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A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA

p. 387 – “O prazer sexual não era apenas superior, em refinamento e violência, a todos
os outros prazeres que a vida comportava; não apenas era o único prazer que não vinha
acompanhado de nenhum dano ao organismo, como, ao contrário, contribuía para
preservá-lo em seu mais alto nível de vitalidade e força; era o único prazer, o único
objetivo na verdade da existência humana, e todos os outros – fossem associados a
iguarias ricas, ao tabaco, ao álcool ou à droga – não eram senão compensações
ridículas e desesperadas, minissuicídios que não tinham a coragem de dizer seu nome,
tentativas de destruir mais rapidamente um corpo que perdera o acesso ao prazer
único.”

p. 387 – 389 – “A juventude era o tempo da felicidade, sua temporada única; ao


levarem uma vida indolente e despreocupada, parcialmente tomada por estudos
pouco absorventes, os jovens podiam se dedicar sem limites à livre exultação de seus
corpos. Podiam jogar, dançar, brincar, multiplicar os prazeres. Podiam sair, nas
primeiras horas da manhã, de uma festa em companhia de parceiras sexuais escolhidas
e contemplar a fila morna dos empregados dirigindo-se para o trabalho. Eles eram o
sal da terra, e tudo lhes era dado, tudo lhes era permitido, tudo lhes era possível. Mais
tarde, depois de fundarem uma família, membros do mundo dos adultos, conheceriam
as aporrinhações, o labor, as responsabilidades, as dificuldades da existência; teriam
de pagar impostos, sujeitar-se às formalidades administrativas sem por isso deixarem
de assistir, impotentes e envergonhados, à degradação irremediável, a princípio lenta,
depois cada vez mais rápida, de seus corpos; teriam sobretudo de sustentar crianças
como inimigos mortais em sua própria casa, teriam de mimar, alimentar, preocupar-se
com suas doenças, garantir os meios para sua instrução e seus prazeres, e, ao contrário
do que acontece com os animais, isso não duraria apenas uma temporada,
permaneceriam até o fim escravos de sua progênie, o tempo da alegria simplesmente
terminara para eles, teriam de continuar a sofrer até o fim, na dor e nos achaques de
saúde freqüentes, até que não servissem para mais nada e fossem definitivamente
jogados fora como velhos espaçosos e inúteis. Seus filhos, em contrapartida, não lhes
seriam gratos em nada, muito pelo contrário, seus esforços, por mais tenazes, nunca
seriam considerados suficientes, seriam até o fim, pelo simples fato de serem pais,
considerados culpados. Dessa vida dolorosa, marcada pela vergonha, toda alegria seria
impiedosamente banida. Mal fizessem menção de se aproximar do corpo de jovens
seriam expulsos, repelidos, fadados ao ridículo, ao opróbrio e, em nossos dias, cada
vez mais freqüentemente à reclusão. O corpo físico dos jovens, único bem desejável
que um dia o mundo foi capaz de produzir, era reservado ao uso exclusivo dos jovens,
e o destino dos velhos era trabalhar e padecer. Eis o verdadeiro sentido da
solidariedade entre gerações: consistia num puro e simples holocausto de cada
geração em proveito daquela chamada a substituí-la, holocausto cruel, prolongado, e
que não vinha acompanhado de nenhuma consolação, nenhum reconforto, nenhuma
compensação material ou afetiva.”

p. 390 – “... até o fim recusamo-nos a colaborar e aprovar um sistema concebido para
nos destruir.”

p. 391 – 392 –“Mortas as promessas


De um corpo adolescente,
Entramos na velhice
Onde somente nos espera

A memória vã
Dos nossos dias mortos,
Um sobressalto de ódio
E o desespero nu.”

p. 394 – “... começava a berrar, a rolar pelo chão, aparentemente à beira da apoplexia,
mas detendo-se de vez em quando para constatar, com pequenos olhares matreiros,
que seus genitores permaneciam sob sua inteira dominação mental; os fregueses que
passavam lançavam olhares indignados, os próprios vendedores começavam a se
aproximar da fonte de problemas, e os pais, cada vez mais constrangidos, acabavam
se ajoelhando diante do monstrinho e pegando todas as caixas de bombons ao alcance
para lhe estender, como se fossem oferendas. A imagem então congelava, enquanto
estampava-se, em letras maiúsculas na tela, a seguinte mensagem: "JUST SAY NO. USE
CONDOMS."”

p. 397 “... ia fazer daquela casa uma espécie de mausoléu, um mausoléu de coisas
nulas, porque o que eu vivera ali era no conjunto nulo, mas um mausoléu de toda
forma. "Mausoléu nulo...".”

p. 398 – “... que continuava mesmo assim, no fundo de mim e contra todas as
evidências, a acreditar no amor.”
p. 402 – 403 – “O aspecto inovador das propostas de vida elohimitas era agora
essencialmente assumido por Lucas, cuja comunicação incisiva, ridicularizando sem
rodeios a paternidade, jogando com a ambigüidade sexual das adolescentes com uma
audácia controlada e desvalorizando o antigo tabu do incesto sem atacá-lo de frente,
conferia a todas as suas campanhas na imprensa um impacto sem relação com o
investimento concedido, ao mesmo tempo que impunha um amplo consenso por meio
de uma apologia sem reservas dos valores hedonistas dominantes e uma homenagem
abalizada às técnicas sexuais orientais, tudo num teatro visual ao mesmo tempo
estetizado e direto que fizera na escola”

p. 404 – “... como se minha vida inteira não houvesse passado de seu comentário mais
ou menos explícito:

A morte é que consola e que nos faz viver


É o alvo desta vida e a única esperança
Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,
E forças para andar até o anoitecer.

Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,


É a luz que em nosso livido horizonte avança,
É a pousada que um livro diz como se alcança,
E onde se pode descansar e adormecer."*”
*Tradução de Ivan Junqueira, "A morte dos pobres", in Charles Baudelaire, As flores do mal, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985. (N. do T.)

p. 406 – “Fui então tomado por um intenso desejo de desaparecer, de derreter num
nada luminoso, ativo, vibrante de potencialidades perpétuas; a luminosidade voltou a
cegar, o espaço ao meu redor pareceu explodir e se difratar em parcelas de luz, mas
não se tratava de um espaço no sentido habitual do termo, comportava dimensões
múltiplas e todo outro tipo de percepção desaparecera – esse espaço não continha, no
sentido habitual do termo, nada.”

p. 407 – “... era impossível, eu disse a Vincent um pouco mais tarde, permanecer vivo
num lugar daqueles mais de dez minutos.”

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