efeito de
“cola” social. Mas ela também tem seu reverso, se todos se sentem ameaçados de um
dia se tornarem ineficazes e inúteis. (p. 356)
o culto do desempenho leva a maioria das pessoas a provar sua insuficiência e
conduz a formas depressivas em grande escala. É notório que o diagnóstico de
“depressão” se multiplicou por sete de 1979 a 1996, (...) A depressão é, na verdade, o
outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser
responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial (p. 356)
o sujeito neoliberal deve ser previdente em todos os domínios (seguros de todos
os tipos), deve fazer escolhas em tudo como se se tratasse de um investimento ( “fundo
de educação”, “fundo de saúde”, “fundo de aposentadoria”), deve optar de forma
racional, dentro de uma ampla gama de ofertas comerciais, ao contratar os serviços mais
simples (a hora e a data da viagem que fará de trem, a forma de encaminhamento de sua
correspondência, seu acesso à internet, seu fornecimento de gás e eletricidade).
O remédio mais propalado para essa “doença da responsabilidade”, essa usura
provocada pela escolha permanente, é uma dopagem generalizada. O medicamento faz
as vezes da instituição que não apoia mais, não reconhece mais, não protege mais os
indivíduos isolados. Vícios diversos e dependências às mídias visuais são alguns desses
estados artificiais. O consumo de mercadorias também faria parte dessa medicação
social, como suplemento de instituições debilitadas. (p. 357)
o neossujeito é obrigado a fundamentar-se em si mesmo, em nome da livre
escolha, para conduzir-se na vida. Essa intimação à escolha permanente, essa solicitação
de desejos pretensamente ilimitados, faz do sujeito um joguete flutuante: (p. 358)
provavelmente seria melhor dizer que a estrutura simbólica é alvo de uma
instrumentalização por parte da lógica econômica capitalista. Esse é o sentido que
podemos dar ao que Lacan chamou de “discurso capitalista”. (p. 358)
A manipulação dessas identificações pelo aparato econômico faz delas “ideais
voláteis do eu, em constante remodelação”. Em outras palavras, a identidade tornou-se
um produto consumível. Se, como indicava Lacan, o discurso capitalista consome
tudo, e se consome tanto os recursos naturais como o material humano, também
consome formas institucionais e simbólicas, como Marx já observava (p. 358)
Essa instrumentalização do simbólico pelas instituições econômicas introduz no
sujeito não apenas essa “fluidez” dos ideais, mas também uma fantasia de onipotência
sobre as coisas e os seres. (p. 358)
O mundo das interdições e das barreiras – que instituíam a separação dos lugares
sexuais e geracionais – foi substituído por um universo da quantidade – o da ciência e
da mercadoria. (p. 358-59)
Com o enfraquecimento das instâncias religiosas e políticas, não existem mais
no social outras referências comuns, a não ser o mercado e suas promessas. (... )Lacan.
“O que distingue o discurso do capitalista é o seguinte: a Verwerfung, a rejeição, a
rejeição para fora de todos os campos do simbólico com aquilo que eu disse que isso
tem como consequência. Rejeição de quê? Da castração.” Esse mundo da onipotência,
em que o sujeito sem limite é pego violentamente, já é caracterizado pela psicose de
massa, com seus extremos esquizofrênicos e paranóicos? Ou ainda é preservado por
modos de defesa pertencentes a outro registro, por exemplo, por uma perversão
sistêmica? (p. 359)
Para alguns psicanalistas, favorecidos por uma distância de cerca de trinta anos
em relação a Lacan, nós entramos num universo em que a decepção típica do neurótico,
exposto à inadequação da coisa ao desejo, é substituída por uma relação perversa com o
objeto baseada na ilusão imaginária do gozo total. (359)
quanto mais o ser humano envereda por esse vício em objetos mercantis, mais
tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale apenas pelo que produz no campo
econômico, um objeto que será posto de lado quando tiver perdido a “performance”,
quando não tiver mais uso. – É isso que há de se subverter.
Na verdade, a subjetivação neoliberal institui cada vez mais explicitamente uma
relação de gozo obrigatório com todo outro indivíduo, uma relação que poderíamos
chamar também de relação de objetalização. (p. 360)
submetidos à norma do desempenho, tomam uns aos outros, na diversidade
de suas relações, por objetos que devem ser possuídos, moldados e transformados
para melhor alcançar sua própria satisfação; alvo das técnicas de marketing, os
sujeitos buscam no consumo das mercadorias um gozo último que se afasta
enquanto eles se esfalfam para alcançá-lo. (p. 360)
Essa lógica implacável tem um “custo” subjetivo muito alto. (p. 360)
O imperativo categórico do desempenho concilia-se com as fantasias de
onipotência, com a ilusão socialmente difundida de um gozo total e sem limite.
Segundo Melman, passaríamos, assim, de uma economia psíquica organizada pelo
recalque para uma “economia organizada pela exibição do gozo” (p. 361)
psicanálise pode nos ajudar a refletir sobre a maneira como funcionam os
neossujeitos de acordo com o regime do gozo de si. Segundo Lacan, esse gozo de si,
entendido como aspiração à plenitude impossível – nesse sentido, muito diferente do
simples prazer –, apresenta-se na ordem social como sempre limitado e parcial. A
instituição é, de certo modo, aquilo que tem a responsabilidade de limitar o gozo e dar
sentido a esse limite. A empresa, forma geral da instituição humana nas sociedades
capitalistas ocidentais, não foge a essa regra, salvo por fazer isso hoje de maneira
denegada. (p. 361)
um discurso social de valorização exagerada do indivíduo autoconstruído,
funcionando como uma denegação, torna possível tal pretensão subjetiva: a perda
não é realmente uma perda, uma vez que é decidida pelo próprio sujeito. (p. 361)
o eu pode apoiar-se num gozo imaginário pleno num mundo completo. Cada um
de nós é mestre ou, ao menos, acredita que pode sê-lo. Desse modo, gozo de si na
ordem do imaginário e denegação do limite aparecem como lei da ultrassubjetivação. (p.
361) – contraponto do gozo absoluto com a subjetivação de uma falta/limite própria ao
simbólico.
Se a perda é denegada, a ilimitação do gozo pode ser mobilizada no plano
imaginário a serviço da empresa, pega ela mesma em lógicas imaginárias de expansão
infinita, de valorização sem limites na bolsa. Para isso, é claro, é necessário passar por
uma racionalização técnica da subjetividade, (p. 362)
jogo “ganha-ganha”, segundo a fórmula eloquente que supostamente explica a
vida profissional e social. Enquanto no velho capitalismo todo mundo perdia alguma
coisa (o capitalista perdia o gozo garantido de seus bens pelo risco assumido, e o
proletário, a livre disposição de seu tempo e força), no novo capitalismo ninguém perde,
todos ganham. O sujeito neoliberal não pode perder, (p. 362)
A espécie de desacoplamento verificado pelo diagnóstico clínico dos
neossujeitos – o estado de suspensão fora dos quadros simbólicos, a relação flutuante
com o tempo, as relações com os outros reduzidas a transações pontuais – não é
disfuncional com relação aos imperativos do desempenho ou às novas tecnologias de
rede. (p. 362)
O sentimento de si é dado no excesso, na rapidez, na sensação bruta
proporcionada pela agitação, o que certamente expõe o neossujeito à depressão e à
dependência, mas também possibilita aquele estado “conexionista” do qual ele tira, na
falta de um vínculo legítimo com uma instância outra, um apoio frágil e uma eficácia
esperada. O diagnóstico clínico da subjetividade neoliberal nunca deve perder de vista
que o “patológico” é parte da mesma normatividade que o “normal”. (p. 362-63) –
relação com as “novas” propostas psis.
Seguindo o quadro clínico do neossujeito, vemos que a empresa de si mesmo
tem dois rostos: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso
diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização. Oscilando entre
depressão e perversão, o neossujeito é condenado a ser duplo: mestre em desempenhos
admiráveis e objeto de gozo descartável. (p. 363)
é inútil lamentar a crise das instituições de enquadramento, como família, escola,
organizações sindicais ou políticas, ou chorar a decadência da cultura e do saber ou o
declínio da vida democrática. É melhor tentar compreender como todas essas
instituições, valores e atividades são hoje incorporados e transformados no
dispositivo de desempenho/gozo, em nome de sua necessária “modernização”; é
melhor examinar de perto todas as tecnologias de controle e vigilância de
indivíduos e populações, sua medicalização, o fichar, o registro de seus
comportamentos, inclusive os mais precoces; é melhor analisar como disciplinas
médicas e psicológicas se articulam com o discurso econômico e com o discurso
sobre segurança pública para reforçar os instrumentos da gestão social. (p. 364)
do dispositivo de governo dos neossujeitos (...) não faltam ciências candidatas e
suas fusões estão em curso ou se farão no futuro. A questão central que se coloca ao
governo dos indivíduos é saber como programar os indivíduos o quanto antes para que
essa injunção à superação ilimitada de si mesmo não descambe em comportamentos
excessivamente violentos e explicitamente delituosos; é saber como manter uma “ordem
pública” quando é preciso incitar os indivíduos ao gozo, evitando ao mesmo tempo a
explosão da desmedida. (p. 364)

Quais traços caracterizam a razão neoliberal? (371)

a exigência de uma universalização da norma da concorrência ultrapassa


largamente as fronteiras do Estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em
sua relação consigo mesmos. De fato, a “governamentalidade empresarial” que deve
prevalecer no plano da ação do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si
do “indivíduo-empresa” ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os
atores privados da “governança”, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se
como empreendedores. (...)A empresa é promovida a modelo de subjetivação : cada
indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar.
O fato fundamental é que o neoliberalismo se tornou hoje a racionalidade
dominante, (...) Enquanto tal, essa racionalidade tomou corpo num conjunto de
dispositivos discursivos, institucionais, políticos, jurídicos e econômicos que formam
uma rede complexa e movediça, sujeita a retomadas e ajustes em função do surgimento
de efeitos não desejados, às vezes contraditórios com o que se buscava inicialmente.
Podemos falar, nesse sentido, de um dispositivo global que, como qualquer dispositivo,
é de natureza essencialmente “estratégica”, para empregarmos um dos termos preferidos
de Foucault (377)

Nessas condições, não são mais os homens que dirigem os homens, mas é a verdade
que fala diretamente pela boca dos cientistas e dos industriais , e é sabido que nada
é menos arbitrário do que a verdade. (386)

A genealogia do neoliberalismo que ensaiamos nesta obra ensina que a nova razão do
mundo não é um destino necessário que subjuga a humanidade. Ao contrário da Razão
hegeliana, ela não é a razão da história humana; ela é, de ponta a ponta, histórica, isto
é, relativa a condições estritamente singulares que nada permite que sejam
pensadas como insuperáveis. (391)

SAFATLE, SILVA JR. E DUNKER – NEOLIBERALISMO COMO


GESTÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO, AUTÊNTICA, 2021

Mas a nomeação de tais políticas como “austeridade” era um fato a ser


sublinhado. Pois ela explicitava como valores morais eram mobilizados para justificar a
racionalidade de processos de intervenção social e econômica. Note-se que ser contra a
austeridade é, inicialmente, uma falta moral, um desrespeito ao trabalho de terceiros,
além de uma incapacidade infantil de retenção e poupança. Criticar a austeridade é
assim colocar-se fora da possibilidade de ser reconhecido como sujeito moral autônomo
e responsável. Da mesma forma, era moral a defesa de que os indivíduos deveriam parar
de procurar “proteção” nos braços paternos do Estado-providência a fim de assumir a
“responsabilidade” por suas próprias vidas, aprendendo assim a lidar com o mundo
adulto de uma “sociedade de risco” (embora nunca tenha realmente ficado claro se
osriscos afinal eram para todos). (12)
A economia política analisaria assim as dinâmicas coordenadas socialmente a
fim de realizar o desejo humano de enriquecimento, ou antes a obtenção da: “maior
soma de coisas necessárias, de conveniências e de luxos com a menor quantidade de
trabalho e abnegação física exigidas para poder obtê-los no estado existente de
conhecimento” (Mit, 1973, p- 304). (13)
Mas o que vemos atualmente é algo de outra ordem, a saber, a justificação de
ações econômicas e a paralisia da crítica através da mobilização massiva de discursos
psicológicos e morais.(13)
Nesse sentido, devemos meditar a respeito do significado dessa relação
inesperada entre autonomia da economia em relação ao político e sua transmutação em
psicologia moral. Como se um processo só fosse possível através do outro. A autonomia
da economia, sua posição de discurso de poder ilimitado na definição das orientações de
gestão social, caminha juntamente com a legitimação cada vez mais clara de suas
injunções como uma psicologia moral, ou seja, como um discurso no qual se articulam
injunções morais e pressuposições a respeito de desenvolvimento e maturação. O que
nos leva a afirmar que o império da economia é solidário da transformação do
campo social em um campo indexado por algo que poderíamos chamar de
“economia moral”, com consequências maiores não exatamente para os modos de
produção e circulação de riqueza, mas para a eliminação violenta da esfera do
político enquanto espaço efetivo de deliberação e decisão, com a redução da crítica à
condição de patologia. Uma eliminação que, como gostaria de mostrar, tem
consequências maiores para os modos de sujeição psíquica e sofrimento social.
A tese a ser defendida aqui é que o uso reiterado de tal estratégia cresce com a
hegemonia do neoliberalismo. (13-14)

exortação moral dos valores imbuídos na livre iniciativa, na “independência”


em relação ao Estadoe na pretensa autodeterminação individual (14)

a transformação da escassez em dado evidente só pode ser produzida através da


absorção, pelo discurso econômico, da força disciplinar da crença na vulnerabilidade da
vida, em sua fragilidade constitutiva. Crença que é peça fundamental para certa moral e
uma circulação de afetos fundados no medo capazes de motivar a ação em direção ao
trabalho compulsivo e à poupança.
Vale a pena ainda salientar como essa psicologização muito específica do campo
econômico tendo em vista a eliminação da possibilidade de contestação política a
respeito de sua “racionalidade” não deixa de ter, por sua vez, uma espécie de efeito
reverso. (...)é um dos fatos contemporâneos mais relevantes a redescrição completa da
lógica motivacional da ação política em uma gramática das emoções. É cada vez mais
evidente como lutas políticas tendem a não ser mais descritas a partir de termos
eminentemente políticos, como justiça, equidade, exploração, espoliação, mas através
de termos emocionais, como ódio, frustração, medo, ressentimento, raiva, inveja,
esperança.” E em um movimento que parece complementar tal lógica, chegamos
rapidamente ao momento em que novas levas de políticos parecem especializados em
mobilizar setores da população como se estivessem diante de sujeitos eminentemente
psicológicos. Assim,suas falas são feitas para serem lidas não como confrontações
políticas a respeito da vida em sociedade, mas... (15)
... como “ofensas”, como “desrespeito”; suas promessas são permeadas por exortações
ao “cuidado”, ao “amparo”. Como sabemos, falas constituem seus ouvintes. Um
discurso construído como “ofensivo” visa produzir um sujeito que reagirá como
“ofendido”. A fala ofensiva é astuta. Ela procura, inicialmente, quebrar umaespécie de
solidariedade genérica diante de umainjustiça feita não apenas contra um, mas contra
todos ou, antes, contra todos através de um. (16)
sobreposição fantasmática entre corpo social e o corpo do pai, da mãe e dos
irmãos. Sobreposição essa que deve produzir a docilidade em relação à autoridade, a
perpetuação de um sentimento de dependência e, principalmente, a naturalização da
sujeição de gênero.* No limite, ela deve produzir uma “identificação com o agressor”
(17)
Margareth Thatcher: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a
alma”." E essa mudança dos corações e mentes teria de ser feita através de doses
maciças de intervenção e de reeducação." Isso até o momento em que os indivíduos...
(17)
... começassem ver a si mesmos como “empreendedores de si”, isso até o momento em
que eles internalizassem a racionalidade econômica como a única forma de
racionalidade possível.
Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma
sociedade com menos intervenção do Estado,ideia tão presente nos dias de hoje, é
simplesmente falsa. (18)

o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos


conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo
econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social. (18)

o Estado (...) deveria bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a


saber, aquele que coloca em questão a gramática de regulação da vida social (18)

Para tanto, seria necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do


horizonte de constituição da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria a um
esportista preocupado com performances se generalizasse, e para isso a mobilização de
processos de internalização disciplinar de pressupostos morais era fundamental. Por
isso, as modalidades neoliberais de intervenção deveriam se dar em dois níveis, a
saber, no nível social e no nível psíquico. Essa articulação se explica pelo fato de os
conflitos psíquicos poderem ser compreendidos como expressões de contradições no
interior dos processos de socialização e individuação. Eles são as marcas das
contradições imanentes à vida social. (19)

um Estado total “qualitativo”, como dirá Schmitt. Nesse caso, um Estado capaz
de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para intervir politicamente na luta de
classes, eliminar as forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus
pretensos entraves sociais. (22) –{dissolução dos laços sociais}

os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos


maximizadores de interesses individuais, permanecia comoa estrutura da vida social e
dos modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra
tendências contrárias. (22)

isso nunca funcionaria se não houvesse outra dimensão dos processos de


intervenção social. Dimensão na qual podemos encontrar um profundo trabalho de
design psicológico, ou seja, de internalização de predisposições psicológicas visando à
produção de um tipo de relação a si, aos outros e ao mundo guiadaatravés da
generalização de princípios empresariais de performance, de investimento, de
rentabilidade, de posicionamento, para todos os meandros da vida? Dessa forma, a
empresa poderia nascer no coração e na mente dos indivíduos. (23)

Esse ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da estratégia


neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no modelo da
empresa” (FoucauLr, 2010,p. 222),0 que permitiu à lógica mercantil, entre outras
coisas, ser usada comotribunal econômico contra o poder público. Pois é fundamental
ao neoliberalismo “a extensão e disseminação dos valores do mercado à política
social e a todas as instituições” (Brown, 2007, p. 50). Como sabemos, a generalização
da forma-empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se
autocompreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de
suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno de “capitais”?! e que
compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a
produção de “inteligência emocional”? e otimização de suas competências afetivas. Ela
permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” (DarDoT; Lavaz, 2010, p. 440),
fundamento normativo para a internalização de... (23)

... um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação constante de si a partir


de critérios derivados do mundo da administração de empresas. Essa retradução total
das dimensões gerais das relações inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de
análise econômica baseada no “cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma
novainterface entre governo e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais
enraizados psiquicamente. (24)

Essa “humanização” da empresa capitalista, responsável pela criação de uma


zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção terapêutica, com
um vocabulário entre a administração e a psicologia, permitiu uma mobilização afetiva
no interior do mundo do trabalho que levou à “fusão progressiva dos repertórios do
mercado com as linguagens do eu” (ILtouz, 2011, p. 154). As relações de trabalho
foram “psicologizadas” para serem mais bem geridas, até chegar ao ponto em que as
próprias técnicas clínicas de intervenção terapêutica começaram por obedecer, de
formacada vez mais evidente, a padrões de avaliação e de gerenciamento de
conflitos vindos do universo da administração de empresas .” As técnicas de steps,
de foco, de gerenciamento de “capital humano”, de “inteligência emocional”, de
otimização de performance que tinham sido criadas nas salas de recursos humanos
das grandes empresas agora faziam parte dos divás e consultórios. Nem todos
tinham percebido, mas não estávamos apenas falando como empresários de nós
mesmos. Estávamos transformando tal forma de organização social em
fundamento para uma nova definição de normalidade psicológica. Nesse sentido,
tudo que fosse... (24)
... contraditório em relação a tal ordem só poderia ser a expressão de alguma forma de
patologia. Patologizar a crítica era simplesmente mais um passo. (25)

A competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de


relação fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento
da capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição
alguma (pois baseada na flexibilização contínua de normas, nos usos de toda forma de
suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos desfavorecidos, na destruição
ambiental e no objetivo monopolistafinal. Essa violência pede uma justificação política,
ela precisa se consolidar em uma vida social na qual toda figura da solidariedade
genérica seja destruída, na qual o medo do outro como invasor potencial seja elevado a
afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra. (25)

os regimes de gestão social implicou a reconfiguração completa do que


poderíamos chamar de “gramática do sofrimento psíquico”. Pois, para serem realmente
internalizadas, tais disposições de conduta não deveriam ser apenas ideais normativos.
Elas deveriam também reconfigurar nossa forma de compreender e classificar os
processos de sofrimento. Não basta gerir o centro, há de se saber gerir as margens,
configurar as formas possíveis do afastamento da norma. (25)

determinar a configuração de seus agentes racionais, definindo com isso um


conjunto de comportamentos, modos de avaliação e justificativas a serem internalizados
pelos agentes que se queiram reconhecidos, tais modelos não podem ser abstraídos da
força de produção de uma psicologia que lhe seja própria, quer dizer, de uma figura
antropológica, fortemente reguladora,a ser partilhada por todos os indivíduos que
aspiram a ser socialmente reconhecidos. Tais modelos definem padrões de
individuação a partir da racionalidade que eles procuram realizar. No interior de
tais padrões encontramos sistemas profundamente normativos de disposição de
conduta, de produção de afetos e de determinação das formas de sofrimento. Nesse
sentido, podemos dizer que modelos socioeconômicos são modelos de governo e
gestão social de subjetividades, por isso, não podem ser compreendidos sem sua
capacidade de instauração de comportamentos e modos subjetivos de
autorregulação. Eles não podem ser elucidados sem a gestão de uma psicologia que
lhes é inerente..
Isso significa dizer que não se sofre da mesma forma dentro e fora do
neoliberalismo. Essa modificação implica a eliminação de dimensões dinâmicas da
doença. Pois o sofrimento psíquico guarda uma dimensão de expressão de recusa e de
revolta contra o sistema social de normas.” Uma revolta que se expressa nas três
dimensões do que entendemos comumente por forma de vida, a saber, o desejo, a
linguagem e o trabalho. (26)

A disciplina social neoliberal deve anular tal dimensão de revolta que se exprime
no sofrimento psíquico. Por isso, ela deve reconstruir completamente o que podemos
chamar de “gramática social do sofrimento”. Não poracaso,a ascensão do
neoliberalismo nos anos 1970 é seguida por uma modificação brutal das formas de
descrição e categorização do sofrimento psíquico. Essa modificação consolida-se... (26)
... através do advento da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-III), no final dos anos 1970: manual de psiquiatria que
representa uma ruptura profunda com uma gramática social do sofrimento que, até
então, dava paulatinamente espaço à consciência da dimensão conflitual dos processos
de socialização próprios à sociedade capitalista. (27)
*******

“descrição redentora” do desenvolvimento das ciências em geral e da psiquiatria


em particular. Tais descrições passam, inicialmente, pela defesa de alguma forma de
“salto tecnológico” que teria impulsionado modificações decisivas no campo de uma
ciência determinada. Modificações essas que colocariam tais saberes em um processo de
ajuste especular ao mundo, ou seja, de aproximação realista ao mundo fora de nós.
Como se o destino das ciências fosse serem verdadeiros espelhos da natureza. No caso
da psiquiatria e das clínicas do sofrimento psíquico, tal salto tecnológico teria sido dado
pelo desenvolvimento da farmacologia, a partir, principalmente, dos anos 1950. (27)

devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas


de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras, então é
o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso horizonte de cura
não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual modalidades de orientação
clínica são compreendidas no interior de sistemas de influência compostos por discursos
de forte teor normativo advindos de campos exteriores a práticas terapêuticas, como a
cultura, a moral, a estética, a política e a racionalidade econômica. (27)
Isso traria como consequência, entre outras, a compreensão de que categorias
clínicas não são “tipos naturais” (natural kinds), mas tecnologias de intervenção na
estrutura psíquica a partir de valores. Ouseja, a configuração e o limite de uma categoria
clínica não é resultado da identificação de predicados diferenciais naturais acessíveis em
um campo independente da estruturação de nossa linguagem. Na verdade, eles resultam
das tecnologias que temos para produzir modificações na estrutura psíquica a partir de
valores que procuramos implementar. Categorias clínicas não são estruturas descritivas,
mas processos performativos..
Essa é a consequência de aceitarmos a produtividade de perspectivas
caracterizadas como “nominalistas dinâmicas”, ou seja, fundadas na defesa de o campo
de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico ser animado pela instauração de
categorias classificatórias com força performativa capaz de organizar retroativamente
fenômenos no interior de quadros descritivos (...). Ela cria performativamente uma nova
situação na qual sujeitos se veem inseridos.”“Fato compreensivo se aceitarmos que
categorias clínicas ligadas à descrição do sofrimento psíquico são objeto de elaboração
reflexiva e discursiva por parte dos próprios sujeitos que elas visam descrever. Tal
reflexão é capaz de produzir um nível significativo de reorientação de ações e condutas,
sejam elas conscientes, sejam involuntárias. Nesse sentido, classificações de sofrimento
psíquico não são “espécies indiferentes”, como são aquelas usadas para descrever
fenômenos do mundo físico, mas “espécies... (28)
... interativas”, ou seja, há uma interação entre categorias e objetos através da
apropriação autorreflexiva e da posterior modificação dos objetos. Por fim, como o
fundamento atual da nossa tecnologia de intervenção clínica é farmacológica, a
configuração das categorias tenderá a ter a conformação do espectro de atuação do
fármaco em questão. (29)
Pois se aceitarmos que a vida psíquica é na verdade um setor da vida social, com
suas dinâmicas de internalização de normas, ideais e de princípios de autoridade, por
que não se perguntar como tais processos... (29)
... sociais nos fazem sofrer, comoeles podem estar na base das reações que irão levar
sujeitos a hospitais psiquiátricos e consultórios? (30)
A liberação da loucura de formas de internamento e intervenção disciplinar é
figura maior de uma sociedade não mais comprometida com os padrões regulares de
reprodução material da vida..
O segundo fenômeno que ocorrerá no campoda clínica até o início dos anos
1980 será a prevalência da psicanálise como horizonte fundamental de referência
clínica, inclusive para a psiquiatria. A noção psicanalítica do sofrimento psíquico
comoexpressão de sistemas de conflitos e de contradições nos processos de socialização
e de individuação, conflitos esses que mostravam muitas vezes a natureza contraditória,
problemática e traumática de nossas ... (30)
... próprias instituições e estruturas (como a família, o casamento, o mundo do trabalho,
a escola, a igreja, a sexualidade), foi um elemento decisivo não apenas para
compreender o que era o sofrimento psíquico, mas também para mobilizar certo
horizonte crítico a respeito dos custos de nosso processo civilizacional, dos problemas
imanentes a nossas formas de vida na sociedade capitalista.
Normalmente, a justificativa oficial das modificações produzidas a partir do
DSM-III tem a forma da produção de um mero quadro classificatório dotado de
neutralidade axiológica. Certo conflito de interpretações reinaria no campo do
diagnóstico do sofrimento psíquico até então. Daí a dificuldade em ter um quadro
unificado que permitiria chegarmos às mesmas conclusões diagnósticas. Nesse sentido,
o melhor seria eliminar toda reflexão ctiológica em prol de descrições sindrômicas
convergentes.” Na verdade, podemos dizer que a “neutralidade” do DSM-III procurava
realizar três ambições: “ultrapassar as clivagens ideológicas através da ciência, colocar
entre parênteses a questão etiológica para se concentrar em descrições clínicas, reformar
o vocabulário diagnóstico evitando ao máximoas inferências” (DEMAZEUX, 2013, p.
156). (31)
Essas modificações estruturais, no entanto,estão longe de ser neutras emrelação
a valores. (32)
Não é difícil perceber qual “liberdade” aparece aqui como horizonte regulador e
disciplinar. Mesmo que tal definição não apareça mais no DSM-V, ela continua
pressuposta quando o transtorno mental é caracterizado como síndrome responsável por
distúrbios clinicamente significativos na cognição individual, na regulação emocional e
no comportamento e que refletiria disfuncionamento em processos biológicos,
psicológicos ou de desenvolvimento. Pois devemos nos perguntar sobre a natureza
disciplinar de uma “liberdade” que pressupõe padrões clinicamente observáveis de
regulação emocional, de cognição e de desenvolvimento. (32)
Tal dissociação entre depressão e o quadro das neuroses, com sua herança
psicanalítica, não é um mero ajuste nosográfico ocorrido, por coincidência, exatamente
no momento de imposição da guinada neoliberal nos países capitalistas centrais. Na
verdade, a neurose e a depressão são modelos radicalmente distintos de patologias. Uma
ocupa o lugar da outra. Como viu claramente Alain Ehrenberg (2000), a depressão só
pode aparecer como problema central no momento em que o modelo disciplinar de
gestão de condutas cede lugar a normas que incitam cada um à iniciativa pessoal, à
obrigação de ser si mesmo. Pois contrariamente ao modelo freudiano das neuroses, em
que o sofrimento psíquico gira em torno das consequências de internalização de uma lei
que socializa o desejo, organizando a conduta a partir da polaridade conflitual
permitido/proibido, na depressão tal socialização organizaria a conduta a partir de uma
polaridade muito mais complexa e flexível, a saber, a polaridade possível/impossível.”
A proibição moral advinda das exigências normativas de socialização dá lugar a uma
situação de flexibilização das leis, de gestão da anomia que coloca as ações não mais
sob o crivo da permissão social, mas sob o crivo individual do desempenho,da
performance, da força relativa à capacidade de sustentar demandas de satisfação
irrestrita. Assim, o indivíduo é confrontado a uma patologia da insuficiência e da
disfuncionalidade da ação, em vez de uma doença da proibição e da lei. Se a neurose é
um drama da culpabilidade, drama ligado ao conflito perpétuo entre duas normas de
vida, drama que só pode ser tratado através da compreensão das contradições imanentes
ao funcionamento “normal” da lei, a depressão aparece como tragédia implosiva da
insuficiência e da inibição. (34)
Não há intervenção clínica na neurose sem o desvelamento daquilo que
psicanalistas como Jacques Lacan chamaram de “falta no Outro”, outra forma de dizer
que o conflito neurótico só pode ser superado à condição de que a inadaptação à norma
não seja sentida como inadequação do sujeito, mas como impossibilidade da própria
estrutura institucional em dar conta da natureza singular do desejo. Nada disso está
presente no horizonte clínico da depressão. A implosão das neuroses implica também
perda de visibilidade e de espaço de intervenção analítica na modificação de modos de
participação e de adesão social como condição para a cura. (35)
a patologia não era uma ordem outra em relação à normalidade. Ela era
umafixação ou regressão dentro de um processo comum. Por isso, a doença dizia
sempre algo a respeito da normalidade, ela deixava visíveis processos que na
normalidade ficavam relativamente escondidos. Havia certa proximidade entre os dois,
um terreno movediço.” Essa solidariedade relativa entre normalidade e patologia
desaparecerá com a hegemonia da esquizofrenia, que agora representa praticamente
todo o espectro do que entendíamos por psicoses. Pois, nesse caso, a distinção é
funcional. Há um princípio de unidade das condutas, de organização da experiência e de
síntese que não está presente. (35)
Em uma situação social no qual todos os setores da vida são indexados a partir
de umavisão unitária baseada na generalização da racionalidade econômica, na
generalização de uma mesma gramática da experiência para todas as esferas da ação
humana, o quadro clínico fundamental para a definição do sofrimento psíquico não
poderia ser outro além exatamente da perda da capacidade de organizar as dimensões da
vida a partir de um princípio geral de unidade, de coerência e de síntese. As formas de
sofrer aparecem como impossibilidades de operar uma reconversão geral da vida a partir
da abstração geral da unidade e da síntese, abstração essa que será agora vista como
“liberdade”. Dessa forma, o neoliberalismo nos levou a sofrer de outra forma,
procurando retirar de nosso sofrimento psíquico a consciência potencial da violência
social. (36)

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

A hipertrofia da ação individual chega a seu ponto máximo na doutrina


neoliberal, cuja expressão mais significativa é o conceito de “capital humano”,
associado principalmente ao nome de Gary Becker, da Escola de Chicago. Esse conceito
implica uma relação a si mesmo marcada pela exigência de autovalorização constante,
mediada pela lógica da mercadoria. Num quadro de extrema heteronomia, os indivíduos
são alçados a agentes autônomos, capazes de agir livremente para satisfazer seus
interesses. Sendo cada um convertido em “capital”, os sujeitos passam a se compreender
como empresas submetidas à insegurança típica da dinâmica dos mercados. Em uma
sociedade competitiva, os indivíduos comparam e hierarquizam constantemente coisas e
pessoas, sendo eles mesmos passíveis de (des)classificação a todo momento. (40)

é o próprio indivíduo que passa a exigir de si mesmo ser um empreendedor bem-


sucedido, buscando “otimizar” o potencial de todos os seus atributos capazes de ser
“valorizados”, tais como imaginação, motivação, autonomia, responsabilidade. Essa
subjetividade ilusoriamente inflada provoca inevitavelmente, no momento de seu
absoluto esvaziamento, frustração, angústia associada ao fracasso e autoculpabilização;
a patologia típica nesse contexto é a depressão. (40)

é importante sublinhar que a concepção de sujeito neoliberal guarda elementos


de contradição, inflexão e ambivalência, sendo impossível traçar uma linha evolutiva
contínua, sem quebras, de seu desenvolvimento. Na medida em que seus teóricos
preconizam o mundo como um grande mercado, onde sujeitos racionais agem
livremente em busca de satisfação, essa suposta ação espontânea corresponde sempre à
lógica da valorização do capital, do qual cada sujeito é portador. Dessa forma, a “razão
humana”, que caracteriza esse agir, é concebida como a razão dos mercados, sendo o
capitalismo o resultado natural desse agir espontâneo. No entanto, essa exaltação da
liberdade humana corre em paralelo com a elaboração de modos de controle cada vez
mais sofisticados. Sob o neoliberalismo, a coerção é internalizada, de modo queos
sujeitos se autorreificam sob a égide da lógica da mercadoria. Essa forma de
autogoverno é, comodiz Ehrenberg, a mais efetiva, pois “só são eficazes os sistemas de
governo que nos ordenam ser nós mesmos, saber empregar nossas próprias
competências, nossa própria inteligência, ser capazes de autocontrole. A gestão pós-
disciplinar é uma tentativa de forjar uma mentalidade de massa que economiza ao
máximo o recurso às técnicas coercivas tradicionais” (EHRENBERG, 2010, p. 89)..

