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A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA

p. 407 – “Esse imenso artista, esse criador de valores, ainda não sabe que o amor
morreu!" Senti imediatamente uma tristeza ao constatar que eu continuava sem
renunciar ao que havia sido ao longo de toda a minha carreira: uma espécie de
Zaratustra da classe média.”

p. 408 – “Inaugurando uma tradição de impertinência em relação aos dados científicos


que levaria a filosofia à sua perda, o pensador humano Friedrich Nietzsche via no
homem "a espécie cujo tipo ainda não está fixado". Se os humanos não justificavam
de forma alguma tal apreciação – menos, em todo caso, que a maioria das espécies
animais – ela tampouco se aplica aos neo-humanos que vieram na seqüência. Pode-se
inclusive dizer que o que provavelmente nos caracteriza melhor, em relação a nossos
predecessores, é um certo conservadorismo. Tudo indica que os humanos, pelo menos
os humanos do último período, aderiam com grande facilidade a qualquer projeto
novo, mostrando certa independência em relação à orientação proposta; a mudança
em si mesma era um valor a seus olhos. Nós, ao contrário, acolhemos a inovação com
grande reticência e só a adotamos quando nos parece constituir uma melhora
indiscutível.”

p. 409 – “Nossa história coletiva, a exemplo de nossos destinos individuais, parece


então, comparada à dos humanos do último período, singularmente calma.”

p. 409 – “Daniel1 revive em mim, seu corpo conhece em mim uma nova encarnação,
seus pensamentos são os meus; sua existência se prolonga de fato em mim, bem mais
que homem algum sonhou prolongar-se em sua descendência. Minha vida, porém,
penso nisso com freqüência, está longe de ser a que ele teria gostado de viver.”

p. 410 – “... o simples fato de escrever, o qual me proporcionava a ilusão de um controle


sobre os acontecimentos, que me impedia de soçobrar em estados que justificavam o
que os psiquiatras, em seu jargão encantador, chamam de tratamentos pesados.”

p. 411 – “Eu odiava a humanidade, isto é certo, odiara-a desde o início, e, com a
infelicidade gerando a maldade, agora odiava-a ainda mais.”
p. 411 – “É por efeito de um antigo vínculo animal que as pessoas conversam tanto a
respeito da meteorologia e do clima, por efeito de uma recordação primitiva, inscrita
nos órgãos dos sentidos e associada às condições de sobrevivência na época pré-
histórica. Esses diálogos referenciados, convencionais, continuam porém sendo o sinal
de um problema real: ainda que moremos em apartamentos, em condições de
estabilidade térmica proporcionadas por uma tecnologia confiável e bem testada,
continua sendo impossível nos desfazermos desse atavismo animal;”

p. 413 – “... mas eu era provavelmente o primeiro a viver numa época em que as
condições tecnológicas podiam conferir todo o seu impacto à minha traição. Aliás, só
estarei acelerando, ao conceitualizá-la, uma evolução histórica inelutável. Cada vez
mais os homens iriam querer viver na liberdade, na irresponsabilidade, na busca
desvairada do gozo; iriam querer viver como já vivem, no meio deles, os kids, e quando
a idade impusesse decididamente seu peso, quando se lhes tornasse impossível
sustentar a luta, poriam fim a ela;”

p. 413 – “Era este o sentido do movimento histórico, era esta sua direção a longo prazo,
que não se limitaria ao Ocidente, o Ocidente contentando-se em arar, em sulcar o
caminho, como o fazia desde o fim da Idade Média.”

p. 414 – “Talvez aquele crasso imbecil do Hegel tivesse visto certo, no fim das contas
talvez eu fosse uma astúcia da razão. Era pouco verossímil que a espécie chamada a
nos suceder fosse, no mesmo grau, uma espécie social; desde a minha infância a idéia
que concluía todas as discussões, que punha um ponto final em todas as divergências,
a idéia em torno da qual eu vira sempre formar-se um consenso absoluto, tranqüilo,
sem invencionices, podia se resumir a mais ou menos isto: "No fundo nascemos
sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos."”

p. 414 – “A sociabilidade tivera sua época, desempenhara seu papel histórico; tinha
sido indispensável na primeira fase do surgimento da inteligência humana, mas hoje
não passava senão de um vestígio inútil e estorvante. O mesmo ocorria com a
sexualidade, desde a generalização da procriação artificial. "Masturbar-se é fazer amor
com quem se ama de verdade"”

p. 415 – “Por sinal, as relações sexuais iriam certamente manter-se por um tempo
como suporte publicitário e princípio de diferenciação narcísica, sendo ao mesmo
tempo cada vez mais reservadas a especialistas, a uma elite erótica.”
p. 415 – “Quanto ao amor, era carta fora do baralho”

p. 415 – “Não existe amor na liberdade individual, na independência, é tudo


simplesmente uma mentira, e uma das mais grosseiras que se possa conceber; só
existe amor no desejo de aniquilamento, de fusão, de abstração individual, numa
espécie, como se dizia antigamente, de sentimento oceânico, em todo caso em algo
que estava, pelo menos num futuro próximo, condenado.”

p. 417 – “... ela tinha sido minha felicidade, mas também tinha sido, como pressenti
desde o início, minha morte; essa premonição, em todo caso, não me fizera hesitar,
tanto isso é verdade que temos de encontrar nossa própria morte, vê-la pelo menos
uma vez de frente, cada um de nós, no fundo de si mesmo, sabe disso, e é mil vezes
preferível que essa morte, em vez da outra, habitual, do tédio e do desgaste, tenha
excepcionalmente o rosto do prazer.”

p. 418 – “A separação física total constitui, a bem da verdade, uma configuração social
possível”

p. 418 – “Extinto o contato, seguiu-se o desejo.”

p. 419 – “a nostalgia do desejo”

p. 419 – “... e é com grande tranquilidade que discuto com Esther31 acerca dos detalhes
das relações entre nossos respectivos predecessores; ela, por sua vez, manifesta uma
frieza no mínimo igual, e é sem arrependimento, sem perturbação, que nos separamos
ao cabo de nossas intermediações episódicas, que retomamos nossas vidas calmas,
contemplativas, que teriam provavelmente parecido, aos humanos da era clássica, de
um tédio insuportável.”

p. 420 – “Ao rejeitarmos o paradigma incompleto da forma, aspiramos a nos juntar ao


universo das potencialidades inumeráveis. Fechando o parêntese do devir, entramos a
partir de agora num estado de estase ilimitado, indefinido.”

p. 421 – “Não há mais mundo real, mundo percebido, mundo humano, saí do tempo,
não tenho mais passado nem futuro, não tenho mais tristeza nem projeto ou nostalgia,
abandono ou esperança; há somente medo.”

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