Essa “gestão pós-disciplinar” (similar à “sociedade de controle” descrita por


Deleuze) sucede o regime disciplinar em sentido estrito, associado por Foucault ao
panóptico idealizado por Jeremy Bentham, cujo utilitarismo é um dos antecedentes
teóricos do neoliberalismo. (41)

concepção de sujeito presente nessas teorias [capitalistas e neoliberais],


articulada a uma visão moral sobre a inserção do sujeito no mercado, que antecipa em
certa medida a emergência do neoliberalismo como psicologia moral. (42)

Poderíamos abordar uma genealogia do sujeito neoliberal através dos


desdobramentos da concepção liberal de liberdade como “propriedade de si”
(selfownership) que aparece pelas mãos dos Levellers no interior da efervescência
política da Inglaterra do século XVII e alcança rapidamente sua formulação liberal com
John Locke. No entanto, este artigo se dedicará à exploração de outravia,a saber, a que
parte da constituição de uma espécie de “duplo empírico-transcendental” através dos
desdobramentos da articulação econômico-psicológica do conceito de “interesse”. (42)

********

Em A riqueza das nações, de 1776, Smith (1981, p. 26-27) afirma que as


relações sociais baseadas no interesse constituem vínculos mais efetivos do que
qualquer outro princípio: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do
padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm por seu próprio
interesse”. Assim, os seres humanos tendem naturalmente à troca, porque o que os move
é a vantagem individual, e não um sentimento abstrato de humanidade que busca
promover a felicidade alheia. De maneira geral, o mercado é concebido como o espaço
de realização possível do bem-estar pela via da acumulação crescente de riqueza e da
satisfação individual. (43)
Para Mandeville e Smith, cada indivíduo busca seu interesse pessoal, e a
conciliação social dos distintos interesses dá-se a posteriori. A conexão entre o
individual e o coletivo tem um caráter não planejado, involuntário, de modo que cada
um “é levado [...] a promover um objetivo que não fazia parte de sua intenção” (SmrrH,
1981, p. 456). Essas ideias ganham substância mais tarde, com o advento da teoria
utilitarista na passagem doséculo XVIII para o século XIX. No lugar das relações
sociais definidas pela lealdade, o utilitarismo de Bentham e John Stuart Mill dá lugar
central à noção de utilidade. Trata-se do princípio da maximização do prazer ou,
simetricamente, da minimização da dor nas ações humanas. (43)

O ustilitarismo representa o ideário da burguesia urbana ascendente na


Inglaterra e “proporcionou o mais cortante dos machados radicais com que se poderia
derrubaras instituições tradicionais que não sabiam responder às triunfantes perguntas:
É racional? É útil? Contribui para a maior felicidade do maior número de pessoas?”
(HoBssawm, 2010, p. 373). (44)

a crise econômica das décadas de 1830 e 1840 e o aumento exponencial do


número de miseráveis na Inglaterra mostraram quea utilidade não era um vínculo social
tão permanente e confiável para a ampla maioria da população inglesa. (44)

A carência e a dor são, segundo a doutrina utilitarista, excelentes motivospara


agir. A constante vigilância significa, no contexto da fábrica ou da prisão, a ameaça
constante de penalidade em um eventual desvio. Comojá foi dito anteriormente, para
Bentham o homem, segundo sua natureza, é governado por dois mestres: a dor e o
prazer: (46)

Além de expressar uma nova ordem social, o utilitarismo forneceu alternativas,


tanto teóricas como práticas, a umasituação de crise que se manifestava no aumento da
miséria na primeira metade do século XIX. (...)assim como no utilitarismo, de uma
concepção dos processos econômicos centrada no indivíduo, e não nos processos
objetivos do capital: o que prevalece é a busca individual pela maximização de seu bem-
estar. (48)

Aquilo que é preconizado como liberdade de escolha revela-se, portanto, como


coerção a certa conduta, condizente aos princípios da ação de valorização do capital. Eis
o pressuposto para a harmonia entre indivíduo e sociedade, agente e mercado. À
diferença do utilitarismo, o marginalismo introduza ideia de que os mercados tendem a
umasituação de equilíbrio, total ou parcial. (...)a concorrência perfeita supõe informação
perfeita e livre iniciativa, condições que conduziriam ao equilíbrio. (52)

Em meio ao clima de reconstrução que se seguiu ao desastre da Segunda Guerra


Mundial, Mises publica, em 1949, a Ação humana, em que procura desenvolver uma
ciência geral da ação humana, designada como praxeologia. As premissas fundamentais
dessa nova disciplina podem ser resumidas nas seguintes sentenças: todo indivíduo, por
estar vivo, não está plenamente satisfeito, e sempre age para buscar maior conforto; a
busca desse conforto é a busca pela felicidade; quanto mais se satisfaz, mais o indivíduo
se torna feliz. Toda ação exprimiria a vontade do indivíduo e a forma como ele busca
diminuir seu desconforto. A busca pela felicidade funde-se com a ideia
mercadológica de demanda, de modo que os afetos humanos passam a ser
reduzidos a motivações para investir, comprar e vender. Quese veja, por exemplo, a
maneira como as ideias de satisfação e desconforto entram em simbiose com as noções
de lucro e prejuízo (55)

A razão humana e a razão do mercado são uma e a mesma, sendo, portanto,


o mercado um resultado necessário de toda ação humana. (56)

A lógica, por sua vez,é correlata à própria lógica do capital (57)


Mises cria seu mito fundador da economia de mercado: justamente porque há
um paralelismo entre a razão humanaea razão do mercado é que o surgimento do
capitalismo se terá dado a partir de “umasérie de pacificas mudanças graduais” (57)

Depois da Grande Depressão do início dos anos 1930 e diante do aumento da


influência de doutrinas intervencionistas do Estado, alguns autores buscaram elaborar
teorias que recolocassem a liberdade econômica no centro do sistema. Bem entendida,
essa liberdade individual só seria possível em uma situação de livre-concorrência. Esse
foi o argumento central de Hayek, por exemplo. Também aparece naquilo que Milton
Friedman (1985, p. 182) diz ser “uma das mais poderosas e mais criativas forças
conhecidas pelo homem — a tentativa de milhões de indivíduos de defender seus
interesses, de viver suas vidas de acordo com seus próprios valores”. Tratava-se,
sobretudo, de dar uma resposta alternativa à crise de amplas dimensões que se instalava
na Europa, uma resposta que não recaísse na ampliação do controle estatal. Para esses
pensadores, a “única saída” seria o neoliberalismo. Assim, quando o termo
“neoliberalismo” surge no Colóquio Walter Lippmann,realizado em Paris, no ano
1938,ele simboliza o esforço para restaurar certas bases teóricas do liberalismo, num
contexto em que este havia perdido a hegemonia. Esse ideário, tão múltiplo em suas
formulações quanto em suas práticas, desenvolve-se nas décadas seguintes em think
tanks com apoio maciço de corporações. Seu principal polo de organização,a partir de
1947, é a Sociedade MontPélerin. (58)
Foucault (2004) dedica seu curso de 1978-1979 no Collêge de France ao
neoliberalismo, apresentado como uma forma específica de governamentalidade, na
qual a economia se converte em um modo de gestão de si e dos outros. Como modo de
gestão de si, o neoliberalismo pressupõe um sujeito que age em conformidade com a
lógica capitalista, movido pelo interesse, pela utilidade, pela satisfação, que se
traduzem nas formulações teóricas em termos matemáticos. Como modo de gestão
dos outros, o neoliberalismo pressupõe um modelo de interação social baseado na
dinâmica do mercado. Operando de maneira espontânea, o mercado tende a confluir
para situações de equilíbrio. Tanto a gestão de si como a gestão dos outros, por
conseguinte, subordinam-se à lógica da exaltação do valor. Depois de esvaziar a
vontade humana de tudo que não esteja em consonância com os ditames do mercado,o
neoliberalismo a desloca para o centro de seu funcionamento. A tão louvada
autonomia dos indivíduos se revela logo como absoluta heteronomia. (59)
O fato de que hoje o neoliberalismo constitui a mentalidade hegemônica não é
resultado da força de suas ideias ou da mera militância intelectual de seus
representantes. Afinal, foi somente na década de 1970 que a doutrina foi celebrada
enquanto teoria e aplicada. Friedman, em prefácio escrito em 1982, lamenta que sua
obra Capitalismo e liberdade, publicada 20 anos antes, tenha demorado tanto tempo para
ser “devidamente” reconhecida. (62)
a angústia derivada da indeterminação na qual os indivíduos, impotentes, veem-
se inseridos sob a ordem capitalista pode levá-los a aderir de modo irrefletido a ideias
que exaltam seu poder de ação, sua capacidade de empreendere ser bem-sucedido. (63)
Alcançar o consentimento necessário para as grandes transformações em curso,
revertendo estruturas de proteção e direitos sociais, depende do convencimento,
apoiado, entre outros ivamente para a vitória elementos, em formulações teóricas. Estas
são fundamentais para a legitimação de uma nova ordem e, por consequência, para o
exercício do poder. Sob o neoliberalismo, a ordem do mercado aparece para o sujeito
como o palco da realização de uma série de valores, sob a condição de que ele participe
do jogo da concorrência e otimize suas capacidades competitivas. Assim, “a
interiorização de normas de performance, a autovigilância constante para se conformar
aos indicadores, a competição com os outros são os ingredientes dessa 'revolução de
mentalidade” que os “modernizadores” querem operar” (DarDOT; LAvaL, 2010, p.
398). Embora essa nova mentalidade resulte em sofrimento para os sujeitos, carregados
de expectativas, descolados de suas condições objetivas e totalmente responsabilizados
por seus fracassos, ela é capaz de mobilizar afetos e ganhar adesão social. (64)
as diversas experiências de implementação neoliberal em contextos sociais e
políticos os mais distintos têm revelado a plasticidade e flexibilidade da própria
racionalidade neoliberal. Por isso, em vez de “o neoliberalismo”, talvez seja mais
preciso falarmos de ncoliberalismos, com ênfase no plural, ou de neoliberalismo híbrido
(ONG, 2006). (65)
Em meioà crise social profunda, o neoliberalismo ganhou prestígio e se tornou
hegemônico. Seu ideário de liberdade exibiu as entranhas apenas quandofoi colocado
em prática (...)Desde seu primeiro “laboratório”, o Chile, o neoliberalismo mostrou-se
uma doutrina autoritária, ainda que seu arsenal teórico nem sempre revele isso de
maneira explícita. (65)

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

Considerar o neoliberalismo sob o prisma de uma episteme, no sentido


foucaultiano presente na História da sexualidade (FOUCAULT, 1988), implica supor
que, mais do que mera teoria econômica, este funcione como uma matriz de produção
de discursos que atravessa diferentes dimensões da cultura. (69)
De fato, a relação entre processos de neoliberalização e constituição da
subjetividade tem sido um dos principais aspectos investigados no campo de estudos
acerca do neoliberalismo. (70)
seguindo a senda aberta por Foucault (2008), autores como Rose (1999),
Lemke (2001), Brown (2003) e Dardot e Laval (2016) exploraram como o
neoliberalismo constitui a maneira como sentimos, pensamos e desejamos.
Numaatitude que se nos afigura inspiradora e central, informada pelas reflexões
psicanalíticas e sociológicas, estes últimos buscaram caracterizar osvários traços do
novo modelo de sujeito inaugurado pelo neoliberalismo, diferente do modelo do sujeito
produtivo fordista ou do sujeito do cálculo felicífico benthamiano (70)
modelo de sujeito pressuposto pelos grandes expoentes da doutrina neoliberal.
Isso nos parece fundamental não apenas porque vemos grandes diferenças entre suas
respectivas teorias, o que nos faz indagar se, a despeito das divergências, haveria certa
unidade no diz respeito a uma concepção de sujeito (70)
Como, então, abordar aquela que seria a orientação psicológica comum entre
eles sem recair, ingenuamente, seja em um apagamento da dimensão moral e ideológica
de seus epistemólogos mais consistentes, seja na teoria do sujeito subjacente e implícita
de seus ideólogos francamente inconsistentes? Quais os significantes em comum que
poderiam funcionar como pivô de uma análise de conjunto? A despeito de todas as
suas diferenças, pouco a pouco uma noção parece se sobressair, dado que não apenas foi
discutida por diferentes autores neoliberais como também se mostrou central tanto em
seus horizontes político-econômicos quanto em suas teorias psicológicas: a noção de
liberdade. (71)
Trata-se, por um lado, de uma noção absolutamente central na ideologia
propagandística do neoliberalismo, especialmente quando se considera que o
pensamento neoliberal foi cunhado, em grande parte, num movimento de oposição a
defesas de planificação econômica. (72)
Além de operar entre esses extremos, a discussão em torno da noção de
liberdade entre os expoentes em questão do neoliberalismo suscita a análise de um
campo de forças antagônicas entre os dispositivos coercitivos e os abstencionistas que
regem o liame do sujeito com a sociedade. (73)

intromissão no contorno da esfera individual é considerada lesiva. Assim, o


caráter negativo da liberdade em tela parece demandar não só a exiguidade do Estado,
como também a repulsa a qualquer interação social que esbarre na fronteira
individualizada. Se, por um lado, a diretriz que rejeita a imposição de normas aos
cidadãos oferece um escudo ao indivíduo em face de umaeventual tirania estatal, por
outro, dissemina uma lógica de mercado hostil em que cada indivíduo recolhe-se no
governo desi e consideraa alteridade do outro como oponente, Ora,fica assim claro que
na noção neoliberal de autonomia, que se concretiza no conceito de liberdade
negativa, está implícito um modelo preciso de sujeito, a saber, aquele de um indivíduo
independente dos outros, não submetido a norma alguma e, como tal, sempre pensado
em uma relação de exclusão mútua com o outro. (74)

O conceito de liberdade positiva, por sua vez, supõe um sujeito que se entende
limitado por regras que ele deve escolher a partir do reconhecimento de que se insere
em uma estrutura social organizada por relações de interdependência. Se, no primeiro
caso,liberdade e norma se excluem, no segundo elas se constituem mutuamente.
Podemos, título ilustrativo desses dois modelos de liberdade, buscar uma tradução
psicanalítica da noção de sujeito implícita em cada uma dessas compreensões de
liberdade, e assim propor um exemplo da função dessa noção na operação de leitura
implícita na extração das matrizes psicológicas no pensamento neoliberal. Na liberdade
positiva, o sujeito livre não se reduz ao ego, na medida em que sua liberdade é
condicionada pela lei de interdição do incesto, que o limita e também o constitui como
sujeito autônomo. Estaríamos, nesse caso, mais próximos do modelo freudiano de
sujeito em sua segunda tópica, em que as instâncias do ego, do id e do superego são
codeterminadas, sendo, portanto, indissociáveis. Na noção de liberdade negativa, por
sua vez, o sujeito pareceter sido reduzido à instância egoica pensada comoentidade
última e soberana de si. (74)

Ora, encontramos algo não muito diferente no pensamento de Friedman. A


centralidade da ideia de maximização dos lucros mostra, em contrapartida, a
plasticidade da noção: uma vez que não se aplica somente a empresas, mas também a
indivíduos e a famílias, pode-se pensar que o termo “lucro” pode ser entendido de um
modo mais amplo, comoutilidade e/ou satisfação. Nesse sentido, a aplicação de uma
retórica “como se” enquanto solução à incapacidade de produção de um conhecimento
total evidencia a opção pelo privilégio de um traço psicológico sobre qualquer outro: a
busca pela maximização se sobrepõe a qualquer outro objetivo, de modo que os outros
podem ser desconsiderados sem trazer grandes prejuízos ao que esse pensamento
produz. Essa predominância traz consigo, entretanto, a necessidade de defesa de outro
ponto, como percebeu Hayek: justamente, a noção de liberdade. (90)

Assim, retomandoos pontos até aqui levantados, parece-nos possível


desenharcerta cartografia conceitual em que uma aparente constelação se desenha, mas
não necessariamente se sustenta. Vemos que existe uma profunda solidariedade entre
três pontos centrais: (1) maximização do lucro; (2) insuficiência de um conhecimento
total que permite construções “como se”; (3) a noção de liberdade. (90)
Em síntese, a teoria objetivista de Rand ordena moralmente a perseguição do
objetivo ligado à apropriação racional dos direitos naturais, experimentados, de vez em
vez, de escolha em escolha, como prêmios de reafirmação da vida, da liberdade, da
propriedade e da felicidade. Objetivo esse que se intromete na esfera subjetiva do
indivíduo em uma confluência entre o livre-mercado vitalista, a adaptação naturale a
finalidade das ações humanas. (98)

Ademais, se Becker declara que a economia é um método de abordar todo e


qualquer comportamento humano, temos de admitir que esse método vingou. Isto é, a
abordagem inventada pela economia cresceu em relação a outras abordagens
sociológicas e psicológicas, na cultura, nas ciências e na política, implicando uma
revolução epistemológica sem precedentes. Contudo, trata-se de um método que, ao se
definir como “escolha racional entre objetivos excludentes visando à maximização
de utilidades”, traz consigo um olhar sobre o humano que chama mais a atenção por
aquilo que ele exclui do que por aquilo pelo que ele se define... (108)
... Essa condição é evidente quando se reduz todo comportamento a um cômputo do
cálculo de utilidade.(109)

investigação que Freud ([1905] 2017) faz sobre o chiste, e que evidencia um
elemento retomado posteriormente por Lacan. Referimo-nos ao Lustgewinn, o excesso
não útil de prazer, o resto que comanda a lógica do chiste. Ora, a maximização da
utilidade não deixa restos, tampouco restos que conduzam de forma heterônoma o
sujeito. A magnitude desse resto inútil é feita central por Lacan (2008,p. 29-30), que
associa esse prazer excedente à mais-valia de Marx, formando o mais-de-gozar. Essa
construção lacaniana é central, pois, ao estabelecer uma homologia entre o mais-de-
gozar e a mais-valia, Lacan indica a conformação de um discurso que, diferentemente
da abordagem do comportamento humano de Becker, compreende exatamente à
estrutura do “em-nome-de” pelo qual se prefere e se escolhe. Vale dizer, esse
imperativo se reproduziria justamente porestar excluído da narrativa cada vez mais
totalizante da economia. (109)

Terceiro, retomemos a reflexão sobre o inegável interesse das posições teóricas


do neoliberalismo para a dissolução do poder disciplinar, reflexão feita por Michel
Foucault em O nascimento da biopolítica (FoucauLr, 2008). A faceta psicológica do
neoliberalismo interessa a Foucault na medida em que ela é incompatível com a
associação da função-psi — isto é, psiquiatra, e psicanalista — e as ferramentas que
essa função forneceu ao sistema disciplinar. (109)

tal como bem ilustra o filme Laranja mecânica, de Stanley Kubrick. A


consideração dos indivíduos como sendo sempre, a priori, maximizadores, livres e
responsáveis cognitivos por seus atos invalida a separação e a classificação entre
normais e anormais. A infração é de certo modo horizontalizada pela régua do cálculo,
régua essa pretensamente esvaziada de valores (110)

Trata-se, historicamente, de combater o Estado keynesiano e o solidarismo, em


prol de um capitalismo duro e livre de regras fundadas em princípios morais
incompatíveis com uma ideia de liberdade individual absolutizada. Trata-se, enfim, de
uma subversão silenciosa do poder disciplinar, (110)
Isolado de outros discursos, funcionando de modo exclusivo e excludente em
relação a estes, a “livre escolha entre as possibilidades existentes” só pode derivar em
uma forma peculiar de cinismo. Este é, contudo, um cinismo profundamente dócil e
passivo, contrariamente à faceta homogeneamente egoísta e ativa que o
homoececonomicus gosta de tomar como seu reflexo, ou à imagem de si
exclusivamente ativa promovida pela retórica do indivíduo-empresa, uma vez que uma
parcela importante desse conjunto de possibilidades existentes está, desde o início, fora
da discussão, a saber a possibilidade de ações sociais conjuntas. (110-11)

Claro está que, como dissemos, em suas propostas mais explícitas, a liberdade
em jogo nas teorias neoliberais é aquela da liberdade negativa. Sob o crivo da
competição flutuante, em que tudo o que não é iguala si mesmo representa uma ameaça
de submissão ou perda de valor, a redoma anticoerção do laissez-faire se apresenta
como a faceta única da liberdade. (111)

oximoro a mão invisível do mercado. Esse segundo polo funciona a um só


tempo como finalidade e como fundamento enigmático, uma determinação que regula
as trocas mútuas e, simultaneamente, não pensável enquanto determinação. Vemos
assim, nos autores examinados, que a significação da liberdade de agir com
independência absoluta de qualquer lei, ao ser pensada como o significado único da
liberdade, não chega a justificar a contradição de umalei sem lei: por um lado, uma vez
que se define pela independência de qualquerlei, essa liberdade não pode se
responsabilizar pela síntese de todas as diferenças individuais. Por outro, a visada
prática do neoliberalismo não pode renunciar à ideia de que o acordo final entre as
trocas é um elemento essencial nessas teorias. (111)

Como se houvesse uma paleta de matrizes psicológicas no pensamento


neoliberal, cujos matizes possam ser ativados de acordo com objetivos pontuais. (112)

Vê-se, portanto, que embora diversos pontos possam ser reconhecidos enquanto
contraditórios entre esses autores, certo acordo sub-reptício em torno de uma mesma
finalidade retórica parece alinhálos automaticamente, explicitando justamente a
clivagem que suas teorias tentam ofuscar. (...). E aí há algo que talvez seja uma linha
condutora dessas diversas propostas de teorias psicológicas e defesas da liberdade: por
trás de incontáveis argumentos que giram em torno da defesa da não intervenção e do
livre-mercado enquanto produtor de abertura a novas possibilidades, vê-se que essas
possibilidades reduzem, ao final, a maneiras de adequação aos novos imperativos do
capital. (113)

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXx
********

A atual absorção da psiquiatria pela racionalidade econômica está bem


documentada. Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em
2001, intitulado Saúde mental: nova concepção, nova esperança (WHO,2002), dedica
parte de seu conteúdo à defesa dos direitos humanos e as consequências deletérias do
estigma em saúde mental. (19)
ao longo do texto, a dimensão econômica vai ganhando progressivo destaque
frente à dimensão social. É assim que o principal argumento da OMS para justificar o
investimento em saúde mental passa a ser uma série de cálculos, um corolário de dados
quantitativos quedão corpo ao chamado burden (ônus/fardo) da saúde mental? (Rost,
2018; WHO,2002). Nesses números, a OMS compreende não somente as mortes
prematuras, mas também inferências sobre aquilo que o indivíduo deixa de produzir por
ser acometido pelo transtorno.” Essa inovação metodológica é uma passagem
importante, já que, em saúde mental, os transtornos não apenas impactam na expectativa
de vida, mas muitas vezes reduzem ou mesmo destituem as pessoas de sua capacidade
produtiva.
Essa alteração admirável da racionalidade psiquiátrica não pode ser
compreendida senão em íntima ligação com o desenvolvimento do neoliberalismo (120)
Uma primeira forma de estudar as relações entre a psiquiatria e o sistema
econômico parte da ideia de uma patogênese da cultura neoliberal enquanto tal. Assim,
fenômenos associados com o desenvolvimento do neoliberalismo, tais como a solidão
(Caciorro Cariranio; Caciorro, 2014), a dissolução dos limites entre vida doméstica e
trabalho, e o avanço da lógica da competição, superação e produtividade em todasas
esferas da vida (Fisttr, 2009; BErarDI, 2003; 2009; Marsazzi, 2012; Monmior, 2016;
Darvor; LavaL, 2017) estariam entre os grandes responsáveis pelas novas formas de
sofrimentopsíquico e a consequente necessidade de intervenção psiquiátrica. (120)
explorando as redes de financiamento e interesse que ligam instituições
psiquiátricas e setores do mercado, em especial a indústria farmacêutica, outra
abordagem mostra que a relação entre a economia neoliberal e a psiquiatria não é
apenas a de uma patogênese da economia sobre as pessoas, que, por sua vez, solicitaria
tratamentos da psiquiatria adequados a seu tempo. Nessa abordagem, fica claro que a
psiquiatria assume também a função de produção de patologiasa serviço do consumode
psicofármacos. Já há alguns anos, a bibliografia sobre o assunto acumula evidências
dessa relação e da maneira como os campos da pesquisa e da prática psiquiátricas se
retroalimentam, permeadas por essas pressões econômicas. (121)
Aprofundando eixos específicos dessa submissão da psiquiatria à
psicofarmacologia, outros autores dirão que não podemos entender o aumento do
número de transtornos mentais apenas como expressões da precarização social
generalizada. Temos de considerar também como,no neoliberalismo, há uma
reformulação da própria noção de transtorno mental que contribui para essa aparente
proliferação (SiLva JunIOR, 2016; Rose, 2018). Dito isso, identificamos diversas
estratégias que marcam o traço reformatório neoliberal frente à noção de transtorno
mental, tais como a amenização eufemista dos transtornos mentais para que os sujeitos
possam se vincular a eles sem estigma, o aumento exponencial de categorias
diagnósticas de maneira a patologizar diversas esferas da vida psíquica que antes não
mereciam diagnóstico” e, mais recentemente, a possibilidade de se pensar intervenções
psiquiátricas mesmo sem a referência a noção de transtorno, inaugurando na psiquiatria
o campo de práticas médicas de enhancement (Mossman, 2012; GuBert; WazLey; New,
2000; BuntON; PETERSEN, 1997). (122)
se pode argumentar que quando o neoliberalismo altera nossa relação com o
sofrimento psíquico, tal como ele o faz com os ideais, conforme demonstrado no
capítulo anterior, ele produz performaticamente novos sujeitos (SILVA Junior, 2016).
Assim, temos de compreender a psiquiatria hoje nessa nova produção de subjetividades,
na qual os indivíduos tomam si próprios como empresas a serem geridas. Esse é o
argumento deste livro: as formas de expressão e produção do sofrimento são implicadas
pela transformação dos próprios sujeitos realizada pelo neoliberalismo. Claro está que a
psiquiatria a um só tempo atuou como beneficiária dos sofrimentos gerados pela
reorganização neoliberal da sociedade e também os produziu, inaugurando uma nova
etapa em sua relação secular com a doença mental: não apenas descrever, compreender
e tratar os sofrimentos psíquicos, como também produzi-los para então tratá-los. Mas
pode-se dizer que, mesmo nesse caso, a psiquiatria continua a se organizar e se definir a
partir dos sofrimentose seus tratamentos. Ora, nas últimas duas décadas, pode-se dizer
que, aprofundandocada vez mais suas articulações com o neoliberalismo, a psiquiatria
se emancipou dessa definição de si própria baseada em sua relação com o sofrimento.
(122-23)
O enhancement seria a maximização de potencialidades das funções humanas
para uma melhorsatisfação de demandas sociais, sejam elas de cunhoestético, laboral ou
esportivo. Assim, o esforço curativo da medicina tende a ser superado por um novo
paradigma:aperformance(123)
Para chegar ao enhancement com plenos direitos e poderes, contudo, a
psiquiatria teve de passar por dois momentos anteriores que tivemos também detratar no
nosso texto. O primeiro deles é o do processo de biologização da psiquiatria. Veremos
como sujeito da psiquiatria biológica passa a ser entendido como autônomo em relação
ao contexto histórico e social que o circunda. Nesse domínio, exclui-se a possibilidade
de pensar a dimensão social como campo produtor de patologias psíquicas e, portanto,
de intervenção psiquiátrica. (124)
O norte das intervenções psiquiátricas não é mais o da adaptação do sujeito
desviante aos moldes sociais padronizados. Não há mais um conflito entre aspirações e
desejos pessoais e os imperativos sociais normativos, mas sim uma sinergia entre esses
vetores rumo a autorrealização, que faz coro a ordem econômica de produção. (124)
Com o lançamento de sua terceira edição, em 1980, o DSM irá marcar uma
transição das práticas psiquiátricas: substitui-se a pluralidade dos debates frente à
nosologia psiquiátrica vigente até então pela busca de um princípio nosológico
supostamente consensual (Corcos, 2011). Sendo um dos principais manuais da área,
tendo em vista a hegemonia da psiquiatria norte-americana entre outros ramos da
ciência médica, essa versão rejeitará claramente os conceitos teóricos psicodinâmicos,
até então presentes nas versões anteriores do mesmo manual. O DSM-III passaria a
divulgar, desde então, critérios diagnósticos de forte teor uniformizador, oriundos de
uma base de pesquisa biomédica e comportamental (Corcos, 2011; WaLLACE, 1994).
(126-27)
Desde sua terceira edição, o DSM abandonara o critério etiológico para a
definição dos transtornos mentais, propondo um diagnóstico pautado somente nos
sintomas. Ainda que existam diferenças entre as edições subsequentes do manual,
vemos que desde o DSM-II o enquadramento de um determinado quadro clínico em um
diagnóstico psiquiátrico segue o critério de preenchimento de uma checklist de
sintomasvariáveis para cada condição. (127)
Importante notar que, apesar da ausência de etiologia para a constituição dos
diagnósticos, havia uma aposta de que eles apresentavam um correlato biológico
identificável, e que, com os avanços técnicos da disciplina, ou de disciplinas correlatas,
como a neurologia, tais correlatos seriam encontrados.
Mas essa aposta não se confirmou. (128)
em 2008, o NIMH já havia traçado um plano estratégico em busca de novas
formas para estudar os transtornos mentais tendo como norte as dimensões tanto dos
comportamentos quanto das medidas neurobiológicas (Srovanov; Tertes-Correta;
CuTHBERT, 2019). (131)
o projeto descreve seis domínios principais do funcionamento humano, e dentro
de cada domínio há uma série de constructos que podem ser componentes
comportamentais, processos, mecanismos etc. Os domínios atuais são valência negativa
(inclui constructos como medo, ansiedade, perda), valência positiva (inclui resposta ao
reforço, saciação), cognição (inclui atenção, percepção, memória), processos sociais
(apego, comunicação social), sono-vigília e sensório-motor. Cada constructo pode ser
analisado dentro de várias “unidades de análise” (genética, molecular, comportamental,
psicométrica, entre outras). É possível entender esses domínios como analogias com os
sistemas funcionais do corpo, como o sistema digestório, excretoretc. (AkRAM;
GIORDANO, 2017). Noque diz respeito à clínica, embora esse projeto — que é ainda e
fundamentalmente uma orientação de pesquisa — não esteja próximo desse ponto,a
hipótese é de que as patologias poderão ser descritas como desequilíbrios no
funcionamento dediferentes partes dosvários sistemas. (132)
Isso implica que as avaliações em saúde mental se distanciam da busca por
índices explicitamente patológicos e se expandem para a mensuração do que seriam os
sistemas emotivos e cognitivos fundamentais humanos em toda sua amplitude. Assim,
constructos como “medo”, “autoconhecimento” e “controle cognitivo”, por exemplo,
seriam objetivados em medidas biológicas ou psicométricas e, por conseguinte,
poderiam vir a ter uso diagnóstico e preventivo. É possível imaginar, por exemplo, que
uma medida de “resposta inicial ao reforço” desregulada já poderia, em certas
circunstâncias, justificar o início de um tratamento psiquiátrico preventivo, antes mesmo
da aparição de qualquer sintoma.
Assim,a iniciativa RDoC tende a ser citada na literatura do campo psi (Rose,
2018), sobretudo da psiquiatria, como “revolucionária” (Axram; GIORDANO, 2017).
(133)
Essa aposta na possibilidade de identificar a base biológica para os transtornos
fica evidente ao constatarmos as numerosas pesquisas em busca das bases genéticas ou
cerebrais de quadros definidos pelo DSM (Rose, 2013). (134)
o que está efetivamente presente na postura metodológica e científica da
comunidade psiquiátrica hegemônica é uma hipótese, razoável, de que a covariação dos
sintomas clínicos e a relativa estercotipia do curso das doenças psiquiátricas indicariam
que os quadros teriam uma base biológica passível de determinação. O que ocorre
tacitamente, porém, é que tanto a comunidade científica como a sociedade civil passam
a operar com a crença de que transtornos mentais são transtornos fundamentalmente
biológicos e, assim, impossíveis de serem compreendidos por heurísticas pautadas em
um aporte histórico, sociológico, relacional etc. Como aponta Rose (2013), o biológico
acaba sendo, na psiquiatria, o refúgio do transcendental e, assim, campo privilegiado de
ocultamento das mediações sociais e políticas dos fenômenos psíquicos. (134)
Um exemplo bem ilustrativo desse processo pode ser visto na compreensão leiga
do autismo ao longo das décadas. Houve uma reação muito acalorada à compreensão
psicanalítica do autismo, como ocorreu, por exemplo, com o conceito de “mãe
geladeira”, de Kanner e Bettelheim, popularizado nos anos 1960, e a atribuição do
autismo à frieza das mães, fato que até hoje gera querelas e ressentimentos,
principalmente por parte dos familiares. O enraizamento do diagnóstico em questões
relacionais, familiares e da história pessoal da criança que a psicanálise fez foi visto
como umaafronta e uma acusação por esses pais. Ainda que possamos discutir o quanto
essa compreensão leiga da etiologia psicanalítica do autismo é apressada, o ponto
fundamental aqui é ver comoesses pais se mobilizaram,desde os anos 1990, em
associações que efetivamente financiavam pesquisas científicas na busca pelos
determinantes biológicos da doença e têm umaatividade importante de divulgação de
todo achado científico que aponte nessa direção (Rost, 2013, p. 302). Rose vê aí uma
manifestação localizada da essencialização e da desistoricização que o biologicismo na
psiquiatria promove, permitindo a abstração do psíquico de seus processos sociais e
históricos constitutivos. (134-35)
Também enxergamos esse movimento no fenômeno da desresponsabilização,
cada vez mais frequente na clínica. Os pacientes chegam ao consultório descrevendo a
si mesmos pelo diagnóstico psiquiátrico que receberam e entendendo sua “condição”
(como depressivo, bipolar, borderline etc.) como um fato isolado, sem qualquer relação
com sua vida, uma vez que, afinal de contas, trata-se não de um problema dele, mas de
processos orgânicos deficitários em seu cérebro (Siva Junior, 2016; VIDAL; ORTEGA,
2019; RosE, 2018; CARVALHOet al., 2020). Vemos nesses exemplos como categorias
em ciências humanas estão longe de ser meras descrições de um mundo real objetivo.
Elas têm um efeito performativo sobre os objetos que designam, criando roteiros
identificatórios para os sujeitos que ancoram sua autocompreensão e sua compreensão
do mundo nesses alicerces (FoucauLr, 2007; HackinG, 2006; Butter, 2018) (135)
com a psiquiatria biológica não podemos mais pensar, como fez Freud, o
sofrimento psíquico no conflito entre as exigências sociais de uma sociedade e as
inclinações imorais do paciente, no atrito entre normas sociais hegemônicas e a
sexualidade disruptiva (FREUD, [1908] 2015). Com a biologização da psiquiatria, o
sofrimento psíquico é equalizado como um déficit biológico desvinculado do entorno
social. (135)
desarranjo orgânico é visto como objeto de correção objetiva sem maiores
compromissos políticos. Reificada no orgânico, a doença deixa de ser pensada como
fenômeno político comprometido com questões comoa da adequação às exigências
sociais que circundam o indivíduo. Em uma palavra: a disorder, em sua reificação
orgânica, toma como natural a order à qual faz oposição e, assim,retira a psiquiatria do
campo da política e do conflito. (136)
Há, porém, outra diferença fundamental entre a iniciativa RDoC e os manuais
DSM que abre portas para uma intensificação dos compromissos da psiquiatria
contemporânea com os imperativos do neoliberalismo, a saber, o modelo dimensional
do diagnóstico psiquiátrico, na medida em que este se organiza sobre bases diferentes
daquelas da experiência do sofrimento. (136)
como o pathos ganha uma nova condição com o neoliberalismo. Em uma
fórmula rápida: se o sofrimento noliberalismo e no capitalismo industrial de produção
era por privação, ou seja, dava-se no conflito entre as normas sociais vigentes e os
desejos impedidos do sujeito, o sofrimento no neoliberalismo e no capitalismo de
consumo pode ser melhor entendido na dinâmica do gozo, em que a questão não é a da
adequação a normas sociais postas, mas a da autossuperação dos limites do sujeito a
todo momento (SaraTLE, 2008). (138-39)
no campo do gozo, as definições do que seria uma vida melhor já não são
oriundas dos desequilíbrios internos de cada sujeito. Essas definições são marcadas por
dinâmicas e interesses que lhes escapam, mas que lhes chegam como ideais a serem
buscados. Ora, o conjunto desses ideais, tal como vimos no caso do ideal de liberdade
presente nas matrizes psicológicas do neoliberalismo, é definido segundo os interesses
econômicos da lógica neoliberal. Esse é o novo horizonte a partir do qual intervenções
médicas não mais focadas na noção de doençaretiram seu sentido. (139)
Existe hoje toda uma sorte de demandas em saúde que explicitam não uma
vontade do paciente em se livrar de uma doença devidamente classificada, mas sim de
uma insatisfação mais etérea com a própria existência, uma vontade de estar melhor.(...)
O tema da utilização de soluções médico-tecnológicas para a resolução de conflitos
dessa natureza e sua interface com a economia já foi trabalhada em relação às
modificações corporais.“ Seguindo esse primeiro trabalho, aqui, em relação ao
psiquismo, poderemostraçar uma linha entre terapêutica e enhancement. (139)
Apesar da crise em que se encontra a psiquiatria (CHesitr, 2016; Gorr, 2008),
sua refundamentação teórica mapeada durante as atualizações dos manuais tanto DSM
quanto CID permitiu que a psiquiatria se articulasse intimamente à indústria
farmacêutica e ao marketing (Sitva Junior, 2016). Tal alteração “coloca entre parênteses
a ideia mesma de “doenças, razão pela qual o termo foi substituído por aquele de
“transtornos, evitando assim a forte carga moral do primeiro” (Siva Junior, 2016, p.
232). A função do marketing seria facilitar a adoção social dos diagnósticos e, por meio
da banalização, da naturalização e da massiva divulgação destes nos núcleos médicos,
midiáticos e educacionais, atingir um público maior de consumidores, (140)
Desse modo, tal expansão do diagnóstico e da intervenção psicofarmacológica
sobre o sofrimento psíquico, que, como demonstrado,retirou do campo a
responsabilidade e a história do sujeito ao naturalizar o sofrimento como umadisfunção
orgânica, viabilizando para a “psiquiatria um salto para além das fronteiras da medicina
tradicional, a saber, um salto para a indústria do consumo, numa bemsucedida joint
venture acadêmico-empresarial” (Siva Junior, 2016, p. 232). O aumento exponencial de
diagnósticos e a flexibilidade de sua aplicação permite que a psiquiatria deixe os
manicômios e ganhe a cidade, em uma sociedade em que todos são pacientes
psiquiátricos (141)
Considerada a partir das mudanças sociais promovidas pelo neoliberalismo, essa
joint venture é homóloga ao novo estatuto dos pacientes da psiquiatria, que passam a
exercer a função de consumidores também em relação ao seu sofrimento. (141)
A eficácia dessa nova forma de divulgação psiquiátrica se expressa na
inquietante coincidência entre o aumento dos índices e das estimativas epidemiológicas
de transtornos psiquiátricos e as possibilidades de consumo de drogas psicoativas, o que
complexifica o entendimento da expansão dos diagnósticos psiquiátricos na sociedade.
De fato, uma dinâmica essencialmente mercantil passa a reger relações que até então
eram essencialmente da competência médica (142)
Podemos perceber nessa prática uma articulação indissociável, em seus
objetivos, dos ideais da subjetividade na narrativa neoliberal, particularmente em suas
bases concorrenciais e competitivas (147)
Sem a necessidade do médico para validar via diagnóstico o uso de uma
tecnologia de saúde, o indivíduo, antes paciente, é agora autônomo para identificar seu
sofrimento e as lacunas de sua vida a serem melhoradas para, através dessas
tecnologias, alcançar essa suposta melhor versão desi mesmo. (148)
Desde 1994, houve um aumento dos investimentos em pesquisa sobre
biomedicinae inteligência artificial no setor privado (InseL, 2017).
(...)
Um setor importante desses aplicativos se destina à administração e ao
acompanhamento de quadros previamente diagnosticados, como depressão e ansiedade,
Eles se baseiam nas técnicas da terapia cognitivocomportamental e oferecem atividades
para o usuário se autoavaliar, informações sobre tópicos relacionados à saúde,
ferramentas de aprendizagem com exercícios para o desenvolvimento de novos hábitos.
De modo geral, visam “transformar padrões de pensamento negativos, ensinar o usuário
a gerenciar sentimentos angustiantes e substituir os comportamentos inúteis (150)
((Apps de saúde mental))
Aqui se desnuda uma íntima relação entre economia e ciência, mais
especificamente, entre a psiquiatria com seus saberes e o neoliberalismo com sua lógica
de produção de tamponamentos para as fragilidades, inconsistências e precariedades
humanas segundoo critério da produtividade máxima a todo momento. Cabe perguntar
se, com essa nova configuração, estamos falando ainda da mesma dinâmica de exclusão
e adaptação que vimos no início da psiquiatria com a análise de Foucault. Existe algo
novo em jogo. Se antes a organização social se pautava na submissão dos indivíduos às
normas sociais postas e na consequente repressão dos desejos individuais que se
contrapunham a essa ordem (uma matriz libidinal freudiana), vemos agora em diversas
esferas da vida social um alinhamento total entre desejos individuais e a produção de
uma ordem social específica e de caráter duvidoso, em uma dinâmica na qual a
autorrealização dos sujeitos faz coro aos imperativos sistêmicos do neoliberalismo
(DaRrDOT; Lavar, 2017). (155)
as formas clássicas de pensar a transformação social como adequação da ordem
social aos anseios de reconhecimento dos indivíduos parecem estar em seu ocaso. O que
se nota é um movimento contrário, em que o indivíduo sofre um empuxo ao excesso,
em uma nova forma de exploração capitalista. Exploração que se dá não mais segundo o
paradigma da ideologia e da captura dos sujeitos pelo discurso e seus efeitos narcísicos,
mas segundo o paradigma do gozo. Esse movimento de expropriação do gozo pelo
capitalismo é levado aos seus estertores pelo enhancemente seus slogans, com impactos
tanto na esfera política e econômica quanto no sofrimento psíquico, em suma. Sobre
esse paradigmado gozo (155-56)
Se no capitalismo industrial e no liberalismo o modelo de sujeição era mais
claramente desenhado como uma oposição entre as dinâmicas institucionais e as
vontades do trabalhador, no neoliberalismo e no capitalismo de consumo temos
umasinergia entre esses dois vetores. (156)
Há uma passagem da ética da renúncia para uma ética do gozo e da performance
que faz com que os sujeitos vejam o trabalho como um espaço de autorrealização e
liberdade. (157)
a mudança descrita da medicina moderna para medicina contemporânea, a
diluição da noção de doença e a intensificação das práticas médicas de aprimoramento,
parecem obedecer à mesma estrutura que essa mudança vista no mundo empresarial.
Aqui não existe mais o braço de ferro entre norma e desvio, saúde doença, trabalho e
anseios pessoais etc. Há, antes, uma busca de performance e autossuperação através das
tecnologias disponíveis, em que podemosser sempre uma versão melhor de nós
mesmos: mais saudáveis, mais dispostos, mais inteligentes ou criativos. O enhancement
humano parece ser uma marca, presente na psiquiatria contemporânea, de sua íntima
relação com a lógica neoliberal de gestão do sofrimento, cujo denominador comum
entre os saberes psis e a prática neoliberal seria o processo de esvaziamento e de
dissolução dos conflitos. (157-58)
é possível depreender que não se trata, em tal política de dissolução dos
conflitos, somente de uma íntimarelação entre psiquiatria e neoliberalismo, mas
justamente da psiquiatria enquanto um campo de efetivação do projeto neoliberal. (...)as
modificações que a psiquiatria têm sofrido nas últimas décadas obedecem a uma dupla
inscrição da lógica neoliberal. Por um lado, vê-se que há uma correspondência naquilo
que poderia ser reconhecido enquanto dimensão valorativa da atuação social, em que é
delineado um horizonte cada vez mais calcado na valorização do caráter individual da
produtividade e num regime de compensação baseado na indiferenciação entre os
objetivos demandados dotrabalhador e aqueles que seriam por ele desejados. É isso que
foi possível demonstrar no direcionamento da psiquiatria a uma prática de
aperfeiçoamento e seu efeito de apagamento da dimensão conflitiva, uma vez que
realiza a efetiva adaptação do horizonte desejante da força de trabalho aos interesses dos
detentores dos meios de produção. Esse apagamento recobre a clivagem entre os
interesses das diferentes classes, comose ao fim fosse realmente possível tomar como
verdade que o sucesso dos proprietários dos meios de produção corresponderia ao bem
dos trabalhadores. (158)
naturalização dos pilares da ideologia neoliberal como ponto de partida da
reflexão sobre a experiência social. (158)
Se podemos ver em Freud ([1908] 2015) o reconhecimento dearticulação entre
conflito psíquico e moral civilizada e o apontamento de que a diminuição do sofrimento
deve ser pensada a partir de atuações sobre o social, o que se vê na psiquiatria
contemporânea enquanto efetivação da lógica neoliberal é justamente o seu oposto, uma
lógica em que a adequação desenfreada aos ideais culturais é tomada enquanto
horizonte necessário, isto é, sem alternativa possível. (159)
O deslocamento da dimensão conflitiva do sofrimento para aquela de uma
necessidade de (159) aperfeiçoamento adaptativo, capaz de retroalimentar
incessantemente o funcionamento do consumo,não deve ser assim subestimado como
peça estratégica exemplar do discurso neoliberal..
Sabe-se que os modos de sofrimento não somente dependem de seu
reconhecimento social, mas que também são produzidos e expressados a partir de
elementos simbólicos disponíveis na cultura (FreuD, [1917] 2014; Hackinc, 2000; 1998;
2009; Dunker, 2015; Siva JUNIOR, 2019b). Mais do que isso, como bem define
Hacking (2009), os saberes produzidos sobre indivíduos exercem um efeito retroativo
sobre esses mesmos indivíduos, modificando as possibilidades de experiência de sua
existência. Nesse sentido, a psiquiatria não somente cria produtos psicoativos e ministra
tratamentos, como também produz uma discursividade sobre um modo de subjetividade
indispensável ao funcionamento neoliberal, precisamente aquela que diz respeito à sua
capacidade de gestão do sofrimento. A fragilidade das bases psicológicas do
pensamento neoliberal encontra na psiquiatria do aprimoramento de si um aliado
institucional e uma prática insubstituível, (160)
Eventualmente, o fracasso desse modo de gestão do sofrimento talvez seja um
ponto de potencial ruptura. Os recorrentes fracassos da psiquiatria (Rose, 2018)
carregam, de alguma maneira, essa tensão: por um lado reforçam a impossibilidade
desse projeto, mas por outro são um ponto exemplar de como o horizonte normativo
neoliberal consegue reduzir seus enunciados normalizantes ao máximo, a saber, à sua
mera enunciação prescritiva. O que parece, defato, ser o funcionamento geral dessa
lógica, que esconde aquilo que é precisamente ao mostrar todo o tempo aquilo que
verdadeiramente é (SararLE, 2008). No caso da psiquiatria do aprimoramento de si, esse
funcionamento se encarna em um discurso que apresenta como estando à mão a
experiência de liberdade, fruição e aperfeiçoamento, que esconde a finalidade servil e
alienante de tal liberdade para empreender e enfrentar riscos individualmente e assim
gerar lucros sem risco aos investidores. Reduçãocínica e radical das possibilidades de
ser, de sofrer e, principalmente, de transformar o mundo. (160-61)

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

***********

A hipótese depressiva supõe que a depressão tornou-se tão rapidamente uma


forma de sofrimento globalizada porque ela é egossintônica com a maneira como somos
induzidos a interpretar nossos conflitos, nos termos e com o vocabulário capaz de
produzir uma unidade entre nossa forma de linguagem, desejo e trabalho. Diz-se que um
sintoma é egossintônico quando há uma identificação que encobre o conflito entre
desejo e narcisismo de tal maneira que o sujeito passa a amar seu sintoma comoa si
mesmo,a defendê-lo como uma forma de vida, quando não a impó-lo aos outro como
uma espécie de generalização de sua identificação. (174)
O efeito genérico dos novos antidepressivos os torna eficazes não apenas para a
depressão, mas também para o transtorno obsessivocompulsivo, os transtornos
alimentares e do sono, assim como para a ansiedade. Com uma medicação que atacava
um espectro cada vez mais abrangente de sintomas, inibições e angústias, torna-se cada
vez mais tentador inverter o raciocínio clínico clássico, que vai do diagnóstico (176)
para o tratamento, e, em vez disso, passar à lógica de que se a medicação funciona,é isso
que o paciente tem, ou deve ter.
A crise entre psicanálise e psiquiatria se aprofunda com a redação da terceira
versão do Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-III), iniciada
em 1973. Sete anos depois, com a publicação final dos resultados, emergia um novo
paradigma discursivo para o sofrimento. A aparição dos novos antidepressivos e a
emergência das neurociências associadas com a filosofia da mente, como um novo
paradigmacientífico e filosófico, culminam com o anúncio de um novo namorado oficial
da psiquiatria: a terapia cognitivo-comportamental (TCC). (177)
sofrimento não deve ser remetido à coerência da história ou sua relação com o
futuro, mas comoretrato do presente. Esseretrato defini a depressão como uma figura
funcionalmente deficitária, teoria que ganha força com a descoberta de queos estados
depressivos poderiam ser revertidos por meio da ação de medicação. (179)
Mas a hipótese depressiva não confronta a teoria psicanalítica de que esta é,
guardadas suas especificidades, um problemarelativo à inibição das funções do eu e que,
portanto, ela se coadunava com a individualização narrativa do sofrimento. Ela não tem
que ver com crise de crescimento ou paradas de desenvolvimento, causadas por
conflitos mal tratados, mas com a evidência mais imediata de rebaixamento da
disposição ao consumo, diminuição da produtividade laboral, do desempenhoescolar, da
potência sexual manifesta, da incapacidade para fruir a experiência e extrair dela o
máximo de prazer. A depressão herda assim a figura social do fracassado, do
inadequado, daquele que não consegue se ajustar a normas e regras, mas com um
detalhe: isso não é mais percebido como um princípio de rebelião, greve ou oposição,
mas simplesmente como uma determinação relativamente “externa” que o impedee o
inibe desde seu próprio cérebro.
Esta nova narrativa de sofrimento individualiza o fracasso, na forma da culpa,
sem interiorizá-lo na forma de conflitos. Com isso ela consegue isolar completamente a
dimensão política, das determinações objetivas que atacam nossas formas de vida,
redimensionando trabalho, linguagem e desejo, do sofrimento psíquico. Isso pode ser
ótimo do ponto de vista da explicação social da produção de desviante, fracassados ou
excedentes do sistema de produção, no entanto isso só funciona porque tem um
enraizamento real na experiência depressiva. Nela a autoavaliação, autoobservação, o
juízo comparativo e a apreciação de si mesma ocupa longas extensões de tempo e rapta
grande parte da energia psíquica do indivíduo.
Em outras palavras o isolamento social e cognitivo requerido pela separação
entre vida e depressão, de tal maneira que os sintomas independem do que o sujeito
possa fazer em termos de processos de linguagem, desejo ou trabalho, confirma-se e
define o próprio quadro depressivo. (181)
a angústia seja separada da expressão de conflitos. Ela é transformada
primeiramente em ansiedade, depois em estresse, para finalmente emergir como mera
expressão de uma descompensação cerebral, sem que por outro lado se explique muito
bem por que processos ansiosos e processos depressivos costumam andar tão juntos na
clínica. (182)
A neuropsiquiatria neoliberal fez desaparecerem inúmeras outras formas de
diagnóstico histórico: a paranoia foi gradualmente incluída e subordinada à
esquizofrenia, as psicoses da infância foram diluídas no espectro do transtorno autista, a
histeria desmembrou-se em transtornos somatoformes, fobia social, anorexias,
transtornos de gênero, fibromialgia. Mas não seria possível fazer desaparecerem as
antigas neuroses, por isso elas vão aparecer rebaixadas à classe dos transtornos de
personalidade. Elas são definidas por uma espécie de entranhamento do sintomano eu,
sem conflito. (182)
Todo sintoma é um desejo que se realiza de forma deformada,assim também
cada narrativa de sofrimento é uma forma de endereçar uma demanda de
reconhecimento. Sintomas não são apenas umaavaria que se pode excluir das pessoas
impunemente, um a-mais composto de falta de sentido e ausência de verdade. Sintomas
são também formas de resistência, por isso a pesquisa sobre a gênese e a emergência de
novas formas de sofrimento é uma investigação que localiza modalidades de crítica e de
resistência social. Sintomas são uma forma de responder ao Outro assim, como uma
maneira de extrair um fragmento adicional de gozo. (184)
o ano 1973 acusa simbolicamente a aparição do neoliberalismo, mas também o
início da revisão diagnóstica que fez declinarem noções psicanalíticas como as de
neurose, histeria e finalmente paranoia. Vimos também que a depressão e a mania são
os sintomas estruturalmente necessários ao discurso neoliberal. (184)
É possível que o transtorno de personalidade borderline seja um terceiro caso de
resistência, dessa vez ao discurso neoliberal da virada do século XX, dessa vez
operando pela superidentificação com seus ideais. Se assim for, para cada crise do
capitalismo encontraríamos uma mutação das narrativas hegemônicas de sofrimento e
uma transformação da racionalidade diagnóstica. Esse não é um processo novo, mas
uma espécie de sincronia repetitiva entre teorias econômicas e sociais e modalidades
preferenciais de sofrimento. As neuroses e sua problemática com a lei e com a
paternidade foram um paradigma clínico até os anos 1950, com sua clara e definida
linha que separava a desobediência e obediência à border-line paterna. (186)
neoliberalismo é obcecado pela ideia de fronteira como barreira ao estrangeiro e
como filtro regular contra a mistura. Lembremos que para Freud (1919) uma das
distinções categoriais mais difíceis de realizar se dá entre o familiar e o estrangeiro, que
chegam a combinar-se na expressão alemã (Unheimliche), ou seja, aquilo que deveria
ficar oculto e subitamente é revelado, aquilo que é íntimo, mas que aparece como (186)
estranho, o que aparece comocoisa ou corpo morto e advém como ser vivo e animado.
(167)
é nesse cenário de inversão entre figura e fundo com as neuroses e de
substituição da narrativa de sofrimento baseada na gramática do conflito pela gramática
da esquiva, da adaptação e da inibição que a depressão é elevada à condição de nova
normalopatia e a Personalidade Borderline seu contraponto transgressivo.Issosignifica
que a partir de então todos nos reconheceremos em momentos, fases, propensões mais
ou menos depressivas. Ela nos visitará, de forma mais grave ou aguda, em algum
momento da vida. Eventualmente ela já está presente, na forma de uma depressão
mascarada, aquie agora. (193)
TCC - Essa abordagem, que durante anos foi elevada à condição de
protocolo no tratamento das depressões, associada permanentemente com a
administração de medicação antidepressiva, tornou-se dominante e globalmente
exportada para os países da África, da Ásia e da América Latina (198)
Essa estratégia ilustra bem como para esse discurso não estamos diante de um
conflito de interpretações sobre a realidade, com a correlativa concorrência entre
interesses, mas da patologização daqueles que duvidam de comoas coisas realmente são.
(201)
A individualização do conflito, sua transformação em forma de culpa em
associação com o fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o
outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertido em uma
agressividade orientada para próprio eu. Isso se mostra, como vimos, no raciocínio de
autoobservação, de crítica de si mesmo com inversão em ilações idealizadas. (201) O
depressivo é aquele que fracassa e por outro lado tem um sucesso demasiado em se
tornar um empreendedor de si mesmo. Ele não consegue usufruir da gramática da
competição de todos contra todos, que tornaria a vida uma espécie de esporte
permanente, de viagem contínua ou de teatro de estrelas no qual há um prazer em
representar. (202)
A anedonia, esse sintoma central da depressão, a incapacidade de experimental
prazer com o outro, consigo e no mundo, torna-o uma espécie de ditador de si mesmo,
em um impasse com suas próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve
para iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e
indiscutivelmente desejável. De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra,
ela luta contra a perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço,
ela é a greve e ao mesmo tempoa lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido, o
reinado da depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do
prazer dócil e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da
autorrealização que sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado.
Daí que o depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela
é, mas um fragmento de verdade sobre por que não conseguimos perceber as coisas.
(202)
os manuais de gerenciamento nos ensinam como criar mais sofrimento para
incitar mais produção, assim como fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em
blocos de potencialidadese listas de traços desejáveis e funcionalmente adequados.
Assim como para o neoliberalismo o mercado é um Outro compacto e fechado,idêntico
si mesmo em suas regras imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei
consistente e soberana em relação à qual só podemos nos apresentar como corpos-
mercadorias, crianças amparáveis ou narcisos impotentes. (202)

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

Em primeiro lugar, houve uma alteração em escala global do espectro


sintomático que chega à clínica psicanalítica, que tem se confrontado mais
insistentemente com formas de sofrimento estruturadas em torno do eixo do narcisismo
e dos ideais do que com aquelas das neuroses clássicas. (251)
o surgimento da internet trouxe consigo novas formas de sociabilidade e
alterações na lógica da dominação introduzidas pela tecnologia algorítmica e sua
relação com o neoliberalismo. A revolução de tais tecnologias na mídia e,
particularmente, seu uso na política é um fato irreversível. Tais tecnologias podem ser
descritas com o conceito foucaultiano de poder pastoral, em vista do caráter
simultaneamente coletivo e individualizado de dominação que elas permitem (Siva
Junior, 2019). Essa forma de poder não se exerce apenas com os recursos retóricos, mas
age em um nível mais silencioso e sutil, aquele sobre as futuras ações possíveis. Poder,
por conseguinte, que se exerce paradoxalmente apenas sobre indivíduos que se pensam
e agem como livres. Ora, tais tecnologias foram apropriadas fundamentalmente por
setores conservadores da política, donde suatriste hegemonia na maioria dos países. Tal
forma de poder está presente no pacto social neoliberal e seus efeitos sobre os modos de
sofrimento. (251)
um dos maiores desafios da pesquisa psicanalítica comprometida com a crítica
social é precisamente aquele das relações entre a dimensão social e a dimensão singular
e subjetiva do sofrimento (252)
Cabe lembrar aqui que há uma forma metodológica de engajamento social da
psicanálise, presente em Freud desde o início de sua obra, que parte do princípio de que
os sofrimentos que aparecem na clínica psicanalítica não podem ser separados do
contexto social (Siva Junior, 1999). Princípio que não é apenas reflexo de uma posição
ética e política, decididamente explicitada a partir de 1918 (Danto, 2019), mas que é um
organizador do método freudiano de construção teórica apoiado em sua experiência
clínica. De fato, uma vez que seus modelos de aparelho psíquico são construídos a partir
dos (252) fenômenos normais e patológicos em cada momento da cultura, tais modelos
são sempre sociais no sentido estrutural do termo. Ao seguir esse método, a teoria
psicanalítica freudiana assume igualmente a historicidade dos sofrimentos individuais e
sua dependência do contexto social em que surgem. Podemos afirmar que não há
patologia descrita por Freud que não pressuponha a ideia de uma organização social e
política que a produza. Em outras palavras, a psicopatologia psicanalítica é
simultaneamente uma descrição de sofrimentos subjetivos e uma análise crítica das
patologias do social, ou seja, formas indiretas de crítica aos ideais e às normas sociais
enquanto tais, e não apenas sinais do fracasso individual diante desses ideais e normas
(SaraTLE; SiLva JUNIOR; DUNKER, 2018). (253)

A noção de pacto social, no sentido aqui empregado, pode ser tomada como um
correlato ao conceito de modos de subjetivação de Foucault (1994, p. 223), ou seja,
formações discursivas e dispositivos sociais nos quais os sujeitos se constituem como
tais. Conforme buscamos demonstrar ao longo destelivro, essa dimensão subjetiva não é
alheia ao projeto neoliberal, pelo contrário, faz parte de seu funcionamento. Pois o
neoliberalismo não é apenas uma teoria ou política econômica, mas uma “racionalidade
política que se tornou mundial e que consiste em imporpor parte dos governos, na
economia, na sociedade e no próprio Estado,a lógica do capital até a converter na forma
das subjetividades e na norma das existências” (DArDOT; LAvaL, 2020). Desse modo,
pode-se falar que tal racionalidade política exige a produção de um sujeito, com
valores morais e formas de sociabilidade adequados a ela. Há um sujeito que foi
produzido especificamente pela formação discursiva neoliberal, com suas formas de
verdade, seus valores (253) morais, suas instituições sociais. Nesse sujeito, uma ideia
precisa de liberdade está presente, a saber, a liberdade se não como independência
comportamental, pelo menos como não submissão moral do indivíduo às normas
sociais.” Fundado sobre um modelo de liberdade associal do sujeito, o pacto social no
neoliberalismo se organiza sobre uma base contratual, estabelecida supostamente entre
sujeitos puramente racionais, em que a submissão moral à Lei não tem lugar. (254)

Para Freud, o complexo de Édipo certamente produz pacto civilizatório e


condição da cultura, mas também gera um problema para esta. Pois, com a introdução
da pulsão de morte no aparelho psíquico, os efeitos do pacto civilizatório conquistados
pelo processo edípico passam também a representar uma ameaça à própria cultura. Não
se pode regatear essa questão em Freud, pois ela é particularmente importante para que
se entenda certas patologias do social do neoliberalismo. Além disso, tal transformação
na teoria da psicanálise exige que se pense em outras estratégias para o tratamento da
crueldade sem álibi dessa pulsão. (254)
se o sujeito freudiano se constitui como um ser social através do processo
edípico, ao perderas estruturas sociais nas quais se formoue se reconhece, ele sofrerá de
um mal-estar que atinge sua própria constituição. Analogamente, se o sujeito é afetado
na dimensão social de sua constituição, sua relação com a sociedade não pode deixar de
sê-lo também. Em outras palavras, a ruptura do pacto social abala o pacto civilizatório
em suasbases, tanto nos sujeitos como na sociedade. (255)
Considerem-se mais de perto os dois tipos de ruptura com o pacto social
destacados por Hélio Pellegrino. Pois, se sua análise se concentra na ruptura do pacto do
capital com trabalho,isso significa que, apesar de o capitalismo ser considerado como
uma forma patogênica de trabalho, seguindo Marcuse, ele é também capaz de gerar
discursos que funcionam como um pacto social, pacto que, a despeito de possuir uma
dimensão patogênica própria, irá gerar uma patologia social adicional caso seja
rompido. Pode-se descrever essa diferença do seguinte modo:se trabalho no capitalismo
sempre gera um mal-estar, há sempre um modo de piorar a situação com a ruptura de
seu pacto. No caso, isso teria se dado pela precarização da vida (257)
Para fazer avançar um pouco mais o argumento de Pellegrino, digase que ele é
compatível com a descrição de uma terceira forma de sofrimento inerente ao contexto
de sua crítica, mas não explicitada pelo autor. De fato, a ruptura com a esfera política
não gera apenas um sofrimento advindo da precariedade das condições reais de vida,
tampouco somente um sofrimento proveniente da traição de líderes políticos, mas
também um sofrimento ligado simultaneamente à perda objetiva das instituições sociais
e à perda do lugar subjetivo do sujeito na estrutura social. (257)
A ascensão dessa modalidade associal de indivíduo à realidade última, à frente
da realidade social compartilhada, encaixar-se-ia com (262) perfeição no projeto
político neoliberal incipiente dos anos 1970, a saber, a ideia de que o governo devesse
ser reduzido a um mínimo possível, e seus serviços e deveres fossem repassados a
empresas privadas. Mas os sujeitos autocentrados de então ainda não eram pensados
como indivíduo-empresa, como ocorreria a partir dos anos 1980. Ao longo da década de
1970, a retórica egoica faz sua lenta fermentação e se dissemina pelo espaço social,
tornando-se o epicentro de discussões acadêmicas de vários campos, da economia às
psicoterapias, dos recursos humanos à educação, imprimindo novossentidos à egolatria
da época. (263)
Desde seu nascimento oficial, em 1947, com a fundação da Sociedade Mont
Pêlerin, os teóricos do neoliberalismo destacaram a importância de uma atuação
decidida na cultura, de modo a combater a ameaça da “ideologia socialista”, como se
diz hoje. Apesar de ter estado nos planos por mais 20 anos, será apenas a partir da
década de 1970 que essas teorias começariam a se concretizar em interesses
acadêmicos, em objetos de publicidade e em políticas governamentais, como na
participação no golpe do Chile (...). em sua difusão na cultura, o neoliberalismo deve
redefinir o que é um sujeito e o tipo de liberdade que lhe cabe. Esse sujeito será
exclusivamente racional em suas escolhas, e sua liberdade será pensada como uma
autonomia sem heteronomia, isto é, como lei interior sem vínculo ou relação com
lei exterior. Essas novas definições de sujeito foram promovidas por um
movimento de ampliação inédito do campo de objetos da economia realizado por
alguns dos teóricos do neoliberalismo. (263)

A mais radical delas foi realizada pelo Prêmio Nobel de Economia Gary Becker,
segundo a qual o ego é pensado no interior de uma categoria epistemológica que o
emancipa de toda espessura moral e o reduz a uma racionalidade exclusivamente
prática. Para Becker, o ego é apenas uma das formas de unidade decisória entre
possibilidades (263) incompatíveis. Tal unidade decisória pode ser um sujeito, uma
família, uma empresa ou uma nação. O importante para o laureado é que qualquer
comportamento humano deva ser sempre considerado como uma “escolha racional entre
objetivos excludentes visando a maximização de utilidades” (Becker, 1990, p. 5).
Becker ficou famoso por ser o criador do conceito de “capital humano” (Becker, 1993),
propondo a ideia de que a educação deva ser pensada como um investimento financeiro
equivalente a qualquer outro. O exemplo da educação é apenas a faceta mais conhecida
de sua obra, que propõe a equação custo-benefício como a categoria fundamental da
existência em todos seus âmbitos. Assim, investir na própria formação ou numa viagem,
na saúde ou no prazer imediato de um cigarro são escolhas de um ego racional que
responderá pelos ganhos e perdas futuros de suas opções. Lentamente, mas de modo
inevitável, o conceito de “capital humano” se espalha pela sociedade,
ressignificando a função da formação acadêmica na vida social e deslocando o peso
do conhecimento adquirido para os rendimentos que ele possibilita. A faceta
performativa desse modo de subjetivação se revela aqui com clareza, pois, ao investir
financeiramente na própria formação, o sujeito se concebe necessariamente como uma
empresa que deve prospectar novos mercados e optar pelas possibilidades mais
lucrativas e seguras.(264)
{tudo passa a ser calculado como um investimento financeiro, em seu custo-
benefício, traduzindo, nesses termos, todas as instâncias da vida, doutrinando a
subjetividade}
outros autores imprimiram uma nova guinada moral na retórica egoica do
imaginário social, passando da ideia ainda abstrata do ego do autor de Capital humano
para a semântica heroica do ego livre, empreendedor e conquistador incansável de
novas oportunidades. No universo dos recursos humanos, esse novo ego serviu como
uma luva na crise do petróleo do final dos anos 1970, momento que as empresas se
concentraram em reduzir gastos com direitos trabalhistas nos programas de demissão
em massa.
O ego neoliberal dos anos 1980 já estava assim devidamente vestido de um
imaginário moral acessível ao grande público e, portanto, em condições de exercer seu
papel cívico pelo voto. A ideia de que o Estado deveria compensar ou minimizar a
injustiça social estrutural provocada pelo capitalismo não era mais uma verdade
evidente para as massas. Toda função assistencial do Estado passou a ser olhada
com suspeita, como uma forma de fomentar uma sociedade composta de sujeitos
dependentes, preguiçosos e incapazes. (265)

A diferença na representação social do ego ao longo de 20 anos de gestação do


sujeito neoliberal, desde o ego da revolução interior até o ego-empresa, pode ser bem
resumida por duas máximas. Nos anos 1970, quando o apelo à sensibilidade e à
autoexpressão ainda eram valores socialmente compartilhados, o slogan “Faça de sua
vida uma obra de arte” ainda era possível. Nos anos 1990, o sujeito neoliberal estava
crescido e pronto para atuar no mundo. Uma das melhores ilustrações do novo
individualismo viria a ser dada, na década seguinte, pelo título de uma revista de grande
circulação entre os nossos jovens: Você S.A., sintagma do conceito de indivíduo-
empresa, convocado pelo discurso anônimo e imperativo do mercado. (265)

!!!!!!!!!!!!!

Fica claro que mais do que mera teoria econômica, o neoliberalismo é uma
formação discursiva no sentido foucaultiano, que configura um novo pacto social.
Segundo Foucault, uma formação discursiva é uma matriz de produção de discursos que
atravessa diferentes âmbitos da cultura. Em primeiro lugar, seus jogos de verdade, isto
é, sua concepção de ciência. Em segundo lugar, sua concepção do que é o Estado, ou
seja, sua ideia de política, e, finalmente, seus modos de subjetivação, ou seja, os modos
de objetivação do que é ser um sujeito. É nesse sentido que o neoliberalismo pode ser
examinado como uma formação discursiva: uma concepção de governo protetor do
mercado, uma concepção de ciência submetida à tecnologia e ao capital, e uma
concepção de sujeito cuja liberdade depende do seu caráter associal. (266)

Se a grande bandeira do neoliberalismo é pensar formas de governo que


garantam a liberdade individual, essas formas devem ser a cada vez submetidas a
uma escolha do sujeito, e nunca impostas a ele. Trata-se de uma escolha racional,
baseada em um cálculo custo-benefício. Em hipótese alguma a ideia de uma
submissão ao governo por motivos morais seria compatível com a manutenção da
liberdade individual acima da lei comum. Toda associação deve ser, por conseguinte,
uma associação contratual racional, com definições de dívidas e formas de
pagamento, assim como penalidades objetivas para o cancelamento dos contratos.
Caberá apenas à escolha racional de cada um, escolha racional entendida como cálculo
de custo-benefício, o respeito ou não a esse pacto. Na matriz conceitual do sujeito
ideal do neoliberalismo, o homo ceconomicus funciona em “uma mecânica
certamente egoísta, mas sobretudo sem transcendência: ele não cessa jamais o processo
de maximização de sua utilidade em nome de exigências apresentadas como
“superiores” (LAGASNERIE, 2012, p- 154). (268)

em Hegel, para quem essa noção de liberdade associal resultaria necessariamente


no sofrimento de indeterminação, ou seja, uma forma de autoafirmação infinita e vazia,
como também na inação crônica. O exemplo hegeliano disso que ele denominade
patologias da liberdade seria a subjetividade romântica. Para Honneth, outros
desdobramentos dessa crítica a uma noção de liberdade individual sem transcendência
se encontram na tradição propriamente sociológica recente, com Christopher Lasch
(1983), com o conceito de sociedade do narcisismo, e Alain Ehrenberg (1998) e sua
denúncia do culto à performance em nossa cultura e a depressão como sua
consequência. Teses que seguem o princípio comum de que os modos de sofrimento
devem ser entendidos como modos de inadequação do sujeito frente aos ideais de seu
tempo. Faz sentido: num tempo em que os ideais são a soberania absoluta da vontade
individual sobre seu próprio destino, qualquer falha possui o valor de fraqueza,
incompetência, covardia e falta de vontade. (269)

fundamentalmente a partir de 1920, Freud faz uma (270) revisão das relações
entre a dimensão simbólica e a dimensão pulsional dos discursos nas sociedades
civilizadas. Nessa revisão, sociedades nas quais os processos de racionalização são
hegemônicos, longe de realizarem apenas um melhor recalcamento de desejos
socialmente inconfessáveis, são também aquelas mais sujeitas a expressões desumanas
de agressividade. Forma de compreensão das articulações entre racionalidade e
pulsionalidade, em que uma dimensão causal inédita é apresentada. Nela a racionalidade
produz formas de violência que são ao mesmo tempo simbolicamente estruturadas e
inumanas em suas expressões. (271)
novas dinâmicas possuem uma dimensão na economia psíquica e uma dimensão
social da economia que se fortalecem mutuamente. Em sua dimensão social, elas são
sustentadas por um discurso moral que afirma que, para o sujeito livre, a submissão à lei
é uma escolha racional, baseada em um cálculo de custo-benefício. Mas, em sua
dimensão de economia psíquica, elas se nutrem de uma dinâmica que merece ser
apresentada em detalhes no âmbito dateoria freudiana. No coração da economia
psíquica dessa forma de violência despertada pelo neoliberalismo está o conceito de
pulsão de morte, que permitiu que se reconhecesse no psiquismo a presença de uma
forma de crueldade sem álibi (DerriDA, 2001), isto é, sem desculpas instrumentais.
(271)
Vejamos em suas linhas gerais seu argumento, apresentado nos capítulos IV e V
de O eu e o isso, de 1923. Em primeiro lugar, Freud afirma que o complexo de Édipo
depende da transformação dos investimentos libidinais nos pais em identificações que
constituem o supereu. O segundo ponto de sua argumentação é que esse processo de
transformação é também a condição necessária a qualquer sublimação, ou seja, para
haver uma substituição dos objetos eróticos pelos objetos valorizados culturalmente, é
preciso que sua carga libidinal seja primeiramente transformada em investimento
narcísico através da identificação. Contudo — e esse é o terceiro passo do argumento
—, tal transformação tem efeito de enfraquecer Eros em sua capacidade de se vincular
com a pulsão de morte, Isso significa que toda sublimação produz sempre a desfusão
pulsional como resto. Com a desfusão pulsional oriunda da constituição do supereu, os
alvos de Eros e da pulsão de morte se separam. Com isso, a pulsão de morte passa a
buscar realizar seu destino de modo independente. No melhor dos casos, ela
parcialmente se refusiona com Eros, estruturando o masoquismo moral no eixo entre o
eu e o supereu, e parcialmente se dirige ao exterior sob a forma de sadismo.
Além de O eu e o isso, de 1923, pelo menos dois outros textos importantes de
Freud, “O problema econômico do masoquismo”, de 1924, e O malestar na cultura, de
1930, apresentam esse efeito indiscutivelmente nocivo do pacto civilizatório. Observe-
se que não apenas as formas excessivas de idealização seriam patogênicas, mas também
as formas necessárias dos ideais para a organização social, começando pelo supereu, de
modo que é precisamente aquilo que permite o sujeito entrar na cultura, o próprio
complexo de Édipo, que traz consigo o incremento da agressividade para além de
qualquer funcionamento instrumental. (272)
A cultura da liberdade individual impermeável à alteridade, promovida (272)
pelo neoliberalismo, legitima socialmente a crueldade sem álibi da pulsão de morte.
Trata-se de um movimento inverso àquele descrito por Pellegrino entre discurso social e
economia pulsional. Lá, a ruptura do pacto social desencadeia a agressividade dos
indivíduos. No neoliberalismo, a agressividade, a crueldade sem álibi, é legitimada pelo
pacto social em jogo. Essa homologação discursiva racionaliza a violência
comoinerente à competição ou à salvação do mercado (...) Sempre se pode perceber o
ponto em que a crueldade se torna um fim em si mesmo.
Um desses momentos em que o gozo com a morte do outro veio à tona foi
aquele do revoltante “E daí?” de Jair Bolsonaro. (273)
Conforme demostrou Foucault (2017, p. 1645), na medida em que a biopolítica
toma a vida da população como um bem do Estado, ela também dispõe de sua morte.
Fazer viver, e deixar morrer são assim indissociáveis, e toda biopolítica é também uma
tanatopolítica. A especificidade do pacto neoliberal e seu discurso foi legitimar o gozo
com o deixar morrer. Claro está que legitimar gozo com a morte do outro sabota as
bases de vínculos sociais consistentes, inviabiliza a política e ameaça a raça dos
homens, como bem mostra o mito grego. (273)
Mas o que diz Freud sobre o futuro da cultura? Pois, se o incremento da
agressividade é um efeito da cultura, não podemos eliminá-lo sem dar cabo desta. E,
contudo, também não podemosaceitálo. Pelo menos não em uma cultura com valores
fundados na justiça social e no respeito pela alteridade do outro. Freud abre outras
possibilidades para atenuar a agressividade sem negar sua existência, mas sem afirmá-la
como um valor. De fato, é possível encontrar exemplos na sociedade que ilustrem essas
estratégias intermediárias de enfrentamento do impasse entre cultura e agressividade.
No filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019), por
exemplo, o tratamento da agressividade é ilustrado em diferentes formas de pacto social.
A cidade de Bacurau representa assim comunidades humanas locais, sem valor
produtivo, que só entram no mapa neoliberal como alvos de pilhagem. As formas de
expressão da agressividade sem álibi segundo as formas de pacto social que a
metabolizam, a saber, o local comunitário, e o global, neoliberal, podem ser lidas nos
diferentes regimes de visibilidade pelos quais a agressividade é tematizada no filme.
(274)
a presença do museu de Bacurau, espaço que mostra e lembra àquela
comunidade o seu próprio passado. Museu que mantém na lembrança a violência do
cangaço. Pelo museu, esse tempo é narrado e rememorado, mas não revivido. Nesse
sentido, uma das cenas mais importantes no filme é aquela em que a mulher
encarregada da limpeza do museu, após a chacina, diz à sua ajudante: “Limpe o chão,
mas deixe as marcas de sangue nas paredes”. Forma de inscrever na história a barbárie
presente ao lado das barbáries do passado e assim lembrar que ela sempre estará ali
onde estivermos. Barbárie que, inscrita, localiza cada visitante do museu como seu
possível autor. Estratégia análoga àquela dos vidros que Francis Bacon colocou sobre
algumas de suas telas mais fortes”: com seureflexo,tais vidros mostram o gozo que as
imagens de (275) corpos deformados produzem no olhar do próprio espectador. Talvez
assim ele recupere seu pudor. (276)

O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais Daniel


Pereira Andrade - Revista Sociedade e Estado – Volume 34, Número 1,
Janeiro/Abril 2019

O neoliberalismo é um conceito polêmico. Desde o Colóquio Walter Lippmann


(1938) e da primeira reunião da Sociedade de Mont Pèlerin (1947), a formulação
designou, entre seus partidários, mais um campo de debate do que propriamente um
consenso. Ordoliberais de Freiburg, Escola Austríaca, Escola de Chicago e
representantes da London School of Economics e da Manchester School
compartilhavam a mesma utopia de livre mercado e a mesma posição con trária ao
intervencionismo econômico e ao planejamento estatal centralizado (keynesiano,
socialista ou desenvolvimentista), mas não tinham opinião comum sobre o papel
legítimo do Estado, sobre as diretrizes de política econômica ou sobre a experiência
fracassada do laissez-faire do século XIX (Peck, 2010). A dimensão polêmica do termo
ganhou nova roupagem com as reformas liberalizantes de Pinochet no Chile em 1978. A
partir de então, o conceito passou a ser adotado quase que exclusivamente por seus
críticos para designar pejorativamente a onda de desregulamentação dos mercados, de
privatização e de desmonte do Estado de bem-estar ao redor do mundo (Boas & Gans-
Morse, 2009; Venugopal, 2015). (Andrade, 2019, p. 211-12)
Foi somente a partir dos anos 2000 que a polêmica ao redor do neoliberalismo se
requalificou academicamente, com cientistas sociais de diferentes especialidades se
esforçando por oferecer definições mais precisas. Além das contribuições de Pierre
Bourdieu, Loïc Wacquant e David Harvey, o debate se renovou com a publicação
póstuma do curso de Michel Foucault intitulado Naissance de la biopolitique (2004).
(212)
O objetivo deste artigo é apresentar esse recente debate das ciências sociais
sobre a pertinência e a definição de neoliberalismo. (213)
Afinal, se o neoliberalismo está em toda parte, o que o define? Quais são seus
traços distintivos? Ainda seria possível ou mesmo útil defini-lo para o estudo dos
fenômenos sociais? (213)
John Clarke (2008) acrescenta que o neoliberalismo aparece como onipotente,
como uma alegada causa primeira – e última – de uma série de desenvolvimentos
contemporâneos. Espécie de zeitgeist político-econômico, ele substituiria a análise
específica e cuidadosa de relações de dominação, exploração e alienação. (...) O
neoliberalismo aparece, assim, como a fonte de forças estruturais invencíveis ou se
confunde com a realidade corrente em sua totalidade, havendo uma impossibilidade de
se agir ou pensar fora dela, convertendo-se em uma narrativa do inevitável (Peck, 2010).
(214)
A questão é se o neoliberalismo pode servir adequadamente a tantos fenômenos
diferentes e a tantas conceitualizações teóricas. A literatura o reconhece, por isso, como
termo controverso, incoerente e camuflador de uma crise nas ciências sociais. (214)
De saída, o fato de a sociedade contemporânea utilizar um termo que designa de
maneira crítica um modelo político para se autonomear já aponta para a
desnaturalização de seus processos, reabrindo a disputa ao clamar por alternativas. Não
por acaso, esse diagnóstico se faz acompanhar do surgimento de novos projetos, (215)
o conceito pode efetivamente constituir a sua potência. O fato de ele estar
associado a uma sensibilidade moral crítica confere-lhe o status de ideia força capaz de
mobilizar a pesquisa e os atores políticos. (215)
Há uma posição dominante nas análises sobre o “neoliberalismo realmente
existente”: não se trata de um desmantelamento do Estado, mas de sua reestruturação,
mantendo um papel forte e bastante ativo, mas que sofre variações conforme sua
configuração histórica específica (Hilgers, 2012; Wacquant, 2012; Dardot & Laval,
2009; Ong, 2006). (216)
Uma das dimensões do neoliberalismo é a utilização da linguagem e dos
critérios da economia mainstream como forma de legitimação técnica da autoridade do
Estado (Davies, 2014). É a linguagem da economia ortodoxa que dá a aparência de uma
descrição científica do real à utopia do livre mercado, convertendo-a em projeto
político. A utilização dos modelos matemáticos pela teoria pura neoclássica é o que
permite essa confusão entre “as coisas da lógica e a lógica das coisas” (Bourdieu, 1998).
(217)
a “hipótese do mercado eficiente”. História falsa e contraditória, mas capaz de
direcionar o comportamento efetivo dos sujeitos e a construção de instrumentos
financeiros, acabando por desencadear por vezes as crises que sua teoria imaginava
evitar (217)
“é apenas quando o neoliberalismo é implementado e suas práticas e linguagem
associadas afetam nossa compreensão dos seres humanos, modificando relações sociais,
instituições e seus funcionamentos, que ele se torna um objeto apropriado para a
antropologia. Uma vez que ele se torne envolvido na estruturação concreta do mundo da
interação social e da experiência e exerça uma influência real sobre a maneira pela qual
os agentes pensam e problematizam suas vidas, pesquisas podem ser levadas a cabo no
campo e teorias emergem buscando analisá-lo e estabelecer seus efeitos, ao mesmo
tempo evitando a sua reificação” (Hilgers, 2011). (217)
Foucault (2004) aborda o neoliberalismo no âmbito de sua história das artes de
governo no que tange ao exercício da soberania política. Interessa ao autor a maneira
como “se tentou conceitualizar esta prática que consiste em governar [estabelecendo] o
domínio da prática de governo, seus diferentes objetos, suas regras gerais, seus
objetivos de conjunto a fim de governar da melhor maneira possível” (Foucault, 2004:
3-4). (218-19)

Governar no sentido de “guiar os homens, de dirigir as suas condutas, de


constranger as suas ações e reações” (Foucault, 2004: 3). Não se trata, portanto, da
instituição governo, mas da ação de reger a conduta dos homens em um quadro e
com instrumentos estatais. Além de disciplinar as condutas, o neoliberalismo
promove um autogoverno dos indivíduos de modo que eles se conformem a certas
normas (Dardot & Laval, 2009).

É nesse sentido que o neoliberalismo aparece não apenas como ideologia ou


como política econômica, mas como “a forma da nossa existência, isto é, a forma
pela qual somos pressionados a nos comportar e de nos reportar aos outros e a nós
mesmos” (Dardot & Laval, 2009: 5). A ênfase recai, portanto, na racionalidade política
que busca reconfigurar normativamente práticas e instituições. A norma de vida
neoliberal é caracterizada pela lógica do mercado, caracterizada pelas dimensões da
concorrência e da forma da empresa privada (Laval apud Andrade & Ota, 2015: 284).
Não se trata exatamente da mercadorização de tudo, pois o mercado mantém sua
limitação e singularidade, mas da difusão do modelo de mercado para além do próprio
mercado, reformando o Estado, as políticas públicas, as instituições, a gestão e as
subjetividades (Dardot & Laval, 2009: 5; Brown, 2003: 50). Nesse sentido, a norma
neoliberal é caracterizada por sua transversalidade, podendo ser encontrada em
diferentes níveis e em diferentes esferas da vida, o que explicaria a promiscuidade
adjetiva que o termo neoliberal adquire, mas sem perder de vista suas características
distintivas (Dardot & Laval, 2013: 6) (219)
Foucault analisou o neoliberalismo a partir de duas artes de governo históricas: o
ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano. Em ambos os casos, o
neoliberalismo não se constitui como princípio limitador, mas como fundador do Estado
(Foucault, 2004: 223). . No caso dos ordoliberais, (...) O Estado deve, assim, generalizar
a forma empresa no interior do tecido social de modo que o próprio indivíduo se torne
uma e participe ativamente das decisões em seu trabalho. No caso dos neoliberais
americanos, procura-se estender a grade de inteligibilidade econômica para todas as
dimensões sociais, generalizando a noção de capital humano como princípio decifrador
dos comportamentos e das relações. O indivíduo torna-se governável por meio de seu
cálculo econômico interno e pela definição das regras ambientais do jogo, ao mesmo
tempo em que o próprio Estado se submete a um tribunal econômico permanente, que
julga as ações públicas segundo critérios de rentabilidade (Foucault, 2004: 247-253;
Lemke, 2001). (220)

Para Dardot e Laval (2009: 457-458), são quatro as características centrais


da razão neoliberal. Primeira, o neoliberalismo não considera o mercado como um
dado natural, mas uma realidade construída que requer a intervenção ativa do
Estado e a introdução de um sistema de direito específico . O neoliberalismo se
reconhece abertamente como projeto construtivista. Segunda, a essência da ordem do
mercado não é vista como residindo nas trocas, mas na concorrência entre
unidades empresariais. A construção do mercado, portanto, é a construção
institucional da concorrência como norma geral das práticas econômicas. Terceira, o
próprio Estado é submetido em sua ação à norma da concorrência do mercado
global, sendo enquadrado pelas regras de direito privado. O Estado pensa a si
próprio como empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relação com
os demais Estados concorrentes. Assim, o Estado, responsável por construir o
mercado, ao mesmo tempo se constrói segundo as normas de mercado . Não se
trata, portanto, de Estado mínimo, como afirma o discurso ideológico, mas de um
Estado empreendedor, que pode se expandir e mesmo se tornar mais dispendioso.
Esse Estado muitas vezes foi erigido por governos de esquerda que, acreditando
contrariar o neoliberalismo ao “modernizar” a burocracia, acabavam por realizar as
reformas que consolidavam sua racionalidade (Laval apud Andrade & Ota, 2015;
Mudge, 2008). Quarta, Dardot e Laval afirmam que a universalização da norma
neoliberal atinge também os indivíduos na relação que eles estabelecem consigo
mesmos. O Estado, ao difundir situações de concorrência, conduz indiretamente os
indivíduos a se conduzirem como empreendedores de si mesmos. A empresa é alçada a
modelo de subjetivação, sendo cada indivíduo um capital a ser gerido e valorizado
conforme as demandas do mercado. (Andrade, X, p. 220)
!!!!!!
O Estado neoliberal – enxergando por toda parte agentes de mercado e vendo-se
como empresa – estabelece como seu critério considerações de rentabilidade. Dissemina
por toda a vida social, cultural e política modos de recompensa institucionais que
acabam por criar efetivamente a concepção preconcebida. A legitimidade do Estado
acaba atrelada à sua capacidade de garantir e alimentar a racionalidade
econômica. As novas políticas sociais de workfare promovem um cidadão baseado no
interesse egoísta cujo cálculo ultrarresponsabiliza-o por tudo o que ocorre com ele, ao
passo que desobriga o Estado da garantia de direitos. O neoliberalismo erode assim
a brecha ética entre capitalismo e democracia , solapando as fontes valorativas do
reformismo social que colocavam um limite aos interesses mercantis (Brown, 2003).
(220-21)

Segundo a abordagem estrutural marxista, o neoliberalismo é definido como


estratégia política que visa reforçar uma hegemonia de classe e expandi-la globalmente,
marcando o novo estágio do capitalismo que surgiu na esteira da crise estrutural da
década de 1970. O neoliberalismo se caracteriza por uma ordem social em que
uma nova disciplina é imposta ao trabalho e novos critérios gerenciais são
estabelecidos, servindo-se de instrumentos como o livre comércio e a livre
mobilidade de capital (Duménil & Lévy, 2014: 11 e 43). Esse modelo legitima-se
ideologicamente por meio de uma teoria político-econômica que afirma o livre mercado
como garantidor da liberdade individual de empreender e que confere ao Estado o papel
mínimo de preservar a ordem institucional necessária. A crescente desigualdade se
justificaria como meio de estimular o risco dos empreendedores e a inovação, elementos
centrais da competitividade e do crescimento econômico. (221)

“Podemos, portanto, interpretar a neoliberalização seja como um projeto utópico


de realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo internacional ou como um
projeto político de restabelecimento das condições de acumulação do capital e de
restauração do poder das elites econômicas. Defenderei a ideia de que o segundo desses
objetivos na prática predominou. A neoliberalização não foi muito eficaz na
revitalização da acumulação de capital global, mas teve notável sucesso na restauração
ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo), na criação do poder de uma elite
econômica. O utopismo teórico de argumento neoliberal, em conclusão, funcionou
primordialmente como um sistema de justificação e de legitimação do que quer que
tenha sido necessário fazer para alcançar esse fim. Os dados sugerem, além disso, que
quando os princípios neoliberais conflitam com a necessidade de restaurar ou sustentar
o poder da elite, esses princípios são ou abandonados ou tão distorcidos que se tornam
irreconhecíveis” (Harvey, 2008: 27). (221)
*** Teoria absoluta
A visão de Bourdieu foi exposta nos dois volumes da coletânea Contrafogos
(1998 e 2002), cujo artigo mais sistemático é “Neoliberalismo. Esta utopia, em vias de
realização, de uma exploração sem limite”. Nesse texto, Bourdieu considera a
concepção do mercado autorregulador como uma utopia da teoria econômica
convertida em projeto político, embora seja apresentada como mera descrição científica
do real (Bourdieu, 1998: 135). A visão idealizada do mercado é construída de
maneira lógico-dedutiva na teoria pura neoclássica, por meio de modelos
matemáticos que raramente são colocados à prova e que desdenham as ciências
históricas. Os economistas são inclinados assim a confundir “as coisas da lógica
com a lógica das coisas” (Bourdieu, 1998: 135-136 e 144). Ao partir de pressupostos
falsos, reduzem a racionalidade à concepção estreita da racionalidade individual,
ignorando as condições sociais que produzem a disposição calculadora (Bourdieu,
1998: 136). Essa teoria dessocializada e des-historicizada, embora errônea e falha,
acaba por tornar-se verdadeira por se vincular a interesses e decisões de acionistas,
operadores financeiros, industriais, políticos conservadores ou social-democratas
convertidos e altos funcionários das finanças (Bourdieu, 1998: 137-138). O
conhecimento científico converte-se então em programa político, procurando criar
as condições de funcionamento da “teoria”. Se a teoria lida apenas com indivíduos, é
preciso destruir as estruturas coletivas capazes de resistir à lógica do mercado (nação,
sindicatos, grupos de trabalho, cooperativas e associações). A própria política tende a
ser dissolvida, de modo a permanecer submetida aos mercados financeiros globais
e a retirar as regulações capazes de atrapalhar a livre maximização do lucro. (224-
25)

Os métodos de gestão flexíveis impõem a precarização dos vínculos trabalhistas


e promovem a concorrência entre os funcionários, definindo metas, formas de avaliação
e de remuneração individuais. Esse mundo de competição darwiniana com ameaça de
demissão mina a solidariedade e dociliza os trabalhadores ao autocontrole e à
autoexploração. A violência estrutural acaba por moldar as disposições econômicas dos
agentes. A lógica oportunista e calculista individualizada, que caracteriza o pressuposto
microeconômico da teoria pura, realiza-se assim pela pressão concorrencial e pela
erosão dos laços coletivos (Bourdieu, 1998: 138-146). (225)

Os efeitos da utopia neoliberal sobre o mundo real são conhecidos:


sofrimento, desigualdade, desaparecimento dos universos autônomos de produção
cultural, destruição das instituições coletivas e darwinismo moral (Bourdieu, 1998:
144-145).

A análise do neoliberalismo operou um deslocamento na obra final de Bourdieu


(Bourdieu, 2001; Laval, 2018). Ao manter o mesmo esquema conceitual anterior, o
autor o reativa para pensar a nova estrutura da dominação social e a formação histórica
das disposições necessárias à inclusão na economia capitalista. No neoliberalismo, a
sociedade francesa passou a uma estrutura na qual a ciência econômica tomou o lugar
da filosofia, o capital econômico ganhou em importância frente ao capital cultural, a
mídia tomou o terreno da escola no exercício da “violência simbólica” e o Estado foi
cada vez mais controlado pela alta função pública fundida com dirigentes financeiros.
Como o neoliberalismo estende a lógica econômica a todos os campos – assentando-a
como a racionalidade em geral –, Bourdieu procurou mostrar a gênese social dessas
disposições e da autonomização do campo econômico (225-26)

O que há de novo no neoliberalismo é, justamente, “ a reengenharia e a


reestruturação do Estado como principal agência que conforma ativamente as
subjetividades, as relações sociais e as representações coletivas apropriadas a
tornar a ficção dos mercados real e relevante” (Wacquant, 2012: 507). (226)

Max Weber
Questão inseparável da compreensão da competição e da competitividade
como argumentos morais e políticos utilizados retoricamente pelas elites econômicas
de modo a deslocar as preocupações com a desigualdade e com a vulgaridade do
capitalismo financeirizado. (227)

Da perspectiva neoliberal, o preço provê um ideal lógico e fenomenológico de


como as relações humanas podem ser mediadas sem se recorrer à retórica e à
performatividade políticas. A linguagem do “bem comum” e do “público” é
aparentemente substituída por instrumentos econômicos técnicos que reduzem situações
complexas a um número, dando origem às dimensões experimentais e construtivistas do
neoliberalismo. O Estado não necessariamente cede poder aos mercados, apenas
justifica suas decisões, políticas e normas em termos comensuráveis com a lógica do
mercado. Nesse sentido, “neoliberalismo pode ser definido como a elevação dos
princípios baseados no mercado e das técnicas de avaliação ao nível de normas de
aprovação do Estado” (Davies, 2014: 6). As novas autoridades são os especialistas
que estabelecem as regras e as arenas de competição , que desenvolvem técnicas de
pontuação e ranqueamento e que oferecem consultorias para competidores em
ambientes imprevisíveis (regulador, risk manager, estrategista, coach e gurus)
(Davies, 2014: 29). (228-29)

O neoliberalismo é confrontado assim por seu próprio fundamento ético, sem


saber como justificar por que a economia deve ser considerada a melhor base analítica
para o governo no lugar de outras formas políticas ou científicas de autoridade. (229)

A abordagem pós-colonialista do neoliberalismo insiste na crítica à


generalização de processos típicos dos países desenvolvidos como paradigma geral, o
qual se imporia até mesmo a realidades do Terceiro Mundo. No debate da revista Social
Anthropology, autores apontam para a abstração indevida ao analisarem as diferenças
de processo em outras regiões (Hilgers, 2012; Collier, 2012; Goldstein, 2012). (230)

Daniel Goldstein (2012) vai além ao afirmar que não apenas a implementação,
mas a própria compreensão teórica sobre o que é o neoliberalismo deve ser situada
temporal e espacialmente. Como não há uma teoria pura do neoliberalismo, mas
variações e debates que estão em curso, os discursos sobre o que é e como opera não
estão limitados ao Ocidente, embora possam ter tido origem nesse hemisfério. Na busca
de descolonizar o estudo, Goldstein propõe “enfatizar que os neoliberalismos não são
apenas instâncias variadas de ideias globais, mas realidades plenamente vividas nas
quais as pessoas e os Estados possuem suas próprias teorias e elaboram seus próprios
discursos e críticas sobre os mundos por eles habitados e sobre os modos pelos quais
eles devem ser organizados” (Goldstein, 2012: 305). (230)

O neoliberalismo é caracterizado pela gestão de si via cálculo econômico nas


diferentes esferas da vida, reforçando a autorresponsabilização dos indivíduos. Ele
estabelece, assim, uma nova relação entre governo, autogoverno e espaço de
administração. Mas, em contextos não ocidentais emergentes, a estratégia de
autogoverno não é uniformemente aplicada. Como nem toda a população nem todas as
áreas estão submetidas às forças do livre mercado, as estratégias neoliberais precisam
fazer escolhas calculadas de intervenção e de risco. As tecnologias de governo migram
através dos vetores do mercado global e interagem com elementos e circunstâncias
locais. A partir dos países liberais avançados, a lógica neoliberal viajou para ambientes
tão variados quanto Estados militares, oligarquias pós-socialistas, formações autoritárias
e ex-colônias, sem substituir suas práticas políticas. (231)

As definições críticas sobre o neoliberalismo apontam para diferentes alvos e


escalas de combate. Seja nos níveis global ou local, estrutural ou microfísico, são
listadas lógicas normativas, estruturas de Estado, estratégias de classe, processos de
mercadorização e espoliação, políticas públicas, projetos utópicos, saberes científicos,
dispositivos financeiros e contábeis, disposições econômicas, reconfigurações da
cidadania e da democracia. Os diversos fenômenos elencados apontam para alvos que
são mais complementares do que excludentes, variando conforme a ênfase teórica. (234)

!!!!!!!
A despeito das diferenças teórico-políticas, a complementariedade entre os
fenômenos do neoliberalismo apontam para quatro alvos principais. A primeira
dimensão é a econômica globalizada, definida por um regime de acumulação
financeirizado, por reconfigurações geográficas da produção, por formas de acumulação
por espoliação e pela centralização da tomada de decisão nas mãos de um número
reduzido de agentes transnacionais capitalistas, colocando no centro do embate a luta de
classes em âmbito internacional e as resistências às formas de espoliação. A segunda
dimensão é a da luta antidisciplinar contra os modos de regulamentação e/ou
dispositivos de governamentalidade, principalmente contra as formas de gestão
derivadas da concorrência e da empresa privada, lutas que podem ser travadas tanto no
âmbito local como nacional e que disputam as formas institucionais, o direito, a
administração e as políticas públicas. A terceira dimensão é a teórica e a simbólica, a
ser travada por intelectuais e ideólogos, alcançando níveis propagandísticos, de modo a
desconstruir a hipótese do mercado eficiente e desfazer o valor da competitividade e da
economização na política. Desafia-se assim a legitimidade das autoridades e das
técnicas de avaliação e ranqueamento neoliberais em nome de valores substantivos
como os da solidariedade, da igualdade, da participação democrática e da emancipação.
A quarta dimensão é a das disposições subjetivas, definida em nível microssocial e
intraindividual, na relação que o indivíduo estabelece (235) consigo mesmo em conexão
com os outros, de modo a buscar novo imaginário e novas práticas de si fora da
lógica do capital humano, do empreendedorismo e da visão economicista de
mundo. (236)
Bourdieu, P. O neoliberalismo, utopia (em vias de realização) de uma
exploração sem limites. In Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão
neoliberal. Rj, Jorge Zahar Ed., 1998.

O mundo econômico (...) E se ele fosse apenas, na realidade, a prática de uma


utopia, o neoliberalismo, assim convertida em programa político, mas uma utopia que,
com a ajuda da teoria econômica a que ela se filia, consegue se pensar como a descrição
científica do real? (81)
!!!!!!!teoria sem furo
Dessa espécie de pecado original, inscrita no mito walrasiano da "teoria pura",
decorrem todos os erros e todas as falhas da disciplina econômica, e a obstinação fatal
com a qual ela se apega à oposição arbitrária que faz existir apenas com a sua própria
existência, entre a lógica propriamente econômica, fundada na concorrência e portadora
de eficiência, e a lógica social, submetida à regra da eqüidade. Dito isso, essa "teoria"
originariamente dessocializada e des-historicizada tem, hoje mais do que nunca, os
meios de tornar-se verdadeira, empiricamente verificável. Efetivamente, o discurso
neoliberal não é um discurso como os (81) outros. À maneira do discurso psiquiátrico
no asilo, segundo Erving Goffman, é um "discurso forte", que só é tão forte e tão
difícil de combater porque tem a favor de si todas as forças de um mundo de relações de
força, que ele contribui para fazer tal como é, sobretudo orientando as escolhas
econômicas daqueles que dominam as relações econômicas e acrescentando assim a sua
força própria, propriamente simbólica, a essas relações de força. Em nome desse
programa científico de conhecimento convertido em programa político de ação ,
cumpre-se um imenso trabalho político (renegado, pois aparentemente puramente
negativo) que visa criar as condições de realização e de funcionamento da "teoria";
um programa de destruição metódica dos coletivos (a economia neoclássica querendo
lidar apenas com indivíduos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos ou
famílias). (82)

O movimento, que se tornou possível pela política de desregulamentação


financeira, em direção à utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito se realiza
através da ação transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as medidas
políticas (...) colocando em risco todas as estruturas coletivas capazes de resistirem à
lógica do mercado puro: nação, cujo espaço de manobra não pára de diminuir; grupos
de trabalho, com, por exemplo, a individualização dos salários e das carreiras, em
função das competências individuais e a resultante atomização dos trabalhadores;
coletivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas;
até a família, que, através da constituição de mercados por classes de idade, perde uma
parte do seu controle sobre o consumo. O programa neoliberal extrai sua força social
da força político-econômica daqueles cujos interesses ele exprime — acionistas,
operadores financeiros, industriais, políticos conservadores ou socialdemocratas (...). O
programa neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura entre a
economia e as realidades sociais, e a construir desse mundo, na realidade, um
sistema econômico ajustado à descrição teórica , isto é, uma espécie de máquina
lógica, que se apresenta como uma cadeia de constrangimentos enredando os agentes
econômicos. (82)

se instaura o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos por


intermédio de contratos de duração determinada ou as interinidades e os "planos
sociais" de treinamento, e a instauração, no próprio seio da empresa, da concorrência
entre filiais autônomas, entre equipes, obrigadas à polivalência, e, enfim, entre
indivíduos, através da individualização da relação salarial: fixação de objetivos
individuais; prática de entrevistas individuais de avaliação; altas individualizadas dos
salários ou atribuição de promoções em função da competência e do mérito individuais;
carreiras individualizadas; estratégias de "responsabilização" tendendo a garantir a
auto-exploração de certos quadros que, sendo simples assalariados sob forte
dependência hierárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis por suas
vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc, à maneira dos "por conta própria";
exigência do "auto-controle", que estende o "envolvimento" dos assalariados, segundo
as técnicas do "management participativo", bem além das atribuições características dos
gerentes; eis algumas técnicas de submissão racional que, ao exigir o sobre investimento
no trabalho, e não apenas nos postos de responsabilidade, e o trabalho de urgência,
concorrem para enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas.
(83)
!!!!!!!!
A instituição prática de um mundo darwiniano que encontra as molas da
adesão na insegurança em relação à tarefa e à empresa, no sofrimento e no estresse,
não poderia certamente ter sucesso completo, caso não contasse com a cumplicidade de
trabalhadores a braços com condições precárias de vida produzidas pela insegurança
bem como pela existência — em todos os níveis da hierarquia, e até nos mais elevados,
sobretudo entre os executivos — de um exército de reserva de mão-de-obra
docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O
fundamento último de toda essa ordem econômica sob a chancela invocada da
liberdade dos indivíduos é efetivamente a violência estrutural do desemprego, da
precariedade e do medo inspirado pela ameaça da demissão : a condição do
funcionamento "harmonioso" do modelo micro-econômico individualista e o princípio
da "motivação" individual para o (83) trabalho residem, em última análise, num
fenômeno de massa, qual seja, a existência do exército de reserva dos desempregados.
Nem se trata a rigor de um exército, pois o desemprego isola, atomiza, individualiza,
desmobiliza e rompe com a solidariedade. (84)

A profunda sensação de insegurança e de incerteza sobre o futuro e sobre si


próprio que atinge todos os trabalhadores assim precarizados deve sua coloração
particular ao fato de que o princípio da divisão entre os que são relegados ao exército de
reserva e aqueles que possuem trabalho (...) (84) sempre em situação de risco, quer
dizer, sempre obrigados a provar que são bons, os trabalhadores condenados à
precariedade e à insegurança de um emprego instável e ameaçados de relegação na
indignidade do desemprego (85)

Vê-se assim como a utopia neoliberal tende a se encarnar na realidade de uma


espécie de máquina infernal (...) poder dos mercados em nome da eficiência
econômica, que exigem a suspensão das barreiras administrativas ou políticas
capazes de incomodar os detentores de capitais na busca puramente individual da
maximização do lucro individual instituído como modelo de racionalidade (85)

Entretanto, o mundo é o que é, com os efeitos imediatamente visíveis do


funcionamento da grande utopia neoliberal: não só a miséria e o sofrimento de uma
fração cada vez maior das sociedades mais avançadas economicamente, o agravamento
extraordinário das diferenças entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos
universos autônomos de produção cultural, cinema, edição etc, e portanto, a longo
prazo, dos próprios produtos culturais, em virtude da intrusão crescente das
considerações comerciais, mas também e sobretudo pela destruição de todas as
instâncias coletivas capazes de resistir aos efeitos da máquina infernal, entre as quais o
Estado está em primeiro lugar, depositário de todos os valores universais associados à
idéia de público, e a imposição, por toda a parte, nas altas esferas da economia e do
Estado, ou no seio das empresas, dessa espécie de darwinismo moral que, com o culto
do vencedor ("winner"), formado em matemáticas superiores e nos "chutes" sem rigor,
instaura a luta de todos contra rodos e o cinismo como norma de todas as práticas. E a
nova ordem moral, fundada na inversão de todas as tábuas de valores, se afirma no
espetáculo, prazerosamente difundido pela mídia, de todos esses importantes
representantes do Estado, que rebaixam a sua dignidade estatutária ao multiplicar as
reverências diante dos patrões de multinacionais (86)

Resistências que suscita desde agora por parte daqueles que defendem a odem
antiga, nutrindo-se dos recursos nelas contidos (...) em suma das reservas de capital
social que protegem toda uma parte da presente ordem social de uma queda na anomia.
(87)

a elaboração e a defesa do interesse público que, queirase ou não, nunca sairá,


mesmo ao preço de algum erro em escrita matemática, da visão de contador (em outros
tempos, dir-se-ia de "quitandeiro") que a nova crença apresenta como a forma suprema
da realização humana. (88)

Foucault, M. O nascimento da Biopolítica. Lisboa 2004 (1978-79)

Primeiro, esta do ponto de vista economico, o que é neoliberalismo? Nada mais


que a reativaçao de velhas teorias economicas ja surradas. Segundo, do ponto de vista
sociológico, o que é o neoliberalismo? Nada mais que aquilo atraves do que passa a
instauraçao, na sociedade, de relações estritamente mercantis. Por fim, terceiro, de um
ponto de vista politico, o neoliberalismo nada mais e que uma cobertura para uma
intervençao generalizada e administrativa do Estado, intetven ao tanto mais pesada
quanta mais insidiosa e quanta mais se mascarar sob os aspectos de urn neoliberalismo.
(179-80)
O problema do neoliberalismo e, ao contrario, saber como se pode regular 0
exercicio global do poder politico com base nos principios de uma economia de
mercado. (181)
Uma politica social e, ern linhas gerais, uma politica que se estabelece como
objetivo uma relativa repartição do acesso de cada urn aos bens de consumo. (194)
dizem os ordoliberais, uma politica social, para se integrar realmente a uma
politica economica e nao ser destrutiva em rela~ao a essa politica economica, nao pode
Ihe servir de contrapeso e nao deve ser definida como 0 que compensara os efeitos dos
processos economicos. E, ern particular, a igualiza<;ao, a relativa igualiza<;ao, a
reparti<;ao do acesso de cada urn aos bens de consumo nao pode ern caso algum
constituir urn objetivo. Nao pode constituir urn objetivo num sistema ern que,
justamente, a regula~ao economica, isto e, 0 mecanismo dos pre<;os, nao se obtem de
modo algum por meio de fenomenos de igualiza<;ao, mas por urn jogo de
diferencia<;oes que e proprio de todo mecanisme de concorrencia e se estabelece
atraves das oscila<;oes que so cumprem a sua fun- <;ao e seus efeitos reguladores
contanto que, e claro, se permita que ajam, e ajam por meio de diferen<;as. Ern linhas
gerais, e preciso que haja pessoas que trabalhem e outras (195) que nao trabalhem, ou
que haja salanos altos e salarios baixos, e preciso q.:'e os pre~os tambem subam e
des~am, para que as regula~oes se fa~am. (196)

0 instrumento dessa politica social, se e que podemos chamar isso de politica


social, nao sera a socializaçao do consumo e da renda. Só pode ser, ao contrario, uma
privatizacionita, não se vai pedir a sociedade inteira para garantir os individuos contra
os riscos, sejam os riscos individuais, do tipo doença ou acidente, sejam os riscos
coletivos, como os danos materiais, por exemplo; nao se vai pedir à sociedade para
garantir os individuos contra esses riscos. Vai-se pedir asociedade, ou antes, aeconomia,
simplesmente para fazer que todo individuo tenha rendimentos suficientemente
elevados de modo que possa, seja diretamente e a titulo individual, seja pela
intermediaçao coletiva das sociedades de ajuda mutua, se garantir por si mesmo
contra os riscos que existem (... ) tera por instrumento oseguro individual e mlltu~, que
tera por instrumento enfim a propriedade privada. E o que os alemaes chamam de
"politica social individual", em oposiçao à “politica social socialista”.Trata-se de uma
individualizaçao da politica social, uma individualizaçao pela politica social em vez de
ser essa coletivizaçaoe essa socializaçao por e na politica social (197)

qual e agora 0 ponto de aplica<;a? dessas mterve~<;oes gove~amentais. 0


governo - n~m e precIso dlZer, Ja que se esta num regime liberal - nao tern de mtervir
sobre os efeitos do mercado. Tarnpouco tern - e e isso que diferencia 0 neoliberalismo
digamos, das politicas de bem-estar e coisas assim, que s~ conheceu [dos anos 20 aos
anos 60]* -, 0 neoliberalismo, 0 governo neoliberal nao tern de corrigir os efeitos
destruidores do mercado sobre a sociedade. Ele nao tern de constituir, de certo modo,
urn contraponto ou urn anteparo entre a sOCledade e os processos economicos. Ele tern
de intervir sobre a propria sociedade em sua trama e em sua espessura. No fundo, ele
tern de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante
e em cada ponto da espessura social, possam ter 0 papel de reguladores - e é nisso que a
sua intervenção vai possibilitar 0 que e o seu obJetivo: a constitui<;ao de urn regulador
de mercado geral da;oCledade.Val se tratar portanto, nao de urn governo economICO,
como aquele corn que sonhavam os fisiocratas", isto e, 0 governo tern apenas de
reconhecer e observar as leis econo~icasi na~ ~e urn govemo economico, eurn governo
de socledade. (199)
!!!!!!!!!!
em rela~ao a essa sociedade que se tomou portanto, agora, 0 pr6prio objeto da
interven~ao govemamental, da prMica governamental, 0 que 0 governo sociol6gico
quer fazer? Ele quer fazer, e claro, que 0 mercado seja possive!. Tern de ser possivel
se se quiser que desempenhe seu papel de regulador geral, de principio da racionalidade
politica. Mas 0 que isso quer dizer: introduzir a regula~ao do mercado como principio
regulador da sociedade? Querera dizer a instaura~ao de uma sociedade mercantil, isto e,
de uma sociedade de mercadorias, de consumo, na qual 0 valor de traea constituiria, ao
meSilla tempo, a medida e 0 criteria geral dos elementos, 0 principio de comunica~ao
dos individuos entre si, 0 principio de circula~ao das coisas? Em outras palavras, tratar-
se-ia, nessa arte neoliberal de governo, de normalizar e disciplinar a sociedade a partir
do valor e da (200) for rna mercantis? Sera que se volta, assim, aquele mode10 da
sociedade de massa, da sociedade de consumo, da sociedade de mercadorias, da
sociedade do espetaculo, da sociedade dos simulacros, da sociedade da velocidade, que
Sombart, em 1903, havia pela primeira vez definido?'" Nao creio. Nao e a sociedade
mercantil que esta em jogo nessa nova arte de governar. Nao e isso que se trata de
reconstituir. A sociedade regulada com base no mercado em que pensam os
neoliberais e uma sociedade na qual 0 que deve constiluir 0 principio regulador nao e
tanto a troca das mercadorias quanta as mecanismos da concorrencia. Sao esses
mecanismos que devem ter 0 maximo de superficie e de espessura possivel, que
tambem devem ocupar 0 maior volume possivel na sociedade .Vale dizer que 0 que
se procura obter nao e uma sociedade submetida ao efeito-mercadoria, e uma sociedade
submetida à dinamica concorrencia!. Nao uma sociedade de supermercado - uma
sociedade empresarial. 0 homo oeconomicus que se quer reconshtuir não é 0 homem
da troca, não é 0 homem consumidor, e 0 homem da empresa e da produçao. (201)

e obter uma sociedade indexada, nao na mercadoria e na uniforrnidade da


mercadoria, mas na multiplicidade e na diferenciaçao das empresas. (204)

uma politica economica, como a gestao de todo urn corpo social, (258)

metodos de analise e tipos de programa,ao e me parecem interessantes nessa


concepc;ao neoliberal americana: primeiro, a teoria do capital humano e, segundo, por
raz6es que voces imaginam, claro, 0 programa da analise da criminalidade e da
delinquencia. Primeiro, a teoria do capital humano12• 0 interesse, ereia, dessa teoria do
capital humano esta no seguinte: e que essa teoria representa dois processos, um que
poderiamos chamar de incursao da analise economica num campo ate entao inexplorado
e, segundo, a partir dai e a partir dessa incursao, a possibilidade de reinterpretar em
tennos economicos e em termos estritamente economicos todo urn campo que, ate
entao, poclia ser considerado, e era de fato considerado, nao-economico. (302)

Os neoliberais praticamente nao discutem nunca com Marx por razoes que talvez
possamos ver como sendo as do esnobismo economica, pouca irnporta. Mas ereie que,
se eles se dessem ao trabalho de cliscutir com Marx, e facil imaginar 0 que poderiam
dizer a [prop6sito da] analise de Marx. Eles diriam: e verdade que Marx faz do trabalho,
no fundo, 0 eixo, urn dos eixos essenciais cia sua amilise. Mas 0 que faz Marx quando
analisa 0 trabalho? Ele mostra que 0 operano vende 0 que? Nao seu trabalho, mas sua
for~a de trabalho. Ele vende a sua for~a de trabalho por certo tempo, e isso em troca de
urn salario estabelecido a partir de certa situa~ao de mercado que corresponde ao
equilibrio entre a oferta e a procura de for~a de trabalho. E 0 trabalho que 0 operano faz
e urn trabalho que cria valor, parte do quallhe e extorquido. Nesse processo Marx
enxerga evidentemente a pr6pria mecanica ou a pr6pria l6gica do capitalismo, 16gica
que consiste em que? Pois bern, no seguinte: 0 trabalho, por tudo isso, e"abstrato"*, ista
e, 0 trabalho concreto trans formado em for~a de trabalho, medido pelo tempo, posta no
mercado e retribuido como salario nao e 0 trabalho concreto; e urn trabalho que esta, ao
contrano, amputado de toda a sua realidade humana, de todas as suas variaveis
qualitativas, e justamente - e bern isso, de fate, 0 que Marx mostra - a mecanica
economica do capitalismo, a 16gica do capital s6 retem do trabalho a for~a e 0 tempo.
Faz dele urn produto mercantil e s6 retem seus efeitos de valor produzido. (304-05)

0 homo oeconomicus e um empresário , e um empresário de si mesmo. Essa


coisa e tao verdadeira que, praticarnente, 0 objeto de todas as analises que fazem os
neoliberais sera substituir, a cada instante, 0 homo oeconomicus parceiro da troca por
urn homo oeconomicus ernpresario de si mesmo, sendo ele proprio seu capital,
sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda.
(311)
0 homem do consumo nao e um dos termos da troca. 0 homem do consumo, na
medida em que consome, e um produtor. Produz 0 que? Pois bem, produz simplesmente
sua propria satisfa,ao". E deve-se considerar o consumo como uma atividade
empresarial pela qual 0 individuo, a partir de certo capital de que disp6e, vai produzir
urna coisa que vai ser sua propria satisfa,ao. (311)

e 0 salano nao e nada mais que a remunera,ao, que a renda atribuida a certo
capital, capital esse que vai ser charnado de capital humano na medida em que,
justamente, a competencia-maquina de que ele é a renda nao pode ser dissociada do
individuo humano que 10 seu portador". Entao, de que é composto esse capital? (312)

Esse capital humano é composto de que? Pois bern, ele 10 composto, dizem
eles, de elementos que sao elementos inatos e de outros que sao elementos adquiridos~.
Falemos dos elementos inatos (312)

, a partir do momento em que uma sociedade se coloca 0 problema da melhoria


do seu capital humano em geral, nao e possivel que 0 problema do controIe, da
filtragem, da melhoria do capital humano dos individuos, em fun<;ao, e claro, das
unioes e das procria<;6es que dai decorrerao, nao seja posto e discutido. Eportanto em
termos de constitui<;ao, de crescimento, de acumula<;ao e de me!horia do capital
humano que se coloca 0 problema politico da utiliza<;ao da genetica. Os efeitos,
digamos, racistas da genetica sao certamente uma coisa que se deve temer e que estao
longe de estar superados. (314)

o, e muito mais do lado do adquiride, ou seja, da constituiçao rnais ou menos


voluntária de um capital humano no curso da vida dos individuos, que se colocam todos
os problemas e que novos tipos de analise sao apresentados pelos neoliberais. Formar
capital humano, formar portanto essas especies de competencia-maquina que VaG
produzir renda, ou melhor, que VaG ser remuneradas por renda, quer dizer 0 que? Quer
dizer, e claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais. (...) (315)

((ENGENDRAMENTO DA BIOPOLÍTICA – CAPITAL HUMANO))


Esse investimento, 0 que vai formar uma competencia-maquina, sera constituido
de que? Sabe-se experimentalmente, sabe-se por observa<;ao, que ele econstituido, por
exemplo, pelo tempo que os pais consagram aos seus filhos fora das simples atividades
educacionais propriamente ditas. Sabe-se perfeitamente que 0 numero de horas que uma
mae de farrulia passa ao lado do filho, quando ele ainda esta no ber<;o, vai ser
importantissimo para a constitui<;ao de uma competencia-maquina, ou se voces
quiserem para a constitui<;ao de um capital humano, e que a crian<;a sera muito mais
adaptclvel se, efetivamente, sellS pais ou sua mae the consagraram tantas horas do que
se lhe consagraram muito menos horas. Ou seja, 0 simples tempo de cria<;ao, 0 simples
tempo de afeto consagrado pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado em termos
de investimento capaz de constituir um capital humano. Tempo passado, cuidados
proporcionados, 0 nivel de cultura dos pais (315) tambem - porque se sabe muito bern,
justamente, que, para urn mesmo tempo passado, pais cultos vao formar urn capital
humano, para a crian<;a, muito mais elevado do que se nao tiverem 0 mesmo myel de
cultura -, 0 conjunto dos estimulos culturais recebidos por uma crian<;a: tudo isso vai
constituir elementos capazes de formar urn capital humano. Ou seja, vai se chegar assim
a toda uma analise ambiental, como dizem as arnericanos, da vida da crian~a, que vai
poder ser calculada e, ate certo ponto, quantificada, em todo caso, que vai poder ser
medida em termos de possibilidades de investirnento em capital humano. 0 que vai
produzir capital hurnano no ambiente da crian<;a? Em que este ou aqueIe tipo de
estimulo, esta ou aquela forma de vida, esta ou aquela rela<;ao com os pais, os adultos,
os outros, em que tudo isso vai poder se cristalizar em capital humano? Bern, como
teriamos de ir longe, vou passar por cima desse problema. Poder-se-ia fazer igualmente
a analise dos cuidados medicos e, de modo geral, de todas as atividades relativas asaude
dos individuos, que aparecem assim como elementos a partir dos quais 0 capital humano
poder;; primeiro ser melhorado, segundo ser conservado e utilizado pelo maior tempo
possive!. Enecessario portanto repensar todos os problemas. Em_todo cas?, podem-se
repensar todos os problemas da prote<;ao da saude, todos os problemas da higiene
publica em elementos capazes ou nao de melhorar 0 capital hurnano. (316)

Se inova,iio existe, isto e, se se encontram coisas novas, se se descobrem novas


formas de produtividade, se se fazem inven,6es de tipo tecnol6gico, tudo isso nada mais
e que a renda de urn certo capital, o capital humano, isto e, 0 conjunto dos
investimentos que foram feitos no nivel do pr6prio homem. (318)

A partir dessa analise te6rica e dessa analise hist6rica, e possivel destacar


portanto os principios de urna politica de crescimento que ja niio sera simplesmente
indexada ao problema do investimento material do capital fisico, de urn lado, e do
nUmero de trabalhadores, [de outro], mas urna politica de crescimento que sera centrada
muito precisamente numa das coisas que 0 Ocidente, justamente, pode modificar com
maior facilidade e que vai ser a modifica,iio do nivel e da forma do investimento em
capital humano. E para esse lado, de fato, que se ve claramente que se orientam as
politicas economicas, mas tambem as politicas sociais, mas tambem as politicas
culturais, as politicas educacionais, de todos os paises desenvolvidos. (319)

a maneira como [os neoliberais americanos]* tentam utilizar a economia de


mercado e as análises caracteristicas da economia de mercado para decifrar as
relações nao-mercantis, para decifrar fenomenos que nao sao fenomenos estrita e
propriamente economicos, mas sao o que se chama, se voces quiserem, de fenomenos
sociais (329)

No neoliberalismo americano, trata-se de fato e sempre de generalizar a forma


economica do mercado. Trata-se de generaliza-la em todo 0 corpo social, e generaliza-
la ate mesmo em todo 0 sistema social (333)

Essa generaliza<;ao de certo modo absoluta, essa generaliza<;ao ilimitada da


forma do mercado acarreta certo numero de conseqiiencias ou comporta certo numero
de aspectos. (334)

a generalizaçao da forma economica do mercado no neoliberalismo


americano, alem das próprias trocas monetárias, funciona como principio de
inteligibilidade, principio de decifraçao das relações sociais e dos comportamentos
individuais. 0 que significa que a analise em termos de economia de mercado, em
outras palavras, em termos de oferta e procura, vai servir de esquema que se pode
aplicar a campos nao-economicos. E graças a esse esquema de analise, a essa grade de
inteligibilidade, vai ser possivel revelar, em processos nao-economicosr em relacões
nao-economicas, em comportamentos nao-economicos, urn certa mimero de relações
inteligiveis que nao teriam sido reveladas assim - uma especie de análise economista do
nao-economico. E0 que [fazem os neoliberais1* para urn certo numero de areas. A
ultima vez, a propósito do investimento em capital humano, eu havia evocado alguns
desses problemas. Na analise que eles fazem do capital humano, como voces se
lembram, os neoliberais procuravam explicar, por exemplo, como a relaçao mae-filho,
caracterizada concretamente pelo tempo que a mae passa com 0 filho, pela qualidade
dos cuidados que ela the dedica, pelo afeto de que ela da prova, pela vigililncia com que
acompanha seu desenvolvimento, sua educaçao, seus progressos, nao apenas escolares
mas fisicos, pela maneira como naG 56 ela 0 alimenta, mas como ela estiliza a
alimentaç;ao e a relaç;ao alimentar que tern com ele - tudo isso constihri, para os
neoliberais, urn investimento, urn investimento mensunlvel em tempo, urn investimento
que vai constituir 0 que? Capital humano, 0 capital humano da criança, capital esse que
produzira renda". Essa renda sera 0 que? (334)

s familias ricas que das farrulias pobres. Esempre nesse mesmo projeto de
analisar, em termos ecanomicos, tipos de relaç;ao que ate entao pertenciarn mais it
demografia, it saciologia, it psicologia, it psicologia social, I' sempre nessa perspectiva
que as neoliberais procurararn analisar, par exemplo, as fenomenos de casamento e do
que acontece com urn casal, isto e, a raciona1iza~ao propriarnente economica que 0
casamento constitui na coexistencia dos indivíduos (334)

Esses dois aspectos - analise dos comportamentos naoeconamicos atraves de


uma grade de inteligibilidade economista, cntica e avalia,ao da a,ao do poder publico
em termos de mercado -, sao esses dois trac;os que se encontram na analise que certos
neoliberais fizeram da criminalidade (339)

como, nos neoliberais arnericanos, encontravamos uma aplicacão ou, em todo


caso, urna tentativa de aplicac;iio da analise economista a urna serie de objetos, de
campos de comportamentos ou de condutas, que niio eram comportamentos ou condutas
de mercado: tentativa, por exemplo, de aplicar a analise economica ao casamento,
aeducac;iio dos filhos, acriminalidade (365)

Esse problema do homo oeconomicus e da sua aplicabilidade parece-me


interessante, porque, nessa generalizaçao da grade homo oeconomicus a areas que nao
sao imediata e diretamente economicas, creio que estao em jogo questoes importantes.
A mais importante questao em jogo e sem duvida o problema da identificaçaodo
objeto da analise economica a toda conduta, qualquer que seja, que implique, claro,
uma alocação ótima de recursos raros a fins alternativos, 0 que e a definiçao mais
geral do objeto da analise economica tal como foi definida, grosso modo, pela escola
neoclassica'. Mas, por trás dessa identificaçao do objeto da analise economica a essas
condutas que implicam uma alocaçao ótirna de recursos para finalidades altemativas,
encontramos a possibilidade de uma generalizaçao do objeto economico, ate a
implicaçao de toda conduta que utilizasse meios limitados a uma finalidade entre outras.
E chega-se assim a que talvez o objeto da analise economica deva ser identificado a
toda conduta finalizada que implique, grosso modo, uma escolha estrategica de meios,
de caminhos e de instrumentos (366)

Uma conduta racional como a que consiste em sustentar urn raciocinio formal
nao sera porventura uma conduta economica no sentido em que acabamos de defini-la,
ou seja, alocaçao ótima de recursos raros para finalidades altemativas, ja que um
raciocinio formal consiste no fato de que se dispoe de certo numero de recursos que sao
recursos raros - esses recursos raros vaG ser urn sistemasimb6Iico, VaG ser urn jogo de
axiomas, VaG ser urn certo nilmero de regras de construçao, e nao qualquer regra de
construçao e nao qualquer sistema simb6lico, simplesmente alguns -, recursos raros
esses que vao ser utilizados de forma 6tima para uma finalidade determinada e
altemativa, no caso uma conclusao verdadeira em vez de urna conclusao falsa, a qual se
procurara chegar pela melhor alocaçao possivel desses recursos raros? Logo, no limite,
por que nao definir toda conduta racional, todo comportamento racional, qualquer que
seja, como objeto possivel de uma analise economica? (367)

Urn interesse pratico, por assim dizer, na medida em que, quando voce define 0
objeto da analise economica como conjunto das respostas sistematicas de urn individuo
as variaveis do meio, percebe que pode perfeitamente integrar a economia toda uma
serie de tecnicas, dessas tecnicas que estao em curso e em voga atualmente nos Estados
Unidos e sao chamadas de tecnicas comportamentais. Todos esses rnetodos cujas
formas mais puras, mais rigorosas, mais estritas au mais aberrantes, como preferirem,
sao encontradas em Skinner' e consistem precisamente, nao em fazer a analise do
Significado das condutas, mas simplesmente em saber como urn dado jogo de estimulos
podera, por mecanismos ditos de reforço, acarretar respostas cuja sistematicidade
podera ser notada e a partir da qual Sera possivel introduzir outras variaveis de
comportamento - todas essas tecnicas comportamentais mostram bern como, de fato, a
psicologia entendida dessa maneira pode perfeitamente entrar na definiçao da economia
tal como Becker a da. (368)

esse homo oeconomicus funcionava como 0 que se poderia chamar de urn


elemento intangivel em relaçao ao exercicio do poder. 0 homo oeconomicus e aquele
que obedece ao seu interesse, e aquele cujo interesse e tal que, espontaneamente, vai
convergir com 0 interesse dos outros (369)

. 0 poder politico nao deve intervir nessa diniimica que a natureza inscreveu no
coraç;ao do homem. E proibido portanto que 0 governo crie obstaculo a esse interesse
dos individuos.(381)

A racionalidade economica ve-se nao so rodeada por, mas fundada sobre a


incognoscibilidade da totalidade do processo.O homo oeconomicus e a unica ilha çe
racionalidade possivel no interior de urn processo economlCO cUio caniter
incontrolavel nao contesta, mas funda, ao contrano, a racionalidade do comportamento
atomistico do homo oeconomicus. Assim, 0 mundo economico e, por natureza, opaco.
Epor natureza intotalizavel. Eoriginana e definitivamente constituido de pontos de vista
cuja multiplicidade e tanto mais irredutivel quanta essa propria multiplicidade assegura
espontaneamente e no fim das contas a convergencia deles. A economia e urna
disciplina ateia; a economia e uma disciplina sem Deus; a economia e urna disciplina
sem totalidade (383)
a homo oeconomicus e a sociedade civil sao portanto dois elementos
indis[soci]aveis*. a homo oeconomicus e, digamos, 0 ponto abstrato, ideal e puramente
economico que povoa a realidade densa, plena e complexa da sociedade civil. au ainda:
a sociedade civil e 0 conjunto concreto no interior do qual e preciso recolocar esses
pontos ideais que sao os homens econ6micos, para poder administni-los
convenientemente. Logo, homo oeconomicus e sociedade civil fazem parte do mesmo
conjunto, 0 conjunto da tecnologia da govemamentalidade liberal. (403)
Estamos diante de urn mecanisme de multiplicac;ao irnediata que tern, Sim, a
mesma forma dessa multiplicaç;ao imediata do lucro na mecanica puramente economica
dos interesses. A forma é a mesma, mas as elementos e as conteudos não sao as
mesmos. E enisso que a sociedade civil pode ser, ao mesmo tempo, 0 suporte do
processo economico e dos vinculos economicos, mas extrapolando-os e nao podendo
reduzir-se a eles. Porque, na sociedade civil, 0 que une os homens uns aos Qutros e,
sim, uma mecanica anaIoga ados interesses, mas DaD sao interesses no sentido estrito,
naa sao interesses economicos. A sociedade civil emuito roais que a associaç;ao dos
diferentes sujeitos economicos, muito embora a forma na qual esse vinculo se
estabelece seja tal que os sujeitos economicos poderao tomar lugar nela, que 0 egoísmo
economico podera representar nela 0 seu pape! (409)

É que, claro, com essa ideia de sociedade civil temos uma reclistribui,çoou uma
especie de recentragem/descentragem dessa razao governarnental de que ja havia
procurado !hes falar ano passado. (421)

Trata-se ,agora de regular 0 govemo nao pela racionalidade do mdlVlduo


soberano que pode dizer "eu, 0 Estado", [mas] pela racionalidadedos que Sa?
govemados, dos que sao govemados. C?ffiO suçeltos econOffilCOS e, de modo mais
geral, como sUJeltos de mteresse, interesse no sentido mais geral do termo, [pela]
racionalidade desses individuos na medida em que, para satisfazer a esçes interesses no
sentido geral do termo, eles utilizam certo numero de meios e os utilizam como
querem:,eessa racionalidade dos govemados que deve serVlr de pnnClplO de regulagem
para a racionalidade do governo. EISS0, parece-me, que caracteriza a racionalidade
liberal: como regular 0 govemo, a arte de govemar como [fundar]* 0 principio de
racionaliza,ao da arte de govemar no comportamento racional dos que sao govemados.
(423)
E I' russo que voces veem no mundo moderno, 0 mundo que nos conhecemos
desde 0 seculo XIX, toda uma serie de racionalidades governamentais que se acavalam,
se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente. Arte de governar pautada pela
verdade, arte de governar pautada pela racionalidade do Estado soberano, arte de
governar pautada pela racionalidade dos agentes econorrucos, de maneira mais geral,
arte de governar pautada pela racionalidade dos proprios governados. Sao todas essas
diferentes artes de governar, essas diferentes maneiras de calcular, de racionalizar, de
regular a arte de governar que, acavalando-se reciprocamente, VaG ser, grosso modo,
objeto do debate politico desde 0 seculo XIX. 0 que I' a politica, finalmente, senao ao
mesmo tempo 0 jogo dessas diferentes artes de governar com seus diferentes
indexadores e 0 debate que essas diferentes artes de governar suscitam? Eai, parece-me,
que nasce a politica. (424)

O tema escolhido era portanto a "biopolitica": eu entendia por isso a maneira


como se procurou, desde 0 seculo XVIII, racionalizar os problemas postos a pratica
govemamental pelos fenomenos proprios de um conjunto de viventes constituidos em
populaçao: saude, higiene, natalidade, longevidade, raças... Sabe-se 0 lugar crescente
que esses problemas ocuparam desde 0 seculo XIX e que desafios politicos e
economicos eles vem constituindo ate hoje. Pareceu-me que nao se podia dissociar esses
problemas do ambito de racionalidade politica no interior do qual eles apareceram e
adquiriram sua acuidade. A saber, 0 "liberalismo", ja que foi em rela,ao a ele que
adquiriram 0 aspecto de urn verdadeiro desafio. Num sistema preocupado com 0
respeito dos sujeitos de direito e com a liberdade dos indivíduos (431)
o que deveria ser estudado agora e a maneira como os problemas especificos da
vida e da população foram postos no interior de uma tecnologia de governo que, sem ter
sempre sido liberal, longe disso, nao parou de ser acossada desde 0 fim do seculo XVIII
pela questao do liberalismo. (439)

Aléman, J. Horizontes neoliberales em la subjetividad. Grama Ed., BA,


2016
!!!!!!
Há uma linha partindo de Gramsci, Althusser e Foucault que indica que o
poder não só oprime, senão fabrica consensos, estabelece a orientação subjetiva e
produz uma trama simbólica que funciona de modo “invisível”, naturalizando as
idéias dominantes e, onde sempre, e nisso consiste seu êxito definidtivo, esconde seu
ato de imposição. (13)
Nesse aspecto, a ordem simbólica que atravessa o neoliberalismo, se
comporta como um dispositivo racional que aparenta promover diversas formas de
subjetividade, enquanto a repetição do mesmo no limitado circuito da mercadoria
prossegue sua marcha incessante e circular. (13)

Quando se trata da ordem simbólica da linguagem em suas distintas variações –


deve-se distinguir dimensões distintas do dito de ordem (?).

Assinalar a dependência e subordinação do falante com respeito à ordem


estrutural ou ontológica da linguagem na constituição do sujeito. O ser vivo é capturado
pela linguagem para se tornar um sujeito. (...) tal dependência do sujeito que só pode
constituir-se desse modo, sendo sempre um efeito da linguagem que o precede, exige
ser distinguida da dominação contruída de forma sócio-histórica. São duas vertentes do
simbólico, ainda que misturadas, que obedecem lógicas radicalmente diferentes. A
primeira é inevitável e constitutiva do sujeito. A segunda, enquanto constituição sócio-
histórica, é suscetível a diversas transformações temporais. (14)

Neoliberalismo é o primeiro regime histórico que tenta, por todos os meios,


alcançar a primeira dependência simbólica, afetar tantos os corpos como a captura pela
palavra do ser vivo em sua dependência estrutural. O neoliberalismo precisa produzir
um “homem novo” engendrado a partir de seu próprio presente, não atravessado por
nenhuma causa ou legado simbólico e precário, “líquido”, fluido e volátil como a
própria mercadoria. (14)
Atualmente o neoliberalismo disputa o campo de sentido, da apresentação e da
produção biopolítica da subjetividade. (...) a política, na medida em que é sustentada
pelos seres falantes e não pode ser reduzida a uma mera gestão profissional, é o que
nesta e´poca pode fazer irromper e proteger o caráter falido de toda representação. Por
definição, o sujeito é aquele que não pode ser nunca representado exaustivamente
porque sua dependência estrtural da linguagem, o impede. (...) nunca encontra uma
representação significante que o totalize. Por fim, esta é a razão pela qual o
neoliberalismo, em seu afã de representar a totalidade até extinguir-se como
representação, não é o fim da história. (15)
Enorme valor político para um projeto emancipatório, a distinção entre a
dependência do sujeito em seu advento na linguagem e a dominação sócio-histórica, que
nunca esgota o sujeito em sua abertura às possibilidades de uma transformação por vir.
(15)
O capitalismo se comprota como uma força acéfala, que se expande
ilimitadamente, até o último confim da vida. Essa é precisamente a novidade do
neoliberalismo: a capacidade de produzir subjetividades que se configuram seundo um
paradigma empresarial, competitivo e gerencial da própria existência. É a “violência
sistêmica” do regime de dominação neoliberal: não necessita de uma forma de opressão
exterior, salvo em momentos cruciais de crises orgânicas, e em troca faz com que os
próprios sujeitos se vejam capturados por uma série de mandatos e imperativos
donde se vêem confrontados em sua própria vida, no seu próprio modo de ser , às
exigências do “ilimitado”. (15-16)

Desde muy temprano las vidas deben pasar por la prueba de si van a ser o no
aceptadas, si van a tener lugar o no, en el nuevo orden simbólico del Mercado. El
Mercado funciona como un dispositivo que se nutre de una permanente presión que
impacta sobre las vidas, marcándolas con el deber de construir una vida feliz y
realizada. La creciente expansión del fenómeno de la autoayuda da testimonio de ello,
cons- trucción imposible ya que lo "ilimitado" de las exigencias del Capital están hechas
para impedir la realización plena que se demanda. Esu n a explotación sistemática del
"sentimiento de culpabilidad" queformalizó Freud en "El malestar en la cultura".16

De este modo, las epidemias de depresión, el consumo adictivo de fármacos, el


hedonismo depresivo de los adolescentes, las patologías de respo arl a talla",
nsabilidad desmedida, el sentimiento irremediable de "estar en falta", el "no de
La asunción como "problema personal" de aquello que es um hecho estructural del
sistema de dominación, no son más que las señales de que el Capitalismo
contemporáneo nace tal como lo confirma la cultura norteamericana con la primacía
del yo y los distintos relatos de "autorrealización" formulados para sostenerla.
Las exigencias de lo ilimitado del Capital no van sin La propagación de la autoayuda, la
inflación de la autoestima, cuyo reverso obsceno esconde la peor condena de la propia
existencia. Hasta el extremo de provocar en los sujetos um sentimiento de culpabilidad
por el hecho de la propia finitud. La dominación de lo ilimitado necesita colaboradores
culpables ydeudores dealgo imposible de satisfacer. Yan os e trata de la clásica
alienación, esa parte extrañada de uno mismo, ahora el Neoliberalismo se propone
fabricar 16
un "hombre nuevo", sin legados simbólicos, sin historias por descifrar, sin
interrogantes por lo singular e incurable que habita en cada uno. Toda esta dimensión de
la experiência humana debe ser abolida al servicio de un rendimiento, que está por
encima de las posibilidades simbólicas con las que los hombres y mujeres ingresan al
lazo social. En este aspecto hav que recordar quel a experiencia del amor, de lo político,
de la invención poética y científica, exigen siempre de la re- ferencia al límite. Lo que
hace pensar que el carácter ilimi- tado de la voluntad del Capital por perpetuarse,
expandirse y diseminarse por doquier, introduce una inevitable pobreza de la
experiencia.¿Qué significa pensar, hacer política, desear transformar lo real,
operaciones siempre limitadas cuando se enfrentan al poder ilimitado del Capital? Esta
condición ilimitada, y por tanto sin salida,17

para salir del circuito culpabilizante de la "salud mental neoliberal” y no ceder


a los designios del "consu-mental" ne o r midor consumid ", con los que se
egodeaeltiempo histórico que nos toca vivir. Aunque sea metafóricamente, intentamos
hablar aquí de un nuevo tipo demilitancia.17
O poder neoliberal é uma dominação que se dissimula como consenso, é uma
dominação que se apresenta mais como uma dependência a uma série de dispositivos
que conformam a subjetividade do que como uma submissão imposta. Também se
apresenta como uma submissão a determinados mandatos que nem sequer são
explícitos, mas, sem dúvida, eficazes. É o que chamamos correntemente de
“naturalização do poder neoliberal, disfarçar sua ideologia por trás da forma do
“fim da ideologia”. (18)
O que é a hegemonia?
Laclau e Gramsci – “ontologia política”
Brecha ontológica entre discurso e realidade – irredutível e impossível de suturar
– objeto a em Lacan
A representação veiculada pelo discurso é estruturalmente falida – limite do
discurso em representar a realidade
O político não é um subsistema da realidade, mas um modo privilegiado em que
ela mesma se constitui. (19)
A hegemonia é uma resposta ao real impossível – lendo através de Lacan
Não consideramos o poder neoliberal uma hegemonia.

O discurso do capitalista que suporta o poder neoliberal não admite nenhuma


brecha, nenhuma heterogeneidade inicial, se apresenta com a potencia de representar
tudo e levar todas as singularidades e as diferenças à totalidade do circuito circular da
mercadoria. A hegemonia nunca é circular, está sempre perfurado em seus fundamentos,
enquanto o discurso do capitalista é um funcionamentos “contra-discursivo”;
poderíamos dizer que tenta inclusive aproveitar-se de todo o espaço simbólico, sendo a
própria produção biopolítica da subjetividade um claro exemplo dessa questão. Assim, o
ódio pela política hegemônica por parte da direita é finalmente um ódio ao simbólico e
ao sujeito que pode emergir no referido campo, um sujeito diferente dos projetos
uniformizantes da biopolítica neoliberal (19)

El momento hegemónico es insuperable. No hay sociedad que no sea en su


propia existencia una respuesta a la brecha que la constituye. El "saber hacer”, con esas
brechas, esas diferencias, esas heterogeneidades, en la construcción de uma voluntad
colectiva, es el arte de lo político. 20
Estas se deberán articular a un significante vacío que represente a la totalidad
imposible, para permitir La emergencia de una voluntad colectiva, que nunca es algo
dado de antemano por ninguna identidado por la llamada "psicología de las masas. Aquí
debemos hacer una apuesta sin garantías, o el crimen es perfecto y El discurso
capitalistas e haadueñado de larealidad y susujeto, de tal manera que ya está
definitivamente emplazado y solo llamado a ser material disponible para la forma
mercancía, o existendiferentes superficies de inscripciónd o n d e lo político-
hegemónico, de modo contingente, puede hacer advenir um sujeto popu
lar y sob erano, un sujeto interpelado poraquellos legados simbólicos que lo preceden y
por las demandas de distintos sectores explotados por las oligarquías financieras. Estas
demandas singulares secaracterizan porque no puedenser absorbidas por la arquitectura
institucional dominante. Las demandas no satisfechas institucionalmente son el punto de
partida,perosoloel puntod e partida, para que las diferencias ingresen a una lógica
equivalencial. Teniendo en cuenta que ya nopodemosimaginar una fórmulad
edesconexión Del Capitalismo, fundamentada supuestamente desde "leyes objetivas y
científicas, 20
discurso capitalista", y Heidegger las llamadas "estructuras de emplazamiento
técnico, que a la vez cons- tituven radicalizaciones teóricas y prácticas de lo que Marx
llamaba "la subsunción real" del Capital en su dominación abstracta. Por ello, es
inevitable pensar en la política como el únicolugar posible donde se puede dar un
combate con res- pecto al provecto de deshistorización y desimbolización que
el Neoliberalismo comporta. El Neoliberalismo es la primera fuerza histórica que se
propone tocar, alterar, y volver a pro- ducir al sujeto, intentando eliminar así su propia
constitución simbólica. Parafraseando al filósofo, "solo en el peligro de la política puede
crecerl o que nos salva". 22
Conectar la política con la vida real implica que la misma
es travesía, construcción, articulación, de una heterogeneidad que no siempre toma la
dirección que más anhelamos, pero que sin ella no habría nada que oponer como
Hegemonía al régimen del capital 22

Populismo, segundo a razão de Laclau, nomeia a impossibilidadedo discurso de


nomear objetivamente a totalidade do social. Tal qual na emergência do sujeito dividido
pela linguagem, o social se apresenta fraturado e dividido em sua própria constituição
pelo discurso. Essa fratura, essa brecha que torna impossível pensar em uma sociedade
unificada e totalizante, é a condição forma e empírica do antagonismo. (24-25)
A brecha do antagonismo é a precondição do “político” [e do laço social?] para
que possa emergir sempre de um modo contingente uma vontade coletiva
transformadora da institucionalidade vigente. (25)
O capitalismo definitivamente é a estrtura de poder do mundo contemporâneo,
homogêneo, circular, capaz de apagar [borrar] qualquer diferença ou heterogeneidade e,
portanto, é um poder e não uma hegemonia.
Crítica a Chul Han
Não tenho dúvidas de que a prática psicanalítica sim é datada
historicamente e não tem em absoluto garantida sua existência. Isso dependerá de
sua política. Os dispositivos neoliberais que descreve Han só podem ser efetivos se os
sujeitos se atêm ao tipo de mandato superegóico que os mesmos implicam. (28)
O supereu é uma instância que ordena gozar, sempre mais além de qualquer
equilíbrio subjetivo. (29)
Todas as figuras subjetivas do neoliberalismo referidas ao “rendimento, à
competência com um mesmo, à fábrica de endividamento permanente”, não constituem
um novo tipo de alienação no sentido marxista, porque pretendem chegar mais longe,
fazer desaparecer o insconsciente em nome de um dispositivo da pulsão de morte
consumada como depressão. (29)
Necessita fazer desaparecer o “conflito” para submergir tudo no consenso
neoliberal. (...) Deveríamos ter em conta que essa “liberdade” onde o sujeito goza
explodindo a si mesmo, está acompnhada de um novo estado de intimidação, ameaças e
distintas formas cada vez mais violentas de segregação. (29)

é já evidente que o neoliberalismo espera dos seres falantes outra coisa que
a verdade do inconsciente. A proliferação de managers da alma de distintos
cunhos, apenas constitui o primeiro avanço da gerencia empresarial que se presta
a reconfigurar o simbólico desde a lógica da mercadoria. Em outras palavras,
realizar em cada uma das voltas do discurso do capitalista uma “dessimbolização”
que anule a relação do sujeito com a verdade de seu desejo. (31)
Lacan – impasses crescentes da civilização {procurar}
A questão sobre se ainda é possível uma transformação radical das estrturas do
neoliberalismo no campo da democracia, é sempre uma indagação sobre tudo aquilo que
Lacan disse acerca dos seres falantes. (31)
Mal-estar do século XXI
A idéia de Lacan é que o capitalismo logrou introduzir uma nova relação entre a
falta e o excesso, uma nova relação entre o caráter insaciável do desejo humano e o
excesso de gozo. (...) no século Xxi surgiu um novo tipo de subjetividade neoliberal,
que poderíamos caracterizar do seguinte modo: como “empresário de si mesmo”. Não
alguém que tem uma empresa, se não que gerencia sua própria vida como um
empresário de si mesmo, como alguém que está todo o tempo desde sua própria relação
com si mesmo e em sua relação com o outro, concebendo, gerenciando, organizando sua
vida como uma empresa de rendimento. (...) e um mais de gozar. (33)

Esse mal-estar do século XXI é precisamente o que se determina desse modo: o


acesso dos sujeitos a maneiras do mais de gozar, que têm a ver com um rendimento de
si mesmos que os põem mais além de suas próprias possibilidades. Conceber-se todo o
tempo como um empresário de si, necessita desde logo consumir muitos livros de
auto-ajuda, muitos livros de autoestima, muitos coachs.... (34)

Ser empresário de si mesmo já não é trabalhar para o outro (...) é explorar a si


mesmo, explorar a si mesmo na culminação do rendimento e na obtenção de um mais de
gozar. Por isso, os confins clínicos dessa experiência do empresário de si são a
depressão ou a adição, para aqueles a quem a adição ajusta a sustentar-se nessa carreira
ilimitada e circular, onde todo o tempo está começando. Porque o empresário de si
mesmo não tem história, nem tem legado simbólico, nem pode mais remeter-se a
nenhuma biografia, nem pode remeter-se a uma tradição que o sustente. Não há nada
que o garanta atrás, e está seu puro empreendimento entregue a seu mais de gozar.” (34-
35)
A descrição do mal-estar no século XXI, que é a relação do credor com a dívida.
Não só se fabricam sujeitos que devem ser empresários de si, se não também se
fabricam devedores. Desde o momento em que não se assumem, nem pelo Estado,
nem pelo capital financeiro, as perdas que foram transferidas para a população, com
um relato que, ademais, se replicou em diversos países do mundo, segundo o qual (...) é
necessário começar com a austeridade, as restrições, um discurso que, vocês vêem, volta
a reproduzir exatamente a matriz do supereu freudiano. (35-36)
O reverso do empresário de si é precisamente o devedor (...) As dívidas, tanto
a soberana, como a privada, como a pública, são as novas formas de subjetivar o sujeito
NE época neoliberal do capitalismo. Isto é, um empresário de si ou um devedor, ou as
duas coisas de uma vez. De maneira tal que a dívida não é uma anomalia em sua vida,
nem um elemento exterior, senão aquele que condiciona e modula toda a sua existência
voltado a ser um empresário de si. (36)

Há algo no sujeito que lhe faça objeção [objetar] ao discurso do capitalista?


(...) Há que voltar à pergunta sobre de que recursos tem o sujeito em seus
sintomas, na constituição de sua fantasia, nas maneiras de viver o amor, em suas
maneiras de entender a amizade, em sua relação com o outro, que não ingressem
no circuito do capital. (37)

Homenagem ao final do Mal-estar na cultura onde Freud se pergunta se frente à


pulsão de morte, Eros teria alguma oportunidade. É uma pergunta da mesma ordem, há,
todavia, alguma oportunidade frente à lógica do capital? Sim, há, neste caso, para mim,
o novo nome de Eros é política. (...) que admita que as lpogicas emancipatórias devem
ser atravessadas com a psicanálise sem a proteção da filosofia. (37)
!!!!!!!!!!!
Os especialistas constituem a peça chave do dispositivo neoliberal, encarnam o
controle, por parte do saber sobre a população , que deixa de estar constituída por
“sujeitos”, e se apresenta como coisas que devem ser gerenciadas e calculadas. (37)

A existência de uma brecha que condiciona toda a realidade e que nenhum bem
geral construído sob o modo neoliberal pode terminar de apagar. Finalmente, o que é
verdadeiramente insuportável para o saber neoliberal é que o antagonismo não pode
ser absorvido pelo especialismo de um consenso, porque o antagonismo é o ponto
de partida a partir da qual a realidade se estrutura. (38)

O regimento dos especialistas treinados para dar argumentos ao


neoliberalismo mantém como propósito essencial o de deshistoricizar as populações,
arrebatar-lhes o sentido de suas heranças simbólicas e ocupar sem mais o presente
absoluto das “leis objetivas” dos especialistas. (39-40)

O capitalismo logrou para sua reprodução ilimitada, para sua extensão


planetária, intervir, modular e produzir uma nova subjetividade. Nenhuma
transformação política é possível se não põe em jogo aquilo que o circuito da
mercadoria não pode capturar: que parte de cada um de nós não pode integrar a forma
da mercadoria e seu fetiche? Responder a isso exige indagar nossa relação com a
palavra dita e o silencio, nossa relação com o amor e o desejo, nossa relação com a
morte, nossa relação com o duelo e com nossos ideais mais secretos e insondáveis,
nossa relação com a amizade e com o impossível que a acompanha.(40)

O neoliberalismo possui uma dimensão escatológica. Sua época é, por fim, que
introduz uma certeza para o futuro. Uma espécie de atração, de imã irresistível, chama
desde o futuro a consumar a pulsão de morte, essa através da qual se interrogava Freud
em relação a seu enigmático triunfo. (41)

Alemán, J.  Neoliberalismo y subjetividad.  
Articulo extraído del diario Página12 ‐ 14 de marzo del 2013 – acessado em 13 dez
2022
https://campuseducativo.santafe.edu.ar/wp-content/uploads/J-Aleman-
Neoliberalismo-y-subjetividad1.pdf

El  neoliberalismo  no  es  sólo  una  ideología  que  defienda  la  retirada  del 
Estado,  su  desmantelamiento  a  favor  del  mercado,  o  un  dejar  hacer  a  la  “mano 
invisible”  del 
capitalismo financiero. Tal como ya lo ha demostrado Michel Foucault, en “el nacimien
to  de la  biopolítica”,  y actualmente  Christian  Laval  y  Pierre Dardot, el 
neoliberalismo, a 
diferencia del liberalismo clásico o el neoconservadurismo, es una construcción positiva
,  que se apropia no sólo del orden del Estado, sino que es un permanente productor de 
reglas  institucionales,  jurídicas  y  normativas,  que  dan  forma  a  un  nuevo  tipo  de 
“racionalidad”  dominante (...)  El  neoliberalismo  no  es  sólo  una  máquina 
destructora  de 
reglas, si bien socava los lazos sociales, a su vez su racionalidad se propone organizar 
una nueva relación entre los gobernantes y los gobernados, una “gubernamentabilidad” 
según  el  principio  universal  de  la  competencia  y  la  maximización  del 
rendimiento  extendida  a  todas  la  esferas  públicas,  reordenándolas  y 
atravesándolas  con  nuevos  dispositivos de control y evaluación (1)
producir,  fabricar,  un  nuevo  tipo  de  subjetividad.  A  diferencia  del  sujeto 
moderno,  diferenciado  en  sus  fronteras  jurídicas,  religiosas,  institucionales,  etc., 
el 
sujeto neoliberal se homogeneiza, se unifica como sujeto “emprendedor”, entregado al 
máximo rendimiento y competencia, como un empresario de sí mismo. (...)
el empresario de sí, el sujeto neoliberal,  vive  permanentemente  en  relación  con  lo 
que  lo  excede,  el  rendimiento  y  la  competencia ilimitada. (1)
Las  técnicas  de  gestión,  los  dispositivos  de  evaluación,  los  coach,  los 
entrenadores  personales,  los  consejeros  y  estrategas  de  vida  son  el  suplemento 
social  del  sujeto  neoliberal  producido  por  los  dispositivos  de  la  racionalidad 
neoliberal.  El  sujeto 
neoliberal, viviendo fuera de su límite, en el goce de la rentabilidad y la competencia y 
estableciendo consigo mismo la lógica del emprendedor está a punto de fracasar a cada 
paso. El stress, el ataque de pánico, la depresión, “la corrosión del carácter”, lo precario, 
lo líquido y fluido, etc., constituyen el medio en que el sujeto neoliberal ejerce su propio 
desconocimiento  de  sí,  con  respecto  a  los  dispositivos  que  lo  gobiernan.  Esos 
dispositivos que le reclaman que sea “el actor de su propia vida”, el que racionaliza su 
deseo en la competencia y en la técnica de conducirse a sí mismo y a los demás (1-2)
Podemosafirmar que su racionalidad cumple con lo analizado por Heidegger con 
respecto a las estructuras de emplazamiento” del ser propias de la técnica, que provocan 
en el ser humano una presentación de su existencia en forma de cálculo de sí, o con lo pl
anteado por Lacan en el Discurso Capitalista, donde el sujeto ya sólo está condicionado 
por la “plusvalía” de goce. El fin último del neoliberalismo es la producción de un sujet
o nuevo,  un  sujeto  íntegramente  homogeneizado  a  una  lógica  empresarial, 
competitiva, comunicacional, excedida todo el tiempo por su performance. Sin la distan
cia simbólica  que  permita  la elaboración  política  de  su  lugar en  los  dispositivos 
que amaestran  su  cuerpo y su subjetividad.  (2)
como  han  pensado  Freud,  Heidegger  y  Lacan,  hay  ciertos 
elementos en la propia constitución estructural del sujeto, que ningún orden político‐
histórico puede integrar al menos en forma total y definitiva. La posible lucha contra el 
neoliberalismo depende de esta cuestión: ¿qué hay en el advenimiento del sujeto en su 
condición mortal, sexuada y mortal que no pueda ser atrapado por los dispositivos de 
producción de subjetividades específico del neoliberalismo?  (2)

Dardot, C. e Laval, P. Anatomia do novo neoliberalismo, Jul-2019

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/591075-anatomia-do-novo-
neoliberalismo-artigo-de-pierre-dardot-e-christian-laval

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se


reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o
caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais
longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo
Trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou
mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e
no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na
norma das existências.
O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise.
Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e
sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as
provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la
indefinidamente.
No passado, muitas vezes, o neoliberalismo se associou com a abertura, o
progresso, as liberdades individuais, com o Estado de direito. Atualmente, conjuga-se
com o fechamento de fronteiras, a construção de muros, o culto à nação e a soberania
do Estado, a ofensiva declarada contra os direitos humanos, acusados de colocar em
perigo a segurança.
Em suma, o neoliberalismo gerou o que Gramsci chamou de ‘monstros’
mediante um duplo processo de desfiliação da comunidade política e de adesão a
princípios etnoidentitários e autoritários, que colocam em questionamento o
funcionamento normal das democracias liberais. O trágico do neoliberalismo é que, em
nome da razão suprema do capital, atacou os próprios fundamentos da vida social, do
modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social
e intelectual.
Ao querer converter a sociedade em uma ordem da concorrência que só
conheceria homens econômicos ou capitais humanos em luta uns contra outros,
minaram as próprias bases da vida social e política nas sociedades modernas,
especialmente em razão da progressão do ressentimento e da cólera que semelhante
mutação não poderia deixar de provocar.
((Segregação))

Alemán, J. Quando a submissão capitalista está dentro de você – site


Outrasmídias, jan 19 – acesado em 13 dez 2022

https://outraspalavras.net/outrasmidias/quando-a-submissao-capitalista-ja-esta-
dentro-de-voce/

Resenha do novo livro de Dardot e Laval - La pesadilla que no acaba nunca


o neoliberalismo é uma nova ordem racional que vai apagando tendencialmente
a diferença público-privado e que dispõe da potência de se apropriar das diferentes
ordens da vida até chegar a configurar o modo mais íntimo da vida do sujeito. Para estes
autores, funciona uma espécie de promessa neoliberal que, em seu exercício cativante,
molda os sujeitos em seu próprio modo de ser.
indagam o modo como a condição primordial “ilimitada” do neoliberalismo se
introduz na vida dos seres falantes. Por condição ilimitada, estes autores, assim como
Lacan, admitem que o novo capitalismo não pode sofrer interferência, nem regulação,
por qualquer exterior. Sua potência conectiva, abarcadora e interventora na própria
formação dos laços sociais é impossível de limitar. No que isto afeta os sujeitos? Como
esta potência ilimitada intervém na própria constituição dos sujeitos?
os autores insistem que o neoliberalismo soube construir um “imaginário” ao
qual um mundo alternativo por parte da esquerda não pôde se contrapor. O que confere
ao neoliberalismo seu caráter de promessa e sedução é que, por meio de diferentes
dispositivos acompanhados por coachs de diferentes tipos e managers da alma de
diferentes cunhos e estilos, introduziram uma lógica de rendimento e de
“autovalorização de si”, onde o sujeito é apenas uma vontade de acumulação do próprio
valor. 
No neoliberalismo, os sujeitos não só vendem sua força de trabalho sob a forma
de mercadoria. Também existe algo que compromete o próprio ser com um “capital
humano” e um “espírito empresarial” que leva a própria existência a se comportar como
uma empresa. Não se trata de ter uma empresa, nem de trabalhar nela, mas de existir
sob o mandato de tornar a si mesmo e a própria relação consigo mesmo em capital
financeiro. 
Neste aspecto, assinalamos que neste discurso ilimitado vão se apagando
progressivamente os legados simbólicos, a alteridade e a impossibilidade que a
determina, até tornar a vida expressão de um presente absoluto. Sem dúvida, trata-
se, conforme também destacam os autores, de um processo permanente de
“automaximização”. Ou, como dizem os próprios autores: o sujeito autoaumentado é
o que goza do valor que é ele próprio”. Em outros termos, o sujeito goza da produção
que aumenta seu valor.
para Lacan, “gozo” é diferente de prazer, que sempre é regulado e limitado. O
gozo é algo “para além do Princípio do Prazer”, que se ajusta adequadamente ao
dispositivo do rendimento empresarial vinculado a seu caráter compulsivo, viciante e,
finalmente, seu reverso depressivo.

o solo nativo do sujeito, o lugar de onde advém a sua própria existência não é o Poder,
mas, sim, a estrutura da linguagem que o precede e o espera antes de seu próprio
nascimento.

O sujeito é um acidente falido e contingente que emerge na linguagem atravessado pela


incompletude e a inconsistência. Radicalmente dividido, esburacado e que sempre
necessita de diferentes recursos “fantasmáticos” para suportar sua falha constitutiva.
Esta é a verdadeira razão pela qual a promessa neoliberal pode encontrar sua ancoragem
no sujeito, e inclusive ser desejada. Por isso, é fundamental, metodologicamente,
distinguir o sujeito causado como um efeito contingente pela linguagem da
“subjetividade” produzida pelos dispositivos de poder. Se esta distinção não ocorre, é
impossível cortar o círculo. Se a subjetividade é produzida pelo poder, por que razão
encontrará, nela mesma, recursos para escapar daquilo que a constituiu? Como se pode
apreciar, este é um problema político de primeira ordem, caso se almeje pensar em
experiências contra-hegemônicas a respeito do neoliberalismo.

Nossa experiência do Comum é a copertença ao surgimento na língua, sempre


falido, em falta e tentado pelas diversas promessas imaginárias de “nos
autovalorizarmos” de tal modo que a verdade de nossa fragilidade constitutiva se
esconda para nós mesmos. Eis aqui, em nossa avaliação, um dos segredos que oferecem
força à promessa do imaginário neoliberal.

Birman – Mal-estar na atualidade

Examinando o campo social da atualidade, pode-se constatar, sem muita


dificuldade, que o autocentramento do sujeito atingiu limiares impressionantes e
espetaculares, se o compararmos com os momentos anteriores da história do Ocidente
quando se instituiu e se reproduziu a visão individualista de mundo. Partindo dos
pressupostos desta, o individualismo, como autocentramento absoluto do sujeito,
atingiu seu cume e limiares até então impensáveis. Nas condições atuais daquele, a
alteridade tende ao apagamento e quase ao silêncio na economia do sujeito. Nesse
contexto, o autocentramento, aliado à inexistência de história e ao desaparecimento da
alteridade como valor, foi considerado por Lasch como traço fundamental da cultura do
narcisismo.(173)

O autocentramento se apresenta inicialmente sob a forma da estetização da


existência, onde o que importa para a individualidade é a exaltação gloriosa do
próprio eu.(173)

Deixa-se de considerar, assim, a especificidade dos registros simbólico e


pulsional do sujeito. Em seguida, o que se destaca nesse registrobiológico é a
investigação psicofarmacológica. Esta se volta principalmente, é óbvio, para as
terapêuticas daquelas perturbações mentais. (175)

O que define a psicopatologia é o destaque conferido a quadros clínicos


fundados sempre no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo.
Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de
estetização de sua existência, sendo considerado, pois, um fracassado segundo os
valores axiais dessa visão de mundo. Pelo uso sistemático de drogas o indivíduo procura
desesperadamente ter acesso à majestade da cultura do espetáculo e ao mundo da
performance. É necessário glorificar o eu*, mesmo que por meios bioquímicos e
psicofarmacológicos, isto é, pelos artefatos tecnológicos. (176) {*para ser mprendedor
de si mesmo, para se aperfeiçoar ao máximo, para atingir a plena potência de seu corpo-
ser}

Não é por acaso que a psicanálise vem perdendo terreno e importância na era
pós-moderna. Com efeito, a experiência psicanalítica se contrapõe, em todos os seus
detalhes, aos valores que orientam a cultura do narcisismo e do espetáculo, na medida
em que a emergência dos universos do inconsciente e da fragmentação pulsional
pressupõe a ruptura do sujeito com o eixo narcísico do eu. Conduzir o sujeito ao
encontro incerto e imponderável de seu desejo faz com que ele, necessariamente,
siga trilhas opostas ao projeto mundano do espetáculo e da performance. Há muito
tempo já se sabe que o grande ponto de ultrapassagem para a experiência psicanalítica é
a quebra da exaltação narcísica do eu, isto é, das mirabolâncias de seu espetáculo. Para
que a psicanálise funcione, pois, é preciso romper com as amarras narcísicas do
indivíduo, em que o gozo e a predação do outro são soberanas, para conduzir o sujeito
ao encontro do insondável de seu desejo. (177)

a psicanálise também entra em crise, sendo lançada também no purgatório e no


limbo. Não porque aquela seja fundada na filosofia do sujeito, mas porque se contrapõe
aos pressupostos éticos da cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo. Pois a
condição de possibilidade para a emergência do inconsciente e da fragmentação
pulsional é justamente o esfacelamento do registro narcísico do eu. (180)

As neurociências fornecem os instrumentos teóricos que orientam a construção


da explicação psiquiátrica. Por esse viés, a psicopatologia pretende ter encontrado
finalmente sua cientificidade, de fato e de direito. (188)
as neurociências têm a pretensão de fundamentar as funções do espírito, de
maneira autônoma e independente. É importante observar que as neurociências
pretendem construir uma leitura do psiquismo de base inteiramente biológica. Com isso,
o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento cerebral, sendo este
representado em uma linguagem bioquímica. Enfim, a economia bioquímica dos
neurotransmissores poderia explicar as particularidades do psiquismo e da
subjetividade. (190)

a psicanálise passa a incorporar, em seu discurso, os referenciais teóricos do


discurso psiquiátrico. Tudo isso descaracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Tal fato pode ser percebido não apenas no registro das novas publicações em
psicanálise, mas também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de
psicanálise na universidade. Isso se passa tanto na Europa e nos Estados Unidos como
na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu um outro limite,
absolutamente novo, em relação ao que já conhecíamos de outros momentos da história
do movimento psicanalítico. Nessa inversão de lugares e posições estratégicas, a
psicanálise fica em posição secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o
discurso psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e
do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total no
horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria. (192)

Nesses termos, a psicopatologia da atualidade se aproxima bastante e até se


identifica com a nova racionalidade clínica médica.
(...)
A etiologia passa aocupar um lugar secundário nesse novo contexto. (193)

a leitura do mal-estar corporal assume uma direção totalmente funcional e não


mais etiológica. Além disso, as dimensões da história do enfermo e do tempo da doença
se transformam em questões secundárias diante do investimento realizado no
disfuncionamento corpóreo e espacial da enfermidade. Enfim, o novo discurso da
medicina é centrado nos acontecimentos corporais, marcados pela sua pontualidade
temporal. (193)

a forma de intervenção assume uma direção centrada em acontecimentos, nos


quais se revelam os disfuncionamentos do psiquismo. A ideia de história de uma
subjetividade, articulada com o eixo do tempo, tende ao silêncio e ao esquecimento. É
sempre a pontualidade da intervenção, centrada no psicofármaco, que está em questão
na terapêutica do dispositivo psiquiátrico da atualidade. Jogou com isso, enfim, uma pá
de cal na concepção de história como fundamento da subjetividade. (194)

Então o sujeito perde a densidade e a profundidade , transformando-se numa


espécie de superfície plana, margeada pela moldura de um enquadramento? É disso que
se trata, afinal de contas? Transforma-se a cena do mundo em um contraponto de
reflexões especulares, em que a refração jamais perfura o jogo encantado entre o olhar e
o espelho? (198)

VER: DIONÍSIO DESENCANTADO P. 226/ 235 (!)


{pensar a aproximação da toxicomania com o limiar de um autismo}
A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo –
Lipovetsky, G., SP: Companhia das Letras, 2007.

Uma das dinâmicas postas em marcha há meio século tornou-se dominante: em


período dc hiperconsumo, as motivações privadas superam muito as finalidades
distintivas. Queremos objetos "para viver", mais que objetos para exibir (...)com vista a
satisfações emocionais e corporais, sensoriais c estéticas, relacionais e sanitárias,
lúdicas e distrativas. Os bens mercantis funcionavam tendcncialmente como símbolos
de status, agora eles aparecem cada vez mais como serviços à pessoa. (41-42)
Das coisas, esperamos menos que nos classifiquem cm relação aos outros c mais
que nos permitam scr mais independentes c mais mõvcis, sentir sensações, viver
experiências, melhorar nossa qualidade de vida, conservar juventude e saúde.
Naturalmente, as satisfações sociais diferenciais permanecem, mas quase já não são
mais que uma motivação entre muitas outras, em um conjunto dominado pela busca das
felicidades privadas. (42)
O que se apodera dc porções cada dia mais amplas do consumo é uma atividade
consumidora sem negativo nem aposta inter-humana, sem dialética nem competição
maior (42)
A aposta primeira era ser filiado a um grupo e criar distância social. O que resta
disso á hora dos novos objetos de comunicarão acelerando as trocas interindividuais e
tornando possíveis as estimulações do eu, à hora ainda cm que explodem as demandas
de saúde, de divertimento c de maior bem-estar? Não é mais a oposição entre a elite dos
dominantes e a massa dos dominados, nem aquela entre as diferentes frações de dasse
que organiza a ordem do consumo, mas o “sempre mais" c o zapping generalizado
(...)Agora, a busca das feliddades privadas, a otimização de nossos recursos corporais e
relacionais, a saúde ilimitada, a conquista de espaços-tempos personalizados é que
servem dc base à dinâmica consumista: a era ostentatória dos objetos foi suplantada
pelo reino da hipcrmcrcadoria desconflitada'e pós-conformista. O apogeu da mercadoria
não é o valor signo diferencial, mas o valor experiencial, o consumo "puro" valendo
não como significante social, mas como conjunto de serviços para o indivíduo. (43)
{pensar a maximização dos lucros, mas não só, a maximização de tudo, das
potências, do prazer, do ter, do ser.... promessa de gozo absoluto e irrestrito, em
Aléman, o ilimitado}

a época em que as tradições» a religião, a política são menos produtoras de


identidade central» o consumo encarrega-se cada vez melhor de uma nova função
identitária. Na corrida às coisas e aos lazeres» o Hottto consumericus esforça-se mais ou
menos conscientemente em dar uma resposta tangível, ainda que superficial. à eterna
pergunta: quem sou eu? (45)

consumo emocional aparece como forma dominante quando o ato de compra,


deixando de ser comandado pela preocupação conformista com o outro, passa para uma
lógica desinstitucionalizada e intimidada [ilimitada?], cenl rada na busca das
sensaçóes e do maior bem-estar subjetivo. A fase iii significa a nova relação
emocional dos indivíduos com as mercadorias, instituindo o primado do que se sente, a
mudança da significação social c individual do universo consumidor que acompanha o
impulso de individualização de nossas sociedades. (46)
O consumo emocional indica, então, a vitória do "ser** sobre o "parecer” do
autentico sobre o "look" incansavelmente celebrado pelos observadores dc tendências c
pelas revistas? Isso está longe de ser tão simples. (46)
O que importa não é mais “ impressionar" os outros, mas confirmar seu valor
aos seus próprios olhos, estar, como diz Veblen, "satisfeito consigo": “Lo réal, porque
eu mereço" (48) {maximização}

Nesse contexto, a compra dc um produto dc marca não é apenas uma


manifestação de hedonismo individualista, visa também responder às novas incertezas
provocadas pela multiplicação dos referenciais, bem como às novas expectativas de
segurança estética ou sanitária. Nas épocas anteriores, existiam modos de socialização,
normas e referências coletivas que distinguiam inequivocamente o alto e o baixo, o bom
gosto e o mau gosto, a elegância e a vulgaridade, o chique e o popular, as culturas dc
classe instituíam um universo claro e sólido de princípios e de regras fortemente
hierarquízados e assimilados pelos sujeitos. Essa ordem hierárquica se desmantelou (49)
Um fundo de desorientação e de ansiedade crescente do hipcrconstimidor (50)

!!!!!!!!
eleva-se um novo imaginário associado ao poder sobre si, ao controle
individual das condições de vida. Daí em diante, os gozos ligados à aquisição das
coisas se relacionam menos à vaidade social que a um “mais-poder" sobre a
organização de nossas vidas, a um dominio maior sobre o tempo, o espaço e o
corpo. Poder construir de maneira individualizada seu modo de vida e seu emprego
do tempo, acelerar as operações da vida corrente, aumentar nossas capacidades de
estabelecer relação, alongar a duração da vida, corrigir as imperfeições do corpo,
alguma cotsa como uma "vontade de poder* e seu gozo de exercer uma dominação
sobre o mundo e sabre si aloja-se no coração do hiperconsumidor (51-52)

O que é que seduz nos novos objetos de consumo-comunicação (computador,


videogravador, fax, internet, telefone celular, forno de microondas) a nào ser sua
capacidade de abrir novos espaços de independência pessoal, 14 de aliviar os pesos do
espaço-tempo? Por intermédio das coisas, buscamos menos a aprovação dos outros que
uma maior soberania individual, um maior controle dos elementos de nosso universo
costumeiro. Na fase iii, o consumo funciona como alavanca de “potência máxima"
vetor de apropriação pessoal do cotidiano: não mais teatro de signos distintivos, mas
tecnologia de autonomizaçâo dos indivíduos em relação às obrigações de grupo e aos
múltiplos constrangimentos naturais. Nâo sâo mais tanto os desejos de representação
social que impulsionam a espiral consumidora quanto os desejos de governo de si
próprio, de extensão dos poderes organizadores do indivíduo. (52)

A sociedade de hiperconsumo ê aquela na qual as despesas de saúde se


desenvolvem por todos os meios, progredindo mais que o conjunto do consumo (53)
os espiritos são invadidos todos os dias um pouco mais pelos cuidados com a
saúde, os conselhos de prevenção, as informações médicas: nâo se consomem mais
apenas medicamentos, mas também transmissões, artigos de imprensa para o grande
público, páginas da Web," obras de divulgação, guias e enciclopédias médicas. (53)
a competência médica estende-se a todos os domfnios da vida para melhorar-
lhes a qualidade. Enquanto um número crescente de atividades e de esferas da existência
toma uma coloração sanitária, os bens de consumo integram cada vez mais a dimensão
da saúde: alimentos, turismo, hábitat, cos míticos» a temática da saúde tornou-se um
argumento decisivo dc venda. A fase in anuncia-se como o tempo da medicalização da
vida e do consumo. (53-54) {Biopolítica}
um consumo excrescenle centrado apenas no indivíduo, em sua saúde e sua
conservação. Nada dc lutas simbólicas c de vantagens dc distinção: apenas a vigilância
higienista dc si, os medos hipocondríacos, o combate medico contra a doença c os
fatores de risco. O hiperconsumo médico constitui a ponta extrema da tendência à
dcssimholizaçâo cm vigor na fase ui: aqui não resta mais que a busca da
otimização da saúde pela autovigilância e pelas práticas tccnocientificas. (54)
{hiperconsumo psi?}

angústia crescente relacionada ao corpo c à saúde. Em nome da religião da


saúde, é preciso informar-sc sempre mais, consultar os profissionais, vigiar a qualidade
dos produtos, sopesar e limitar os riscos, corrigir nossos hábitos de vida, retardar os
efeitos da idade, passar por exames» fazer revisões gerais. Foi-se a época feliz e
despreocupada da mercadoria: o tempo que chega é o da hipcrmcrcadoria medicalizada
(54)
novas disjunções condutoras de um estado de guerra e de mobilização total
contra a doença, a velhice, a poluição, a obesidade, os fatores de risco. Na realidade, o
consumo não deixou dc ser um campo de batalha: se o conflito inter-humano recua, é
em favor de uma luta medica interminável c causadora de ansiedade. A pacificação do
consumo é uma aparência enganosa: daqui em diante o sentimento do perigo c do
risco é onipresente, tudo, no limite, podendo ser percebido como ameaçador e exigindo
vigilância. No cido lii, a insegurança, a desconfiança, a ansiedade cotidiana crescem na
proporção mesma de nosso poder de combater a fatalidade e alongar a duração da vida.
(55)
. O ncoconsumidor já não procura tanto a visibilidade social quanto um
rcdobradocontrole sobre seu corpo por meio das tecnologias médicas: maneira de lutar
contra a fatalidade natural, o consumo tende a funcionar como um antidestino. (55)
De um lado, a eficácia médica estende os poderes do homem sobre sua vida. do
outro» cria um “consumidor sem poder” (56)

também o consumo de psicotrópicos com vista ã “gestão" dos problemas


existenciais, ilustram essa relação individualista com o corpo. Daí em diante, os sujeitos
querem escolher seu humor, controlar sua experiência vivida cotidiana, tomar-sc
senhores das vicissitudes emocionais fazendo uso de medicamentos psicotrópicos cujo
consumo, como se sabe, não cessa de crescer. A medida que se afírma o princípio de
soberania pessoal sobre o corpo, o indivíduo confia sua sorte à ação de substâncias
químicas que modificam seus estados psicológicos “de fora", sem análise nem trabalho
subjetivo, apenas importando a eliminação imediata dos dissabores (fadiga, insônia,
ansiedade), a eficácia mais rápida possível, o desejo de produzir estados afetivos “sob
encomenda". E por um consumo passivo dc moléculas químicas que sc manifesta aqui a
exigência de soberania individual. Sc esses recursos banalizados à psicofarmacologia
mostram um desejo individualista de controle do corpo c do humor, eles ilustram, ao
mesmo tempo, uma certa impotência subjetiva, renunciando o sujeito a todo esforço
pessoal ao entregar-se à onipotência dos produtos químicos que agem sobre ele, sem
ele.” As soluções de nossos males não são mais procuradas em nossos recursos
interiores, mas na ação das tecnologias moleculares que, ainda por cima, não deixam de
causar tolerância. O indivíduo desejoso dc dirigir ou de retificar a seu gosto sua
interioridade transforma-se em indi viduo “dependente”: quanto mais é reivindicado o
pleno poder sobre sua vida, mais se espalham novas formas de sujeição dos indivíduos.
(56-57)
a melhorar a “qualidade de vida”, a resolver cada vez mais problemas da
existência cotidiana tanto dos mais jovens quanto dos mais idosos. Sono, ansiedade,
depressão, bulimia, anorexia, sexualidade, beleza, desempenhos de todo tipo, em todos
os domínios as ações medicamentosas e cirúrgicas são mobilizadas de maneira
crescente. Em sociedade de hiperconsumo, a solução de nossos males, a busca da
felicidade sc abriga sob a égide da intervenção técnica, do medicamento, das próteses
químicas. Isso não elimina de modo algum as abordagens psicotcrapéuticas, mas é
forçoso constatar que a “farmácia da felicidade*1* tende a reduzirlhes a antiga
ccntralidadc. (57)
finalidades que são a autonomia subjetiva, a saúde, o bem-estar, o
divertimento, a comunicação, e que têm como característica scr axiomálicas sem
territorialidade fixa, empurrando sempre para mais longe suas fronteiras (58)

a propensão a comprar como um novo ópio do povo, destinado a compensar o


tédio do trabalho fragmentado,as falhas da mobilidade social.a infelicidade da solidão.
“Sofro, logo compro'*: quanto mais o indivíduo está isolado ou frustrado, mais busca
consolos nas felicidades imediatas da mercadoria (60)

compra-se tanto mais quanto se está carente de amor, o shopping permitindo


preencher um vazio, reduzir o mal-estar dc que se é vítima. Mas toda a questão está cm
saber se essa função consoladora dá conta, em toda a sua extensão, das paixòes
consuniistas. (60)
O que é que está em jogo para o sujeito na corrida às satisfações
mcrcantilizadas? (61)

A fase iii da economia de massa nasce no momento cm que o s lares alcançam


uma forte taxa de equipamento. (98)
A sociedade do objeto aprcsenta-sc conto civilização do desejo» prestando um
culto ao bem-estar material e aos prazeres imediatos. Por toda parte cxibem-sc as
alegrias do consumo, por toda parte ressoam os hinos aos lazeres e às férias, tudo se
vende com promessas de felicidade individual. Viver melhor, aproveitar a vida", gozar
do conforto e das novidades mercantis aparecem como direitos do indivíduo, fins em st,
preocupações cotidianas de massa. Espalha-se toda uma cultura que convida a apreciar
os prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e agora, a viver para si mesmo; ela não
prescreve mais a renúncia, faz cintilar cm letras de neon o novo Evangelho: “Comprem,
gozem, essa é a verdade sem tirar nem pôr*. Essa é a sociedade de consumo, cuja
alardeada ambição é liberar o principio de gozo, desprender o homem dc todo um
passado dc carência, de inibição e de ascetismo. Não mais injunçòcs disciplinares e
rigorisias, mas a tentação dos desejos materiais, a celebração dos lazeres c do consumo,
o sortilégio perpétuo das felicidades privadas. (102)

a fase llt representa a passagem da era da escolha à era da hiptrescoUta* do


monoequípamento ao niultiequipamento, do consumismo descontínuo ao consumismo
continuo, do consumo individualista ao consumo Ittfcrímfividualista. (104)
Objetos como o telefone celular, a secretária eletrônica, o congelador, o
microondas, o videogravador tém em comum permitir que os indivíduos construam de
maneira autônoma seu próprio espaço-lempo. A hora é da hiperíndividualização da
utilização dos bens de consumo, das defasagens dos ritmos no interior da família, da
dessincronizaçáo das atividades cotidianas e dos empregos do tempo. F.m suas
bandeiras, a sociedade de hiperconsumo pode escrever cm letras triunfantes: "Cada um
com seus objetos, cada um com seu uso, cada um coni seu ritmo de vida". (105)

As aspirações crescentes à autonomia e ao maior bem-estar, a escolha da


primeira qualidade c a diferenciação da oferta mercantil, todos esses fatores tornaram
possível um uso cada vez mais personalizado dos bens de consumo e, ao mesmo tempo,
uma imensa desregulamentação do consumo, articulada em torno do referencial do
indivíduo. (106)

A lógica do turboconsumismo encontra sua realização perfeita nas redes


eletrônicas, (110)

sobre os produtos e serviços, compará-los a qualquer hora do dia e da noite antes


dc fazer a escolha adaptada às suas necessidades. Ê um sistema de informação sem
limite, sem coerçáo de tempo e de lugar que especifica a época do turboconsumismo.
(111)
Nesse contexto de estilbaçamento dos enquadramentos espaço-temporais do
consumo, afirmam-sc novos comportamcntos, marcados pela exigência dc eficácia e dc
rapidez, peta preocupação obsessiva dc ganhar tempo. (111)

A época do Msabcr esperar", cm que a experiência da espera era um elemento de


felicidade, recua cm favor de uma cultura da impaciência e da satisfação imediata dos
desejos. (112)
A obstinação em comprimir o tempo foi Interpretada como um dos signos do
advento de uma nova condição temporal do homem. marcada pela sacralízação do
presente, por um “presente absoluto” (112)
"cada um faz o que lhe agrada” A questão central não é mais "ser como os
outros” mas "o que escolher?” na oferta pictórica do mercado: o princípio de autonomia
tornou-se a regra de orientação legítima das condutas individuais. O turboconsumismo
define-se pelo descontrole social do comprador, por sua emancipação em relação às
obrigaçócs simbólicas de classe. Assim ,o direito de construir nosso modo de existência
com oMbcm nos parece” ;á não encontra outro obstáculo alêm do nível do poder de
compra. (116)

o advento do "consumidor cmprcccndcdor" que substitui o individual pelo


familial, o egoísmo pela solidariedade, o inútil pelo essencial, o efêmero pelo durável."
Findo o consumidor individualista, eis chegado o tempo do consumidor “ expert” (124)
O que há dc mais expressamente individualista, ou mesmo de narcísico, que as
novas preocupações relativas à saúde, ao corpo e à aparência? Há tanta, se não mais,
motivação individualista no crescimento dos consumos de saúde quanto nas despesas
destinadas a atrair o olhar do outro. (125)
A idéia de Honto consumam gerindo suas atividades de maneira “profissional”
comprometendo-se no rumo dc um aMvída controlada”, veicula demais a imagem sem
complicações dc um consumidor racional e equilibrado. A consideraçâo^do quadro de
conjunto revela traços muito mais contrastados. (126)

O relaxamento dos controles coletivos» as normas hedonistas, a escolha da


primeira qualidade, a educação liberal, tudo isso contribuiu para compor um indivíduo
desligado dos fins comuns e que, reduzido tão-só ás suas forças, se mostra muitas vezes
incapaz de resistir tanto ás solicilaçòcs externas quanto aos impulsos internos. Assim,
somos testemunhas de todo um conjunto de comportamentos desestruturados, de
consumos patológicos e compulsivos. Por toda parte, a tendência ao desregramento de
$Í acompanha a cultura de livre disposição dos indivíduos entregues à vertigem de si
próprios no supermercado contemporâneo dos modos de vida. À medida que se amplia
o principio de pleno poder sobre a direção da própria vida, as manifestações de
dependência c de impotência subjetivas se desenvolvem num ritmo crescente. (127)
{em nome do empreendedorismo de si exacerba-se o consumo em si de si/
objetificação do sujeito?}

O estágio iii pós em órbita um consumidor amplamente emancipado das


imposições e ritos coletivos. Mas essa autonomia pessoal traz consigo novas formas de
servidão. Se ele está menos submetido aos valores conformistas, está mais subordiiiado
ao reino monetizado do consumo. Se o indivíduo ê social* mente autônomo, ei-lo mais
do que nunca dependente da forma mercantil para a satisfação de suas necessidades.
(...)A influência geral do consumo sobre os modos de vida c os prazeres amplia-se tanto
mais quanto impõe menos regras sociais coercitivas. (127)
O estágio ui significa o momento ein que a esfera comercial se torna
hegemônica, cm que as forças do mercado invadem a quase totalidadedos aspectos da
existência humana. Pode-se compreender, nessas condições, a urgência que há em
interrogar-se sobre o tipo dc ser humano e dc vida social modelados pelo que alguns
chamam dc novo "totalitarismo mercantil” (142)

Se o processo de mercantilizaçào náo for contido, não é imenso o risco de que se


degradem a sociabilidade, a confiança social, a empatia, todos os valores c sentimentos
que definem nossa humanidade? O que será dos laços comunitários, das relações
baseadas na afeição, no amor e na dedicação em sociedades que náo conhecem mais que
as trocas venais? A natureza humana náo está ameaçada quando a maior parte de nossas
relações se torna monetária c contratual?'7 Assim, é possível que, à sombra do
consumismo eufórico, esteja sendo preparada uma nova humanidade ou “pós-
humanidade” de pesadelo.(142)
. Superarse, ser bem-sucedido no que se empreende, vencer as provações,
inventar, criar, todas essas paixões que Nietzschc associava à idéia de vontade de poder
estão, afinal, inalteradas. "A luta pelo poder, a ambição de ter 'mais* e 'melhor* c 'mais
depressa* e 'com mais frequência*... a força imensa que quer dcspendcr-sc c criar” para
crescer, para dominar, pela "sensação de um máximo d e p oder* nada de tudo isso
desapareceu. À medida que o ato dc con sumir estende sua influência, as exigências de
superação de si, as de ser estimado e de ter auto-estima pelo que sc realiza não cessam
de se reafirmar. (143)
Contrariamente a uma idéia muito repisada, a sociedade de hiperconsumo não é
sinônimo dc cncasulamento e de “confinamento interativo generalizado" O equipamento
audiovisual dos lares não suprimiu dc modo algum a necessidade de estar em contato
com o “ mundo" e de encontrar os amigos. Estamos muito longe da sociedade dita “
fortemente comunicante, mas fracamente defrontante” ao contrário, o gosto pelo ao
vivo, o desejo de sair, dc “ver gente”, dc participar de grandes reuniões festivas é que
parecem representar as tendências mais significativas. Observando-sc o florescimento
dos clubes e associações, nada permite afirmar que no futuro sc encontrará cada vez
menos o outro, num estado crescente dc “solidão interativa” (145)
Evitemos o clichê do declínio da vida social: por ora, nào há perigo real
referente às inclinações à sociabilidade, lendo o desenvolvimento do virtual e das
mídias mais probabilidades dc reforçara importância vivida dos contatos diretos que de
depreciá-los, Se as relações de vizinhança se enfraquecem, nâo é em favor da reclusão
doméstica, mas de uma "sociabilidade ampliada" mais seletiva, mais efêmera, mais
emocional, em outras palavras, posta no diapasâo do ethos hiperconsumidor. (156)
{fazer uma distinção entre interação social e laços sociais – a primeira não
recuou, as pessoas ainda querem “experiências vivas”, mas não mais, laços... interagir
socialmente, ir a bares ou clubes é diferente de formar laços. O que prepondera nas
interações sociais é o desenlace, a instantaneidade, a experiência imediata, o desfrute, o
gozo do momento – portanto, os sujeitos estão, sim, mais solitários, mais distantes, não
trocaram o contato humano pelas telas, o contato vivo pelo virtual, mas estabelecem o
contato “vivo” como o virtual, usam/consomem o outro como a tela, um objeto a lhe dar
uma satisfação pontual, um objeto de consumo.}
Não fazemos mais que consumir amor nas mídias de massa» cremos nele»
reconhecemos-lhe um valor excepcional, organizamos-desorganizamos parles inteiras
de nossa existência em função dos movimenlos do coração. Um eixo importante da vida
permanece fundamentalmente heterogêneo às forças do mercado: nem tudo, é evidente,
foi colonizado pelo valor de troca. É essa própria dimensão que constitui o que para nós
é a maior riqueza, o relevo mais intenso da vida privada. Essa parte fora do mercado não
é nem residual nem arcaica. £ bem o contrário: quanto mais se amplia a comercialização
dos modos de vida, mais se afirma o valor do pólo afetivo na esfera privada. O universo
do consumo-mundo não póc fim ao principio da afetividade sentimental, consagra-o
como valor superior, correlativo à cultura do individuo que, aspirando à autonomia
pessoal, recusa as regulações institucionais do tempo privado. £ assim que a cultura do
amor se gcncrali/a na proporção mesma em que se intensifica, ao mesmo tempo, a
dinâmica do indivíduo e a da mcrcantilização das necessidades. (148)
No horizonte, dcscnha-sc não a aniquilaçáo dos valores e dos sentimentos, mas,
mais prosaicamente, a desregulamcntação das existências,a vida sem proteção, a
fragilização dos indivíduos. A sociedade de hiperconsumo ê contemporânea da espiral
da ansiedade» das depressões, das carências de auto-estima, da dificuldade de viver. !
>cmbramo-nos das palavras dcWoody Allcn: "Deus está morto, Frctid está morto c eu
mesmo não me sinto lá muito bem"; cada um acha cada vez mais penoso assumir as
dificuldades da vida, cada um tem a impressão de que a vida ê mais pesada» mais
caótica, mais^impossivcl'* no momento mesmo em que as condições materiais
progridem. F.nquanto brilha a euforia do bem-estar, cada um tem, mais ou menos, a
impressão de não ter vivido o que teria desejado viver, de ser mal compreendido, de
estar á margem da 'Verdadeira vida**. (149)
A civilização que sc anuncia não abole a sociabilidade humana» ela dcstròi a
tranqüílidade consigo e a paz com o mundo, tudo se passando como se as auto-
insatisfaçôes progredissem proporcionalmente às satisfações fornecidas pelo mercado.
(149)
construiu-se um último modelo [o autor lista 4 modelos] que insistia na
privatização das existências posta em marcha pela civilização consumista. Destruindo a
influência organizadora das grandes instituições, provocando a derrocada das utopias da
história e das morais sacrificiais, as sociedades de consumo impulsionaram uma
individualização extrema dos modos de vida c das aspirações. Durante mais de dois
séculos,o moderno processo de emancipação do indivíduo realizou-se pelo direito e pela
política, pela produção e pela ciência; a segunda metade do século xx prolongou essa
dinâmica pelo consumo e os meios dc comunicação de massa. Destruição das práticas
tradicionais, alienação e descrença, vida à ht curte, investimento excessivo nos gozos
privados; organiza-se uma nova cultura, na qual o cnnsumismo, os cultos do corpo c do
psicologismo, as paixões por autonomia e realização individuais fizeram da relação
consigo mesmo uma dimensão dotada dc um relevo excepcional. (155)
prometendo o paraíso dos gozos do ter, o mundo da mer cadoria não cessa, na
realidade, de orquestrar as frustrações, carências c decepções da maioria. (157-58)
Opulência material, déficit da felicidade; proliferação dos bens consumfvcis,
espiral da penúria; a sociedade de hiperconsumo é aquela cm que as insatisfações
crescem mais depressa que as ofertas dc felicidade. Consome-se mais, mas vive-sc
menos; quanto mais explodem os apetites de aquisição, mais se aprofundam os
descontentamentos individuais. (158)
A exemplo de um toxicômano, o consumidor moderno acha-se em estado de
dependência cm relação ao conforto: é o desejo de evitar o incômodo c a frustração
provocados pela interrupção dc um hábito que o motiva muito mais que uma procura de
satisfação suplementar/ (160)

é pelo laok e pelos signos do consumo que procuram afirmar-se os jovens dos
bairros deserdados. O consumo é. nas condições presentes, o que constrói uma grande
parte de sua identidade: quando faltam as outras vias do reconhecimento social, “torrar a
grana" e consumir itnpõem-sc como finalidades preeminentes. Mediador da “verdadeira
vida" o consumo é igualmente revestido do que permite escapar ao desprezo social c à
imagem negativa de si. A obsessão do consumo, observável, em nossos dias, até nas
populações marginalizadas, não indica apenas o poder sem precedentes da
mcrcantilizaçâo dos modos de vida. mas também a nova intensidade das frustrações cm
relação aos padrões de vida dominantes, bem como uma exigência ampliada dc
consideração e de respeito, típica do individualismo demonstrativo sustentado pela fase
tu: importa cada vez mais, para o indivíduo, não ser inferiorizado, atingido cm sua
dignidade. (192)
nossas scKiedades não rcconhcccriam mais que o imperativo de otimizarão de si
em todas as idades, em toda situarão e por todos os meios. Enquanto os atletas, os
empresários e outros super vencedores posam dc novos heróis, todos são intimados a ser
superativos c operacionais em todas as coisas, a maximizar seus potenciais de forma e
de saúde, de sexualidade c dc beleza. Termina uma época: na que se anuncia, a
sociedade é continuamente chamada a aceitar os desafios da concorrência globalizada, o
consumo, a desenvolver nossas aptidões, e os indivíduos, a aperfeiroar seu saber-fazer e
saber-ser. Construir-se,destacar-se, aumentar suas capacidades, a '‘sociedade de
desempenho* tende a tornarse a imagem prevalente da hipermodernidade. (260)

!!!!!!!
Todos dopados, todos sob a injunção de serem competitivos» de assumir
riscos» de estar no topo: a cultura dc desempenho explode em todas as direções. Dos
estádios ã empresa» dos lazeres à escola» da beleza à alimentação, do sexo à saúde,
todos os domínios são apanhados por uma lógica de concorrência e de aperfeiçoamento
pelo aperfeiçoamento» lodo o espaço social e mesmo mental se acha remodelado pelo
principio de exploração a todo custo dos potenciais. (261)

o esquema do desempenho é cada vez mais mobilizado como modelo dc


inteligibilidade da vida econômica, da sociedade c do agir humano. Intercambiar,
trabalhar, alimentar-se, cuidar-se, distrair-se, consumir, embelezar-se, fazer esporte,
fazer amor, por toda parle as práticas contemporâneas são interpretadas como umas
tantas manifestações da norma performativa, que aparece, ao mesmo tempo, como
a principal causa dc nosso mal-estar social e existencial. Modernização e
individualização extrema, tirania da beleza, dopagem generalizada, ditadura do
orgasmo: à barbárie sangrenta podería suceder a “ barbárie mansa" da superação de si e
da corrida desenfreada aos resultados. (... ) Ele não apenas fornece uma explicação
clara, unificada, totalizante do “ mal-estar da civilização", nus também permite uma
crítica geral tanto das pequenas quanto das grandes atividades da vida (261)

Ele não apenas fornece uma explicação clara, unificada, totalizante do “ mal-
estar da civilização", nus também permite uma crítica geral tanto das pequenas quanto
das grandes atividades da vida (262)
Não apenas o saber-fazer, mas também o usahcr-ser", os sentimentos, todos os
componentes da personalidade individual é que devem ser otimizados. (263)

Fnqtunto a figura do empresário ganha uma nova legitimidade socialtos ideais


de competição, de iniciativa c de auto-superaçáo se imporiam a tal ponto como
normas gerais de comportamento que conseguiram penetrar e remodelar os costumes e
os sonhos. Às antigas utopias estão mortas, o que “ inflama” a época é um estilo de
existência dominado pela “ vitória” o sucesso, a competição, o eu de alto rendimento. S
(264)
!!!!!!
A sociedade hipermoderna são se define pelo triunfo unilateral do desempenho,
mas pela dualizarão das normas e dos pólos de referência que organizam a vida social.
Disjunção entre desempenho e qualidade de vida, discordância entre superação de
si c hedonismo: é do próprio fundo da fase 111 que se erguem as barreiras que
contrariam o heroísmo do Supcr-Homem. Engana-se quem afirma que a obsessão pelos
objetivos e a excelência se apodera de todas as preocupações, incluídas as referentes ao
equilíbrio c ao bem-estar pessoal. Na sociedade atravessada pela dinâmica de
individualização, outras preocupações aparecem, entre as quais as exigências de respeito
c dc reconhecimento dc si não são as menos significativas. No presente, são cada vez
mais numerosos os assalariados que sc queixam de ser ignorados, mal avaliados pela
hierarquia, muito pouco respeitados pelos usuários ou pelos clientes. Esse mal-estar não
é mínimo: a falta dc reconhecimento fica em segundo lugar, atrás da sobrecarga, como
fator de risco prejudicial à saúde mental no trabalho. (269)

Hoje, cm matéria de relação dos homens com o trabalho, mais nada é


homogêneo e regular, a implicação de si na atividade profissional traz a marca da
imensa onda dc individualização. (271)
Os novos objetos de consumo? O antigo modelo centrado na passividade do
consumidor é substituído por um modelo dc comunicação, incitando o indivíduo a agir,
a rcsponsabilizar-sc, a tornar-se o “demiurgo de si próprio".* (279)

Cada vez mais, a exigência de melhoramento de nossos potenciais e da


excelência em todas as coisas tende a banalizar-sc: enquanto a busca da saúde se
assemelha a uma demanda de corpo perfeito, o mercado registra o sucesso dos
alimcntos-mcdicamentos, das bebidas rcconstituintes c outros produtos enriquecidos
com vilamninas e minerais com vista ao eu de alto rendimento. Ao mesmo tempo,
multiplicam-se as "pílulas do desempenho", que prometem a conservação da juventude,
o aumento da libido, a eliminação das dificuldades sociais e relacionais dos indivíduos,
a vitória sobre a infelicidade, luventude eterna pelos hormônios esteróides, potência
fálica pelo Viagra, tranquilidade interior pelo Prozac ou o Deroxat.eis o consumo
farmacológico mobilizado a serviço da excelência competitiva. (280)
Sobre esse fundo, o Super-Homem é descrito como pura vontade, pura tensão
rumo ã aulo-superação, como se o ativismo desenfreado, o alarde do poder pelo poder, a
corrida ao sucesso e ao dinheiro houvessem conseguido absorver Ioda a energia das
subjetividade*. Os gozos sensíveis, as volúpias carnais e estéticas, eis o que naufraga.
Na explosão da técnica, o operatório substituiu as volúpias sensoriais, o virtual faz as
vezes do real, a exploração extremista dos potenciais tomou o lugar dos prazeres
preguiçosos. Saem as vagucações e os diletantísmos do prazer, o hedonismo deixou de
ser atual, não pertence a nada ntais que uma “antropologia dai cm diante superada".'* £
assim que, na civilização da atividade febril c do virtual, o Supcr-Homcm aparece como
um herói descorporizado. (282)
O bem-estar moderno era funcional, objetivista, mecanicista: o da fase iil
aparece como um bem-estar qualitativo e reflexivo, centrado no corpo vivido, na
atenção a si próprio, no aumento do registro das sensações íntimas (relaxamento,
respiração, visualização, forma, calma e equilíbrio). O balanço é pouco duvidoso: na
sociedade de hiperconsumo, o "heroísmo” da superação de si é suplantado de modo
bastante amplo pelas paixões narcísicas de saborear os prazeres do maior bem-estar, de
sentir-se, muito simplesmente, bem. (283)
sc a sociedade de hiperconsumo é testemunha do desenvolvimento da ideologia
e das práticas da superação de si, cia é, mais ainda, aquela que consagra o corpo das
sensações, um novo imaginário do bem-estar, que integra as dimensões estéticas e
sensitivas, psicológicas e existenciais. Segue-sc que o individualismo contemporâneo sc
apresenta sob um duplo aspecto, sensuaüsta e performativo, narcísíco e promctéko,
estético e bu limico. Seu modelo não c nem Dionisio nem Super-Homem, é o lano de
duas faces* um Jano híbrido, hipermoderno, “explorando” por todos os meios as
potencialidades abertas por essas duas finalidades da modernidade que são a eficácia e a
felicidade terrestre. (286-87)
O indivíduo quer melhorar seus desempenhos, superar-se tomando suplementos
nutricionais c coquetéis psicoestimulantes? Ele se preocupa sobretudo em consultar
cada vez mais médicos, medicali/ar seus hábitos de vida, comer de maneira saudável e
biológica, reduzir os consumos excessivos dc calorias e de sal, mudar seus modos dc
vida de risco. A sociedade de hiperconsumo é circunstancialmente dopante, mas
cstruturalmente obcecada pelos cuidados dc prevenção e de “manutenção sanitária**.
Detecção das doenças, análises c exames, regimes, eliminação do tabaco, exercícios de
manutenção física, fenômenos que é injustificado relacionar ao ideal de superação de si.
Na realidade, trata-se de uma paixão diferente que invade os espíritos e insinuasc
progressivamente em Iodos os setores da vida cotidiana: não é senão a manutenção dc
si, a preserxutçáo da saúde. (287)
A “medicai ização do existencial”*" é menos a resposta à ditadura do
desempenho que o efeito do poder do imaginário do bem-estar e da qualidade de vida,
englobando daí cm diante o campo psíquico. (290)
a desagregação dos laços sociais, o recuo dos sentimentos de inclusão numa
comunidade, o aumento da incerteza, a fragilização da vida profissional e afetiva, o
afrouxamento dos laços familiares. Todos esses fatores acentuaram fortenicntc, ao
longo da fase m, o sentimento de Isolamento dos seres, a insegurança interior, as
experiências de fracasso pessoal, as crises subjetivas c intersubjetivas. Em uma
palavra, o mal-estar.(290)

esse estado de solidão, dc desespero, dc infelicidade subjetiva que serve de base,


em parte, às fúrias consumidoras, uma vez que estas permitem Mdar-sc prazer”
ofcrcccr-se pequenas felicidades para compensar a falta de amor, de laços ou de
reconhecimento. Quanto mais os laços sociais e interindividuais se tornam frágeis ou
frustrantes, mais aumenta a má vida e mais o consumismo grassa como refúgio, evasão,
pequena “fuga", paliando a solidão e os sentimentos de incompletude destinado a
“levantar o moral**, a “gostar de si mesmo**, o consumo na fase tu dcfinc-se, também
nesse plano, dc modo emocional. (291)
Quando os laços sociais se afrouxam, quando as capacidades de influir nas
tendências fortes do mundo já não são dignas de crédito, o consumo representa um
domínio escolhido e “controlado** pelos sujeitos, um universo seu em que se buscam
incessantemente elementos de felicidade. Hiperconsumo: não técnica a serviço da
superação de si, mas busca de um “tempo para si" no qual se “cuida de $in, maneira dc
escolher c de encontrar satisfações compensatórias, meio de apropriação subjetiva de
porções inteiras de nossa existência privada. (291)
A época que comprime o espaço-tempo é também a que ten* de a dissolver as
antigas fronteiras que separam o espaço privado do espaço público. Fora com os velhos
pudores da subjetividade, de agora cm diante a vida pessoal se exibe em plena luz do
dia, inundando em grandes ondas a cena midiâtico-polítíca. Éramos consumidores dc
objetos, de viagens, de informações; eis que somos, ainda por ctma,
$upcrconsumidorcsde intimidade. (308)
{relacionar com a instagranização da vida}

Retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo líquido –


Bauman, Z e Dessal, G. – RJ, Ed. Zahar, 2017

Acreditei perceber uma ressonância entre o conceito de “liquidez” e a previsão que


Jacques Lacan aventou como consequência da queda da “imago paterna”, figura do
discurso que, para além das críticas ou de seus desacertos, cumpriu a função de
organizar e formalizar as peças soltas da maquinaria humana. À decadência de Deus e
do pai segue-se a entronização da técnica como instrumento de um liberalismo
desnudado, desembaraçado de seus clássicos disfarces morais e ideológicos. A nova
governança resultante disso diluiu em seu magma global tudo aquilo que se empenhe
em conservar a própria especificidade ou a própria diferença. A esta última afirmação,
poderão objetar que o estado líquido da civilização é ao mesmo tempo um caldo que
admite o cultivo de formas alternativas de ser, de amar e de desfrutar. Mas não
esqueçamos que o discurso contemporâneo só admite a diferença na medida em que esta
não comprometa nem confronte os interesses do mercado. Só a partir do momento em
ue mostra sua força na participação geral do consumo é que a comunidade gay começa a
ser reconhecida pelo discurso dominante. Desse modo, qualquer dissimetria é bem-
inda, sempre e quando se assimilar à normatização do sistema global, transformando-se
assim em novo produto. Existe outra ressonância que caberia destacar: o paradigma da
“liquidez” e o que Freud denominava “desintrincação pulsional”. A seu modo, e com os
instrumentos conceituais próprios de sua disciplina, Bauman é claramente sensível a
essa dimensão humana que Freud explorou e teorizou sob o nome de “pulsão de morte”,
tendo-a definido como uma força repetitiva e demoníaca. Longe de buscar seu
fundamento em algum resquício atávico ou primitivo do instinto animal, Freud nos
mostrou que a pulsão de morte deve ser reconhecida como elemento que, além de não
contradizer a função do logos, faz parte do próprio núcleo desse logos. A pulsão de
morte é um dos conceitos centrais da teoria psicanalítica. Desconhecê-la implica retirar
uma parte substancial da subjetividade de qualquer enfoque que pretenda uma
aproximação do real humano, tanto no plano individual quanto no coletivo. (10-11)
se nos transferirmos para o plano social, a desintrincação pulsional é reconhecível nos
efeitos selvagens provocados por aqueles discursos promovidos pelas diferentes formas
do ódio, jamais ausentes em nenhum período da história, e que lançam por terra a
ingênua assimilação entre o bem e a razão. Na atualidade, a forma mais patente que a
desintrincação pulsional adota é a convergência entre o discurso do capital e o discurso
técnicocientífico, no propósito de estabelecer o absolutismo de um modelo definitivo e
imperecível da verdade. A mensurabilidade geral da vida humana em todos os domínios
se traduz nos inumeráveis sintomas que Zygmunt Bauman estudou com a chave de seu
conceito de “liquidez”. A ideia de amor líquido significa muito mais que abordar os
efeitos que a hipermodernidade exerceu sobre os laços sociais. Ela designa, em minha
opinião, algo que se encontra em aguda sintonia com a desintrincação pulsional
considerada por Freud, isto é, o triunfo de Tânatos sobre Eros. A degradação líquida
do amor é um grave sintoma de nossa época, na qual a ação corrosiva do discurso
neoliberal encontra cada vez menos obstáculos para transformar cada um de nós
em mercadoria. (12)

A clínica psicanalítica e a teoria social podem encontrar afinidades pelas quais ambas
sejam beneficiadas. Sem uma perspectiva clara das coordenadas da época, a psicanálise
poderia descuidar-se das profundas transformações sociais que tocam os fundamentos
da civilização, gerando novos sintomas para os quais a clínica deve dar uma resposta
que se distinga dos pressupostos policias da biopolítica. E sem os conceitos
psicanalíticos de inconsciente, pulsão, da lógica do significante e da teoria do gozo, a
sociologia corre o risco de extraviar-se nos atoleiros da metafísica. (12)

Viver em condições de incerteza prolongada ou aparentemente incurável acarreta duas


sensações o mesmo modo humilhantes: a de ignorância (não saber o que se enfrentará
no futuro) e a e impotência (ser incapaz de influir no próprio rumo). E não há dúvida de
que ambas são aviltantes: em nossa sociedade sumamente individualizada, na qual se
presume (contra a evidência dos fatos, por assim dizer) que cada indivíduo deve arcar
com a responsabilidade total sobre seu destino na vida, essas sensações dão a entender a
incompetência do interessado para abordar as tarefas que outras pessoas, aparentemente
mais exitosas, parecem levar a cabo graças à maior destreza e ao melhor empenho. A
incompetência sugere inferioridade, e ser inferior ante o olhar dos demais é um doloroso
golpe assestado contra a autoestima, a dignidade pessoal e o valor da autoafirmação. A
depressão é hoje a doença psicológica mais comum. Ela assedia o crescente número de
pessoas que nestes tempos foram incluídas na categoria coletiva de “precariado”,
palavra cunhada a partir do conceito de “precariedade”, em sua denotação de incerteza
existencial. (18)

Agora, porém, multiplicam-se os indícios de que cada vez mais gente cederia de bom
grado parte de sua liberdade em troca de emancipar-se do aterrador espectro da
insegurança existencial. (19)

nas reflexões de Freud, a eutopia (um bom lugar, onde a segurança e a liberdade
estariam perfeitamente equilibradas, sem causar insatisfação nem dissensão) aparece
num pacote com a utopia (um lugar que não está em parte alguma). A civilização é um
dom ambíguo, que suscita impulsos ambivalentes: é irremediavelmente uma bênção
mesclada com uma maldição. A civilização (que, me permito repetir, significa para
Freud “tudo aquilo em que a vida humana se eleva acima de suas condições animais e se
distingue da vida animal”)2 não pode prescindir da coerção, e portanto tampouco pode
existir sem gerar resistência contra si mesma, na medida em que a coerção, por
definição, significa enfrentar situações nas quais a balança se inclina contra fazer o que
se quer e a favor de fazer algo que se gostaria de evitar. (27)

O padecimento da felicidade truncada é o preço que se paga pelas delícias da proteção.


(29)

A Unsicherheit, contra a qual, como acreditava Freud, a civilização tinha se declarado


em guerra permanente (para sua plena tradução, o conceito de Unsicherheit requer três
substantivos em vez de um: incerteza, insegurança e desproteção), tornou-se para
muitos de nossos contemporâneos a preocupação mais importante e assustadora,
perfeitamente capaz de eclipsar a angústia que a já experimentada ou temida
insuficiência de liberdades provoca ou pode provocar. Para aqueles que talvez sejam a
maioria dos nossos contemporâneos, e sem dúvida para os que, entre eles, os
psicanalistas têm mais possibilidades de receber em seus consultórios, a in-certeza, a in-
segurança e a des-proteção constituem hoje, de longe, o pior dos flagelos. Do seu ponto
de vista, a civilização é a culpada da necessidade de sacrificar uma fração tão
insuportavelmente grande de Sicherheit como preço das liberdades que a própria
civilização lhes permitiu desfrutar. E a civilização já havia sido acusada desse pecado
muito antes de os terroristas destruírem as Torres Gêmeas em Manhattan, e antes de que
irrompesse o espantalho de gatunos, perseguidores, molestadores sexuais, mendigos
incômodos e assassinos em série, ou, mais especificamente, o pânico diante dos
imigrantes “sujos, incultos e ladrões”: o pêndulo dos valores começou a se mover em
sentido contrário já há várias décadas. Ainda se move nessa direção, e o faz em ritmo
acelerado. (30-31)

a ordem civilizada exigia impor restrições ao antissocial “princípio do prazer”, que os


homens e as mulheres omariam como guia caso o “princípio de realidade”, socialmente
imposto, não os mantivesse na linha. Émile Durkheim advertiu que o desmantelamento
ou a debilitação das restrições socialmente impostas não redundaria em incremento da
liberdade individual, mas aprofundaria a vulnerabilidade, a entrega e a escravização aos
instintos em cada indivíduo: na medida em que os seres humanos “vivem como
egoístas”, dedicando-se placidamente ao seu desejo de gratificação instantânea e aos
fugazes prazeres dos sentidos, ganha terreno sua propensão a autodestruir-se; em
contraste, o que salva os indivíduos de sua tendência autodestrutiva é a submissão à
sociedade. (35-36)

Nenhuma representação do eu, por mais instantâneo que seja seu êxito, é segura a longo
prazo. O que hoje é de rigueur, amanhã ou depois de amanhã estará condenado a tornar-
se rançoso e tediosamente antiquado, ou ainda de todo ilegível. Manter atualizada a
representação é uma tarefa de 24 horas por dia e sete dias por semana.

A capacidade interativa da internet é feita na medida dessa nova necessidade: ela nos
ajuda a permanecer au courant do que está na boca de todos, como os hits musicais
mais escutados e os últimos modelos de roupa, assim como os mais recentes e
comentados eventos e festas de celebridades; ao mesmo tempo, ajuda a atualizar os
conteúdos e a redistribuir as ênfases do autorretrato; e, dada a “cultura da pressa”, que é
endêmica à comunicação eletrônica, somada ao breve lapso de memória que ela
condiciona, também ajuda a apagar as pegadas do passado: os conteúdos e ênfases que
hoje são tediosos porque saíram de moda. Em linhas gerais, a internet facilita
enormemente a tarefa da reinvenção, até um ponto inalcançável na vida desconectada;
aí está, sem dúvida, uma das razões mais importantes pelas quais a nova “geração
eletrônica” passa tanto tempo no universo virtual, um tempo que cresce em ritmo
constante, à custa do tempo vivido no “mundo real”. (41)

Um dos efeitos mais patentes da nova localização é a percepção dos laços e


compromissos sociais atuais como instantâneos passageiros dentro de um constante
processo de renegociação, em contraste com os vínculos estáveis, destinados a perdurar
por tempo indefinido. Mas convém assinalar que “instantâneo passageiro” não é uma
metáfora totalmente feliz: por mais “passageiros” que sejam, os instantâneos podem
implicar uma durabilidade ainda maior que a dos laços e compromissos mediados
eletronicamente. A palavra “instantâneo” pertence ao vocabulário das impressões e dos
papéis fotográficos, que só admitem uma imagem, ao passo que, no caso dos vínculos
eletrônicos, ao contrário, as ações de deletar e reescrever, ou sobrescrever,
inconcebíveis no negativo de celuloide e no papel fotográfico, são as opções mais
importantes e mais utilizadas; na realidade, são os únicos atributos indeléveis dos laços
mediados eletronicamente. (41-42)

A vida da geração jovem é vivida hoje num estado de emergência perpétua. (43)
“sociedade da transparência” implica, e que, longe de nos oferecer as condições para a
harmonia, a comunicação e a compreensão recíprocas, introduziu a função feroz e
obscena de um olhar onipotente. A “sociedade da transparência” é a tradução, no plano
subjetivo, do ideal científico da representação total, a ideia de que todo o real pode ser
levado ao plano da imagem, do cálculo e da medição. O que a psicanálise reconhece sob
o conceito de inconsciente é que os desejos precisam do segredo e do mistério para
sobreviver. Se forem anunciados demais, insinuados demais, revelados demais, corre-se
o risco de que nossos semelhantes (incluindo nossos próprios pais) se tornem nossos
perseguidores. (49)

“sociedade da transparência” implica, e que, longe de nos oferecer as condições para a


harmonia, a comunicação e a compreensão recíprocas, introduziu a função feroz e
obscena de um olhar onipotente. A “sociedade da transparência” é a tradução, no plano
subjetivo, do ideal científico da representação total, a ideia de que todo o real pode ser
levado ao plano da imagem, do cálculo e da medição. O que a psicanálise reconhece sob
o conceito de inconsciente é que os desejos precisam do segredo e do mistério para
sobreviver. Se forem anunciados demais, insinuados demais, revelados demais, corre-se
o risco de que nossos semelhantes (incluindo nossos próprios pais) se tornem nossos
perseguidores.(50)

A “frustração” do objeto de consumo é um instrumento indispensável na lógica do


mercado. Se o capitalismo conseguiu se perpetuar até agora, foi porque seu modelo
econômico conseguiu “captar” em proveito próprio os mecanismos da subjetividade, ao
passo que o socialismo real lhes deu as costas, tentando impor um ideal humano que se
desligou por completo do ser humano verdadeiro. (51)

Não me estenderei aqui nas consequências estritamente clínicas que essa complexa
construção implica, tanto na concepção da subjetividade quanto na prática analítica, isto
é, na forma como a psicanálise concebe o tratamento, que não se limita a uma mera
“superação” dos sintomas, e muito menos a “domesticar” o sujeito ou ensiná-lo a
encontrar “o objeto que lhe convém”. Por definição, a psicanálise parte da base de que o
objeto é sempre e irremediavelmente inconveniente, e de que o tratamento, muito mais
que uma simples terapêutica, impõe a travessia de uma experiência ética que consiste na
reconciliação entre o sujeito e essa inconveniência incurável com a qual ele deverá
aprender a conviver.

Eu gostaria de voltar, após esta longa mas inevitável digressão, à aplicação dessa teoria
ao campo que fundamentalmente lhe pertence: o do discurso social e seus avatares
atuais. (55)

O que é um desejo? Um desejo é, para dizê-lo nos melhores termos freudianos, a


perversão de uma necessidade. (56)

“sequestro” da infância por parte da economia capitalista: num mundo onde os grandes
ideais foram derrotados pela ação corrosiva do discurso técnico-científico, pelo fracasso
das utopias emancipadoras e por outras tantas causas impossíveis de sintetizar, o
símbolo paterno é possivelmente um dos esteios civilizadores que mais se desgastaram.
O modelo patriarcal, com sua carga de arbitrariedade e sua pretensão totalizadora, cedeu
a vez a um modo de vida no qual os pais, à falta de qualquer modelo referencial, têm
praticamente dois caminhos a escolher: recorrer a especialistas para serem aconselhados
em todas e cada uma de suas decisões educativas ou renunciar à sua legítima autoridade,
tornando-se eles mesmos menores de idade. Evidentemente, essa “liquefação” da função
paterna é uma excelente fonte de negócios – e um inesgotável fator de produção de
sintomas. (57)

Talvez incuravelmente, somos imbuídos pelo desejo (explícito ou reprimido, embora


irreprimível) de vislumbrar em cada nova oportunidade o anúncio de que os problemas
ou malestares atuais ficarão para trás. Essa inclinação se institucionalizou na era
moderna (de fato, tornou-se inseparável do estilo de vida moderno) mediante a ideia de
progresso, associada ao culto da ciência e da tecnologia. Todos, ou quase todos, os
avanços tecnológicos são anunciados e publicamente aplaudidos como um remédio para
o dilema que nos aflige no momento em que aparecem. Contudo, embora essa promessa
não costume se cumprir, é preciso acelerar o ritmo de circulação, envelhecimento e
substituição das supostas/putativas novidades para que se mantenha viva a fé na
resolução de problemas mediante o progresso impulsionado pela tecnologia, esse motor
sine qua non da sociedade de consumo. A atual fascinação com as “autopistas da
informação” como remédio para a decadência dos laços humanos, o declínio do
compromisso cívico e o (não menos importante) choque entre os princípios do prazer e
de realidade, ou a fascinação com a engenharia genética como remédio para os traumas
humanos, para as afecções físicas e, mais em geral, para a contingência humana estão
compreendidos nessa regra.(60-61)

A liberdade e a segurança não podem sobreviver uma sem a outra, por assim dizer, mas
tampouco podem conviver em paz. Também cheguei à conclusão de que é muito
improvável que algum dia se encontre “o ponto médio”, isto é, o equilíbrio satisfatório
entre ambas, mas ainda assim (ou motivo pelo qual) sua busca jamais cessará. O
movimento pendular é o resultado dessa aporia. (61)

creio que as dualidades são “indissolúveis”, e suspeito que a tentativa de dissolvê-las é


mais uma versão do afã de encontrar a pedra filosofal, o perpetuum mobile ou a prova a
existência de Deus. Isso não implica que as recorrentes tentativas de resolução sejam
para mim uma inútil perda de tempo. Afinal, a busca da pedra filosofal teve como efeito
colateral/serendípico (fortuito) a química moderna, assim como a busca do perpetuum
mobile levou à física moderna e os teólogos pavimentaram o caminho para a ciência
moderna enquanto se dedicavam com afinco a compor provas da existência divina. (62)
Nossas distopias contemporâneas parecem lançar uma olhadela furtiva para o outro lado
da linha de chegada, no longínquo final da longa travessia iniciada pela cultura com a
proibição do incesto (para sermos mais exatos, com o nascimento do conceito de
“incesto”; de um ato prototípico que pode se concretizar, mas não deveria, não deve
concretizar-se). Hoje parecemos estar mais perto que nunca desse “outro lado”. (65)

O que chamamos realidade é, em suma, um âmbito de significações individuais e


impossíveis de universalizar, embora contenha uma série de sentidos que admitem
um simulacro de compreensão comum, uma espécie de identificação que, sob
certas circunstâncias, nos permite acreditar que “compartilhamos” algo
semelhante a uma objetivação do mundo. (73)

psicanálise pode – e deve – ser considerada um procedimento de leitura. Ainda que


o paciente costume dirigir-se a nós fundamentalmente de maneira oral, a escuta
analítica é um modo de “ler” nas entrelinhas, o que implica privilegiar
determinado significante a partir do qual uma nova leitura é possível.(74)

ideia de que a ciência, e em particular a técnica, nos permitirá resolver todos e


cada um dos “dilemas” que agitam e perturbam tanto a civilização quanto a vida
do sujeito. O problema fundamental dessa crença fraudulenta não reside em que ela
traduza um mero erro de princípio, uma espécie de ingenuidade que não requer muitos
esforços para ser desmentida, visto que basta lançar um olhar sobre o mundo para notar
que se trata de uma “falsa esperança”. A questão é muito mais grave (75)

o neoliberalismo nem sequer despende muitos esforços em dissimular que essa


ideologia está a serviço do capital, e seus promotores há muito tempo morrem de rir
quando recordam que um dia Hegel acreditou que o saber absoluto haveria de redimir o
escravo. Mas o decisivo não é somente a consequência que isso lança no plano das
condições cada vez mais precárias que eles supõem para uma imensa maioria da
população humana, como você desenvolveu em sua obra Vidas desperdiçadas. Existe
algo muito mais terrível, que seria cabível qualificar como o “fator letal” subjacente à
ideia contemporânea de progresso. Fator letal não implica aqui uma simples metáfora,
uma figura de retórica, uma descrição dos “danos colaterais” que o avanço da ciência e
da técnica inevitavelmente acarreta, como se se tratasse do preço que a humanidade
pagou desde sempre a cada uma de suas conquistas. Estamos diante de algo novo, algo
qualitativamente novo, e que Freud enunciou com a expressão “pulsão de morte”. Você,
em sua obra Modernidade e Holocausto, percebeu com toda a clareza que a catástrofe
não é um acidente no programa da racionalidade técnico-científica, mas é intrínseca a
esse programa. (75-76)

discurso científico, se impõe de forma gradual embora irreprimível como o único modo
de revelação da verdade. E quando isso invade o território da subjetividade, e não se
limita à sua aplicação ao mundo físico-matemático, ou, melhor ainda, quando os
paradigmas técnico-científicos do mundo físicomatemático extrapolam para o território
da subjetividade e do laço social, descobrimos algo que ameaça a condição humana de
modo sem precedentes. É triste dizê-lo dessa maneira, mas não podemos nos subtrair à
evidência de que Auschwitz foi a festa de inauguração de um novo paradigma histórico,
no qual a ideologia do progresso mostrou seu sentido mortal. É necessário um grande
esforço de cegueira ou de cinismo intelectual para dar as costas àquilo que Freud
concebeu com seu conceito de Todestrieb, sua famosa “pulsão de morte”, a qual, longe
de pertencer à categoria do instinto, é o reverso devastador da razão humana. (76)
obstáculo que a psicanálise significa para os que levantam a bandeira do absolutismo
científico e da engenharia social, os que propagam o messianismo da avaliação, a
prevenção e a ideologia paranoica da segurança.(78)

sem a vulnerabilidade e a incerteza não haveria o medo; e sem o medo não


haveria o poder.(86)

Desastres naturais podiam (e deviam!) ser submetidos ao mesmo tratamento destinado


aos males sociais, o tipo de adversários que, com a habilidade e o esforço devidos,
poderiam ser exilados do mundo humano e impedidos de retornar. Os desconfortos
causados pelas excentricidades da natureza acabariam sendo enfrentados de modo tão
eficaz, ao menos em princípio, quanto as calamidades provocadas pela maldade e o
desregramento humanos. Cedo ou tarde, todas as ameaças, naturais ou morais, se
tornariam previsíveis e evitáveis, obedientes ao poder da razão. Quando isso iria
acontecer dependia unicamente da determinação com que se empregassem os poderes
da razão humana. A natureza se tornaria semelhante aos outros aspectos da condição
humana que são feitos pelo homem e, portanto, em princípio, administráveis e
“corrigíveis”. Como estava implícito no imperativo categórico de Immanuel Kant,
quando empregamos a razão, nosso dom inalienável, podemos elevar a avaliação moral
e o tipo de comportamento que desejamos universalmente seguido à categoria de lei
natural. (93)

Na maioria das sociedades modernas, a vulnerabilidade e insegurança da existência e


a necessidade de perseguir os propósitos existenciais em condições de incerteza aguda e
irremediável foram asseguradas desde o início pela exposição das atividades da vida aos
caprichos das forças do mercado. Além de proteger as liberdades do mercado e
ocasionalmente ajudar a ressuscitar o vigor decrescente de suas forças, o poder político
não tinha necessidade de interferir. Ao exigir de seus súditos disciplina e observância à
lei, podia basear sua legitimidade na promessa de reduzir a extensão da vulnerabilidade
á existente e a incerteza de seus cidadãos; limitar os danos e prejuízos perpetrados pelo
livre jogo das forças do mercado, proteger o vulnerável de golpes mortais ou dolorosos
e oferecer garantias pelo menos em relação a alguns riscos dos muitos que a livre
competição necessariamente acarreta. Tal legitimação encontrou sua maior expressão na
autodefinição da forma moderna de governo como um “Estado de bemestar social”.
(101-02)

O Estado lava de suas mãos a vulnerabilidade e a incerteza que surgem da lógica (ou
ilógica) do livre mercado, redefinindo-as como falhas e questões de âmbito privado,
assunto que os indivíduos devem tratar e resolver com os recursos de que
privadamente dispõem. Como diz Ulrich Beck, agora se espera dos indivíduos que
busquem soluções biográficas para problemas sistêmicos (102)

Ao contrário da insegurança nascida do mercado, óbvia e visível demais para que se


possam consolar suas vítimas, essa insegurança alternativa com que o Estado espera
restaurar o monopólio perdido da redenção deve ser reforçada, ou pelo menos
superdramatizada, para inspirar um volume suficiente de “medo oficial”, ao mesmo
tempo se obscurece e relega a segundo plano a insegurança economicamente gerada
sobre a qual o Estado nada pode – e nada quer – fazer. (103)

psicanálise estuda, por meio de uma experiência que bem podemos denominar real (no
sentido de que nos revela o homem tal como é, e não como o homem gostaria de ver a si
mesmo), os sintomas que afetam a criatura humana que sofre essa grave e incurável
enfermidade denominada linguagem. Privados os seres falantes de todo fundamento
instintivo, lançados à existência sem princípios ontológicos naturais, toda a história da
filosofia foi a vã tentativa de dar respostas a perguntas que não têm cabimento para
aqueles outros seres que não padecem da linguagem. A crueldade, a agressividade, a
destruição, a fé na onipotência de um Outro, a vingança, a impossibilidade de controlar
não só os perigos que nos espreitam de fora, como também os mais graves de todos, os
que provêm de dentro de nós mesmos, nada disso é concebível exceto nesse estranho
vivente que, por mediação da linguagem, é construído de um modo falho, inacabado, e
cuja incompletude o impele à busca dos maiores êxitos, mas também, em muitas
ocasiões, à incontrolável necessidade de ressarcir-se como quer que seja do sentimento
de haver sido despojado de algo que não encontra satisfação. (110-11)

A vida humana não só é ameaçada pela impossibilidade de prevenir as contingências de


seu devir. Desde seu momento inaugural, o ser é impelido ao desamparo mais radical,
que nem o amor mais perfeito pode remediar: como sujeito da palavra, toda a sua
existência é afetada por uma ignorância fundadora (aquilo que conhecemos como
inconsciente), um não saber radical: Quem somos? Qual o nosso desejo? Desejamos o
que queremos? Queremos o que desejamos? Em que consiste ser homem ou mulher?
qual a nossa identidade? O que é ser pai? É legítima a satisfação à qual creio aspirar?
De que desfruto, para além do que creio desfrutar? Diante de semelhante acúmulo de
interrogações, como não haveríamos de suplicar pela existência de um ser superior que
pudesse responder a todas elas? Mas o desamparo, aquele que você anuncia como “a
grande questão”, não é somente um assunto no qual está implicado o problema do
sentido. Existe algo mais, intimamente associado a ele, que a psicanálise focalizou sob o
termo “satisfação”, a qual, em algum lugar dos textos que me enviou, você nomeia de
forma muito freudiana dizendo que o resultado do “progresso” é um bem muito escasso
em um mar de infelicidade. (111)

É preciso incluir aqui o fato de que a necessidade primária, ao atravessar o labirinto da


linguagem, faz surgir a dimensão do Outro, termo que podemos adjudicar à imago
materna, mas sem esquecer que essa imago não é uma função psicológica, mas lógica, e
designa o lugar da palavra, o lugar em que a necessidade, transformada em demanda,
está à mercê desse Outro primordial. (111)

o poder do Outro primordial não consiste em sua capacidade de nos proporcionar o


objeto da demanda, mas na possibilidade de nos negar sua satisfação. É em virtude
desse poder que a dádiva de um objeto de necessidade se transforma em prova de amor,
e que sua ausência constitui a base mais primitiva do sentimento de culpa. Sem essa
matriz na qual se constrói o edifício da subjetividade, torna-se impossível compreender
até que ponto o ser humano pode se submeter a formas inconcebíveis de escravidão. Em
suma, à luz dessa lógica podemos compreender que o poder de Deus consiste mais em
tudo aquilo de que ele pode nos privar do que nos bens que está disposto a nos
conceder. (112)

O tratamento analítico – e permita-me empregar aqui esse termo não no sentido médico,
mas no de experiência existencial – aspira a conduzir o sujeito ao reconhecimento de
que essa carência só pode ser assumida em termos de impossibilidade. Em outras
palavras, a impotência nos submerge no sofrimento, na melancolia ou no ódio. A
impossibilidade nos confere lucidez para podermos atuar a partir dela e inventar formas
não padronizadas de dar respostas às perguntas que se tentou silenciar, amolgando-as
com os ideais da “normalidade”. (112)

Você também pode gostar